CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela...

167
1 UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO MESTRADO EM DIREITO DENIS ORTIZ JORDANI CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos. RIBEIRÃO PRETO 2012

Transcript of CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela...

1

UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO

MESTRADO EM DIREITO

DENIS ORTIZ JORDANI

CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL:

Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos.

RIBEIRÃO PRETO

2012

2

DENIS ORTIZ JORDANI

CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL:

Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos.

Dissertação apresentada à Universidade de Ribeirão Preto, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direitos Coletivos e Função Social do Direito.

Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld

RIBEIRÃO PRETO

2012

3

Ficha catalográfica preparada pelo Centro de Processamento Técnico da Biblioteca Central da UNAERP

- Universidade de Ribeirão Preto -

Jordani, Denis Ortiz, 1980 -. J82c Controle jurisdicional de políticas públicas e reintegração social: execução penal e tutela coletiva dos direitos dos presos / Denis Ortiz Jordani. - - Ribeirão Preto, 2011.

167 f.

Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld. Dissertação (mestrado) - Universidade de Ribeirão Preto,

UNAERP, Direito, 2011. 1. Direitos fundamentais. 2. Política pública. 3. Prisioneiros – Direitos civis. 4. Controle jurisdicional. I. Título.

CDD: 340

4

5

Dedico esse trabalho aos meus amados pais, Luiz Carlos e

Solange, por todo amor, carinho e dedicação ao longo de toda a

minha vida. Exemplos máximos de uma vida sã e correta. Se me

tornei a pessoa que sou, devo invariavelmente à vocês!;

À Antonio Lopes Ortiz, in memoriam;

À minha esposa, eterna namorada e amor da minha vida, Mileny,

por toda a paciência na horas (e foram muitas) em que estive

longe, física ou mentalmente para poder concluir este trabalho.

6

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –

Capes, pela bolsa de pesquisa concedida, sem a qual este trabalho

jamais lograria êxito;

Aos meus alunos, que sempre acreditaram na conclusão deste

trabalho e que diariamente depositam sua confianças e expectativas

no conhecimento passado em sala;

À Rodrigo e Andrea Atili, amigos especiais e em todas as horas,

pelos bons fluídos e pela paciência nos tempos de desespero;

Ao professor e padrinho Paulo Eduardo Lépore, que com sua

sutileza e perspicácia teve o zelo de sentar-se no sofá da sala de pós-

graduação, na última hora, do último dia do prazo para entrega do

projeto de bolsa da Capes e que com suas ideias, possibilitou tal

concretização;

Ao amigo Rogério, meu livreiro por mais de 10 anos, pelos seus

constantes préstimos e por encontrar obras de valor inestimável.

Aos amigos e colegas de mestrado, em especial Márcio Germinari,

Renata Follone, Rúbia Spirandelli, Leonardo Junqueira, Ricardo

Sobral, Leopoldo Rocha e Sarah Chaves, Djalma Pizzaro e Paulo

Duarte pelas horas de convívio e pela experiência de vida;

Aos professores e corpo administrativo do programa de mestrado da

Unaerp;

Ao sempre brilhante professor e amigo Cláudio Antonio de Paiva

Simon, por todos os conselhos, orientações e observações que fez,

tornando o labor mais fácil e menos problemático;

À minha chefa querida do coração, Professora Cristina Veloso de

Castro, ilustre coordenadora do curso de direito da Universidade do

Estado de Minas Gerais (minha sempre casa) por confiar nas

palavras vãs e inconscientes de um jovem que tinha apenas ânsia de

se tornar professor e confiar em seu trabalho, quando ninguém mais

o faria!;

Ao meu orientador, coordenador e amigo, Professor Dr. Lucas de

Souza Lehfeld, pelo empenho e credibilidade depositada desde o

primeiro dia, sempre interessado, incentivando e indicando a posição

segura a ser seguida.

7

A pena deveria ser de educação. A pessoa deveria ser condenada mas é a ler livros, se educar, a se internar em colégios punitivas, hoje chamadas de casas de reeducação, sejam escolas de trabalho e instrução.

Isto porque toda criatura está sentenciada à morte pelas leis de Deus, porque a morte tem o seu curso natural.

Por isso, acho que a pena de morte é desumana, porque ao invés de estabelecê-la devíamos coletivamente criar organismos que incentivassem a cultura, a responsabilidade de viver, o amor ao trabalho. O problema de periculosidade da criatura, quando ela é exagerada, esse problema deve ser corrigido com educação e isso há de se dar no futuro. Porque nós não podemos corrigir um crime com outro, um crime individual com um crime coletivo.

Chico Xavier – Mandato de Amor, editado pela União Espírita Mineira – Belo Horizonte, Minas Gerais.

8

RESUMO

O presente trabalho busca estabelecer elo de ligação entre os direitos

assegurados às pessoas privadas de liberdade, entendidas como direitos individuais

manejados coletivamente e os direitos fundamentais estabelecidos pelo legislador

Constitucional. Para tanto, estuda-se uma forma de efetivação desses direitos através de

políticas públicas elaboradas, a princípio, pelo administrador e em segundo momento,

quando este falha em sua missão de efetivação de direitos fundamentais, pelo Judiciário,

ante a manifesta possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas. Para

tanto, desvendam-se os contornos e principais aspectos dos três institutos envolvidos:

direitos fundamentais, políticas públicas e controle jurisdicional. Quanto aos direitos

fundamentais, abordam-se conceitos, classificações e principais características. Já no

que tange às políticas públicas, esclarece-se quais são seus aspectos estruturantes e

também se aclara a respeito dos principais institutos de direito financeiro e orçamentário

afetos a ela. Por fim, no que diz respeito ao controle jurisdicional, se faz uma

abordagem densa e pontual dos seus fundamentos e de suas especificidades.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas, Controle Jurisdicional,

Presos.

9

ABSTRACT

The presente study was to established a link between the rights secured to

persons deprived of freedom, understood as individual rights collectively maneged and

the fundamental rights established by constitutional legislature. To ths end, we study a

form of realization of these rights through public policies designed at first by the

administrator and the second time, when it fails in its mission of effecting fundamental

rights, the judiciary, against de clear possibility of judicial review public policy. To do

so, to reveal the outlines and main features of the tree institutes involved: fundamental

rights, public policy and jurisdictional control. As for the fundamental rights approuch,

concepts, classifications and key features. Already in regard to public policies, it

clarifies what are their srtuctural aspects and also becomes clear about the major

financial institutions of law and affection to her budget. Finally, with regard to judicial

review, an approuch is made dense and off their foundations and their specificities.

Keywords: Fundamental rights, Public Policy, Constitutional Control, Prisioners

10

LISTA DE SIGLAS

a.C – Antes de Cristo

ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

BVerfG – Tribunal Constitucional Alemão

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

d.C – Depois de Cristo

DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional

FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional

HC – Habeas Corpus

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

LACP – Lei de Ação Civil Pública

LEP – Lei de Execução Penal

LOA – Lei Orçamentária Anual

ONU – Organização das Nações Unidas

RE – Recurso Extraordinário

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

UNESCO – United Nations, Educational, Scientific and Cultural Organization

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 13

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS DOS PRESOS...................... 17

1.1 Direitos fundamentais da pessoa humana.......................................................... 17

1.1.1 Direitos fundamentais a partir de Jellinek....................................................... 22

1.2 Dignidade da pessoa humana............................................................................. 27

1.3 Direitos Coletivos............................................................................................... 34

1.3.1 Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos sob a ótica dos

privados de liberdade................................................................................................

37

1.4 Eficácia e aplicabilidade dos direitos de proteção aos presos............................ 46

2. DIREITO PENAL E FUNÇÃO DA PENA...................................................... 50

2.1 A natureza do crime na história e nas sociedades contemporâneas................... 50

2.1.1 Direito penal na Idade Antiga......................................................................... 51

2.1.2 Direito penal na Idade Média.......................................................................... 55

2.1.3 Direito penal na Idade Moderna...................................................................... 61

2.2 Teorias penais e função da pena......................................................................... 69

2.2.1 A resposta negativa: os sistemas abolicionistas.............................................. 71

2.2.2 A resposta positiva: os sistemas justificacionistas.......................................... 73

2.2.2.1 Teorias absolutas ou retributivas da pena..................................................... 74

2.2.2.2 Teorias relativas ou preventivas da pena...................................................... 77

2.2.2.2.1 Teoria da prevenção geral da pena............................................................ 78

2.2.2.2.2Teoria da prevenção especial da pena........................................................ 81

2.2.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena............................................................ 84

3. EXECUÇÃO PENAL E DIREITOS DOS PRIVADOS DE LIBERDADE.. 91

3.1 Reintegração social............................................................................................. 91

3.2 Direitos dos presos no curso da execução da pena............................................. 102

3.3 Sistema Penitenciário nacional........................................................................... 114

3.3.1 Fundo Penitenciário Nacional e a execução orçamentária e de recursos do

12

sistema penitenciário................................................................................................ 120

4. EXECUÇÃO PENAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: EFETIVIDADE DOS

DIREITOS DOS PRESOS.....................................................................................

127

4.1 Judicialização das políticas públicas e efetivação dos direitos coletivos dos

presos........................................................................................................................

127

4.1.1 Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional............................. 130

4.2 Limites à intervenção jurisdicional no campo de políticas públicas e críticas

pontuais quanto aos limites......................................................................................

136

4.2.1 Reserva do possível como restrição orçamentária.......................................... 136

4.2.2 O mínimo existencial – Limite ao administrador e ao Poder Jurisdicional..... 141

4.2.3 Proporcionalidade e o dever de proteção do Estado........................................ 144

4.3 Políticas Públicas e o processo reintegrativo por meio da Execução

Penal.........................................................................................................................

148

CONCLUSÃO........................................................................................................ 156

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 160

13

INTRODUÇÃO

O estudo dos direitos coletivos é objeto de profundas reflexões cotidianas

frente as mais variadas manifestações da sociedade. Tem-se observado de forma

veemente que diversas correntes doutrinárias discorrem sobre todos os aspectos que

permeiam esses direitos, desde a sua concepção genérica de direito que diz respeito à

sociedade, até as suas espécies hoje definidas como direitos coletivos, direitos difusos e

direitos individuais homogêneos. No que se refere aos direitos dos presos, pode-se notar

que rol expressivo desses direitos se encontra, no ordenamento pátrio, estipulados na

Lei de Execução Penal, com o intuito de proporcionar aos seus destinatários

instrumentos de reintegração social e, à sociedade, segurança.

O Estado moderno, no seu processo histórico de desenvolvimento, evoluiu a

partir de um modelo de Estado absoluto, em que o poder estava concentrado no rei e era

exercido de forma ilimitada, para um novo modelo denominado de Estado

constitucional, de separação de poderes, submetido ao direito, regido por leis e

conformado por uma Constituição que regula tanto sua organização, como a relação

com os cidadãos, de modo a impedir o arbítrio. Em sua origem, o Estado constitucional

assentava-se sobre a ideia de liberdade formal, que importava apenas na abstenção do

Estado e no respeito às liberdades fundamentais do indivíduo. Os atos de governo,

desde que estivessem em conformidade com a lei, reputavam-se legítimos. As

Constituições nascidas sob esse modelo eram como meros manifestos políticos

impregnados de declarações de direitos e de promessas de concretização futura. O grave

quadro de desigualdade social e a pressão das classes oprimidas força o Estado

constitucional a intervir no campo social, assegurando direitos sociais mínimos. A

superação desse modelo de Estado fez nascer o Estado democrático de direito, no qual,

para além do respeito às liberdades negativas, também é preciso proporcionar condições

materiais necessárias ao gozo e à promoção ativa da liberdade e de outros bens

constitucionalmente valiosos. A Constituição deixa de ser uma mera carta de intenções

e assume uma posição de supremacia, dotada de um elevado grau de normatividade

determinante de todas as relações jurídico-sociais e da ação de todos os órgãos do

Estado. A democracia, como princípio, torna-se impulso dirigente da sociedade, de

maneira a oferecer a todos a possibilidade de desenvolvimento integral e condições de

igualdade econômica, política e social.

14

O Estado moderno surge e se justifica como meio para dar segurança ao

homem, garantindo sua vida, liberdade e sua propriedade diante de agressões partidas de

seus semelhantes. A noção de segurança, sob a inspiração do princípio democrático,

estende seu âmbito de proteção também à segurança dos direitos fundamentais,

impondo ao Estado que encontre caminhos que possibilitem a efetivação de todos os

direitos garantidos na Constituição. A democracia pressupõe segurança, pois a

insegurança pode levar a soluções contrárias ao ideal democrático e até mesmo à

falência da democracia, fragilizando o próprio Estado e suas instituições. Opera-se uma

mudança do foco do Estado em direção ao indivíduo como ser humano e cidadão,

expandindo a concepção dos direitos fundamentais, tornando-se mais complexa e

abrangente e dotando-se de múltiplas dimensões.

Para conhecer esse poder estatal e suas dificuldades de efetivar direitos

como os direitos dos privados da liberdade, na preservação da ordem e integridade física

das pessoas, imprescindível a análise do desenvolvimento histórico dos direitos

fundamentais. Formada essa base indispensável, concentra-se em situar a reintegração

social do preso entre os fins e tarefas do Estado constitucional e delimitar

genericamente o seu âmbito de proteção no Estado democrático de direito.

Nessa concepção de Estado democrático de direito, a ordem social é

pressuposto para a sobrevivência das instituições e valores conquistados ao longo do

tempo. A dignidade humana, por conseguinte, tem relação intrínseca com a necessidade

de efetivação das previsões constitucionais, em suas diversas dimensões. Seu estudo

axiológico, portanto, se faz necessário no presente trabalho, para compreensão de sua

fundamentalidade como direito de todos.

Em verdade, os critérios preventivos da pena ainda poderão ser úteis à

sociedade, bem como ao agente que cometeu a infração, principalmente no que diz

respeito à prevenção especial ou à reintegração do condenado. Deve-se entender que,

mais que um problema de Direito Penal, a ausência de reintegração social daquele que

teve sua liberdade suprimida pela pena, antes de tudo, é um problema coletivo, é um

problema que ataca os interesses públicos, é um problema político-social do Estado.

A reintegração é verdadeiro serviço público que deve ser prestado pelo

Estado, e responsabilidade também da sociedade em oferecer ao egresso do sistema

penitenciário oportunidades de inserção social. Razão pela qual o trabalho também não

se furta de construir uma concepção atualizada e dinâmica de política pública, sob o

15

manto dos ideais democráticos e princípios constitucionais. Temática que, a partir do

momento em que as constituições ultrapassaram os limites da estruturação do poder e

das liberdades públicas e passaram a tratar dos direitos fundamentais e de sua

concretização, não pode ser olvidada quando se pretende dissertar sobre o controle

jurisdicional de ações na área da direitos fundamentais, ainda que sem a pretensão de

esgotar o tema.

Em um Estado democrático de direito quem governa é a Constituição,

impondo-se aos poderes constituídos nela buscar as balizas para a sua atuação na

escolha do que atender e de quanto disponibilizar, sem descurar dos mínimos e das

prioridades já fixados constitucionalmente. O orçamento deve ser entendido como um

instrumento de implementação das imposições constitucionais e expressão do

planejamento das políticas públicas a serem realizadas pelo Estado. A noção de escassez

é uma noção artificial que não pode ser tida como irrefutável, muitas vezes não

passando de uma opção política de não se gastar dinheiro com um determinado direito.

A reserva do possível não é um óbice absoluto à realização de políticas públicas

voltadas para a concretização do direito fundamental à reintegração social, impondo

apenas que essa concretização seja feita à luz do contexto fático e normativo e mediante

um juízo de ponderação, fazendo prevalecer, na medida do necessário, as imposições

constitucionalmente mais relevantes. Esse modelo de ponderação deve ser empregado,

inicialmente, pelo Executivo e pelo Legislativo, no momento de pautar o planejamento,

as escolhas alocativas e a execução das políticas públicas. Num segundo momento,

então, acaso desrespeitada pelos outros Poderes a ordem axiológica de gastos públicos

imposta pela Constituição Federal, poderá Poder Judiciário exercer o controle judicial

das leis orçamentárias, privilegiando as prioridades nela estabelecidas.

A proteção e a promoção dos direitos fundamentais, entre eles o da

reintegração social, constitui uma atividade ponderativa em sua essência, pois as

escolhas sobre o que será atendido e em quanto será atendido implicam numa definição

ou eleição de prioridades. O juízo de ponderação permitirá sindicar as escolhas dos

Poderes públicos, de modo a eleger aquela que estiver conforme ao conjunto de valores

e princípios constitucionais. Essa operação, entretanto, exige critérios racionais, que não

só pautem o controle judicial da liberdade do administrador e do legislador e permitam

o controle das próprias decisões judiciais, mas também que leve em consideração a

16

vontade expressa por meio dos órgãos de participação social na gestão das políticas

públicas.

Portanto, o exame do controle jurisdicional das políticas de segurança

pública, para que se possibilite a efetivação dos direitos previstos na Lei de Execução

Penal, garantindo de forma imediata a dignidade da pessoa humana do preso, visando

principalmente a reintegração social e de forma mediata, alcançar a segurança pública

entendida como um direito coletivo é a pedra de toque do presente trabalho.

17

CAPÍTULO 1

DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS DOS PRESOS

1.1 Direitos Fundamentais da pessoa humana

Os direitos fundamentais da pessoa humana assumem, com a nova ordem

constitucional de 1988, novas características e funções perante os demais direitos e

notadamente, perante aos seus destinatários ou titulares.

Sobre a terminologia adotada direitos fundamentais revela-se a opção por

sua adoção frente a direitos humanos e direitos do homem, direitos subjetivos públicos,

ainda que pesem as variadas posições, todas com peso teórico relevante1, a própria

Constituição utilizou-se de variadas semânticas para expressar direitos fundamentais.

As expressões direitos humanos e direitos fundamentais são comumente

utilizadas como sinônimas necessitando, porém, de distinção quanto à sua justificação

terminológica, visto que para Sarlet2, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem,

procedente para diferenciação dos termos é que direitos fundamentais se aplica para os

direitos humanos reconhecidos e positivados dentro do ordenamento constitucional

positivo de um Estado, enquanto que direitos humanos teria relação com documentos de

ordem internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser

humano como tal, independente de sua vinculação com determinada ordem

constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e

tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

É importante que se registre a diferença entre direitos humanos e direitos do

homem, não se equiparando mais as duas expressões, desprendendo-se os conceitos, até

porque Bobbio os referenciou de forma inconteste.

Quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos

naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito

igualmente natural, o chamado direito de resistência, Mais tarde, nas Constituições que

1 Cf. LUÑO, Antonio enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constituición. 5 ed., Madrid: Tecnos, 1995. p. 21. 2 SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed., rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 29.

18

reconheceram a proteção jurídica de alguns desses direitos, o direito natural de

resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os

próprios órgãos do Estado. [...] Quando se diz que a Declaração Universal representou

apenas o momento inicial da fase final de um processo, o da conversão universal em

direito positivo dos direitos do homem, pensa-se habitualmente na dificuldade de

implementar medidas eficientes para sua garantia [...]3.

Desta forma, direitos humanos referem-se aos direitos positivados nas

Declarações e em documentos internacionais, possuindo alta carga valorativa,

constituindo-se em um sistema de valores4, já que, pela primeira vez na história, o

consenso sobre a validade e capacidade de reger os destinos da comunidade futura foi

expressamente declarado, constituindo-se de um universalismo valorativo. Já a

expressão direitos do homem indica a relação aos direitos naturais, não de um homem

em abstrato, subtraído ao fluxo da história e sim de um homem essencial e histórico,

evolutivo, transformável, até pela visão dos jusnaturalistas onde em Hobbes se

verificava o reconhecimento apenas do direito à vida e em Locke o direito à liberdade,

demonstrando a impossibilidade de dissociação do homem com a história e, por

conseguinte, de seu processo evolutivo enquanto homem social.

O cerne nessa inicial discussão é a diferenciação entre direitos do homem,

direitos humanos e direitos fundamentais. Desta feita, a distinção entre as expressões se

da em “‘direitos do homem’ (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não

positivados), ‘direitos humanos’ (positivados na esfera do direito internacional) e

‘direitos fundamentais’ (direitos reconhecidos pelo direito constitucional de casa

Estado)5”.

Nesse contexto, de acordo com o ensinamento de Pérez Luño, o critério

mais adequado para determinar a diferenciação entre ambas revelou conceito de

contornos mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, de tal sorte

que estes possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem o

conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo

direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados

3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 31. 4 Ibidem. p. 28. 5 SARLET. Ibidem. p. 30.

19

espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e

fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.6

Isso revela um aspecto importante da diferenciação entre direitos

fundamentais e direitos humanos. Estes guardam uma concepção jusnaturalista, visto

que são formados de alta carga valorativa, porém sem cunho obrigacional de adoção e

efetivação, ao passo que os direitos fundamentais têm matiz constitucional ante sua

positivação e com isso gera obrigações de respeito e efetivação, tanto por parte do

Estado que o incorpora ao seu ordenamento constitucional como pelo destinatário ou

titular desse direito. A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação da

ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais. Porém, não basta apenas a

positivação, é importante a positivação na Constituição (constitucionalização) e um

lugar de destaque e que mereça especial proteção, assinalando-lhes a dimensão de

Fundamental Rights7 (fundamentalização). Sem essa positivação, os direitos

fundamentais são apenas aspirações, valores, esperanças, mas não são direitos

protegidos.

Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir de forma mais contundente no período que sucedeu à Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo. 8

O reconhecimento destas diferenças não significa desconsiderar a relação

existente entre direitos humanos e direitos fundamentais, uma vez que, segundo Sarlet9,

a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração

Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as

sucederam, ocorrendo assim, um processo de aproximação e harmonização.

6 Idem. Ibidem. p. 31. 7 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. 8 reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2000. p. 377. 8 SARLET. Ibidem. p. 61. 9 CANOTILHO. Ibidem. p. 32.

20

Essa diferenciação e conceituação têm hoje apenas caráter didático já que o

problema que os direitos fundamentais enfrentam hoje, não é mais sua fundamentação,

mas sim sua defesa e efetivação. “Não se trata de saber quais e quantos são esses

direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são naturais ou históricos, absolutos

ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que

sejam continuamente violados”10.

A fundamentalidade de um direito, segundo Alexy, passa por duas

categorias de definição. Uma de sentido formal e outra de sentido material.

“A fundamentalidade formal decorre da sua posição no ápice da estrutura

escalonada do ordenamento jurídico, como direitos que vinculam diretamente o

legislador, o Poder Executivo e o Judiciário”11 (grifo nosso). É, pois, o fato de

incorporar dentro do texto constitucional, categoria especial de direitos carecedores de

proteção, sendo colocadas num patamar superior da ordem jurídica.

Dessa forma, por estarem presentes positivamente no texto constitucional,

muitas vezes constituem limites materiais de revisão constitucional. “Sempre que

alguém tem um direito fundamental, há uma norma que garante esse direito”12. O ponto

mais importante, porém, é a vinculação dos poderes públicos aos direitos assegurados

como fundamentais. Do momento de sua fundamentalização formal, a vinculação dos

poderes é inescusável, devendo seguir todos os parâmetros possíveis para sua

efetivação.

A fundamentalização material, conforme ensina Canotilho13, é constitutivo

das estruturas básicas do Estado e da sociedade. Somente a ideia de fundamentalização

material justifica a abertura da Constituição para outros direitos, também fundamentais,

mas não constitucionalizados e abertura a novos direitos, podendo então falar-se em

clausulas abertas e em bloco de constitucionalidade.

Colocadas essas premissas iniciais, se faz oportuno apresentar uma

definição dogmática sobre o conceito de direitos fundamentais, baseada no

10 BOBBIO. Ibidem. p. 25. No mesmo sentido v. CANOTILHO, Ibidem. p. 378. 11 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 520. 12 Idem. Ibidem. p. 50. 13 CANOTILHO. Ibidem. p. 379. Cf. ainda ALEXY. Ibidem. p. 522.

21

posicionamento de Dimoulis e Martins: “Direitos fundamentais são direitos públicos14-

subjetivos15 de pessoas (naturais ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais

e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como

finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”16.

“A primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo dos direitos,

liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os

poderes do Estado (e de outros esquemas políticos coactivos)”.17

Assim, para que possamos entender o impacto da fundamentalidade formal

e material dos direitos fundamentais, é mister que se faça uma digressão histórica sobre

estes direitos. Posta essa premissa, enfocar-se-á no presente trabalho a marcha dos

direitos fundamentais após a Revolução Francesa de 1789, por ser interessante conhecer

o contexto político-jurídico da evolução de tais direitos para bem situar a gênese dos

direitos de dimensão coletiva e dos instrumentos processuais especialmente criados para

sua tutela.

Os direitos fundamentais são frutos de um processo histórico, levando-se em

consideração as necessidades dos seres humanos, o que, por si só, justifica a

necessidade de sua constante redefinição, surgindo, nesse passo, o que a doutrina

denomina de dimensões dos direitos fundamentais, visto que sua trajetória inicial deu-se

com o reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, encontrando-se ainda em

14 Sarlet denuncia a questão semântica da adoção do adjetivo público aos direitos subjetivos, justificando a não adoção desde conceito e sim que direitos fundamentais são direitos subjetivos e não direitos públicos-subjetivos, pois o mesmo se revela anacrônico e superado, não estando afinado com a realidade constitucional, uma vez que atrelada a uma concepção positivista e essencialmente estatista dos direitos fundamentais na qualidade de direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, típica do liberalismo. Assim, quando se fala no contexto da perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, está se referindo à possibilidade que tem o titular (considerada como a pessoa individual ou ente coletivo a quem é atribuído) de fazer valer judicialmente os poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma consagradora do direito fundamental em questão. Cf. Ibidem. p. 152-154. 15 De outro lado, segundo Gilmar Mendes, a perspectiva objetiva “resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. Os direitos fundamentais participam da essência do Estado de Direito democrático, operando como limite do poder e como diretriz para a sua ação. As constituições democráticas assumem um sistema de valores que os direitos fundamentais revelam e positivam. Esse fenômeno faz com que os direitos fundamentais influam sobre todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos. Os direitos fundamentais, assim, transcendem a perspectiva da garantia de posições individuais, para alcançar a estatura de normas que filtram valores básicos da sociedade política, expandindo-os para todo o direito positivo. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 300. 16 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 49. 17 CANOTILHO. p. 407.

22

“processo de transformação e que culmina com a recepção nos catálogos constitucionais

e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas”18.

Alguns autores, contudo, preferem a terminologia gerações de direitos

fundamentais à utilizada neste trabalho, mas, como bem pondera André Ramos Tavares,

“a ideia de ‘gerações’, contudo, é equívoca, na medida em que dela se reduz que uma

geração se substitui, naturalmente, à outra, e assim, sucessivamente, o que não ocorre,

contudo, com as ‘gerações’ ou ‘dimensões’ dos direitos humanos”.19

Dessa forma, como os direitos fundamentais alicerçam-se nas necessidades

dos seres-humanos inseridos na sociedade, suas dimensões20 não excluem umas às

outras, mas sim interpenetram-se, ou seja, ocorre entre elas a relação de

complementariedade.

Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. 21

1.1.1 Direitos fundamentais a partir de Jellinek

A finalidade principal dos direitos fundamentais se revela em conferir aos

indivíduos uma postura jurídica de direito subjetivo, na maioria das vezes de natureza

material, mas em outras de natureza processual, limitando a liberdade de atuação estatal.

Por isso, cada direito fundamental constitui, na definição do constitucionalista alemão

18 SARLET, Ibidem. p. 46. 19 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 468. 20 Cabe ressaltar que essa denominação “gerações”, pela doutrina constitucional moderna, não se mostra mais adequada, pois manifesta a impressão de que os direitos humanos vão se tornando obsoletos ao passar do tempo, com o surgimento de novas gerações. Portanto, mais adequada a utilização de “dimensões de direitos humanos”, não obstante adotarmos a classificação tradicional de Norberto Bobbio. Na realidade, são direitos que transpassam o tempo e permanecem inseridos no patrimônio de cada pessoa, razão pela qual devem ser observados e protegidos. Por outro lado, importante ainda revelar que, frente às novas relações sociais e evolução tecnológica, em especial da engenharia genética, hodiernamente, fala-se em uma quarta geração ou dimensão de direitos humanos, qual seja, a relativa à integridade do patrimônio genético. 21 SARLET. Ibidem. p. 45.

23

Georg Jellinek, um direito público subjetivo, isto é, um direito individual que vincula o

Estado.22

A depender da matéria tratada, o Estado pode estar obrigado a fazer algo ou

abster-se de atuar. Portanto, do ponto de vista do indivíduo um direito fundamental

representa, visto pela perspectiva do Estado, uma norma de competência negativa23 que

restringe sua atuação.

Jellinek desenvolveu parte de seu trabalho observando as formas de

interação entre o indivíduo e o Estado e a depender dessa interação ou status é que se

fixam direitos e deveres.

Assumindo a divisão feita por Jellinek, têm-se algumas divisões dessas

relações e que ao final assumem a posição de cada uma das dimensões de direitos

fundamentais propaladas pelos teóricos.

Primeiramente cumpre falar sobre os direitos de status negativus ou de

pretensão de resistência à intervenção estatal. Trata-se de direitos que permitem aos

indivíduos resistir a uma possível atuação do Estado. Nessa hipótese, o Estado não deve

interferir na esfera do indivíduo, sendo que este pode repelir eventual interferência

estatal, resistindo com vários meios que o ordenamento lhe confere, protegendo a

liberdade individual contra uma possível atuação estatal, limitando-as.24

A essência de tal direito está na proibição de interferência imposta ao

Estado, tratando-se de um direito negativo, pois gerador da obrigação negativa

endereçada ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo. “Afirmaram-se os direitos de

liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a

reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em

relação ao Estado”.25

A constatação de que o status negativo de Jellinek é formado exclusivamente por faculdades, ou seja, por liberdades jurídicas não protegidas, é confirmada por manifestações do próprio Jellinek acerca de sua proteção por meio de

22 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 57. 23 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 87-88. A expressão “competência negativa” indica simplesmente a impossibilidade de atuação do Estado em determinadas hipóteses. Trata-se da “outra face” do direito fundamental, ou seja, se de um lado, ele significa outorga de uma esfera de liberdade ao seu titular, de outro, significa desistência pelo Estado, que monopoliza a força politicamente organizada de uma competência específica [...]. 24 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 58. 25 BOBBIO. Ibidem. p. 32.

24

direitos ao não-embaraço em face do Estado, isto é, acerca daquilo que comumente é chamado de ‘direito de defesa’. Segundo Jellinek, o status negativo está ‘protegido pela pretensão do indivíduo ao seu reconhecimento e pela proibição de que as autoridades estatais o perturbem, ou seja, pela proibição em relação a qualquer imposição de ordem ou de coação não legalmente fundamentada’. 26

Além disso, insta reconhecer que alguns dos clássicos direitos fundamentais

de primeira dimensão ou de status negativus estão sendo revitalizados e até mesmo

ganhando em importância na atualidade, de modo especial em face das novas formas de

agressão aos valores tradicionais incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade,

nomeadamente da liberdade, igualdade e da dignidade da pessoa humana.27

Resultado da reação do indivíduo contra a opressão do Estado absolutista, a

Revolução Francesa de 1789 inaugurou a idade contemporânea, sendo que no mesmo

ano seus valores foram lapidados da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão,

que pode ser considerada um marco na evolução dos direitos fundamentais.

[...] os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, implicando ara estes um dever de respeito a determinados interesses individuais, por meio da omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certas condições. Na esteira destas considerações, importa consignar, que esta “função defensiva” dos direitos fundamentais não implica, na verdade, a exclusão total do Estado, mas, sim, a formalização e limitação de sua intervenção, no sentido de uma vinculação da inerência por parte dos poderes públicos a determinadas condições e pressupostos de natureza material e procedimental, de tal sorte que a intervenção no âmbito de liberdade pessoal não é vedada de per si, mas, sim, de modo que apenas a ingerência em desconformidade com a Constituição caracteriza uma efetiva agressão.28

Os direitos fundamentais de primeira dimensão incluem em seu catálogo a

dignidade da pessoa humana, sobre a qual retomaremos a discussão no item 1.2.

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões

26 ALEXY. Ibidem. p. 259-260. 27 SARLET. Ibidem. p. 53. 28 SARLET. Ibidem. p. 168.

25

dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).29

Em sequência se faz importante referenciar os direitos de status positivus ou

a prestações. Também chamados de direitos sociais, a prestações ou de segunda

dimensão, engloba os direitos que permitem aos indivíduos exigir determinada atuação

do Estado, no intuito de melhorar suas condições de vida, garantindo os pressupostos

materiais necessários para o exercício da liberdade, incluindo as liberdades de status

negativus. Dessa forma, o Estado deve agir no sentido indicado pela Constituição, tendo

o indivíduo o direito de receber algo, que pode ser material ou imaterial. O termo

direitos sociais se justifica porque seu objetivo é a melhoria de vida de vastas categorias

da população, mediante políticas públicas e medidas concretas de política social.30

Dentro do cenário jurídico, é possível identificar como marcos dos direitos

sociais ou de segunda dimensão, as Constituição do México e de Weimar, de 1917 e

1919, respectivamente. Referidos instrumentos político-jurídicos trouxeram melhorias

nas condições de vida da população, garantindo-lhes, direito à moradia, à educação, à

saúde, à previdência, etc.

Nesse prisma, ao Estado que antes era imposta obrigação de não fazer, com

o dever de abstenção de interferência na vida privada dos seres humanos, nesta segunda

dimensão, ao Estado passa a ser imposta a obrigação de fazer, ou seja, de garantir ao seu

povo condições de uma vida digna, proporcionando a cada um de seus membros, ao

menos, o mínimo necessário para a sobrevivência, passando-se a exigir do Estado uma

postura mais ativista.

Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não-intervenção na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim, enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativus) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e ressalvados

29 CANOTILHO. Ibidem. p. 408. 30 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 60.

26

os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao status positivus de Lellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática).31

Tais prestações estatais que tornam apta a realização dos direitos sociais

podem ser de duas espécies, as prestações materiais que “traduzem-se em prestações

que alcançam a emancipação social, pois impõem ao Estado o manejo de políticas

públicas de cunho social, que tem o mister de reduzir as desigualdades substanciais”32 e

“prestações normativas que consistem na criação de normas jurídicas que tutelam

interesses individuais”33.

Já os direitos de status activus ou de participação oferecem a possibilidade

de participar na determinação política estatal de forma ativa. Trata-se de direitos ativos

porque possibilitam uma intromissão do indivíduo na esfera política decidida pelas

autoridades do Estado34.

Há ainda que se falar da terceira dimensão35 de direitos fundamentais a qual

não foi discutida por Jellinek e que segundo o teórico predominante Karel Vasak36,

surgiu a partir de ideias discutidas em reuniões da ONU e da UNESCO em 1979. Ela

engloba os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade ou de novíssima

dimensão. Está consubstanciada nos direitos transindividuais, como o meio ambiente

equilibrado, a autodeterminação dos povos e a paz entre as nações.

Por fim, ressalte-se que, devido ao fato de emergirem de lutas sociais, e representarem as necessidades básicas dos cidadãos, independentemente da geração a que pertençam, os direitos humanos gozam das seguintes características: a) imprescritibilidade (são direitos perenes, que não perdem a

31 SARLET. Ibidem. p. 184-185. 32 LÉPORE. Paulo Eduardo. Direitos fundamentais e processo coletivo: A tutela processual coletiva como instrumento de efetivação de políticas públicas. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Ribeirão Preto, 2010. p. 39 33 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 61 34 Idem. Ibidem. p. 61. 35 Importante ressaltar que, nas últimas edições de sua obra, Paulo Bonavides vem sustentando a existência de mais duas gerações de direitos, entretanto, seu posicionamento doutrinário é isolado. (Cf. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo. Malheiros, 2009). 36 Segundo afirmação de Antônio Augusto Cançado Trindade, no ano de 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, o jurista Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão "gerações de direitos do homem", buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. (Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm>. Acesso em 21 julho 2011).

27

exigibilidade pelo não exercício); b) irrenunciabilidade: (podem até não ser exercidos, mas jamais renunciados); c) Inalienabilidade: são direitos intransferíveis e inegociáveis porque não são dotados de conteúdo econômico-patrimonial e d) unitariedade/indissociabilidade/cumulatividade: devem ser exercidos em conjunto porque somente a garantia de todos, confere garantia ao princípio da dignidade na pessoa humana, epicentro dos direitos humanos.37

Nesse sentido, reforça-se a ideia de que todos os direitos fundamentais são

fruto das necessidades humanas básicas, representando corolários do princípio da

dignidade da pessoa humana.

1.2 Dignidade da pessoa humana

A construção do conceito de dignidade como um atributo da pessoa38, tal

como entendido atualmente somente se iniciou a partir do século XVIII.

Não existe necessariamente uma conexão entre direitos fundamentais e

dignidade da pessoa humana. Esse sistema protetivo e constitucionalizado de direitos

não se assentava na dignidade da pessoa humana, conteúdo por vezes de matriz religiosa

ou filosófica até o final do século XVIII. A ligação positivista entre direitos

fundamentais e dignidade da pessoa humana só começa com o Estado social de Direito,

e mais rigorosamente, com as Constituições e os grandes textos internacionais,

notadamente as declarações, subsequentes à segunda guerra mundial, não por acaso.

Assim, a ideia de dignidade passou por um processo de generalização, que

paulatinamente, alterou também seu conteúdo semântico, vinculando-se ao conceito de

liberdade ou não impedimento. Contudo, tal generalização ocorrida no século XVIII

com fundamento na liberdade não foi completa39, uma vez que tais declarações de

37 LÉPORE, Ibidem. p. 26. 38 [...] essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o Cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a submissão doméstica da mulher ao homem e a inferioridade dos indígenas americanos. (Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 17.) 39 Roberto Martins lembra que: “Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857, defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes argumentos: 1) negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade perante a lei ao nascer, não havendo qualquer preocupação com sua vida; 4) quem julgar a escravidão um mau, que não tenha escravos, mas não deve impor esta maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro

28

direitos foram fruto de um movimento histórico empreendido pela classe burguesa que

não expandiu o conceito de dignidade a todas as pessoas.40

Surge em resposta aos regimes que tentaram sujeitar e degradar a pessoa

humana. Hannah Arendt descreve este processo em As origens do totalitarismo

dizendo:

Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são; pois o cão de Pavlov que, como sabemos, era treinado para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era um animal degenerado.41

Após o fim da segunda guerra mundial, o conceito de dignidade humana

ressurge com vigor e é utilizado para demonstrar absoluto repúdio aos horrores nela

constitucionalização ganha impulso, podendo-se citar a Constituição italiana de 1947 e a

Lei Fundamental alemã de 1949.42

No processo de constitucionalização dos direitos humanos e sua

consequente fundamentalidade, a Constituição conferiu uma unidade de sentido, de

valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E essa

concordância repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz da

pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado.

[...] ao afirmar-se que o “desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem” tinham conduzido “a actos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade” e que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (preâmbulo da Declaração Universal). 43

enfrentar o mundo. (MARTINS, Ives Gandra da Silva. A dignidade da pessoa humana desde a concepção. In MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Org.). Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. 2 ed. atual. e ampl. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.150). 40 COSTA, Helena Regina Lobo da. Dignidade humana. Teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 23. 41 ARENDT, Hannah. apud COSTA. Ibidem. p. 26. 42 COSTA. Ibidem. p. 26-27. 43 MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In MIRANDA; SILVA. Ibidem. p.169.

