Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio

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Transcript of Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio

Comitê Científico Ary Baddini Tavares (UNIMESP) Daniel Nascimento (UFPI) Deyve Redyson (UFPB) Eduardo Kickhofel (UNIFESP) Eduardo Saad Diniz (USP, Ribeirão Preto) Jorge Miranda de Almeida (UESB) Marcia Tiburi (Mackenzie) Marcelo Martins Bueno (Mackenzie) Maria J. Binetti (CONICET, ARG) Patrícia C. Dip (UNGS/CONICET, ARG)

Editora LiberArs São Paulo

2012

Filosofia, política e transformação © 2012, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à Editora Liber Ars Ltda ISBN 978-85-64783-08-9 Editores Fransmar Costa Lima Lauro Fabiano de Souza Carvalho Revisão Ortográfica Patricia Magnani Revisão técnica Jasson Martins Editoração e capa Cesar Lima Impressão e acabamento Gráfica Rotermund

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

Bibliotecário Responsável: Cristiane Pozzebom CRB 10/1397

Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não-individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.

Foi feito o depósito legal.

Editora Liber Ars Ltda www.liberars.com.br

[email protected]

F488 Filosofia, política e transformação /Armindo José Longhi (organizador) – São Paulo, SP: LiberArs, 2012.

190 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-64783-00-3

1. Filosofia. 2. Filosofia política. 3. Secularização.

CDU 1:32

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................9 O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA POLÍTICA

Luis Alberto de Boni ..................................................................................................... 13 PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO

Giovane do Nascimento .............................................................................................. 29 CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL

José Maria Arruda ......................................................................................................... 47 A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua

Sandro Luiz Bazzanella / Selvino José Assmann ............................................. 63 TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: prelúdio à descentralização a partir da filosofia política moderna.

Walter Marcos Knaesel Birkner .............................................................................. 91 TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: do deliberativo ao agonístico

Armindo José Longhi ................................................................................................ 111 IRONIA E METÁFORA: esboço de um problema político do discurso filosófico

Samon Noyama ............................................................................................................ 127 A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL

Claudio Cavalcante Junior ....................................................................................... 143 CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO

Thiago David Stadler ................................................................................................. 159 ARRAZOADO ORTEGUIANO x TEORIA DAS ELITES

Antonio Charles Santiago Almeida ..................................................................... 173

Para José Fagundes

APRESENTAÇÃO

O livro, ora apresentado, é a reunião das conferências,

palestras e mesas redondas realizadas no IV Colóquio Filosofia, política e transformação, evento organizado pelo Curso de Filosofia, Campus de União da Vitória, Universidade Estadual do Paraná, realizado de 22 a 26 de agosto de 2011, na cidade paranaense de União da Vitória e financiado pela Fundação Araucária.

O objetivo principal do evento consistiu em discutir, no transcorrer da história do pensamento filosófico ocidental, as principais transformações nos conceitos, nas configurações e nos problemas abordados pela filosofia política. O que une os aqui reunidos é a preocupação central em pensar a dinamicidade do pensamento filosófico e suas implicações no mundo da vida sob a ótica dos problemas políticos específicos enfrentados pela sociedade em cada época.

A Filosofia, como um conhecimento preocupado com o desenvolvimento da sociedade, não percebe a história como destruição do passado. Procura recuperar a perda da referência histórica. Transformação é uma chave que abre as portas e nos permite espreitar, a partir do tempo presente, qual foi o caminho percorrido pelo pensamento filosófico, lançando novas luzes sobre as encruzilhadas e labirintos que nos cercam.

Quem nos abre a primeira porta é Luis Alberto de Boni com o texto O cristianismo e a secularização da política. O seu esforço teórico busca reconstruir historicamente o pensamento cristão, nos mostrando que é possível construir a teoria do estado leigo dentro do Cristianismo. O texto do professor de Boni, ao abrir a porta do pensamento cristão, auxilia aos que vivem no século XXI a entenderem a relação religião-política como dimensões convivendo no mundo humano. Para isso é necessário superar o lugar comum que exclui a convivência pacífica entre dogma religioso e estado laico.

Giovane do Nascimento, com o texto Paidéia aristotélica ou a teleologia política da educação, abre uma segunda entrada ao indicar diferenças substanciais nas concepções platônicas e aristotélicas, muitas delas relegadas ao esquecimento por outras interpretações. Afirma que em Platão não há lugar para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível imobilidade do mesmo. Enquanto em Aristóteles a iniciativa humana é central na busca da virtude

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necessária na polis, mesmo percebendo as dificuldades a serem enfrentadas: não é porque quero a virtude que tal desejo se realiza.

Quem indica o terceiro acesso é José Maria Arruda com o texto Carl Schmitt contra a democracia liberal. No início do século XX pensadores políticos criticam o pensamento liberal ao indicarem a existência, no discurso liberal, de substâncias metafísicas por trás do discurso, da semântica e da concepção de democracia. A enorme erudição de Schmitt acerca da história política e jurídica européia lhe permitiu afirmar que desde o início, a concepção moderna de Estado de Direito sempre esteve vinculada ao projeto político hegemônico da burguesia liberal. O objetivo da teoria política liberal é a neutralização da política e despolitização em favor de seus interesses econômicos e do seu conceito individualista de liberdade.

Sandro Luiz Bazzanella e Selvino José Assmann abrem um novo acesso a política contemporânea com o texto A máquina/dispositivo política: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua. O fio condutor é o conceito de biopolítica e sua manifestação contemporânea no estado de exceção. Utiliza as reflexões de Michel Foucault e Giorgio Agamben para analisar os campos de concentração como limite entre a bíos e a zoè entre o direito e o vazio do direito, entre o humano e o inumano, produzindo vida nua, vida destituída do ordenamento jurídico que lhe garante a condição de vida humanamente qualificada. Afirma que a partir da reflexão de Agamben pode-se dizer que o campo de concentração se reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de vigilância à que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão expostos.

Walter Marcos Knaesel Birkner, com o texto Tendências do Estado contemporâneo: prelúdio à descentralização a partir da filosofia moderna abre a discussão sobre o processo civilizatório, os sinais da morte e surgimento de instituições e suas conformações ao longo do tempo. Em especial, aborda o processo de descentralização numa das mais importantes instituições da trajetória do Ocidente, qual seja: o Estado. Argumenta a partir de uma leitura interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as ciências sociais e a história.

Armindo José Longhi, com o texto Transformação política: do deliberativo ao agonístico, reflete sobre o significativo desinteresse dos indivíduos pela política, observado principalmente no grupo composto pelas novas gerações. Discute o processo de aprendizagem presente na formação política do cidadão a partir das condições em que ocorre a

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identificação do sujeito com a prática política. A discussão é proposta a partir da teoria agonística e da teoria deliberativa.

Com o texto Ironia e metáfora: esboço de um problema político do discurso filosófico, Somon Noyama investiga como alguns elementos retóricos, a saber, a ironia e a metáfora, são apontados por Nietzsche como intrínsecos ao discurso da filosofia, seja seu uso feito de forma consciente, inconsciente, ou mesmo de forma reprodutiva, sustentando os argumentos de autoridade da tradição filosófica. Além disso, relaciona o uso desses dois elementos no discurso filosófico como sendo determinantes na formação dos valores mais importantes da cultura ocidental e, portanto, entendidos como forças ativas da formação cultural da humanidade.

A polissemia da ‘raça’ e seus desdobramentos políticos no Brasil, texto escrito por Claudio Cavalcante Junior, aborda a construção sociocultural do conceito de raça e discriminação racial ao longo da História do Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX. A discriminação racial, reconhecida em trabalhos acadêmicos a partir da década de 1950, é o ponto de partida para a formulação de soluções para os problemas raciais no Brasil. Segundo o autor, uma forma de solucioná-los é através de políticas públicas, em voga nos últimos anos. Tais políticas vêem gerando polêmicas, como é o caso de cotas de vagas para estudantes negros em universidades públicas.

Com o texto Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio, Thiago David Stadler discute a pesquisa histórica e se pergunta: como sair deste incômodo terreno sepulcral para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Responde que um dos possíveis caminhos é entender que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado; muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercê-la, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador.

O livro encerra com o texto Arrazoado orteguiano x teorias das elites de Antonio Charles Santiago Almeida. O autor discute os conceitos de “minorias” e “massas” { luz da filosofia política de Ortega y Gasset para o delineamento de um expediente político-filosófico. Com este objetivo, no primeiro momento, faz uma incursão nos textos orteguianos e, no segundo momento, coteja uma diferenciação entre o pensamento de Ortega y Gasset e dos teóricos elitistas, a saber, Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels.

O organizador

O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA

POLÍTICA

Luis Alberto de Boni

Universidade do Porto (Portugal)

Vou abordar um tema que pode ser estranho para muitos.

Trata-se de uma tentativa de reconstrução histórica, mostrando como

no pensamento cristão encontra-se embutida a noção de que existe

uma separação entre religião e política, isto é, de que se pode, dentro

do Cristianismo, elaborar a teoria de um estado leigo. Talvez alguém

pergunte: “Mas que interessa isso para a Filosofia Política do século

XXI?”. E eu respondo dizendo que o tema é brilhante, pois uma porç~o

considerável dos habitantes do planeta defende que a única lei a

imperar em uma sociedade é a sagrada, isto é, a sociedade deve ser

regida pelas normas da religião, não havendo, pois, um espaço

independente para a Política.

Uma longa História que se inicia na Palestina

O Cristianismo levava em si, desde as origens, uma

concepção nova das relações entre Estado e Igreja, na qual não se

propunha nem a mistura e nem a separação. Nesta concepção, nem o

imperador, ou o rei, se intitulava sacerdote; nem o papa ou o bispo

pretendiam o título real.

Pode-se dizer que tudo se iniciou com uma frase de Jesus,

quando, cavilosamente, perguntaram a ele se era permitido pagar

tributo ao imperador. Para responder, Jesus disse: ‘“Mostrai-me um

den|rio. De quem leva a imagem e a inscriç~o?’ Responderam-lhe: ‘De

César’. Ent~o lhes disse: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o

que é de Deus”’ (Lc. 20, 20-27; Mt, 22, 15-22; Mc. 12, 13-17).

Ora, Jesus não redigiu tratado sobre Política, mas, com essas

palavras, estava fazendo uma clara distinção entre a religião que

anunciava e os poderes públicos dos quais, aliás, era súdito. Ele estava

dizendo que há coisas que pertencem a César, isto é, ao poder

temporal, e há coisas que pertencem a Deus, por serem espirituais. E

com isso estava indicando o caminho a ser trilhado por seus

seguidores. Por aí seguiu o apóstolo Paulo que, duas décadas depois,

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escrevendo aos Romanos, e defendendo a ordem pública, dizia: “Todo

o homem seja sujeito às autoridades superiores, porque não há

autoridade que não venha de Deus (non est enim potestas nisi a Deo)”

(Rm. 13, 1). E, prosseguindo, dava a razão de ser da autoridade, que é

manter a ordem, podendo, para tanto, usar a violência.

Contudo, a comunidade cristã tinha consciência que há um

limite na obediência devida à autoridade, que não pode interferir no

foro íntimo, no âmbito das convicções religiosas. Isso se constatou logo

nos primórdios da Igreja, quando os apóstolos, após terem sido presos

pelo Grande Conselho dos judeus e proibidos de pregar, responderam:

“Importa obedecer mais a Deus que aos homens” (At. 5, 29). Pouco

mais tarde, Paulo pagou com a vida o fato de obedecer mais a Deus que

à legislação de César.

Com estes princípios, porém, o Cristianismo se tornou um

perigo político para o império romano, que jamais imaginara uma

religião que não fosse religião civil. Os cristãos diziam que seu Deus

não era representado por imagens e se recusavam a cultuar os deuses

do Panteon Romano, para o qual eram levadas estátuas das divindades

cultuadas pelos povos do imenso império. Para as atilidas autoridades

romanas, isso representava uma insubordinação política e um sinal de

possível rebelião, capaz de atingir as bases ideológicas sobre as quais

se erguera todo um mundo. Compreende-se assim como é que um

grupo de pacíficos indivíduos, súditos fiéis, sem o menor projeto de

tomar o poder, excelentes soldados quando chamados a defender a

pátria, passou a ser perseguido como inimigo de Roma e de suas

tradições. Santo Agostinho descreve muito bem esta situação ao narrar

a relação dos batalhões de cristãos com o imperador Juliano,

conhecido como o Apóstata. Diz ele que, quando o imperador ordenava

que o exército atacasse, os cristãos o obedeciam e mostravam-se como

intrépidos soldados. Mas quando mandava que seus comandados

oferecessem incenso às divindades, os mesmos soldados se recusavam,

afirmando que deviam obedecer antes a Deus que ao imperador.

Um dia, porém, o imperador se converteu e a religião cristã,

com Constantino, tornou-se uma das religiões oficiais de Roma. Poucas

décadas depois, com Teodósio, transformou-se na única religião do

império, sendo proscritas as demais. Para muitos, ante esses fatos,

parecia que o reino de Deus estaria próximo e que a Igreja teria dias de

paz e harmonia. Não havia mais separação entre o império e o

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Cristianismo: o imperador era cristão e os bispos se transformaram

em oficiais do império. Contudo, a realidade não correspondeu ao

sonho. O império continuou sendo império romano, por vezes bem

longe da pregação cristã. Citemos dois casos.

No ano de 390 houve um motim popular em Tessalônica, na

Grécia, no qual foi morto um oficial do exército. O imperador Teodósio,

na tradição romana de não admitir rebeldia, depois de tudo ter sido

acalmado, deu ordens para que num dia de espetáculo, ao qual só os

homens acudiam, as tropas cercassem o local e passassem todos pelo

fio da espada. Discordam os autores quanto ao número de mortos,

situando-os entre 500 e 7.000. Pouco tempo depois, voltando a Milão,

o imperador recebeu uma carta do bispo Ambrósio1 (o mesmo que três

anos antes, batizara Agostinho). Ambrósio fora oficial do império e

governada a região onde se situava Milão; sendo leigo, acabara

aclamado bispo de Milão. A carta se inicia com um elogio à

consideração que o imperador sempre tivera com ele, e segue com

uma justificação pelo fato de ter estado presente no dia do regresso de

Teodósio à cidade: o motivo é que ele estava sendo excluído das

reuniões da corte, e isso tinha como causa a mortandade de

Tessalônica. E ent~o surge a figura do bispo, dizendo: “Num caso como

esse é preciso fazer penitência perante Deus. E tu, imperador, não

terás vergonha de fazer aquilo que Davi fez e reconheceu, dizendo:

‘pequei contra Deus’”. E depois de elogiar o imperador, principalmente

por sua clemência, prossegue: “Com temor eu digo: n~o ousarei

celebrar a missa se tu estiveres presente. Se ela não é celebrada

quando se trata da morte de um só inocente, poderá sê-lo quando são

milhares os mortos? Eu digo: n~o”. A carta era datada de maio e

Teodósio, que pediu perdão ao povo na porta da Igreja, só foi aceito

aos santos mistérios no Natal daquele ano. – Cinco anos depois

Teodósio veio a falecer, sendo assistido por Ambrósio no leito de

morte. O elogio fúnebre proferido pelo bispo no dia do sepultamento

foi digno da estatura do último grande imperador romano do Ocidente.

1 AMBRÓSIO. Epistola 51; PL 36, 1160-1164. No presente trabalho limito-me a

uma bibliografia mínima e deixo geralmente de anotar as referências das citações.

Permito-me observar, também, que, por brevidade e devido à complexidade da

obra de santo Agostinho, não me detenho a examinar-lhe o pensamento, ele que,

sem dúvida, foi o principal formador do pensamento político da Cristandade.

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Tomemos mais um exemplo. Desta vez no Oriente. João

Crisóstomo, (que em grego significa “Jo~o Boca de Ouro”), assim

chamado pela sabedoria beleza de seus sermões, foi eleito patriarca de

Constantinopla. Ao assumir o posto, percebeu que era necessária uma

reforma interna no patriarcado e que também a moralidade pública,

principalmente da corte, não era das melhores, em grande parte

devido à avareza da imperatriz Eudóxia. Deposto por um sínodo

corrupto, foi trazido de volta por uma revolta popular. Permanecendo

o ódio da corte, pouco tempo depois foi novamente preso e exilado e,

em 14 de setembro de 407, ao ser transferido de um local de exílio

para outro, no caminho foi morto a pauladas pelos guardas, que para

tanto haviam recebido dinheiro.

Abrindo um parêntesis: cronologicamente, caberia examinar

aqui o pensamento de santo Agostinho, mas, para tanto, seria preciso

redigir outra conferência, pois ele sem dúvida, foi o principal formador

do pensamento político da Cristandade2.

Voltando ao tema: Outros casos poderiam ser apresentados,

todos eles mostrando o desencontro entre a autoridade do estado e a

religiosa. Atenhamo-nos aqui a um caso acontecido entre o papa e o

basileos, o imperador de Constantinopla. Diversos foram os pontífices

que se manifestaram sobre a relação entre o papa e o imperador, e

alguns deles, indo além dos fatos concretos, teorizaram a respeito. Por

2 Basta ler o livro XIX do De civitate Dei para constatar que Agostinho reconhece

a existência legítima da cidade terrena. Se ela não se pode fundamentar na justiça,

porque não existe verdadeira justiça onde não se tributa a Deus o culto devido,

contudo, pode-se definir o que vem a ser um povo [um estado] dizendo que ele “é

o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos

amados” (Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi

communione sociatus) (De civ. Dei, IX, 24). A cidade terrena “também goza de

certa paz própria, que não deve ser desprezada [...] Mas interessa também a nossa

cidade que dela goze neste mundo, porque, enquanto confundidas ambas as

cidades, também usamos da paz de Babilônia” (Diligit tamen etiam ipse quamdam

pacem suam non improbandam [...] Hanc autem ut interim habeat in hac vita,

etiam nostri interest; quoniam, quamdiu permixtae sunt ambae civitates, utimur et

nos pace Babylonis) (De civ. Dei, XIX, 26). Há um excelente livro a este respeito,

infelizmente esgotado há muitos anos: F. M. T. RAMOS. A Ideia de Estado na

Doutrina Ético-Política de S. Agostinho - Um Estudo do Epistolário Comparado

com o De Civitate Dei. São Paulo: Loyola, 1982. – A transformação do

pensamento de Agostinho nisso que se convencionou chamar de “Agostinismo

político” conta com um estudo clássico: H.- X. ARQUILLIÈRE. L’Augustinisme

politique. Paris: Vrin, 2. ed. 1955.

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trás disso tudo encontrava-se o césaro-papismo que se ia instaurando

no Oriente, isto é, a doutrina de que o imperador é também cabeça da

Igreja. Cabe citar o papa Gelásio I (492-496), um jurista, de origem

africana. Dirigindo-se ao imperador Anastácio, que com olhos de pouca

amizade se relacionava com o pontífice, este, chamando-o de ‘filho

glorioso’ lhe diz que: “na condiç~o de romano, amo, respeito e admiro

o príncipe romano; como cristão, almejo estar contigo na comunidade

de sabedoria e verdade [...]; mas como vigário da Sé Apostólica sou

obrigado a agir através de ensinamentos oportunos lá onde falta algo à

plenitude da fé católica”. E segue-se então o clássico texto Duo quippe

sunt, imperator auguste, quibus principaliter mundus hic regitur: “Dois

são, pois, augusto imperador, aqueles pelos quais o mundo é

soberanamente governado: a sagrada autoridade dos bispos e o poder

régio. Entre esses dois poderes, maior é o peso que recai sobre os

sacerdotes, porque eles deverão prestar contas, ante o juízo divino,

também pelos reis dos homens”3. Examinemos o texto, cuja

importância foi ressaltada, entre outros, também por Hannah Arendt.

O papa diz que são dois os que governam o mundo, mas governam de

modo diferente: um pela auctoritas, a autoridade; o outro, pela

potestas, o poder. A palavra ‘autoridade’, no sentido aqui empregado,

sequer possui correspondente na língua grega. Auctoritas indica o que

poderíamos qualificar de ‘poder desarmado’, ‘poder moral’; enquanto

a potestas se refere ao poder dotado de meios para usar a violência. No

império romano, o senado – poder supremo da república e do império

- possuía autoridade; enquanto os cônsules e os imperadores

detinham o poder. A seu modo isso se preserva em nossa tradição

ocidental: o parlamento, desarmado, possui a autoridade, cabe a ele

fazer as leis; enquanto o presidente da República, ou o primeiro-

ministro, possui o poder, cabendo a ele executar as leis. Gelásio

afirmava, portanto, que há uma divisão no modo de dirigir o mundo,

não cabendo ao sacerdote se imiscuir nas questões de administração

temporal, e nem ao príncipe se ingerir no que se refere à salvação,

devendo ele, porém, neste assunto, submeter-se à autoridade do

sacerdote.

Mas, no decorrer do tempo, houve por vezes uma grande

distância entre a teoria e a realidade. Aconteceu que o Império do

Oriente, enquanto ia se enfraquecendo, rumava também sempre mais

3 GELÁSIO. Epístola VIII. Ad Anastatium imperatorem; PL 59, 41-47.

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para o césaro-papismo. Concomitante com o esvaimento do poder do

basileos na Itália e no norte da África, fortificou-se o poder dos reinos

bárbaros na Europa. Entrementes, os pontífices romanos foram

percebendo que as tentativas de negociar com Constantinopla

tornaram-se pura perda de tempo. Mas a fragmentação dos reinos

bárbaros e a ausência neles de lideranças culturais, abriam espaço

para uma presença mais concreta do papado. Foi o que aconteceu com

o papa Gregório Magno (+ 604), que acabou agindo como o grande

líder do Ocidente. A correspondência enviada aos reis, a organização

de sínodos, o contato mantido com os bispos, a imposição de uma

liturgia única, a disseminação da Bíblia Vulgata, o uso do latim como

língua oficial de liturgia e de comunicação, transformaram-no em um

dos pais do Ocidente.

Este, aos poucos, se tornou uma unidade cultural, que ia da

Suécia à Espanha, determinada pelo Catolicismo, que lhe transmitia a

sensação de pertença a um governo monolítico ideal, a ser regido por

um imperador católico. Na Cristandade havia, pois, o papa e o

imperador, mas qual seria a relação entre eles no comando do mundo

cristão? Pode-se dizer que a teoria gelasiana da divisão dos poderes se

mantinha em pé, mas na prática sobrava espaço para muita discussão

a respeito da função do imperador na Igreja e do papa no império. O

que se constatou, muitas vezes, foi que o vazio de poder acabou

preenchido pelo mais apto. Assim, por exemplo, Gregório Magno agiu

como um quase-monarca ante os fracos reis de seu tempo. Dois

séculos mais tarde, o papa Silvestre III, na noite de Natal do ano 800,

coroou Carlos Magno como imperador do Ocidente; este, porém,

dentro de toda sua piedade cristã, tratou Silvestre e seus sucessores

como simples ministros do culto. Alguns anos após, morto o

imperador, seus herdeiros nem sempre conseguiram impor a vontade

aos pontífices e, por vezes, foram por estes repreendidos.

Nos séculos X e XI, por mais de uma vez o imperador

interveio no papado. Em outras situações, porém, os dois lados

mediram forças. Foi assim no século XI, quando da disputa pelas

investiduras, entre Gregório VII e Henrique IV, ocasião em que o papa,

tendo deposto o imperador, humilhou-o a implorar perdão, passando

dias sobre a neve, às portas do castelo de Canossa. Transcorreram os

tempos, e no início do século XIII, Inocêncio III, o último e maior papa

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da Cristandade, ainda se comportava, de fato e de direito, como o chefe

maior do Ocidente, depondo e entronizando reis e imperadores.

Mas, poucos anos após, constatou-se que o mundo mudara.

Na metade do século XIII os papas Gregório IX e Inocêncio IV

colocaram-se contra o imperador Frederico II, o Barbarossa, porém

nada, nem a excomunhão, foi capaz de removê-lo do trono. Décadas

depois, na passagem do século XIII para o século XIV, quando se

enfrentaram Bonifácio VIII e Felipe, o Belo da França, a realidade era

outra: a Cristandade cedia lugar a reinos independentes, como os da

França, Inglaterra, Portugal e Aragão; e do Oriente aportava a Política

de Aristóteles. O mundo não era mais o mesmo.

Pensando cientificamente a Política

Com a entrada no Ocidente da Ética, e principalmente da

Política de Aristóteles, recriou-se o que podemos chamar de Ciência

Política. Nesse empreendimento Tomás de Aquino tornou-se um

marco de referência. Os comentários dele às duas obras do Filósofo,

bem como os tratados por ele escritos sobre a Lei e a Justiça, na Suma

Teológica, e o pequeno texto De regno, trazem no bojo muitas

inovações que haveriam de marcar o pensamento político futuro.

Assim, por exemplo, ao contrário da tradição patrística, que afirmava

ser a autoridade sobre os homens fruto do pecado, Tomás, seguindo

Aristóteles, vai dizer que o “homem é por natureza um animal

político”, isto é, mesmo que n~o houve acontecido o pecado, os

homens, no paraíso, teriam alguém exercendo a autoridade, a fim de

dirigir vontades divergentes para um fim comum. E mesmo sem a

revelação divina o homem haveria de se organizar socialmente. Tomás

também insiste em que a autoridade reside no povo, que elege os

governantes, mas pode também destituí-los; que a lei humana se

fundamenta na lei natural, etc. Cito, enfim, uma frase dele, que nos

interessa de perto. Quando, no De regno, faz a distinção entre o reino

humano e o reino de Deus, que se realiza na Igreja, ele diz: “Para que as

coisas terrenas fiquem separadas das espirituais, o ministério deste

reino [divino] foi confiado n~o aos reis terrenos, mas aos sacerdotes”4.

Observe-se a frase “para que as coisas terrenas fiquem separadas das

espirituais”. Santo Tom|s est| dizendo que h| uma clara divisão na

4 TOMÁS DE AQUINO. De regno II, c. 3. Ed. Leonina, t. 42, p. 466.

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organização da vida dos homens: de um lado, os bens que se referem

diretamente a Deus e à religião, e esses são regidos pelo papa, os

bispos e o clero; do outro, os bens que pertencem aos afazeres da vida

em sociedade aqui na terra, e esses ficam ao encargo do príncipe.

Resumindo, em vista do presente trabalho, podemos manter

duas afirmações tomasianas: a) a de que as coisas temporais são

distintas das espirituais, e b) a de que pertence à natureza do homem

viver na pólis ou no reino, isto é: a vida em sociedade pertence à ordem

da natureza, não à da graça, e, por isso, mesmo antes da salvação por

Cristo os homens viviam em sociedade.

Tomás não foi um homem de gabinete, fazendo elucubrações.

Percebe-se em sua obra que não lhe é desconhecida a existência das

cidades-estados, como Veneza, Florença e outras; bem como dos

reinos independentes que se iam estruturando dentro do mundo

cristão. Porém, sua visão teórica, um tanto otimista, foi logo posta à

prova. Na virada do século XIII para o século XIV estalou o conflito de

poderes entre Filipe, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII. O rei

queria cobrar impostos do clero para sustentar a guerra que

enfrentava contra os ingleses; o papa afirmava que os bens da Igreja

não estavam sujeitos à tributação régia. Entre os defensores de cada

parte encontravam-se teólogos e juristas de valor, o que permite dizer

que foi este o primeiro debate ‘científico’ da Idade Média a respeito da

relação entre os poderes, pois pela primeira vez eram arroladas as

duas grandes redescobertas: Aristóteles e o Direito Romano.

Do lado pontifício, o próprio papa Bonifácio VIII era um

renomado jurista. Entre os textos que então redigiu encontra-se a

célebre bula Unam sanctam, na qual, confundindo a Igreja com a

cristandade, e afirmando que na Igreja não pode haver duas cabeças,

conclui dizendo que para a salvação é necessário submeter-se ao

Romano Pontífice.

O grande teórico foi, porém, Egídio Romano, bispo-primaz da

Aquitânia e antes ministro geral da Ordem dos Agostinianos. Egídio

fora aluno de Tomás de Aquino, mas seguiu por caminhos distantes

dos do mestre. Seu texto mais importante intitula-se De ecclesiastica

potestate5. Ele concorda com Tomás ao dizer que o homem tende por

natureza a viver em sociedade, mas não consegue manter a distinção

entre duas ordens das coisas. Por isso, sua visão de sociedade difere da

5 EGÍDIO ROMANO. Sobre o Poder Eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989.

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visão aristotélica, que é simplesmente ignorada. Depois, voltando-se

para o modelo neoplatônico, que explica o universo a partir de

emanações do Uno, Egídio repete a frase de Dionísio Areopagita: “É

uma lei da Divindade que, na ordem do universo, as coisas inferiores

sejam elevadas {s superiores passando pelas intermedi|rias”. Do

mesmo modo, pois, é lei da Divindade que as coisas superiores desçam

às inferiores através das intermediárias. Examinemos melhor esta

afirmação. Plotino ensinava que acima de tudo existe, desde sempre e

imóvel, o Uno (isto é, um único, como o nome define) e dele só

procede, desde sempre, um ente, o Lógos, e deste somente um outro, a

Alma do mundo, e desta as demais almas individuais, etc. Egídio toma

esse modelo metafísico e o aplica à política, para explicar o mecanismo

do poder, do domínio, da autoridade. Diz ele que a plenitude do poder

se encontra em Deus, e deste desce para a maior autoridade

constituída por Deus no mundo, que é o papa; e do papa ela passa aos

reis, e assim por diante, até o último patamar. Repare-se que desse

modo Egídio está negando algo aceito e defendido pelo Direito

Romano e pela tradição cristã que se fora formando: que o poder

provém do povo, ou, como diziam os juristas, o poder vem de Deus

para o povo, que escolhe aquele que será constituído como autoridade.

Egídio ignora a existência do povo.

Mais ainda: a função do poder eclesiástico não é a de

meramente transmitir o poder àquele que assumirá a autoridade civil.

É muito mais. O poder eclesiástico institui o poder civil e o julga,

podendo destituí-lo caso não aja corretamente. Neste mundo, o papa

possui a plenitudo potestatis, a plenitude do poder, o que significa dizer

que ele pode por si mesmo fazer tudo aquilo que faz através de causas

segundas. É o que acontece com Deus, que, por exemplo, faz com que o

homem, causa segunda, gere outros homens, mas ele, Deus, poderia,

mesmo sem o homem, colocar outros homens na existência. Se, pois, o

papa institui o poder civil, isso não significa que ele não possa agir sem

este poder. Pelo contrário, ele o institui porque se trata de um poder

inferior, que cuida das coisas inferiores, algo que não convém ao poder

espiritual que se deve voltar acima de tudo para as coisas sagradas.

Mas Egídio não para aí. Assim como aquele que se revolta

contra o rei, diz ele, perde tudo aquilo que o rei lhe concedera, do

mesmo modo também aquele que não se encontra na amizade de Deus

deixa de ser proprietário dos bens que Deus dá aos homens. Tomando

22

a Carta de São Paulo aos Romanos, onde diz que por Cristo, de modo

gratuito, fomos tornados justos (díkaioi) perante Deus, Egídio

acrescenta, na linha de Paulo, que essa justiça o homem recebe pelo

batismo. Logo, aquele que não recebe o batismo, não é justo perante

Deus, bem como não o é aquele que, após o batismo, peca gravemente

contra a lei divina. Ora, dissera Agostinho, na Cidade de Deus, que só há

verdadeira justiça naquela república onde Cristo é fundador e guia.

Egídio força essa afirmação e a acopla à noção de justiça, aliás usada

por Agostinho, e proveniente do Direito Romano, quando diz que

“justiça é dar a cada um o que é seu”. Portanto, n~o é justo aquele que

não dá a Deus o que é de Deus e, então, tal pessoa fica também privada,

de iure, de tudo aquilo que recebeu de Deus. Renascer pelo batismo

significa, pois, tornar-se herdeiro não só do reino dos céus, mas

também dos bens terrenos. Na visão de Egídio, portanto, a vida social

se reduz a seu aspecto teológico, e a afirmação de que fora da Igreja

não existe salvação (extra ecclesia nulla salus) se complementa

dizendo que fora da Igreja não há domínio ou propriedade (extra

Ecclesia nullum dominium). Os infiéis e os pecadores são, portanto,

possuidores injustos dos bens da terra, e a Igreja só tolera isso a fim de

evitar males maiores.

Se substituirmos o papa pelo rei, encontramos em Egídio

Romano uma teoria perfeita do absolutismo monárquico que se

prenunciava.

A reação às idéias oriundas dos círculos da cúria pontifícia

não se fez esperar. O texto mais importante proveio de um frade

dominicano, um tanto desconhecido: João Quidort, autor de uma obra

intitulada De regia potestate et papali6. Como bom dominicano, ele

segue os passos de Tomás de Aquino, mas vai além. Ele também diz

que o homem é por natureza um animal social. Mas Aristóteles diluía o

indivíduo na sociedade; Tomás o salvava introduzindo a noção de

pessoa, como algo intocável; Quidort, prenunciando Locke, mostra os

indivíduos em sua singularidade e independência, colocando o estado

a serviço dos interesses individuais.

Se o homem é por natureza um animal político, é possível

colocar um paralelo, contrapondo á natureza a sobrenatureza; ao

natural, o sobrenatural. E, com isso, temos duas ordens, provenientes

do mesmo Deus: a ordem da criação e a ordem da salvação. O governo

6 JOÃO QUIDORT. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989.

23

civil pertence à primeira, e todos os povos, também os que existiram

antes de Cristo, sempre tiveram autoridade política legítima; já o

governo eclesiástico situa-se noutro âmbito, tendo sido instituído por

Cristo.

Cada um desses poderes possui seu próprio âmbito de ação.

O religioso alcança todo o mundo, pois a palavra pode ser expandir por

todos os recantos. Já o secular se encontra limitado pelo alcance da

espada, isto é, o poder de um rei ou de um príncipe alcança até onde a

força coercitiva dele possa obrigar as pessoas. Essa afirmação traz em

seu bojo dois importantes pressupostos. O primeiro, o de que o poder

secular se caracteriza pelo uso da força. Não se trata de algo novo, pois

Aristóteles, o Direito Romano, Agostinho e Tomás – para citar os dois

mais importantes pensadores cristãos – já conheciam isso. Mas, nesse

momento, com Quidort e Egídio Romano, a força é trazida para o

núcleo da teoria do poder, onde permanecerá pelos séculos. Em

segundo lugar, com esse argumento está sendo relegada a noção, um

tanto ideal, de um santo império a dirigir o Ocidente. O poder

imperador se estende até onde alcançar a força coercitiva de seu

braço. Dali em diante, outro será o governante e, por isso, como então

se passou a dizer: “Cada rei é imperador dentro de seu reino”.

Quidort concorda com são Paulo e com a tradição cristã que

todo o poder vem de Deus. Mas, contra Egídio, vai dizer que todo o

poder promana de Deus para o povo, sem depender de intermediários.

O exemplo que ele apresenta é esclarecedor. Diz ele que o pater

familias tem em sua casa o mestre e o médico, sendo a função do

mestre superior à do médico, pois este cuida da saúde do corpo,

aquele, da saúde do espírito. Entretanto, o médico não depende do

mestre, mas se relaciona diretamente com o senhor. Do mesmo modo,

o poder secular se relaciona com Deus sem passar pela mediação da

Igreja. Além disso, não existe uma ligação direta que, partindo de

Deus, transmite o poder ao príncipe ou ao papa. O poder vem sempre

conferido de Deus ao povo, e o povo escolhe quem será a autoridade

dirigente. Isso vale também para o papa: Deus quer que a Igreja tenha

o papa a dirigi-la, mas não é Deus que apresenta o candidato, e sim o

colégio dos cardeais, representando todo o povo cristão. E assim como

o povo pode remover o príncipe que deixa de servir ao bem comum, do

mesmo modo os cardeais, ou o concílio, podem destituir um papa que

não sirva ao bem da Igreja. O sumo pontífice está longe, portanto, de

24

ser um chefe com poderes absolutos. Ele sequer é proprietário dos

bens eclesiásticos, dos quais é mero administrador em favor do povo

cristão. Muito menos, portanto, pode reivindicar o domínio sobre os

bens dos reis e dos indivíduos particulares.

Aristóteles dizia que o ideal do cidadão é viver segundo as

virtudes cívicas, virtudes essas que são apreendidas, descobertas, pela

razão, sem necessidade da fé. Quidort concorda com ele e acrescenta

que o ideal de vida do cristão é viver segundo as virtudes teologais,

reveladas por Deus. Dizendo isso, ele se mantém na linha de Tomás de

Aquino, pregando a separação entre as coisas espirituais e as

temporais, e, com lógica, defende que o estado é um fim em si mesmo e

tal fim é o vivere secundum virtutem, podendo-se, pois, conceber o

estado e organizá-lo sem partir de pressupostos religiosos, e nem por

isso ele deixará de ser um estado justo e verdadeiro.

Contemporâneo de Quidort foi o franciscano escocês João

Duns Scotus. Ele não redigiu algum tratado político, mas, em sua obra,

ao inquirir sobre a origem da autoridade e do poder fez uma leitura

inovadora, da qual convém citar um tópico, onde diz:

A autoridade pode ser de duas formas: a paterna e a política. A política também é dupla, residindo ou em uma só pessoa ou na comunidade. – A primeira, isto é, a paterna, é justa pela lei natural [...] Mas a autoridade política, que é autoridade sobre estranhos, quer resida numa pessoa, quer na comunidade, pode ser justa pelo consenso comum e pela eleição da própria comunidade. [Ela] se refere aos que residem juntos, embora não os unam laços de sangue ou de relações próximas. Assim, por exemplo, se alguns estranhos entre si uniram-se para edificar ou habitar uma cidade e constataram que não podiam ser bem-governados, se não tivessem alguma autoridade, poderiam, então, de comum acordo, admitir que sua comunidade fosse confiada a uma só pessoa ou a um grupo. [...] E esta autoridade política [...] é justa, pois com justiça pode alguém submeter-se a uma pessoa ou à comunidade naquelas coisas que não são contra a lei de Deus7.

Observe-se nesse texto, em primeiro lugar, que Duns Scotus

está defendendo o contratualismo: os homens se reúnem não por

7 Duns Scotus on the Will and Morality. Ord. IV, d. 15, q. 2. Seleção e tradução de

A. B. WOLTER.Wasington: The Catholic Univeristy of America, 1986, p. 314s.

25

necessidade de natureza, mas por conveniência. Noutro tópico ele

esclarece e diz – e Ockham depois repete –, que por natureza o homem

é somente um animal conjugal e doméstico. Em segundo lugar,

defende que quem leva os homens a se reunirem é a razão que Deus

lhes deu para se organizarem nesta vida. Não existe, portanto,

nenhuma influência de poder eclesiástico ou de princípios religiosos

para instauração do governo civil.

Por brevidade, não por negar-lhe a importância, limitamo-

nos apenas a mencionar o pensamento de Dante, manifesto em De

monarchia8. Cerca de uma década após Quidort e Scotus, e uma década

antes de Marsílio e Ockham, ele defende a não-dependência do império

ante a Igreja, por ser aquele anterior a esta e por estar colocado na

ordem da natureza, e não da graça. Mas cada uma dessas ordens

possui seu próprio fim e felicidade, chegando-se ao fim da primeira

pela razão; e ao da segunda, pela revelação. Opondo-se, então, às

doutrinas dos curialistas, diz: “Afirmo, ent~o que o poder temporal n~o

recebe do espiritual nem a existência, nem a faculdade que é a

autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples”9.

Cerca de 20 anos após Quidort e Scotus, quando do debate

entre o papa João XXII e Luís da Baviera, um médico paduano, que

chegou a reitor da Universidade de Paris, chamado Marsílio de Padua,

lançou um livro revolucionário, com o título Defensor pacis10. Já o título

é significativo e o autor explica o porquê. Ele quer defender o poder

civil contra aquele que perturba a paz, e tal é o papa com suas

pretensões sobre o poder temporal.

Marsílio toma as teorias aristotélicas de modo dogmático,

forçando, pois, o pensamento do filósofo grego, muito mais aberto à

possibilidade e à conjetura. E partindo de Aristóteles, aceitando como

sendo da natureza do homem a sociabilidade, inverte a leitura dos

curialistas e projeta um estado soberano, dentro do qual se enquadra

também o sacerdócio.

Tendo por pano de fundo, ao que parece, a vida das cidades-

repúblicas italianas, afirma ele que poder supremo se encontra no

conjunto do povo – ou na sua maior parte, a valentior pars. Cabe ao

8 DANTE ALIGHIERI. A Monarquia. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os

Pensadores, vol. VIII), 1973, p. 191-232. 9 Ibid., l. 3, c.4, p. 222,

10 MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997.

26

povo, nomear os que redigirão os projetos de lei, aprovar as leis e

eleger os governantes, bem como depô-los, se for o caso.

Assim como a polis do Estagirita possui seis classes de

pessoas, do mesmo modo o estado marsiliano conta com três classes

bem definidas e que poderíamos qualificar de dirigentes: o judiciário,

incluindo o que hoje chamamos de executivo, o exército e sacerdócio; e

três subalternas: agricultores, artesão e financistas.

O sacerdócio, considerado sob o aspecto teológico, destina-se

a ensinar aos homens a mensagem de Cristo e levar os homens à

salvação; na constituição da cidade, porém, ele deve seguir as

determinações da lei civil, cabendo ao clero principalmente a educação

do povo, ensinando-o a obedecer às autoridades. Os membros da

Igreja não possuem nenhuma forma de poder coercitivo. O papa possui

os mesmos poderes que qualquer outro sacerdote e está sujeito ao

concílio, sendo que este deve ser convocado pelo legislador humano.

Aliás, a dispensa de preceitos contidos no Evangelho só cabe ao

concílio ou ao legislador humano, jamais ao papa ou a algum bispo.

Além disso, compete ao legislador humano vigiar para que os

ministros do culto tenham os bens suficientes para viver, mas o clero

não pode exigir pagamento de dízimos. Já os religiosos, que prometem

pobreza, não podem reter bens supérfluos e nem reivindicá-los ante a

justiça e devem ser mantidos pobres pela autoridade.

Assim, Marsílio propõe uma sociedade civil que não se

encontra propriamente separada das coisas espirituais, mas que as

incorpora, emasculadas, à constituição do estado. Ele só não percebeu

que, ao negar a plenitudo potestatis ao papa, a estava transferindo ao

imperador e ao poder civil. Wyclif, umas décadas mais jovem do que

ele, leu-o e nele encontrou argumentos para defender o primado do rei

da Inglaterra sobre a Igreja.

Chegamos, enfim, em Guilherme de Ockham. Também ele,

como seu confrade Duns Scotus, não se dedicou ex-professo à teoria

política, mas, por causa das inúmeras disputas com o papado, devido

originariamente à questão da pobreza dentro da Ordem Franciscana,

acabou redigindo uma volumosa obra de grande alcance político. Cito

dele como referência o Breviloquium de principatu tiranico11.

11

GUILHERME DE OCKHAM. Brevilóquio sobre o Principado Tirânico.

Petrópolis: Vozes, 1988.

27

O teólogo Ockham, ao contrário de Marsílio, seu colega de

exílio, defende o primado do papa entre os bispos, como sendo de

instituição divina. Defrontando-se, porém, com o problema da

extensão da autoridade pontifícia, inicia dizendo que se o papa

possuísse a plenitudo potestatis poderia atuar ao arrepio da lei

evangélica, que é a lei da liberdade, como ensinava são Paulo. De fato,

se o sumo pontífice possuísse tal plenitude, poderia transformar em

escravos aqueles que a Escritura proclamou como livres, na liberdade

dos filhos de Deus. Ora, o papa sequer é senhor dos bens da Igreja, dos

quais é mero administrador, muito menos, portanto, será senhor das

pessoas. Indo além, e valendo-se da teoria nominalista, ele diz que a

Igreja – uma entidade de razão que ninguém jamais viu – nada mais é

do que o conjunto de todos os que crêem em Jesus Cristo, e a eles cabe

a direção suprema da Igreja. O modo ordinário de eles se reunirem é o

Concílio Ecumênico, no qual devem estar devidamente representados

não só os bispos, os clérigos – pois eles são apenas uma parte da Igreja

–, mas todos os cristãos, de cujos interesses se venha a tratar, sejam

eles clérigos ou leigos, homens ou mulheres, visto que, segundo a velha

tradição do Direito Romano, quod omnes tangit, ab omnibus probari

debet (aquilo que a todos interessa, deve ser tratado por todos).

Já com relação aos reinos, se residisse no papa a plenitude do

poder, ele poderia depor o rei da França e doar a coroa a outra pessoa,

como também poderia privar alguém de seus bens e atribuí-los a

outrem. Ora, o próprio Cristo, enquanto homem passível e mortal, não

teve tal poder, mas foi um obediente súdito do imperador, a quem

pagou tributo. E quando conferiu poderes a Pedro, nem mesmo lhe

conferiu todos os poderes espirituais que possuía, como o de conceder

a graça sem o batismo, de instituir novos sacramentos etc.

Os reinos, portanto, não são instituídos pela Igreja, pois

existiram desde que os homens julgarem que era conveniente viver em

sociedade (segue, pois, o contratualismo de Scotus). Diz ele a respeito:

“... as autoridades seculares, a saber, a imperial, a régia e outras

relevantes, são estabelecidas por Deus, não mediante a autoridade

pontifícia, mas através da autoridade dos homens, a qual receberam

não do papa, mas de Deus. Por isso, o poder real não provém do

pontífice, mas de Deus, por intermédio do povo, que dele recebeu o

poder para estabelecer para si um rei que o governe com vista à

28

obtenção do bem comum”12. Portanto, “compete à razão do homem o

dever de individuar a conveniência de instituir a autoridade, mas foi

Deus que deu ao homem a razão para procurar as coisas necessárias e

úteis para viver de modo ordenado e pacífico”13. A solução ockhamiana

é engenhosa: com ela salva, de um lado, o princípio de que todo o

poder provém de Deus e, de outro, a titularidade popular do poder,

pois, como ele observa, o império pertence àquele que confere ao

imperador o poder de fazer leis14.

