Competências e valores na formação docente segundo um novo paradigma

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Competências e valores na formação docente segundo um novo paradigma Márcia Elisa Teté Ramos 1 Objetivo tratar da temática sobre as competências do professor, e para isso tomo como exemplo o professor de história, considerando dois aspectos interdependentes: uma competência que poderíamos denominar de “técnica”, mas com ressalvas, e outra competência ligada à reflexão crítica. Parto de referenciais que se contrapõe à dicotomia entre teoria e prática eou ensino e pesquisa e por isso entendo o profissional da história na relação orgânica professor- historiador, como entenderia o profissional da matemática na relação professor-matemático, e assim por diante. Embora meu ponto de partida seja o ensino e aprendizado histórico, todas as capacidades aqui colocadas podem ser tomadas para pensar a formação docente em geral. No Brasil, a palavra “competência” assumiu após as reestruturações curriculares que ocorreram em meados da década de 90, a conotação de “técnica”, ou seja, de aplicabilidade ou instrumentalização 2 . Em outras palavras, nos discursos e currículos gerados pelos órgãos públicos reguladores da educação, o ensino e aprendizado histórico 1 Professora da graduação em História e professora da pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. Editora da revista História & Ensino. Coordenadora do Laboratório de Ensino de História da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, brasil. 2 Sobre análise destes currículos, ver: RAMOS, Márcia Elisa Teté. (2003) A “alma do negócio”: o ensino de qualidade total nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Revista História Hoje. São Paulo, n. 2. Disponível em http://www.anpuh.org/revistahistoria/view? ID_REVISTA_HISTORIA=3&impressao 1

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Competências e valores na formação docente segundo um novoparadigma

Márcia Elisa Teté Ramos1

Objetivo tratar da temática sobre as competências do

professor, e para isso tomo como exemplo o professor de

história, considerando dois aspectos interdependentes: uma

competência que poderíamos denominar de “técnica”, mas com

ressalvas, e outra competência ligada à reflexão crítica.

Parto de referenciais que se contrapõe à dicotomia entre

teoria e prática eou ensino e pesquisa e por isso entendo

o profissional da história na relação orgânica professor-

historiador, como entenderia o profissional da matemática

na relação professor-matemático, e assim por diante. Embora

meu ponto de partida seja o ensino e aprendizado histórico,

todas as capacidades aqui colocadas podem ser tomadas para

pensar a formação docente em geral.

No Brasil, a palavra “competência” assumiu após as

reestruturações curriculares que ocorreram em meados da

década de 90, a conotação de “técnica”, ou seja, de

aplicabilidade ou instrumentalização2. Em outras palavras,

nos discursos e currículos gerados pelos órgãos públicos

reguladores da educação, o ensino e aprendizado histórico

1 Professora da graduação em História e professora da pós-graduação emHistória Social da Universidade Estadual de Londrina. Editora darevista História & Ensino. Coordenadora do Laboratório de Ensino deHistória da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, brasil.2 Sobre análise destes currículos, ver: RAMOS, Márcia Elisa Teté.(2003) A “alma do negócio”: o ensino de qualidade total nos ParâmetrosCurriculares Nacionais. Revista História Hoje. São Paulo, n. 2. Disponívelem http://www.anpuh.org/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=3&impressao

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de qualidade seria proveniente de uma metodologia adequada

e não da construção da reflexão crítica. No entanto, neste

texto, utilizo o vocábulo “competência” conforme o

significado construído em outros países, ou seja, como

habilidade profissional, como capacidade do professor em

mobilizar determinados saberes e ações, que reúnem

pressupostos teóricos e metodológicos.

Entendo o estágio ou a formação de professores como

processo que não se realiza apenas a “aplicação de saberes

produzidos por outros”, pois também é “um espaço de

produção, de transformação e de mobilização de saberes...”

(TARDIF, 2002: 121). Para Maurice Tardif, o saber docente,

ou o conjunto de competências docente, se estrutura de uma

forma plural e não pode ser enquadrado apenas nos conteúdos

específicos, ou nas técnicas separadas dos objetivos

político-pedagógicos, ou nos conhecimentos da prática, ou

ainda na crítica sociológica da escola. Existem os saberes

(ou competências) da formação profissional, transmitidos pelas

instituições formadoras, que compreendem as ciências da

educação e saberes pedagógicos; os saberes (ou competências)

curriculares que complementam os saberes da formação

profissional e apresenta conteúdos selecionados da cultura

geral; os saberes (ou competências) experienciais que o professor

adquire em seu trabalho cotidiano em seu meio de ação e,

finalmente, os saberes (ou competências) disciplinares, que

correspondem aos diversos campos do conhecimento como, no

nosso exemplo, da história (TARDIF, 2002).

2

Meu pressuposto é de que um ensino/aprendizagem de

história de qualidade implica necessariamente na construção

de uma literacia histórica, para que o sujeito obtenha a

capacidade de pensar o mundo historicamente e a partir

disto intervenha na realidade construindo-se como cidadão

de uma democracia. Portanto, os elementos que considero

imprescindíveis para a formação docente abarcam

competências capazes de construir esta literacia histórica

ou alfabetização histórica. Em outras matérias, posso

pensar da mesma forma: alfabetização matemática,

alfabetização filosófica, alfabetização da linguagem, etc.

O termo “alfabetização” remete à metodologia de Paulo

Freire.

Embora entenda que não podemos separar metodologia de

ensino de pressupostos teóricos, éticos e valorativos na

construção de uma alfabetização histórica, para facilitar

minha exposição, divido o texto em três partes: 1) falo da

emergência do sujeito nas pesquisas sobre a educação,

destacando a história, bem como do Novo Paradigma

Educativo; 2) possibilidades metodológicas e 3)

multiperspectividade e empatia como inerente à construção

do conhecimento.

1. Educação Histórica e o Novo Paradigma Educativo da

História

Trabalho com estes dois campos, a Educação Histórica

como campo de pesquisa fundamentada na empiria e o Novo

Paradigma Educativo da História voltado para proposições

3

políticas/éticas na atuação do profissional da história,

considerando que, apesar de serem campos distintos, com

autores diferentes, existe a possibilidade de convergi-los

na reflexão sobre a formação docente, pensando nas

competências e valores que demandam ser desenvolvidas para

que se empreenda um ensino e aprendizado histórico (ou

alfabetização histórica), capaz de construir o cidadão

crítico, com vistas a um futuro mais coerente com os

princípios da justiça, compreensão da diversidade sem

desmerecer a igualdade.

1.1. A Educação Histórica:

A Educação Histórica é um campo de investigação que

vem se configurando nos últimos 15 anos em nível

internacional3. Como expoentes, temos Peter Lee, Martin

Booth, Denis Shemilt, Peter Seixas, James Wertsch e Alaric

Dickison. Estes, segundo Isabel Barca (2008), rompem com a

ideia do ensino de história aos moldes psicopedagógicos que

pressupõem uma linha evolutiva e natural da cognição do

sujeito, e por isso mesmo, entendem a cognição histórica

pela epistemologia da história. A progressão do

entendimento/explicação de um sujeito sobre a história ou

de qualquer tipo de campo do saber, segundo esta

3 Atualmente, os construtos do campo da Educação Histórica têm sidorealizados e divulgados por Isabel Barca (Universidade do Minho -Portugal). No caso do Brasil, destaca-se Maria Auxiliadora Schmidt(Universidade Federal do Paraná). Pesquisadores de outros países, nãoserão mencionados neste texto, na medida em que a Educação Históricavem abarcando cada vez mais espaço em variados países e seriaimpossível arrolá-los. Podemos citar o nome de alguns: Júlia Castro;Graça Sanches; Paula Dias, Xavier Dias; Elvira Machado; OlgaMagalhães; Márcia Monsanto; Helena Pinto e Marlene Cainelli.

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perspectiva, depende de uma construção histórico-cultural,

e não biológica.

Maria Auxiliadora Schmidt e Tania Maria Braga Garcia

(2006) entendem que é na Sociologia Crítica Inglesa,

através de trabalhos de Raymond Williams, Basil Bernstein e

Stuart Hall relativos aos chamados Estudos Culturais que

podemos encontrar a temática das relações dos sujeitos com

o conhecimento escolar. Também é importante destacar os

novos enfoques para a compreensão das práticas e concepções

escolares através da categoria de “cultura escolar”.