29

Nessa perspectiva, como característica essencial da pessoa tida como sujeito

e não como objeto, a dignidade é um princípio que co-envolve todos princípios relativos

aos direitos e também aos deveres das pessoas e à posição do Estado perante elas. Diria

Jorge Miranda que a dignidade da pessoa humana é um “princípio axiológico

fundamental”44 e “limite transcendente do poder constituinte”45, ou seja, um

metaprincípio ou postulado normativo.46 É a consideração desta imagem da pessoa na

interpretação das normas jurídicas, determinada pelo postulado da dignidade humana,

que permite o ingresso de novos conteúdos nas normas jurídicas, sobretudo no âmbito

dos direitos fundamentais, estabelecendo limites à interpretação e o consequente ganho

de sua força normativa.

Sendo encarada essa vertente da dignidade da pessoa humana como

postulado normativo, esta indica como devem ser aplicadas e interpretadas outras

normas, sendo que o principal âmbito de aplicação da dignidade como postulado são

efetivamente os direitos fundamentais. Contudo, essa função de postulado normativo

não deve ser confundida com aquelas desempenhadas pela dignidade da pessoa humana

como princípio. O postulado estrutura a intepretação e aplicação de outras normas.

Sobre isso, Ávila adverte que os postulados não

[...] funcionam como qualquer norma que fundamenta a aplicação de outras normas, a exemplo do que ocorre no caso de sobreprincípios como o princípio do Estado de Direito e do devido processo legal. Isso porque esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que são objeto de aplicação, e não no nível das normas que estruturam a aplicação de outras. Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento, formal e material, para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo que os postulados normativos funcionam como estrutura para aplicação de outras normas.47

O postulado normativo da dignidade da pessoa humana faz com que os

direitos fundamentais possam se atualizar em face dos perigos hodiernos, adquirindo

configurações novas e se adequando às mudanças da realidade social, já que a dignidade

humana adquire feições mais amplas do que aquelas referentes ao princípio da

44 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. T. II. 6 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 270. 45 Idem. Ibidem. p. 135. 46 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. 47 Idem. Ibidem. p 80.

30

dignidade, podendo-se falar em dignidade em sentido amplo – como postulado

normativo – e dignidade em sentido estrito – como princípio. Por esta razão, o

postulado da dignidade da pessoa humana funciona como uma chave interpretativa que

abre o sistema jurídico, permitindo a produção de resposta a novas questões,

delimitando o alcance de certas normas e resolvendo antinomias.48

Há que se ressaltar que quando se refere à dignidade da pessoa humana, está

a se referir à pessoa concreta, na sua vida real e não se um ser abstrato e ideal. É o

homem ou a mulher tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível,

insubstituível e irrepetível49 e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e

protege50.

Canotilho também assume esse papel de centro histórico e valorativo

principal da dignidade da pessoa humana, afirmando que esta se refere à ideia pré-

moderna e moderna da dignitas-hominis de Pico della Mirandola no Discurso sobre a

dignidade humana de 1496, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e de sua

vida segundo o seu próprio projeto espiritual, assumindo após as experiências históricas

de aniquilação do ser humano o reconhecimento de limite e fundamento da atuação

estatal e principalmente, de domínio político da República.51

48 COSTA. Ibidem. passim. 49 MIRANDA. Ibidem. p. 170. 50 "(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não poderia ter sido contrariada, em seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência. A arguente desqualifica fatos históricos que antecederam a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei 6.683/1979. (...) A inicial ignora o momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda a gente que conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei 6.683/1979. (...) Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme o seu critério particular. Estamos então em perigo, submissos à tirania dos valores. (...) Sem de qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a dignidade não tem preço (o que subscrevo), tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o instituto da anistia viola a dignidade humana. (...) O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, esse argumento não prospera." (ADPF 153, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 6-8-2010.) 51 Cf. CANOTILHO. Ibidem. p. 225.

31

Não foram poucas as limitações aos direitos e às garantias individuais em

nossa história política que, gerando longos períodos de autoritarismo52 e de

obscurantismo, privaram o ser humano do tratamento compatível com a sua natureza.

Sob a égide das normas gerais editadas por esses governos ditatoriais foram aprovadas

as principais leis criminais que ainda vigoram entre nós e que, nada obstante as novas

interpretações iluminadas pela atual Constituição, nem sempre se libertam da estrutura

orgânica incompatível com as liberdades democráticas.

Inspirando-se nas Constituições dos países que fizeram uma decidida opção

pelo estado de direito democrático, especialmente nos textos constitucionais português e

espanhol, nossa Constituição abre um título para cuidar dos princípios fundamentais,

especificando que nas suas relações internacionais, a República Brasileira reger-se-á

pela prevalência dos direitos humanos, pela defesa da paz, pela solução pacífica dos

conflitos e pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.53

Colima, fundamentalmente, a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a

redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos.54

Nesse passo, a República Federativa do Brasil se constitui em Estado

Democrático de Direito, alçando a título de fundamento desta a dignidade da pessoa

humana.55

Vários de nossos constitucionalistas disseram que a República Federativa do

Brasil reconhece que a “pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor

em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo”56, que “tanto a

qualidade de vida desumana quanto a prática de medidas de tortura, sob todas as

52 A problematização da liberdade individual na sociedade contemporânea não pode prescindir, em consequência, de um dado axiológico essencial: o do valor da dignidade da pessoa humana. Por isso mesmo, acentua Celso Lafer (“A reconstrução dos direitos humanos”, p. 118, 1998, Companhia das Letras, S. Paulo): “O valor da pessoa humana, enquanto conquista histórico-axiológica, encontra sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. É por essa razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro, produzido pelo esfacelamento dos padrões da tradição ocidental – passa por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o estado totalitário de natureza”. (RE 466.343 – Voto do Min. Celso de Mello). 53 Cf. BRASIL. Constituição Federal. Art. 4º, II, VI, VII, IX. 54 Cf. Idem. Art. 3º, I a IV. 55 Idem. Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; 56 FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.v. I. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.19.

32

modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra a sua missão,

conferindo-lhe um sentido”57, e revelando aquela inspiração lusa, enfatizam,

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos tradicionais, esquecendo-se nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.(grifos no original)58

Outorga-se à dignidade da pessoa humana um valor espiritual e moral que

se projeta na realização da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte

das pessoas e do Estado, de forma que o “homem como pessoa merece respeito à sua

dignidade, que deve ser atendida pelo Estado, que não deve ofender os direitos

fundamentais”59. Em síntese,

Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou tábua de salvação para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito.60

O mandado de respeitar a dignidade humana significa especialmente que se

proíbam as penas cruéis, desumanas e degradantes. O delinquente não pode converter-se

57 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Grandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. v. I. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 425. 58 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 105. 59 PINTO FERREIRA. Manual de Direito Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992. p 47. 60 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 118.

33

em simples objeto da luta contra o crime com violação de seus direitos ao respeito e a

proteção de seus valores sociais. Os pressupostos básicos da existência individual e

social do ser humano devem ser conservados.

Diante da importância que se confere ao princípio da dignidade humana,

enquadrado como princípio essencial da ordem constitucional (art. 1º, III da

Constituição), na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou

transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está

vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou

humilhações.

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura

elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica.

No exercício da função jurisdicional, o Estado aplica ou deveria aplicar o

princípio da dignidade da pessoa humana como centro de convergência de suas

decisões, principalmente no que toca à concretização do Direito Penal, a pena. Tendo

que a presente dignidade da pessoa humana é o fundamento do Estado Democrático de

Direito, informados pelos direitos e garantias individuais, deveriam gerar uma

intervenção sancionadora mínima, a resolução da causa penal com a harmônica

aplicação do garantismo e da adequada reintegração social do réu.

Aliás, ainda que no âmbito dos direitos de primeira dimensão o déficit de efetivação seja reduzido (pelo menos se considerarmos a possibilidade amplamente reconhecida de sua exigibilidade judicial), é preciso reconhecer que também nesta esfera longe nos encontramos, mesmo entre nós, de um patamar que possa considerar tendencialmente satisfatório. A vida, a dignidade da pessoa humana, as liberdades mais elementares continuam sendo espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo o arcabouço de instrumentos jurídicos-processuais e garantias constitucionais. O problema da efetividade é, portanto, algo comum a todos os direitos de todas as dimensões [...]. Não é à toa que se rememore constantemente que ao mesmo tempo em boa parte dos direitos fundamentais já largamente consagrados encontram-se longe de uma implementação universal e satisfatória, novas e complexas situações e desafios reclamam um enfrentamento adequado, sem que sejam abandonados os esteios do Estado Democrático de Direito.61

Esse direito positivo deve respeitar a dignidade humana, mantendo o ser

humano como princípio, sujeito e fim, de todas as instituições sociais, concebendo

61 SARLET. Ibidem. p. 55.

34

regras que tratem o indivíduo em consonância com os atributos inerentes à

transcendência do mesmo, não importunando o inocente e, nunca olvidando, que o autor

de um fato criminoso, pode ter a sua conduta reprovada, mas conserva integralmente

aquela mesma dignidade que é um atributo do homem.

1.3 Direitos Coletivos

O estudo dos direitos coletivos é objeto de profundas reflexões cotidianas

frente às mais variadas manifestações da sociedade. Tem-se observado de forma

veemente que diversas correntes doutrinárias discorrem sobre essa categoria de direitos,

desde a sua concepção genérica até as suas espécies hoje definidas como direitos

coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos.

Na evolução por qual passaram os direitos humanos fundamentais, os

primeiros universalmente consagrados foram os direitos civis e políticos,

denominados direitos de liberdade ou de primeira dimensão. Depois, vieram os direitos

sociais, econômicos e culturais, denominados direitos de igualdade, ou de segunda

dimensão. Por fim, eclodiram os direitos à autodeterminação, ao desenvolvimento e ao

meio ambiente saudável, denominados direitos de solidariedade ou voltados à

coletividade, nominados direitos de terceira dimensão.

É nesse contexto que adquirem especial relevância os direitos sociais das

minorias, os direitos econômicos, os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais

homogêneos, convivendo com outros de notória importância e envergadura, como o

direito à vida, à liberdade e à segurança, aos quais se aplicam, em face do Estado de

direito, os mesmos instrumentos de garantia constitucionalmente previstos para

assegurar a sua eficácia62.

Antes de tratarmos da definição sobre direitos coletivos, é importante que se

deixe consignado uma importante distinção, em nosso entender mais doutrinária do que

prática, mas que é ressaltada pela quase totalidade dos estudiosos.

62 ALVIM, J. E. Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4079>. Acesso em 17 fev. 2010.

35

Reside a distinção na diferenciação ou proximidade entre os vocábulos

interesse e direito subjetivo.

Primeiramente, tem-se por interesse qualquer pretensão em geral, ou seja, o

desejo de obter qualquer valor ou bem da vida, ou ainda satisfazer alguma necessidade,

podendo ou não encontrar respaldo no ordenamento jurídico.

Em segundo lugar, direito subjetivo segundo Reale é a “possibilidade de

exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém

como próprio”63.

Os direitos de dimensão coletiva já que foram progressivamente sendo

amparados pelo ordenamento jurídico passaram da categoria de interesses para o de

direitos, já que assentados no ordenamento sob a égide de exigibilidade e coerção.

Sem embargo, a doutrina mais conservadora, ainda movida pelos valores individualistas herdados dos ideais liberais, somente reconhece como direitos subjetivos, passiveis de tutela jurisdicional, aqueles cujos titulares sejam perfeitamente individualizáveis (requisito de difícil ou impossível consecução no que toca aos interesses de dimensão coletiva)64

Posiciona-se no sentido em que não há diferença substancial entre os

institutos observáveis de forma prática já que o próprio legislador constitucional, talvez

por evitar maiores questionamentos ou por impropriedade e ainda o legislador

infraconstitucional consumerista empregaram ambos os termos de forma ambivalente,

representando a inequívoca possibilidade de tutela judicial de uns ou outros. 65

Nesse diapasão, Mazzilli diferencia interesse público de interesse privado

no sentido em que interesse público, num primeiro momento é utilizado para alcançar o

interesse de proveito social ou geral, isto é, o interesse da coletividade, haja vista que

quando o legislador edita a lei, e o administrador ou juiz a aplicam, colima-se alcançar o

interesse da sociedade e a satisfação do interesse de todos, consubstanciado na

63 REALE, Miguel. Noções preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 260. 64 ANDRADE, Adriano; MASSON, Cléber Rogério; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 15. 65 Cf. BRASIL, Constituição Federal. Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. BRASIL, Lei n. 8.072/90. Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

36

contraposição do interesse do Estado ao indivíduo.66 Essa acepção também é nominada

de interesse público primário e conceituada por Bandeira de Mello “como o interesse

resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando

considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o

serem”. 67

Já num segundo momento, tem-se que interesse público assume o caráter

secundário quando o Estado, na prática, atua por meio de suas pessoas jurídicas,

concretizando o Estado-Administração.

Tem-se por interesse privado aquele que consiste na contraposição entre os

indivíduos, em seu inter-relacionamento e para satisfações exclusivamente particulares.

Contudo, reticências devem ser arguidas contra essa separação de público e

privado, já que em deveras vezes a expressão interesse público passou a ser utilizada

pelo legislador como sinônimo de interesses sociais, interesses indisponíveis do

indivíduo e da coletividade e até de interesses difusos, como por exemplo, quando o art.

82, III, CPC, limita a atuação do Ministério Público às causas em que haja interesse

público, relacionado pela qualidade da parte ou pela natureza da lide.

Disso derivou as considerações feitas por Assagra68 relativas à superação de

visão tradicionalista dado pelos teóricos relativos à superação da “summa divisio

público x privado”, onde até meados da década de 70, tanto os direitos subjetivos

quanto as normas que os asseguravam eram classificados dessa forma, ou seja, eram

tidos como ou direitos públicos, quando o interesse fosse predominantemente público

ou privados, quando havia prevalência de interesses privados discutidos.

Porém, novos direitos ou interesses foram sendo inseridos ora no

ordenamento constitucional e por consequência ao rol de direitos fundamentais, ora na

legislação infraconstitucional, também achando seu fundamento naqueles. Acontece que

estes não encontravam precisamente um enquadramento na separação concebida até

então entre público x privado. Veremos em item posterior (3.1) que a reintegração

social se encaixa perfeitamente nesse aspecto.

66 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 47. 67 BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 61. 68 Cf. ALMEIDA, Gregório de Assagra de. Direito Processual Coletivo – Um novo ramo do Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 2003.p. 26.

37

Tais direitos assumiram uma dimensão coletiva ao passo que transpassavam

o modelo segundo o qual as partes envolvidas são sempre determinadas e estão em pé

de igualdade nas relações jurídicas. Ainda, esses novos direitos não se encaixam com

perfeição no direito público, pois suas regras não se baseiam em relações onde o poder

estatal surge como uma relação de superioridade com os administrados.

Assim, de forma ampla, direitos coletivos não são propriamente interesse

público nem tampouco interesse privado. Encontram-se nesse limiar, em posição

intermediária entre essas duas categorias. Assim, pode-se dizer que os direitos coletivos

ou interesses coletivos lato sensu são aqueles “compartilhados por grupos, classes ou

categorias de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados de um

mesmo patrão. São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não

chegam a constituir interesse público”69. Tais direitos podem ser denominados como

transindividuais, supraindividuais, metaindividuais, ou simplesmente direitos coletivos

lato sensu.

1.3.1 Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos sob a ótica dos privados

de liberdade

O momento atual do direito revela a necessidade de efetiva tutela de

posições jurídicas que fogem à antiga fórmula individual público/privado. Pelo fato de

grupos de pessoas compartilharem os mesmos interesses, o que caracteriza sua

transindividualidade, já que supera a esfera do privado e pessoal, o ordenamento

jurídico fornece a possibilidade de substituição processual do indivíduo ao coletivo

ensejando a resolução da lide, priorizando a economia processual e evitando decisões

conflitantes.

Ao enfrentar o tema, os teóricos encontraram dificuldades no momento da

conceituação dessa nova categoria. Denominaram direitos coletivos lato sensu os

direitos coletivos entendidos como gênero, tendo como espécies: direitos difusos,

direitos coletivos strictu sensu e os direitos individuais homogêneos. Barbosa Moreira70

em obra pioneira relata a sistematização que seria necessária, sendo os direitos difusos e 69 MAZZILLI. Ibidem. p. 50. 70 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1984, 3 série. p. 195-197

38

coletivos strictu sensu direitos essencialmente coletivos enquanto os direitos individuais

homogêneos direitos acidentalmente coletivos.

Dessa forma, o legislador diferenciou as várias categorias de interesses, e o

fez no Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei 8.078/90, quando do Título

III, Capítulo I, art. 81.

Passemos à definição e distinção entre tais direitos ou interesses. Antes,

porém, é preciso deixar registrado que o Código de Defesa do Consumidor, em seu art.

81 faz menção aos direitos dos consumidores e das vítimas, o que a primeira vista para

o leitor incauto levaria a conclusão de que as definições seguintes não se prestariam a

tutela de outros direitos constantes fora do âmbito de proteção consumerista. Mas não é

isso que acontece. O art. 21 da Lei n. 7.347/1985 – Lei da Ação Civil Pública – LACP –

traz a seguinte redação: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos

e individuais, no que for cabível, as disposições do Título III da Lei que instituiu o

Código de Defesa do Consumidor”. Logo, os conceitos do art. 81 são aplicáveis à Lei

da Ação Civil Pública, criando o que os teóricos chamam de microssistema de tutela

coletiva.

Iniciando a análise dos conceitos do art. 81, deve ser observado que a

legislação utilizou-se de três critérios ou características identificadoras para classificar

os direitos relacionados. O primeiro critério é o objetivo e relaciona-se com o objeto do

direito tratado, identificando se este é divisível ou indivisível. O segundo e o terceiro

critério são subjetivos e relacionam-se com os titulares do direito discutido. O segundo

leva em conta a relação de união entre os sujeitos, sendo ora uma situação de fato e ora

uma relação jurídica em comum. O terceiro assume a possibilidade que há de identificar

ou não seus titulares.

Assim, para o referido diploma legal, há três categorias de interesses

coletivos lato sensu71:

a) interesses ou direitos difusos, assim entendidos, os transindividuais, de

natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por

circunstâncias de fato.

Estes direitos pertencem a um só tempo, a cada um e a todos que estão

numa mesma situação de fato, considerando a transindividualidade e a coletividade. 71 Cf. BRASIL. art. 81, Parágrafo Único, da Lei n. 8.078/90.

39

Há direitos difusos que se espraiam por um universo tão significativo da

coletividade que beiram o consenso social, confundindo-se com o interesse público

primário (como exemplo teríamos o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado ou direito à segurança pública), ao passo que outros são menos difundidos,

não chegando a confundir-se como o interesse geral da coletividade72 (como exemplo o

caso dos direitos difusos dos potenciais consumidores).

Como uma de suas características importantes está a indivisibilidade do seu

objeto, ou seja, quando há ofensa ao direito de um indivíduo, todos os demais titulares

também estão sendo ofendidos. Isso possibilita que o afastamento da ameaça ou

reparação do dano causado a um dos titulares beneficia igualmente e a um só tempo

todos os demais titulares. Exemplificando é de se imaginar a situação de publicidade

enganosa realizada por meio da televisão. Sua veiculação pode lesar, de uma só vez,

uma infinidade de consumidores que tem o direito de não serem submetidos a tal

espécie de publicidade. Uma vez cessada essa publicidade, todos os consumidores em

potencial alcançados pela propaganda estão sendo beneficiados ao mesmo tempo e

igualmente.

Derivado da indivisibilidade do objeto e como nota distintiva, a coisa

julgada nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos é erga omnes73, já que a

sentença proferirá efeitos para partes além do processo, beneficiando a todos que,

mesmo não tendo participado dos polos do processo restarão beneficiados.

A segunda característica reside na situação de fato comum, já que nos

direitos difusos todos os titulares são titulares do mesmo direito por se encontrarem

numa determinada situação fática homogênea. Basta que as pessoas se encontrem na

mesma situação prevista na norma de direito material que positivou o direito, não sendo

necessária a existência de um vínculo comum de natureza jurídica, exemplificando o

direito à segurança pública ou ainda a segurança coletiva das pessoas que moram nas

imediações de um estabelecimento prisional que não possui qualquer amparo estatal em

sua conservação e que, por consequência, coloca em perigo a harmonia social.

A última característica dos direitos difusos reside na indeterminabilidade de

seus titulares, posto que estes sejam indeterminados e indetermináveis não sendo

possível a individualização, já que ligados estão por situações fáticas e não jurídicas 72 MAZZILLI, Ibidem. p. 53. 73 Cf. art. 103, I da Lei n. 8.078/90.

40

imprecisas. A lesão, no caso dos direitos difusos não decorrerá diretamente da relação

jurídica em si, mas sim da situação fática relevante.74

Como exemplo de direitos difusos temos, além dos já expostos,

[...] o caso da poluição atmosférica causada por uma indústria química, afetando o meio ambiente (destruição da vegetação que recobre a encosta de uma montanha da vizinhança) e a qualidade da vida de todos os moradores da região, das pessoas que trabalham nas empresas da localidade ou simplesmente transitam pelo local. Valem para este exemplo os mesmos comentários feitos em relação aos exemplos anteriores: indivisibilidade do bem jurídico e indeterminação das pessoas atingidas pela poluição. 75

b) interesses ou direitos coletivos strictu sensu assim entendidos, os

transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de

pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. O que os

diferencia dos últimos é a vinculação de seus titulares e a divisibilidade de seu objeto.

Nos interesses coletivos, os titulares são determinados, por um vínculo jurídico definido

e não por situação de fato comum, bem como há a indivisibilidade de seu objeto, não

havendo a possibilidade de mensuração entre os titulares.

Da mesma forma que nos direitos difusos, nos direitos coletivos a

indivisibilidade do objeto é característica distintiva. Neles, a lesão ou ameaça ao direito

de um dos seus titulares significará a lesão ou ameaça ao direito de todos, ao passo que

a cessação da lesão ou ameaça beneficiará concomitantemente a todos. Tomemos por

exemplo o caso de aumento ilegal das mensalidades de um determinado plano de saúde.

Esse aumento ilegal atingiria a todos os titulares do plano, já que não haveria como ser

ilegal para uns e não para outros e uma sentença que declarasse tal ilegalidade numa

ação coletiva também beneficiaria a todos esses titulares.

Característica importante dos direitos coletivos se reúne no elo de ligação

entre os titulares do direito, que diferentemente dos direitos difusos não se dá por uma

situação fática e sim por uma relação jurídica que possuem entre si ou com a parte

contrária.

74 MAZZILI, Ibidem. p. 53. 75 WATANABE, Kazuo. Do objeto litigioso das ações coletivas: cuidados necessários para sua correta fixação. In A Ação Civil Pública após 25 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 503.

41

Essa relação jurídica base, segundo Watanabe76, é a preexistente à lesão ou

ameaça de lesão do interesse ou direito do grupo, categoria ou classe de pessoas. Não há

relação jurídica nascida da própria lesão ou da ameaça de lesão. Assim,

Os interesses ou direitos dos contribuintes, por exemplo, do imposto de renda constituem um bom exemplo. Entre o fisco e os contribuintes já existe uma relação jurídica base, de modo que, à adoção de alguma medida ilegal ou abusiva, será perfeitamente factível a determinação das pessoas atingidas pela medida. Não se pode confundir essa relação jurídica base preexistente coma relação nascida da lesão ou ameaça de lesão.

Em decorrência desta relação jurídica base existente entre os titulares do

direito coletivo, ou deles com a parte contrária, torna-se possível a determinação destes

titulares. Serão todos aqueles que fizerem parte da relação jurídica base em comum.

Ressalte-se por isso, que o elemento diferenciador entre os direitos difusos e

direitos coletivos é a determinabilidade77 dos titulares e a decorrente coesão com o

grupo, categoria ou classe anterior à lesão, fenômeno que se verifica nos direitos

coletivos strictu sensu e não ocorre nos direitos difusos.78

A coisa julgada na sentença da ação coletiva que versar sobre a proteção de

direitos coletivos será ultra partes, nos termos do art. 103, II do Código de Defesa do

Consumidor, ou seja, em razão da determinabilidade dos titulares e indivisibilidade do

objeto, a coisa julgada alcançará além das partes da relação processual, contudo,

limitada ao grupo, categoria ou classe de pessoas unidas por essa relação jurídica.

c) interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os

decorrentes de origem comum. Estes são ligados pela origem comum, mas permanecem

essencialmente individuais. O que os diferencia é que podem ser objeto de tutela

coletiva.

76 Idem. Ibidem. p. 504. 77 O critério diferenciador para Watanabe é a determinabilidade das pessoas titulares, seja através da relação jurídica-base que as une entre si (membros de uma associação de classe ou ainda acionistas de uma mesma sociedade), seja por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária (contribuintes de um mesmo tributo, contratantes de um segurador com um mesmo tipo de seguro, estudantes de uma mesma escola etc.). In GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Comentados pelos autores do anteprojeto. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Forense Universitária, 1997. p. 625. 78 DIDDIER; ZANETI. Ibidem. p. 75.

42

Da definição dada pela legislação consumerista pode-se afirmar que direitos

individuais homogêneos nada mais são do que direitos subjetivos individuais com um

traço de identidade, de homogeneidade, na sua origem79. A homogeneidade e a origem

comum são, portanto, os requisitos para o tratamento coletivo dos direitos individuais.

Dessa forma, em sendo apenas direitos individuais, nada obsta que seus

titulares, caso prefiram, demandem individualmente sua tutela judicial. Contudo, ante as

dificuldades encontradas nas tutelas individuais, nas suas limitações e ineficácia na

prestação jurisdicional, o Código de Defesa do Consumidor não apenas viabilizou como

também estimulou sua tutela por meio de ações coletivas.

No intuito de apontar as diferenças e proximidades com as outras categorias

acima tratadas, tem-se como característica inicial a divisibilidade do objeto. Direitos

individuais homogêneos são divisíveis, isto é, a lesão sofrida por cada titular pode ser

reparada na proporção da respectiva ofensa, o que permite ao lesado optar pelo

ressarcimento do seu prejuízo via ação individual, afigurando-se como o principal traço

distintivo dessa categoria de direitos.

No que tange a origem comum desses direitos, sendo considerada sua

segunda característica, o que possibilita denominar os direitos individuais como

homogêneos é a identidade de sua origem, baseando-se esta tanto na situação fática

como na jurídica em comum.

Entretanto, Mazzilli80 pondera que normalmente a origem em comum é

oriunda das mesmas circunstâncias de fato e conclui,

Como exemplo de interesses individuais homogêneos, suponhamos os compradores de veículos produzidos com o mesmo defeito de série. Sem dúvida, há uma relação jurídica comum subjacente entre esses consumidores, mas o que os liga no prejuízo sofrido não é a relação jurídica em si (diversamente, pois, do que ocorreria quando se tratasse de interesses coletivos, como numa ação civil pública que visasse a combater uma cláusula abusiva em contrato de adesão), mas sim é antes o fato de que compraram carros do mesmo lote produzido com defeito em série (interesses individuais homogêneos). Assim, o consumidor que adquiriu dois carros terá indenização dobrada em relação ao que adquiriu um só.

79 GRINOVER. Ibidem. p. 883. 80 Ibidem. p. 56.

43

No mesmo sentido, Watanabe ressalta que a origem comum pode ser de fato

ou de direito, e a expressão não significa, necessariamente, uma unidade factual e

temporal, não sendo necessário que o fato se dê em um só lugar ou momento histórico,

mas que dele decorra a homogeneidade entre os direitos dos diversos titulares de

pretensões individuais.81

Direitos individuais homogêneos pela sua natureza individual possuem

como final critério diferenciador a determinabilidade de seus titulares. Estes são

determinados ou determináveis, podendo a lesão ou ameaça de lesão ser mensurada

entre os integrantes do grupo, retirando-se como exemplo os presos dentro de uma

penitenciária.

Atente-se para o fato de que direitos individuais homogêneos não se

enquadram na categoria da transindividualidade, isso porque, não emergem como

direitos que pertencem a vários titulares, mas surgem a partir da união de vários

interesses individuais que são tutelados coletivamente a partir de uma lesão. Nesse

sentido, Gregório Assagra de Almeida:

Trata-se de direitos individuais que são considerados coletivos somente no plano processual e recebem esse tratamento justamente em decorrência da origem comum que detém e do interesse social que justifica a sua tutela processual por intermédio de uma única ação, de forma que se possam evitar decisões contraditórias e o acúmulo de muitas demandas individuais com a mesma causa de pedir e pedido, além de garantir a efetividade desses direitos mesmo diante da dispersão das vítimas.82

É importante que se deixe consignado, a oposição que fazem alguns teóricos

sobre a correta conceituação e divisão de tutela coletiva e direito coletivo. O principal

ponto da crítica reside na confusão essencial entre direitos coletivos, assim os

materialmente considerados com a defesa coletiva de direitos individuais, portanto de

índole processual.

Zavascki pondera,

81 WATANABE In GRINOVER. Ibidem. p. 806. 82 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 481-482.

44

Uma das principais causas, senão a principal, dos equívocos nesse novo domínio processual foi a de confundir direito coletivo com defesa coletiva de direitos, que trouxe a consequência, a toda evidência distorcida, de se imaginar possível conferir aos direitos subjetivos individuais, quando tutelados coletivamente, o mesmo tratamento que se dá aos direitos de natureza transindividual. A origem contemporânea e comum dos mecanismos de tutela de um e outro desses direitos, acima referida, explica, talvez, a confusão que ainda persiste em larga escala, inclusive na lei e na jurisprudência.83

Notoriamente acrescentada por Nery Júnior84 está a posição segundo a qual

o que determina a classificação de um direito como difuso, coletivo ou individual

homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a

competente ação judicial, ou seja, o tipo de pretensão de direito material que se deduz

em juízo. Tendo em vista uma importante característica que envolve o processo, a

instrumentalidade, que se faz presente de forma a inviabilizar tal pretensão, o processo

deve servir como instrumento para a tutela de direitos materiais ou subjetivos e não com

o fim em si mesmo, caracterizando ou definindo o tipo de direito que se busca defender.

No mesmo sentido Watanabe85 asseverar não assistir razão, sob este

aspecto, para a doutrina que entende correta a distinção baseada no pedido e na causa de

pedir formulados na demanda, sendo que ela produziria um resultado absurdo, o de

negar que o direito tenha alguma natureza antes de ser objeto de litígio em juízo.

Bedaque explica pontualmente,

[...] o interesse ou direito é difuso, coletivo ou individual homogêneo independentemente da existência de um processo. Basta que determinado acontecimento da vida o faça surgir. De resto, é o que ocorre com qualquer categoria de direito. Caso não se dê a satisfação espontânea, irá o legitimado bater às portas do Judiciário para pleitear a tutela jurisdicional, ou seja, aquele interesse metaindividual, preexistente ao processo. 86

Aponta-se que o Código de Defesa do Consumidor caminhou em sentido

parecido, já que ao disciplinar a tutela coletiva dos direitos difusos, coletivos e

83 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo – Tutela de direitos coletivos e Tutela coletiva de direitos. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 32. 84 Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 196. 85 WATANABE In GRINOVER. Ibidem. p. 747. 86 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do direito material sobre o processo. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35.

45

individuais homogêneos chama de transindividuais apenas os difusos e os coletivos, não

se referindo do mesmo modo aos individuais homogêneos. Logo, é de se aferir que a

legislação atribuiu um caráter material aos direitos tutelados e não processual como

preferem alguns.

É preciso, pois, que não se confunda defesa de direitos coletivos com defesa coletiva de direitos (individuais). Direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (= sem titular individualmente determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. [...] Já os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais.87

Presos de uma penitenciária que resolvam litigar contra o Estado, ante a

falta de instalações higiênicas, espaço mínimo à sobrevivência, alimentação adequada,

valendo-se de ação coletiva estarão manejando direitos individuais homogêneos. Como

bem assevera Antônio Gidi:

Percebe-se, nitidamente, ser a homogeneidade dos direitos individuais um conceito que bem poderia designar-se como “relacional”: um direito individual é homogêneo apenas “em relação” a um outro direito individual derivado da mesma origem (origem comum). Não há “um” direito individual homogêneo, mas direitos individuais homogeneamente considerados (...) Acertadamente Kazuo Watanabe alerta que a origem comum não significa, necessariamente, uma “unidade factual e temporal”, quer dizer, não é preciso que o fato gerador seja um único e o mesmo para todos os direitos individuais. O fundamental, acrescenta Arruda Alvim, é que sejam situações “juridicamente iguais”, ainda que se constituam como fatos diferenciados no plano empírico, tendo em vista a esfera pessoal de cada uma das vítimas ou sucessores.88

Como alude Elton Venturi, “direitos individuais homogêneos (...), em

verdade, não passam de um artifício legislativo destinado à facilitação da tutela

processual”,89 isso porque, nas palavras de Rodolfo de Camargo Mancuso, “um feixe de

interesses individuais não se transforma em interesse coletivo pelo só fato de o exercício

87 ZAVASCKI. Ibidem. p. 33-34. 88 GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência nas Ações Coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 30-33. 89 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 61.

46

ser coletivo. A essência permanece individual”.90 Em matéria de direitos individuais

homogêneos não há tutela de direitos coletivos, mas sim, tutela coletiva de direitos.

Arremata Elton Venturi:

(...) diante da reconhecida insatisfatoriedade do sistema de tutela individual, em função dos multifacetários obstáculos (econômicos, sociais, políticos e técnicos) ao acesso à justiça, e da percepção do legislador acerca da existência de direitos subjetivos que, não obstante serem qualificáveis como individuais, têm uma origem comum, providenciou-se uma verdadeira abertura no sistema de tutela jurisdicional coletiva para o fim de se autorizar também a proteção desta categoria especial de direitos individuais, à qual se denominou direitos individuais homogêneos.91 (grifo nosso)

1.4 Eficácia e aplicabilidade dos direitos de proteção aos presos

Como observado, os direitos assegurados às pessoas privadas de sua

liberdade são entendidos, na grande maioria dos casos, como direitos individuais que

podem ser coletivamente tutelados. Isso não faz com que percam a natureza da

individualidade. Outrossim, segundo nossa Constituição, direitos individuais

fundamentais, como os aqui relacionados (vida, liberdade, saúde, dignidade humana, p.

ex.) são tidos como possuidores de aplicação imediata com a produção de plenos

efeitos. Assim, o art. 5°, §1° da Constituição Federal: As normas definidoras dos

direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Essa disposição constitucional expressa, por mais clara que seja, causou e

continua causando uma discussão acalorada nos teóricos sobre a eficácia dos direitos

fundamentais.

É de se observar que todos os preceitos da Constituição possuem certo grau

de eficácia jurídica e aplicabilidade, consoante a normatividade que lhe tenha sido

outorgada pelo Constituinte.92 Sem adentrar aqui a ampla gama da posições que

poderiam ser consideradas no tocante às técnicas de positivação e às funções das

normas constitucionais, já que tal problemática é ela mesma merecedora de investigação

científica mais profunda, apontar-se-á a questão da eficácia quanto s normas definidoras

90 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 53. 91 VENTURI. Ibidem. p. 64. 92 SARLET. Ibidem. p. 257.

47

de direitos fundamentais de primeira dimensão ou direitos de defesa, já que estes são o

objeto principal da discussão.

A razão de o texto constitucional de 1988 ser dotado de um grande número

de direitos fundamentais possui bases históricas, já que este sucedeu o período

ditatorial, induzindo o legislador constituinte a elencar de forma contundente toda uma

gama de direitos.

É importante que se pontue a diferenciação terminológica existente entre

eficácia e aplicabilidade, determinando com isso o alcance das expressões e as

consequências de sua adoção.

Para traçar diferenças, utiliza-se da semelhança: eficácia e aplicabilidade

referem-se aos qualificativos de uma determinada norma. Somam-se a eles outros

termos que também designam qualidades como, por exemplo, existência, vigência,

validade e efetividade.

Será existente a norma regularmente formada, como, por exemplo, uma lei, que após passar pelos trâmites legislativos, termina por ser promulgada. Após a promulgação, uma lei será publicada, situação em que poderá estar ou não vigente. A vigência de uma lei, segundo determinação do art. 1° da Lei de Introdução ao Código Civil, se dá após quarenta e cinco dias de sua publicação, se não for outro o prazo estabelecido. Considerando uma norma vigente, analisar-se-á a sua validade. Será válida aquela que se conformar com o seu paradigma de validade, ou seja, com aquela hierarquicamente superior, em relação à qual não poderá divergir. Uma lei para ser válida deve respeitar à constituição. Não respeitando à Constituição, uma norma infraconstitucional será inválida, o que se chama de inconstitucionalidade. Por sua vez, a aplicabilidade é a possibilidade de uma lei gerar efeitos práticos, em um âmbito eminentemente abstrato: a simples existência formal de uma norma completa já lhe confere aplicabilidade. Já a eficácia está relacionada ao nível de aplicabilidade que uma norma pode ter, o que no âmbito constitucional, se especializa nas normas de eficácia plena, contida e limitada. 93 (grifos no original)

Tem-se por efetividade a geração concreta de efeitos, possibilitando que se

irradie sobre as relações de uma determinada sociedade94.

Nesse sentido doutrina Luís Roberto Barroso:

93 LÉPORE. Ibidem. p. 43. 94 “[...] a norma é eficaz quando irradia efeito, quando produz resultados. A eficácia é um pressuposto da efetividade, porque somente se estabiliza a norma que, apta a gerar conseqüência, tem um relato capaz de ser recebido pelo destinatário de modo a que não ocorra desconfirmação e, em havendo esta, ocorra sanção”. BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 49.

48

A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social.95

Apontando as contradições terminológicas, Sarlet afirma que,

(...) podemos definir a eficácia jurídica como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação. (...) Na verdade, o que não se pode esquecer é que o problema da eficácia do Direito engloba tanto a eficácia jurídica, quanto a social. Ambas – a exemplo do que ocorre com a eficácia e aplicabilidade – constituem aspectos diversos do mesmo fenômeno, já que situados em planos distintos (o do dever-ser e o do ser), mas que se encontram intimamente ligados entre si, na medida em que ambos servem e são indispensáveis à realização integral do Direito.96

No que toca aos direitos dos privados de liberdade, na maioria das vezes, em

relação às políticas públicas, para que se possa ter eficácia social, garantindo e

aplicando-os, é necessário que, antes, haja eficácia jurídica. Contudo, como estes

direitos estão alocados no campo dos direitos de defesa, sua eficácia jurídica é sempre

imediata e incontestável.

Se os direitos de defesa, como dirigidos, em regra, a uma abstenção por

parte do Estado, assumem habitualmente a feição de direitos subjetivos, inexistindo

maior controvérsia em torno de sua aplicabilidade imediata e justiciabilidade.97

Os diferentes posicionamentos trafegam entre os que, sustentam que a

norma não pode atentar contra a natureza das coisas, e portanto, que boa parte dos

direitos fundamentais alcança sua eficácia nos termos e na medida da lei98, e os que,

indicam que inclusive as normas de conteúdo programático podem ensejar, em virtude

95 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 83. 96 SARLET. Ibidem. p. 240. 97 SARLET. Ibidem. p. 260. 98 FERREIRA FILHO. Manuel Gonçalves. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n. 29. 1988. p. 35.

