Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio
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Comitê Científico Ary Baddini Tavares (UNIMESP) Daniel Nascimento (UFPI) Deyve Redyson (UFPB) Eduardo Kickhofel (UNIFESP) Eduardo Saad Diniz (USP, Ribeirão Preto) Jorge Miranda de Almeida (UESB) Marcia Tiburi (Mackenzie) Marcelo Martins Bueno (Mackenzie) Maria J. Binetti (CONICET, ARG) Patrícia C. Dip (UNGS/CONICET, ARG)
Filosofia, política e transformação © 2012, Editora LiberArs Ltda.
Direitos de edição reservados à Editora Liber Ars Ltda ISBN 978-85-64783-08-9 Editores Fransmar Costa Lima Lauro Fabiano de Souza Carvalho Revisão Ortográfica Patricia Magnani Revisão técnica Jasson Martins Editoração e capa Cesar Lima Impressão e acabamento Gráfica Rotermund
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
Bibliotecário Responsável: Cristiane Pozzebom CRB 10/1397
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Foi feito o depósito legal.
Editora Liber Ars Ltda www.liberars.com.br
F488 Filosofia, política e transformação /Armindo José Longhi (organizador) – São Paulo, SP: LiberArs, 2012.
190 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-64783-00-3
1. Filosofia. 2. Filosofia política. 3. Secularização.
CDU 1:32
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................9 O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA POLÍTICA
Luis Alberto de Boni ..................................................................................................... 13 PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO
Giovane do Nascimento .............................................................................................. 29 CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL
José Maria Arruda ......................................................................................................... 47 A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua
Sandro Luiz Bazzanella / Selvino José Assmann ............................................. 63 TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: prelúdio à descentralização a partir da filosofia política moderna.
Walter Marcos Knaesel Birkner .............................................................................. 91 TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: do deliberativo ao agonístico
Armindo José Longhi ................................................................................................ 111 IRONIA E METÁFORA: esboço de um problema político do discurso filosófico
Samon Noyama ............................................................................................................ 127 A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL
Claudio Cavalcante Junior ....................................................................................... 143 CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO
Thiago David Stadler ................................................................................................. 159 ARRAZOADO ORTEGUIANO x TEORIA DAS ELITES
Antonio Charles Santiago Almeida ..................................................................... 173
APRESENTAÇÃO
O livro, ora apresentado, é a reunião das conferências,
palestras e mesas redondas realizadas no IV Colóquio Filosofia, política e transformação, evento organizado pelo Curso de Filosofia, Campus de União da Vitória, Universidade Estadual do Paraná, realizado de 22 a 26 de agosto de 2011, na cidade paranaense de União da Vitória e financiado pela Fundação Araucária.
O objetivo principal do evento consistiu em discutir, no transcorrer da história do pensamento filosófico ocidental, as principais transformações nos conceitos, nas configurações e nos problemas abordados pela filosofia política. O que une os aqui reunidos é a preocupação central em pensar a dinamicidade do pensamento filosófico e suas implicações no mundo da vida sob a ótica dos problemas políticos específicos enfrentados pela sociedade em cada época.
A Filosofia, como um conhecimento preocupado com o desenvolvimento da sociedade, não percebe a história como destruição do passado. Procura recuperar a perda da referência histórica. Transformação é uma chave que abre as portas e nos permite espreitar, a partir do tempo presente, qual foi o caminho percorrido pelo pensamento filosófico, lançando novas luzes sobre as encruzilhadas e labirintos que nos cercam.
Quem nos abre a primeira porta é Luis Alberto de Boni com o texto O cristianismo e a secularização da política. O seu esforço teórico busca reconstruir historicamente o pensamento cristão, nos mostrando que é possível construir a teoria do estado leigo dentro do Cristianismo. O texto do professor de Boni, ao abrir a porta do pensamento cristão, auxilia aos que vivem no século XXI a entenderem a relação religião-política como dimensões convivendo no mundo humano. Para isso é necessário superar o lugar comum que exclui a convivência pacífica entre dogma religioso e estado laico.
Giovane do Nascimento, com o texto Paidéia aristotélica ou a teleologia política da educação, abre uma segunda entrada ao indicar diferenças substanciais nas concepções platônicas e aristotélicas, muitas delas relegadas ao esquecimento por outras interpretações. Afirma que em Platão não há lugar para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível imobilidade do mesmo. Enquanto em Aristóteles a iniciativa humana é central na busca da virtude
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necessária na polis, mesmo percebendo as dificuldades a serem enfrentadas: não é porque quero a virtude que tal desejo se realiza.
Quem indica o terceiro acesso é José Maria Arruda com o texto Carl Schmitt contra a democracia liberal. No início do século XX pensadores políticos criticam o pensamento liberal ao indicarem a existência, no discurso liberal, de substâncias metafísicas por trás do discurso, da semântica e da concepção de democracia. A enorme erudição de Schmitt acerca da história política e jurídica européia lhe permitiu afirmar que desde o início, a concepção moderna de Estado de Direito sempre esteve vinculada ao projeto político hegemônico da burguesia liberal. O objetivo da teoria política liberal é a neutralização da política e despolitização em favor de seus interesses econômicos e do seu conceito individualista de liberdade.
Sandro Luiz Bazzanella e Selvino José Assmann abrem um novo acesso a política contemporânea com o texto A máquina/dispositivo política: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua. O fio condutor é o conceito de biopolítica e sua manifestação contemporânea no estado de exceção. Utiliza as reflexões de Michel Foucault e Giorgio Agamben para analisar os campos de concentração como limite entre a bíos e a zoè entre o direito e o vazio do direito, entre o humano e o inumano, produzindo vida nua, vida destituída do ordenamento jurídico que lhe garante a condição de vida humanamente qualificada. Afirma que a partir da reflexão de Agamben pode-se dizer que o campo de concentração se reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de vigilância à que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão expostos.
Walter Marcos Knaesel Birkner, com o texto Tendências do Estado contemporâneo: prelúdio à descentralização a partir da filosofia moderna abre a discussão sobre o processo civilizatório, os sinais da morte e surgimento de instituições e suas conformações ao longo do tempo. Em especial, aborda o processo de descentralização numa das mais importantes instituições da trajetória do Ocidente, qual seja: o Estado. Argumenta a partir de uma leitura interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as ciências sociais e a história.
Armindo José Longhi, com o texto Transformação política: do deliberativo ao agonístico, reflete sobre o significativo desinteresse dos indivíduos pela política, observado principalmente no grupo composto pelas novas gerações. Discute o processo de aprendizagem presente na formação política do cidadão a partir das condições em que ocorre a
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identificação do sujeito com a prática política. A discussão é proposta a partir da teoria agonística e da teoria deliberativa.
Com o texto Ironia e metáfora: esboço de um problema político do discurso filosófico, Somon Noyama investiga como alguns elementos retóricos, a saber, a ironia e a metáfora, são apontados por Nietzsche como intrínsecos ao discurso da filosofia, seja seu uso feito de forma consciente, inconsciente, ou mesmo de forma reprodutiva, sustentando os argumentos de autoridade da tradição filosófica. Além disso, relaciona o uso desses dois elementos no discurso filosófico como sendo determinantes na formação dos valores mais importantes da cultura ocidental e, portanto, entendidos como forças ativas da formação cultural da humanidade.
A polissemia da ‘raça’ e seus desdobramentos políticos no Brasil, texto escrito por Claudio Cavalcante Junior, aborda a construção sociocultural do conceito de raça e discriminação racial ao longo da História do Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX. A discriminação racial, reconhecida em trabalhos acadêmicos a partir da década de 1950, é o ponto de partida para a formulação de soluções para os problemas raciais no Brasil. Segundo o autor, uma forma de solucioná-los é através de políticas públicas, em voga nos últimos anos. Tais políticas vêem gerando polêmicas, como é o caso de cotas de vagas para estudantes negros em universidades públicas.
Com o texto Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio, Thiago David Stadler discute a pesquisa histórica e se pergunta: como sair deste incômodo terreno sepulcral para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Responde que um dos possíveis caminhos é entender que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado; muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercê-la, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador.
O livro encerra com o texto Arrazoado orteguiano x teorias das elites de Antonio Charles Santiago Almeida. O autor discute os conceitos de “minorias” e “massas” { luz da filosofia política de Ortega y Gasset para o delineamento de um expediente político-filosófico. Com este objetivo, no primeiro momento, faz uma incursão nos textos orteguianos e, no segundo momento, coteja uma diferenciação entre o pensamento de Ortega y Gasset e dos teóricos elitistas, a saber, Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels.
O organizador
O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA
POLÍTICA
Luis Alberto de Boni
Universidade do Porto (Portugal)
Vou abordar um tema que pode ser estranho para muitos.
Trata-se de uma tentativa de reconstrução histórica, mostrando como
no pensamento cristão encontra-se embutida a noção de que existe
uma separação entre religião e política, isto é, de que se pode, dentro
do Cristianismo, elaborar a teoria de um estado leigo. Talvez alguém
pergunte: “Mas que interessa isso para a Filosofia Política do século
XXI?”. E eu respondo dizendo que o tema é brilhante, pois uma porç~o
considerável dos habitantes do planeta defende que a única lei a
imperar em uma sociedade é a sagrada, isto é, a sociedade deve ser
regida pelas normas da religião, não havendo, pois, um espaço
independente para a Política.
Uma longa História que se inicia na Palestina
O Cristianismo levava em si, desde as origens, uma
concepção nova das relações entre Estado e Igreja, na qual não se
propunha nem a mistura e nem a separação. Nesta concepção, nem o
imperador, ou o rei, se intitulava sacerdote; nem o papa ou o bispo
pretendiam o título real.
Pode-se dizer que tudo se iniciou com uma frase de Jesus,
quando, cavilosamente, perguntaram a ele se era permitido pagar
tributo ao imperador. Para responder, Jesus disse: ‘“Mostrai-me um
den|rio. De quem leva a imagem e a inscriç~o?’ Responderam-lhe: ‘De
César’. Ent~o lhes disse: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”’ (Lc. 20, 20-27; Mt, 22, 15-22; Mc. 12, 13-17).
Ora, Jesus não redigiu tratado sobre Política, mas, com essas
palavras, estava fazendo uma clara distinção entre a religião que
anunciava e os poderes públicos dos quais, aliás, era súdito. Ele estava
dizendo que há coisas que pertencem a César, isto é, ao poder
temporal, e há coisas que pertencem a Deus, por serem espirituais. E
com isso estava indicando o caminho a ser trilhado por seus
seguidores. Por aí seguiu o apóstolo Paulo que, duas décadas depois,
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escrevendo aos Romanos, e defendendo a ordem pública, dizia: “Todo
o homem seja sujeito às autoridades superiores, porque não há
autoridade que não venha de Deus (non est enim potestas nisi a Deo)”
(Rm. 13, 1). E, prosseguindo, dava a razão de ser da autoridade, que é
manter a ordem, podendo, para tanto, usar a violência.
Contudo, a comunidade cristã tinha consciência que há um
limite na obediência devida à autoridade, que não pode interferir no
foro íntimo, no âmbito das convicções religiosas. Isso se constatou logo
nos primórdios da Igreja, quando os apóstolos, após terem sido presos
pelo Grande Conselho dos judeus e proibidos de pregar, responderam:
“Importa obedecer mais a Deus que aos homens” (At. 5, 29). Pouco
mais tarde, Paulo pagou com a vida o fato de obedecer mais a Deus que
à legislação de César.
Com estes princípios, porém, o Cristianismo se tornou um
perigo político para o império romano, que jamais imaginara uma
religião que não fosse religião civil. Os cristãos diziam que seu Deus
não era representado por imagens e se recusavam a cultuar os deuses
do Panteon Romano, para o qual eram levadas estátuas das divindades
cultuadas pelos povos do imenso império. Para as atilidas autoridades
romanas, isso representava uma insubordinação política e um sinal de
possível rebelião, capaz de atingir as bases ideológicas sobre as quais
se erguera todo um mundo. Compreende-se assim como é que um
grupo de pacíficos indivíduos, súditos fiéis, sem o menor projeto de
tomar o poder, excelentes soldados quando chamados a defender a
pátria, passou a ser perseguido como inimigo de Roma e de suas
tradições. Santo Agostinho descreve muito bem esta situação ao narrar
a relação dos batalhões de cristãos com o imperador Juliano,
conhecido como o Apóstata. Diz ele que, quando o imperador ordenava
que o exército atacasse, os cristãos o obedeciam e mostravam-se como
intrépidos soldados. Mas quando mandava que seus comandados
oferecessem incenso às divindades, os mesmos soldados se recusavam,
afirmando que deviam obedecer antes a Deus que ao imperador.
Um dia, porém, o imperador se converteu e a religião cristã,
com Constantino, tornou-se uma das religiões oficiais de Roma. Poucas
décadas depois, com Teodósio, transformou-se na única religião do
império, sendo proscritas as demais. Para muitos, ante esses fatos,
parecia que o reino de Deus estaria próximo e que a Igreja teria dias de
paz e harmonia. Não havia mais separação entre o império e o
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Cristianismo: o imperador era cristão e os bispos se transformaram
em oficiais do império. Contudo, a realidade não correspondeu ao
sonho. O império continuou sendo império romano, por vezes bem
longe da pregação cristã. Citemos dois casos.
No ano de 390 houve um motim popular em Tessalônica, na
Grécia, no qual foi morto um oficial do exército. O imperador Teodósio,
na tradição romana de não admitir rebeldia, depois de tudo ter sido
acalmado, deu ordens para que num dia de espetáculo, ao qual só os
homens acudiam, as tropas cercassem o local e passassem todos pelo
fio da espada. Discordam os autores quanto ao número de mortos,
situando-os entre 500 e 7.000. Pouco tempo depois, voltando a Milão,
o imperador recebeu uma carta do bispo Ambrósio1 (o mesmo que três
anos antes, batizara Agostinho). Ambrósio fora oficial do império e
governada a região onde se situava Milão; sendo leigo, acabara
aclamado bispo de Milão. A carta se inicia com um elogio à
consideração que o imperador sempre tivera com ele, e segue com
uma justificação pelo fato de ter estado presente no dia do regresso de
Teodósio à cidade: o motivo é que ele estava sendo excluído das
reuniões da corte, e isso tinha como causa a mortandade de
Tessalônica. E ent~o surge a figura do bispo, dizendo: “Num caso como
esse é preciso fazer penitência perante Deus. E tu, imperador, não
terás vergonha de fazer aquilo que Davi fez e reconheceu, dizendo:
‘pequei contra Deus’”. E depois de elogiar o imperador, principalmente
por sua clemência, prossegue: “Com temor eu digo: n~o ousarei
celebrar a missa se tu estiveres presente. Se ela não é celebrada
quando se trata da morte de um só inocente, poderá sê-lo quando são
milhares os mortos? Eu digo: n~o”. A carta era datada de maio e
Teodósio, que pediu perdão ao povo na porta da Igreja, só foi aceito
aos santos mistérios no Natal daquele ano. – Cinco anos depois
Teodósio veio a falecer, sendo assistido por Ambrósio no leito de
morte. O elogio fúnebre proferido pelo bispo no dia do sepultamento
foi digno da estatura do último grande imperador romano do Ocidente.
1 AMBRÓSIO. Epistola 51; PL 36, 1160-1164. No presente trabalho limito-me a
uma bibliografia mínima e deixo geralmente de anotar as referências das citações.
Permito-me observar, também, que, por brevidade e devido à complexidade da
obra de santo Agostinho, não me detenho a examinar-lhe o pensamento, ele que,
sem dúvida, foi o principal formador do pensamento político da Cristandade.
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Tomemos mais um exemplo. Desta vez no Oriente. João
Crisóstomo, (que em grego significa “Jo~o Boca de Ouro”), assim
chamado pela sabedoria beleza de seus sermões, foi eleito patriarca de
Constantinopla. Ao assumir o posto, percebeu que era necessária uma
reforma interna no patriarcado e que também a moralidade pública,
principalmente da corte, não era das melhores, em grande parte
devido à avareza da imperatriz Eudóxia. Deposto por um sínodo
corrupto, foi trazido de volta por uma revolta popular. Permanecendo
o ódio da corte, pouco tempo depois foi novamente preso e exilado e,
em 14 de setembro de 407, ao ser transferido de um local de exílio
para outro, no caminho foi morto a pauladas pelos guardas, que para
tanto haviam recebido dinheiro.
Abrindo um parêntesis: cronologicamente, caberia examinar
aqui o pensamento de santo Agostinho, mas, para tanto, seria preciso
redigir outra conferência, pois ele sem dúvida, foi o principal formador
do pensamento político da Cristandade2.
Voltando ao tema: Outros casos poderiam ser apresentados,
todos eles mostrando o desencontro entre a autoridade do estado e a
religiosa. Atenhamo-nos aqui a um caso acontecido entre o papa e o
basileos, o imperador de Constantinopla. Diversos foram os pontífices
que se manifestaram sobre a relação entre o papa e o imperador, e
alguns deles, indo além dos fatos concretos, teorizaram a respeito. Por
2 Basta ler o livro XIX do De civitate Dei para constatar que Agostinho reconhece
a existência legítima da cidade terrena. Se ela não se pode fundamentar na justiça,
porque não existe verdadeira justiça onde não se tributa a Deus o culto devido,
contudo, pode-se definir o que vem a ser um povo [um estado] dizendo que ele “é
o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos
amados” (Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi
communione sociatus) (De civ. Dei, IX, 24). A cidade terrena “também goza de
certa paz própria, que não deve ser desprezada [...] Mas interessa também a nossa
cidade que dela goze neste mundo, porque, enquanto confundidas ambas as
cidades, também usamos da paz de Babilônia” (Diligit tamen etiam ipse quamdam
pacem suam non improbandam [...] Hanc autem ut interim habeat in hac vita,
etiam nostri interest; quoniam, quamdiu permixtae sunt ambae civitates, utimur et
nos pace Babylonis) (De civ. Dei, XIX, 26). Há um excelente livro a este respeito,
infelizmente esgotado há muitos anos: F. M. T. RAMOS. A Ideia de Estado na
Doutrina Ético-Política de S. Agostinho - Um Estudo do Epistolário Comparado
com o De Civitate Dei. São Paulo: Loyola, 1982. – A transformação do
pensamento de Agostinho nisso que se convencionou chamar de “Agostinismo
político” conta com um estudo clássico: H.- X. ARQUILLIÈRE. L’Augustinisme
politique. Paris: Vrin, 2. ed. 1955.
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trás disso tudo encontrava-se o césaro-papismo que se ia instaurando
no Oriente, isto é, a doutrina de que o imperador é também cabeça da
Igreja. Cabe citar o papa Gelásio I (492-496), um jurista, de origem
africana. Dirigindo-se ao imperador Anastácio, que com olhos de pouca
amizade se relacionava com o pontífice, este, chamando-o de ‘filho
glorioso’ lhe diz que: “na condiç~o de romano, amo, respeito e admiro
o príncipe romano; como cristão, almejo estar contigo na comunidade
de sabedoria e verdade [...]; mas como vigário da Sé Apostólica sou
obrigado a agir através de ensinamentos oportunos lá onde falta algo à
plenitude da fé católica”. E segue-se então o clássico texto Duo quippe
sunt, imperator auguste, quibus principaliter mundus hic regitur: “Dois
são, pois, augusto imperador, aqueles pelos quais o mundo é
soberanamente governado: a sagrada autoridade dos bispos e o poder
régio. Entre esses dois poderes, maior é o peso que recai sobre os
sacerdotes, porque eles deverão prestar contas, ante o juízo divino,
também pelos reis dos homens”3. Examinemos o texto, cuja
importância foi ressaltada, entre outros, também por Hannah Arendt.
O papa diz que são dois os que governam o mundo, mas governam de
modo diferente: um pela auctoritas, a autoridade; o outro, pela
potestas, o poder. A palavra ‘autoridade’, no sentido aqui empregado,
sequer possui correspondente na língua grega. Auctoritas indica o que
poderíamos qualificar de ‘poder desarmado’, ‘poder moral’; enquanto
a potestas se refere ao poder dotado de meios para usar a violência. No
império romano, o senado – poder supremo da república e do império
- possuía autoridade; enquanto os cônsules e os imperadores
detinham o poder. A seu modo isso se preserva em nossa tradição
ocidental: o parlamento, desarmado, possui a autoridade, cabe a ele
fazer as leis; enquanto o presidente da República, ou o primeiro-
ministro, possui o poder, cabendo a ele executar as leis. Gelásio
afirmava, portanto, que há uma divisão no modo de dirigir o mundo,
não cabendo ao sacerdote se imiscuir nas questões de administração
temporal, e nem ao príncipe se ingerir no que se refere à salvação,
devendo ele, porém, neste assunto, submeter-se à autoridade do
sacerdote.
Mas, no decorrer do tempo, houve por vezes uma grande
distância entre a teoria e a realidade. Aconteceu que o Império do
Oriente, enquanto ia se enfraquecendo, rumava também sempre mais
3 GELÁSIO. Epístola VIII. Ad Anastatium imperatorem; PL 59, 41-47.
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para o césaro-papismo. Concomitante com o esvaimento do poder do
basileos na Itália e no norte da África, fortificou-se o poder dos reinos
bárbaros na Europa. Entrementes, os pontífices romanos foram
percebendo que as tentativas de negociar com Constantinopla
tornaram-se pura perda de tempo. Mas a fragmentação dos reinos
bárbaros e a ausência neles de lideranças culturais, abriam espaço
para uma presença mais concreta do papado. Foi o que aconteceu com
o papa Gregório Magno (+ 604), que acabou agindo como o grande
líder do Ocidente. A correspondência enviada aos reis, a organização
de sínodos, o contato mantido com os bispos, a imposição de uma
liturgia única, a disseminação da Bíblia Vulgata, o uso do latim como
língua oficial de liturgia e de comunicação, transformaram-no em um
dos pais do Ocidente.
Este, aos poucos, se tornou uma unidade cultural, que ia da
Suécia à Espanha, determinada pelo Catolicismo, que lhe transmitia a
sensação de pertença a um governo monolítico ideal, a ser regido por
um imperador católico. Na Cristandade havia, pois, o papa e o
imperador, mas qual seria a relação entre eles no comando do mundo
cristão? Pode-se dizer que a teoria gelasiana da divisão dos poderes se
mantinha em pé, mas na prática sobrava espaço para muita discussão
a respeito da função do imperador na Igreja e do papa no império. O
que se constatou, muitas vezes, foi que o vazio de poder acabou
preenchido pelo mais apto. Assim, por exemplo, Gregório Magno agiu
como um quase-monarca ante os fracos reis de seu tempo. Dois
séculos mais tarde, o papa Silvestre III, na noite de Natal do ano 800,
coroou Carlos Magno como imperador do Ocidente; este, porém,
dentro de toda sua piedade cristã, tratou Silvestre e seus sucessores
como simples ministros do culto. Alguns anos após, morto o
imperador, seus herdeiros nem sempre conseguiram impor a vontade
aos pontífices e, por vezes, foram por estes repreendidos.
Nos séculos X e XI, por mais de uma vez o imperador
interveio no papado. Em outras situações, porém, os dois lados
mediram forças. Foi assim no século XI, quando da disputa pelas
investiduras, entre Gregório VII e Henrique IV, ocasião em que o papa,
tendo deposto o imperador, humilhou-o a implorar perdão, passando
dias sobre a neve, às portas do castelo de Canossa. Transcorreram os
tempos, e no início do século XIII, Inocêncio III, o último e maior papa
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da Cristandade, ainda se comportava, de fato e de direito, como o chefe
maior do Ocidente, depondo e entronizando reis e imperadores.
Mas, poucos anos após, constatou-se que o mundo mudara.
Na metade do século XIII os papas Gregório IX e Inocêncio IV
colocaram-se contra o imperador Frederico II, o Barbarossa, porém
nada, nem a excomunhão, foi capaz de removê-lo do trono. Décadas
depois, na passagem do século XIII para o século XIV, quando se
enfrentaram Bonifácio VIII e Felipe, o Belo da França, a realidade era
outra: a Cristandade cedia lugar a reinos independentes, como os da
França, Inglaterra, Portugal e Aragão; e do Oriente aportava a Política
de Aristóteles. O mundo não era mais o mesmo.
Pensando cientificamente a Política
Com a entrada no Ocidente da Ética, e principalmente da
Política de Aristóteles, recriou-se o que podemos chamar de Ciência
Política. Nesse empreendimento Tomás de Aquino tornou-se um
marco de referência. Os comentários dele às duas obras do Filósofo,
bem como os tratados por ele escritos sobre a Lei e a Justiça, na Suma
Teológica, e o pequeno texto De regno, trazem no bojo muitas
inovações que haveriam de marcar o pensamento político futuro.
Assim, por exemplo, ao contrário da tradição patrística, que afirmava
ser a autoridade sobre os homens fruto do pecado, Tomás, seguindo
Aristóteles, vai dizer que o “homem é por natureza um animal
político”, isto é, mesmo que n~o houve acontecido o pecado, os
homens, no paraíso, teriam alguém exercendo a autoridade, a fim de
dirigir vontades divergentes para um fim comum. E mesmo sem a
revelação divina o homem haveria de se organizar socialmente. Tomás
também insiste em que a autoridade reside no povo, que elege os
governantes, mas pode também destituí-los; que a lei humana se
fundamenta na lei natural, etc. Cito, enfim, uma frase dele, que nos
interessa de perto. Quando, no De regno, faz a distinção entre o reino
humano e o reino de Deus, que se realiza na Igreja, ele diz: “Para que as
coisas terrenas fiquem separadas das espirituais, o ministério deste
reino [divino] foi confiado n~o aos reis terrenos, mas aos sacerdotes”4.
Observe-se a frase “para que as coisas terrenas fiquem separadas das
espirituais”. Santo Tom|s est| dizendo que h| uma clara divisão na
4 TOMÁS DE AQUINO. De regno II, c. 3. Ed. Leonina, t. 42, p. 466.
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organização da vida dos homens: de um lado, os bens que se referem
diretamente a Deus e à religião, e esses são regidos pelo papa, os
bispos e o clero; do outro, os bens que pertencem aos afazeres da vida
em sociedade aqui na terra, e esses ficam ao encargo do príncipe.
Resumindo, em vista do presente trabalho, podemos manter
duas afirmações tomasianas: a) a de que as coisas temporais são
distintas das espirituais, e b) a de que pertence à natureza do homem
viver na pólis ou no reino, isto é: a vida em sociedade pertence à ordem
da natureza, não à da graça, e, por isso, mesmo antes da salvação por
Cristo os homens viviam em sociedade.
Tomás não foi um homem de gabinete, fazendo elucubrações.
Percebe-se em sua obra que não lhe é desconhecida a existência das
cidades-estados, como Veneza, Florença e outras; bem como dos
reinos independentes que se iam estruturando dentro do mundo
cristão. Porém, sua visão teórica, um tanto otimista, foi logo posta à
prova. Na virada do século XIII para o século XIV estalou o conflito de
poderes entre Filipe, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII. O rei
queria cobrar impostos do clero para sustentar a guerra que
enfrentava contra os ingleses; o papa afirmava que os bens da Igreja
não estavam sujeitos à tributação régia. Entre os defensores de cada
parte encontravam-se teólogos e juristas de valor, o que permite dizer
que foi este o primeiro debate ‘científico’ da Idade Média a respeito da
relação entre os poderes, pois pela primeira vez eram arroladas as
duas grandes redescobertas: Aristóteles e o Direito Romano.
Do lado pontifício, o próprio papa Bonifácio VIII era um
renomado jurista. Entre os textos que então redigiu encontra-se a
célebre bula Unam sanctam, na qual, confundindo a Igreja com a
cristandade, e afirmando que na Igreja não pode haver duas cabeças,
conclui dizendo que para a salvação é necessário submeter-se ao
Romano Pontífice.
O grande teórico foi, porém, Egídio Romano, bispo-primaz da
Aquitânia e antes ministro geral da Ordem dos Agostinianos. Egídio
fora aluno de Tomás de Aquino, mas seguiu por caminhos distantes
dos do mestre. Seu texto mais importante intitula-se De ecclesiastica
potestate5. Ele concorda com Tomás ao dizer que o homem tende por
natureza a viver em sociedade, mas não consegue manter a distinção
entre duas ordens das coisas. Por isso, sua visão de sociedade difere da
5 EGÍDIO ROMANO. Sobre o Poder Eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989.
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visão aristotélica, que é simplesmente ignorada. Depois, voltando-se
para o modelo neoplatônico, que explica o universo a partir de
emanações do Uno, Egídio repete a frase de Dionísio Areopagita: “É
uma lei da Divindade que, na ordem do universo, as coisas inferiores
sejam elevadas {s superiores passando pelas intermedi|rias”. Do
mesmo modo, pois, é lei da Divindade que as coisas superiores desçam
às inferiores através das intermediárias. Examinemos melhor esta
afirmação. Plotino ensinava que acima de tudo existe, desde sempre e
imóvel, o Uno (isto é, um único, como o nome define) e dele só
procede, desde sempre, um ente, o Lógos, e deste somente um outro, a
Alma do mundo, e desta as demais almas individuais, etc. Egídio toma
esse modelo metafísico e o aplica à política, para explicar o mecanismo
do poder, do domínio, da autoridade. Diz ele que a plenitude do poder
se encontra em Deus, e deste desce para a maior autoridade
constituída por Deus no mundo, que é o papa; e do papa ela passa aos
reis, e assim por diante, até o último patamar. Repare-se que desse
modo Egídio está negando algo aceito e defendido pelo Direito
Romano e pela tradição cristã que se fora formando: que o poder
provém do povo, ou, como diziam os juristas, o poder vem de Deus
para o povo, que escolhe aquele que será constituído como autoridade.
Egídio ignora a existência do povo.
Mais ainda: a função do poder eclesiástico não é a de
meramente transmitir o poder àquele que assumirá a autoridade civil.
É muito mais. O poder eclesiástico institui o poder civil e o julga,
podendo destituí-lo caso não aja corretamente. Neste mundo, o papa
possui a plenitudo potestatis, a plenitude do poder, o que significa dizer
que ele pode por si mesmo fazer tudo aquilo que faz através de causas
segundas. É o que acontece com Deus, que, por exemplo, faz com que o
homem, causa segunda, gere outros homens, mas ele, Deus, poderia,
mesmo sem o homem, colocar outros homens na existência. Se, pois, o
papa institui o poder civil, isso não significa que ele não possa agir sem
este poder. Pelo contrário, ele o institui porque se trata de um poder
inferior, que cuida das coisas inferiores, algo que não convém ao poder
espiritual que se deve voltar acima de tudo para as coisas sagradas.
Mas Egídio não para aí. Assim como aquele que se revolta
contra o rei, diz ele, perde tudo aquilo que o rei lhe concedera, do
mesmo modo também aquele que não se encontra na amizade de Deus
deixa de ser proprietário dos bens que Deus dá aos homens. Tomando
22
a Carta de São Paulo aos Romanos, onde diz que por Cristo, de modo
gratuito, fomos tornados justos (díkaioi) perante Deus, Egídio
acrescenta, na linha de Paulo, que essa justiça o homem recebe pelo
batismo. Logo, aquele que não recebe o batismo, não é justo perante
Deus, bem como não o é aquele que, após o batismo, peca gravemente
contra a lei divina. Ora, dissera Agostinho, na Cidade de Deus, que só há
verdadeira justiça naquela república onde Cristo é fundador e guia.
Egídio força essa afirmação e a acopla à noção de justiça, aliás usada
por Agostinho, e proveniente do Direito Romano, quando diz que
“justiça é dar a cada um o que é seu”. Portanto, n~o é justo aquele que
não dá a Deus o que é de Deus e, então, tal pessoa fica também privada,
de iure, de tudo aquilo que recebeu de Deus. Renascer pelo batismo
significa, pois, tornar-se herdeiro não só do reino dos céus, mas
também dos bens terrenos. Na visão de Egídio, portanto, a vida social
se reduz a seu aspecto teológico, e a afirmação de que fora da Igreja
não existe salvação (extra ecclesia nulla salus) se complementa
dizendo que fora da Igreja não há domínio ou propriedade (extra
Ecclesia nullum dominium). Os infiéis e os pecadores são, portanto,
possuidores injustos dos bens da terra, e a Igreja só tolera isso a fim de
evitar males maiores.
Se substituirmos o papa pelo rei, encontramos em Egídio
Romano uma teoria perfeita do absolutismo monárquico que se
prenunciava.
A reação às idéias oriundas dos círculos da cúria pontifícia
não se fez esperar. O texto mais importante proveio de um frade
dominicano, um tanto desconhecido: João Quidort, autor de uma obra
intitulada De regia potestate et papali6. Como bom dominicano, ele
segue os passos de Tomás de Aquino, mas vai além. Ele também diz
que o homem é por natureza um animal social. Mas Aristóteles diluía o
indivíduo na sociedade; Tomás o salvava introduzindo a noção de
pessoa, como algo intocável; Quidort, prenunciando Locke, mostra os
indivíduos em sua singularidade e independência, colocando o estado
a serviço dos interesses individuais.
Se o homem é por natureza um animal político, é possível
colocar um paralelo, contrapondo á natureza a sobrenatureza; ao
natural, o sobrenatural. E, com isso, temos duas ordens, provenientes
do mesmo Deus: a ordem da criação e a ordem da salvação. O governo
6 JOÃO QUIDORT. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989.
23
civil pertence à primeira, e todos os povos, também os que existiram
antes de Cristo, sempre tiveram autoridade política legítima; já o
governo eclesiástico situa-se noutro âmbito, tendo sido instituído por
Cristo.
Cada um desses poderes possui seu próprio âmbito de ação.
O religioso alcança todo o mundo, pois a palavra pode ser expandir por
todos os recantos. Já o secular se encontra limitado pelo alcance da
espada, isto é, o poder de um rei ou de um príncipe alcança até onde a
força coercitiva dele possa obrigar as pessoas. Essa afirmação traz em
seu bojo dois importantes pressupostos. O primeiro, o de que o poder
secular se caracteriza pelo uso da força. Não se trata de algo novo, pois
Aristóteles, o Direito Romano, Agostinho e Tomás – para citar os dois
mais importantes pensadores cristãos – já conheciam isso. Mas, nesse
momento, com Quidort e Egídio Romano, a força é trazida para o
núcleo da teoria do poder, onde permanecerá pelos séculos. Em
segundo lugar, com esse argumento está sendo relegada a noção, um
tanto ideal, de um santo império a dirigir o Ocidente. O poder
imperador se estende até onde alcançar a força coercitiva de seu
braço. Dali em diante, outro será o governante e, por isso, como então
se passou a dizer: “Cada rei é imperador dentro de seu reino”.
Quidort concorda com são Paulo e com a tradição cristã que
todo o poder vem de Deus. Mas, contra Egídio, vai dizer que todo o
poder promana de Deus para o povo, sem depender de intermediários.
O exemplo que ele apresenta é esclarecedor. Diz ele que o pater
familias tem em sua casa o mestre e o médico, sendo a função do
mestre superior à do médico, pois este cuida da saúde do corpo,
aquele, da saúde do espírito. Entretanto, o médico não depende do
mestre, mas se relaciona diretamente com o senhor. Do mesmo modo,
o poder secular se relaciona com Deus sem passar pela mediação da
Igreja. Além disso, não existe uma ligação direta que, partindo de
Deus, transmite o poder ao príncipe ou ao papa. O poder vem sempre
conferido de Deus ao povo, e o povo escolhe quem será a autoridade
dirigente. Isso vale também para o papa: Deus quer que a Igreja tenha
o papa a dirigi-la, mas não é Deus que apresenta o candidato, e sim o
colégio dos cardeais, representando todo o povo cristão. E assim como
o povo pode remover o príncipe que deixa de servir ao bem comum, do
mesmo modo os cardeais, ou o concílio, podem destituir um papa que
não sirva ao bem da Igreja. O sumo pontífice está longe, portanto, de
24
ser um chefe com poderes absolutos. Ele sequer é proprietário dos
bens eclesiásticos, dos quais é mero administrador em favor do povo
cristão. Muito menos, portanto, pode reivindicar o domínio sobre os
bens dos reis e dos indivíduos particulares.
Aristóteles dizia que o ideal do cidadão é viver segundo as
virtudes cívicas, virtudes essas que são apreendidas, descobertas, pela
razão, sem necessidade da fé. Quidort concorda com ele e acrescenta
que o ideal de vida do cristão é viver segundo as virtudes teologais,
reveladas por Deus. Dizendo isso, ele se mantém na linha de Tomás de
Aquino, pregando a separação entre as coisas espirituais e as
temporais, e, com lógica, defende que o estado é um fim em si mesmo e
tal fim é o vivere secundum virtutem, podendo-se, pois, conceber o
estado e organizá-lo sem partir de pressupostos religiosos, e nem por
isso ele deixará de ser um estado justo e verdadeiro.
Contemporâneo de Quidort foi o franciscano escocês João
Duns Scotus. Ele não redigiu algum tratado político, mas, em sua obra,
ao inquirir sobre a origem da autoridade e do poder fez uma leitura
inovadora, da qual convém citar um tópico, onde diz:
A autoridade pode ser de duas formas: a paterna e a política. A política também é dupla, residindo ou em uma só pessoa ou na comunidade. – A primeira, isto é, a paterna, é justa pela lei natural [...] Mas a autoridade política, que é autoridade sobre estranhos, quer resida numa pessoa, quer na comunidade, pode ser justa pelo consenso comum e pela eleição da própria comunidade. [Ela] se refere aos que residem juntos, embora não os unam laços de sangue ou de relações próximas. Assim, por exemplo, se alguns estranhos entre si uniram-se para edificar ou habitar uma cidade e constataram que não podiam ser bem-governados, se não tivessem alguma autoridade, poderiam, então, de comum acordo, admitir que sua comunidade fosse confiada a uma só pessoa ou a um grupo. [...] E esta autoridade política [...] é justa, pois com justiça pode alguém submeter-se a uma pessoa ou à comunidade naquelas coisas que não são contra a lei de Deus7.
Observe-se nesse texto, em primeiro lugar, que Duns Scotus
está defendendo o contratualismo: os homens se reúnem não por
7 Duns Scotus on the Will and Morality. Ord. IV, d. 15, q. 2. Seleção e tradução de
A. B. WOLTER.Wasington: The Catholic Univeristy of America, 1986, p. 314s.
25
necessidade de natureza, mas por conveniência. Noutro tópico ele
esclarece e diz – e Ockham depois repete –, que por natureza o homem
é somente um animal conjugal e doméstico. Em segundo lugar,
defende que quem leva os homens a se reunirem é a razão que Deus
lhes deu para se organizarem nesta vida. Não existe, portanto,
nenhuma influência de poder eclesiástico ou de princípios religiosos
para instauração do governo civil.
Por brevidade, não por negar-lhe a importância, limitamo-
nos apenas a mencionar o pensamento de Dante, manifesto em De
monarchia8. Cerca de uma década após Quidort e Scotus, e uma década
antes de Marsílio e Ockham, ele defende a não-dependência do império
ante a Igreja, por ser aquele anterior a esta e por estar colocado na
ordem da natureza, e não da graça. Mas cada uma dessas ordens
possui seu próprio fim e felicidade, chegando-se ao fim da primeira
pela razão; e ao da segunda, pela revelação. Opondo-se, então, às
doutrinas dos curialistas, diz: “Afirmo, ent~o que o poder temporal n~o
recebe do espiritual nem a existência, nem a faculdade que é a
autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples”9.
Cerca de 20 anos após Quidort e Scotus, quando do debate
entre o papa João XXII e Luís da Baviera, um médico paduano, que
chegou a reitor da Universidade de Paris, chamado Marsílio de Padua,
lançou um livro revolucionário, com o título Defensor pacis10. Já o título
é significativo e o autor explica o porquê. Ele quer defender o poder
civil contra aquele que perturba a paz, e tal é o papa com suas
pretensões sobre o poder temporal.
Marsílio toma as teorias aristotélicas de modo dogmático,
forçando, pois, o pensamento do filósofo grego, muito mais aberto à
possibilidade e à conjetura. E partindo de Aristóteles, aceitando como
sendo da natureza do homem a sociabilidade, inverte a leitura dos
curialistas e projeta um estado soberano, dentro do qual se enquadra
também o sacerdócio.
Tendo por pano de fundo, ao que parece, a vida das cidades-
repúblicas italianas, afirma ele que poder supremo se encontra no
conjunto do povo – ou na sua maior parte, a valentior pars. Cabe ao
8 DANTE ALIGHIERI. A Monarquia. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os
Pensadores, vol. VIII), 1973, p. 191-232. 9 Ibid., l. 3, c.4, p. 222,
10 MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997.
26
povo, nomear os que redigirão os projetos de lei, aprovar as leis e
eleger os governantes, bem como depô-los, se for o caso.
Assim como a polis do Estagirita possui seis classes de
pessoas, do mesmo modo o estado marsiliano conta com três classes
bem definidas e que poderíamos qualificar de dirigentes: o judiciário,
incluindo o que hoje chamamos de executivo, o exército e sacerdócio; e
três subalternas: agricultores, artesão e financistas.
O sacerdócio, considerado sob o aspecto teológico, destina-se
a ensinar aos homens a mensagem de Cristo e levar os homens à
salvação; na constituição da cidade, porém, ele deve seguir as
determinações da lei civil, cabendo ao clero principalmente a educação
do povo, ensinando-o a obedecer às autoridades. Os membros da
Igreja não possuem nenhuma forma de poder coercitivo. O papa possui
os mesmos poderes que qualquer outro sacerdote e está sujeito ao
concílio, sendo que este deve ser convocado pelo legislador humano.
Aliás, a dispensa de preceitos contidos no Evangelho só cabe ao
concílio ou ao legislador humano, jamais ao papa ou a algum bispo.
Além disso, compete ao legislador humano vigiar para que os
ministros do culto tenham os bens suficientes para viver, mas o clero
não pode exigir pagamento de dízimos. Já os religiosos, que prometem
pobreza, não podem reter bens supérfluos e nem reivindicá-los ante a
justiça e devem ser mantidos pobres pela autoridade.
Assim, Marsílio propõe uma sociedade civil que não se
encontra propriamente separada das coisas espirituais, mas que as
incorpora, emasculadas, à constituição do estado. Ele só não percebeu
que, ao negar a plenitudo potestatis ao papa, a estava transferindo ao
imperador e ao poder civil. Wyclif, umas décadas mais jovem do que
ele, leu-o e nele encontrou argumentos para defender o primado do rei
da Inglaterra sobre a Igreja.
Chegamos, enfim, em Guilherme de Ockham. Também ele,
como seu confrade Duns Scotus, não se dedicou ex-professo à teoria
política, mas, por causa das inúmeras disputas com o papado, devido
originariamente à questão da pobreza dentro da Ordem Franciscana,
acabou redigindo uma volumosa obra de grande alcance político. Cito
dele como referência o Breviloquium de principatu tiranico11.
11
GUILHERME DE OCKHAM. Brevilóquio sobre o Principado Tirânico.
Petrópolis: Vozes, 1988.
27
O teólogo Ockham, ao contrário de Marsílio, seu colega de
exílio, defende o primado do papa entre os bispos, como sendo de
instituição divina. Defrontando-se, porém, com o problema da
extensão da autoridade pontifícia, inicia dizendo que se o papa
possuísse a plenitudo potestatis poderia atuar ao arrepio da lei
evangélica, que é a lei da liberdade, como ensinava são Paulo. De fato,
se o sumo pontífice possuísse tal plenitude, poderia transformar em
escravos aqueles que a Escritura proclamou como livres, na liberdade
dos filhos de Deus. Ora, o papa sequer é senhor dos bens da Igreja, dos
quais é mero administrador, muito menos, portanto, será senhor das
pessoas. Indo além, e valendo-se da teoria nominalista, ele diz que a
Igreja – uma entidade de razão que ninguém jamais viu – nada mais é
do que o conjunto de todos os que crêem em Jesus Cristo, e a eles cabe
a direção suprema da Igreja. O modo ordinário de eles se reunirem é o
Concílio Ecumênico, no qual devem estar devidamente representados
não só os bispos, os clérigos – pois eles são apenas uma parte da Igreja
–, mas todos os cristãos, de cujos interesses se venha a tratar, sejam
eles clérigos ou leigos, homens ou mulheres, visto que, segundo a velha
tradição do Direito Romano, quod omnes tangit, ab omnibus probari
debet (aquilo que a todos interessa, deve ser tratado por todos).
Já com relação aos reinos, se residisse no papa a plenitude do
poder, ele poderia depor o rei da França e doar a coroa a outra pessoa,
como também poderia privar alguém de seus bens e atribuí-los a
outrem. Ora, o próprio Cristo, enquanto homem passível e mortal, não
teve tal poder, mas foi um obediente súdito do imperador, a quem
pagou tributo. E quando conferiu poderes a Pedro, nem mesmo lhe
conferiu todos os poderes espirituais que possuía, como o de conceder
a graça sem o batismo, de instituir novos sacramentos etc.
Os reinos, portanto, não são instituídos pela Igreja, pois
existiram desde que os homens julgarem que era conveniente viver em
sociedade (segue, pois, o contratualismo de Scotus). Diz ele a respeito:
“... as autoridades seculares, a saber, a imperial, a régia e outras
relevantes, são estabelecidas por Deus, não mediante a autoridade
pontifícia, mas através da autoridade dos homens, a qual receberam
não do papa, mas de Deus. Por isso, o poder real não provém do
pontífice, mas de Deus, por intermédio do povo, que dele recebeu o
poder para estabelecer para si um rei que o governe com vista à
28
obtenção do bem comum”12. Portanto, “compete à razão do homem o
dever de individuar a conveniência de instituir a autoridade, mas foi
Deus que deu ao homem a razão para procurar as coisas necessárias e
úteis para viver de modo ordenado e pacífico”13. A solução ockhamiana
é engenhosa: com ela salva, de um lado, o princípio de que todo o
poder provém de Deus e, de outro, a titularidade popular do poder,
pois, como ele observa, o império pertence àquele que confere ao
imperador o poder de fazer leis14.