* * *

Pode-se dizer que com Quidort, Scotus, Dante, Marsílio e

Ockham, e com as mudanças políticas devido ao surgimento de estados

independentes, a teoria da plenitude do poder papal e,

consequentemente, da dependência do poder civil ante o espiritual

perdeu seus fundamentos teóricos. Ela não desapareceu de um dia

para outro (contemporâneo de Marsílio e Ockham foi o curialista

Álvaro Paes15), mas suas raízes estavam minadas. O que despontava

então no horizonte eram as pretensões de plenitudo potestatis por

parte do absolutismo monárquico, que se valeu dos teóricos da Igreja

para, invertendo os nomes, tentar instituir uma forma de césaro-

papismo no Ocidente.

Permanecia, porém, no Ocidente o legado dos pensadores

medievais, graças ao qual era possível pensar em um estado laico, isto

é, montar uma teoria do estado que prescindisse do apelo aos dogmas

religiosos – o que não significava, necessariamente, supô-lo como anti-

cristão.

12

Pode um príncipe, c. 4, p. 98s.; I, 243. No Dialogus. (III, II, I, ed. Goldast, c. 26,

p. 899) a mesma ideia: "... porque, quando se diz que o poder imperial, e de modo

geral todo o poder lícito e legítimo provém de Deus, contudo, não só de Deus, pois

alguns provêm de Deus através dos homens, e tal é o poder imperial, que vem de

Deus, mas pelos homens". 13

A. GHISALBERTI. Guilherme de Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p.

286. 14

Dial. III, II, 1, c. 27, p. 899. 15

Cf. J. A. de C. R. de SOUZA. As relações de poder na Idade Média Tardia –

Marsílio de Pádua, Álvaro Paes e Guilherme de Ockham. Porto Alegre: EST

Edições, 2009.

PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO

Giovane do Nascimento

Universidade Estadual Norte Fluminense

O pensamento de Aristóteles manter-se-á em grande medida

ligado à tradição clássica e mais particularmente platônica,

concedendo à busca da virtude um lugar central de sua reflexão ética.

Talvez por essa razão – mas não apenas por ela, evidentemente –

Franco Cambi afirma que, no que se refere à reflexão sobre a paidéia,

sua obra pouco se distancia daquela de seu mestre:

A sua paidéia é um pouco a correção empírica do grande e

ousado modelo platônico, mas de maneira nenhuma uma refutação e

um modelo alternativo. Entre os dois modelos há mais continuidade do

que oposição ou diferença” (CAMBI, 1999, p. 93).

Mas essa posição – ademais corrente em certa tradição da historiografia filosófica – parece, no entanto, bastante extremada e injusta. Assim, nosso propósito será não somente examinar algumas concepções da teoria das ações em Aristóteles, suas elaborações e controvérsias, mas procurar demonstrar, desses conceitos, a força elucidativa que nos ajuda a pensar a formação humana.

O projeto aristotélico de formação, que, apresentado nos

livros VII e VIII da Política, encontra-se no cerne da discussão sobre a

pólis, deu-se por finalidade a realização do télos humano, a eudaimonía

(felicidade). Também sua reflexão sobre a ética concede à formação

humana um papel central na sua efetivação (ARISTÓTELES, 1997;

1985 a). Cabe enfatizar a singularidade da formulação aristotélica em

relação ao pensamento platônico – que Werner Jaeger, como outros

pensadores da educação, ignorou de forma sistemática e

conscienciosa, deslocando sua discussão para o espaço estrito e muitas

vezes hermético da filosofia.

E, de fato, de uma maneira geral, a filosofia de Aristóteles

consiste na construção de uma ontologia bastante rigorosa, que tem

como ponto de partida os entes em geral, voltando-se para o mundo

30

físico e para a lógica. Porém, diferentemente de seus antecessores,

desde Parmênides, Aristóteles insiste em levar em consideração os

modos de conhecimento instituídos no cotidiano da pólis, como o

conhecimento proveniente da experiência sensível e como a opinião,

liminarmente excluídos por Platão na medida em que constituem-se

em visadas contingentes e necessariamente particulares da realidade.

Assim, Aristóteles dialoga não só com toda a tradição anterior de

pensamento, como com o homem na praça pública, com o vulgo.

Sua filosofia evidencia, assim, a palavra humana sobre o ser,

diferenciando-se do discurso filosófico que, a partir de Platão, buscará

o ponto de vista do divino para falar das coisas humanas1. Ora, a

perspectiva humana introduz na multiplicidade do ser, que é sua

experiência cotidiana no mundo, e que Platão tentara evitar, ao

pretender falar de um lugar de onde, ignorando o contingente, se pode

admirar a unidade das essências. Ao recusar a metafísica platônica,

Aristóteles deve se haver com o caráter contingente da realidade, que

para ele é derivado da composição complexa entre matéria e forma,

sendo a primeira relacionada à contingência em função da constante

mudança da physis decorrendo daí a dificuldade de apreendê-la em

virtude do limite do olhar humano. A matéria a torna inapreensível,

uma vez que engendra a instabilidade ao seu conceito, impedindo uma

determinação, ou delimitação de uma forma ideal do ser.

Mas aquilo que foi duravelmente identificado à limitação da

experiência humana e do conhecimento que dela deriva diretamente,

incapaz de chegar às causas e princípios que constituem todo ser e

todo dever-ser, é convertido, no pensamento de Aristóteles, em

privilégio: somente ao humano, a ele e não os deuses, é dado um

mundo por descrever ou construir. A contingência do mundo, o desafio

1 Sobre essa tendência que marcará o pensamento ocidental em sua busca pela

objetividade científica, diz Arendt: “O problema da natureza humana [...] parece

insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido fisiológico em

geral. É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e

definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos,

venhamos a ser capazes de fazer o mesmo a nosso respeito: seria como pular sobre

nossa própria sombra. Além disto, nada nos autoriza a presumir que o homem

tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm.

Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um

deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um

quem como se fosse um quê” (ARENDT, 1987, p. 18).

31

imposto a cada instante pelo acaso exige desse indivíduo, em muitos

momentos, uma intervenção – o que não ocorre num mundo divino

regido pela necessidade, é em função da incompletude do mundo, ou,

pela insatisfação do humano que há a intervenção, diferente de um

mundo pleno, perfeito, acabado. Assim, dirá Aristóteles:

Os deuses não são nem justos, nem corajosos, nem liberais, nem temperantes, pois não vivem em um mundo em que tenham de fazer contratos, enfrentar perigos, possuir dinheiro ou moderar seus desejos (ARISTÓTELES, 1997, X, 8, 1178 b 9-18).

A contingência não se apresenta apenas como obstáculo ao

conhecimento, ou marca da limitação do saber humano; ela desperta a

atitude investigativa, o espanto ou admiração diante do caráter

misterioso de tudo que há. E abre a possibilidade para a iniciativa

humana. Nas palavras de Pierre Aubenque:

Sem a contingência, a ação dos homens seria impossível. Mas, sem a contingência, ela seria também inútil. […] a indeterminação do futuro é o que faz do homem o princípio; o inacabamento do mundo é o nascimento do homem (1986, p. 106).

A práxis humana só é possível em função das fraturas, ou do

inacabamento da realidade. Desse modo, o mundo se apresenta para

nós como algo a ser feito, indeterminado, confuso, carente de sentido –

o que nos impele a agir, a querer intervir, a significar a realidade.

Já aqui encontramos uma diferença substancial entre

Aristóteles e seu mestre, pois no pensamento platônico não há lugar

para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível

imobilidade do mesmo, face ao aparente fluxo das coisas. Além disso,

não há sentido em intervir sobre o mundo, na medida em que ele é

uma mera cópia imperfeita do mundo ideal. Assim, o querer humano

não é suficiente para a efetivação da realidade.

Em Aristóteles, pode-se dizer que a questão da iniciativa

humana é central, mas o filósofo percebe de saída as dificuldades a

serem enfrentadas: não é porque quero a justiça, ou a felicidade que

tais desejos serão realizados. A fórmula - desejo o bem, mas pratico o

mal, não tem sentido no universo platônico, onde o desejo é função do

conhecer: se conheço o bem, não posso querer o mal. Para Platão, a

32

alma já é portadora da virtude, necessitando do exercício dialético

para o reconhecimento do justo, do belo, da coragem etc. Para

Aristóteles, somente através do hábito pode-se chegar à virtude – que

não se encontra adormecida na alma humana, mas só ganha

visibilidade pela instituição pública que a comunidade efetiva. O

conhecimento de virtude não é, pois, suficiente; mas o mero desejo

também não basta: é preciso ainda que se manifeste a iniciativa

humana, sob forma de deliberação, condição sem a qual a ação não

poderá ser uma boa ação, ou seja, uma ação virtuosa. Na concepção do

estagirita, quem quer saber o que é a justiça deve olhar para o justo. O

frónimos ou o homem prudente é aquele capaz de deliberar com

prudência: contemplando as ações do virtuoso entendemos o que é

virtude. Segundo Leon Robin,

Nada lhe parece mais inútil do que a imaginação platônica de um Bem em si, fonte única do que é bom e verdadeiro. De que serviria ao tecelão, por exemplo – pergunta ele – que um tal bem existisse e fosse conhecido por ele? Alguém se tornaria melhor médico ao contemplá-lo? Por que o médico não tem em vista, evidentemente, a Saúde em si, mas a saúde do homem, ou para dizer melhor, a de tal homem em particular (1970, p. 40).

A noção de hábito ganha um sentido fundamental para a

concepção de formação, pois é a partir da introdução dos valores

instituídos e reconhecidos pela comunidade que se poderá tratar da

formação do indivíduo. É sob as bases da cultura instituída que a

educação estará fundada, e é à coletividade que cabe a decisão sobre a

melhor formação, já que só se pode deliberar sobre a integralidade dos

assuntos humanos, mas somente sobre aqueles que nos concernem –

nenhum lacedemônio delibera sobre a melhor constituição dos citas

(ARISTÓTELES, 1997, 1112 a 25). O papel concedido à cultura, aos

hábitos e costumes da pólis no exame da melhor formação para o

cidadão evidencia a ruptura com o sistema platônico, que buscava

deduzir a ação correta de um princípio absoluto e extra-social:

Aristóteles apóia a investigação sobre a boa ação na faculdade de

discernimento adquirida por um cidadão plenamente inserido no

contexto de sua polis, como disse Ernest Tugendhat:

Como é sabido, a capacidade de formular juízos morais corretos e concretos – de phrónesis – segundo Aristóteles, não é uma

33

faculdade intelectual livre (freischwebendes), mas depende da disposição afetiva adequada do ser humano que, por sua vez, remete a uma correta educação (1988, p. 47).

Isso não significa, contudo, que a ética aristotélica rompa

com a busca da areté proposta por Sócrates e Platão: mas, nela, o

ponto de partida é sempre a opinião (doxa), que seu mestre rejeitava

tão enfaticamente. Além disso, Aristóteles enumera também o acaso e

o caráter contingente da realidade como aspectos a serem

considerados na análise do agir no mundo. Não há, para os assuntos

que tocam à educação, verdades absolutas e apriorísticas; desse modo,

a teoria cede o passo aos bons hábitos, que são estampados nos

exemplos fornecidos pelos justos: Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre os temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. Porquanto o fato é o ponto de partida, e se for suficientemente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim; e o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade (ARISTÓTELES, 1997, 1125b 27-29).

A justiça é a ação praticada pelo justo, por aquele que

adquiriu a capacidade de bem deliberar: não seria essa uma petição de

princípio? Como saber se um homem é ou não virtuoso? Como

reconhecer se uma ação é ou não justa? O próprio Aristóteles irá

atentar para essa dificuldade, como bem observou Pierre Aubenque: […] Aristóteles se d| conta que a deliberaç~o, cujo conceito toma emprestado da prática política, não basta para constituir a virtude. Pois a deliberação não trata sobre o fim, mas sobre os meios, não trata do bem, mas sobre o útil, e a deliberação enquanto tal, pode ser colocada a serviço do mal (1986, p. 116).

A questão parece resultar da admissão do caráter

contingente e prático da virtude, que faria da ética uma ciência sobre o

acidente (AUBENQUE, 1986, p. 116): sem o apoio em um princípio

universal, como falar em ética? Para Platão, como sabemos, isso é

impossível: o discernimento das boas ações humanas é diretamente

deduzido da idéia de Bem – mas já então é impossível fornecer à ação

34

humana qualquer estatuto ontológico. Aristóteles, no entanto, insiste

em considerar a práxis, fazendo dela o próprio centro de sua ética. E,

se a práxis, consistindo forçosamente a cada vez em uma deliberação,

resiste ao método científico, tal como o concebia Platão, Aristóteles, ao

invés de afastá-la, buscará interrogar o próprio conhecimento

realizando uma teoria da ação: que tipo de conhecimento corresponde

à ética, e como defini-lo? […] ninguém delibera sobre coisas que não podem ser de outro modo, nem sobre as que lhe é impossível fazer. Por conseguinte, como o conhecimento científico envolve demonstração, mas não há demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis (pois todas elas poderiam ser diferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são por necessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte (ARISTÓTELES, 1997, VI, 1140 a 30-35).

O conhecimento prático não visa, pois, à determinação, de

uma vez por todas, de seu objeto, nem à produção de algo: trata-se de

um tipo muito particular de conhecimento, que visa à ação

(ARISTÓTELES, 1997, I, 1095 a 3).

Porque o mundo não se mostra acabado e perfeito, ele é um

mundo de relação, de analogias, de escolhas. A imperfeição do mundo

exige uma tomada de posição e, por conseguinte, uma ação: a práxis

humana arremata o que se apresenta como inacabado, diferentemente

das coisas naturais que, possuindo uma constituição imanente, deixa-

se conhecer em suas causas ou princípios. Mas a deliberação humana

não é, na concepção de Aristóteles, possível senão no intervalo que é

fixado pela própria natureza. Ela é, portanto, busca de meios para a

realização daquilo que já está dado, para a realidade humana, como

seu fim último. Sobre esse fim, que não pode ser conhecido

diretamente, não nos cabe deliberar.

Não há, portanto, uma formula geral de agir a partir da qual

se deduz mecanicamente o modo correto da ação. Aristóteles não

busca o absolutamente cognoscível, obedecendo a um modelo

geométrico de dedução das conseqüências, mas o cognoscível em

relação a nós (ROBIN, 1970, p. 41): “[…] as ações belas e justas, que a

política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião,

de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção

apenas, e n~o por natureza” (ARISTÓTELES, 1997, 1094 b 15).

35

A ação jamais pode ser dita boa em si mesma, mas sempre

em relação ao contexto em que se realiza; um ato considerado virtuoso

em um momento determinado pode não sê-lo em outras

circunstâncias. O cuidado que Aristóteles demonstra, ao descrever as

virtudes morais, em apresentar as circunstâncias e os indivíduos que

as praticaram é, pois, indicativo da inflexão que sua concepção ética

realiza sobre seu método, aqui, bastante distinto dos procedimentos

adotados em outros lugares de sua obra – como por exemplo, nas

discussões sobre a ciência nos Analíticos2. O mesmo pode-se dizer do

lugar que concede, em suas considerações, ao patrimônio de reflexões

que constitui sua própria cultura – diferentemente de Platão, que

despreza e omite tanto quanto lhe é possível a doxa3: Aristóteles viveu constantemente a doxa, reportando-se a ela (com a diaporética, a dialética, o justo meio-termo, e todas essas espécies de justezas e de justiças feitas), constituindo-a em sua nobreza, a ponto de a própria doxa ser, igualmente para nós, não mais, certamente, como uma autoridade legiferante e legitimadora, mas antes como fonte, conhecida ou não, das mais simples e das mais perenes constatações (CASSIN, 1999, p. 10)

O recurso aos exemplos, em que Aristóteles irá se basear

para fundamentar o que seja uma boa formação, revela igualmente o

valor concedido à opinião. Em sua investigação sobre aquela que é, não

a formação em sentido absoluto, mas a melhor formação em função

das circunstâncias, Aristóteles destaca a importância da escolha

(proaíresis), base para toda ação. A formação deve preparar o cidadão

2 Os Analíticos a priori e a posteriori pertencem ao conjunto de pequenos tratados

conhecidos como Organon (instrumental). São textos exotéricos, ou seja,

dedicados a publicação e com características propedêuticas para os discípulos do

Liceu. Os Analíticos a priori tratam dos raciocínios dedutivos e formais base da

lógica clássica e os Analíticos a posteriori, dos métodos científicos cujo

procedimento parte dos fatos para remontar as causas (aitia) primeiras que

explicam o fenômeno, esse procedimento (epagogé) será mais tarde denominado

indução. 3 Doxa aqui tem o sentido de opinião comum, no sentido aristotélico de partir de

algo aceito por todos, um bom exemplo é o procedimento apresentado por

Aristóteles quando trata do raciocínio dialético nos Tópicos, I, 100 b: “São, por

outro lado, opiniões geralmente aceitas aquelas que todo mundo admite, ou a

maioria das pessoas ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os

mais notáveis e eminentes”.

36

para deliberar sobre si, sobre a vida na polis e sobre a melhor maneira

de atuar na vida pública e na vida privada.

Desse modo, o conceito de proaíresis torna-se central no

pensamento ético de Aristóteles, que o distingue da deliberação. A boa

deliberação sem dúvida prepara a escolha que o homem prudente

realiza; mas, em Aristóteles, as duas não coincidem, como ocorre, por

exemplo, na ética kantiana. Em Kant, a ação moral baseia-se em um

imperativo categórico, revelando-se como uma ação racional pura, que

não é contaminada pela psicologia pessoal e pelos desejos. Em

contraposição a ela, a proaíresis aristotélica incorpora o desejo, que

tensiona o humano em direção aos fins e, portanto, à busca dos meios

mais eficazes para alcançá-los.

A deliberação adquire, assim, um caráter mais propriamente

técnico: o termo, que Aristóteles importa da vida política grega, traduz

um exercício que poderá servir tanto à virtude quanto à má ação.

Assim, conclui o comentarista,

A proaíresis é… o momento da decis~o, o voto que sucede { deliberação e que não é mais somente a manifestação da inteligência deliberante, mas da vontade desiderante, que intervém para fazer oscilar a deliberação, tanto quanto para fixar o fim (AUBENQUE, 1986, p. 121).

Como comenta ainda Aubenque, a concepção aristotélica de

deliberação implica no fato de que a boa escolha não se mede mais

pela retidão da intenção, mas pela eficácia dos meios (1986, p. 122).

Muitos críticos, a partir da modernidade, enfatizaram o caráter

dogmático que estaria subentendido nessa redução instrumental da

deliberação. No entanto, reduzir a ética de Aristóteles a esta aparente

contradição, ou questioná-la sob pretexto da liberdade da vontade

(AUBENQUE, 1986, p. 121), além do evidente anacronismo – que

antecipa para o mundo helênico a doutrina da responsabilidade e da

liberdade, baseada num sujeito autônomo e agindo em conformidade a

uma lei moral – implica em desconsiderar o quanto o abandono dos

modelos ideais lança Aristóteles no mundo da doxa e no desafio de

pensar o humano em relação às contingências e adversidades de um

mundo em constante mudança.

Como dissemos anteriormente, Aristóteles encaminha suas

investigações enfrentando a multiplicidade dos seres, ao invés da

37

solução de facilidade em que consiste a recusa da materialidade, da

contingência e das multiplicidades provenientes da realidade –

estratégia já utilizada por Parmênides e retomada por Platão que a

levou às ultimas conseqüências. Componente necessário do vivente4, a

matéria resiste à definição, não se deixa formular, mas se deixa moldar

pelos atributos acidentais a partir dos quais somente ela se dá a

conhecer: é forçoso, portanto, que o acesso ao ser só possa se fazer

pelos seus acidentes. Realiza-se assim, no mundo sublunar, a

multiplicidade incoercível do vivente: o ser de Aristóteles, comenta

Aubenque, não se revela a nós senão através da irredutível pluralidade

do discurso categorial: Assim, […] o ente se diz de v|rios modos; mas todo o ente se diz em ordem a um só princípio. Uns, com efeito, entes porque são substâncias; outros, porque são afecções da substância; outros, porque são caminhos para a substância, ou corrupções ou privações ou qualidades da substância ou das coisas ditas em ordem a substância, ou por que são negações de alguma destas coisas ou da substância5 (1962, p. 456).

Rompendo com a ontologia platônica, Aristóteles depara-se

com a carência de sentido do ser, preso a um constante vir a ser,

tornando-se constantemente outro. Resistindo a todo momento aos

conceitos, o ser pode ser dito movimento, materialidade, contingência

que não se dobra às categorias formais do ser. Mas o que se apresenta

na obra do estagirita como um limite, passa contudo aos olhos de sua

posteridade como abertura para novas formulações:

4 Em várias passagens do livro Z Aristóteles utiliza o termo ousia como o

composto de matéria e forma. Afinal, se o termo ousia se identificasse com a

matéria, seria pura contingência e, assim, impossível qualquer determinação mas,

por outro lado, se fosse reduzido a forma isolada da materialidade a teoria

Aristotélica retornaria inevitavelmente o platonismo. 5 Metafísica 1003 b 5-10, trad. Valentin Garcia Yebra, Madrid: Gredos, 1987. No

livro 1017 b 10-15 da Metafísica, Aristóteles apresenta a seguinte definição de

ousia: Substância se chamam os corpos simples, por exemplo, a terra, o fogo, a

água e todas as coisas semelhantes, e, em geral, os corpos e os compostos deles,

tanto animais como demônios, e partes destes. Todas essas coisas se chamam

substâncias porque não se predicam de um sujeito, mas, (ao contrário) as demais

coisas são predicadas delas.

38

Mas, a partir do momento em que tomamos o termo de movimento como fazê-lo no texto aristotélico e em verdade – como equivalente à mudança, à alteração de que o movimento local é apenas um caso particular, devemos incluir também a mudança de forma, a alteração, a transformação; e esta última, em seu sentido mais forte, inclui por sua vez o aparecimento, a emergência, a criação da forma. Afirmaremos, portanto, não a partir de uma nova “leitura” de Aristóteles, como diria o pretensioso e, ao mesmo tempo, pusilânime jargão atual, mas pensando, nós próprios, a partir do imenso questionamento que a obra do filósofo nos abre, e transgredindo conscientemente seus limites, que é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem da forma. O que significa dizer: é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem de criação – já que a única criação que importa é a das formas (CASTORIADIS, 1998, p. 215).

O homem é princípio, arkhé, ele se cria se produz, mas em

vista de tornar-se aquilo que era para ser, ou seja, aquilo que era para

ser será constantemente criação do próprio humano, resulta da sua

própria invenção, que não está dada de antemão. Como bem diz

Castoriadis : Essa não-predeterminação do homem aparece nas hesitações e nas aporias de Aristóteles em relação à polis e ao direito, e também, de uma maneira diferente, nas ambigüidades de sua concepção da techné. [...] Direi apenas que é precisamente no domínio humano, na sociedade e na história, que podemos identificar imediata e claramente a capacidade de uma classe de entes de criar a alteridade, novas formas, de se fazer existir em e por novas leis (1998, p. 216).

Por isso, os limites da Metafísica são o começo da ética. Se

todas as coisas já estivessem pré-determinadas, como quis o idealismo

platônico, não haveria nada a ser feito, nas palavras de Pierre

Aubenque: “A meio-caminho de um saber absoluto, que tornaria a ação

inútil, e de uma percepção caótica, que tornaria a ação impossível, a

prudência aristotélica representa – tanto quanto a reserva, verecundia,

do saber – o acaso e o risco da aç~o humana” (1986, p. 177).

Aristóteles retoma a antiga inquietação grega, diante da

imprevisibilidade do devir e da precariedade das coisas humanas, que

convida o homem a ser princípio e criador de seu próprio mundo. É

nesse sentido que, a partir de Aristóteles, se pode pensar, como o fez

39

Castoriadis, a formação humana como auto-criação e movimento que

se constitui inicialmente numa tentativa de descrição da realidade, e,

no entanto, no limite da natureza emerge a criação humana.

Enfrentando as aporias que resultam do caráter fugidio e enigmático

do ser, Aristóteles pensa a formação como um investimento de

preparação desse indivíduo para a compreensão de seu télos, de sua

finalidade.

A Paidéia aristotélica e a formação para a polis

A concepção aristotélica de formação possui, como vimos,

um sentido muito geral, que abarca desde a noção de forma como

princípio organizador do ser que visa a sua realização, até a ação do

indivíduo, também relacionada à pólis. O homem deve buscar realizar

sua própria forma, que se constitui na via contemplativa, na atividade

intelectiva do nous, que será também a finalidade de toda a formação

individual, visando a realização das virtudes dianoéticas. Contudo, é

possível tratar do humano numa outra dimensão, além do aspecto

puramente teórico e auto-formativo: ele é igualmente ser social e,

nesse sentido, ao lado de uma formação individual que visa a sua

realização para um fim (télos), em busca da eudaimonía, o humano

possui, na concepção aristotélica, outros modos de lidar no mundo

para além do limite da natureza. Por isso mesmo, o processo de

formação sempre esteve, de alguma maneira, no centro da discussão

do estagirita.

Jean Lombard assinala um aspecto muito importante para

análise da concepção aristotélica de formação. De maneira geral,

embora o pensamento do estagirita tenha se constituído numa das

principais influências para a posteridade, quando se trata da história

da educação grega, consideram-se como marcas na evolução do

movimento educativo a teoria idealista platônica e a idéia e cultura da

sofistica, que posteriormente inspirará à tradição humanista, mas

freqüentemente se omite a contribuição de Aristóteles (LOMBARD,

1994, p. 7). Os grandes textos sobre a educação na antiguidade

simplesmente a ignoram, como é o caso de Henri I. Marrou e Werner

Jaeger. A mesma coisa se passa, mais recentemente, com Franco

Cambi: referindo-se a Aristóteles, eles o colocam numa posição

40

subalterna frente aos grandes mestres (Platão, a sofística e Isócrates),

não identificando qualquer originalidade em sua paidéia.

No entanto, as contribuições para a formação geradas no

Liceu, representaram um marco para a educação da época, a começar

pela distinção de âmbitos de saberes (ética, política, física, estética),

além de um programa propedêutico (Órganon) – que deu origem a

toda ulterior discussão lógica e que, no Liceu, era aplicado aos

iniciantes como uma espécie de introdução a todo conhecimento. Mais

do que qualquer outra coisa, porém, sua antropologia, que destaca a

abrangência e os limites da teoria e da prática na formação humana,

introduz questionamentos essenciais para a crítica não só das

formulações platônicas e sofísticas, mas inclusive da prática educativa

da modernidade e de nossa atualidade.

É possível que muitos dos obstáculos resultem do fato de que

Aristóteles não elabora um programa educativo formal, como o

fizeram Platão e Isócrates. Mas, se nos interessamos, não por uma

proposta pedagógica acabada, mas pela possibilidade de estabelecer

uma teoria consistente sobre a educação, encontramos nos livros VII e

VIII da Política – obra admitida em geral como um dos textos mais

antigos da reflexão de Aristóteles – elementos de rara relevância. Em

que pese a conhecida tese genealógica de Werner Jaeger, que busca

entender a filosofia de Aristóteles a partir de uma aproximação do

pensamento platônico (insistindo sobre o dualismo entre alma e

corpo, ou através de referências explícitas à Academia) é quase

impossível não constatar o quanto Aristóteles nos legou para a

reflexão e a prática da formação humana.

A organização do saber aristotélico, efeito de pedagogia implícita, na verdade faz da obra inteira uma obra de educação, animado como os cursos do mestre pelo cuidado perpétuo de formar e ao mesmo tempo convencer (LOMBARD, 1994, p. 16).

Na origem de toda prática formativa está para Aristóteles a

idéia da felicidade, finalidade máxima da existência humana, fixada já

de partida na Política assim como nas Éticas. Na Política, a busca pela

eudaimonía justifica a investigação sobre a comunidade humana e suas

regras (1990, p. 13). Na Ética à Nicômaco, o Bem supremo é buscado

pela conduta individual (ARISTÓTELES, 1997, I, 2). Em ambos os

casos, porém, as implicações para a educação são evidentes.

41

Mas, como afirmamos, não se encontrarão nas obras

mencionadas nenhum traço da busca por uma pólis ideal à maneira

platônica, ou qualquer modelo utópico. É certo que o livro VII da

Política retoma a apresentação e análise, já empreendidas em outros

textos, de diferentes modelos de sociedade: mas não decorre daí um

modelo acabado de pólis a exigir um rígido programa educacional.

Contudo, como assinalou Lombard, formar para a felicidade, para o

encontro do soberano bem, parece ser o pano de fundo da obra do

estagirita: a busca (zetein) perpétua do conhecimento e da verdade

não é jamais exterior à busca da felicidade que funda as Éticas e a

Política. A própria filosofia – apresentada na Metafísica sob as

denominações de sophia, ciência primeira ou philosophia – feita virtude

do intelecto especulativo, se justifica pelo fato de corresponder ao

princípio da felicidade. Mesmo a divisão aristotélica das ciências parecem representar um plano de estudos em três ciclos, dos quais os dois primeiros constituem a educação liberal do cidadão e o último a formação do sábio. Toda obra de Aristóteles é fiel ao preceito de Metafísica: de uma maneira geral, aquele que prova que sabe realmente alguma coisa é capaz de ensinar a outro (LOMBARD, 1994, p. 16).

A tentativa de propor uma formação que oriente o indivíduo

em suas ações no mundo e na pólis, já demonstra um distanciamento

do grande plano platônico, que não apresentou alternativas exeqüíveis

para uma construção política: o projeto educativo de Platão constitui-

se em uma espécie de iniciação, de ascese cujo objetivo é o bem ideal e

transcendente. A formação platônica pretende conduzir o indivíduo,

não ao exercício político de construção de uma cidade real, mas à

cidade interior que o filósofo já carrega em si e que participa das belas

formas da cidade ideal. Para Aristóteles, o fim da educação não é outro

além do fim da existência humana – que, insiste ele, não se pode

realizar fora da pólis. O indivíduo é aluno da pólis e é nela, e não em

outro plano, que ele deve buscar a sua realização (LOMBARD, 1994, p.

22). Em outra passagem afirma:

Aristóteles inclui de uma só vez a paideia na politeia, de uma maneira que lhe é própria, mas que se apóia sobre a acepção grega tradicional da politeia: para além do regime político, o

42

termo remete à vida coletiva, à sociabilidade e às suas formas, aos valores morais, à maneira de ser própria da cidade (LOMBARD, 1994, p. 23).

De forma que a educação jamais é isolada de seu meio

natural, que é a sociedade. Por isso, na concepção de Aristóteles, a

educação deveria ser pública: [...] em todas as capacidades e todas as artes há elementos que são necessários serem aprendidos previamente e assimilados pelo exercício de cada um deles, de modo que é evidente a mesma coisa para as atividades virtuosas. E visto que o fim de toda cidade é único, é manifesto que seja necessário uma só e mesma educação para todos e que seja cuidada coletivamente e não de maneira privada como no presente, em que todos visam suas próprias crianças separadamente, e lhes dispensam seu próprio ensinamento. Ora, é necessário que a aprendizagem do que concerne à coletividade seja coletivo. [...] O cuidado de cada parte tem por natureza em vista o cuidado com o todo (1990, VIII, 1337 a 20-30).

Como as disposições particulares do ser humano não são

suficientes para sua plena realização, é imprescindível formá-lo pela

cultura. Mas a Política não traz orientações para a instrução oficial da

pólis, tendo em vista as circunstâncias específicas pelo momento

vivido, não procede à definição de um sistema teórico, nem tampouco

se ocupa de uma regulamentação para a pólis. A Política é um esforço

antropológico de observação do real, a partir do funcionamento de

outras póleis e de suas necessidades educacionais especificas. É aí que

se pode observar a originalidade do pensamento de Aristóteles: a

relevância de sua pedagogia consiste na sua tentativa de oferecer

respostas a questões que se apresentavam à Atenas, no contexto de

crise, procurando um meio-termo entre a tradição e as inovações de

sua época.

O momento de crise que vivia a Grécia conduziu a um

sistema anárquico de ensino, no entanto, ele contradiz a noção de

cidadania, tão cara aos gregos, onde os indivíduos só possuíam

importância em suas relações na pólis. A Política de Aristóteles

consistiu num esforço de recompor a pedagogia do Estado, colocando

em acordo fins políticos e meios educativos, os únicos capazes de

restaurar a pólis e retomar seus ideais.

43

A formação humana visa, pois, em Aristóteles,

primordialmente o exercício da participação política. A pólis é seus

cidadãos: se o primeiro gesto político é a criação da própria polis, a

formação humana é seu instrumento privilegiado. Mas a ênfase na

socialização não implica descuido com a dimensão individual: pelo

contrário, a participação pública requer a aquisição de uma virtude

que somente a prática pessoal da deliberação pode garantir. Mais do

que uma idéia a virtude é essa prática, transformada pela cultura em

uma segunda natureza, em um hábito democrático, realizando-se

sempre em cada caso particular, pelo exercício da virtude adquirida,

pelo hábito instituído por uma cultura.

Desse modo, em suas reflexões sobre a pólis e sobre seus

valores, ao longo da ampla elaboração antropológica que realiza,

Aristóteles tece sua concepção de formação, que tem na prática seu

ponto central. Em favor dessas considerações, pode-se parecer apelar a cada vez o comportamento dos indivíduos em sua vida privada e a prática dos legisladores: castiga-se, com efeito, e obriga-se a reparação destes que cometem ações perversas, a menos que tenham agido a contragosto ou por uma ignorância que eles mesmos não são causa, e por outro lado, honram-se esses que cumprem as boas ações, e devemos encorajar estes últimos e reprimir os outros (1997, III, 7 a 20-25).

Tal como a virtude, a formação humana não é,

definitivamente, uma questão meramente intelectual: ao contrário, ela

só se efetiva no tempo, por meio de ações. Ao contrário de Platão,

Aristóteles não tem dúvidas de que a virtude pode ser adquirida: mas

o que se ganha então, não é um conhecimento, uma Idéia, mas uma

segunda natureza, uma segunda enteléquia, um hábito. A formação

aristotélica se apresenta, desse modo, como uma alternativa oferecida

a duas posições díspares: por um lado, o absolutismo idealista

platônico, que tem na noção de desejo do bem em si o seu princípio

formador; e, por outro lado, o relativismo subjetivista da sofística, de

que o bem é sempre relativo àquele que o deseja. As duas posições

que, tomadas em sua radicalidade, representam uma profunda ameaça

à democracia, convergem em um ponto: a perspectiva individualista

em que acabam por encerrar a ética. O projeto de formação de

44

Aristóteles recupera o exercício da democracia e de suas

interrogações, na medida em que, ao partir dos exemplos cotidianos,

concede ao interlocutor a participação no espaço público das opiniões.

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CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL

José Maria Arruda

Universidade Federal Fluminense

Em seus escritos do período de Weimar (1919-1932), Carl

Schmitt anuncia como tarefa principal de seu pensamento político

salvar o conceito de democracia de seus momentos liberais. Para isso,

ele buscou revelar a substância metafísica por trás do discurso e da

semântica do liberalismo e de sua concepção de democracia. Sua

assombrosa erudição acerca da história política e jurídica europeia lhe

permitiu trazer à tona elementos interessantes da formação conceitual

do vocabulário liberal.

Para o jurista alemão, a concepção moderna de Estado de

Direito e de ordenamento jurídico corresponde somente ao projeto

político hegemônico da burguesia liberal. Desde seu surgimento, todo

o objetivo da burguesia é a neutralização da política em favor de seus

interesses econômicos e de seu conceito individualista de liberdade; o

resultado desse processo foi a submissão completa do Estado e da

Política aos princípios do individualismo, a saber, à moral individual e

ao cálculo de interesses privados. Assim, em sua própria essência, o

liberalismo seria inimigo do Estado, por isso não foi capaz de

desenvolver uma teoria positiva do poder estatal, somente de fazer

restrições à sua soberania. O avanço do liberalismo burguês implicou

cada vez mais uma diminuição da capacidade de ação política e

intervenção social do Estado. Carl Schmitt rejeita veementemente a

tese de que a liberdade do indivíduo possa estabelecer um limite à

atuação do Estado. No liberalismo, a Economia assume o monopólio

das decisões políticas e isso significa a destituição do Estado como

instância suprema de decisão política, que ele caracterizou como a era

da neutralização e da despolitização. No que se segue, tentarei expor

alguns pontos centrais da crítica de Schmitt à democracia liberal.

I

No Conceito do Político, Schmitt afirma que os termos que

compõem a semântica do campo político (Estado, república, sociedade,

48

classe, soberania, Estado de Direito, Constituição, democracia) são

vazios em si mesmos e somente recebem um significado real quando

referidos aos grupos que concretamente são concernidos, atingidos,

combatidos, contestados e refutados por meio deles. Para Schmitt, a

política é um espaço de relação, de conflito e disputa entre pessoas e

grupos de pessoas, e não entre entidades ideais.

Todos os conceitos da esfera espiritual, inclusive o conceito de espírito, são conceitos pluralistas e somente podem ser compreendidos tomando como ponto de partida a existência política concreta [...]. Todas as representações essenciais da esfera espiritual dos seres humanos são existenciais e não normativas (SCHMITT, 1996, p. 84).

Assim, para entender o surgimento da concepção de

democracia do liberalismo é preciso ter em mente os dois adversários

tradicionais da burguesia liberal: o príncipe e o povo. Esta posição

existencial da burguesia torna compreensível sua estrutura conceitual,

uma vez que, na epistemologia política schmittiana, posições e

conceitos estão entrelaçados visceralmente.

Do ponto de vista conceitual, o liberalismo deve ser visto

antes de tudo como um sistema metafísico que faz da categoria do

indivíduo seu conceito fundamental, derivando daí uma concepção

individualista da liberdade e privatista de propriedade (SCHMITT,

1969, p. 45). A semântica conceitual do vocabulário liberal surgiu a

partir da luta concreta contra o Estado Absolutista do século XVII. Os

liberais procuravam diminuir cada vez mais o poder do monarca e

obter garantias no campo político e na esfera econômica. Todas as

ideias políticas do liberalismo têm como objetivo a limitação do poder

soberano, a proteção do indivíduo e da propriedade privada contra a

interferência do Estado e da coletividade (SCHMITT, 1993b, p. 126). O

liberalismo dissemina um sentimento de desconfiança em relação a

todo e qualquer exercício do poder, a toda e qualquer forma de

presença do Estado. É por isso que, para Schmitt, o liberalismo não é

propriamente uma teoria política, mas uma crítica de toda e qualquer

forma de política em favor da economia e de uma visão abstrata do

indivíduo.

A junção entre democracia e liberalismo só foi possível

porque ambos, em um determinado momento de suas lutas políticas,

49

tinham um inimigo político comum, a saber, o estado monárquico. Em

meados do século XIX, como forma de diminuir mais ainda o poder

monárquico, o movimento liberal se apropria, pois, da bandeira

democrática que pregava a transferência do poder soberano para o

povo, a superação da legitimação monárquica para a legitimação

democrática do poder. No entanto, no lugar do povo, o movimento

liberal estabeleceu o parlamento como lugar da produção das normas

e da tomada de decisões políticas, evitando assim a participação

popular e tomando para si a legitimação democrática. A identificação

de soberania popular com representação parlamentar constitui um

dos elementos essenciais do que Schmitt entende por democracia

liberal. Em síntese, a ideia do Estado de Direito surgiu da luta política

da burguesia liberal para limitar o poder do soberano através de dois

meios: a ordem jurídica do Estado constitucional e a representação

política parlamentar.

Schmitt reconheceu no conceito liberal de Estado

Democrático de Direito a expressão da ideologia burguesa e de sua

metafísica do indivíduo. Isso se mostra no fato de que os teóricos

liberais somente reconhecem como estado de direito legítimo aquele

estado cuja constituição se rege fundamentalmente pela ideia

burguesa de liberdade: a liberdade individual. Estrategicamente, o

liberalismo fez de seu conceito particular de constituição o conceito

universal de constituição (SCHMITT, 1993b, p. 36). Assim, para um

liberal, só se pode falar em Estado como Estado de Direito quando as

exigências da liberdade e da propriedade individual forem

contempladas:

A moderna constituição do Estado de Direito burguês corresponde em seus princípios ao ideal de constituição do individualismo burguês, de tal maneira que estes princípios são comumente identificados com a constituição enquanto tal, e ‘Estado constitucional’ com Estado de Direito burguês.... Esta constituição contém, em primeira linha, uma decisão em favor da liberdade burguesa: liberdade pessoal, propriedade privada, liberdade de contratos, liberdade de comércio [...] O Estado aparece como um empregado da sociedade, submetido ao seu controle estrito (SCHMITT, 1993b, p. 126).

O objetivo do liberalismo é regulamentar toda a ação do

Estado e limitá-la a um funcionamento maquinal, calculado. O Estado

50

aparece não como uma unidade política, mas como um conjunto de

normas e procedimentos (Normen und Verfahren), uma espécie de

constructo kantiano artificial e formal.

Em contraposição a um estado tirânico, os liberais

consideram que, no Estado de Direito, qualquer intervenção estatal na

esfera da liberdade individual só pode se dar sob amplo amparo da lei.

O estabelecimento de um ordenamento jurídico fixo, estável, base do

movimento constitucionalista liberal do século XIX, foi essencial tanto

para a submissão do poder do Estado ao princípio de legalidade, mas,

sobretudo, porque gerava um ambiente de segurança, predizibilidade

e confiança em que prosperavam as transações comerciais, as

transferências hereditárias e os negócios. O constitucionalismo foi o

instrumento que a burguesia liberal utilizou para defender seus

interesses econômicos privados através da imposição de uma série de

direitos individuais e através da separação de poderes. Enquanto a

democracia é uma forma particular de exercício efetivo da soberania

política, o constitucionalismo é exatamente o oposto, ou seja, é uma

forma de limitar a soberania política. A burguesia pretende “moderar”

o poder político dividindo e contrabalançando diferentes organismos

do Estado – presidência, parlamento, cortes de justiça – nenhuma

delas devendo exercer a soberania plenamente. O constitucionalismo

liberal impõe limitações ao exercício da soberania e nesse sentido

entra em contradição com a democracia.

Em um artigo de 1929, intitulado “Der bürgerliche

Rechtsstaat”, Schmitt afirma que:

O Estado de Direito burguês se caracteriza, em linhas gerais, por se assentar sobre a ideia dos direitos fundamentais do indivíduo e sobre o princípio da divisão dos poderes. Dessa forma, a liberdade do indivíduo é posta, a princípio, como ilimitada; o Estado e seu poder, como limitados. O que o Estado pode fazer, vai ser rigorosamente determinado. Por toda parte são introduzidos órgãos de controle, cuja ação é juridicamente assegurada. Ilimitada, no entanto, é a liberdade pessoal do individuo. Ela não é regulada por leis, e qualquer possível violação a ela precisa se dar dentro de parâmetros estabelecidos por determinadas normas. O ponto de partida é a esfera das possibilidades ilimitadas dos indivíduos e a controlabilidade geral do Estado. Este princípio de divisão liberal atravessa toda a organização do Estado. As competências do Estado serão

51

divididas em seus mínimos detalhes e as possibilidades de dominação contrabalançadas umas com as outras (SCHMITT, 1995, p. 45).

A teoria liberal impôs um conceito de constituição que tem

três pontos básicos: a) o reconhecimento dos direitos fundamentais do

indivíduo; b) a separação dos poderes do Estado; e c) representação

política burguesa no parlamento. O uso da palavra “Estado de Direito”

nas teorias liberais é, portanto, um uso político (ou seja, polêmico) e

tende a desqualificar toda e qualquer forma de Estado que não assuma

os valores defendidos pelo liberalismo.

Para o modo de expressão do liberalismo burguês só existe Constituição ali onde a propriedade privada e a liberdade individual forem asseguradas; tudo o mais não é Constituição, mas despotismo, ditadura, tirania, escravidão (SCHMITT, 1993b, p. 37).

A divisão de poderes baseia-se em uma ideia banal: seria

perigoso que o órgão que elabora a lei, seja também aquele que a

executa; isso seria uma grande tentação para quem detém o poder.

Durante o iluminismo ficou famosa a divisa: nul corps armé ne peut

délibérer. Logo, nenhum órgão do estado deve concentrar todo o poder

em si e isso explica distinção cada vez maior entre deliberare e agere,

fundamento da distinção entre legislativo e executivo. Onde não

houver separação entre legislativo e executivo, há necessariamente

ditadura e arbítrio. Schmitt lembra que na declaração dos direitos do

homem e do cidadão, em seu artigo XVI, lê-se que sociedades que não

respeitam os direitos individuais nem a separação de poderes são

desprovidas de constituição.

Em síntese, o liberalismo consequente tem nicho específico

em parte na esfera econômica, em parte no moralismo abstrato e é um

sistema artificial de métodos visando, em última instância, o

enfraquecimento do Estado e o exercício pleno da vontade soberana.

II

Em confluência com as exigências democráticas, o

movimento liberal se fortaleceu ao exigir a criação de uma

52

representação da sociedade diante do monarca e ao defender a tese de

que o legislativo deve influenciar o executivo. Ao longo do século XIX, a

luta da burguesia contra o estado monárquico travou-se basicamente

como luta pela instituição de parlamentos como lugar de produção do

ordenamento legal. Segundo Schmitt, a separação entre Estado e

Sociedade resulta das construções dualistas e polêmicas da burguesia

contra o Estado monárquico (príncipe versus povo, coroa versus

câmara, governo versus representação popular, etc.). O parlamento no

século XIX foi pensado como o lugar onde a representação popular se

confrontava com o governo, onde a sociedade se opunha ao Estado, o

povo ao príncipe.

Para a burguesia, era fundamental substituir a pessoa do Rex

pela ideia de regnum e pela ratio universal. O rei tem que obedecer à

lei, o poder da lei deriva do fato de que, diferentemente do comando e

do ordenamento pessoal, ela emana da razão, ela é pura ratio, sem

interferência nenhuma da cupiditas ou da turbatio. Era preciso

contrapor o “government by will” por um “government by constitution”.

O movimento liberal procurou, então, ampliar e estender os poderes e

a jurisdição das assembleias populares ou do parlamento até que o

monarca fosse completamente alijado do processo legislativo. O

critério formal da validação legal era o apelo à forma de legitimação

democrática através da suposta participação popular nas assembleias.