Baseando-se especialmente em André Chervel (1990), defende-

se que os sujeitos escolares, professores e alunos, são

agentes, construtores de conhecimento, e não passivos

sujeitos que reproduzem os saberes construídos em outras

esferas (currículo, livro didático, universidade, mídias,

etc.).

Os pesquisadores deste campo, em especial os

portugueses, passaram a se utilizar dos estudos de

filosofia da história de Jörn Rüsen por este compreender

que historiadores que consideram o passado como um fim em

si mesmo, estão cativos no cientificismo próprio do século

XIX que descartou a articulação entre teoria da história e

didática da história (Rüsen, 2010: 25). O interesse em

adotar Jörn Rüsen advém desta discussão, pois, ao propor a

articulação teoria/didática da história, o autor defende

que a consciência histórica é o conjunto de “operações

mentais com as quais os homens interpretam sua experiência

da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma

5

tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática

no tempo” (Rüsen, 2001: 45).

Para Rüsen, os níveis ou tipos de consciência

histórica são relacionados à vida prática, e (re)significá-

los através do aprendizado histórico seria construir a

“competência prática de empregar o conhecimento histórico

na análise, no julgamento e no tratamento dos problemas do

presente” (Rüsen, 2010: 45). Se forem empreendidas

perguntas e respostas nesta direção, o passado pode ser

“apropriado produtivamente” e então, “se tornar um fator de

determinação cultural da vida prática” (Rüsen, 2010: 44). O

passado, embora seja o foco, não pode desprender-se do

presente e do futuro, já que se situar em uma temporalidade

implica em intencionalidades. Uma forma histórica de

interpretar a realidade pode “atualizar os potenciais

racionais” para o reconhecimento, adoção e defesa de

convicções e pretensões (Rüsen, 2010: 102) no sentido de

produzir ações que possibilitem a mudança de si e do mundo,

o que subentende uma perspectiva de futuro. A partir disto,

a Educação Histórica investiga a consciência histórica, o

conhecimento histórico, o pensamento histórico ou a cultura

histórica, mais especificamente no ambiente escolar. Os

resultados da investigação servem ao propósito de

“otimizar” o conhecimento histórico, seja do aluno, seja do

professor, e tem um fundo político, na medida em que a

intencionalidade direcionada à produção do futuro são

baseadas na consciência histórica (Rüsen, 2001: 32).

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Enquanto que a pergunta-base nas pesquisas mais

tradicionais sobre ensino de história centravam em como

motivar alunos para a aprendizagem de história, ou como

utilizar estratégias/recursos didáticos para atingir bons

resultados, ou ainda, quais as atividades didático-

pedagógicas de um ensino de história de sucesso, a

problemática posta pela vertente da Educação Histórica

corre no sentido de responder sobre como os alunos e

professores compreendem a história (Barca, 2009: 12), e

mais: sobre para que serve aprender história. Embutidas

nesta questão estão outras: para saber como os alunos

aprendem história ou sobre como os professores ensinam

história, preciso partir dos saberes que o aluno já tem

sobre história; preciso saber também dos saberes que os

professores de história apresentam (saberes históricos,

pedagógicos e experienciais) e é necessário saber qual o

significado que os alunos e professores de história dão

para o conhecimento histórico (O que é? Para que serve? É

importante ou não?).

Em outras áreas do conhecimento, o mesmo princípio é

fundamental, isto é, faz-se necessário indagar para que

serve determinado conhecimento para a vida do aluno, no que

ele pode ser utilizado no interesse de dar conta da

realidade.

Segundo Isabel Barca, esta linha de investigação busca

uma “observação sistemática do real”, não se centrando nos

“formalismos e recursos da aula”, embora estes sejam também

importantes, mas nas “ideias históricas de quem aprende e

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ensina”. Em última instância, o que se tem em meta é a

qualidade do ensino de história, ou seja, as práticas em

sala de aula (Barca, 2008: 24).

Em síntese, os pesquisadores deste campo, investigam

como alunos e/ou professores pensam, como agem, como

vivenciam seu cotidiano escolar, destacando o

ensino/aprendizagem de história. Também se considera que

“os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas

no ensino de História, mas nos mais diversos e complexos

contextos da vida concreta dos aprendizes...” (Rüsen, 2007:

91), e, desta forma se subentende que o aluno e o professor

dominam saberes históricos provindos de múltiplas esferas

sociais, não necessariamente circulantes apenas nas

instituições educacionais. Em suas vivências, os alunos tem

acesso, principalmente com a mídia, a vários tipos de

conhecimento. Por isso a pesquisa em Educação Histórica

procura levantar quais são estes saberes, na medida em que

um novo conhecimento se origina a partir de conhecimentos

anteriores e a meta é tornar mais elaborados os modelos de

interpretação da história. O levantamento noções,

representações, crenças, dos sujeitos escolares apenas é

importante se o objetivo último é prospectivo, ou seja, a

reflexão e a ação a partir dos dados investigados, − então

categorizados e analisados −, servirem ao propósito da

reflexão e da ação, para empreender mudanças significativas

no ensino/aprendizado.

1.2. O Novo Paradigma Educativo da História

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Tive contato com os escritos de Carlos Barros através

da tradução de um artigo intitulado O modelo da Educação

Histórica: experiência de inovação para a educação básica elaborado por

Gerardo Mora e Rosa Ortiz Paz para ser publicada na revista

História & Ensino4. Posteriormente, traduzi um texto de

Carlos Barros, publicado na mesma revista, intitulado

Memória, História e Franquismo5. A partir disto, tive acesso às

discussões realizadas no âmbito da Historia a Debate por meio

de textos, eventos e vídeos disponibilizados no site6. Em

especial o texto Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la

historia (2007), me ajudou na reflexão sobre qual é a função

do ensino e aprendizado histórico na contemporaneidade.

Discutir sobre esta temática está diretamente associado às

competências do professor de história.

Deparo-me no cotidiano do meu trabalho7 com alguns

estudantes universitários que realizam o estágio em

História apenas para cumprir um componente curricular.

Parece não haver um engajamento em relação ao ensino e

aprendizagem histórica, o que talvez aconteça pelo fato de4 Disponível emhttp://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/issue/view/820(Acesso em 10 de setembro de 2014)5 Disponível emhttp://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/issue/view/978(Acesso em 10 de setembro de 2014)6 Disponível em http://www.h-debate.com/ (Acesso em 10 de setembro de2014)7 Sou professora do curso de graduação em História da UniversidadeEstadual de Londrina, trabalhando com disciplinas ligadas ao ensino eaprendizagem histórica, Metodologia e Prática do Ensino de História eEstágio Supervisionado. Além disso, sou professora da pós-graduação,primeiro, durante um bom tempo da especialização em História e Ensino,e no momento do Mestrado em História Social, na linha de pesquisaHistória e Ensino. Portanto, meu trabalho está vinculado à preocupaçãocom a formação do profissional da história, ou seja, professor dehistória e historiador.

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que os cursos de graduação em História venham priorizando

uma abordagem historiográfica que podemos denominar de

relativista em que “o fato como categoria chegou a ser

definido como mera operação linguística, como se ele fosse

algo a que, por razões pragmáticas, o historiador estivesse

obrigado a outorgar credibilidade” (Bustamante, 2011:157).

Desta forma, toda construção do passado é considerada uma

questão de discurso, de retórica ou estética, ou ainda, uma

representação, e assim não haveria possibilidade de

“decidir, dentre as interpretações possíveis de um texto,

qual seria definitivamente a melhor” (Bustamante,

2011:157), na medida em que o sujeito que o produziu

empreende a operação historiográfica conforme seu contexto

histórico e códigos culturais baseados em classe social,

gênero, etnia, religião, etc. Enfim, nesta perspectiva,

“algo é verdadeiro para alguns, mas não para todos”

(Bustamante, 2011:158).

Este tipo de concepção traz problemas para o

historiador, e de certo, também para professor de história,

pois esta crítica à racionalidade do conhecimento histórico

termina por questionar não apenas a relevância da história,

mas de seu ensino. Se a história é uma questão de retórica,

se não há possibilidade de verdade histórica, porque

ensinar e aprender história? Isto nos reporta a pensar

qualquer área do conhecimento. O futuro professor, seja de

qual matéria for, precisa pensar sua prática, refletir

sobre sua função social, sobre a importância do que ensina.