* * *
Pode-se dizer que com Quidort, Scotus, Dante, Marsílio e
Ockham, e com as mudanças políticas devido ao surgimento de estados
independentes, a teoria da plenitude do poder papal e,
consequentemente, da dependência do poder civil ante o espiritual
perdeu seus fundamentos teóricos. Ela não desapareceu de um dia
para outro (contemporâneo de Marsílio e Ockham foi o curialista
Álvaro Paes15), mas suas raízes estavam minadas. O que despontava
então no horizonte eram as pretensões de plenitudo potestatis por
parte do absolutismo monárquico, que se valeu dos teóricos da Igreja
para, invertendo os nomes, tentar instituir uma forma de césaro-
papismo no Ocidente.
Permanecia, porém, no Ocidente o legado dos pensadores
medievais, graças ao qual era possível pensar em um estado laico, isto
é, montar uma teoria do estado que prescindisse do apelo aos dogmas
religiosos – o que não significava, necessariamente, supô-lo como anti-
cristão.
12
Pode um príncipe, c. 4, p. 98s.; I, 243. No Dialogus. (III, II, I, ed. Goldast, c. 26,
p. 899) a mesma ideia: "... porque, quando se diz que o poder imperial, e de modo
geral todo o poder lícito e legítimo provém de Deus, contudo, não só de Deus, pois
alguns provêm de Deus através dos homens, e tal é o poder imperial, que vem de
Deus, mas pelos homens". 13
A. GHISALBERTI. Guilherme de Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p.
286. 14
Dial. III, II, 1, c. 27, p. 899. 15
Cf. J. A. de C. R. de SOUZA. As relações de poder na Idade Média Tardia –
Marsílio de Pádua, Álvaro Paes e Guilherme de Ockham. Porto Alegre: EST
Edições, 2009.
PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual Norte Fluminense
O pensamento de Aristóteles manter-se-á em grande medida
ligado à tradição clássica e mais particularmente platônica,
concedendo à busca da virtude um lugar central de sua reflexão ética.
Talvez por essa razão – mas não apenas por ela, evidentemente –
Franco Cambi afirma que, no que se refere à reflexão sobre a paidéia,
sua obra pouco se distancia daquela de seu mestre:
A sua paidéia é um pouco a correção empírica do grande e
ousado modelo platônico, mas de maneira nenhuma uma refutação e
um modelo alternativo. Entre os dois modelos há mais continuidade do
que oposição ou diferença” (CAMBI, 1999, p. 93).
Mas essa posição – ademais corrente em certa tradição da historiografia filosófica – parece, no entanto, bastante extremada e injusta. Assim, nosso propósito será não somente examinar algumas concepções da teoria das ações em Aristóteles, suas elaborações e controvérsias, mas procurar demonstrar, desses conceitos, a força elucidativa que nos ajuda a pensar a formação humana.
O projeto aristotélico de formação, que, apresentado nos
livros VII e VIII da Política, encontra-se no cerne da discussão sobre a
pólis, deu-se por finalidade a realização do télos humano, a eudaimonía
(felicidade). Também sua reflexão sobre a ética concede à formação
humana um papel central na sua efetivação (ARISTÓTELES, 1997;
1985 a). Cabe enfatizar a singularidade da formulação aristotélica em
relação ao pensamento platônico – que Werner Jaeger, como outros
pensadores da educação, ignorou de forma sistemática e
conscienciosa, deslocando sua discussão para o espaço estrito e muitas
vezes hermético da filosofia.
E, de fato, de uma maneira geral, a filosofia de Aristóteles
consiste na construção de uma ontologia bastante rigorosa, que tem
como ponto de partida os entes em geral, voltando-se para o mundo
30
físico e para a lógica. Porém, diferentemente de seus antecessores,
desde Parmênides, Aristóteles insiste em levar em consideração os
modos de conhecimento instituídos no cotidiano da pólis, como o
conhecimento proveniente da experiência sensível e como a opinião,
liminarmente excluídos por Platão na medida em que constituem-se
em visadas contingentes e necessariamente particulares da realidade.
Assim, Aristóteles dialoga não só com toda a tradição anterior de
pensamento, como com o homem na praça pública, com o vulgo.
Sua filosofia evidencia, assim, a palavra humana sobre o ser,
diferenciando-se do discurso filosófico que, a partir de Platão, buscará
o ponto de vista do divino para falar das coisas humanas1. Ora, a
perspectiva humana introduz na multiplicidade do ser, que é sua
experiência cotidiana no mundo, e que Platão tentara evitar, ao
pretender falar de um lugar de onde, ignorando o contingente, se pode
admirar a unidade das essências. Ao recusar a metafísica platônica,
Aristóteles deve se haver com o caráter contingente da realidade, que
para ele é derivado da composição complexa entre matéria e forma,
sendo a primeira relacionada à contingência em função da constante
mudança da physis decorrendo daí a dificuldade de apreendê-la em
virtude do limite do olhar humano. A matéria a torna inapreensível,
uma vez que engendra a instabilidade ao seu conceito, impedindo uma
determinação, ou delimitação de uma forma ideal do ser.
Mas aquilo que foi duravelmente identificado à limitação da
experiência humana e do conhecimento que dela deriva diretamente,
incapaz de chegar às causas e princípios que constituem todo ser e
todo dever-ser, é convertido, no pensamento de Aristóteles, em
privilégio: somente ao humano, a ele e não os deuses, é dado um
mundo por descrever ou construir. A contingência do mundo, o desafio
1 Sobre essa tendência que marcará o pensamento ocidental em sua busca pela
objetividade científica, diz Arendt: “O problema da natureza humana [...] parece
insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido fisiológico em
geral. É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e
definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos,
venhamos a ser capazes de fazer o mesmo a nosso respeito: seria como pular sobre
nossa própria sombra. Além disto, nada nos autoriza a presumir que o homem
tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm.
Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um
deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um
quem como se fosse um quê” (ARENDT, 1987, p. 18).
31
imposto a cada instante pelo acaso exige desse indivíduo, em muitos
momentos, uma intervenção – o que não ocorre num mundo divino
regido pela necessidade, é em função da incompletude do mundo, ou,
pela insatisfação do humano que há a intervenção, diferente de um
mundo pleno, perfeito, acabado. Assim, dirá Aristóteles:
Os deuses não são nem justos, nem corajosos, nem liberais, nem temperantes, pois não vivem em um mundo em que tenham de fazer contratos, enfrentar perigos, possuir dinheiro ou moderar seus desejos (ARISTÓTELES, 1997, X, 8, 1178 b 9-18).
A contingência não se apresenta apenas como obstáculo ao
conhecimento, ou marca da limitação do saber humano; ela desperta a
atitude investigativa, o espanto ou admiração diante do caráter
misterioso de tudo que há. E abre a possibilidade para a iniciativa
humana. Nas palavras de Pierre Aubenque:
Sem a contingência, a ação dos homens seria impossível. Mas, sem a contingência, ela seria também inútil. […] a indeterminação do futuro é o que faz do homem o princípio; o inacabamento do mundo é o nascimento do homem (1986, p. 106).
A práxis humana só é possível em função das fraturas, ou do
inacabamento da realidade. Desse modo, o mundo se apresenta para
nós como algo a ser feito, indeterminado, confuso, carente de sentido –
o que nos impele a agir, a querer intervir, a significar a realidade.
Já aqui encontramos uma diferença substancial entre
Aristóteles e seu mestre, pois no pensamento platônico não há lugar
para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível
imobilidade do mesmo, face ao aparente fluxo das coisas. Além disso,
não há sentido em intervir sobre o mundo, na medida em que ele é
uma mera cópia imperfeita do mundo ideal. Assim, o querer humano
não é suficiente para a efetivação da realidade.
Em Aristóteles, pode-se dizer que a questão da iniciativa
humana é central, mas o filósofo percebe de saída as dificuldades a
serem enfrentadas: não é porque quero a justiça, ou a felicidade que
tais desejos serão realizados. A fórmula - desejo o bem, mas pratico o
mal, não tem sentido no universo platônico, onde o desejo é função do
conhecer: se conheço o bem, não posso querer o mal. Para Platão, a
32
alma já é portadora da virtude, necessitando do exercício dialético
para o reconhecimento do justo, do belo, da coragem etc. Para
Aristóteles, somente através do hábito pode-se chegar à virtude – que
não se encontra adormecida na alma humana, mas só ganha
visibilidade pela instituição pública que a comunidade efetiva. O
conhecimento de virtude não é, pois, suficiente; mas o mero desejo
também não basta: é preciso ainda que se manifeste a iniciativa
humana, sob forma de deliberação, condição sem a qual a ação não
poderá ser uma boa ação, ou seja, uma ação virtuosa. Na concepção do
estagirita, quem quer saber o que é a justiça deve olhar para o justo. O
frónimos ou o homem prudente é aquele capaz de deliberar com
prudência: contemplando as ações do virtuoso entendemos o que é
virtude. Segundo Leon Robin,
Nada lhe parece mais inútil do que a imaginação platônica de um Bem em si, fonte única do que é bom e verdadeiro. De que serviria ao tecelão, por exemplo – pergunta ele – que um tal bem existisse e fosse conhecido por ele? Alguém se tornaria melhor médico ao contemplá-lo? Por que o médico não tem em vista, evidentemente, a Saúde em si, mas a saúde do homem, ou para dizer melhor, a de tal homem em particular (1970, p. 40).
A noção de hábito ganha um sentido fundamental para a
concepção de formação, pois é a partir da introdução dos valores
instituídos e reconhecidos pela comunidade que se poderá tratar da
formação do indivíduo. É sob as bases da cultura instituída que a
educação estará fundada, e é à coletividade que cabe a decisão sobre a
melhor formação, já que só se pode deliberar sobre a integralidade dos
assuntos humanos, mas somente sobre aqueles que nos concernem –
nenhum lacedemônio delibera sobre a melhor constituição dos citas
(ARISTÓTELES, 1997, 1112 a 25). O papel concedido à cultura, aos
hábitos e costumes da pólis no exame da melhor formação para o
cidadão evidencia a ruptura com o sistema platônico, que buscava
deduzir a ação correta de um princípio absoluto e extra-social:
Aristóteles apóia a investigação sobre a boa ação na faculdade de
discernimento adquirida por um cidadão plenamente inserido no
contexto de sua polis, como disse Ernest Tugendhat:
Como é sabido, a capacidade de formular juízos morais corretos e concretos – de phrónesis – segundo Aristóteles, não é uma
33
faculdade intelectual livre (freischwebendes), mas depende da disposição afetiva adequada do ser humano que, por sua vez, remete a uma correta educação (1988, p. 47).
Isso não significa, contudo, que a ética aristotélica rompa
com a busca da areté proposta por Sócrates e Platão: mas, nela, o
ponto de partida é sempre a opinião (doxa), que seu mestre rejeitava
tão enfaticamente. Além disso, Aristóteles enumera também o acaso e
o caráter contingente da realidade como aspectos a serem
considerados na análise do agir no mundo. Não há, para os assuntos
que tocam à educação, verdades absolutas e apriorísticas; desse modo,
a teoria cede o passo aos bons hábitos, que são estampados nos
exemplos fornecidos pelos justos: Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre os temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. Porquanto o fato é o ponto de partida, e se for suficientemente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim; e o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade (ARISTÓTELES, 1997, 1125b 27-29).
A justiça é a ação praticada pelo justo, por aquele que
adquiriu a capacidade de bem deliberar: não seria essa uma petição de
princípio? Como saber se um homem é ou não virtuoso? Como
reconhecer se uma ação é ou não justa? O próprio Aristóteles irá
atentar para essa dificuldade, como bem observou Pierre Aubenque: […] Aristóteles se d| conta que a deliberaç~o, cujo conceito toma emprestado da prática política, não basta para constituir a virtude. Pois a deliberação não trata sobre o fim, mas sobre os meios, não trata do bem, mas sobre o útil, e a deliberação enquanto tal, pode ser colocada a serviço do mal (1986, p. 116).
A questão parece resultar da admissão do caráter
contingente e prático da virtude, que faria da ética uma ciência sobre o
acidente (AUBENQUE, 1986, p. 116): sem o apoio em um princípio
universal, como falar em ética? Para Platão, como sabemos, isso é
impossível: o discernimento das boas ações humanas é diretamente
deduzido da idéia de Bem – mas já então é impossível fornecer à ação
34
humana qualquer estatuto ontológico. Aristóteles, no entanto, insiste
em considerar a práxis, fazendo dela o próprio centro de sua ética. E,
se a práxis, consistindo forçosamente a cada vez em uma deliberação,
resiste ao método científico, tal como o concebia Platão, Aristóteles, ao
invés de afastá-la, buscará interrogar o próprio conhecimento
realizando uma teoria da ação: que tipo de conhecimento corresponde
à ética, e como defini-lo? […] ninguém delibera sobre coisas que não podem ser de outro modo, nem sobre as que lhe é impossível fazer. Por conseguinte, como o conhecimento científico envolve demonstração, mas não há demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis (pois todas elas poderiam ser diferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são por necessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte (ARISTÓTELES, 1997, VI, 1140 a 30-35).
O conhecimento prático não visa, pois, à determinação, de
uma vez por todas, de seu objeto, nem à produção de algo: trata-se de
um tipo muito particular de conhecimento, que visa à ação
(ARISTÓTELES, 1997, I, 1095 a 3).
Porque o mundo não se mostra acabado e perfeito, ele é um
mundo de relação, de analogias, de escolhas. A imperfeição do mundo
exige uma tomada de posição e, por conseguinte, uma ação: a práxis
humana arremata o que se apresenta como inacabado, diferentemente
das coisas naturais que, possuindo uma constituição imanente, deixa-
se conhecer em suas causas ou princípios. Mas a deliberação humana
não é, na concepção de Aristóteles, possível senão no intervalo que é
fixado pela própria natureza. Ela é, portanto, busca de meios para a
realização daquilo que já está dado, para a realidade humana, como
seu fim último. Sobre esse fim, que não pode ser conhecido
diretamente, não nos cabe deliberar.
Não há, portanto, uma formula geral de agir a partir da qual
se deduz mecanicamente o modo correto da ação. Aristóteles não
busca o absolutamente cognoscível, obedecendo a um modelo
geométrico de dedução das conseqüências, mas o cognoscível em
relação a nós (ROBIN, 1970, p. 41): “[…] as ações belas e justas, que a
política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião,
de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção
apenas, e n~o por natureza” (ARISTÓTELES, 1997, 1094 b 15).
35
A ação jamais pode ser dita boa em si mesma, mas sempre
em relação ao contexto em que se realiza; um ato considerado virtuoso
em um momento determinado pode não sê-lo em outras
circunstâncias. O cuidado que Aristóteles demonstra, ao descrever as
virtudes morais, em apresentar as circunstâncias e os indivíduos que
as praticaram é, pois, indicativo da inflexão que sua concepção ética
realiza sobre seu método, aqui, bastante distinto dos procedimentos
adotados em outros lugares de sua obra – como por exemplo, nas
discussões sobre a ciência nos Analíticos2. O mesmo pode-se dizer do
lugar que concede, em suas considerações, ao patrimônio de reflexões
que constitui sua própria cultura – diferentemente de Platão, que
despreza e omite tanto quanto lhe é possível a doxa3: Aristóteles viveu constantemente a doxa, reportando-se a ela (com a diaporética, a dialética, o justo meio-termo, e todas essas espécies de justezas e de justiças feitas), constituindo-a em sua nobreza, a ponto de a própria doxa ser, igualmente para nós, não mais, certamente, como uma autoridade legiferante e legitimadora, mas antes como fonte, conhecida ou não, das mais simples e das mais perenes constatações (CASSIN, 1999, p. 10)
O recurso aos exemplos, em que Aristóteles irá se basear
para fundamentar o que seja uma boa formação, revela igualmente o
valor concedido à opinião. Em sua investigação sobre aquela que é, não
a formação em sentido absoluto, mas a melhor formação em função
das circunstâncias, Aristóteles destaca a importância da escolha
(proaíresis), base para toda ação. A formação deve preparar o cidadão
2 Os Analíticos a priori e a posteriori pertencem ao conjunto de pequenos tratados
conhecidos como Organon (instrumental). São textos exotéricos, ou seja,
dedicados a publicação e com características propedêuticas para os discípulos do
Liceu. Os Analíticos a priori tratam dos raciocínios dedutivos e formais base da
lógica clássica e os Analíticos a posteriori, dos métodos científicos cujo
procedimento parte dos fatos para remontar as causas (aitia) primeiras que
explicam o fenômeno, esse procedimento (epagogé) será mais tarde denominado
indução. 3 Doxa aqui tem o sentido de opinião comum, no sentido aristotélico de partir de
algo aceito por todos, um bom exemplo é o procedimento apresentado por
Aristóteles quando trata do raciocínio dialético nos Tópicos, I, 100 b: “São, por
outro lado, opiniões geralmente aceitas aquelas que todo mundo admite, ou a
maioria das pessoas ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os
mais notáveis e eminentes”.
36
para deliberar sobre si, sobre a vida na polis e sobre a melhor maneira
de atuar na vida pública e na vida privada.
Desse modo, o conceito de proaíresis torna-se central no
pensamento ético de Aristóteles, que o distingue da deliberação. A boa
deliberação sem dúvida prepara a escolha que o homem prudente
realiza; mas, em Aristóteles, as duas não coincidem, como ocorre, por
exemplo, na ética kantiana. Em Kant, a ação moral baseia-se em um
imperativo categórico, revelando-se como uma ação racional pura, que
não é contaminada pela psicologia pessoal e pelos desejos. Em
contraposição a ela, a proaíresis aristotélica incorpora o desejo, que
tensiona o humano em direção aos fins e, portanto, à busca dos meios
mais eficazes para alcançá-los.
A deliberação adquire, assim, um caráter mais propriamente
técnico: o termo, que Aristóteles importa da vida política grega, traduz
um exercício que poderá servir tanto à virtude quanto à má ação.
Assim, conclui o comentarista,
A proaíresis é… o momento da decis~o, o voto que sucede { deliberação e que não é mais somente a manifestação da inteligência deliberante, mas da vontade desiderante, que intervém para fazer oscilar a deliberação, tanto quanto para fixar o fim (AUBENQUE, 1986, p. 121).
Como comenta ainda Aubenque, a concepção aristotélica de
deliberação implica no fato de que a boa escolha não se mede mais
pela retidão da intenção, mas pela eficácia dos meios (1986, p. 122).
Muitos críticos, a partir da modernidade, enfatizaram o caráter
dogmático que estaria subentendido nessa redução instrumental da
deliberação. No entanto, reduzir a ética de Aristóteles a esta aparente
contradição, ou questioná-la sob pretexto da liberdade da vontade
(AUBENQUE, 1986, p. 121), além do evidente anacronismo – que
antecipa para o mundo helênico a doutrina da responsabilidade e da
liberdade, baseada num sujeito autônomo e agindo em conformidade a
uma lei moral – implica em desconsiderar o quanto o abandono dos
modelos ideais lança Aristóteles no mundo da doxa e no desafio de
pensar o humano em relação às contingências e adversidades de um
mundo em constante mudança.
Como dissemos anteriormente, Aristóteles encaminha suas
investigações enfrentando a multiplicidade dos seres, ao invés da
37
solução de facilidade em que consiste a recusa da materialidade, da
contingência e das multiplicidades provenientes da realidade –
estratégia já utilizada por Parmênides e retomada por Platão que a
levou às ultimas conseqüências. Componente necessário do vivente4, a
matéria resiste à definição, não se deixa formular, mas se deixa moldar
pelos atributos acidentais a partir dos quais somente ela se dá a
conhecer: é forçoso, portanto, que o acesso ao ser só possa se fazer
pelos seus acidentes. Realiza-se assim, no mundo sublunar, a
multiplicidade incoercível do vivente: o ser de Aristóteles, comenta
Aubenque, não se revela a nós senão através da irredutível pluralidade
do discurso categorial: Assim, […] o ente se diz de v|rios modos; mas todo o ente se diz em ordem a um só princípio. Uns, com efeito, entes porque são substâncias; outros, porque são afecções da substância; outros, porque são caminhos para a substância, ou corrupções ou privações ou qualidades da substância ou das coisas ditas em ordem a substância, ou por que são negações de alguma destas coisas ou da substância5 (1962, p. 456).
Rompendo com a ontologia platônica, Aristóteles depara-se
com a carência de sentido do ser, preso a um constante vir a ser,
tornando-se constantemente outro. Resistindo a todo momento aos
conceitos, o ser pode ser dito movimento, materialidade, contingência
que não se dobra às categorias formais do ser. Mas o que se apresenta
na obra do estagirita como um limite, passa contudo aos olhos de sua
posteridade como abertura para novas formulações:
4 Em várias passagens do livro Z Aristóteles utiliza o termo ousia como o
composto de matéria e forma. Afinal, se o termo ousia se identificasse com a
matéria, seria pura contingência e, assim, impossível qualquer determinação mas,
por outro lado, se fosse reduzido a forma isolada da materialidade a teoria
Aristotélica retornaria inevitavelmente o platonismo. 5 Metafísica 1003 b 5-10, trad. Valentin Garcia Yebra, Madrid: Gredos, 1987. No
livro 1017 b 10-15 da Metafísica, Aristóteles apresenta a seguinte definição de
ousia: Substância se chamam os corpos simples, por exemplo, a terra, o fogo, a
água e todas as coisas semelhantes, e, em geral, os corpos e os compostos deles,
tanto animais como demônios, e partes destes. Todas essas coisas se chamam
substâncias porque não se predicam de um sujeito, mas, (ao contrário) as demais
coisas são predicadas delas.
38
Mas, a partir do momento em que tomamos o termo de movimento como fazê-lo no texto aristotélico e em verdade – como equivalente à mudança, à alteração de que o movimento local é apenas um caso particular, devemos incluir também a mudança de forma, a alteração, a transformação; e esta última, em seu sentido mais forte, inclui por sua vez o aparecimento, a emergência, a criação da forma. Afirmaremos, portanto, não a partir de uma nova “leitura” de Aristóteles, como diria o pretensioso e, ao mesmo tempo, pusilânime jargão atual, mas pensando, nós próprios, a partir do imenso questionamento que a obra do filósofo nos abre, e transgredindo conscientemente seus limites, que é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem da forma. O que significa dizer: é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem de criação – já que a única criação que importa é a das formas (CASTORIADIS, 1998, p. 215).
O homem é princípio, arkhé, ele se cria se produz, mas em
vista de tornar-se aquilo que era para ser, ou seja, aquilo que era para
ser será constantemente criação do próprio humano, resulta da sua
própria invenção, que não está dada de antemão. Como bem diz
Castoriadis : Essa não-predeterminação do homem aparece nas hesitações e nas aporias de Aristóteles em relação à polis e ao direito, e também, de uma maneira diferente, nas ambigüidades de sua concepção da techné. [...] Direi apenas que é precisamente no domínio humano, na sociedade e na história, que podemos identificar imediata e claramente a capacidade de uma classe de entes de criar a alteridade, novas formas, de se fazer existir em e por novas leis (1998, p. 216).
Por isso, os limites da Metafísica são o começo da ética. Se
todas as coisas já estivessem pré-determinadas, como quis o idealismo
platônico, não haveria nada a ser feito, nas palavras de Pierre
Aubenque: “A meio-caminho de um saber absoluto, que tornaria a ação
inútil, e de uma percepção caótica, que tornaria a ação impossível, a
prudência aristotélica representa – tanto quanto a reserva, verecundia,
do saber – o acaso e o risco da aç~o humana” (1986, p. 177).
Aristóteles retoma a antiga inquietação grega, diante da
imprevisibilidade do devir e da precariedade das coisas humanas, que
convida o homem a ser princípio e criador de seu próprio mundo. É
nesse sentido que, a partir de Aristóteles, se pode pensar, como o fez
39
Castoriadis, a formação humana como auto-criação e movimento que
se constitui inicialmente numa tentativa de descrição da realidade, e,
no entanto, no limite da natureza emerge a criação humana.
Enfrentando as aporias que resultam do caráter fugidio e enigmático
do ser, Aristóteles pensa a formação como um investimento de
preparação desse indivíduo para a compreensão de seu télos, de sua
finalidade.
A Paidéia aristotélica e a formação para a polis
A concepção aristotélica de formação possui, como vimos,
um sentido muito geral, que abarca desde a noção de forma como
princípio organizador do ser que visa a sua realização, até a ação do
indivíduo, também relacionada à pólis. O homem deve buscar realizar
sua própria forma, que se constitui na via contemplativa, na atividade
intelectiva do nous, que será também a finalidade de toda a formação
individual, visando a realização das virtudes dianoéticas. Contudo, é
possível tratar do humano numa outra dimensão, além do aspecto
puramente teórico e auto-formativo: ele é igualmente ser social e,
nesse sentido, ao lado de uma formação individual que visa a sua
realização para um fim (télos), em busca da eudaimonía, o humano
possui, na concepção aristotélica, outros modos de lidar no mundo
para além do limite da natureza. Por isso mesmo, o processo de
formação sempre esteve, de alguma maneira, no centro da discussão
do estagirita.
Jean Lombard assinala um aspecto muito importante para
análise da concepção aristotélica de formação. De maneira geral,
embora o pensamento do estagirita tenha se constituído numa das
principais influências para a posteridade, quando se trata da história
da educação grega, consideram-se como marcas na evolução do
movimento educativo a teoria idealista platônica e a idéia e cultura da
sofistica, que posteriormente inspirará à tradição humanista, mas
freqüentemente se omite a contribuição de Aristóteles (LOMBARD,
1994, p. 7). Os grandes textos sobre a educação na antiguidade
simplesmente a ignoram, como é o caso de Henri I. Marrou e Werner
Jaeger. A mesma coisa se passa, mais recentemente, com Franco
Cambi: referindo-se a Aristóteles, eles o colocam numa posição
40
subalterna frente aos grandes mestres (Platão, a sofística e Isócrates),
não identificando qualquer originalidade em sua paidéia.
No entanto, as contribuições para a formação geradas no
Liceu, representaram um marco para a educação da época, a começar
pela distinção de âmbitos de saberes (ética, política, física, estética),
além de um programa propedêutico (Órganon) – que deu origem a
toda ulterior discussão lógica e que, no Liceu, era aplicado aos
iniciantes como uma espécie de introdução a todo conhecimento. Mais
do que qualquer outra coisa, porém, sua antropologia, que destaca a
abrangência e os limites da teoria e da prática na formação humana,
introduz questionamentos essenciais para a crítica não só das
formulações platônicas e sofísticas, mas inclusive da prática educativa
da modernidade e de nossa atualidade.
É possível que muitos dos obstáculos resultem do fato de que
Aristóteles não elabora um programa educativo formal, como o
fizeram Platão e Isócrates. Mas, se nos interessamos, não por uma
proposta pedagógica acabada, mas pela possibilidade de estabelecer
uma teoria consistente sobre a educação, encontramos nos livros VII e
VIII da Política – obra admitida em geral como um dos textos mais
antigos da reflexão de Aristóteles – elementos de rara relevância. Em
que pese a conhecida tese genealógica de Werner Jaeger, que busca
entender a filosofia de Aristóteles a partir de uma aproximação do
pensamento platônico (insistindo sobre o dualismo entre alma e
corpo, ou através de referências explícitas à Academia) é quase
impossível não constatar o quanto Aristóteles nos legou para a
reflexão e a prática da formação humana.
A organização do saber aristotélico, efeito de pedagogia implícita, na verdade faz da obra inteira uma obra de educação, animado como os cursos do mestre pelo cuidado perpétuo de formar e ao mesmo tempo convencer (LOMBARD, 1994, p. 16).
Na origem de toda prática formativa está para Aristóteles a
idéia da felicidade, finalidade máxima da existência humana, fixada já
de partida na Política assim como nas Éticas. Na Política, a busca pela
eudaimonía justifica a investigação sobre a comunidade humana e suas
regras (1990, p. 13). Na Ética à Nicômaco, o Bem supremo é buscado
pela conduta individual (ARISTÓTELES, 1997, I, 2). Em ambos os
casos, porém, as implicações para a educação são evidentes.
41
Mas, como afirmamos, não se encontrarão nas obras
mencionadas nenhum traço da busca por uma pólis ideal à maneira
platônica, ou qualquer modelo utópico. É certo que o livro VII da
Política retoma a apresentação e análise, já empreendidas em outros
textos, de diferentes modelos de sociedade: mas não decorre daí um
modelo acabado de pólis a exigir um rígido programa educacional.
Contudo, como assinalou Lombard, formar para a felicidade, para o
encontro do soberano bem, parece ser o pano de fundo da obra do
estagirita: a busca (zetein) perpétua do conhecimento e da verdade
não é jamais exterior à busca da felicidade que funda as Éticas e a
Política. A própria filosofia – apresentada na Metafísica sob as
denominações de sophia, ciência primeira ou philosophia – feita virtude
do intelecto especulativo, se justifica pelo fato de corresponder ao
princípio da felicidade. Mesmo a divisão aristotélica das ciências parecem representar um plano de estudos em três ciclos, dos quais os dois primeiros constituem a educação liberal do cidadão e o último a formação do sábio. Toda obra de Aristóteles é fiel ao preceito de Metafísica: de uma maneira geral, aquele que prova que sabe realmente alguma coisa é capaz de ensinar a outro (LOMBARD, 1994, p. 16).
A tentativa de propor uma formação que oriente o indivíduo
em suas ações no mundo e na pólis, já demonstra um distanciamento
do grande plano platônico, que não apresentou alternativas exeqüíveis
para uma construção política: o projeto educativo de Platão constitui-
se em uma espécie de iniciação, de ascese cujo objetivo é o bem ideal e
transcendente. A formação platônica pretende conduzir o indivíduo,
não ao exercício político de construção de uma cidade real, mas à
cidade interior que o filósofo já carrega em si e que participa das belas
formas da cidade ideal. Para Aristóteles, o fim da educação não é outro
além do fim da existência humana – que, insiste ele, não se pode
realizar fora da pólis. O indivíduo é aluno da pólis e é nela, e não em
outro plano, que ele deve buscar a sua realização (LOMBARD, 1994, p.
22). Em outra passagem afirma:
Aristóteles inclui de uma só vez a paideia na politeia, de uma maneira que lhe é própria, mas que se apóia sobre a acepção grega tradicional da politeia: para além do regime político, o
42
termo remete à vida coletiva, à sociabilidade e às suas formas, aos valores morais, à maneira de ser própria da cidade (LOMBARD, 1994, p. 23).
De forma que a educação jamais é isolada de seu meio
natural, que é a sociedade. Por isso, na concepção de Aristóteles, a
educação deveria ser pública: [...] em todas as capacidades e todas as artes há elementos que são necessários serem aprendidos previamente e assimilados pelo exercício de cada um deles, de modo que é evidente a mesma coisa para as atividades virtuosas. E visto que o fim de toda cidade é único, é manifesto que seja necessário uma só e mesma educação para todos e que seja cuidada coletivamente e não de maneira privada como no presente, em que todos visam suas próprias crianças separadamente, e lhes dispensam seu próprio ensinamento. Ora, é necessário que a aprendizagem do que concerne à coletividade seja coletivo. [...] O cuidado de cada parte tem por natureza em vista o cuidado com o todo (1990, VIII, 1337 a 20-30).
Como as disposições particulares do ser humano não são
suficientes para sua plena realização, é imprescindível formá-lo pela
cultura. Mas a Política não traz orientações para a instrução oficial da
pólis, tendo em vista as circunstâncias específicas pelo momento
vivido, não procede à definição de um sistema teórico, nem tampouco
se ocupa de uma regulamentação para a pólis. A Política é um esforço
antropológico de observação do real, a partir do funcionamento de
outras póleis e de suas necessidades educacionais especificas. É aí que
se pode observar a originalidade do pensamento de Aristóteles: a
relevância de sua pedagogia consiste na sua tentativa de oferecer
respostas a questões que se apresentavam à Atenas, no contexto de
crise, procurando um meio-termo entre a tradição e as inovações de
sua época.
O momento de crise que vivia a Grécia conduziu a um
sistema anárquico de ensino, no entanto, ele contradiz a noção de
cidadania, tão cara aos gregos, onde os indivíduos só possuíam
importância em suas relações na pólis. A Política de Aristóteles
consistiu num esforço de recompor a pedagogia do Estado, colocando
em acordo fins políticos e meios educativos, os únicos capazes de
restaurar a pólis e retomar seus ideais.
43
A formação humana visa, pois, em Aristóteles,
primordialmente o exercício da participação política. A pólis é seus
cidadãos: se o primeiro gesto político é a criação da própria polis, a
formação humana é seu instrumento privilegiado. Mas a ênfase na
socialização não implica descuido com a dimensão individual: pelo
contrário, a participação pública requer a aquisição de uma virtude
que somente a prática pessoal da deliberação pode garantir. Mais do
que uma idéia a virtude é essa prática, transformada pela cultura em
uma segunda natureza, em um hábito democrático, realizando-se
sempre em cada caso particular, pelo exercício da virtude adquirida,
pelo hábito instituído por uma cultura.
Desse modo, em suas reflexões sobre a pólis e sobre seus
valores, ao longo da ampla elaboração antropológica que realiza,
Aristóteles tece sua concepção de formação, que tem na prática seu
ponto central. Em favor dessas considerações, pode-se parecer apelar a cada vez o comportamento dos indivíduos em sua vida privada e a prática dos legisladores: castiga-se, com efeito, e obriga-se a reparação destes que cometem ações perversas, a menos que tenham agido a contragosto ou por uma ignorância que eles mesmos não são causa, e por outro lado, honram-se esses que cumprem as boas ações, e devemos encorajar estes últimos e reprimir os outros (1997, III, 7 a 20-25).
Tal como a virtude, a formação humana não é,
definitivamente, uma questão meramente intelectual: ao contrário, ela
só se efetiva no tempo, por meio de ações. Ao contrário de Platão,
Aristóteles não tem dúvidas de que a virtude pode ser adquirida: mas
o que se ganha então, não é um conhecimento, uma Idéia, mas uma
segunda natureza, uma segunda enteléquia, um hábito. A formação
aristotélica se apresenta, desse modo, como uma alternativa oferecida
a duas posições díspares: por um lado, o absolutismo idealista
platônico, que tem na noção de desejo do bem em si o seu princípio
formador; e, por outro lado, o relativismo subjetivista da sofística, de
que o bem é sempre relativo àquele que o deseja. As duas posições
que, tomadas em sua radicalidade, representam uma profunda ameaça
à democracia, convergem em um ponto: a perspectiva individualista
em que acabam por encerrar a ética. O projeto de formação de
44
Aristóteles recupera o exercício da democracia e de suas
interrogações, na medida em que, ao partir dos exemplos cotidianos,
concede ao interlocutor a participação no espaço público das opiniões.
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CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL
José Maria Arruda
Universidade Federal Fluminense
Em seus escritos do período de Weimar (1919-1932), Carl
Schmitt anuncia como tarefa principal de seu pensamento político
salvar o conceito de democracia de seus momentos liberais. Para isso,
ele buscou revelar a substância metafísica por trás do discurso e da
semântica do liberalismo e de sua concepção de democracia. Sua
assombrosa erudição acerca da história política e jurídica europeia lhe
permitiu trazer à tona elementos interessantes da formação conceitual
do vocabulário liberal.
Para o jurista alemão, a concepção moderna de Estado de
Direito e de ordenamento jurídico corresponde somente ao projeto
político hegemônico da burguesia liberal. Desde seu surgimento, todo
o objetivo da burguesia é a neutralização da política em favor de seus
interesses econômicos e de seu conceito individualista de liberdade; o
resultado desse processo foi a submissão completa do Estado e da
Política aos princípios do individualismo, a saber, à moral individual e
ao cálculo de interesses privados. Assim, em sua própria essência, o
liberalismo seria inimigo do Estado, por isso não foi capaz de
desenvolver uma teoria positiva do poder estatal, somente de fazer
restrições à sua soberania. O avanço do liberalismo burguês implicou
cada vez mais uma diminuição da capacidade de ação política e
intervenção social do Estado. Carl Schmitt rejeita veementemente a
tese de que a liberdade do indivíduo possa estabelecer um limite à
atuação do Estado. No liberalismo, a Economia assume o monopólio
das decisões políticas e isso significa a destituição do Estado como
instância suprema de decisão política, que ele caracterizou como a era
da neutralização e da despolitização. No que se segue, tentarei expor
alguns pontos centrais da crítica de Schmitt à democracia liberal.
I
No Conceito do Político, Schmitt afirma que os termos que
compõem a semântica do campo político (Estado, república, sociedade,
48
classe, soberania, Estado de Direito, Constituição, democracia) são
vazios em si mesmos e somente recebem um significado real quando
referidos aos grupos que concretamente são concernidos, atingidos,
combatidos, contestados e refutados por meio deles. Para Schmitt, a
política é um espaço de relação, de conflito e disputa entre pessoas e
grupos de pessoas, e não entre entidades ideais.
Todos os conceitos da esfera espiritual, inclusive o conceito de espírito, são conceitos pluralistas e somente podem ser compreendidos tomando como ponto de partida a existência política concreta [...]. Todas as representações essenciais da esfera espiritual dos seres humanos são existenciais e não normativas (SCHMITT, 1996, p. 84).
Assim, para entender o surgimento da concepção de
democracia do liberalismo é preciso ter em mente os dois adversários
tradicionais da burguesia liberal: o príncipe e o povo. Esta posição
existencial da burguesia torna compreensível sua estrutura conceitual,
uma vez que, na epistemologia política schmittiana, posições e
conceitos estão entrelaçados visceralmente.
Do ponto de vista conceitual, o liberalismo deve ser visto
antes de tudo como um sistema metafísico que faz da categoria do
indivíduo seu conceito fundamental, derivando daí uma concepção
individualista da liberdade e privatista de propriedade (SCHMITT,
1969, p. 45). A semântica conceitual do vocabulário liberal surgiu a
partir da luta concreta contra o Estado Absolutista do século XVII. Os
liberais procuravam diminuir cada vez mais o poder do monarca e
obter garantias no campo político e na esfera econômica. Todas as
ideias políticas do liberalismo têm como objetivo a limitação do poder
soberano, a proteção do indivíduo e da propriedade privada contra a
interferência do Estado e da coletividade (SCHMITT, 1993b, p. 126). O
liberalismo dissemina um sentimento de desconfiança em relação a
todo e qualquer exercício do poder, a toda e qualquer forma de
presença do Estado. É por isso que, para Schmitt, o liberalismo não é
propriamente uma teoria política, mas uma crítica de toda e qualquer
forma de política em favor da economia e de uma visão abstrata do
indivíduo.
A junção entre democracia e liberalismo só foi possível
porque ambos, em um determinado momento de suas lutas políticas,
49
tinham um inimigo político comum, a saber, o estado monárquico. Em
meados do século XIX, como forma de diminuir mais ainda o poder
monárquico, o movimento liberal se apropria, pois, da bandeira
democrática que pregava a transferência do poder soberano para o
povo, a superação da legitimação monárquica para a legitimação
democrática do poder. No entanto, no lugar do povo, o movimento
liberal estabeleceu o parlamento como lugar da produção das normas
e da tomada de decisões políticas, evitando assim a participação
popular e tomando para si a legitimação democrática. A identificação
de soberania popular com representação parlamentar constitui um
dos elementos essenciais do que Schmitt entende por democracia
liberal. Em síntese, a ideia do Estado de Direito surgiu da luta política
da burguesia liberal para limitar o poder do soberano através de dois
meios: a ordem jurídica do Estado constitucional e a representação
política parlamentar.
Schmitt reconheceu no conceito liberal de Estado
Democrático de Direito a expressão da ideologia burguesa e de sua
metafísica do indivíduo. Isso se mostra no fato de que os teóricos
liberais somente reconhecem como estado de direito legítimo aquele
estado cuja constituição se rege fundamentalmente pela ideia
burguesa de liberdade: a liberdade individual. Estrategicamente, o
liberalismo fez de seu conceito particular de constituição o conceito
universal de constituição (SCHMITT, 1993b, p. 36). Assim, para um
liberal, só se pode falar em Estado como Estado de Direito quando as
exigências da liberdade e da propriedade individual forem
contempladas:
A moderna constituição do Estado de Direito burguês corresponde em seus princípios ao ideal de constituição do individualismo burguês, de tal maneira que estes princípios são comumente identificados com a constituição enquanto tal, e ‘Estado constitucional’ com Estado de Direito burguês.... Esta constituição contém, em primeira linha, uma decisão em favor da liberdade burguesa: liberdade pessoal, propriedade privada, liberdade de contratos, liberdade de comércio [...] O Estado aparece como um empregado da sociedade, submetido ao seu controle estrito (SCHMITT, 1993b, p. 126).
O objetivo do liberalismo é regulamentar toda a ação do
Estado e limitá-la a um funcionamento maquinal, calculado. O Estado
50
aparece não como uma unidade política, mas como um conjunto de
normas e procedimentos (Normen und Verfahren), uma espécie de
constructo kantiano artificial e formal.
Em contraposição a um estado tirânico, os liberais
consideram que, no Estado de Direito, qualquer intervenção estatal na
esfera da liberdade individual só pode se dar sob amplo amparo da lei.
O estabelecimento de um ordenamento jurídico fixo, estável, base do
movimento constitucionalista liberal do século XIX, foi essencial tanto
para a submissão do poder do Estado ao princípio de legalidade, mas,
sobretudo, porque gerava um ambiente de segurança, predizibilidade
e confiança em que prosperavam as transações comerciais, as
transferências hereditárias e os negócios. O constitucionalismo foi o
instrumento que a burguesia liberal utilizou para defender seus
interesses econômicos privados através da imposição de uma série de
direitos individuais e através da separação de poderes. Enquanto a
democracia é uma forma particular de exercício efetivo da soberania
política, o constitucionalismo é exatamente o oposto, ou seja, é uma
forma de limitar a soberania política. A burguesia pretende “moderar”
o poder político dividindo e contrabalançando diferentes organismos
do Estado – presidência, parlamento, cortes de justiça – nenhuma
delas devendo exercer a soberania plenamente. O constitucionalismo
liberal impõe limitações ao exercício da soberania e nesse sentido
entra em contradição com a democracia.
Em um artigo de 1929, intitulado “Der bürgerliche
Rechtsstaat”, Schmitt afirma que:
O Estado de Direito burguês se caracteriza, em linhas gerais, por se assentar sobre a ideia dos direitos fundamentais do indivíduo e sobre o princípio da divisão dos poderes. Dessa forma, a liberdade do indivíduo é posta, a princípio, como ilimitada; o Estado e seu poder, como limitados. O que o Estado pode fazer, vai ser rigorosamente determinado. Por toda parte são introduzidos órgãos de controle, cuja ação é juridicamente assegurada. Ilimitada, no entanto, é a liberdade pessoal do individuo. Ela não é regulada por leis, e qualquer possível violação a ela precisa se dar dentro de parâmetros estabelecidos por determinadas normas. O ponto de partida é a esfera das possibilidades ilimitadas dos indivíduos e a controlabilidade geral do Estado. Este princípio de divisão liberal atravessa toda a organização do Estado. As competências do Estado serão
51
divididas em seus mínimos detalhes e as possibilidades de dominação contrabalançadas umas com as outras (SCHMITT, 1995, p. 45).
A teoria liberal impôs um conceito de constituição que tem
três pontos básicos: a) o reconhecimento dos direitos fundamentais do
indivíduo; b) a separação dos poderes do Estado; e c) representação
política burguesa no parlamento. O uso da palavra “Estado de Direito”
nas teorias liberais é, portanto, um uso político (ou seja, polêmico) e
tende a desqualificar toda e qualquer forma de Estado que não assuma
os valores defendidos pelo liberalismo.
Para o modo de expressão do liberalismo burguês só existe Constituição ali onde a propriedade privada e a liberdade individual forem asseguradas; tudo o mais não é Constituição, mas despotismo, ditadura, tirania, escravidão (SCHMITT, 1993b, p. 37).
A divisão de poderes baseia-se em uma ideia banal: seria
perigoso que o órgão que elabora a lei, seja também aquele que a
executa; isso seria uma grande tentação para quem detém o poder.
Durante o iluminismo ficou famosa a divisa: nul corps armé ne peut
délibérer. Logo, nenhum órgão do estado deve concentrar todo o poder
em si e isso explica distinção cada vez maior entre deliberare e agere,
fundamento da distinção entre legislativo e executivo. Onde não
houver separação entre legislativo e executivo, há necessariamente
ditadura e arbítrio. Schmitt lembra que na declaração dos direitos do
homem e do cidadão, em seu artigo XVI, lê-se que sociedades que não
respeitam os direitos individuais nem a separação de poderes são
desprovidas de constituição.
Em síntese, o liberalismo consequente tem nicho específico
em parte na esfera econômica, em parte no moralismo abstrato e é um
sistema artificial de métodos visando, em última instância, o
enfraquecimento do Estado e o exercício pleno da vontade soberana.
II
Em confluência com as exigências democráticas, o
movimento liberal se fortaleceu ao exigir a criação de uma
52
representação da sociedade diante do monarca e ao defender a tese de
que o legislativo deve influenciar o executivo. Ao longo do século XIX, a
luta da burguesia contra o estado monárquico travou-se basicamente
como luta pela instituição de parlamentos como lugar de produção do
ordenamento legal. Segundo Schmitt, a separação entre Estado e
Sociedade resulta das construções dualistas e polêmicas da burguesia
contra o Estado monárquico (príncipe versus povo, coroa versus
câmara, governo versus representação popular, etc.). O parlamento no
século XIX foi pensado como o lugar onde a representação popular se
confrontava com o governo, onde a sociedade se opunha ao Estado, o
povo ao príncipe.
Para a burguesia, era fundamental substituir a pessoa do Rex
pela ideia de regnum e pela ratio universal. O rei tem que obedecer à
lei, o poder da lei deriva do fato de que, diferentemente do comando e
do ordenamento pessoal, ela emana da razão, ela é pura ratio, sem
interferência nenhuma da cupiditas ou da turbatio. Era preciso
contrapor o “government by will” por um “government by constitution”.
O movimento liberal procurou, então, ampliar e estender os poderes e
a jurisdição das assembleias populares ou do parlamento até que o
monarca fosse completamente alijado do processo legislativo. O
critério formal da validação legal era o apelo à forma de legitimação
democrática através da suposta participação popular nas assembleias.