49

de sua aplicabilidade imediata, o gozo de direito subjetivo individual, independe de

concretização legislativa.99

[...] pode-se afirmar que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como considerar a circunstância de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição, na condição de ordem jurídica-normativa [...] Negar aos direitos fundamentais esta condição privilegiada significaria, em última análise, negar-lhes a própria fundamentalidade.100 (grifo nosso)

Com isso, pode-se afirmar que, em se tratando de direitos de defesa ou

direitos de primeira dimensão, os direitos assegurados aos presos tanto pela

Constituição Federal como pela legislação infraconstitucional101, a lei não se revela

absolutamente indispensável à fruição do direito. Neste contexto, inexiste qualquer

razão para não fazer prevalecer o mandado contido no art. 5°, §1°, da Constituição.102

99 SARLET. Ibidem. p. 264. 100 Idem. Ibidem. p. 271-272. 101 Conforme se noticiará no Capítulo 3. 102 SARLET. Ibidem. p. 277.

50

CAPÍTULO 2

DIREITO PENAL E FUNÇÃO DA PENA

2.1 A natureza do crime na história e nas sociedades contemporâneas

Quando se fala em crime, irremediavelmente extrai-se o direito penal como

instrumento de realização de tal ato, esquecendo que isso se deu apenas em fases mais

recentes da história humana, notadamente após o século XVI. Antes disso, e por óbvio

durante toda história da humanidade, o crime esteve presente na civilização humana, ora

considerado como violação a alguma divindade ora considerado como violação à

sociedade.

Tobias Barreto afirmou que,

[...] o Direito Penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade de um povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza. Nele se espelha a sua alma. O Direito Penal dos povos é um pedaço da história da humanidade.103

Portanto, sempre que o ser humano reuniu-se em grupo, a sanção pelo

descumprimento de determinada norma esteve presente, como punição e limitação a

futuros descumprimentos, seja por parte do violador, seja por parte do grupo. Daí a

máxima dita por Liszt extraída do Digesto, ubi societas ibi crimen, “o ponto de partida

da história da pena coincide com o ponto de partida da história da humanidade” 104.

Embora não se possa falar de uma continuidade histórica no direito penal,

pode reconhecer-se na sua história uma luta da qual vai surgindo a concepção do

homem como pessoa. A origem das penas é tão remota e antiga como a humanidade que

se torna difícil localizá-la quanto sua origem e modo de aplicação.

Noutros tempos a pena privativa de liberdade considerada como sanção

penal não era reconhecida para este fim, apenas como contenção e guarda dos

103 BARRETO, Tobias apud LYRA, Roberto. Direito penal científico: criminologia. 2 ed. Rio de Janeiro: Konfino, 1977. p. 37. 104 LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. Atualização e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003. T. I. p. 74.

51

criminosos para preservá-los fisicamente até o momento capital do julgamento e

provável execução. “Por isso, a prisão era uma espécie de antessala de suplícios”105.

2.1.1 Direito penal na Idade Antiga

Esse primeiro momento de existência do Direito Penal, entendido como

sanção, advém mesmo antes do nascimento do Estado, existindo em sociedades tribais

como meio de vingança, pelos atos que provocavam a não manutenção da paz daquela

sociedade. “Nas sociedades primitivas, os fenômenos naturais maléficos eram recebidos

como manifestações divinas (totem) revoltadas com a prática de certos atos que exigiam

reparação”106. Em contrapartida, a punição ao infrator era realizada como reparação

pelo desagrado provocado à divindade, através da morte deste, já que o agente não

podia habitare intra homines, da mutilação, tortura e trabalhos forçados, ou quando a

sorte lhe ajudasse, procedia a fuga, vivendo no ostracismo, afeito à própria sorte ficando

à mercê de outros grupos, o que irremediavelmente levava à morte.

Freud assinala que totem,

Via de regra, é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva e a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o passado comum do clã; ao mesmo tempo, é o espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus próprios filhos107.

A tal fase da experiência humana com a sanção, convencionou-se chamar de

fase da vingança divina, através da satisfação da divindade ofendida, resultante da

influência exercida pela religião na vida dos povos antigos. A pena imposta revelava

um caráter sacro, na medida em que, na consciência dos povos, a paz encontrava-se sob

proteção dos deuses, de modo que a vingança fundamentava-se no preceito divino108. Se

a agressão fosse praticada por outros grupos ou pessoas estranhas ao grupo, havia a 105 BITENCOURT. Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 28. 106 BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 59. 107 FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Trad. Órizon Carneiro Muniz. 2ªed. Rio de Janeiro: Imago, 1995, v. 13. p. 22. 108 LISZT, Franz. Ibidem. p. 75.

52

vingança de sangue, verdadeiras guerras grupais. “Pune-se com rigor, antes com notória

crueldade, pois o castigo deve estar em relação com a grandeza do deus ofendido”109.

Deste modo, em sua origem, a pena nada mais foi do que vindita (vingança), pois é mais que compreensível que naquela criatura primitiva dominada pelos instintos, o revide à agressão sofrida devia ser fatal, não havendo preocupações com a proporção, nem mesmo com sua justiça.110

O castigo era aplicado, por delegação divina, pelos sacerdotes, com penas

cruéis, desumanas e degradantes, cuja finalidade maior era a intimidação, bem como a

purificação da alma do criminoso, através do castigo. É o direito penal religioso,

teocrático, sacerdotal. Pode-se destacar como legislação típica dessa fase o Código de

Manu, embora legislações com essas características tenham sido adotadas no Egito

(cinco Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta), em Israel

(Pentateuco) e na Babilônia111.

Com o passar do tempo e a evolução social, a sanção passa a assumir um

caráter de maior proporcionalidade, abandonando-se paulatinamente a ideia de

retaliação mortal, dando lugar a sanções mais comedidas e a fase denominada vingança

privada.

Segundo Magalhães Noronha,

Surge, então, como primeira conquista no terreno repressivo, o talião. Por ele, delimita-se o castigo; a vingança não será mais arbitrária e desproporcionada. Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o código de Hamurabi, rei da Babilônia, século XXIII a.C., gravado em caracteres cuneiformes e encontrado nas ruínas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor perderia a vida. São prescrições que se encontram nos § § 196, 197, 229 e 230.112

Aparece o princípio do Talião como primeira forma de humanização e

organização da sanção criminal, expondo um tratamento mais igualitário entre as partes

109 MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. Parte Geral. 33ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998, v. 1, p. 21. 110 Idem. Ibidem. p 20. 111 BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. p. 60. 112 MAGALHÃES NORONHA, E. Ibidem. p. 27

53

da contenda, esculpido em um cilindro de pedra negra de mais ou menos dois metros de

altura, em aproximadamente 3.500 linhas. Tal princípio foi adotado no Código de

Hammurabi, o mais antigo direito penal conhecido (entre 2285 e 2242 a.C.), no Êxodo e

na Lei das XII Tábuas. Os escravos e as crianças eram considerados coisas, podendo ser

objeto de furto. Eram estabelecidas penas drásticas e de aplicação imediata.

Contudo, a utilização de métodos mutiladores acabou por deformando as

populações que adoravam tal prática. Evolui-se, então, para a fase da composição,

eminentemente de cunho pecuniário, como forma de reparação do mal causado, como

preço pago à vítima ou família vitimada, pela liberdade do infrator.

Colhe-se a impressão de que o homem tem-se reconhecido, em um permanente conflito consigo mesmo, com aqueles que querem que o processo de reconhecimento seja detido ou revertido. Não falaremos aqui em uma tentativa de estabelecer leis nesse processo, já que isso seria fazer filosofia da história, mas é bom advertir e salientar que o desdobramento que nos mostra o panorama histórico da lei penal, é um dos aspectos mais sangrentos da história. Ele, muito provavelmente, tem custado à humanidade mais vidas que todas as guerras e é suscetível de ferir nossa sensibilidade atual mais profundamente do que o próprio fenômeno da guerra, se por tal entendemos a guerra tradicional, posto que esta, em geral, não supera a tremenda frieza, premeditação e racionalização que caracterizam as crueldades e aberrações registradas na história da legislação penal.113

Por derradeiro, a superação das fases da vingança divina e vingança privada

se deram pela fase chamada vingança pública. Nela, o objetivo da repressão penal é a

segurança do soberano ou monarca, pela sanção, que mantém as características da

crueldade e da severidade, com o mesmo objetivo intimidatório.

Na Grécia Antiga, em seus primórdios, o crime e a pena continuaram a se inspirar no sentimento religioso. Essa concepção foi superada com a contribuição dos filósofos, tendo Aristóteles antecipado a necessidade do livre-arbítrio, verdadeiro embrião da ideia de culpabilidade, firmado primeiro no campo filosófico para depois ser transportado para o jurídico. Platão, com as Leis, antecipou a finalidade da pena como meio de defesa social, que deveria intimidar pelo rigorismo, advertindo os indivíduos para não delinqüir. Ao lado da vingança pública, os gregos mantiveram por longo tempo as vinganças divina e privada, formas de vingança que ainda não mereciam ser denominadas Direito Penal. 114

113 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro v.1. Parte Geral. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 158-159. 114 BITENCOURT. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. p. 61.

54

Da legislação penal grega, conservam-se apenas fragmentos em obras

relacionadas a outras áreas. Através desses fragmentos filosóficos e literários, sabe-se

que em Atenas a pena havia perdido a crueldade que era característica das penas

antigas, devido à ausência de base teocrática como consequência da base política da

pólis. Resultado disso é que os gregos não julgavam em nome dos deuses,

desconhecendo a privação da liberdade como pena, tendo caráter apenes de custódia e

suplício.

Platão, contudo, propunha no livro nono de As leis, o estabelecimento de três tipos de prisão: uma na praça do mercado, que servia de custódia, outra, denominada fonisterium, que servia de correção, e uma terceira destinada ao suplício, que, com o fim de amedrontar, deveria constituir-se em lugar deserto e sombrio, o mais distante possível da cidade.115

Em que pesem os estudos democráticos e filosóficos então reinantes, os

gregos pouco se preocupavam com os direitos fundamentais. De fato, todas as questões

da vida, seja no campo social ou político, giravam em torno da polis.116

Em Roma, de início e como em todos os povos antigos, o direito penal teve

origem sacra. Mas a partir da Lei das XII tábuas (século V a.C.), em toda sua existência,

o Império Romano teve como prioridade a busca pelo poder e pela prosperidade. Por tal

motivo, não se ateve à proteção dos direitos fundamentais em face ao arbítrio estatal. O

que se garantia eram os direitos das classes privilegiadas, como imperadores e patrícios.

O direito penal romano já se encontrava laicizado, estabelecendo-se diferenças entre

infrações públicas e privadas.

Os delitos públicos eram perseguidos pelos representantes do Estado, no interesse deste, enquanto os delitos privados eram perseguidos pelos particulares em seu próprio interesse. Não obstante, não se deve pensar que nos delitos públicos incorporam-se apenas delitos contra o Estado. Os delitos públicos se formavam em torno de dois grandes grupos: delitos contra o Estado e delitos contra os particulares. 117

Ao final da República foram publicadas as leges corneliae e juliae, as quais

criavam uma verdadeira tipologia de crimes para a época, catalogando os

comportamentos criminosos. É inegável que então, que, apesar de não haverem os 115 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 29. 116 ZAFFARONI; PIERANGELI. Ibidem. p.163. 117 Idem. Ibidem. p. 165-166.

55

romanos atingido, no direito penal, as alturas a que se elevaram no civil, se avantajaram

a outros povos. O fundamento da pena pode-se afirmar, era essencialmente retributivo.

Daí o famoso texto de Ulpiano: Carcer enin ad continendos homines non ad puniendos

haberit debit (a prisão serve não para o castigo dos homens, mas para a sua custódia)118.

Distinguiram, no crime, o propósito, o ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, a lata, o simples dolo e o dolus malus. Não esqueceram também o fim de correção da pena: poena constituitur in emendationem hominum (Digesto, tít. XLVIII, Paulo- XIX, 20). Como acentuam os autores, revelou o direito penal em Roma, sobretudo, caráter social.119

2.1.2 Direito penal na Idade Média

No direito penal medieval e moderno sobressaiu-se o direito dos povos

germânicos estendendo-se do século V até XI d.C, com caráter privatista e

individualista proveniente da natureza de povo guerreiro em que a paz era vista como o

direito e a ordem. “A pena mais grave conhecida pelo direito penal germânico foi a

‘perda da paz’ (Frieldlosigkeit), que consistia em retirar-se a tutela social ao apenado,

com o que qualquer pessoa podia matá-lo impunemente”,120 ficando fora da tutela

jurídica do clã ou grupo. Já nos delitos de ordem privada se produzia a Faida onde o

infrator era entregue à vítima ou a seus familiares para que exercessem o direito de

vingança.

Contudo, em decorrência da instituição do poder público, as penas

corporais, na maioria das vezes, capitais, deram espaço a um preço da paz, onde o

infrator pagava um valor de ordem pecuniária em troca de sua liberdade. “A porção

penal das leis germânicas, tornou-se, na maior parte, um minucioso tabelamento de

taxas penais, variáveis segundo a gravidade das lesões e também da categoria do

indivíduo”.121 Era o sistema da composição pecuniária Wertgeld, que substituiu de

forma bastante positiva a vingança privada.

Em verdade, as penas determinadas no período medieval tinham como ideal

provocar o medo coletivo frente às barbáries praticadas em sua execução. As pessoas

118 Digesto, 48, cap. 9º. 119 MAGALHÃES NORONHA, E. Ibidem. p. 33. 120 ZAFFARONI; PIERANGELI. Ibidem. p. 167. 121 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. I, p. 70.

56

ficavam afeitas ao arbítrio dos detentores do poder e governantes e eram punidas em

função do status social ao qual pertenciam. A passagem da vingança privada à pena

como retribuição evidencia que a pena medieval assume um caráter de equivalente,

mesmo quando o conceito de retribuição não é mais diretamente ligado ao dano sofrido

pela vítima, mas sim com a ofensa a Deus.

A prisão eclesiástica ou o direito penal canônico serviu como o primeiro

divisor de águas na forma pela qual as penas eram aplicadas e como justificação para

estas. “A Igreja implementou as primeiras e embrionárias formas de sanção em relação

aos clérigos que, desta ou daquela maneira, haviam cometido alguma falta”.122 Tal

prisão destinava-se aos membros da igreja que mantivesses atitudes rebeldes, assim

consideradas frente às determinações episcopais. Os infratores eram recolhidos em alas

separadas dos mosteiros para que, por meio da penitência e da oração, se arrependessem

do mal causado. “A principal pena do direito canônico denominava-se detrusio in

monasterium e consistia na reclusão em um mosteiro de sacerdotes e religiosos

infratores de normas eclesiásticas”.123

O pensamento cristão foi um incentivo e serviu como base ideológica para a

pena privativa de liberdade. A prisão nos mosteiros irradiou reflexos que até hoje

perduram.

A cela monacal cumpria a totalidade de propósitos que a clausura perseguia, embora não se deva esquecer que, na prisão monacal, misturavam-se antigos métodos mágicos com a separação do espaço e a purificação mediante as regras de fustigação corporal, a escuridão e o jejum, juntamente com o isolamento, que protege do contágio moral. 124

Dessa forma, o direito penal canônico contribuiu de forma inexorável para o

surgimento da prisão moderna, notadamente no que se refere aos ideais de reforma dos

infratores. A pena medicinal (da alma) é a base das penas canônicas onde a colocação

do infrator em separado dos demais e recluso em suas ideias, ajudava, segundo o

pensamento da época, que este tivesse consciência de suas faltas com o consequente

arrependimento dos males causados. Essa finalidade devia ser entendida como correção

122 MELOSSI, Dário; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. As origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. p. 23. 123 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 33. 124 Idem. Ibidem. p. 35-36.

57

ou possibilidade de correção, diante de Deus, e não como regeneração ética e social do

condenado. Deve ser apontado, contudo, que o regime penitenciário canônico ignorou

completamente o trabalho carcerário como forma possível de execução da pena.

O regime penitenciário canônico conheceu formas diversas. Além de diferenciar-se pelo de que a pena podia ser cumprida mediante a simples reclusão no mosteiro, mas também pela reclusão na cela ou mesmo na prisão episcopal, ele se caracterizou pela diversidade de modalidades de execução: à privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras vezes o isolamento celular (cella, carcer, ergastulum) e sobretudo a obrigação do silêncio125.

Durante os séculos XVI e XVII a pobreza se abate na Europa em

decorrência da crise do sistema feudal e da economia agrícola, ocasionando um enorme

aumento da população das cidades, que já representavam com o desenvolvimento

derivado atividade econômica, transformando-as no foco das atenções da população

expropriada de seu trabalho e que começaram a migrar do campo, tendo como

conseqüência o aumento da criminalidade, já que essa massa populacional não possuía

emprego, renda ou qualquer meio de sobrevivência, não restando, na maioria das vezes,

outra forma que senão a pratica delituosa.

Marx informa com precisão a forma através da qual esse fato social foi

encarado pelo poderio estatal,

Não era possível que os homens expulsos da terra pela dissolução dos laços feudais e pela expropriação violenta e intermitente se tornassem fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro com a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no mundo. Pro outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subitamente para fora da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se, de maneira tão repentina, à disciplina da nova situação. Eles se transformaram, por isso, em massa, em mendigos, bandidos, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maior parte dos casos premidos pelas circunstâncias. Foi por isso que, no final do século XV e durante todo o século XVI, proliferou por toda Europa Ocidental uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe operária foram punidos, num primeiro tempo, pela transformação forçada em vagabundos e miseráveis. A legislação os tratou como delinqüentes voluntários e partiu do pressuposto que dependia da boa vontade deles continuar a trabalhar sob as velhas condições não mais existentes. 126

125 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 24. 126 MARX, Karl apud MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 35.

58

A partir de 1530 um estatuto inglês obriga o registro de pessoas

consideradas vagabundas, iniciando uma rudimentar divisão entre aqueles que eram

incapacitados para o trabalho, os que podiam receber alguma caridade, mendigando

assim, e aqueles que não podiam receber nenhum tipo de caridade, sob pena de serem

açoitados até sangrar.

Por solicitação de alguns membros do clero inglês, consternados pelo

aumento incontrolável dos mendigos em Londres, o rei autorizou o uso do castelo de

Bridewell para acolher os vagabundos, ociosos, ladrões e autores de delitos pequenos.

“O objetivo da instituição, que era dirigida com mão de ferro, era reformar os internos

através do trabalho obrigatório e da disciplina. Além disso, ela deveria desencorajar

outras pessoas a seguirem o mesmo caminho da vagabundagem [...]”127

Essa instituição e o ideal pelo qual foi elaborada deve ter apresentado bons

resultados, visto que em pouco tempo as houses of correction, chamadas aleatoriamente

de bridewells surgiram por toda a Inglaterra, especialmente em locais com maior

concentração industrial manufatureira da época, como Worcester, Norwich, Bristol. 128

Essas casas de correção forneciam trabalho aos desempregados ou obrigar a

trabalhar que se recusasse. Tal fato foi derivado da imposição da Poor Law pela rainha

Elizabeth em 1572.

Tratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell, atendiam a uma população bastante heterogênea: filhos de pobres ‘com a intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho’, desempregados em busca de trabalho e aquelas categorias que, como já foi visto, povoaram as primeiras Bridewells, ou seja, petty offenders, vagabundos, ladrõezinhos, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar. 129

O trabalho forçado nestas casas tinha como objetivo aumentar a resistência

do trabalhador e fazê-lo aceitar as condições impostas pela burguesia como condição

necessária à extração do máximo de lucro possível. Evitava-se com isso, o desperdício

de mão de obra e ao mesmo tempo, controlava-a evitando manifestações ou

insurgências, demonstrando o nível que havia alcançado a luta de classes.

127 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 37. 128 FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora Perspectiva. 1978, p. 60. 129 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 37.

59

Melossi e Pavarini fazem menção que a real recusa ao trabalho feita pelo

proletariado funda-se na oposição a uma série de estatutos promulgados entre os séculos

XIV e XVI que estabeleciam um valor máximo de salário acima do qual não era lícito

ir, chegando inclusive a se determinar que o trabalhador era obrigado a aceitar a

primeira oferta de trabalho que lhe fizessem, ou seja, aceitar a trabalhar sob qualquer

condição sob pena de ser enviado às casas de correção.

A Holanda vivenciou, juntamente com a Inglaterra, a utilização das casas de

correção, ou no mais das vezes, de locais de domesticação do trabalhador para o

enquadramento no sistema produtivo capitalista. O auge de desenvolvimento dessas

casas está localizado nas Rasp-huis holandesas, onde os detentos eram obrigados ao

modelo produtivo dominante, a manufatura. “A atividade consistia em raspar, com uma

serra de várias lâminas, um certo tipo de madeira (Pau Brasil) até transformá-la em pó,

do qual os tintureiros retiravam o pigmento utilizado para tingir os fios”. 130

O trabalho era considerado adequado àqueles que não tinham ocupação e

aos preguiçosos, justificando-se a escolha do método de trabalho mais cansativo e que

literalmente e por consequência dessa atividade, às vezes quebravam a espinha dorsal

durante a lavração da madeira. Esse processo de domesticação se baseou na necessidade

de mão de obra barata e disponível, pois,

[...] impetuoso desenvolvimento do tráfico mercantil veio a incrementar a demanda de trabalho num mercado no qual não havia uma oferta tão grande como na Inglaterra, e num momento em que toda a Europa estava atravessando um grave declínio demográfico. Isso representa, para o nascente capital holandês, o perigo de encontrar-se diante de um alto custo do trabalho e de um proletariado que fosse capaz de, apesar das medidas repressivas, contratar a venda de sua própria força de trabalho. 131

É certo que a pena de morte encontrava-se em declínio tanto pelo número

incrivelmente alto de desocupados o que tornaria inviável a execução de tantos, quanto

pela necessidade de mão de obra trabalhadora, que suportasse as formas impostas. Esse

conjunto de situações, vinculando o materialismo e as condições econômicas históricas

condicionaram a situação para a criação das penas privativas de liberdade, num primeiro

momento, através da utilização do trabalho forçado. Ou seja, não foi um propósito

humanitário ou idealista de reabilitação de delinquentes que foi fator preponderante para 130 Idem. Ibidem. p. 43. 131 Idem. Ibidem. p. 40.

60

sua criação. Serviu antes de tudo para controle de massas populacionais, disponibilidade

de mão de obra barata, controle de salários e como condição de prevenção geral, já que

as condições de vida nas casas de correção eram mais duras do que a vida na fábrica.

“Na realidade, o objetivo fundamental das instituições de trabalho holandesas e inglesas

era que o trabalhador aprendesse a disciplina capitalista de produção”.132

Nessa fase, não interessava a reabilitação do delinquente, o importante e

objetivo primordial era que o recluso aprendesse a disciplina de produção, que possuía a

visão ideológica da classe dominante.

Assumindo esse caráter de instrumento de dominação de classes, Melossi e

Pavarini sustentam que a criação das penas privativas de liberdade e os locais de seu

cumprimento foram motivados fundamentalmente por esse desiderato. “Mas ao lado

desta lógica econômica, existem provavelmente outras que não simplesmente coberturas

ideológicas ou justificações éticas”. 133

Acredita-se, conduto, que não se deve aplicar uma visão unilateral para a

busca da justificativa da criação da pena privativa de liberdade e das penitenciárias. Por

óbvio que o fator econômico, como justificado historicamente foi fator importante na

criação, mas ao lado deste, outros134 devem ser considerados.

Primeiramente, a pena de morte caíra em desprestígio e não respondia mais

pelos anseios de justiça dado o aumento significativo das populações urbanas que

vindas do campo devido à crise socioeconômica feudal, sofriam com uma pobreza

extrema levando estas à mendicância e práticas de atos delituosos. Não era, portanto,

recomendável a morte de tantas pessoas.

Do ponto de vista ideológico, a partir do século XVI valora-se mais a

liberdade e se impõe progressivamente o racionalismo. O pelourinho fracassa

132 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p.45. 133 Comentário feito na apresentação de Cárcere e fábrica por Guido Neppi Modona. p. 10. 134 Ferrajoli refuta de forma expressa e radical a associação entre o direito penal e o direito civil das relações econômicas afirmando ser essa relação insensata e onde a relação entre pena e delito não é uma relação de troca como a que se dá entre mercadoria e moeda, senão uma relação pública e determinada pela autoridade na qual não há trocas e muito menos se contrata algo e as penas privativas de liberdade ou pecuniárias, ainda que concebíveis como equivalentes gerais, não se impõe em razão de uma troca de equivalentes, senão contra a vontade do condenado para prevenir os males maiores que adviriam das repressões informais e da repetição de delitos análogos In FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 361.

61

frequentemente em se tratando de delitos leves ou casos dignos de graça, uma vez que a

publicidade da execução dava lugar mais à compaixão e à simpatia do que ao horror.135

Foucault nos explica que fora das épocas de crise, o confinamento assume

outro sentido, além da função de repressão, dar trabalho a massa em geral e fazê-los

úteis à prosperidade geral.

Na realidade, parece que as casas de confinamento não puderam realizar eficazmente a obra que delas se esperava. Se absorviam os desempregados era sobretudo para dissimular a miséria e evitar inconvenientes políticos ou sociais de uma possível agitação, mas ao mesmo tempo que eram colocados em oficinas obrigatórias, o desemprego aumentava nas regiões vizinhas e nos setores similares136

O trabalho sempre esteve atrelado à prisão. Em muitas oportunidades137,

dependendo da situação de oferta de mão de obra, seguindo a análise de Foucault,

empregou-se o trabalho como sentido utilitário, visando alcançar a maior produtividade

possível, quer em benefício do Estado quer de particulares.

A prisão foi, pois, uma necessidade amarga, mas indispensável, sendo

modernamente tratada com um mal necessário, sem esquecer que deposita em si mesma,

contradições insuperáveis.

2.1.3 Direito penal na Idade Moderna

A sistemática jurídica do século XVII derivava de uma pluralidade de fontes

de extrema complexidade em face da variedade de sujeitos e bens determinados, até

pelo momento histórico de criação ou consolidação de vários Estados na Europa

continental. Isto gerava antinomia e incoerência dessa sistemática, ao passo que, no

exercício de sua prática, a presença de conflitos entre normas e jurisdições era uma

constante.

Entre os países de direito escrito e de direito consuetudinários, que eram

considerados como direito comum, restavam, a título de direito particular, o direito

135 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. Ibidem. p. 49. 136 FOUCAULT. Ibidem. p. 59. 137 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. Ibidem. p. 51.

62

feudal e o direito canônico ora já exposto, que devido à suas características, em relação

aos sujeitos e coisas a eles submetidos, constituíam um elemento de diferenciação dos

regimes jurídicos.

Tanto o direito penal comum como os direitos particulares faziam ampla

referência ao status substantivo do réu ou da parte lesada (nobre, funcionário,

vagabundo, protestante, hebreu, por exemplo). As penas eram variadas e desumanas,

caracterizando verdadeiros suplícios. A de morte era cominada a um grande número de

crimes, não constituindo um tipo genérico de sanção penal. Além da pena de morte,

havia outros tipos de penas como a reclusão, trabalhos forçados, galés, deportação para

colônias, confisco, que podiam ser infligidas a título exclusivo ou cumulativamente.

Nesse contexto, a legislação passa a ser progressivamente concebida como expressão da

vontade do monarca.138

A unificação dessa sistemática jurídica, como sistema coerente, passava pela

centralização da jurisdição, que correspondia à prevalência de um grupo particular de

normas, cuja criação era proveniente da vontade do monarca, sobre todas as demais.

Jurisdição, antes do século XVIII, corresponde a iurisdictio, indicando a titularidade e extensão de um poder jurídico de aplicar e de produzir o direito, anterior ou concomitantemente com sua aplicação. O que hoje chamamos de competência jurisdicional e de competência administrativa estava ligado a essa noção de jurisdição. A diferenciação entre essas duas competências somente se dará quando Montesquieu, em meados do século XVIII, formular sua teoria da separação de poderes.139

Do que se afere da idade média, o direito penal era fragmentário e as normas

não disciplinavam os tipos penais e sim variadas formas de condutas, as quais não se

identificavam com a ação praticada ou a natureza do evento e sim com relação à pessoa

que cometia a conduta criminosa. Dessa forma, tem-se a punição como forma de

expiação dos pecados.

Na França, a ordenação de 1670, que teve vigência até a Revolução, previa como castigos a morte, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. A pena de morte natural compreendia todos os tipos de morte, como a forca, o esquartejamento, o estrangulamento, por queimaduras.

138 BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria geral da pena. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 32. 139 Idem. Ibidem. p. 33.

63

A pena aplicada nessa época era vista como suplício pelos reformadores e definida como pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz, bárbara e cruel. 140

É nesse contexto que se estabelece o discurso dos iluministas, como

Beccaria, que propõem reformas no sistema penal, como objeção à barbárie dos

suplícios, ao definir limites ao direito do suspeito e ao poder de punir.

Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, nascido em Milão em 1738 e

graduado na Universidade de Parma advêm de uma família de marqueses bastante rica.

As observações que faz durante seu período de estudos, no âmbito da Accademia141, o

faz se rebelar contra o mundo de seus pais, produzindo, a partir de suas reflexões sobre

as legislações e práticas penais vigentes na Europa sua mais profícua obra Dei delitti e

delle pene, considerado por muitos como o pequeno grande livro, publicado em 1763,

primeiramente de forma anônima.142

Para justificar a punição feita pelo direito penal, Beccaria pressupõe que os

homens viviam inicialmente em estado de natureza, onde havia a guerra de cada um

contra todos, em forte alusão às ideias de Hobbes e, como garantia do máximo de

liberdade possível, estes homens reúnem-se em sociedade por meio de um pacto ou

contrato social, em que cada um abre mão de uma parcela de sua liberdade. Assim, a

ideia de delito é fundamentada tendo em vista a organização dos homens ligados pelos

ideais contratualistas, marcantes em seu tempo, buscando viver em paz e almejando o

bem comum.

As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da terra. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a certeza de conservá-la tornava inútil, sacrificam uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça, é um poder de fato e não de direito, é uma usurpação e não mais um poder legítimo. 143

140 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História de violência nas prisões. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 33, 35. 141 Accademia dei Pugni representava a intenção de luta de seus componentes contra a época bárbara, que deveria desaparecer. As reuniões dessa academia ocorriam no Palácio dos Verri e delas participava um grupo de jovens nobres, entre os quais, os Condes Giuseppe Visconti de Saliceto, Giambaitista Biffi, Luigi Lambertenghi, os Marqueses Afonso Longo, Antonini Mena Foglio, além dos irmãos Verri e o Marquês de Beccaria. 142 BICUDO. Ibidem. p. 42-43. 143 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Bauru: Edipro, 1ª ed. 2003, p. 22-23.

64

Por essa noção de delito, tem-se que este significa a ruptura do vínculo

social de solidariedade, na medida em que ofende a coletividade, demandando, portanto,

uma reação. Esta se caracteriza como pena sendo o instrumento hábil a restabelecer os

vínculos sociais fragilizados. O direito de punir então pertence a todos os cidadãos,

representados pelo soberano.

Qual será, pois, o legítimo interprete das leis? O soberano, isto é, o depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis. O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A (premissa) maior deve ser a lei geral; a (premissa) menor, a ação conforme ou não a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. 144 (parênteses nosso).

Talvez a mais importante contribuição foi sobre a legalidade, que até hoje é

o principal fundamento do direito penal e da punição. Afirma Beccaria, “Quereis

prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras. [...] A primeira conseqüência desses

princípios e que só as leis podem fixar as penas de cada delito [...]”.145

Toda a aplicação da lei e de suas sanções deveria respeitar esse princípio da

legalidade, caso contrário representaria funestas injustiças. A laicização do direito penal

levantada por Beccaria, a partir da aplicação da legalidade, pode ser interpretada como

um ataque ao fanatismo religioso, à superstição e à arbitrariedade, produtos da

convergência entre direito e religião, claramente expostos em sua época. Essa separação

entre pecado e delito é marcante para o direito penal como meio de evitar a turbação da

paz social, trazendo a necessidade de uma utilidade social do castigo.

A pena, conforme já exposto, era encarada apenas como retribuição ao mal

causado pela prática da infração, onde a pena tinha o poder de apagar o mal causado. O

iluminismo de Beccaria tinha uma concepção retributiva de pena, já que os indivíduos

abriam mão de parte de sua liberdade para viver em sociedade, porém possuíam uma

forte concepção utilitarista da pena. Ao desenvolver o fundamento da pena, ele elege a

segurança dos indivíduos em sociedade, com base no princípio da máxima utilidade ou

máxima felicidade.

144 Idem. Ibidem. p. 25. 145 Idem. Ibidem. p. 23.

65

O fim da pena não é outro que impedir o réu de praticar novos danos aos cidadãos e remover outros de fazê-lo. [...] Qual o fim político dos castigos? O terror que imprimem nos corações inclinados ao crime.146

O respeito à liberdade, à dignidade da pessoa e ao interesse dos particulares

são meios legítimos para atingir a busca da felicidade, e, portanto, da boa vida em

sociedade. A dupla função do direito penal, a de punir o autor do delito e através dessa

punição, demonstrar aos demais indivíduos que não venham a cometer novos delitos,

colocando em risco a paz e a segurança social são características expressas da utilidade

da pena, assumindo o que hoje se denomina prevenção geral e prevenção especial. Tais

objetivos são, irrefutavelmente, antecedentes dos anseios reabilitadores e reintegrativos

da pena privativa de liberdade.

O sentido útil, nessa concepção, coincide com o que é moralmente bom. O homem é moralmente bom se não for ignorante ou voltado para o vício. Assim, como a natureza possui uma série de mecanismos que, se não forem obstaculizados por erros e se forem reforçados por leis, conduzirão à sua harmonia e ao seu equilíbrio, a ordem social, que é aspecto e cópia da ordem natural, também deve ser harmoniosa e voltada para o bem. É, portanto, função da boa legislação a busca da boa vida em sociedade. 147

A finalidade da pena, pois, não é de atormentar e afligir um ser sensível,

nem desfazer um delito já cometido, mas a de impedir que o infrator cause novos danos

aos seus concidadãos, e ao mesmo tempo, impedir que outras pessoas venham a cometer

delitos. O resultado desse utilitarismo é o início da humanização das penas, com a

consequente proporcionalidade em sua aplicação. As penas deixariam de ser apenas

suplícios corporais em resposta ao ataque divino e tornar-se-iam reabilitadoras do

condenado.

John Howard, por volta 1777 quando publicou The state of prisions in

England na Wales with na account of some goregn, inspirou uma corrente

penitenciarista preocupada em construir estabelecimentos apropriados para o

cumprimento da pena privativa de liberdade. Nascido em Hackney em 1726 foi

nomeado xerife de Bedford onde iniciou o gosto e estudo pelos problemas carcerários

ingleses, notadamente as casas de correção.148

146 Idem. Ibidem. p. 38 147 BICUDO. Ibidem. p. 64. 148 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 58 – 59.

66

Seu ideal teve importância considerável adotando o conceito

predominantemente vindicativo e retributivo que se tinha da pena. Isso foi resultado de

sua não aceitação das condições deploráveis em que se encontravam as prisões inglesas,

onde o sofrimento desumano era consequência implícita da pena privativa de liberdade.

Howard faz uma análise sobre a função da prisão, onde as péssimas condições não se

faziam mais necessárias, pois o desenvolvimento econômico que já havia alcançado a

Inglaterra era deslegitimante da forma pela qual a pena era aplicada, onde cumpria uma

finalidade econômica, devendo circunscrever-se apenas a uma função punitiva e

terrorífica149.

Aspecto relevante de sua obra foi encarar o papel que a penitenciária

cumpria com o detento, insistindo na necessidade de construir estabelecimentos

adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, proporcionando ao

condenado regime higiênico, alimentar e médico que cobrisse as necessidades básicas.

Ainda, o trabalho obrigatório, segundo seu enfoque, era primordial para que o detento

alcançasse a regeneração moral.

Segundo Bitencourt150, propôs ainda o isolamento dos detentos com o

objetivo de favorecer a reforma ou reabilitação mediante a utilização de conceitos

religiosos e combater os inúmeros males da promiscuidade prisional. O isolamento

noturno foi a mais notória contribuição de sua obra e se mantém em vigor até os dias

atuais nas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (Genebra, 1955).

Jeremy Bentham, nascido na Inglaterra em 1748, proveniente de família de

juristas, dedica-se ao estudo do Direito, ingressando na Universidade de Oxford aos

dezesseis anos, onde assiste às aulas de Blackstone, primeiro professor de Direito Inglês

da universidade. “Quanto mais estuda o direito, mais cresce seu descontentamento com

os absurdos e anomalias das leis e instituições inglesas, sobre as quais Blackstone

afirmava que tudo era como deveria ser”.151

Esse pano de fundo foi fundamental para que Bentham desenvolvesse sua

teoria do Panótico, obra de alto teor arquitetônico penitenciário.

Considerava que o fim principal da pena era prevenir delitos semelhantes: ‘o negócio passado não é mais problema, mas o futuro é infinito: o delito

149 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 69. 150 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 61. 151 BICUDO. Ibidem. p. 79.

67

passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer o mal, porque por maior que seja o proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena’. O efeito preventivo geral era preponderante, embora admitisse o fim correcional da pena. 152

O trabalho de Bentham sempre procurou um sistema de controle social, na

medida de um controle do comportamento humano, mas baseado nos princípios do

utilitarismo em que a ética é preponderante. Traduz-se na procura da maior felicidade

possível para a maioria, servindo também para prevenir a dor. Assim, um ato possui

utilidade se visa a produzir o benéfico, bem estar, prazer. Nesse ponto, a pena assume

um caráter preventivo geral, sendo o foco a proteção da sociedade.

Não via Bentham crueldade na pena como um fim em si mesmo, apontando

para um abandono progressivo do conceito tradicional que considerava a pena como dor

e sofrimento. Considerava sim, que a pena é um mal que não deve exceder o dano

produzido pelo delito, devendo haver proporcionalidade entre o dano e a sanção. Dessa

forma, admitia a necessidade de que o castigo seja um mal, mas como meio de prevenir

danos maiores à sociedade.

As condições prisionais inglesas à época serviriam para estimular o mal e a

reincidência no condenado, podendo considerar-se como início das teorias das

subculturas carcerárias, as quais propõem de maneira genérica que o condenado segue a

cultura à qual está submetido e se tal cultura se traduz em violência, criminalidade, mal,

mesmo que o condenado não esteja enquadrado nessas particularidades anteriormente à

prisão, invariavelmente acabará se adequando a essa nova cultura quando no cárcere.

Sua contribuição mais importante se deu com o Panótico, o qual definiu

como

Estabelecimento proposto para guardas os presos com mais segurança e economia, e para trabalhar ao mesmo tempo sua reforma moral, com novos meios de assegurar sua boa conduta e prover sua subsistência após a soltura. (tradução livre). 153

152 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 65. 153 BENTHAM, Jeremias. El panótico. El ojo del poder. Genealogía del poder. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta. s.d. p. 33.

68

Segundo Foucault154, o Panótico de Bentham é a figura arquitetural que se

estabelece na periferia uma construção em anel, no centro uma torre: esta é vazada de

largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é

dividida em celas, casa uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas

janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra para o exterior,

que permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na

torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado. O dispositivo

panótico organiza as unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer

imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três

funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as

outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que

finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.

Daí o efeito mais importante, induzir o condenado a um estado consciente e

permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.

Mas não se pode dizer que o desenho panótico só haja a preocupação com a

segurança ou tecnologia de dominação. Preocupa-se também em estimular a reabilitação

do condenado através do trabalho, porém devendo este ser produtivo e atrativo, evitando

os penosos e inúteis já que não estimula uma existência honrada do condenado quando

retornar ao convívio social.

