Competências e valores na formação docente segundo um novo paradigma
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Competências e valores na formação docente segundo um novoparadigma
Márcia Elisa Teté Ramos1
Objetivo tratar da temática sobre as competências do
professor, e para isso tomo como exemplo o professor de
história, considerando dois aspectos interdependentes: uma
competência que poderíamos denominar de “técnica”, mas com
ressalvas, e outra competência ligada à reflexão crítica.
Parto de referenciais que se contrapõe à dicotomia entre
teoria e prática eou ensino e pesquisa e por isso entendo
o profissional da história na relação orgânica professor-
historiador, como entenderia o profissional da matemática
na relação professor-matemático, e assim por diante. Embora
meu ponto de partida seja o ensino e aprendizado histórico,
todas as capacidades aqui colocadas podem ser tomadas para
pensar a formação docente em geral.
No Brasil, a palavra “competência” assumiu após as
reestruturações curriculares que ocorreram em meados da
década de 90, a conotação de “técnica”, ou seja, de
aplicabilidade ou instrumentalização2. Em outras palavras,
nos discursos e currículos gerados pelos órgãos públicos
reguladores da educação, o ensino e aprendizado histórico
1 Professora da graduação em História e professora da pós-graduação emHistória Social da Universidade Estadual de Londrina. Editora darevista História & Ensino. Coordenadora do Laboratório de Ensino deHistória da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, brasil.2 Sobre análise destes currículos, ver: RAMOS, Márcia Elisa Teté.(2003) A “alma do negócio”: o ensino de qualidade total nos ParâmetrosCurriculares Nacionais. Revista História Hoje. São Paulo, n. 2. Disponívelem http://www.anpuh.org/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=3&impressao
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de qualidade seria proveniente de uma metodologia adequada
e não da construção da reflexão crítica. No entanto, neste
texto, utilizo o vocábulo “competência” conforme o
significado construído em outros países, ou seja, como
habilidade profissional, como capacidade do professor em
mobilizar determinados saberes e ações, que reúnem
pressupostos teóricos e metodológicos.
Entendo o estágio ou a formação de professores como
processo que não se realiza apenas a “aplicação de saberes
produzidos por outros”, pois também é “um espaço de
produção, de transformação e de mobilização de saberes...”
(TARDIF, 2002: 121). Para Maurice Tardif, o saber docente,
ou o conjunto de competências docente, se estrutura de uma
forma plural e não pode ser enquadrado apenas nos conteúdos
específicos, ou nas técnicas separadas dos objetivos
político-pedagógicos, ou nos conhecimentos da prática, ou
ainda na crítica sociológica da escola. Existem os saberes
(ou competências) da formação profissional, transmitidos pelas
instituições formadoras, que compreendem as ciências da
educação e saberes pedagógicos; os saberes (ou competências)
curriculares que complementam os saberes da formação
profissional e apresenta conteúdos selecionados da cultura
geral; os saberes (ou competências) experienciais que o professor
adquire em seu trabalho cotidiano em seu meio de ação e,
finalmente, os saberes (ou competências) disciplinares, que
correspondem aos diversos campos do conhecimento como, no
nosso exemplo, da história (TARDIF, 2002).
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Meu pressuposto é de que um ensino/aprendizagem de
história de qualidade implica necessariamente na construção
de uma literacia histórica, para que o sujeito obtenha a
capacidade de pensar o mundo historicamente e a partir
disto intervenha na realidade construindo-se como cidadão
de uma democracia. Portanto, os elementos que considero
imprescindíveis para a formação docente abarcam
competências capazes de construir esta literacia histórica
ou alfabetização histórica. Em outras matérias, posso
pensar da mesma forma: alfabetização matemática,
alfabetização filosófica, alfabetização da linguagem, etc.
O termo “alfabetização” remete à metodologia de Paulo
Freire.
Embora entenda que não podemos separar metodologia de
ensino de pressupostos teóricos, éticos e valorativos na
construção de uma alfabetização histórica, para facilitar
minha exposição, divido o texto em três partes: 1) falo da
emergência do sujeito nas pesquisas sobre a educação,
destacando a história, bem como do Novo Paradigma
Educativo; 2) possibilidades metodológicas e 3)
multiperspectividade e empatia como inerente à construção
do conhecimento.