Se o saber é simplesmente transmitido e o aluno torna-se

10

mero sujeito passivo do conhecimento, para que serve este

ensino?

Carlos Barros levanta outra questão: se de um lado

temos este relativismo, de outro temos alguns grupos

reivindicando a verdade histórica, mas estas correntes

parecem cumprir do mesmo modo a despolitização da história

e de seu ensino. Para Carlos Barros se apela ao “retorno ao

positivismo” quando se quer defender um ponto de vista, na

tentativa de impor sua “Verdade” e à ideia sobre a história

como versões diferentes e igualmente válidas quando se quer

amenizar ou relativizar alguns fatos passados como, por

exemplo, as Ditaduras8. A verdade que se quer, - diz Barros

-, no caso espanhol, é de que a violência, a ditadura e a

ideologia próprias do franquismo sejam “esquecidas” em prol

de uma abordagem higienizada de seus efeitos

antidemocráticos nefastos (BARROS, 2007)9.

8 No Brasil, ocorre algo parecido: alguns grupos, inclusive dehistoriadores, entendem que a Ditadura Militar brasileira (1964-1985)não foi algo tão dramático assim, e que os militares e os civis que osapoiavam tinham seus motivos para defendê-la, motivos estes tãoválidos como daqueles que resistiram a este sistema político. Nestalinha de pensamento, no Brasil, a exploração indígena da época dacolonização aos tempos atuais, a escravização de negros, a violênciacontra a mulher, a Ditadura, o nazismo, entre outras temáticas, sãovistas como passíveis de desmonte, no sentido de mostrar que “nãoforam ou não são tão ruins assim”. E também, nos últimos anos, se tementendido que a classe trabalhadora como um todo, ou seja, aquelesujeito da base da pirâmide social esteja enfatizando demais suasituação de miserabilidade ou de pobreza, para então angariar osbenefícios das políticas públicas.9 São estas questões postas que nos fazem novamente recorrer a JörnRüsen, que ao falar da história como relativismo e a história comoverdade, argumenta que a objetividade e a narratividade são partesdiferentes, porém inter-relacionadas e estruturantes do discursohistórico (Rüsen, 2010: 132). E ainda: Se a objetividade é extremada,pode-se “cientifizar” ou “racionalizar” a história de tal forma que opesquisador termina se distanciando da vida prática (Rüsen 2010: 25),tornando seu discurso autorreferente, como se esta disciplina se

11

Neste intricado procedimento que relativiza o

conhecimento histórico através da defesa de “outras

verdades”, diz-se que a história deve priorizar fatos,

datas, informações, de forma neutra. Se a história depende

de “ponto de vista”, seria melhor, segundo este

neopositivismo, destacar em sala de aula as informações,

supostamente destituídas de posicionamentos políticos ou de

julgamentos. Contudo, estas “outras verdades” subentendem

claras intenções políticas. Da mesma forma, podemos então

questionar: Se a história ou qualquer outra matéria é uma

questão de apenas informação, porque ensiná-la se o aluno

pode buscar tais informações em outros meios muito mais

atraentes, como a internet? Há como ser neutro na história

e em seu ensino?

Com este referencial, chego à conclusão de que não

existe a verdade na história, mas que podemos nos aproximar

desta, e que esta aproximação carrega sim, uma perspectiva

política, um projeto social, que pode ou não, ser pautado

nos princípios democráticos da justiça, igualdade e

compreensão da alteridade. Em consequência, o professor de

história não tem como ser neutro, e assim, deve ter uma

competência política, ou seja, de crítica histórica baseada

em tais princípios. Bons métodos, bons recursos didáticos,legitimasse “pela sua mera existência” (Rüsen, 2010: 27). Por outrolado, enfatizar a narratividade, implica em relativizar o discursohistórico (Rüsen, 2010: 131). Segundo este autor, há que encontrar umequilíbrio entre objetividade e narratividade, em que a racionalidademetódica na pretensão de verdade e as formas de apresentação dahistória envolvendo estética e retórica, são componentes intrínsecos àconstrução do discurso histórico, independente do tipo de destinatário(Rüsen, 2007: 28-31). O autor é categórico ao dizer que história não éficção, pois seu objetivo é tecer interpretações históricas que tenhamintenção de aproximação com a verdade.

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ou seja, competência técnica não garantem um ensino e

aprendizagem com a qualidade que defendo.

Como visto acima, tanto a Educação Histórica como o

Novo Paradigma Educativo da História podem ser campos

associados às preposições de Jörn Rüsen e Paulo Freire. A

relação entre a história como busca da verdade e a história

como busca de uma questão de ponto de vista, trato no item

três quando falo da empatia e da multiperspectividade. A

seguir, considero a metodologia histórica quando pensada

para a escola e consequentemente, como competências

imprescindíveis de os futuros professores de história

desenvolverem.

2. Construir o conhecimento a partir do princípio

investigativo

Como dito, literacia histórica é o termo referente à

construção de um modo específico de “ler” o mundo em acordo

com a ótica da história. Seria um letramento, uma

alfabetização própria da história, um raciocínio histórico,

e que, por isso mesmo, parte de procedimentos relativos à

história (Lee, 2006). Para construir este letramento

histórico, esta compreensão histórica do mundo e de si

mesmo – que Paulo Freire chama de conscientização10 – ,10 “Entende-se como conscientização como aquilo que traz adesmistificação de muitos problemas que acontecem pela falta de umasimples leitura. Tais descobertas provocam uma consciência reflexivaque tende ao comprometimento da transformação. Estas transformaçõessurgidas da conscientização dos homens e das mulheres se tornamalfabetizados e críticos mediante a sociedade em que vivem e não meros

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considero fundamental o levantamento do conhecimento prévio

do aluno; o trabalho com fontes documentais em sala de

aula; os conceitos substantivos e estruturais (ou de

segunda ordem); a capacidade de argumentação ou de

apresentar o conhecimento histórico; a empatia histórica e

o reconhecimento de que a natureza do conhecimento é

multiperspectivada. A seguir, consideraremos estes tópicos,

deixando os dois últimos para o item três.

2.1. Conhecimento prévio dos agentes escolares: de qual

problematização partir?

Não podemos restringir a necessidade de levantamento

sobre o conhecimento prévio do aluno somente à história.

Todo sujeito adquire conhecimentos extraescolares que podem

estar no campo da matemática, da linguagem, da sociologia,

da filosofia... Existe no chamado “senso-comum”, saberes

que podemos denominar de “populares” que não estão de todo

longe dos saberes científicos. Por sua vez, em alguns temas

temos certas “crenças” que vão contra o saber científico. É

a partir dos conhecimentos prévios dos alunos que se

realiza o planejamento didático-pedagógico, pois conheço o

sujeito com o qual estou lidando em sala de aula. Freire

busca transformar o que chama de consciência ingênua do

repetidores de palavras. Este é o fim do projeto que o métodofreiriano tem como proposta. Diferenciando-se do método tradicionalpor ser do tipo depósito onde o professor, somente ele, é dono de todoo saber e o aluno, ausente de luz, sendo, portanto, incapaz deconstruir saber”. SOUSA, Marcel Alcleante Alexandre de. (2011)Conscientização: A proposta de Paulo Freire para a educação. Partes.Disponível emhttp://www.partes.com.br/educacao/artigos/paulofreire.asp

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aluno em consciência crítica, para que o sujeito aja e

pense como instrumento social (FREIRE, 2003, 2007)

Como já mencionado, são importantes para o campo

investigativo da Educação Histórica, as protonarrativas ou

protoconhecimentos dos sujeitos escolares, isto é, os

conhecimentos ou saberes prévios, ou tácitos: “... do latim

Tacitus e quer dizer: sem ser expresso de um modo formal;

que se subentende”. Pensando tal palavra relacionada ao

domínio da Educação Histórica, seria “o conhecimento que os

alunos adquirem antes ou até mesmo depois do contacto com o

ensino formal. É deste modo um conhecimento muito pessoal

incorporado na experiência dos alunos, envolvendo factos,

crenças, emoções, perspectivas, intuições e até

habilidades” (Barbosa, 2006: 10).