Melossi e Pavarini155 afirmam que o desenho de Bentham adapta-se bem ao

objetivo de controle, mas impede a introdução do trabalho produtivo na prisão, uma vez

que não permite a utilização massiva de mão de obra, produção em série e utilização

eficaz dessa máquina.

Bentham esforçou-se para que seu projeto se materializasse, mas quase

sempre sem sucesso. Essa circunstância não diminui, contudo a importância de suas

ideias, pois muitas delas continuam atuais, tanto do ponto de vista penitenciário como

arquitetônico. Nos Estados Unidos suas ideias tiveram a maior acolhida onde várias

penitenciárias adotam, mesmo que de forma parcial, o desenho panótico.156

154 FOUCAULT. Vigiar e punir. História de violência nas prisões. p. 190. 155 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 67. 156 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 73.

69

2.2 Teorias penais e função da pena – Por uma análise crítica.

A pergunta sobre o sentido da pena surge como nova em todas as épocas.

Com efeito, não se trata de um problema apenas teórico, mas de um tema de enorme

utilidade prática. Roxin157, já em 1976 perguntava, com base em que pressupostos se

justifica que o grupo de homens associados no Estado prive de liberdade algum de seus

membros ou intervenha de outro modo, conformando sua vida? Esta é uma pergunta

sobre a legitimação e limites do poder estatal que não pode mais ficar presa em

respostas passadas, colocadas em outras realidades históricas, culturais e regionais.

Para se compreender o fundamento e fins da sanção penal há que se partir de uma

consideração estática ou dinâmica da mesma.

O que se tentará nesse tópico além de relacionar de forma histórica e lógica

as teorias mais importantes sobre a pena, é realizar uma análise crítica e das mesmas

teorias enquadrando-as no atual cenário nacional, para nos capítulos seguintes, justificar

a necessidade de utilização de determinada teoria a fim de alcançar alguma solução

prática para o sistema penitenciário.

O direito tem como pressuposto básico como norma de conduta sua

coercitividade, já que reprova de forma simbólica ou fática os atos contrários aos seus

pressupostos normativos. Segundo Kelsen158, a coação tem como característica

fundamental a aplicação de um mal ao destinatário, mesmo contra sua vontade,

empregando força física, se necessário for. O direito se diferencia dos demais sistemas

de controle como o informal pelo estabelecimento deontológico da sanção, leia-se,

coação institucional operada através do Estado moderno, estruturado no exercício

legítimo dos poderes constitucionalmente estabelecidos.

Para Weber, o Estado moderno constitui-se numa “comunidade humana,

que dentro dos limites de determinado território reivindica o monopólio do uso legítimo

da violência física. Logo, o Estado se transforma na única fonte do ‘direito’ à

violência.”159 Assim, o uso da força numa ordem jurídico-constitucional será sempre

157 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3ª ed. Trad. Ana Paula dos Santos e Luís Natscheradetz. Lisboa: Ed. Vega, 1998 p. 15. Cf. ainda a edição espanhola Problemas básicos de derecho penal. Trad. Diego Manuel Luzón Pena. Madrid: Ed. Reus, 1976. 158 KELSEN, Hanz. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Matins Fontes, 1987. p. 60. 159 WEBER, Max. Ciência e Política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 56.

70

limitado por regras e centralizado em órgãos determinados, pois como forma de sanção,

sempre haverá a violência como resultado da coação. Ferrajoli conclui que o problema

da “legitimidade política e moral do direito penal como técnica de controle social

mediante constrições da liberdade dos cidadãos é, em boa parte, o próprio problema da

legitimidade do Estado como monopólio organizado pela força”. 160

Do ponto de vista estático, a pena seria a consequência primária do delito, a

modo de retribuição do mesmo, sendo este um pressuposto necessário àquela. Nesse

sentido, somente as chamadas teorias absolutas poderiam proporcionar uma explicação

à pena, fundamentando-o no delito cometido.

Do ponto de vista dinâmico, a sanção penal teria os mesmos fins que o

direito penal, ou seja, evitar condutas lesivas a bens jurídicos que a lei proíbe. Esta

finalidade se alcança por intermédio da ameaça legal e geral da imposição e execução

concreta das sanções penais, tanto com o efeito da prevenção geral como com o da

prevenção especial, típico das teorias relativas.

Além disso, cabe registrar a necessidade de análise da pena frente à

utilização que o Estado faz do direito penal, isto é, a pena para facilitar e regulamentar a

convivência humana em sociedade organizada. Assim, o Estado utiliza a pena para

proteger determinados bens jurídicos, assim considerados em uma organização

socioeconômica específica, o que, diga-se de passagem, não é considerado como ideal,

visto que não é papel do Direito Penal, utilizando-se de seu instrumento sancionador,

regulamentar ou socializar qualquer tipo de conduta. Deve sim, ser este utilizado como

última barreira de contenção contra desvios sociais.

As teorias retribucionistas partidárias da pena se fixam mais nos aspectos

lógicos, elucidando o significado da palavra. Trata-se de uma consideração estática do

direito, que busca o porquê da sanção, a justificativa do direito de castigar e da

existência da pena. Estas considerações se incorporam no plano normativo, do dever

ser. Castiga-se porque há um ilícito prévio.

A pena se justifica como categoria necessária para reestruturar o Direito violado, necessária enquanto se produziu seu antecedente lógico, o delito, numa relação lógica imperativa entre um antecedente e sua conseqüência. Nas teorias absolutas, a pena se reduz a uma categoria lógica derivada de sua existência num tipo penal. Como se tratasse de uma relação de causalidade, a pena está unida necessariamente ao delito, que se constitui, assim, como sua

160 FERRAJOLI. Ibidem. p. 234.

71

causa e fundamento. Produzido o delito, como infração a ordem jurídica, produz-se como efeito necessário a pena, que trata de compensar e restituir ao estado anterior à infração. Nas teorias relativas, o que importa é o futuro e a oportunidade da sanção olhando a realidade social a qual se aplicará, com seus efeitos práticos, de benefício ou prejuízo. Nas primeiras, a pena é um fim em si mesma. Nas segundas, é um meio a serviço de um fim. Neste último caso, os tipos penais se concebem não apenas como estruturas causais nas quais se dão um antecedente e um conseqüente necessário, mas como tipificações de conflitos de interesses, conflitos de fato que se avaliam juridicamente. De tal maneira, a resposta a um conflito dependerá não somente do antecedente do mesmo, mas também da capacidade da resposta para evitar o conflito, de sua utilidade social diante de novos conflitos. 161

Quando se fala em justificação da pena, alude-se a sua necessidade para a

manutenção da ordem jurídica e condição indispensável para a convivência na

comunidade. Porém, mesmo que a sanção penal seja necessária, ela deve ser encarada

como a ultima ratio, o último recurso quando os demais sistemas de controle social,

tanto o informal (família, escola, trabalho, religião, por exemplo) quanto o formal

(direito constitucional, civil, administrativo, por exemplo) falham. A intervenção do

direito penal somente tem lugar perante as infrações jurídicas insuportáveis, devendo a

sanção proteger suficientemente a ordem social, como recurso diante de uma maior

necessidade de proteção da sociedade.

Nesse contexto, é premente perguntar-se se ante a violação da ordem

jurídica ou de bens jurídicos protegidos por essa ordem, há que castigar? Essa questão

admite dois tipos de respostas, as negativas ou abolicionistas, que não reconhecem

justificação alguma ao direito penal e ao jus puniendi do Estado, acusando o direito

penal de ilegítimo, ou porque moralmente não admitem nenhum tipo de objetivo capaz

de justificar as aflições que o mesmo impõe162 e as positivas, que se podem nomear

como justificacionistas, aos quais reconhecendo uma necessidade de castigar, enfocam

problemas ulteriores sobre o porquê, o quando e o como castigar. 163 Respondem-se

assim as indagações de Ferrajoli do se e por que punir, proibir e julgar.

2.2.1 A resposta negativa: os sistemas abolicionistas

161 Ignacio Muñagorri Laguía apud TELLA, María José Falcón y; TELLA, Fernando Falcón y. Fundamento e finalidade da sanção. Existe um direito de castigar? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 140. 162 FERRAJOLI. Ibdiem. p. 231. 163 TELLA; TELLA. Ibidem. p. 142.

72

O movimento abolicionista encontra sua origem na Holanda, nos estudos de

Louk Hulsman e na Noruega, nos pensamentos de Nils Christie e Thomas Mathiesen.

Consiste em uma nova forma de pensar o direito penal, mediante o debate crítico do

fundamento das penas e das instituições responsáveis pela aplicação do direito penal.

O abolicionismo afirma que a sanção penal não é uma instituição tão

transparente e auto-evidente de controle dos delitos como se poderia acreditar. Antes de

se questionar a forma pela qual a sanção deve ser aplicada, estabelecendo-se políticas

penitenciárias dessa ou daquela forma, deve-se questionar, segundo esse

posicionamento, se a prisão é necessária e se é possível existir ordem social organizada

sem ela.

Essa corrente doutrinária parte da seguinte reflexão, se a forma atual

escolhida pelo direito penal é falha, já que a reincidência aumenta diariamente, além

daqueles crimes que não chegam ao conhecimento do Estado, chamados cifras negras e

dentre os conhecidos e apurados somente alguns restam em condenações e dentre esses,

poucos cumprem a pena em sua totalidade, a sociedade teria condições de suportar a

maioria das infrações, sem se submeter a prejuízos irreparáveis auferidos com a

imposição e cumprimento da sanção.

A época contemporânea se caracteriza por um passo do otimismo e confiança no direito penal a um persistente pessimismo e ceticismo sobre a lógica e eficácia das instituições penais modernas. Essa mudança de atitude começou a emergir ao final dos anos 60 do século XX. Os métodos contemporâneos, particularmente a prisão, apresentam-se como noções casa vez mais irracionais, disfuncionais e contraproducentes. A mais conhecida crítica e discussão sobre as falhas da sanção penal se encontram na obra de Michel Foucault. 164

Durante a maior parte do século XX, o termo reabilitação foi a clave de

bóveda165 da ideologia imperante no sistema penal. Hoje em dia, entretanto, este termo

já não é mais a base do edifício penal. Palavras tão usadas no século XIX, como

correção, tratamento, reabilitação prevenção, mostram-se frustradas frente ao panorama

carcerário atual.

164 Idem. Ibidem. p. 144. 165 Clave de bóveda é um sentido metafórico para significar a parte mais importante que sustenta toda uma estrutura. A locução é utilizada para se referir à pedra que sustenta a abóbada, que é uma construção semi-esférica, econtrada em grande parte das igrejas espanholas. A clave de bóveda seria a pedra central, a mais alta de todas, que sustenta toda a estrutura. In TELLA; TELLA.

73

Dentro das respostas negativas ou abolicionistas destaca-se o abolicionismo

radical de Stirner e o abolicionismo holístico anárquico pós-marxista. Os pressupostos

filosóficos de tais propostas partem do mito criado no século XVIII do bom selvagem e

da ultrapassada e feliz sociedade primitiva sem direito, até as configurações anárquicas

e marxistas-leninistas do “homem-novo” e da perfeita sociedade sem Estado.

Para Stirner as regras não têm valor, manifestando-se partidário da rebelião

e a transgressão das mesmas, que não seve ser prevenida, nem castigada, nem julgadas.

“Partindo da desvalorização de quaisquer ordens ou regras, não apenas jurídicas, mas

inclusive morais, Stirner chega à valorização da transgressão e da rebelião, enquanto

livres e autênticas manifestações do egoísmo amoral do ego”.166

As doutrinas abolicionistas menos radicais são as que não se opõem a

qualquer forma de controle social, mas somente às penas e, inclusive, ao direito penal.

Contrariamente à postura radical de Stirner, estas além de serem marcadamente

moralistas e de solidariedade, são influenciadas pelo jusnaturalismo ao qual a moral

superior é que deveria regulamentar diretamente a futura sociedade. Ferrajoli167 pondera

que “escritores liberais e anárquicos como Godwin, Bakunin, Kropotkin, Molinari e

Malatesta não valorizam, como Stirner, a transgressão enquanto expressão normal e

fisiológica do homem” justificam, quando muito, como “momento de rebelião e como

sinal e efeito de causas sociais patológicas, razão pela qual contestam a pena”.

[...] referidas doutrinas, sejam elas radicais ou holísticas, evitam todas as questões mais específicas da justificação e da deslegitimação do direito penal – da qualidade e quantidade das penas, da qualidade e quantidade das proibições, das técnicas de controle processual – desvalorizando toda e qualquer orientação garantista, confundindo em uma rejeição única modelos penais autoritários e modelos penais liberais, e, portanto não oferecendo nenhuma contribuição à solução dos difíceis problemas ligados à limitação e ao controle do poder punitivo. 168

2.2.2 A resposta positiva: os sistemas justificacionistas

Em contraposição às doutrinas abolicionistas da pena e do direito penal,

chamamos de justificacionistas àquelas que até por decorrência do abolicionismo 166 FERRAJOLI, Ibidem. p. 232. 167 Idem. Ibidem. p. 232. 168 Idem. Ibidem. p. 234.

74

carregam o ônus da justificação do direito penal, da pena e dos fins aos quais se

buscam. Estas podem ser divididas em duas categorias: as teorias chamadas absolutas

ou da retribuição e as denominadas teorias relativas ou da prevenção.

São teorias absolutas todas aquelas que concebem a pena como um fim em

si mesmo, ou seja, como a retribuição do mal causado com o próprio mal, “justificada

por seu intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas,

sim, um dever metajurídico que possui em si seu próprio fundamento”169

São, contudo, relativas todas as doutrinas baseadas no utilitarismo da pena,

que consideram e justificam-na como meio para a realização do fim utilitário da

prevenção de futuros delitos.

Cada uma dessas duas grandes vertentes doutrinárias foi subdividida. As

doutrinas absolutas ou retributivas foram divididas tendo como parâmetro o valor moral

ou jurídico conferido à retribuição estatal pela direito penal e, as doutrinas relativas ou

utilitaristas são divididas por sua vez entre teorias da prevenção especial, que atribuem o

fim preventivo à pessoa do delinquente e que será amiúde tratada com maior cautela,

visto os fins que este trabalho almeja e as teorias da prevenção geral que têm como foco

os cidadãos em geral e a manutenção social da paz.

2.2.2.1. Teorias absolutas ou retributivas da pena

Para que se possa chegar a um entendimento melhor sobre os fins

retributivos da pena, deve-se analisar o tipo de Estado que lhe dá vida. Nesse ínterim, o

Estado absolutista possui as características mais importantes no delimitador das teorias

retributivas. A identidade entre o Estado e o soberano, a união entre direito e moral

além da afirmação que o soberano era representante de Deus na terra e por isso o poder

lhe era concedido de forma ilimitada dão a tônica a essa corrente.

A pena no Estado absolutista era de certa forma, como acentua

Bitencourt170, imposta a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em

sentido mais que figurado, contra o próprio Deus. Ocorre nesse período uma transição

da sociedade da baixa idade média e a sociedade liberal, sendo causa do aumento da 169 TELLA; TELLA. Ibidem. p. 150. 170 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 117.

75

burguesia e do acúmulo de capital. Obviamente, essa nova classe dominante necessitava

de algo para proteger o capital. A pena então, não podia ter outras características senão

a de constituir mais um instrumento de realização desse objetivo.

Rusche e Kirchheimer171 constatam que o fim da pena era a exploração da

mão de obra proletária, por meio do internamento dos indivíduos em cárceres, casas de

correção, casas de trabalho. Assim, para o sujeito que descumprisse uma norma jurídica,

deveria incidir expropriação de algo de valor que pudesse ser quantificável. Nesse

sistema de controle social, as massas criminalizadas nada possuíam, além de seus

corpos, conforme outrora exposto, recaindo o trabalho da mão de obra proletária e o

tempo, como únicos objetos idôneos de conversão da dívida pelo descumprimento

normativo.

Quando do surgimento do estado burguês, este apóia-se na teoria do

contrato social.

O Estado é uma expressão soberana do povo, e com isso aparece a divisão de Poderes. Com essa concepção liberal de Estado, a pena não pode mais continuar mantendo seu fundamento baseado na já dissolvida identidade entre Deus e soberano, religião e Estado. A pena passa então a ser concebida como “a retribuição à perturbação da ordem (jurídica) adotada pelos homens e consagrada pelas leis. A pena é a necessidade de restaurar a ordem jurídica interrompida. À expiação sucede a retribuição, a razão divina é substituída pela razão de Estado, a lei divina pela lei dos homens”. 172

Assim, com a assunção do liberalismo, o indivíduo que contrariava esse

contrato social era qualificado como traidor, pois não seguia o compromisso de

preservação da organização social, passando a ser considerado como rebelde e a pena

assumindo o papel de realização da justiça, nada mais.

Tradicionalmente, Kant e Hegel são tidos como os principais representantes

dessa nova teoria da retribuição. O primeiro fundamenta a pena na ética, o segundo na

ordem jurídica.

A retribuição da pena em Kant encontra-se tratada principalmente em

Princípios metafísicos na doutrina do direito, especialmente na segunda parte, referente

171 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: ICC, 2004. p 39-42. 172 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 118.

76

ao direito público. Ele define o direito a castigar como direito que tem o soberano de

afetar dolorosamente ao súdito como consequência de sua transgressão da lei.

A lei penal é um imperativo categórico173 em Kant, devendo ser aplicada

somente quando houver infringência à lei, chegando a afirmar, no caso extremo de

dissolução de uma sociedade civil por consentimento de seus membros, como por

exemplo, se os habitantes de uma ilha decidissem abandoná-la e dispersar-se, o último

assassino mantido na prisão deveria ser executado antes da dissolução, a fim de que

cada um sofresse a pena de seu crime, sob o risco de se converter, se não, todo o povo

em cúmplice de uma violação da justiça174.

Para Kant, a pena é a retribuição justa desprovida de todo o fim e representa

a imposição de um mal como compensação da infração jurídica culpavelmente

cometida. Isto é, o conteúdo da pena é o talião e a função da pena é a realização da

justiça. Portanto, a pena obriga incondicionalmente, é um imperativo categórico, pois

apenas pode ser aplicada como causa do delito e somente porque se infringiu a lei.

A pena jurídica, poena forensis não pode nunca ser aplicada como simples meio de procurar outro vem, nem em benefício do culpado ou da sociedade, mas deve sempre ser contra o culpado pela simples razão de haver delinqüido: porque jamais um homem pode ser tomado como instrumento de desígnios de outro, nem ser contado no número das coisas como objetivo de direito real.175

Kant considera que o réu deve ser castigado pela razão única de haver

delinquido, sem considerar em momento algum a utilidade da pena para este ou para a

sociedade, negando assim, qualquer função preventiva da pena.

Hegel, também partidário da teoria retributiva afirma que a pena é a negação

da negação do Direito. Para Santiago Mir Puig176, a fundamentação hegeliana da pena é

mais jurídica, ao contrário da kantiana, baseada na ética, na medida em que para Hegel a

pena encontra sua justificação na necessidade de restabelecer a vigência da vontade

173 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes parte I. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Lisboa:Edições 70, 2004. p. 61. “Todos os imperativos mandam, seja hipoteticamente, seja categoricamente. Os hipotéticos são aqueles que representam a necessidade prática de uma ação possível, como meio de conseguir outra coisa que se queira”. 174 Idem. Ibidem. p. 167. 175 Idem. Ibidem. p. 167. 176 MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Concepto y método. 2ª ed. Reimpresión. Montevideo: Editorial BdeF, 2003. p. 50.

77

geral, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinquente. A

imposição da pena implica no restabelecimento da ordem jurídica violada.

De acordo com o método dialético hegeliano: a posição é a vontade geral (ordem jurídica), a negação da mesma é o delito e, por último, a negação da negação se consegue com a pena. Neste planejamento a pena se concebe só como reação que visa ao passado (ao delito) e não como instrumento de fins posteriores177. (tradução livre).

Dessas concepções expostas, a teoria da retribuição falha no sentido que ela

já pressupõe a necessidade da pena, que deveria fundamentar, já que seu significado se

baseia na compensação da culpa humana, não podendo por isso pretender que o Estado

tenha que retribuir com pena toda a culpa humana.

Roxin, criticando o posicionamento das teorias retribucionistas afirma,

A teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto quando se tem de punir, mas apenas refere: << Se impuserdes – sejam quais forem os critérios – uma pena, com ela tereis de retribuir um crime>>. Fica por resolver a questão decisiva de saber sob que pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar. Deste modo, a teoria da retribuição fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado. Ela não impede que se inclua no Código Penal qualquer conduta, e que, caso se verifiquem os critérios gerais de imputação, tal conduta seja efetivamente punida; concede, de certo modo, um cheque em branco ao legislador. 178

Ao direito penal então, compete apenas a proteção dos bens jurídicos mais

importantes, admitindo-se assim seu caráter fragmentário, e não a realização de justiça.

“A realização da justiça é uma função praticamente incompatível com aquela atribuída

ao direito penal, que consiste em castigar, parcialmente, os ataques que tenham por

objeto os bens jurídicos protegidos pela ordem legal”.179

2.2.2.2 Teorias relativas ou preventivas da pena

177 Idem. Ibidem. p. 50-51. 178 ROXIN. Ibidem. p. 17-18. 179 MIR PUIG. Ibidem. p. 92.

78

Em oposição às teorias absolutistas da pena, as teorias relativas ou

preventivas buscam a prevenção de delitos, fundamentando-se na necessidade de

continuidade do grupo social, ora centralizando esforços na sociedade, ora no indivíduo

praticante do delito.

A origem destas conotações preventivas elege-se a Sêneca (65 d.C.), onde

baseado na ideia de Protágoras (aprox. 485-415 a.C.) que foi transmitida por Platão

(427-347 a.C.) afirmou Nam ut Plato ait: nemo prudens punit, quia peccatum est, sed

ne peccetur. (Pois, como disse Platão: ‘nenhum homem sensato castiga porque se

pecou, só para que não se peque’)180.

2.2.2.2.1 Teoria da prevenção geral da pena

Para os adeptos desta corrente teórica, o fim da pena não é a retribuição do

mal causado pelo autor do delito e sim a influência que a pena causa sobre a sociedade

através de ameaças penais e da execução dessas medidas, a qual deve ser instruída sobre

as proibições legais. Esta teoria tende a prevenção dos delitos onde a ameaça de sanção

deve atuar não especialmente sobre o autor e sim geralmente, sobre a sociedade. Por

isso é tratada como prevenção geral.

A discussão em torno da prevenção geral iniciou-se com Paul Johann

Anselm v. Feuerbach, considerado fundador da moderna ciência do direito penal

alemão. Seus estudos basearam-se na teoria da coação psicológica, onde se imaginava

que o pretenso delinquente, quando exposto à tentação delitiva, faria uma análise se a

prática do delito compensaria ou não, visto que se o praticasse estaria sujeito às penas

cabíveis e à sua execução, ou seja, a ameaça de pena estaria sendo sopesada em seu

psicológico.

Segundo Roxin, Feuerbach fundamenta exatamente essa concepção,

Todas as infrações tem o fundamento psicológico de sua origem na sensualidade, até o ponto de que a faculdade de desejo dos homens é incitada pelo prazer da ação de cometer o fato. Este impulso sensitivo pode suprimir-se a saber cada qual que com toda segurança seu feito será seguido de um

180 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. 1ª ed. 8ª reimpresión. Madrid: Civitas Ediciones. 2008. p. 85.

79

mal inevitável, que será maior que o descontentamento que surge do impulso não satisfeito pela comissão 181 (tradução livre).

Assume-se, portanto, que a pena é uma ameaça da lei aos cidadãos para que

estes se abstenham de cometer delitos, apoiando a razão do sujeito na luta contra os

impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce uma coação

psicológica perante os motivos contrários à exigência legal.

A intimidação ou a utilização do medo, bem como a racionalidade humana

na avaliação de suas ações e as consequências destas dão a base teórica desta teoria.

Contudo, aparecem críticos assinalando aspectos negativos e positivos relativos à

prevenção geral.

Dessa forma, como aspectos negativos, Roxin esclarece que somente parte

das pessoas com tendências à criminalidade comete crimes com tanto cuidado na

avaliação das consequências e dificilmente para estes a pena poderia causar alguma

intimidação. Para ele, estes indivíduos se preocupariam mais com o risco de serem

atrapalhados do que com a ameaça penal. Assim, é possível que para o homem comum,

em situações normais, a influência da ameaça penal surta efeito. Contudo, aos

criminosos habituais, profissionais ou os impulsivos ocasionais, isso não acontece.

Todavia, prescindindo de que, pelas causas apontadas, este êxito seja duvidoso em muitos crimes, para além do mais seria de certa forma paradoxal que o direito penal não possuísse significação alguma precisamente para os delinquentes, isto é, os não intimidativos – e, porventura, os puta e simplesmente não intimidáveis – e que não devesse prevalecer e legitimar-se face a eles também.182

Essa barreira é efetivamente constatada em relação aos traficantes de

drogas, que não reconhecem critério algum de adequação social e postura diante da

sociedade e do ordenamento legal, não surtindo a ameaça penal qualquer efeito

intimidatório.

Outra crítica negativa aos critérios preventivos gerais baseia-se na ausência

de estabelecimento de parâmetros a fundamentar a necessidade da pena, possuindo,

portanto, uma tendência ao terror estatal, visto que quem pretende intimidar mediante 181 FEUERBACH, Anselm v. apud ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 90. 182 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 24.

80

pena, tenderá a reforçar esse efeito. Atualmente é o parâmetro mais visível no

Congresso Nacional, ora baseado em midiatismo, ora baseado em interesses de grupos

específicos. O que se percebe é o caráter repressivo adotado em últimas alterações

legislativas com o grito de que se faria necessário a inclusão de novos tipos penais ou o

aumento de sanções correspondentes visando intimidar determinados ramos sociais.

Como última crítica negativa ponderável e nos dizeres de Roxin a mais

importante183, diz respeito a justificação necessária ao castigo de um indivíduo, não em

consideração à ele próprio, mas em consideração a outros. Ainda que a intimidação

surta os efeitos desejados, é duvidoso, para se dizer o mínimo, que seja justo impor um

mal a alguém para que outros se omitam em cometer um mal.

Baseando-se nas concepções de Kant que afirmava que o indivíduo não

pode nunca ser utilizado como meio para as intenções de outrem sob pena de violação

da dignidade humana, Roxin pondera,

E, efectivamente, para um ordenamento jurídico que não considere o indivíduo como objecto à mercê do poder do Estado nem como material humano que possa ser utilizado, mas sim como portador, plenamente equiparão a todos os outros, de um valor como pessoa, valor esse que é prévio ao Estado e que deve ser protegido por este, tem de ser inadmissível tal instrumentalização do homem.184

Como aspecto positivo da prevenção geral da pena tem-se que essa

ideologia busca a conservação e o reforço da confiança no direito já que a pena tem a

missão de demonstrar a inviolabilidade do ordenamento jurídico frente à comunidade e

reforçar a confiança jurídica do povo.

Diz-se ainda185, que a prevenção geral da pena pode assumir três fins e

destinos ligados entre si: o efeito de aprendizagem, motivado social-pedagogicamente; o

exercício da confiança do Direito que se origina na população pela atividade da justiça

penal e o efeito de confiança que surge quando o cidadão vê que o Direito se aplica; e o

efeito de pacificação, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza

em virtude da sanção ao autor que desrespeitou a lei.

183 Idem. Ibidem. p. 24. 184 Idem. Ibidem. p. 25. 185 ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 91-92.

81

Faz-se necessário dizer que a prevenção geral tem como escopo principal

evitar a ocorrência do delito sob a ameaça de pena. Isso pode parecer insuficiente frente

às altas taxas186 de reincidência vividas no país. Contudo é de se asseverar que bem ou

mal, ela produz resultados, haja vista somente pequena parcela da população187 ser

responsável pelo cometimento de delitos. A objeção de que todo delito demonstra a

ineficácia da prevenção geral pode se contrapor sempre à sua efetividade demonstrada

pela maioria da população que não pratica delitos e segue o ordenamento jurídico.

2.2.2.2.2 Teoria da prevenção especial da pena

A diferença da prevenção geral, que se dirige à coletividade, a prevenção

especial tende a prevenir os delitos que possam proceder do delinquente, ou seja, busca

evitar que quem sofra a sanção possa voltar a delinquir. Frente a este, a imposição da

pena tem que servir como lição e como caminho para a readaptação social. Busca a

prevenção especial da pena a (re)socialização do autor do delito condenado a algum tipo

de pena. A prevenção especial, assim, não pode operar no mesmo instante da prevenção

geral, no momento da cominação penal e sim no momento da execução da pena.

Diversas correntes teóricas baseiam suas posições na prevenção especial. A

partir do século XIX, tomou corpo o correcionalismo de Dorado Montero na

Espanha188, o movimento de defesa social, de Marc Ancel na França, mas foi,

sobretudo, com Franz von Liszt na Alemanha que a concepção preventivo-especial se

solidificou.

Partindo da ideia do fim como motriz da ciência do direito, Von Liszt

considerou que a pena só podia se justificar por sua finalidade preventiva. Em seu

famoso Programa de Marburgo de 1882, assentou alguns pontos politico-criminais que

deveriam ser seguidos. Assim, a pena correta seria a pena justa, necessária; a finalidade

da prevenção especial se cumpriria de forma distinta, segundo três categorias de

186 Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, de 30.03.2011, a taxa de reincidência para presos submetidos a penas privativas de liberdade é de 80%. 187 Há um total de 496.251 presos no Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça. Somem-se a isso 544.795 condenados sujeitos a medidas despenalizadoras e 126.273 condenados submetidos a penas alternativas, segundo dados do CNJ, totalizando 1.167.319 pessoas que efetivamente cometeram delitos e que foram punidas. Isto corresponde aproximadamente 0,5% da população brasileira (190.755.799 – IBGE 2010). 188 MIR PUIG. Ibidem. p. 55.

82

delinquentes demonstrados pela criminologia: a) frente aos delinquentes de ocasião,

necessitado de correção, a pena constituiria uma recordação para que se iniba futuros

delitos; b) frente ao delinquente de estado corrigível, o qual deve perseguir a correção e

reintegração social por meio de uma adequada execução da pena; c) frente ao

delinquente habitual incorrigível, onde a pena serviria para incapacita-lo através da

segregação que pode chegar a ser perpétua.

Dessa forma, a prevenção especial, segundo Von Liszt189 pode atuar de três

formas, assegurando a comunidade frente aos delinquentes, mediante o encarceramento

destes, intimidando o autor, mediante a pena para que não cometa futuros delitos e

preservando-o da reincidência mediante sua correção. Serve a pena, portanto, para

intimidar, corrigir e segregar190 o delinquente, como forma última de proteção de bens

jurídicos mediante a incidência da pena na personalidade do delinquente como forma de

evitar futuros delitos, cumprindo muito bem o papel destinado ao Direito Penal, quando

se obriga exclusivamente à proteção do indivíduo e da sociedade e que ao mesmo tempo

quer ajudar o autor do delito, integrando-o novamente ao convívio social.

Em relação a estes três fins, diversos e alternativos entre si, Liszt propôs uma diferenciação dos “instrumentos punitivos singularmente considerados” a fim de “adaptar a pena segundo o seu tipo e a sua extensão, na conquista do objeto possível e necessário em cada caso concreto”, que se extrai não do “tipo penal” “in abstrato”, mas sim “deste delito em si”, ou seja, da “ação concreta”, a qual e inseparável da pessoa do autor”, vale dizer, “este ladrão”, “este assassino”, “esta testemunha mentirosa”, “este estuprador”. 191

Assim, já se manifestava o Tribunal Constitucional alemão,

Como portador de direitos fundamentais resultantes da dignidade humana e que garantem sua proteção, o delinquente condenado deve ter a oportunidade de integrar-se outra vez na sociedade depois do cumprimento de sua pena.192 (Tradução livre).

189 ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 85-86. 190 Roxin utiliza o termo inocuização do delinquente, da locução tornar inócuo ou sem ação. Preferimos o termo segregação visto que é o efeito sentido diretamente quando da aplicação da pena restritiva de liberdade. 191 FERRAJOLI. Ibidem. p. 249-250. 192 BVerfG (E 35, 202, 235 s) In: ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 87.

83

Há, contudo, manifestações críticas quanto à prevenção especial. Para

Roxin193 um primeiro problema aparece no sentido de delimitação do poder punitivo do

Estado. O esforço terapêutico do Estado deve dirigir-se somente contra os inadaptados

ao convívio social, mas o limite disto continua a ser perigoso no ponto em que se pode

dar margem à eleição destes inadaptados, podendo entrar na esfera do direito penal,

grupos de pessoas cujo tratamento como criminosos dificilmente pode se fundamentar

com base numa ordem jurídico-penal como a que possuímos, ou seja, o direito penal do

fato. Assim o foi na ditadura e hoje na escolha dos clientes preferenciais do direito

penal, numa clara assunção ao labbeling aprouch ou etiquetamento.

Ferrajoli também criticando o poder punitivo estatal delimita a crítica

quanto à possibilidade reintegradora derivada da intervenção do Estado,

Uma rica literatura, confortada por uma secular e dolorosa experiência, demonstrou, com efeito, que não existem penas corretivas ou que tenham caráter terapêutico, e que o cárcere, em particular, é um lugar criminógeno de educação e solicitação ao crime. Repressão e educação são, em resumo, incompatíveis, como também o são a privação da liberdade e a liberdade em si, que da educação constitui a essência e o pressuposto, razão pela qual a única coisa que se pode pretender do cárcere é que seja o mínimo possível repressivo e, portanto, o menos possível dessocializante e deseducativo.194

Ainda segundo a crítica, a prevenção especial impossibilita a delimitação

temporal da pena, através de penas fixas, na medida em que para ser efetiva, a pena

deveria prosseguir até que o delinquente tenha a estabelecida correção ou se não for

possível, que seja indefinida.

Outra objeção ainda é alegada, consistente no fato de que, nos crimes mais

graves não seria necessária a pena caso não existisse perigo de repetição. Tome como

exemplo os criminosos nazistas que assassinaram milhões nos campos de concentração

e que hoje não oferecem perigo algum ante a queda do sistema. Ainda exemplificando,

nos crimes passionais contra a vida, onde o criminoso, após eliminar a vida do cônjuge

traidor, não lhe resta razão alguma a voltar a delinquir.

Como última e mais considerável crítica, reside a pergunta do limite de

intervenção que o Estado, ou na melhor doutrina, a maioria das pessoas pode causar na

vida da minoria. Até onde é legítimo a maioria da população obrigar a minoria a

193 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 21. 194 FERRAJOLI. Ibidem. p. 253.

84

comportar-se e adaptar-se ao seu modo de vida? De onde vem o direito de poder educar

e submeter a tratamento contra a sua vontade pessoas adultas195?

2.2.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena

As teorias mistas ou unificadoras da pena se constituem numa combinação

das concepções discutidas até agora. Consideram a retribuição, a prevenção geral e a

prevenção especial como fins que a pena busca simultaneamente. A pena não se

justifica só porque seria retribuição ao delito cometido, nem porque seria meio de

prevenção de futuros delitos. A pena é retribuição proporcional ao mal culpável do

delito, mas também se destina a outros fins de prevenção geral assim como de

prevenção especial. Em outras palavras, a pena deve servir para prevenção de futuros

delitos bem como à reintegração social do autor.

As teorias ecléticas de união são o resultado da luta de escolas, fruto de uma

atitude de compromisso, conciliadora, que trata de harmonizar as contribuições das

teorias absolutas bem como das relativas. Assim, o importante seria oferecer uma visão

totalizadora de tais funções, do modo como operam, bem como da interdependência

entre elas.

Roxin adverte tal orientação, denominando tais teorias de monistas ou

possuidoras da pureza de modelo,

As teorias monistas, quer atendam à culpa, à prevenção geral ou à especial, são necessariamente falsas, porque, quando se trata da relação do particular com a comunidade e o Estado, a realização estrita de um só princípio ordenador tem forçosamente como consequência a arbitrariedade e a falta de verdade. [...] A pureza do modelo constitui, aliás, uma consideração fundamental em toda problemática social, satisfazendo certamente os partidários de doutrinas formalistas, mas nunca conseguindo abarcar toda a complexidade dos fenómenos. 196

As teorias unitárias buscam fórmulas que sirvam de ponte entre umas e

outras teorias se constituindo em posições dominantes na atualidade. Mas no seio das

teorias de união existem numerosas configurações ou combinações. Na doutrina

195 Idem. Ibidem. p. 22. 196 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 43.

85

espanhola, Cerezo Mir observa que existem diferenças importantes entre os vários

pontos de vista dos autores partidários delas: enquanto uns fundamentam a pena

exclusivamente na retribuição, outros o fazem na necessidade social, isto é, os

primeiros, no fundo sustentariam uma fundamentação absoluta da pena, enquanto os

segundos uma teoria relativa da mesma. 197

Maurach, na doutrina alemã distingue dentro das teorias de união as que

propriamente devem ser consideradas como tais, das que, não merecem a referida

conceituação. Aquelas teorias que, no caso concreto, subordinam a retribuição à

prevenção, não seriam teorias de união em sentido estrito, pois a nota privativa destas

não residiria numa soma de funções, senão, antes de tudo, no claro reconhecimento do

caráter retributivo da pena, que pode perseguir, também, fins preventivos, mas dentro do

marco traçado pela medida da culpabilidade e em proporção desta.198

Outra diferenciação ainda é cabível dentro das teorias de união, a posição

conservadora, expressa pelos idealizadores do Projeto Oficial do Código Penal alemão

de 1962 e posição progressista do Projeto Alternativo de 1966.

Ambas posições de aproximam no sentido de que reconhecem que o fim

básico do direito penal não é fazer justiça, cabendo possível orientação à política, e sim

proteger a sociedade, por consequência seus bens jurídicos mais importantes e prevenir

futuros delitos. Convergem ainda na admissão de que a culpabilidade há que se operar

como limite da pena, sem que referido limite possa ser ultrapassado por razões de

prevenção geral ou especial.199

A principal diferença, contudo, entre as duas posições fica na função que a

culpabilidade do agente assume. Para a posição conservadora a pena tem sentido

enquanto retribuição da culpabilidade do autor e reafirmação da ordem jurídica, sem

prejuízo de outros fins que possa assumir, como o de prevenção de futuros delitos,

mediante intimidação geral ou mediante a recuperação do delinquente, servindo a

culpabilidade como fundamento da pena, numa clara prevalência da prevenção geral,

como finalidade inerente à retribuição e por considerar que só por meio da pena justa

podem ser alcançados os resultados intimidatórios desejados.

197 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Parte Geral. v. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 693. 198 Idem. Ibidem. p. 693. 199 Idem. Ibidem. p. 694.

86

Já a para a posição progressista a pena se fundamenta na necessária defesa

da sociedade, na proteção de bens jurídicos, operando a retribuição e a culpabilidade

como limite das metas de prevenção. Afirma Roxin no projeto que a pena “é uma

amarga necessidade em uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens”, e

não um “processo metafísico” para realizar a justiça sobre a terra.200

Assim, a orientação progressista prioriza a prevenção especial, como exigência de um Direito Penal mais humanitário que persegue a reincorporação do apenado à comunidade jurídica assim como sua voluntária ressocialização como consequência derivada da “função tutelar” e não meramente “defensista” do Direito Penal.201

Fundada nessa perspectiva progressista do Projeto Alternativo de 1966,

Roxin desenvolveu sua teoria unificadora preventiva dialética da pena a qual considera

os fins em cada fase existencial da pena e que entendemos como a mais acertada dentre

todas as teorias.