Mas aqui se engendra, segundo Schmitt, uma transformação semântica
do conceito de lei, gerando dois conceitos incompatíveis: de uma lado,
a lei é definida como uma norma cuja validade deriva de suas
propriedades racionais intrínsecas; de outro, lei é tudo aquilo que é
posto pela vontade do “povo”, em que a categoria “povo” pode ser
considerada semanticamente equivalente { categoria “representaç~o
popular”. A rigor, o poder político do parlamento cresceu tanto que
modificou o significado do termo “lei”: qualquer norma só se torna lei
se for previamente aprovada no parlamento (SCHMITT, 1993a, p. 19).
Para Schmitt, o feito extraordinário do liberalismo foi
substituir qualquer noção substancial de vontade popular pela noção
formal de vontade do parlamento. É nesse sentido que, segundo ele, o
movimento liberal guinou o movimento democrático em direção à
dominação parlamentar. Entretanto, a única justificação para
existência do parlamento é de natureza técnico-pragmática: dado a
impossibilidade da reunião do povo em uma praça pública para
53
deliberação das questões fundamentais, conclui-se, então, da
necessidade de uma assembleia de representantes eleitos pelo povo.
Por isso, o parlamento aparece como altamente democrático. Para
Schmitt, no entanto, a questão envolve mais do que isso: ela implica
em saber por que exatamente o parlamento foi visto como ultimum
sapientiae, como lugar de produção da verdade e da racionalidade do
ordenamento jurídico e das decisões políticas; somente com a crença
de que a instituição do parlamento produz a vontade geral, a
racionalidade enquanto tal e a correção das leis, somente com isso se
pode aceitar a tese de que o parlamento deve influenciar e intervir no
governo, ou seja, de que o parlamento exerça o domínio político
propriamente dito (SCHMITT, 1969, p. 42).
Schmitt descreve o parlamentarismo como resultado da
posição metafísica do liberalismo que acredita na produção da verdade
e da justiça através da discussão e da livre troca de opiniões. Ora, os
liberais criaram uma oposição entre o poder monárquico, que se
exerce enquanto mando, e o poder democrático-parlamentar que se
exerce através da discussão e do convencimento. A crença que está na
base do parlamentarismo é, portanto, a crença em um government by
discussion. O parlamentarismo - como parte da ideologia liberal –
reforça a ideia de que o espaço político é um espaço onde se efetuam
trocas de ideias e argumentos entre representantes de segmentos
sociais distintos para, através de uma negociação entre pontos de
vista, estabelecer conceitos válidos de verdade e justiça. O parlamento
pretende ser o centro da articulação racional da opinião pública.
O liberalismo se apoia, portanto, em uma concepção
pragmática de verdade como resultado/função do processo de
formação da opinião pública. A verdade aparece como uma função da
concorrência de opiniões. É interessante perceber que o liberalismo
pressupõe aquilo que Schmitt denomina o racionalismo relativo:
embora pretenda resolver tudo através de argumentos racionais, o
liberal nunca pode se colocar questões substanciais referentes às
visões de mundo, ele somente pode se limitar a coisas que, que por
conta de sua natureza relativa, podem ser resolvidas com negociações
e compromissos. Assim, no racionalismo relativo do liberalismo, uma
parte das questões – exatamente as questões substanciais sobre visões
de mundo – tem de permanecer fora de discussão, sob pena de não se
chegar a consenso e, pelo contrário, gerar disputas entre os indivíduos
54
(SCHMITT, 1969, p. 58). Logo a discussão no interior do liberalismo
pressupõe bases não discutíveis. Para Schmitt, o liberalismo se funda
de fato na ausência de uma verdade comum, de uma unidade popular e
no adiamento da decisão política sobre as questões essenciais da vida
social: a busca da verdade se converte em uma conversa eterna
(ewiges Gespräch). A noção de verdade e justiça é completamente
supérflua, pois ela remete sempre à correção dos procedimentos
instrumentais de racionalidade das decisões. O procedimento aparece
como garantidor da legitimidade.
A liberdade de discurso, de imprensa, de associação, de
discussão são mais do que instrumentos úteis, eles são questão de vida
e morte para o liberalismo e sua estratégia de esvaziamento da política
como espaço de decisão coletiva, de exercício da soberania popular.
Schmitt não cansa de fazer alusão ao pensador antiliberal espanhol
Donosó Cortez, que ridicularizava a burguesia chamando os
parlamentares liberais de “la classe discutidora”, aqueles que vivem da
ilusão de que é possível através da troca de argumentos chegar a uma
deliberação e a uma ação acerca dos conflitos sociais.
Por causa do postulado de publicidade da vida política,
confunde-se liberalismo e democracia. O surgimento do espaço público
e da publicização dos atos do Estado foi visto como a cura de todos os
problemas de corrupção e abuso de poder dos regimes absolutistas.
No Iluminismo, julga-se que a opinião pública funcionaria como um
corretivo eficaz contra regimes despóticos. Liberdade de discurso e
liberdade de imprensa foram transformados em elementos essenciais
da formação do espaço público. A liberdade de imprensa foi vista como
a proteção mais efetiva contra o arbítrio político. Retomando uma
definição de Richard Thoma, Schmitt define opinião pública como
“produto de uma aç~o recíproca entre jornais e leitores” (SCHMITT,
1994, p. 26).
Para Schmitt, os princípios fundamentais que formam o
“espírito” da democracia liberal-parlamentar são o princípio da
discussão e o princípio da publicidade. Discussão significa uma troca
de opiniões que se dá com o intuito de convencer o oponente, através
de argumentos racionais, da pretensão de verdade e correção da
própria posição ou de se deixar convencer pelo oponente (SCHMITT,
1969, p. 9). A atividade parlamentar é regulada por procedimentos que
garantem a liberdade de fala e pela publicização das sessões. O liberal
55
acredita que o consenso social e político vai surgir espontaneamente
da livre disputa das opiniões no parlamento, do mesmo modo que o
equilíbrio no mercado surge da livre concorrência dos indivíduos. Esse
processo tem suas regras e procedimentos específicos, sobretudo os
que garantem a circulação das opiniões, tal como, no mercado, capital
e bens circulam livremente.
Para Schmitt, em sua prática efetiva, porém, as decisões do
parlamento não são tomadas no plenário, mas em comissões
reservadas. Os partidos são representantes permanentes dos
interesses de segmentos do eleitorado e seus membros devem votar
segundo as orientações das lideranças partidárias. Ora, com isso a
discussão desaparece do parlamento, pois a disciplina partidária é
exigida dos parlamentares. Como afirma Schmitt, nenhum debate
público vai influenciar um parlamentar que vota de acordo com a
orientação de seu partido. A força de cada partido é medida pela
quantidade de votos que ele possui no parlamento. Dessa forma, no
parlamento as discussões se convertem em negociações e
compromissos, determinados por um cálculo de resultados e não por
uma noção desinteressada de bem público. O parlamento se converte,
assim, em uma instituição cujas decisões são resultado de barganha, e
cujas votações nominais não passam de mera formalidade. Os partidos
políticos, enquanto grupos de interesses, substituem o princípio da
discussão pelo princípio da negociação (Verhandlung) e as grandes
decisões do parlamento são tomadas, não em sessões abertas, mas a
portas fechadas pelos líderes partidários. As negociações não são
orientadas para a busca da verdade e do melhor argumento, mas pela
contabilização dos interesses e das chances de ganho e de ocupação do
poder. Para Schmitt, isso não se representa somente de uma crise
acidental ou contingente do parlamento, mas é inerente à essência do
liberalismo que entende a discussão como uma forma de concorrência
de opiniões e de acordo entre partes.
Se o liberalismo estimula cada vez mais a divisão social e o
pluralismo das concepções de mundo, como é possível chegar a uma
unidade sobre as decisões fundamentais da vida social e política? É por
isso que, para Schmitt, a crise política da democracia liberal não é um
fenômeno empírico e passageiro, mas algo que pertence
estruturalmente à essência da democracia liberal, incapaz ela própria
de produzir homogeneidade social e política, baseada sempre em
56
negociações e arranjos partidários com base em interesses imediatos.
Pode-se dizer que assim como para Marx, o capitalismo gera
necessariamente crises; para Schmitt, a democracia liberal é um
sistema político inviável, que leva à dissolução do Estado.
O que agrava o caráter crítico da concepção liberal de
democracia é o fato de que o desenvolvimento das modernas
sociedades de massa tornou a discussão pública e argumentativa no
parlamento uma mera formalidade. Os partidos não passam de
fachadas para grupos sociais e econômicos que calculam suas chances
de poder e a partir daí fecham compromissos e formalizam coalizões
sem bases programáticas (SCHMITT, 1969, p. 11). O elemento
discursivo-normativo, de que falava Habermas, desaparece
completamente e é substituído pelo cálculo de interesses e pelas
articulações para chegar ao poder. Na democracia liberal, o problema
consiste menos em se esforçar para convencer os outros da validade
das pretensões de verdade postas discursivamente, mas sim de obter
maiorias nas votações. Em verdade, o parlamento não consegue
efetuar a passagem dos indivíduos atomizados para a unidade da
vontade geral, pois ele reproduz, no plano político, as divisões geradas
no plano econômico pelo liberalismo. A democracia liberal perpetua,
assim, a dominação dos interesses econômicos e corporações.
As massas são alvo de um forte aparato de propaganda que é
tanto mais eficaz quanto apela para seus interesses imediatos ou
manipula suas emoções. Dessa forma, as políticas do Estado passam a
depender, de um lado, das preferências individuais manifestas na
forma de uma opinião pública difusa e manipulada pelos aparatos de
informação e propaganda nas mãos da burguesia, de outro, dos
arranjos parlamentares ditados por interesses partidários. A opinião
publica recebe um valor absoluto embora ela fosse somente um meio
contra a política secreta do absolutismo. Schmitt lembra ainda que o
surgimento do parlamento está ligado às grandes tradições da cultura
europeia e, sobretudo, ao temor das elites cultas contra um possível
domínio das massas incultas, um medo da democracia. Para ele, sinal
claro dessa deturpação da democracia no liberalismo é o fato de a
ciência política ter se dedicado cada vez mais a investigar os
mecanismos através dos quais os partidos poderiam desenvolver sua
propaganda eleitoral, organizar as massas e dominar a opinião pública.
Em última instância, fica claro a íntima relação entre partidos políticos,
57
grande imprensa e grande capital, que sempre trataram as disputas
políticas como sombras da realidade econômica (SCHMITT, 1969, p.
30).
Para Schmitt, há uma contradição entre o conceito de
democracia, que exige certa homogeneidade social, e a ideia liberal de
uma sociedade individualista e pluralista. O Estado é tomado como um
aparato instrumental, burocrático, e não uma entidade coletiva que
pudesse ser objeto de confiança e lealdade. O liberalismo faz a
legalidade do Estado depender de um contrato livre entre os
indivíduos, mas esquece que para a formação da volonté generale um
estado verdadeiro somente pode surgir onde há certo grau de
homogeneidade do povo, pois sem isso não poderia haver unidade de
ação. A ideia do contrato social entre indivíduos variados, com
interesses diversos e agindo de modo puramente egoísta é parte da
antropologia liberal. Em verdade, na vertente democrática do
pensamento de Rousseau, o Estado não é um contrato de indivíduos,
mas uma entidade coletiva que expressa a vontade geral,
fundamentada na luta por soberania, na unidade popular e na
identidade entre governantes e governados.
Na opinião de Schmitt, existe uma profunda contraposição
entre a consciência individual do homem liberal e a homogeneidade
requerida para a noção de democracia (SCHMITT, 1969, p. 23). O
principal problema de uma teoria democrática, a saber, estabelecer
quem é o povo, quem faz parte da unidade política, não pode ser
compreendido por um viés liberal, cuja metafísica parte sempre da
ideia abstrata de indivíduo e de humanidade e é incapaz de
compreender os processos histórico-políticos de formação das
identidades coletivas e das unidades políticas. Enquanto forma de
democracia sem povo, a democracia liberal tornou-se um conceito sem
substância, incapaz de formar um consenso verdadeiramente
democrático – isto é, homogêneo, existindo somente uma ilusão de
unidade, ali onde existe há de fato somente a barganha entre grupos de
interesses e lobbys políticos. Assumindo, em parte, a crítica marxista
às democracias formais, Schmitt diz:
O que hoje na Europa vale como Democracia é um engodo da dominação econômica do capital sobre a imprensa e os partidos políticos, ou seja, é um engodo de uma vontade popular falsamente moldada (SCHMITT, 1969, p. 38).
58
III
Para Schmitt, o sentido da palavra liberdade no liberalismo
se esgota em liberdade de opinião, liberdade de imprensa, de
associação e imunidade parlamentar. Porém, onde a vontade soberana
do povo é chamada a se pronunciar, no voto, há a exigência de que esse
voto seja secreto, o que significa realmente a compreensão da
passagem meramente mec}nica do privado para o público: “O
soberano desaparece na cabine de votaç~o”. A liberdade de opinião,
no liberalismo, é sempre uma liberdade de opinião de indivíduos
privados (SCHMITT, 1969, p. 50), o que implica uma espécie de
privatização da política. O povo como unidade desaparece, restando
somente a ideia de que a vontade soberana do povo é o resultado da
somatória das vontades individuais expressas através da manifestação
silenciosa do voto. Para Schmitt, um dos maiores engodos da
democracia liberal é transmitir a ideia de que democracia se resume
simplesmente ao exercício universal do direito de voto e de que o voto
secreto deve ser o fundamento último da vida política (SCHMITT,
1994, p. 25). Em verdade, nas decisões de ordem política, o indivíduo
não vota como privatus, mas como citoyen tendo em vista o bem-estar
de todos. No liberalismo, o povo é excluído de manifestação política. A
identificação entre democracia e voto individual, afirma Schmitt, não é
democracia, mas liberalismo do século XIX (SCHMITT, 1994, p. 126).
Segundo ele, há que se distinguir entre direito de escolha
(Wahlrecht) que significa o direito de escolher seus próprios
representantes; e o direito de decisão (Entscheidungsrecht), que
significaria o direito de se posicionar sobre questões essenciais da vida
social e política. A democracia liberal, através de seu modelo
representativo parlamentar, tende a limitar o direito de decisão dos
cidadãos meramente ao direito de escolha de representantes no
parlamento.
A ampliaç~o do conceito jurídico de “povo” para o conceito
sociológico de “massa” deu-se, ao longo do século XIX e XX, com uma
significativa ampliação da população no processo eleitoral. Essa
ampliação, porém, foi meramente quantitativa em relação ao número
de votantes (mulheres, adolescentes, etc.), e não qualitativa com o
59
incremento de mecanismos efetivos de participação popular nas
decisões políticas. No liberalismo, o conceito de democracia resume-se
a processo eleitoral e coeficiente de eleitores. A rigor, o que se poderia
chamar efetivamente de ampliação da participação popular nas
decisões políticas deveria ser resultado da criação de mecanismos de
decisão sobre as questões concretas da vida social e política
(plebiscitos, referendos, mobilização social, manifestações públicas,
etc.). A democracia representativa é, para ele, um resíduo
inconsequente da luta da burguesia contra o estado monárquico e,
como vimos, uma concessão a problemas de ordem técnico-
pragmática.
A democracia é, segundo Schmitt, mais do que um sistema de
registro de votos secretos. Em sua essência, ela se apoia em uma série
de identidades. Identidades entre governantes e governados, senhor e
súdito, identidade do povo com sua representação, identidade de
estado e eleitores, identidade de estado e lei, identidade do
quantitativo com o qualitativo. Todo o problema da democracia se
resume na questão da formação da vontade popular e nos mecanismos
através dos quais ocorre a manifestação clara dessa vontade.
Contra o tecnicismo da democracia liberal, Schmitt opõe o
que ele chama de democracia imediata (unmittelbare Demokratie),
democracia radical ou democracia sem mediações. Em seu modo de
ver, somente a democracia direta poderia realizar as tendências
igualitárias inerentes ao movimento democrático da modernidade. A
democracia radical leva à decisão popular sobre todas as questões
importantes da vida social, inclusive no plano econômico; a
democracia liberal, por seu turno leva somente a uma igualdade
jurídica sob a base de uma vida social na qual se desenvolvem todas as
desigualdades possíveis entre os indivíduos (SCHMITT, 1994, p. 22).
Quanto mais arraigado for o sentimento democrático de um
povo, a vontade popular pode ser expressa de muitos meios, mais
interessantes que os diversos mecanismos estatísticos pensados
minuciosamente pelo aparato do estado liberal. Como alternativa ao
sistema parlamentar, Schmitt propõe uma espécie de sistema presidial
forte com ampla participação popular. Se é necessário que o princípio
democrático da identidade entre governante e governado seja
complementado pelo princípio de representação, essa representação
tanto pode ser dar por uma assembleia quanto por um único
60
indivíduo. O mais importante é que o princípio de identidade seja
efetivado de uma maneira não meramente formal, mas substancial e
efetiva. Nesse sistema, o povo soberano exerceria sua vontade política
através de diversas formas, entre elas, inclusive, o voto nos referendos
e plebiscitos. Mas não se pode determinar previamente os limites do
exercício da soberania. Democracia é manifestação da vontade popular
nos meios em que essa vontade popular quiser e puder se manifestar.
Para Carl Schmitt, todas as teorias modernas do Estado de
Direito liberal tentam eliminar o conceito do soberano, em última
instância, tentam eliminar o exercício da soberania. O legalismo
buscou despersonalizar o conceito de soberania e aplicá-lo a entidades
abstratas (normas, leis, constituição, razão, etc.). Assim como a
teologia deística procurou eliminar a noção de milagre e de ação
providencial de Deus no mundo, ideologicamente o liberalismo
político e o normativismo jurídico procuraram eliminar o conceito de
uma vontade soberana que pudesse alterar a ordem jurídica. Como
resultado de sua vis~o mecanizada e “reificada” do mundo, o
liberalismo deixou de perceber a natureza intrinsecamente conflituosa
da ação política e a necessidade inelutável de intervenção ocasional do
Soberano para decidir em casos extremos. A negação do problema da
soberania é um desdobramento da postura liberal de negação da
autonomia do poder estatal enquanto tal.
O Liberalismo pretende uma neutralização completa da
política, por isso não existe uma teoria política liberal, mas somente
uma crítica liberal da política. Entretanto, o liberalismo não é apolítico
em suas intenções e em seus efeitos. Ele se vale de uma retórica ético-
humanista para encobrir a realidade dos interesses econômicos que
estão no centro dos debates sobre a atuação do Estado. A política é a
capacidade de um povo decidir sobre sua própria forma de vida, sobre
sua própria existência, capacidade de autodeterminação, de tornar-se
de fato soberano, dando forma concreta à sua liberdade fundamental
enquanto entidade política.
O centro do movimento liberal foi e continua sendo, segundo
Schmitt, a propriedade privada. No liberalismo, a economia
predomina, enquanto o espaço político é desqualificado como espaço
de mera violência e substituído por um humanismo abstrato. O
liberalismo pretende evitar a ideia da guerra como componente da
luta política e transmuta essa guerra pela concorrência econômica e
61
pela discussão de ideias, pela discussão espiritual. A situação da
política em seu tempo, Schmitt caracterizava como um “imperialismo
econômico camuflado com uma retórica humanista”. Infelizmente, seu
tempo ainda é o nosso tempo.
Referências ARRUDA, J. M. Carl Schmitt: Estado, Política e Direito, In: OLIVEIRA, M. et alii. Filosofia Política Contemporânea. Petropolis: Vozes, 2003, p. 56-86. DYZENHAUS, D. Law as Politics. Carl Schmitt’s critique of Liberalism. Londres, 1998. GOTTFRIED, P. Carl Schmitt: Politics and Theory. Greenwood Press, 1992. MOUFFE, C. Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy, In: C. MOUFFE (ed.): The Challenge of Carl Schmitt. Londres: Verso, 1999, pp. 38-53. SCHMITT, C. Die geistesgechichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Berlim: Duncker & Humblot, 1969. ______. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. (1922). 6. Berlim: Duncker & Humblot, 1993a. ______. Verfassungslehre. Berlim: Duncker & Humblot, 1993b. ______. Legalität und Legitimität. Berlim: Duncker & Humblot, 1993c. ______. Positionen und Begriffe. Berlim: Duncker & Humblot, 1994. ______. Staat, Grossraum, Nomos. Berlim: Duncker & Humblot, 1995. ______. Der Begriff des Politischen. Berlim: Duncker & Humblot, 1996 .
A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA: A BIOPOLÍTICA, O ESTADO DE EXCEÇÃO, A VIDA NUA
Sandro Luiz Bazzanella
Universidade do Contestado
Selvino José Assmann
Universidade Federal de Santa Catarina
Questões introdutórias: Agamben e a Biopolítica
Giorgio Agamben jurista e filósofo, é um dos pensadores mais
lidos na atualidade. Nascido em Roma em 1942. Sua obra tem início
nos anos 70, com ênfase no debate em torno da estética e da obra de
arte, assumindo a intensidade das reflexões políticas em meados dos
anos 90. Neste sentido, a obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida
nua I, publicado em 1995 (no Brasil em 2002, pela editora da UFMG),
marca de forma mais contundente suas reflexões no âmbito da política.
Esta obra, que inaugura uma série denominada Homo Sacer, pode ser
definida, como a obra que produz o encontro entre duas linhas de
força do pensamento político do século XX, que nunca haviam se
encontrado: Hannah Arendt e Michel Foucault. É a partir das
perspectivas destes dois pensadores que o filósofo italiano
movimentará suas pesquisas e investigações em torno dos fenômenos,
advindos de sua concepção da biopolítica como politização da vida
nua. É a vida nua que constituirá para Agamben a marca distintiva da
modernidade, resultante das estruturas políticas ocidentais desde seus
primórdios.
Agamben vai consolidando em sua obra uma corajosa leitura do pensamento político contemporâneo, recorrendo a paradigmas extremos como o ‘campo de concentraç~o’ ou o ‘estado de exceç~o’ e, sobretudo falando da biopolítica como luta da vida e das formas da vida contra o poder, que procura submetê-las a seus fins por meios muitas vezes ilegítimos (ASSMANN, 2007, p. 7).
64
Na tentativa de nos aproximarmos do arco conceitual e
discursivo do filósofo, cabe citar alguns pensadores, que se situam
entre suas influências filosóficas e, sobretudo, temáticas. Mas, observe-
se que tais aproximações não se dão sem o devido reconhecimento e,
salvaguardadas as diferenças conceituais e interpretativas de cada
filósofo em jogo, entre eles: Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Walter
Benjamin, Hannah Arendt, Michel Foucault, Carl Schmitt, Gerson
Scholem, Émile Benveniste. Talvez ainda se possa dizer que Agamben
é um filósofo cuja matriz de pensamento é aristotélica, na medida em
que seu perquirir filosófico desenvolve-se pensando as singularidades
em sua essencialidade no plano da imanência absoluta. É uma forma
de pensar o mundo, a vida em sua totalidade naquilo que lhe é próprio,
em sua condição singular imanente. Ou seja, Agamben pretende fazer
uma ontologia da vida, ou dito de outro modo, uma ontologia da
potência que incida diretamente nas mais diversas formas-de-vida que
se articulam na história em geral e na contemporaneidade de maneira
específica.
Quanto ao conceito de biopolítica, em seu texto: “O que é um
dispositivo”, Agamben argumenta de que o cuidado terminológico, o
trato conceitual é condição de primeira grandeza do trabalho
filosófico. “As questões terminológicas s~o importantes na filosofia. [...]
a terminologia é o momento poético do pensamento”1. Nesta
perspectiva, a influência decisiva na discussão conceitual em torno da
biopolítica é de Michel Foucault, que a partir de suas pesquisas e
cursos desenvolvidos no Collége de France em meados da década de
70, toma o conceito de biopolítica de escritos de economia e estatística
dos séculos XVIII e XIX e o insere no contexto da dinâmica política
moderna e contemporânea. Porém, aponte-se para o fato de que as
influências de Foucault sobre o pensamento de Agamben, transcendem
o conceito de biopolítica, implicando na concepção e no método do
exercício do filosofar, como exercício que busca, a partir de uma
perspectiva arqueológica, genealógica e paradigmática, as
1 Le questioni terminologiche sono importanti in filosofia. [...], la terminologia è il
momento poetico del pensiero. AGAMBEN, Giorgio. Che cos' è un dispositivo?
Roma: Editora Nottetempo, 2006, p. 05 (Tradução de Vinícius Nicastro Honesko
(In) AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó:
Editora Argos, 2009, p. 27).
65
descontinuidades políticas, éticas, epistemológicas que condicionam
ontologicamente a ocidentalidade na contemporaneidade. Mas - vale ressaltar uma vez mais – que influência neste caso
não significa repetição ou manutenção do que outro autor já havia dito. Há muita diferença entre dizer – como o faz Foucault – que a biopolítica é um fenômeno relacionado ao nascimento do Estado moderno e, de sua racionalidade técnico-administrativa em relação ao território e a população que o compõem, reconhecendo as influências constitutivas do poder pastoral, características do exercício do poder eclesiástico presente no mundo judaico-cristão medieval, e sustentar, como o faz Agamben, que a biopolítica é intrínseca à experiência política ocidental desde seus primórdios, ou então, que ela é constitutiva da própria política ou das relações de poder político. Sendo assim, a biopolítica tem uma dimensão ontológica, enquanto para Foucault não se pode falar da biopolítica a não ser como característica da política a partir do século XVIII. Por isso também, para Agamben, a biopolítica (fazer viver e deixar morrer) se vincula à teoria da soberania (fazer matar e de deixar viver), enquanto para Foucault a teoria da soberania, mesmo que conviva historicamente com a biopolítica, se distinga claramente da biopolítica.
No que concerne ao conceito de estado de exceção, vale assinalar a aproximação de Agamben com Walter Benjamin e, sobretudo, nesta discussão em específico, com Carl Schmitt, filósofo e jurista alemão (1888 – 1985), que desenvolveu intensa reflexão em torno da dinâmica política ocidental, afirmando seu caráter intrínseco de exceção, bem como seus fundamentos teológicos judaico-cristãos medievais, herdados, ou secularizados pela modernidade. Agamben assim se posiciona:
O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (...) que, se eu queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu devia medir-me. Como com um inimigo antes de tudo – mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão (ROBERTO, 2008, p. 3).
66
A máquina/dispositivo política: A Biopolítica, o Estado de
Exceção, a Vida Nua.
Como decorrência da máquina/dispositivo antropológica que
divide animalidade de humanidade, Agamben aponta e amplia sua
crítica à metafísica ocidental em suas estruturas políticas presentes
desde seus primórdios. A polis materializa-se sobre a fratura
originária, entre animalidade e humanidade, entre voz e phone, entre
physis e nomos. A vida humana sob determinadas prerrogativas,
própria dos gregos, passa a ser concebida como vida qualificada
politicamente e, portanto, pode ser incluída na polis. Neste sentido, a
zoé é vida biológica não qualificada, e bios é a vida política como tal,
como vida qualificada.
Em sentido inverso, a vida concebida em sua dimensão
biológica está desprovida das condições e dos direitos políticos
necessários a seu ingresso na vida qualificada da comunidade política,
mas mantida no espaço da “oikos”, da casa em função da necessidade
de produção cotidiana das condições de sobrevivência e da
reprodução da mesma.
A política se apresenta então como a estrutura, em sentido próprio fundamental da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre o ser vivente e o logos (AGAMBEN, 2002, p. 16).
O que está em jogo nas investigações arqueológicas e
genealógicas de Agamben é a apreensão de modelos paradigmáticos
na gênese e estrutura da política e da cultura ocidental, como condição
de possibilidade de compreensão das formas a partir das quais a vida
foi e sempre é aprisionada pela política e da centralidade que a
economia assumiu na modernidade e na contemporaneidade. É a
busca da compreensão de como a política, em sua condição ontológica,
articula-se contemporaneamente com a racionalidade pragmática
administrativo-política de gestão da vida humana em sua dimensão
eminentemente biológica, caracterizando o paradigma biopolítico
contemporâneo. Mas também tem sentido perguntar pelas possíveis
formas-de-vida que deste contexto vêm e surgem no tempo presente:
“o que est| em quest~o é a vida nua do cidadão, o novo corpo
biopolítico da humanidade” (AGAMBEN, 2002, p. 17).
67
Para Agamben, a história política do Ocidente pode ser
interpretada como a história do abandono, do sacrifício, mesmo que
insacrificável da vida nua pelo poder soberano. É a vida que, em sua
nudez biológica, passa a ser assumida pela política, fazendo-a viver ou
deixando-a morrer, de acordo com os interesses geridos pelo
permanente estado de exceção que a acompanha, otimizando as
formas-de-vida humana para contemplar, a partir de uma lógica de
produção e consumo, os interesses em jogo nas relações de poder.
Desta forma, o fundamento do poder político desde seus primórdios
reside sobre a vida em sua dimensão biológica, em sua característica
sacrificável, submissa ao poder de morte do soberano. Aqui, mais uma
vez, chamamos atenção para diferenças nas análises foucaultianas e
agambenianas da biopolítica. Podemos dizer, em certo sentido, que o
filósofo italiano procura desenvolver uma filosofia da história, mesmo
que não seja a de uma história simplesmente progressiva, cujo fio
condutor da análise são as formas-de-vida que se estabeleceram e suas
relações com as estruturas políticas, teológicas e econômicas em cada
contexto, o que também o leva a diferenciar-se da leitura política de
Carl Schmitt. Nesta condição Agamben assim se posiciona:
A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoè-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva (AGAMBEN, 2002, p. 16).
Nesta perspectiva, o filósofo italiano vai buscar numa
obscura figura do direito romano, o homo sacer, o modelo
paradigmático de produção e justificativa da vida nua no contexto da
estrutura jurídica e política do Ocidente, marcada pelo poder soberano
e pelo estado de exceção. Toma como pressuposto o fato de que o
termo latino “sacer” contém em si duas determinações de significado
aparentemente opostas: “sagrado” e “mat|vel”. Agamben procura
compreender o sentido da sacralidade da vida enquanto princípio
inviolável e elemento político originário. Neste sentido, as
justaposições de “sacer” indicam aquele que está fora tanto do direito
humano na medida em que é sagrado, quanto do direito divino, por ser
matável, sem uma justificação sacrifical.
68
En primer lugar, el homo sacer es una figura del derecho romano arcaico que Agamben retoma y vuelve a pensar modernamente, en cuanto a su función en el derecho romano es una pena, un castigo por el cual se consagra a un hombre a los dioses infernales. En esta consagración se lo está sacando del reino de la tierra, pero no se le está sacrificando, por lo que aún no ha ingresado al reino de los cielos. Como explica Émile Benveniste, la pena era aplicada por los mismos dioses en el sentido de una venganza. “Qui legem violauit, sacer esto. “Que quien viole la ley, sea sacer” [...]. Por outro lado, homo sacer será también quien haya tocado lo sacer, y esta manera debe ser desterrado de la comunidad, no se lo castiga pero tampoco se castiga aquel que lo mate (TAUB, 2008, p. 118).
Sob tais pressupostos, o homo sacer apresenta-se como
habitante de uma zona de indeterminação entre vida humana e morte
consagrada, demonstrando como a sacralidade é apenas a figura de
uma vida nua fundante da dinâmica jurídico-política presente na
gênese da civilizaç~o ocidental. “[...] o homo sacer pertence ao Deus na
forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da
matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra”
(AGAMBEN, 2002, p, 90).
Para Agamben, que aqui e em tantos outros textos tem como
parâmetro as reflexões de Carl Schmitt, o paradigma biopolítico está,
como já dissemos, na gênese da civilização ocidental, nas cisões
originárias que fundam a polis, que contrapõem physis e nomos. Esta
concepção de biopolítica como condição paradigmática presente na
estrutura originária da civilização ocidental é o que o diferencia de
Foucault. E tal diferença – insistimos – faz com que Agamben não seja
um mero “discípulo” ou continuador da obra de Foucault, como tantos
querem. Mesmo que não nos pareça suficiente, parece válido o
comentário de Baumann a este respeito:
O filósofo do direito Giorgio Agamben pretende verificar, com base nas teses biopolíticas do Michel Foucault tardio, a concepção não-jurídico-institucional do biopoder e completá-la de certa forma, confrontando-a com o cerne do poder soberano – o poder sobre vida e morte. O biopoder é examinado e ampliado com fenômenos como o campo de concentração, o fugitivo, o complexo técnico-médico, mas precisamente com o
69
direito sobre eles, gerado pelo Estado. O próprio Foucault não teria mais conseguido elaborar adiante essa concepção, depois que colocou preliminarmente de lado os aspectos e as premissas jurídico-institucionais de suas análises do discurso do biopoder moderno. Agamben reivindica, portanto, ter escrito o livro que o próprio Foucault deveria ter escrito, se não tivesse, por fim, desviado da crítica da biopolítica e se devotado às questões da natureza estatal e da soberania sob o aspecto predominantemente subjetivo da “governamentalidade” (BAUMANN, 2003, p. 13).
Podemos dizer que Foucault sempre ressaltou que tudo é
construção humana e que de algum modo a história é sempre uma
ruptura com a natureza, enquanto Agamben alerta para o fato de que
aquilo que denomina como vida nua, mesmo que seja a resultante de
uma produção específica do poder e não um fato natural, nunca
derrota definitivamente uma natureza humana. O humano é aquilo que
participa da natureza em sua abertura constitutiva, mas
paradoxalmente sua condição de humanidade implica um ser no uso
complexo da linguagem e de cultura. Neste sentido, a vida nua é a
resultante das articulações da política e do direito no exercício do
poder soberano em constante estado de exceção que as separa de seu
contexto societário, produzindo vidas destituídas de Voz, de
linguagem, de cultura, vidas, reduzidas a pura biologicidade e, sob tais
condições podendo ser submetidas a situações-limites de vida e de
morte de acordo com os interesses e a lógica do poder em curso.
O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o “muçulmano” em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero (COSTA, 2006, p. 135).
De acordo com Agamben, na Antigüidade clássica, os gregos
(e esta é uma característica desde os primórdios da civilização
ocidental presente até nossos dias, a indeterminação conceitual da
vida), qualificavam as formas-de-vida basicamente em dois níveis Zoe
e Bios. A característica da primeira forma-de-vida, a Zoe, era o fato de
procurar representar a vida em sua totalidade. Vida animal, vida
70
humana e, vida dos deuses e, mais especificamente do ponto de vista
da Polis, era a vida própria dos escravos, dos comerciantes, das
mulheres e das crianças em sua proximidade e vinculação com a vida
biológica. Portanto, a Zoe apresentava-se como vida desqualificada na
perspectiva da Polis, forma-de-vida que estava sob os cuidados do
poder doméstico exercido pelo Pater. A Bios designava a forma-de-vida
de um indivíduo, de um grupo; era a vida qualificada do cidadão em
sua participação na dinâmica política da polis, dos debates públicos.
Era assim, portadora de direitos e deveres públicos e, reconhecida
nesta condição como meio para o alcance da felicidade, do bem viver.
Los griegos no disponían de un término único para expresar lo que nosotros queremos decir con la palabra vida. Se servían de los términos semántica y morfolo gicamente distintos: zoé, que expresaba el simple hecho de vivir común a todos los vivientes (animales, hombres e dioses) y bíos que significaba la forma o manera de vivir propia de un individuo o de un grupo (AGAMBEN, 2001, p. 13).
Para Agamben, assim como no dispositivo antropológico, o
que possibilitou ao homem romper com a natureza na qual a vida se
inseria em sua condição biológica, fechada em si mesma, elevando-se à
condição de humano, com a possibilidade de cindir-se uma vez mais no
plano da vida humana entre zoe e bios, transformando-se num “animal
político”, segundo a cl|ssica definiç~o de Aristóteles como “zôon
politikòn” é a condição do ser humano possuir Voz. E, a partir desta
Voz, desenvolver a linguagem que nomeia o mundo, a existência,
conferindo-lhe um logos que lhe permitiu desencadear operações de
pensamento, a partir do qual nomeia os entes que lhe são externos,
constituindo o mundo, o sentido e a finalidade de sua existência,
afirmando sua humanidade.
Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento
71
obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil (ARISTÓTELES, 2006, p. 5).
Através do domínio da linguagem, da palavra, o ser humano
rompe com a vida no seu estrito âmbito biológico. Transforma-se num
ser vivo dotado de linguagem, aristotelicamente como “Zôon lógon
échon”, o que lhe permite a constituição da cidade, da Polis, da
comunidade política, que para além da preservação da vida biológica,
tem como princípio teleológico a busca do bem viver.
Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular, reunimo-nos, mesmo que seja só para pôr a vida em segurança (ARISTÓTELES, 2006, p. 53).
Porém, para Aristóteles a busca do bem viver, por parte do ser
humano, não é a mera busca do viver, a partir do qual se articula a
Polis; dessa forma, ele transcende o fato imediato da proteção e da
segurança como condição de continuidade da vida biológica,
estabelecendo uma íntima relação com a vida concebida como uma
bios, como vida qualificada que se materializa no espaço político
decisório das questões vitais em torno da Polis, como o locus por
excelência da vida do cidadão. Espaço que busca materializar nas
práticas da vida humana, a ordem, a harmonia, a beleza presente no
cosmo e, na busca deste ideal ético e estético, a vida qualificada
caracteriza-se por ser “(...) uma vida dedicada aos assuntos públicos e
políticos” (ARENDT, 1991, p. 20), que realiza sua plenitude vital no
encontro entre plurais, no confronto de opiniões e ideias em relação
aos interesses da coletividade, daquilo que é público. “E é aqui que
Aristóteles distingue entre a finalidade mais alta da política que
consiste em um viver modalizado, o viver feliz ou bem (eu o kalòs zen),
e uma finalidade inicial e de ordem inferior que é o viver
simplesmente”2.
2 “Ed è qui che Aristotele distingue fra la finalità più alta della política che consiste
in un vivere modalizzato, il vivere felice o bene (eu o kalòs zen), e una finalità
72
Mas não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se fez o Estado, sem o quê, a sociedade compreenderia os escravos e até mesmo os outros animais. Ora, não é assim. Esses seres não participam de forma alguma da felicidade pública, nem vivem conforme suas vontades. [...]. O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão meios para isso, e a própria Cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência. É isto o que chamamos de uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma saciedade de vida comum do que uma sociedade de honra e de virtude (ARISTÓTELES, 2006, p. 53-56).
Sob estas prerrogativas, segundo Hannah Arendt,
“Aristóteles distinguia três modos de vida (bioi) que os homens
podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das
necessidades da vida biológica e das relações dela decorrentes”
(ARENDT, 1991, p. 20). É na Ética a Nicômaco que encontramos as
distinções entre as três bioi:
[...] a vida dedicada aos prazeres (bíos apolaustikòs), a vida política (bíos politikòs), e a vida contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre na Ética a Nicômaco, todavia, o viver, zen, é definido ‘por si mesmo como um bem e uma coisa agrad|vel’, enquanto a vida, zoe, é “bem por natureza” (1170 a-b)3.
A escolha por um destes modos de vida decorria da liberdade
de que dispunham os cidadãos no exercício pleno da atividade política
na polis, desvencilhados dos imperativos e das exigências do trabalho
executado pelos escravos e, também, do trabalho artesanal, do
iniziale e di ordine inferiore che è el vivere simplicemente” (Tradução nossa).
MOSCATI, Antonella di. Zoé/Bíos. (In): BRANDIMARTE, R; STUTTE-
Chiantera P.; VITTORIO P. Di.; MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A;
SIMONE A. LESSICO DI BIOPOLITICA. Roma: Manifestolibri, 2006, p. 337. 3 “[...] la vita dedita al piacere (bíos apolaustikòs), la vita política (bíos politikòs), e
la vita contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre nell‟Etica Nicomachea, tuttavia, il
vivere, zen, é definito “di per sé un bene e una cosa piacevole”, mentre la vita, zoe,
é “um bene per natura” (1170 a-b)” (Tradução nossa). MOSCATI, Antonella di.
Zoé/Bíos. (In) BRANDIMARTE, R; STUTTE-Chiantera P.; VITTORIO P. Di.;
MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A; SIMONE A. LESSICO DI
BIOPOLITICA, 2006. Op cit., p. 337.
73
comércio que se impõem cotidianamente sobre os homens, como
garantia de manutenção da vida e, consequentemente, tolhendo a
liberdade de ação e de movimento na polis. Desta forma, os três modos
de vida que se apresentam aos seres humanos que dispõem de
liberdade teriam em comum:
[...] o fato de se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que n~o eram necessárias nem meramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano (ARENDT, 1991, p. 21).
Através da gênese antropológica e política da civilização
ocidental, Agamben confirma a tese de que desde os primórdios
civilizatórios a vida se torna objeto da política, seja pela condição
biológica da vida que lhe é limitante no acesso à vida qualificada na
pólis, ou mesmo, em seu inverso, como vida qualificada, que se realiza
no espaço por excelência da liberdade política da cidade. Esta
perspectiva biopolítica se articula no decorrer da civilização ocidental,
apresentando-se na modernidade a partir da precedência da vida
biológica sobre a vida política.
Voltando novamente à obra: A condição humana (1991),
Arendt apresenta detalhadamente de que forma, a partir do Império
Romano, passando pelas estruturas conceituais da cultura judaico-
cristã medieval, a modernidade transforma-se no locus da inversão e
da ruptura com a condição ontológica da Polis grega, na medida em
que a economia passa a ser determinante, elevando o trabalho e, por
fim, o labor4, a condição característica e determinante da existência
política das populações transformadas em sociedades de massas.
Sendo assim, “[...] quase conseguimos nivelar todas as atividades
humanas, reduzindo-as ao denominador comum de assegurar as
4 Hannah Arendt é contundente em seu posicionamento diante da condição
moderna ao reduzir o imperativo da pragmaticidade dos processos de labor a que
estão submetidas as massas humanas ao redor do planeta. “[...]. Laborar significa
ser escravizado pela necessidade, escravidão está inerente às condições de vida
humana” (1991, p. 94).
74
coisas necessárias à vida e de produzi-las em abund}ncia” (ARENDT,
1991, p. 139).
Na modernidade inaugura-se um avassalador processo de
biologização da política e, na mesma medida, de politização da vida.
Agamben confirma as análises que o precederam de Arendt e Foucault,
de que o fato determinante na modernidade é ter tornado a vida
biológica, a zoè, objeto determinante da política e não mais a bios, a
vida qualificada presente no centro da antiga Pólis grega. “Ambos, en
definitivo, han mostrado como la politización de la zoe, de la vida
desnuda, determina una profunda modificación de los conceptos
políticos de la Antigüedad” (CASTRO, 2008, p. 50).
A leitura que Hannah Arendt faz ao longo de sua obra e, de
forma mais específica, em A condição humana (1991), procura
demonstrar como na modernidade a política, a vita activa, presente
entre os gregos foi suprassumida pelo trabalho e pelo labor na
sociedade de massas humanas atomizadas em processos de produção
e de consumo. Tal fenômeno desdobra-se nas experiências totalitárias
que o século XX vivenciou. Na obra As origens do totalitarismo III –
Totalitarismo, o paroxismo do poder (1979, p.????), a filósofa alemã
apresenta esta condição na seguinte formulação:
Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário [...]. O termo massas só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. [...] Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção.
Por seu turno, Foucault, partindo dos conceitos de biopolítica
e de biopoder, investiga de que forma os Estados nacionais modernos
constituíram a racionalidade administrativo-política a partir da qual
estabeleceram rigorosos processos de gestão do território, dos
75
indivíduos e da população. “Foucault, en efecto, con los conceptos de
biopoder y biopolítica hace referencia al proceso por el cual, con la
formación de los estados nacionales modernos, la política se hace
cargo, en sus cálculos y mecanismos, de la vida biológica de los
individuos y de las poblaciones” (CASTRO, 2008, p. 50).
Com o advento e a especificação do capitalismo industrial, uma inédita aritmética política abala o vivente. Se a disciplina ("a anátomo-política"), para regular o modo de produção capitalista, se ocupa do corpo individual, a biopolítica é o dispositivo que aprimora, radicaliza e intensifica a sua tarefa: governa, n~o só o corpo, mas a vida biológica como tal: “{ diferença da disciplina, que atinge o corpo, esta nova técnica de poder não disciplinar se aplica à vida dos homens, ou melhor, atinge não tanto o homem-corpo, quanto o homem que vive, o homem como um ser vivo. Poderíamos dizer que, no limite, atinge o homem-espécie”. O bio-poder reproduz e administra a vida5.
Porém, o fato decisivo na leitura e na análise que Agamben
faz da biopolítica, para além das interpretações de Hannah Arendt e de
Foucault, é pensá-la a partir de uma matriz jurídica que relaciona
direito e vida, presente desde os primórdios da ocidentalidade,
manifestando-se na figura do poder soberano e do estado de exceção
que se tornam regra na modernidade permitindo tomar a vida em sua
nudez, em sua biologicidade desprovida de qualquer direito político.
Transforma, assim, a totalidade da vida num objeto de gerenciamento
por parte do Estado; otimiza as potencialidades vitais e deixa morrer,
5 Con l`avvento e la specificazione del capitalismo industriale un`inedita aritmetica
politica travolge il vivente. Se la disciplina (“l`anatomo-política”), per regolare il
modo di produzione capitalistico, si occupa del corpo individuale, la biopolitica è il
dispositivo che ne raffina, radicalizza e sviluppa il compito: governa, cioè, non piú
esclusivamente il corpo, ma la vita biologica in quanto tale: “a differenza della
disciplina, che investe il corpo, questa nuova tecnica di potere non disciplinare si
aplica alla vita degli uomini, o meglio, investe non tanto l`uomo-corpo, quanto
l`uomo che vive, l`uomo in quanto essere vivente. Potremmo dire, al limite, che
investe l`uomo-specie”. Il bio-potere riproduce e amministra la vita. (Tradução
Nossa). AMATO, Pierandrea. La natura umana e il potere: La nozione de
biopolítica nell`opera di Michel Foucault. (In) AMATO, Pierandrea (a cura di). LA
BIOPOLITICA: Il Potere Sulla Vita e la Costituzione della Soggettività.