Os conhecimentos anteriores (quer dizer, as teorias enoções já construídas) funcionam como marcoassimilador a partir do qual se outorgam significadosa novos objetos de conhecimento. Na medida em que seassimilam novos significados a este marco, este mesmovai de modificando e enriquecendo. (Aisenberg, 1994:138)

Se os conhecimentos prévios dos alunos são apreendidos

pela pesquisa, possibilita-se uma “potencialização” da

aprendizagem, pois estes conhecimentos prévios são marcos a

partir do qual os alunos darão significado aos conteúdos

oiu saberes escolares.

A vivência cotidiana do aluno, seus contatos pessoaiscom familiares, amigos, a interação com a mídialevam-no a formular conceitos espontâneos que carecemde forma de explicitação a ser construídas no

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processo de aprendizagem formal. Nesse processo, osmesmos instrumentos que levam à construção dosconceitos espontâneos podem ser retomados para acaminhada em direção à construção dos conceitoscientíficos (Abud, 2005: 312).

Uma abordagem mais “cognitivista”, como de Ausubel,

também considera que só se aprende, ou melhor, apenas se

produz uma “aprendizagem significativa”, se os saberes

trabalhados na escola forem relacionados (ancorados) aos

saberes que já se tem, então adquiridos no cotidiano do

aluno. Segundo Ausubel, os saberes prévios dos alunos são

informações e recursos introdutórios, uma vez que tem a

função de servir de ponte entre o que o aluno já sabe e o

que ele deve saber para que o conteúdo possa ser realmente

aprendido de forma significativa. O levantamento do saber

prévio do aluno também é um elemento atrativo, visando

provocar o interesse e desejo de aprende (AUSUBEL, 2003).

O ensino tradicional, pautado na memorização, na aula

expositiva que apresenta uma história-verdade, priorizando

fatos, nomes e datas, pressupõe que o aluno chegue “vazio”

de conhecimentos, e em razão disso, o conhecimento seja

exposto pelo professor para que ele assimile, o que Freire

chama de “educação bancária” – o professor depositaria o

conhecimento na cabeça de seu aluno –. Seria desprezar o

caráter social do conhecimento histórico a favor de uma

erudição (Barros, 2007: 4). Já a noção de que a

aprendizagem histórica deva partir do conhecimento prévio

do aluno, entende que este conhecimento não é certo e nem

errado, mas que são importantes para que o aluno faça esta

“ancoragem”, reelaborando, por vezes superando ou mesmo16

criando outros conhecimentos. Nesta perspectiva, a escola

não mais teria a função de ensinar, mas sim, como diz Maria

Auxiliadora Schmidt, seria um “espaço de experiência

(individual e social) dos sujeitos do conhecimento”

(Schmidt, 2009: 11). A escola não mais “depositaria” o

conhecimento no educando, mas colocaria o conhecimento em

construção conjunta entre professores e alunos.

Em sala de aula, evidentemente, antes de cada tema a

ser trabalhado, não há como o professor elaborar e aplicar

uma pesquisa fundamentada em instrumentos, metodologias e

recursos adequados para colher o conhecimento prévio do

aluno e assim, planejar suas aulas11. Porém, há como

iniciar a unidade temática com perguntas aos alunos em uma

situação de diálogo. Aplicar um questionário sobre o tema

ainda é uma sugestão, desde que se não imponha a ideia de

que o aluno deve responder o “correto”, mas sim o que sabe

sobre o assunto. Uma problematização, em forma de pergunta,

pode ser lançada para iniciar o trabalho didático-

pedagógico, por exemplo: A Ditadura Militar no Brasil ainda

tem desdobramentos em nossos dias? O brainstorming também

pode ser usado: pergunta-se uma palavra que defina ou que

11 O levantamento do conhecimento prévio do aluno quando pensado para apesquisa, em geral, também pode pode ser realizado por intermédio deum questionário ou de entrevista. Um instrumento de pesquisa pode seraplicado em sala de aula, mas também, o pesquisador pode recorrer àobservação. A realização da pesquisa pela observação ocorre em contatodireto dos pesquisadores com o objeto/sujeito de pesquisa e com autilização de técnicas que se aproximam da pesquisa etnográfica,documentando ações, interações e representações que permeiam ocotidiano da prática escolar (André, 1995: 41). O que significaarticular o empirismo da coleta de dados com a participação efetiva nocampo de investigação, bem como produzir documentos históricos atravésda História Oral (entrevistas) para produção da História do TempoPresente (Alberti, 2005: 158).

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vem à mente sobre determinado assunto. Se um aluno diz algo

incoerente, como por exemplo, “democracia” em relação à

Ditadura, isto não é destacado como erro, mas tratado como

noção que se deve superar na construção da literacia

histórica.

Esta competência refere-se ao conhecimento sobre quem

é o aluno, o que ele pensa, o que ele precisa saber. É o

ponto de partida para que o professor selecione uma

problematização. O método Paulo Freire12 vai nesta

orientação também com a chamada “etapa de investigação”,

quando se busca conjuntamente, o professor e o aluno, as

palavras e temas mais significativos, as “carências” ou

problemas da vida do aluno, de acordo com seu universo

vocabular e da comunidade onde ele vive. A temática da aula

decorre desta etapa, com as palavras ou temas, denominados

“geradores”. Nessa fase ocorrem as interações de

aproximação e conhecimento mútuo, bem como a anotação das

palavras da linguagem dos membros do grupo, respeitando seu

linguajar típico.

Desta forma, o currículo de história provém, não da

legislação curricular, mas do interesse dos alunos, sendo

que “Somente uma escola centrada democraticamente no

seu educando e na sua comunidade local, vivendo as

suas circunstâncias, integrada com seus problemas,

levará os seus estudantes a uma nova postura diante

dos problemas de contexto” (FREIRE, 2003: 85). O12 São várias as obras de Paulo Freire. Ver site com obras em portuguêse espanhol para download: http://acervo.paulofreire.org/xmlui/search?fq=location.coll%3A12 http://acervo.paulofreire.org/xmlui/search?fq=location.coll%3A12

18

caminho pode ser duplo: lançar uma palavra, por exemplo,

“Ditadura”, e a partir das respostas dos alunos,

desenvolver a unidade temática considerando o local em que

o aluno vive (Houve Ditadura na cidade? Como seus

habitantes a vivenciaram? Existe documentação sobre o fato

na cidade?) ou se o problema vivenciado pelo aluno em sua

cidade é, por exemplo, uma fábrica de papel que emprega a

maioria dos seus pais, o tema gerador pode ser “Trabalho”.

A partir das palavras geradoras, pode-se criar

situações existenciais, inseridas na realidade local,

que devem ser discutidas com o intuito de abrir

perspectivas para a análise crítica consciente de

problemas locais, regionais e nacionais: se existiu

Ditadura na cidade do aluno, ele conhece alguém que a

protagonizou e pode entrevista-lo? Existe acervo na

cidade sobre o tema que pode ser verificado? Ou ainda:

há a possibilidade de visita a uma fábrica para se ver

como trabalham seus funcionários? Há como saber o

montante de empregos gerados, assim como de riqueza

gerada ao dono?

Todas as matérias, referentes às ciências humanas

ou às ciências exatas, podem seguir este método de

problematização através de um tema gerador. No caso de

Paulo Freire, este foi pensado para a alfabetização,

do qual adaptamos aqui para história. Quando se diz

conhecimento prévio do aluno, não apenas as noções

sobre determinada matéria são interessantes de serem

19

averiguadas. No início do ano letivo, é recomendável o

professor saber qual o contexto em que a escola está

inserida, quais as condições socioeconômicas dos seus

alunos, em termos de renda familiar, estrutura

familiar, se já trabalham, se moram com os pais, se já

possuem sua própria família. Também o universo

cultural é importante: livros, filmes, música, lazer,

sites, programas de TV, etc. que sejam prediletos.

Algumas correntes pedagógicas dizem que este

procedimento é “partir da realidade do aluno”, mas

temos que ter em mente que devemos chegar em algum

lugar. Estas informações devem integrar o fazer

didático-pedagógico, no interesse de fazer com que o

aluno supere, sofistique ou reelabore de forma mais

satisfatória, suas noções e sua realidade.