O ponto de partida da teoria é o âmbito de atuação do Direito Penal, sendo

este balizado de três maneiras: ameaçando o indivíduo com a pena, impondo e

executando essa pena. Essas três esferas de atividade estatal necessitam de justificação,

cada uma em separado. É preciso que se observem os distintos estágios de atuação do

direito penal e que estes se estruturam não em separado, mas sim uns sobre os outros e

que, portanto, cada etapa seguinte deve acolher em si os princípios precedentes.

Cada uma das teorias da pena dirige sua visão unilateralmente para determinados aspectos do direito penal – a teoria da prevenção especial para a execução, a ideia da retribuição para a sentença e a concepção da prevenção geral para o fim das cominações penais – e descura as restantes formas de aparecimento do poder estatal, embora cada uma delas implique intervenções específicas na liberdade do indivíduo. 202

Desta forma, as cominações penais, como primeira esfera de incidência

penal, só estão justificadas se tiverem em conta uma dupla restrição: a proteção

subsidiária do direito penal sobre os bens jurídicos e a necessidade de lesão destes bens

jurídicos, não se ocupando o direito penal de meras imoralidades. Essa primeira

premissa direciona a cominação à prevenção geral. 200 Idem. Ibidem. p. 694. 201 Idem. Ibidem. p. 695. 202 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 26.

87

Isso significa que em cada situação histórica e social um grupo humano

estabelece os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum, os

chamados bens jurídicos.

No Estado moderno, junto a esta proteção de bens jurídicos previamente dados, surge a necessidade de assegurar, se necessário através dos meios do direito penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado. Com essa dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna. 203

O direito penal, portanto, assume uma natureza subsidiária, ou seja, somente

se podem punir lesões ou ameaças concretas de lesões aos bens jurídicos tutelados

quando o restante do ordenamento não for capaz de gerar tal proteção. Nesse sentido, o

termo prevenção geral deve ser entendido em sentido amplo, encerrando a ideia de que

o Estado, por meio do Direito Penal estabelece um marco de proteção a todo cidadão,

garantindo-lhe as condições essenciais da sua existência e advertindo-lhe, sob a ameaça

de uma pena, quais as condutas deve se abster, atrelando a prevenção geral ao Estado

social de direito, estabelecendo limites à sua atuação: a lesão a bens jurídicos.204

Um segundo momento da atuação do Direito Penal diz respeito à aplicação

da pena pelo Judiciário, onde a pena operaria respaldando a seriedade da cominação

legal típica, tendo a culpabilidade do autor como limite de retribuição. A imposição da

pena serve para a proteção subsidiária e preventiva dos bens jurídicos e demais

prestações estatais, por meio de um mecanismo respeitoso com a autonomia da

personalidade, limitando-se à medida da culpabilidade do autor. 205

A retribuição do mal causado dado pela aplicação da pena deve ser limitada

pela culpabilidade, não confundindo-se com a mesma. A pena não pode sobrepassar a

medida da culpabilidade, pode ficar abaixo dela, contrariando assim os teóricos

retribucionistas, mas não pode ultrapassá-la, pois só assim se respeita a máxima kantina

de que o homem não deve servir como instrumento para se alcançar fins preventivos. A

203 Idem. Ibidem. p. 28. 204 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES. Direito Penal. Parte Geral. p. 697. 205 Idem. Ibidem. p. 698.

88

culpabilidade faculta ao Estado a retribuição mas também é o modo de manter dentro de

certos limites as demandas da coletividade frente à liberdade individual.206

Essas concepções roxinianas levam a entender que a pena, seja na

cominação, seja na aplicação possui fim exclusivamente preventivo, abandonando-se

por final a ideia hermética de retribuição.

O ponto de partida de toda a teoria hoje defendida deve basear-se no entendimento de que o fim da pena só pode ser do tipo preventivo. Pois as normas penais só estão justificadas quando tendem a proteção da liberdade individual e a uma ordem social que está a seu serviço (cfr. §2, nm. 9 ss.), também a pena concreta só pode perseguir isso, é dizer, um fim preventivo do delito (cfr. nm. 15, 28). Disso resulta ademais que a prevenção especial e a prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena207 (Tradução livre)

O último momento de atuação do Direito Penal refere-se à principal

preocupação desse trabalho, dado à mazela em que se encontra em nosso país, a

execução da pena.

A execução pressupõe uma pena ditada em conformidade com as exigências

da prevenção geral e de caráter intimidatório no momento da cominação, e, ainda,

limitada dentro da esfera de culpabilidade do agente quando da sua aplicação. Porém, a

fase executiva encampa uma terceira e preponderante função, a prevenção especial,

notadamente no campo da reintegração social do delinquente. A pena deveria servir

para fins exclusivamente racionais208, possibilitando a vida humana em comum e sem

perigos, justificando apenas dessa forma o prosseguimento da ideia ressocializadora e

de reintegração do delinquente.

Contudo, os esforços de reintegração social apenas terão sucesso se os

pressupostos anteriormente tratados forem seguidos com exatidão, além de que,

[...] como naturalmente sucede com a maioria dos presos, a primeira coisa que se deve fazer é conduzir a personalidade do sujeito ao caminho recto, o modo de o fazer não é moralizar em tom magistral, mas sim espiritual e intelectualmente, despertar a consciência da responsabilidade e ativar e desenvolver todas as forças do delinquente, e muito em particular as suas

206 Idem. Ibidem. p. 698. 207 ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 95. 208 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 40.

89

especiais aptidões pessoais. A personalidade do delinquente não deve, pois, ser humilhada nem ofendida, mas desenvolvida. 209

Qualquer tentativa de reintegradora certamente fracassará se o delinquente

não estiver disposto a isso. Assim, devem os esforços reintegradores se constituir de

ofertas para que o delinquente ajude a si próprio.

Uma teoria da pena que não pretenda manter-se na abstracção ou em propostas isoladas, mas que tenha como objetivo corresponder à realidade, tem de reconhecer estas antíteses inerentes a toda a existência social para, de acordo com o princípio dialéctico, poder superá-las numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na realidade, um direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido da prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo delinquente também é afinal o mais proveitoso para ela; e que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade social de uma forma igualmente frutífera para ele e para a comunidade se, a par da consideração da sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.210

Torna-se particularmente importante a situação em que o delinquente se

opõe ao processo reintegrador. Isto não desvincula a sociedade da obrigação que possui

em face ao mesmo. Uma pena que pretende compensar os defeitos de socialização do

autor só pode ser pedagógica e terapeuticamente eficaz quando se estabelece uma

relação de cooperação com o condenado. Se o delinquente recusa sua colaboração para

a reintegração social, mesmo assim, deve ser executada a sentença até pela característica

da prevenção geral, mas quando possível, a qualquer momento da execução da pena

pode o delinquente optar pelo processo reintegrador.

Roxin conclui com precisão a necessidade preventivo especial da pena,

Deste modo se invalidam ao mesmo tempo todas as objeções que se alegam contra o fim da ressocialização com o argumento de que este conduz a uma adaptação forçada que viola a personalidade (cfr. nm. 17 s.). Pois quando o condenado, por iniciativa própria, colabora com o desenvolvimento da execução, isso não contribui à violação de sua personalidade, mas precisamente ao desenvolvimento da mesma. Se ressocialização pressupõe voluntariedade, está claro também porque não há contradição irresolúvel quando o BVerfG211, por uma parte, estatui um direito fundamental à ressocialização (nm. 14), mas por outra parte, nega ao Estado a faculdade «de

209 Idem. Ibidem. p. 42. 210 Idem. Ibidem. p. 45. 211 Tribunal Constitucional alemão.

90

corrigir seus cidadãos» (nm.17). O proibido é unicamente a educação forçada de adultos; não obstante, o condenado tem direito a que o Estado lhe ajude à reinserção social que ele aspira212 (Tradução livre).

212 ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 96.

91

CAPÍTULO 3

EXECUÇÃO PENAL E DIREITOS COLETIVOS DOS PRESOS

3.1 Reintegração social

Ressocialização e tratamento são conceitos que receberam todo tipo de

censura e de desqualificação, nem sempre justificadas. A suposta ineficácia do

tratamento, amplamente divulgada pelas teorias retributivas e abolicionistas da pena, só

alimentam a incredulidade da proposta ressocializadora, baseados apenas num malgrado

pessimismo, olhando apenas os casos de insucesso, esquecendo-se, porém, dos casos

bem sucedidos.

Ao falar em ressocialização de cara encontramos dificuldades, iniciadas

pelo conceito relativo ao vocábulo ante a falta de rigor metodológico utilizado até hoje.

Assim, reabilitação, reinserção social, reeducação, ressocialização, tratamento

penitenciário, são tratados da mesma forma como sinônimos, o que assim não

entendemos.

A rigor, só se pode falar em reabilitação para quem já foi primeiramente

habilitado; em reinserção social a quem já foi anteriormente inserido, etc. Contudo,

quando se fala na prática de uma infração, nem sempre estamos de frente ao mesmo tipo

de situação.

É cediço que hoje a maior parte dos clientes do Direito Penal e de suas

instituições são aqueles que possuem baixa renda e pouca escolaridade, conforme

atestam dados do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN213, mas isso não

retrata que apenas a ausência de recursos financeiros e educação são as causas de

criminalidade e portanto, de pessoas que não teriam sido inseridas no seio social, até

porque a diversidade de bens jurídicos tutelados e nos referimos precisamente a bens

difusos e que são tutelados pelos tipos dos crimes de colarinho branco fogem a regra do

sistema.

213 43% dos presos possui ensino fundamental incompleto, 12% são apenas alfabetizados e 6% analfabetos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm.> Acesso em: 09 jul. 2011.

92

Tal fato não retira a problemática da questão conceitual. Ao falar

primeiramente em ressocialização, tende-se a entender que o delinquente foi

socializado, o que nem sempre é verdade. Dizer que o delinquente deve ser tratado

também nos parece equivocado já que pressupõe que este é doente. Se assim fosse,

necessitaria de medidas de segurança e não pena.

Acreditamos, desse modo, que razão assiste a Baratta quando discute o

paradigma de compreensão do crime, segundo o modelo que vincula o crime a

anormalidades de conduta, pois termos como ressocialização, reabilitação e tratamentos

terapêuticos buscam corrigir desvios e desajustes do indivíduo, sendo o foco da atenção

terapêutica no sentenciado. A partir, no entanto, da compreensão do crime como

expressão de conflito, o foco da atenção deve mudar para o cenário do conflito, deve se

deslocar da pessoa do apenado para o complexo de relações entre ele e a sociedade e

todo seu contexto familiar, tendo-se em vista a história de segregação e exclusão de que

o preso é submetido. Propõe-se assim, em substituição a termos como tratamento,

reabilitação e ressocialização, já que centrados na pessoa do sentenciado o termo

reintegração social, que seria um processo de abertura do cárcere para a sociedade e de

abertura da sociedade para o cárcere, de tornar o cárcere cada vez menos cárcere,

processo no qual a sociedade tem um compromisso, um papel ativo e fundamental.214

Ressaltamos a necessidade da opção pela abertura da prisão à sociedade e, reciprocamente, da sociedade à prisão. Um dos elementos mais negativos das instituições carcerárias, de fato, é o isolamento do microcosmo prisional do macrocosmo social, simbolizado pelos muros e grades. [...] Não se pode segregar pessoas e, ao mesmo tempo, pretender a sua reintegração. Todavia, a questão é mais ampla e se relaciona com a concepção de “reintegração social”, conceito que decididamente preferimos aos de “ressocialização” e “tratamento”. “Tratamento” e “ressocialização” pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau”. Já o entendimento da reintegração social requer a abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão. 215 (grifos no original)

214 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 58. 215 BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social. Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. Tradução: Escola Penitenciária DEPEN. Disponível em: <http://www.eap.sp.gov.br/pdf/ressocializacao.pdf.> Acesso em: 05 dez. 2011.

93

Assentando este primeiro ponto, cumpre a tarefa de excursionar sobre o

conteúdo da reintegração social, seus parâmetros, necessidades, limitações, haja vista a

função preventiva especial da pena.

Partindo deste pressuposto de adoção da prevenção especial em sua vertente

positiva, qual seja, a reintegração social do condenado, a função primordial assumida

pela pena é possibilitar o reencontro do delinquente com a sociedade que outrora lhe foi

inimiga e, principalmente, que este não volte a delinquir. A questão da reincidência é o

principal paradigma da reintegração social.

Quando da prática da infração, o delinquente vai sofrer os aspectos

preventivos gerais da pena aposta pela sua punição e consequente colocação no cárcere.

Mas isso apenas não basta. Não basta segregar uma pessoa, privando-a normalmente de

direitos fundamentais, fazendo-a dispor de seu tempo em favor do Estado sem que nada

seja feito para que este delinquente não volte a praticar novas infrações. O papel da

reintegração social pode parecer um tanto quanto ingrato, ainda mais hoje diante do

atual panorama ao qual estão expostos os condenados. Contudo, algo necessita ser feito

para mudar essa perspectiva caótica.

Munõz Conde e Hassemer asseveram sobre o papel da reintegração social

do condenado,

O mais razoável que se pode oferecer ao delinquente numa sociedade orientada output, interessada em conhecer as consequências de suas instituições, é ajuda para a sua (re)inserção e para levar, no futuro, uma vida sem delitos. Isto, além de justo e humano, é útil para ambas as partes. É útil para a sociedade, que pode reduzir as taxas de reincidência e com ela a de criminalidade a longo e médio prazos. E é útil para o delinquente, que pode voltar a viver em liberdade sem que o delito cometido e a pena que acaba de cumprir o separem definitivamente de uma convivência social normal, em condições de igualdade com os demais cidadãos.216 (grifos no original)

Recordando rapidamente a temática da evolução das penas, boa parte da

doutrina, notadamente àquelas de conteúdo marxista como Melossi e Pavarini, bem

como na criminologia, as teorias ecológicas, atribuem a maior incidência de crimes à

socialização deficiente. Independentemente das opiniões sobre as teorias biológicas, que

tentam explicar o crime a partir de indivíduo, o certo é que nem o gênero, raça,

216 MUÑOZ CONDE. Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Trad. Cintia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 180.

94

constituição física (como diria Lombroso), nem herança genética são por si sós fatores

suficientes para explicar, de modo geral, as causas da criminalidade.

Desde sempre se sabe que a conduta humana é, além de resultado de

condicionamentos físicos, biológicos e psicológicos com os quais o ser humano vem ao

mundo, sobretudo, consequência de um processo de socialização que começa desde o

nascimento e continua com a educação no seio familiar e com outros processos de

socialização e aprendizagem cultural através de distintas instâncias e contatos sociais,

que vão configurando a personalidade do indivíduo. Portanto, na análise empírica das

causas da criminalidade, devem-se levar em consideração também fatores de caráter

social, externos ao indivíduo, que fazem compreensível sua conduta e permitem sua

valoração num contexto mais amplo do que sua própria individualidade.217

A socialização do indivíduo passa por processos familiares, escolares, por

círculos de trabalho, religiosidade as quais são instâncias de controle que levam a cabo

o processo de socialização e que se sofrerem de problemas crônicos serão o germe para

o desvio delitivo.

A falha nos ambientes sociais, provocadas, normalmente, pela ausência do

Estado, são causas patentes da delinquência, atribuindo à sociedade e não ao indivíduo,

somente, a etiologia criminal.

Normalmente, o tipo de criminalidade e de marginalização social, objeto de

investigação e de preocupação por parte das teorias ecológicas, são os setores mais

desfavorecidos da população que habitam os bairros marginais das grandes cidades,

contribuindo, assim, para que também a polícia intensifique o controle de referidas

regiões. Paradoxalmente, outras formas de criminalidade reconhecidas como tais em

qualquer Estado moderno, como os grandes delitos econômicos financeiros, as grandes

catástrofes ambientais produzidas por importantes empresas e indústrias, o narcotráfico

em grande escala, a corrupção política e administrativa não são analisadas com critérios

ecológicos.218 Todavia, a maior clientela do Direito Penal ainda se localiza em zonas

suburbanas carentes da presença estatal em todos os aspectos preconizados pela

Constituição Federal.

Não é objeto deste estudo explicar a gênese do crime, bem como

acreditamos, na maioria das vezes, atribuí-lo à co-responsabilidade do Estado quando 217 Idem. Ibidem. p. 47. 218 Idem. Ibidem. p. 54.

95

não cumpre seus misteres. Mas é preciso que se ressalte que se o Estado não cumpre seu

papel na implementação de direitos, fundamentais, sociais, antes da prática do crime e

com isso acaba gerando um plano fático existencial, é seu papel reduzir essa ausência de

direitos no momento do cárcere, possibilitando de alguma forma, que as pessoas

envolvidas com a criminalidade, estejam aptas a retornar ao convívio social com maior

consciência do que quando adentraram a selva metalizada.

O resultado desta crise de direitos, muito característico das atuais sociedades

de consumo, nas quais reinam a competitividade e a luta por conseguir o máximo de

poder e bem estar, é muitas vezes a prática delituosa, numa resposta do sujeito que não

vê outra saída a esta contradição imposta pela própria estrutura social. Com isso, não se

quer diminuir a culpa do delinquente, mas atribuí-la também à sociedade, numa co-

culpabilidade ou responsabilidade mútua.

Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de determinação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não é possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar. 219

Juarez Cirino dos Santos foi um dos primeiros estudiosos brasileiros a

fomentar a ideia de co-culpabilidade. Chamando-a de co-culpabilidade da sociedade

organizada, ele a entende como uma valoração compensatória da carga de

responsabilidade atribuída a certos membros da sociedade que se encontram, em razão

de condições sociais a eles desfavoráveis, acuados socialmente.220

Assim, segundo a teoria da co-culpabilidade, membros de determinadas

classes sociais, ao cometerem certos tipos de delitos, devem ver mitigado o juízo de

reprovação a eles dirigido, visto que uma gama diversa de fatores que lhes são alheios,

mas adstritos às funções do Estado se aliam de modo a oportunizar a prática delituosa

de maneira a justificar, em certa medida, a sua ocorrência. 219 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro v.1. p. 525. 220 SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 231.

96

Segundo esta noção, o Estado parece deter uma inegável parcela de culpa

diante do fenômeno criminal, principalmente quando o delito apresenta elementos de

natureza social, tendo por fator desencadeador a ausência de condições mínimas que

possibilitem a concretização da dignidade humana a cada cidadão.

A co-culpabilidade, pois, vem temperar o juízo de reprovação que recai

sobre o sujeito ativo do delito, repartindo-a com o Estado, uma vez que o delinquente,

notadamente nos casos de delito patrimonial, é compelido à criminalidade por condições

de vida desfavoráveis, pela descrença nas instituições oficiais, bem como pelo

menosprezo a sociedade enquanto reduto excludente, reflexos diretos da ausência do

Estado dos campos sociais.

No cenário de diferenças sociais marcantes, descrença na figura do Estado e

de um direito penal seletivo, a omissão estatal potencializa o sentimento de exclusão e

revolta naqueles menos favorecidos. De maneira similar, a marginalização escolar e

profissional concorre para um subdesenvolvimento intelectual capaz de comprometer a

unidade acerca dos valores sociais e mais aceitos pelas classes medianamente

escolarizadas e empregadas.221

Nesse contexto, a vida criminosa é antes mais uma opção, do que a

expressão de uma personalidade intrinsecamente criminosa.

Por certo, para se admitir a incidência da co-culpabilidade no caso concreto,

é necessário aceitar que a exclusão social decorrente da omissão estatal é, de fato, capaz

de alterar negativa e significativamente a relação do individuo para com o crime e a

sociedade.

Em que pese a obviedade de urna resposta positiva, tal questionamento se

revela importante quando observados dados fáticos, por exemplo, apenas pequena

parcela das pessoas que habitam as favelas é que se dedicam ao tráfico ilícito de

entorpecentes ou a criminalidade em geral. Caso a pobreza fosse um fator tão

determinante, a fatia de criminosos seria infinitamente maior, e a criminalidade se

expandiria a ponto de fazer eclodir uma situação insustentável.

221 ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XIX, 2010, Fortaleza. Anais do XIX Encontro Nacional do Conpedi. 2010. p. 982-983.

97

Todavia, não é isso o que ocorre. A despeito da existência de milhares de

pessoas em situação de vida precária, nem todos se direcionam para o ilícito, razão pela

qual não há que se vincular, causalmente, a pobreza a criminalidade.

Não obstante, atentando-se a determinismos econômicos, parece correto admitir que a situação de inferioridade experimentada pelos menos favorecidos, comparativamente aos integrantes das classes altas (piores empregos, piores salários, piores moradias, assistência médica hospitalar precária, pouco ou nenhum lazer) ocasiona naqueles certa indignação, donde decorre um desprezo pelos valores sociais vigentes - oriundos principalmente das camadas altas. Assim, a unidade e harmonia social restam prejudicadas.222

No âmbito socioeconômico também é possível concluir que, em face do

déficit social experimentado pelas camadas populares, caminhos alternativos para o

sucesso, tais como a atividade ilícita e o subemprego tornam-se realidades cada vez

mais atraentes.

Tudo leva a crer que o abalo ao principio da igualdade tem importantíssimas

repercussões para a liberdade individual. Os espaços de mobilidade e decisão do

individuo no interior da sociedade se reduzem na medida em que diminutas as suas

possibilidades econômicas e culturais. Para Juarez Cirino, status social superior se

traduz em maior liberdade, ao passo que status social inferior, maior determinação.223

Não é a desigualdade, em si, que afeta o pleno desenvolvimento humano e

compromete a liberdade individual. Mas a existência de diferenças entre os indivíduos

em uma sociedade torna uns mais ou menos livres do que outros, criando um

desnivelamento social com repercussão no direito.

Isto nos revela a importância da discussão sobre qual o tratamento que se

deve dar a estas pessoas que foram submetidas a uma socialização deficiente e que com

isso tiverem uma maior disponibilidade ao cometimento de ilícitos. Aqui é que se

fecham as fundamentações das teorias da pena, principalmente a função preventiva

especial e os direitos assegurados no bojo da Constituição Federal, e como decorrência

de sua aplicabilidade imediata, dos direitos assegurados na Lei de Execução Penal.

222 Ibidem. p. 982-983. 223 SANTOS. Ibidem. p. 231.

98

Isso aponta para a premente necessidade de redimensionarmos conceitos e, sobretudo, uma prática há muito incrustrada nos operadores jurídicos, superando a noção de que o Direito Penal, esteja onde estiver, será sempre um mal: um mal que iniciaria pela obra do legislador penal e que alcançaria sua plenitude pela caneta do juiz criminal. Essa postura já não se sustenta ou apenas se sustenta em uma mentalidade ainda presa às matrizes do medievo ou, se tanto, do liberalismo do início do século XIX, onde a emancipação da sociedade se construía a partir da perene luta pela neutralização de um poder absoluto. 224

Para isso, o sistema prisional deve ser apto a proporcionar aos presos uma

série de benefícios que vão desde a instrução225, inclusive profissional, até assistência

médica e psicológica para proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração226 e não

mais como um aspecto do rigor segregativo comum ao cárcere, compensando de alguma

forma, a carência e privação a que são dispostos os encarcerados.227

224 FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2008. p. 52. 225 As Leis n. 12.245/2010 que determinou a instalação de salas de aula em unidades prisionais e 12.433/2011 que alterou a remição de pena, incluindo a possibilidade do preso remir a pena pelo estudo, reforçam esse posicionamento. 226 “A Lei de Execução Penal – LEP é de ser interpretada com os olhos postos em seu art. 1º. Artigo que institui a lógica da prevalência de mecanismos de reinclusão social (e não de exclusão do sujeito apenado) no exame dos direitos e deveres dos sentenciados. Isso para favorecer, sempre que possível, a redução de distância entre a população intramuros penitenciários e a comunidade extramuros. Essa particular forma de parametrar a interpretação da lei (no caso, a LEP) é a que mais se aproxima da CF, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos (incisos II e III do art. 1º). A reintegração social dos apenados é, justamente, pontual densificação de ambos os fundamentos constitucionais." (HC 99.652, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 3-11-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009.) A expressão cidadania está hoje arraigada por toda parte, com sentidos e intenções diferentes. Dentro desse aspecto temos pontos positivos e negativos, de um lado, porque indica que a expressão ganhou espaço na sociedade, por outro lado, face à velocidade e voracidade das várias apropriações dessa noção, nos coloca a necessidade de precisar e delimitar o seu significado. Além do que em razão das constantes alterações dos modelos econômicos, políticos e sociais, essa expressão consagrada ainda passa por alterações em relação aos direitos. Diante do processo de internacionalização dos direitos humanos, que teve por inicio com a Declaração Universal de 1948, confirmado na segunda Conferência de Viena, em 1993, a expressão cidadãos, se consolida, como sendo todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado têm assegurados, constitucionalmente, direitos fundamentais mínimos e a cidadania como sendo um conjunto de direitos e liberdades políticas sociais e econômicas, já estabelecidos ou não pela legislação. Então se entende que o cidadão passa a ser aquele indivíduo a quem a Constituição do Estado confere direitos e garantias individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais, e lhe dá o poder de seu efetivo exercício, que é a forma de fazer valer os direitos garantidos, exigindo a sua observância e zelando para que não sejam desrespeitados. Então se entende de forma geral por cidadão, aquele que possui e exerce todos estes Direitos Humanos, constitucional e legalmente garantidos. É aquele que não apenas vota, mas participa da construção de seu futuro, com a detenção dos instrumentos de que precisa para se autodeterminar, governar, exercer de forma absoluta os seus direitos. A Constituição Federal de 1988, consagrada no regime democrático deu abertura à normatividade internacional, e instituiu esta nova concepção de cidadania, estando hoje superada a antiga doutrina, do tempo do constitucionalismo do império, da cidadania ativa e passiva que significava a prerrogativa de quem podia participar da vida política do país, ou seja, de quem detinha os direitos políticos e daqueles a quem faltava este atributo. 227 BARATTA, Ibidem.

99

A adoção do paradigma da reintegração social objetiva a orientação

humanística a ser dada à execução penal, alterando o centro de gravidade do debate

sobre as funções do sistema, incluindo o homem no centro de reflexão, deixando de

lado apenas o efeito preventivo da pena. Já não mais é possível dizer que o objetivo

restaria apenas ao castigo implacável do delinquente, apenas por crueldade ou como

retribuição ao mal causado, senão orientar a execução do castigo de maneira que alguma

utilidade lhe possa auferir.

Dessa forma, o modelo reintegrativo proposto assume a natureza social do

problema criminal, com todas as suas consequências. A característica do Estado Social

de Direito, tão bem enfatizado na Constituição Federal se perfaz em suporte teórico

importante para a intervenção do Estado no delinquente, a fim de proporcionar-lhe

condições mínimas de retorno ao convívio social. “O castigo deve ser útil, também, para

o próprio infrator”. 228

O paradigma ressocializador propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial do seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatiza-lo com uma marca indelével, o habilite para se integrar e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais. Não se trata, evidentemente, de alcançar objetivos sublimes, conversões milagrosas, muito menos mudanças qualitativas de personalidade [...] Cuida-se, isso sim, de algo pensado no interesse exclusivo e real do condenado. Contando com sua colaboração efetiva, não somente com o seu consentimento formal, adotam-se técnicas e terapias cientificamente valoradas que facilitam a posterior reintegração social do infrator, que não lhe limitam, mas que incrementam suas expectativas e possibilidades de participação social. 229

Para que se obtenha um efeito reintegrador duradouro, não podem as

expectativas se basear apenas no medo à pena, nem à conformidade formal do

comportamento externo com a lei (prevenção geral). É preciso, pois, a interiorização

moral da norma, que pressupõe uma atitude quase axiológica, referente a valores. Sem

um supedâneo moral continuará a existir contradições inafastáveis entre a realidade

anterior, ensejadora do delito e a nova realidade reabilitadora proposta pela sanção.

228 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. v. 2. 6 ed. refor. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 421. 229 Idem. Ibidem. p. 421.

100

Se se prescinde do fundamento moral da ressocialização, se se nega o direito do Estado de corrigir o cidadão ou se se questiona a legitimidade da execução da pena, orientada para a modificação da personalidade ou convicções do condenado, só cabe então uma vazia e inútil correspondência ao respeito formal da legalidade.230

Não restam dúvidas da importância do respeito ao princípio da legalidade,

principalmente no âmbito do direito penal já que está a se tratar da restrição à liberdade,

contudo, buscar a formatação do indivíduo às normas mínimas de convívio social não se

caracteriza pela exclusão da pressuposta autodeterminação do indivíduo. Isso ajuda a

afastar a máxima kantiana do homem como objeto da sanção. O objeto da sanção, nesse

interim execucional, passa a ser a redução de conflitos, através da participação estatal,

fomentando o indivíduo a desenvolver suas próprias habilidades e convicções pessoais,

porém pautadas em condições mínimas de convivência coletiva.

Assim, o paradigma reintegrador ressalta que o objetivo último do sistema

penal é a reintegração do delinquente ao convívio social, baseado numa intervenção

positiva no recluso com o fim de facilitar seu retorno, de forma digna à comunidade.

Com esta perspectiva, é preciso que algumas questões sejam levantadas

quanto à reintegração do condenado. Seria possível a reintegração social? Haveria

interesse, efetivamente, por parte do Estado em promover a reinserção do egresso ao

convívio social? Como o Estado quer levar a efeito o programa de reintegração do

condenado se não cumpre as funções penológicas adotadas pela Lei de Execução Penal

e não observa as limitações constitucionais quanto à aplicação da pena? A sociedade

está preparada para recebê-lo?231

A resposta a estas indagações reside no pressuposto da dignidade da pessoa

humana. Conforma já noticiado no capítulo 1, a dignidade da pessoa humana se

constitui num predicado axiológico de todo o ordenamento jurídico, posto que a todo

homem, desde sua concepção, lhe é assegurado o respeito à sua dignidade, o que

invariavelmente levará à proteção da vida, da integridade física, psicológica e moral.

Baseado nisto e acobertado pelo manto protetor dos direitos fundamentais, por

consequência, não cabe mais se falar se é possível ou não a reintegração social. Esta é

230 Idem. Ibidem. p. 425. 231 GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação da liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 443-444.

101

consequência necessária do tratamento dado pelo Estado aos condenados postos sob sua

tutela.

O que se observa no dia a dia da execução penal é o oposto. O Estado cada

vez mais está se distanciando do problema carcerário, haja vista as condições em que se

encontram a maioria dos estabelecimentos prisional. Os problemas encontrados na

execução da pena aumentam cotidianamente, derivados da superlotação carcerária,

corrupção de agentes penitenciários, maus-tratos, desrespeito aos direitos humanos

fundamentais, gerando com isso superlotação, rebeliões, fugas e um aculturamento

carcerário extremamente deletério ao caráter de convivência social pacífica.

Com isso, falar em reintegração social necessita de uma urgente revisão do

discurso, do discurso que é previsto pela Lei de Execução Penal (discurso oficial) com o

discurso aplicado pelo Estado (interesse do Estado em promover a reintegração social).

Caso o discurso proposto pela lei execucional fosse cumprido, a reintegração social do

preso seria uma realidade muito mais crível do que se realiza atualmente232. E para isso

ocorrer a solução passa necessariamente pela questão das políticas públicas (discurso

praticado pelo Estado) e a sua possibilidade de controle pelos órgãos judiciais, o que

será tratado especificamente no capítulo 4.

No Brasil, contudo, e de forma que se maximiza no decorrer do século XX, o debate “público” em torno da questão penitenciária é contaminado sobremodo pelos interesses oportunistas do campo político, bem como pelos interesses sensacionalistas da imprensa, produzindo-se, assim, uma lacuna científica, em especial nas necessárias interfaces disciplinares que extrapolam a abordagem jurídico-dogmática. Tal quadro se pode caracterizar (...) numa “miséria acadêmica”.233 (grifos no original)

232 Raúl Cervini observa com clarividência os resultados entre o discurso oficial e o executado. [...] O fenômeno da prisionização ou aculturação do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras criminais (fenômeno do contágio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda a instituição penal inibem qualquer possibilidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloquentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agrava esse terrível panorama. apud GRECO, Rogério. Ibidem. p. 444. 233 SALLA, Fernando apud ROCHA, Alexandre Pereira da. O Estado e o Direito de Punir: a superlotação no sistema penitenciário brasileiro. 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, 2006. p. 14.

102

Desta feita, a força imperativa do princípio da dignidade da pessoa humana

se converge em verdadeira barreira limitadora234 ao poder punitivo estatal,

determinando a forma através da qual o processo reintegrativo deve ser implementado

pelo Estado, sendo impossível (infelizmente, apenas teoricamente) que qualquer ordem

jurídico-social possa contrariá-lo. A dignidade humana é a base de todos os demais

princípios constitucionais penais, sendo certo que qualquer violação a outro princípio

penal afeta igualmente a dignidade humana.

Assim, quando um sujeito é colocado em uma cela superlotada235 sendo

obrigado a se revezar para que possa dormir (deitado e não de pé) ou que tenha local

para suas necessidades fisiológicas; quando não lhe é respeitado o seu direito à

educação ante a falta de salas adequadas; quando não lhe é franqueado a possibilidade

de trabalho (interno ou externo a depender do regime penitenciário a que faz jus e às

suas habilidades pessoais); quando sua integridade física é violada236, seja por maus-

tratos dos agentes, seja pelos outros detentos; quando a sua dignidade sexual é

corrompida com estupros e outros atos incomensuráveis; os princípios constitucionais

referentes à pena (proibição da pena indigna, legalidade da pena, proporcionalidade da

pena, individualização da pena e humanização da pena237) são violados de alguma

forma, e por conseguinte o princípio da dignidade da pessoa humana também é violado

e a possibilidade da ideal reintegração social do preso torna-se ainda mais distante.

3.2 Direitos dos presos no curso da execução da pena

A execução penal se consubstancia no ápice da atuação do Direito Penal e

Processual quando a pena determinada na sentença penal condenatória é efetivamente

aplicada ou ainda, quando durante o curso de uma prisão cautelar, fazendo o Estado

234 BIANCHINI, Alice, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: introdução e princípios fundamentais. 2 ed. São Paulo: RT, 2009. 235 Cf. CNJ. Relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Espírito Santo, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/mutirao-carcerario/relatorios/espiritosanto.pdf> Acesso em: 10.12.2011 236 Cf. CNJ. Relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Maranhão, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/mutirao-carcerario/relatorios/maranhao.pdf> Acesso em: 14.12.2011 237 BRASIL, Constituição Federal, Artigo 5º, inciso XLIX - “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, Artigo 5º incisos III e XLVIII (proibição de penas cruéis e intervenções degradantes da pessoa humana); LEP artigo 3º “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.”.

103

valer-se de seu jus puniendi, incidindo os aspectos retributivo, neutralizador e

reintegrativo da função penal.

A esse processo executivo, por muito tempo foi atribuído a natureza de

atividade meramente administrativa, realizada pelo Estado, através do Executivo. Isso

gerou o distanciamento do respeito à dignidade humana pelo administrador prisional, já

que este se regulava pela discricionariedade administrativa. Contudo, não é o que hoje

prevalece no seio dos teóricos haja vista que a execução penal guarda uma íntima

ligação com o Direito Penal e Processual Penal, constituindo-se numa atividade

complexa e jurisdicional, desenvolvida entrosadamente entre os planos jurisdicional e

administrativo restando a cada qual sua atividade, cabendo ao executivo e ao direito

administrativo a aplicação correta da pena, e ao judiciário e ao direito processual a

efetivação da sanção penal.238

Isso se dá pelo fato do órgão jurisdicional estar imbuído de proferir as

determinações sobre a execução da pena, restando ao órgão administrativo o efetivo

cumprimento da mesma, observados os comandos determinados pela sentença e ainda,

respeitados os direitos assegurados pelo legislador. Nucci esclarece ser “impossível

dissociar-se o Direito de Execução Penal do Direito Penal e do Processo Penal, pois o

primeiro regula vários institutos de individualização da pena, enquanto o segundo

estabelece os princípios e formas fundamentais de se regular o procedimento de

execução”239, restando ao Estado-Administração a aplicação efetiva da sanção

observados tais parâmetros.

Consta do art. 1º da Lei de Execução Penal – Lei n. 7.210/84 que seu

objetivo é efetivar as disposições da sentença e proporcionar condições harmônicas para

a reeducação do preso e sua reinserção social, adotando claramente o legislador, o

parâmetro das teorias preventivas especiais da pena.

Assim, o primeiro objetivo da execução penal é fazer com que a pena seja

cumprida de modo eficaz. Pena eficaz é aquela que cumpre seu papel social, seja em

relação à sociedade, num aspecto preventivo geral, seja no aspecto preventivo especial,

direcionado ao delinquente. Somente será possível falar na visão preventiva especial da

pena aplicada de forma eficaz se os direitos assegurados aos presos forem cumpridos 238 GRINOVER, Ada Pellegrini. Natureza jurídica da execução penal. In Execução penal. Coord. Ada Pellegrini Grinover e Dante Busana. São Paulo: Max Limonad, 1987. p. 7. 239 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 918.

104

pelos órgãos responsáveis pela sua execução. O descumprimento contumaz desses

direitos afeta de forma direta o segundo e principal objetivo da execução penal que é a

reintegração social do preso. Leia-se, a reintegração somente será possível se os direitos

assegurados forem efetivamente cumpridos e respeitados. Conforme será visto no item

3.3.1 o grande mal da falta de efetividade no cumprimento desses direitos reside na

questão orçamentária.

No bojo da Lei de Execução Penal foram estabelecidos dois capítulos de

extrema importância no que tange às necessidades de concretização do processo de

reintegração social. Para tanto, o legislador atribuiu ao Estado no Capítulo II deveres de

assistência à pessoa que foi por este privada de sua liberdade. Tais deveres assumem a

característica de direitos com status positivus possibilitando aos reclusos exigir do ente

estatal o seu cumprimento e observância para melhores condições de vida, sob pena de

violação ao princípio maior da dignidade humana, constituindo-se assim um rol de

obrigações ao Estado.

Quando o Estado-juiz determina a custódia de uma pessoa, surge a obrigação de fornecer a ela os elementos mínimos para a manutenção de suas necessidades diárias quanto à alimentação, ao vestuário, acomodação, ensino, profissionalização, religiosidade e quaisquer outras que não confrontem com a natureza da execução da pena. A reclusão somente poderá reeducar para a liberdade enquanto o modo de vida do recluso esteja prudentemente disposto para esta finalidade. 240

Através desses deveres de assistência é que o legislador fundamentou as

bases do processo de reintegração social do condenado.241 É pela assistência dada ao

preso que o processo vislumbra sua materialização e que somente será possível desde

que se tenha observância e cumprimento estrito.

Se tais deveres forem cumpridos pelo Estado, as condições almejadas de

uma possível reintegração tornam-se mais factíveis e menos utópicas. Portanto, para que

ocorra êxito no processo de reintegração social, a assistência será material, à saúde,

jurídica, educacional, social e religiosa242.

240 BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 91. 241 BRASIL. Lei n. 7.210/84. Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. 242 Cf. BRASIL. Lei n. 7.210/84. Art. 11.

105

Como assistência material é de se entender que o Estado fornecerá

alimentação, vestuário e instalações higiênicas ao preso. A bem da verdade registre-se

que nesse aspecto os órgãos responsáveis pela execução penal tem procurado minimizar

as mazelas do sistema. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão

ligado ao Ministério da Justiça editou, em atendimento à sua resolução n. 3, as

Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal,243 devendo tais orientações ser seguidas pelas

unidades federativas para a construção, ampliação, reforma ou aquisição de

equipamentos dos estabelecimentos penais.