Milano: Eterotopie Mimesis, 2004, p. 27.
76
de acordo com os cálculos de custo e benefício estabelecidos pela
dinâmica econômica determinante das relações vitais produtivas e de
consumo.
Que a vida passa a ser concebida como vida nua, submetida
ao poder soberano e ao estado de exceção, significa afirmar a
“estatizaç~o do biológico”. “Na politizaç~o da vida desnuda como tal,
ele reconhece o acontecimento decisivo da Idade Moderna, a saber, a
‘transformaç~o radical das categorias político-filosóficas cl|ssicas’.
Quando a soberania produz o corpo biopolítico da população, a vida
desnuda por um lado se torna o fundamento da política ocidental”
(BAUMAN, 2003, p. 13).
A crítica de Agamben às formas de vida na
contemporaneidade “[...] parte de una teoria de la soberanía, en donde
la vida es el elemento original da la política y constituye el núcleo
originário aunque oculto del poder soberano” (HEFFES, 2007, p. 9).
Portanto, a perspectiva de Agamben se abre à análise do poder
soberano como condição para encontrar uma zona de
indiscernibilidade, de confluência entre o modelo jurídico
institucionalizado e a constituição moderna de biopoder, de poder
administrativo sobre a vida e a morte, estendido à condição humana
em sua totalidade. É nesse contexto que se situa a afirmação de
Agamben:
A presente pesquisa concerne precisamente este oculto ponto de interseção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. O que ela teve de registrar entre os seus prováveis resultados é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário [...] do poder soberano (AGAMBEN, 2002, p. 9).
Assim, Agamben formula a crítica à noção de soberania
retomando a constatação do jurista alemão Carl Schmitt em sua obra
“Politische Theologie”, publicada em 1922. Nesta obra, de múltiplas
faces e argumentos, o jurista parte do princípio de que a exceção está
no interior da estrutura jurídica: “A exceç~o n~o é trazida para dentro
do direito, eis que j| se encontra nele [...]” (GRAU, 2006, p. IX). Este é o
paradoxo sobre o qual se funda a soberania no Ocidente. “O paradoxo
da soberania se enuncia: o soberano está ao mesmo tempo, dentro e
77
fora do ordenamento jurídico” (AGAMBEN, 2002, p. 23). Portanto, na
cl|ssica definiç~o de Schmitt: “Soberano é quem decide sobre o estado
de exceç~o” (SCHMITT, 2006, p. 7).
Carl Schmitt, chama a atenção para o fato de que o direito e a
aplicabilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas
obedecem { lógica das decisões políticas. “A ordem jurídica, como toda
ordem repousa em uma decis~o e n~o em uma norma” (SCHMITT,
2006, p. 11). Este pressuposto permite ao jurista alemão ir mais longe
e afirmar que a existência da norma somente é possível a partir de
uma determinada decisão que justifique o sentido do ordenamento
jurídico. Não há sentido e nem aplicabilidade possíveis da norma em
situaç~o de caos. “[...] o direito ‘n~o possui por si nenhuma existência,
mas o seu ser é a própria vida dos homens’. A decis~o soberana traça e
de tanto em tanto renova este limiar de indiferença entre o externo e o
interno, exclusão e inclusão, nómos e physis, em que a vida é
originariamente excepcionada do direito” (AGAMBEN, 2002, p. 34).
Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais e os quais ela submete à sua regulamentação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa normalidade f|tica n~o é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar. Ao contr|rio pertence { sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante (SCHMITT, 2006, p. 13).
A efetivação e validade da norma dependem essencialmente
da anormalidade como seu contraponto. O que significa dizer que o
soberano se encontra ao mesmo tempo fora e dentro da norma
jurídica, o que lhe permite decidir quando, como e onde pode vigorar o
estado de direito. Ao situar-se dentro e fora do direito, é a exceção que
confirma e, principalmente, condiciona a regra. “O particular ‘vigor’ da
lei consiste nesta capacidade de manter-se em relação com uma
exterioridade. Chamamos relação de exceção a esta forma extrema da
relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclus~o”
(AGAMBEN, 2002, p. 26). Ou dito ainda de outro modo, “Se a exceç~o é
a estrutura da soberania, a soberania não é, então nem um conceito
78
exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica,
nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema
do ordenamento jurídico (Klesen): ela é a estrutura originária na qual
o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”
(AGAMBEN, 2002, p. 35).
É a partir destes pressupostos sobre os quais se assenta o
poder soberano que Agamben se posiciona defendendo: “[...] que la
excepción es el dispositivo y la forma de la relación entre derecho y la
vida (CASTRO, 2008, p. 52). A forma como nos constituímos política e
juridicamente no Ocidente, remete a uma relação do direito com a vida
que se caracteriza ao mesmo tempo por situações de exclusão e
inclusão da vida. Cria-se assim uma zona de indiscernibilidade entre
fato e direito. “A situaç~o que vem a ser criada na exceç~o, possui,
portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma
situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre
estas um paradoxal limiar de indiferença” (AGAMBEN, 2002, p. 26).
Lo interesante del concepto de excepción (soberana) que Agamben resignifica y amplia desde el pensamiento de Carl Schmitt es, primero, que esta relación de excepción es positiva: la situación que crea la excepción introduce entre las situaciones de hecho y derecho un “umbral de indiferencia”- como ya mencioné – y, este umbral es el propio estado de excepción en donde se distingue lo que está adentro y lo que esta afuera. Entonces, no tiene como fin controlar un exceso (como el fundamento primigenio de la creación de esta norma jurídica) sino la de definir un espacio. Así podría pensarse este espacio como un lugar indiferente. [...] la indiferencia en si no es positiva ni negativa, sino que posibilita un actuar, un tipo de comportamiento dentro de este estado de indiferencia en las relaciones entre los hombres. [...] El estado de excepción es la manera en que modernamente se hace efectiva la violencia en manos del poder soberano y, específicamente, es el momento en que el poder soberano decide efectivizar el uso de su violencia y así confirma la excepción como estado (TAUB, 2008, p. 58-59).
Para Agamben, a modernidade caracteriza-se pelo paradoxo
da soberania, na medida em que as decisões soberanas se situam num
espaço de indecidibilidade e indiscernibilidade entre fato e direito,
entre vida qualificada, detentora de direitos, e vida nua, desprovida de
direitos e exposta à violência. O soberano tem a possibilidade de estar
79
dentro e fora da lei ao mesmo tempo. E é neste contexto que a
soberania produz o corpo biopolítico da população, dispondo de sua
vida e das condições de sua morte. Faz morrer, ou, deixa viver.
Portanto, o paradoxo da soberania é que esta politiza a vida
desnudando-a de seus direitos políticos. Situando-a numa zona de
indiscernibilidade entre fato e direito, justiça e injustiça, entre vida
matável ou sacrificável, vida nua e vida protegida pelas declarações
universais de direito.
O paradoxo da soberania se enuncia: “o soberano est|, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. [...] o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei est| fora dela mesma”, ou ent~o: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).
É sob estas perspectivas civilizatórias que Agamben aponta
para o fato inconteste de que o estado de exceção faz parte da
estrutura jurídica e política do Ocidente, desde sua gênese, até aos dias
de hoje. “O significado imediatamente biopolítico do estado de exceç~o
como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por
meio de sua própria suspens~o” (AGAMBEN, 2004, p. 14). As formas a
partir das quais a vida foi potencializada e colocada em ato está na
origem da dinâmica política que se move num constante estado de
exceção em relação à norma, à lei e à justiça.
O estado de exceção apresenta-se assim como a
inclus~o/exclus~o da “vida nua”, na dimens~o puramente biológica e
situando-a na centralidade dos cálculos de custo e benefício do capital,
e exclui de sua dimensão cidadã, plural, portadora de direitos e
deveres. Esvazia-a de sua condição qualificada que se estabelece na
politicidade dos espaços públicos no encontro de pluralidades que
confrontam suas visões de mundo em busca do bem viver, da
felicidade, de formas-de-vida que se reconhecem porque se articulam
politicamente.
É, pois, neste sentido que a exceção constitui a estrutura fundamental da lei e se apresenta como o traço que melhor define o seu caráter soberano: porque expressa uma ruptura da totalidade da ordem jurídica vigente numa determinada
80
situação, e, porque nessa ruptura, a extrema necessidade do juízo coincide com o seu caráter sumário, a exceção manifesta simultaneamente quer uma potência de incluir excluindo, quer uma potência de excluir incluindo. Por isso, pôde Schmitt dizer da excepç~o que “é mais interessante do que o caso normal. O caso normal não prova nada, enquanto a exceção prova tudo. Não só prova a regra, como é a própria regra que vive só da exceção [...]” (BENTO, 2000, p. 1-19).
Agamben alerta para o fato de que o que caracteriza
decisivamente a política ocidental é a presença estrutural do estado de
exceção, este estado de indiscernibilidade entre a vida e a vida nua, no
espaço de inclusão e exclusão, de aplicação da norma e de sua
ineficácia. A intensidade desta análise questiona as clássicas definições
da política como qualificação das formas-de-vida pública na
perspectiva platônica e aristotélica. Ou na leitura que se realiza das
prerrogativas contratualistas sobre as quais se funda a concepção do
Estado moderno, alicerçado nos princípios da liberdade e da igualdade
de condições e de direito.
Neste sentido, operando por fraturas, cisões, inclusões e
exclusões, a estrutura biopolítica manifesta-se na modernidade em
várias perspectivas entre elas: a promulgação dos direitos do homem e
do cidadão pela Assembléia Nacional Constituinte da França em 1789,
ao mesmo tempo em que, em vários momentos posteriores, mas de
forma mais específica nas primeiras décadas do século XX, durante a
primeira e a segunda guerra mundiais, milhões de seres humanos
viram-se destituídos de seus direitos, numa zona de anomia que
permitia sua execução por parte do poder soberano.
Esta estrutura biopolítica continua a manifestar-se de forma
contundente na divisão entre direitos do homem e do indivíduo que se
encontra cada vez mais privatizado em si mesmo, e os direitos do
cidadão, na medida em que a cidadania é concebida como o dever de
produzir e o direito de consumir o que for possível. Ou seja, cidadania
na modernidade significa obediência à lógica da racionalidade gestora
da vida e da morte em sua totalidade. São situações contemporâneas
em que os indivíduos se encontram cada vez mais lançados em zonas
de anomia. Por isso, tem razão Agamben em dizer:
A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos
81
fundamental, exprime ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono (BENTO, 2000, p. 91).
Portanto, o posicionamento de Agamben em relação às
formas-de-vida que se configuraram na ocidentalidade, com especial
atenção à contemporaneidade, encontra seu ponto de aglutinação a
partir da VIII tese da filosofia da história de Walter Benjamin, que se
apresenta na seguinte formulação: “A tradição dos oprimidos nos
ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. [...]” (LÖWY,
2005, p. 83). A análise de Agamben parte do pressuposto de que
vivemos em pleno estado de exceção cuja principal característica é a
redução da vida a condição de vida nua, destituída de direitos, de
cidadania, da condição de participar efetivamente nas decisões
políticas que afetam diretamente sua condição.
Sob tal ótica, as formas-de-vida que se apresentam, na
contemporaneidade, reduzidas à condição de vida nua, estão
submetidas à redutibilidade exclusivamente biológica de sua condição,
o que permite que a vida seja objeto da política, transformando-se em
biopolítica. “A defesa da vida tornou-se um lugar-comum. Todos a
invocam, desde os que se ocupem de manipulação genética até os que
empreendem guerras planetárias” (PELBART, 2003, p. 13).
As análises agambenianas apontam em várias direções, mas
duas delas parecem significativas no contexto da análise apresentada
até este ponto. Independente da ordem de prioridade dos argumentos
aqui apresentados, a questão é que a biopolítica se afirmou
significativamente na modernidade como técnica de governo, de
gestão da vida produtiva e de consumo das populações e,
contemporaneamente, como conjunto de técnicas de controle
biológico da espécie. Articula-se através de um biopoder, que se
caracteriza num poder sem precedentes sobre formas de
potencialização da vida e da morte, sobre os corpos e as mentes de
milhões de seres humanos, num estado de exceção permanente.
Portanto, a política moderna, transformada em biopolítica enquanto
potencialização da vida, possui na tanatopolítica seu outro pólo
constitutivo. Produz constantemente “vida nua”. Inclui e exclui.
Incorpora e abandona sistematicamente milhares de vidas supérfluas
e indesejáveis. Neste contexto, transforma todas as vidas humanas em
vidas supérfluas e matáveis.
82
É sob estes pressupostos – e por mais que receba críticas por
isso – que, para Agamben, o campo de concentração é o paradigma da
modernidade. Foi nos campos de concentração que a vida foi
despojada inteiramente de seus direitos, apresentando-se como vida
nua par excellence na plenitude do estado de exceç~o. “Antes de ser o
campo da morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda
impensado, no qual, para além da vida e da morte, o judeu se
transforma em muçulmano e o homem em não-homem” (AGAMBEN,
2008, p. 60). No campo de concentração, o exercício do poder
soberano como prerrogativa de deixar viver ou fazer morrer
apresenta-se na plena potencialidade e em ato, na execução sumária
da vida sacrificável porque é vida nua, despersonalizada, injustificada
e, portanto, fora de qualquer estrutura jurídica que possa ampará-la.
Primo Levi em sua obra Os afogados e os sobreviventes (2004),
apresenta um relato contundente da condição da vida nua naquele
contexto:
Cercado pela morte, muitas vezes o deportado não era capaz de avaliar a extensão do massacre que se desenrolava sob seus olhos. O companheiro que hoje tinha trabalhado a seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido varrido do mundo; não havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um enorme edifício de violência e de ameaça, mas não podia daí construir uma representação porque seus olhos estavam presos ao solo pela carência de todos os minutos. [...] Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio não tatearam o fundo. Quem o fez não voltou, ou então na sua capacidade de observação ficou paralisado pelo sofrimento e pela incompreensão (LEVI, 2004, p. 14).
O campo de concentração manifestou, de forma radical, o
limite entre a bios e a zoe, entre o direito e o vazio do direito, entre o
humano e o inumano, a partir de duas figuras paradoxais presentes no
campo: a figura do Muselmann (muçulmano) como “homo sacer”, como
vida nua, matável e sacrificável, e a do “Sonderkommando”, esquadrão
especial composto por prisioneiros que passam a ser os encarregados
pela gestão das câmaras de gás e dos fornos crematórios, recrutados
pelos soldados nazistas da SS (SS, sigla que se refere a palavra alemã
Schutzstaffel, que significa “Esquadr~o de Proteç~o”. Era um grupo
83
ligado ao Partido Nazista, criado em 1925). Os Sonderkommando, cuja
criaç~o é considerada por Levi “o delito mais demoníaco do nacional-
socialismo”, acabavam agindo a partir da lógica do estado de exceção
em tempo integral, decidindo sobre a vida e a morte dos prisioneiros
do campo.
Os Esquadrões Especiais eram constituídos em sua maior parte pelos judeus. Por um lado, isso não pode espantar, uma vez que o objetivo principal dos Lager era destruir os judeus e que a população de Auschwitz, a partir de 1943, era constituída por judeus numa proporção entre 90 a 95%, por outro, fica-se atônito diante deste paroxismo de perfídia e de ódio: os judeus é que deveriam pôr nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que os judeus, sub-raça, sub-homens, se dobram a qualquer humilhação, inclusive à destruição de si mesmos. Além do mais, atestou-se que nem todos os SS aceitavam de bom grado o massacre como tarefa cotidiana; delegar às próprias vítimas uma parte do trabalho, e justamente a mais suja, devia servir (e provavelmente serviu) para aliviar algumas consciências. [...] Alguns testemunharam que aqueles desgraçados dispunham de uma grande quantidade de bebidas alcoólicas, encontrando-se permanentemente num estado de embrutecimento e de prostraç~o total. Um deles declarou: “Ao fazer este trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou ent~o se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou me deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros: somos como vocês, só que muito mais infelizes” (LEVI, 2004, p. 44-45).
O “muçulmano” caracterizava-se na realidade dos campos de
concentração como vida em pura dimensão biológica, desprovida de
direitos políticos, desprovida de si mesma, de linguagem, de eticidade
e, consequentemente, de dignidade. Enfim, vida nua, homo sacer,
desprovido de todo e qualquer direito humano, perde sua condição de
comunicabilidade e isto lhe impede de reconhecer-se como humano,
fica exposto à violência pura do poder soberano que decide sobre sua
vida e sua morte. “Talvez nunca, antes de Auschwitz, foram descritos
com tanta eficácia o naufrágio da dignidade perante uma figura
extrema do humano, e a inutilidade do respeito de si frente à absoluta
degradaç~o” (AGAMBEN, 2008, p. 69).
84
Agamben aponta para o fato de que o campo é a evidência
dramática da manifestação in concreto da matriz biopolítica originária
presente na ocidentalidade desde seus primórdios. Por isso, o nazismo
não pode ser visto, segundo o pensador italiano, como uma exceção na
trajetória da civilização ocidental, mas a manifestação contundente das
fraturas e das rupturas metafísicas da mesma, e sobre as quais se
articula toda a estrutura política e jurídica que aprisiona a vida e a
mantém em uma condição de indiscernibilidade como condição da
produção de vida nua, de vida sacrificável.
O campo é o espaço de realização da matriz biopolítica
ocidental na medida em que é o espaço de materialização em plenitude
do poder soberano e do estado de exceção sobre a qual se manifesta a
violência soberana. Fixa-se assim, à revelia de toda e qualquer ordem
jurídica e política na qual se constituíram os direitos humanos,
destituindo os seres humanos de sua condição política originária, o
momento em que a vida deixa de ser politicamente relevante e,
portanto, torna-se mat|vel, sacrific|vel. “Auschwitz é exatamente o
lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, como
regra e situação extrema. Converte-se no próprio paradigma do
cotidiano” (AGAMBEN, 2008, p. 57).
[...] en los campos existía un orden que excluía de su condición de hombres-políticos a aquellos que allí fueron llevados. Los que estaban a cargo de los campos tomaron para si la violencia soberana porque en este contexto el poder soberano fija el momento en que la vida deja de ser políticamente relevante. Es el momento biopolítico de la modernidad por excelencia. [...] si el Führer es la ley y se dirige directamente a ellos, ellos son los portadores políticos de la ley-viviente: cada hombre era como un dios soberano, y como tal, podía decidir sobre el otro sin responder de nadie. [...] En realidad esta indeterminación acaba por radicalizar la situación normativa (no suspenderla), y es por ello que no hay comportamiento por fuera de lo que el Führer ordena (TAUB, 2008, p. 60).
Sem que aqui discutamos melhor esta incômoda afirmação
de Agamben de que o campo é o paradigma de toda política
contemporânea, e nao só do nacional-socialismo, podemos sustentar
que o posicionamento analítico e inquiridor do autor frente às formas
de vida que se constituem politicamente no Ocidente, apresenta uma
85
realidade contemporânea inquietante, senão desestabilizadora, na
medida em que afirma categoricamente que: “El campo es el espacio
que se abre cuando el estado de excepción empieza a convertirse en
regla” (AGAMBEN, 2001, p. 38). O tempo é um tempo de produção em
massa de “homines sacri”, de seres humanos lançados em uma situaç~o
de anomia, de abandono, de irrecuperáveis vidas nuas, desprotegidas,
matáveis e sacrificáveis de acordo com os interesses e as normas que
paradoxalmente se propõem a proteger a vida e a liberdade humanas.
Sob tais pressupostos pode-se dizer que o campo se
reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de
vigilância a que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão
expostos. Nesta mesma perspectiva, o campo se reproduz nos
espasmos de violência dos exércitos nacionais e pretensamente
supranacionais, ou das polícias nacionais e globais a que se atribui o
direito de intervenção em outros países em nome de uma pretensa e
paradoxal defesa da liberdade, e também está presente na biopirataria
em busca de material genético de florestas, animais e seres humanos.
Sob estas perspectivas, o campo se manifesta em nosso dia-a-dia e,
fundamentalmente, na medida da busca por segurança, mesmo que
isto implique na perda da liberdade.
O campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento – ou, antes, o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem transformar-se em uma máquina letal. É significativo que os campos surjam juntamente com as novas leis sobre cidadania e sobre a desnacionalização dos cidadãos. [...] O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zonas d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. [...] O campo, que agora se estabeleceu firmemente em seu interior, é o novo nómos biopolítico do planeta (AGAMBEN, 2002, p. 182-183).
Considerações finais
A partir destes pressupostos metafísicos em que se articulam
demandas políticas e jurídicas sobre a vida no Ocidente, a
manifestação do poder soberano implica a existência do par
inclusão/exclusão da vida e de produção de vida nua como condição
86
da vida qualificada, cabe o questionamento formulado por Emmanuel
Taub: “[...] ¿habría poder soberano en la modernidad sin la posibilidad
de transformar a parte de la población en homo sacer?” (TAUB, 2008,
p. 141).
A resposta a este questionamento, encontra-se no próprio
Agamben, no livro que faz referência às discussões até aqui
desenvolvidas, “Homo Sacer”: o poder soberano e a vida nua” (2002),
em que o filósofo italiano afirma peremptoriamente: “Quando vida e
política, divididos na origem e articulados entre si através da terra de
ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a
identificar-se, então toda a vida torna-se sacra e toda a política torna-
se exceç~o” (AGAMBEN, 2002, p. 55).
Porém, outros questionamentos podem ser feitos à análise de
Agamben, entre elas: Se o campo é a realidade última e permanente da
estrutura político-jurídica, manifesta desde os primórdios da
civilização ocidental e materializada no estado de exceção em que
vivemos, o que será possível esperar das formas-de-vida que se
colocarem em jogo neste contexto?
Entre as várias respostas implícitas na estrutura discursiva e
analítica de Agamben, serão apresentadas três possibilidades
presumivelmente convergentes. A primeira está na dinâmica do
próprio estado de exceção que, por ser exceção à regra, pode abrir
espaços para as diversas formas-de-vida a se confrontarem na
formulação de novas regras de jogo e não apenas obedecer àquelas
existentes. A exceção seria assim a condição da abertura de uma
exceção vital que poderia potencializar outras formas-de-vida.
Uma segunda possibilidade emerge do argumento anterior,
mas potencializado por uma concepção rememoradora e redentora de
tempo, ou seja, na medida em que o tempo que virá não virá como
promessa de futuro, mas que, escatologicamente já se faz no presente
na medida em que surge das memórias, das lutas, das dores, dos
sofrimentos, das alegrias do passado, articulando formas-de-vida
compatíveis com o contexto do tempo presente. A terceira
possibilidade, para a qual convergem as duas anteriores, relaciona-se
com as formas-de-vida resultantes da potência do pensamento como
condição da constante e ininterrupta abertura para o vir-a-ser, para o
que virá.
87
Ou seja, o posicionamento filosófico e reflexivo de Agamben,
vinculado a uma ontologia da potência, remete a pensar para além da
violência biopolítica constitutiva do ocidente e manifestada em toda
sua potencialidade na contemporaneidade, remetendo ao resgate da
condição política como modo de ser ocidental, o que pode permitir
tornar a política condição e locus privilegiado da experiência do que
vem a todo instante, a cada momento. E o que vem, simplesmente virá.
Não virá de um futuro pré-anunciado, como horizonte de verdade
gnosiológica essencial, de finalidade reservada à humanidade, mas
vem a cada instante em que o qualquer um, o ser qualquer, em que a
singularidade na simplicidade de suas relações, se apropria do mundo,
da vida, da existência como condição do bem viver, constituindo-se
assim uma nova forma-de-vida.
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TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: PRELÚDIO À DESCENTRALIZAÇÃO A PARTIR DA FILOSOFIA
POLÍTICA MODERNA
Walter Marcos Knaesel Birkner
Universidade do Contestado
Ao sugerirmos o título acima, reconheçamos desde o início
que, sendo sinônimo de inclinações, propensões ou caminhos
possíveis, a express~o “tendências” tem um significado umbilical com a
história, indicando movimento. Desse modo, é apropriado afirmar que
aquilo que denominamos nosso “processo civilizatório”, nos termos de
Norbert Elias, está a nos indicar o tempo todo os sinais dessas
inclinações, as explicações sobre a morte e surgimento de costumes e
instituições, e suas conformações ao longo do tempo. Não poderia isso
ser diferente em relação a uma das mais importantes instituições da
trajetória histórica do Ocidente, qual seja: o Estado. E, apesar do plural
sugerido no título, falaremos basicamente de uma das aparentes
tendências do Estado contemporâneo: a descentralização. Para tanto,
tentamos apresentar o argumento a partir de uma leitura
interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as
ciências sociais e a história.
Não obstante, para o melhor esclarecimento, é útil explicar o
propósito de interpretar os movimentos de descentralização como
uma tendência do Estado contemporâneo. É resultado de um interesse
investigativo que remonta às primeiras investigações sobre um
movimento de descentralização política que emergiu em meados da
década de noventa do século XX em Santa Catarina, com o surgimento
dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado - FDRI1. Eram
organizações mistas que integravam representantes da sociedade civil
e dos governos estadual e municipais. O propósito geral era o de
encontrar alternativas ao desenvolvimento das regiões catarinenses.
Naquele momento, tratava-se do arranjo sinérgico entre comunidades
regionais e a esfera governamental, esta última apresentando os
primeiros sinais de insuficiência da forma de administração
1 A respeito desse assunto, consultar BIRKNER, 2006; SIEBERT, 2001.
92
centralizada ante os efeitos da globalização e da reestruturação do
Estado2.
Já na primeira década do século XXI, os FDRI foram
sucedidos pela política de descentralização governamental implantada
com as Secretarias de Desenvolvimento Regional, em curso a partir de
2003. Desde então essa experiência tem sido objeto de
acompanhamento investigativo, cujo significado, ao largo de outras
experiências brasileiras e internacionais, procuramos corroborar aos
argumentos que sugerem os movimentos de descentralização como
uma tendência contemporânea do Estado.
Para o desenvolvimento dessa idéia, precisamos considerar,
sumariamente, a formação do Estado moderno. O movimento histórico
que conduz à sua emergência, e que a historiografia em geral data
entre os séculos XIV e XV, é marcado primeiramente por impulsos
centrípetos. Assim, o Estado moderno é de modo geral o resultado de
conflitos e associações entre senhores feudais na disputa por terras e
ampliação territorial. No interior desse processo, o fortalecimento do
poder levou à centralização, que redundou no absolutismo (ELIAS,
1993). Posteriormente, o movimento antitético ao absolutismo começa
a se esboçar historicamente somente no século XVIII (SENELLART,
2006) e resulta, não sem idas e vindas, na instituição da democracia
contemporânea. E, se assim podemos falar, o primeiro grande
consenso em torno desta começa a ser lentamente edificado no
Ocidente a partir da segunda metade do século XX.
Na quadra atual, portanto, ao olharmos para as tensões e
movimentos do Estado, é possível identificar inclinações
descentralizadoras ocorrendo no Ocidente nos últimos sessenta anos.
Contemplam, aparentemente, uma importante transição na trajetória
democrática no Ocidente, revelando-se nos experimentos políticos
contemporâneos, cada vez mais próximos de nós3. Nesse sentido,
situemos nos primeiros anos do pós-guerra o início dessa tendência,
em função dos esforços de democratização e liberdade econômica
realizados no Ocidente, como também pelo compromisso internacional
2 A respeito da reestruturação do Estado, sugere-se consultar: PEREIRA; SPINK,
1998. 3 Atualmente, existem algumas experiências de descentralização em curso no
Brasil, como em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia e Pernambuco.
93
a favor da paz e dos direitos humanos, cuja manifestação mais
emblemática é a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948.
Na America Latina, por sua vez, o amplo processo continental
de fim das experiências autoritárias, dando lugar à volta da
democracia, tem redundado mais recentemente em esforços na
promoção de tentativas de descentralização política e administrativa.
Mais especificamente no Brasil, o ponto de partida para um longo
processo em curso é a Constituição de 19884.
Hobbes: homem lobo do homem e o direito à vida
A fim de somar com o argumento da tendência
descentralizadora, torna-se útil a recorrência à obra Do Estado
soberano ao Estado das autonomias, do cientista social português
Carlos Eduardo Pacheco do Amaral (1999). No entendimento desse
autor, estaríamos vivendo a passagem histórica de um Estado
centralizado, predominantemente hobbesiano, para um Estado
descentralizado, cada vez mais regional, na trilha do liberalismo
político de John Locke.
Acompanhando o raciocínio de Amaral, o Estado estaria
vivendo uma crise de soberania, sinalizada pelas dificuldades de
governar, distribuir poder, atender demandas e promover o
desenvolvimento hegemônico. Ora, essas dificuldades podemos bem
admiti-las diante de certas situações. Por exemplo, quando nos
defrontamos com os atuais desequilíbrios regionais no interior de um
país, podemos perceber as dificuldades de o Estado contemporâneo
manifestar seu poder hegemônico. Primeiramente, porque a forma
mais recente de manifestação desses desequilíbrios tem a ver com a
globalização desencadeada na última década do século XX. E, do ponto
de vista do poder político, a principal característica desse processo é a
sobreposição e influência de interesses econômicos privados sobre os
desígnios do Estado-nação. Em outras palavras, essa sobreposição
significou, mais do que nunca, em perda de soberania.
Na mesma perspectiva dessa crise do Estado podemos
identificar os problemas que os governos nacionais enfrentam
relacionados à segurança pública e à violência urbana.
Sobrecarregado, responsável por tentar impor a ordem através de um
4 Para uma explicação sobre isso, ler FLEURY, 2009.
94
equilíbrio muito precário entre a punição, a correção e a proteção aos
direitos humanos, o Estado tem diante de si uma responsabilidade por
demais complexa para enfrentá-la sozinho. Isso não se difere em
relação à sua dificuldade em atender as demandas pelos direitos
sociais vinculadas à concepção do welfare state, que potencializou
consciências coletivas incessantes na reivindicação de direitos que os
indivíduos aprenderam a entender como inalienáveis de sua condição
de vida. Nesse sentido, a operacionalização das políticas públicas se
tornou praticamente impossível sem a descentralização do poder, ou
pelo menos a sua desconcentração5. Essa situação de incapacidade de
atendimento força o Estado, por diversos caminhos, a se aproximar
dos indivíduos e das comunidades para governar de forma
compartilhada em atendimento às demandas que não cessam. Essas
demandas são, inclusive, de procedimento, portanto pautadas pelo
desejo de maior autonomia política, expresso por segmentos sociais6.
Não se ignore aqui, o que seria inocente, o quanto a “m~o” do
Estado é necessária ante a grandeza dos problemas, principalmente
esses relacionados à segurança e à assistência social. Nessa seara,
alguns cenários são claramente hobbesianos. Não obstante, é no
atendimento à multiplicidade dos problemas corriqueiros e cotidianos
que o Estado manifesta os limites do seu alcance e eficiência. Precisa
da sociedade, como precisa das regiões, embora tenha muito mais
facilidades em protagonizar do que em reconhecer autonomias
regionais e compartilhar poder. Assim, as experiências em curso
revelam as contradições naturais entre vontades e resistências, num
vai e vem histórico cujos resultados não são absolutamente seguros,
mas podem sugerir tendências.
5 Alguns autores questionam o termo descentralização, ao afirmarem que
experiências governamentais que se anunciam nessa direção não passam de
processos de desconcentração de serviços, sem que a esfera governamental
efetivamente proporcione autonomia política necessária para que tais processos
efetivamente descentralizem poder. Ver: FILIPPIM; ABRUCIO, 2010; BINOTO;
RIBEIRO; DALLABRIDA; SIQUEIRA, 2010. 6 É importante considerar o movimento histórico de demandas emancipatórias,
provocadas por Ongs e redes sociais de cidadãos críticos, consumidores exigentes
e emissores de informação. Por conta das vias de comunicação e troca de
informações, jamais o Mundo presenciou indivíduos tão convencidos como hoje da
legitimidade de suas demandas e do direito de participar da formulação e
operacionalização do atendimento a elas.
95
Nesse sentido, é imperioso um esforço interpretativo desse
movimento histórico no sentido de testar a hipótese aqui apresentada,
qual seja a de uma tendência histórica de descentralização do Estado
contemporâneo. Para isso, sugerimos que esse esforço, sem abrir mão
do pretenso rigor metodológico das ciências sociais, se apóie na
filosofia política moderna. Isso requer, aqui o sugerimos, uma
recorrência ao jusnaturalismo, desde a justificação absolutista até a
defesa da liberdade individual e das autonomias regionais7.
Para tanto, apresentemos resumidamente o dorso filosofal
dessa trajetória que vai da centralização do poder até a sua tendência
oposta. E, ao fazermos isso, precisamos dizer mais uma vez que
qualquer originalidade aparente nesta interpretação deve ser
atribuída às percepções e indicações de alguns autores consultados
aqui. Nessa direção, voltemos a Amaral (1999), que faz referência a
três nomes da filosofia política moderna, a fim de interpretar o
movimento histórico no rumo da descentralização.
Em termos de teoria do Estado, o filósofo moderno a quem
mais se recorre para demonstrar a justificação do Estado centralizado
é Thomas Hobbes. Sobre isso, desconhecemos discordância. Trata-se
de uma justificativa do Estado forte, o Leviatã, a partir de sua
concepção antropológica, isto é, de um entendimento sobre a natureza
humana. Como deve saber qualquer estudante de ciências sociais,
filosofia ou direito, Hobbes entende que o contrato social se firma
entre os homens que, reconhecendo sua incapacidade de auto-
organização, abrem mão de sua liberdade. E o fazem outorgando ao
Estado a tarefa exclusiva – o monopólio - do uso da violência, como
ameaça ou de fato, para garantir a todos o direito natural à vida e à
segurança8. Ao atribuir uma natureza malévola ou egoísta aos homens
7 De modo geral, esse esforço interpretativo sugere o encontro da história, da
filosofia e das ciências sociais. 8 Para que tenhamos uma idéia de como o pressuposto hobbesiano é influente nas
concepções da ordem política moderna, considere-se, por exemplo que essa idéia
do sacrifício da liberdade em nome da segurança é a principal justificativa das
experiências autoritárias e totalitárias. Era exatamente essa a posição de Golbery
do Couto e Silva, artífice intelectual do regime militar brasileiro, ao defender uma
intervenção autoritária no Brasil da década de sessenta e justificar posteriormente o
golpe de 64. Mas essa posição, já encontramos nas palavras do cientista político
Samuel Huntington, não por acaso consultor em três governos militares brasileiros.
Huntington, como seu leitor Golbery, sustentava que pelas peculiaridades
históricas do Brasil, justificava-se uma suspensão temporária das liberdades em
96
[homem, lobo do homem], estava apresentada a condição de
justificação do Estado soberano, ente superior único capaz de garantir
ordem social. Não deve causar surpresa que essa concepção continue
implícita na cultura política ocidental, mesmo no interior de ambientes
institucionalmente democráticos, durante o século XX. A rigor, como
admitimos anteriormente, são inúmeras as situações sociais,
relacionadas à segurança e à cidadania, a solicitarem a presença
soberana do Estado, sem a qual não haveria o que fazer.
Rousseau: o bom selvagem e a afirmação da igualdade
Não obstante, é também durante o século XX que podemos
verificar a progressiva afirmação dos direitos sociais. Se no século XIX
a organização do capitalismo permitiu a constituição de direitos civis,
o século seguinte foi palco da emergência de direitos políticos e
sociais. E, a despeito de todo o reconhecimento da práxis que resultou
na materialização desses direitos, homens e mulheres lutaram em
nome de valores, em nome de utopias e de certa concepção sobre o ser
humano, que novamente podemos encontrar na filosofia política
moderna. Esta concepção antropológica ajudou a justificar formas de
organização do Estado no século XX, estabelecendo pressupostos e
preceitos constitucionais nas principais democracias do Ocidente.
Grande parte dessa inspiração vem da concepção de homem e de
sociedade inerente ao pensamento de Jean Jacques Rousseau9.
No jusnaturalismo de Hobbes, é uma concepção
antropológica negativa da natureza humana que justifica a intervenção
centralizadora e exclusiva do Estado em nome do direito natural à vida
e à segurança. Portanto, no pacto social hobbesiano está obviamente
ausente a idéia da autonomia política da vida em comunidade. A
liberdade natural dos homens dá lugar ao direito à vida. Já no contrato
social de Rousseau, o ponto de partida sobre a natureza humana é
oposto. Se para Hobbes o homem nasce mau e a sociedade o civiliza
por meio do Estado Leviatã, para Rousseau o homem nasce bom e a
sociedade o corrompe. Noutras palavras, os homens nascem livres e
nome da segurança que permitisse a constituição paulatina de ambiente favorável
ao reestabelecimento das liberdades civis e constituição de uma democracia. 9 É, sobretudo, em Emílio ou Da Educação que encontramos a idéia do bom
selvagem.
97
iguais, mas a sociedade, por meio da propriedade privada, cria o
conflito e a desigualdade social.
Por conseqüência disso, o Estado se justifica se, e somente se,
garantir as condições do restabelecimento da natureza humana do
“bom selvagem”. Assim, enquanto o principal direito no Leviatã de
Hobbes é a garantia à vida, no pensamento de Rousseau será o
restabelecimento da igualdade entre os homens, sendo esta a
express~o da vontade geral e “condiç~o natural” que garantiria
inclusive a liberdade, daí a precedência da igualdade em relação à
última10.
Não parece difícil perceber, a partir desse entendimento, a
força do pensamento rousseauniano para a constituição histórica do
Estado de bem estar. Afinal, é antes de tudo o valor da igualdade o
ponto de partida para a reivindicação dos direitos sociais, maior
emblema do welfare state. E o welfare state é a mais emblemática das
experiências do Estado ocidental no século XX. Nesse sentido, a
afirmação dos direitos sociais foi mais intensa e, muitas vezes,
precedeu a afirmação dos direitos políticos. Salvo exceções, esses
direitos não vieram sem lutas. Mas, sendo possível reconhecer a força
do discurso socialista e o seu desdobramento mais pragmático no
Ocidente – a social democracia –, é mister reconhecer que a grande
batalha política ocidental no século XX foi pela afirmação da igualdade,
premissa mais importante do pensamento rousseauniano e única
condição necessária ao restabelecimento da liberdade tolhida pela
sociedade, por meio da propriedade privada.
É necessário reconhecer, portanto, a importância que teve a
concepção democrática de Rousseau ao fortalecimento do Estado de
direito, sobretudo o Estado dos direitos sociais, materializando as
condições de igualdade necessárias a fim da consecução da vontade
geral. Portanto, se a condição do Estado autoritário foi justificada
predominantemente em nome da segurança, a condição do Estado
democrático de direitos foi e continua sendo justificada
predominantemente em nome da igualdade, nesse contexto
compreendida como condição sine qua non da liberdade. Há um
importante consenso internacional acerca dessa premissa, conquanto
10
Note-se a semelhança com o que Marx dirá mais tarde a respeito da sociedade
capitalista.
98
nada autorize a falar em consolidação desse ideal, ante os desafios
mundiais no combate às desigualdades e à falta de liberdade11.
Não obstante, útil é lembrar que o último quartel do século
XX foi palco da insurgência neo-liberal de uma “nova direita”, por meio
do combate aos direitos instituídos pelo welfare state. A sugestão
pusilânime desses críticos do intervencionismo de bem estar foi na
direção de um capitalismo anárquico neo-darwinista12. Diante de
renovado cenário competitivo promovido pela globalização, e do
esgotamento concomitante do welfare state, a melhor resposta estaria
na menor intervenção do Estado. Assim, ao estatismo meio
hobbesiano, meio rousseauniano, sucederia uma proposta de Estado
mínimo nos termos de um reducionismo liberal de cunho
economicista.
Todavia, a crise de 2008, de modo geral entendida como
resultado desse neo-darwinismo, tratou de reduzir o discurso do
Estado mínimo a um movimento reacionário que pouco apresentaria
de “novo” { necessidade de revitalizaç~o da competitividade e do
próprio vigor de uma sociedade confortável e perigosamente
acomodada sob as “asas” do Estado. A necessidade persiste, mas a
resposta a ela parece carecer de um salto discursivo, a orientar a
perspectiva de mudança política. Nessa direção, novas respostas
estariam fora dos limites atuais do intervencionismo, mas também do
Estado mínimo.
Mais uma vez, é à filosofia política moderna que precisamos
recorrer. Pensando numa tendência contemporânea do Estado, a saída
estaria na numa espécie de revisão do contrato social capaz de
engendrar um sistema político que apresente a melhor combinação
possível entre “liberdade, co-responsabilidade e participaç~o”
(AMARAL, 1999, p. 127). Em primeiro lugar, isso implicaria na
superação do Estado centralizador e unitário, cuja conformação
discursiva encontramos, como já foi dito, no Leviatã de Hobbes. Mas
não é somente isso. Por extensão, implicaria também numa superação,
ainda que parcial, de uma concepção rousseauniana.
11
A maioria dos Estados-nações ainda é governada por regimes despóticos e
apresenta quadros de desigualdade social elevados. 12
O significado da expressão, sugerida por Amaral (1999), está relacionado às
proposições em favor da competitividade do livre mercado e à intervenção mínima
estatal.
99
Aqui é preciso explicar o car|ter “parcial” da superaç~o desta
última concepção. Se não é difícil sugerir a superação do centralismo
hobbesiano, claramente oposto à idéia liberal que compõe o
imaginário da democracia contemporânea, o mesmo não se pode dizer
de Rousseau. No contrato social deste último, há uma defesa da
coletividade, isto é, de uma vontade geral à qual as decisões do Estado
devem estar submetidas. Assim, a organização social estaria assentada
num acordo – o contrato social – em que os indivíduos condicionariam
as suas liberdades ao bem da coletividade, em consonância com o
interesse da maioria.
Ora, esse interesse da maioria, expressando a vontade geral
é, em suma, a epígrafe da democracia moderna. Nesses termos, o
contrato de Rousseau foi inspirador às variações interpretativas e
desdobramentos práticos na constituição de inúmeros Estados
democráticos, a começar pela França13. Nesse sentido, sua obra é
freqüentemente apresentada em oposição ao Leviatã de Hobbes.
Afinal, se o contrato social deste sugere a outorga dos indivíduos ao
Estado soberano, Rousseau sugere essa outorga à coletividade
soberana, à qual as decisões do Estado devem estar submetidas.
Enquanto Hobbes é o inspirador do absolutismo, Rousseau o é da
democracia.
Entretanto, há um desdobramento da concepção democrática
e antropológica que Rousseau propõe, e que redunda
contraditoriamente num Estado inibidor da autonomia dos indivíduos.
Ora, se por natureza o ser humano é bom, mas a sociedade o corrompe,
o papel do Estado seria o de reconduzi-lo à sua natureza boa. Isso se
daria através do contrato social que restabeleceria as condições de
igualdade entre os homens. Lembremo-nos que essa condição natural
de igualdade é originariamente perdida em sociedade em função da
instituição da propriedade privada. Segundo Rousseau, seria essa a
fonte de toda a desigualdade e vício humanos. Nessa condição, a
maioria estaria submetida e corrompida por uma minoria proprietária,
que se apossa do Estado e faz as leis de acordo com seus interesses,
impedindo a vontade geral. A materialização da vontade geral,
portanto, só se daria através do contrato, em que a maioria dos
homens entraria em consenso sobre a necessidade do
13
Rousseau é apresentado na literatura política como o maior inspirador dos ideais
da Revolução Francesa.
100
restabelecimento da igualdade, sendo a isto que o Estado estaria
submetido. Assim, a sociedade já não seria mais a corruptora da
natureza humana restaurada pelo contrato social, por sua vez
resguardado pelo Estado, vigilante e defensor permanente. Haja
Estado!
Nessa direção, o esforço primordial do Estado estará
permanentemente voltado ao estabelecimento das condições a essa
igualdade. Conquanto haja razoável consenso acerca dessa
necessidade, o problema é que põe em constante risco a autonomia
dos indivíduos. Dependendo da variação interpretativa, esse norte
orientador de pressupostos constitucionais e da formulação de
políticas públicas pode conferir um peso desmedido à vontade geral,
em detrimento dos direitos individuais. As conseqüências disso não
inumeráveis, podendo resultar naquilo que é facilmente identificado
com a crítica do conservadorismo liberal: estímulos à acomodação
coletiva e desestímulos à auto-responsabilidade14.
Nessa perspectiva, outro ponto importante é o que muitos
chamam pelo neologismo de “vitimizaç~o” dos indivíduos. Em outras
palavras, toda espécie de desvio comportamental, sobretudo dos
crimes, mas também da ignorância, da falta de politização etc., tende a
ser visto como efeitos de uma sociedade injusta e desigual, grande
causadora de todos os males. Já que os indivíduos são naturalmente
bons, seus desvios se explicam pela sociedade desigual que os
corrompe. Assim, o Estado é responsável pelo cumprimento do
contrato social, tendo a obrigação ética de se responsabilizar por esses
desvios, proteger e assistir, no lugar de imputar responsabilidades.
Nesse sentido, o Estado assume, em nome da vontade geral e da
concepç~o antropológica do “bom selvagem”, uma tarefa gigantesca.
Por isso, pode-se dizer que o Estado, ao tomar a si tarefas
que ele poderia compactuar com a sociedade, a despolitiza. Isso é
possível perceber, por exemplo, no excesso de “judicializaç~o” da
sociedade contemporânea, substituindo o diálogo, a política
comunitária, e reforçando o poder corporativista de certas profissões,
como as do advogado e do assistente social15. Essa tendência parece se
14
Em países como o Brasil, há uma considerável indisposição entre a maioria dos
intelectuais em relação a essa posição liberal-conservadora. 15
Em relação a essas profissões, pode-se inferir que o caráter rousseauniano da
Constituição brasileira, de um compromisso igualitarista, preencha de justificativas
101
manifestar nos sistemas prisionais, em que certos tipos de criminosos
seriam beneficiados por leis inspiradas nessa concepç~o do “bom
selvagem”. Na radicalizaç~o dessa perspectiva, criminosos s~o
entendidos como vítimas e não contraventores da sociedade. Eles
próprios tendem a assumir, de modo oportunista, esse discurso.