2.2. Como se chega a determinado conhecimento?

Porque a equação para se calcular um triângulo é “A =

(h.b)/2”? Um ensino tradicional coloca como pronta a

fórmula e só resta aos alunos, aplicá-la. Se eu sei como os

matemáticos chegaram a tal equação, eu compreendo os

procedimentos, a metodologia, e assim, fica mais fácil de

usá-la, sem ter que recorrer à mera memorização. O educando

deve ter “meios para o pensar autêntico, porque recebendo

as fórmulas que lhes damos, simplesmente as guarda. Não as

incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de

algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de

20

procura. Exige reinvenção” (FREIRE, 2007: 104-105). Uma

reação química fica mais esclarecida se a faço em

laboratório ou ao misturar os ingredientes de um bolo. Na

filosofia, como pensamos filosoficamente? Neste item, o

destaque é para a afirmação de que o professor precisa

saber a epistemologia do campo de conhecimento em que

ministra suas aula para possibilitar a construção do

conhecimento.

Para Peter Lee, a literacia histórica demanda um

“compromisso de indagação” com as “marcas de identificação”

da história, como “passado”, “acontecimento”, “evento”,

“causa”, “mudança”, etc., “o que requer um conceito de

evidência” (Lee, 2006: 136). Isabel Barca entende que a

aprendizagem da história implica em “uma leitura

contextualizada do passado a partir da evidência fornecida

por variadíssimas fontes” (Barca, 2006: 95). Também para

Carlos Barros: “Educar con fuentes, y uma bibliografia

mínima, comporta a estas alturas uma triple actualización

historiográfica: enseñar la historia como una ‘ciencia com

sujeto’, procurar aprocinaciones globales y analizar el

presente a la manera de los historiadores” (Barros, 2007:

19).

Assim, o uso escolar do documento histórico também é

uma metodologia didático-pedagógica importante, porque

atada à investigação histórica: “os documentos não serão

tratados como fim em si mesmos, mas deverão responder às

indagações e às problematizações de alunos e professores”

(Schmidt; Cainelli, 2009: 117). A utilização da fonte

21

documental remete ao fundamento do método histórico, aos

processos necessários à construção do conhecimento

histórico, seja pelos historiadores, seja pelos professores

e alunos em sala de aula: “É preciso construir juntamente

com a criança os meios para que ela entenda os

procedimentos da construção historiográfica e como o

historiador analisa os vestígios nos documentos para

escrever história” (Cainelli; Tuma, 2009: 212).

Seria própria da alfabetização histórica “ler fontes

históricas diversas, com suportes diversos, com mensagens

diversas”, considerando suas intenções, sua validade, bem

como o cruzamento com outras fontes e mensagens (Barca,

2004: 133). A análise crítica de fontes em sala de aula

produz a capacidade de “transpor” tal análise para os

materiais culturais com os quais o sujeito se depara no

cotidiano, o que dizer que a literacia histórica tende a

ultrapassar os muros da escola, adquirindo propósito e/ou

sentido para sua vida prática. Em outras palavras, este

sentido para a vida prática, não significa utilizar o

conhecimento de forma utilitarista, mas sim, articular

reflexão e ação, de modo que se construa o coletivo

democrático.

Em sala de aula, as questões levantadas às fontes

documentais, são as mesmas que aquelas levantadas pelos

historiadores: Quem fez [este objeto, imagem, HQ, música,

poema, filme, carta, etc.]? Quando fez? Para quem fez? Com

qual intenção fez? Quem teve acesso? Qual o suporte? Onde

está hoje? Outros documentos eram contrários na época?

22

Outros documentos foram produzidos pelo mesmo autor?

Francisco César Ferraz (1999) sugere para o trabalho com

uma fonte imagética que podem ser adaptadas para outras

fontes e servem tanto ao historiador como ao professor-

investigador/seus alunos. Apenas o professor-investigador

saberá selecionar as perguntas à(s) fonte(s) conforme o

grau de dificuldade de sua turma.

Quadro – Algumas problematizações possíveis num documento

visual

Procedência de umaimagem

Quem fez? Onde? Quando? Para quem? Onde ficou?Houve alguma forma de exposição pública? Comofoi sua recepção? Como foi sua conservação? Qualera a posição do(s) autor(es) da imagem nasociedade? E do(s) seu(s) destinatário(s)? Éassinada? É dedicada a alguém? Encontra-sealguma inscrição no corpo da imagem ou no verso(fotografia)?

Finalidade de umaimagem

Por quem foi feita? Para quem? Sua finalidadefoi bem sucedida? Seguiu um padrão anterior oufoi original? Qual sua importância para asociedade em que se originou? Sua conservaçãoatendeu aos desígnios de sua elaboração econfecção? Houve alteração posterior em suaforma e/ou conteúdo?

Tema ouAssunto

Qual o título? É um tema original ou seguiumodelo anterior? Existem temáticas secundárias?Como se articula(m) com a principal? Existempessoas retratadas? Quem é/são? Quais são seusatributos? Que estão fazendo? Como se vestem?Existe alguma hierarquização no(s) tema(s)?Quais são os objetos retratados? Como elesaparecem? Qual a sua função dentro do tema?

23

Pertencem às pessoas retratadas? Quais osatributos da paisagem? Relacionam-se com aspessoas retratadas? Relacionam-se com os objetosretratados? Qual é o tempo retratado (dia/noite;calor/frio; estação do ano;sol/claridade/névoa/chuva? Existe indício detempo histórico retratado? Que práticas sociaiso conteúdo iconográfico é capaz de abordar?

EstruturaTécnico-Formal

Qual é o suporte (tela, parede, rocha, cartão,papel, chapa fotográfica, pôster, etc.)? Quaisforam as técnicas e os materiais utilizados?Houve inovação ou utilizaram-se técnicas e/oumateriais conhecidos? Como se estrutura suacomposição? Qual o papel desempenhado peladistribuição das cores, dos tons e dasluminosidades? Existe alguma hierarquizaçãoformal? O aspecto formal intensifica ouenfraquece o entendimento temático? Qual oestilo adotado? Houve intenção de aproximaçãocoma realidade? Existe alguma articulação entreo estilo e a sociedade retratada ou procedênciado autor?

Simbolismo

Existem simbolismos identificáveis? Quais são?Permitem várias interpretações? Havia condiçõespara os coetâneos à imagem identificarem ossimbolismos? O(s) autor(es) escreveu(eram) algoa respeito de possíveis interpretações daimagem? Como se articulam os simbolismos com otema?

Respeitando-se a faixa etária do aluno, para a

aprendizagem histórica através dos mesmos procedimentos do

historiador, pode ser feita com as três perguntas básicas

das quais nos fala Hilary Cooper (2012: 34), até mesmo para

24

crianças pequenas, na fase inicial da aprendizagem

histórica:

1) Conhecimento prévio: O que sei sobre isto [pessoa, objeto,

música, filme, imagem, HQ, carta, etc.]?

2) Levantamento de hipóteses: O que posso adivinhar sobre

isto? e

3) Problemática/pesquisa: O que gostaria ou preciso saber

sobre isto?

Há que se destacar que este trato com as evidências

não implicam necessariamente na construção de um

conhecimento histórico destituído de uma interpretação, e

que esta por sua vez, implica em valores.

Novamente, vale lembrar que aqui damos exemplo da

história, mas outras matérias podem ser pensadas da mesma

forma. E outra coisa: crianças pequenas também podem ser

inseridas no processo de construção do conhecimento. O

exemplo mais contundente é quando se aprende a somar e a

subtrair, em que se usam objetos para a demonstração. Ao

construir o conhecimento sobre fração repartindo um bolo, a

criança tem a prática, a experiência da fração. Aprender

não é só experimentar, mas ter acesso à metodologia de

determinado conhecimento, tendo a investigação como

princípio investigativo. Segundo Freire “[...] aprendam,

sobretudo, a aprender. A identificar-se com a sua

realidade” (FREIRE, 2003: 85). Assim, a educação crítica

seria aquela “que levasse o homem a uma nova postura diante

25

dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A da pesquisa

ao invés da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos

e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de

vida” (FREIRE, 2007: 101).

2.3. Os conceitos substantivos e estruturais (ou de segunda

ordem)

Toda aprendizagem envolve um processo mnemônico, mas

os conceitos são compreendidos/construídos gradualmente, a

partir da relação com os conceitos prévios que o sujeito

comum adquire na sua experiência (Barca, 2004: 137). Os

conceitos históricos substantivos são recortes

temporais/geográficos da história, e estão mais vinculados

às informações históricas ou conteúdos históricos, por

exemplo: Revolução Francesa, Feudalismo, Renascimento,

Guerra de Canudos, Revolução Industrial, Ditadura Militar,

etc.