A problematização da superpopulação carcerária, bem como a depreciação

das carceragens das cadeias públicas e das penitenciárias é o maior problema

encontrado para que se alcance a reintegração social do condenado. Diz-se isso em

razão de que a inobservância dos demais direitos assegurados aos reclusos iniciam-se

quase que exclusivamente pela falência do Estado em disponibilizar vagas suficientes e

disso decorre a desconstrução do caráter que restava ao delinquente244, que será

obrigado a conviver com outros detentos, por vezes mais perigosos ou experientes na

arte criminosa, além de ter que se subjugar à subcultura carcerária, criada pelos próprios

detentos e com regras próprias com soluções mais drásticas que as dadas pelo próprio

Estado.

Já que vivemos a era do direito penal midiático, endurecendo a cada dia o

rigor como resposta a violação dos bens jurídicos protegidos pela norma penal é de se

esperar no mínimo que este mesmo Estado vingativo forneça condições materiais

mínimas para o cumprimento de seus próprios mandamentos.

Heleno Fragoso já em 1980 antes mesmo da edição da LEP questionava

“como fica a dignidade quando o homem é preso numa jaula com mais de 30 ou 40

pessoas, sem lugar para repousar, usando, para satisfazer as próprias necessidades, um

vaso turco, à vista de todos?”245

243 BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={BBAFF4D4-10A3-4477-A5B2-E96E75334F9F}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD} > Acesso em: 05 jan. 2012. 244 Segundo Cuello Calón, é contraproducente a imposição de conviver incessantemente com uma massa humana na que abundam os sujeitos perversos, tendenciosos e agressivos, e não poucas vezes dominados por vícios repugnantes, não é aconselhável; todo recluso deve ter sua cela individual, não só para o repouso noturno, senão para isolar-se em certas ocasiões, todo homem precisa de momentos de solidão; obrigar o condenado a passar todas as horas do dia em companhia dos demais presos é uma tortura. apud BRITO, Ibidem. p. 93. 245 FRAGOSO, Heleno et al. apud BRITO. Ibidem. p. 93.

106

O artigo 88 da LEP traz parâmetros mínimos necessários de atendimento à

assistência material, determinando as características da cela nos estabelecimentos

penitenciários destinados aos presos do regime fechado,

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Em atendimento aos reclames internacionais, notadamente aos tratados

assinados pelo Brasil e incorporados ao ordenamento jurídico nacional, as Regras

Mínimas para tratamento de reclusos da Organização das Nações Unidas, adotadas em

1955, pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção e Tratamento dos

Delinquentes, apresentam com detalhes as condições que seriam ideais para um

individuo recluso. Outrossim, o CNPCP também editou em 1994 a sua resolução de n.

14, determinando as Regras Mínimas para tratamento do recluso no Brasil. Como órgão

responsável pela política criminal a ser adotada no território nacional, sua resolução

deveria ter o condão de observância obrigatória pelas unidades federativas, mas não é

isso que acontece. O que ocorre é que os Estados, locupletando-se com escusas

orçamentárias insiste em não atender tais determinações, violando tratados

internacionais de direitos humanos e violando a própria legislação.

Segundo a Resolução n. 14 de 1994, do Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária, os estabelecimentos penais, atendidos os pressupostos de

assistência material prevista pela LEP devem observar:

Art. 8º. Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente. § 1º. Quando da utilização de dormitórios coletivos, estes deverão ser ocupados por presos cuidadosamente selecionados e reconhecidos como aptos a serem alojados nessas condições. § 2º. O preso disporá de cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto. Art. 9º. Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que ser refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação. Art. 10º O local onde os presos desenvolvam suas atividades deverá apresentar:

107

I – janelas amplas, dispostas de maneira a possibilitar circulação de ar fresco, haja ou não ventilação artificial, para que o preso possa ler e trabalhar com luz natural; II – quando necessário, luz artificial suficiente, para que o preso possa trabalhar sem prejuízo da sua visão; III – instalações sanitárias adequadas, para que o preso possa satisfazer suas necessidades naturais de forma higiênica e decente, preservada a sua privacidade. IV – instalações condizentes, para que o preso possa tomar banho à temperatura adequada ao clima e com a freqüência que exigem os princípios básicos de higiene.

O fornecimento de estruturas dotadas de padrões mínimos de espaço,

temperatura, higiene, vestuário são condições essenciais de sobrevivência e de respeito

a dignidade humana e sendo o Estado garantidor dessas condições, não há desculpa

aceitável ao seu não atendimento. Não é demais lembrar que segundo a LEP, ao preso

permanecem garantidos todos os direitos que não atingidos pela execução da pena. Não

há e tampouco poderia haver qualquer disposição em sentido contrário já que a pena

deixou de ter característica apenas aflitiva para assumir, também, o caráter reintegrador.

Ainda como assistência, ao Estado é determinado assegurar a saúde do

preso, devendo os estabelecimentos penais contar com atendimento médico,

odontológico e farmacêutico. Ainda, as Regras Mínimas de tratamentos de recluso da

ONU orientam para que haja visita diária do médico e que o estabelecimento penal

disponha dos materiais e equipamentos necessários para o atendimento médico.

A realidade carcerária demonstra que mais esse dever de assistência por

parte do Estado e um direito que assiste ao preso não é observado. Para tentar remediar

tal situação, os tribunais246 vêm determinando a prisão domiciliar dos reclusos que

necessitem de maiores cuidados e que estejam detidos em unidades que não apresentem

as condições necessárias de atendimento.

No que tange a assistência jurídica, esta é reservada aos reclusos que não

possuem recursos financeiros para arcar com a constituição de advogados. Tal papel é

muito bem desempenhado, dentro de suas limitações, pela Defensoria Pública, a qual

alcançou em 2010 pela edição da Lei n. 12.313 a natureza de órgão responsável pela

execução penal, devendo zelar pela execução da pena oficiando, no processo executivo

e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e

instâncias, de forma individual e coletiva, devendo todas as Unidades da Federação

246 Cf. HC 95.03.062424/0-SP – TRF- 3º Região; HC 28588/RS – STJ.

108

prestar auxílio estrutural, pessoal e material à Defensoria Pública, no exercício de suas

funções, dentro e fora dos estabelecimentos penais.

Segundo Alexis Couto de Brito247, um dos pilares básicos para a disciplina

carcerária é a assistência jurídica, já que nenhum preso se conforma com a privação da

liberdade e caso o fizesse, jamais deixaria de ansiar por ela, sendo que a falta desta

perspectiva ou a sensação de indefinição da pena retira sua tranquilidade refletindo na

disciplina interna do estabelecimento.

Em relação à assistência educacional prevista no art. 17 da LEP, buscam-se

o desenvolvimento intelectual e o aprimoramento na formação profissional dos presos,

sendo um dos elementos básicos, associado ao trabalho, da reintegração social, visto

que o estudo fornece maiores condições de enfrentar o final da pena com sustento lícito.

Esta visão foi adotada inclusive pela Constituição Federal, quando em seu art. 205

aponta a educação como condição para o desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A educação é uma importante viga para a edificação e concretização do

valor da dignidade humana. Por certo, “é muito comum que encontremos, na população

carcerária, indivíduos que não receberam ou não completaram seus estudos, sejam eles

fundamentais, médios ou superiores”248 e a inclusão destes em programas educacionais,

é capaz de fomentar uma inclusão social e auto sustento, surgindo como um dos

melhores sistemas de controle. E tanto isso é verdade que a população carcerária, em

que pese seus mais de 500.000 membros ainda representa pequena parcela da população

brasileira e isto se deve às instituições de controle social informal onde a educação

escolar se apresenta como verdadeiro freio para a incidência da criminalidade e para que

o Direito Penal não faça mais clientes.

Desta feita, a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a

formação profissional do preso prevendo a LEP que o ensino fundamental será

obrigatório àqueles que ainda não o tenham completado ou frequentado, fato importante

tendo em vista que 61% do universo populacional do sistema é constituído por

analfabetos e alfabetizados que não concluíram o ensino fundamental, segundo dados

do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.249

247 BRITO, Ibidem. p. 96. 248 BRITO, Ibidem. p. 97. 249 Disponível em: < http://www.ipclfg.com.br/category/sistema-penitenciario/> Acesso em: 12 jan. 2012.

109

Não é demais lembrar que para que os objetivos sejam alcançados,

necessita-se de um esforço sobremaneira maior que o empregado para a educação de

pessoas em liberdade, pois o cárcere, por si só, já se constitui num ambiente

antipedagógico, ensejando a legislação250 que os estabelecimentos penais devem buscar

convênios com entidades públicas ou particulares possibilitando o efetivo ingresso e

estruturação da assistência educacional.

Além desses deveres citados, cumpre consignar que outros ainda foram

elencados pela LEP, são eles a assistência social, assistência religiosa e assistência ao

egresso. A primeira consiste na ligação do recluso com a sociedade que o aguarda,

tendo por finalidade, segundo disposto no art. 22 da LEP, amparar o preso e prepará-lo

para o retorno à liberdade, sendo a “atuação do assistente social fundamental para

desenvolver o fortalecimento das relações entre os condenados e a sociedade,

promovendo a inclusão social dos apenados e a desmistificação da identidade

socialmente construída.”251

Para que isto se realize, diversas ações devem ser tomadas pelo serviço

social da unidade prisional: conhecer os resultados dos diagnósticos ou exames; relatar,

por escrito, ao Diretor do estabelecimento, os problemas e as dificuldades enfrentadas

pelo assistido; acompanhar o resultado das permissões de saídas e das saídas

temporárias; promover, no estabelecimento, pelos meios disponíveis, a recreação;

promover a orientação do assistido, na fase final do cumprimento da pena, e do

liberando, de modo a facilitar o seu retorno à liberdade; providenciar a obtenção de

documentos, dos benefícios da Previdência Social e do seguro por acidente no trabalho;

orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.252

A assistência religiosa será autorizada nos estabelecimentos penitenciários

como corolário à liberdade constitucional de culto. A religião, seja ela qual for, permite

que novos valores sejam insertos na vida do recluso, levando-o à interiorização de

novas perspectivas e esperanças para a vida pós-cárcere, encorajando-o a suportar as

mais diversas barreiras e superar as dificuldades e tentações morais e criminosas.

A assistência será prestada ao preso, conforme suas convicções religiosas, e

garantida a realização e participação em seus cultos, com os objetos e livros necessários, 250 BRASIL. Lei de Execução Penal. Art. 20. As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. 251 BRITO. Ibidem. p. 100. 252 Cf. Art. 23 da Lei de Execução Penal.

110

ressalta Brito253, afirmando que as Regras Mínimas de tratamento de reclusos da ONU

preconizam que havendo um número suficiente de reclusos pertencentes a uma mesma

religião poderá ser nomeado, ou admitir-se, um representante oficial do culto. Esse

papel tem sido muito bem desempenhado por organizações da sociedade civil, como a

Pastoral Carcerária, que possui forte atuação no Estado de São Paulo.

A última assistência prevista na LEP diz respeito ao egresso, sendo este a

pessoa que deixa o estabelecimento penal pelo cumprimento total da pena ou com os

benefícios penais a que faça jus, pelo prazo de um ano e o liberado em livramento

condicional enquanto durar o período de prova.

Tem-se que com a ausência de recursos já consignada, a assistência ao

egresso se torna cada vez mais fluídica por parte Estatal, visto que por si só, a pena

privativa de liberdade vem se mostrando insuficiente para a reintegração social e tal

modalidade de assistência, associada ao trabalho e ao estudo formam os principais

elementos que deveriam ser observados com o maior cuidado possível pelos

responsáveis pela reintegração.

Por isso, José Pastore afirma que,

A maioria dos egressos das prisões enfrenta situações muito aflitivas. Poucos são os que contam com recursos econômicos para suas necessidades imediatas. Muitos não têm onde se abrigar e se alimentar nos primeiros dias de liberdade. Há casos em que falta dinheiro para tomar um ônibus e chegar às eventuais oportunidades de emprego. Estudos baseados em metodologias rigorosas mostram que o não atendimento dessas necessidades imediatas constitui um dos principais desencadeantes da reincidência e da nova prisão.254

O momento da quebra do vínculo Estado-recluso é por demais importante

para a reintegração. Este quebra somente logrará êxito se fundamentada na assistência

que o egresso e sua família receberam quando ainda intra-muros, por parte do serviço

social, ajudando a diminuir a quebra de vínculos pessoais do preso com os familiares,

fato bastante comum no cárcere, seja pelo desestímulo à visitação, como p.ex. quando

as mulheres, mães, irmãs e companheiras são obrigadas a se agachar nuas sobre

espelhos a fim de que se afira se transportam aparelhos celulares ou outros objetos

dentro de seus corpos, bem como quando as mesmas servem como moeda de troca de 253 BRITO. Ibidem. p. 101 254 PASTORE, José. Trabalho para ex-infratores. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 26.

111

favores sexuais ou mesmo segurança contra outros detentos, normalmente pertencentes

a facções criminosas.

Este é o papel da assistência ao egresso, aliada à assistência social e ao

trabalho como objeto garantidor da dignidade humana. Nesse campo, o trabalho como

uma das formas de assistência ao egresso se revela como elemento importantíssimo na

reinserção, ajudando a recolocação no mercado de trabalho, possibilitando sustento

lícito e servindo como freio à reincidência criminal.

A estratégia de combater a reincidência pela inserção no trabalho tem fundamentos. O trabalho tem-se revelado como um dos fatores mais efetivos para reconstruir a dignidade da pessoa e para sua reintegração na família e na sociedade. Isso vale tanto para o período do cumprimento da pena como para os tempos de liberdade. 255

Nesse passo, o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle externo do

Judiciário iniciou projeto inovador, estimulando a assistência ao egresso através do

trabalho pelo Projeto Começar de Novo, através de sua resolução n. 96/2009, no âmbito

do Poder Judiciário. Pelo projeto, os Tribunais de Justiça devem celebrar parcerias com

entidades públicas e privadas, incluindo os Patronatos, Conselhos da Comunidade,

universidades e instituições de ensino fundamental, médio e técnico-profissionalizante,

objetivando a contratação de presos, egressos e cumpridores de medidas e penas

alternativas. Com isso, empresas e órgãos públicos disponibilizam vagas de trabalho,

estágio e contatos com entidades cadastradas nas unidades federais.256

Por esta resolução do Conselho Nacional de Justiça recomendou-se aos

Tribunais de Justiça a celebração de termos de cooperação técnica, como o realizado

entre o mesmo conselho e o SENAI, visando a qualificação profissional de presos e

egressos do sistema prisional.257

No capítulo IV, seção II da Lei de Execução Penal encontra-se a previsão de

um rol de direitos258 assegurados aos indivíduos privados da liberdade. Esse rol assume 255 Idem. Ibidem. p. 31. 256 Idem. Ibidem. p. 54. 257 Idem. Ibidem. p. 55. 258 BRASIL. Lei de Execução Penal. Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e

112

o tom de uma reafirmação de direitos não procurando o legislador o exaurimento

taxativo. Essa reafirmação se dá em decorrência do disposto no art. 3º da LEP que por

certo afirma que o preso terá restringido apenas os direitos atingidos pela sentença ou

pela lei. Afora disso, o preso por se configurar como ser humano é carecedor de todos

os demais direitos afeitos a este e para tanto deve o Estado garantir sua integral

aplicação, sob pena de responsabilização e violação à dignidade humana.

Seria inútil, segundo Mirabete259, a luta pelos efeitos nocivos da

prisionalização, sem que se estabelecesse a garantia jurídica dos direitos dos presos,

configurando o reconhecimento dos direitos da pessoa presa uma exigência fundamental

nos métodos e meios da execução penal. Isso se dá principalmente para que se evitem as

incertezas dos textos legislativos e dessa forma tornar mais factível a real observância e

respeito pelos órgãos da Administração Penitenciária.

Estes direitos e deveres de assistência assegurados no bojo da lei

execucional, bem como em sede constitucional, configuram-se como direitos

individuais que cada recluso possui ante a atuação do Estado. Normalmente, frente à

violação de tais direitos nasce aos detentos a possibilidade de demandar

individualmente contra o Estado nos casos de violação.

Contudo, tem-se mostrado insuficiente, para não se dizer inexistente a

resposta dada pelo Judiciário a continua violação dos direitos dos reclusos pelo Estado,

seja não fornecendo condições materiais mínimas, seja violando o próprio corpo do

recluso com a violência de seus agentes e ainda o desrespeito à duração razoável do

processo pelo Judiciário, levando ao total descrédito o respeito aos direitos

fundamentais dos presos.

Nesse panorama, a tutela coletiva desses direitos individuais se mostra como

opção possível à redução das complexidades, reforçando a atenção dada pelo Judiciário

religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. 259 MIRABETE. Julio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. por Renato N. Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2007. p. 118.

113

à questão carcerária, ensejando uma atuação mais efetiva e garantidora da assistência

estatal.

Desta forma, pode-se considerar que os reclusos numa penitenciária

possuem direitos individuais homogêneos, caracterizados pela individualidade das

lesões às quais são expostos, pela unidade fática oriunda da violação perpetrada pelo

Estado na inaplicabilidade de seus deveres, configurando a homogeneidade de sua

origem e pela possibilidade da determinação de seus titulares lesionados entre os

membros de uma unidade prisional.

Assim, quando o Estado não garante os padrões assistenciais mínimos, p.

ex. inserindo o indivíduo numa cela superlotada, ainda que constatada o excesso

populacional ou quando de uma incursão policialesca e agressiva que em nada agrega

ao já deteriorado ambiente penitenciário, será possível identificar quais foram os

indivíduos expostos a estas lesões tornando-as mensuráveis.

Isto faz com que estes direitos não se tornem transindividuais, pois não são

pertencentes a vários titulares, mas sim a indivíduos bem especificados possibilitando a

demanda individual de cada um lesionado em seus direitos, e com isso, encarando a

lesão de forma macro, dando azo à tutela coletiva pela união destes vários direitos

individuais.

Ocorre que, os direitos assegurados ao preso, ainda que observados pela Lei de Execução Penal, têm sede constitucional260, dentro do capítulo de direitos e garantias fundamentais possuindo auto-aplicação, não ensejando a edição de normas que tornem esses direitos exercitáveis261. Além disso, descumprimento de direitos e garantias fundamentais enseja a punição pelos responsáveis, nos termos do art. 5º, XLI, da Constituição Federal de 1988. Ou seja, há completa inversão de valores e total desrespeito aos preceitos constitucionais. Não obstante insinuar um modelo de direito penal pouco afeito à idéia minimalista, a Constituição da República projetou efeitos restritivos aos direitos para além da criminalização e da imposição de penas. Ao dispor sobre os direitos políticos, a Constituição de 1988 é novamente maculada pela tendência autoritária. A ação política através da participação nas decisões da vida pública é um dos fatores que caracterizam a cidadania formal. Dado o fato da impossibilidade de reunião na ‘Ágora’, o instrumento de exercício da cidadania nas democracias representativas é o voto popular. No entanto, o art. 15, inc. III, da CR determina a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado. Salutar indagação é qual a relação possível entre a condenação criminal e a perda, ainda que temporária, dos direitos

260 “Art. 5º. [...] XLVII - não haverá penas: [...] e) cruéis; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Constituição Federal”. 261 “Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Constituição Federal”.

114

políticos, senão excluir o condenado da vida pública, destituindo-lhe formalmente a cidadania e consolidando aquele estigma de apátrida. A edificação, em sede constitucional, da destituição da cidadania do preso capacita diagnosticar o não-reconhecimento dos seus direitos pelo Poder Público. Se a própria Constituição, norma fundante da ordem jurídica, do regime democrático e do modelo republicano, retira o status civitas! do condenado no plano das relações e decisões políticas, inevitável que o Estado-administração e o Estado-jurisdição pulverizem esta máxima, legitimando o desrespeito cotidiano aos direitos fundamentais nas relações intra-muros. O resíduo autoritário da negativa do voto ao preso, aliado às cláusulas de criminalização, leva ao questionamento do imaginário que perfaz a condição de condenado, pois, ao mesmo tempo que a norma positiva fundamental preza a manutenção de sua dignidade, acaba negando sua posição de sujeito político, retirando-lhe instrumento de exercício da cidadania.!262

Invocando a posição de Lassalle263, a Constituição, se aceita essa posição e

eterno costume, deixou de ser a soma dos fatores reais de poder para se apenas uma

folha de papel (ein Stück Papier) ante ao seu descumprimento rotineiro, sem que haja

qualquer manifestação do Judiciário e, pior, do povo, como titular do poder e que cada

vez mais tem se escondido exercendo o fatídico papel que Dahrendorf chama de

cidadão-total264, ou seja, o cidadão permanece inerte esperando que o seu representante

faça tudo o que necessário para sua felicidade, depositando todas suas pretensões e

aspirações num totem estigmatizado no papel do político.

3.3 Sistema Penitenciário Nacional

Em 1769, a Carta Régia do Brasil determinou no Rio de Janeiro a

construção da Casa de Detenção, a primeira prisão brasileira. Naquela prisão, já naquela

época, não havia separação de presos por tipo de crime.

Ficavam juntos primários e reincidentes, os que praticaram crimes leves e os

criminosos mais perigosos. Somente em 1824, a Constituição determinou que as cadeias

tivessem os apenados separados por tipo de crime ou pena e que fossem adaptadas para

que os detentos pudessem trabalhar.

262 CARVALHO, Salo. Penas e Garantias. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 161-162. 263 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. [S. l.]: Global Editora: 1987. p. 35. 264 DAHRENDORF apud BOBBIO. Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 26.

115

A determinação foi cumprida, mas por pouco tempo: no início do século

XIX, surgiu um dos mais graves problemas do sistema carcerário atual: a superlotação,

quando as cadeias do Rio de Janeiro já tinham presos acima do número de vagas.

Em 1890, o Código Penal previa que presos com bom comportamento, após

cumprirem parte da pena, poderiam ser transferidos para presídios agrícolas.

Transcorridos 122 anos, o país possui apenas 37 dessas unidades destinadas aos presos

do regime semiaberto, apesar do crescimento assustador no número de apenados.

Em 1935 o Código Penitenciário da República estabeleceu, além do direito

do estado punir, o dever de recuperar o detento.

Em 11 de Julho de 1984, foi sancionada Lei de Execução Penal, ampla, de

excelentes qualidades, considerada um dos melhores instrumentos jurídicos do mundo.

Apesar de normas constitucionais transparentes, da excelência da Lei de

Execução Penal e após 28 anos de sua vigência e da existência de novos atos

normativos, o sistema carcerário nacional se constitui num verdadeiro inferno, por

responsabilidade pura e nua da federação brasileira através da ação e omissão dos seus

mais diversos agentes.

O sistema prisional brasileiro é o quarto do mundo em número de pessoas,

ficando atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões de presos), China (1,5 milhão de

presos) e Rússia (870 mil presos).

De acordo com a última contagem da população, recenseada e estimada pelo

IBGE em 2011, a população total do Brasil é de 190.732.694 habitantes.

Pelo relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de

junho/2011, a população carcerária brasileira é estimada em 513.802265 presos, assim

distribuídos: cerca de 464.440 presos nos sistemas penitenciários estaduais, 49.362

presos na carceragem das Polícias Civis.

Os presos mantidos pelos sistemas penitenciários estaduais assim se

subdividem: 158.389 são presos provisórios; 188.652 presos sob o regime fechado;

67.520 presos sob o regime semiaberto; 16.724 presos sob o regime aberto; 3.112

265 BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/depen/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={FBEBE363-0DC9-4BAD-9066-0B8335BED0A6}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}> Acesso em: 05 jan. 2012.

116

presos em medida de segurança sob a forma de internação; e 534 presos em medida de

segurança sob a forma de tratamento ambulatorial.

Em relação à capacidade de ocupação, verifica-se que o número de vagas do

sistema penitenciário brasileiro totaliza 289.481 vagas, assim distribuídas: 16.724 vagas

nos estabelecimentos policiais e 272.757 vagas no sistema prisional.

O número de estabelecimentos penais no país é de 1.639 unidades

prisionais, assim caracterizadas: 439 penitenciárias ou similares; 66 colônias agrícolas,

industriais ou similares; 52 casas do albergado ou similares; 14 centros de observações

ou similares; 1.040 cadeias públicas ou similares; 28 hospitais de custódia e tratamento

psiquiátrico; e 14 patronatos.

Esses números configuram o sistema penitenciário brasileiro como o maior

da América Latina e que possui conjunto estrutural exorbitante e que exige recursos

suficientes para sua manutenção, bem como políticas públicas adequadas a uma gestão

satisfatória.

Ao falar em sistema penitenciário, deve-se ter em mente que este se

constitui de vários microssistemas haja vista que o direito penitenciário é de legitimação

concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal, segundo art. 24, I da Constituição

Federal, ficando a competência para o estabelecimentos de normas gerais afeitos à

União e aos Estados reservada a competência para legislar sobre normas específicas.

Isso faz com que cada unidade federada possua suas próprias regras atinentes ao

sistema, tendo como supedâneo a Lei de Execução Penal, ocasionando estrutura

organizacional distinta, polícias independentes e principalmente, políticas públicas

diferenciadas.

Nesse compartilhamento de funções e responsabilidades entre Poderes da

República e dos Estados, nem sempre há harmonia no enfrentamento do combate à

criminalidade e nas soluções dos graves problemas carcerários, havendo um

descompasso entre o legislador que produz a lei, o julgador que condena e o gestor que

cuida do preso. Com relação ao financiamento do sistema carcerário, os problemas, as

lacunas e as deficiências também são complexos.

A condução de cada sistema estadual dá-se, em geral, pelo chefe do

executivo local através das secretarias de segurança pública, defesa social ou assuntos

penitenciários, como no Estado de São Paulo. De um lado, isso facilita a gestão do

117

sistema, considerando seu tamanho e estrutura, porém, dificulta quando o assunto é a

homogeneidade dos ideais de reintegração e as políticas utilizadas para alcançar esse

mister.

A execução penal constitui-se em distintos órgãos como consta no art. 61 da

Lei de Execução Penal:

Art. 61. São órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da Comunidade. VIII - a Defensoria Pública. (grifo nosso).

Releva-se que uma análise pormenorizada de cada unidade federativa e de

sua respectiva secretaria seria importante para totalizar a problemática do sistema. Dada

essa impossibilidade fática, destinemos os esforços nos dois principais órgãos atinentes

ao objeto do trabalho que são aqueles onde se manejam as políticas penitenciárias

nacionais. Outrossim, a título de reforço da opção adotada, ainda que se analise tão

somente os dois órgão acima destacados, segundo o relatório final da CPI do sistema

carcerário266, observa-se que os problemas encontrados e relatados pelos detentos são os

mesmos em todo o país, o que nos revela o caráter nacional do problema enfrentado.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP é órgão

subordinado ao Ministério da Justiça responsável pela elaboração da política criminal e

penitenciária, dispondo as diretrizes a serem seguidas pelos Estados e pela União. Esse

papel de estabelecimento e definição da política criminal e penitenciária torna-se

complexo quando analisados os diferentes interesses e necessidades dos sistemas

penitenciários dos diferentes Estados da federação. Desse modo, o art. 64 da LEP

estipula as funções afeitas ao CNPCP:

I - propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança;

266 BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2701/cpi_sistema_carcerario.pdf?sequence=1> Acesso em: 07 jan. 2012.

118

II - contribuir na elaboração de planos nacionais de desenvolvimento, sugerindo as metas e prioridades da política criminal e penitenciária; III - promover a avaliação periódica do sistema criminal para a sua adequação às necessidades do País; IV - estimular e promover a pesquisa criminológica; V - elaborar programa nacional penitenciário de formação e aperfeiçoamento do servidor; VI - estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e casas de albergados; VII - estabelecer os critérios para a elaboração da estatística criminal; VIII - inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, bem assim informar-se, mediante relatórios do Conselho Penitenciário, requisições, visitas ou outros meios, acerca do desenvolvimento da execução penal nos Estados, Territórios e Distrito Federal, propondo às autoridades dela incumbida as medidas necessárias ao seu aprimoramento; IX - representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das normas referentes à execução penal; X - representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal.

É de se observar que a abrangência do CNPCP não se restringe ao sistema

penitenciário, já que ainda objetiva formular propostas de prevenção ao delito. Sua

postura tem sido bastante elogiável, já que adota posicionamento baseado no princípio

da humanização da pena267 com vistas à reintegração social do condenado. Isso se dá,

principalmente, pela sua composição, sendo esta de 13 membros escolhidos pelo

Ministério da Justiça dentre professores e profissionais de direito penal, processual

penal, penitenciário, criminólogos e representantes da comunidade.

Essas atribuições fazem com que o CNPCP possua incumbência de apontar

as principais necessidades do sistema penitenciário a fim de que as políticas públicas

elaboradas pelos gestores dos sistemas, especialmente pelo Executivo, visem uma

melhoria da gestão dos recursos destinados pela Lei Orçamentária Anual (LOA) e pelos

convênios de repasse da União aos Estados.

O Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN é o órgão executivo que

acompanha e controla a aplicação da Lei de Execução Penal e das diretrizes da Política

Penitenciária Nacional, emanadas, principalmente, pelo Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária – CNPCP.

267 Cf. Res. n. 16 do CNPCP, de Dezembro de 2003, Art. 2: I – respeito à vida e à dignidade da pessoa humana; V – absoluto respeito à legalidade e aos direitos humanos na atuação do aparato repressivo do Estado; VI – humanização do sistema de justiça criminal. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/depen/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={F51019E6-EE1F-45CF-B51E-96992B4B2816}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD} > Acesso em: 07 jan. 2012.

119

As principais atribuições do DEPEN são as expressas no artigo 72 da Lei de

Execução Penal.

Art. 72. São atribuições do Departamento Penitenciário Nacional: I - acompanhar a fiel aplicação das normas de execução penal em todo o Território Nacional; II - inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e serviços penais; III - assistir tecnicamente as Unidades Federativas na implementação dos princípios e regras estabelecidos nesta Lei; IV - colaborar com as Unidades Federativas mediante convênios, na implantação de estabelecimentos e serviços penais; V - colaborar com as Unidades Federativas para a realização de cursos de formação de pessoal penitenciário e de ensino profissionalizante do condenado e do internado. VI – estabelecer, mediante convênios com as unidades federativas, o cadastro nacional das vagas existentes em estabelecimentos locais destinadas ao cumprimento de penas privativas de liberdade aplicadas pela justiça de outra unidade federativa, em especial para presos sujeitos a regime disciplinar. Parágrafo único. Incumbem também ao Departamento a coordenação e supervisão dos estabelecimentos penais e de internamento federais.

Além disso, o Departamento é o gestor do Fundo Penitenciário Nacional –

FUNPEN, criado pela Lei Complementar n° 79, de 07 de janeiro de 1994 e

regulamentado pelo Decreto n° 1.093, de 23 de março de 1994.

O Departamento Penitenciário Nacional tem sob sua responsabilidade a

execução do Programa 0661 – Aprimoramento da Execução Penal, previsto no Plano

Plurianual 2007/2011. Este Programa é composto por ações que buscam a geração de

vagas; o aprimoramento tecnológico dos estabelecimentos penais; o tratamento

penitenciário adequado e digno ao apenado, internado e egresso do sistema com a sua

posterior reintegração à sociedade. 268

O Programa, em 2010, foi composto pelas seguintes ações orçamentárias:

• 8916 – Aparelhamento e Reaparelhamento de Estabelecimentos Penais; • 8914 – Apoio à Construção e Ampliação de Estabelecimentos Penais Estaduais; • 8912 – Apoio a Implantação e ao Reaparelhamento de Escolas Penitenciárias; • 8913 – Apoio à Implantação e ao Reaparelhamento de Ouvidorias; • 8915 – Apoio à Reforma de Estabelecimentos Penais Estaduais; • 2272 – Gestão e Administração do Programa;

268 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. Disponível em:<http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={E13D741C-53AC-489B-AE8A-89B34020BB6C}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD} > Acesso em: 23 dez. 2011.

120

• 2730 - Apoio a Serviços de Acompanhamento da Execução de Penas e Medidas Alternativas; • 2526 - Capacitação em Serviços Penais; • 2720 – Ações de Caráter Sigiloso na Área de Segurança Pública; • 116S – Adequação Física de Penitenciárias Federais; • 10M1 – Construção da Quinta Penitenciária Federal; • 1A18 - Construção da Escola Penitenciária Nacional; • 10D3 – Implantação do Sistema de Inteligência Penitenciária Federal; • 3908 - Integração dos Sistemas de Informações Penitenciárias em Base Nacional; • 8130 – Pesquisa e Produção de Dados sobre a Execução Penal; • 2314 - Reintegração Social do Preso, Internado e Egresso; • 2316 – Serviço Penitenciário Federal.

O crescimento vertiginoso da população prisional e do déficit de vagas, em

confronto com o histórico de esforços do Poder Público para a geração de novas delas, é

um dado revelador de que esse não pode ser o único componente fundamental das

políticas penitenciárias, senão apenas mais um, dentro de um mosaico bem mais amplo

e diferenciado.

A prática da política penitenciária, ou seja, fazer vingar as diretrizes oriundas do CNPCP, tem por finalidade instalar um sistema penitenciário que seja eficaz. Por conta disso, o DEPEN almeja transformar propostas em ações. Entretanto, para que isso ocorra necessita buscar convênios com unidades federativas. Salienta-se que a LEP preceitua a constituição de departamentos penitenciários locais. Todavia muitas unidades federativas não têm estes departamentos instituídos. Por este motivo, o DEPEN esbarra em diversas dificuldades estruturais, as quais são decorrentes da multiplicidade de sistemas penitenciários. Em virtude disso, o próprio DEPEN vem estimulando a unificação da política penitenciária em termos de procedimento, ação e informação. 269

Existem dados que revelam, por exemplo, que elevada parcela da população

prisional é composta por presos reincidentes, o que aponta, dentre outras coisas, para o

papel deficitário que vem sendo desempenhado nos sistemas penitenciários locais. Daí a

importância do Programa de Aprimoramento da Execução Penal, que pretende somar

esforços aos entes federados no sentido de implementar boas políticas de reintegração

social e apoio ao egresso, bem como uma boa política de qualificação dos recursos

humanos atuantes no sistema.

269 ROCHA. Ibidem. p. 63.

121

3.3.1 Fundo Penitenciário Nacional e a execução orçamentária e de recursos do

sistema penitenciário

O Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN foi criado pela Lei

Complementar nº 79 de 1994 e regulamentado pelo Decreto nº 1093 de 1994, sendo

idealizado pelo então Ministro da Justiça e posteriormente Ministro do Supremo

Tribunal Federal Maurício Corrêa.

Note-se que os problemas vividos pelo sistema penitenciário (superlotação,

rebeliões, reincidência, corrupção de agentes, instalações inumanas, trafico de drogas,

atuação de organizações criminosas, apenas para citar alguns) advêm das dificuldades

que os governos encontram em arcar com a necessidade constante de recursos e que

normalmente sobressaem em muito seu limite orçamentário.

Os recursos destinados ao Fundo têm por finalidade a aplicação em

construção, reforma e ampliação de estabelecimentos penais; formação,

aperfeiçoamento e especialização do serviço penitenciário; aquisição de material

permanente, equipamentos e veículos especializados imprescindíveis ao funcionamento

dos estabelecimentos penais; formação educacional e cultural do preso e do internado;

programas de assistência jurídica aos presos e internados carentes; manutenção dos

serviços dos estabelecimentos penais federais e demais ações que visam o

aprimoramento do sistema penitenciário em âmbito nacional. Ademais, seus recursos

também custeiam seu próprio funcionamento.270

Em razão dos altos custos com a manutenção do sistema penitenciário, as

Unidades da Federação possuem orçamento escasso para arcar integralmente com a

conservação e aprimoramento de seus sistemas prisionais, sendo, portanto, compelidas a

fazer uso dos recursos do Fundo quando o assunto é financiamento de vagas,

equipamentos de segurança e assistência ao preso e ao egresso, principalmente.

Os investimentos alocados junto ao FUNPEN, realizados em favor dos

estados brasileiros, a partir do ano 2000, situaram-se sistematicamente em níveis

medianos de R$ 200.000.000,00. Não há, tanto em relação à União, quanto em

decorrência da iniciativa dos governos estaduais, um comprometimento maior em

relação às demais despesas orçamentárias em favor dos estabelecimentos penais. A 270 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 6.

122

considerar o nível de reincidência dos detentos em relação ao crime, estimado entre

70% ou de 80%, é crível supor que a atenção do Poder Público em favor das políticas

públicas voltadas à segurança pública, não vêm correspondendo ao mínimo necessário

para uma administração regular e cumpridora dos mandamentos constitucionais.271

Da mesma forma, vê-se que, especificamente, ao longo dos anos, os

recursos têm se mostrado insuficientes ao cumprimento satisfatório da missão

institucional do Departamento Penitenciário Nacional em atendimento ao prescrito pela

Lei de Execução Penal. Enquanto a população prisional tem crescido a uma variação,

em valores absolutos, de 42.000 presos/ano, a capacidade de financiamento anual de

vagas, viabilizada por meio de convênios celebrados com os estados, não superou a casa

dos 5.000 presos/ano, conforme dados do DEPEN. A considerar o déficit carcerário

existente, estimado em valores superiores a 270.000 vagas, dependendo do período,

abrangência e método empregados, e os mais de 550.000 mandados judiciais ainda por

cumprir, conforme é noticiado, pode-se avaliar a real dimensão do déficit carcerário.272

O resultado dessa ausência financeira por parte estatal é completa

inobservância dos preceitos que ao final, poderiam criar condições adequadas à

reintegração social do preso. É cediço que nem todos, e talvez a maioria, não deseje ser

reintegrado ou tenha a ideia de que já é integrado e conhecedor do pacto social e por

isso mesmo optou livremente por ingressar no universo criminoso. Isso não dá direito

ao Estado brasileiro desobedecer a Constituição no que tange ao respeito dos direitos

humanos fundamentais.

A observância de tais direitos é fundamental para que as condições

reintegradoras sejam criadas, haja vista que se o Estado continuar com estabelecimentos

penais superlotados, violência por parte dos agentes execucionais, falta de separação de

presos reincidentes e primários, inexistência de planos de reintegração justificados por

medidas multidisciplinares, ausência de exame criminológico, falta de programas de

assistência ao egresso e a sua família deficitários, a perspectiva reintegradora jamais

passará da esfera do mítico e utópico para a realidade prática.

A base legal da receita do FUNPEN localiza-se na Lei Complementar nº 79:

Art. 2º Constituirão recursos do FUNPEN:

271 BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 330. 272 Idem. Ibidem. p. 331.

123

I - dotações orçamentárias da União; II - doações, contribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou estrangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras; III - recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras; IV - recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal, excluindo-se aqueles já destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986; V - multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado; VI - fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal; VII - cinquenta por cento do montante total das custas judiciais recolhidas em favor da União Federal, relativas aos seus serviços forenses; VIII - três por cento do montante arrecadado dos concursos de prognósticos, sorteios e loterias, no âmbito do Governo Federal; IX - rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FUNPEN; X - outros recursos que lhe forem destinados por lei.