Mas aqui se engendra, segundo Schmitt, uma transformação semântica

do conceito de lei, gerando dois conceitos incompatíveis: de uma lado,

a lei é definida como uma norma cuja validade deriva de suas

propriedades racionais intrínsecas; de outro, lei é tudo aquilo que é

posto pela vontade do “povo”, em que a categoria “povo” pode ser

considerada semanticamente equivalente { categoria “representaç~o

popular”. A rigor, o poder político do parlamento cresceu tanto que

modificou o significado do termo “lei”: qualquer norma só se torna lei

se for previamente aprovada no parlamento (SCHMITT, 1993a, p. 19).

Para Schmitt, o feito extraordinário do liberalismo foi

substituir qualquer noção substancial de vontade popular pela noção

formal de vontade do parlamento. É nesse sentido que, segundo ele, o

movimento liberal guinou o movimento democrático em direção à

dominação parlamentar. Entretanto, a única justificação para

existência do parlamento é de natureza técnico-pragmática: dado a

impossibilidade da reunião do povo em uma praça pública para

53

deliberação das questões fundamentais, conclui-se, então, da

necessidade de uma assembleia de representantes eleitos pelo povo.

Por isso, o parlamento aparece como altamente democrático. Para

Schmitt, no entanto, a questão envolve mais do que isso: ela implica

em saber por que exatamente o parlamento foi visto como ultimum

sapientiae, como lugar de produção da verdade e da racionalidade do

ordenamento jurídico e das decisões políticas; somente com a crença

de que a instituição do parlamento produz a vontade geral, a

racionalidade enquanto tal e a correção das leis, somente com isso se

pode aceitar a tese de que o parlamento deve influenciar e intervir no

governo, ou seja, de que o parlamento exerça o domínio político

propriamente dito (SCHMITT, 1969, p. 42).

Schmitt descreve o parlamentarismo como resultado da

posição metafísica do liberalismo que acredita na produção da verdade

e da justiça através da discussão e da livre troca de opiniões. Ora, os

liberais criaram uma oposição entre o poder monárquico, que se

exerce enquanto mando, e o poder democrático-parlamentar que se

exerce através da discussão e do convencimento. A crença que está na

base do parlamentarismo é, portanto, a crença em um government by

discussion. O parlamentarismo - como parte da ideologia liberal –

reforça a ideia de que o espaço político é um espaço onde se efetuam

trocas de ideias e argumentos entre representantes de segmentos

sociais distintos para, através de uma negociação entre pontos de

vista, estabelecer conceitos válidos de verdade e justiça. O parlamento

pretende ser o centro da articulação racional da opinião pública.

O liberalismo se apoia, portanto, em uma concepção

pragmática de verdade como resultado/função do processo de

formação da opinião pública. A verdade aparece como uma função da

concorrência de opiniões. É interessante perceber que o liberalismo

pressupõe aquilo que Schmitt denomina o racionalismo relativo:

embora pretenda resolver tudo através de argumentos racionais, o

liberal nunca pode se colocar questões substanciais referentes às

visões de mundo, ele somente pode se limitar a coisas que, que por

conta de sua natureza relativa, podem ser resolvidas com negociações

e compromissos. Assim, no racionalismo relativo do liberalismo, uma

parte das questões – exatamente as questões substanciais sobre visões

de mundo – tem de permanecer fora de discussão, sob pena de não se

chegar a consenso e, pelo contrário, gerar disputas entre os indivíduos

54

(SCHMITT, 1969, p. 58). Logo a discussão no interior do liberalismo

pressupõe bases não discutíveis. Para Schmitt, o liberalismo se funda

de fato na ausência de uma verdade comum, de uma unidade popular e

no adiamento da decisão política sobre as questões essenciais da vida

social: a busca da verdade se converte em uma conversa eterna

(ewiges Gespräch). A noção de verdade e justiça é completamente

supérflua, pois ela remete sempre à correção dos procedimentos

instrumentais de racionalidade das decisões. O procedimento aparece

como garantidor da legitimidade.

A liberdade de discurso, de imprensa, de associação, de

discussão são mais do que instrumentos úteis, eles são questão de vida

e morte para o liberalismo e sua estratégia de esvaziamento da política

como espaço de decisão coletiva, de exercício da soberania popular.

Schmitt não cansa de fazer alusão ao pensador antiliberal espanhol

Donosó Cortez, que ridicularizava a burguesia chamando os

parlamentares liberais de “la classe discutidora”, aqueles que vivem da

ilusão de que é possível através da troca de argumentos chegar a uma

deliberação e a uma ação acerca dos conflitos sociais.

Por causa do postulado de publicidade da vida política,

confunde-se liberalismo e democracia. O surgimento do espaço público

e da publicização dos atos do Estado foi visto como a cura de todos os

problemas de corrupção e abuso de poder dos regimes absolutistas.

No Iluminismo, julga-se que a opinião pública funcionaria como um

corretivo eficaz contra regimes despóticos. Liberdade de discurso e

liberdade de imprensa foram transformados em elementos essenciais

da formação do espaço público. A liberdade de imprensa foi vista como

a proteção mais efetiva contra o arbítrio político. Retomando uma

definição de Richard Thoma, Schmitt define opinião pública como

“produto de uma aç~o recíproca entre jornais e leitores” (SCHMITT,

1994, p. 26).

Para Schmitt, os princípios fundamentais que formam o

“espírito” da democracia liberal-parlamentar são o princípio da

discussão e o princípio da publicidade. Discussão significa uma troca

de opiniões que se dá com o intuito de convencer o oponente, através

de argumentos racionais, da pretensão de verdade e correção da

própria posição ou de se deixar convencer pelo oponente (SCHMITT,

1969, p. 9). A atividade parlamentar é regulada por procedimentos que

garantem a liberdade de fala e pela publicização das sessões. O liberal

55

acredita que o consenso social e político vai surgir espontaneamente

da livre disputa das opiniões no parlamento, do mesmo modo que o

equilíbrio no mercado surge da livre concorrência dos indivíduos. Esse

processo tem suas regras e procedimentos específicos, sobretudo os

que garantem a circulação das opiniões, tal como, no mercado, capital

e bens circulam livremente.

Para Schmitt, em sua prática efetiva, porém, as decisões do

parlamento não são tomadas no plenário, mas em comissões

reservadas. Os partidos são representantes permanentes dos

interesses de segmentos do eleitorado e seus membros devem votar

segundo as orientações das lideranças partidárias. Ora, com isso a

discussão desaparece do parlamento, pois a disciplina partidária é

exigida dos parlamentares. Como afirma Schmitt, nenhum debate

público vai influenciar um parlamentar que vota de acordo com a

orientação de seu partido. A força de cada partido é medida pela

quantidade de votos que ele possui no parlamento. Dessa forma, no

parlamento as discussões se convertem em negociações e

compromissos, determinados por um cálculo de resultados e não por

uma noção desinteressada de bem público. O parlamento se converte,

assim, em uma instituição cujas decisões são resultado de barganha, e

cujas votações nominais não passam de mera formalidade. Os partidos

políticos, enquanto grupos de interesses, substituem o princípio da

discussão pelo princípio da negociação (Verhandlung) e as grandes

decisões do parlamento são tomadas, não em sessões abertas, mas a

portas fechadas pelos líderes partidários. As negociações não são

orientadas para a busca da verdade e do melhor argumento, mas pela

contabilização dos interesses e das chances de ganho e de ocupação do

poder. Para Schmitt, isso não se representa somente de uma crise

acidental ou contingente do parlamento, mas é inerente à essência do

liberalismo que entende a discussão como uma forma de concorrência

de opiniões e de acordo entre partes.

Se o liberalismo estimula cada vez mais a divisão social e o

pluralismo das concepções de mundo, como é possível chegar a uma

unidade sobre as decisões fundamentais da vida social e política? É por

isso que, para Schmitt, a crise política da democracia liberal não é um

fenômeno empírico e passageiro, mas algo que pertence

estruturalmente à essência da democracia liberal, incapaz ela própria

de produzir homogeneidade social e política, baseada sempre em

56

negociações e arranjos partidários com base em interesses imediatos.

Pode-se dizer que assim como para Marx, o capitalismo gera

necessariamente crises; para Schmitt, a democracia liberal é um

sistema político inviável, que leva à dissolução do Estado.

O que agrava o caráter crítico da concepção liberal de

democracia é o fato de que o desenvolvimento das modernas

sociedades de massa tornou a discussão pública e argumentativa no

parlamento uma mera formalidade. Os partidos não passam de

fachadas para grupos sociais e econômicos que calculam suas chances

de poder e a partir daí fecham compromissos e formalizam coalizões

sem bases programáticas (SCHMITT, 1969, p. 11). O elemento

discursivo-normativo, de que falava Habermas, desaparece

completamente e é substituído pelo cálculo de interesses e pelas

articulações para chegar ao poder. Na democracia liberal, o problema

consiste menos em se esforçar para convencer os outros da validade

das pretensões de verdade postas discursivamente, mas sim de obter

maiorias nas votações. Em verdade, o parlamento não consegue

efetuar a passagem dos indivíduos atomizados para a unidade da

vontade geral, pois ele reproduz, no plano político, as divisões geradas

no plano econômico pelo liberalismo. A democracia liberal perpetua,

assim, a dominação dos interesses econômicos e corporações.

As massas são alvo de um forte aparato de propaganda que é

tanto mais eficaz quanto apela para seus interesses imediatos ou

manipula suas emoções. Dessa forma, as políticas do Estado passam a

depender, de um lado, das preferências individuais manifestas na

forma de uma opinião pública difusa e manipulada pelos aparatos de

informação e propaganda nas mãos da burguesia, de outro, dos

arranjos parlamentares ditados por interesses partidários. A opinião

publica recebe um valor absoluto embora ela fosse somente um meio

contra a política secreta do absolutismo. Schmitt lembra ainda que o

surgimento do parlamento está ligado às grandes tradições da cultura

europeia e, sobretudo, ao temor das elites cultas contra um possível

domínio das massas incultas, um medo da democracia. Para ele, sinal

claro dessa deturpação da democracia no liberalismo é o fato de a

ciência política ter se dedicado cada vez mais a investigar os

mecanismos através dos quais os partidos poderiam desenvolver sua

propaganda eleitoral, organizar as massas e dominar a opinião pública.

Em última instância, fica claro a íntima relação entre partidos políticos,

57

grande imprensa e grande capital, que sempre trataram as disputas

políticas como sombras da realidade econômica (SCHMITT, 1969, p.

30).

Para Schmitt, há uma contradição entre o conceito de

democracia, que exige certa homogeneidade social, e a ideia liberal de

uma sociedade individualista e pluralista. O Estado é tomado como um

aparato instrumental, burocrático, e não uma entidade coletiva que

pudesse ser objeto de confiança e lealdade. O liberalismo faz a

legalidade do Estado depender de um contrato livre entre os

indivíduos, mas esquece que para a formação da volonté generale um

estado verdadeiro somente pode surgir onde há certo grau de

homogeneidade do povo, pois sem isso não poderia haver unidade de

ação. A ideia do contrato social entre indivíduos variados, com

interesses diversos e agindo de modo puramente egoísta é parte da

antropologia liberal. Em verdade, na vertente democrática do

pensamento de Rousseau, o Estado não é um contrato de indivíduos,

mas uma entidade coletiva que expressa a vontade geral,

fundamentada na luta por soberania, na unidade popular e na

identidade entre governantes e governados.

Na opinião de Schmitt, existe uma profunda contraposição

entre a consciência individual do homem liberal e a homogeneidade

requerida para a noção de democracia (SCHMITT, 1969, p. 23). O

principal problema de uma teoria democrática, a saber, estabelecer

quem é o povo, quem faz parte da unidade política, não pode ser

compreendido por um viés liberal, cuja metafísica parte sempre da

ideia abstrata de indivíduo e de humanidade e é incapaz de

compreender os processos histórico-políticos de formação das

identidades coletivas e das unidades políticas. Enquanto forma de

democracia sem povo, a democracia liberal tornou-se um conceito sem

substância, incapaz de formar um consenso verdadeiramente

democrático – isto é, homogêneo, existindo somente uma ilusão de

unidade, ali onde existe há de fato somente a barganha entre grupos de

interesses e lobbys políticos. Assumindo, em parte, a crítica marxista

às democracias formais, Schmitt diz:

O que hoje na Europa vale como Democracia é um engodo da dominação econômica do capital sobre a imprensa e os partidos políticos, ou seja, é um engodo de uma vontade popular falsamente moldada (SCHMITT, 1969, p. 38).

58

III

Para Schmitt, o sentido da palavra liberdade no liberalismo

se esgota em liberdade de opinião, liberdade de imprensa, de

associação e imunidade parlamentar. Porém, onde a vontade soberana

do povo é chamada a se pronunciar, no voto, há a exigência de que esse

voto seja secreto, o que significa realmente a compreensão da

passagem meramente mec}nica do privado para o público: “O

soberano desaparece na cabine de votaç~o”. A liberdade de opinião,

no liberalismo, é sempre uma liberdade de opinião de indivíduos

privados (SCHMITT, 1969, p. 50), o que implica uma espécie de

privatização da política. O povo como unidade desaparece, restando

somente a ideia de que a vontade soberana do povo é o resultado da

somatória das vontades individuais expressas através da manifestação

silenciosa do voto. Para Schmitt, um dos maiores engodos da

democracia liberal é transmitir a ideia de que democracia se resume

simplesmente ao exercício universal do direito de voto e de que o voto

secreto deve ser o fundamento último da vida política (SCHMITT,

1994, p. 25). Em verdade, nas decisões de ordem política, o indivíduo

não vota como privatus, mas como citoyen tendo em vista o bem-estar

de todos. No liberalismo, o povo é excluído de manifestação política. A

identificação entre democracia e voto individual, afirma Schmitt, não é

democracia, mas liberalismo do século XIX (SCHMITT, 1994, p. 126).

Segundo ele, há que se distinguir entre direito de escolha

(Wahlrecht) que significa o direito de escolher seus próprios

representantes; e o direito de decisão (Entscheidungsrecht), que

significaria o direito de se posicionar sobre questões essenciais da vida

social e política. A democracia liberal, através de seu modelo

representativo parlamentar, tende a limitar o direito de decisão dos

cidadãos meramente ao direito de escolha de representantes no

parlamento.

A ampliaç~o do conceito jurídico de “povo” para o conceito

sociológico de “massa” deu-se, ao longo do século XIX e XX, com uma

significativa ampliação da população no processo eleitoral. Essa

ampliação, porém, foi meramente quantitativa em relação ao número

de votantes (mulheres, adolescentes, etc.), e não qualitativa com o

59

incremento de mecanismos efetivos de participação popular nas

decisões políticas. No liberalismo, o conceito de democracia resume-se

a processo eleitoral e coeficiente de eleitores. A rigor, o que se poderia

chamar efetivamente de ampliação da participação popular nas

decisões políticas deveria ser resultado da criação de mecanismos de

decisão sobre as questões concretas da vida social e política

(plebiscitos, referendos, mobilização social, manifestações públicas,

etc.). A democracia representativa é, para ele, um resíduo

inconsequente da luta da burguesia contra o estado monárquico e,

como vimos, uma concessão a problemas de ordem técnico-

pragmática.

A democracia é, segundo Schmitt, mais do que um sistema de

registro de votos secretos. Em sua essência, ela se apoia em uma série

de identidades. Identidades entre governantes e governados, senhor e

súdito, identidade do povo com sua representação, identidade de

estado e eleitores, identidade de estado e lei, identidade do

quantitativo com o qualitativo. Todo o problema da democracia se

resume na questão da formação da vontade popular e nos mecanismos

através dos quais ocorre a manifestação clara dessa vontade.

Contra o tecnicismo da democracia liberal, Schmitt opõe o

que ele chama de democracia imediata (unmittelbare Demokratie),

democracia radical ou democracia sem mediações. Em seu modo de

ver, somente a democracia direta poderia realizar as tendências

igualitárias inerentes ao movimento democrático da modernidade. A

democracia radical leva à decisão popular sobre todas as questões

importantes da vida social, inclusive no plano econômico; a

democracia liberal, por seu turno leva somente a uma igualdade

jurídica sob a base de uma vida social na qual se desenvolvem todas as

desigualdades possíveis entre os indivíduos (SCHMITT, 1994, p. 22).

Quanto mais arraigado for o sentimento democrático de um

povo, a vontade popular pode ser expressa de muitos meios, mais

interessantes que os diversos mecanismos estatísticos pensados

minuciosamente pelo aparato do estado liberal. Como alternativa ao

sistema parlamentar, Schmitt propõe uma espécie de sistema presidial

forte com ampla participação popular. Se é necessário que o princípio

democrático da identidade entre governante e governado seja

complementado pelo princípio de representação, essa representação

tanto pode ser dar por uma assembleia quanto por um único

60

indivíduo. O mais importante é que o princípio de identidade seja

efetivado de uma maneira não meramente formal, mas substancial e

efetiva. Nesse sistema, o povo soberano exerceria sua vontade política

através de diversas formas, entre elas, inclusive, o voto nos referendos

e plebiscitos. Mas não se pode determinar previamente os limites do

exercício da soberania. Democracia é manifestação da vontade popular

nos meios em que essa vontade popular quiser e puder se manifestar.

Para Carl Schmitt, todas as teorias modernas do Estado de

Direito liberal tentam eliminar o conceito do soberano, em última

instância, tentam eliminar o exercício da soberania. O legalismo

buscou despersonalizar o conceito de soberania e aplicá-lo a entidades

abstratas (normas, leis, constituição, razão, etc.). Assim como a

teologia deística procurou eliminar a noção de milagre e de ação

providencial de Deus no mundo, ideologicamente o liberalismo

político e o normativismo jurídico procuraram eliminar o conceito de

uma vontade soberana que pudesse alterar a ordem jurídica. Como

resultado de sua vis~o mecanizada e “reificada” do mundo, o

liberalismo deixou de perceber a natureza intrinsecamente conflituosa

da ação política e a necessidade inelutável de intervenção ocasional do

Soberano para decidir em casos extremos. A negação do problema da

soberania é um desdobramento da postura liberal de negação da

autonomia do poder estatal enquanto tal.

O Liberalismo pretende uma neutralização completa da

política, por isso não existe uma teoria política liberal, mas somente

uma crítica liberal da política. Entretanto, o liberalismo não é apolítico

em suas intenções e em seus efeitos. Ele se vale de uma retórica ético-

humanista para encobrir a realidade dos interesses econômicos que

estão no centro dos debates sobre a atuação do Estado. A política é a

capacidade de um povo decidir sobre sua própria forma de vida, sobre

sua própria existência, capacidade de autodeterminação, de tornar-se

de fato soberano, dando forma concreta à sua liberdade fundamental

enquanto entidade política.

O centro do movimento liberal foi e continua sendo, segundo

Schmitt, a propriedade privada. No liberalismo, a economia

predomina, enquanto o espaço político é desqualificado como espaço

de mera violência e substituído por um humanismo abstrato. O

liberalismo pretende evitar a ideia da guerra como componente da

luta política e transmuta essa guerra pela concorrência econômica e

61

pela discussão de ideias, pela discussão espiritual. A situação da

política em seu tempo, Schmitt caracterizava como um “imperialismo

econômico camuflado com uma retórica humanista”. Infelizmente, seu

tempo ainda é o nosso tempo.

Referências ARRUDA, J. M. Carl Schmitt: Estado, Política e Direito, In: OLIVEIRA, M. et alii. Filosofia Política Contemporânea. Petropolis: Vozes, 2003, p. 56-86. DYZENHAUS, D. Law as Politics. Carl Schmitt’s critique of Liberalism. Londres, 1998. GOTTFRIED, P. Carl Schmitt: Politics and Theory. Greenwood Press, 1992. MOUFFE, C. Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy, In: C. MOUFFE (ed.): The Challenge of Carl Schmitt. Londres: Verso, 1999, pp. 38-53. SCHMITT, C. Die geistesgechichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Berlim: Duncker & Humblot, 1969. ______. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. (1922). 6. Berlim: Duncker & Humblot, 1993a. ______. Verfassungslehre. Berlim: Duncker & Humblot, 1993b. ______. Legalität und Legitimität. Berlim: Duncker & Humblot, 1993c. ______. Positionen und Begriffe. Berlim: Duncker & Humblot, 1994. ______. Staat, Grossraum, Nomos. Berlim: Duncker & Humblot, 1995. ______. Der Begriff des Politischen. Berlim: Duncker & Humblot, 1996 .

A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA: A BIOPOLÍTICA, O ESTADO DE EXCEÇÃO, A VIDA NUA

Sandro Luiz Bazzanella

Universidade do Contestado

Selvino José Assmann

Universidade Federal de Santa Catarina

Questões introdutórias: Agamben e a Biopolítica

Giorgio Agamben jurista e filósofo, é um dos pensadores mais

lidos na atualidade. Nascido em Roma em 1942. Sua obra tem início

nos anos 70, com ênfase no debate em torno da estética e da obra de

arte, assumindo a intensidade das reflexões políticas em meados dos

anos 90. Neste sentido, a obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida

nua I, publicado em 1995 (no Brasil em 2002, pela editora da UFMG),

marca de forma mais contundente suas reflexões no âmbito da política.

Esta obra, que inaugura uma série denominada Homo Sacer, pode ser

definida, como a obra que produz o encontro entre duas linhas de

força do pensamento político do século XX, que nunca haviam se

encontrado: Hannah Arendt e Michel Foucault. É a partir das

perspectivas destes dois pensadores que o filósofo italiano

movimentará suas pesquisas e investigações em torno dos fenômenos,

advindos de sua concepção da biopolítica como politização da vida

nua. É a vida nua que constituirá para Agamben a marca distintiva da

modernidade, resultante das estruturas políticas ocidentais desde seus

primórdios.

Agamben vai consolidando em sua obra uma corajosa leitura do pensamento político contemporâneo, recorrendo a paradigmas extremos como o ‘campo de concentraç~o’ ou o ‘estado de exceç~o’ e, sobretudo falando da biopolítica como luta da vida e das formas da vida contra o poder, que procura submetê-las a seus fins por meios muitas vezes ilegítimos (ASSMANN, 2007, p. 7).

64

Na tentativa de nos aproximarmos do arco conceitual e

discursivo do filósofo, cabe citar alguns pensadores, que se situam

entre suas influências filosóficas e, sobretudo, temáticas. Mas, observe-

se que tais aproximações não se dão sem o devido reconhecimento e,

salvaguardadas as diferenças conceituais e interpretativas de cada

filósofo em jogo, entre eles: Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Walter

Benjamin, Hannah Arendt, Michel Foucault, Carl Schmitt, Gerson

Scholem, Émile Benveniste. Talvez ainda se possa dizer que Agamben

é um filósofo cuja matriz de pensamento é aristotélica, na medida em

que seu perquirir filosófico desenvolve-se pensando as singularidades

em sua essencialidade no plano da imanência absoluta. É uma forma

de pensar o mundo, a vida em sua totalidade naquilo que lhe é próprio,

em sua condição singular imanente. Ou seja, Agamben pretende fazer

uma ontologia da vida, ou dito de outro modo, uma ontologia da

potência que incida diretamente nas mais diversas formas-de-vida que

se articulam na história em geral e na contemporaneidade de maneira

específica.

Quanto ao conceito de biopolítica, em seu texto: “O que é um

dispositivo”, Agamben argumenta de que o cuidado terminológico, o

trato conceitual é condição de primeira grandeza do trabalho

filosófico. “As questões terminológicas s~o importantes na filosofia. [...]

a terminologia é o momento poético do pensamento”1. Nesta

perspectiva, a influência decisiva na discussão conceitual em torno da

biopolítica é de Michel Foucault, que a partir de suas pesquisas e

cursos desenvolvidos no Collége de France em meados da década de

70, toma o conceito de biopolítica de escritos de economia e estatística

dos séculos XVIII e XIX e o insere no contexto da dinâmica política

moderna e contemporânea. Porém, aponte-se para o fato de que as

influências de Foucault sobre o pensamento de Agamben, transcendem

o conceito de biopolítica, implicando na concepção e no método do

exercício do filosofar, como exercício que busca, a partir de uma

perspectiva arqueológica, genealógica e paradigmática, as

1 Le questioni terminologiche sono importanti in filosofia. [...], la terminologia è il

momento poetico del pensiero. AGAMBEN, Giorgio. Che cos' è un dispositivo?

Roma: Editora Nottetempo, 2006, p. 05 (Tradução de Vinícius Nicastro Honesko

(In) AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó:

Editora Argos, 2009, p. 27).

65

descontinuidades políticas, éticas, epistemológicas que condicionam

ontologicamente a ocidentalidade na contemporaneidade. Mas - vale ressaltar uma vez mais – que influência neste caso

não significa repetição ou manutenção do que outro autor já havia dito. Há muita diferença entre dizer – como o faz Foucault – que a biopolítica é um fenômeno relacionado ao nascimento do Estado moderno e, de sua racionalidade técnico-administrativa em relação ao território e a população que o compõem, reconhecendo as influências constitutivas do poder pastoral, características do exercício do poder eclesiástico presente no mundo judaico-cristão medieval, e sustentar, como o faz Agamben, que a biopolítica é intrínseca à experiência política ocidental desde seus primórdios, ou então, que ela é constitutiva da própria política ou das relações de poder político. Sendo assim, a biopolítica tem uma dimensão ontológica, enquanto para Foucault não se pode falar da biopolítica a não ser como característica da política a partir do século XVIII. Por isso também, para Agamben, a biopolítica (fazer viver e deixar morrer) se vincula à teoria da soberania (fazer matar e de deixar viver), enquanto para Foucault a teoria da soberania, mesmo que conviva historicamente com a biopolítica, se distinga claramente da biopolítica.

No que concerne ao conceito de estado de exceção, vale assinalar a aproximação de Agamben com Walter Benjamin e, sobretudo, nesta discussão em específico, com Carl Schmitt, filósofo e jurista alemão (1888 – 1985), que desenvolveu intensa reflexão em torno da dinâmica política ocidental, afirmando seu caráter intrínseco de exceção, bem como seus fundamentos teológicos judaico-cristãos medievais, herdados, ou secularizados pela modernidade. Agamben assim se posiciona:

O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (...) que, se eu queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu devia medir-me. Como com um inimigo antes de tudo – mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão (ROBERTO, 2008, p. 3).

66

A máquina/dispositivo política: A Biopolítica, o Estado de

Exceção, a Vida Nua.

Como decorrência da máquina/dispositivo antropológica que

divide animalidade de humanidade, Agamben aponta e amplia sua

crítica à metafísica ocidental em suas estruturas políticas presentes

desde seus primórdios. A polis materializa-se sobre a fratura

originária, entre animalidade e humanidade, entre voz e phone, entre

physis e nomos. A vida humana sob determinadas prerrogativas,

própria dos gregos, passa a ser concebida como vida qualificada

politicamente e, portanto, pode ser incluída na polis. Neste sentido, a

zoé é vida biológica não qualificada, e bios é a vida política como tal,

como vida qualificada.

Em sentido inverso, a vida concebida em sua dimensão

biológica está desprovida das condições e dos direitos políticos

necessários a seu ingresso na vida qualificada da comunidade política,

mas mantida no espaço da “oikos”, da casa em função da necessidade

de produção cotidiana das condições de sobrevivência e da

reprodução da mesma.

A política se apresenta então como a estrutura, em sentido próprio fundamental da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre o ser vivente e o logos (AGAMBEN, 2002, p. 16).

O que está em jogo nas investigações arqueológicas e

genealógicas de Agamben é a apreensão de modelos paradigmáticos

na gênese e estrutura da política e da cultura ocidental, como condição

de possibilidade de compreensão das formas a partir das quais a vida

foi e sempre é aprisionada pela política e da centralidade que a

economia assumiu na modernidade e na contemporaneidade. É a

busca da compreensão de como a política, em sua condição ontológica,

articula-se contemporaneamente com a racionalidade pragmática

administrativo-política de gestão da vida humana em sua dimensão

eminentemente biológica, caracterizando o paradigma biopolítico

contemporâneo. Mas também tem sentido perguntar pelas possíveis

formas-de-vida que deste contexto vêm e surgem no tempo presente:

“o que est| em quest~o é a vida nua do cidadão, o novo corpo

biopolítico da humanidade” (AGAMBEN, 2002, p. 17).

67

Para Agamben, a história política do Ocidente pode ser

interpretada como a história do abandono, do sacrifício, mesmo que

insacrificável da vida nua pelo poder soberano. É a vida que, em sua

nudez biológica, passa a ser assumida pela política, fazendo-a viver ou

deixando-a morrer, de acordo com os interesses geridos pelo

permanente estado de exceção que a acompanha, otimizando as

formas-de-vida humana para contemplar, a partir de uma lógica de

produção e consumo, os interesses em jogo nas relações de poder.

Desta forma, o fundamento do poder político desde seus primórdios

reside sobre a vida em sua dimensão biológica, em sua característica

sacrificável, submissa ao poder de morte do soberano. Aqui, mais uma

vez, chamamos atenção para diferenças nas análises foucaultianas e

agambenianas da biopolítica. Podemos dizer, em certo sentido, que o

filósofo italiano procura desenvolver uma filosofia da história, mesmo

que não seja a de uma história simplesmente progressiva, cujo fio

condutor da análise são as formas-de-vida que se estabeleceram e suas

relações com as estruturas políticas, teológicas e econômicas em cada

contexto, o que também o leva a diferenciar-se da leitura política de

Carl Schmitt. Nesta condição Agamben assim se posiciona:

A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoè-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva (AGAMBEN, 2002, p. 16).

Nesta perspectiva, o filósofo italiano vai buscar numa

obscura figura do direito romano, o homo sacer, o modelo

paradigmático de produção e justificativa da vida nua no contexto da

estrutura jurídica e política do Ocidente, marcada pelo poder soberano

e pelo estado de exceção. Toma como pressuposto o fato de que o

termo latino “sacer” contém em si duas determinações de significado

aparentemente opostas: “sagrado” e “mat|vel”. Agamben procura

compreender o sentido da sacralidade da vida enquanto princípio

inviolável e elemento político originário. Neste sentido, as

justaposições de “sacer” indicam aquele que está fora tanto do direito

humano na medida em que é sagrado, quanto do direito divino, por ser

matável, sem uma justificação sacrifical.

68

En primer lugar, el homo sacer es una figura del derecho romano arcaico que Agamben retoma y vuelve a pensar modernamente, en cuanto a su función en el derecho romano es una pena, un castigo por el cual se consagra a un hombre a los dioses infernales. En esta consagración se lo está sacando del reino de la tierra, pero no se le está sacrificando, por lo que aún no ha ingresado al reino de los cielos. Como explica Émile Benveniste, la pena era aplicada por los mismos dioses en el sentido de una venganza. “Qui legem violauit, sacer esto. “Que quien viole la ley, sea sacer” [...]. Por outro lado, homo sacer será también quien haya tocado lo sacer, y esta manera debe ser desterrado de la comunidad, no se lo castiga pero tampoco se castiga aquel que lo mate (TAUB, 2008, p. 118).

Sob tais pressupostos, o homo sacer apresenta-se como

habitante de uma zona de indeterminação entre vida humana e morte

consagrada, demonstrando como a sacralidade é apenas a figura de

uma vida nua fundante da dinâmica jurídico-política presente na

gênese da civilizaç~o ocidental. “[...] o homo sacer pertence ao Deus na

forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da

matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra”

(AGAMBEN, 2002, p, 90).

Para Agamben, que aqui e em tantos outros textos tem como

parâmetro as reflexões de Carl Schmitt, o paradigma biopolítico está,

como já dissemos, na gênese da civilização ocidental, nas cisões

originárias que fundam a polis, que contrapõem physis e nomos. Esta

concepção de biopolítica como condição paradigmática presente na

estrutura originária da civilização ocidental é o que o diferencia de

Foucault. E tal diferença – insistimos – faz com que Agamben não seja

um mero “discípulo” ou continuador da obra de Foucault, como tantos

querem. Mesmo que não nos pareça suficiente, parece válido o

comentário de Baumann a este respeito:

O filósofo do direito Giorgio Agamben pretende verificar, com base nas teses biopolíticas do Michel Foucault tardio, a concepção não-jurídico-institucional do biopoder e completá-la de certa forma, confrontando-a com o cerne do poder soberano – o poder sobre vida e morte. O biopoder é examinado e ampliado com fenômenos como o campo de concentração, o fugitivo, o complexo técnico-médico, mas precisamente com o

69

direito sobre eles, gerado pelo Estado. O próprio Foucault não teria mais conseguido elaborar adiante essa concepção, depois que colocou preliminarmente de lado os aspectos e as premissas jurídico-institucionais de suas análises do discurso do biopoder moderno. Agamben reivindica, portanto, ter escrito o livro que o próprio Foucault deveria ter escrito, se não tivesse, por fim, desviado da crítica da biopolítica e se devotado às questões da natureza estatal e da soberania sob o aspecto predominantemente subjetivo da “governamentalidade” (BAUMANN, 2003, p. 13).

Podemos dizer que Foucault sempre ressaltou que tudo é

construção humana e que de algum modo a história é sempre uma

ruptura com a natureza, enquanto Agamben alerta para o fato de que

aquilo que denomina como vida nua, mesmo que seja a resultante de

uma produção específica do poder e não um fato natural, nunca

derrota definitivamente uma natureza humana. O humano é aquilo que

participa da natureza em sua abertura constitutiva, mas

paradoxalmente sua condição de humanidade implica um ser no uso

complexo da linguagem e de cultura. Neste sentido, a vida nua é a

resultante das articulações da política e do direito no exercício do

poder soberano em constante estado de exceção que as separa de seu

contexto societário, produzindo vidas destituídas de Voz, de

linguagem, de cultura, vidas, reduzidas a pura biologicidade e, sob tais

condições podendo ser submetidas a situações-limites de vida e de

morte de acordo com os interesses e a lógica do poder em curso.

O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o “muçulmano” em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero (COSTA, 2006, p. 135).

De acordo com Agamben, na Antigüidade clássica, os gregos

(e esta é uma característica desde os primórdios da civilização

ocidental presente até nossos dias, a indeterminação conceitual da

vida), qualificavam as formas-de-vida basicamente em dois níveis Zoe

e Bios. A característica da primeira forma-de-vida, a Zoe, era o fato de

procurar representar a vida em sua totalidade. Vida animal, vida

70

humana e, vida dos deuses e, mais especificamente do ponto de vista

da Polis, era a vida própria dos escravos, dos comerciantes, das

mulheres e das crianças em sua proximidade e vinculação com a vida

biológica. Portanto, a Zoe apresentava-se como vida desqualificada na

perspectiva da Polis, forma-de-vida que estava sob os cuidados do

poder doméstico exercido pelo Pater. A Bios designava a forma-de-vida

de um indivíduo, de um grupo; era a vida qualificada do cidadão em

sua participação na dinâmica política da polis, dos debates públicos.

Era assim, portadora de direitos e deveres públicos e, reconhecida

nesta condição como meio para o alcance da felicidade, do bem viver.

Los griegos no disponían de un término único para expresar lo que nosotros queremos decir con la palabra vida. Se servían de los términos semántica y morfolo gicamente distintos: zoé, que expresaba el simple hecho de vivir común a todos los vivientes (animales, hombres e dioses) y bíos que significaba la forma o manera de vivir propia de un individuo o de un grupo (AGAMBEN, 2001, p. 13).

Para Agamben, assim como no dispositivo antropológico, o

que possibilitou ao homem romper com a natureza na qual a vida se

inseria em sua condição biológica, fechada em si mesma, elevando-se à

condição de humano, com a possibilidade de cindir-se uma vez mais no

plano da vida humana entre zoe e bios, transformando-se num “animal

político”, segundo a cl|ssica definiç~o de Aristóteles como “zôon

politikòn” é a condição do ser humano possuir Voz. E, a partir desta

Voz, desenvolver a linguagem que nomeia o mundo, a existência,

conferindo-lhe um logos que lhe permitiu desencadear operações de

pensamento, a partir do qual nomeia os entes que lhe são externos,

constituindo o mundo, o sentido e a finalidade de sua existência,

afirmando sua humanidade.

Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento

71

obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil (ARISTÓTELES, 2006, p. 5).

Através do domínio da linguagem, da palavra, o ser humano

rompe com a vida no seu estrito âmbito biológico. Transforma-se num

ser vivo dotado de linguagem, aristotelicamente como “Zôon lógon

échon”, o que lhe permite a constituição da cidade, da Polis, da

comunidade política, que para além da preservação da vida biológica,

tem como princípio teleológico a busca do bem viver.

Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular, reunimo-nos, mesmo que seja só para pôr a vida em segurança (ARISTÓTELES, 2006, p. 53).

Porém, para Aristóteles a busca do bem viver, por parte do ser

humano, não é a mera busca do viver, a partir do qual se articula a

Polis; dessa forma, ele transcende o fato imediato da proteção e da

segurança como condição de continuidade da vida biológica,

estabelecendo uma íntima relação com a vida concebida como uma

bios, como vida qualificada que se materializa no espaço político

decisório das questões vitais em torno da Polis, como o locus por

excelência da vida do cidadão. Espaço que busca materializar nas

práticas da vida humana, a ordem, a harmonia, a beleza presente no

cosmo e, na busca deste ideal ético e estético, a vida qualificada

caracteriza-se por ser “(...) uma vida dedicada aos assuntos públicos e

políticos” (ARENDT, 1991, p. 20), que realiza sua plenitude vital no

encontro entre plurais, no confronto de opiniões e ideias em relação

aos interesses da coletividade, daquilo que é público. “E é aqui que

Aristóteles distingue entre a finalidade mais alta da política que

consiste em um viver modalizado, o viver feliz ou bem (eu o kalòs zen),

e uma finalidade inicial e de ordem inferior que é o viver

simplesmente”2.

2 “Ed è qui che Aristotele distingue fra la finalità più alta della política che consiste

in un vivere modalizzato, il vivere felice o bene (eu o kalòs zen), e una finalità

72

Mas não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se fez o Estado, sem o quê, a sociedade compreenderia os escravos e até mesmo os outros animais. Ora, não é assim. Esses seres não participam de forma alguma da felicidade pública, nem vivem conforme suas vontades. [...]. O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão meios para isso, e a própria Cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência. É isto o que chamamos de uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma saciedade de vida comum do que uma sociedade de honra e de virtude (ARISTÓTELES, 2006, p. 53-56).

Sob estas prerrogativas, segundo Hannah Arendt,

“Aristóteles distinguia três modos de vida (bioi) que os homens

podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das

necessidades da vida biológica e das relações dela decorrentes”

(ARENDT, 1991, p. 20). É na Ética a Nicômaco que encontramos as

distinções entre as três bioi:

[...] a vida dedicada aos prazeres (bíos apolaustikòs), a vida política (bíos politikòs), e a vida contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre na Ética a Nicômaco, todavia, o viver, zen, é definido ‘por si mesmo como um bem e uma coisa agrad|vel’, enquanto a vida, zoe, é “bem por natureza” (1170 a-b)3.

A escolha por um destes modos de vida decorria da liberdade

de que dispunham os cidadãos no exercício pleno da atividade política

na polis, desvencilhados dos imperativos e das exigências do trabalho

executado pelos escravos e, também, do trabalho artesanal, do

iniziale e di ordine inferiore che è el vivere simplicemente” (Tradução nossa).

MOSCATI, Antonella di. Zoé/Bíos. (In): BRANDIMARTE, R; STUTTE-

Chiantera P.; VITTORIO P. Di.; MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A;

SIMONE A. LESSICO DI BIOPOLITICA. Roma: Manifestolibri, 2006, p. 337. 3 “[...] la vita dedita al piacere (bíos apolaustikòs), la vita política (bíos politikòs), e

la vita contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre nell‟Etica Nicomachea, tuttavia, il

vivere, zen, é definito “di per sé un bene e una cosa piacevole”, mentre la vita, zoe,

é “um bene per natura” (1170 a-b)” (Tradução nossa). MOSCATI, Antonella di.

Zoé/Bíos. (In) BRANDIMARTE, R; STUTTE-Chiantera P.; VITTORIO P. Di.;

MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A; SIMONE A. LESSICO DI

BIOPOLITICA, 2006. Op cit., p. 337.

73

comércio que se impõem cotidianamente sobre os homens, como

garantia de manutenção da vida e, consequentemente, tolhendo a

liberdade de ação e de movimento na polis. Desta forma, os três modos

de vida que se apresentam aos seres humanos que dispõem de

liberdade teriam em comum:

[...] o fato de se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que n~o eram necessárias nem meramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano (ARENDT, 1991, p. 21).

Através da gênese antropológica e política da civilização

ocidental, Agamben confirma a tese de que desde os primórdios

civilizatórios a vida se torna objeto da política, seja pela condição

biológica da vida que lhe é limitante no acesso à vida qualificada na

pólis, ou mesmo, em seu inverso, como vida qualificada, que se realiza

no espaço por excelência da liberdade política da cidade. Esta

perspectiva biopolítica se articula no decorrer da civilização ocidental,

apresentando-se na modernidade a partir da precedência da vida

biológica sobre a vida política.

Voltando novamente à obra: A condição humana (1991),

Arendt apresenta detalhadamente de que forma, a partir do Império

Romano, passando pelas estruturas conceituais da cultura judaico-

cristã medieval, a modernidade transforma-se no locus da inversão e

da ruptura com a condição ontológica da Polis grega, na medida em

que a economia passa a ser determinante, elevando o trabalho e, por

fim, o labor4, a condição característica e determinante da existência

política das populações transformadas em sociedades de massas.

Sendo assim, “[...] quase conseguimos nivelar todas as atividades

humanas, reduzindo-as ao denominador comum de assegurar as

4 Hannah Arendt é contundente em seu posicionamento diante da condição

moderna ao reduzir o imperativo da pragmaticidade dos processos de labor a que

estão submetidas as massas humanas ao redor do planeta. “[...]. Laborar significa

ser escravizado pela necessidade, escravidão está inerente às condições de vida

humana” (1991, p. 94).

74

coisas necessárias à vida e de produzi-las em abund}ncia” (ARENDT,

1991, p. 139).

Na modernidade inaugura-se um avassalador processo de

biologização da política e, na mesma medida, de politização da vida.

Agamben confirma as análises que o precederam de Arendt e Foucault,

de que o fato determinante na modernidade é ter tornado a vida

biológica, a zoè, objeto determinante da política e não mais a bios, a

vida qualificada presente no centro da antiga Pólis grega. “Ambos, en

definitivo, han mostrado como la politización de la zoe, de la vida

desnuda, determina una profunda modificación de los conceptos

políticos de la Antigüedad” (CASTRO, 2008, p. 50).

A leitura que Hannah Arendt faz ao longo de sua obra e, de

forma mais específica, em A condição humana (1991), procura

demonstrar como na modernidade a política, a vita activa, presente

entre os gregos foi suprassumida pelo trabalho e pelo labor na

sociedade de massas humanas atomizadas em processos de produção

e de consumo. Tal fenômeno desdobra-se nas experiências totalitárias

que o século XX vivenciou. Na obra As origens do totalitarismo III –

Totalitarismo, o paroxismo do poder (1979, p.????), a filósofa alemã

apresenta esta condição na seguinte formulação:

Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário [...]. O termo massas só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. [...] Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção.

Por seu turno, Foucault, partindo dos conceitos de biopolítica

e de biopoder, investiga de que forma os Estados nacionais modernos

constituíram a racionalidade administrativo-política a partir da qual

estabeleceram rigorosos processos de gestão do território, dos

75

indivíduos e da população. “Foucault, en efecto, con los conceptos de

biopoder y biopolítica hace referencia al proceso por el cual, con la

formación de los estados nacionales modernos, la política se hace

cargo, en sus cálculos y mecanismos, de la vida biológica de los

individuos y de las poblaciones” (CASTRO, 2008, p. 50).

Com o advento e a especificação do capitalismo industrial, uma inédita aritmética política abala o vivente. Se a disciplina ("a anátomo-política"), para regular o modo de produção capitalista, se ocupa do corpo individual, a biopolítica é o dispositivo que aprimora, radicaliza e intensifica a sua tarefa: governa, n~o só o corpo, mas a vida biológica como tal: “{ diferença da disciplina, que atinge o corpo, esta nova técnica de poder não disciplinar se aplica à vida dos homens, ou melhor, atinge não tanto o homem-corpo, quanto o homem que vive, o homem como um ser vivo. Poderíamos dizer que, no limite, atinge o homem-espécie”. O bio-poder reproduz e administra a vida5.

Porém, o fato decisivo na leitura e na análise que Agamben

faz da biopolítica, para além das interpretações de Hannah Arendt e de

Foucault, é pensá-la a partir de uma matriz jurídica que relaciona

direito e vida, presente desde os primórdios da ocidentalidade,

manifestando-se na figura do poder soberano e do estado de exceção

que se tornam regra na modernidade permitindo tomar a vida em sua

nudez, em sua biologicidade desprovida de qualquer direito político.

Transforma, assim, a totalidade da vida num objeto de gerenciamento

por parte do Estado; otimiza as potencialidades vitais e deixa morrer,

5 Con l`avvento e la specificazione del capitalismo industriale un`inedita aritmetica

politica travolge il vivente. Se la disciplina (“l`anatomo-política”), per regolare il

modo di produzione capitalistico, si occupa del corpo individuale, la biopolitica è il

dispositivo che ne raffina, radicalizza e sviluppa il compito: governa, cioè, non piú

esclusivamente il corpo, ma la vita biologica in quanto tale: “a differenza della

disciplina, che investe il corpo, questa nuova tecnica di potere non disciplinare si

aplica alla vita degli uomini, o meglio, investe non tanto l`uomo-corpo, quanto

l`uomo che vive, l`uomo in quanto essere vivente. Potremmo dire, al limite, che

investe l`uomo-specie”. Il bio-potere riproduce e amministra la vita. (Tradução

Nossa). AMATO, Pierandrea. La natura umana e il potere: La nozione de

biopolítica nell`opera di Michel Foucault. (In) AMATO, Pierandrea (a cura di). LA

BIOPOLITICA: Il Potere Sulla Vita e la Costituzione della Soggettività.

Milano: Eterotopie Mimesis, 2004, p. 27.

76

de acordo com os cálculos de custo e benefício estabelecidos pela

dinâmica econômica determinante das relações vitais produtivas e de

consumo.

Que a vida passa a ser concebida como vida nua, submetida

ao poder soberano e ao estado de exceção, significa afirmar a

“estatizaç~o do biológico”. “Na politizaç~o da vida desnuda como tal,

ele reconhece o acontecimento decisivo da Idade Moderna, a saber, a

‘transformaç~o radical das categorias político-filosóficas cl|ssicas’.