O livro didático de história e alguns currículos de

história são organizados com base nestes conceitos

substantivos. Mesmo a história temática, como por exemplo,

“Trabalho”, traz uma organização interna pautado em uma

cronologia: trabalho nas sociedades comunais, trabalho

escravo, servidão, trabalho assalariado, etc. Porém, todo

conceito substantivo não existe em estado puro, ou seja,

sem que conceitos de meta-história (conceitos estruturais

ou conceitos de segunda ordem) estejam subentendidos. No

entanto, geralmente, o estagiário ou o professor de

história se preocupa apenas com esta ordem de conceitos, o

26

que implica no destaque às informações atadas aos nomes e

datas. Não que uma cronologia histórica de acontecimentos

na medida em que uma contextualização histórica se faz

necessária para discutir um recorte temático. Aqui as

perguntas poderiam ser, em relação à Ditadura Militar, por

exemplo: Quando ocorreu Ditadura Militar? Como iniciou?

Qual sua duração? Quais episódios mais marcantes? Quais são

os agentes que podem ser destacados neste processo?

Os conceitos de segunda ordem são constitutivos da

cognição histórica, isto é, dizem respeito aos fundamentos

teóricos e metodológicos da história, à natureza do

conhecimento histórico, entre outros: explicação histórica,

fontes e evidências, consciência histórica, inferência,

imaginação histórica, interpretação, narrativa, etc. Tais

conceitos também são ligados à noção temporal, como

mudança, permanência, evolução e transição (Lee, 2001).

A construção de uma literacia histórica ocorre na

interdependência entre os conceitos substantivos e os

conceitos de segunda ordem. Por exemplo, se o conceitos

substantivo é “Ditadura Militar”, posso problematizar este

tema realizando uma relação passado-presente com a

pergunta: A censura realizada naquele período é mesma que

ocorre hoje? Qual o significado de “democracia” para aquele

período? Todos concordam com aquele sistema político? Quem

eram os agentes da Ditadura e quem eram os agentes da

resistência à mesma? Hoje temos defensores de uma Ditadura

Militar no país?

27

Outras perguntas podem ser realizadas, mas sempre

entendendo que o passado não acaba completamente, pois

sempre somos resultado de um passado. A história é um

processo dinâmico, em que ocorrem mudanças, mas também

permanências. A literacia histórica se constrói neste

sentido, o passado problematizado implica na

problematização do presente e vice-versa. Estas

problematizações são importantes para realizar o futuro.

Vale lembrar que estas indagações acima sugeridas precisam

ser instigadas pelo uso escolar da evidência, da fonte

histórica (jornais, filmes, música, etc.)13.

É a partir destas evidencias que os alunos podem

mobilizar a metodologia da história para produzir

conhecimento histórico sob orientação do professor. Desta

forma, a evidência não é apenas fonte histórica, mas também

recurso didático, já que está sendo explorada em sala de

aula na construção do saber histórico escolar e não como

mera ilustração ou confirmação do que fala o professor.

Este procedimento de problematização histórica, quando

internalizado, faz com que o aluno veja e faça a realidade,

para além da sala de aula, ou seja, temas, fatos, discursos

que se apresentam no cotidiano, podem ser desnaturalizados,

historicizados, desmontados criticamente por intermédio da

metodologia própria da história.13 O período é rico em fonte histórica e outras estão sendo descobertasno Brasil no momento com a “Comissão da verdade”. O relatório “BrasilNunca Mais” pode ser uma ótima indicação de conjunto de fonteshistóricas. Ver site:http://www.armazemmemoria.com.br/cdroms/producaocdrom/01/index.htm(Acesso em 10 de setembro de 2014). Ver livro: BRANDÃO, AntônioCarlos; DUARTE, Milton Fernandes. Um relato para a história. Brasil NuncaMais. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1985.

28

Do mesmo modo, se internalizo a matemática, as normas

da linguagem, a filosofia, etc., posso mobilizá-las no

cotidiano, posso colocar a meu serviço qualquer tipo de

conhecimento. Assim, o saber escolar não se torna algo

distante da vida. Todas as matérias apresentam conceitos

substantivos e conceitos estruturantes. Os primeiros, quase

sempre ao nível das informações, e que, portanto, podem ser

facilmente descartados. Já os conceitos estruturais são

aquele que são internalizados, que “ficam” e podem ser

usados.

2.4. Formas de apresentação do conhecimento

Também integra a aprendizagem, a capacidade de

apresentar, divulgar, comunicar os “resultados” do

conhecimento produzido. Isabel Barca resume: seria

“exprimir a sua interpretação e compreensão”, ou seja, a

história aprendida, “utilizando a diversidade dos meios de

comunicação atualmente disponíveis” (Barca, 2004: 134).

Toda forma de conhecimento precisa ser externalizada, para

que o educando tenha condições de criar uma narrativa

coerente do que aprendeu.

Para Rüsen, quando empreendemos uma narrativa

histórica – que aqui estamos entendendo como forma de

apresentação da história – damos significado/sentido

histórico às nossas experiências (Rüsen, 2012: 37), por

isso a narrativa histórica seria uma “operação mental

constitutiva” (Rüsen, 2010; 43). Portanto, fazer com que o

aluno apresente de algum modo uma narrativa sobre o que foi

29

aprendido, implica em dar condições para que este demonstre

mudanças conceituais, explicações, interpretações,

relações, argumentações, sistematizações,

contextualizações, etc. É a competência narrativa que

“constitui a qualificação à qual todo aprendizado histórico

está, ao fim e ao cabo, relacionado” (Rüsen, 2010: 47).

Esta narrativa pode ser de diferentes formas enão apenas em

história: escrita, desenho, filme, teatro, etc.

Segundo Ivo Mattozzi (2004), a narração é uma forma de

discurso em que se ordena o passado, e implica em

representar o processo histórico pautado nas mudanças e

permanências. Seria uma ideia de “continuidade”, de relação

entre passado, presente e futuro “tornando-se história”

(Rüsen, 2012: 39). A descrição também não pode ser

excluída, porque é um tipo de narrativa, porém, precisa ser

superada pela argumentação, explicação e problematização.

O debate, a discussão, o confronto de

perspectivas/narrativas, “o movimento entre sujeitos

diferentes”, também devem integrar a construção do

aprendizado histórico ou de qualquer outro aprendizado na

medida em que implica na “intersubjetividade discursiva, em

uma relação aberta de comunicação racional-argumentativa”

(Rüsen, 2010: 48).

Há que se considerar que hoje, o universo cultural da

criança e do jovem engloba canais midiáticos e virtuais.

Isso aponta para a construção de uma cognição mais

complexa, inclusive com maior capacidade de sistematização

de informação, e disso o ensino de história não pode se

30

omitir, ao contrário, deve aproveitar, complexificando e

inter-relacionando níveis, fatores e atores, através de

diversas fontes, comparando aquelas divergentes, ensaiando

explicações coletivas (Barros, 2007: 19), diversos tipos de

recursos didáticos. Então, a necessidade de tomar estes

materiais como fonte ou acervo de fontes, mas igualmente,

de utilizá-los como recurso de divulgação dos debates

empreendidos em sala de aula ou de espaço próprio de

debates extraescolar: blogs, vídeos, sites, comunidades

virtuais, etc. A socialização de exercícios, de tarefas

didático-pedagógicas, de bibliografia, dica de filmes, de

sites, pode ser realiza pelo blog da turma como forma de

adequar-se ás habilidades que o nosso aluno adquiriu no

mundo virtual.

3. A natureza multiperspectivada do conhecimento

Saber o que pensa, quem é e o que quer nosso aluno,

mostrar como chegamos a determinado conhecimento pela

metodologia, construir conceitos específicos de determinada

matéria, apresentar uma narrativa argumentativa e/ou

sistematizada de variadas forma sobre o se aprendeu, não

garante um ensino e aprendizado de qualidade.