Portanto, retira-se a responsabilidade do indivíduo, imputando-a a
fatores externos, significando isso uma espécie de desumanização.
A conseqüência mais incomensurável dessa concepção
antropológica do bom selvagem é o fortalecimento da idéia do Estado
todo poderoso, guardião dos direitos. Ele passa a ser entendido como
promotor único e unitário da igualdade. Note-se que o faz em nome da
igualdade e não da segurança, embora o ímpeto centrípeto seja o
mesmo. Naturalmente, o aumento desse consenso justifica pressões
cada vez maiores dos indivíduos sobre o Estado, o que não deixa de
favorecer os inúmeros agentes estatais e seus interesses fisiológicos e
corporativos, cujas funções são justificadas pela necessidade do
atendimento às demandas. Assim, em nome da vontade geral, expressa
nas constituições resultantes dos amplos consensos nacionais, cresce
ad infinitum o aparato estatal. Governos assumem cada vez mais a
tarefa de promover o bem público, retirando das sociedades regionais
e locais a autonomia de resolverem problemas que o Estado
assoberbado não consegue. Nessa medida, atrofia a criatividade das
comunidades, matando a política na raiz. Diante da imensidão dos
problemas, cada vez que se diz “O Estado tem que fazer”, foge-se da
pergunta sobre “quais os limites desse Estado bem feitor?”.
Em meio a esse quadro de unitarismo estatal, em que o
centralismo absolutista hobbesiano é substituído pelo centralismo
democrático de Rousseau, ou os indivíduos se tornam voluntariamente
reféns de uma espécie assombrosa de totalitarismo da vontade geral,
ou o Estado se ramifica na sociedade, por meio de novas instâncias
intermediárias, locais e regionais. Nessa direção, não se trataria mais
da “proteç~o atomizada dos indivíduos isolados e abstratos” garantida
pela soberania do Estado centralizado, mas da consideraç~o “das
pessoas reais e situadas na pluralidade comunitária, contexto no qual
imprimem significado às suas vidas” (AMARAL, 1999, p. 128).
a necessidade dessas profissões, em defesa dos indivíduos ante uma sociedade
desigual e injusta.
102
Locke: o direito à liberdade em comunidade
Essa resposta ao centralismo significa, portanto, a
característica e o resultado cumulativo de um processo de mudança
política em curso em vários lugares do Ocidente. Significa uma
tendência do Estado contemporâneo de perda de unidade de poder
para uma difusão territorial em novas unidades intermediárias
(Ibidem, 131), como também no fortalecimento das unidades
federativas16.
Na filosofia política moderna, essa superação do centralismo
absolutista de Hobbes e do centralismo democrático de Rousseau,
podemos encontrar no liberalismo de John Locke (Ibidem, 135). A
tendência descentralizadora do Estado contemporâneo que
insistentemente sugerimos encontra, nos textos do filósofo inglês, um
aporte discursivo importante, embora não exclusivo17. Não se
encontra ali a alienação dos indivíduos a um ente exterior único, seja
ele o Estado, seja a coletividade. Ao contrário, os indivíduos são
portadores de direitos intransferíveis, sendo estes a vida, a liberdade e
a propriedade. O Estado existe como convenção dos indivíduos, que o
concebem para a garantia desses direitos. É para isso que os homens
criaram governos. Se, todavia, esses direitos não fossem respeitados,
os homens teriam todo o direito de se rebelar contra o governo injusto
e rejeitar suas imposições.
Na filosofia de Locke, o Estado tem suas funções específicas,
sobretudo administrativas, mas não chega a ser um ente soberano, de
poderes exclusivos. Tampouco, a coletividade dos indivíduos,
constituinte da vontade geral, pode sê-lo, em sobreposição aos
indivíduos autônomos. Nessa concepção, ao homem está resguardada
e imputada a condição autônoma de responsabilidade pelos seus atos,
vida e posses. Não compete ao Estado a intromissão, seja em nome do
que ou de quem for, penetrar no “núcleo privativo dos direitos e
16
No Brasil, existem algumas experiências de descentralização política e ou
administrativa em curso. Não obstante, aparecem na mídia e na bibliografia da
ciência política reivindicações ou indicações sobre a necessidade de um pacto
federativo entre União, estados e municípios, na direção de maior autonomia das
instâncias federativas sub-nacionais. 17
É também na obra de Alexis de Tocqueville, Democracia na América, que
encontramos importantes elementos constitutivos para uma defesa de governos
descentralizados.
103
liberdades naturais e originárias da condição pré-política do homem”
(Ibidem, seq. & Locke, 2007, p. 68-97). Cabe, ao contrário, que o Estado
garanta as condições públicas ao exercício desses direitos.
Nessa perspectiva, não é o poder político que age o tempo
todo, nas mais variadas situações, em nome dos direitos naturais.
Passa a ser o indivíduo, na assunção da sua autonomia e
responsabilidade, que age em comunidade, estabelecendo os acordos
mútuos para a vida política. Essa confiança na capacidade dos
indivíduos, sugerida no liberalismo de Locke, dispensa o grande e
centralizado aparato jurídico.
É este o real significado do Estado mínimo: o Estado de
confiança nos indivíduos em coletividade. Aquele cuja fortaleza está
justamente apoiada na autonomia das comunidades, facilitando a
tarefa do Estado. Nessa perspectiva antropológica, o indivíduo não é
simplesmente o ser atomizado e portador de direitos. Ele é o agente
desses direitos, única condição de garanti-los. Agora sim estamos
falando do sujeito político, condição resultante de sua liberdade
compactuada na comunidade, diante da qual é também responsável,
não apenas reflexo passivo. E, ao Estado, modo geral, é incumbência
garantir essa liberdade auto-refletida. Sua tarefa agora já não parece
tão grande.
A concepção antropológica de Locke confere ao homem a
tarefa geral de cuidar da sua vida, das suas posses e administrar a sua
liberdade em coletividade. E é justamente essa condição que aproxima
a sua perspectiva de uma ordem política baseada na autonomia dos
locais e regiões. Invocando Locke, mas também Tocqueville, Amaral
aponta para um nível intermediário entre o poder pessoal e o poder do
Estado, chamando a isso de poder civil local. Assim, de poder único, o
Estado passa a contar com mais duas entidades civis: as pessoas e as
autarquias, cada qual com suas atribuições e limites, não podendo uma
interferir noutra, salvo sob circunstâncias de consenso que o
requeiram (AMARAL, 1999, p. 142 & Locke, 2007, Segundo opúsculo).
Nesse sentido, o liberalismo de Locke ganha contorno
contemporâneo, servindo de aporte reflexivo às abordagens favoráveis
à regionalização e à descentralização do poder. Mas isso só é possível
afirmar na medida em que, no liberalismo de John Locke, o indivíduo
claramente antecede o Estado, sendo este sua concessão. Por extensão,
assim como o indivíduo, também os municípios e as regiões o
104
antecedem. Desse modo, advoga Amaral, “tal como {s pessoas
individuais, também às pessoas coletivas (municípios e regiões)
corresponde uma esfera de privacidade, de direitos e de liberdades
próprios e inalienáveis, e todo um âmbito de atividades e de funções,
na prossecução e na gestão das suas vidas próprias e dos seus
interesses específicos”. Nesse }mbito, continua o autor, “n~o é legitima
qualquer interferência por parte do Estado” (AMARAL, 1999, p. 141).
Desta feita, corresponde aos municípios e às regiões um poder
semelhante ao núcleo de direitos e liberdades naturais dos indivíduos.
Por conseqüência, a descentralização do poder e sua
regionalização aproximam o Estado das comunidades regionais. Nesse
processo, a criação de entidades intermediárias ajuda na governança
por meio da instituição de funções auxiliares. Entre outras vantagens,
essa aproximação tende a combater vícios favorecidos pela
centralização, como é o caso do patrimonialismo. E, ao contrário do
que pregam os defensores mais centralistas do Estado, amplia laços de
confiança entre governo e sociedade, fortalecendo e legitimando o
poder político estatal ao invés de enfraquecê-lo18.
Assim, o regionalismo e a descentralização apontam para a
própria afirmação do federalismo como tendência de uma mudança
histórica no republicanismo do Estado contemporâneo. Incentivar e
atribuir poder político e administrativo às regiões significa, não
obstante, potencializar a cultura, as formas de identidade, o diálogo, a
solidariedade e a cooperação, com desdobramentos positivos ao
desenvolvimento regional. Segundo Amaral, essa tendência
representaria a própria “reaç~o ao positivismo da Modernidade” –
aquele que anula as diferenças em nome de um grande e único projeto
civilizatório, que todos teriam de seguir (Ibidem, p. 180).
A descentralização em Santa Catarina: estudo de um caso
concreto
A explanação precedente tem um significado prático, como
dissemos no início: deve facilitar a análise de processos políticos
18
Nessa perspectiva das instâncias intermediárias de governança, a
descentralização e a regionalização significam algo diferente da relação que
Rousseau, no Contrato Social, sugere entre o Estado e os indivíduos, dispensando
as intermediações em nome do seu assembleísmo.
105
contemporâneos que sinalizam para impulsos centrífugos. Nesse
sentido, torna-se oportuna a apresentação de alguns resultados de
uma pesquisa de avaliação institucional sobre uma experiência em
curso, que é o processo de descentralização político-administrativo no
estado de Santa Catarina. A intenção é comparar as conjeturas
relacionadas à descentralização e regionalização políticas com os
resultados de uma pesquisa empírica sobre um processo real cujos
desígnios convergem de modo geral com o exposto anteriormente. A
pesquisa foi realizada durante o ano de 2009 com o objetivo geral de
avaliar os pontos fortes, fracos, as ameaças e oportunidades. Ao todo,
432 pessoas, integrantes do processo, responderam questionários ou
foram entrevistadas19.
Em 2003, o estado de Santa Catarina instituiu, através de
uma política de governo, as Secretarias de Desenvolvimento Regional –
SDR e seus respectivos Conselhos de Desenvolvimento Regional –
CDR20. Tais secretarias estão localizadas em cidades sedes de
microrregiões catarinenses. Como também dissemos no início, essa
política governamental de descentralização foi precedida pela
experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado, cujo
propósito geral de promoção do desenvolvimento regional era o
mesmo das SDR, o que permite falar num movimento centrífugo que
remonta a meados da década de noventa do século XX, quando estes
FDRI começaram a surgir21.
As SDR e seus CDR são vinculados à Diretoria de
Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão.
No seu organograma regional as SDR são compostas por um
secretário, com staff de primeiro escalão, de um diretor geral e de
gerentes de áreas. Sua principal incumbência é operacionalizar os
19
A pesquisa gerou um relatório de noventa páginas, com gráficos demonstrativos
relacionados aos percentuais das respostas, que foi entregue à Diretoria de
Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Santa
Catarina. 20
As SDR foram criadas no governo de Luiz Henrique da Silveira, da coalisão
PMDB-PSDB-DEM. Seu número inicial foi de 29 secretarias, depois atingindo o
total de 36. 21
A criação das SDR acabou se sobrepondo aos FDRI que, criados pelo
voluntarismo da sociedade civil regional, continham uma característica de tipo top
down. Apesar disso, o processo de descentralização e regionalização continuou,
não se podendo falar de um caso típico de solução de continuidade.
106
recursos vindos do governo estadual, assim como as decisões tomadas
nos CDR. Por sua vez, os CDR são compostos pelo presidente [o
próprio secretário regional], prefeitos, presidentes dos legislativos
municipais e dois representantes da sociedade civil de cada município.
A principal tarefa nessa instância consiste em acolher as demandas
municipais e intermunicipais, avaliar sua viabilidade, aprovar ou
reprová-las, e encaminhá-las à SDR.
A avaliação geral do processo por parte dos integrantes foi
considerada positiva durante o período de 2003 a 2009. Pela maioria
dos respondentes, a descentralização é considerada uma inovação na
forma de administrar a coisa pública e atender às demandas regionais.
Sobretudo, fica evidente nas manifestações de grande parte dos
integrantes o fato de a descentralização ter o sentido de atender a
aspirações naturais das comunidades regionais. Conquanto as
insuficiências sejam apontadas, a opinião majoritária é de
reconhecimento sobre as mudanças e expectativas que o processo
gerou. Nessa direção, a resposta mais emblemática e bastante
manifestada nos depoimentos é de que, com todas as idas e vindas, a
descentralização é dada como irreversível.
Veja-se abaixo, os principais pontos fortes apontados, isto é,
aqueles que obtiveram maior regularidade nas respostas sobre a
avaliação da descentralização:
- Amplificou, via reuniões mensais do CDR, o ambiente do diálogo
regional;
- Promoveu transparência ao submeter os projetos locais à apreciação
dos conselheiros, inibindo a formulação de demandas de duvidoso
interesse público;
- Estimulou a solidariedade e o senso de identidade micro-regional;
- Aumentou o conhecimento e a criatividade regionais com a troca de
experiências intermunicipais;
- Promoveu a proximidade entre comunidade regional e governo
estadual, aumentando o diálogo e diminuindo despesas;
- Melhorou o tratamento aos municípios menores, contemplando
demandas e diminuindo a desigualdade.
Na seqüência, apresentam-se os principais pontos fracos
mencionados pelos inquiridos. Veja-se:
- Falta autonomia orçamentária e financeira aos CDR;
- Por decorrência, diminui o caráter político do processo;
107
- Falta qualificação técnica e teórica dos operadores, sendo que a
reclamação pesa principalmente sobre os que ocupam cargos
indicados, mas também sobre os conselheiros.
- Há excesso de burocracia, pela existência dos trâmites burocráticos
que continuam passando pela administração centralizada.
Considerações finais
Pelo que apresentam as respostas da avaliação institucional,
pode-se verificar a convergência de alguns apontamentos dos
inquiridos com os pressupostos sugeridos anteriormente, baseados no
liberalismo de John Locke e na apreciação feita por Amaral. Tanto na
avaliação geral, quanto nos pontos fortes sugeridos em relação à
descentralização, pressupostos gerais encontrados na filosofia política
moderna se confirmam nas opiniões de agentes do processo
investigado. É nessa condição que encontramos opiniões sobre a
amplificação do diálogo regional, de maior transparência sobre as
decisões, na comparação com períodos precedentes de concentração.
Na mesma direção, inúmeros respondentes entendem que a
descentralização estimula a solidariedade, reforça o senso de
identidade regional, aumenta o conhecimento intrarregional, como
amplia a criatividade por conta da troca de experiências
intermunicipais. Além disso, confirmam os depoentes, a
descentralização aproxima a governo estadual dos municípios,
principalmente os mais distantes da capital. E, por fim, favorece os
municípios menores, combatendo a desigualdade regional.
Entre as quatro principais fragilidades apontadas pelos
inquiridos, da mesma forma fica evidente que os operadores do
processo estão cientes do que o processo requer para o seu
aperfeiçoamento. O primeiro ponto diz respeito à falta de autonomia
orçamentária e, por conseqüência, decisória dos Conselhos de
Desenvolvimento Regional, cujo principal desígnio é justamente o seu
caráter político. É que a liberação dos recursos continua na
dependência das secretarias setoriais de estado, centralizadas no
governo estadual. Daí que a insuficiência do papel político dos CDR,
reclamadas pelos inquiridos, é tão somente conseqüência deste
primeiro ponto. Tão importante quanto isso é a reclamação também
generalizada quanto à falta de qualificação técnica como também
108
teórica de muitos integrantes - esta última no sentido da compreensão
dos operadores sobre o significado político e histórico do processo. E,
por último, aparece a reclamação sobre os excessos de burocracia.
Trata-se de fenômeno inibidor à inovação, algo que a política de
descentralização se propõe a combater, mas que enfrenta a resistência
de um corpo burocrático conservador, que vê na descentralização uma
perda de poder.
De maneira geral, os pontos fortes e fracos enunciados
revelam, sobretudo, a consciência dos operadores sobre a situação
geral dessa política, como também tende a revelar expectativas e boa
vontade. Afinal, na medida em que o processo funciona, se revela o
atendimento ao anseio de comunidades regionais que sempre
reclamaram maior autonomia. Mais do que satisfação, o processo de
descentralização gerou expectativas nessa direção. Porquanto se
mostre insuficiente, pelos conflitos que naturalmente suscita, a
descentralização permite a compreensão de que mudanças são
possíveis tanto quanto desejadas, gerando, repita-se, expectativas
acerca delas. Além de tudo, a mudança política abre espaço para novas
lideranças, cuja ambição é um importante combustível à superação
dos obstáculos. Mas requer uma disposição governamental que parece
nunca estar garantida, sobretudo nas trocas de governantes. E requer,
igualmente, um processo de sensibilização permanente. Entre tudo o
que se observa até aqui, pode-se supor que, uma vez detonado, o
processo de descentralização criou insatisfações e aspirações
crescentes e incontidas. Isso posto, torna-se necessário investigar,
continuadamente, as possibilidades do caráter irreversível sugerido
pela maioria dos operadores inquiridos na pesquisa.
Finalmente, cabe lembrar que o propósito do exposto foi
abrir perspectivas interpretativas acerca do fenômeno contemporâneo
da descentralização, que entendemos aqui como uma tendência
política na conformação histórica dos Estados democráticos. E a forma
de fazê-lo foi a partir de um aporte na filosofia política moderna que
permita justamente compreender a trajetória histórica do Estado
moderno. Não estamos propondo isso por mero idealismo
epistemológico, no sentido de que os próximos passos políticos
requeiram as luzes da filosofia. É importante lembrar que o recurso à
filosofia não signifique algo além do vôo da coruja. Noutras palavras,
que ela ajude as ciências sociais a compreender o que se passa no
109
longo tempo, sendo isto o suficiente. Assim, a utilização da filosofia
política como prelúdio à interpretação de um caso real em curso
significa também o esforço do diálogo interdisciplinar. Em outras
palavras, significa a possibilidade de uma interpretação do longo
tempo, proporcionada pelo recurso à filosofia e também à história,
com a interpretação contemporânea e muitas vezes pontual dos
estudos empíricos das ciências sociais. Referências AMARAL, C. E. P. do. Do Estado soberano ao Estado das autonomias. Blumenau: Furb, 1999. ARON, R.. Etapas do pensamento sociológico. BINOTTO, E.; RIBEIRO, E. S.; DALLABRIDA, V. R.; SIQUEIRA, E. S. Descentralização político-administrativa: o caso de uma secretaria de estado. In: Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, vol. 6, p. 186-213, 2010. BIRKNER, W. M. K. Capital social em Santa Catarina: a experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado. Blumenau: Furb, 2006. BIRKNER, W. M. K.; TOMIO. F. R. L.; BAZZANELLA, S. L. A descentralização em Santa Catarina. In: Revista de Administração Municipal. vol. 275, out-dez/2010, p. 66-85. BIRKNER. W. M K.; BOELL, A.; RUDNICK, L. T. Secretarias de Desenvolvimento Regional de SC: avaliação parcial: período 2007-8. In: Revista Humus. vol. 02, abril/2011, p. 53-72. ELIAS, N. O processo civilizatório: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. _____. O processo civilizatório: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. FILIPPIM, E. S.; ABRUCIO, F. L.. Quando descentralizar é concentrar poder: o papel do governo estadual na experiência catarinense. In: Revista RAC, vol.14, n.2, p. 212-28, mar/abr de 2010. FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
110
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TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: DO DELIBERATIVO AO AGONÍSTICO
Armindo José Longhi
Universidade Estadual do Paraná
Universidade do Contestado
Cada qual considera claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas (Marcel Proust)
Introdução
Na contemporaneidade percebe-se um fenômeno
significativo na política: crescente desinteresse dos indivíduos pela
política, principalmente por parte do grupo composto pelos jovens.
Como explicar? Para responder é necessário é pesquisar as múltiplas
questões envolvidas na relação estabelecida entre o indivíduo,
aprendizagem, formação política e prática política contemporânea.
Refletir sobre esta relação implica em pensar o processo de
aprendizagem presente na formação política do cidadão. A
preocupação volta-se para uma tarefa ambiciosa, ou seja, enquadrar
teoricamente um problema incomensurável: descrever o processo de
aprendizagem presente na formação política dos cidadãos. Da questão
norteadora se seguem outras: quais são as condições em que ocorre a
identificação do sujeito com a prática política? Por que é lugar comum
interpretar que os jovens não se interessam por política? O
individualismo hoje dominante oculta do cidadão a possibilidade de se
identificar com projetos políticos?
Explicar as múltiplas causas implicadas na participação
política é processo complexo. Encontramos diversos teóricos políticos
preocupados com o desenvolvimento de modelos políticos
contemporâneos mais democráticos, novas propostas de participação
e novas teorias que, quando aplicadas na sociedade, pretendem dar
conta do problema do desinteresse pela política. As possibilidades
apontadas pelas teorias pretendem devolver ao indivíduo o interesse
pela participação na política, por meio da associação com indivíduos
ou grupos sociais.
112
Entre as novas teorias citamos duas propostas. A primeira, o
modelo deliberativo, possui como principal representante Jürgen
Habermas quando propõem um modelo político baseado nas relações
intersubjetivas que se concretizariam na relação dialógica entre
indivíduos com os mesmos direitos e valores. O modelo proposto por
Habermas afasta as manifestações coercitivas dos pólos de disputas
dialógicas no campo social quando o indivíduo busca o consenso entre
diferentes alternativas. Segundo a proposta, o diálogo criaria laços
entre os indivíduos, afastando-os da consciência fechada sobre si
mesma (solipsista) que permanece presente desde o início da
modernidade e que já não serviria mais para a esfera política das
sociedades complexas.
A segunda proposta, o modelo agonístico, busca encontrar no
próprio indivíduo, na condiç~o ontológica de “o político”, os elementos
que definem o cidadão pelas suas características intrínsecas, utilizado,
por exemplo, a psicanálise, para identificar e entender o caráter
político presente nas relações de poder, encontradas na natureza do
indivíduo. Partindo das novas descobertas psicanalistas, utiliza estes
novos conhecimentos para criar um modelo de política democrática
vibrante, com indivíduos dispostos a defender seu grupo de
identificação, conscientes da importância de suas propostas para a
transformação da sociedade e, ao mesmo tempo, respeitam os valores
dos adversários mediante regras pré-estabelecidas, e assim
desenvolvem um novo interesse político baseado na identificação com
um grupo em uma sociedade pluralista.
Como decorrência dos dois modelos, encontramos modelos
políticos com diferentes preocupações quanto aos problemas
enfrentados pelas sociedades democráticas contemporâneas. Estes
modelos políticos divergem tanto sobre a forma dos indivíduos
atuarem na sociedade quanto a forma de desenvolver no indivíduo um
caráter político vibrante e participativo.
O modelo deliberativo e o agonístico são modelos políticos
divergentes entre si. O primeiro modelo é representado pelos teóricos
liberais, tanto os liberais de caráter agregativo quanto os de caráter
deliberativo. Deste último grupo faz parte Jürgen Habermas. Segundo
Mouffe (2007), tanto o modelo liberal quanto o agregativo anulam o
verdadeiro car|ter de “o político”.
113
Ateremo-nos em apresentar as críticas de Mouffe dirigidas as
teorias liberais, em especial ao modelo deliberativo proposto por
Habermas. O objetivo da apropriação é justificar a hipótese de que o
modelo liberal deliberativo produz o afastamento dos jovens da
política exatamente quando propõem a criação de novas perspectivas
de políticas democráticas.
Sociedade Democrática
A história do ocidente registra inúmeras experiências
democráticas nos últimos 25 séculos. Ocorreram avanços e
retrocessos. As relações entre a sociedade antiga com a nova
produziram mudanças típicas em cada evento. Em cada experiência
histórica a mudança foi marcada predominantemente pela recusa do
velho, pela substituiu de partes do passado, pela incorporação do
velho no novo ou pela superação do artigo.
Dada a riqueza da experiência histórica das sociedades
democráticas do ocidente, a noção de sociedade democrática torna-se
uma representação extremamente complexa e diversa. A expressão
‘sociedade democr|tica’ reúne dois conceitos que individualmente s~o
polissêmicos. Ao unir os conceitos de ‘sociedade’ e de ‘democracia’
para se referir a diversidade de organização política vividas pelas
diversas sociedades, as sociedades complexas do mundo ocidental
contemporâneo produziu um conceito ainda mais intrincado.
De forma equivocada, o pensamento político liberal percebe
as expressões ‘sociedade democr|tica’ e ‘política liberal’ como faces da
mesma moeda. Sobre esta compreensão duvidosa é necessário fazer
uma observação bastante óbvia. O que o ocidente entende por
sociedade democrática enquanto organização política é muito mais
ampla do que pretende o discurso político liberal ao sugerir
equivalência entre ‘pensamento liberal’ e ‘sociedade democr|tica’.
De um modo geral podemos expressar como liberalismo
político a forma política na qual os indivíduos são livres para perseguir
seus objetivos pessoais, os indivíduos estão seguros do direito de
usufruir dos resultados do seu trabalho e os indivíduos crêem que a
justiça os tratará de forma isonômica e imparcial mantendo intactos
seus direitos individuais.
114
Sob certos aspectos o pensamento político liberal é oposto ao
pensamento político republicano. Para o pensamento republicano, na
vertente da perspectiva proposta por Maquiavel, a formulação da lei só
deve limitar a ação dos indivíduos e estabelecer garantias para os
mesmo. Jamais poderia ser um produto da política e, ao mesmo tempo,
um estímulo de exercício da política (ABREU, 2008, p. 180).
O pensamento político liberal comunga num ponto com o
pensamento político republicano: ambos excluem da dinâmica política
o fenômeno do conflito. Os resultados da pesquisa permitem
argumentar num caminho contrário. A boa sociedade democrática é
aquela que incorpora o conflito e considera o modelo político baseado
em adversários como não obsoleto.
As noções políticas derivadas das concepções políticas
liberais possuem uma visão otimista do presente e do futuro,
imaginam um mundo livre, globalizado e sem a existência de inimigos
por que todos foram eliminados do cenário político. A perspectiva
liberal divulga a idéia de que com o desenrolar econômico-político a
atualidade representa o progresso da própria evolução da
humanidade, como uma ‘segunda modernidade’, onde os indivíduos
livres podem dedicar-se a uma diversidade infinita de estilos de vida.
Os liberais acreditam na ‘democratizaç~o da democracia’ e
nas noções de ‘democracia livre de partidos’ por n~o mais existir o
conflito ideológico, ‘democracia dialógica’ baseada no diálogo racional
ou ‘democracia cosmopolita’ nos moldes da ONU (Organizaç~o das
Nações Unidas). Tais crenças (MOUFFE, 2005) são a causa de muitos
problemas enfrentados pelas instituições democráticas na atualidade,
ao negarem ou desconhecerem a dimensão antagônica constitutiva do
político. A negação do conflito, tanto na teoria quanto na prática
política, implica em riscos políticos. A despolitização das novas
gerações é só um deles.
Os teóricos liberais (HABERMAS, 2011) defendem uma
concepção de política democrática que seja capaz de atingir consensos
e reconciliações, e acreditam na existência de um mundo onde se
tenha superado a discriminaç~o ‘Nós/Eles’. Ao anular as relações
conflituosas, os liberais excluem a verdadeira tarefa da política
democrática. Autores defendem que o papel específico e próprio dos
teóricos políticos consiste em criar uma “esfera pública vibrante onde
muitas visões conflitantes podem se expressar e onde a possibilidade
115
de escolha entre projetos alternativos é legítimo” (MOUFFE, 2003, p.
11). Criar uma esfera pública vibrante seria a forma adequada de
controlar o antagônico sem eliminar as características constituintes do
político e, conseqüentemente, da própria política derivada da natureza
do político.
Mouffe defende o modelo político democrático do pluralismo
agonístico por acreditar que a identidade é formado quando o
indivíduo se identifica com um grupo. A identificação com o grupo
possibilita deferentes alternativas em oposição a outros grupos. O
binômio Nós/Eles possui um caráter social antagônico derivado das
características intrínsecas de ‘o político’. É justamente o car|ter
conflituoso que possibilita a existência de uma esfera política vibrante
no debate político e é a própria condição de constituição de uma
democracia legítima.
Conceito de ‘a política’ e de ‘o político’
Na esteira do vocabul|rio heideggeriano, ‘o político’ refere-se
ao nível ontológico, ou seja, “uma atitude tal em relaç~o ao ente que o
deixe ser em si mesmo, no que é e como é” (HEIDEGGER apud
ABBAGNANO, p. 848). No nível ontológico o espaço político é
entendido como “o modo próprio no qual se constituí a sociedade”
(MOUFFE, 2007, p. 16). O modo próprio constitutivo das sociedades
democráticas é o conflito.
No nível ôntico, o espaço da política pode ser conceituado
como o “conjunto de pr|ticas e instituições através da qual se cria uma
determinada ordem organizando a coexistência humana no contexto
dos conflitos derivados ‘do político’” (MOUFFE, 2007, p. 16). Assim, a
natureza conflituosa da política é o objeto acerca do qual a política
democrática deve partir com a finalidade de impedir o conflito
deliberado. Da práxis da vida em sociedade deve emergir a política
democrática. Quanto mais próxima da práxis humana mais imanente
será a política democrática.
Para defender esta posição é necessário recuperar a
argumentação de Chantal Mouffe. Ao invés de aceitar a relação
Nós/Eles como o ponto de conflito gerador de uma consciência radical
entre amigo e inimigo, Mouffe propõem um modo diferente de
116
estabelecer esta oposição na relação Nós/Eles. Tal relação permite
reconhecer o pluralismo constitutivo da democracia moderna.
Para elevar a relação Nós/Eles para um patamar superior,
superando a interpretação de Carl Schmitt, Mouffe (2007, p. 22) utiliza
dois elementos: a noção de exterioridade constitutiva e o fenômeno
das massas.
1º Elemento: exterioridade constitutiva. Utiliza a noção de
‘exterioridade constitutiva’ para destacar o fato de que a identificaç~o
política implica em estabelecer a diferença presente na relação
Nós/Eles. Assim, considerando que toda identificação é relacional e a
diferença é precondiç~o de tal identificaç~o, a noç~o de ‘exterioridade
constitutiva’ indica que a percepç~o do ‘outro’ é o que constituí a
‘exterioridade’. A noç~o de ‘exterioridade constitutiva’ coloca Mouffe
numa posição mais adequada para rever a argumentação de Carl
Schmitt.
A formação da identidade política a partir da relação
Nós/Eles deve admitir a possibilidade sempre presente do conflito. O
desafio para a política contemporânea é estabelecer uma interpretação
para a relação Nós/Eles que seja capaz de inibir o surgimento do
antagonismo sem cair na ilusão de erradicar o conflito por que ele está
sempre presente no espaço político, ou seja, o conflito político é a
nossa condição ontológica. Sobre a condição ontológica do conflito
Mouffe afirma que:
[...] deve existir algum vínculo em comum entre as partes em conflito, de maneira que não tratem seus oponentes como inimigos a ser erradicados, como ocorre com a relação antagônica amigo/inimigo. Também não podem considerá-los como competidores cujos interesses podem ser tratados como uma mera negociação ou reconciliar-se através da deliberação, por que neste caso o elemento antagônico seria eliminado, e assim negar-se-ia o político. Podemos dizer que a tarefa da democracia é transformar o antagonismo em agonismo (2007, p. 27).
Para superar o antagonismo sem excluir o conflito, Mouffe
propõe a teoria agonística por dois motivos: a) a teoria agonística
aceita o pluralismo como elemento constitutivo da democracia
moderna e b) aceitando o pluralismo democrático é possível encontrar
117
o vínculo comum entre as partes em conflito, superando a relação
antagônica ‘amigo/inimigo’ proposta por Schmitt.
2º Elemento: fenômeno das massas. O conceito do ‘fenômeno
das massas’ foi desenvolvido por Elias Canetti. Mouffe utiliza este
elemento para explicitar o duplo mecanismo de afastamento e atração
exercido pela massa sobre o indivíduo. Atribui a este mecanismo os
diferentes impulsos que movem os atores nas práticas sociais. Por um
lado o indivíduo possui o impulso para a individualidade que o
diferencia dos demais. Por outro, existe um impulso que leva os atores
sociais a desejarem a fusão com a massa. Para Mouffe (2007, p. 30-31)
o impulso para a fusão com a massa é a parte integrante da estrutura
psicológica dos seres humanos. Negar esta tendência é o que torna o
enfoque racionalista incapaz de aceitar a paixão (afeto) como
produtora do sentido da ação no momento em que o cidadão adere aos
movimentos políticos de massa.
O objeto da política é elucidado em estreita relação com o
conceito de vida e articulado mediante a relação existente entre
conhecer, julgar e expressar. Vida possui um sentido que vai além do
sentido biológico ou psicológico. Podemos conceituar vida como a
faculdade (sentido kantiano) de um ente atuar de acordo com suas
representações. As representações são os fins que o próprio agente ou
grupos de agentes se propõem. A vida é uma capacidade de atuar de
acordo com suas próprias paixões. O ato de escrever sobre a
representação de um objeto produz prazer. Não conseguir representar
este mesmo objeto é a experiência do desprazer. O prazer ou
desprazer são produzidos pela faculdade do ente humano atuar de
acordo com suas representações. Não importa se o objeto a ser
descrito seja belo ou feio1.
O afastamento e a atração exercida pela massa é uma questão
sempre presente. Com a inclusão da força afetiva (paixão) na origem
das formas coletivas de identificação é possível criticar o consenso
porque o “enfoque racionalista é incapaz de compreender que aquilo
que impulsiona as pessoas a votar é muito mais que a simples defesa
1 Em nosso tempo o significado desta concepção pode ser apreciado na poesia de
Carlos Drummond de Andrade (1983, p. 949): “Certa palavra dorme na sombra /
de um livro raro./ Como desencantá-la? / É a senha da vida / a senha do mundo /
vou procurá-la”.
118
de seus interesses. Existe uma dimensão afetiva importante no fato de
votar, uma questão de identificação” (MOUFFE, 2007, p. 31).
A mobilização por uma causa exige politização, porém a
politização não existe sem a produção de uma representação do
conflito no mundo, que inclua campos opostos nos quais as pessoas
possam se identificar, permitindo que as paixões se mobilizem
politicamente no processo democrático. Diz Mouffe:
A partir de Freud e Canetti devemos compreender que, mesmo nas sociedades muito individualistas, a necessidade de identificações coletivas nunca desaparecerá porque é constitutiva da existência dos seres humanos. [...] Os teóricos que querem eliminar as paixões da política ao sustentar que a política democrática deveria ser entendida só com razão, moderação e consenso, estão mostrando a falta de compreensão da dinâmica do político. Não percebem que a política democrática necessita exercer uma influencia real nos desejos e fantasias das pessoas e, ao invés de opor interesses e sentimentos, razão e paixão, deveriam oferecer formas de identificação que conduzam a práticas democráticas (2007, p. 35).
Os teóricos liberais são incapazes de perceber três
elementos: 1º) o papel primordial desempenhado pela disputa na vida política; 2º) a impossibilidade de encontrar soluções racionais imparciais para as questões políticas; 3º) o papel integrador exercido pelo conflito na democracia contemporânea. Sobre esta incapacidade dos teóricos liberais Mouffe afirma: “O consenso é, sem dúvida, necessário, porém deve estar acompanhado pelo dissenso. Em uma democracia pluralista tais desacordos não são apenas legítimos, são também necessários porque proporcionam a matéria da política” (2007, p. 37). Pelo fato de que a sociedade democrática requer o debate sobre as alternativas possíveis, esta mesma sociedade deve proporcionar formas políticas de identificação coletiva em torno de posturas democráticas claramente diversas.
Modelo político habermasiano
Partindo da teoria do agir comunicativo, Habermas propõe
que a ação do indivíduo deve basear-se nos princípios do
procedimento comunicativo, sendo necessário reconstruir as
119
características do agir humano validado pela razão comunicativa. Ao
definir a razão como comunicativa, Habermas pretende dar conta da
natureza coletiva e social do ser humano. A razão comunicativa seria
suficientemente capaz de estruturar a natureza social e coletiva do
homem através do consenso orientado pelo entendimento. O consenso
possuiria força suficiente para decidir no campo da política qual regra
coletiva é válida. Para dar conta desta tarefa Habermas interpreta a
linguagem como meio estabilizador das relações intersubjetivas
criadas pelo sujeito capaz de atuar livre e linguisticamente
competente.
Seguindo a esteira dos liberais, Habermas busca na validade
universal da racionalidade os parâmetros necessários sobre os quais
se apoiaria a sociedade democrática. Onde há ação política existe agir
comunicativo, ou seja, a razão é irmã siamesa da ação. A possibilidade
da razão e da ação andar par e passo durante o debate político é dada
pela linguagem. A linguagem, quando guiada pelo entendimento
presente no indivíduo competente, é forte o suficiente para estabilizar
o consenso sobre as formas do agir humano no debate político.
Entendida como capacidade subjetiva presente no cidadão
particular competente, a intersubjetividade é capaz de gerar as novas
propostas políticas para o indivíduo e para a sociedade. A aprovação
de uma nova proposta é concretizada no diálogo estabelecido dentro
do campo político. No processo de obtenção do consenso as propostas
políticas são estudadas e, eventualmente, poderão ser reestruturadas
para equacionar os múltiplos interesses individuais de acordo com os
dissensos produzidos pela natureza do debate político. Assim, a
intersubjetividade garante a estruturação do consenso diante da
necessidade mais próxima. O consenso produz o desenvolvimento
democrático da sociedade e a emancipação do indivíduo porque
participa das transformações políticas da sociedade. O indivíduo
participará dos próximos porque está motivado pelo sucesso do
consenso obtido intersubjetivamente.
Segundo Habermas é necessário aceitar e compreender a
linguagem como elemento mediador suficientemente forte para
estabelecer regras morais e jurídicas, bem como explicar como as
regras morais e jurídicas se formam. Ele afirma que:
Todo agente que atue comunicativamente tem que assegurar na execução de qualquer ato de fala, pretensões universais de
120
validade e supor que tais pretensões possam ser desempenhadas. Na medida em que queira participar do processo de entendimento, não pode deixar de assegurar as seguintes pretensões universais de validade: se expressar inteligivelmente, ser compreendido pelo outro, permitir ser entendido e se entender com os demais (HABERMAS, 2001, p. 300).
A proposta de Habermas atribui à linguagem um papel
fundamental, sendo o médium intransponível de todo sentido de
validade (ARMINDO, 2008). Ou seja, para se comunicar a única
alternativa disponível é a linguagem, sem ela o indivíduo não conhece
nem terá acesso as diversas dimensões do mundo. Para isso é
necessário reconstruir racionalmente as interações lingüísticas, definir
a razão como procedimento para o agir comunicativo e estabelecer o
entendimento como a forma de identificação sobre o mundo objetivo,
social e subjetivo (HABERMAS, 2001).
Ao diferenciar a racionalidade em instrumental e
comunicativa, Habermas interpreta o fenômeno próprio das
sociedades complexas: fenômeno no qual a racionalidade
instrumental, específica do mundo sistêmico, invade a racionalidade
comunicativa, específica do mundo da vida. Com isso Habermas
preserva a racionalidade instrumental porque ela é necessária para a
subsistência humana. Porém, denuncia que ao invadir o mundo da vida
a racionalidade instrumental impede a obtenção do consenso. Quando
a racionalidade instrumental invade o mudo da vida, mundo no qual
deveria prevalecer a racionalidade comunicativa, desaparece o lugar
legítimo para reconhecer e estabelecer o consenso acerca da maneira
mais adequada de agir politicamente.
O mundo da vida é, por assim dizer, o lugar transcendental em que o falante e o ouvinte se encontram; é o lugar em que podem estabelecer reciprocamente a pretensão de que suas emissões concordam com o mundo objetivo, subjetivo e social; e em que podem criticar e exibir os fundamentos das respectivas pretensões de validade, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo (HABERMAS, 1999, p. 179).
O modelo comunicativo proposto é assumido como o campo
político legítimo para realizar validamente o diálogo livre de coerções
121
externas. Nele as regras poderão ser discutidas e reformuladas pelos
indivíduos presentes no debate. O debate político exige um indivíduo
qualificado, conhecedor e seguidor de regras, e guiado pelo
entendimento. Este indivíduo seria capaz de identificar a coerção e,
quando necessário, eliminá-la do debate político legítimo.
A diferença conceitual entre o político e o espaço da política
permite afirmar que o princípio puro do liberalismo não pode dar
origem a uma concepção especificamente política porque todo
individualismo consistente nega o político. A impossibilidade ocorre
porque o consenso se baseia em atos de exclusão, sendo impossível
obter um consenso racional plenamente inclusivo. Comentando a
dinâmica essencialmente conflituosa da vida social, Mouffe afirma que:
O conflito revela que todo consenso encontra-se fundado sobre atos de exclusão e indica precisamente os limites de todo consenso racional, a existência de um excluído impossível de ser eliminado. A crença liberal de que o interesse geral resulta do livre jogo dos interesses privados, e em que um consenso racional universal seria o produto de uma discussão livre, conduz necessariamente o liberalismo à cegueira em face do fenômeno político (1992, p. 7).
Retornamos ao argumento de Schmitt quando afirma que a
crença liberal cria um ponto cego, ou seja, o espaço político não pode
ser compreendido pelo racionalismo liberal pela simples razão de que
todo racionalismo liberal precisa negar o antagonismo. O que o
antagonismo schmitiano revela é o limite de todo consenso racional.
Mouffe afirma que, “ao aderir o pensamento liberal ao individualismo
e ao racionalismo sua negação do político na dimensão antagônica não
é só uma omiss~o empírica, mas também uma omiss~o constitutiva”
(2007, p. 19).
As teorias liberais formam dois grupos. O modelo liberal
agregativo concebe:
a política como estabelecimento de um compromisso entre diferentes forças em conflito na sociedade. Os indivíduos são descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado
122
aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2007, p. 7).
Desenvolvido como uma reação ao modelo agregativo, o
modelo deliberativo:
Aspira um vínculo entre moralidade e política. Seus defensores querem substituir a racionalidade instrumental pela racionalidade comunicativa. Acreditam que é possível criar um consenso moral racional no campo da política mediante a livre discussão (MOUFFE, 2007, p. 20).
Habermas, principal defensor do grupo deliberativo, conhece
as concepções de Schmitt e procura refutá-lo argumentando que os
que questionam a possibilidade do consenso racional sustentando que
a política constitui um terreno no qual sempre se pode esperar que
exista a discórdia estão pondo em questão a própria possibilidade da
democracia. Nas palavras de Habermas:
Se as questões de justiça não podem transcender a compreensão ética das formas de vida enfrentadas, e se os valores, conflitos e oposições existencialmente relevantes devem introduzir-se em todas as questões controversas. Então em uma análise final terminaremos em algo semelhante à compreensão de política de Carl Schmitt (1996, p. 20).
O que Habermas afirma é que a interpretação do político pela
perspectiva das categorias amigo/inimigo, proposta por Schmitt, é
contrária ao projeto democrático.
Ideia de vontade política
Para Mouffe o conflito é inerente a natureza do político, por
exemplo, quando o indivíduo busca o confronto para garantir sua
hegemonia, mesmo que temporária. Habermas, por sua vez, acredita
que a força do consenso é obtida pela capacidade comunicativa do
sujeito competente linguisticamente. Como poderíamos interpretar o
crescente desinteresse do indivíduo pela política a partir de propostas
antagônicas?
123
Mouffe critica o modelo liberal predominante por alimentar
o caráter subjetivo voltado exclusivamente para:
indivíduos descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2077, p. 20).
Habermas interpreta que a ausência de interesse é um
fenômeno decorrente do próprio do agir instrumental, ou seja, a razão
instrumental aportou no espaço da política, lugar onde deveria
prevalecer a racionalidade comunicativa2.
Existe um diagnóstico comum em Mouffe e Habermas.
Ambos interpretam que a política contemporânea é marcada pela ação
de indivíduos desinteressados pela política. Mesmo existindo pontos
em comum, percebemos divergências. Habermas deposita grande
expectativa no processo dialógico como meio para obter consensos
políticos. O sucesso na obtenção do consenso atrairia o indivíduo para
os problemas coletivos.
Mouffe critica os teóricos liberais a partir de dois elementos:
1º) sustenta que o modelo de política deliberativa simplesmente
ignora a dimensão psicológica do sujeito político, dimensão repleta de
relações de poder e antagonismos. Ao aceitar esta característica
humana, Mouffe defende a inclusão da dimensão psicológica no campo
da política. 2º) por reconhecer a dimensão psicológica o modelo
orientado segundo uma razão preocupada com um modo de agir
racional universal afasta o indivíduo da prática decisória coletiva.
2 Durante a modernidade os campos da epistemologia, da ética e da estética,
passaram a ser representados nos campos da ciência. Assim como o direito e a
moral passaram a orientar-se segundo lógicas internas. A partir de Descartes e
Kant conceitos como de verdade, valor moral e belo passam a vigorar como
modelo de autoridade fundada no sujeito. Neste contexto o agir subjetivo orientado
para a maioridade adquire predominância sobre o agir político. A prática política
cotidiana perde seu valor na mesma proporção em que cresce a importância da
razão entendida como capacidade para orientar-se por uma prática universal
(LONGHI, 2008).
124
Considerações finais
É necessário retomar a pergunta inicial: qual é o processo de
aprendizagem presente na formação política dos cidadãos? Postas as
considerações é possível entender a origem da carência de
pensamento e de agir político, principalmente entre o grupo dos
jovens, percebidos como o menos envolvido. É válido concluir que a
ausência de envolvimento resulta do processo político ultrapassado.
Adjetivamos este processo como ultrapassado porque ele promove o
individualismo e nega o caráter político desenvolvido entre grupos ou
entre sujeitos pertencentes ao mesmo espaço com diálogo legítimo.
Mesmo percebendo ser mais freqüente entre os jovens do que nos
adultos, o cidadão em geral se afasta da política ao perceber o mundo
pela perspectiva do interesse individual. Na individualidade a ação é
ordenada segundo o interesse próprio. O indivíduo solipsista esquece
o outro porque não consegue se identificar com projetos comuns,
elemento essencial das sociedades democráticas.