1. Educação Histórica e o Novo Paradigma Educativo da
História
Trabalho com estes dois campos, a Educação Histórica
como campo de pesquisa fundamentada na empiria e o Novo
Paradigma Educativo da História voltado para proposições
3
políticas/éticas na atuação do profissional da história,
considerando que, apesar de serem campos distintos, com
autores diferentes, existe a possibilidade de convergi-los
na reflexão sobre a formação docente, pensando nas
competências e valores que demandam ser desenvolvidas para
que se empreenda um ensino e aprendizado histórico (ou
alfabetização histórica), capaz de construir o cidadão
crítico, com vistas a um futuro mais coerente com os
princípios da justiça, compreensão da diversidade sem
desmerecer a igualdade.
1.1. A Educação Histórica:
A Educação Histórica é um campo de investigação que
vem se configurando nos últimos 15 anos em nível
internacional3. Como expoentes, temos Peter Lee, Martin
Booth, Denis Shemilt, Peter Seixas, James Wertsch e Alaric
Dickison. Estes, segundo Isabel Barca (2008), rompem com a
ideia do ensino de história aos moldes psicopedagógicos que
pressupõem uma linha evolutiva e natural da cognição do
sujeito, e por isso mesmo, entendem a cognição histórica
pela epistemologia da história. A progressão do
entendimento/explicação de um sujeito sobre a história ou
de qualquer tipo de campo do saber, segundo esta
3 Atualmente, os construtos do campo da Educação Histórica têm sidorealizados e divulgados por Isabel Barca (Universidade do Minho -Portugal). No caso do Brasil, destaca-se Maria Auxiliadora Schmidt(Universidade Federal do Paraná). Pesquisadores de outros países, nãoserão mencionados neste texto, na medida em que a Educação Históricavem abarcando cada vez mais espaço em variados países e seriaimpossível arrolá-los. Podemos citar o nome de alguns: Júlia Castro;Graça Sanches; Paula Dias, Xavier Dias; Elvira Machado; OlgaMagalhães; Márcia Monsanto; Helena Pinto e Marlene Cainelli.
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perspectiva, depende de uma construção histórico-cultural,
e não biológica.
Maria Auxiliadora Schmidt e Tania Maria Braga Garcia
(2006) entendem que é na Sociologia Crítica Inglesa,
através de trabalhos de Raymond Williams, Basil Bernstein e
Stuart Hall relativos aos chamados Estudos Culturais que
podemos encontrar a temática das relações dos sujeitos com
o conhecimento escolar. Também é importante destacar os
novos enfoques para a compreensão das práticas e concepções
escolares através da categoria de “cultura escolar”.
Baseando-se especialmente em André Chervel (1990), defende-
se que os sujeitos escolares, professores e alunos, são
agentes, construtores de conhecimento, e não passivos
sujeitos que reproduzem os saberes construídos em outras
esferas (currículo, livro didático, universidade, mídias,
etc.).
Os pesquisadores deste campo, em especial os
portugueses, passaram a se utilizar dos estudos de
filosofia da história de Jörn Rüsen por este compreender
que historiadores que consideram o passado como um fim em
si mesmo, estão cativos no cientificismo próprio do século
XIX que descartou a articulação entre teoria da história e
didática da história (Rüsen, 2010: 25). O interesse em
adotar Jörn Rüsen advém desta discussão, pois, ao propor a
articulação teoria/didática da história, o autor defende
que a consciência histórica é o conjunto de “operações
mentais com as quais os homens interpretam sua experiência
da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma
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tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática
no tempo” (Rüsen, 2001: 45).
Para Rüsen, os níveis ou tipos de consciência
histórica são relacionados à vida prática, e (re)significá-
los através do aprendizado histórico seria construir a
“competência prática de empregar o conhecimento histórico
na análise, no julgamento e no tratamento dos problemas do
presente” (Rüsen, 2010: 45). Se forem empreendidas
perguntas e respostas nesta direção, o passado pode ser
“apropriado produtivamente” e então, “se tornar um fator de
determinação cultural da vida prática” (Rüsen, 2010: 44). O
passado, embora seja o foco, não pode desprender-se do
presente e do futuro, já que se situar em uma temporalidade
implica em intencionalidades. Uma forma histórica de
interpretar a realidade pode “atualizar os potenciais
racionais” para o reconhecimento, adoção e defesa de
convicções e pretensões (Rüsen, 2010: 102) no sentido de
produzir ações que possibilitem a mudança de si e do mundo,
o que subentende uma perspectiva de futuro. A partir disto,
a Educação Histórica investiga a consciência histórica, o
conhecimento histórico, o pensamento histórico ou a cultura
histórica, mais especificamente no ambiente escolar. Os
resultados da investigação servem ao propósito de
“otimizar” o conhecimento histórico, seja do aluno, seja do
professor, e tem um fundo político, na medida em que a
intencionalidade direcionada à produção do futuro são
baseadas na consciência histórica (Rüsen, 2001: 32).