No caso da história, embora o uso escolar do documento

histórico nos reporte aos procedimentos que o historiador

considera para construir a escrita da história, e sirva ao

propósito de mostrar ao aluno como o conhecimento histórico

é construído, isto não basta para construir uma literacia

31

histórica. Nos currículos da década de 90 dos quais já

destacamos seu caráter tecnicista, enfatiza-se apenas o

trabalho com fontes em sala de aula, ou seja, apenas a

metodologia, e não o “conteúdo” ou o significado histórico

que as fontes podem mostrar. Neste item desenvolvo a

questão da empatia e da multiperpesctividade como aspectos

integrantes da construção da literacia histórica.

Igualmente, não podemos restringir a necessidade

de levantamento sobre o conhecimento prévio do aluno

somente à história. Todo sujeito adquire conhecimentos

extraescolares que podem estar no campo da matemática,

da linguagem, da sociologia, da filosofia... Existe no

chamado “senso-comum”, saberes que podemos denominar

de “populares” que não estão de todo longe dos saberes

científicos. Por sua vez, em alguns temas temos certas

“crenças” que vão contra o saber científico. É a

partir deles que se realiza o planejamento didático-

pedagógico.

3. 1. Empatia Histórica

Segundo Juliano da Silva Pereira (2012) o conceito de

empatia foi cunhado no século XIX por Rudol Lotze para

caracterizar a habilidade que o público tem em se projetar

no objeto artístico. Posteriormente, tal conceito foi

assumido pela psicanálise, no sentido do psicoterapeuta

compreender as emoções e razões dos atos de seu paciente.

Para a literacia histórica, enfatiza-se o componente

32

cognitivo da empatia, que refere à capacidade de

compreender os sentimentos, perspectivas, noções, ideias de

outra pessoa, do passado ou do presente. Peter Lee diz que

poderíamos substituir a palavra “empatia” por

“compreensão”. Mais precisamente: “compreensão histórica”,

que não é um sentimento, “Embora envolva o reconhecimento

de que as pessoas possuem sentimentos” (Lee, 2003: 20).

Tomo aqui o conceito de empatia em seu duplo: como

compreensão do Outro na história e como compreensão do

Outro em sala de aula. No trabalho pedagógico, o professor

precisa ter esta empatia para com seu aluno, compreendendo

porque aquele sujeito pensa daquela forma. Realizado o

levantamento do conhecimento prévio do aluno, eu posso ter

acesso ao que ele pensa, mas a explicação sobre o porquê

ele pensa daquela forma, só o professor pode realizar. Esta

compreensão é necessária, para que eu possa realizar o

trabalho pedagógico através da interação, do diálogo.

No caso do aprendizado histórico, entender o processo

histórico, no curso do tempo, seria construir e reconstruir

identidade(s) – a consciência de si –, na relação com o

“Outro” – a alteridade –, estabelecendo “um quadro

interpretativo do que experimenta como mudança de si mesmo

e de seu mundo...” (Rüsen, 2001: 58)14. A construção de

identidade implica na construção da alteridade, e mais do14 Rüsen chama a atenção para três dimensões que o raciocínio históricorequer: a competência interpretativa, que significa conectarsignificados e sentidos com a realidade presente (Rüsen, 2007: 111-117), de ver “o passado no presente”. Esta “competência” reporta àvinculação do entendimento do passado com “acertar no futuro”demonstrando uma competência orientativa, em que situar-se no tempoentendendo o fluxo da experiência capacita a tomada de posição o quesempre implica em construção de valores e ao mesmo tempo, de práticas.

33

que isto, uma forma de “se colocar no lugar do Outro”

(empatia) para entender e respeitar o que este Outro pensa,

objetiva, necessita, vivencia, rejeita, admira, questiona,

etc. Porém, mais do que se colocar no lugar do Outro, com a

empatia “a nossa compreensão histórica vem da forma como

sabemos como é que as pessoas viram as coisas, sabendo o

que tentaram fazer, sabendo que sentiram os sentimentos

apropriados aquela situação” (Lee, 2003: 21).

Em sala de aula, o Outro é o aluno, e uma aprendizagem

de qualidade só pode ocorrer quando me familiarizo com

este, quando me aproximo de seu repertório sociocultural.

Nós, como adultos, costumamos nomear o Outro, o aluno,

dizer quem ele é, sem que façamos um exercício de empatia

capaz de quebrar a hierarquia professor-aluno.

Peter Lee entende que a empatia histórica seria a

capacidade dos alunos reconstruírem os objetivos, os

valores, as crenças do Outro, aceitando que estes podem ser

diferentes dos seus. O autor destaca a empatia histórica

como “disposição” (reconhecimento de que ações e

pensamentos são próprios de um contexto histórico) e como

“realização” (compreensão da intenção dos sujeitos nas

ações humanas em outro contexto temporal) (Lee, 2003: 20-

21). Sempre lembrando que ensinar e aprender história é

“saber entender – ou procurar entender – o “Nós” e os

“Outros”, em diferentes tempos, em diferentes espaços”.

(Barca, 2005: 16). A empatia histórica remete à compreensão

contextualizada do Outro que viveu no passado, mas também

do Outro que vive no presente e predispõe a problematização

34

e contextualização do Eu inserido no mundo e na interação

com os outros. E assim, podemos pensar a empatia pedagógica

como esta compreensão contextualizada do aluno, de sua

realidade.

Através da análise das fontes históricas, o sujeito

pode desenvolver a empatia histórica, já que as fontes

mostram modos diferentes de perceber uma realidade,

conforme a época, lugar, sexo, geração, classe social,

religião, etnia, etc. Enfim, segundo os códigos culturais

daquele que produziu o documento histórico. No contraste

com fontes diversas, da mesma época e lugar, ou mesma época

e lugares diferentes, ou de épocas diferentes e mesmo

lugar, o “investigador” pode reconhecer que não existe

apenas uma perspectiva, de que a escrita da história como

retrato fiel da realidade é impossível. Em um movimento

tensional, a literacia histórica como forma específica de

“ler” o mundo e a si mesmo, pressupõe que valores,

comportamentos, crenças, objetivos, concepções, são

construídos historicamente, ou seja, devem ser

contextualizados, desnaturalizados, vistos de modo

empático. Ao mesmo tempo, a forma de “ler” o mundo

historicamente também é plural e provisória, pois o

conhecimento histórico é de natureza multiperspectivada

(Barca, 2001: 30), assim como outras formas de

conhecimento.

3. 2. Multiperspectividade

35

Os alunos devem entender que não existe uma história

única, que a escrita da história está condicionada ao

contexto histórico, aos interesses políticos e sociais, às

posições do historiador. A escrita da história é contínua,

plural e coletiva, e envolve também crenças e imaginação

(Barros, 2007: 19). Assim como existe a

multiperspectividade até mesmo nas ciências exatas, como na

física, em que diferentes teorias podem ser contrapostas.

Mesmo que se entenda que a natureza do conhecimento

histórico é multiperspectivada, há que se considerar que

nem toda “versão histórica” pode ser aceita como válida

(Barros, 2007: 22). Segundo Isabel Barca, existe uma

multiplicidade de perspectivas em história, devido aos

pressupostos e contextos diferenciados de produção

histórica. Porém, ao contrário da abordagem relativista,

entendo que existem critérios intersubjetivos de validação

das produções historiográficas, entre eles, o mais

consensual seria o da “consistência da evidência”. São as

fontes que fornecem indícios sobre o passado, diferenciando

uma abordagem ficcional da histórica (Barca, 2001: 30).

Peter Lee ainda nos alerta que compreender o Outro, ter

empatia, nem sempre significa aceitá-lo ou compartilhar de

sua cultura (Lee, 2003: 20).

Argumenta Rüsen, que na historiografia existe um tipo

de “objetividade” e poderíamos estender isso ao ensino e

aprendizado histórico. Porém, alerta o autor, que deve

haver a intersubjetividade, o consenso que algo aconteceu

realmente ou que algo deve ser considerado antiético

36

(Rüsen, 1996: 98). A objetividade compreende a coerência

teórica, que se refere à reconstrutibilidade histórica

pelas fontes e a coerência prática que pressupõe

plausibilidade, o convencimento pelo argumento e não pela

força, na comunidade de historiadores (Rüsen, 1996: 96-97).