Quando a soberania produz o corpo biopolítico da população, a vida

desnuda por um lado se torna o fundamento da política ocidental”

(BAUMAN, 2003, p. 13).

A crítica de Agamben às formas de vida na

contemporaneidade “[...] parte de una teoria de la soberanía, en donde

la vida es el elemento original da la política y constituye el núcleo

originário aunque oculto del poder soberano” (HEFFES, 2007, p. 9).

Portanto, a perspectiva de Agamben se abre à análise do poder

soberano como condição para encontrar uma zona de

indiscernibilidade, de confluência entre o modelo jurídico

institucionalizado e a constituição moderna de biopoder, de poder

administrativo sobre a vida e a morte, estendido à condição humana

em sua totalidade. É nesse contexto que se situa a afirmação de

Agamben:

A presente pesquisa concerne precisamente este oculto ponto de interseção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. O que ela teve de registrar entre os seus prováveis resultados é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário [...] do poder soberano (AGAMBEN, 2002, p. 9).

Assim, Agamben formula a crítica à noção de soberania

retomando a constatação do jurista alemão Carl Schmitt em sua obra

“Politische Theologie”, publicada em 1922. Nesta obra, de múltiplas

faces e argumentos, o jurista parte do princípio de que a exceção está

no interior da estrutura jurídica: “A exceç~o n~o é trazida para dentro

do direito, eis que j| se encontra nele [...]” (GRAU, 2006, p. IX). Este é o

paradoxo sobre o qual se funda a soberania no Ocidente. “O paradoxo

da soberania se enuncia: o soberano está ao mesmo tempo, dentro e

77

fora do ordenamento jurídico” (AGAMBEN, 2002, p. 23). Portanto, na

cl|ssica definiç~o de Schmitt: “Soberano é quem decide sobre o estado

de exceç~o” (SCHMITT, 2006, p. 7).

Carl Schmitt, chama a atenção para o fato de que o direito e a

aplicabilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas

obedecem { lógica das decisões políticas. “A ordem jurídica, como toda

ordem repousa em uma decis~o e n~o em uma norma” (SCHMITT,

2006, p. 11). Este pressuposto permite ao jurista alemão ir mais longe

e afirmar que a existência da norma somente é possível a partir de

uma determinada decisão que justifique o sentido do ordenamento

jurídico. Não há sentido e nem aplicabilidade possíveis da norma em

situaç~o de caos. “[...] o direito ‘n~o possui por si nenhuma existência,

mas o seu ser é a própria vida dos homens’. A decis~o soberana traça e

de tanto em tanto renova este limiar de indiferença entre o externo e o

interno, exclusão e inclusão, nómos e physis, em que a vida é

originariamente excepcionada do direito” (AGAMBEN, 2002, p. 34).

Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais e os quais ela submete à sua regulamentação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa normalidade f|tica n~o é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar. Ao contr|rio pertence { sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante (SCHMITT, 2006, p. 13).

A efetivação e validade da norma dependem essencialmente

da anormalidade como seu contraponto. O que significa dizer que o

soberano se encontra ao mesmo tempo fora e dentro da norma

jurídica, o que lhe permite decidir quando, como e onde pode vigorar o

estado de direito. Ao situar-se dentro e fora do direito, é a exceção que

confirma e, principalmente, condiciona a regra. “O particular ‘vigor’ da

lei consiste nesta capacidade de manter-se em relação com uma

exterioridade. Chamamos relação de exceção a esta forma extrema da

relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclus~o”

(AGAMBEN, 2002, p. 26). Ou dito ainda de outro modo, “Se a exceç~o é

a estrutura da soberania, a soberania não é, então nem um conceito

78

exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica,

nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema

do ordenamento jurídico (Klesen): ela é a estrutura originária na qual

o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”

(AGAMBEN, 2002, p. 35).

É a partir destes pressupostos sobre os quais se assenta o

poder soberano que Agamben se posiciona defendendo: “[...] que la

excepción es el dispositivo y la forma de la relación entre derecho y la

vida (CASTRO, 2008, p. 52). A forma como nos constituímos política e

juridicamente no Ocidente, remete a uma relação do direito com a vida

que se caracteriza ao mesmo tempo por situações de exclusão e

inclusão da vida. Cria-se assim uma zona de indiscernibilidade entre

fato e direito. “A situaç~o que vem a ser criada na exceç~o, possui,

portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma

situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre

estas um paradoxal limiar de indiferença” (AGAMBEN, 2002, p. 26).

Lo interesante del concepto de excepción (soberana) que Agamben resignifica y amplia desde el pensamiento de Carl Schmitt es, primero, que esta relación de excepción es positiva: la situación que crea la excepción introduce entre las situaciones de hecho y derecho un “umbral de indiferencia”- como ya mencioné – y, este umbral es el propio estado de excepción en donde se distingue lo que está adentro y lo que esta afuera. Entonces, no tiene como fin controlar un exceso (como el fundamento primigenio de la creación de esta norma jurídica) sino la de definir un espacio. Así podría pensarse este espacio como un lugar indiferente. [...] la indiferencia en si no es positiva ni negativa, sino que posibilita un actuar, un tipo de comportamiento dentro de este estado de indiferencia en las relaciones entre los hombres. [...] El estado de excepción es la manera en que modernamente se hace efectiva la violencia en manos del poder soberano y, específicamente, es el momento en que el poder soberano decide efectivizar el uso de su violencia y así confirma la excepción como estado (TAUB, 2008, p. 58-59).

Para Agamben, a modernidade caracteriza-se pelo paradoxo

da soberania, na medida em que as decisões soberanas se situam num

espaço de indecidibilidade e indiscernibilidade entre fato e direito,

entre vida qualificada, detentora de direitos, e vida nua, desprovida de

direitos e exposta à violência. O soberano tem a possibilidade de estar

79

dentro e fora da lei ao mesmo tempo. E é neste contexto que a

soberania produz o corpo biopolítico da população, dispondo de sua

vida e das condições de sua morte. Faz morrer, ou, deixa viver.

Portanto, o paradoxo da soberania é que esta politiza a vida

desnudando-a de seus direitos políticos. Situando-a numa zona de

indiscernibilidade entre fato e direito, justiça e injustiça, entre vida

matável ou sacrificável, vida nua e vida protegida pelas declarações

universais de direito.

O paradoxo da soberania se enuncia: “o soberano est|, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. [...] o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei est| fora dela mesma”, ou ent~o: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

É sob estas perspectivas civilizatórias que Agamben aponta

para o fato inconteste de que o estado de exceção faz parte da

estrutura jurídica e política do Ocidente, desde sua gênese, até aos dias

de hoje. “O significado imediatamente biopolítico do estado de exceç~o

como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por

meio de sua própria suspens~o” (AGAMBEN, 2004, p. 14). As formas a

partir das quais a vida foi potencializada e colocada em ato está na

origem da dinâmica política que se move num constante estado de

exceção em relação à norma, à lei e à justiça.

O estado de exceção apresenta-se assim como a

inclus~o/exclus~o da “vida nua”, na dimens~o puramente biológica e

situando-a na centralidade dos cálculos de custo e benefício do capital,

e exclui de sua dimensão cidadã, plural, portadora de direitos e

deveres. Esvazia-a de sua condição qualificada que se estabelece na

politicidade dos espaços públicos no encontro de pluralidades que

confrontam suas visões de mundo em busca do bem viver, da

felicidade, de formas-de-vida que se reconhecem porque se articulam

politicamente.

É, pois, neste sentido que a exceção constitui a estrutura fundamental da lei e se apresenta como o traço que melhor define o seu caráter soberano: porque expressa uma ruptura da totalidade da ordem jurídica vigente numa determinada

80

situação, e, porque nessa ruptura, a extrema necessidade do juízo coincide com o seu caráter sumário, a exceção manifesta simultaneamente quer uma potência de incluir excluindo, quer uma potência de excluir incluindo. Por isso, pôde Schmitt dizer da excepç~o que “é mais interessante do que o caso normal. O caso normal não prova nada, enquanto a exceção prova tudo. Não só prova a regra, como é a própria regra que vive só da exceção [...]” (BENTO, 2000, p. 1-19).

Agamben alerta para o fato de que o que caracteriza

decisivamente a política ocidental é a presença estrutural do estado de

exceção, este estado de indiscernibilidade entre a vida e a vida nua, no

espaço de inclusão e exclusão, de aplicação da norma e de sua

ineficácia. A intensidade desta análise questiona as clássicas definições

da política como qualificação das formas-de-vida pública na

perspectiva platônica e aristotélica. Ou na leitura que se realiza das

prerrogativas contratualistas sobre as quais se funda a concepção do

Estado moderno, alicerçado nos princípios da liberdade e da igualdade

de condições e de direito.

Neste sentido, operando por fraturas, cisões, inclusões e

exclusões, a estrutura biopolítica manifesta-se na modernidade em

várias perspectivas entre elas: a promulgação dos direitos do homem e

do cidadão pela Assembléia Nacional Constituinte da França em 1789,

ao mesmo tempo em que, em vários momentos posteriores, mas de

forma mais específica nas primeiras décadas do século XX, durante a

primeira e a segunda guerra mundiais, milhões de seres humanos

viram-se destituídos de seus direitos, numa zona de anomia que

permitia sua execução por parte do poder soberano.

Esta estrutura biopolítica continua a manifestar-se de forma

contundente na divisão entre direitos do homem e do indivíduo que se

encontra cada vez mais privatizado em si mesmo, e os direitos do

cidadão, na medida em que a cidadania é concebida como o dever de

produzir e o direito de consumir o que for possível. Ou seja, cidadania

na modernidade significa obediência à lógica da racionalidade gestora

da vida e da morte em sua totalidade. São situações contemporâneas

em que os indivíduos se encontram cada vez mais lançados em zonas

de anomia. Por isso, tem razão Agamben em dizer:

A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos

81

fundamental, exprime ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono (BENTO, 2000, p. 91).

Portanto, o posicionamento de Agamben em relação às

formas-de-vida que se configuraram na ocidentalidade, com especial

atenção à contemporaneidade, encontra seu ponto de aglutinação a

partir da VIII tese da filosofia da história de Walter Benjamin, que se

apresenta na seguinte formulação: “A tradição dos oprimidos nos

ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. [...]” (LÖWY,

2005, p. 83). A análise de Agamben parte do pressuposto de que

vivemos em pleno estado de exceção cuja principal característica é a

redução da vida a condição de vida nua, destituída de direitos, de

cidadania, da condição de participar efetivamente nas decisões

políticas que afetam diretamente sua condição.

Sob tal ótica, as formas-de-vida que se apresentam, na

contemporaneidade, reduzidas à condição de vida nua, estão

submetidas à redutibilidade exclusivamente biológica de sua condição,

o que permite que a vida seja objeto da política, transformando-se em

biopolítica. “A defesa da vida tornou-se um lugar-comum. Todos a

invocam, desde os que se ocupem de manipulação genética até os que

empreendem guerras planetárias” (PELBART, 2003, p. 13).

As análises agambenianas apontam em várias direções, mas

duas delas parecem significativas no contexto da análise apresentada

até este ponto. Independente da ordem de prioridade dos argumentos

aqui apresentados, a questão é que a biopolítica se afirmou

significativamente na modernidade como técnica de governo, de

gestão da vida produtiva e de consumo das populações e,

contemporaneamente, como conjunto de técnicas de controle

biológico da espécie. Articula-se através de um biopoder, que se

caracteriza num poder sem precedentes sobre formas de

potencialização da vida e da morte, sobre os corpos e as mentes de

milhões de seres humanos, num estado de exceção permanente.

Portanto, a política moderna, transformada em biopolítica enquanto

potencialização da vida, possui na tanatopolítica seu outro pólo

constitutivo. Produz constantemente “vida nua”. Inclui e exclui.

Incorpora e abandona sistematicamente milhares de vidas supérfluas

e indesejáveis. Neste contexto, transforma todas as vidas humanas em

vidas supérfluas e matáveis.

82

É sob estes pressupostos – e por mais que receba críticas por

isso – que, para Agamben, o campo de concentração é o paradigma da

modernidade. Foi nos campos de concentração que a vida foi

despojada inteiramente de seus direitos, apresentando-se como vida

nua par excellence na plenitude do estado de exceç~o. “Antes de ser o

campo da morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda

impensado, no qual, para além da vida e da morte, o judeu se

transforma em muçulmano e o homem em não-homem” (AGAMBEN,

2008, p. 60). No campo de concentração, o exercício do poder

soberano como prerrogativa de deixar viver ou fazer morrer

apresenta-se na plena potencialidade e em ato, na execução sumária

da vida sacrificável porque é vida nua, despersonalizada, injustificada

e, portanto, fora de qualquer estrutura jurídica que possa ampará-la.

Primo Levi em sua obra Os afogados e os sobreviventes (2004),

apresenta um relato contundente da condição da vida nua naquele

contexto:

Cercado pela morte, muitas vezes o deportado não era capaz de avaliar a extensão do massacre que se desenrolava sob seus olhos. O companheiro que hoje tinha trabalhado a seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido varrido do mundo; não havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um enorme edifício de violência e de ameaça, mas não podia daí construir uma representação porque seus olhos estavam presos ao solo pela carência de todos os minutos. [...] Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio não tatearam o fundo. Quem o fez não voltou, ou então na sua capacidade de observação ficou paralisado pelo sofrimento e pela incompreensão (LEVI, 2004, p. 14).

O campo de concentração manifestou, de forma radical, o

limite entre a bios e a zoe, entre o direito e o vazio do direito, entre o

humano e o inumano, a partir de duas figuras paradoxais presentes no

campo: a figura do Muselmann (muçulmano) como “homo sacer”, como

vida nua, matável e sacrificável, e a do “Sonderkommando”, esquadrão

especial composto por prisioneiros que passam a ser os encarregados

pela gestão das câmaras de gás e dos fornos crematórios, recrutados

pelos soldados nazistas da SS (SS, sigla que se refere a palavra alemã

Schutzstaffel, que significa “Esquadr~o de Proteç~o”. Era um grupo

83

ligado ao Partido Nazista, criado em 1925). Os Sonderkommando, cuja

criaç~o é considerada por Levi “o delito mais demoníaco do nacional-

socialismo”, acabavam agindo a partir da lógica do estado de exceção

em tempo integral, decidindo sobre a vida e a morte dos prisioneiros

do campo.

Os Esquadrões Especiais eram constituídos em sua maior parte pelos judeus. Por um lado, isso não pode espantar, uma vez que o objetivo principal dos Lager era destruir os judeus e que a população de Auschwitz, a partir de 1943, era constituída por judeus numa proporção entre 90 a 95%, por outro, fica-se atônito diante deste paroxismo de perfídia e de ódio: os judeus é que deveriam pôr nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que os judeus, sub-raça, sub-homens, se dobram a qualquer humilhação, inclusive à destruição de si mesmos. Além do mais, atestou-se que nem todos os SS aceitavam de bom grado o massacre como tarefa cotidiana; delegar às próprias vítimas uma parte do trabalho, e justamente a mais suja, devia servir (e provavelmente serviu) para aliviar algumas consciências. [...] Alguns testemunharam que aqueles desgraçados dispunham de uma grande quantidade de bebidas alcoólicas, encontrando-se permanentemente num estado de embrutecimento e de prostraç~o total. Um deles declarou: “Ao fazer este trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou ent~o se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou me deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros: somos como vocês, só que muito mais infelizes” (LEVI, 2004, p. 44-45).

O “muçulmano” caracterizava-se na realidade dos campos de

concentração como vida em pura dimensão biológica, desprovida de

direitos políticos, desprovida de si mesma, de linguagem, de eticidade

e, consequentemente, de dignidade. Enfim, vida nua, homo sacer,

desprovido de todo e qualquer direito humano, perde sua condição de

comunicabilidade e isto lhe impede de reconhecer-se como humano,

fica exposto à violência pura do poder soberano que decide sobre sua

vida e sua morte. “Talvez nunca, antes de Auschwitz, foram descritos

com tanta eficácia o naufrágio da dignidade perante uma figura

extrema do humano, e a inutilidade do respeito de si frente à absoluta

degradaç~o” (AGAMBEN, 2008, p. 69).

84

Agamben aponta para o fato de que o campo é a evidência

dramática da manifestação in concreto da matriz biopolítica originária

presente na ocidentalidade desde seus primórdios. Por isso, o nazismo

não pode ser visto, segundo o pensador italiano, como uma exceção na

trajetória da civilização ocidental, mas a manifestação contundente das

fraturas e das rupturas metafísicas da mesma, e sobre as quais se

articula toda a estrutura política e jurídica que aprisiona a vida e a

mantém em uma condição de indiscernibilidade como condição da

produção de vida nua, de vida sacrificável.

O campo é o espaço de realização da matriz biopolítica

ocidental na medida em que é o espaço de materialização em plenitude

do poder soberano e do estado de exceção sobre a qual se manifesta a

violência soberana. Fixa-se assim, à revelia de toda e qualquer ordem

jurídica e política na qual se constituíram os direitos humanos,

destituindo os seres humanos de sua condição política originária, o

momento em que a vida deixa de ser politicamente relevante e,

portanto, torna-se mat|vel, sacrific|vel. “Auschwitz é exatamente o

lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, como

regra e situação extrema. Converte-se no próprio paradigma do

cotidiano” (AGAMBEN, 2008, p. 57).

[...] en los campos existía un orden que excluía de su condición de hombres-políticos a aquellos que allí fueron llevados. Los que estaban a cargo de los campos tomaron para si la violencia soberana porque en este contexto el poder soberano fija el momento en que la vida deja de ser políticamente relevante. Es el momento biopolítico de la modernidad por excelencia. [...] si el Führer es la ley y se dirige directamente a ellos, ellos son los portadores políticos de la ley-viviente: cada hombre era como un dios soberano, y como tal, podía decidir sobre el otro sin responder de nadie. [...] En realidad esta indeterminación acaba por radicalizar la situación normativa (no suspenderla), y es por ello que no hay comportamiento por fuera de lo que el Führer ordena (TAUB, 2008, p. 60).

Sem que aqui discutamos melhor esta incômoda afirmação

de Agamben de que o campo é o paradigma de toda política

contemporânea, e nao só do nacional-socialismo, podemos sustentar

que o posicionamento analítico e inquiridor do autor frente às formas

de vida que se constituem politicamente no Ocidente, apresenta uma

85

realidade contemporânea inquietante, senão desestabilizadora, na

medida em que afirma categoricamente que: “El campo es el espacio

que se abre cuando el estado de excepción empieza a convertirse en

regla” (AGAMBEN, 2001, p. 38). O tempo é um tempo de produção em

massa de “homines sacri”, de seres humanos lançados em uma situaç~o

de anomia, de abandono, de irrecuperáveis vidas nuas, desprotegidas,

matáveis e sacrificáveis de acordo com os interesses e as normas que

paradoxalmente se propõem a proteger a vida e a liberdade humanas.

Sob tais pressupostos pode-se dizer que o campo se

reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de

vigilância a que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão

expostos. Nesta mesma perspectiva, o campo se reproduz nos

espasmos de violência dos exércitos nacionais e pretensamente

supranacionais, ou das polícias nacionais e globais a que se atribui o

direito de intervenção em outros países em nome de uma pretensa e

paradoxal defesa da liberdade, e também está presente na biopirataria

em busca de material genético de florestas, animais e seres humanos.

Sob estas perspectivas, o campo se manifesta em nosso dia-a-dia e,

fundamentalmente, na medida da busca por segurança, mesmo que

isto implique na perda da liberdade.

O campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento – ou, antes, o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem transformar-se em uma máquina letal. É significativo que os campos surjam juntamente com as novas leis sobre cidadania e sobre a desnacionalização dos cidadãos. [...] O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zonas d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. [...] O campo, que agora se estabeleceu firmemente em seu interior, é o novo nómos biopolítico do planeta (AGAMBEN, 2002, p. 182-183).

Considerações finais

A partir destes pressupostos metafísicos em que se articulam

demandas políticas e jurídicas sobre a vida no Ocidente, a

manifestação do poder soberano implica a existência do par

inclusão/exclusão da vida e de produção de vida nua como condição

86

da vida qualificada, cabe o questionamento formulado por Emmanuel

Taub: “[...] ¿habría poder soberano en la modernidad sin la posibilidad

de transformar a parte de la población en homo sacer?” (TAUB, 2008,

p. 141).

A resposta a este questionamento, encontra-se no próprio

Agamben, no livro que faz referência às discussões até aqui

desenvolvidas, “Homo Sacer”: o poder soberano e a vida nua” (2002),

em que o filósofo italiano afirma peremptoriamente: “Quando vida e

política, divididos na origem e articulados entre si através da terra de

ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a

identificar-se, então toda a vida torna-se sacra e toda a política torna-

se exceç~o” (AGAMBEN, 2002, p. 55).

Porém, outros questionamentos podem ser feitos à análise de

Agamben, entre elas: Se o campo é a realidade última e permanente da

estrutura político-jurídica, manifesta desde os primórdios da

civilização ocidental e materializada no estado de exceção em que

vivemos, o que será possível esperar das formas-de-vida que se

colocarem em jogo neste contexto?

Entre as várias respostas implícitas na estrutura discursiva e

analítica de Agamben, serão apresentadas três possibilidades

presumivelmente convergentes. A primeira está na dinâmica do

próprio estado de exceção que, por ser exceção à regra, pode abrir

espaços para as diversas formas-de-vida a se confrontarem na

formulação de novas regras de jogo e não apenas obedecer àquelas

existentes. A exceção seria assim a condição da abertura de uma

exceção vital que poderia potencializar outras formas-de-vida.

Uma segunda possibilidade emerge do argumento anterior,

mas potencializado por uma concepção rememoradora e redentora de

tempo, ou seja, na medida em que o tempo que virá não virá como

promessa de futuro, mas que, escatologicamente já se faz no presente

na medida em que surge das memórias, das lutas, das dores, dos

sofrimentos, das alegrias do passado, articulando formas-de-vida

compatíveis com o contexto do tempo presente. A terceira

possibilidade, para a qual convergem as duas anteriores, relaciona-se

com as formas-de-vida resultantes da potência do pensamento como

condição da constante e ininterrupta abertura para o vir-a-ser, para o

que virá.

87

Ou seja, o posicionamento filosófico e reflexivo de Agamben,

vinculado a uma ontologia da potência, remete a pensar para além da

violência biopolítica constitutiva do ocidente e manifestada em toda

sua potencialidade na contemporaneidade, remetendo ao resgate da

condição política como modo de ser ocidental, o que pode permitir

tornar a política condição e locus privilegiado da experiência do que

vem a todo instante, a cada momento. E o que vem, simplesmente virá.

Não virá de um futuro pré-anunciado, como horizonte de verdade

gnosiológica essencial, de finalidade reservada à humanidade, mas

vem a cada instante em que o qualquer um, o ser qualquer, em que a

singularidade na simplicidade de suas relações, se apropria do mundo,

da vida, da existência como condição do bem viver, constituindo-se

assim uma nova forma-de-vida.

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TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: PRELÚDIO À DESCENTRALIZAÇÃO A PARTIR DA FILOSOFIA

POLÍTICA MODERNA

Walter Marcos Knaesel Birkner

Universidade do Contestado

Ao sugerirmos o título acima, reconheçamos desde o início

que, sendo sinônimo de inclinações, propensões ou caminhos

possíveis, a express~o “tendências” tem um significado umbilical com a

história, indicando movimento. Desse modo, é apropriado afirmar que

aquilo que denominamos nosso “processo civilizatório”, nos termos de

Norbert Elias, está a nos indicar o tempo todo os sinais dessas

inclinações, as explicações sobre a morte e surgimento de costumes e

instituições, e suas conformações ao longo do tempo. Não poderia isso

ser diferente em relação a uma das mais importantes instituições da

trajetória histórica do Ocidente, qual seja: o Estado. E, apesar do plural

sugerido no título, falaremos basicamente de uma das aparentes

tendências do Estado contemporâneo: a descentralização. Para tanto,

tentamos apresentar o argumento a partir de uma leitura

interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as

ciências sociais e a história.

Não obstante, para o melhor esclarecimento, é útil explicar o

propósito de interpretar os movimentos de descentralização como

uma tendência do Estado contemporâneo. É resultado de um interesse

investigativo que remonta às primeiras investigações sobre um

movimento de descentralização política que emergiu em meados da

década de noventa do século XX em Santa Catarina, com o surgimento

dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado - FDRI1. Eram

organizações mistas que integravam representantes da sociedade civil

e dos governos estadual e municipais. O propósito geral era o de

encontrar alternativas ao desenvolvimento das regiões catarinenses.

Naquele momento, tratava-se do arranjo sinérgico entre comunidades

regionais e a esfera governamental, esta última apresentando os

primeiros sinais de insuficiência da forma de administração

1 A respeito desse assunto, consultar BIRKNER, 2006; SIEBERT, 2001.

92

centralizada ante os efeitos da globalização e da reestruturação do

Estado2.

Já na primeira década do século XXI, os FDRI foram

sucedidos pela política de descentralização governamental implantada

com as Secretarias de Desenvolvimento Regional, em curso a partir de

2003. Desde então essa experiência tem sido objeto de

acompanhamento investigativo, cujo significado, ao largo de outras

experiências brasileiras e internacionais, procuramos corroborar aos

argumentos que sugerem os movimentos de descentralização como

uma tendência contemporânea do Estado.

Para o desenvolvimento dessa idéia, precisamos considerar,

sumariamente, a formação do Estado moderno. O movimento histórico

que conduz à sua emergência, e que a historiografia em geral data

entre os séculos XIV e XV, é marcado primeiramente por impulsos

centrípetos. Assim, o Estado moderno é de modo geral o resultado de

conflitos e associações entre senhores feudais na disputa por terras e

ampliação territorial. No interior desse processo, o fortalecimento do

poder levou à centralização, que redundou no absolutismo (ELIAS,

1993). Posteriormente, o movimento antitético ao absolutismo começa

a se esboçar historicamente somente no século XVIII (SENELLART,

2006) e resulta, não sem idas e vindas, na instituição da democracia

contemporânea. E, se assim podemos falar, o primeiro grande

consenso em torno desta começa a ser lentamente edificado no

Ocidente a partir da segunda metade do século XX.

Na quadra atual, portanto, ao olharmos para as tensões e

movimentos do Estado, é possível identificar inclinações

descentralizadoras ocorrendo no Ocidente nos últimos sessenta anos.

Contemplam, aparentemente, uma importante transição na trajetória

democrática no Ocidente, revelando-se nos experimentos políticos

contemporâneos, cada vez mais próximos de nós3. Nesse sentido,

situemos nos primeiros anos do pós-guerra o início dessa tendência,

em função dos esforços de democratização e liberdade econômica

realizados no Ocidente, como também pelo compromisso internacional

2 A respeito da reestruturação do Estado, sugere-se consultar: PEREIRA; SPINK,

1998. 3 Atualmente, existem algumas experiências de descentralização em curso no

Brasil, como em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia e Pernambuco.

93

a favor da paz e dos direitos humanos, cuja manifestação mais

emblemática é a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948.

Na America Latina, por sua vez, o amplo processo continental

de fim das experiências autoritárias, dando lugar à volta da

democracia, tem redundado mais recentemente em esforços na

promoção de tentativas de descentralização política e administrativa.

Mais especificamente no Brasil, o ponto de partida para um longo

processo em curso é a Constituição de 19884.

Hobbes: homem lobo do homem e o direito à vida

A fim de somar com o argumento da tendência

descentralizadora, torna-se útil a recorrência à obra Do Estado

soberano ao Estado das autonomias, do cientista social português

Carlos Eduardo Pacheco do Amaral (1999). No entendimento desse

autor, estaríamos vivendo a passagem histórica de um Estado

centralizado, predominantemente hobbesiano, para um Estado

descentralizado, cada vez mais regional, na trilha do liberalismo

político de John Locke.

Acompanhando o raciocínio de Amaral, o Estado estaria

vivendo uma crise de soberania, sinalizada pelas dificuldades de

governar, distribuir poder, atender demandas e promover o

desenvolvimento hegemônico. Ora, essas dificuldades podemos bem

admiti-las diante de certas situações. Por exemplo, quando nos

defrontamos com os atuais desequilíbrios regionais no interior de um

país, podemos perceber as dificuldades de o Estado contemporâneo

manifestar seu poder hegemônico. Primeiramente, porque a forma

mais recente de manifestação desses desequilíbrios tem a ver com a

globalização desencadeada na última década do século XX. E, do ponto

de vista do poder político, a principal característica desse processo é a

sobreposição e influência de interesses econômicos privados sobre os

desígnios do Estado-nação. Em outras palavras, essa sobreposição

significou, mais do que nunca, em perda de soberania.

Na mesma perspectiva dessa crise do Estado podemos

identificar os problemas que os governos nacionais enfrentam

relacionados à segurança pública e à violência urbana.

Sobrecarregado, responsável por tentar impor a ordem através de um

4 Para uma explicação sobre isso, ler FLEURY, 2009.

94

equilíbrio muito precário entre a punição, a correção e a proteção aos

direitos humanos, o Estado tem diante de si uma responsabilidade por

demais complexa para enfrentá-la sozinho. Isso não se difere em

relação à sua dificuldade em atender as demandas pelos direitos

sociais vinculadas à concepção do welfare state, que potencializou

consciências coletivas incessantes na reivindicação de direitos que os

indivíduos aprenderam a entender como inalienáveis de sua condição

de vida. Nesse sentido, a operacionalização das políticas públicas se

tornou praticamente impossível sem a descentralização do poder, ou

pelo menos a sua desconcentração5. Essa situação de incapacidade de

atendimento força o Estado, por diversos caminhos, a se aproximar

dos indivíduos e das comunidades para governar de forma

compartilhada em atendimento às demandas que não cessam. Essas

demandas são, inclusive, de procedimento, portanto pautadas pelo

desejo de maior autonomia política, expresso por segmentos sociais6.

Não se ignore aqui, o que seria inocente, o quanto a “m~o” do

Estado é necessária ante a grandeza dos problemas, principalmente

esses relacionados à segurança e à assistência social. Nessa seara,

alguns cenários são claramente hobbesianos. Não obstante, é no

atendimento à multiplicidade dos problemas corriqueiros e cotidianos

que o Estado manifesta os limites do seu alcance e eficiência. Precisa

da sociedade, como precisa das regiões, embora tenha muito mais

facilidades em protagonizar do que em reconhecer autonomias

regionais e compartilhar poder. Assim, as experiências em curso

revelam as contradições naturais entre vontades e resistências, num

vai e vem histórico cujos resultados não são absolutamente seguros,

mas podem sugerir tendências.

5 Alguns autores questionam o termo descentralização, ao afirmarem que

experiências governamentais que se anunciam nessa direção não passam de

processos de desconcentração de serviços, sem que a esfera governamental

efetivamente proporcione autonomia política necessária para que tais processos

efetivamente descentralizem poder. Ver: FILIPPIM; ABRUCIO, 2010; BINOTO;

RIBEIRO; DALLABRIDA; SIQUEIRA, 2010. 6 É importante considerar o movimento histórico de demandas emancipatórias,

provocadas por Ongs e redes sociais de cidadãos críticos, consumidores exigentes

e emissores de informação. Por conta das vias de comunicação e troca de

informações, jamais o Mundo presenciou indivíduos tão convencidos como hoje da

legitimidade de suas demandas e do direito de participar da formulação e

operacionalização do atendimento a elas.

95

Nesse sentido, é imperioso um esforço interpretativo desse

movimento histórico no sentido de testar a hipótese aqui apresentada,

qual seja a de uma tendência histórica de descentralização do Estado

contemporâneo. Para isso, sugerimos que esse esforço, sem abrir mão

do pretenso rigor metodológico das ciências sociais, se apóie na

filosofia política moderna. Isso requer, aqui o sugerimos, uma

recorrência ao jusnaturalismo, desde a justificação absolutista até a

defesa da liberdade individual e das autonomias regionais7.

Para tanto, apresentemos resumidamente o dorso filosofal

dessa trajetória que vai da centralização do poder até a sua tendência

oposta. E, ao fazermos isso, precisamos dizer mais uma vez que

qualquer originalidade aparente nesta interpretação deve ser

atribuída às percepções e indicações de alguns autores consultados

aqui. Nessa direção, voltemos a Amaral (1999), que faz referência a

três nomes da filosofia política moderna, a fim de interpretar o

movimento histórico no rumo da descentralização.

Em termos de teoria do Estado, o filósofo moderno a quem

mais se recorre para demonstrar a justificação do Estado centralizado

é Thomas Hobbes. Sobre isso, desconhecemos discordância. Trata-se

de uma justificativa do Estado forte, o Leviatã, a partir de sua

concepção antropológica, isto é, de um entendimento sobre a natureza

humana. Como deve saber qualquer estudante de ciências sociais,

filosofia ou direito, Hobbes entende que o contrato social se firma

entre os homens que, reconhecendo sua incapacidade de auto-

organização, abrem mão de sua liberdade. E o fazem outorgando ao

Estado a tarefa exclusiva – o monopólio - do uso da violência, como

ameaça ou de fato, para garantir a todos o direito natural à vida e à

segurança8. Ao atribuir uma natureza malévola ou egoísta aos homens

7 De modo geral, esse esforço interpretativo sugere o encontro da história, da

filosofia e das ciências sociais. 8 Para que tenhamos uma idéia de como o pressuposto hobbesiano é influente nas

concepções da ordem política moderna, considere-se, por exemplo que essa idéia

do sacrifício da liberdade em nome da segurança é a principal justificativa das

experiências autoritárias e totalitárias. Era exatamente essa a posição de Golbery

do Couto e Silva, artífice intelectual do regime militar brasileiro, ao defender uma

intervenção autoritária no Brasil da década de sessenta e justificar posteriormente o

golpe de 64. Mas essa posição, já encontramos nas palavras do cientista político

Samuel Huntington, não por acaso consultor em três governos militares brasileiros.

Huntington, como seu leitor Golbery, sustentava que pelas peculiaridades

históricas do Brasil, justificava-se uma suspensão temporária das liberdades em

96

[homem, lobo do homem], estava apresentada a condição de

justificação do Estado soberano, ente superior único capaz de garantir

ordem social. Não deve causar surpresa que essa concepção continue

implícita na cultura política ocidental, mesmo no interior de ambientes

institucionalmente democráticos, durante o século XX. A rigor, como

admitimos anteriormente, são inúmeras as situações sociais,

relacionadas à segurança e à cidadania, a solicitarem a presença

soberana do Estado, sem a qual não haveria o que fazer.

Rousseau: o bom selvagem e a afirmação da igualdade

Não obstante, é também durante o século XX que podemos

verificar a progressiva afirmação dos direitos sociais. Se no século XIX

a organização do capitalismo permitiu a constituição de direitos civis,

o século seguinte foi palco da emergência de direitos políticos e

sociais. E, a despeito de todo o reconhecimento da práxis que resultou

na materialização desses direitos, homens e mulheres lutaram em

nome de valores, em nome de utopias e de certa concepção sobre o ser

humano, que novamente podemos encontrar na filosofia política

moderna. Esta concepção antropológica ajudou a justificar formas de

organização do Estado no século XX, estabelecendo pressupostos e

preceitos constitucionais nas principais democracias do Ocidente.

Grande parte dessa inspiração vem da concepção de homem e de

sociedade inerente ao pensamento de Jean Jacques Rousseau9.

No jusnaturalismo de Hobbes, é uma concepção

antropológica negativa da natureza humana que justifica a intervenção

centralizadora e exclusiva do Estado em nome do direito natural à vida

e à segurança. Portanto, no pacto social hobbesiano está obviamente

ausente a idéia da autonomia política da vida em comunidade. A

liberdade natural dos homens dá lugar ao direito à vida. Já no contrato

social de Rousseau, o ponto de partida sobre a natureza humana é

oposto. Se para Hobbes o homem nasce mau e a sociedade o civiliza

por meio do Estado Leviatã, para Rousseau o homem nasce bom e a

sociedade o corrompe. Noutras palavras, os homens nascem livres e

nome da segurança que permitisse a constituição paulatina de ambiente favorável

ao reestabelecimento das liberdades civis e constituição de uma democracia. 9 É, sobretudo, em Emílio ou Da Educação que encontramos a idéia do bom

selvagem.

97

iguais, mas a sociedade, por meio da propriedade privada, cria o

conflito e a desigualdade social.

Por conseqüência disso, o Estado se justifica se, e somente se,

garantir as condições do restabelecimento da natureza humana do

“bom selvagem”. Assim, enquanto o principal direito no Leviatã de

Hobbes é a garantia à vida, no pensamento de Rousseau será o

restabelecimento da igualdade entre os homens, sendo esta a

express~o da vontade geral e “condiç~o natural” que garantiria

inclusive a liberdade, daí a precedência da igualdade em relação à

última10.

Não parece difícil perceber, a partir desse entendimento, a

força do pensamento rousseauniano para a constituição histórica do

Estado de bem estar. Afinal, é antes de tudo o valor da igualdade o

ponto de partida para a reivindicação dos direitos sociais, maior

emblema do welfare state. E o welfare state é a mais emblemática das

experiências do Estado ocidental no século XX. Nesse sentido, a

afirmação dos direitos sociais foi mais intensa e, muitas vezes,

precedeu a afirmação dos direitos políticos. Salvo exceções, esses

direitos não vieram sem lutas. Mas, sendo possível reconhecer a força

do discurso socialista e o seu desdobramento mais pragmático no

Ocidente – a social democracia –, é mister reconhecer que a grande

batalha política ocidental no século XX foi pela afirmação da igualdade,

premissa mais importante do pensamento rousseauniano e única

condição necessária ao restabelecimento da liberdade tolhida pela

sociedade, por meio da propriedade privada.

É necessário reconhecer, portanto, a importância que teve a

concepção democrática de Rousseau ao fortalecimento do Estado de

direito, sobretudo o Estado dos direitos sociais, materializando as

condições de igualdade necessárias a fim da consecução da vontade

geral. Portanto, se a condição do Estado autoritário foi justificada

predominantemente em nome da segurança, a condição do Estado

democrático de direitos foi e continua sendo justificada

predominantemente em nome da igualdade, nesse contexto

compreendida como condição sine qua non da liberdade. Há um

importante consenso internacional acerca dessa premissa, conquanto

10

Note-se a semelhança com o que Marx dirá mais tarde a respeito da sociedade

capitalista.

98

nada autorize a falar em consolidação desse ideal, ante os desafios

mundiais no combate às desigualdades e à falta de liberdade11.

Não obstante, útil é lembrar que o último quartel do século

XX foi palco da insurgência neo-liberal de uma “nova direita”, por meio

do combate aos direitos instituídos pelo welfare state. A sugestão

pusilânime desses críticos do intervencionismo de bem estar foi na

direção de um capitalismo anárquico neo-darwinista12. Diante de

renovado cenário competitivo promovido pela globalização, e do

esgotamento concomitante do welfare state, a melhor resposta estaria

na menor intervenção do Estado. Assim, ao estatismo meio

hobbesiano, meio rousseauniano, sucederia uma proposta de Estado

mínimo nos termos de um reducionismo liberal de cunho

economicista.

Todavia, a crise de 2008, de modo geral entendida como

resultado desse neo-darwinismo, tratou de reduzir o discurso do

Estado mínimo a um movimento reacionário que pouco apresentaria

de “novo” { necessidade de revitalizaç~o da competitividade e do

próprio vigor de uma sociedade confortável e perigosamente

acomodada sob as “asas” do Estado. A necessidade persiste, mas a

resposta a ela parece carecer de um salto discursivo, a orientar a

perspectiva de mudança política. Nessa direção, novas respostas

estariam fora dos limites atuais do intervencionismo, mas também do

Estado mínimo.

Mais uma vez, é à filosofia política moderna que precisamos

recorrer. Pensando numa tendência contemporânea do Estado, a saída

estaria na numa espécie de revisão do contrato social capaz de

engendrar um sistema político que apresente a melhor combinação

possível entre “liberdade, co-responsabilidade e participaç~o”

(AMARAL, 1999, p. 127). Em primeiro lugar, isso implicaria na

superação do Estado centralizador e unitário, cuja conformação

discursiva encontramos, como já foi dito, no Leviatã de Hobbes. Mas

não é somente isso. Por extensão, implicaria também numa superação,

ainda que parcial, de uma concepção rousseauniana.

11

A maioria dos Estados-nações ainda é governada por regimes despóticos e

apresenta quadros de desigualdade social elevados. 12

O significado da expressão, sugerida por Amaral (1999), está relacionado às

proposições em favor da competitividade do livre mercado e à intervenção mínima

estatal.

99

Aqui é preciso explicar o car|ter “parcial” da superaç~o desta

última concepção. Se não é difícil sugerir a superação do centralismo

hobbesiano, claramente oposto à idéia liberal que compõe o

imaginário da democracia contemporânea, o mesmo não se pode dizer

de Rousseau. No contrato social deste último, há uma defesa da

coletividade, isto é, de uma vontade geral à qual as decisões do Estado

devem estar submetidas. Assim, a organização social estaria assentada

num acordo – o contrato social – em que os indivíduos condicionariam

as suas liberdades ao bem da coletividade, em consonância com o

interesse da maioria.

Ora, esse interesse da maioria, expressando a vontade geral

é, em suma, a epígrafe da democracia moderna. Nesses termos, o

contrato de Rousseau foi inspirador às variações interpretativas e

desdobramentos práticos na constituição de inúmeros Estados

democráticos, a começar pela França13. Nesse sentido, sua obra é

freqüentemente apresentada em oposição ao Leviatã de Hobbes.

Afinal, se o contrato social deste sugere a outorga dos indivíduos ao

Estado soberano, Rousseau sugere essa outorga à coletividade

soberana, à qual as decisões do Estado devem estar submetidas.

Enquanto Hobbes é o inspirador do absolutismo, Rousseau o é da

democracia.

Entretanto, há um desdobramento da concepção democrática

e antropológica que Rousseau propõe, e que redunda

contraditoriamente num Estado inibidor da autonomia dos indivíduos.

Ora, se por natureza o ser humano é bom, mas a sociedade o corrompe,

o papel do Estado seria o de reconduzi-lo à sua natureza boa. Isso se

daria através do contrato social que restabeleceria as condições de

igualdade entre os homens. Lembremo-nos que essa condição natural

de igualdade é originariamente perdida em sociedade em função da

instituição da propriedade privada. Segundo Rousseau, seria essa a

fonte de toda a desigualdade e vício humanos. Nessa condição, a

maioria estaria submetida e corrompida por uma minoria proprietária,

que se apossa do Estado e faz as leis de acordo com seus interesses,

impedindo a vontade geral. A materialização da vontade geral,

portanto, só se daria através do contrato, em que a maioria dos

homens entraria em consenso sobre a necessidade do

13

Rousseau é apresentado na literatura política como o maior inspirador dos ideais

da Revolução Francesa.

100

restabelecimento da igualdade, sendo a isto que o Estado estaria

submetido. Assim, a sociedade já não seria mais a corruptora da

natureza humana restaurada pelo contrato social, por sua vez

resguardado pelo Estado, vigilante e defensor permanente. Haja

Estado!

Nessa direção, o esforço primordial do Estado estará

permanentemente voltado ao estabelecimento das condições a essa

igualdade. Conquanto haja razoável consenso acerca dessa

necessidade, o problema é que põe em constante risco a autonomia

dos indivíduos. Dependendo da variação interpretativa, esse norte

orientador de pressupostos constitucionais e da formulação de

políticas públicas pode conferir um peso desmedido à vontade geral,

em detrimento dos direitos individuais. As conseqüências disso não

inumeráveis, podendo resultar naquilo que é facilmente identificado

com a crítica do conservadorismo liberal: estímulos à acomodação

coletiva e desestímulos à auto-responsabilidade14.

Nessa perspectiva, outro ponto importante é o que muitos

chamam pelo neologismo de “vitimizaç~o” dos indivíduos. Em outras

palavras, toda espécie de desvio comportamental, sobretudo dos

crimes, mas também da ignorância, da falta de politização etc., tende a

ser visto como efeitos de uma sociedade injusta e desigual, grande

causadora de todos os males. Já que os indivíduos são naturalmente

bons, seus desvios se explicam pela sociedade desigual que os

corrompe. Assim, o Estado é responsável pelo cumprimento do

contrato social, tendo a obrigação ética de se responsabilizar por esses

desvios, proteger e assistir, no lugar de imputar responsabilidades.

Nesse sentido, o Estado assume, em nome da vontade geral e da

concepç~o antropológica do “bom selvagem”, uma tarefa gigantesca.

Por isso, pode-se dizer que o Estado, ao tomar a si tarefas

que ele poderia compactuar com a sociedade, a despolitiza. Isso é

possível perceber, por exemplo, no excesso de “judicializaç~o” da

sociedade contemporânea, substituindo o diálogo, a política

comunitária, e reforçando o poder corporativista de certas profissões,

como as do advogado e do assistente social15. Essa tendência parece se

14

Em países como o Brasil, há uma considerável indisposição entre a maioria dos

intelectuais em relação a essa posição liberal-conservadora. 15

Em relação a essas profissões, pode-se inferir que o caráter rousseauniano da

Constituição brasileira, de um compromisso igualitarista, preencha de justificativas

101

manifestar nos sistemas prisionais, em que certos tipos de criminosos

seriam beneficiados por leis inspiradas nessa concepç~o do “bom

selvagem”. Na radicalizaç~o dessa perspectiva, criminosos s~o

entendidos como vítimas e não contraventores da sociedade. Eles

próprios tendem a assumir, de modo oportunista, esse discurso.

Portanto, retira-se a responsabilidade do indivíduo, imputando-a a

fatores externos, significando isso uma espécie de desumanização.