Do confronto proposto por este trabalho é possível
pensarmos as políticas contemporâneas como um espaço no qual as
novas gerações possam avaliar as diversas e diferentes alternativas.
Parece plausível pensar que o indivíduo participa de um projeto
político quando ele estabelece uma identidade positiva ou negativa
entre ele e o projeto. A identidade é negativa quando ocorre o dissenso
entre o indivíduo e o projeto. Tanto a identidade quanto o dissenso
retira o individuo da passividade.
Por um lado, é necessário abandonar a idéia de que a
exclusão dos conflitos é a única alternativa que realmente sustenta
uma política democrática legítima. Por outro, é fundamental defender
que as relações antagônicas desenvolvidas nas relações sociais são
inerentes ao mundo político, sendo impossível a eliminação desta
característica por completo.
Se aceitarmos a plausibilidade da teoria antagonista, então é
necessário investigar o que existe de irreal na concepção política
deliberativa proposta Habermas. É viável construir um novo modelo
político partindo da razão comunicativa desenvolvida a partir da
linguagem? A razão comunicativa é capaz de produzir consensos no
campo da moralidade e da justiça? A teoria da ação comunicativa
defende e assegura como alternativa democrática legítima a via que
125
nega a presença do conflito político em toda relação política. Porém, a
ausência do conflito nega a própria possibilidade de constituir uma
política democrática.
O resultado da disputa entre o dissenso e o consenso é a
possibilidade de explicar e reduzir o fenômeno do desinteresse pelo
político. Aproximar o sujeito do campo político é a possibilidade de
implantar novas propostas políticas democráticas, visando a
superação dos problemas encontrados na esfera política.
Antes de finalizar é necessário fazer quatro indicações:
1ª) O cidadão em geral se afasta do espaço da política ao
interpretar o mundo pela perspectiva individualista. Como
consequência o indivíduo esquece o outro. Este esquecimento é o
efeito colateral da ausência de identificação com projetos comuns,
elemento essencial da prática política.
2ª) O indivíduo se envolve num projeto político quando
estabelece uma identidade positiva ou negativa, concordando ou
discordância. Tanto a identificação positiva quanto a negativa politiza
o individuo retirando-o da passividade política.
3ª) A exclusão dos conflitos não é uma alternativa capaz de
sustentar uma política democrática legítima. Como conseqüência, é
necessário entender que a relação de conflito presente na relação
social é inerente ao espaço político, sendo impossível sua eliminação
completa.
4ª) A disputa pela exclusão ou permanência do conflito no
espaço político decidirá qual é o processo de formação legítimo para
educar cidadãos preocupados com a prática política e com a superação
das contradições presentes na esfera política democrática
contemporânea.
Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ABREU, M. A. de A. Conflito e interesse no pensamento político republicano. Tese de doutorado. USP. 2008. ANDRADE, C. D. de. “Discurso de primavera e algumas sombras”. In: Nova reunião, II. Rio de Janeiro: Record, 1983.
126
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010. LONGHI, A. J. Ação educativa e agir comunicativo. Caçador: UnC, 2008. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. v. 2. Madrid: Taurus, 1999. _____. A Constelação Pós-Nacional, ensaios políticos. São Paulo, Littera Mundi. 2011. Tradução Márcio Seligmann Silva. Fonte: www.4shared.com. Acesso: 02/03/2011. MOUFFE. C. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. _____. “Por um modelo agonístico de democracia”. In: Revista Sociologia e Política, Dez. 2010, vol. 25, n. 3, p. 11-23. ISNN 0104-4478. Acesso: 02/03/2011. _____. “Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt”. In: Cadernos da Escola do Legislativo. V. 5, n. 9 (jul./dez.), p. 75-88. Tradução: Menelick de Carvalho Neto. Fonte: www.almg.gov.br. Acesso: 02/03/2011. _____. “Democracia, cidadania e as questões do pluralismo”. In: Revista Política e Sociedade, n. 3, out./2003. Acesso: www.periodicos.ufsc.br. SANTOS, R. E. “Entre autoridade e lei: considerações sobre o realismo político de Carl Schmitt”. In: Revista Peri, v. 02, n.02, 2010, p. 140-154. http://nexos.ufsc.br/index.php/article. Acesso: 13/04/2011. SCHMITT, C. O conceito do político. Tradução: Alvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992.
IRONIA E METÁFORA: ESBOÇO DE UM PROBLEMA POLÍTICO
DO DISCURSO FILOSÓFICO
Samon Noyama
Universidade Estadual do Paraná
A perfeita semelhança é a absoluta diferença.
Theodor Adorno
Ironia e metáfora em Nietzsche
Até mesmo por aqueles que não são admiradores do
pensamento de Nietzsche, é de comum acordo que a sua filosofia é
marcada pela eloqüência, pela versatilidade dos elementos
argumentativos e pela capacidade inconfundível de criar imagens que
signifiquem questões, isto é, tornar suas questões filosóficas
verdadeiros problemas visualizáveis, mecanismo que se torna possível
através do uso de recursos imagéticos utilizados com rara habilidade.
O valor que se dá a esta assinatura nietzschiana, o estatuto e peso
filosófico da sua posição parecem ser compatíveis com a envergadura
de suas polêmicas: as acusações que ele faz à tradição do pensamento
soam quase como absurdas diante do poder e do significado que tem
para nós a autoridade dos “cl|ssicos”. Por isso n~o chega a ser absurdo
afirmar que o que Nietzsche disse não poderia ter sido dito de forma
diferente, ou seja: toda a “fala” deste filósofo combina
harmoniosamente com o conteúdo das afirmações drásticas que
culminam com o diagnóstico preciso que ele faz da cultura ocidental
moderna.
Mas, no caso de Nietzsche, polemizar não é o bastante: é
preciso falar para alguém, para o mundo, e não apenas para dar conta
dos critérios e do rigor exigidos pelos ditames de um jogo de
linguagem particular que se acostumou, ao passar dos séculos, a
estabelecer uma verdade conveniente. Mais ainda, pode-se dizer que
esse convite ao diálogo se faz de forma bastante provocativa, ora
intimidando o leitor, ora seduzindo-o irresistivelmente à disputa
argumentativa. Nota-se, em tempo, que não se trata de desqualificar o
estatuto da verdade cientifica estabelecida, e sim, de apontar para uma
128
questão: esse edifício de tamanho tão incrível, cujas bases
fundamentais de acordo lingüístico pré estabelecido que concorda em
tomar como verdadeiro aquilo que não ultrapasse – e caso o fizesse
seria reprovada imediatamente – as cercas da “verdade” da linguagem,
dos conceitos, dos valores morais, em última instância, de um único e
exclusivo tipo de discurso filosófico, esteve sempre direcionado a
único e exclusivo tipo de homem: o comum, o mediano, o passivo –
moderno, diria Nietzsche, para quem essa verdade da linguagem é
constituída a partir de duas metáforas: imagem e som.
Essas duas metáforas formam a palavra. Filósofo atento ao
poder persuasivo e imagético da palavra, Nietzsche chama atenção
para uma transposição que talvez hoje nos pareça um procedimento
deveras naturalizado: supor que, entre o som que se efetua ao
pronunciar uma palavra e gama de significados atrelados ao signo
possa haver uma relação necessária, e por isso, a palavra se tornaria
um elemento condicional da linguagem que pretende ser, de acordo
com este arranjo forjado, a morada da verdade. Para ele, nenhum
problema até então, desde que tudo isso seja admitido como uma
invenção. Contudo, jamais pode ser admitido como invenção uma vez
que este seu grande valor só existe e sustenta seu poder supremo na
medida em que a verdade da linguagem não é uma invenção, mas sim,
uma revelação. Este revelar é o descobrir a realidade das coisas, como
se de fato as palavras tivessem alguma ligação natural com as coisas
reais. Mais ainda: que o único ou problema vital da filosofia gira em
torno de esmiuçar essa ligação natural até ela se tornar plenamente
decifrada. É, sobretudo neste ponto, que a crítica de Nietzsche à
verdade da linguagem atinge sua estrutura nevrálgica na teoria do
conhecimento. E, ainda que os aspectos filológicos acerca da linguagem
e da retórica que apareçam explicitamente nos textos de juventude
sobre a retórica, a alegoria da história da humanidade, se assim
quisermos denominá-la, com a qual Nietzsche nos brinda no brilhante
e absurdo início de Verdade e mentira no sentido extra-moral, é a
imagem mais sucinta que ele conseguiu descrever a história dessa
humanidade que crê na verdade como valor superestimado e que ela
mesma acredita ser capaz de, através da linguagem, provar a
existência e a verdade das coisas do mundo existente. A primeira
leitura sugere que a força dessa metáfora reside na capacidade de
definir o humano como algo insignificante diante do que ele sustenta
129
ser: a verdadeira fábula é a nossa história. O resto é chão. E qual seria,
de fato, o problema desse procedimento? Que tipo de verdade essa
metáfora produz? Qual poderia ser a relação dele com a história e a
política?
Ele reside no sem número de equivalências desmedidas e
arbitrariamente articuladas que, maquiadas com os elementos
epistemológicos e retóricos administrados, criam uma fábula com ares
de verdade: se se trata apenas de uma fábula, seu valor é pequeno. Mas
se admitimos essa narrativa como revelação da verdade outrora oculta
aos olhos e ouvidos enganadores dos paupérrimos seres humanos, a
razão adquire valores supremos, a humanidade satisfaz-se com sua
imensa capacidade de interpretar e descrever os grandes enigmas da
vida, isto é, de atingir a “verdade”, e o mundo diminui sua potência
natural em favor da grandiloqüência dos homens. O sujeito de
conhecimento triunfa diante do jogo das vicissitudes da natureza e a
unidade supera a totalidade.
Rogério Lopes sugere que Nietzsche utiliza distintas formas
retóricas sem deixar perder a identidade do texto filosófico, que ele
chama de colocar em cena “uma filosofia cujos sentidos est~o
constantemente sob o signo da instabilidade”1. Mas podemos ainda
admitir uma interpretação menos moderada e talvez menos
preocupada em mostrar uma isenção diante da questão, e dizer que a
vitória da verdade é uma grande farsa, cujo tamanho é proporcional à
imaginação e criatividade da mentira. Ainda em Sobre verdade e
mentira, a declaração de Nietzsche2 é lapidar:
A coisa em si é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem seque algo que vale a pena. Ele designa apenas a relação das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas.
Não seria o caso de trazer à discussão a polêmica tese de
Górgias, sobretudo se admitirmos a distância que possa haver entre
Nietzsche e seu momento histórico e a época da polêmica entre
1 LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola,
2006, p. 39. 2 NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral.
Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983, p. 47.
130
filósofos e sofistas, mas ao menos uma menção honrosa: neste quesito,
a desejada identidade entre ser e pensamento, ou entre coisa e
palavra, aproxima-se muito mais de um divórcio litigioso, no qual as
partes não chegam ao comum acordo, do que de num paraíso onde
cada elemento se articula com os demais em harmonia indissolúvel,
diante da qual a verdade reina absoluta e intocável. Há, ao menos, que
se ter a dignidade de discutir o assunto em outros termos.
A Bildung
A história da cultura ocidental é o curriculum vitae do
homem formador. Mas ele não é apenas formador no sentido clássico
de educação; enquanto Bildner, ele é também um falsificador. Ele dá
aparência (e não é qualquer aparência!) e forma definidas a algo que é
naturalmente sem forma ou disforme. Por isso trata-se de um artifício,
de uma atividade falsificadora; e aí mesmo reside sua genialidade. Um
artista capaz de criar apenas metáforas das coisas, pois as coisas só
podem ter mesmo metáforas e nada mais. O que nós chamamos de
coisa é, simplesmente, nossa vers~o da famosa “coisa mesma” e,
portanto, sempre uma verdade falsa. Um conceito que se sabe falso
com aparência de verdadeiro pode ser muito mais eloqüente do que
um conceito que se imagina realmente verdadeiro. Essa presunção é
denunciada por Nietzsche em nome de duas características
psicológicas do homem: a ingenuidade e a prepotência. Vê-se, pois, que
não estamos tratando de uma questão inerte, mas de um
procedimento que tem seu ofício no campo da linguagem e sua
subsistência no exercício histórico da construção de relações de poder.
Sua importância, dessa forma, exala ares políticos a todo instante.
Se, do ponto de vista moral, isso pode ser entendido como o
grande problema da humanidade, por outro lado pode ser também seu
grande poder: antes tivesse admitido o poder criativo e imaginativo da
criação de metáforas e supervalorizado a metáfora como algo falso,
que não diz nada de exato e preciso em relação à realidade, mas que,
justamente por seu caráter falsificador, é o que há de mais verdadeiro
gerado pelas capacidades humanas3. Isto que dizer que Nietzsche
3 Essa questão não se encerra apenas nas circunstâncias aqui expostas. A
necessidade por um posicionamento político diante da querela entre os sofistas
e os filósofos, por exemplo, definiu o privilégio de uma perspectiva diante da
131
inverte então o valor de verdade e procura ver no falso a verdade, e
nesta, a maior falsificação já produzida: a metáfora da verdade, que
nos impõe outras metáforas, tais quais: o absoluto, a certeza, a
evidência e o universal. Por isso a Bildung, enquanto formação cultural
da humanidade, é um processo cumulativo de substituição de valores
notoriamente (e isso nada tem de ruim, pelo contrário) falsos por
verdades estabelecidas, que experimentam suas mais agudas
contradições no campo da moral. Parece que a discussão para
Nietzsche não passa pelo mérito maniqueísta dos valores
estabelecidas pela cultura, e por isso a verdade não se tornaria um
dilema complexo e profundamente trágico na história da humanidade
se a filosofia não tivesse se transformado em algo tão sério e sisudo. A
univocidade, a perspectiva única, que atendem pela imagem e pela
metáfora do egipcismo dos filósofos é atacada por Nietzsche como um
dos maiores prejuízos para a potência vital do pensamento.
A moral é a expressão máxima da inversão de valores em
nome da supervalorização de uma característica potencialmente
admirável dos homens, mas que vem sendo utilizada para seu mais
pobre e declinante fim. Mais uma vez, a questão esbarra na falsa
caracterização do homem racional que camufla sua natureza artística e
forjadora em nome de uma ciência, da verdade, de valores culturais em
detrimento da natureza, pois concluir do estímulo nervoso uma causa
fora de nós, ou seja, substituindo a invenção da palavra e da linguagem
por uma suposta origem necessária, já é resultado de uma aplicação
falsa e ilegítima do princípio de razão, porque permite a segunda
suposição de que a verdade seja uma conclusão ou fim necessário do
uso da razão. Essa suposição, por sua vez, remete à gênese estrutural
do pensamento do ocidente e, por isso, torna-se fonte de uma
discussão interminável, por assim dizer. Ela é gêmea da filosofia.
Essa inversão de dupla cidadania, que opera no campo da
teoria do conhecimento mas não pode separar-se em definitivo da
vida e da realidade. Todo esse julgamento não precisa chegar às vias de fato de
se questionar e pretender sustentar uma única versão mais “verdadeira”, mas o
simples fato de constituir uma grave crise política, com conseqüências radicias
em nossa história, é o suficiente para pensarmos que as decisões tomadas em
questão de ordem restrita, como no caso da linguagem ou da estética, fundam
valores de importância incalculável para a história que se constrói tempos
depois.
132
política e da ética, e por isso, implica diretamente na formação cultural
da humanidade, leva Nietzsche a mencionar, ainda no §1 de Sobre
verdade e mentira, a famosa Cucolândia das Nuvens, metáfora de
Aristófanes para o fim último idealizado pela razão humana.
Cronologicamente, sabemos que seria inviável supor que
essa Cucolândia corresponderia à República de Platão, fato que torna a
metáfora aristofanesca mais interessante ainda. Os excessos da
racionalidade, o peso demasiado que a lógica, a retórica e a razão
recebem gradativamente entre os atenienses é alvo do sarcasmo do
autor de As Aves. Se a comédia tinha na época (e ainda hoje conserva
essa função) o papel de estabelecer uma crítica aos costumes e valores,
Aristófanes foi tão genial quanto Sófocles, ao diagnosticar, não os
aspectos trágicos da natureza humana, mas as suas mais absurdas
invenções: a sociedade, a lei, o julgamento e a verdade. É interessante
perceber que o que aconteceu no campo da retórica e da linguagem
teve seu equivalente no tocante às artes, pois assim como aos sofistas
foi dada uma importância secundária, à comédia foi dada uma
categoria menor dentro das imitações da arte4.
Não por acaso ambos elegem o mesmo alvo: Sócrates;
assumindo, de certa forma, a máscara de críticos da cultura. Estranho
imaginar que este, enquanto personagem dos diálogos platônicos, se
apresenta muitas vezes como crítico, ironista e comediante. A
zombaria típica de Aristófanes se parece com uma das formas que
Sócrates encontra para provocar seus interlocutores, com freqüência
expostos numa situação ridícula da qual se envergonham e alegam a
grandeza do seu mestre, talvez para evitar a conclusão de que são eles
profundamente ignorantes. Afinal, reconhecer a qualidade e a virtude
de um mestre ainda é mais fácil do que reconhecer a própria
ignorância, por mais que esse suposto mestre muitas vezes tenha ares
de fanfarrão: uma figura jocosa e mendicante. A humildade material e
intelectual de Sócrates é suficientemente enigmática para deixar
4 Refiro-me aqui, diretamente, à diferença estabelecida por Aristóteles entre a
tragédia e a comédia. Enquanto a primeira é a imitação das ações humanas de
caráter elevado, a segunda é a imitação das ações humanas de caráter
rebaixado. Não nos interessa aqui se Aristóteles foi arbitrário ou se descreveu
honestamente a cultura da época, mas tão somente ressaltar que,
historicamente, mais um capítulo se apresentou na distinção valorativa entre as
atividades humanas, sobretudo as artísticas.
133
conclusões precipitadas, fato que justifica alguns trabalhos
extremamente interessantes acerca do tema, como o de Sarah
Kofman5.
Seria absurdo cogitar a escolha de Sócrates como uma
homenagem? A primeira leitura dá uma resposta negativa, pois o
filósofo grego é de fato uma figura que representa os principais valores
da tradição filosófica, desde uma abdicação dos valores materiais (e
andar descalço!) até a tentativa de fazer da filosofia o saber mais
elevado entre os demais. Além disso, nos acostumamos a aproximá-lo
dos valores mais representativos da nossa cultura: há certa
semelhança em pensar Sócrates como símbolo dos valores da razão, e
Jesus como ícone dos valores cristãos. Nos dois casos, porém, trata-se
de uma simbologia extremamente ambígua, pois certos valores
cultivados estão ocultos nas figuras que os representam. O poder é,
talvez, um dos valores mais simbólicos tanto da filosofia quanto do
Cristianismo e ele aparece disfarçado em suas imagens. Em geral, os
comentadores de Nietzsche se contentam em apontar Sócrates como
uma espécie de câncer, adotando uma postura muitas vezes
questionada pelo próprio Nietzsche. De todo modo, talvez fosse
interessante não levar essa posição tão a sério. Há que se pensar
também no poder figurativo de Sócrates e na maneira apaixonada
como o filósofo trágico se refere ao seu suposto adversário.
A filosofia de Nietzsche é um convite irrecusável ao
pensamento, uma intimação, às vezes uma intimidação. O leitor, além
de trazer algo na sua bagagem que vai possibilitar a leitura geral e
compreensão dos temas e das referências ocultas na obra nietzschiana,
tem de estar disposto a contribuir com seu pensamento a pedra
primeira atirada pelo autor. O diálogo com a história da filosofia é
inexorável, e a herança está mais próxima do destino do que da
escolha. É um recurso que afirma a autonomia do texto, da idéia, e, por
outro lado, abre espaço e recebe de bom grado a novidade: o espírito
ávido de idéias, ansioso para sentir-se caminhando pelo seu próprio
caminho, sem sombras, sem rédeas, sem ponto de partida e chegada. É
o que sugerimos após a leitura do aforismo 178 de Humano, demasiado
humano, “A efic|cia do incompleto”.
5 Ensaio intitulado Socrate (s), publicado em 1989 na França.
134
A eficácia do incompleto – Assim como as figuras em relevo fazem muito efeito sobre a imaginação por estarem como que a ponto de sair da parede e subitamente se deterem, inibidas por algo: assim também é a apresentação incompleta, como um relevo, de um pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes mais eficaz que uma apresentação exaustiva: deixa-se mais a fazer para quem observa, ele é incitado a continuar elaborando o que lhe aparece tão fortemente lavrado em luz e sombra, a pensá-lo até o fim e superar ele mesmo o obstáculo que até então impedia o desprendimento completo6.
As metáforas que julgam explicar ou facilitar a compreensão
de conceitos e ideias, supostamente nos aproximando da verdade das
coisas, não foram construídas a partir da eficácia do incompleto. Ao
contrário, foram enraizadas a partir da suposição, defendida como tese
irrefutável, de que há completude, finitude e acabamento. Como se o
homem pudesse usar a razão e produzir conceitos que, feito rejunte de
azulejo, transformassem peças isoladas e diferentes num todo
completo, único e inteiriço. Podemos pensar que isso é a verdadeira
farsa, e que há rara beleza em julgar esse procedimento ex machina
como algo genial. Mas quando o admitimos ser a obra mais importante
e verdadeira da humanidade, nos alimentamos de ideias, valores e
construções históricas, políticas e ideológicas com as quais cultivamos
uma relação difícil, penosa e incompleta.
A julgar pelas mudanças na forma de escrever ao longo de
sua obra, é possível perceber que a preocupação de Nietzsche com a
maneira de se expressar é constante. A “Tentativa de autocrítica”
publicada posteriormente em O nascimento da tragédia já mostra a
insatisfação do autor por ficar preso à lógica hegeliana, dialética; e
revela seu empenho em buscar um estilo próprio; a sua filosofia. Esse
argumento reforça duas idéias: primeiro, que na filosofia de Nietzsche
forma e conteúdo são inseparáveis e, segundo, que a forma de expor as
idéias é fator determinante para definir o valor do pensamento.
Seguindo a argumentação de Rogério Lopes em Elemento de
retórica em Nietzsche, na seç~o dois “Entre aforismo e ensaio: a
retórica como forma de apresentaç~o”, podemos esclarecer a decis~o
de Nietzsche pela adoção das formas mais curtas, como o aforismo, o
6 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 132.
135
ensaio, as máximas e sentenças. O autor ainda nos lembra que
Nietzsche não chega a utilizar amplamente o aforismo no sentido
preciso do termo, e sim faz uso da expressão desvinculada do gênero
literário e da classificação tradicional. Guardadas as devidas distinções
estritas a cada uma dessas formas, que, segundo o autor, oscilam de
acordo com autores e determinados momentos históricos, a adoção
dessas formas tem uma justificativa comum: um dos grandes
motivadores da filosofia de Nietzsche reside na leitura que ele faz da
concepção de filosofia de Sócrates e de Platão, com especial atenção
em dois sentidos. Primeiro, no que se refere ao privilégio da forma
dedutiva nas investigações filosóficas, que acabou por fortalecer o
dogmatismo na tradição filosófica; segundo, e decorrente do primeiro,
a tese platônica de que à filosofia cabe o encerramento, a definição dos
problemas apresentado no princípio da investigação.
A questão da valoração da arte e da verdade é um tema
nietzschiano que está atrelado aos demais temas de sua filosofia,
afinal, o início da decadência da modernidade está, para ele, na
construção de um projeto que defende uma superioridade da idéia de
verdade ditada pelos parâmetros da ciência, em detrimento da
possibilidade de haver valor de verdade na arte. Se em relação à
tragédia esse movimento ocorre com a intervenção da razão na
criação, que culmina com as peças de Eurípides, na filosofia este
projeto pode ser sintetizado sobretudo em Platão. Mais uma vez,
Nietzsche se volta contra o estatuto da verdade enunciado pela
filosofia platônica, que seria um dos momentos fundadores da tradição
metafísica na filosofia. Não vamos nos alongar aqui na especificidade
da crítica que Nietzsche direciona a cada um deles, e sim, à questão
central da crítica: a crença de que a racionalidade pode preceder e
julgar a arte, no tocante aos problemas da existência humana,
evidencia a posição de que a verdade é mais importante que a arte, em
outras palavras, há uma superioridade em termos de valor da verdade
sobre a arte. Há, portanto, uma subordinação do poeta ao pensador
racional, uma valorização da razão em detrimento da arte no primado
do pensamento predominantemente reprodutivista. A arte trágica,
viva em instinto, perde o seu valor e sua potência como conhecimento
diante da racionalidade cientificista. A consciência e a crença em uma
verdade eterna e universal são suficientes e necessárias para o artista,
136
que se submete a tais princípios do pensador racional, do modelo de
pensador defendido por tais postulados.
A morte do artista trágico é o sinônimo da decadência de um
ciclo de gerações que elegeu a ciência como modelo para a
humanidade e subjugou a arte como forma de conhecer. O estatuto
científico da arte possibilita a sua recuperação no processo de
formação do homem grego. Uma paidéia de heróis conscientes e
natureza morta; de soberania da racionalidade e de exoneração da arte
trágica, do instinto e da vida. Uma morte em vida, do poeta que
sucumbe aos caprichos objetivos e pragmáticos de uma filosofia que se
pretende como solução para o mundo, mas que não permite a ousadia,
o erro e polifonia do pensamento. Diz o próprio Nietzsche, em O
Nascimento da Tragédia:
A crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e de que ele não é apenas capaz de conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo7.
Se a questão do valor da verdade é central no pensamento de
Nietzsche, podemos pensar com ele que a maneira de apresentar ou de
expor uma idéia tem uma importância conseqüente. Além disso,
dentro da própria história da filosofia, pensar na melhor forma de
fazer filosofia também tem sido alvo do esforço de muitos pensadores
que, em certa medida, têm concentrado seus esforços em dizer qual é a
forma ideal para se filosofar. Encontrar a forma ideal para se filosofar
é uma questão que nos interessa.
A tradição filosófica se desenvolveu de tal maneira que forma
e conteúdo, sob este aspecto, tornaram-se ovo e galinha. O que
Nietzsche chama de decadência não é a encruzilhada, é a falta de
caminho. Dar continuidade ao pensamento filosófico sob a perspectiva
de que há um valor superior aos demais, e que este valor é a verdade,
levou o homem a fixar-se no problema da forma e esconder-se dos
problemas de conteúdo. Em outras palavras: pensar a forma tornou-se
mais importante que pensar, mais valorizado que o próprio
pensamento. A filosofia procurou como dizer a verdade e esqueceu-se
7NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 93.
137
de questioná-la e acabou por fortalecer um método-prisão. Ou ainda,
em prejuízo do objeto, fomentou uma fetichização do método. Com
isso, nossa história reúne então um conjunto de formulações e valores
legitimados que não precisam ser questionados em sua raiz. Se nos
dispusermos a reelaborar a forma com que construímos tais valores,
podemos ter alternativas às decisões radicais que tomamos no campo
da política e da ciência, que certamente contribuíram para a
solidificação de ideias que hoje cegam nossa visão de mundo, já tão
carente de possibilidades e de criatividade.
Para além de experimentar variadas formas de escrever, seja
em fragmentos, poesia, ensaio, aforismo, máximas e sentenças,
descobrir seu próprio caminho foi sua decisão. E podemos dizer que
pensar com Nietzsche, e não pensar o seu pensamento, seja esta tarefa
árdua de trilhar cada um seu próprio caminho, entre experiências e
questionamentos. Questionar as formas, as verdades, os sistemas, a
cultura, o homem e experimentar as vias de se fazer esse
questionamento. Enfim, neste porvir, trilhar um não-caminho. E este
não é o desafio da filosofia, apenas. É o desafio do homem, como
filósofo, poeta, ou o que quer que seja. Desde que não seja o pesado
espírito de gravidade. Diz Nietzsche:
O homem é difícil de descobrir e, mais difícil de tudo, descobrir-se ele a si mesmo; muitas vezes, mente o espírito a respeito da alma. Assim obra o espírito de gravidade. Descobriu-se a si mesmo, porém, o homem que diz: ‘Este é o meu bem e mal’. Destarte, fez-se calar a toupeira e anão que diz: ‘bem para todos, mal para todos’8.
Em seguida, no último trecho do espírito de gravidade, ele
trata sobre a busca do homem, que é a busca de cada homem.
E sempre e somente a contragosto perguntei pelos caminhos – isto sempre me repugnava! Preferia interrogar e experimentar os próprios caminhos. Experimentar e interrogar os, consistiu nisso todo o meu caminho; – e, na verdade, deve-se aprender, também, a responder a tais perguntas! Mas esse – é o meu gosto:
8 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 232.
138
– não um gosto melhor ou pior, mas o meu, do qual não mais me envergonho ou faço segredo. ‘Este agora, – é o meu caminho; – onde est| o vosso?’; assim respondia eu aos que me perguntavam ‘o caminho’. Porque o caminho – não existe! Assim falou Zaratustra9.
O que podemos aprender com esta passagem sobre o espírito
de gravidade é mais uma afiada crítica de Nietzsche à cultura moderna.
Somos espíritos de gravidade por não aceitar o desafio de buscar
nosso próprio caminho. O valor que a tradição, o pensamento filosófico
e científico, e a moral de nossa cultura têm sobre nossas atitudes é
enorme a ponto de provocar esse engessamento. Seguir, copiar,
aceitar, ouvir, reprimir, moralizar, pensar (sob o estigma de bem e
mal), são os verbos da modernidade. São todos verbos do coletivo, de
grupos, de manadas, de iguais. Iguais na condição de espírito de
gravidade, que pesa e afunda, que nada faz por si mesmo nem pelo
mundo. Percorrer novos caminhos, únicos e próprios, não enche os
olhos desses espíritos, porque a cabeça baixa não lhes oferece a visão
do horizonte. Nesse sentido, a delimitação de uma natureza discursiva
formal e metodologicamente padronizada reforça essa crítica. Por isso,
para ele, a Filosofia que se faz é a derrocada do homem, é um sinal de
decadência. Porque ela nos faz pensar sob os conceitos e as formas já
pensados; a reproduzir o já pensado, sem sequer questionar sua
própria forma. Ao invés da novidade do novo, o mesmo do mesmo.
Porque ela se estabelece como último paradigma, como único caminho,
o que tem um télos, o que almeja aquela verdade.
Podemos interpretar a figura do espírito de gravidade
simplesmente como mais uma versão nietzschiana para o homem
moderno, marcado decisivamente por uma influência negativa da
tradição cultural do ocidente. Nesse sentido, especialmente na
perspectiva de Nietzsche, essa herança cultural é o registro da história
de um fracasso, da decadência dos valores culturais modernos, na
medida em que eles sejam uma continuidade – no pior sentido do
termo. Essa leitura de Nietzsche como crítico dos valores morais e
cristãos talvez esteja, inclusive, exposta de forma excessiva, o que
acaba por atenuar a sua força e pertinência. Este é um dos motivos
9 Idem, p. 233.
139
pelos quais não pretendemos continuar investigando as questões
ligadas a este propósito; o outro é a pretensão de relacionar este fator
importante da filosofia de Nietzsche com o tema central da nossa
pesquisa. Preferimos, então, procurar averiguar se há, ainda, outra
relação entre esse processo decadente e o problema da forma na
escrita da filosofia.
Quanto mais a escrita estiver resignada por sua submissão a
estes e outros modelos, menos ela poderá ter seu valor aproximado do
valor da experiência que o indivíduo faz na realidade. Não é preciso
concordar com Nietzsche, nem apontar as suas obras como filosofia ou
literatura. As polêmicas em torno dessas problemáticas são
importantes – quando são – para os historiadores e comentadores da
filosofia, ou da literatura.
A pergunta pelo valor das experiências cognitivas e artísticas
do homem permanece, mesmo que não se julgue comparativamente.
Os discursos que se aplicam às diferentes formas de experiência
restringem o valor de cada uma delas, mais ainda se nesta
concorrência houver um valor supremo, tal como a ciência se
apresentou nos últimos séculos. Mas no escopo da filosofia cabe, ainda,
perguntar-se pelos limites e possibilidades de libertar-se destes
paradigmas, mesmo que esse desligamento seja, inicialmente, na sua
forma. Porque de alguma maneira, procurar alternativas discursivas,
experimentar os inúmeros recursos da linguagem e das línguas, por si
só, representa um pensamento aberto, atento às possibilidades e
multiplicidades de interpretações da realidade, isto é, digno da
vitalidade e da exuberância que podem acompanhar a filosofia.
Esboço do problema político
Chamamos esboço porque seria pretensioso demais dar
conta desta possível relação que encontramos entre tais elementos da
linguagem e constituição própria da política. Trata-se de uma
tentativa, de certo modo empenhada e atenta às armadilhas que nós
mesmos trouxemos ao texto, de identificar uma questão que nos
parece de extrema importância e relevância filosófica: a linha tênue
que separa os discursos da filosofia e da política, um do outro, e a
interferência violenta que pode haver na história quando elementos
140
discursivos são administrados de acordo com os interesses mais
diversos.
Além disso, pretendemos estabelecer de forma consistente as
possíveis relações entre as estratégias da linguagem que estruturam
nossa forma canônica de ver o mundo, isto é, encontrar uma forma de
ligar esse problema que sairia da retórica até a política exigiria
certamente outros esforços e interlocuções. Até mesmo a viabilidade
de estabelecer tais vínculos pode permanecer uma questão em aberto.
Mas, afinal, o que se pode fazer com um poder de interpretação tão
capaz como é a filosofia se não nos propusermos a experimentar seus
limites? Ainda que seja extremamente arriscado e não muito bem
recebido, o esforço em renunciar às facilidades e segurança dos nossos
cânones pode ser a única rota de fuga para uma filosofia que precisar
de ar e de espaço.
Em geral, recorremos às nossas autoridades para não errar.
Quando são elas que nos induzem ao erro, ocultamos as referências
para manter a segurança de um discurso que, se não é brilhante pela
competência em pormenorizar adornos e preferências estilísticas de
cada filósofo, nem por ainda imaginar a possibilidade de se encontrar
algo original, pelo menos não será motivo de críticas ou vítima da
indiferença de entendidos no assunto e cardeais da verdade
estabelecida. Por um motivo ou por outro, preferimos não nos
manifestar. Renunciamos à palavra. Não mais por dificuldade em dizer
com precisão e clareza o que pensamos (para aqueles que ainda
julgam isso possível), nem por opção em andar atrás de quem disse
melhor e expressou sistematicamente os grandes problemas da
humanidade. Talvez estejamos enfrentando uma espécie de vingança
da história, um veneno da linguagem que criamos que hoje nos brinda
com uma infinidade de impossibilidades e imprecisões que nos deixa
órfãos, porque os valores que nos acalentavam o leito hoje não nos
servem mais. Se isto tem de fato um estatuto de crise, é uma questão. E
se for uma crise, o quão ela é insuperável ou definitiva é outra.
Por isso, o problema do discurso é, sem dúvida, de uma
magnitude política imensurável. Se quisermos enfrentá-lo, temos que
reconhecer as regras do jogo, bem como as limitações das palavras,
significados e de demais elementos concernentes à escritura. Na
margem oposta à da palavra, encontramos o corpo. A matéria, por um
lado, oferece um grau de objetividade interessante, sobretudo do
141
ponto de vista científico. Por outro, nos submete de uma forma
violenta e avassaladora, pois além de não conseguir abarcar a
completude dos objetos com nossa linguagem, tornamo-nos reféns
imaculados de sua exuberância corpórea: o corpo é tão eloqüente quão
a morte. Ele e a sensibilidade há muito nos criam tantos obstáculos
que descredenciamos sua forma de expressão na concorrência pela
verdade, por imaginar que isso pudesse facilitar o andamento da
história.
Ressalvas feitas, questão exposta e muito trabalho ainda por
fazer. A metáfora e a ironia são dois dos elementos da linguagem que
Nietzsche nos brinda tanto a partir da perspectiva de uma análise dos
seus usos pela filosofia, quanto do ponto de vista de que usufrui com
muita destreza para questionar valores estabelecidos e para criar
outras imagens capazes de exprimir a complexidade e a grandiosidade
da experiência da vida na Terra. Decerto, são muitos os demais
elementos que constituem esse amplo campo da relação entre
linguagem e política. Fica, a título de convite, a ilustração última desta
discussão: o espantoso manejo que Manoel de Barros faz com as
palavras em Matéria de poesia10, e a suspeita de que nós, na filosofia,
podemos descobrir muitos caminhos observando os usos da
linguagem da literatura e da poesia:
As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. (...) Aliás é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória.
Referências
ARISTÓFANES. As vespas; as aves; As rãs. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
10 BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
142
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999.
KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la métaphore. Paris: Payot, 1972.
LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
______. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
______. Obra incompleta. Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983. (Col. Os pensadores).
______. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SUAREZ, Rosana. Nietzsche comediante: a filosofia na ótica irreverente de Nietzsche. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
______. Nietzsche e a linguagem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.
A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL
Claudio Cavalcante Junior
Universidade Estadual do Paraná
Introdução
Neste texto, pretendemos apresentar uma visão geral da
categoria “raça” a partir de textos chaves para em seguida discutir o
preconceito racial pensado como grande entrave para a ascensão
social de indivíduos negros. A solução estaria, segundo algumas
perspectivas, na adoção de políticas afirmativas que tornam mais
viáveis o acesso a negros a bens públicos como vagas em
universidades púbicas.
Antes de avançarmos nestas questões, é mister deixar claro
que a “raça” tratada aqui n~o inclui qualquer tipo de essencialismo,
visto que é considerada uma categoria social e culturalmente
construída, apesar de sua origem estar na biologia e de ser frequente
em diversos trabalhos sobre o tema discursos nativos que
reivindiquem o pertencimento a um grupo racial (CAVALCANTE
JUNIOR, 2008; PINTO, 2006), segundo padrões genéticos, o que não
encontra consistência nas ciências naturais. Além de categoria social,
“raça” também pode ser encarada como categoria política pois, é uma
identidade que ao ser adotada ativa em muitos casos uma posição
política do indivíduo envolvido, onde estaria a origem de movimentos
reivindicatórios raciais.
Ao tratar de relações raciais no Brasil, é preciso ressaltar o
grande tema que se tornou parte da ideologia nacional no Brasil: a
miscigenação. Gilberto Freyre (1995 [1933]) elevou esta questão à
principal característica nacional contrastando com a abordagem de
alguns autores brasileiros que desde a segunda metade do século XIX
associavam mestiçagem à degenerescência da população (FREYRE,
1995 [1933], p. 11-41). A mestiçagem defendida por Gilberto Freyre
seria fruto das relações raciais harmônicas, até certo ponto, no Brasil o
que gerará críticas décadas seguintes em especial nos trabalhos que
tratam da situaç~o racial no Brasil que enfocaram o “preconceito de
144
cor” como é o caso dos trabalhos de Oracy Nogueira (1955) e Roger
Bastide e Florestan Fernandes (1959).
Até o início da década de 1950, o Brasil nutria a imagem de
uma verdadeira “democracia racial” por negros norte-americanos que
visitaram o país do início do século XX até a década de 1940 (FRY,
2005, p. 170). Isto se devia ao fato de o Brasil ser considerado um
lugar “idílico” (FRY, 2005, p. 170), onde pessoas de diferentes cores
conviviam de modo harmonioso e sem problemas, mantendo relações
de amizade e andando na mesma calçada. Esta visão sobre a situação
racial no Brasil inspirou a UNESCO a financiar em 1954 uma série de
trabalhos para descobrir “soluções” para o racismo em outros lugares
do mundo.
Os trabalhos realizados para o projeto UNESCO tinham como
objetivo estudar “os problemas de diferentes grupos étnicos e raciais
que viviam num ambiente social comum” a partir da sugest~o do
sociólogo Artur Ramos (FRY, 2005, p. 216). Os antropólogos e os
sociólogos que participaram deste projeto acabaram por denunciar a
imensa desigualdade e preconceito racial que existia no Brasil,
considerado pelos autores “mascarado” e difícil de combater (FRY,
2005, p. 170 e 216).
A democracia racial como mito fundador do Brasil
Em 1933, Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala tratou da
mistura de culturas e da “salvaç~o” do Brasil, com sua defesa da
miscigenaç~o e seus antagonismos “harmonizados”. Abordou a
construção da nação e sua especificidade sobretudo em relação aos
Estados Unidos onde não haveria uma relação harmoniosa entre
senhores e escravos como a que ocorrera no Brasil. Nesta relação,
valorizou não só o elemento africano e europeu, como o indígena
defendendo a contribuição de forma positiva para a formação da
sociedade brasileira de todos os três grupos.
Para o autor, todo brasileiro, independente da filiação
genealógica, era culturalmente africano, ameríndio e europeu, a base
deste Brasil imaginado como híbrido (racial e culturalmente). A partir
disso, se constitui uma imagem de “democracia racial” aceita no Brasil
e no resto do mundo até a década de 1940 (FRY, 2005, p. 216).
145
Em 1950, após a Segunda Guerra Mundial e dos genocídios
promovidos pela Alemanha Nazista, a UNESCO divulga a primeira
declaraç~o sobre “raça” afirmando que esta n~o tem fundamento
biológico, no entanto as crenças em raças se mantinham como mito
social (FRY, 2005, p. 15). A partir daí desenvolve um projeto-piloto que
tinha com objetivo estudar os problemas de diferentes grupos étnicos
e raciais que coabitavam um mesmo espaço (FRY, 2005, p. 216).
O Brasil é o local escolhido para este projeto que contava
com uma série de pesquisas para descobrir “soluções” para o racismo
em outros lugares do mundo, pois se imaginava que era um lugar onde
pessoas de diferentes “cores” conviviam de modo harmonioso e sem
problemas. Esta iniciativa acaba revelando que no Brasil também é
vítima do preconceito racial, apesar de ter características próprias.
É neste contexto que surge grande parte de novos trabalhos
sobre as populações “negras” no Brasil concentrados na quest~o do
preconceito de cor. Entre os trabalhos encomendados pela UNESCO,
merece destaque o de Oracy Nogueira (1955).
Oracy Nogueira desenvolve seu estudo comparativo sobre
preconceito racial no Brasil e nos Estados Unidos a partir da análise de
modelos distintos de classificação social adotados nos dois casos que
produzem formas distintas de preconceito o que ele definirá como
preconceito racial de marca, caso brasileiro, e preconceito racial de
origem, caso norte-americano.
No Brasil, o preconceito é de marca, pois ele se exerce em
relação à aparência ao passo que nos Estados Unidos o preconceito é
de origem: o que define um indivíduo como negro é o fato de ter algum
ancestral negro (NOGUEIRA, 1955, p. 285). No caso brasileiro, o
preconceito é mais implícito, nos Estados Unidos, explicito inclusive
com a segregação racial que assolou os estados do sul daquele país até
a década de 1960.
Oracy Nogueira apresenta a flexibilidade das fronteiras
raciais no caso do Brasil, onde há a possibilidade de escolha em
algumas situações e como as fronteiras são fixas no caso norte-
americano (NOGUEIRA, 1955, pp. 285-286). A identidade racial no
Brasil é contextualmente negociada, como pode ser visto na expressão
da “cor” para o IBGE de tempos em tempos (FRY, 2005, p. 16). Nos
Estados Unidos, as categorias “negro” e “branco” s~o consideradas
naturais de acordo com a “one drop rule” (“regra da gota única”) (FRY,
146
2005, p. 294). A diferença é marcada por sinais diacríticos
compreendidos por todos, além do elemento naturalizante desta
identidade.
Assim no caso norte-americano, a categoria étnica “black”
(“negro”) unia descendentes de escravos africanos que possuem
línguas e culturas diferente tendo como fim interesses políticos
compartilhados (ERIKSEN, 1993, p. 81-82). É mister ressaltar que no
Caribe h| n~o só a categoria “black”, mas também “brown”
(literalmente “marrom”) (ERIKSEN, 1993, p. 83). Os “Brownes” da
Jamaica, por exemplo, s~o “mestiços”, identificados com a classe
média, já no caso norte-americano a categoria “brown” é inexistente,
visto que qualquer um que tenha algum ancestral “black” é classificado
como tal.
Já no Brasil, é possível a definição racial segundo diversas
cores. Uma identidade racial contextual que pode mudar de acordo
com a capacidade de manipulação por parte do sujeito. Onde relações
pessoais entre indivíduos de grupos “raciais” distintos como laços de
amizade e admiração são testemunhadas, algo inimaginável no caso
norte-americano (NOGUEIRA, 1955, p. 290, nota 29).
No caso brasileiro, apesar da definição racial ser baseado em
critérios físicos, há formas de driblar certas barreiras como no
exemplo dado Oracy Nogueira, do negro que entra no clube recreativo
no qual negros não tinha acesso. O indivíduo consegue isto quando
tem alguma:
[...] superioridade inegável, em inteligência ou instrução, em educação profissional e condição econômica, ou se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso, ‘abrindo-lhe uma exceç~o’, sem se obrigar a proceder da mesma forma para com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou, mesmo, mais leves (NOGUEIRA, 1955, p. 286).
No caso dos Estados Unidos, por se tratar de um país
multicultural, é valorizado o fato de as identidades étnicas serem
mantidas, visto que os elementos que definem a identidade nacional
norte-americana não demandam um processo de desetnificação. Já no
Brasil, imigrantes e seus descendentes têm de abandonar seus
diacríticos étnicos para poderem se tornar brasileiros, para se
integrarem adotando uma cultural nacional homogênea. Desta forma,
147
a diferença cultural não é comunicada publicamente em prol da
integração na nação brasileira. Como falou um descendente de sírios a
Oracy Nogueira: “O problema do italiano, no Brasil, é o da
desmacarronização, assim como o do sírio é o da desquibização e, o do
alemão, o da desbifização” (NOGUEIRA, 1955, p. 291, nota 29).
A valorização da miscigenação é um ponto que afasta o
modelo brasileiro do norte-americano. No Brasil, há a expectativa de
que tipos raciais como o negro e o índio desapareçam (NOGUEIRA,
1995, p. 290). Nesta situação, há também a expectativa de que o
estrangeiro (branco) abandone sua herança cultural em proveito da
“cultura nacional” (NOGUEIRA, 1995, p. 291). J| nos Estados Unidos, o
fato de as minorias manterem sua própria cultura, falar sua língua e
ser endogâmicas é valorizado, devido à ideologia do multiculturalismo
que não só reconhece como estimula a diferença dos grupos.