Mas o maior regulador desta intersubjetividade seria a

categoria de igualdade (ou alteridade). Uma categoria,

segundo o autor, universal, e assim, as diferenças devem

ser compreendidas, explicadas, porém, todo modo de viver,

pensar e agir do passado que fere a igualdade (ou a

alteridade), não pode ser considerado adequado, porque não

pode servir para moldar práticas e representações do

presente e do futuro (Rüsen, 1996: 97)15.

Nesta direção, conforme a faixa etária dos alunos é

possível um ensino de história fundamentado na

historiografia, com as seguintes questões: Como o

historiador chegou a determinadas questões? Quais

evidências o historiador apresentou para chegar a

determinada conclusão? Existem outras perspectivas sobre o

mesmo assunto? O livro didático de história configura a

única versão? Em qual versão o livro didático de história

se baseia? Esta ordem de questões implica não somente ao

trato com fonte histórica em sala de aula, mas também com15 Também Bustamante corre na mesma direção: os enfoquesdesconstrucionistas ou relativistas foram importantes quando havia anecessidade de desmontar a história única, eurocêntrica, maniqueístas,porém, no momento, o objetivo de aproximação com a verdade implica no“a busca do reconhecimento, de coexistência, de dignidade, e derespeito entre os sujeitos sociais” (Bustamante, 2011: 171), daí que“sem a verdade como categoria, não existe possibilidade deestabelecer, dentre as diversas interpretações, a mais correto”(Bustamante, 2011: 172), pois “nenhuma história deve ser aceita àscegas” (Bustamante, 2011: 175).

37

textos historiográficos que podem não apenas contextualizar

historicamente um período, mas mostrar que existem

diferentes interpretações sobre o mesmo assunto.

Em outras matérias, também é necessário entender

que existem diferentes perspectivas. É mister entender que

o conhecimento é acumulado, e que embora algumas teorias

não nos sirvam mais na atualidade, não podem ser

descartadas. A física quântica não pode desprezar a física

clássica, apesar de rechaça-la em alguns pontos, assim como

a história não pode esquecer que muitas informações sobre

acontecimentos passados já tiveram sua existência

comprovada, mas são passíveis de serem reinterpretados.

Então temos duas questões que devem ser compreendidas: a

história da matéria que se ministra, com suas abordagens

diferentes produzidas no decorrer do tempo e o conflito de

abordagens que ocorrem no mesmo momento histórico e que

professor precisa tomar uma posição para escolher a mais

plausível cinetificamente. Além do mais, não seria profícuo

que os alunos considerem a história como apenas uma questão

de ponto de vista: “Eles precisam de exercitar um

pensamento crítico, de aprender a seleccionar respostas

mais adequadas sobre o real, passado e presente” (Barca,

2001: 30).

Conclusão

A literacia histórica, − abarcando a otimização dos

conhecimentos históricos adquiridos de forma extraescolar,

38

a análise de fontes em sala de aula, a construção de

conceitos históricos, o desenvolvimento da empatia, da

noção da história como de natureza multiperspectivada e a

construção de narrativas históricas −, quando

internalizada, produz algumas capacidades: de análise

crítica em relação aos materiais culturais com os quais o

sujeito se depara na vida prática, a noção de identidade e

alteridade, a compreensão do Outro para além da tolerância

(já que tolerar seria aguentar, suportar o Outro, “apesar”

de ele ser diferente) e a

reelaboração/superação/otimização/melhoria dos saberes

históricos adquiridos fora da escola.

Sobretudo, o aprendizado está relacionada com a vida

prática: “aprendizagem é estimulada quando as situações-

objecto de conhecimento se apresentam significativas, com

sentido pessoal” (Barca, 2009: 13). Para Peter Lee, no

contexto do ensino de história, é admissível a noção de

“passado prático”, o passado deve então “servir” para a

vida do aluno, o conhecimento histórico pode permitir que o

presente faça sentido (Lee, 2008: 20).

A teoria da história e a didática da história carecem,

diz Rüsen, de convergir na mesma fundamentação – a vida

prática –, o que quer dizer que, tanto em uma como na

outra, deve-se partir da mesma problemática, a de situar-se

na temporalidade que abarca a duração, a mudança, de modo a

orientar-se no tempo construindo e reconstruindo a

consciência histórica (Rüsen, 2007: 91-93). Por

conseguinte, empreendendo “a compreensão do mundo e de si”

39

em um processo de formação da identidade (Rüsen, 2007:

101), rumo a um “engajamento” ou tomada de posição

(sustentando valores) junto com ações (atuando em

sociedade) em relação à vida prática, o que se denomina

“práxis” (Rüsen, 2007: 102).

Para Freire, a educação desvinculada da vida, mas

centrada na palavra, esvazia a realidade o que tolheria o

desenvolvimento da criticidade e conscientização,

indispensável à democratização (FREIRE, 2007: 102).

O saber histórico dos historiadores não é visto por

Rüsen, como algo que deveria ser reproduzido ou

simplificado em sala de aula, o que ele critica como sendo

“didática da cópia” (Rüsen, 2001: 89), o que já era

questionado por outros pesquisadores, em especial por

Chervel (1990), como a “transposição didática” do saber

acadêmico para o espaço escolar. Pensar que a ciência de

referência é transposta para o universo escolar através de

uma forma “vulgarizada”, reduziria a questão da formação do

professor de história “na profissionalização pedagógica

como a mera obtenção de competência técnica em sala de

aula, com o que os termos ‘aplicação’ e ‘mediação’ fazem

sentido” (Rüsen, 2001: 90). Nesta linha da “transposição

didática”, se o conhecimento já está dado, necessitando

apenas ser exposto aos alunos, a formação docente se

cumpria apenas com o estudo das matérias relacionadas aos

conceitos substantivos.

Como a proposta é a construção o conhecimento em sala

de aula, a profissionalização do professor significa o

40

desenvolvimento das capacidades ou competências técnicas e

valorativas, aqui mencionadas, no sentido de possibilitar a

mobilização também dos conceitos estruturantes do

conhecimento. O estudante de história, o futuro professor

de história, precisa ele mesmo desenvolver a capacidade

historiográfica, ele mesmo saber como se escreve sobre o

passado, mediante determinados pressupostos teóricos e

metodológicos, para que depois, em sala de aula, empreenda

com seus alunos as mesmas capacidades: “¿como vamos enseñar

a los alumnos a ‘pensar historia’ si nosotros no lo

praticamos?”. Por isso, “la investigación y la enseñanza

son, o deberían ser fases consecutivas e interrelacionadas

de um mismo processo de conocimento histórico” (Barros,

2007: 3).

Neste sentido, o conhecimento é construído ativamente

pelos sujeitos em sala de aula, sendo que o professor não é

aquele que simplesmente reproduz o conhecimento, ou ainda,

que media ou facilita o conhecimento. O professor como mero

mediador abre a guarda para uma maior poder da esfera

administrativa (Barros, 2007: 9). Da mesma forma, a

construção do conhecimento não pode ficar apenas ao cargo

do aluno, pois, os resultados coletivos dependem do

professor (Barros, 2007: 10), ou seja, a aproximação da

verdade através da análise das evidências históricas, no

caso do aprendizado histórico, apenas o professor poderia,

partindo de sua formação historiográfica e pedagógica,

orientar. Orientar no sentido de escolher as fontes

compatíveis com seus objetivos de ensino, assim como os

41

textos de apoio, as práticas e dinâmicas pedagógicas, a

forma em que se darão os debates (Barros, 2007: 23). Em

outras palavras, o professor que sabe da epistemologia da

área de conhecimento da qual ministra suas aulas, a

realidade da escola e do aluno, tem condições de construir

sua autonomia e provocar em seus alunos a mesma situação de

agente ou protagonista do conhecimento. É na autonomia no

ato da construção do conhecimento que nunca é individual

que o sujeito internaliza a democracia como práxis.

A multiperspectividade das interpretações é inerente

ao conhecimento, o que significa que os profissionais da

história não tem uma única explicação para o passado – nem

para o presente –. O ensino e a pesquisa em história sempre

foram campos em que os debates são acolhidos, mesmo porque,

também integra a forma histórica de ver o mundo (literacia

histórica), a capacidade de argumentação. Contudo, o que

precisa ser evidenciado é o fato de que o professor de

história precisa pensar seu fazer em acordo com os

princípios de uma sociedade de ética democrática, que preza

a justiça, igualdade e compreende a alteridade.

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