A conseqüência mais incomensurável dessa concepção

antropológica do bom selvagem é o fortalecimento da idéia do Estado

todo poderoso, guardião dos direitos. Ele passa a ser entendido como

promotor único e unitário da igualdade. Note-se que o faz em nome da

igualdade e não da segurança, embora o ímpeto centrípeto seja o

mesmo. Naturalmente, o aumento desse consenso justifica pressões

cada vez maiores dos indivíduos sobre o Estado, o que não deixa de

favorecer os inúmeros agentes estatais e seus interesses fisiológicos e

corporativos, cujas funções são justificadas pela necessidade do

atendimento às demandas. Assim, em nome da vontade geral, expressa

nas constituições resultantes dos amplos consensos nacionais, cresce

ad infinitum o aparato estatal. Governos assumem cada vez mais a

tarefa de promover o bem público, retirando das sociedades regionais

e locais a autonomia de resolverem problemas que o Estado

assoberbado não consegue. Nessa medida, atrofia a criatividade das

comunidades, matando a política na raiz. Diante da imensidão dos

problemas, cada vez que se diz “O Estado tem que fazer”, foge-se da

pergunta sobre “quais os limites desse Estado bem feitor?”.

Em meio a esse quadro de unitarismo estatal, em que o

centralismo absolutista hobbesiano é substituído pelo centralismo

democrático de Rousseau, ou os indivíduos se tornam voluntariamente

reféns de uma espécie assombrosa de totalitarismo da vontade geral,

ou o Estado se ramifica na sociedade, por meio de novas instâncias

intermediárias, locais e regionais. Nessa direção, não se trataria mais

da “proteç~o atomizada dos indivíduos isolados e abstratos” garantida

pela soberania do Estado centralizado, mas da consideraç~o “das

pessoas reais e situadas na pluralidade comunitária, contexto no qual

imprimem significado às suas vidas” (AMARAL, 1999, p. 128).

a necessidade dessas profissões, em defesa dos indivíduos ante uma sociedade

desigual e injusta.

102

Locke: o direito à liberdade em comunidade

Essa resposta ao centralismo significa, portanto, a

característica e o resultado cumulativo de um processo de mudança

política em curso em vários lugares do Ocidente. Significa uma

tendência do Estado contemporâneo de perda de unidade de poder

para uma difusão territorial em novas unidades intermediárias

(Ibidem, 131), como também no fortalecimento das unidades

federativas16.

Na filosofia política moderna, essa superação do centralismo

absolutista de Hobbes e do centralismo democrático de Rousseau,

podemos encontrar no liberalismo de John Locke (Ibidem, 135). A

tendência descentralizadora do Estado contemporâneo que

insistentemente sugerimos encontra, nos textos do filósofo inglês, um

aporte discursivo importante, embora não exclusivo17. Não se

encontra ali a alienação dos indivíduos a um ente exterior único, seja

ele o Estado, seja a coletividade. Ao contrário, os indivíduos são

portadores de direitos intransferíveis, sendo estes a vida, a liberdade e

a propriedade. O Estado existe como convenção dos indivíduos, que o

concebem para a garantia desses direitos. É para isso que os homens

criaram governos. Se, todavia, esses direitos não fossem respeitados,

os homens teriam todo o direito de se rebelar contra o governo injusto

e rejeitar suas imposições.

Na filosofia de Locke, o Estado tem suas funções específicas,

sobretudo administrativas, mas não chega a ser um ente soberano, de

poderes exclusivos. Tampouco, a coletividade dos indivíduos,

constituinte da vontade geral, pode sê-lo, em sobreposição aos

indivíduos autônomos. Nessa concepção, ao homem está resguardada

e imputada a condição autônoma de responsabilidade pelos seus atos,

vida e posses. Não compete ao Estado a intromissão, seja em nome do

que ou de quem for, penetrar no “núcleo privativo dos direitos e

16

No Brasil, existem algumas experiências de descentralização política e ou

administrativa em curso. Não obstante, aparecem na mídia e na bibliografia da

ciência política reivindicações ou indicações sobre a necessidade de um pacto

federativo entre União, estados e municípios, na direção de maior autonomia das

instâncias federativas sub-nacionais. 17

É também na obra de Alexis de Tocqueville, Democracia na América, que

encontramos importantes elementos constitutivos para uma defesa de governos

descentralizados.

103

liberdades naturais e originárias da condição pré-política do homem”

(Ibidem, seq. & Locke, 2007, p. 68-97). Cabe, ao contrário, que o Estado

garanta as condições públicas ao exercício desses direitos.

Nessa perspectiva, não é o poder político que age o tempo

todo, nas mais variadas situações, em nome dos direitos naturais.

Passa a ser o indivíduo, na assunção da sua autonomia e

responsabilidade, que age em comunidade, estabelecendo os acordos

mútuos para a vida política. Essa confiança na capacidade dos

indivíduos, sugerida no liberalismo de Locke, dispensa o grande e

centralizado aparato jurídico.

É este o real significado do Estado mínimo: o Estado de

confiança nos indivíduos em coletividade. Aquele cuja fortaleza está

justamente apoiada na autonomia das comunidades, facilitando a

tarefa do Estado. Nessa perspectiva antropológica, o indivíduo não é

simplesmente o ser atomizado e portador de direitos. Ele é o agente

desses direitos, única condição de garanti-los. Agora sim estamos

falando do sujeito político, condição resultante de sua liberdade

compactuada na comunidade, diante da qual é também responsável,

não apenas reflexo passivo. E, ao Estado, modo geral, é incumbência

garantir essa liberdade auto-refletida. Sua tarefa agora já não parece

tão grande.

A concepção antropológica de Locke confere ao homem a

tarefa geral de cuidar da sua vida, das suas posses e administrar a sua

liberdade em coletividade. E é justamente essa condição que aproxima

a sua perspectiva de uma ordem política baseada na autonomia dos

locais e regiões. Invocando Locke, mas também Tocqueville, Amaral

aponta para um nível intermediário entre o poder pessoal e o poder do

Estado, chamando a isso de poder civil local. Assim, de poder único, o

Estado passa a contar com mais duas entidades civis: as pessoas e as

autarquias, cada qual com suas atribuições e limites, não podendo uma

interferir noutra, salvo sob circunstâncias de consenso que o

requeiram (AMARAL, 1999, p. 142 & Locke, 2007, Segundo opúsculo).

Nesse sentido, o liberalismo de Locke ganha contorno

contemporâneo, servindo de aporte reflexivo às abordagens favoráveis

à regionalização e à descentralização do poder. Mas isso só é possível

afirmar na medida em que, no liberalismo de John Locke, o indivíduo

claramente antecede o Estado, sendo este sua concessão. Por extensão,

assim como o indivíduo, também os municípios e as regiões o

104

antecedem. Desse modo, advoga Amaral, “tal como {s pessoas

individuais, também às pessoas coletivas (municípios e regiões)

corresponde uma esfera de privacidade, de direitos e de liberdades

próprios e inalienáveis, e todo um âmbito de atividades e de funções,

na prossecução e na gestão das suas vidas próprias e dos seus

interesses específicos”. Nesse }mbito, continua o autor, “n~o é legitima

qualquer interferência por parte do Estado” (AMARAL, 1999, p. 141).

Desta feita, corresponde aos municípios e às regiões um poder

semelhante ao núcleo de direitos e liberdades naturais dos indivíduos.

Por conseqüência, a descentralização do poder e sua

regionalização aproximam o Estado das comunidades regionais. Nesse

processo, a criação de entidades intermediárias ajuda na governança

por meio da instituição de funções auxiliares. Entre outras vantagens,

essa aproximação tende a combater vícios favorecidos pela

centralização, como é o caso do patrimonialismo. E, ao contrário do

que pregam os defensores mais centralistas do Estado, amplia laços de

confiança entre governo e sociedade, fortalecendo e legitimando o

poder político estatal ao invés de enfraquecê-lo18.

Assim, o regionalismo e a descentralização apontam para a

própria afirmação do federalismo como tendência de uma mudança

histórica no republicanismo do Estado contemporâneo. Incentivar e

atribuir poder político e administrativo às regiões significa, não

obstante, potencializar a cultura, as formas de identidade, o diálogo, a

solidariedade e a cooperação, com desdobramentos positivos ao

desenvolvimento regional. Segundo Amaral, essa tendência

representaria a própria “reaç~o ao positivismo da Modernidade” –

aquele que anula as diferenças em nome de um grande e único projeto

civilizatório, que todos teriam de seguir (Ibidem, p. 180).

A descentralização em Santa Catarina: estudo de um caso

concreto

A explanação precedente tem um significado prático, como

dissemos no início: deve facilitar a análise de processos políticos

18

Nessa perspectiva das instâncias intermediárias de governança, a

descentralização e a regionalização significam algo diferente da relação que

Rousseau, no Contrato Social, sugere entre o Estado e os indivíduos, dispensando

as intermediações em nome do seu assembleísmo.

105

contemporâneos que sinalizam para impulsos centrífugos. Nesse

sentido, torna-se oportuna a apresentação de alguns resultados de

uma pesquisa de avaliação institucional sobre uma experiência em

curso, que é o processo de descentralização político-administrativo no

estado de Santa Catarina. A intenção é comparar as conjeturas

relacionadas à descentralização e regionalização políticas com os

resultados de uma pesquisa empírica sobre um processo real cujos

desígnios convergem de modo geral com o exposto anteriormente. A

pesquisa foi realizada durante o ano de 2009 com o objetivo geral de

avaliar os pontos fortes, fracos, as ameaças e oportunidades. Ao todo,

432 pessoas, integrantes do processo, responderam questionários ou

foram entrevistadas19.

Em 2003, o estado de Santa Catarina instituiu, através de

uma política de governo, as Secretarias de Desenvolvimento Regional –

SDR e seus respectivos Conselhos de Desenvolvimento Regional –

CDR20. Tais secretarias estão localizadas em cidades sedes de

microrregiões catarinenses. Como também dissemos no início, essa

política governamental de descentralização foi precedida pela

experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado, cujo

propósito geral de promoção do desenvolvimento regional era o

mesmo das SDR, o que permite falar num movimento centrífugo que

remonta a meados da década de noventa do século XX, quando estes

FDRI começaram a surgir21.

As SDR e seus CDR são vinculados à Diretoria de

Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão.

No seu organograma regional as SDR são compostas por um

secretário, com staff de primeiro escalão, de um diretor geral e de

gerentes de áreas. Sua principal incumbência é operacionalizar os

19

A pesquisa gerou um relatório de noventa páginas, com gráficos demonstrativos

relacionados aos percentuais das respostas, que foi entregue à Diretoria de

Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Santa

Catarina. 20

As SDR foram criadas no governo de Luiz Henrique da Silveira, da coalisão

PMDB-PSDB-DEM. Seu número inicial foi de 29 secretarias, depois atingindo o

total de 36. 21

A criação das SDR acabou se sobrepondo aos FDRI que, criados pelo

voluntarismo da sociedade civil regional, continham uma característica de tipo top

down. Apesar disso, o processo de descentralização e regionalização continuou,

não se podendo falar de um caso típico de solução de continuidade.

106

recursos vindos do governo estadual, assim como as decisões tomadas

nos CDR. Por sua vez, os CDR são compostos pelo presidente [o

próprio secretário regional], prefeitos, presidentes dos legislativos

municipais e dois representantes da sociedade civil de cada município.

A principal tarefa nessa instância consiste em acolher as demandas

municipais e intermunicipais, avaliar sua viabilidade, aprovar ou

reprová-las, e encaminhá-las à SDR.

A avaliação geral do processo por parte dos integrantes foi

considerada positiva durante o período de 2003 a 2009. Pela maioria

dos respondentes, a descentralização é considerada uma inovação na

forma de administrar a coisa pública e atender às demandas regionais.

Sobretudo, fica evidente nas manifestações de grande parte dos

integrantes o fato de a descentralização ter o sentido de atender a

aspirações naturais das comunidades regionais. Conquanto as

insuficiências sejam apontadas, a opinião majoritária é de

reconhecimento sobre as mudanças e expectativas que o processo

gerou. Nessa direção, a resposta mais emblemática e bastante

manifestada nos depoimentos é de que, com todas as idas e vindas, a

descentralização é dada como irreversível.

Veja-se abaixo, os principais pontos fortes apontados, isto é,

aqueles que obtiveram maior regularidade nas respostas sobre a

avaliação da descentralização:

- Amplificou, via reuniões mensais do CDR, o ambiente do diálogo

regional;

- Promoveu transparência ao submeter os projetos locais à apreciação

dos conselheiros, inibindo a formulação de demandas de duvidoso

interesse público;

- Estimulou a solidariedade e o senso de identidade micro-regional;

- Aumentou o conhecimento e a criatividade regionais com a troca de

experiências intermunicipais;

- Promoveu a proximidade entre comunidade regional e governo

estadual, aumentando o diálogo e diminuindo despesas;

- Melhorou o tratamento aos municípios menores, contemplando

demandas e diminuindo a desigualdade.

Na seqüência, apresentam-se os principais pontos fracos

mencionados pelos inquiridos. Veja-se:

- Falta autonomia orçamentária e financeira aos CDR;

- Por decorrência, diminui o caráter político do processo;

107

- Falta qualificação técnica e teórica dos operadores, sendo que a

reclamação pesa principalmente sobre os que ocupam cargos

indicados, mas também sobre os conselheiros.

- Há excesso de burocracia, pela existência dos trâmites burocráticos

que continuam passando pela administração centralizada.

Considerações finais

Pelo que apresentam as respostas da avaliação institucional,

pode-se verificar a convergência de alguns apontamentos dos

inquiridos com os pressupostos sugeridos anteriormente, baseados no

liberalismo de John Locke e na apreciação feita por Amaral. Tanto na

avaliação geral, quanto nos pontos fortes sugeridos em relação à

descentralização, pressupostos gerais encontrados na filosofia política

moderna se confirmam nas opiniões de agentes do processo

investigado. É nessa condição que encontramos opiniões sobre a

amplificação do diálogo regional, de maior transparência sobre as

decisões, na comparação com períodos precedentes de concentração.

Na mesma direção, inúmeros respondentes entendem que a

descentralização estimula a solidariedade, reforça o senso de

identidade regional, aumenta o conhecimento intrarregional, como

amplia a criatividade por conta da troca de experiências

intermunicipais. Além disso, confirmam os depoentes, a

descentralização aproxima a governo estadual dos municípios,

principalmente os mais distantes da capital. E, por fim, favorece os

municípios menores, combatendo a desigualdade regional.

Entre as quatro principais fragilidades apontadas pelos

inquiridos, da mesma forma fica evidente que os operadores do

processo estão cientes do que o processo requer para o seu

aperfeiçoamento. O primeiro ponto diz respeito à falta de autonomia

orçamentária e, por conseqüência, decisória dos Conselhos de

Desenvolvimento Regional, cujo principal desígnio é justamente o seu

caráter político. É que a liberação dos recursos continua na

dependência das secretarias setoriais de estado, centralizadas no

governo estadual. Daí que a insuficiência do papel político dos CDR,

reclamadas pelos inquiridos, é tão somente conseqüência deste

primeiro ponto. Tão importante quanto isso é a reclamação também

generalizada quanto à falta de qualificação técnica como também

108

teórica de muitos integrantes - esta última no sentido da compreensão

dos operadores sobre o significado político e histórico do processo. E,

por último, aparece a reclamação sobre os excessos de burocracia.

Trata-se de fenômeno inibidor à inovação, algo que a política de

descentralização se propõe a combater, mas que enfrenta a resistência

de um corpo burocrático conservador, que vê na descentralização uma

perda de poder.

De maneira geral, os pontos fortes e fracos enunciados

revelam, sobretudo, a consciência dos operadores sobre a situação

geral dessa política, como também tende a revelar expectativas e boa

vontade. Afinal, na medida em que o processo funciona, se revela o

atendimento ao anseio de comunidades regionais que sempre

reclamaram maior autonomia. Mais do que satisfação, o processo de

descentralização gerou expectativas nessa direção. Porquanto se

mostre insuficiente, pelos conflitos que naturalmente suscita, a

descentralização permite a compreensão de que mudanças são

possíveis tanto quanto desejadas, gerando, repita-se, expectativas

acerca delas. Além de tudo, a mudança política abre espaço para novas

lideranças, cuja ambição é um importante combustível à superação

dos obstáculos. Mas requer uma disposição governamental que parece

nunca estar garantida, sobretudo nas trocas de governantes. E requer,

igualmente, um processo de sensibilização permanente. Entre tudo o

que se observa até aqui, pode-se supor que, uma vez detonado, o

processo de descentralização criou insatisfações e aspirações

crescentes e incontidas. Isso posto, torna-se necessário investigar,

continuadamente, as possibilidades do caráter irreversível sugerido

pela maioria dos operadores inquiridos na pesquisa.

Finalmente, cabe lembrar que o propósito do exposto foi

abrir perspectivas interpretativas acerca do fenômeno contemporâneo

da descentralização, que entendemos aqui como uma tendência

política na conformação histórica dos Estados democráticos. E a forma

de fazê-lo foi a partir de um aporte na filosofia política moderna que

permita justamente compreender a trajetória histórica do Estado

moderno. Não estamos propondo isso por mero idealismo

epistemológico, no sentido de que os próximos passos políticos

requeiram as luzes da filosofia. É importante lembrar que o recurso à

filosofia não signifique algo além do vôo da coruja. Noutras palavras,

que ela ajude as ciências sociais a compreender o que se passa no

109

longo tempo, sendo isto o suficiente. Assim, a utilização da filosofia

política como prelúdio à interpretação de um caso real em curso

significa também o esforço do diálogo interdisciplinar. Em outras

palavras, significa a possibilidade de uma interpretação do longo

tempo, proporcionada pelo recurso à filosofia e também à história,

com a interpretação contemporânea e muitas vezes pontual dos

estudos empíricos das ciências sociais. Referências AMARAL, C. E. P. do. Do Estado soberano ao Estado das autonomias. Blumenau: Furb, 1999. ARON, R.. Etapas do pensamento sociológico. BINOTTO, E.; RIBEIRO, E. S.; DALLABRIDA, V. R.; SIQUEIRA, E. S. Descentralização político-administrativa: o caso de uma secretaria de estado. In: Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, vol. 6, p. 186-213, 2010. BIRKNER, W. M. K. Capital social em Santa Catarina: a experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado. Blumenau: Furb, 2006. BIRKNER, W. M. K.; TOMIO. F. R. L.; BAZZANELLA, S. L. A descentralização em Santa Catarina. In: Revista de Administração Municipal. vol. 275, out-dez/2010, p. 66-85. BIRKNER. W. M K.; BOELL, A.; RUDNICK, L. T. Secretarias de Desenvolvimento Regional de SC: avaliação parcial: período 2007-8. In: Revista Humus. vol. 02, abril/2011, p. 53-72. ELIAS, N. O processo civilizatório: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. _____. O processo civilizatório: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. FILIPPIM, E. S.; ABRUCIO, F. L.. Quando descentralizar é concentrar poder: o papel do governo estadual na experiência catarinense. In: Revista RAC, vol.14, n.2, p. 212-28, mar/abr de 2010. FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

110

LOCKE, J.. Ensaios políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. PEREIRA, L. C. B.; SPINK, P. K. Reforma do Estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro: FGV, 1998. ROUSSEAU, J-J. O Contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1997. SIEBERT, C. Desenvolvimento regional em Santa Catarina: reflexões, tendências e perspectivas. Blumenau: Furb, 2001.

TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: DO DELIBERATIVO AO AGONÍSTICO

Armindo José Longhi

Universidade Estadual do Paraná

Universidade do Contestado

Cada qual considera claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas (Marcel Proust)

Introdução

Na contemporaneidade percebe-se um fenômeno

significativo na política: crescente desinteresse dos indivíduos pela

política, principalmente por parte do grupo composto pelos jovens.

Como explicar? Para responder é necessário é pesquisar as múltiplas

questões envolvidas na relação estabelecida entre o indivíduo,

aprendizagem, formação política e prática política contemporânea.

Refletir sobre esta relação implica em pensar o processo de

aprendizagem presente na formação política do cidadão. A

preocupação volta-se para uma tarefa ambiciosa, ou seja, enquadrar

teoricamente um problema incomensurável: descrever o processo de

aprendizagem presente na formação política dos cidadãos. Da questão

norteadora se seguem outras: quais são as condições em que ocorre a

identificação do sujeito com a prática política? Por que é lugar comum

interpretar que os jovens não se interessam por política? O

individualismo hoje dominante oculta do cidadão a possibilidade de se

identificar com projetos políticos?

Explicar as múltiplas causas implicadas na participação

política é processo complexo. Encontramos diversos teóricos políticos

preocupados com o desenvolvimento de modelos políticos

contemporâneos mais democráticos, novas propostas de participação

e novas teorias que, quando aplicadas na sociedade, pretendem dar

conta do problema do desinteresse pela política. As possibilidades

apontadas pelas teorias pretendem devolver ao indivíduo o interesse

pela participação na política, por meio da associação com indivíduos

ou grupos sociais.

112

Entre as novas teorias citamos duas propostas. A primeira, o

modelo deliberativo, possui como principal representante Jürgen

Habermas quando propõem um modelo político baseado nas relações

intersubjetivas que se concretizariam na relação dialógica entre

indivíduos com os mesmos direitos e valores. O modelo proposto por

Habermas afasta as manifestações coercitivas dos pólos de disputas

dialógicas no campo social quando o indivíduo busca o consenso entre

diferentes alternativas. Segundo a proposta, o diálogo criaria laços

entre os indivíduos, afastando-os da consciência fechada sobre si

mesma (solipsista) que permanece presente desde o início da

modernidade e que já não serviria mais para a esfera política das

sociedades complexas.

A segunda proposta, o modelo agonístico, busca encontrar no

próprio indivíduo, na condiç~o ontológica de “o político”, os elementos

que definem o cidadão pelas suas características intrínsecas, utilizado,

por exemplo, a psicanálise, para identificar e entender o caráter

político presente nas relações de poder, encontradas na natureza do

indivíduo. Partindo das novas descobertas psicanalistas, utiliza estes

novos conhecimentos para criar um modelo de política democrática

vibrante, com indivíduos dispostos a defender seu grupo de

identificação, conscientes da importância de suas propostas para a

transformação da sociedade e, ao mesmo tempo, respeitam os valores

dos adversários mediante regras pré-estabelecidas, e assim

desenvolvem um novo interesse político baseado na identificação com

um grupo em uma sociedade pluralista.

Como decorrência dos dois modelos, encontramos modelos

políticos com diferentes preocupações quanto aos problemas

enfrentados pelas sociedades democráticas contemporâneas. Estes

modelos políticos divergem tanto sobre a forma dos indivíduos

atuarem na sociedade quanto a forma de desenvolver no indivíduo um

caráter político vibrante e participativo.

O modelo deliberativo e o agonístico são modelos políticos

divergentes entre si. O primeiro modelo é representado pelos teóricos

liberais, tanto os liberais de caráter agregativo quanto os de caráter

deliberativo. Deste último grupo faz parte Jürgen Habermas. Segundo

Mouffe (2007), tanto o modelo liberal quanto o agregativo anulam o

verdadeiro car|ter de “o político”.

113

Ateremo-nos em apresentar as críticas de Mouffe dirigidas as

teorias liberais, em especial ao modelo deliberativo proposto por

Habermas. O objetivo da apropriação é justificar a hipótese de que o

modelo liberal deliberativo produz o afastamento dos jovens da

política exatamente quando propõem a criação de novas perspectivas

de políticas democráticas.

Sociedade Democrática

A história do ocidente registra inúmeras experiências

democráticas nos últimos 25 séculos. Ocorreram avanços e

retrocessos. As relações entre a sociedade antiga com a nova

produziram mudanças típicas em cada evento. Em cada experiência

histórica a mudança foi marcada predominantemente pela recusa do

velho, pela substituiu de partes do passado, pela incorporação do

velho no novo ou pela superação do artigo.

Dada a riqueza da experiência histórica das sociedades

democráticas do ocidente, a noção de sociedade democrática torna-se

uma representação extremamente complexa e diversa. A expressão

‘sociedade democr|tica’ reúne dois conceitos que individualmente s~o

polissêmicos. Ao unir os conceitos de ‘sociedade’ e de ‘democracia’

para se referir a diversidade de organização política vividas pelas

diversas sociedades, as sociedades complexas do mundo ocidental

contemporâneo produziu um conceito ainda mais intrincado.

De forma equivocada, o pensamento político liberal percebe

as expressões ‘sociedade democr|tica’ e ‘política liberal’ como faces da

mesma moeda. Sobre esta compreensão duvidosa é necessário fazer

uma observação bastante óbvia. O que o ocidente entende por

sociedade democrática enquanto organização política é muito mais

ampla do que pretende o discurso político liberal ao sugerir

equivalência entre ‘pensamento liberal’ e ‘sociedade democr|tica’.

De um modo geral podemos expressar como liberalismo

político a forma política na qual os indivíduos são livres para perseguir

seus objetivos pessoais, os indivíduos estão seguros do direito de

usufruir dos resultados do seu trabalho e os indivíduos crêem que a

justiça os tratará de forma isonômica e imparcial mantendo intactos

seus direitos individuais.

114

Sob certos aspectos o pensamento político liberal é oposto ao

pensamento político republicano. Para o pensamento republicano, na

vertente da perspectiva proposta por Maquiavel, a formulação da lei só

deve limitar a ação dos indivíduos e estabelecer garantias para os

mesmo. Jamais poderia ser um produto da política e, ao mesmo tempo,

um estímulo de exercício da política (ABREU, 2008, p. 180).

O pensamento político liberal comunga num ponto com o

pensamento político republicano: ambos excluem da dinâmica política

o fenômeno do conflito. Os resultados da pesquisa permitem

argumentar num caminho contrário. A boa sociedade democrática é

aquela que incorpora o conflito e considera o modelo político baseado

em adversários como não obsoleto.

As noções políticas derivadas das concepções políticas

liberais possuem uma visão otimista do presente e do futuro,

imaginam um mundo livre, globalizado e sem a existência de inimigos

por que todos foram eliminados do cenário político. A perspectiva

liberal divulga a idéia de que com o desenrolar econômico-político a

atualidade representa o progresso da própria evolução da

humanidade, como uma ‘segunda modernidade’, onde os indivíduos

livres podem dedicar-se a uma diversidade infinita de estilos de vida.

Os liberais acreditam na ‘democratizaç~o da democracia’ e

nas noções de ‘democracia livre de partidos’ por n~o mais existir o

conflito ideológico, ‘democracia dialógica’ baseada no diálogo racional

ou ‘democracia cosmopolita’ nos moldes da ONU (Organizaç~o das

Nações Unidas). Tais crenças (MOUFFE, 2005) são a causa de muitos

problemas enfrentados pelas instituições democráticas na atualidade,

ao negarem ou desconhecerem a dimensão antagônica constitutiva do

político. A negação do conflito, tanto na teoria quanto na prática

política, implica em riscos políticos. A despolitização das novas

gerações é só um deles.

Os teóricos liberais (HABERMAS, 2011) defendem uma

concepção de política democrática que seja capaz de atingir consensos

e reconciliações, e acreditam na existência de um mundo onde se

tenha superado a discriminaç~o ‘Nós/Eles’. Ao anular as relações

conflituosas, os liberais excluem a verdadeira tarefa da política

democrática. Autores defendem que o papel específico e próprio dos

teóricos políticos consiste em criar uma “esfera pública vibrante onde

muitas visões conflitantes podem se expressar e onde a possibilidade

115

de escolha entre projetos alternativos é legítimo” (MOUFFE, 2003, p.

11). Criar uma esfera pública vibrante seria a forma adequada de

controlar o antagônico sem eliminar as características constituintes do

político e, conseqüentemente, da própria política derivada da natureza

do político.

Mouffe defende o modelo político democrático do pluralismo

agonístico por acreditar que a identidade é formado quando o

indivíduo se identifica com um grupo. A identificação com o grupo

possibilita deferentes alternativas em oposição a outros grupos. O

binômio Nós/Eles possui um caráter social antagônico derivado das

características intrínsecas de ‘o político’. É justamente o car|ter

conflituoso que possibilita a existência de uma esfera política vibrante

no debate político e é a própria condição de constituição de uma

democracia legítima.

Conceito de ‘a política’ e de ‘o político’

Na esteira do vocabul|rio heideggeriano, ‘o político’ refere-se

ao nível ontológico, ou seja, “uma atitude tal em relaç~o ao ente que o

deixe ser em si mesmo, no que é e como é” (HEIDEGGER apud

ABBAGNANO, p. 848). No nível ontológico o espaço político é

entendido como “o modo próprio no qual se constituí a sociedade”

(MOUFFE, 2007, p. 16). O modo próprio constitutivo das sociedades

democráticas é o conflito.

No nível ôntico, o espaço da política pode ser conceituado

como o “conjunto de pr|ticas e instituições através da qual se cria uma

determinada ordem organizando a coexistência humana no contexto

dos conflitos derivados ‘do político’” (MOUFFE, 2007, p. 16). Assim, a

natureza conflituosa da política é o objeto acerca do qual a política

democrática deve partir com a finalidade de impedir o conflito

deliberado. Da práxis da vida em sociedade deve emergir a política

democrática. Quanto mais próxima da práxis humana mais imanente

será a política democrática.

Para defender esta posição é necessário recuperar a

argumentação de Chantal Mouffe. Ao invés de aceitar a relação

Nós/Eles como o ponto de conflito gerador de uma consciência radical

entre amigo e inimigo, Mouffe propõem um modo diferente de

116

estabelecer esta oposição na relação Nós/Eles. Tal relação permite

reconhecer o pluralismo constitutivo da democracia moderna.

Para elevar a relação Nós/Eles para um patamar superior,

superando a interpretação de Carl Schmitt, Mouffe (2007, p. 22) utiliza

dois elementos: a noção de exterioridade constitutiva e o fenômeno

das massas.

1º Elemento: exterioridade constitutiva. Utiliza a noção de

‘exterioridade constitutiva’ para destacar o fato de que a identificaç~o

política implica em estabelecer a diferença presente na relação

Nós/Eles. Assim, considerando que toda identificação é relacional e a

diferença é precondiç~o de tal identificaç~o, a noç~o de ‘exterioridade

constitutiva’ indica que a percepç~o do ‘outro’ é o que constituí a

‘exterioridade’. A noç~o de ‘exterioridade constitutiva’ coloca Mouffe

numa posição mais adequada para rever a argumentação de Carl

Schmitt.

A formação da identidade política a partir da relação

Nós/Eles deve admitir a possibilidade sempre presente do conflito. O

desafio para a política contemporânea é estabelecer uma interpretação

para a relação Nós/Eles que seja capaz de inibir o surgimento do

antagonismo sem cair na ilusão de erradicar o conflito por que ele está

sempre presente no espaço político, ou seja, o conflito político é a

nossa condição ontológica. Sobre a condição ontológica do conflito

Mouffe afirma que:

[...] deve existir algum vínculo em comum entre as partes em conflito, de maneira que não tratem seus oponentes como inimigos a ser erradicados, como ocorre com a relação antagônica amigo/inimigo. Também não podem considerá-los como competidores cujos interesses podem ser tratados como uma mera negociação ou reconciliar-se através da deliberação, por que neste caso o elemento antagônico seria eliminado, e assim negar-se-ia o político. Podemos dizer que a tarefa da democracia é transformar o antagonismo em agonismo (2007, p. 27).

Para superar o antagonismo sem excluir o conflito, Mouffe

propõe a teoria agonística por dois motivos: a) a teoria agonística

aceita o pluralismo como elemento constitutivo da democracia

moderna e b) aceitando o pluralismo democrático é possível encontrar

117

o vínculo comum entre as partes em conflito, superando a relação

antagônica ‘amigo/inimigo’ proposta por Schmitt.

2º Elemento: fenômeno das massas. O conceito do ‘fenômeno

das massas’ foi desenvolvido por Elias Canetti. Mouffe utiliza este

elemento para explicitar o duplo mecanismo de afastamento e atração

exercido pela massa sobre o indivíduo. Atribui a este mecanismo os

diferentes impulsos que movem os atores nas práticas sociais. Por um

lado o indivíduo possui o impulso para a individualidade que o

diferencia dos demais. Por outro, existe um impulso que leva os atores

sociais a desejarem a fusão com a massa. Para Mouffe (2007, p. 30-31)

o impulso para a fusão com a massa é a parte integrante da estrutura

psicológica dos seres humanos. Negar esta tendência é o que torna o

enfoque racionalista incapaz de aceitar a paixão (afeto) como

produtora do sentido da ação no momento em que o cidadão adere aos

movimentos políticos de massa.

O objeto da política é elucidado em estreita relação com o

conceito de vida e articulado mediante a relação existente entre

conhecer, julgar e expressar. Vida possui um sentido que vai além do

sentido biológico ou psicológico. Podemos conceituar vida como a

faculdade (sentido kantiano) de um ente atuar de acordo com suas

representações. As representações são os fins que o próprio agente ou

grupos de agentes se propõem. A vida é uma capacidade de atuar de

acordo com suas próprias paixões. O ato de escrever sobre a

representação de um objeto produz prazer. Não conseguir representar

este mesmo objeto é a experiência do desprazer. O prazer ou

desprazer são produzidos pela faculdade do ente humano atuar de

acordo com suas representações. Não importa se o objeto a ser

descrito seja belo ou feio1.

O afastamento e a atração exercida pela massa é uma questão

sempre presente. Com a inclusão da força afetiva (paixão) na origem

das formas coletivas de identificação é possível criticar o consenso

porque o “enfoque racionalista é incapaz de compreender que aquilo

que impulsiona as pessoas a votar é muito mais que a simples defesa

1 Em nosso tempo o significado desta concepção pode ser apreciado na poesia de

Carlos Drummond de Andrade (1983, p. 949): “Certa palavra dorme na sombra /

de um livro raro./ Como desencantá-la? / É a senha da vida / a senha do mundo /

vou procurá-la”.

118

de seus interesses. Existe uma dimensão afetiva importante no fato de

votar, uma questão de identificação” (MOUFFE, 2007, p. 31).

A mobilização por uma causa exige politização, porém a

politização não existe sem a produção de uma representação do

conflito no mundo, que inclua campos opostos nos quais as pessoas

possam se identificar, permitindo que as paixões se mobilizem

politicamente no processo democrático. Diz Mouffe:

A partir de Freud e Canetti devemos compreender que, mesmo nas sociedades muito individualistas, a necessidade de identificações coletivas nunca desaparecerá porque é constitutiva da existência dos seres humanos. [...] Os teóricos que querem eliminar as paixões da política ao sustentar que a política democrática deveria ser entendida só com razão, moderação e consenso, estão mostrando a falta de compreensão da dinâmica do político. Não percebem que a política democrática necessita exercer uma influencia real nos desejos e fantasias das pessoas e, ao invés de opor interesses e sentimentos, razão e paixão, deveriam oferecer formas de identificação que conduzam a práticas democráticas (2007, p. 35).

Os teóricos liberais são incapazes de perceber três

elementos: 1º) o papel primordial desempenhado pela disputa na vida política; 2º) a impossibilidade de encontrar soluções racionais imparciais para as questões políticas; 3º) o papel integrador exercido pelo conflito na democracia contemporânea. Sobre esta incapacidade dos teóricos liberais Mouffe afirma: “O consenso é, sem dúvida, necessário, porém deve estar acompanhado pelo dissenso. Em uma democracia pluralista tais desacordos não são apenas legítimos, são também necessários porque proporcionam a matéria da política” (2007, p. 37). Pelo fato de que a sociedade democrática requer o debate sobre as alternativas possíveis, esta mesma sociedade deve proporcionar formas políticas de identificação coletiva em torno de posturas democráticas claramente diversas.

Modelo político habermasiano

Partindo da teoria do agir comunicativo, Habermas propõe

que a ação do indivíduo deve basear-se nos princípios do

procedimento comunicativo, sendo necessário reconstruir as

119

características do agir humano validado pela razão comunicativa. Ao

definir a razão como comunicativa, Habermas pretende dar conta da

natureza coletiva e social do ser humano. A razão comunicativa seria

suficientemente capaz de estruturar a natureza social e coletiva do

homem através do consenso orientado pelo entendimento. O consenso

possuiria força suficiente para decidir no campo da política qual regra

coletiva é válida. Para dar conta desta tarefa Habermas interpreta a

linguagem como meio estabilizador das relações intersubjetivas

criadas pelo sujeito capaz de atuar livre e linguisticamente

competente.

Seguindo a esteira dos liberais, Habermas busca na validade

universal da racionalidade os parâmetros necessários sobre os quais

se apoiaria a sociedade democrática. Onde há ação política existe agir

comunicativo, ou seja, a razão é irmã siamesa da ação. A possibilidade

da razão e da ação andar par e passo durante o debate político é dada

pela linguagem. A linguagem, quando guiada pelo entendimento

presente no indivíduo competente, é forte o suficiente para estabilizar

o consenso sobre as formas do agir humano no debate político.

Entendida como capacidade subjetiva presente no cidadão

particular competente, a intersubjetividade é capaz de gerar as novas

propostas políticas para o indivíduo e para a sociedade. A aprovação

de uma nova proposta é concretizada no diálogo estabelecido dentro

do campo político. No processo de obtenção do consenso as propostas

políticas são estudadas e, eventualmente, poderão ser reestruturadas

para equacionar os múltiplos interesses individuais de acordo com os

dissensos produzidos pela natureza do debate político. Assim, a

intersubjetividade garante a estruturação do consenso diante da

necessidade mais próxima. O consenso produz o desenvolvimento

democrático da sociedade e a emancipação do indivíduo porque

participa das transformações políticas da sociedade. O indivíduo

participará dos próximos porque está motivado pelo sucesso do

consenso obtido intersubjetivamente.

Segundo Habermas é necessário aceitar e compreender a

linguagem como elemento mediador suficientemente forte para

estabelecer regras morais e jurídicas, bem como explicar como as

regras morais e jurídicas se formam. Ele afirma que:

Todo agente que atue comunicativamente tem que assegurar na execução de qualquer ato de fala, pretensões universais de

120

validade e supor que tais pretensões possam ser desempenhadas. Na medida em que queira participar do processo de entendimento, não pode deixar de assegurar as seguintes pretensões universais de validade: se expressar inteligivelmente, ser compreendido pelo outro, permitir ser entendido e se entender com os demais (HABERMAS, 2001, p. 300).

A proposta de Habermas atribui à linguagem um papel

fundamental, sendo o médium intransponível de todo sentido de

validade (ARMINDO, 2008). Ou seja, para se comunicar a única

alternativa disponível é a linguagem, sem ela o indivíduo não conhece

nem terá acesso as diversas dimensões do mundo. Para isso é

necessário reconstruir racionalmente as interações lingüísticas, definir

a razão como procedimento para o agir comunicativo e estabelecer o

entendimento como a forma de identificação sobre o mundo objetivo,

social e subjetivo (HABERMAS, 2001).

Ao diferenciar a racionalidade em instrumental e

comunicativa, Habermas interpreta o fenômeno próprio das

sociedades complexas: fenômeno no qual a racionalidade

instrumental, específica do mundo sistêmico, invade a racionalidade

comunicativa, específica do mundo da vida. Com isso Habermas

preserva a racionalidade instrumental porque ela é necessária para a

subsistência humana. Porém, denuncia que ao invadir o mundo da vida

a racionalidade instrumental impede a obtenção do consenso. Quando

a racionalidade instrumental invade o mudo da vida, mundo no qual

deveria prevalecer a racionalidade comunicativa, desaparece o lugar

legítimo para reconhecer e estabelecer o consenso acerca da maneira

mais adequada de agir politicamente.

O mundo da vida é, por assim dizer, o lugar transcendental em que o falante e o ouvinte se encontram; é o lugar em que podem estabelecer reciprocamente a pretensão de que suas emissões concordam com o mundo objetivo, subjetivo e social; e em que podem criticar e exibir os fundamentos das respectivas pretensões de validade, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo (HABERMAS, 1999, p. 179).

O modelo comunicativo proposto é assumido como o campo

político legítimo para realizar validamente o diálogo livre de coerções

121

externas. Nele as regras poderão ser discutidas e reformuladas pelos

indivíduos presentes no debate. O debate político exige um indivíduo

qualificado, conhecedor e seguidor de regras, e guiado pelo

entendimento. Este indivíduo seria capaz de identificar a coerção e,

quando necessário, eliminá-la do debate político legítimo.

A diferença conceitual entre o político e o espaço da política

permite afirmar que o princípio puro do liberalismo não pode dar

origem a uma concepção especificamente política porque todo

individualismo consistente nega o político. A impossibilidade ocorre

porque o consenso se baseia em atos de exclusão, sendo impossível

obter um consenso racional plenamente inclusivo. Comentando a

dinâmica essencialmente conflituosa da vida social, Mouffe afirma que:

O conflito revela que todo consenso encontra-se fundado sobre atos de exclusão e indica precisamente os limites de todo consenso racional, a existência de um excluído impossível de ser eliminado. A crença liberal de que o interesse geral resulta do livre jogo dos interesses privados, e em que um consenso racional universal seria o produto de uma discussão livre, conduz necessariamente o liberalismo à cegueira em face do fenômeno político (1992, p. 7).

Retornamos ao argumento de Schmitt quando afirma que a

crença liberal cria um ponto cego, ou seja, o espaço político não pode

ser compreendido pelo racionalismo liberal pela simples razão de que

todo racionalismo liberal precisa negar o antagonismo. O que o

antagonismo schmitiano revela é o limite de todo consenso racional.

Mouffe afirma que, “ao aderir o pensamento liberal ao individualismo

e ao racionalismo sua negação do político na dimensão antagônica não

é só uma omiss~o empírica, mas também uma omiss~o constitutiva”

(2007, p. 19).

As teorias liberais formam dois grupos. O modelo liberal

agregativo concebe:

a política como estabelecimento de um compromisso entre diferentes forças em conflito na sociedade. Os indivíduos são descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado

122

aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2007, p. 7).

Desenvolvido como uma reação ao modelo agregativo, o

modelo deliberativo:

Aspira um vínculo entre moralidade e política. Seus defensores querem substituir a racionalidade instrumental pela racionalidade comunicativa. Acreditam que é possível criar um consenso moral racional no campo da política mediante a livre discussão (MOUFFE, 2007, p. 20).

Habermas, principal defensor do grupo deliberativo, conhece

as concepções de Schmitt e procura refutá-lo argumentando que os

que questionam a possibilidade do consenso racional sustentando que

a política constitui um terreno no qual sempre se pode esperar que

exista a discórdia estão pondo em questão a própria possibilidade da

democracia. Nas palavras de Habermas:

Se as questões de justiça não podem transcender a compreensão ética das formas de vida enfrentadas, e se os valores, conflitos e oposições existencialmente relevantes devem introduzir-se em todas as questões controversas. Então em uma análise final terminaremos em algo semelhante à compreensão de política de Carl Schmitt (1996, p. 20).

O que Habermas afirma é que a interpretação do político pela

perspectiva das categorias amigo/inimigo, proposta por Schmitt, é

contrária ao projeto democrático.

Ideia de vontade política

Para Mouffe o conflito é inerente a natureza do político, por

exemplo, quando o indivíduo busca o confronto para garantir sua

hegemonia, mesmo que temporária. Habermas, por sua vez, acredita

que a força do consenso é obtida pela capacidade comunicativa do

sujeito competente linguisticamente. Como poderíamos interpretar o

crescente desinteresse do indivíduo pela política a partir de propostas

antagônicas?

123

Mouffe critica o modelo liberal predominante por alimentar

o caráter subjetivo voltado exclusivamente para:

indivíduos descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2077, p. 20).

Habermas interpreta que a ausência de interesse é um

fenômeno decorrente do próprio do agir instrumental, ou seja, a razão

instrumental aportou no espaço da política, lugar onde deveria

prevalecer a racionalidade comunicativa2.

Existe um diagnóstico comum em Mouffe e Habermas.

Ambos interpretam que a política contemporânea é marcada pela ação

de indivíduos desinteressados pela política. Mesmo existindo pontos

em comum, percebemos divergências. Habermas deposita grande

expectativa no processo dialógico como meio para obter consensos

políticos. O sucesso na obtenção do consenso atrairia o indivíduo para

os problemas coletivos.

Mouffe critica os teóricos liberais a partir de dois elementos:

1º) sustenta que o modelo de política deliberativa simplesmente

ignora a dimensão psicológica do sujeito político, dimensão repleta de

relações de poder e antagonismos. Ao aceitar esta característica

humana, Mouffe defende a inclusão da dimensão psicológica no campo

da política. 2º) por reconhecer a dimensão psicológica o modelo

orientado segundo uma razão preocupada com um modo de agir

racional universal afasta o indivíduo da prática decisória coletiva.

2 Durante a modernidade os campos da epistemologia, da ética e da estética,

passaram a ser representados nos campos da ciência. Assim como o direito e a

moral passaram a orientar-se segundo lógicas internas. A partir de Descartes e

Kant conceitos como de verdade, valor moral e belo passam a vigorar como

modelo de autoridade fundada no sujeito. Neste contexto o agir subjetivo orientado

para a maioridade adquire predominância sobre o agir político. A prática política

cotidiana perde seu valor na mesma proporção em que cresce a importância da

razão entendida como capacidade para orientar-se por uma prática universal

(LONGHI, 2008).

124

Considerações finais

É necessário retomar a pergunta inicial: qual é o processo de

aprendizagem presente na formação política dos cidadãos? Postas as

considerações é possível entender a origem da carência de

pensamento e de agir político, principalmente entre o grupo dos

jovens, percebidos como o menos envolvido. É válido concluir que a

ausência de envolvimento resulta do processo político ultrapassado.

Adjetivamos este processo como ultrapassado porque ele promove o

individualismo e nega o caráter político desenvolvido entre grupos ou

entre sujeitos pertencentes ao mesmo espaço com diálogo legítimo.

Mesmo percebendo ser mais freqüente entre os jovens do que nos

adultos, o cidadão em geral se afasta da política ao perceber o mundo

pela perspectiva do interesse individual. Na individualidade a ação é

ordenada segundo o interesse próprio. O indivíduo solipsista esquece

o outro porque não consegue se identificar com projetos comuns,

elemento essencial das sociedades democráticas.

Do confronto proposto por este trabalho é possível

pensarmos as políticas contemporâneas como um espaço no qual as

novas gerações possam avaliar as diversas e diferentes alternativas.

Parece plausível pensar que o indivíduo participa de um projeto

político quando ele estabelece uma identidade positiva ou negativa

entre ele e o projeto. A identidade é negativa quando ocorre o dissenso

entre o indivíduo e o projeto. Tanto a identidade quanto o dissenso

retira o individuo da passividade.