A etiqueta de relações inter-raciais põe ênfase no caso
brasileiro no controle do comportamento de indivíduos do grupo
discriminador, de modo a evitar a suscetibilização ou humilhação do
indivíduo do grupo discriminado o que limita os perigos de um conflito
aberto (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 148 e NOGUEIRA, 1955, p.
292). Esta postura diferente do caso (do sul) dos Estados Unidos onde
a segregação era clara, violenta e institucionalizada, o que, unido aos
demais fatores, explicaria o fenômeno do passing1.
Apesar de muitas das observações feitas por Oracy Nogueira
ainda serem atuais, as novas formas de classificação têm tido um
grande impacto na sociedade. Assim ser negro pode passar a ser
alguém que tem uma história de discriminação racial. Uma história
compartilhada pode ser um critério para a produção de uma nova
identidade, sem perder de vista os alicerces sustentados por questões
genealógicas, ou seja ter alguma descendência africana, por exemplo, e
também classe social que influenciaria a escolha da cor.
Os resultados das pesquisas para a UNESCO revelaram as
tensões entre o mito e o “racismo { moda brasileira” (FRY, 2005, p.
217). De forma geral, os autores envolvidos no projeto chegaram à
conclus~o de que o “processo de hegemonia racial” desativaria a
“consciência” da discriminaç~o racial e da desigualdade, mas
estimularia a discriminação racial e a negaria ao mesmo tempo.
1 Nos Estados Unidos, há casos de indivíduos identificados como “negros”, mas
com cor da pele clara, trocavam de localidade e de nome e torna-se “branco”.
148
Assim, a forma mais eficaz de ascensão social se encontrava
na escolha por tentar cruzar a fronteira racial visto que dependendo
do contexto, “negros” podem se tornar “brancos”, ou “morenos”, de
acordo com a aparência física e até do status social. Isto se deve ao fato
de a identidade negra não ser objetiva ou essencializada, dentro dos
padrões classificatórios brasileiros. Agora vemos indivíduos se
organizando politicamente a partir do reconhecimento de uma
“negritude” e que deve impulso com políticas estatais como a
constituição da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, ligada ao
Ministério da Justiça, em 1995.
Estas estratégias são possíveis porque no Brasil a reação em
relação a discriminação tende a ser individual, muitas vezes
procurando o indivíduo:
[...] compensar suas marcas pela ostentação de aptidões e características que impliquem em aprovação social tanto pelos de sua própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por indivíduos de marcas mais ‘leves’ que as suas (NOGUEIRA, 1955, pp. 294-295).
No Brasil, a probabilidade de ascensão social está na razão
inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador,
ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual
tende a coincidir (NOGUEIRA, 1955, p. 296). Assim os obstáculos para
a ascensão social diminuem à medida que a cor clareia (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, p. 167), contrariando o que dissera Freyre para
quem haveria a tendência no Brasil de favorecer o mais possível a
ascensão social do negro (FREYRE, 1995, p. 415). Segundo Peter Fry
(2005), a desigualdade no mercado de trabalho, e em educação, pode
ocorrer mesmo entre irmãos onde o mais claro é mais bem sucedido
que o mais escuro (FRY, 2005, p. 324)2.
O modelo bipolar de classificação racial, como o que existe
nos Estados Unidos, vem ao longo dos anos se tornando mais popular
2 O acesso a bens públicos, como vagas em universidades públicas através de cotas
raciais, também pode variar entre irmãos no Brasil. Vide o caso dos gêmeos
idênticos que ao tentarem ser cotistas no vestibular da Universidade de Brasília, se
definindo como negros, apenas um foi aceito. Após a polêmica, a universidade
voltou atrás e reconheceu o outro irmão também como negro, conforme artigo de
Bassete (2007).
149
no Brasil, onde a forma de pensar as identidades raciais é mais
complexa. Esta complexidade pode ser constatada em pesquisa feita
em 1976, que mostrou que 135 categorias de classificaç~o de “cor” ou
“raça” foram mencionadas demonstrando a grande flexibilidade na
escolha da “cor” no Brasil (FRY, 2005, p. 176). O modelo complexo de
classificaç~o da “cor” é acompanhado pela relaç~o entre as gradações
de cor e gradações de riqueza e pobreza. Assim havia as desigualdades
sociais e econômicas entre os mais escuros e os mais claros, mas
semelhanças culturais entre os brasileiros de maneira geral, pois
compartilhariam de uma cultura única nacional.
Com esta grande quantidade de cores, junto à idéia de
miscigenação, o pensamento racial brasileiro acreditava que o branco
poderia englobar o negro, ou seja, afastando a ideia de identidade
“racial” baseada na origem, o que possibilitou a política de
branqueamento com o estímulo à migração européia. Já segundo a
taxionomia bipolar dos Estados Unidos, que divide brancos e negros, a
raça “inferior” seria dominante, manchando ou poluindo a “pureza
branca” com critérios objetivos, a descendência, que definiam as linhas
“raciais” (FRY, 2005, p. 198).
Com mudanças atuais no tipo de classificação no Brasil,
parece haver uma espécie de redução do tipo múltiplo ou ampliação ao
tipo bipolar, mesmo insistindo em três categorias. O Censo brasileiro
passa a trabalhar com as categorias “preto” e “pardo” sendo que
“negro” passa a englobar tanto “preto” quanto “pardo”. No Brasil,
apesar da grande quantidade de classificações raciais, há a tensão
entre estas duas taxonomias com o exemplo de expressões populares
como “quem passa de branco preto é” (FRY, 2005, p. 224).
Florestan Fernandes e Roger Bastide (1959) sentiam que a
discriminação racial e a desigualdade entre brancos e pessoas de cor
eram em grande parte resultantes da herança da escravidão e da
dificuldade que os negros brasileiros haviam enfrentado para se
adaptar ao capitalismo. Pensavam assim que com a integração do
negro à economia, a desigualdade e a discriminação desapareceriam
(FRY, 2005, p. 217).
O preconceito de cor teria como função justificar o trabalho
do africano no período da escravatura e após a abolição serviria para
justificar a sociedade de classes (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 13).
Apesar da mudança da estrutura social com a abolição e a república, os
150
autores apontam reminiscências dos antigos estigmas dos brancos
sobre os negros. Muitos brancos na década de 1950, quando fizeram a
pesquisa, ainda se achavam superiores aos negros, sustentando
estereótipos negativos ao considerar os negros como degradados
moralmente e intelectualmente, aptos apenas para trabalhos manuais
ou para a prática de esporte, principalmente do futebol (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, p. 166).
Com estigmas que permanecem no sistema de classes, há
uma série de dificuldades para a ascensão social do negro facilitada
quando h| um “padrinho” branco que colabora para a ascens~o de
alguns destes indivíduos ao isolá-los e cortar “suas raízes” raciais.
Desta forma o negro passaria a se identificar com brancos chegando
até a reproduzir esteriótipos negativos acerca dos outros negros em
situação social desfavorável (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 116 e
140).
O preconceito desta forma operaria como instrumento para
impedir a ascensão do grupo de negros dificultando, por exemplo, o
acesso à educação. Assim é privilegiado apenas um pequeno número
para haver a preservação da ordem vigente, através deste novo
mecanismo que teria substituído o sistema de escravidão que
preservava a ordem senhorial até então (BASTIDE; FERNANDES, 1959,
p. 89).
Por fim os autores afirmam ser necessário que os negros
para ascenderem tomem consciência de sua “negritude” e que
superem o “tabu da cor” (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 197 e 242).
Os negros precisam combater o preconceito racial na luta pela
ascensão social de todo o grupo criando possibilidades, sobretudo
através da solidariedade racial e da educação, para sua ascensão social
promovendo finalmente sua integração nacional de fato (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, p. 234).
A abordagem de Fernandes e Bastide ressoa em discursos de
pessoas com algum envolvimento no movimento negro3 quando
encaram a “consciência negra” como um despertar em algum
momento de uma espécie de identidade adormecida e o meio através
do qual superariam o atual “estado de dominaç~o”. Os autores
3 Informações colhidas nas manifestações ocorridas ao longo do dia 20 de
novembro de 2007 em que era comemorado o Dia Consciência Negra realizado no
Centro da cidade do Rio de Janeiro.
151
essencializam a identidade negra e deixam de lado questões
fundamentais nas relações raciais no Brasil como a falta de critérios
objetivos para delimitar as fronteiras raciais tratando a flexibilidade
destas identidades como meras estratégias para facilitar a ascensão
social de alguns indivíduos.
De fato a flexibilidade na escolha da cor poderia levar
indivíduos a se classificarem n~o como “negros”, mas como “mulato
claro” ou “moreno”. Situaç~o que pode atualmente mudar com a
possibilidade de acesso a bens públicos, caso das cotas raciais no
vestibular para estudantes pretos, pardos e índios4 adotadas por
universidades públicas, que favorece a escolha e pode alavancar uma
tomada de consciência da negritude. Tomando as identidades raciais
como as identidades étnicas abordadas por Fredrik Barth, vemos que:
[...] a travessia da fronteira étnica por um indivíduo, ou seja, a mudança de identidade ocorre sempre que a performance desse indivíduo não tem condições de sucesso e há outras identidades alternativas ao seu alcance (BARTH, 2000, p. 91).
O trabalho de Roger Bastide e Florestan Fernandes mostrou
que a discriminaç~o racial e a desigualdade entre brancos e “pessoas
de cor” eram em grande parte resultantes de um dram|tico processo
histórico, passando pela escravidão e a marginalização no sistema
econômico. Assim bastaria a sua integração à economia que a
desigualdade e a discriminação desapareceriam. Até os trabalhos
encomendados pela UNESCO, acreditava-se que no Brasil só existia
preconceito de classe. Há no Brasil, país onde a miscigenação é um
valor cultural, a presença de um racismo peculiar que tem como
característica o fato de ser silencioso.
Cultura homogênea como identidade nacional
Além do Brasil, em ex-colônias portugueses na África
também foi dada ênfase { “convers~o” de diversos grupos étnicos a
uma cultura dominante (FRY, 2005, p. 175). Uma cultura fruto do
encontro dos povos, um ideal de miscigenação cultural tem como
objetivo a construção de um país homogêneo. A ameaça desta
4 Utilizamos aqui a mesma classificação racial do IBGE.
152
homogeneidade pode por em risco a própria existência do Estado-
nação, segundo a ideologia nacional em muitos países.
A valorização de uma cultura homogênea fez com que
publicações em língua estrangeira e escolas onde eram ensinadas as
línguas de imigrantes fossem proibidas pela Constituição de 1937, pois
constituía uma ameaça a nação (LESSER, 2001, p. 218 e 230). Desta
forma, toda a educação deveria ser em português e todos os imigrantes
devem por fim se tornar brasileiros, abandonando sobretudo sua
língua, o que rendeu a proibição por lei de se falar língua estrangeira
em espaço público e privado (LESSER, 2001, p. 233).
A busca pela assimilação de valores compartilhados pelo
grupo é semelhante às tentativas de assimilação a uma cultura
nacional tanto no Brasil, ou em ex-colônias portuguesas na África onde
houve um grande esforço para a formação de uma homogeneidade
cultural e linguística como em Moçambique. O Brasil também passou
por um processo de homogeneização cultural o que o aproxima do
modelo de Moçambique.
O contraste das situações raciais nos Estados Unidos e no
Brasil é semelhante à encontrada entre Zimbábue e Moçambique, que
estão na base das identidades nacionais destes países. Isto se deve ao
fato de serem exemplos do contraste entre os ideais de “segregaç~o” e
“assimilaç~o” (FRY, 2005, p. 46).
A homogeneidade cultural do Brasil, uma de suas grandes
características nacionais, absorveu símbolos africanos transformados
em elementos centrais da identidade nacional (FRY, 2005, p. 27).
Assim há grande dificuldade de grupos negros estabelecerem seus
próprios diacríticos culturais, pois muitos elementos culturais que
teriam origem africana tornaram-se símbolos nacionais brasileiros.
Por isso que hoje é frequente que símbolos da identidade negra
venham de fora do Brasil como o reggae (no Maranhão) e o hip hop
(no Rio de Janeiro e São Paulo) e da própria África na Bahia com os
grupos carnavalescos “afro” para demarcar fronteiras (FRY, 2005, p.
233). Além da feijoada, o samba e o candomblé são outros exemplos de
expressão cultural negra transformados em símbolos nacionais (FRY,
2005, p. 155).
153
Ações Afirmativas e movimento negro
Atualmente, é recorrente em etnografias como a de Paulo
Pinto (2006) a retórica a respeito de uma “tomada de consciência” da
negritude. Em trabalho sobre o impacto do sistema de cotas raciais na
UERJ, o autor cita a grande recorrência de alunos ligados a movimento
negro de frases como: “’Me descobri negro (a) h| X anos/meses’ ou ‘só
me dei conta que era negro (a) há X anos/meses” (PINTO, 2006, p.
160).
Em vários momentos, há esta formação da identidade, como
se fosse uma identidade adormecida, cada vez mais positiva marcada,
por exemplo, pela comemoração no dia 20 de novembro, desde 1995,
do Dia da Consciência Negra que se tornou feriado em algumas cidades
e estados no Brasil. Este dia passou a partir de então a ganhar força
como um dia que é lembrado a resistência dos negros na luta pela
liberdade, pois foi o a data em que teria morrido Zumbi dos Palmares,
líder do Quilombo dos Palmares (1630-1697) localizado hoje no
Estado de Alagoas. Zumbi é através desse processo transformado em
herói da população negra contra a opressão e o racismo. É importante
também ressaltar que a Constituição de 1988 deu direito de
propriedade a terras ocupadas por descendentes de escravos
quilombolas.
Este se torna um dia em que os símbolos outrora ligados à
população de origem africana são celebrados como parte da
identidade afro-brasileira ou mesmo africana. Há a reconfiguração de
diacríticos étnicos, tais como o candomblé, uma “religi~o de matriz
africana”, a culin|ria baiana ou o samba, que passam a ser encarados
como parte de uma tradição importada da África. Estes elementos
africanos passam a ser valorizados, se afastando de posturas como em
relaç~o { “africanizaç~o” do carnaval em Salvador, por exemplo, j|
criticada por jornais no início do século XX, naquele período,
considerado uma ameaça à civilização brasileira, pois a afastava cada
vez mais da “Europa culta” (RODRIGUES, 1987 [1932], p. 157-159).
A “restituiç~o” destes símbolos como africanos é evidente
nas comemorações nesta data que vem ocorrendo em frente ao busto
de Zumbi na Praça XI, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Uma
região com um forte valor simbólico para populações negras, pois foi
154
onde se instalou uma grande comunidade de ex-escravos oriundos da
Bahia a partir do final do século XIX (COSTA E SILVA, 2005).
Nas comemorações realizadas no ano de 2007, houve a
presença de grupos de afoxé, samba, sacerdotes de religiões afro-
brasileiras, políticos e militantes do movimento negro. Era enfatizado
todo o tempo, a riqueza do que foi chamado de “cultura africana” que
se mantém viva hoje na sociedade brasileira, além do empenho de
todos na luta contra o racismo. Uma grande valorização não só da
cultura de origem africana, mas da consciência desta cultura, na
manipulação performática de diversos atores para exibir publicamente
que eram negros. Entre estas marcas havia os cabelos com uma
estética “afro”, a música e a comida.
Além destas datas e da representação de heróis, Zumbi no
Brasil ou Malcolm X nos Estados Unidos, merece destaque outros
fatores que podem contribuir para a formação de uma identidade
negra como, por exemplo, o interesse de consumir os mesmos
produtos. Foi o que aconteceu quando os negros passaram a ser
imaginados como brasileiros com uma estética própria (FRY, 2005, p.
264).
Com o fortalecimento das ações afirmativas, que começam a
ser adotadas pelo Estado, a partir da criação da Secretaria Especial de
Promoção da Igualdade Racial em 1995, a identidade negra toma outro
rumo. A possibilidade de pleitear vagas em serviços públicos ou em
universidades a partir de critérios raciais é um importante fator que
colabora com a escolha por ser negro.
Algumas medidas começaram a ser tomadas após
Conferência de Durban5 quando foram propostas ações afirmativas em
prol da “populaç~o negra”. No Brasil, o Programa Nacional de Direitos
Humanos propõe intervenções que visam fortalecer uma definição
bipolar de raça no Brasil e implementar políticas específicas em favor
dos brasileiros negros (FRY, 2005, p. 227).
Paulo Pinto (2006) fala da manipulação da identidade racial
como estratégia para indivíduos conseguirem entrar em cursos
universitários concorridos como o de medicina. Esta atitude é
condenada como fraude por alguns alunos, sobretudo por aqueles
5 Conferência realizada pela Organização das Nações Unidas na cidade de Durban,
África do Sul, em 2001, com o objetivo de encontrar soluções para o combate ao
racismo, xenofobia e demais formas de intolerância.
155
ligados ao movimento negro (PINTO, 2006, p. 154). A discriminação
une brasileiros “negros” de diferentes trajetórias ao torn|-los alvos de
diversos agentes sociais. Eis a origem de uma memória que passa a ser
compartilhada por diversos indivíduos.
A escolha por determinada “cor” como estratégia para maior
acesso a bens públicos pode encontrar limites devido à formalização
de critérios objetivos para definir “cor” ou “raça” no Brasil através do
Estatuto da Igualdade Racial que limitariam a escolha do
pertencimento racial. Segundo Paulo Pinto: “Um dos pressupostos da
adoção da política de cotas na universidade é a possibilidade de definir
quem tem ou não o direito de ser beneficiado por tal política” (PINTO,
2006, p. 150).
No texto supracitado, Paulo Pinto dá um panorama dos novos
rumos que classificação racial brasileira tem tomado examinando as
trajetórias dos estudantes e os efeitos da implantação das cotas raciais
sobre a construção de identidades raciais, as representações de mérito
individual e as identidades e representações acadêmicas entre alunos
e professores da universidade, que ressoam de diferentes formas
segundo valores compartilhados por estudantes dependendo do curso
universitário (PINTO, 2006, p. 142).
A implantação de ações afirmativas é uma das formas que
promoveriam o acesso aos bens, recursos e canais de inserção e
mobilidade social para indivíduos “potencialmente excluídos” através
de uma série de medidas que teria por fim neutralizar e compensar os
efeitos negativos da discriminação racial (PINTO, 2006, p. 136). No
debate nacional, a identidade negra encarada como identidade racial
ou étnica vem sendo essencializada: “como se estas fossem apenas
signos ‘descritivos’ de uma ‘verdade’ inscrita na ‘natureza’” (PINTO,
2006, p. 147).
As discussões, que envolvem a adoção das cotas raciais, têm
oscilado entre a construção da identidade negra, como identidade
étnica, a qual implicaria elementos culturais, e racial, no caso diria
respeito a questões fenotípicas ou genealógicas (PINTO, 2006, p. 139).
A partir desta abordagem ser “negro” ou “preto” n~o se resume {s
características fenotípicas do indivíduo, pois seria também baseada no
compartilhamento de uma “cultura negra” ou { exclus~o social para
definir essa identidade racial (PINTO, 2006, p. 139).
156
Tenta-se buscar a demarcação de fronteiras raciais que
definem as identidades culturais num processo que busca a
objetivação destas. Mesmo assim há casos que o autor demonstra que
há possibilidade de passagem ou diluição da fronteira racial em certos
contextos (PINTO, 2006, p. 150-151). Alguns dos interlocutores de
Paulo Pinto apontam a possibilidade de relativização das categorias
raciais a partir da manipulação performática dos traços fenotípicos.
Esta manipulação estratégica da identidade racial é condenada como
fraude por alguns alunos na universidade, sobretudo os ligados a
movimentos sociais identitários, o que ocorre sobretudo em contextos
competitivos, como quando disputam vagas nos cursos de medicina ou
de odontologia (PINTO, 2006, p. 153-154).
Assim os defensores das cotas raciais na UERJ, apontam para
a necessidade de “mecanismos de controles” (uma “comiss~o de
avaliaç~o”) para impedir “fraudadores”. Em tom irônico, um deles diz
que esta comissão deveria ser formada por porteiros e policiais
(PINTO, 2006, p. 155). A discriminação ganha um importante papel
neste contexto ao demarcar e definir a identidade racial negra. A
experiência do sofrimento seria uma das marcas que definiriam a
fronteira que separa os brancos dos negros e permite mobilizar os
possíveis beneficiários e distingui os portadores de identidades
legítimas (PINTO, 2006, p. 158).
Conclusão
Este texto tentou apresentar na história do pensamento
sociológico brasileiro como foi definida “raça” e como foi pensado o
“racismo”, o que colabora na compreens~o da situaç~o racial no Brasil
atualmente. Novos estudos foram realizados nas últimas décadas a
partir das iniciativas do Estado que formou a Secretaria de Igualdade
Racial e o Estatuto da Igualdade Racial e institucionalizou cotas raciais
para o acesso de minorias raciais a vagas em universidades públicas.
Todas estas iniciativas podem ser vistas como tentativas de
consertar um “erro histórico”, devido { situaç~o de “marginalizaç~o”
desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. É neste contexto de
transição, em que há mudanças na classificação racial no Brasil a partir
de políticas publicas, que são construídas novas construídas
identidades sociais em que a adoção de uma identidade racial não
157
apenas possibilita o acesso legítimo a bens públicos, mas contribui no
combate de antigos estigmas e torna, de diferentes formas, positivo ser
“negro”.
Referências BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. BASSETE, Fernanda. “Cotas na UnB: gêmeo idêntico é barrado”. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL43786-5604-619,00.html. Acesso: 30 de agosto de 2007. CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008. COSTA E SILVA, Alberto da. “Comprando e vendendo Alcorões no Rio de Janeiro no século XIX”. In: Estudos Avançados, vol.18, n.50. São Paulo, 2004. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100024. Acesso: 30 de Novembro, 2005. ERIKSEN, Thomas H. Ethnicity & Nationalism: Anthropological Perspectives. Colorado: Pluto Press, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Casa-grande e senzala. Formação da família brasileira sob regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1995. FRY, Peter H. A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LESSER, Jeffrey. A Negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: UNESP, 2001. MALCOLM X. Autobiografia de Malcolm X / com colaboração de Alex Haley. Rio de Janeiro: Record, 1992.
158
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO
Thiago David Stadler
Universidade Federal do Paraná
Quão difícil é nos libertarmos dos sepulcros do cemitério de
idéias que formam o tão apregoado conhecimento histórico. Muitas
vezes, prisioneiros destes túmulos, vagamos como um fantasma ocioso
no jardim da história (VOLPI, 2008, p. 25): revisitamos todas as
belezas e as curiosidades que este oferece à vista, mas como fantasmas
somos incapazes de atuar historicamente. Alguns espíritos não
contentes com esta impotência tentam desfazer as amarras tecidas -
muitas vezes celebradas? – pela inércia utilizando instrumentos
equivocados. Assim, se faz presente a conformidade de um senso
comum1 que, assim como os fantasmas que o avivaram, ignora a
vivacidade do pensamento e a indispensável crítica histórica. Da
mesma maneira, os desfavores de uma interdisciplinaridade cegada
pela necessidade de ampliação do campo de pesquisa, sem atentar-se
para o posterior imperativo de ampliação de métodos, trabalham para
a depreciação do fazer história. Por último, os fantasmas proclamam a
vontade redentora de enquadrar-se em um grande modelo auto-
explicativo, mas esquecidos de como é a vida vivida, ignoram que todo
movimento histórico é real e com toda a sua riqueza, não passível de
sistematização: o que importa é a reprodução intelectual do concreto, e
não a má abstração que reduz o concreto a simples elemento de um
sistema (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 52).
“Aristocratas do nada”, ampliaç~o dos problemas e n~o dos
métodos, grandes modelos intelectuais2. Com todas estas “ações” estes
1 Importante notar que este senso comum não se limita ao estado permanente do
“conhecimento superficial”, mas adquire maiores problemas quando ditos
“aristocratas do nada” tentam contemplar toda a sucessão temporal histórica como
se este ato fosse possível. 2 Pode parecer que tal proposta foi superada pela historiografia contemporânea,
mas a tendência em buscar “caminhos totais” continua viva. Podemos citar a
paradoxal situação da manifestação pós-moderna: “Certamiente, el
postmodernismo no es más que otro gran relato, quizás el último gran relato
historiográfico, pero con la particularidad y la paradoja de que abomina de los
160
libertos, assim reconhecidos entre eles próprios, julgam escapar da
escuridão e solidão do cemitério de idéias históricas, mas o que fazem
é apenas reproduzi-lo cada vez mais. Assumir tais posturas é ignorar
os diferentes efeitos práticos e teóricos que a difusão e a recepção dos
diferentes pensamentos provocam (SÁNCHEZ VÁZQUES, 2002, p. 109),
além das condições de produção do documento/monumento histórico.
A pergunta que urge é: como sair deste incômodo terreno sepulcral
para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Um dos possíveis
caminhos e, particularmente o perseguido neste trabalho, é entender
que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o
primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado;
muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercê-
la, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador3 (SÁNCHEZ
VÁZQUES, 2002, p. 67). Logo, o problema não é a existência de um
cemitério repleto de idéias, visto que seria ignorância considerar que o
mundo é composto apenas pelos vivos4, mas sim, a postura de não
atualizar tais idéias, de utilizá-las sempre da mesma maneira, mesmo
com diferentes problemáticas; ou seja, o engessamento de categorias
teóricas.
grandes relatos como metodología de conocimiento, interpretación y
representación de la realidade” (AURELL, 2008, p. 26). 3 A citação original faz referência ao ofício do filósofo.
4 Esta concepção de atualizar as noções do passado era pilar básico numa tradição
histórica do mundo clássico. A dicotomia transformação x tradição já se tornava
presente na forma de redigir a História naquele período. Podemos referenciar um
dos trabalhos de Renan Frighetto – Transformação e Tradição: a influência do
pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na Antiguidade
Tardia – o qual aborda exatamente esta temática. Frighetto constata este fato nos
séculos IV e V da era cristã teorizando acerca da simultaneidade entre novas
perspectivas do pensamento político das monarquias bárbaras, mas fortemente
marcada pelos vínculos com a tradição clássica romana: “Encontramo-nos diante
dum caso notório de recuperação da tradição política e cultural que remonta ao
período romano, alcançando a Antiguidade Tardia hispânica. Não obstante, nem
tudo que é recuperado é literalmente copiado, sendo esta máxima válida para os
escritos que analisamos. Seria inconcebível que o texto ciceroniano, redigido num
contexto específico para um público próprio, fosse aplicado sem nenhuma nova
incorporação séculos depois” (FRIGHETTO, 2008, p. 36). Interessante notar como
esta prática tão antiga de se fazer história desapareceu em muitos círculos atuais de
historiadores, visto a perpétua repetição de pensamentos sistematizados, sem o
“toque” individual do pesquisador dando novas perspectivas para futuros
questionamentos.
161
Trata-se de assumir uma postura que torne o pensamento
pertencente ao momento estudado sem, contudo, ignorar o natural
vínculo entre o pensar e o nosso próprio tempo. Cabe afirmar que para
isso acontecer se faz necessário refletir sobre a história de forma
rigorosa, objetiva e fundamentada (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 40),
cientes de que não alcançaremos todas as respostas5, mas que estas
devem ser dadas respeitando seu caráter efêmero e transitório dentro
do saber histórico. Tais respostas remontam à necessidade de quebrar
esta reprodução dogmática do conhecimento histórico agindo no
sentido de evitar um “estado de mobilidade perpétua” circular, que se
reproduz e se repete sem fim – cultura cristalizada (VOLPI, 2008, p.
29).
É nesta linha de reformulações do pensamento histórico que
Jaume Aurell propôs uma inquietante questão:
la historiografia occidental siempre ha rechazado otras formas de hacer historia que, no estén basadas en el racionalismo y el objetivismo. Somos incapaces, por ejemplo, de advertir que la autobiografia puede ser más histórica que la monografia, porque a pesar de toda su carga emocional puede abarcar esferas de la realidad a la que la fria monografia de archivo nunca accederá. Sin embargo, desconfiamos de este gênero por su fuerte carga subjetiva e imaginativa (AURELL, 2008, p. 25).
Sua preocupação, quem sabe provocação, recai na recusa de
grande parte dos historiadores em não aceitar a validade de
documentos não comuns à sua própria cultura. Interessante apontar
que esta afirmação de Aurell foi proferida já no século XXI, ou seja, a
tão questionada hierarquia de fontes ainda se apresenta viva entre os
estudiosos. Parece-nos que para alguns destes estudiosos os termos
“subjetividade” e “imaginaç~o” deveriam ser banidos do vocabul|rio
do historiador, pois eles atestariam a não seriedade dos estudos
históricos. Todavia, são elementos destas categorias que trazem o
homem para dentro da história, se não este pode se perder em meio a
5 Salientamos que ser objetivo não exclui temas e observações subjetivas. Tornar a
história um campo de afirmações comprobatórias sem o espaço para dúvidas,
lacunas e subjetivismos é caminhar em um terreno perigoso. Rigor, objetividade e
fundamento são necessários para a seriedade do método histórico, mas não podem
apagar a carga subjetiva e imaginativa que as composições históricas carregam.
162
tantos emaranhados de estatísticas, estruturas, fatalismos e
determinismos (AURELL, 2008, p. 24). Esta aspiração a uma história
totalmente objetiva, amplamente criticada durante o século XX, apaga
um ponto fundamental da percepção histórica: os homens que aqui
estiveram e que aqui estão são formados de carne, osso e contradições
internas. Logo, devemos dar espaço para a imaginação e a
subjetividade, pois estas fazem parte do nosso ser, mas atenção, esta
abertura deve respeitar os limites do próprio objeto de estudo6. Aurell
encerra esta questão de forma convincente apresentando uma
tendência recorrente, mas errônea nos estudos históricos:
tendemos a identificar subjetivismo e imaginación com ficción, sin caer en la cuenta de que ficción es una categoria relacionada com realidad, no con las otras dos dicotomias verdad-mentira y objetividad-subjetividad. Se puede ser muy subjetivo sin abandonar em absoluto del âmbito de lo real (AURELL, 2008, p. 26).
Realidade é quase uma obsessão dos historiadores.
Atualmente dá-se preferência pela express~o “representaç~o da
realidade”, mais correta em nossa concepç~o. Entender esta
representatividade do real como algo construído e produzido não
meramente “percebido” (ARÓSTEGUI, 1993, p. 205) é mais um
caminho para fugir dos muros sufocantes do cemitério de idéias da
história. Como vimos, esta construção/produção da realidade histórica
também deve levar em conta a diversidade documental que possua
aspectos subjetivos e imaginativos. Com eles podemos aproveitar as
experiências dos homens do passado, suas dúvidas, suas incertezas,
por fim, sua existência. O intelecto humano tem esta capacidade de
estender-se a todo ser, ainda mais ao ser que foi. Aproveitar outras
formas de fonte histórica é dar valor a este intelecto, o qual por
natureza é uma mescla de objetividade e subjetividade. É através desta
6 “Lo cierto es que hay uma verdad objetiva, y um pasado real, que há existido, al
que podemos acceder a través de diversas fuentes de conocimiento – orales,
escritas, iconográficas. Lo que muchas veces olvidamos, y parece también de
sentido común, es que hay muchas maneras de acceder a ese único pasado, u no
tiene por qué ser mejores unas que otras, sino simplesmente diferentes” (AURELL,
2008, p. 26).
163
díade7 que o homem consegue repensar, “re-presenciar” a vida, as
experiências e os atos dos homens de outras épocas (ELDERS, 2008, p.
33). Dessa forma, ampliam-se os elementos sociais capazes de
construir a inteligibilidade que os homens pretendem extrair da sua
própria existência (ARÓSTEGUI, 1993, p. 206).
Partindo das discussões levantadas podemos propor que um
dos documentos produzidos pelo homem com grande peso na questão
da “existência” e, por conseguinte, da vontade de entender/relatar as
situações vividas é o diário. Os diários encontram-se numa
encruzilhada entre fontes exemplares para uma história que privilegie
diversos pontos de vista e fonte pouco confiável, exatamente pela
tendência relativizadora e eminentemente subjetiva de seu texto e da
abordagem do contexto histórico. Todavia, como dito anteriormente, a
carga subjetiva de uma documentação não retira sua natureza de
realidade, apenas opõe-se à objetividade. Philippe Lejeune afirma que
“antes que um texto, o di|rio é uma pr|tica”, que “levar um di|rio é
antes de tudo uma maneira de viver” (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p.
22). É pensando nestes termos que propomos algumas considerações
sobre um diário especialmente notório da antiguidade helenística: os
Solilóquios8 do imperador romano Marco Aurélio (161-180 d.C.).
Cabe inicialmente apresentar uma distinção necessária para
as nossas considerações sobre os Solilóquios aurelianos. María Salatino
de Zubiría propõe uma diferenciação entre o diário íntimo e o dietário:
En el primero (diário íntimo) señala un predominio de lo afectivo; la escritura nace de las experiencias de la vida cotidiana y, generalmente, puede estar fechado. Por el contrario,
7 Aceitar esta duplicidade é imperativo para compreender o homem como ser
histórico. Devemos levar em conta que a imprevisibilidade e a arbitrariedade
também participam do cotidiano do homem, visto que o homem é livre em suas
decisões. Porém, como afirma Elders, “pero lo que se ha hecho o lo que no, forma
parte ya del pasado y está fijado para siempre”, sejam arbitrários ou não, logo,
passíveis de ser estudados pelos historiadores. (ELDERS, 2008, p. 33) 8 Não se sabe como os manuscritos de Marco Aurélio foram preservados e
chegaram até nós. Algumas especulações falam de dois grandes amigos do
imperador, Aufidius Victorinus e Seius Fuscianus, que poderiam fazer parte do
processo de conservação dos Solilóquios. Assim como de uma das filhas do
imperador, Cornificia, e até mesmo de um “homem-livre” de Marco Aurélio,
Chryseros que havia escrito algo sobre a fundação de Roma e, por ventura, poderia
ter conservado as memórias do imperador. (BIRLEY, 2001, p. 212)
164
en el segundo (dietário), importa lo intelectual, tiene carácter intemporal - se penetra en la intimidad del pensamiento del autor, pero no en las circunstancias de la vida que lo generan - y no es diario, ni íntimo (2008, p. 8).
Com esta afirmação conseguimos levantar dois pontos
centrais: 1ª) num diário íntimo há o predomínio do emotivo frente à
razão; 2ª) num dietário o autor utiliza-se do emotivo, mas o essencial é
a transmissão racional de determinado conteúdo. A partir destas
diferenças é possível aprofundar a noção amplamente difundida de
olhar para os Solilóquios como um diário do imperador. Parece-nos,
assim como para Zubiría, que os escritos de Marco Aurélio encontram-
se no exato limite entre o diário íntimo e o dietário. Ocupar esta
posição limítrofe gera uma mescla entre os dois pontos citados acima,
contudo o predomínio é de natureza intelectual. A obra possui caráter
e poder caracteristicamente literário-filosófico, visto que seus
comentários – sentenças – buscam a expressão de verdades profundas
– mesmo que para isso fosse usado o emotivo, o imaginativo.
Todas as suas verdades foram escritas entre 172 – 180 d.C
em campanha militar contra os Quados. Daí a automática referência ao
diário, visto que a maneira como foi escrito remete à dedicação em
escrever nos tempos livres e sozinho9. Contudo, ao analisarmos o
conteúdo dos Solilóquios encontramos o domínio do intelectual em
suas considerações – aproximando-o ao dietário. Para o historiador
Anthony Birley, Marco Aurélio buscou com isso treinar seu
pensamento em questões que antes nunca havia pensado:
Nor is it surprising that some of what he wrote could have been spoken as philosophical precepts’ to others. This may be because it represents his distilled recollections of the teaching of Apollonius or Rusticus or his other tutors. In any case, as he reveals, he tried to train himself to think thoughts that he would never be ashamed to express to anyone who suddenly asked him: ‘What are you thinking now?’ In the form in which it is transmitted the work is inevitably scrappy, repetitive, often concise to the point of obscurity, with frequent changes of
9 “There can be no doubt that Marcus wrote for himself alone, in his tent „among
the Quadi‟ as in Book 2, or „at Carnuntum‟, as Book 3 is headed, in the camp of
the legion XIV Gemina, and wherever else he found himself in the years from
172–180”. (BIRLEY, 2001, p.213)
165
subject. Sometimes, no doubt, he had time for only a few sentences, and may have resumed writing after a gap of some days or weeks (BIRLEY, 2001, p. 213).
“O que estou pensando agora?”. Esta interrogaç~o recebe as
mais variadas respostas de Marco Aurélio. Levando em consideração o
momento vivido pelo imperador o que ressalta em suas “respostas” é a
consciência da precariedade das coisas, da fragilidade do homem e de
suas obras, do caráter efêmero de todas as coisas materiais (DAZA
MARTÍNEZ, 1984, p. 279):
Mesmo que fosse para viver três mil anos e tantos outros anos vezes dez mil, lembre que ninguém perde outra vida que a própria que se vive, nem vive outra além da que se perde. Em conseqüência, o mais longevo e o mais precoce confluem em um mesmo ponto. O presente, em efeito, é igual para todos, o que se perde também é igual, e o que os separa é, evidentemente, um simples instante. Logo, nem o passado nem o futuro poder-se-ia perder, porque não os temos. Tenha sempre presente, portanto, essas duas coisas: uma, que tudo, desde sempre, apresenta-se de forma igual e descreve os mesmos círculos, e não importa se estes forem contemplados durante cem anos, duzentos ou um tempo indefinido; a outra, o que viveu mais tempo e o que morreu mais prematuramente, sofrem idêntica perda. Porque só nos é privado o presente, visto que é apenas ele que possuímos, e o que não se possui, não se pode perder (MARCO AURÉLIO, 1946, II, 14).
Tais preocupações são interessantes para confrontar com
uma idéia habitual – presente no cemitério de idéias – de “Idade de
Ouro” que se estenderia de Trajano até Marco Aurélio10. Este
10
Pouco a pouco percebemos que apesar da atmosfera de “idade de ouro” do
século II d.C, as dificuldades também estavam presentes. Alguns autores como W.
Görlitz e Jesus Daza Martinez constatam este tema como um “envelhecimento do
universo greco-romano” e a conseqüente confusão que este envelhecimento
apontava. Já no governo de Antonino Pio o sentimento de que o Império havia
chego a uma “idade senil” estava amplamente difundida, pois se constatava a
precariedade das estruturas externas romanas, a fragilidade do homem e suas obras,
etc. Este envelhecimento fica claro quando percebemos a mudança de foco da
política “agressiva” de Trajano para a desvalorização da política e a valorização de
discussões morais levantadas por Marco Aurélio (GARZÓN BLANCO, 1992-
1994, p. 110).
166
confronto pode ser melhor compreendido ao compararmos os
Solilóquios de Marco Aurélio com as afirmações feitas alguns anos
antes pelo apologista Élio Aristídes em seu Elogio de Roma, escrito no
período de Antonino Pio – pai adotivo de Marco Aurélio – as quais
buscavam transmitir noções de um período respeitoso com o passado
e glorioso no presente11: “[...], pois para estar seguro basta ser cidadão
romano, ou melhor dito, ser um dos que estão unidos a sua hegemonia
[...], acostumou a todas as regiões a levar uma vida organizada e
ordenada” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, Discursos XXVI). O que notamos é
que esta vida organizada e ordenada não se mostra fecunda nos
Solilóquios aurelianos, os quais pouco convergem para a idéia de
“período de ouro”, antes apontam para um momento controverso, de
envelhecimento das estruturas, problemas religiosos, etc. – não
necessariamente pontuados e explicitados, mas notados pelo teor da
sentença.
Explícito é o seu ideal pessoal (como homem12, como filósofo
estóico13 e como imperador14) encontrado numa série de exortações e
conselhos que ele dá a si mesmo em uma passagem do Livro VI que
inicia com uma chamada a vigilância para manter-se livre da tentação
11
Apesar das glórias relatadas no Elogio de Roma podemos notar algumas
passagens que também denotam alguma fragilidade do período: “[...] desta cidade,
grande em todos os seus aspetos, ninguém poderia afirmar que não foi dotada de
poder na mesma medida que seu tamanho territorial. Quando se dirige o olhar
desde a totalidade do Império, sente-se admiração pela cidade ao pensar que uma
pequena parte governa toda a terra; porém quando se olha para a própria cidade e
seus limites, já não cabe mais admiração de que toda a civilização seja mandada
por ela” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, XXVI, p. 9-10). 12
Na hora de fazer um balanço sobre a sua vida, Marco Aurélio fez-se reconhecer
mais como um filósofo e moralista do que como um homem de estado e
responsável pelo governo do Império. Contudo, isto não retirou todas as suas ações
diante das circunstancias governamentais do império: esteve presente nos lugares
mais conflituosos, agiu em rebeliões populares, tratou sobre o cristianismo, sobre a
tentativa de golpe do general Avidio Casio (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 280). 13
Durante a visita a Atenas em 176 que Marco Aurélio funda as quatro cátedras
públicas de filosofia: epicurismo, estoicismo, platonismo e aristotelismo (CORTÉS
COPETE, 1998, p. 258). 14
Como homem público Marco Aurélio apresentou inúmeras dificuldades. Fora os
problemas que de fato o afetaram (pressão dos bárbaros – partos, quados,
marcomanos – rebeliões militares, cataclismos naturais), ele possuía várias
limitações: idealização cega do passado; falta de uma visão dinâmica da História e,
por conseguinte, da vida política; sem noções para conciliar Oriente e Ocidente;
sem conhecimento das aspirações das províncias do Império.
167
de “cesarizar”, ou ambicionar demais o poder, continuando com uma
enumeração das qualidades e virtudes15 que gostaria de ver realizada
em sua vida: honradez, piedade, benevolência, amor pela justiça,
firmeza no cumprimento dos deveres
Cuidado! Não te converta em um César, nunca te esqueça disso, porque pode ocorrer. Mantenha-te, portanto, calmo, bom, puro, respeitável, sem arrogância, amigo do justo, piedoso, benévolo, afável, firme no cumprimento do dever. Lute por conservar-te tal como a filosofia o quer. Respeite os deuses, ajude a salvar os homens. Breve é a vida. O único fruto de uma vida terrena é uma piedosa disposição e atos úteis à comunidade (MARCO AURÉLIO, 1946, VI, p. 30).
Marco Aurélio manifesta, em suma, sua aspiração a
permanecer sempre como a filosofia o formou, reverenciando aos
deuses, servindo aos homens e buscando em tudo o bem da
comunidade política, em cuja frente se encontra (DAZA MARTÍNEZ,
1984, p. 282). Todavia, apesar de sua preocupação com a comunidade
política, Marco Aurélio não oferece em sua obra uma doutrina política
em sentido estrito. De acordo com Jesús Daza Martínez “o conteúdo
doutrinal de seus Solilóquios se esgota por inteiro na prática da justiça,
virtude geral, ou no dever de atividade social que para cada um é
predicado. A moralidade absorveu a reflex~o política” (1984, p. 293).
Esta moralidade não aparece sem sentido dentro do pensamento de
Marco Aurélio, já que sua formação estóica privilegiou tal ramo da
filosofia – ética – em detrimento das duas outras áreas – física e
lógica16 “[...] n~o ter caído, quando me atraí pela filosofia, em mãos de
um sofista nem ter-me entretido com a análise de autores ou de
15
Fundada na natureza e na razão, a justiça está na origem de todas as demais
virtudes. Ao enumerar os bens supremos da vida humana, situa em primeiro lugar a
justiça, seguida da verdade, da temperança e do valor. Viver segundo estes bens é
ser fiel às exigências da vida racional e à finalidade essencial da polis; devem ser
preferidos, em qualquer caso, às riquezas, ao poder, aos prazeres, à fama. Em outro
momento de suas reflexões, e desejando explicar os princípios que devem guiar as
ações humanas, aconselha, antes de tudo, trabalhar como faria a Justiça mesma –
deusa (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 289). 16
As doutrinas da tradição estóica constituem um ponto permanente de referência
para Marco Aurélio: a lógica (que incluía uma teoria do conhecimento, o estudo da
linguagem, a dialética e o silogismo), a física (que incluía a teologia, as ciências
naturais e a metafísica) e a ética (estudo da vida reta, da felicidade, do fim último).
168
silogismos nem ocupar-me a fundo com os fenômenos celestes”
(MARCO AURÉLIO, 1946, I, 17). Ao fim, a filosofia em Marco Aurélio
cristalizou-se em ética17 como afirma María Salatino de Zubiría:
Muy romano, este emperador que vive y se ve vivir, juzgándose desde la mirada de su ‘genio’, advierte qué tiene la filosofía de indispensable para un hombre de acción como él, en qué medida cada máxima estoica lo ayuda directamente en el oficio de cada dia (2008, p. 21).
Homem de ação, Marco Aurélio buscou responder ao
chamado da tarefa pública e militar, mas seu interior lhe direcionou ao
mundo silencioso das palavras e de sua entrelaçada malha de idéias.
Levou vida de imperador e foi, na intimidade de si mesmo, um
estudioso.
Escalando os muros do cemitério de ideias
A partir de agora, em consonância com a proposta inicial
deste trabalho, apresentamos algumas considerações sobre o Livro I
dos Solilóquios de Marco Aurélio. O Livro I provavelmente foi o último
escrito por Marco Aurélio e constitui um instrumento valioso para
conhecer as fontes que inspiraram o feitio de sua obra. Ao analisarmos
seu conteúdo e sua forma percebemos algumas características que
devem ser pontuadas:
1ª) quanto a forma do Livro I: O Livro I dos Solilóquios
apresenta em dezessete sentenças todas as influências que marcaram
a vida de Marco Aurélio. O interessante deste recurso é a ação de
apresentação dupla: ao mesmo tempo em que conhecemos um pouco
sobre cada um de seus mestres, conhecemos a “totalidade” de Marco
Aurélio. Ou seja, ao exaltar as características dos outros que foram
seus tutores temos a clara percepção de que estas marcas também
estão presentes no próprio imperador. Dessa maneira, o Livro I pode
ser entendido como uma “expressão do sujeito”, visto o acúmulo em um
só indivíduo das características distintas de todos os seus amigos,
mestres, familiares, deuses.