Para que se aponte com clareza os problemas verificados na gestão

orçamentária, aos quais atribuímos como causa de grande parte dos problemas já

expostos, é preciso que se conceituem algum elementos importantes da desta específica

categoria. Por vezes, a conceituação de gestão ou execução orçamentária e financeira é

causadora de interpretações equivocadas. Ambas ocorrem concomitantemente e estão

atreladas. De uma forma genérica, não se pode gastar recursos financeiros caso não haja

a disponibilidade orçamentária correspondente. De outro turno, pode-se ter

disponibilidade orçamentária e não possuir financeiro para incorrer na despesa

pretendida. Assim, a realização da despesa depende da existência de orçamento e de

financeiro.

É através da previsão orçamentária de recursos que se realiza a programação

de gastos públicos, de arrecadação de receitas e definição das estratégias econômico-

sociais do Estado para que as escolhas de prioridades ganhem maior relevância

A realização das despesas públicas se dá por fases sendo a primeira a

legislativa onde a despesa deve ser autorizada por lei, prevista preliminarmente no

Projeto da Lei Orçamentária Anual e posteriormente concretizada na Lei Orçamentária

Anual, sob pena de restar configurado o crime previsto no 359-D do Código Penal

(ordenação de despesa não autorizada).

124

Posteriormente, a segunda fase é a administrativa, composta pela licitação,

empenho, liquidação e ordem de pagamento. A licitação é necessária já que para a

efetivação de uma despesa é primordial o prévio procedimento licitatório, conforme

previsão constitucional. Já o empenho se configura como ato administrativo que

antecede a despesa e confirma as obrigações da administração em relação ao

contratado.273 É através do ato de empenho que se faz a dotação orçamentária do

montante necessário ao custeio de determinado setor.

A liquidação é o procedimento pelo qual se verifica o direito adquirido pelo

credor, que tem por base os títulos e documentos comprobatórios do implemento de sua

obrigação e a ordem de pagamento o ato de efetivo pagamento pelo contratado.

Pode-se definir execução orçamentária como sendo a utilização dos créditos

consignados na Lei Orçamentária Anual. Já a execução financeira é a utilização de

recursos financeiros para atender as ações atribuídas a um determinado Órgão ou Fundo

pelo Orçamento. Em outras palavras, o orçamento representa o direito de gastar e o

financeiro representa o meio de exercer tal direito.274

A tabela seguinte275 demonstra a utilização dos créditos orçamentários e dos

recursos financeiros em milhões de reais do FUNPEN entre 1995 e 2010.

Período Orçamento Autorizado Orçamento Utilizado 1995 78.365.041 38.162.047 1996 129.128.010 43.984.935 1997 172.035.697 83.586.047 1998 295.107.209 122.201.952 1999 109.982.582 27.094.231 2000 204.728.125 144.995.971 2001 288.295.914 265.241.208 2002 308.757.559 132.924.494 2003 216.032.429 121.436.104 2004 166.157.349 146.236.958 2005 224.098.871 159.074.050 2006 364.252.144 303.490.675 2007 430.939.081 201.107.529 2008 574.766.381 226.682.622 2009 218.991.984 101.278.954 2010 252.848.591 90.439.164

273 MACHADO JÚNIOR, José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A lei 4.320 comentada. 31. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2003. p. 144. 274 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 15 275 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 16.

125

Nesta tabela, a coluna orçamento autorizado representa a disponibilidade

orçamentária dada pela Lei Orçamentária Anual para que o FUNPEN possa realizar

gastos atendendo aos reclames de sua lei criadora. O orçamento autorizado pela LOA de

2012 ficou em de R$ 435.267.845,00. A coluna do orçamento utilizado representa a

parcela da dotação orçamentária que foi liquidada dentro do exercício financeiro. É de

se observar que em todos os exercícios (salvo o de 2001), a maior parte da dotação

orçamentária não foi objeto de utilização, possuindo como razão para tanto dois fatores

a saber, o contingenciamento de orçamento e a diferença entre os limites orçamentários

e financeiros.

No primeiro caso, todos os anos são realizados por meio do Decreto de

Contingenciamento bloqueios no orçamento a fim de limitar a execução orçamentária

de forma que não se comprometa a obtenção de superávit primário. Esse decreto dispõe

sobre a programação orçamentária e financeira e estabelece o cronograma mensal de

desembolso do Poder Executivo.

Nas recentes administrações do Governo Federal, a política de superávit primário tornou-se contumaz. Trata-se de uma espécie de poupança do governo, em que se busca reduzir a proporção da dívida pública em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Essa economia de receitas tem sido usada para pagar os juros desses débitos de modo a impedir seu maior crescimento e sinalizar ao mercado que haverá recursos suficientes para honrá-los. [...] A maioria dos recursos têm sito destinada ao pagamento dos juros escorchantes de uma questionável dívida pública, impossibilitando a realização de investimentos promotores de crescimento econômico ou o desenvolvimento das políticas sociais. As consequências são tão graves para toda a sociedade, comprometendo todos os serviços essenciais de saúde, educação, segurança, moradia, saneamento, reforma agrária, infra-estrutura e demais serviços públicos.276

O segundo caso ocorre quando o limite financeiro é bem inferior ao limite

orçamentário. Isso ocorre quando existe um descompasso entre o orçamentário e

financeiro, ou seja, quando os recursos financeiros suficientes com os créditos

orçamentários consignados na LOA.277 Devido a isto, os pagamentos devidos são feitos

no exercício subsequente ao da possibilidade de utilização do crédito, constituindo-se os

chamados Restos a Pagar.278 Os recursos financeiros auferidos no exercício são

276 ROCHA. Ibidem. p. 126-127. 277 BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 341. 278 BRASIL. Lei n. 4.320/64. Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro distinguindo-se as processadas das não processadas.

126

empregados para honrar tanto os compromissos assumidos no corrente como aqueles

assumidos em anos anteriores. Assim, um valor elevado de Restos a Pagar tende a

provocar um patamar elevado de Restos a Pagar também para o exercício seguinte, e

assim sucessivamente.279

A utilização de todo o limite orçamentário geraria um volume elevado de inscrição em Restos a Pagar, o que comprometeria a execução orçamentaria do exercício seguinte. Nesse caso, o gestor pode optar pela utilização parcial do limite orçamentário que, em situações criticas, pode se situar em um patamar muito inferior ao da dotação orçamentaria (para que não haja duvida entre os conceitos, dotação orçamentaria e o valor constante da Lei Orçamentaria Anual, e limite orçamentário e o valor determinado pelo Decreto de Programação Financeira, o chamado Decreto de Contingenciamento).280

Dessa forma, o contingenciamento realizado pelo Executivo e no caso

específico da execução penal pelo Ministério da Justiça e a adoção do estratagema dos

restos a pagar, vinculam a receita do FUNPEN de tal forma que torna-se impossível

pensar num processo de reinserção social adequado e suficiente, digno de respeito aos

direitos fundamentais.

Em verdade, para que o orçamento seja viável e atinja aos objetivos de uma nação, é necessário que os governantes planejem a política governamental detectando e elegendo as prioridades da sociedade, dentro das reais possibilidades financeiras do Estado, plano esse que é referendado pela mesma sociedade no momento em que o Parlamento aprova o orçamento, que outra coisa não deve ser senão o espelho das atividades que o governo deseja implementar.281

As mazelas do cumprimento da pena privativa de liberdade no Brasil não

são exclusivamente afeitas a ausência financeira, mas é de se destacar que grande parte

do problema deve-se a ausência de recursos capazes de efetivamente tornar aplicáveis

os direitos previstos em sede da Lei de Execução Penal, bem como na Constituição e

em tratados internacionais como as regras mínimas de tratamento de reclusos da

Organização das Nações Unidas.

279 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p 17. 280 BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 342. 281 LÉPORE. Ibidem. p. 95.

127

CAPÍTULO 4

EXECUÇÃO PENAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: EFETIVIDADE DOS

DIREITOS DOS PRESOS

4.1 Judicialização282 das políticas públicas e efetivação dos direitos coletivos dos

presos

Compreende-se políticas públicas como atos coordenados pelo Estado na

consecução de fins objetivados pela sociedade, utilizando os veículos normativos do

direito como requisito de observância e obrigatoriedade em seu cumprimento.

Para Maria Paula Dallari Bucci,

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. 283 (grifos nossos)

Dessa forma, se política pública figura-se como programas governamentais

e a racionalização dos processos envolvidos em sua definição, busca-se com ela a

coordenação da atuação do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como contando

com a participação popular para que os objetivos vislumbrados sejam efetivamente

alcançados. Para tanto, a utilização do direito como critério de exigibilidade da atuação

estatal na formação das políticas públicas apresenta a lei como veículo de exteriorização

dessa plêiade de ações políticas no objetivo último de tornar socialmente efetivos os

direitos fundamentais.

282 No sentido constitucional, a judicialização refere-se ao novo estatuto dos direitos fundamentais e à superação do modelo da separação dos poderes do Estado, que levaria à ampliação dos poderes de intervenção dos tribunais na política, significando a expansão da jurisdição das Cortes ou dos juízes ao âmbito dos políticos e administradores. "[...] é uma resposta do Supremo a provocações formais da sociedade a partir de mecanismos criados "pela Constituição para neutralizar o caráter lesivo das omissões do Congresso ou do Executivo. Nesses casos, não há interferência indevida do Supremo: oTribunal está apenas cumprindo sua função". (MENDES, Gilmar Ferreira. Anuário da Justiça de 2010. Consultor Jurídico, 2010. p. 77. 283 BUCCI, Maria Paula Dallari. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39.

128

As atividades legislativa e jurisdicional envolvem, por natural, a aplicação da Constituição e o cumprimento de suas normas. O legislador cuida de disciplinar os temas mais variados de acordo com os princípios constitucionais. Ao magistrado, por seu turno, cabe aplicar a Constituição, direta ou indiretamente, já que a incidência de qualquer norma jurídica será precedida do exame de sua própria constitucionalidade e deve se dar da maneira que melhor realize os fins constitucionais. [...] Nesse contexto, compete à Administração Pública efetivar os comandos gerais contidos na ordem jurídica e, em particular, garantir e promover os direitos fundamentais em caráter geral. Para isso, será necessário implementar ações e programas dos mais diferentes tipos e garantir a prestação de determinados serviços.284

Isso ajuda na confirmação dos objetivos assumidos pelo Estado como

garantidor de direitos de seus integrantes, fundando-se todas as suas ações na garantia

de proteção a esses direitos, tomando a forma de “organização dada pela sociedade

política nacional para que os direitos sejam promovidos e protegidos”.285

O exercício de controle feito pelo Judiciário nas políticas públicas tem se

tornado um dos assuntos mais debatidos no meio acadêmico-constitucional. Posições

das mais variadas existem, ora pela impossibilidade deste controle, ora pela

possibilidade, tendo o último demonstrado ser mais crescente até por alguns

posicionamentos de tribunais superiores. Desta feita, impossível apurar todos os

argumentos utilizados. O que se fará nesta seção é abordar o posicionamento que

entendemos como o mais acertado, justificando os pontos relevantes, mas sem desprezar

o que de outra forma discordam.286

A primeira vista, falar da possibilidade de controle de políticas públicas, em

regra realizadas sob o manto da discricionariedade administrativa parece impróprio, já

que realizados inicialmente no âmbito do Poder Executivo. Entretanto, para que se

alcance uma conclusão preliminar, é importante observar qual o momento de atuação

284 BARCELLOS. Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado. nº 3. 2006. 17-54, 2006. p. 23. 285 AITH, Fernando. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos. In BUCCI. Ibidem. p. 218. 286 J. J. Gomes Canotilho informa que a política é feita por cidadãos que questionam, criticam e apontam problemas e que os juízes nunca fizeram revoluções. Eles aprofundaram aplicações de princípios, contribuíram para a estabilidade do Estado de Direito, da ordem democrática, mas nunca promoveram revoluções. Portanto, pedir ao Judiciário que exerça alguma função de ordem econômica, cultural, social, e assim por diante, é pedir ao órgão que exerça uma função para a qual não está funcionalmente adequado. Assim, as políticas públicas não poderiam ser decididas pelos tribunais, mas pelos órgãos socialmente conformadores da Constituição. (Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-out-23/entrevista-gomes-canotilho-constitucionalista-portugues> Acesso em: 02.04.2012.

129

deste controle realizado pelo Judiciário, se feito na fase administrativa da formação da

política pública ou se feito em sua execução.

Na formulação de políticas públicas o controle é realizado observando-se a

compatibilidade dessas políticas com os princípios (assumindo claramente a função de

regras, nesse caso) constitucionais e com as regras, assentados sob o manto da

dignidade da pessoa humana. Nos casos do direito à educação escolar, previsto no art.

227, §1º, I287, e direito à saúde, previsto no art. 198, §2º288, ambos da Constituição

Federal, existe uma vinculação obrigatória de receitas, dada por lei e determinada pela

própria Constituição para que se executem as políticas públicas relacionadas.

Nestes dois casos, o administrador encontra-se vinculado no momento da

formação da política, não cabendo se falar em discricionariedade administrativa, já que

possui imposição legal de aplicação mínima de orçamento em cada uma dessas áreas e

somente depois da aplicação mínima é que o administrador possuirá discricionariedade

para optar por aplicar ou não mais recursos, salvaguardando ainda mais esses direitos.289

Em caso de descumprimento dessa obrigação de aplicação de percentual

mínimo previsto em lei, é tranquila a possibilidade de controle realizado pelo Poder

Judiciário, já que existe uma violação primária da constituição e da legislação

infraconstitucional, utilizando-se os entes legitimados do controle concentrado de

constitucionalidade, bem como do controle difuso e ainda da ação de descumprimento

de preceito fundamental.

Ainda quanto ao momento da formação de políticas públicas, é importante

consignar a possibilidade de controle nas políticas não previstas expressamente no texto

constitucional, bem como na legislação correlacionada. Aqui, o administrador justifica

sua opção adotando os critérios da discricionariedade administrativa, relacionando-se

287 § 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; 288 § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. 289 GUIMARÃES. Renata Catacci. Controle judicial das políticas públicas e a atuação do Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais. Conteúdo Jurídico. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29191>. Acesso em: 22 fev. 2012.

130

como mérito do ato administrativo que destina determinada receita prevista no

orçamento, materializando a política pública especificada.

Nesses outros casos, assumem importância na discussão acadêmica e prática

os direitos sociais ou de segunda dimensão, relacionados a normas programáticas.

Contudo, nosso foco de atuação reside nos direitos de primeira dimensão relativos à

liberdade e condições dignas de vida da pessoa encarcerada, possuindo, conforme dito,

aplicabilidade imediata, não podendo olvidar-se que possuem maior efeito vinculante do

que àquelas, já que tratam do direito à vida ou integridade física.290

Nessa esteira, na formação de políticas públicas não especificadas na

Constituição mas que devem ser implementadas objetivando tornar efetivo os direitos

fundamentais, a justificativa do administrador para a aplicação de receita em

determinada área, quando da execução ou realização das políticas públicas estaria na

malfadada discricionariedade administrativa.

O administrador também se utiliza da discricionariedade quando o assunto

se trata da execução de políticas públicas, notadamente àquelas não determinadas

especificamente pela Constituição e por legislação infraconstitucional. Nesse passo,

utiliza-se do campo político e da preponderância de certos interesses, normalmente de

caráter eleitoreiro, para destinar maior aplicação de receitas em áreas específicas, em

detrimento de muitas outras também carentes de investimento estatal, incluído

especialmente nesta parcela deixada de lado, a execução penal.

Como visto, quando a tredestinação orçamentária se der em razão de

competência vinculada do administrador, caberá sem maiores delongas o controle

realizado pelo Judiciário. Porém, a vendeta se instala quando o assunto é a possibilidade

de controle da discricionariedade administrativa.

4.1.1 Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional

De início é importante consignar a inafastável possibilidade de submeter

uma política pública ao controle jurisdicional, decorrente do princípio da

inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. 290 SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. p. 372.

131

A materialização dos direitos fundamentais previstos no bojo da execução

penal necessita como todos os outros de financeiro para que sejam atendidos. Isso faz

com que o administrador atenda determinados interesses públicos quando da formação

da política pública ou de sua execução. Essa opção de atendimento ao interesse fica

configurada no rol discricionário do administrador, através do ato administrativo,

podendo este optar por investir em determinado setor. A base desse paradigma reside

ainda na tripartição de poderes proposta por Montesquieu. Hoje, contudo, ela não deve

ser levada ao extremo a pensar que o Executivo é livre para optar pelo que entender

mais relevante e o Judiciário caracterizar-se apenas como a boca da lei. “Frise-se,

porém, que a preocupação inicial de Montesquieu era, antes, impedir que a mesma

pessoa ou o mesmo grupo ocupasse mais de um poder, e não, propriamente, a pretensão

contemporânea de que uma separação entre as diversas funções estatais”.291

A separação absoluta dos poderes ou funções estatais vem sendo

relativizada pelos teóricos, incluindo nessa discussão como forma de amenizar a

separação o sistema de check and balances292, o qual não estabelece funções puras e

típicas a cada um dos poderes estatais mas confere, também, funções atípicas, de modo

que um controlasse os outros já que estes são órgãos representativos da sociedade

possibilitando um controle sobre os excessos que cada um possa vir a cometer.

Por óbvio, o modelo clássico de separação de poderes, na esteira das propostas originárias de Montesquieu e Madison, alicerçou-se em um paradigma liberal do direito, pelo qual ao judiciário caberia apenas revelar o direito. Com a proliferação de direitos fundamentais nas modernas Constituições e a assunção de que eles são princípios que podem colidir em casos específicos, sendo uma exigência social a máxima aplicação de cada um dos direitos fundamentais, uma nova concepção de separação de poderes é necessária. Não mais se entende que direito e política são campos totalmente separados e cuja conexão deve ser reprimida para o bom funcionamento do Estado.293

Quando o administrador não cumpre as determinações da lei orçamentária,

por meio de ato administrativo, não aplicando os recursos onde previstos, viola a

característica da finalidade, elemento vinculado do ato, o qual possui, sempre, como

291 DE PAULA, Daniel Giotti. Ainda existe separação de poderes? A invasão da política pelo Direito no contexto do ativismo judicial e da judicialização da política. In FELLET, André Luiz Fernandes et al. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Jus Podivm. 2011. p. 275. 292 Idem. Ibidem. p. 275. 293 Idem. Ibidem. p. 273.

132

finalidade geral a satisfação do interesse público e como finalidade específica, o

resultado previsto pela lei. Não é demais lembrar, que o orçamento é lei e como tal

possui o requisito de exigibilidade e vinculatividade, em que pese construção

doutrinária afirmar o caráter autorizativo do orçamento.294 Este ato administrativo de

aplicação de receita em setor diverso ao proscrito pela lei orçamentária estará eivado de

desvio de finalidade, violando a legalidade, sujeito ao controle jurisdicional tendo como

consequência a retirada do ordenamento. 295

É pois, precisamente em casos que comportam discrição administrativa que o socorro do Judiciário ganha foros de remédio mais valioso, mais ambicionado e mais necessário para os jurisdicionados, já que a pronúncia representa a garantia última para a contenção do administrador dentro dos limites da liberdade efetivamente conferidos pelo sistema normativo296

Quanto ao momento da formação da política pública, é que residem os

maiores problemas do controle jurisdicional, pois em regra, esta fase é dominada pela

discricionariedade ou mérito do ato administrativo, aonde não vem sendo admitido, na

maioria das vezes, tal controle.

O mérito administrativo é a valoração feita pelo administrador quando da

indicação de qual setor necessitará mais receita, analisando-se a conveniência e

oportunidade, presentes nos elementos motivo e objeto do ato administrativo. Vale

lembrar, que não há que se confundir mérito administrativo com motivo e objeto, apesar

de estar presente neles. O motivo é o pressuposto de fato, enquanto conjunto de

circunstâncias fáticas que levaram à prática do ato e o pressuposto jurídico, que é a

norma do ordenamento que justifica a realização do ato, enquanto objeto é o resultado

prático do ato.297

Transpondo isso para o campo das políticas públicas penitenciárias, o

motivo do ato representa as razões que justificam a edição do ato, sendo a situação de

fato e de direito que gera a vontade do agente, ou seja, a necessidade de solucionar a

manutenção do sistema penitenciário, bem como o atendimento dos proclames da Lei de

Execução Penal e da Constituição Federal. Já o objeto do ato é o efeito jurídico 294 BARCELLOS. Ibidem. p. 36. 295 MARINELA. Fernanda. Direito Administrativo.4 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 253 296 MELLO. Ibidem. p. 850. 297 MARINELA. Ibidem. p. 245 – 257.

133

imediato na esfera de direitos dos presos, alterando a realidade fática vivida,

possibilitando o adequado respeito por parte do Estado e como fim último a

possibilidade de alcance da reintegração social.

Contudo, quando estas opções do administrador relacionarem-se a direitos

fundamentais e principalmente com a dignidade da pessoa humana, a discricionariedade

estará vinculada ao atendimento destes pressupostos, limitando a atuação do

administrador ao que a Constituição Federal prevê.

No que diz com relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais. A não-observância destes postulados poderá, por outro lado, levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais, problema que diz com o controle jurisdicional dos atos administrativos [...]. 298

O administrador não pode e jamais poderá comprometer com opções

políticas ou discricionárias a efetivação de direitos fundamentais de primeira dimensão,

dada a característica da aplicabilidade imediata, sob pena de violação positiva (quando

aplicam as receitas em setores distintos) ou negativa, (quando não as aplicam,

impossibilitando a efetivação da Constituição Federal), pelo Poder Público,

comprometendo de modo inaceitável a própria ordem constitucional.299 Difere nesse

ponto, das normas programáticas ou dos direitos sociais, que em sua maioria

necessitaram de efetiva disposição orçamentária, salvo em casos já colmatados pelo

Supremo.

Segundo o Min. Celso de Mello no julgado citado, o alto significado social e

o irrecusável valor constitucional de que se revestem tais direitos, ainda mais se

considerado em face do dever que incumbe, ao poder Público, de torná-lo real, mediante

a efetivação da garantia da reintegração social, não podem ser menosprezadas pelo

Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso

298 SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. p. 370. 299 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 482.611/SC, RTJ 164/158.161

134

constitucional, a dignidade da pessoa humana, que tem no aparelho estatal, um de seus

precípuos destinatários.

Tratando-se de típico direito de prestação positiva por parte estatal,

asseverou STF, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à

dignidade da pessoa humana, que compreende todas as prerrogativas, individuais ou

coletivas, referidas na Constituição e tem por fundamento regra constitucional cuja

densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o

administrador disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior

grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente,

com base em simples alegação de mera conveniência ou oportunidade, a nulificação

mesma dessa prerrogativa essencial.300

No mesmo sentido, o julgamento paradigmático da Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 45301,

O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere, gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

O Poder Judiciário não deve ter por objeto rotineiro o controle de políticas

públicas, fato tradicionalmente atribuído ao Poder Executivo. Contudo, não se justifica

o descumprimento da Constituição, principalmente em relação a direitos de primeira

dimensão baseados em opções discricionárias do administrador. “É certo que não se

inclui, ordinariamente, no âmbito de funções institucionais do Poder Judiciário a

300 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 482.611/SC. 301 AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL n° 45, de 29/04/2004, Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: <www.stf.jus.br/dj> Acesso em: 30 nov. 2011.

135

atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o

encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo”. 302

Assim, os direitos, liberdades e garantias constituem, desde logo, medidas de valoração decisivas quando a administração tem de densificar conceitos indeterminados (<segurança pública>, <sigilo>, <segredo de Estado>, <segurança do Estado>). Da mesma forma, quando a administração pratica actos no exercício de um poder discricionário, ela está obrigada a actuar em conformidade com os direitos, liberdades e garantias. Aqui, dada a frouxa pré-determinação da lei, estes direitos surgem como parâmetros imediatos de vinculação do poder discricionário da administração. 303

Esse encargo de controlar as políticas públicas restará possível ao Poder

Judiciário, porém, em casos excepcionais, que se configuram quando os órgãos estatais

competentes, descumprindo encargos jurídicos decorrentes de direitos fundamentais de

primeira dimensão, comprometem com tal comportamento, a eficácia e integridade de

direitos individuais e coletivos. 304

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (contingenciamento orçamentário). 305 (grifo nosso)

Quando o Executivo realiza o contingenciamento de verbas destinadas a

Execução Penal na Lei Orçamentária Anual para que se atinja o superávit primário,

entende-se como violação primária do direito à reintegração social do condenado,

tornando impossível a manutenção de um sistema penitenciário hígido e garantidor de

direitos fundamentais.

302 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45. Voto Relator Celso de Mello. 303 CANOTILHO. Ibidem. p. 446. 304 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45. Voto Relator Celso de Mello. 305 Idem. Ibidem.

136

4.2 Limites à intervenção jurisdicional no campo de políticas públicas e críticas

pontuais quanto aos limites

Da forma como exposto o problema, cabe indagar até onde o Judiciário, no

exercício da jurisdição constitucional, está habilitado a efetuar o controle de políticas

públicas, evitando-se com isso que a exceção venha a se tornar uma regra, locupletando-

se, assim, indevidamente, das funções executiva e legislativa.

Conforme exposto por Eduardo Appio306, as consequências da adoção de

um modelo ilimitado de jurisdição e de implementação das políticas públicas pelo Poder

Judiciário, além de inconstitucional por usurpação de funções, traria consequências

políticas importantes.

Desta feita e por coerência ao que foi até aqui tratado, deve o Judiciário

também encontrar limites à este controle, incluídos neste limite o respeito a outros

direitos fundamentais trazidos pela Constituição.

4.2.1 Reserva do possível como restrição orçamentária

A reserva do possível é a escusa mais comum alegada pelo Poder Executivo

para a falta de efetivação de direitos fundamentais. Segunda Ana Paula de Barcellos,

estas “procuram identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos

disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas por eles supridas”.307

No que importa ao estudo aqui compreendido, a reserva do possível significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta – é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. 308

Essa colocação traz a baila a contradição existente entre os custos que os

direitos possuem ante a sua competente efetivação e a limitação orçamentária estatal. 306 APPIO, Eduardo. Controle Judicial de Políticas Públicas no Brasil. Curitiba: Juruá. 2008. p. 150. 307 BARCELLOS. Ana Paula. A eficácia juridica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar. 2002. p. 245. 308 Idem. Ibidem. p. 245.

137

Por óbvio, o orçamento estatal não é infinito e também por isso, nem todos os objetivos

a serem cumpridos pelo Estado podem ser alcançados e tornados plenos. A teoria da

reserva do possível utiliza-se exatamente deste ponto, do montante disponível de

recursos, dispostos no orçamento estatal, através da Lei Orçamentária Anual, para o que

o Estado atue na consecução dos vários fins determinados pelo texto constitucional.

A base desta teoria reside na Alemanha, onde o Tribunal Constitucional

alemão asseverou que ao administrado, cabe reclamar apenas o que o indivíduo pode

exigir de forma razoável da sociedade, existindo um limite fático ao exercício de

direitos fundamentais, justificando na disponibilidade material dos recursos.309 Isso

seria muito razoável se analisado o contexto em qual foi proposta. Na Europa, a

estabilidade econômica e a presença estatal são muito mais efetivas do que em nosso

contexto tupiniquim.

Andréas Krell310 aponta que a realidade social alemã torna menos exigível

por parte do cidadão, as prestações estatais na realização do wellfare state,

diametralmente oposto de nossas condições, onde nossa carta política elenca dentre os

objetivos fundamentais da República, a erradicação da pobreza e da marginalização e a

promoção o bem estar de todos, mas não cumpre, de forma ostensiva, seus próprios

objetivos.

Critica-se311 a atuação de juízes no exercício do controle de políticas

públicas, impondo uma conjectura que estes não possuiriam capacidade técnica para

apurar as necessidades sociais para a efetivação destas e assim restaria insuficiente a

atuação jurisdicional. Contudo, essa crítica perde força quando se analisa que o Poder

com conhecimento técnico e material sobre a necessidade de implementação e

estruturação de políticas, visando dar efetividade aos direitos fundamentais, o

Executivo, por natureza, não realiza um adequado planejamento administrativo, não

reservando de antemão o financeiro suficiente ou quando reservado, tredestinando esses

recursos sem fins plausíveis e justificáveis sob a ótica constitucional. 309 KRELL, Andréas Joachin. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional ‘comparado’. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 52. 310 Idem. Ibidem. p. 52. 311 “A título de controlar a execução de política pública, os juízes não somente anulam os atos administrativos praticados, mas alteram seu conteúdo, através de uma atividade substitutiva, promovendo medidas de cunho prático a partir de direitos previstos de modo genérico na Constituição. A intervenção judicial deixa de ter uma natureza exclusivamente invalidatória, passando a assumir uma função substitutiva, com o que se pode falar em atividade administrativa do Poder Judiciário”. APPIO, Ibidem. p. 138.

138

Não se torna aceitável, desta forma, que o responsável pela efetivação dos

direitos fundamentais priorize outras despesas ou aloque os recursos em outras áreas

que não sejam relacionadas com o cumprimento de mandamentos constitucionais. Para

isso, a discricionariedade encontra-se vinculada, não podendo argumentar-se na reserva

do possível como saída justificativa da ausência de recursos capazes de tornar efetivos

os direitos fundamentais.

A argumentação dos governos consiste em afirmar que o Poder Judiciário não pode atuar de forma positiva, considerando que a definição dos valores a serem destinados a um determinado programa social depende da vontade do Poder Executivo, o qual encaminha a lei orçamentária anual, e ao Congresso Nacional que tem a incumbência de aprova-la e mesmo de emenda-la. Ademais, o Poder Judiciário teria de indicar as fontes dos recursos destas novas despesas, o que esbarra na chamada reserva do possível, quando então os gastos dos governos estão previamente limitados por suas receitas. 312

O que dizer quando o Executivo contingencia anualmente a média de R$

200.000.000,00 do orçamento penitenciário e gasta cerca de R$ 1.179.048.087,86313

com publicidade, à pretexto de informação sobre suas atividades aos seus cidadãos?

Seria possível a argumentação contrária, admitindo-se como correta o gasto em

publicidade, secundário e supérfluo, frente aos direitos fundamentais? De forma muito

objetiva aponta-se para a inconstitucionalidade destas políticas, já que violadoras cabais

da dignidade humana, liberdade e integridade física do indivíduo preso.

Em decorrência disto, Dirley da Cunha aduz o reconhecimento de um

direito fundamental à efetivação da Constituição entendendo que o princípio da

aplicabilidade direta e imediata das normas constitucionais definidoras dos direitos

fundamentais se estende a todas as normas da Constituição, acarretando um superlativo

reforço jurídico da eficácia dessas normas.314

Tal princípio procura aprimorar a idéia de que a sociedade tem direito a

fruir de todos os direitos assegurados na Constituição, sem que se possam colocar

barreiras de índole interpretativa a limitar essa garantia.

312 Idem. Ibidem. p. 175. 313 Cf. Dados da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. De 2000 a 2009, gastou-se mais de dez bilhões de reais em publicidade governamental. Disponível em <http://contasabertas.uol.com.br/website/noticias/arquivos/109_Investimento%20em%20m%C3%ADdia_2000%20a%202009_Secom.pdf> Acesso em 16/03/2012. 314 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2008. p. 150.

139

Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior:

Uma teoria geral dos direitos fundamentais só logrará cumprir a sua vocação de construir uma dogmática moderna, transformadora e emancipatória, liberta, portanto, de ideologias velhas, ortodoxas e ultrapassadas, caso reconheça um direito fundamental à efetivação da Constituição, revelando e despertando esse direito que se encontra em estado latente em nossa Carta Magna e que pode ser deduzido, como um direito fundamental implícito, diretamente do regime (democracia social semidireta) nela consagrado e dos princípios fundamentais que informam a ordem jurídico-constitucional (Título I), com destaque para aquele que proclama a soberania popular (Art. 1°, parágrafo único), em decorrência da força expansiva desses princípios políticos constitucionalmente conformadores de um Estado Constitucional Democrático de Direito.315

Pelo exposto, note-se que a afirmação desse novo direito fundamental

decorre de um desvelar de seu conteúdo a partir de princípios expressos na Constituição,

como os princípios democrático e da dignidade da pessoa humana, este último, o

epicentro dos direitos fundamentais.316

Prossegue Dirley da Cunha Júnior desenvolvendo seu pensamento no

sentido que, a partir dessa constatação, seria possível concluir que todas as normas

definidoras de direitos fundamentais, sem exceção, têm aplicabilidade imediata,

independentemente de concretização legislativa, o que permite que o titular do direito

desfrute imediatamente da posição jurídica por ele consagrada, podendo e devendo

qualquer órgão do Poder Judiciário, quando provocado por qualquer meio processual

adequado, em caso de lacuna legislativa, removê-la completando o preceito consignador

de direitos diante do caso concreto. Ademais, em relação às normas que contemplam

direitos dependentes de prestações normativas ou fáticas do poder público, que careçam

da interpositio legislatoris ou de providências materiais, implicam na obrigação de

atuação legislativa e administrativa.317

Ademais, continua Dirley:

O direito fundamental à efetivação da Constituição apresenta-se – como todo direito fundamental – com dupla dimensão. Pela dimensão subjetiva, ele investe o cidadão da posição jurídica subjetiva (a) de exigir, até judicialmente, o desfrute imediato de todos os direitos e garantias

315 CUNHA JUNIOR. p. 265. 316 LEPORE. Ibidem. p. 62. 317 CUNHA JÚNIOR. Ibidem. p. 150-151.

140

fundamentais, sendo desnecessária, neste caso, a interpositio legislatoris, e (b) de exigir a emanação de normas ou atos materiais de concretização da Constituição, relativamente às normas não definidoras de direitos e garantias. Pela dimensão objetiva, ele irradia uma eficácia dirigente, impondo ao Estado o dever jurídico permanente de concretizar e realizar todas as normas constitucionais, incumbindo a todos os órgãos e a todas as entidades estatais o dever-poder de efetivá-las.318

Argumente-se ainda o impacto social causado, haja vista que a sociedade

como ente difuso, acaba sendo diretamente atingida por essa ausência de efetivação,

pois quando o recluso não é exposto ao processo reintegrativo, certamente sairá do

zoológico humano mais animalesco do que outrora. Isso demonstra a resposta a uma

questão quase irrefutável.

Quando o preso está recluso, ele está contido. A grande pergunta é: e

quando esse preso, não exposto a qualquer processo reintegrativo, violentado em seus

direitos mais básicos e fundamentais conforme exaustivamente narrado, estiver

novamente em liberdade, como será o encontro com a sociedade que lhe privara disso?

Normalmente, esse encontro acontece no sinal de trânsito e nessa hora, o preso não

estará mais contido e sim, estará contigo!319 Aí é que ocorre a prestação de contas

sociais.

Observe-se ainda, que inclusive a escassez de recursos públicos deve ser

reconhecida pelo Judiciário, a fim de que exista a diferenciação entre o que não é

possível ser efetivado, ante a falta de recursos, porém derivado da efetivação de outros

direitos fundamentais e o que não é possível ser efetivado, ante a falta de recursos, mas

dessa vez devido aos recursos estarem sendo distribuídos a outros setores de somenos

importância, que não direitos fundamentais. Portanto, “impõe-se distinguir um

argumento relacionado com a inexistência de recursos necessários a concretização de

um dever constitucional, em relação à alocação de recursos procedida contrariamente às

disposições constitucionais”.320

Assim, a partir do paradigma do novo Estado Social e, consequentemente, do reconhecimento de um conjunto de tarefas a serem desenvolvidas e

318 Idem. Ibidem. p. 265. 319 Palestra de Luiz Flávio Gomes, proferida em 02/09/2011 na Universidade do Estado de Minas Gerais. Sistema penitenciário brasileiro. Bomba relógio anunciada. 320 BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: problemática dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 241.

141

cumpridas por esse Estado, por imperativos da justiça social, resulta evidente que a satisfação destes “deveres” estatais condiciona a legitimidade do desempenho das funções do poder público, em especial de suas funções normativas (incluindo as legislativas), cujo controle de legitimidade cumpre, inevitavelmente, ao Poder Judiciário.321

Ainda como amor ao argumento, os defensores da reserva do possível

alegam que quando não há orçamento suficiente disponível para a consecução de

alguma política pública, se faz necessário abrir créditos extraordinários para que se

atenda a situações não previstas e que isto macularia a possibilidade de concretização de

outras áreas.322 Ainda que esse argumento tenha certa coerência, no caso da execução

penal não pode lograr êxito, já que conforme noticiado, o orçamento mínimo necessário

já vem previsto na LOA. Contudo, ano a ano, contingenciamento a contingenciamento,

este orçamento é dilapidado, restando muito pouco do previsto para a melhora do

sistema penitenciário, principalmente a partir dos recursos oriundos do FUNPEN.

Como lembrado por Krell, “onde o processo político (Legislativo,

Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetos

sociais nela implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude mais ativa na

realização desses fins sociais [...]”.323

Assim, a teoria da reserva do possível não encontra guarida frente ao nosso

modelo constitucional de proteção aos direitos fundamentais como forma de impedir e

justificar a ineficácia do administrador na concepção e realização de políticas públicas

que visem dar cumprimento e tornar efetivos os direitos mais básicos dos privados em

liberdade.

4.2.2 O mínimo existencial – Limite ao administrador e ao Poder Jurisdicional

A dificuldade financeira encontrada pelo Estado para implementar políticas

públicas encontra como paradigma orientador o direito ao mínimo existencial de cada

ser humano. Esse mínimo serve ainda como parâmetro para que se estabeleçam quais

321 CUNHA JUNIOR. Ibidem. p. 371. 322 APPIO. Ibidem. p. 175. 323 KRELL. Ibidem. p. 99.

142

direitos fundamentais, todos exigíveis prima facie, devem ser priorizados quando há

escassez de recursos.

O fundamento da teoria ao mínimo existencial está em proteger a dignidade

da pessoa humana a qual, segundo Bachof324, não reclama apenas a garantia da

liberdade, mas também um mínimo de segurança social já que, sem os recursos

materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana restaria

sacrificada.

Canotilho observa que a teoria ao mínimo existencial se associa à necessária

efetivação dos direitos prestacionais ou direitos de segunda dimensão que segundo

aporte teórico respeitável, aponta-os como direitos que possuem eficácia limitada.

Assim,

Das várias normas sociais, económicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem económica-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economics and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas.325

Com a devida vênia, além da aplicabilidade aos direitos prestacionais a

teoria ao mínimo existencial também se aplica, com maior relevância, aos direitos de

primeira dimensão, de status negativus, como forma de balizamento a atuação do

administrador na implementação de políticas públicas, limitando a discricionariedade

administrativa e portanto, determinando a aplicação mínima de recursos a tornar plenos

estes direitos, mas também, constitui-se como cláusula limitadora à atuação do

Judiciário, no sentido de direcioná-lo a determinar que o administrador aplique o

mínimo necessário à realização desses direitos, quando no momento excepcional do

controle da política pública.

Clémerson Clevé pontua de forma muito precisa,

O conceito de mínimo existencial, de mínimo necessário e indispensável, de mínimo último, aponta para uma obrigação mínima do poder público, desde

324 BACHOF, Otto apud BRAUNER, Arcênio. O ativismo judicial e sua relevância na tutela da vida. In: FELLET. Ibidem. p. 601. 325 CANOTILHO. Ibidem. p. 518.