Por um lado, é necessário abandonar a idéia de que a

exclusão dos conflitos é a única alternativa que realmente sustenta

uma política democrática legítima. Por outro, é fundamental defender

que as relações antagônicas desenvolvidas nas relações sociais são

inerentes ao mundo político, sendo impossível a eliminação desta

característica por completo.

Se aceitarmos a plausibilidade da teoria antagonista, então é

necessário investigar o que existe de irreal na concepção política

deliberativa proposta Habermas. É viável construir um novo modelo

político partindo da razão comunicativa desenvolvida a partir da

linguagem? A razão comunicativa é capaz de produzir consensos no

campo da moralidade e da justiça? A teoria da ação comunicativa

defende e assegura como alternativa democrática legítima a via que

125

nega a presença do conflito político em toda relação política. Porém, a

ausência do conflito nega a própria possibilidade de constituir uma

política democrática.

O resultado da disputa entre o dissenso e o consenso é a

possibilidade de explicar e reduzir o fenômeno do desinteresse pelo

político. Aproximar o sujeito do campo político é a possibilidade de

implantar novas propostas políticas democráticas, visando a

superação dos problemas encontrados na esfera política.

Antes de finalizar é necessário fazer quatro indicações:

1ª) O cidadão em geral se afasta do espaço da política ao

interpretar o mundo pela perspectiva individualista. Como

consequência o indivíduo esquece o outro. Este esquecimento é o

efeito colateral da ausência de identificação com projetos comuns,

elemento essencial da prática política.

2ª) O indivíduo se envolve num projeto político quando

estabelece uma identidade positiva ou negativa, concordando ou

discordância. Tanto a identificação positiva quanto a negativa politiza

o individuo retirando-o da passividade política.

3ª) A exclusão dos conflitos não é uma alternativa capaz de

sustentar uma política democrática legítima. Como conseqüência, é

necessário entender que a relação de conflito presente na relação

social é inerente ao espaço político, sendo impossível sua eliminação

completa.

4ª) A disputa pela exclusão ou permanência do conflito no

espaço político decidirá qual é o processo de formação legítimo para

educar cidadãos preocupados com a prática política e com a superação

das contradições presentes na esfera política democrática

contemporânea.

Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ABREU, M. A. de A. Conflito e interesse no pensamento político republicano. Tese de doutorado. USP. 2008. ANDRADE, C. D. de. “Discurso de primavera e algumas sombras”. In: Nova reunião, II. Rio de Janeiro: Record, 1983.

126

LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010. LONGHI, A. J. Ação educativa e agir comunicativo. Caçador: UnC, 2008. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. v. 2. Madrid: Taurus, 1999. _____. A Constelação Pós-Nacional, ensaios políticos. São Paulo, Littera Mundi. 2011. Tradução Márcio Seligmann Silva. Fonte: www.4shared.com. Acesso: 02/03/2011. MOUFFE. C. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. _____. “Por um modelo agonístico de democracia”. In: Revista Sociologia e Política, Dez. 2010, vol. 25, n. 3, p. 11-23. ISNN 0104-4478. Acesso: 02/03/2011. _____. “Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt”. In: Cadernos da Escola do Legislativo. V. 5, n. 9 (jul./dez.), p. 75-88. Tradução: Menelick de Carvalho Neto. Fonte: www.almg.gov.br. Acesso: 02/03/2011. _____. “Democracia, cidadania e as questões do pluralismo”. In: Revista Política e Sociedade, n. 3, out./2003. Acesso: www.periodicos.ufsc.br. SANTOS, R. E. “Entre autoridade e lei: considerações sobre o realismo político de Carl Schmitt”. In: Revista Peri, v. 02, n.02, 2010, p. 140-154. http://nexos.ufsc.br/index.php/article. Acesso: 13/04/2011. SCHMITT, C. O conceito do político. Tradução: Alvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992.

IRONIA E METÁFORA: ESBOÇO DE UM PROBLEMA POLÍTICO

DO DISCURSO FILOSÓFICO

Samon Noyama

Universidade Estadual do Paraná

A perfeita semelhança é a absoluta diferença.

Theodor Adorno

Ironia e metáfora em Nietzsche

Até mesmo por aqueles que não são admiradores do

pensamento de Nietzsche, é de comum acordo que a sua filosofia é

marcada pela eloqüência, pela versatilidade dos elementos

argumentativos e pela capacidade inconfundível de criar imagens que

signifiquem questões, isto é, tornar suas questões filosóficas

verdadeiros problemas visualizáveis, mecanismo que se torna possível

através do uso de recursos imagéticos utilizados com rara habilidade.

O valor que se dá a esta assinatura nietzschiana, o estatuto e peso

filosófico da sua posição parecem ser compatíveis com a envergadura

de suas polêmicas: as acusações que ele faz à tradição do pensamento

soam quase como absurdas diante do poder e do significado que tem

para nós a autoridade dos “cl|ssicos”. Por isso n~o chega a ser absurdo

afirmar que o que Nietzsche disse não poderia ter sido dito de forma

diferente, ou seja: toda a “fala” deste filósofo combina

harmoniosamente com o conteúdo das afirmações drásticas que

culminam com o diagnóstico preciso que ele faz da cultura ocidental

moderna.

Mas, no caso de Nietzsche, polemizar não é o bastante: é

preciso falar para alguém, para o mundo, e não apenas para dar conta

dos critérios e do rigor exigidos pelos ditames de um jogo de

linguagem particular que se acostumou, ao passar dos séculos, a

estabelecer uma verdade conveniente. Mais ainda, pode-se dizer que

esse convite ao diálogo se faz de forma bastante provocativa, ora

intimidando o leitor, ora seduzindo-o irresistivelmente à disputa

argumentativa. Nota-se, em tempo, que não se trata de desqualificar o

estatuto da verdade cientifica estabelecida, e sim, de apontar para uma

128

questão: esse edifício de tamanho tão incrível, cujas bases

fundamentais de acordo lingüístico pré estabelecido que concorda em

tomar como verdadeiro aquilo que não ultrapasse – e caso o fizesse

seria reprovada imediatamente – as cercas da “verdade” da linguagem,

dos conceitos, dos valores morais, em última instância, de um único e

exclusivo tipo de discurso filosófico, esteve sempre direcionado a

único e exclusivo tipo de homem: o comum, o mediano, o passivo –

moderno, diria Nietzsche, para quem essa verdade da linguagem é

constituída a partir de duas metáforas: imagem e som.

Essas duas metáforas formam a palavra. Filósofo atento ao

poder persuasivo e imagético da palavra, Nietzsche chama atenção

para uma transposição que talvez hoje nos pareça um procedimento

deveras naturalizado: supor que, entre o som que se efetua ao

pronunciar uma palavra e gama de significados atrelados ao signo

possa haver uma relação necessária, e por isso, a palavra se tornaria

um elemento condicional da linguagem que pretende ser, de acordo

com este arranjo forjado, a morada da verdade. Para ele, nenhum

problema até então, desde que tudo isso seja admitido como uma

invenção. Contudo, jamais pode ser admitido como invenção uma vez

que este seu grande valor só existe e sustenta seu poder supremo na

medida em que a verdade da linguagem não é uma invenção, mas sim,

uma revelação. Este revelar é o descobrir a realidade das coisas, como

se de fato as palavras tivessem alguma ligação natural com as coisas

reais. Mais ainda: que o único ou problema vital da filosofia gira em

torno de esmiuçar essa ligação natural até ela se tornar plenamente

decifrada. É, sobretudo neste ponto, que a crítica de Nietzsche à

verdade da linguagem atinge sua estrutura nevrálgica na teoria do

conhecimento. E, ainda que os aspectos filológicos acerca da linguagem

e da retórica que apareçam explicitamente nos textos de juventude

sobre a retórica, a alegoria da história da humanidade, se assim

quisermos denominá-la, com a qual Nietzsche nos brinda no brilhante

e absurdo início de Verdade e mentira no sentido extra-moral, é a

imagem mais sucinta que ele conseguiu descrever a história dessa

humanidade que crê na verdade como valor superestimado e que ela

mesma acredita ser capaz de, através da linguagem, provar a

existência e a verdade das coisas do mundo existente. A primeira

leitura sugere que a força dessa metáfora reside na capacidade de

definir o humano como algo insignificante diante do que ele sustenta

129

ser: a verdadeira fábula é a nossa história. O resto é chão. E qual seria,

de fato, o problema desse procedimento? Que tipo de verdade essa

metáfora produz? Qual poderia ser a relação dele com a história e a

política?

Ele reside no sem número de equivalências desmedidas e

arbitrariamente articuladas que, maquiadas com os elementos

epistemológicos e retóricos administrados, criam uma fábula com ares

de verdade: se se trata apenas de uma fábula, seu valor é pequeno. Mas

se admitimos essa narrativa como revelação da verdade outrora oculta

aos olhos e ouvidos enganadores dos paupérrimos seres humanos, a

razão adquire valores supremos, a humanidade satisfaz-se com sua

imensa capacidade de interpretar e descrever os grandes enigmas da

vida, isto é, de atingir a “verdade”, e o mundo diminui sua potência

natural em favor da grandiloqüência dos homens. O sujeito de

conhecimento triunfa diante do jogo das vicissitudes da natureza e a

unidade supera a totalidade.

Rogério Lopes sugere que Nietzsche utiliza distintas formas

retóricas sem deixar perder a identidade do texto filosófico, que ele

chama de colocar em cena “uma filosofia cujos sentidos est~o

constantemente sob o signo da instabilidade”1. Mas podemos ainda

admitir uma interpretação menos moderada e talvez menos

preocupada em mostrar uma isenção diante da questão, e dizer que a

vitória da verdade é uma grande farsa, cujo tamanho é proporcional à

imaginação e criatividade da mentira. Ainda em Sobre verdade e

mentira, a declaração de Nietzsche2 é lapidar:

A coisa em si é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem seque algo que vale a pena. Ele designa apenas a relação das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas.

Não seria o caso de trazer à discussão a polêmica tese de

Górgias, sobretudo se admitirmos a distância que possa haver entre

Nietzsche e seu momento histórico e a época da polêmica entre

1 LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola,

2006, p. 39. 2 NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral.

Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983, p. 47.

130

filósofos e sofistas, mas ao menos uma menção honrosa: neste quesito,

a desejada identidade entre ser e pensamento, ou entre coisa e

palavra, aproxima-se muito mais de um divórcio litigioso, no qual as

partes não chegam ao comum acordo, do que de num paraíso onde

cada elemento se articula com os demais em harmonia indissolúvel,

diante da qual a verdade reina absoluta e intocável. Há, ao menos, que

se ter a dignidade de discutir o assunto em outros termos.

A Bildung

A história da cultura ocidental é o curriculum vitae do

homem formador. Mas ele não é apenas formador no sentido clássico

de educação; enquanto Bildner, ele é também um falsificador. Ele dá

aparência (e não é qualquer aparência!) e forma definidas a algo que é

naturalmente sem forma ou disforme. Por isso trata-se de um artifício,

de uma atividade falsificadora; e aí mesmo reside sua genialidade. Um

artista capaz de criar apenas metáforas das coisas, pois as coisas só

podem ter mesmo metáforas e nada mais. O que nós chamamos de

coisa é, simplesmente, nossa vers~o da famosa “coisa mesma” e,

portanto, sempre uma verdade falsa. Um conceito que se sabe falso

com aparência de verdadeiro pode ser muito mais eloqüente do que

um conceito que se imagina realmente verdadeiro. Essa presunção é

denunciada por Nietzsche em nome de duas características

psicológicas do homem: a ingenuidade e a prepotência. Vê-se, pois, que

não estamos tratando de uma questão inerte, mas de um

procedimento que tem seu ofício no campo da linguagem e sua

subsistência no exercício histórico da construção de relações de poder.

Sua importância, dessa forma, exala ares políticos a todo instante.

Se, do ponto de vista moral, isso pode ser entendido como o

grande problema da humanidade, por outro lado pode ser também seu

grande poder: antes tivesse admitido o poder criativo e imaginativo da

criação de metáforas e supervalorizado a metáfora como algo falso,

que não diz nada de exato e preciso em relação à realidade, mas que,

justamente por seu caráter falsificador, é o que há de mais verdadeiro

gerado pelas capacidades humanas3. Isto que dizer que Nietzsche

3 Essa questão não se encerra apenas nas circunstâncias aqui expostas. A

necessidade por um posicionamento político diante da querela entre os sofistas

e os filósofos, por exemplo, definiu o privilégio de uma perspectiva diante da

131

inverte então o valor de verdade e procura ver no falso a verdade, e

nesta, a maior falsificação já produzida: a metáfora da verdade, que

nos impõe outras metáforas, tais quais: o absoluto, a certeza, a

evidência e o universal. Por isso a Bildung, enquanto formação cultural

da humanidade, é um processo cumulativo de substituição de valores

notoriamente (e isso nada tem de ruim, pelo contrário) falsos por

verdades estabelecidas, que experimentam suas mais agudas

contradições no campo da moral. Parece que a discussão para

Nietzsche não passa pelo mérito maniqueísta dos valores

estabelecidas pela cultura, e por isso a verdade não se tornaria um

dilema complexo e profundamente trágico na história da humanidade

se a filosofia não tivesse se transformado em algo tão sério e sisudo. A

univocidade, a perspectiva única, que atendem pela imagem e pela

metáfora do egipcismo dos filósofos é atacada por Nietzsche como um

dos maiores prejuízos para a potência vital do pensamento.

A moral é a expressão máxima da inversão de valores em

nome da supervalorização de uma característica potencialmente

admirável dos homens, mas que vem sendo utilizada para seu mais

pobre e declinante fim. Mais uma vez, a questão esbarra na falsa

caracterização do homem racional que camufla sua natureza artística e

forjadora em nome de uma ciência, da verdade, de valores culturais em

detrimento da natureza, pois concluir do estímulo nervoso uma causa

fora de nós, ou seja, substituindo a invenção da palavra e da linguagem

por uma suposta origem necessária, já é resultado de uma aplicação

falsa e ilegítima do princípio de razão, porque permite a segunda

suposição de que a verdade seja uma conclusão ou fim necessário do

uso da razão. Essa suposição, por sua vez, remete à gênese estrutural

do pensamento do ocidente e, por isso, torna-se fonte de uma

discussão interminável, por assim dizer. Ela é gêmea da filosofia.

Essa inversão de dupla cidadania, que opera no campo da

teoria do conhecimento mas não pode separar-se em definitivo da

vida e da realidade. Todo esse julgamento não precisa chegar às vias de fato de

se questionar e pretender sustentar uma única versão mais “verdadeira”, mas o

simples fato de constituir uma grave crise política, com conseqüências radicias

em nossa história, é o suficiente para pensarmos que as decisões tomadas em

questão de ordem restrita, como no caso da linguagem ou da estética, fundam

valores de importância incalculável para a história que se constrói tempos

depois.

132

política e da ética, e por isso, implica diretamente na formação cultural

da humanidade, leva Nietzsche a mencionar, ainda no §1 de Sobre

verdade e mentira, a famosa Cucolândia das Nuvens, metáfora de

Aristófanes para o fim último idealizado pela razão humana.

Cronologicamente, sabemos que seria inviável supor que

essa Cucolândia corresponderia à República de Platão, fato que torna a

metáfora aristofanesca mais interessante ainda. Os excessos da

racionalidade, o peso demasiado que a lógica, a retórica e a razão

recebem gradativamente entre os atenienses é alvo do sarcasmo do

autor de As Aves. Se a comédia tinha na época (e ainda hoje conserva

essa função) o papel de estabelecer uma crítica aos costumes e valores,

Aristófanes foi tão genial quanto Sófocles, ao diagnosticar, não os

aspectos trágicos da natureza humana, mas as suas mais absurdas

invenções: a sociedade, a lei, o julgamento e a verdade. É interessante

perceber que o que aconteceu no campo da retórica e da linguagem

teve seu equivalente no tocante às artes, pois assim como aos sofistas

foi dada uma importância secundária, à comédia foi dada uma

categoria menor dentro das imitações da arte4.

Não por acaso ambos elegem o mesmo alvo: Sócrates;

assumindo, de certa forma, a máscara de críticos da cultura. Estranho

imaginar que este, enquanto personagem dos diálogos platônicos, se

apresenta muitas vezes como crítico, ironista e comediante. A

zombaria típica de Aristófanes se parece com uma das formas que

Sócrates encontra para provocar seus interlocutores, com freqüência

expostos numa situação ridícula da qual se envergonham e alegam a

grandeza do seu mestre, talvez para evitar a conclusão de que são eles

profundamente ignorantes. Afinal, reconhecer a qualidade e a virtude

de um mestre ainda é mais fácil do que reconhecer a própria

ignorância, por mais que esse suposto mestre muitas vezes tenha ares

de fanfarrão: uma figura jocosa e mendicante. A humildade material e

intelectual de Sócrates é suficientemente enigmática para deixar

4 Refiro-me aqui, diretamente, à diferença estabelecida por Aristóteles entre a

tragédia e a comédia. Enquanto a primeira é a imitação das ações humanas de

caráter elevado, a segunda é a imitação das ações humanas de caráter

rebaixado. Não nos interessa aqui se Aristóteles foi arbitrário ou se descreveu

honestamente a cultura da época, mas tão somente ressaltar que,

historicamente, mais um capítulo se apresentou na distinção valorativa entre as

atividades humanas, sobretudo as artísticas.

133

conclusões precipitadas, fato que justifica alguns trabalhos

extremamente interessantes acerca do tema, como o de Sarah

Kofman5.

Seria absurdo cogitar a escolha de Sócrates como uma

homenagem? A primeira leitura dá uma resposta negativa, pois o

filósofo grego é de fato uma figura que representa os principais valores

da tradição filosófica, desde uma abdicação dos valores materiais (e

andar descalço!) até a tentativa de fazer da filosofia o saber mais

elevado entre os demais. Além disso, nos acostumamos a aproximá-lo

dos valores mais representativos da nossa cultura: há certa

semelhança em pensar Sócrates como símbolo dos valores da razão, e

Jesus como ícone dos valores cristãos. Nos dois casos, porém, trata-se

de uma simbologia extremamente ambígua, pois certos valores

cultivados estão ocultos nas figuras que os representam. O poder é,

talvez, um dos valores mais simbólicos tanto da filosofia quanto do

Cristianismo e ele aparece disfarçado em suas imagens. Em geral, os

comentadores de Nietzsche se contentam em apontar Sócrates como

uma espécie de câncer, adotando uma postura muitas vezes

questionada pelo próprio Nietzsche. De todo modo, talvez fosse

interessante não levar essa posição tão a sério. Há que se pensar

também no poder figurativo de Sócrates e na maneira apaixonada

como o filósofo trágico se refere ao seu suposto adversário.

A filosofia de Nietzsche é um convite irrecusável ao

pensamento, uma intimação, às vezes uma intimidação. O leitor, além

de trazer algo na sua bagagem que vai possibilitar a leitura geral e

compreensão dos temas e das referências ocultas na obra nietzschiana,

tem de estar disposto a contribuir com seu pensamento a pedra

primeira atirada pelo autor. O diálogo com a história da filosofia é

inexorável, e a herança está mais próxima do destino do que da

escolha. É um recurso que afirma a autonomia do texto, da idéia, e, por

outro lado, abre espaço e recebe de bom grado a novidade: o espírito

ávido de idéias, ansioso para sentir-se caminhando pelo seu próprio

caminho, sem sombras, sem rédeas, sem ponto de partida e chegada. É

o que sugerimos após a leitura do aforismo 178 de Humano, demasiado

humano, “A efic|cia do incompleto”.

5 Ensaio intitulado Socrate (s), publicado em 1989 na França.

134

A eficácia do incompleto – Assim como as figuras em relevo fazem muito efeito sobre a imaginação por estarem como que a ponto de sair da parede e subitamente se deterem, inibidas por algo: assim também é a apresentação incompleta, como um relevo, de um pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes mais eficaz que uma apresentação exaustiva: deixa-se mais a fazer para quem observa, ele é incitado a continuar elaborando o que lhe aparece tão fortemente lavrado em luz e sombra, a pensá-lo até o fim e superar ele mesmo o obstáculo que até então impedia o desprendimento completo6.

As metáforas que julgam explicar ou facilitar a compreensão

de conceitos e ideias, supostamente nos aproximando da verdade das

coisas, não foram construídas a partir da eficácia do incompleto. Ao

contrário, foram enraizadas a partir da suposição, defendida como tese

irrefutável, de que há completude, finitude e acabamento. Como se o

homem pudesse usar a razão e produzir conceitos que, feito rejunte de

azulejo, transformassem peças isoladas e diferentes num todo

completo, único e inteiriço. Podemos pensar que isso é a verdadeira

farsa, e que há rara beleza em julgar esse procedimento ex machina

como algo genial. Mas quando o admitimos ser a obra mais importante

e verdadeira da humanidade, nos alimentamos de ideias, valores e

construções históricas, políticas e ideológicas com as quais cultivamos

uma relação difícil, penosa e incompleta.

A julgar pelas mudanças na forma de escrever ao longo de

sua obra, é possível perceber que a preocupação de Nietzsche com a

maneira de se expressar é constante. A “Tentativa de autocrítica”

publicada posteriormente em O nascimento da tragédia já mostra a

insatisfação do autor por ficar preso à lógica hegeliana, dialética; e

revela seu empenho em buscar um estilo próprio; a sua filosofia. Esse

argumento reforça duas idéias: primeiro, que na filosofia de Nietzsche

forma e conteúdo são inseparáveis e, segundo, que a forma de expor as

idéias é fator determinante para definir o valor do pensamento.

Seguindo a argumentação de Rogério Lopes em Elemento de

retórica em Nietzsche, na seç~o dois “Entre aforismo e ensaio: a

retórica como forma de apresentaç~o”, podemos esclarecer a decis~o

de Nietzsche pela adoção das formas mais curtas, como o aforismo, o

6 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo

César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 132.

135

ensaio, as máximas e sentenças. O autor ainda nos lembra que

Nietzsche não chega a utilizar amplamente o aforismo no sentido

preciso do termo, e sim faz uso da expressão desvinculada do gênero

literário e da classificação tradicional. Guardadas as devidas distinções

estritas a cada uma dessas formas, que, segundo o autor, oscilam de

acordo com autores e determinados momentos históricos, a adoção

dessas formas tem uma justificativa comum: um dos grandes

motivadores da filosofia de Nietzsche reside na leitura que ele faz da

concepção de filosofia de Sócrates e de Platão, com especial atenção

em dois sentidos. Primeiro, no que se refere ao privilégio da forma

dedutiva nas investigações filosóficas, que acabou por fortalecer o

dogmatismo na tradição filosófica; segundo, e decorrente do primeiro,

a tese platônica de que à filosofia cabe o encerramento, a definição dos

problemas apresentado no princípio da investigação.

A questão da valoração da arte e da verdade é um tema

nietzschiano que está atrelado aos demais temas de sua filosofia,

afinal, o início da decadência da modernidade está, para ele, na

construção de um projeto que defende uma superioridade da idéia de

verdade ditada pelos parâmetros da ciência, em detrimento da

possibilidade de haver valor de verdade na arte. Se em relação à

tragédia esse movimento ocorre com a intervenção da razão na

criação, que culmina com as peças de Eurípides, na filosofia este

projeto pode ser sintetizado sobretudo em Platão. Mais uma vez,

Nietzsche se volta contra o estatuto da verdade enunciado pela

filosofia platônica, que seria um dos momentos fundadores da tradição

metafísica na filosofia. Não vamos nos alongar aqui na especificidade

da crítica que Nietzsche direciona a cada um deles, e sim, à questão

central da crítica: a crença de que a racionalidade pode preceder e

julgar a arte, no tocante aos problemas da existência humana,

evidencia a posição de que a verdade é mais importante que a arte, em

outras palavras, há uma superioridade em termos de valor da verdade

sobre a arte. Há, portanto, uma subordinação do poeta ao pensador

racional, uma valorização da razão em detrimento da arte no primado

do pensamento predominantemente reprodutivista. A arte trágica,

viva em instinto, perde o seu valor e sua potência como conhecimento

diante da racionalidade cientificista. A consciência e a crença em uma

verdade eterna e universal são suficientes e necessárias para o artista,

136

que se submete a tais princípios do pensador racional, do modelo de

pensador defendido por tais postulados.

A morte do artista trágico é o sinônimo da decadência de um

ciclo de gerações que elegeu a ciência como modelo para a

humanidade e subjugou a arte como forma de conhecer. O estatuto

científico da arte possibilita a sua recuperação no processo de

formação do homem grego. Uma paidéia de heróis conscientes e

natureza morta; de soberania da racionalidade e de exoneração da arte

trágica, do instinto e da vida. Uma morte em vida, do poeta que

sucumbe aos caprichos objetivos e pragmáticos de uma filosofia que se

pretende como solução para o mundo, mas que não permite a ousadia,

o erro e polifonia do pensamento. Diz o próprio Nietzsche, em O

Nascimento da Tragédia:

A crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e de que ele não é apenas capaz de conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo7.

Se a questão do valor da verdade é central no pensamento de

Nietzsche, podemos pensar com ele que a maneira de apresentar ou de

expor uma idéia tem uma importância conseqüente. Além disso,

dentro da própria história da filosofia, pensar na melhor forma de

fazer filosofia também tem sido alvo do esforço de muitos pensadores

que, em certa medida, têm concentrado seus esforços em dizer qual é a

forma ideal para se filosofar. Encontrar a forma ideal para se filosofar

é uma questão que nos interessa.

A tradição filosófica se desenvolveu de tal maneira que forma

e conteúdo, sob este aspecto, tornaram-se ovo e galinha. O que

Nietzsche chama de decadência não é a encruzilhada, é a falta de

caminho. Dar continuidade ao pensamento filosófico sob a perspectiva

de que há um valor superior aos demais, e que este valor é a verdade,

levou o homem a fixar-se no problema da forma e esconder-se dos

problemas de conteúdo. Em outras palavras: pensar a forma tornou-se

mais importante que pensar, mais valorizado que o próprio

pensamento. A filosofia procurou como dizer a verdade e esqueceu-se

7NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São

Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 93.

137

de questioná-la e acabou por fortalecer um método-prisão. Ou ainda,

em prejuízo do objeto, fomentou uma fetichização do método. Com

isso, nossa história reúne então um conjunto de formulações e valores

legitimados que não precisam ser questionados em sua raiz. Se nos

dispusermos a reelaborar a forma com que construímos tais valores,

podemos ter alternativas às decisões radicais que tomamos no campo

da política e da ciência, que certamente contribuíram para a

solidificação de ideias que hoje cegam nossa visão de mundo, já tão

carente de possibilidades e de criatividade.

Para além de experimentar variadas formas de escrever, seja

em fragmentos, poesia, ensaio, aforismo, máximas e sentenças,

descobrir seu próprio caminho foi sua decisão. E podemos dizer que

pensar com Nietzsche, e não pensar o seu pensamento, seja esta tarefa

árdua de trilhar cada um seu próprio caminho, entre experiências e

questionamentos. Questionar as formas, as verdades, os sistemas, a

cultura, o homem e experimentar as vias de se fazer esse

questionamento. Enfim, neste porvir, trilhar um não-caminho. E este

não é o desafio da filosofia, apenas. É o desafio do homem, como

filósofo, poeta, ou o que quer que seja. Desde que não seja o pesado

espírito de gravidade. Diz Nietzsche:

O homem é difícil de descobrir e, mais difícil de tudo, descobrir-se ele a si mesmo; muitas vezes, mente o espírito a respeito da alma. Assim obra o espírito de gravidade. Descobriu-se a si mesmo, porém, o homem que diz: ‘Este é o meu bem e mal’. Destarte, fez-se calar a toupeira e anão que diz: ‘bem para todos, mal para todos’8.

Em seguida, no último trecho do espírito de gravidade, ele

trata sobre a busca do homem, que é a busca de cada homem.

E sempre e somente a contragosto perguntei pelos caminhos – isto sempre me repugnava! Preferia interrogar e experimentar os próprios caminhos. Experimentar e interrogar os, consistiu nisso todo o meu caminho; – e, na verdade, deve-se aprender, também, a responder a tais perguntas! Mas esse – é o meu gosto:

8 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 232.

138

– não um gosto melhor ou pior, mas o meu, do qual não mais me envergonho ou faço segredo. ‘Este agora, – é o meu caminho; – onde est| o vosso?’; assim respondia eu aos que me perguntavam ‘o caminho’. Porque o caminho – não existe! Assim falou Zaratustra9.

O que podemos aprender com esta passagem sobre o espírito

de gravidade é mais uma afiada crítica de Nietzsche à cultura moderna.

Somos espíritos de gravidade por não aceitar o desafio de buscar

nosso próprio caminho. O valor que a tradição, o pensamento filosófico

e científico, e a moral de nossa cultura têm sobre nossas atitudes é

enorme a ponto de provocar esse engessamento. Seguir, copiar,

aceitar, ouvir, reprimir, moralizar, pensar (sob o estigma de bem e

mal), são os verbos da modernidade. São todos verbos do coletivo, de

grupos, de manadas, de iguais. Iguais na condição de espírito de

gravidade, que pesa e afunda, que nada faz por si mesmo nem pelo

mundo. Percorrer novos caminhos, únicos e próprios, não enche os

olhos desses espíritos, porque a cabeça baixa não lhes oferece a visão

do horizonte. Nesse sentido, a delimitação de uma natureza discursiva

formal e metodologicamente padronizada reforça essa crítica. Por isso,

para ele, a Filosofia que se faz é a derrocada do homem, é um sinal de

decadência. Porque ela nos faz pensar sob os conceitos e as formas já

pensados; a reproduzir o já pensado, sem sequer questionar sua

própria forma. Ao invés da novidade do novo, o mesmo do mesmo.

Porque ela se estabelece como último paradigma, como único caminho,

o que tem um télos, o que almeja aquela verdade.

Podemos interpretar a figura do espírito de gravidade

simplesmente como mais uma versão nietzschiana para o homem

moderno, marcado decisivamente por uma influência negativa da

tradição cultural do ocidente. Nesse sentido, especialmente na

perspectiva de Nietzsche, essa herança cultural é o registro da história

de um fracasso, da decadência dos valores culturais modernos, na

medida em que eles sejam uma continuidade – no pior sentido do

termo. Essa leitura de Nietzsche como crítico dos valores morais e

cristãos talvez esteja, inclusive, exposta de forma excessiva, o que

acaba por atenuar a sua força e pertinência. Este é um dos motivos

9 Idem, p. 233.

139

pelos quais não pretendemos continuar investigando as questões

ligadas a este propósito; o outro é a pretensão de relacionar este fator

importante da filosofia de Nietzsche com o tema central da nossa

pesquisa. Preferimos, então, procurar averiguar se há, ainda, outra

relação entre esse processo decadente e o problema da forma na

escrita da filosofia.

Quanto mais a escrita estiver resignada por sua submissão a

estes e outros modelos, menos ela poderá ter seu valor aproximado do

valor da experiência que o indivíduo faz na realidade. Não é preciso

concordar com Nietzsche, nem apontar as suas obras como filosofia ou

literatura. As polêmicas em torno dessas problemáticas são

importantes – quando são – para os historiadores e comentadores da

filosofia, ou da literatura.

A pergunta pelo valor das experiências cognitivas e artísticas

do homem permanece, mesmo que não se julgue comparativamente.

Os discursos que se aplicam às diferentes formas de experiência

restringem o valor de cada uma delas, mais ainda se nesta

concorrência houver um valor supremo, tal como a ciência se

apresentou nos últimos séculos. Mas no escopo da filosofia cabe, ainda,

perguntar-se pelos limites e possibilidades de libertar-se destes

paradigmas, mesmo que esse desligamento seja, inicialmente, na sua

forma. Porque de alguma maneira, procurar alternativas discursivas,

experimentar os inúmeros recursos da linguagem e das línguas, por si

só, representa um pensamento aberto, atento às possibilidades e

multiplicidades de interpretações da realidade, isto é, digno da

vitalidade e da exuberância que podem acompanhar a filosofia.

Esboço do problema político

Chamamos esboço porque seria pretensioso demais dar

conta desta possível relação que encontramos entre tais elementos da

linguagem e constituição própria da política. Trata-se de uma

tentativa, de certo modo empenhada e atenta às armadilhas que nós

mesmos trouxemos ao texto, de identificar uma questão que nos

parece de extrema importância e relevância filosófica: a linha tênue

que separa os discursos da filosofia e da política, um do outro, e a

interferência violenta que pode haver na história quando elementos

140

discursivos são administrados de acordo com os interesses mais

diversos.

Além disso, pretendemos estabelecer de forma consistente as

possíveis relações entre as estratégias da linguagem que estruturam

nossa forma canônica de ver o mundo, isto é, encontrar uma forma de

ligar esse problema que sairia da retórica até a política exigiria

certamente outros esforços e interlocuções. Até mesmo a viabilidade

de estabelecer tais vínculos pode permanecer uma questão em aberto.

Mas, afinal, o que se pode fazer com um poder de interpretação tão

capaz como é a filosofia se não nos propusermos a experimentar seus

limites? Ainda que seja extremamente arriscado e não muito bem

recebido, o esforço em renunciar às facilidades e segurança dos nossos

cânones pode ser a única rota de fuga para uma filosofia que precisar

de ar e de espaço.

Em geral, recorremos às nossas autoridades para não errar.

Quando são elas que nos induzem ao erro, ocultamos as referências

para manter a segurança de um discurso que, se não é brilhante pela

competência em pormenorizar adornos e preferências estilísticas de

cada filósofo, nem por ainda imaginar a possibilidade de se encontrar

algo original, pelo menos não será motivo de críticas ou vítima da

indiferença de entendidos no assunto e cardeais da verdade

estabelecida. Por um motivo ou por outro, preferimos não nos

manifestar. Renunciamos à palavra. Não mais por dificuldade em dizer

com precisão e clareza o que pensamos (para aqueles que ainda

julgam isso possível), nem por opção em andar atrás de quem disse

melhor e expressou sistematicamente os grandes problemas da

humanidade. Talvez estejamos enfrentando uma espécie de vingança

da história, um veneno da linguagem que criamos que hoje nos brinda

com uma infinidade de impossibilidades e imprecisões que nos deixa

órfãos, porque os valores que nos acalentavam o leito hoje não nos

servem mais. Se isto tem de fato um estatuto de crise, é uma questão. E

se for uma crise, o quão ela é insuperável ou definitiva é outra.

Por isso, o problema do discurso é, sem dúvida, de uma

magnitude política imensurável. Se quisermos enfrentá-lo, temos que

reconhecer as regras do jogo, bem como as limitações das palavras,

significados e de demais elementos concernentes à escritura. Na

margem oposta à da palavra, encontramos o corpo. A matéria, por um

lado, oferece um grau de objetividade interessante, sobretudo do

141

ponto de vista científico. Por outro, nos submete de uma forma

violenta e avassaladora, pois além de não conseguir abarcar a

completude dos objetos com nossa linguagem, tornamo-nos reféns

imaculados de sua exuberância corpórea: o corpo é tão eloqüente quão

a morte. Ele e a sensibilidade há muito nos criam tantos obstáculos

que descredenciamos sua forma de expressão na concorrência pela

verdade, por imaginar que isso pudesse facilitar o andamento da

história.

Ressalvas feitas, questão exposta e muito trabalho ainda por

fazer. A metáfora e a ironia são dois dos elementos da linguagem que

Nietzsche nos brinda tanto a partir da perspectiva de uma análise dos

seus usos pela filosofia, quanto do ponto de vista de que usufrui com

muita destreza para questionar valores estabelecidos e para criar

outras imagens capazes de exprimir a complexidade e a grandiosidade

da experiência da vida na Terra. Decerto, são muitos os demais

elementos que constituem esse amplo campo da relação entre

linguagem e política. Fica, a título de convite, a ilustração última desta

discussão: o espantoso manejo que Manoel de Barros faz com as

palavras em Matéria de poesia10, e a suspeita de que nós, na filosofia,

podemos descobrir muitos caminhos observando os usos da

linguagem da literatura e da poesia:

As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. (...) Aliás é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória.

Referências

ARISTÓFANES. As vespas; as aves; As rãs. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

10 BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

142

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999.

KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la métaphore. Paris: Payot, 1972.

LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

______. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

______. Obra incompleta. Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983. (Col. Os pensadores).

______. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SUAREZ, Rosana. Nietzsche comediante: a filosofia na ótica irreverente de Nietzsche. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

______. Nietzsche e a linguagem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL

Claudio Cavalcante Junior

Universidade Estadual do Paraná

Introdução

Neste texto, pretendemos apresentar uma visão geral da

categoria “raça” a partir de textos chaves para em seguida discutir o

preconceito racial pensado como grande entrave para a ascensão

social de indivíduos negros. A solução estaria, segundo algumas

perspectivas, na adoção de políticas afirmativas que tornam mais

viáveis o acesso a negros a bens públicos como vagas em

universidades púbicas.

Antes de avançarmos nestas questões, é mister deixar claro

que a “raça” tratada aqui n~o inclui qualquer tipo de essencialismo,

visto que é considerada uma categoria social e culturalmente

construída, apesar de sua origem estar na biologia e de ser frequente

em diversos trabalhos sobre o tema discursos nativos que

reivindiquem o pertencimento a um grupo racial (CAVALCANTE

JUNIOR, 2008; PINTO, 2006), segundo padrões genéticos, o que não

encontra consistência nas ciências naturais. Além de categoria social,

“raça” também pode ser encarada como categoria política pois, é uma

identidade que ao ser adotada ativa em muitos casos uma posição

política do indivíduo envolvido, onde estaria a origem de movimentos

reivindicatórios raciais.

Ao tratar de relações raciais no Brasil, é preciso ressaltar o

grande tema que se tornou parte da ideologia nacional no Brasil: a

miscigenação. Gilberto Freyre (1995 [1933]) elevou esta questão à

principal característica nacional contrastando com a abordagem de

alguns autores brasileiros que desde a segunda metade do século XIX

associavam mestiçagem à degenerescência da população (FREYRE,

1995 [1933], p. 11-41). A mestiçagem defendida por Gilberto Freyre

seria fruto das relações raciais harmônicas, até certo ponto, no Brasil o

que gerará críticas décadas seguintes em especial nos trabalhos que

tratam da situaç~o racial no Brasil que enfocaram o “preconceito de

144

cor” como é o caso dos trabalhos de Oracy Nogueira (1955) e Roger

Bastide e Florestan Fernandes (1959).

Até o início da década de 1950, o Brasil nutria a imagem de

uma verdadeira “democracia racial” por negros norte-americanos que

visitaram o país do início do século XX até a década de 1940 (FRY,

2005, p. 170). Isto se devia ao fato de o Brasil ser considerado um

lugar “idílico” (FRY, 2005, p. 170), onde pessoas de diferentes cores

conviviam de modo harmonioso e sem problemas, mantendo relações

de amizade e andando na mesma calçada. Esta visão sobre a situação

racial no Brasil inspirou a UNESCO a financiar em 1954 uma série de

trabalhos para descobrir “soluções” para o racismo em outros lugares

do mundo.

Os trabalhos realizados para o projeto UNESCO tinham como

objetivo estudar “os problemas de diferentes grupos étnicos e raciais

que viviam num ambiente social comum” a partir da sugest~o do

sociólogo Artur Ramos (FRY, 2005, p. 216). Os antropólogos e os

sociólogos que participaram deste projeto acabaram por denunciar a

imensa desigualdade e preconceito racial que existia no Brasil,

considerado pelos autores “mascarado” e difícil de combater (FRY,

2005, p. 170 e 216).

A democracia racial como mito fundador do Brasil

Em 1933, Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala tratou da

mistura de culturas e da “salvaç~o” do Brasil, com sua defesa da

miscigenaç~o e seus antagonismos “harmonizados”. Abordou a

construção da nação e sua especificidade sobretudo em relação aos

Estados Unidos onde não haveria uma relação harmoniosa entre

senhores e escravos como a que ocorrera no Brasil. Nesta relação,

valorizou não só o elemento africano e europeu, como o indígena

defendendo a contribuição de forma positiva para a formação da

sociedade brasileira de todos os três grupos.

Para o autor, todo brasileiro, independente da filiação

genealógica, era culturalmente africano, ameríndio e europeu, a base

deste Brasil imaginado como híbrido (racial e culturalmente). A partir

disso, se constitui uma imagem de “democracia racial” aceita no Brasil

e no resto do mundo até a década de 1940 (FRY, 2005, p. 216).

145

Em 1950, após a Segunda Guerra Mundial e dos genocídios

promovidos pela Alemanha Nazista, a UNESCO divulga a primeira

declaraç~o sobre “raça” afirmando que esta n~o tem fundamento

biológico, no entanto as crenças em raças se mantinham como mito

social (FRY, 2005, p. 15). A partir daí desenvolve um projeto-piloto que

tinha com objetivo estudar os problemas de diferentes grupos étnicos

e raciais que coabitavam um mesmo espaço (FRY, 2005, p. 216).

O Brasil é o local escolhido para este projeto que contava

com uma série de pesquisas para descobrir “soluções” para o racismo

em outros lugares do mundo, pois se imaginava que era um lugar onde

pessoas de diferentes “cores” conviviam de modo harmonioso e sem

problemas. Esta iniciativa acaba revelando que no Brasil também é

vítima do preconceito racial, apesar de ter características próprias.

É neste contexto que surge grande parte de novos trabalhos

sobre as populações “negras” no Brasil concentrados na quest~o do

preconceito de cor. Entre os trabalhos encomendados pela UNESCO,

merece destaque o de Oracy Nogueira (1955).

Oracy Nogueira desenvolve seu estudo comparativo sobre

preconceito racial no Brasil e nos Estados Unidos a partir da análise de

modelos distintos de classificação social adotados nos dois casos que

produzem formas distintas de preconceito o que ele definirá como

preconceito racial de marca, caso brasileiro, e preconceito racial de

origem, caso norte-americano.

No Brasil, o preconceito é de marca, pois ele se exerce em

relação à aparência ao passo que nos Estados Unidos o preconceito é

de origem: o que define um indivíduo como negro é o fato de ter algum

ancestral negro (NOGUEIRA, 1955, p. 285). No caso brasileiro, o

preconceito é mais implícito, nos Estados Unidos, explicito inclusive

com a segregação racial que assolou os estados do sul daquele país até

a década de 1960.

Oracy Nogueira apresenta a flexibilidade das fronteiras

raciais no caso do Brasil, onde há a possibilidade de escolha em

algumas situações e como as fronteiras são fixas no caso norte-

americano (NOGUEIRA, 1955, pp. 285-286). A identidade racial no

Brasil é contextualmente negociada, como pode ser visto na expressão

da “cor” para o IBGE de tempos em tempos (FRY, 2005, p. 16). Nos

Estados Unidos, as categorias “negro” e “branco” s~o consideradas

naturais de acordo com a “one drop rule” (“regra da gota única”) (FRY,

146

2005, p. 294). A diferença é marcada por sinais diacríticos

compreendidos por todos, além do elemento naturalizante desta

identidade.

Assim no caso norte-americano, a categoria étnica “black”

(“negro”) unia descendentes de escravos africanos que possuem

línguas e culturas diferente tendo como fim interesses políticos

compartilhados (ERIKSEN, 1993, p. 81-82). É mister ressaltar que no

Caribe h| n~o só a categoria “black”, mas também “brown”

(literalmente “marrom”) (ERIKSEN, 1993, p. 83). Os “Brownes” da

Jamaica, por exemplo, s~o “mestiços”, identificados com a classe

média, já no caso norte-americano a categoria “brown” é inexistente,

visto que qualquer um que tenha algum ancestral “black” é classificado

como tal.

Já no Brasil, é possível a definição racial segundo diversas

cores. Uma identidade racial contextual que pode mudar de acordo

com a capacidade de manipulação por parte do sujeito. Onde relações

pessoais entre indivíduos de grupos “raciais” distintos como laços de

amizade e admiração são testemunhadas, algo inimaginável no caso

norte-americano (NOGUEIRA, 1955, p. 290, nota 29).

No caso brasileiro, apesar da definição racial ser baseado em

critérios físicos, há formas de driblar certas barreiras como no

exemplo dado Oracy Nogueira, do negro que entra no clube recreativo

no qual negros não tinha acesso. O indivíduo consegue isto quando

tem alguma:

[...] superioridade inegável, em inteligência ou instrução, em educação profissional e condição econômica, ou se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso, ‘abrindo-lhe uma exceç~o’, sem se obrigar a proceder da mesma forma para com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou, mesmo, mais leves (NOGUEIRA, 1955, p. 286).

No caso dos Estados Unidos, por se tratar de um país

multicultural, é valorizado o fato de as identidades étnicas serem

mantidas, visto que os elementos que definem a identidade nacional

norte-americana não demandam um processo de desetnificação. Já no

Brasil, imigrantes e seus descendentes têm de abandonar seus

diacríticos étnicos para poderem se tornar brasileiros, para se

integrarem adotando uma cultural nacional homogênea. Desta forma,

147

a diferença cultural não é comunicada publicamente em prol da

integração na nação brasileira. Como falou um descendente de sírios a

Oracy Nogueira: “O problema do italiano, no Brasil, é o da

desmacarronização, assim como o do sírio é o da desquibização e, o do

alemão, o da desbifização” (NOGUEIRA, 1955, p. 291, nota 29).

A valorização da miscigenação é um ponto que afasta o

modelo brasileiro do norte-americano. No Brasil, há a expectativa de

que tipos raciais como o negro e o índio desapareçam (NOGUEIRA,

1995, p. 290). Nesta situação, há também a expectativa de que o

estrangeiro (branco) abandone sua herança cultural em proveito da

“cultura nacional” (NOGUEIRA, 1995, p. 291). J| nos Estados Unidos, o

fato de as minorias manterem sua própria cultura, falar sua língua e

ser endogâmicas é valorizado, devido à ideologia do multiculturalismo

que não só reconhece como estimula a diferença dos grupos.

A etiqueta de relações inter-raciais põe ênfase no caso

brasileiro no controle do comportamento de indivíduos do grupo

discriminador, de modo a evitar a suscetibilização ou humilhação do

indivíduo do grupo discriminado o que limita os perigos de um conflito

aberto (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 148 e NOGUEIRA, 1955, p.

292). Esta postura diferente do caso (do sul) dos Estados Unidos onde

a segregação era clara, violenta e institucionalizada, o que, unido aos

demais fatores, explicaria o fenômeno do passing1.