17
“Não siga discutindo sobre que tipo de qualidades deve reunir um homem bom,
mas sim, trate de ser-lo” (MARCO AURÉLIO, 1946, X, p. 16).
169
2ª) quanto ao teor do Livro I: primeiro, gratidão à sua
linhagem (avós, pai, mãe, bisavós); logo, aos seus mestres (Diognetes,
Rústico, Apolônio, Sexto, Alexandre, Frontão); depois seus amigos
(Catulo Cinna, seu irmão Severo, Máximo); depois ao seu pai adotivo, o
imperador Antonino Pio. Os dezesseis agradecimentos acabam em um
círculo maior, o de maior extensão, que engloba a tudo: a gratidão aos
deuses, porque deles procederam todos os bens anteriores (SALATINO
DE ZUBIRÍA, 2008, p. 23). Toda esta gratidão torna-se um código de
conduta moral a ser seguido. Os agradecimentos são feitos como forma
de honrar os seus próximos, mas o mais importante – notado em todos
os outros livros – é colocar em prática tais ensinamentos. Ou seja,
Marco Aurélio através da gratidão define as regras que deveriam reger
sua vida e, naturalmente, de todos aqueles que buscassem a vida reta.
Neste ponto nos damos a liberdade de ousar. Ao atentarmo-
nos para as duas condições do Livro I – “express~o do sujeito” e
“definiç~o de regras” – e da posterior repetição de grandes temas
filosófico-estóicos18 nos outros onze livros, percebemos uma singela
aproximação com uma técnica musical – quanto à forma de
escrita/composição – desenvolvida no período medieval e aprimorada
no século XVI: a técnica fugal, ou simplesmente Fuga. Esta composição
musical é construída como se o compositor estivesse fugindo e
perseguindo o tema central utilizando-se de seu variado repertório
musical. O interessante ponto que nos saltou aos olhos é a exata idéia
de uma Fuga iniciar-se com a definição das regras e a expressão do
sujeito musical. Já o término pode ser feito através de uma
recapitulação de toda a composição, buscando uma unidade da obra.
Todas estas características da técnica fugal – “definir regras e
expressão do sujeito no primeiro momento”; “recapitulaç~o e
18
Dogmas fundamentalmente estóicos chegaram até Marco Aurélio, resumidos,
claros, contundentes, listas para ser aplicadas diretamente às condutas diárias: a
distinção entre as coisas que dependem de nós e as que não dependem; a certeza de
que somente no homem descansa o juízo sobre as coisas; de que pensamento e
vontade são os verdadeiros bens interiores; de que tudo mais é supérfluo e deve
nos deixar indiferente; de que o sábio preferir antes a resignação e a renúncia
(sustine et abstine) do que as coisas e o sucesso; deve conformar-se com a ordem
natural e necessária dos acontecimentos graças a um sentido claro da providência
universal imanente a tudo que existe (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p. 5).
170
unidade19” – nos influenciaram a propor uma definição para os
Solilóquios aurelianos: tal obra constitui um instrumento de fuga e
perseguição. No primeiro caso do momento vivido por Marco Aurélio
– seu exterior -, já no segundo, referente aos seus ideais, seu
pensamento – seu interior:
Muitos para seu descanso buscam as casas de campo, a beira-mar, os montes; coisas que você mesmo sonha com anseio; porém tudo isto é supérfluo [...] em nenhuma parte o homem tem um retiro mais quieto nem mais despreocupante que dentro de seu espírito; sobretudo aquele que possui em seu interior tais bens, que ao inclinar-se até eles, consegue de imediato a tranqüilidade total (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 3).
No tocante ao fim buscado pela técnica fugal – perseguição à
unidade do todo – traçamos um paralelo com a procura da unicidade
das coisas almejada por Marco Aurélio, fortemente influenciado por
Heráclito20:
Conceba sem cessar o mundo como um ser vivente único, que contém uma só substância e uma única alma, e como tudo se refere a uma só faculdade de sentir, e como tudo o faz com um só impulso, e como tudo é responsável solidariamente de tudo que acontece [...]. (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 40).
Depois de definir as regras gerais e a apresentação do sujeito
no Livro I, Marco Aurélio apresenta um plantel de temas nos outros
onze livros, mas ao final todos devem convergir em um único ponto:
uma vida baseada na filosofia. Diferente do compositor de uma Fuga
que utiliza o arranjo de suas notas preferidas para fugir/perseguir
diversos temas e, no fim, atingir a unidade musical, Marco Aurélio foge
19
Influenciado por Heráclito e inserido na tradição estóica e ciceroniana, Marco
Aurélio estabelece uma vinculação profunda entre os conceitos de natureza, razão,
lei e justiça. A idéia de unidade é a base última de sua metafísica, de sua doutrina
moral, de sua filosofia jurídica e de sua concepção de política. 20
A harmonia antagônica ou harmonia de tensões é a lei das coisas e unidade do
mundo, unidade não por cima ou por baixo dos contrários, mas nos contrários por
eles mesmos. Há a perpétua necessidade de tensão entre os contrários para que haja
o perpétuo devir do Uno criador. Nada se mantém o mesmo, tudo sempre está
diferente, justamente pelo conflito/tensão e posterior harmonia dos contrários
(DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 284).
171
e persegue seus assuntos guiado pelo silêncio de seu pensamento, mas
buscando uma igual unicidade
O tempo da vida humana, um ponto; sua substância, fluente; sua sensação, turva; a composição do corpo humano, facilmente corruptível; sua alma, um peão; sua fortuna, algo difícil de conjecturar; sua fama, indecifrável. Em poucas palavras: tudo que pertence ao corpo, um rio; sonhos e vapor, o que é próprio da alma; a vida, guerra e estância em terra estranha; a fama póstuma, esquecida. O que, então, pode nos dar companhia? Única e exclusivamente a filosofia (MARCO AURÉLIO, 1946, II, p. 17).
Referências
ARÓSTEGUI, Julio. Símbolo, palabra y algoritmo. Cultura e historia en tiempo de crisis, 1993. AURELL, Jaume. Los grandes relatos, el fin de la historia y la historiografia recente. In: El fin de la Historia. Universidad Adofo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. BIRLEY, Anthony. Marcus Aurelius: a biography. New York: Routledge, 2001. DAZA MARTÍNEZ, Jesús. Ideología Politica en el Emperador Marco Aurelio. Universidad de Alicante: Lucentum, n.3, 1984. ELDERS, Leo J. La Historia, su sentido y su fin. In: El fin de la Historia. Universidad Adolfo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. ÉLIO ARISTÍDES. Discursos. Introd., Tradução de Fernando Gascó e Antonio Ramírez de Verger. Madrid: Editorial Gredos, 1987. FRIGHETTO, Renan. Transformação e Tradição: a influência do pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na Antiguidade Tardia. Maringá: Revista Diálogos, v.12, 2008. GARZÓN BLANCO, José Antonio. Antonino Pio: estúdio biográfico y bibliográfico de uma época. Lucentum: Anales de la Universidad de Alicante. Prehistoria, Arqueologia e Historia Antigua, n. 11-13, 1992-1994.
172
MARCO AURELIO. Soliloquios. Tradução de Don Jacinto Díaz de Miranda. Revisada por J. M. de Estrada. Buenos Aires: Angel Estrada Editores, 1946. VOLPI, Franco. “No habr| m|s nada nuevo sobre la tierra”. Fin de la historia, posthistoire, nihilismo: retos para la filosofía práctica. In: Historia: Entre el Pesimismo y la Esperanza. Universidad Adolfo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. SALATINO DE ZUBIRÍA, M.C. Marco Aurelio: Filosofía y Discurso Íntimo. Universidad Nacional de Cuyo: Revista de Estudios Clásicos, n. 35, 2008. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia e Circunstâncias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
ARRAZOADO ORTEGUIANO X TEORIA DAS ELITES
Antonio Charles Santiago Almeida
Universidade Estadual do Paraná
Considerações Iniciais
A discussão ora proposta dedica-se a compreender a
dimensão política e filosófica dos conceitos cardeais que articulam o
pensamento do filósofo e político espanhol Ortega y Gasset (1883-
1955). Ademais, pretende-se diferenciar o pensamento orteguiano da
discussão de a Teoria das elites, elaborada pelos teóricos Gaetano
Mosca (1858 -1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels
(1876-1936). O debate permite compreender o que Ortega chama de
império brutal das massas. Este império é resultado de uma sociedade
que estimulou, a partir do século XIX, a participação em demasia das
massas no cenário político e social.
Decerto que os dois últimos séculos foram marcados por
inúmeros movimentos de massa, por isso uma parcela significativa de
pensadores debruçou-se na tentativa de compreender o fenômeno
social e político denominado de sociedade de massa, oriundo, ora dos
movimentos sociais, ora da participação popular. Mas os teóricos de a
sociedade de massa não esgotaram a reflexão e deixaram lacunas no
que diz respeito ao surgimento e à participação popular das massas,
isso porque, segundo Ortega, o século XIX principia o advento das
massas em todos os lugares da sociedade.
É evidente que a discussão da teoria da sociedade de massa
é fruto de uma análise histórica, sobretudo depois da revolução
burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVIII, da Revolução
Francesa e tantas revoltas populares em que eram visíveis as massas
no seio do movimento. Pensadores se dedicaram a compreender o
avanço das massas e sua ação na sociedade moderna, uma vez que a
história apresentava o surgimento de um grupo social: a massa, que
determinava as condições de mudanças em quase toda a Europa. Dessa
forma, fazia-se necessário empreender um estudo sistemático em
torno desse novo fenômeno para compreender a dinâmica que se fazia
presente na sociedade vigente.
174
Ortega percebe a importância da discussão sobre a sociedade
de massa e retoma os conceitos, que, segundo ele, são capitais para
entendimento dos problemas sociais e políticos da Espanha e,
consequentemente, da Europa, a saber, minorias e massas. Contudo,
ele não tipifica a divisão entre minorias e massas pelas classes sociais;
sua reflexão perpassa a idéia de uma sociedade que se desvela não
apenas pela questão econômica, mas se estende às questões religiosa,
moral, política e cultural, pois a vida não é só economia – assevera
Ortega.
Como já fora dito, havia uma presença demasiada das massas
no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o
descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de
protagonista da vida política. É nesse contexto que Ortega divide a
sociedade em duas categorias, minorias e massas, e, para isso, é
necessário considerar o momento histórico em que se encontrava o
autor e sua reflexão em torno do homem à luz da perspectiva histórica.
Quando a discussão gira em torno dos conceitos de minorias
e massas, o rechaço à filosofia política de Ortega se agrava, pois quase
sempre o leitor, de forma arbitrária, toma de empréstimo os conceitos
marxistas de sociedade para tentar compreender o arcabouço teórico
orteguiano. Entretanto, o próprio Ortega já havia assinalado que a sua
filosofia difere e muito da compreensão marxista no que tange a
discussão conceitual de minorias e massas, pois minoria não é a
burguesia, como também, massa não é o proletariado.
Faz-se premente esclarecer que Ortega não é um pensador
elitista semelhante aos teóricos da sociedade de massa, ainda que haja
certa ambigüidade no seu posicionamento, pois ora ele se define como
liberal, ora esboça reações conservadoras em seus textos, é impreciso
denominá-lo de teórico elitista ou marxista. Todavia, seu liberalismo
perpassa a transitoriedade conceitual e se expressa no que vem a
denominar de raciovitalismo, ou seja, a vida compreendida como razão
última ou, ainda, a vida como razão histórica circunstancial. Nesse
sentido, toda relação, do ponto de vista da equivalência, com teóricos
elitistas ou marxistas será equivocada e improfícua. Intenta-se, de
forma parcial, fazer incursões no pensamento elitista e promover uma
diferenciação teórica da epistemologia de Ortega com relação aos
pensadores Mosca, Pareto e Michels.
175
Teoria das elites: sociedade de massa x pensamento orteguiano
I
Mosca, pensador italiano, autor de várias obras, dentre as
quais se destaca A Classe Dirigente, publicada em 1896, foi um teórico
elitista, que compreendeu a sociedade por meio de duas classes, a
saber: classe dirigente e classe dirigida. Uma espécie de lei natural, isto
é, uma observação histórica em que se evidenciam, desde os
primórdios, uma minoria que governa e a maioria que é governada. Na
perspectiva do autor, a divisão é natural e se faz sentir ao longo da
história, pois sempre existiu uma classe para dirigir e outra para ser
dirigida na sociedade. A tal respeito, Mosca escreve “em todas as
sociedades – desde as parcamente desenvolvidas, que mal atingiram
os primórdios da civilização, até as mais avançadas e poderosas –
aparecem duas classes de pessoas: uma classe que dirige e outra que é
dirigida” (1999, p. 51).
A discussão basilar é a permanência dessa configuração
entre governantes e governados, em que os governantes serão sempre
a minoria – conjunto de indivíduo de capacidade intelectual, moral ou
mesmo hereditária das aristocracias. Sobre isso, Mosca afirma:
“Sabemos que em nosso país, qualquer que seja ele, a direção dos
interesses públicos está em mãos de uma minoria de pessoas
influentes, direção essa à qual, voluntária ou involuntariamente, a
maioria se submete” (1999, p. 51). Porém, n~o é verdade que, para
Mosca, a minoria é sempre herdeira da aristocracia, pois existem
outros elementos que compõem a classe dirigente. Segundo o autor,
ainda que a própria história tenha demonstrado que as minorias
advêm da hereditariedade, não é correto sustentar que se trata de uma
realidade imutável. Isso porque é comum em qualquer movimento a
organização de uma classe dirigente que não necessariamente tenha
um vínculo com a aristocracia hereditária, pelo contrário, a classe
dirigente se constitui com a organização. Nessa perspectiva Mosca
afirma:
Finalmente, se tivéssemos de sustentar a idéia dos que afirmam que a influência do princípio de hereditariedade na formação das classes dirigentes é única e exclusiva, seriamos levados a uma conclusão parecida com a que fomos levados pelo princípio
176
evolucionário: a história política da humanidade deveria ser bem mais simples do que é. Se a classe dirigente realmente pertencesse a uma raça diferente, ou se as qualidades que a habilitam ao domínio fossem transmitidas primordialmente por hereditariedade orgânica, é difícil ver como, uma vez formada, a classe poderia declinar ou perder o poder (1966, p. 67).
Portanto, a ideia de uma classe dirigente é tão presente para
Mosca que, de acordo com ele, mesmo que a massa resolva, por meio
de uma rebelião ou revolução, tomar o poder, haverá, dentro da massa,
a formação de uma minoria para dirigir a sociedade, pois é impossível
que não exista uma minoria na condução de qualquer organização
humana. A esse respeito afirma:
[...], supondo que o descontentamento das massas conseguisse depor uma classe dirigente, inevitavelmente, como mostraremos mais adiante, seria necessária outra minoria organizada no seio das massas para executar as funções de uma classe dirigente (MOSCA, 1966, p. 53).
A discussão ora apresentada possibilita a divisão da
sociedade, bem como a necessidade de uma minoria, para assegurar os
destinos da sociedade, e esta, independente da hereditariedade,
configura-se por meio da organização de indivíduos que precisam
comandar a sociedade.
A tese da classe dirigente sustentada pelo autor corrobora
com uma divisão entre os que governam, a minoria, e os governados,
as massas, para o bom funcionamento da sociedade. Para Mosca,
nunca, na história da humanidade, houve uma sociedade que não
estivesse dividida entre a minoria que dirige e a massa que obedece.
Esta é a lei que rege a humanidade. Porém, ainda que tenha sido a
teoria em discussão no momento de formação intelectual de Ortega,
este, no que diz respeito à configuração da minoria como classe
dirigente, não corresponde à leitura de Mosca, pois a sociedade,
segundo o autor espanhol, não é governada pelas minorias, pelo
contrário, a massa na contemporaneidade é que conduz e determina
os destinos da sociedade.
A influência do pensador italiano se evidencia no
pensamento de Ortega quando se trata de compreender o fenômeno
visual que se fazia presente na sociedade contemporânea – as massas.
177
As observações que fazem os teóricos mencionados partem da
realidade histórica do momento, mas ambos buscaram a
fundamentação de suas teorias na própria história, quer dizer,
observaram o passado e buscaram identificar a participação das
massas no processo político ao longo dos tempos.
Para Mosca, a massa tem um papel bem definido – obedecer
e legitimar uma minoria que nascera para o mando – mesmo havendo
mudança conceitual do que se entende por minoria ou elite no
processo de direção da sociedade. Para esse pensador italiano, é
notória a obediência das massas desde as primeiras civilizações. Já
para Ortega, as massas, no passado, obedeciam e sabiam de seu lugar
na sociedade, a saber, não participar de nada que era importante e
seleto às minorias. Mas na contemporaneidade, houve uma variação
histórica e o que se percebe é precisamente uma rebelião das massas,
uma espécie de homem gregário que resolveu aparecer e comandar a
sociedade. A alusão ao fenômeno que o pensador espanhol chama de
cheio ou aglomerado é a demasia da multidão despossuída de
singularidade. Nesse entendimento afirma:
[...] de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonista: só há coro (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 43).
Contudo, faz-se necessário observar o dissenso entre os
teóricos, no que diz respeito aos conceitos que cercam as suas teorias,
uma vez que eles se diferem à medida que vão discorrendo e
esboçando seu pensamento. Em relação à questão das massas, mesmo
que os argumentos de Mosca tenham influenciado a formação
intelectual de Ortega, o filósofo espanhol retoma o conceito com base
no que ele chama de qualitativo e não mais quantitativo, isto é, a massa
é o conjunto de indivíduos que se encontra no mundo sem condição de
pensar a sua realidade circunstancial por meio de sua própria
singularidade. De acordo com o autor de A Classe Dirigente, a massa é o
conjunto de indivíduos desqualificados intelectualmente e
desprovidos de poder na sociedade e que, por isso, servem apenas
178
para legitimar o exercício da classe dirigente de forma pacífica e
harmônica – pois esta é a sua natureza.
Outro ponto de dissenso entre esses teóricos se apresenta na
medida em que compreendem o surgimento e a formação das
minorias: em Mosca, a minoria está diretamente associada à riqueza,
pois riqueza produz poder. Assim, ele compreende a minoria como a
classe abastada da sociedade que detém o monopólio da produção
econômica, cultural e política. Mesmo que, no passado, o domínio e a
predominância de uma classe sobre outra tenham ocorrido pelo uso da
violência ou coisa do gênero, hoje, o domínio que uma minoria exerce
e dirige a sociedade se faz por meio da riqueza. Nessa perspectiva,
assegura Mosca: “A riqueza, e n~o o valor militar vem a ser a função
característica da classe dominante: as pessoas que dirigem são os ricos
e n~o mais os bravos” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 59). A minoria1 é
definida pelo autor como a classe que dirige a sociedade.
Além disso, nunca houve ou mesmo haverá um governo de
massa, pois sempre existirá a constituição de uma minoria preparada
para exercer a direção da sociedade – pensa Mosca. Cabe notar,
todavia, que mesmo havendo a influência do debate em torno da
história das idéias deste autor na elaboração teórica de Ortega, é
possível perceber o seu distanciamento para com a teoria elitista
esboçada por Mosca, quando o filósofo espanhol não pensa a condição
de massa associada diretamente a uma questão de natureza.
A discussão se orienta pelo aparecimento desordenado das
massas no cenário político e social, isto é, o que se observa na
contemporaneidade é “[...] o advento das massas ao pleno poderio
social” (ORTEGA, 11987, p, 41). Para Ortega, as massas se constituem
num fenômeno contemporâneo, ou mesmo moderno, e não algo trans-
1 A idéia de minoria é associada à direção da sociedade, ou seja, só é possível o
desenvolvimento de uma sociedade por meio de uma minoria que se configura
segundo o autor: “No entanto, além da grande vantagem decorrente do fato de
serem organizadas, as minorias dirigentes são usualmente constituídas de tal
maneira que os indivíduos que a constituem conferem certa superioridade material,
intelectual e mesmo moral; ou então são herdeiros de indivíduos que possuíram
tais qualidades. Em outras palavras, os membros de uma minoria sempre possuem
um atributo, real ou aparente, que é altamente valorizado e de muita influência na
sociedade em que vivem” (MOSCA, 1966, p. 55). Aqui é visível uma diferença
capital entre Mosca e Ortega: para aquele, a minoria é quem dirige a sociedade, já
para este, a minoria deveria dirigir a sociedade, mas quem assume a direção da
sociedade é justamente a massa que se rebelara contra a minoria.
179
histórico. Esse conceito orteguiano distancia-se da concepção de
Mosca e permite pensar a compreensão política do século XX e,
também, perceber que o “elitismo” do pensador espanhol é mediado
por uma crítica ao desordenamento que a vida moderna cria em
termos políticos, levando, por exemplo, ao fenômeno da massa tanto
da direita fascista, quanto da esquerda leninista com a noção de
ditadura do proletariado.
Vê-se que a discussão apresentada anteriormente origina-se
de uma observação, também, histórica e visual. Ortega difere de Mosca,
no que diz respeito às classes dirigentes ou minorias, quanto a sua
formação que, segundo o espanhol, não se configura pela riqueza, quer
dizer, ainda que os ricos estejam no seio da minoria, não significa que
eles sejam a representação ideal desta categoria, uma vez que riqueza
também é condição de massa, na medida em que esta não produz
vitalidade nos indivíduos a ponto de transvalorar2 as condições
materiais em perspectivas de vida finita e histórica. O expediente que
Ortega percorre é conceitual, político e sociológico, já apresentado
anteriormente, e, por isso, sua contribuição e inovação fazem-se
justamente pelo caráter de singularidade e vitalidade que deve
assumir cada indivíduo na passagem da massa à minoria, pois a noção
de massa e minoria é cultural e não de natureza.
A discussão, ora ensejada, não é solipsista, pois Mosca
elaborou análise histórica para discorrer, ao longo dos tempos, sobre a
divisão da sociedade em duas classes já mencionadas. Ademais, o
autor estuda como se constroem as minorias e, para isso, faz um
passeio entre as questões da religião, da hereditariedade e até das
lutas militares para apontar como a riqueza, na sociedade moderna,
configura-se como fonte de poder e dominação das massas, a
verdadeira constituição das minorias.
A inclusão desse pensador, expoente do pensamento político
do século XIX, neste debate é para que se perceba sua influência e
motivação na elaboração intelectual de Ortega, ainda que este efetue
uma leitura diferenciada do que Mosca denomina de classe dirigente.
2Esse conceito é utilizado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)
para demonstrar como é possível a destruição, a inversão e a criação de novos
valores. Ortega segue o mesmo expediente na medida em que discute a mudança
de perspectiva de sociedade por meio do homem especial.
180
Todavia, mesmo com o deslocamento conceitual que faz Ortega, é
necessário que se considere que ele partiu, a priori, da reflexão que
faziam os teóricos da sociedade de massa.
II
Vilfredo Pareto (1848-1923) é classificado como teórico
elitista e expoente da teoria da sociedade de massa. A sociedade é,
segundo Pareto, dividida em duas classes sociais: de um lado, a elite e,
do outro, a massa. Nesse sentido afirma o pensador: “Quer certos
teóricos gostem ou não, o fato é que a sociedade humana não é
homogênea, que os indivíduos são física, moral e intelectualmente
diferentes” (1966, p. 71).
De acordo com essa reflexão, os homens não são iguais e, por
isso, precisam e devem se organizar de forma diferente. Para este
teórico é de fundamental importância que se tome a sociedade como
um complexo sociológico de diversas faces e que, portanto, para
compreensão da questão social e política é necessário pensar a
categoria dos que mandam e a dos que obedecem na sociedade
moderna. Esta relação, segundo o autor, é natural. E por isso não se
pode postular a sociedade como deveria ser, mas, antes de tudo, como
de fato é a própria sociedade e sua divisão social. Nesse sentido,
adverte Pareto:
O mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois extratos – um estrato superior, que usualmente contém os dirigentes, e um estrato inferior, que usualmente contém os dirigidos. Esse fato é tão óbvio que sempre se fez presente nas observações mais superficiais, acontecendo o mesmo com a circulação dos indivíduos entre os dois estratos (1960, p. 76).
Ortega persegue o mesmo caminho de Pareto e não aceita
que se tome como verdade absoluta a igualdade dos indivíduos,
mesmo porque eles são, pela sua própria formação humana,
diferentes. O problema é que, segundo o pensador espanhol, desde a
revolução francesa, os intelectuais liberais defendem o nivelamento
dos indivíduos de acordo com a noção de igualdade e liberdade. Com
isso, perdem-se a singularidade e a particularidade de cada indivíduo
181
na formação de sua história circunstancial, bem como a constituição de
uma sociedade nobre por meio do esforço contínuo de cada sujeito.
Com relação à divisão da sociedade, Ortega pensa segundo a
compreensão cultural e, assim, coloca de um lado as massas, e do
outro, as minorias. Já para Pareto, a elite se divide em duas categorias,
a saber: elite governante3 e elite não governante. E quando este autor
trata de elite, ele se refere a uma classe que manda e dirige a
sociedade. Esta é que determina as forças de produção e dominação da
própria sociedade. E o que resta desta divisão é justamente, segundo
Pareto, um extrato inferior de sociedade, o que hoje se pode chamar,
baseado na divisão proposta pelo pensador, de massa social.
Pode-se afirmar, sem os contrastes teóricos, que há uma
mobilidade nas elites em Pareto, uma circulação de elites. Nesta
perspectiva, Pareto afirma: “As aristocracias n~o perduram por muito
tempo. Quaisquer que sejam as causas, é um fato incontestável que
depois de certo tempo elas morrem. A história é um cemitério de
aristocracias” (1996, p. 77). Mas a mobilidade não é social, pois o
extrato inferior da sociedade não pode formar uma elite. O que ocorre
segundo este pensador é justamente uma circulação de aristocracias.
Mas a sociedade sempre viveu e viverá sob o comando de uma
aristocracia que se renovará e se substituirá.
As observações de Pareto partem de uma análise histórica,
para ele, só por meio de uma aristocracia autêntica é possível o bom
desenvolvimento de uma sociedade. Porém, o pormenor é que ocorre
uma circulação de classes, bem como o ajuntamento de pessoas em
torno do poder que n~o é mais possível falar de “puras aristocracias”.
Caso não ocorresse o ajuntamento, a história da humanidade seria
outra, poder-se-ia falar de perfeição de sociedade.
3 A discussão das elites é, basicamente, uma temática dentro da sociologia de
Pareto. Raymond Aron, na obra As Etapas do Pensamento Sociológico, faz uma
reflexão ampla em torno da sociologia de Pareto e acrescenta a questão dos
“resíduos” e “derivações” para, posteriormente, compreender a análise da
sociedade que faz Pareto. Ainda que a discussão que se pretende não é de
dessecamento dos conceitos paretianos, mas antes de tudo, estabelecer uma relação
possível de consenso e dissenso com o filósofo e político Ortega. Vale uma leitura
da conceituação das ações humanas lógicas e ações humanas não-lógicas que Aron
faz da sociologia de Pareto. Com relação a precisão de elite governante e não
governante é uma construção de hierarquia dentro dos possuidores do poder que se
denominam de elite.
182
Ortega parte da discussão do momento, que era
compreender a participação das massas no processo político para, a
partir daí, delinear uma nova proposta de política para sociedade
espanhola. Mesmo sabendo que o filósofo espanhol difere de Pareto,
em relação ao conceito de aristocracia, é importante considerar a
discussão apresentada por este, pois suas análises apontam para um
problema que era visível no século XIX – a ascensão das massas ao
poder social.
Esse caráter sociológico de Pareto permite compreender a
formação dicotômica da sociedade, pois, segundo ele, as aristocracias
não são eternas e, por isso, a humanidade é justamente, na perspectiva
de Pareto, um cemitério de aristocracias. A sociedade é semelhante a
um organismo vivo e, como há o fluxo sanguíneo para garantir a vida,
assim também há a circulação das elites, sem a qual é impossível que a
sociedade sobreviva. E quando isso não ocorre ou se dá de forma lenta,
a sociedade se desestrutura e sobrevêm a violência e o caos social.
É premente apontar a descrença com relação aos
movimentos socialistas, ou ainda, o governo de massas. Uma revolução
social, no entendimento de Pareto, nada mais seria do que a
substituição de uma elite por outra, de formação diferente, mas, no
fim, nunca haveria o governo de massa ou uma revolução socialista,
pois se forma no centro do poder uma minoria que assume o governo
e, conseqüentemente, o poder. E tudo não passa, segundo Pareto, de
discurso para insuflar o coração das massas no sentido de tomada de
poder e sua distribuição.
A discussão da teoria da sociedade de massa e o debate
político que os teóricos propõem permitem pensar, com base em um
momento histórico, a participação das massas. O século XIX vive a
euforia de uma política iluminista em que as massas são cada vez mais
motivadas a participar na sociedade e, por isso, crescem os partidos
políticos, os discursos em torno da democracia e agigantam os
movimentos sociais. É nesse contexto que teóricos disputam a
compreensão desta sociedade em movimento. A discussão que é
denominada de elitista propõe a restrição da democracia e nega a
noção de igualdade no processo político para todos os indivíduos.
Ortega é considerado muitas vezes como teórico elitista, mas
não se pode afirmar de forma categórica que o pensador espanhol
defenda a teoria elitista de sociedade. É preciso estabelecer uma
183
relação de diferenciação teórica entre Ortega e os pensadores da
sociedade de massa. Após a relação entre os pensadores, faz-se
necessário verificar o aporte teórico de cada pensador, para,
posteriormente, definir se, de fato, o pensador espanhol comunga das
idéias elitistas, ou se apenas usa parte do expediente para formular
sua discussão em torno das massas.
De acordo com a discussão apresentada, Ortega conceitua o
homem massa da seguinte maneira: “Portanto n~o se deve entender
por massa, nem apenas, nem principalmente, ‘massas oper|rias’.
Massa é o homem-médio” (1987, p. 44). Para o filósofo de Madrid é
preciso definir a tipologia de homem e em seguida o seu papel social,
pois, diferente de Pareto, as aristocracias são decadentes e estão
ligadas a uma noção de liberalismo equivocado, o que resulta em uma
sociedade deformada política e socialmente, isso porque não é visível
na esfera pública a presença das aristocracias autênticas.
É certo que tais pensadores compreendem a sociedade à luz
da heterogenia social e que, por isso, precisa de uma liderança para
comandar os destinos das massas e do espaço público. Mas esta
liderança é permeada por uma formação e pela origem aristocrática
dosada por um alto grau de superioridade. E esta é, segundo Pareto,
uma realidade que ninguém compreende – a sociedade não é
homogênea, ou seja, há uma relação de superioridade e inferioridade
na humanidade.
Ortega corrobora com esta idéia, mas não a postula como
Pareto, ou seja, para ele, há o caráter heterogêneo na sociedade, mas
não significa que se trate de uma posição natural. Esta heterogenia é
cultural e depende das vontades de cada sujeito envolvido no processo
circunstancial, o que não caracteriza uma relação de superioridade e
inferioridade entre os indivíduos. Entretanto, a questão corresponde a
tipologia de homem denominada homem-especial4 e homem-massa.
Quer dizer, a heterogenia é patente, porém não é natural, mas cultural,
pois depende das escolhas que cada indivíduo passa a executar em seu
meio social.
4 Não se pode tomar como homem-especial o burguês, ou ainda, o sujeito-elite que
preconiza a teoria da sociedade de massa. Este sujeito se percebe como finito e
histórico e, por isso, tem a responsabilidade de transformar a sua circunstância em
espaços melhorados para o bem comum.
184
III
Michels, sociólogo alemão era de família burguesa o que lhe
possibilitou viajar e conhecer outras culturas, mas foi na Itália, em
contato com os socialistas, que ele se tornou, em 1902, socialista. De
volta à Alemanha, aderiu à social- democracia e se tornou militante no
período de 1903 a 1907. Como teórico e militante, aproximou-se da ala
esquerdista do partido e, ainda, estabeleceu relações com o grupo
anarco-sindicalista. Mais tarde rompeu com a estrutura partidária da
social-democracia, denunciou a falta de democracia no interior do
partido e, também, apontou o uso em demasia do poder pela classe
dirigente.
É consenso entre os historiadores que Mosca, Pareto e
Michels são os fundadores da teoria da sociedade de massa ou, como é
também denominada, Teoria das Elites. Michels faz uma análise
sociológica dos partidos políticos e aponta a presença de elite no seio
de partidos políticos de esquerda. A obra capital deste pensador é
Sociologia dos Partidos Políticos, publicada em 1911, que provoca um
furor nos partidos políticos e de forma especial nos partidos
socialistas. Adverte-nos o autor na obra citada: “A organizaç~o tem o
efeito de dividir todo partido ou sindicato profissional em uma
minoria dirigente e uma maioria dirigida” (MICHELS, 1982, p, 21). H|
um detalhe importante em relação a Michels e os demais teóricos
elitistas: não se trata simplesmente de um teórico que faz uma análise
histográfica neutra, mas de um militante que se decepcionou com a
social-democracia, por isso sua observação é mais do que uma teoria
como fizeram Mosca e Pareto. Sua percepção parte da concretude de
um partido socialista. Não se pode, entretanto, tomar a leitura da obra
Sociologia dos Partidos Políticos como referência científica na questão
dos partidos políticos ou mesmo da democracia, pois seus escritos são
determinados por motivações particulares.
Contudo, mesmo sendo uma obra que nasce da decepção de
um militante esquerdista, é possível aproveitar suas observações no
que concerne à teoria da sociedade de massa, basta citar que ele
apresenta uma questão de bastante relevância: a manipulação política
de uma classe que controla e dirige. Segundo Michels: “(...) a massa se
deixa sugestionar facilmente pela eloqüência de poderosos oradores
populares” (1982, p. 17). Vê-se, segundo o autor, uma massa que se
185
deixa seduzir e que, por isso, legitima o discurso de democracia e que,
no fundo, não passa de manobra política de uma classe que dirige o
partido e, em proporções largas, dirige a sociedade. Cabe considerar
que Michels se decepciona com o modelo de democracia e assegura
que, no processo democrático, as massas são úteis apenas na escolha
de seus dirigentes e que não há outro papel para elas após o sufrágio, a
não ser o de serem dirigidas. Assegura também que, cada vez mais, é
necess|ria a presença de chefes no processo político: “A massa é
reduzida a contentar-se com prestações de contas sumaríssimas ou a
recorrer a comissões de controle” (MICHELS, 1982, p. 23). E o
pormenor desta teoria é justamente o desejo das massas de terem seus
chefes e aceitarem pacificamente seus destinos de serem dirigidas.
O debate que faz Michels encontra na obra Psicologia das
Multidões5 respaldo teórico para desenvolver suas teses sobre
democracia e participação popular. O autor de Sociologia dos Partidos
Políticos faz citações de fragmentos de Psicologia das Multidões para
elucidar o problema proposto em torno da democracia e da
impossibilidade das massas participarem da vida pública. Nesta
perspectiva é que Michels esclarece: “A multid~o anula o indivíduo, e,
desse modo, sua personalidade e seu sentimento de responsabilidade”
(1982, p. 17). A questão é que, segundo este autor, a sociedade,
semelhante ao partido, dispõe de multidão, e não de indivíduos, quer
5 Gustave Le Bon (1997), teórico da sociedade de massa, na sua obra Psicologia
das Multidões, faz um diagnóstico da sociedade e atribui às massas a
responsabilidade de todo sofrimento social e político do mundo moderno e
acrescenta o desvio de personalidade dessa multidão que resolveu se rebelar e
participar das questões sociais e políticas. Ou seja, o pensador descola o foco dos
reais problemas sociais e políticos e atribui às massas a culpa dos problemas da
sociedade moderna. Tal pensador não consegue estabelecer uma conexão entre a
complexidade do mundo moderno e o advento da técnica e da fábrica como
causadores da crise social e política. Octavio Ianni faz uma análise da questão
sociológica das multidões e apresenta uma reflexão histórica do mundo moderno e
suas complexidades. Segundo ele, não se trata de uma questão meramente social
ou política, pois vários são os fatores que vão contribuir para as manifestações no
campo ou na cidade e conseqüentemente as revoluções sociais e políticas. Em
outros termos, não basta a classificação das massas como responsáveis pela crise
social e política, é preciso que se observem fatores sociais, econômicos, culturais e
religiosos no processo de construção de sociedade (Cf. IANNI, Octavio. A
Sociologia no Mundo Moderno. In: Tempo social. São Paulo: Editora da USP,
1989, p. 7-27).
186
dizer, a multidão não pensa, não dispõe de reflexão singular, por isso
se deixa sugestionar por promessas e discursos.
Ortega perfaz outro caminho. Reconhece a presença da
massa no processo político e entende que ela é violenta e destrutiva,
enquanto os teóricos elitistas esboçam uma sociedade em que as
massas seguem um destino definido que é o de serem dirigidas. Para o
pensador espanhol, o que ocorre é uma rebelião desse fenômeno
contra uma classe que deve dirigir os destinos da sociedade. A análise
de Ortega é de ruptura; não se trata de perceber o papel das massas no
cenário social, mas de coibir seu avanço na sociedade moderna, pois,
de repente, ela apareceu e assumiu o comando da sociedade. O que se
testemunha é justamente uma sociedade de massas “comandando”
uma sociedade moderna. Contra todos os teóricos elitistas, propugna
não haver uma elite governando a sociedade, o que há é a massa em
todos os lugares da sociedade.
Seguindo esse raciocínio, adverte o pensador espanhol:
“Agora, os povos-massa resolveram que aquele sistema de normas que
é a civilização européia caducou, mas, como são incapazes de criar
outro, não sabem o que fazer, e para preencher o tempo ficam dando
cambalhotas” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 170). Esta é a configuração
política da Europa. O homem massa não aceita o mando de uma
minoria qualificada e, ainda, quer mandar na sociedade, mas não sabe
como fazer isso. Dessa forma, passa todo o seu tempo destruindo os
ideais e valores que os antepassados edificaram com tanto sacrifício.
Mas, retomando aos teóricos elitistas mencionados, é possível
perceber nos três pensadores aspectos distintos e fundamentais em
relação à concepção de democracia, socialismo e participação popular.
A discussão apresentada por eles nasce de um período de intenso
movimento sócio-político que abalava as estruturas circunstanciais de
um regime decadente, o Ancien Régime. Estas reflexões surgiram como
decorrência da presença das massas no processo político e social e,
por isso, de certa forma, acabaram fortalecendo o antigo regime e
endurecendo os aparelhos ideológicos do Estado contra os
movimentos sociais e de massa. E como se não bastasse, tudo isso era
justificável como proteção da própria democracia.
Para os pensadores da teoria da sociedade de massa, a
importância era estruturar o debate em torno de duas classes sociais e,
para isso, precisavam determinar a atuação de cada classe pelo que se
187
entende por elite e massa, ou ainda, a relação entre ambas na
estruturação da sociedade e no seu bom desenvolvimento. Decerto que
Mosca, Pareto e Michels efetuaram leituras semelhantes entre si, todos
irão identificar a presença da massa na sociedade moderna e sua
característica essencial – garantir o poder a uma minoria. Faz-se
necessário considerar que cada teórico mencionado discorre de
maneira particular em espaços circunstanciais diferenciados e com
singularidades específicas.
A menção a eles é para que se compreenda o debate político
em torno da temática apresentada, mas, também, o caminho que
Ortega perfaz na compreensão de uma nova concepção política. O
filósofo espanhol observa, à luz dos conceitos de minorias e massas, a
qualidade dos indivíduos envolvidos no processo político, por isso os
denomina de massa e minoria sem qualquer relação com a noção de
quantidade ou multidão. Nesta medida, a discussão modifica a análise
da percepção que deram os seus antecessores ao problema conceitual
de “massas”.
À guisa da conclusão
A discussão apresentada não fora de compreensão política
com base na história da filosofia, pelo contrário, intentou-se promover
um debate estrutural que circundasse as histórias das ideias políticas a
partir da filosofia de Ortega já presente em outros autores
denominados de teóricos elitistas. Mesmo porque o filósofo espanhol
persegue o mesmo expediente dos teóricos elitistas, a saber:
compreender a sociedade de sua época e articular diagnóstico
conforme a especificidade que a realidade circunstancial reclama.
Entretanto, a compreensão orteguiana difere da dos demais
pensadores pela capacidade de repensar os conceitos de minorias e
massas e restabelecer seus significados por meio de uma lógica
própria que se configura na relação com outros conceitos perspectiva
e circunstância.
Ortega y Gasset reconhece o debate que fizeram os teóricos
ao logo da história e acrescenta que ele pretende provocar uma
reflexão que imbrica da questão conceitual e começa diferenciando o
conceito de massa dos teóricos elitistas, com base no que ele chama de
“qualitativo”. A massa não é o conjunto de trabalhadores, tampouco o
188
coletivo de miseráveis que vivem à margem da sociedade capitalista.
Nessa perspectiva, afirma que:
[...] Desse modo converte-se o que era apenas quantidade – a multidão – em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 44).
Vê-se uma preocupação com este novo fenômeno – a massa –
, que pode se desde uma pessoa ao seu coletivo e, ainda, sujeito que se sente como todo mundo e não dispõe de singularidade específica, ou seja, não atribui a si mesmo valores e que, por isso, vive como todo mundo. E o grande problema é justamente o nivelamento do homem moderno, que é massa, que orquestra por meio da violência em defesa de suas paixões e seus desejos. Com a descrição deste fenômeno, o autor denuncia o que acontecerá mais adiante, a barbárie do nazismo e do fascismo.
A discussão em torno da massa se inicia com a obra Espanha Invertebrada, publicada em 1921, que se divide em duas partes: a primeira, Particularismo e Ação direta, e, a segunda, Ausência dos Melhores. Segundo o autor, faz-se necessário apresentar à Europa a enfermidade que sofre a Espanha e, por conseguinte, a desintegração dos seus espaços públicos, isto é, não há na Espanha uma vértebra política capaz de reunir os homens em torno de um projeto grandioso de nobreza para o povo espanhol. Nesse sentido, afirma Ortega y Gasset: “Assim, quando uma naç~o se recusa a ser massa – isto é, a seguir a minoria diretora – a nação se desintegra, a sociedade se desintegra, e ocorre o caos social, a invertebraç~o histórica” (1959, p. 97). Como já apresentado, havia uma presença demasiada das massas no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de protagonista da vida política.
Contudo, do ponto de vista metodológico, a discussão tomou por base uma análise interna da obra A Rebelião das Massas, buscando compreender alguns dos seus conceitos e a relação entre eles para obtenção do mote político-filosófico em seus escritos, já que a discussão conceitual começa na obra As Meditações de Quixote, perpassa pela obra Espanha Invertebrada e será sistematizada e concluída nos escritos A Rebelião das Massas. Dessa forma, pretendeu-
189
se por meio da articulação conceitual, compor uma rede explicativa da teoria político-filosófica deste autor e sua importância no debate em torno da política. Simultaneamente, ampliou-se uma relação de Ortega com outros teóricos para formalização de um diálogo possível respeitando o consenso e dissenso entre os mesmos no que confere a singularidade teórica de cada autor.
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Sociologia Política. Riode Janeiro: Zahar, 1996.
NIETZSCHE, F. Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia
do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Tradução Marylene
Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
_____. España invertebrada. Madrid: Revista de Occidente en Alianza
Editorial, 2000.
PARETO, Vilfredo. As elites e o uso da força na sociedade. In: SOUZA,
Amaury de (org). Sociologia Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
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SOBRE OS AUTORES
Antonio Charles Santiago é professor da Universidade Estadual do
Paraná (UNESPAR-FAFIUV). Graduado em Filosofia, Especialista em
Educação, Cultura e Memória, Mestre em Ciências Sociais. Aluno do
Doutorado em Educação pela UFPR e bolsista da Fundação Araucária.
(E-mail: [email protected])
Armindo José Longhi é professor da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR) e da Universidade do Contestado (UnC). Graduado e
mestre em Filosofia pela UFSM. Doutor em Educação pela UNICAMP.
(E-mail: [email protected])
Claudio Cavalcante Junior, nascido em Niterói (RJ) no ano de 1981, é
professor de filosofia e antropologia da Universidade Estadual do
Paraná (UNESPAR). Graduado em Filosofia (2004) pela UFRJ e mestre
em Antropologia pela PPGA/UFF.
Giovane do Nascimento é professor da Universidade Estadual Norte
Fluminense.
José Maria Arruda é professor da Universidade Federal Fluminense.
Luiz Alberto de Boni é professor-pesquisador da Universidade do
Porto/Portugal. Foi professor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da UFRGS, onde foi Diretor da Unidade (1988-1992).
Presidiu a Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (1991-1998), da
qual foi um dos fundadores. Presidiu também a Associação Brasileira
de Estudos Medievais (2001-2005).
Samon Noyana é professor do Curso de Filosofia da Universidade
Estadual do Paraná (UNESPAR/FAFIUV). Graduado em Filosofia pela
UFRJ, mestre em Filosofia pela UFOP e doutorando em Filosofia pelo
PPFG/UFRJ.
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Sandro Luiz Bazzanella é doutor em Ciências Humanas pelo
Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH). Professor de
Filosofia da Universidade do Contestado.
Selvino José Assmann é doutor em Filosofia pela Pontificia Università
Lateranense – Roma. Professor do Programa de Pós-graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de
Santa Catarina (PPGICH).
Thiago David Stadler é doutorando do programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de
Estudos Mediterrânicos – NEMED.
Walter Marcos Knaesel Birkner é graduado em Ciências Sociais pela
FURB, mestre em História Política pela UnC e doutor em Ciências
Sociais pela UNICAMP. Professor da Universidade do Contestado
atuando nos cursos de graduação e mestrado.
Esta obra foi composta com tipografias Cambria 11 e impresso nas oficinas gráficas da Editorial Rotermund,
com papel off-set 75g e capa em papel Cartão Supremo 250g, acabamento Prolan.
Os livros da Editora LiberArs são impressos com papel oriundo de áreas de reflorestamento
planejado e de empresas ambientalmente responsáveis.