143

logo sindicável, tudo para evitar que o ser humano perca sua condição de humanidade, possibilidade sempre presente quando o cidadão, por falta de emprego, de saúde, de lazer, de assistência, vê confiscados seus desejos, vê combalida sua vontade, vê destruída a sua autonomia, resultando num ente perdido no cipoal das contingências, que fica à mercê das forças terríveis do destino. Os direitos sociais, o princípio da dignidade humana, o princípio da socialidade (dedutível da Constituição que quer erigir um Estado democrático) autorizam a compreensão do mínimo existencial como obrigação estatal a cumprir e, pois, como responsabilidade dos poderes públicos.326

Desta forma, quando o administrador desenvolve políticas públicas que

versem sobre direitos fundamentais, cabe à ele interpretar327 também a Constituição,

efetivando de forma máxima os direitos fundamentais e na questão principal deste

trabalho, tornar auferível o direito à reintegração social.

De outra sorte, este mesmo administrador insiste na utilização de escusas

orçamentárias, baseando seu discurso na ausência de recursos suficientes, viabilizando

ao Judiciário exercer seu controle, garantindo aos privados de liberdade o respeito ã

dignidade humana, entendida nesse ponto como o núcleo básico ou essencial dos

direitos humanos fundamentais e que tornam assegurável a própria sobrevivência

humana.

Esse núcleo básico dos direitos humanos, é pra Krell “o referido ‘padrão

mínimo social’ para a sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente

de saúde, o acesso à uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau

e a garantia de uma moradia”,328 o que não se distancia das prestações e dos direitos

asseguradas na lei execucional. No mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos define a

questão,

Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá leva-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar o seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode

326 CLÈVE, Clèmerson Merlin . A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 8, p. 151-161, 2003. p. 160. 327 Cf. HÄBERLE. Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. 328 KRELL. Ibidem. p. 63.

144

ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.329 (grifos nossos)

4.2.3 Proporcionalidade e o dever de proteção do Estado

Num dito Estado democrático, está-se sob o regime direto da força

normativa da Constituição, tanto para o processo legislativo infraconstitucional, como

para a administração dos interesses estatais. A força normativa da Constituição expõe o

papel da constituição não sendo este, apenas, a mera expressão da realidade de seu

tempo, mas, graças ao seu caráter normativo, ordena e conforma a realidade social e

política. “A constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa

pretensão de eficácia”.330 Nessa esteira, o Estado democrático de direito se torna um

novo paradigma protetivo quando assume para si a política integral de proteção dos

direitos fundamentais.

Assim, muito além da proteção negativa que se faz sobre os atos do Estado,

estipulando garantias como as de primeira dimensão, hoje deve ser erguida a bandeira

da proteção positiva de direitos fundamentais, agora por parte do Estado. Tal fato é

decorrente da evolução do Estado e da missão assumida pelo Direito.

O Estado – como bem lembra Dietlein – passa, de tal modo, a assumir uma função de amigo e guardião – e não de principal detrator – dos direitos fundamentais. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais.331

329 BARCELLOS. A eficácia juridica dos princípios constitucionais. p. 245-246. 330 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Die normative kraft der verfassung. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 16. 331 SARLET. Ingo. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais. n. 12. Ano 2003. p. 104.

145

Hoje, essa concepção de Direitos fundamentais apenas como protetivos

contra o abuso estatal necessitam ser revisitadas em uma análise não apenas das

garantias negativas contra o poder do Estado, mas também, contra a agressão

proveniente de outros indivíduos. É função do Direito, portanto, a proteção contra atos

estatais e contra atos individuais. Cabe falar-se num rol positivo de garantias que visem

proteger o indivíduo e a comunidade contra violações perpetradas por outros indivíduos.

O direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmedurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os membros dos abusos do indivíduo.332

A função dos direitos fundamentais, lembra Feldens333, manifesta-se na

dedução de deveres de proteção, consistente na intervenção ativa do Estado na

realização dos direitos fundamentais.

Assim, temos a dupla proteção dos direitos fundamentais. A proteção

positiva e a proteção negativa. “Na verdade, a tarefa do Estado é defender a sociedade, a

partir da agregação das três dimensões de direitos – protegendo-a contra os diversos

tipos de agressões. Ou seja, o agressor não é somente o Estado. O Estado não é o único

inimigo”.334

O dever de proteção corresponderá a um dever de legislação apenas quando a proteção do direito exigir imperativamente um ato legislativo. Assim, o dever de proteção como tarefa de proteção é aquele imposto por toda norma constitucional que defina direitos fundamentais (ex.: o Estado tem a tarefa de proteger a vida, a integridade física, a propriedade, etc.). Já o dever de proteção como dever de atuação consiste num dever concreto de proteção que decorre da tarefa de proteção, que nele se converte em determinadas situações concretas. Finalmente, o dever de proteção como dever de legislar surge quando o dever concreto de proteção reclama definitivamente a emanação da legislação, porque só por esta via é possível, efetivamente, a proteção demandada pelo direito em questão. Desse modo, percebe-se que "o cerne da questão consiste em saber quando e como a tarefa de proteção se transmuta em dever de proteção e este em dever de legislação.335

332 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 76. 333 FELDENS. Ibidem. p. 73. 334 STRECK, Lenio. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: <www.leniostreck.com.br>. Acesso em: 15 fev. 2010. p. 13. 335 CUNHA JÚNIOR. Ibidem. p. 377.

146

Para que se torne possível uma nova releitura de proteção de direitos de

forma adequada com base na Constituição, se faz necessário que o modelo clássico de

proteção negativa há muito superado, revelava apenas uma posição unilateral do

princípio da proporcionalidade, onde se direcionava para a proteção contra os excessos

estatais ou o que o Tribunal Constitucional Alemão chama de Übermassverbot, ou seja,

a proibição do excesso.

Na doutrina e jurisprudência alemãs, a proporcionalidade é concebida como princípio inerente ao Estado de Direito, figurando como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso onde possam ver-se lesionados direitos e liberdades fundamentais, qualificando-se, assim, como máxima constitucional. No Brasil, o STF inclina-se por vislumbrar a proporcionalidade como postulado constitucional que tem a sua sedes materiae na disposição constitucional que disciplina o devido processo legal, em sua perspectiva substancial (art. 5, inc. LIV, da CF).336 (grifos no original)

Streck afirma337 que o princípio da proporcionalidade dever ser visto apenas

como um modo de explicar que cada interpretação deve ser razoável para evitar

interpretações discricionárias e arbitrárias. Visto pela lente do positivismo resulta que os

maiores problemas de choque de valores eram colocados para que o juiz resolvesse de

forma discricionária. Visto sobre a lente do neoconstitucionalismo ou pós-positivismo

esses mesmos problemas passam a ser encarados pela ponderação principiológica,

conforme argumentou Alexy. Essa questão interpretativa é importante no sentido de que

se estabeleçam parâmetros ao critério de ponderação quando da aplicação do princípio

da proporcionalidade.

Desta feita, não cabe ampla discricionariedade ao administrador nem ao

juiz na determinabilidade, quando do julgamento de possíveis violações aos direitos

fundamentais ou aos bens jurídicos protegidos. Essa discricionariedade desaparece

quando a Constituição elegeu determinados bens como carentes de proteção. Disto

resulta inequívoca vinculação entre os deveres de proteção de direitos fundamentais,

legitimando a intervenção do Judiciário, quando necessário, para que se restabeleça o

equilíbrio da situação.

336 FELDENS. Ibidem. p. 82. 337 Idem. Ibidem.

147

O Estado, por meio de seus órgãos ou agentes, pode acabar por afetar de

modo desproporcional um direito fundamental. Estas hipóteses correspondem às

aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de

constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais.

Por outro lado, o Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que - como contraponto a assim designada proibição de excesso - expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). 338

A própria Constituição revela esta dupla face de proteção dos direitos

fundamentais, quando num Estado Democrático de Direito, visualizados pela proibição

do excesso (Übermassverbot) e pela proibição da deficiência (Untermassverbot). Essa

nova divisão paradigmática, nem sempre observada, deveria ter produzido profundas

alterações nos critérios utilizados pelo legislador infraconstitucional quando da proteção

de direitos eleitos constitucionalmente.

A efetiva utilização da Untermassverbot (proibição de proteção deficiente ou insuficiente) na Alemanha deu-se com o julgamento da descriminalização do aborto (BverfGE 88, 203, 1993), com o seguinte teor: “O Estado, para cumprir com o seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes de caráter normativo e material, que permitam alcançar – atendendo à contraposição de bens jurídicos – uma proteção adequada, e como tal, efetiva (Untermassverbot). (...) É tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A Constituição fixa a proteção como meta, não detalhando, porém, sua configuração. No entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência (...). Considerando-se bens jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis. (...)”339 (grifos no original).

338 SARLET. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. p. 107. 339 STRECK, Lenio. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou “Qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes”? Disponível em: <www.leniostreck.com.br>. Acesso em: 15 fev. 2010. p 7.

148

Entendido nessas duas perspectivas, a proporcionalidade aponta a exigência

de adequação entre o meio e o fim causando a menor restrição possível de direitos

fundamentais. Isto possibilita ao Judiciário o controle da atividade administrativa e

legislativa de políticas públicas quando estas desrespeitam uma atuação proporcional na

efetivação constitucional.

Esta nova face do Estado e do Direito decorre também – e fundamentalmente – do fato de que a constituição, na era do Estado Democrático de Direito (e Social) também apresenta uma dupla face, do mesmo modo que os princípio da proibição de excesso (Übermassverbot) e proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ela contém, ensina Ferreira da Cunha, os princípios fundamentais de defesa do indivíduo face ao poder estadual – os limites ao exercício do poder em ordem a eliminar o arbítrio e a defender a segurança e a justiça nas relações cidadão-Estado (herança, desenvolvida e aprofundada, da época liberal – da própria origem do constitucionalismo), em especial em relação ao poder penal. Mas, por outro lado, preocupada com a defesa ativa do indivíduo e da sociedade em geral, e tendo em conta que os direitos individuais e os bens sociais para serem efetivamente tutelados, podem não bastar com a mera omissão estadual, não devendo ser apenas protegidos face a ataques estaduais, mas também em face a ataques de terceiros, ela pressupõe (e impõe) uma atuação estadual no sentido protetor dos valores fundamentais (os valores que ela própria, por essência, consagra) (grifos no original). 340

O Judiciário deve guiar-se, assim, pelo princípio da proporcionalidade com

o fim de observar se os meios empregados são eficientes para a realização de políticas

públicas, garantindo a máxima eficácia dos direitos fundamentais.

4.2 Políticas Públicas e o processo reintegrativo por meio da Execução Penal

A execução penal bem efetivada torna possível a criação de um ambiente

capaz de levar o infrator a repensar seus atos criminosos ensejando a possibilidade de

uma vida pós-cárcere ambientada no respeito às normas sociais de conduta. Para isso, as

políticas públicas direcionadas à execução penal assumem um papel preponderante

nessa perspectiva reintegrativa.

Essa intersecção entre direito e a política ou direito e a moral foi bem

delimitada por Kelsen outrora quando apontou a separação de ambos. Hoje o que se vê é

340 STRECK. Bem jurídico e Constituição. p. 17

149

a necessária releitura deste panorama valorativo341 com o intuito de tornar efetivos os

direitos fundamentais da pessoa encarcerada.342 A política deve observar os interesses

da coletividade, distribuindo o poder e orientando para a formação de um modelo de

atuação estatal, ao passo que “ao direito cabe conferir expressão formal e vinculativa a

esse propósito, transformando-o em leis, normas de execução, dispositivos fiscais,

enfim, conformando o conjunto institucional por meio do qual opera a política”.343

Canotilho ensina que uma das principais funções da Constituição de um

Estado é a de ser a revelação normativa do consenso fundamental de uma comunidade

política, relativamente a princípios, valores e ideias que servem de padrões de conduta

política e jurídica nessa comunidade. Por isso, a Constituição confere legitimidade a

uma ordem política no sentido de constituí-la segundo princípios justos com uma

indispensável bondade material e conferir ainda legitimação aos respectivos titulares do

poder político, vinculando juridicamente os responsáveis pelo poder assevera que a

articulação destas duas dimensões, da legitimidade e legitimação, implicam que a

Constituição não seja considerada como uma simples carta ou folha de papel, conforme

afirmado por Lassale, resultante de relações de poder ou da pressão de forças sociais.344

Desta legitimidade observada por Canotilho é que se justificam as ações

governamentais endereçadas a certas finalidades, as políticas públicas, que devem

sempre observar a promoção e proteção dos direitos humanos fundamentais pelo

Estado.

A elaboração dessas políticas deve estar em consonância com os ditames da Constituição e dos demais instrumentos normativos do ordenamento jurídico, bem como deve sempre ter como finalidade o interesse público, e a promoção e proteção de direitos, em especial aqueles reconhecidos como direitos humanos. 345

341 Cf. os trabalhos paradigmáticos de ALEXY. Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008; DWORKING. Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press. 1978. 342 Ana Paula de Barcellos afirma com total propriedade que “Os Poderes Públicos estão submetidos à Constituição, como uma decorrência direta da noção de Estado de Direito, por força da qual o exercício do poder político encontra limites em normas jurídicas. À Constituição, é certo, não cabe invadir os espaços próprios da deliberação majoritária, a ser levada a cabo pelas maiorias democraticamente eleitas em cada momento histórico. Umas das funções de um texto constitucional, porém, é justamente estabelecer vinculações mínimas aos agentes políticos, sobretudo no que diz respeito à promoção dos direitos fundamentais.” Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. p. 22 343 BUCCI, ibidem. p. 37. 344 CANOTILHO. p. 1438-1439. 345 AITH. Ibidem. p. 219.

150

O Estado, ao positivar os direitos fundamentais de primeira dimensão,

especialmente, o fez como razão das arbitrariedades ocorridas durante o Estado

Absolutista elevando a categoria de direitos fundamentais as liberdades. Neste processo,

o legislador se ocupou de definir alguns bens existenciais como bens jurídicos que eram

constantemente atacados pelo Príncipe.

É evidente que a perspectiva liberal-clássica, própria do Estado em formação no longínquo século XIX, fundava-se na contraposição Estado-Sociedade, sendo a função da lei meramente ordenadora (o que não é proibido é permitido), a partir da tarefa-função de defender o débil cidadão contra a “maldade” do Leviatã. Afinal, a revolução francesa – berço do Estado Liberal – representava o triunfo do privado. A burguesia destronara o velho regime exatamente para recuperar o poder político do qual abrira mão para o fortalecimento do seu poder econômico, no nascedouro do Estado Moderno-Absolutista.346

Assim, os direitos humanos para serem protegidos exigem um ambiente

social dotados de regras garantidoras da convivência e, sem exceção, do respeito à

dignidade.347 Esse respeito será de observância obrigatória ao Estado quando da

organização das políticas públicas necessárias a esta concretização, tornando-se

vinculativa, além de orientadora.

[...] a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições com o elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. 348

Esta organização estatal na busca de modelos garantidores dos direitos é

fundamentada pela Constituição, a qual organiza o exercício do poder, num claro papel

de legitimação dos entes responsáveis pelo exercício deste. “É a Constituição que funda

o poder, é a Constituição que regula o poder, é a Constituição que limita o poder”. 349

346 STRECK, Lenio. O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Disponível em: <www.leniostreck.com.br>. Acesso em: 15 fev. 2010. p. 15. 347 AITH. Ibidem. p. 226. 348 HESSE. Ibidem. p. 15 349 CANOTILHO. Ibidem. p. 1440.

151

Partindo dessa premissa, a Constituição será sem dúvida a fonte de

observância obrigatória de qualquer política pública perpetrada pelo Estado, seja

legitimando uma política, seja limitando outra, sendo considerada por Canotilho como

uma ordem fundamental,

[...] no sentido de constituir a pirâmide de um sistema normativo que nela encontra fundamento. Nesse sentido, a constituição aspira, como se viu, à natureza de normas das normas (cfr. art. 112.º), pois é ela que fixa o valor, a força e a eficácia das restantes normas do ordenamento jurídico (das leis, dos tratados, dos regulamentos, das convenções colectivas de trabalho, etc.).350 (grifos no original)

Nesse sentido, a atuação do Estado no planejamento e execução de políticas

públicas será realizada através de diversos veículos normativos sempre fundados nessa

ordem superior alçada pela Constituição e com isso pelos direitos humanos

fundamentais limitando o “Estado a elaborar e planejar as políticas públicas de acordo

com as diretrizes constitucionais e dentro dos critérios definidos pelas regras de

reconhecimento traçadas pela própria Constituição”. 351

Onde quer que a lei termine, a tirania começa, se a lei for transgredida para dano de outrem. E aquele que exceda em autoridade o poder que a lei lhe conferiu, e lance mão da força de que dispõe para fazer ao súdito o que a lei não lhe permite, deixa de ser magistrado e, já sem autoridade, poderá sofrer oposição como qualquer um que viole o direito de outrem.352 (grifo nosso)

As políticas públicas tornam-se, com isso, um instrumento de realização, de

adequação da constituição jurídica à constituição real onde, nos dizeres de Hesse as

relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa

determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem,

tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de poder, formando a

Constituição real do país. Isto fará que a Constituição adquira força normativa, na

350 Idem. Ibidem. p. 1441. 351 AITH. Ibidem. p. 226. 352 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2006. p.139.

152

medida em que logra realizar esta pretensão de eficácia, também através de políticas

públicas. 353

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - , não só a vontade de poder (Wille zur Match), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verssung).354 (grifos no original)

As políticas públicas se tornam, com a observância da vinculação

constitucional, instrumentos destinados a alterar as relações sociais existentes.

Inevitável por isso, desvincular o tratamento destas com o orçamento, inferindo Ricardo

Lobo Torres que “o relacionamento entre políticas públicas e orçamento é dialético: o

orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das políticas públicas;

mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e princípios

como o do equilíbrio financeiro”355, o que com a devida venia não se apresenta como o

mais correto.

O que já se observou em capitulo supra é a completa tredestinação

orçamentária relativa à execução penal praticada pelo Estado. No orçamento

penitenciário, em especial aquele previsto no sistema arrecadatório do FUNPEN,

integram-no todas as despesas que deverão ser realizadas, conforme previsto pela Lei n.

4.320/1964 a qual estatuiu as normas gerais de direito financeiro, bem como as receitas

públicas correspondentes ao ingresso procedentes da arrecadação de tributos e outras

fontes.

Segundo Aliomar Baleeiro, orçamento se constitui como a autorização dada

ao Executivo, pelo Legislativo para que se realizem gastos das receitas no cumprimento

dos programas, serviços e encargos governamentais, devendo o mesmo prever as

353 HESSE, Ibidem. passim. 354 HESSE. Ibidem. p. 19 355 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. O orçamento na Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Vol. 5, p. 110.

153

políticas públicas pensadas e elaboradas para o atendimento das exigências da

Constituição.356

As leis orçamentárias, como os próprios julgados reconhecem, são leis. E, como tais, possuem força de lei para todos os efeitos. É pelo orçamento que o poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo a execução das despesas públicas e outros fins dotados na política econômica adotada no país, assim como a arrecadação das receitas já criadas. Assim como, através de uma lei ou ato normativo, pode-se definir uma política habitacional, por exemplo[...] (grifo nosso). As leis orçamentárias, por exemplo, tratam de definir a destinação dos recursos públicos para a execução de programas governamentais, baseados em políticas públicas definidas em atos normativos ou em leis e voltados à promoção do desenvolvimento econômico e social do país. 357

Nesse sentido, quando o Executivo se utiliza do contingenciamento de

receitas da Execução Penal para que o superávit primário seja alcançado, expõe-se uma

violação frontal à lei orçamentária, bem como ao processo de efetivação dos direitos

fundamentais dos encarcerados, especialmente a reintegração social.

Será possível imaginar um processo de reintegração hígido, suficiente e

satisfatório, que apresente resultados positivos quando se analisam os orçamentos

destinados à execução de pena e se nota que metade, pelo menos, da previsão

orçamentária não é integralmente investida pelo Executivo. Num universo médio de R$

400.000.000,00 anuais cerca de R$ 200.000.000,00358 são desviados para que se

componham interesses escusos e pouco justificados.

Desperdício e ineficiência, precariedade de serviços indispensáveis à promoção de direitos fundamentais básicos e sua convivência com vultuosos gastos em rubricas como publicidade governamental e comunicação social não são propriamente fenômenos pontuais e isolados na Administração Pública brasileira. 359

O retórico discurso oficial praticado pelo Executivo quando se analisa o

montante de recursos execucionais é direcionado sempre à falácia da insuficiência.

356 BALEEIRO. Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16 ed. atual. Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 411. 357 AITH. Ibidem. p. 243. 358 Cf. Capítulo 3. Item 3.3.1. 359 BARCELLOS. Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Ibidem. p. 20.

154

Mesmo os teóricos360 das ciências criminais vêm de encontro com esse entendimento

afirmando que a solução para o excesso da população carcerária seria a adoção de um

rol maior de alternativas penais. Isso não passa de um grande engodo midiático

autorizado e estimulado por aqueles que não possuem interesse (leia-se, preso não vota,

políticas penitenciárias não estimulam votos, falar de preso não aumenta a votação) em

ver as mazelas sociais penitenciárias resolvidas.

Nota-se que o orçamento penitenciário é mal utilizado, mal direcionado e

na maioria das vezes desviado para que se atinjam outros interesses. Isso faz com que a

superpopulação carcerária e com ela as constantes violações de direitos humanos

fundamentais continuem a ser diuturnamente vilipendiadas.

A boa utilização do orçamento penitenciário, em especial o proveniente do

FUNPEN, o qual possui como destinação implementar a reforma e modernização do

sistema carcerário, é de suma importância para a que a reintegração social do preso

deixe a utopia dos teóricos e se realize no plano existencial.

Para isso, a adoção de políticas públicas voltadas a essa finalidade se mostra

como a principal alternativa já que noticiamos que o maior problema na incompletude

da reintegração adequada se dá, prima facie, por problemas financeiros. E diz-se prima

facie, pois outros ainda são integrantes desse complexo processo, como a falha em

outras instancias sociais de controle, a co-responsabilidade estatal por exemplo, mas que

fogem à pesquisa proposta.

Se as políticas públicas assumem esse papel primário de solução dos

conflitos, se faz necessário que sejam eficazmente direcionadas ao cumprimento dos

ditames da lei execucional e por fim, respeitando a dignidade humana.

Contudo, questiona-se: Por que, existindo orçamento disponível ocorre o

contingenciamento? Por que, o sistema penitenciário está cada vez mais superlotado e

ineficaz? Por que, o respeito aos direitos humanos fundamentais se tornam cada vez

mais meros discursos sem força suficiente de coerção estatal? A resposta a essas

perguntas parecem muito claras quando se analisam os interesses colocados em conflito,

em geral, a manutenção do poder, tendo por principal instrumento para tanto, o voto

popular. Quando o desinteresse social por determinada temática ganha relevância, o

Estado (ou aqueles que se encontram legitimados para atuarem em seu nome) deixa de 360 BINTENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativa; DOTTI. René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1998.

155

dar importância necessária a esta temática e o resultado disso, quando se fala em

reintegração social do preso é o desrespeito aos seus direitos mais básicos.

Bobbio analisando o interesse do poder num estado democrático pontua,

“Joseph Schumpter, acertou em cheio quando sustentou que a característica de um

governo democrático não é a ausência de elites mas a presença de muitas elites em

concorrência entre si para a conquista do voto popular”.361

Se o Estado, expresso pelo Poder Executivo não se preocupa em efetivar os

direitos humanos fundamentais dos presos expressos tanto na Lei de Execução Penal,

bem como na Constituição Federal através de suas próprias atribuições, cabe este papel,

então, ao Judiciário, como um dos processos regulados de eleição e realização de

políticas públicas visto que quando determinada política pública envolver a efetivação

de direitos fundamentais, notoriamente ligados à dignidade humana, estar-se-á diante de

uma norma que vincula este Poder.

Cabe salientar que a arrecadação de receitas deve estar diretamente relacionada à previsão de gastos públicos, esta arrecadação além de prever os gastos dos próprios órgãos da Administração Pública deve se voltar para concretização das políticas públicas – visto que ao ser delegado poderes ao Estado espera-se uma contraprestação que é a satisfação das necessidades da coletividade – mas é claro respeitando o princípio da não-vinculação da receita proveniente de impostos, pois poderia limitar o Poder Executivo na sua função administrativa (mas a própria Constituição nos traz exceções no que diz respeito a gastos em educação e saúde). A elaboração e a execução do orçamento-programa a fim de traçar as políticas públicas é função precípua do Poder Executivo com aprovação do Legislativo, mas quando estes se mostram ineficientes outros instrumentos devem ser disponibilizados e entre eles encontra-se o controle judicial das políticas públicas realizado pelo Poder Judiciário.362

Esta almejada efetividade dos direitos fundamentais dos presos, somente

será alcançada através de políticas públicas adequadas caso haja disponibilidade

orçamentária para tanto. Como observado, previsão de disponibilidade há, mas

estratagemas técnicos são utilizados a fim de impossibilitar tal realização. Esse processo

de destinação orçamentária é identificada através da realização de cálculos acerca dos

possíveis resultados de uma decisão para atender determinadas metas e

consequentemente a satisfação de uma necessidade coletiva.

361 BOBBIO, O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. p. 27. 362 GUIMARÃES, ibidem.

156

CONCLUSÃO

Os direitos do homem, naturais e indissociáveis de seu ser foram,

paulatinamente, ganhando positivação na ordem constitucional de cada Estado,

notoriamente após as grandes declarações do século XVIII, mas principalmente, após a

segunda guerra mundial, onde o homem vivenciou o período mais negro de sua história

moderna.

As violações ocorridas desse fato se tornaram tão insuportáveis a ponto de

forçar a inclusão de um rol protetista dos direitos mais básicos do ser humano dando à

estes o caráter de fundamentalidade, ou seja, elencando-os como os mais importantes e

carecedores de proteção, bem como fornecendo instrumentos legais para sua proteção e

ainda, vinculando o seu principal violador, o próprio Estado, a criar reais possibilidades

para esta proteção.

Como anteparo fundamental de toda essa proteção ficou, principalmente no

cenário nacional, a dignidade da pessoa humana, entendida como um princípio, expondo

os valores fundamentais de orientação à atuação estatal e também dos indivíduos, mas

também entendida como regra, determinando em várias situações, atuação efetiva do

ente protetor para que se atinja a efetividade desta proteção, tornando este direito real,

deixando de figurar apenas no plano teórico.

A dignidade humana pressupõe, portanto, um valor supremo do homem,

entendido como o fim último objetivado pelo Estado, tornando-se o principal

componente desta estrutura valorativa.

Assim, primeiramente foram protegidos os direitos de liberdade ou

individuais, contra a violência estatal, posteriormente os direitos prestacionais, onde o

deve buscar soluções para auxiliar materialmente a consecução desses direitos e por

último, protegeu-se a própria espécie humana contra si própria, nos direitos de

solidariedade, bem como floresceu a busca pela solução mais rápida e pacífica dos

conflitos, expostos pelos direitos coletivos.

Os últimos, concebidos como forma de solução célere dos litígios e a fim de

tonar a aplicação da lei mais homogênea, frente ao número incomensurável de

demandas individuais, possibilitou as demandas de massa preferencialmente às

demandas individuais, por natureza, mais demoradas e diversas em seus resultados.

157

Desta possibilidade de se demandar coletivamente, nascida

preponderantemente da proteção material coletiva de determinado direito, deu-se início

uma forma particular de busca da tutela jurisdicional. Como forma de facilitar a solução

dos conflitos e violações a direitos individuais, mas que coletivamente foram violados, é

possível que se fale em tutela coletiva de direitos individuais, uma forma célere e

objetiva, com base no interesse social em sua resolução e de tratar conflitos que antes,

poderiam ser protegidos apenas caso a caso, violação a violação, indivíduo a indivíduo.

A pena privativa de liberdade, passou ao longa da história por profundas

alterações, tanto em sua filosofia de necessidade, como na forma em que é aplicada.

Nasceu como violação ao corpo do homem e hoje se consubstancia na segregação

expiatória, na demonstração social da força estatal, mas principalmente, e como

característica mais importante, assume o papel de preparar o agressor para o retorno ao

convívio social após o período de segregação.

Este retorno ao convívio social tem se mostrado muito dificultoso, por

variadas razões apresentadas, mas notoriamente pela ausência de interesse estatal em

cumprir a determinação do legislador infraconstitucional que determina as formas pelas

quais as penas devem ser cumpridas, demonstrado ao indivíduo, as possibilidades que

estão a sua frente, permitindo uma vida digna e não violadora dos direitos de outrem.

Tal desinteresse reflete necessariamente no valor destinado pelo Estado no

cumprimento das determinações legais e faz com que, sem dinheiro suficiente, a

reintegração social se torne quase mítica.

A demanda pela atuação da sanção estatal pela violação dos bens

assegurados vem aumentando a cada dia. Isto está exposto pelo grande número de

indivíduos submetidos às amarras do sistema penitenciário, levando o país ao quarto

lugar no número de presos no mundo.

Esse resultado não pode ser interpretado, exclusivamente, com base na

pobreza da população e na má distribuição de renda. Mas é de se levar em conta que a

grande maioria dos clientes deste sistema punitivo são indivíduos expostos a graves

problemas socializatórios, incluídos nesse panorama a ausência de recursos financeiros,

a deficiência na formação educacional, a desestruturação familiar, fazendo com que o

mínimo de sua dignidade, não seja respeitada pelo ente estatal.

158

O reflexo disso recai sobre a população, violada diariamente em seus

direitos e recai ainda, sobre o infrator, exposto à mão forte do Estado representada pela

grade de ferro.

Nesse passo, é possível a atribuição também ao Estado e à sociedade da

responsabilidade, na maioria das vezes, pela atitude criminosa. Contudo, vem o Estado

lavando as mãos para os problemas advindos de sua própria punição.

Se o Estado é o responsável pela sanção aos infratores; se o Estado é,

também, responsável pela socialização deficiente pela qual estes foram expostos; é de se

exigir deste mesmo Estado que tome as atitudes necessárias para restabelecer a ordem

retirada pela prática do crime, punindo o infrator, mas punindo-o de um forma útil, à ele

e à sociedade.

O discurso apresentado pelo Estado não tem demonstrado essa preocupação.

Isso pode ser aferido pelas condições às quais as unidades prisionais estão afeitas. A

prisão é sempre o último local a ser lembrado, quando se fala em aplicação de recursos

e cumprimento de deveres.

Tem-se a prisão como um tapete, onde a sujeira (social) é lançada,

esquecendo-se que a qualquer dia, esta sujeira retornará ao convívio dos demais

socializados.

Se ao Estado é imposto, pela Constituição, o processo reintegratório, já que

à ele apenas cabe o jus puniendi, deve o mesmo respeito aos direitos assegurados

constitucionalmente e por isso, também, ao indivíduo privado de sua liberdade. A Lei

de Execução Penal não traz, em momento algum, bem como nem os direitos do

indivíduo preso, assegurados como cláusula pétrea pela Constituição, que este deve ser

privado de outros direitos, excetuados a liberdade.

Se ao preso é assegurado todos os direitos, quiçá a sua dignidade. A prisão

no Brasil é um dos principais violadores da dignidade humana e assim não pode

continuar. Os direitos humanos fundamentais, guiados pelo seu mais notório princípio –

a dignidade humana – estão aptos a vincular o ente estatal a que cumpra e proteja estes

direitos.

Não pode o Estado se utilizar de desculpas orçamentárias para tornar

inoperante a dignidade humana. Não pode o Estado, mesmo com previsão orçamentária,

159

vilipendiar seu próprio orçamento sem motivo concreto algum, violando de forma

obtusa a dignidade das pessoas privadas de liberdade.

E se este Estado, mesmo vinculado por esse ideal, em suas opções de

aplicação orçamentária não cumprir tais determinações, passa a ter o Judiciário, numa

clara missão de contrapeso, determinar que se faça, que se cumpra, que se efetivem os

direitos fundamentais.

Não é mais aceitável, em pleno século XXI, que o Estado continua a ser

violador da liberdade e existência do ser humano. E quando essa violação se der contra

indivíduos colocados sob seus cuidados, mister que se cumpra as determinações

maiores dos direitos fundamentais, possibilitando ao preso, opções que outrora foram

lhe subtraídas, tornando-o útil e de forma difusa aumentando a segurança social.

160

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AITH, Fernando. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de

consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos

humanos. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o

conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São

Paulo: Malheiros, 2008.

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo

ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.

ALVIM, J. E. Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública. Jus

Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003.

ANDRADE, Adriano; MASSON, Cléber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e

coletivos esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2011.

APPIO, Eduardo. Controle Judicial de Políticas Públicas no Brasil. Curitiba: Juruá,

2008.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios

jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.

BACHOF, Otto apud BRAUNER, Arcênio. O ativismo judicial e sua relevância na

tutela da vida. In: FELLET. André Luiz Fernandes et al. As novas faces do ativismo

judicial. Salvador: Jus Podivm, 2011.

BALEEIRO. Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16 ed. atual. Dejalma de

Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. rev.

atual. São Paulo: Malheiros, 2009.

BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social. Uma abordagem crítica

da “reintegração social” do sentenciado. Tradução: Escola Penitenciária DEPEN.

http://www.eap.sp.gov.br/pdf/ressocializacao.pdf.

161

BARCELLOS. Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de

direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço

democrático. Revista de Direito do Estado. nº 3. 2006. 17-54, 2006.

_____. A eficácia juridica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar,

2002.

BARRETO, Tobias apud LYRA, Roberto. Direito penal científico: criminologia. 2 ed.

Rio de Janeiro: Konfino, 1977.

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 7

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Grandra da Silva. Comentários à

Constituição do Brasil. v. I. São Paulo: Saraiva, 1988.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Bauru: Edipro,

1ª ed, 2003.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do direito

material sobre o processo. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009.

BENTHAM, Jeremias. El panótico. El ojo del poder. Genealogía del poder. Madrid:

Las Ediciones de La Piqueta. s.d.

BIANCHINI, Alice, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, GOMES, Luiz Flávio.

Direito penal: introdução e princípios fundamentais. 2 ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2009.

BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria geral da pena. São Paulo: Saraiva,

2010

BITENCOURT. Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. 4ª

ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

_____. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Saraiva. 2010.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho;

apresentação de Celso Lafer. Nova ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

_____. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6 ed. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1986.

162

BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: problemática dos

Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo

Horizonte: Fórum, 2007.

BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2011.

BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris Editor, 1993.

BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. I.

Digesto, 48, cap. 9º.

BUCCI, Maria Paula Dallari. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas:

reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. 8

reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2000.

CARVALHO, Salo. Penas e Garantias. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2008.

CLÈVE, Clèmerson Merlin . A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim

Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 8, p. 151-161, 2003.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo:

Saraiva, 1999.

COSTA, Helena Regina Lobo da. Dignidade humana. Teorias de prevenção geral

positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. 2 ed.

rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

DE PAULA, Daniel Giotti. Ainda existe separação de poderes? A invasão da política

pelo Direito no contexto do ativismo judicial e da judicialização da política. In

FELLET, André Luiz Fernandes et al. As novas faces do ativismo judicial. Salvador:

Jus Podivm, 2011.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3

ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

163

DOTTI. René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1998.

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. [S. l.]: Global Editora: 1987.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2010.

FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2008.

FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de

1988.v. I. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

_____. Manuel Gonçalves. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n.

29. 1988.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Trad. Órizon Carneiro Muniz. 2ªed. Rio de Janeiro:

Imago, 1995, v. 13.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora

Perspectiva, 1978.

_____. Vigiar e punir. História de violência nas prisões 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal.

Parte Geral. v. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

_____. Criminologia. v. 2. 6 ed. refor. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2008.

GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência nas Ações Coletivas. São Paulo:

Saraiva, 1995.

GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação da

liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Natureza jurídica da execução penal. p. 7. In Execução

penal. Coord. Ada Pellegrini Grinover e Dante Busana. São Paulo: Max Limonad, 1987.

GUIMARÃES, Renata Catacci. Controle judicial das políticas públicas e a atuação do

Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais. Conteúdo Jurídico.

Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29191>. Acesso

em: 22 fev. 2012.

164

HÄBERLE. Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da

Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da

Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris Editor, 2002.

HESSE. Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative kraft verfassung).

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes parte I. Princípios metafísicos da doutrina

do direito. Lisboa: Edições 70, 2004.

KELSEN, Hanz. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Matins Fontes, 1987.

KRELL, Andréas Joachin. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:

os (des)caminhos de um direito constitucional ‘comparado’. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris, 2002.

LÉPORE. Paulo Eduardo. Direitos fundamentais e processo coletivo: A tutela

processual coletiva como instrumento de efetivação de políticas públicas. Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade de Ribeirão Preto, 2010.

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira.

Atualização e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003, T. I.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2006.

LUÑO, Antonio enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constituición.

5 ed., Madrid: Tecnos, 1995.

MACHADO JÚNIOR, José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A lei 4.320 comentada.

31. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2003.

MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. Parte Geral. 33ª ed. São Paulo: Saraiva,

1998, v. 1.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir.

6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

MARINELA. Fernanda. Direito Administrativo.4 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus

Podivm, 2010.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009.

165

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo

Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira. Anuário da Justiça de 2010. Consultor Jurídico, 2010.

MELOSSI, Dário; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. As origens do sistema

penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006.

MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Concepto y método.

2ª ed. Reimpresión. Montevideo: Editorial BdeF, 2003.

MIRABETE. Julio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. por Renato N.

Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2007.

MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de

direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da

(Org.). Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. 2 ed. atual. e ampl. São Paulo:

Quartier Latin, 2009.

_____. Manual de Direito Constitucional. T. II. 6 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou

difusos. Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1984.

MUÑOZ CONDE. Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia.

Trad. Cintia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 9 ed.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2005.

PASTORE, José. Trabalho para ex-infratores. São Paulo: Saraiva, 2011.

PINTO FERREIRA. Manual de Direito Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora

Forense, 1992.

REALE, Miguel. Noções preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

ROCHA, Alexandre Pereira da. O Estado e o Direito de Punir: a superlotação no

sistema penitenciário brasileiro. 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política).

Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, 2006.

166

ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de

la Teoría del Delito. 1ª ed. 8ª reimpresión. Madrid: Civitas Ediciones, 2008.

_____. Problemas fundamentais de direito penal. 3ª ed. Trad. Ana Paula dos Santos e

Luís Natscheradetz. Lisboa: Ed. Vega, 1998.

_____. Problemas básicos de derecho penal. Trad. Diego Manuel Luzón Pena. Madrid:

Ed. Reus, 1976.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Editora Revan: ICC, 2004.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 2 ed. rev. atual. e

ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002.

SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos

direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed., rev. atual. e ampl. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

_____. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais

entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais. n. 12.

Ano 2003.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. rev. e atual. São

Paulo: Malheiros, 2005.

STRECK, Lenio. O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o

cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-

individualista-clássico. Disponível em: <www.leniostreck.com.br>. Acesso em: 15 fev.

2010.

_____. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermassverbot) à

proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem

contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: <www.leniostreck.com.br>.

Acesso em: 15 fev. 2010.

167

_____. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos

fundamentais ou “Qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de

entorpecentes”? Disponível em: <www.leniostreck.com.br>. Acesso em: 15 fev. 2010.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7 ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2009.

TELLA, María José Falcón y; TELLA, Fernando Falcón y. Fundamento e finalidade da

sanção. Existe um direito de castigar? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. O

orçamento na Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Vol. 5.

VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007.

WATANABE, Kazuo In GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de

defesa do consumidor. Comentados pelos autores do anteprojeto. 5ª ed. rev. e atual. São

Paulo: Forense Universitária, 1997.

WEBER, Max. Ciência e Política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2000.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal

brasileiro v.1. Parte Geral. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2007.

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo – Tutela de direitos coletivos e Tutela

coletiva de direitos. 4 ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009.