Apesar de muitas das observações feitas por Oracy Nogueira

ainda serem atuais, as novas formas de classificação têm tido um

grande impacto na sociedade. Assim ser negro pode passar a ser

alguém que tem uma história de discriminação racial. Uma história

compartilhada pode ser um critério para a produção de uma nova

identidade, sem perder de vista os alicerces sustentados por questões

genealógicas, ou seja ter alguma descendência africana, por exemplo, e

também classe social que influenciaria a escolha da cor.

Os resultados das pesquisas para a UNESCO revelaram as

tensões entre o mito e o “racismo { moda brasileira” (FRY, 2005, p.

217). De forma geral, os autores envolvidos no projeto chegaram à

conclus~o de que o “processo de hegemonia racial” desativaria a

“consciência” da discriminaç~o racial e da desigualdade, mas

estimularia a discriminação racial e a negaria ao mesmo tempo.

1 Nos Estados Unidos, há casos de indivíduos identificados como “negros”, mas

com cor da pele clara, trocavam de localidade e de nome e torna-se “branco”.

148

Assim, a forma mais eficaz de ascensão social se encontrava

na escolha por tentar cruzar a fronteira racial visto que dependendo

do contexto, “negros” podem se tornar “brancos”, ou “morenos”, de

acordo com a aparência física e até do status social. Isto se deve ao fato

de a identidade negra não ser objetiva ou essencializada, dentro dos

padrões classificatórios brasileiros. Agora vemos indivíduos se

organizando politicamente a partir do reconhecimento de uma

“negritude” e que deve impulso com políticas estatais como a

constituição da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, ligada ao

Ministério da Justiça, em 1995.

Estas estratégias são possíveis porque no Brasil a reação em

relação a discriminação tende a ser individual, muitas vezes

procurando o indivíduo:

[...] compensar suas marcas pela ostentação de aptidões e características que impliquem em aprovação social tanto pelos de sua própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por indivíduos de marcas mais ‘leves’ que as suas (NOGUEIRA, 1955, pp. 294-295).

No Brasil, a probabilidade de ascensão social está na razão

inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador,

ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual

tende a coincidir (NOGUEIRA, 1955, p. 296). Assim os obstáculos para

a ascensão social diminuem à medida que a cor clareia (BASTIDE;

FERNANDES, 1959, p. 167), contrariando o que dissera Freyre para

quem haveria a tendência no Brasil de favorecer o mais possível a

ascensão social do negro (FREYRE, 1995, p. 415). Segundo Peter Fry

(2005), a desigualdade no mercado de trabalho, e em educação, pode

ocorrer mesmo entre irmãos onde o mais claro é mais bem sucedido

que o mais escuro (FRY, 2005, p. 324)2.

O modelo bipolar de classificação racial, como o que existe

nos Estados Unidos, vem ao longo dos anos se tornando mais popular

2 O acesso a bens públicos, como vagas em universidades públicas através de cotas

raciais, também pode variar entre irmãos no Brasil. Vide o caso dos gêmeos

idênticos que ao tentarem ser cotistas no vestibular da Universidade de Brasília, se

definindo como negros, apenas um foi aceito. Após a polêmica, a universidade

voltou atrás e reconheceu o outro irmão também como negro, conforme artigo de

Bassete (2007).

149

no Brasil, onde a forma de pensar as identidades raciais é mais

complexa. Esta complexidade pode ser constatada em pesquisa feita

em 1976, que mostrou que 135 categorias de classificaç~o de “cor” ou

“raça” foram mencionadas demonstrando a grande flexibilidade na

escolha da “cor” no Brasil (FRY, 2005, p. 176). O modelo complexo de

classificaç~o da “cor” é acompanhado pela relaç~o entre as gradações

de cor e gradações de riqueza e pobreza. Assim havia as desigualdades

sociais e econômicas entre os mais escuros e os mais claros, mas

semelhanças culturais entre os brasileiros de maneira geral, pois

compartilhariam de uma cultura única nacional.

Com esta grande quantidade de cores, junto à idéia de

miscigenação, o pensamento racial brasileiro acreditava que o branco

poderia englobar o negro, ou seja, afastando a ideia de identidade

“racial” baseada na origem, o que possibilitou a política de

branqueamento com o estímulo à migração européia. Já segundo a

taxionomia bipolar dos Estados Unidos, que divide brancos e negros, a

raça “inferior” seria dominante, manchando ou poluindo a “pureza

branca” com critérios objetivos, a descendência, que definiam as linhas

“raciais” (FRY, 2005, p. 198).

Com mudanças atuais no tipo de classificação no Brasil,

parece haver uma espécie de redução do tipo múltiplo ou ampliação ao

tipo bipolar, mesmo insistindo em três categorias. O Censo brasileiro

passa a trabalhar com as categorias “preto” e “pardo” sendo que

“negro” passa a englobar tanto “preto” quanto “pardo”. No Brasil,

apesar da grande quantidade de classificações raciais, há a tensão

entre estas duas taxonomias com o exemplo de expressões populares

como “quem passa de branco preto é” (FRY, 2005, p. 224).

Florestan Fernandes e Roger Bastide (1959) sentiam que a

discriminação racial e a desigualdade entre brancos e pessoas de cor

eram em grande parte resultantes da herança da escravidão e da

dificuldade que os negros brasileiros haviam enfrentado para se

adaptar ao capitalismo. Pensavam assim que com a integração do

negro à economia, a desigualdade e a discriminação desapareceriam

(FRY, 2005, p. 217).

O preconceito de cor teria como função justificar o trabalho

do africano no período da escravatura e após a abolição serviria para

justificar a sociedade de classes (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 13).

Apesar da mudança da estrutura social com a abolição e a república, os

150

autores apontam reminiscências dos antigos estigmas dos brancos

sobre os negros. Muitos brancos na década de 1950, quando fizeram a

pesquisa, ainda se achavam superiores aos negros, sustentando

estereótipos negativos ao considerar os negros como degradados

moralmente e intelectualmente, aptos apenas para trabalhos manuais

ou para a prática de esporte, principalmente do futebol (BASTIDE;

FERNANDES, 1959, p. 166).

Com estigmas que permanecem no sistema de classes, há

uma série de dificuldades para a ascensão social do negro facilitada

quando h| um “padrinho” branco que colabora para a ascens~o de

alguns destes indivíduos ao isolá-los e cortar “suas raízes” raciais.

Desta forma o negro passaria a se identificar com brancos chegando

até a reproduzir esteriótipos negativos acerca dos outros negros em

situação social desfavorável (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 116 e

140).

O preconceito desta forma operaria como instrumento para

impedir a ascensão do grupo de negros dificultando, por exemplo, o

acesso à educação. Assim é privilegiado apenas um pequeno número

para haver a preservação da ordem vigente, através deste novo

mecanismo que teria substituído o sistema de escravidão que

preservava a ordem senhorial até então (BASTIDE; FERNANDES, 1959,

p. 89).

Por fim os autores afirmam ser necessário que os negros

para ascenderem tomem consciência de sua “negritude” e que

superem o “tabu da cor” (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 197 e 242).

Os negros precisam combater o preconceito racial na luta pela

ascensão social de todo o grupo criando possibilidades, sobretudo

através da solidariedade racial e da educação, para sua ascensão social

promovendo finalmente sua integração nacional de fato (BASTIDE;

FERNANDES, 1959, p. 234).

A abordagem de Fernandes e Bastide ressoa em discursos de

pessoas com algum envolvimento no movimento negro3 quando

encaram a “consciência negra” como um despertar em algum

momento de uma espécie de identidade adormecida e o meio através

do qual superariam o atual “estado de dominaç~o”. Os autores

3 Informações colhidas nas manifestações ocorridas ao longo do dia 20 de

novembro de 2007 em que era comemorado o Dia Consciência Negra realizado no

Centro da cidade do Rio de Janeiro.

151

essencializam a identidade negra e deixam de lado questões

fundamentais nas relações raciais no Brasil como a falta de critérios

objetivos para delimitar as fronteiras raciais tratando a flexibilidade

destas identidades como meras estratégias para facilitar a ascensão

social de alguns indivíduos.

De fato a flexibilidade na escolha da cor poderia levar

indivíduos a se classificarem n~o como “negros”, mas como “mulato

claro” ou “moreno”. Situaç~o que pode atualmente mudar com a

possibilidade de acesso a bens públicos, caso das cotas raciais no

vestibular para estudantes pretos, pardos e índios4 adotadas por

universidades públicas, que favorece a escolha e pode alavancar uma

tomada de consciência da negritude. Tomando as identidades raciais

como as identidades étnicas abordadas por Fredrik Barth, vemos que:

[...] a travessia da fronteira étnica por um indivíduo, ou seja, a mudança de identidade ocorre sempre que a performance desse indivíduo não tem condições de sucesso e há outras identidades alternativas ao seu alcance (BARTH, 2000, p. 91).

O trabalho de Roger Bastide e Florestan Fernandes mostrou

que a discriminaç~o racial e a desigualdade entre brancos e “pessoas

de cor” eram em grande parte resultantes de um dram|tico processo

histórico, passando pela escravidão e a marginalização no sistema

econômico. Assim bastaria a sua integração à economia que a

desigualdade e a discriminação desapareceriam. Até os trabalhos

encomendados pela UNESCO, acreditava-se que no Brasil só existia

preconceito de classe. Há no Brasil, país onde a miscigenação é um

valor cultural, a presença de um racismo peculiar que tem como

característica o fato de ser silencioso.

Cultura homogênea como identidade nacional

Além do Brasil, em ex-colônias portugueses na África

também foi dada ênfase { “convers~o” de diversos grupos étnicos a

uma cultura dominante (FRY, 2005, p. 175). Uma cultura fruto do

encontro dos povos, um ideal de miscigenação cultural tem como

objetivo a construção de um país homogêneo. A ameaça desta

4 Utilizamos aqui a mesma classificação racial do IBGE.

152

homogeneidade pode por em risco a própria existência do Estado-

nação, segundo a ideologia nacional em muitos países.

A valorização de uma cultura homogênea fez com que

publicações em língua estrangeira e escolas onde eram ensinadas as

línguas de imigrantes fossem proibidas pela Constituição de 1937, pois

constituía uma ameaça a nação (LESSER, 2001, p. 218 e 230). Desta

forma, toda a educação deveria ser em português e todos os imigrantes

devem por fim se tornar brasileiros, abandonando sobretudo sua

língua, o que rendeu a proibição por lei de se falar língua estrangeira

em espaço público e privado (LESSER, 2001, p. 233).

A busca pela assimilação de valores compartilhados pelo

grupo é semelhante às tentativas de assimilação a uma cultura

nacional tanto no Brasil, ou em ex-colônias portuguesas na África onde

houve um grande esforço para a formação de uma homogeneidade

cultural e linguística como em Moçambique. O Brasil também passou

por um processo de homogeneização cultural o que o aproxima do

modelo de Moçambique.

O contraste das situações raciais nos Estados Unidos e no

Brasil é semelhante à encontrada entre Zimbábue e Moçambique, que

estão na base das identidades nacionais destes países. Isto se deve ao

fato de serem exemplos do contraste entre os ideais de “segregaç~o” e

“assimilaç~o” (FRY, 2005, p. 46).

A homogeneidade cultural do Brasil, uma de suas grandes

características nacionais, absorveu símbolos africanos transformados

em elementos centrais da identidade nacional (FRY, 2005, p. 27).

Assim há grande dificuldade de grupos negros estabelecerem seus

próprios diacríticos culturais, pois muitos elementos culturais que

teriam origem africana tornaram-se símbolos nacionais brasileiros.

Por isso que hoje é frequente que símbolos da identidade negra

venham de fora do Brasil como o reggae (no Maranhão) e o hip hop

(no Rio de Janeiro e São Paulo) e da própria África na Bahia com os

grupos carnavalescos “afro” para demarcar fronteiras (FRY, 2005, p.

233). Além da feijoada, o samba e o candomblé são outros exemplos de

expressão cultural negra transformados em símbolos nacionais (FRY,

2005, p. 155).

153

Ações Afirmativas e movimento negro

Atualmente, é recorrente em etnografias como a de Paulo

Pinto (2006) a retórica a respeito de uma “tomada de consciência” da

negritude. Em trabalho sobre o impacto do sistema de cotas raciais na

UERJ, o autor cita a grande recorrência de alunos ligados a movimento

negro de frases como: “’Me descobri negro (a) h| X anos/meses’ ou ‘só

me dei conta que era negro (a) há X anos/meses” (PINTO, 2006, p.

160).

Em vários momentos, há esta formação da identidade, como

se fosse uma identidade adormecida, cada vez mais positiva marcada,

por exemplo, pela comemoração no dia 20 de novembro, desde 1995,

do Dia da Consciência Negra que se tornou feriado em algumas cidades

e estados no Brasil. Este dia passou a partir de então a ganhar força

como um dia que é lembrado a resistência dos negros na luta pela

liberdade, pois foi o a data em que teria morrido Zumbi dos Palmares,

líder do Quilombo dos Palmares (1630-1697) localizado hoje no

Estado de Alagoas. Zumbi é através desse processo transformado em

herói da população negra contra a opressão e o racismo. É importante

também ressaltar que a Constituição de 1988 deu direito de

propriedade a terras ocupadas por descendentes de escravos

quilombolas.

Este se torna um dia em que os símbolos outrora ligados à

população de origem africana são celebrados como parte da

identidade afro-brasileira ou mesmo africana. Há a reconfiguração de

diacríticos étnicos, tais como o candomblé, uma “religi~o de matriz

africana”, a culin|ria baiana ou o samba, que passam a ser encarados

como parte de uma tradição importada da África. Estes elementos

africanos passam a ser valorizados, se afastando de posturas como em

relaç~o { “africanizaç~o” do carnaval em Salvador, por exemplo, j|

criticada por jornais no início do século XX, naquele período,

considerado uma ameaça à civilização brasileira, pois a afastava cada

vez mais da “Europa culta” (RODRIGUES, 1987 [1932], p. 157-159).

A “restituiç~o” destes símbolos como africanos é evidente

nas comemorações nesta data que vem ocorrendo em frente ao busto

de Zumbi na Praça XI, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Uma

região com um forte valor simbólico para populações negras, pois foi

154

onde se instalou uma grande comunidade de ex-escravos oriundos da

Bahia a partir do final do século XIX (COSTA E SILVA, 2005).

Nas comemorações realizadas no ano de 2007, houve a

presença de grupos de afoxé, samba, sacerdotes de religiões afro-

brasileiras, políticos e militantes do movimento negro. Era enfatizado

todo o tempo, a riqueza do que foi chamado de “cultura africana” que

se mantém viva hoje na sociedade brasileira, além do empenho de

todos na luta contra o racismo. Uma grande valorização não só da

cultura de origem africana, mas da consciência desta cultura, na

manipulação performática de diversos atores para exibir publicamente

que eram negros. Entre estas marcas havia os cabelos com uma

estética “afro”, a música e a comida.

Além destas datas e da representação de heróis, Zumbi no

Brasil ou Malcolm X nos Estados Unidos, merece destaque outros

fatores que podem contribuir para a formação de uma identidade

negra como, por exemplo, o interesse de consumir os mesmos

produtos. Foi o que aconteceu quando os negros passaram a ser

imaginados como brasileiros com uma estética própria (FRY, 2005, p.

264).

Com o fortalecimento das ações afirmativas, que começam a

ser adotadas pelo Estado, a partir da criação da Secretaria Especial de

Promoção da Igualdade Racial em 1995, a identidade negra toma outro

rumo. A possibilidade de pleitear vagas em serviços públicos ou em

universidades a partir de critérios raciais é um importante fator que

colabora com a escolha por ser negro.

Algumas medidas começaram a ser tomadas após

Conferência de Durban5 quando foram propostas ações afirmativas em

prol da “populaç~o negra”. No Brasil, o Programa Nacional de Direitos

Humanos propõe intervenções que visam fortalecer uma definição

bipolar de raça no Brasil e implementar políticas específicas em favor

dos brasileiros negros (FRY, 2005, p. 227).

Paulo Pinto (2006) fala da manipulação da identidade racial

como estratégia para indivíduos conseguirem entrar em cursos

universitários concorridos como o de medicina. Esta atitude é

condenada como fraude por alguns alunos, sobretudo por aqueles

5 Conferência realizada pela Organização das Nações Unidas na cidade de Durban,

África do Sul, em 2001, com o objetivo de encontrar soluções para o combate ao

racismo, xenofobia e demais formas de intolerância.

155

ligados ao movimento negro (PINTO, 2006, p. 154). A discriminação

une brasileiros “negros” de diferentes trajetórias ao torn|-los alvos de

diversos agentes sociais. Eis a origem de uma memória que passa a ser

compartilhada por diversos indivíduos.

A escolha por determinada “cor” como estratégia para maior

acesso a bens públicos pode encontrar limites devido à formalização

de critérios objetivos para definir “cor” ou “raça” no Brasil através do

Estatuto da Igualdade Racial que limitariam a escolha do

pertencimento racial. Segundo Paulo Pinto: “Um dos pressupostos da

adoção da política de cotas na universidade é a possibilidade de definir

quem tem ou não o direito de ser beneficiado por tal política” (PINTO,

2006, p. 150).

No texto supracitado, Paulo Pinto dá um panorama dos novos

rumos que classificação racial brasileira tem tomado examinando as

trajetórias dos estudantes e os efeitos da implantação das cotas raciais

sobre a construção de identidades raciais, as representações de mérito

individual e as identidades e representações acadêmicas entre alunos

e professores da universidade, que ressoam de diferentes formas

segundo valores compartilhados por estudantes dependendo do curso

universitário (PINTO, 2006, p. 142).

A implantação de ações afirmativas é uma das formas que

promoveriam o acesso aos bens, recursos e canais de inserção e

mobilidade social para indivíduos “potencialmente excluídos” através

de uma série de medidas que teria por fim neutralizar e compensar os

efeitos negativos da discriminação racial (PINTO, 2006, p. 136). No

debate nacional, a identidade negra encarada como identidade racial

ou étnica vem sendo essencializada: “como se estas fossem apenas

signos ‘descritivos’ de uma ‘verdade’ inscrita na ‘natureza’” (PINTO,

2006, p. 147).

As discussões, que envolvem a adoção das cotas raciais, têm

oscilado entre a construção da identidade negra, como identidade

étnica, a qual implicaria elementos culturais, e racial, no caso diria

respeito a questões fenotípicas ou genealógicas (PINTO, 2006, p. 139).

A partir desta abordagem ser “negro” ou “preto” n~o se resume {s

características fenotípicas do indivíduo, pois seria também baseada no

compartilhamento de uma “cultura negra” ou { exclus~o social para

definir essa identidade racial (PINTO, 2006, p. 139).

156

Tenta-se buscar a demarcação de fronteiras raciais que

definem as identidades culturais num processo que busca a

objetivação destas. Mesmo assim há casos que o autor demonstra que

há possibilidade de passagem ou diluição da fronteira racial em certos

contextos (PINTO, 2006, p. 150-151). Alguns dos interlocutores de

Paulo Pinto apontam a possibilidade de relativização das categorias

raciais a partir da manipulação performática dos traços fenotípicos.

Esta manipulação estratégica da identidade racial é condenada como

fraude por alguns alunos na universidade, sobretudo os ligados a

movimentos sociais identitários, o que ocorre sobretudo em contextos

competitivos, como quando disputam vagas nos cursos de medicina ou

de odontologia (PINTO, 2006, p. 153-154).

Assim os defensores das cotas raciais na UERJ, apontam para

a necessidade de “mecanismos de controles” (uma “comiss~o de

avaliaç~o”) para impedir “fraudadores”. Em tom irônico, um deles diz

que esta comissão deveria ser formada por porteiros e policiais

(PINTO, 2006, p. 155). A discriminação ganha um importante papel

neste contexto ao demarcar e definir a identidade racial negra. A

experiência do sofrimento seria uma das marcas que definiriam a

fronteira que separa os brancos dos negros e permite mobilizar os

possíveis beneficiários e distingui os portadores de identidades

legítimas (PINTO, 2006, p. 158).

Conclusão

Este texto tentou apresentar na história do pensamento

sociológico brasileiro como foi definida “raça” e como foi pensado o

“racismo”, o que colabora na compreens~o da situaç~o racial no Brasil

atualmente. Novos estudos foram realizados nas últimas décadas a

partir das iniciativas do Estado que formou a Secretaria de Igualdade

Racial e o Estatuto da Igualdade Racial e institucionalizou cotas raciais

para o acesso de minorias raciais a vagas em universidades públicas.

Todas estas iniciativas podem ser vistas como tentativas de

consertar um “erro histórico”, devido { situaç~o de “marginalizaç~o”

desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. É neste contexto de

transição, em que há mudanças na classificação racial no Brasil a partir

de políticas publicas, que são construídas novas construídas

identidades sociais em que a adoção de uma identidade racial não

157

apenas possibilita o acesso legítimo a bens públicos, mas contribui no

combate de antigos estigmas e torna, de diferentes formas, positivo ser

“negro”.

Referências BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. BASSETE, Fernanda. “Cotas na UnB: gêmeo idêntico é barrado”. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL43786-5604-619,00.html. Acesso: 30 de agosto de 2007. CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008. COSTA E SILVA, Alberto da. “Comprando e vendendo Alcorões no Rio de Janeiro no século XIX”. In: Estudos Avançados, vol.18, n.50. São Paulo, 2004. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100024. Acesso: 30 de Novembro, 2005. ERIKSEN, Thomas H. Ethnicity & Nationalism: Anthropological Perspectives. Colorado: Pluto Press, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Casa-grande e senzala. Formação da família brasileira sob regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1995. FRY, Peter H. A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LESSER, Jeffrey. A Negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: UNESP, 2001. MALCOLM X. Autobiografia de Malcolm X / com colaboração de Alex Haley. Rio de Janeiro: Record, 1992.

158

NOGUEIRA, Oracy. “Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem – Sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. In: Anais do XXXI Congresso Internacional dos Americanistas. São Paulo, Editora Anhembi, 1955. PINTO, Paulo G. H. R. “Aç~o afirmativa, fronteiras raciais e identidades acadêmicas: uma etnografia das cotas para negros na UERJ”. In: Ação afirmativa e universidade: experiências nacionais comparadas. João Feres Junior e Jonas Zoninsein (org.). Brasília: UnB, 2006. RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986. RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo. Ed. Nacional. [1932], 1987.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO

Thiago David Stadler

Universidade Federal do Paraná

Quão difícil é nos libertarmos dos sepulcros do cemitério de

idéias que formam o tão apregoado conhecimento histórico. Muitas

vezes, prisioneiros destes túmulos, vagamos como um fantasma ocioso

no jardim da história (VOLPI, 2008, p. 25): revisitamos todas as

belezas e as curiosidades que este oferece à vista, mas como fantasmas

somos incapazes de atuar historicamente. Alguns espíritos não

contentes com esta impotência tentam desfazer as amarras tecidas -

muitas vezes celebradas? – pela inércia utilizando instrumentos

equivocados. Assim, se faz presente a conformidade de um senso

comum1 que, assim como os fantasmas que o avivaram, ignora a

vivacidade do pensamento e a indispensável crítica histórica. Da

mesma maneira, os desfavores de uma interdisciplinaridade cegada

pela necessidade de ampliação do campo de pesquisa, sem atentar-se

para o posterior imperativo de ampliação de métodos, trabalham para

a depreciação do fazer história. Por último, os fantasmas proclamam a

vontade redentora de enquadrar-se em um grande modelo auto-

explicativo, mas esquecidos de como é a vida vivida, ignoram que todo

movimento histórico é real e com toda a sua riqueza, não passível de

sistematização: o que importa é a reprodução intelectual do concreto, e

não a má abstração que reduz o concreto a simples elemento de um

sistema (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 52).

“Aristocratas do nada”, ampliaç~o dos problemas e n~o dos

métodos, grandes modelos intelectuais2. Com todas estas “ações” estes

1 Importante notar que este senso comum não se limita ao estado permanente do

“conhecimento superficial”, mas adquire maiores problemas quando ditos

“aristocratas do nada” tentam contemplar toda a sucessão temporal histórica como

se este ato fosse possível. 2 Pode parecer que tal proposta foi superada pela historiografia contemporânea,

mas a tendência em buscar “caminhos totais” continua viva. Podemos citar a

paradoxal situação da manifestação pós-moderna: “Certamiente, el

postmodernismo no es más que otro gran relato, quizás el último gran relato

historiográfico, pero con la particularidad y la paradoja de que abomina de los

160

libertos, assim reconhecidos entre eles próprios, julgam escapar da

escuridão e solidão do cemitério de idéias históricas, mas o que fazem

é apenas reproduzi-lo cada vez mais. Assumir tais posturas é ignorar

os diferentes efeitos práticos e teóricos que a difusão e a recepção dos

diferentes pensamentos provocam (SÁNCHEZ VÁZQUES, 2002, p. 109),

além das condições de produção do documento/monumento histórico.

A pergunta que urge é: como sair deste incômodo terreno sepulcral

para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Um dos possíveis

caminhos e, particularmente o perseguido neste trabalho, é entender

que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o

primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado;

muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercê-

la, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador3 (SÁNCHEZ

VÁZQUES, 2002, p. 67). Logo, o problema não é a existência de um

cemitério repleto de idéias, visto que seria ignorância considerar que o

mundo é composto apenas pelos vivos4, mas sim, a postura de não

atualizar tais idéias, de utilizá-las sempre da mesma maneira, mesmo

com diferentes problemáticas; ou seja, o engessamento de categorias

teóricas.

grandes relatos como metodología de conocimiento, interpretación y

representación de la realidade” (AURELL, 2008, p. 26). 3 A citação original faz referência ao ofício do filósofo.

4 Esta concepção de atualizar as noções do passado era pilar básico numa tradição

histórica do mundo clássico. A dicotomia transformação x tradição já se tornava

presente na forma de redigir a História naquele período. Podemos referenciar um

dos trabalhos de Renan Frighetto – Transformação e Tradição: a influência do

pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na Antiguidade

Tardia – o qual aborda exatamente esta temática. Frighetto constata este fato nos

séculos IV e V da era cristã teorizando acerca da simultaneidade entre novas

perspectivas do pensamento político das monarquias bárbaras, mas fortemente

marcada pelos vínculos com a tradição clássica romana: “Encontramo-nos diante

dum caso notório de recuperação da tradição política e cultural que remonta ao

período romano, alcançando a Antiguidade Tardia hispânica. Não obstante, nem

tudo que é recuperado é literalmente copiado, sendo esta máxima válida para os

escritos que analisamos. Seria inconcebível que o texto ciceroniano, redigido num

contexto específico para um público próprio, fosse aplicado sem nenhuma nova

incorporação séculos depois” (FRIGHETTO, 2008, p. 36). Interessante notar como

esta prática tão antiga de se fazer história desapareceu em muitos círculos atuais de

historiadores, visto a perpétua repetição de pensamentos sistematizados, sem o

“toque” individual do pesquisador dando novas perspectivas para futuros

questionamentos.

161

Trata-se de assumir uma postura que torne o pensamento

pertencente ao momento estudado sem, contudo, ignorar o natural

vínculo entre o pensar e o nosso próprio tempo. Cabe afirmar que para

isso acontecer se faz necessário refletir sobre a história de forma

rigorosa, objetiva e fundamentada (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 40),

cientes de que não alcançaremos todas as respostas5, mas que estas

devem ser dadas respeitando seu caráter efêmero e transitório dentro

do saber histórico. Tais respostas remontam à necessidade de quebrar

esta reprodução dogmática do conhecimento histórico agindo no

sentido de evitar um “estado de mobilidade perpétua” circular, que se

reproduz e se repete sem fim – cultura cristalizada (VOLPI, 2008, p.

29).

É nesta linha de reformulações do pensamento histórico que

Jaume Aurell propôs uma inquietante questão:

la historiografia occidental siempre ha rechazado otras formas de hacer historia que, no estén basadas en el racionalismo y el objetivismo. Somos incapaces, por ejemplo, de advertir que la autobiografia puede ser más histórica que la monografia, porque a pesar de toda su carga emocional puede abarcar esferas de la realidad a la que la fria monografia de archivo nunca accederá. Sin embargo, desconfiamos de este gênero por su fuerte carga subjetiva e imaginativa (AURELL, 2008, p. 25).

Sua preocupação, quem sabe provocação, recai na recusa de

grande parte dos historiadores em não aceitar a validade de

documentos não comuns à sua própria cultura. Interessante apontar

que esta afirmação de Aurell foi proferida já no século XXI, ou seja, a

tão questionada hierarquia de fontes ainda se apresenta viva entre os

estudiosos. Parece-nos que para alguns destes estudiosos os termos

“subjetividade” e “imaginaç~o” deveriam ser banidos do vocabul|rio

do historiador, pois eles atestariam a não seriedade dos estudos

históricos. Todavia, são elementos destas categorias que trazem o

homem para dentro da história, se não este pode se perder em meio a

5 Salientamos que ser objetivo não exclui temas e observações subjetivas. Tornar a

história um campo de afirmações comprobatórias sem o espaço para dúvidas,

lacunas e subjetivismos é caminhar em um terreno perigoso. Rigor, objetividade e

fundamento são necessários para a seriedade do método histórico, mas não podem

apagar a carga subjetiva e imaginativa que as composições históricas carregam.

162

tantos emaranhados de estatísticas, estruturas, fatalismos e

determinismos (AURELL, 2008, p. 24). Esta aspiração a uma história

totalmente objetiva, amplamente criticada durante o século XX, apaga

um ponto fundamental da percepção histórica: os homens que aqui

estiveram e que aqui estão são formados de carne, osso e contradições

internas. Logo, devemos dar espaço para a imaginação e a

subjetividade, pois estas fazem parte do nosso ser, mas atenção, esta

abertura deve respeitar os limites do próprio objeto de estudo6. Aurell

encerra esta questão de forma convincente apresentando uma

tendência recorrente, mas errônea nos estudos históricos:

tendemos a identificar subjetivismo e imaginación com ficción, sin caer en la cuenta de que ficción es una categoria relacionada com realidad, no con las otras dos dicotomias verdad-mentira y objetividad-subjetividad. Se puede ser muy subjetivo sin abandonar em absoluto del âmbito de lo real (AURELL, 2008, p. 26).

Realidade é quase uma obsessão dos historiadores.

Atualmente dá-se preferência pela express~o “representaç~o da

realidade”, mais correta em nossa concepç~o. Entender esta

representatividade do real como algo construído e produzido não

meramente “percebido” (ARÓSTEGUI, 1993, p. 205) é mais um

caminho para fugir dos muros sufocantes do cemitério de idéias da

história. Como vimos, esta construção/produção da realidade histórica

também deve levar em conta a diversidade documental que possua

aspectos subjetivos e imaginativos. Com eles podemos aproveitar as

experiências dos homens do passado, suas dúvidas, suas incertezas,

por fim, sua existência. O intelecto humano tem esta capacidade de

estender-se a todo ser, ainda mais ao ser que foi. Aproveitar outras

formas de fonte histórica é dar valor a este intelecto, o qual por

natureza é uma mescla de objetividade e subjetividade. É através desta

6 “Lo cierto es que hay uma verdad objetiva, y um pasado real, que há existido, al

que podemos acceder a través de diversas fuentes de conocimiento – orales,

escritas, iconográficas. Lo que muchas veces olvidamos, y parece también de

sentido común, es que hay muchas maneras de acceder a ese único pasado, u no

tiene por qué ser mejores unas que otras, sino simplesmente diferentes” (AURELL,

2008, p. 26).

163

díade7 que o homem consegue repensar, “re-presenciar” a vida, as

experiências e os atos dos homens de outras épocas (ELDERS, 2008, p.

33). Dessa forma, ampliam-se os elementos sociais capazes de

construir a inteligibilidade que os homens pretendem extrair da sua

própria existência (ARÓSTEGUI, 1993, p. 206).

Partindo das discussões levantadas podemos propor que um

dos documentos produzidos pelo homem com grande peso na questão

da “existência” e, por conseguinte, da vontade de entender/relatar as

situações vividas é o diário. Os diários encontram-se numa

encruzilhada entre fontes exemplares para uma história que privilegie

diversos pontos de vista e fonte pouco confiável, exatamente pela

tendência relativizadora e eminentemente subjetiva de seu texto e da

abordagem do contexto histórico. Todavia, como dito anteriormente, a

carga subjetiva de uma documentação não retira sua natureza de

realidade, apenas opõe-se à objetividade. Philippe Lejeune afirma que

“antes que um texto, o di|rio é uma pr|tica”, que “levar um di|rio é

antes de tudo uma maneira de viver” (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p.

22). É pensando nestes termos que propomos algumas considerações

sobre um diário especialmente notório da antiguidade helenística: os

Solilóquios8 do imperador romano Marco Aurélio (161-180 d.C.).

Cabe inicialmente apresentar uma distinção necessária para

as nossas considerações sobre os Solilóquios aurelianos. María Salatino

de Zubiría propõe uma diferenciação entre o diário íntimo e o dietário:

En el primero (diário íntimo) señala un predominio de lo afectivo; la escritura nace de las experiencias de la vida cotidiana y, generalmente, puede estar fechado. Por el contrario,

7 Aceitar esta duplicidade é imperativo para compreender o homem como ser

histórico. Devemos levar em conta que a imprevisibilidade e a arbitrariedade

também participam do cotidiano do homem, visto que o homem é livre em suas

decisões. Porém, como afirma Elders, “pero lo que se ha hecho o lo que no, forma

parte ya del pasado y está fijado para siempre”, sejam arbitrários ou não, logo,

passíveis de ser estudados pelos historiadores. (ELDERS, 2008, p. 33) 8 Não se sabe como os manuscritos de Marco Aurélio foram preservados e

chegaram até nós. Algumas especulações falam de dois grandes amigos do

imperador, Aufidius Victorinus e Seius Fuscianus, que poderiam fazer parte do

processo de conservação dos Solilóquios. Assim como de uma das filhas do

imperador, Cornificia, e até mesmo de um “homem-livre” de Marco Aurélio,

Chryseros que havia escrito algo sobre a fundação de Roma e, por ventura, poderia

ter conservado as memórias do imperador. (BIRLEY, 2001, p. 212)

164

en el segundo (dietário), importa lo intelectual, tiene carácter intemporal - se penetra en la intimidad del pensamiento del autor, pero no en las circunstancias de la vida que lo generan - y no es diario, ni íntimo (2008, p. 8).

Com esta afirmação conseguimos levantar dois pontos

centrais: 1ª) num diário íntimo há o predomínio do emotivo frente à

razão; 2ª) num dietário o autor utiliza-se do emotivo, mas o essencial é

a transmissão racional de determinado conteúdo. A partir destas

diferenças é possível aprofundar a noção amplamente difundida de

olhar para os Solilóquios como um diário do imperador. Parece-nos,

assim como para Zubiría, que os escritos de Marco Aurélio encontram-

se no exato limite entre o diário íntimo e o dietário. Ocupar esta

posição limítrofe gera uma mescla entre os dois pontos citados acima,

contudo o predomínio é de natureza intelectual. A obra possui caráter

e poder caracteristicamente literário-filosófico, visto que seus

comentários – sentenças – buscam a expressão de verdades profundas

– mesmo que para isso fosse usado o emotivo, o imaginativo.

Todas as suas verdades foram escritas entre 172 – 180 d.C

em campanha militar contra os Quados. Daí a automática referência ao

diário, visto que a maneira como foi escrito remete à dedicação em

escrever nos tempos livres e sozinho9. Contudo, ao analisarmos o

conteúdo dos Solilóquios encontramos o domínio do intelectual em

suas considerações – aproximando-o ao dietário. Para o historiador

Anthony Birley, Marco Aurélio buscou com isso treinar seu

pensamento em questões que antes nunca havia pensado:

Nor is it surprising that some of what he wrote could have been spoken as philosophical precepts’ to others. This may be because it represents his distilled recollections of the teaching of Apollonius or Rusticus or his other tutors. In any case, as he reveals, he tried to train himself to think thoughts that he would never be ashamed to express to anyone who suddenly asked him: ‘What are you thinking now?’ In the form in which it is transmitted the work is inevitably scrappy, repetitive, often concise to the point of obscurity, with frequent changes of

9 “There can be no doubt that Marcus wrote for himself alone, in his tent „among

the Quadi‟ as in Book 2, or „at Carnuntum‟, as Book 3 is headed, in the camp of

the legion XIV Gemina, and wherever else he found himself in the years from

172–180”. (BIRLEY, 2001, p.213)

165

subject. Sometimes, no doubt, he had time for only a few sentences, and may have resumed writing after a gap of some days or weeks (BIRLEY, 2001, p. 213).

“O que estou pensando agora?”. Esta interrogaç~o recebe as

mais variadas respostas de Marco Aurélio. Levando em consideração o

momento vivido pelo imperador o que ressalta em suas “respostas” é a

consciência da precariedade das coisas, da fragilidade do homem e de

suas obras, do caráter efêmero de todas as coisas materiais (DAZA

MARTÍNEZ, 1984, p. 279):

Mesmo que fosse para viver três mil anos e tantos outros anos vezes dez mil, lembre que ninguém perde outra vida que a própria que se vive, nem vive outra além da que se perde. Em conseqüência, o mais longevo e o mais precoce confluem em um mesmo ponto. O presente, em efeito, é igual para todos, o que se perde também é igual, e o que os separa é, evidentemente, um simples instante. Logo, nem o passado nem o futuro poder-se-ia perder, porque não os temos. Tenha sempre presente, portanto, essas duas coisas: uma, que tudo, desde sempre, apresenta-se de forma igual e descreve os mesmos círculos, e não importa se estes forem contemplados durante cem anos, duzentos ou um tempo indefinido; a outra, o que viveu mais tempo e o que morreu mais prematuramente, sofrem idêntica perda. Porque só nos é privado o presente, visto que é apenas ele que possuímos, e o que não se possui, não se pode perder (MARCO AURÉLIO, 1946, II, 14).

Tais preocupações são interessantes para confrontar com

uma idéia habitual – presente no cemitério de idéias – de “Idade de

Ouro” que se estenderia de Trajano até Marco Aurélio10. Este

10

Pouco a pouco percebemos que apesar da atmosfera de “idade de ouro” do

século II d.C, as dificuldades também estavam presentes. Alguns autores como W.

Görlitz e Jesus Daza Martinez constatam este tema como um “envelhecimento do

universo greco-romano” e a conseqüente confusão que este envelhecimento

apontava. Já no governo de Antonino Pio o sentimento de que o Império havia

chego a uma “idade senil” estava amplamente difundida, pois se constatava a

precariedade das estruturas externas romanas, a fragilidade do homem e suas obras,

etc. Este envelhecimento fica claro quando percebemos a mudança de foco da

política “agressiva” de Trajano para a desvalorização da política e a valorização de

discussões morais levantadas por Marco Aurélio (GARZÓN BLANCO, 1992-

1994, p. 110).

166

confronto pode ser melhor compreendido ao compararmos os

Solilóquios de Marco Aurélio com as afirmações feitas alguns anos

antes pelo apologista Élio Aristídes em seu Elogio de Roma, escrito no

período de Antonino Pio – pai adotivo de Marco Aurélio – as quais

buscavam transmitir noções de um período respeitoso com o passado

e glorioso no presente11: “[...], pois para estar seguro basta ser cidadão

romano, ou melhor dito, ser um dos que estão unidos a sua hegemonia

[...], acostumou a todas as regiões a levar uma vida organizada e

ordenada” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, Discursos XXVI). O que notamos é

que esta vida organizada e ordenada não se mostra fecunda nos

Solilóquios aurelianos, os quais pouco convergem para a idéia de

“período de ouro”, antes apontam para um momento controverso, de

envelhecimento das estruturas, problemas religiosos, etc. – não

necessariamente pontuados e explicitados, mas notados pelo teor da

sentença.

Explícito é o seu ideal pessoal (como homem12, como filósofo

estóico13 e como imperador14) encontrado numa série de exortações e

conselhos que ele dá a si mesmo em uma passagem do Livro VI que

inicia com uma chamada a vigilância para manter-se livre da tentação

11

Apesar das glórias relatadas no Elogio de Roma podemos notar algumas

passagens que também denotam alguma fragilidade do período: “[...] desta cidade,

grande em todos os seus aspetos, ninguém poderia afirmar que não foi dotada de

poder na mesma medida que seu tamanho territorial. Quando se dirige o olhar

desde a totalidade do Império, sente-se admiração pela cidade ao pensar que uma

pequena parte governa toda a terra; porém quando se olha para a própria cidade e

seus limites, já não cabe mais admiração de que toda a civilização seja mandada

por ela” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, XXVI, p. 9-10). 12

Na hora de fazer um balanço sobre a sua vida, Marco Aurélio fez-se reconhecer

mais como um filósofo e moralista do que como um homem de estado e

responsável pelo governo do Império. Contudo, isto não retirou todas as suas ações

diante das circunstancias governamentais do império: esteve presente nos lugares

mais conflituosos, agiu em rebeliões populares, tratou sobre o cristianismo, sobre a

tentativa de golpe do general Avidio Casio (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 280). 13

Durante a visita a Atenas em 176 que Marco Aurélio funda as quatro cátedras

públicas de filosofia: epicurismo, estoicismo, platonismo e aristotelismo (CORTÉS

COPETE, 1998, p. 258). 14

Como homem público Marco Aurélio apresentou inúmeras dificuldades. Fora os

problemas que de fato o afetaram (pressão dos bárbaros – partos, quados,

marcomanos – rebeliões militares, cataclismos naturais), ele possuía várias

limitações: idealização cega do passado; falta de uma visão dinâmica da História e,

por conseguinte, da vida política; sem noções para conciliar Oriente e Ocidente;

sem conhecimento das aspirações das províncias do Império.

167

de “cesarizar”, ou ambicionar demais o poder, continuando com uma

enumeração das qualidades e virtudes15 que gostaria de ver realizada

em sua vida: honradez, piedade, benevolência, amor pela justiça,

firmeza no cumprimento dos deveres

Cuidado! Não te converta em um César, nunca te esqueça disso, porque pode ocorrer. Mantenha-te, portanto, calmo, bom, puro, respeitável, sem arrogância, amigo do justo, piedoso, benévolo, afável, firme no cumprimento do dever. Lute por conservar-te tal como a filosofia o quer. Respeite os deuses, ajude a salvar os homens. Breve é a vida. O único fruto de uma vida terrena é uma piedosa disposição e atos úteis à comunidade (MARCO AURÉLIO, 1946, VI, p. 30).

Marco Aurélio manifesta, em suma, sua aspiração a

permanecer sempre como a filosofia o formou, reverenciando aos

deuses, servindo aos homens e buscando em tudo o bem da

comunidade política, em cuja frente se encontra (DAZA MARTÍNEZ,

1984, p. 282). Todavia, apesar de sua preocupação com a comunidade

política, Marco Aurélio não oferece em sua obra uma doutrina política

em sentido estrito. De acordo com Jesús Daza Martínez “o conteúdo

doutrinal de seus Solilóquios se esgota por inteiro na prática da justiça,

virtude geral, ou no dever de atividade social que para cada um é

predicado. A moralidade absorveu a reflex~o política” (1984, p. 293).

Esta moralidade não aparece sem sentido dentro do pensamento de

Marco Aurélio, já que sua formação estóica privilegiou tal ramo da

filosofia – ética – em detrimento das duas outras áreas – física e

lógica16 “[...] n~o ter caído, quando me atraí pela filosofia, em mãos de

um sofista nem ter-me entretido com a análise de autores ou de

15

Fundada na natureza e na razão, a justiça está na origem de todas as demais

virtudes. Ao enumerar os bens supremos da vida humana, situa em primeiro lugar a

justiça, seguida da verdade, da temperança e do valor. Viver segundo estes bens é

ser fiel às exigências da vida racional e à finalidade essencial da polis; devem ser

preferidos, em qualquer caso, às riquezas, ao poder, aos prazeres, à fama. Em outro

momento de suas reflexões, e desejando explicar os princípios que devem guiar as

ações humanas, aconselha, antes de tudo, trabalhar como faria a Justiça mesma –

deusa (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 289). 16

As doutrinas da tradição estóica constituem um ponto permanente de referência

para Marco Aurélio: a lógica (que incluía uma teoria do conhecimento, o estudo da

linguagem, a dialética e o silogismo), a física (que incluía a teologia, as ciências

naturais e a metafísica) e a ética (estudo da vida reta, da felicidade, do fim último).

168

silogismos nem ocupar-me a fundo com os fenômenos celestes”

(MARCO AURÉLIO, 1946, I, 17). Ao fim, a filosofia em Marco Aurélio

cristalizou-se em ética17 como afirma María Salatino de Zubiría:

Muy romano, este emperador que vive y se ve vivir, juzgándose desde la mirada de su ‘genio’, advierte qué tiene la filosofía de indispensable para un hombre de acción como él, en qué medida cada máxima estoica lo ayuda directamente en el oficio de cada dia (2008, p. 21).

Homem de ação, Marco Aurélio buscou responder ao

chamado da tarefa pública e militar, mas seu interior lhe direcionou ao

mundo silencioso das palavras e de sua entrelaçada malha de idéias.

Levou vida de imperador e foi, na intimidade de si mesmo, um

estudioso.

Escalando os muros do cemitério de ideias

A partir de agora, em consonância com a proposta inicial

deste trabalho, apresentamos algumas considerações sobre o Livro I

dos Solilóquios de Marco Aurélio. O Livro I provavelmente foi o último

escrito por Marco Aurélio e constitui um instrumento valioso para

conhecer as fontes que inspiraram o feitio de sua obra. Ao analisarmos

seu conteúdo e sua forma percebemos algumas características que

devem ser pontuadas:

1ª) quanto a forma do Livro I: O Livro I dos Solilóquios

apresenta em dezessete sentenças todas as influências que marcaram

a vida de Marco Aurélio. O interessante deste recurso é a ação de

apresentação dupla: ao mesmo tempo em que conhecemos um pouco

sobre cada um de seus mestres, conhecemos a “totalidade” de Marco

Aurélio. Ou seja, ao exaltar as características dos outros que foram

seus tutores temos a clara percepção de que estas marcas também

estão presentes no próprio imperador. Dessa maneira, o Livro I pode

ser entendido como uma “expressão do sujeito”, visto o acúmulo em um

só indivíduo das características distintas de todos os seus amigos,

mestres, familiares, deuses.