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Enquanto que a pergunta-base nas pesquisas mais
tradicionais sobre ensino de história centravam em como
motivar alunos para a aprendizagem de história, ou como
utilizar estratégias/recursos didáticos para atingir bons
resultados, ou ainda, quais as atividades didático-
pedagógicas de um ensino de história de sucesso, a
problemática posta pela vertente da Educação Histórica
corre no sentido de responder sobre como os alunos e
professores compreendem a história (Barca, 2009: 12), e
mais: sobre para que serve aprender história. Embutidas
nesta questão estão outras: para saber como os alunos
aprendem história ou sobre como os professores ensinam
história, preciso partir dos saberes que o aluno já tem
sobre história; preciso saber também dos saberes que os
professores de história apresentam (saberes históricos,
pedagógicos e experienciais) e é necessário saber qual o
significado que os alunos e professores de história dão
para o conhecimento histórico (O que é? Para que serve? É
importante ou não?).
Em outras áreas do conhecimento, o mesmo princípio é
fundamental, isto é, faz-se necessário indagar para que
serve determinado conhecimento para a vida do aluno, no que
ele pode ser utilizado no interesse de dar conta da
realidade.
Segundo Isabel Barca, esta linha de investigação busca
uma “observação sistemática do real”, não se centrando nos
“formalismos e recursos da aula”, embora estes sejam também
importantes, mas nas “ideias históricas de quem aprende e
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ensina”. Em última instância, o que se tem em meta é a
qualidade do ensino de história, ou seja, as práticas em
sala de aula (Barca, 2008: 24).
Em síntese, os pesquisadores deste campo, investigam
como alunos e/ou professores pensam, como agem, como
vivenciam seu cotidiano escolar, destacando o
ensino/aprendizagem de história. Também se considera que
“os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas
no ensino de História, mas nos mais diversos e complexos
contextos da vida concreta dos aprendizes...” (Rüsen, 2007:
91), e, desta forma se subentende que o aluno e o professor
dominam saberes históricos provindos de múltiplas esferas
sociais, não necessariamente circulantes apenas nas
instituições educacionais. Em suas vivências, os alunos tem
acesso, principalmente com a mídia, a vários tipos de
conhecimento. Por isso a pesquisa em Educação Histórica
procura levantar quais são estes saberes, na medida em que
um novo conhecimento se origina a partir de conhecimentos
anteriores e a meta é tornar mais elaborados os modelos de
interpretação da história. O levantamento noções,
representações, crenças, dos sujeitos escolares apenas é
importante se o objetivo último é prospectivo, ou seja, a
reflexão e a ação a partir dos dados investigados, − então
categorizados e analisados −, servirem ao propósito da
reflexão e da ação, para empreender mudanças significativas
no ensino/aprendizado.
1.2. O Novo Paradigma Educativo da História
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Tive contato com os escritos de Carlos Barros através
da tradução de um artigo intitulado O modelo da Educação
Histórica: experiência de inovação para a educação básica elaborado por
Gerardo Mora e Rosa Ortiz Paz para ser publicada na revista
História & Ensino4. Posteriormente, traduzi um texto de
Carlos Barros, publicado na mesma revista, intitulado
Memória, História e Franquismo5. A partir disto, tive acesso às
discussões realizadas no âmbito da Historia a Debate por meio
de textos, eventos e vídeos disponibilizados no site6. Em
especial o texto Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la
historia (2007), me ajudou na reflexão sobre qual é a função
do ensino e aprendizado histórico na contemporaneidade.
Discutir sobre esta temática está diretamente associado às
competências do professor de história.
Deparo-me no cotidiano do meu trabalho7 com alguns
estudantes universitários que realizam o estágio em
História apenas para cumprir um componente curricular.
Parece não haver um engajamento em relação ao ensino e
aprendizagem histórica, o que talvez aconteça pelo fato de4 Disponível emhttp://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/issue/view/820(Acesso em 10 de setembro de 2014)5 Disponível emhttp://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/issue/view/978(Acesso em 10 de setembro de 2014)6 Disponível em http://www.h-debate.com/ (Acesso em 10 de setembro de2014)7 Sou professora do curso de graduação em História da UniversidadeEstadual de Londrina, trabalhando com disciplinas ligadas ao ensino eaprendizagem histórica, Metodologia e Prática do Ensino de História eEstágio Supervisionado. Além disso, sou professora da pós-graduação,primeiro, durante um bom tempo da especialização em História e Ensino,e no momento do Mestrado em História Social, na linha de pesquisaHistória e Ensino. Portanto, meu trabalho está vinculado à preocupaçãocom a formação do profissional da história, ou seja, professor dehistória e historiador.