17

“Não siga discutindo sobre que tipo de qualidades deve reunir um homem bom,

mas sim, trate de ser-lo” (MARCO AURÉLIO, 1946, X, p. 16).

169

2ª) quanto ao teor do Livro I: primeiro, gratidão à sua

linhagem (avós, pai, mãe, bisavós); logo, aos seus mestres (Diognetes,

Rústico, Apolônio, Sexto, Alexandre, Frontão); depois seus amigos

(Catulo Cinna, seu irmão Severo, Máximo); depois ao seu pai adotivo, o

imperador Antonino Pio. Os dezesseis agradecimentos acabam em um

círculo maior, o de maior extensão, que engloba a tudo: a gratidão aos

deuses, porque deles procederam todos os bens anteriores (SALATINO

DE ZUBIRÍA, 2008, p. 23). Toda esta gratidão torna-se um código de

conduta moral a ser seguido. Os agradecimentos são feitos como forma

de honrar os seus próximos, mas o mais importante – notado em todos

os outros livros – é colocar em prática tais ensinamentos. Ou seja,

Marco Aurélio através da gratidão define as regras que deveriam reger

sua vida e, naturalmente, de todos aqueles que buscassem a vida reta.

Neste ponto nos damos a liberdade de ousar. Ao atentarmo-

nos para as duas condições do Livro I – “express~o do sujeito” e

“definiç~o de regras” – e da posterior repetição de grandes temas

filosófico-estóicos18 nos outros onze livros, percebemos uma singela

aproximação com uma técnica musical – quanto à forma de

escrita/composição – desenvolvida no período medieval e aprimorada

no século XVI: a técnica fugal, ou simplesmente Fuga. Esta composição

musical é construída como se o compositor estivesse fugindo e

perseguindo o tema central utilizando-se de seu variado repertório

musical. O interessante ponto que nos saltou aos olhos é a exata idéia

de uma Fuga iniciar-se com a definição das regras e a expressão do

sujeito musical. Já o término pode ser feito através de uma

recapitulação de toda a composição, buscando uma unidade da obra.

Todas estas características da técnica fugal – “definir regras e

expressão do sujeito no primeiro momento”; “recapitulaç~o e

18

Dogmas fundamentalmente estóicos chegaram até Marco Aurélio, resumidos,

claros, contundentes, listas para ser aplicadas diretamente às condutas diárias: a

distinção entre as coisas que dependem de nós e as que não dependem; a certeza de

que somente no homem descansa o juízo sobre as coisas; de que pensamento e

vontade são os verdadeiros bens interiores; de que tudo mais é supérfluo e deve

nos deixar indiferente; de que o sábio preferir antes a resignação e a renúncia

(sustine et abstine) do que as coisas e o sucesso; deve conformar-se com a ordem

natural e necessária dos acontecimentos graças a um sentido claro da providência

universal imanente a tudo que existe (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p. 5).

170

unidade19” – nos influenciaram a propor uma definição para os

Solilóquios aurelianos: tal obra constitui um instrumento de fuga e

perseguição. No primeiro caso do momento vivido por Marco Aurélio

– seu exterior -, já no segundo, referente aos seus ideais, seu

pensamento – seu interior:

Muitos para seu descanso buscam as casas de campo, a beira-mar, os montes; coisas que você mesmo sonha com anseio; porém tudo isto é supérfluo [...] em nenhuma parte o homem tem um retiro mais quieto nem mais despreocupante que dentro de seu espírito; sobretudo aquele que possui em seu interior tais bens, que ao inclinar-se até eles, consegue de imediato a tranqüilidade total (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 3).

No tocante ao fim buscado pela técnica fugal – perseguição à

unidade do todo – traçamos um paralelo com a procura da unicidade

das coisas almejada por Marco Aurélio, fortemente influenciado por

Heráclito20:

Conceba sem cessar o mundo como um ser vivente único, que contém uma só substância e uma única alma, e como tudo se refere a uma só faculdade de sentir, e como tudo o faz com um só impulso, e como tudo é responsável solidariamente de tudo que acontece [...]. (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 40).

Depois de definir as regras gerais e a apresentação do sujeito

no Livro I, Marco Aurélio apresenta um plantel de temas nos outros

onze livros, mas ao final todos devem convergir em um único ponto:

uma vida baseada na filosofia. Diferente do compositor de uma Fuga

que utiliza o arranjo de suas notas preferidas para fugir/perseguir

diversos temas e, no fim, atingir a unidade musical, Marco Aurélio foge

19

Influenciado por Heráclito e inserido na tradição estóica e ciceroniana, Marco

Aurélio estabelece uma vinculação profunda entre os conceitos de natureza, razão,

lei e justiça. A idéia de unidade é a base última de sua metafísica, de sua doutrina

moral, de sua filosofia jurídica e de sua concepção de política. 20

A harmonia antagônica ou harmonia de tensões é a lei das coisas e unidade do

mundo, unidade não por cima ou por baixo dos contrários, mas nos contrários por

eles mesmos. Há a perpétua necessidade de tensão entre os contrários para que haja

o perpétuo devir do Uno criador. Nada se mantém o mesmo, tudo sempre está

diferente, justamente pelo conflito/tensão e posterior harmonia dos contrários

(DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 284).

171

e persegue seus assuntos guiado pelo silêncio de seu pensamento, mas

buscando uma igual unicidade

O tempo da vida humana, um ponto; sua substância, fluente; sua sensação, turva; a composição do corpo humano, facilmente corruptível; sua alma, um peão; sua fortuna, algo difícil de conjecturar; sua fama, indecifrável. Em poucas palavras: tudo que pertence ao corpo, um rio; sonhos e vapor, o que é próprio da alma; a vida, guerra e estância em terra estranha; a fama póstuma, esquecida. O que, então, pode nos dar companhia? Única e exclusivamente a filosofia (MARCO AURÉLIO, 1946, II, p. 17).

Referências

ARÓSTEGUI, Julio. Símbolo, palabra y algoritmo. Cultura e historia en tiempo de crisis, 1993. AURELL, Jaume. Los grandes relatos, el fin de la historia y la historiografia recente. In: El fin de la Historia. Universidad Adofo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. BIRLEY, Anthony. Marcus Aurelius: a biography. New York: Routledge, 2001. DAZA MARTÍNEZ, Jesús. Ideología Politica en el Emperador Marco Aurelio. Universidad de Alicante: Lucentum, n.3, 1984. ELDERS, Leo J. La Historia, su sentido y su fin. In: El fin de la Historia. Universidad Adolfo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. ÉLIO ARISTÍDES. Discursos. Introd., Tradução de Fernando Gascó e Antonio Ramírez de Verger. Madrid: Editorial Gredos, 1987. FRIGHETTO, Renan. Transformação e Tradição: a influência do pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na Antiguidade Tardia. Maringá: Revista Diálogos, v.12, 2008. GARZÓN BLANCO, José Antonio. Antonino Pio: estúdio biográfico y bibliográfico de uma época. Lucentum: Anales de la Universidad de Alicante. Prehistoria, Arqueologia e Historia Antigua, n. 11-13, 1992-1994.

172

MARCO AURELIO. Soliloquios. Tradução de Don Jacinto Díaz de Miranda. Revisada por J. M. de Estrada. Buenos Aires: Angel Estrada Editores, 1946. VOLPI, Franco. “No habr| m|s nada nuevo sobre la tierra”. Fin de la historia, posthistoire, nihilismo: retos para la filosofía práctica. In: Historia: Entre el Pesimismo y la Esperanza. Universidad Adolfo Ibañez: Ediciones Altazor, 2008. SALATINO DE ZUBIRÍA, M.C. Marco Aurelio: Filosofía y Discurso Íntimo. Universidad Nacional de Cuyo: Revista de Estudios Clásicos, n. 35, 2008. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia e Circunstâncias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

ARRAZOADO ORTEGUIANO X TEORIA DAS ELITES

Antonio Charles Santiago Almeida

Universidade Estadual do Paraná

Considerações Iniciais

A discussão ora proposta dedica-se a compreender a

dimensão política e filosófica dos conceitos cardeais que articulam o

pensamento do filósofo e político espanhol Ortega y Gasset (1883-

1955). Ademais, pretende-se diferenciar o pensamento orteguiano da

discussão de a Teoria das elites, elaborada pelos teóricos Gaetano

Mosca (1858 -1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels

(1876-1936). O debate permite compreender o que Ortega chama de

império brutal das massas. Este império é resultado de uma sociedade

que estimulou, a partir do século XIX, a participação em demasia das

massas no cenário político e social.

Decerto que os dois últimos séculos foram marcados por

inúmeros movimentos de massa, por isso uma parcela significativa de

pensadores debruçou-se na tentativa de compreender o fenômeno

social e político denominado de sociedade de massa, oriundo, ora dos

movimentos sociais, ora da participação popular. Mas os teóricos de a

sociedade de massa não esgotaram a reflexão e deixaram lacunas no

que diz respeito ao surgimento e à participação popular das massas,

isso porque, segundo Ortega, o século XIX principia o advento das

massas em todos os lugares da sociedade.

É evidente que a discussão da teoria da sociedade de massa

é fruto de uma análise histórica, sobretudo depois da revolução

burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVIII, da Revolução

Francesa e tantas revoltas populares em que eram visíveis as massas

no seio do movimento. Pensadores se dedicaram a compreender o

avanço das massas e sua ação na sociedade moderna, uma vez que a

história apresentava o surgimento de um grupo social: a massa, que

determinava as condições de mudanças em quase toda a Europa. Dessa

forma, fazia-se necessário empreender um estudo sistemático em

torno desse novo fenômeno para compreender a dinâmica que se fazia

presente na sociedade vigente.

174

Ortega percebe a importância da discussão sobre a sociedade

de massa e retoma os conceitos, que, segundo ele, são capitais para

entendimento dos problemas sociais e políticos da Espanha e,

consequentemente, da Europa, a saber, minorias e massas. Contudo,

ele não tipifica a divisão entre minorias e massas pelas classes sociais;

sua reflexão perpassa a idéia de uma sociedade que se desvela não

apenas pela questão econômica, mas se estende às questões religiosa,

moral, política e cultural, pois a vida não é só economia – assevera

Ortega.

Como já fora dito, havia uma presença demasiada das massas

no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o

descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de

protagonista da vida política. É nesse contexto que Ortega divide a

sociedade em duas categorias, minorias e massas, e, para isso, é

necessário considerar o momento histórico em que se encontrava o

autor e sua reflexão em torno do homem à luz da perspectiva histórica.

Quando a discussão gira em torno dos conceitos de minorias

e massas, o rechaço à filosofia política de Ortega se agrava, pois quase

sempre o leitor, de forma arbitrária, toma de empréstimo os conceitos

marxistas de sociedade para tentar compreender o arcabouço teórico

orteguiano. Entretanto, o próprio Ortega já havia assinalado que a sua

filosofia difere e muito da compreensão marxista no que tange a

discussão conceitual de minorias e massas, pois minoria não é a

burguesia, como também, massa não é o proletariado.

Faz-se premente esclarecer que Ortega não é um pensador

elitista semelhante aos teóricos da sociedade de massa, ainda que haja

certa ambigüidade no seu posicionamento, pois ora ele se define como

liberal, ora esboça reações conservadoras em seus textos, é impreciso

denominá-lo de teórico elitista ou marxista. Todavia, seu liberalismo

perpassa a transitoriedade conceitual e se expressa no que vem a

denominar de raciovitalismo, ou seja, a vida compreendida como razão

última ou, ainda, a vida como razão histórica circunstancial. Nesse

sentido, toda relação, do ponto de vista da equivalência, com teóricos

elitistas ou marxistas será equivocada e improfícua. Intenta-se, de

forma parcial, fazer incursões no pensamento elitista e promover uma

diferenciação teórica da epistemologia de Ortega com relação aos

pensadores Mosca, Pareto e Michels.

175

Teoria das elites: sociedade de massa x pensamento orteguiano

I

Mosca, pensador italiano, autor de várias obras, dentre as

quais se destaca A Classe Dirigente, publicada em 1896, foi um teórico

elitista, que compreendeu a sociedade por meio de duas classes, a

saber: classe dirigente e classe dirigida. Uma espécie de lei natural, isto

é, uma observação histórica em que se evidenciam, desde os

primórdios, uma minoria que governa e a maioria que é governada. Na

perspectiva do autor, a divisão é natural e se faz sentir ao longo da

história, pois sempre existiu uma classe para dirigir e outra para ser

dirigida na sociedade. A tal respeito, Mosca escreve “em todas as

sociedades – desde as parcamente desenvolvidas, que mal atingiram

os primórdios da civilização, até as mais avançadas e poderosas –

aparecem duas classes de pessoas: uma classe que dirige e outra que é

dirigida” (1999, p. 51).

A discussão basilar é a permanência dessa configuração

entre governantes e governados, em que os governantes serão sempre

a minoria – conjunto de indivíduo de capacidade intelectual, moral ou

mesmo hereditária das aristocracias. Sobre isso, Mosca afirma:

“Sabemos que em nosso país, qualquer que seja ele, a direção dos

interesses públicos está em mãos de uma minoria de pessoas

influentes, direção essa à qual, voluntária ou involuntariamente, a

maioria se submete” (1999, p. 51). Porém, n~o é verdade que, para

Mosca, a minoria é sempre herdeira da aristocracia, pois existem

outros elementos que compõem a classe dirigente. Segundo o autor,

ainda que a própria história tenha demonstrado que as minorias

advêm da hereditariedade, não é correto sustentar que se trata de uma

realidade imutável. Isso porque é comum em qualquer movimento a

organização de uma classe dirigente que não necessariamente tenha

um vínculo com a aristocracia hereditária, pelo contrário, a classe

dirigente se constitui com a organização. Nessa perspectiva Mosca

afirma:

Finalmente, se tivéssemos de sustentar a idéia dos que afirmam que a influência do princípio de hereditariedade na formação das classes dirigentes é única e exclusiva, seriamos levados a uma conclusão parecida com a que fomos levados pelo princípio

176

evolucionário: a história política da humanidade deveria ser bem mais simples do que é. Se a classe dirigente realmente pertencesse a uma raça diferente, ou se as qualidades que a habilitam ao domínio fossem transmitidas primordialmente por hereditariedade orgânica, é difícil ver como, uma vez formada, a classe poderia declinar ou perder o poder (1966, p. 67).

Portanto, a ideia de uma classe dirigente é tão presente para

Mosca que, de acordo com ele, mesmo que a massa resolva, por meio

de uma rebelião ou revolução, tomar o poder, haverá, dentro da massa,

a formação de uma minoria para dirigir a sociedade, pois é impossível

que não exista uma minoria na condução de qualquer organização

humana. A esse respeito afirma:

[...], supondo que o descontentamento das massas conseguisse depor uma classe dirigente, inevitavelmente, como mostraremos mais adiante, seria necessária outra minoria organizada no seio das massas para executar as funções de uma classe dirigente (MOSCA, 1966, p. 53).

A discussão ora apresentada possibilita a divisão da

sociedade, bem como a necessidade de uma minoria, para assegurar os

destinos da sociedade, e esta, independente da hereditariedade,

configura-se por meio da organização de indivíduos que precisam

comandar a sociedade.

A tese da classe dirigente sustentada pelo autor corrobora

com uma divisão entre os que governam, a minoria, e os governados,

as massas, para o bom funcionamento da sociedade. Para Mosca,

nunca, na história da humanidade, houve uma sociedade que não

estivesse dividida entre a minoria que dirige e a massa que obedece.

Esta é a lei que rege a humanidade. Porém, ainda que tenha sido a

teoria em discussão no momento de formação intelectual de Ortega,

este, no que diz respeito à configuração da minoria como classe

dirigente, não corresponde à leitura de Mosca, pois a sociedade,

segundo o autor espanhol, não é governada pelas minorias, pelo

contrário, a massa na contemporaneidade é que conduz e determina

os destinos da sociedade.

A influência do pensador italiano se evidencia no

pensamento de Ortega quando se trata de compreender o fenômeno

visual que se fazia presente na sociedade contemporânea – as massas.

177

As observações que fazem os teóricos mencionados partem da

realidade histórica do momento, mas ambos buscaram a

fundamentação de suas teorias na própria história, quer dizer,

observaram o passado e buscaram identificar a participação das

massas no processo político ao longo dos tempos.

Para Mosca, a massa tem um papel bem definido – obedecer

e legitimar uma minoria que nascera para o mando – mesmo havendo

mudança conceitual do que se entende por minoria ou elite no

processo de direção da sociedade. Para esse pensador italiano, é

notória a obediência das massas desde as primeiras civilizações. Já

para Ortega, as massas, no passado, obedeciam e sabiam de seu lugar

na sociedade, a saber, não participar de nada que era importante e

seleto às minorias. Mas na contemporaneidade, houve uma variação

histórica e o que se percebe é precisamente uma rebelião das massas,

uma espécie de homem gregário que resolveu aparecer e comandar a

sociedade. A alusão ao fenômeno que o pensador espanhol chama de

cheio ou aglomerado é a demasia da multidão despossuída de

singularidade. Nesse entendimento afirma:

[...] de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonista: só há coro (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 43).

Contudo, faz-se necessário observar o dissenso entre os

teóricos, no que diz respeito aos conceitos que cercam as suas teorias,

uma vez que eles se diferem à medida que vão discorrendo e

esboçando seu pensamento. Em relação à questão das massas, mesmo

que os argumentos de Mosca tenham influenciado a formação

intelectual de Ortega, o filósofo espanhol retoma o conceito com base

no que ele chama de qualitativo e não mais quantitativo, isto é, a massa

é o conjunto de indivíduos que se encontra no mundo sem condição de

pensar a sua realidade circunstancial por meio de sua própria

singularidade. De acordo com o autor de A Classe Dirigente, a massa é o

conjunto de indivíduos desqualificados intelectualmente e

desprovidos de poder na sociedade e que, por isso, servem apenas

178

para legitimar o exercício da classe dirigente de forma pacífica e

harmônica – pois esta é a sua natureza.

Outro ponto de dissenso entre esses teóricos se apresenta na

medida em que compreendem o surgimento e a formação das

minorias: em Mosca, a minoria está diretamente associada à riqueza,

pois riqueza produz poder. Assim, ele compreende a minoria como a

classe abastada da sociedade que detém o monopólio da produção

econômica, cultural e política. Mesmo que, no passado, o domínio e a

predominância de uma classe sobre outra tenham ocorrido pelo uso da

violência ou coisa do gênero, hoje, o domínio que uma minoria exerce

e dirige a sociedade se faz por meio da riqueza. Nessa perspectiva,

assegura Mosca: “A riqueza, e n~o o valor militar vem a ser a função

característica da classe dominante: as pessoas que dirigem são os ricos

e n~o mais os bravos” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 59). A minoria1 é

definida pelo autor como a classe que dirige a sociedade.

Além disso, nunca houve ou mesmo haverá um governo de

massa, pois sempre existirá a constituição de uma minoria preparada

para exercer a direção da sociedade – pensa Mosca. Cabe notar,

todavia, que mesmo havendo a influência do debate em torno da

história das idéias deste autor na elaboração teórica de Ortega, é

possível perceber o seu distanciamento para com a teoria elitista

esboçada por Mosca, quando o filósofo espanhol não pensa a condição

de massa associada diretamente a uma questão de natureza.

A discussão se orienta pelo aparecimento desordenado das

massas no cenário político e social, isto é, o que se observa na

contemporaneidade é “[...] o advento das massas ao pleno poderio

social” (ORTEGA, 11987, p, 41). Para Ortega, as massas se constituem

num fenômeno contemporâneo, ou mesmo moderno, e não algo trans-

1 A idéia de minoria é associada à direção da sociedade, ou seja, só é possível o

desenvolvimento de uma sociedade por meio de uma minoria que se configura

segundo o autor: “No entanto, além da grande vantagem decorrente do fato de

serem organizadas, as minorias dirigentes são usualmente constituídas de tal

maneira que os indivíduos que a constituem conferem certa superioridade material,

intelectual e mesmo moral; ou então são herdeiros de indivíduos que possuíram

tais qualidades. Em outras palavras, os membros de uma minoria sempre possuem

um atributo, real ou aparente, que é altamente valorizado e de muita influência na

sociedade em que vivem” (MOSCA, 1966, p. 55). Aqui é visível uma diferença

capital entre Mosca e Ortega: para aquele, a minoria é quem dirige a sociedade, já

para este, a minoria deveria dirigir a sociedade, mas quem assume a direção da

sociedade é justamente a massa que se rebelara contra a minoria.

179

histórico. Esse conceito orteguiano distancia-se da concepção de

Mosca e permite pensar a compreensão política do século XX e,

também, perceber que o “elitismo” do pensador espanhol é mediado

por uma crítica ao desordenamento que a vida moderna cria em

termos políticos, levando, por exemplo, ao fenômeno da massa tanto

da direita fascista, quanto da esquerda leninista com a noção de

ditadura do proletariado.

Vê-se que a discussão apresentada anteriormente origina-se

de uma observação, também, histórica e visual. Ortega difere de Mosca,

no que diz respeito às classes dirigentes ou minorias, quanto a sua

formação que, segundo o espanhol, não se configura pela riqueza, quer

dizer, ainda que os ricos estejam no seio da minoria, não significa que

eles sejam a representação ideal desta categoria, uma vez que riqueza

também é condição de massa, na medida em que esta não produz

vitalidade nos indivíduos a ponto de transvalorar2 as condições

materiais em perspectivas de vida finita e histórica. O expediente que

Ortega percorre é conceitual, político e sociológico, já apresentado

anteriormente, e, por isso, sua contribuição e inovação fazem-se

justamente pelo caráter de singularidade e vitalidade que deve

assumir cada indivíduo na passagem da massa à minoria, pois a noção

de massa e minoria é cultural e não de natureza.

A discussão, ora ensejada, não é solipsista, pois Mosca

elaborou análise histórica para discorrer, ao longo dos tempos, sobre a

divisão da sociedade em duas classes já mencionadas. Ademais, o

autor estuda como se constroem as minorias e, para isso, faz um

passeio entre as questões da religião, da hereditariedade e até das

lutas militares para apontar como a riqueza, na sociedade moderna,

configura-se como fonte de poder e dominação das massas, a

verdadeira constituição das minorias.

A inclusão desse pensador, expoente do pensamento político

do século XIX, neste debate é para que se perceba sua influência e

motivação na elaboração intelectual de Ortega, ainda que este efetue

uma leitura diferenciada do que Mosca denomina de classe dirigente.

2Esse conceito é utilizado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)

para demonstrar como é possível a destruição, a inversão e a criação de novos

valores. Ortega segue o mesmo expediente na medida em que discute a mudança

de perspectiva de sociedade por meio do homem especial.

180

Todavia, mesmo com o deslocamento conceitual que faz Ortega, é

necessário que se considere que ele partiu, a priori, da reflexão que

faziam os teóricos da sociedade de massa.

II

Vilfredo Pareto (1848-1923) é classificado como teórico

elitista e expoente da teoria da sociedade de massa. A sociedade é,

segundo Pareto, dividida em duas classes sociais: de um lado, a elite e,

do outro, a massa. Nesse sentido afirma o pensador: “Quer certos

teóricos gostem ou não, o fato é que a sociedade humana não é

homogênea, que os indivíduos são física, moral e intelectualmente

diferentes” (1966, p. 71).

De acordo com essa reflexão, os homens não são iguais e, por

isso, precisam e devem se organizar de forma diferente. Para este

teórico é de fundamental importância que se tome a sociedade como

um complexo sociológico de diversas faces e que, portanto, para

compreensão da questão social e política é necessário pensar a

categoria dos que mandam e a dos que obedecem na sociedade

moderna. Esta relação, segundo o autor, é natural. E por isso não se

pode postular a sociedade como deveria ser, mas, antes de tudo, como

de fato é a própria sociedade e sua divisão social. Nesse sentido,

adverte Pareto:

O mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois extratos – um estrato superior, que usualmente contém os dirigentes, e um estrato inferior, que usualmente contém os dirigidos. Esse fato é tão óbvio que sempre se fez presente nas observações mais superficiais, acontecendo o mesmo com a circulação dos indivíduos entre os dois estratos (1960, p. 76).

Ortega persegue o mesmo caminho de Pareto e não aceita

que se tome como verdade absoluta a igualdade dos indivíduos,

mesmo porque eles são, pela sua própria formação humana,

diferentes. O problema é que, segundo o pensador espanhol, desde a

revolução francesa, os intelectuais liberais defendem o nivelamento

dos indivíduos de acordo com a noção de igualdade e liberdade. Com

isso, perdem-se a singularidade e a particularidade de cada indivíduo

181

na formação de sua história circunstancial, bem como a constituição de

uma sociedade nobre por meio do esforço contínuo de cada sujeito.

Com relação à divisão da sociedade, Ortega pensa segundo a

compreensão cultural e, assim, coloca de um lado as massas, e do

outro, as minorias. Já para Pareto, a elite se divide em duas categorias,

a saber: elite governante3 e elite não governante. E quando este autor

trata de elite, ele se refere a uma classe que manda e dirige a

sociedade. Esta é que determina as forças de produção e dominação da

própria sociedade. E o que resta desta divisão é justamente, segundo

Pareto, um extrato inferior de sociedade, o que hoje se pode chamar,

baseado na divisão proposta pelo pensador, de massa social.

Pode-se afirmar, sem os contrastes teóricos, que há uma

mobilidade nas elites em Pareto, uma circulação de elites. Nesta

perspectiva, Pareto afirma: “As aristocracias n~o perduram por muito

tempo. Quaisquer que sejam as causas, é um fato incontestável que

depois de certo tempo elas morrem. A história é um cemitério de

aristocracias” (1996, p. 77). Mas a mobilidade não é social, pois o

extrato inferior da sociedade não pode formar uma elite. O que ocorre

segundo este pensador é justamente uma circulação de aristocracias.

Mas a sociedade sempre viveu e viverá sob o comando de uma

aristocracia que se renovará e se substituirá.

As observações de Pareto partem de uma análise histórica,

para ele, só por meio de uma aristocracia autêntica é possível o bom

desenvolvimento de uma sociedade. Porém, o pormenor é que ocorre

uma circulação de classes, bem como o ajuntamento de pessoas em

torno do poder que n~o é mais possível falar de “puras aristocracias”.

Caso não ocorresse o ajuntamento, a história da humanidade seria

outra, poder-se-ia falar de perfeição de sociedade.

3 A discussão das elites é, basicamente, uma temática dentro da sociologia de

Pareto. Raymond Aron, na obra As Etapas do Pensamento Sociológico, faz uma

reflexão ampla em torno da sociologia de Pareto e acrescenta a questão dos

“resíduos” e “derivações” para, posteriormente, compreender a análise da

sociedade que faz Pareto. Ainda que a discussão que se pretende não é de

dessecamento dos conceitos paretianos, mas antes de tudo, estabelecer uma relação

possível de consenso e dissenso com o filósofo e político Ortega. Vale uma leitura

da conceituação das ações humanas lógicas e ações humanas não-lógicas que Aron

faz da sociologia de Pareto. Com relação a precisão de elite governante e não

governante é uma construção de hierarquia dentro dos possuidores do poder que se

denominam de elite.

182

Ortega parte da discussão do momento, que era

compreender a participação das massas no processo político para, a

partir daí, delinear uma nova proposta de política para sociedade

espanhola. Mesmo sabendo que o filósofo espanhol difere de Pareto,

em relação ao conceito de aristocracia, é importante considerar a

discussão apresentada por este, pois suas análises apontam para um

problema que era visível no século XIX – a ascensão das massas ao

poder social.

Esse caráter sociológico de Pareto permite compreender a

formação dicotômica da sociedade, pois, segundo ele, as aristocracias

não são eternas e, por isso, a humanidade é justamente, na perspectiva

de Pareto, um cemitério de aristocracias. A sociedade é semelhante a

um organismo vivo e, como há o fluxo sanguíneo para garantir a vida,

assim também há a circulação das elites, sem a qual é impossível que a

sociedade sobreviva. E quando isso não ocorre ou se dá de forma lenta,

a sociedade se desestrutura e sobrevêm a violência e o caos social.

É premente apontar a descrença com relação aos

movimentos socialistas, ou ainda, o governo de massas. Uma revolução

social, no entendimento de Pareto, nada mais seria do que a

substituição de uma elite por outra, de formação diferente, mas, no

fim, nunca haveria o governo de massa ou uma revolução socialista,

pois se forma no centro do poder uma minoria que assume o governo

e, conseqüentemente, o poder. E tudo não passa, segundo Pareto, de

discurso para insuflar o coração das massas no sentido de tomada de

poder e sua distribuição.

A discussão da teoria da sociedade de massa e o debate

político que os teóricos propõem permitem pensar, com base em um

momento histórico, a participação das massas. O século XIX vive a

euforia de uma política iluminista em que as massas são cada vez mais

motivadas a participar na sociedade e, por isso, crescem os partidos

políticos, os discursos em torno da democracia e agigantam os

movimentos sociais. É nesse contexto que teóricos disputam a

compreensão desta sociedade em movimento. A discussão que é

denominada de elitista propõe a restrição da democracia e nega a

noção de igualdade no processo político para todos os indivíduos.

Ortega é considerado muitas vezes como teórico elitista, mas

não se pode afirmar de forma categórica que o pensador espanhol

defenda a teoria elitista de sociedade. É preciso estabelecer uma

183

relação de diferenciação teórica entre Ortega e os pensadores da

sociedade de massa. Após a relação entre os pensadores, faz-se

necessário verificar o aporte teórico de cada pensador, para,

posteriormente, definir se, de fato, o pensador espanhol comunga das

idéias elitistas, ou se apenas usa parte do expediente para formular

sua discussão em torno das massas.

De acordo com a discussão apresentada, Ortega conceitua o

homem massa da seguinte maneira: “Portanto n~o se deve entender

por massa, nem apenas, nem principalmente, ‘massas oper|rias’.

Massa é o homem-médio” (1987, p. 44). Para o filósofo de Madrid é

preciso definir a tipologia de homem e em seguida o seu papel social,

pois, diferente de Pareto, as aristocracias são decadentes e estão

ligadas a uma noção de liberalismo equivocado, o que resulta em uma

sociedade deformada política e socialmente, isso porque não é visível

na esfera pública a presença das aristocracias autênticas.

É certo que tais pensadores compreendem a sociedade à luz

da heterogenia social e que, por isso, precisa de uma liderança para

comandar os destinos das massas e do espaço público. Mas esta

liderança é permeada por uma formação e pela origem aristocrática

dosada por um alto grau de superioridade. E esta é, segundo Pareto,

uma realidade que ninguém compreende – a sociedade não é

homogênea, ou seja, há uma relação de superioridade e inferioridade

na humanidade.

Ortega corrobora com esta idéia, mas não a postula como

Pareto, ou seja, para ele, há o caráter heterogêneo na sociedade, mas

não significa que se trate de uma posição natural. Esta heterogenia é

cultural e depende das vontades de cada sujeito envolvido no processo

circunstancial, o que não caracteriza uma relação de superioridade e

inferioridade entre os indivíduos. Entretanto, a questão corresponde a

tipologia de homem denominada homem-especial4 e homem-massa.

Quer dizer, a heterogenia é patente, porém não é natural, mas cultural,

pois depende das escolhas que cada indivíduo passa a executar em seu

meio social.

4 Não se pode tomar como homem-especial o burguês, ou ainda, o sujeito-elite que

preconiza a teoria da sociedade de massa. Este sujeito se percebe como finito e

histórico e, por isso, tem a responsabilidade de transformar a sua circunstância em

espaços melhorados para o bem comum.

184

III

Michels, sociólogo alemão era de família burguesa o que lhe

possibilitou viajar e conhecer outras culturas, mas foi na Itália, em

contato com os socialistas, que ele se tornou, em 1902, socialista. De

volta à Alemanha, aderiu à social- democracia e se tornou militante no

período de 1903 a 1907. Como teórico e militante, aproximou-se da ala

esquerdista do partido e, ainda, estabeleceu relações com o grupo

anarco-sindicalista. Mais tarde rompeu com a estrutura partidária da

social-democracia, denunciou a falta de democracia no interior do

partido e, também, apontou o uso em demasia do poder pela classe

dirigente.

É consenso entre os historiadores que Mosca, Pareto e

Michels são os fundadores da teoria da sociedade de massa ou, como é

também denominada, Teoria das Elites. Michels faz uma análise

sociológica dos partidos políticos e aponta a presença de elite no seio

de partidos políticos de esquerda. A obra capital deste pensador é

Sociologia dos Partidos Políticos, publicada em 1911, que provoca um

furor nos partidos políticos e de forma especial nos partidos

socialistas. Adverte-nos o autor na obra citada: “A organizaç~o tem o

efeito de dividir todo partido ou sindicato profissional em uma

minoria dirigente e uma maioria dirigida” (MICHELS, 1982, p, 21). H|

um detalhe importante em relação a Michels e os demais teóricos

elitistas: não se trata simplesmente de um teórico que faz uma análise

histográfica neutra, mas de um militante que se decepcionou com a

social-democracia, por isso sua observação é mais do que uma teoria

como fizeram Mosca e Pareto. Sua percepção parte da concretude de

um partido socialista. Não se pode, entretanto, tomar a leitura da obra

Sociologia dos Partidos Políticos como referência científica na questão

dos partidos políticos ou mesmo da democracia, pois seus escritos são

determinados por motivações particulares.

Contudo, mesmo sendo uma obra que nasce da decepção de

um militante esquerdista, é possível aproveitar suas observações no

que concerne à teoria da sociedade de massa, basta citar que ele

apresenta uma questão de bastante relevância: a manipulação política

de uma classe que controla e dirige. Segundo Michels: “(...) a massa se

deixa sugestionar facilmente pela eloqüência de poderosos oradores

populares” (1982, p. 17). Vê-se, segundo o autor, uma massa que se

185

deixa seduzir e que, por isso, legitima o discurso de democracia e que,

no fundo, não passa de manobra política de uma classe que dirige o

partido e, em proporções largas, dirige a sociedade. Cabe considerar

que Michels se decepciona com o modelo de democracia e assegura

que, no processo democrático, as massas são úteis apenas na escolha

de seus dirigentes e que não há outro papel para elas após o sufrágio, a

não ser o de serem dirigidas. Assegura também que, cada vez mais, é

necess|ria a presença de chefes no processo político: “A massa é

reduzida a contentar-se com prestações de contas sumaríssimas ou a

recorrer a comissões de controle” (MICHELS, 1982, p. 23). E o

pormenor desta teoria é justamente o desejo das massas de terem seus

chefes e aceitarem pacificamente seus destinos de serem dirigidas.

O debate que faz Michels encontra na obra Psicologia das

Multidões5 respaldo teórico para desenvolver suas teses sobre

democracia e participação popular. O autor de Sociologia dos Partidos

Políticos faz citações de fragmentos de Psicologia das Multidões para

elucidar o problema proposto em torno da democracia e da

impossibilidade das massas participarem da vida pública. Nesta

perspectiva é que Michels esclarece: “A multid~o anula o indivíduo, e,

desse modo, sua personalidade e seu sentimento de responsabilidade”

(1982, p. 17). A questão é que, segundo este autor, a sociedade,

semelhante ao partido, dispõe de multidão, e não de indivíduos, quer

5 Gustave Le Bon (1997), teórico da sociedade de massa, na sua obra Psicologia

das Multidões, faz um diagnóstico da sociedade e atribui às massas a

responsabilidade de todo sofrimento social e político do mundo moderno e

acrescenta o desvio de personalidade dessa multidão que resolveu se rebelar e

participar das questões sociais e políticas. Ou seja, o pensador descola o foco dos

reais problemas sociais e políticos e atribui às massas a culpa dos problemas da

sociedade moderna. Tal pensador não consegue estabelecer uma conexão entre a

complexidade do mundo moderno e o advento da técnica e da fábrica como

causadores da crise social e política. Octavio Ianni faz uma análise da questão

sociológica das multidões e apresenta uma reflexão histórica do mundo moderno e

suas complexidades. Segundo ele, não se trata de uma questão meramente social

ou política, pois vários são os fatores que vão contribuir para as manifestações no

campo ou na cidade e conseqüentemente as revoluções sociais e políticas. Em

outros termos, não basta a classificação das massas como responsáveis pela crise

social e política, é preciso que se observem fatores sociais, econômicos, culturais e

religiosos no processo de construção de sociedade (Cf. IANNI, Octavio. A

Sociologia no Mundo Moderno. In: Tempo social. São Paulo: Editora da USP,

1989, p. 7-27).

186

dizer, a multidão não pensa, não dispõe de reflexão singular, por isso

se deixa sugestionar por promessas e discursos.

Ortega perfaz outro caminho. Reconhece a presença da

massa no processo político e entende que ela é violenta e destrutiva,

enquanto os teóricos elitistas esboçam uma sociedade em que as

massas seguem um destino definido que é o de serem dirigidas. Para o

pensador espanhol, o que ocorre é uma rebelião desse fenômeno

contra uma classe que deve dirigir os destinos da sociedade. A análise

de Ortega é de ruptura; não se trata de perceber o papel das massas no

cenário social, mas de coibir seu avanço na sociedade moderna, pois,

de repente, ela apareceu e assumiu o comando da sociedade. O que se

testemunha é justamente uma sociedade de massas “comandando”

uma sociedade moderna. Contra todos os teóricos elitistas, propugna

não haver uma elite governando a sociedade, o que há é a massa em

todos os lugares da sociedade.

Seguindo esse raciocínio, adverte o pensador espanhol:

“Agora, os povos-massa resolveram que aquele sistema de normas que

é a civilização européia caducou, mas, como são incapazes de criar

outro, não sabem o que fazer, e para preencher o tempo ficam dando

cambalhotas” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 170). Esta é a configuração

política da Europa. O homem massa não aceita o mando de uma

minoria qualificada e, ainda, quer mandar na sociedade, mas não sabe

como fazer isso. Dessa forma, passa todo o seu tempo destruindo os

ideais e valores que os antepassados edificaram com tanto sacrifício.

Mas, retomando aos teóricos elitistas mencionados, é possível

perceber nos três pensadores aspectos distintos e fundamentais em

relação à concepção de democracia, socialismo e participação popular.

A discussão apresentada por eles nasce de um período de intenso

movimento sócio-político que abalava as estruturas circunstanciais de

um regime decadente, o Ancien Régime. Estas reflexões surgiram como

decorrência da presença das massas no processo político e social e,

por isso, de certa forma, acabaram fortalecendo o antigo regime e

endurecendo os aparelhos ideológicos do Estado contra os

movimentos sociais e de massa. E como se não bastasse, tudo isso era

justificável como proteção da própria democracia.

Para os pensadores da teoria da sociedade de massa, a

importância era estruturar o debate em torno de duas classes sociais e,

para isso, precisavam determinar a atuação de cada classe pelo que se

187

entende por elite e massa, ou ainda, a relação entre ambas na

estruturação da sociedade e no seu bom desenvolvimento. Decerto que

Mosca, Pareto e Michels efetuaram leituras semelhantes entre si, todos

irão identificar a presença da massa na sociedade moderna e sua

característica essencial – garantir o poder a uma minoria. Faz-se

necessário considerar que cada teórico mencionado discorre de

maneira particular em espaços circunstanciais diferenciados e com

singularidades específicas.

A menção a eles é para que se compreenda o debate político

em torno da temática apresentada, mas, também, o caminho que

Ortega perfaz na compreensão de uma nova concepção política. O

filósofo espanhol observa, à luz dos conceitos de minorias e massas, a

qualidade dos indivíduos envolvidos no processo político, por isso os

denomina de massa e minoria sem qualquer relação com a noção de

quantidade ou multidão. Nesta medida, a discussão modifica a análise

da percepção que deram os seus antecessores ao problema conceitual

de “massas”.

À guisa da conclusão

A discussão apresentada não fora de compreensão política

com base na história da filosofia, pelo contrário, intentou-se promover

um debate estrutural que circundasse as histórias das ideias políticas a

partir da filosofia de Ortega já presente em outros autores

denominados de teóricos elitistas. Mesmo porque o filósofo espanhol

persegue o mesmo expediente dos teóricos elitistas, a saber:

compreender a sociedade de sua época e articular diagnóstico

conforme a especificidade que a realidade circunstancial reclama.

Entretanto, a compreensão orteguiana difere da dos demais

pensadores pela capacidade de repensar os conceitos de minorias e

massas e restabelecer seus significados por meio de uma lógica

própria que se configura na relação com outros conceitos perspectiva

e circunstância.

Ortega y Gasset reconhece o debate que fizeram os teóricos

ao logo da história e acrescenta que ele pretende provocar uma

reflexão que imbrica da questão conceitual e começa diferenciando o

conceito de massa dos teóricos elitistas, com base no que ele chama de

“qualitativo”. A massa não é o conjunto de trabalhadores, tampouco o

188

coletivo de miseráveis que vivem à margem da sociedade capitalista.

Nessa perspectiva, afirma que:

[...] Desse modo converte-se o que era apenas quantidade – a multidão – em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 44).

Vê-se uma preocupação com este novo fenômeno – a massa –

, que pode se desde uma pessoa ao seu coletivo e, ainda, sujeito que se sente como todo mundo e não dispõe de singularidade específica, ou seja, não atribui a si mesmo valores e que, por isso, vive como todo mundo. E o grande problema é justamente o nivelamento do homem moderno, que é massa, que orquestra por meio da violência em defesa de suas paixões e seus desejos. Com a descrição deste fenômeno, o autor denuncia o que acontecerá mais adiante, a barbárie do nazismo e do fascismo.

A discussão em torno da massa se inicia com a obra Espanha Invertebrada, publicada em 1921, que se divide em duas partes: a primeira, Particularismo e Ação direta, e, a segunda, Ausência dos Melhores. Segundo o autor, faz-se necessário apresentar à Europa a enfermidade que sofre a Espanha e, por conseguinte, a desintegração dos seus espaços públicos, isto é, não há na Espanha uma vértebra política capaz de reunir os homens em torno de um projeto grandioso de nobreza para o povo espanhol. Nesse sentido, afirma Ortega y Gasset: “Assim, quando uma naç~o se recusa a ser massa – isto é, a seguir a minoria diretora – a nação se desintegra, a sociedade se desintegra, e ocorre o caos social, a invertebraç~o histórica” (1959, p. 97). Como já apresentado, havia uma presença demasiada das massas no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de protagonista da vida política.

Contudo, do ponto de vista metodológico, a discussão tomou por base uma análise interna da obra A Rebelião das Massas, buscando compreender alguns dos seus conceitos e a relação entre eles para obtenção do mote político-filosófico em seus escritos, já que a discussão conceitual começa na obra As Meditações de Quixote, perpassa pela obra Espanha Invertebrada e será sistematizada e concluída nos escritos A Rebelião das Massas. Dessa forma, pretendeu-

189

se por meio da articulação conceitual, compor uma rede explicativa da teoria político-filosófica deste autor e sua importância no debate em torno da política. Simultaneamente, ampliou-se uma relação de Ortega com outros teóricos para formalização de um diálogo possível respeitando o consenso e dissenso entre os mesmos no que confere a singularidade teórica de cada autor.

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LE BON, G., A Psychologia das multidões, Lisboa: Bibliotheca D'Educação

Nacional, 1980.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset e a aventura da razão.

São Paulo: Moderna, 1994.

MARIAS, Julían. História da filosofia. Tradução Alexandre Pinheiro

Tavares. 2. ed. Porto: Sousa e Almeida, 1959.

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MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: UnB, 1982.

MOSCA, Gaetano. A classe dirigente. In: SOUZA, Amaury de (org).

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do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das

Letras, 1992.

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Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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PARETO, Vilfredo. As elites e o uso da força na sociedade. In: SOUZA,

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191

SOBRE OS AUTORES

Antonio Charles Santiago é professor da Universidade Estadual do

Paraná (UNESPAR-FAFIUV). Graduado em Filosofia, Especialista em

Educação, Cultura e Memória, Mestre em Ciências Sociais. Aluno do

Doutorado em Educação pela UFPR e bolsista da Fundação Araucária.

(E-mail: [email protected])

Armindo José Longhi é professor da Universidade Estadual do Paraná

(UNESPAR) e da Universidade do Contestado (UnC). Graduado e

mestre em Filosofia pela UFSM. Doutor em Educação pela UNICAMP.

(E-mail: [email protected])

Claudio Cavalcante Junior, nascido em Niterói (RJ) no ano de 1981, é

professor de filosofia e antropologia da Universidade Estadual do

Paraná (UNESPAR). Graduado em Filosofia (2004) pela UFRJ e mestre

em Antropologia pela PPGA/UFF.

Giovane do Nascimento é professor da Universidade Estadual Norte

Fluminense.

José Maria Arruda é professor da Universidade Federal Fluminense.

Luiz Alberto de Boni é professor-pesquisador da Universidade do

Porto/Portugal. Foi professor do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas da UFRGS, onde foi Diretor da Unidade (1988-1992).

Presidiu a Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (1991-1998), da

qual foi um dos fundadores. Presidiu também a Associação Brasileira

de Estudos Medievais (2001-2005).

Samon Noyana é professor do Curso de Filosofia da Universidade

Estadual do Paraná (UNESPAR/FAFIUV). Graduado em Filosofia pela

UFRJ, mestre em Filosofia pela UFOP e doutorando em Filosofia pelo

PPFG/UFRJ.

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Sandro Luiz Bazzanella é doutor em Ciências Humanas pelo

Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da

Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH). Professor de

Filosofia da Universidade do Contestado.

Selvino José Assmann é doutor em Filosofia pela Pontificia Università

Lateranense – Roma. Professor do Programa de Pós-graduação

Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de

Santa Catarina (PPGICH).

Thiago David Stadler é doutorando do programa de Pós-Graduação

em História da Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de

Estudos Mediterrânicos – NEMED.

Walter Marcos Knaesel Birkner é graduado em Ciências Sociais pela

FURB, mestre em História Política pela UnC e doutor em Ciências

Sociais pela UNICAMP. Professor da Universidade do Contestado

atuando nos cursos de graduação e mestrado.

Esta obra foi composta com tipografias Cambria 11 e impresso nas oficinas gráficas da Editorial Rotermund,

com papel off-set 75g e capa em papel Cartão Supremo 250g, acabamento Prolan.

Os livros da Editora LiberArs são impressos com papel oriundo de áreas de reflorestamento

planejado e de empresas ambientalmente responsáveis.