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que os cursos de graduação em História venham priorizando
uma abordagem historiográfica que podemos denominar de
relativista em que “o fato como categoria chegou a ser
definido como mera operação linguística, como se ele fosse
algo a que, por razões pragmáticas, o historiador estivesse
obrigado a outorgar credibilidade” (Bustamante, 2011:157).
Desta forma, toda construção do passado é considerada uma
questão de discurso, de retórica ou estética, ou ainda, uma
representação, e assim não haveria possibilidade de
“decidir, dentre as interpretações possíveis de um texto,
qual seria definitivamente a melhor” (Bustamante,
2011:157), na medida em que o sujeito que o produziu
empreende a operação historiográfica conforme seu contexto
histórico e códigos culturais baseados em classe social,
gênero, etnia, religião, etc. Enfim, nesta perspectiva,
“algo é verdadeiro para alguns, mas não para todos”
(Bustamante, 2011:158).
Este tipo de concepção traz problemas para o
historiador, e de certo, também para professor de história,
pois esta crítica à racionalidade do conhecimento histórico
termina por questionar não apenas a relevância da história,
mas de seu ensino. Se a história é uma questão de retórica,
se não há possibilidade de verdade histórica, porque
ensinar e aprender história? Isto nos reporta a pensar
qualquer área do conhecimento. O futuro professor, seja de
qual matéria for, precisa pensar sua prática, refletir
sobre sua função social, sobre a importância do que ensina.
Se o saber é simplesmente transmitido e o aluno torna-se
10
mero sujeito passivo do conhecimento, para que serve este
ensino?
Carlos Barros levanta outra questão: se de um lado
temos este relativismo, de outro temos alguns grupos
reivindicando a verdade histórica, mas estas correntes
parecem cumprir do mesmo modo a despolitização da história
e de seu ensino. Para Carlos Barros se apela ao “retorno ao
positivismo” quando se quer defender um ponto de vista, na
tentativa de impor sua “Verdade” e à ideia sobre a história
como versões diferentes e igualmente válidas quando se quer
amenizar ou relativizar alguns fatos passados como, por
exemplo, as Ditaduras8. A verdade que se quer, - diz Barros
-, no caso espanhol, é de que a violência, a ditadura e a
ideologia próprias do franquismo sejam “esquecidas” em prol
de uma abordagem higienizada de seus efeitos
antidemocráticos nefastos (BARROS, 2007)9.
8 No Brasil, ocorre algo parecido: alguns grupos, inclusive dehistoriadores, entendem que a Ditadura Militar brasileira (1964-1985)não foi algo tão dramático assim, e que os militares e os civis que osapoiavam tinham seus motivos para defendê-la, motivos estes tãoválidos como daqueles que resistiram a este sistema político. Nestalinha de pensamento, no Brasil, a exploração indígena da época dacolonização aos tempos atuais, a escravização de negros, a violênciacontra a mulher, a Ditadura, o nazismo, entre outras temáticas, sãovistas como passíveis de desmonte, no sentido de mostrar que “nãoforam ou não são tão ruins assim”. E também, nos últimos anos, se tementendido que a classe trabalhadora como um todo, ou seja, aquelesujeito da base da pirâmide social esteja enfatizando demais suasituação de miserabilidade ou de pobreza, para então angariar osbenefícios das políticas públicas.9 São estas questões postas que nos fazem novamente recorrer a JörnRüsen, que ao falar da história como relativismo e a história comoverdade, argumenta que a objetividade e a narratividade são partesdiferentes, porém inter-relacionadas e estruturantes do discursohistórico (Rüsen, 2010: 132). E ainda: Se a objetividade é extremada,pode-se “cientifizar” ou “racionalizar” a história de tal forma que opesquisador termina se distanciando da vida prática (Rüsen 2010: 25),tornando seu discurso autorreferente, como se esta disciplina se
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Neste intricado procedimento que relativiza o
conhecimento histórico através da defesa de “outras
verdades”, diz-se que a história deve priorizar fatos,
datas, informações, de forma neutra. Se a história depende
de “ponto de vista”, seria melhor, segundo este
neopositivismo, destacar em sala de aula as informações,
supostamente destituídas de posicionamentos políticos ou de
julgamentos. Contudo, estas “outras verdades” subentendem
claras intenções políticas. Da mesma forma, podemos então
questionar: Se a história ou qualquer outra matéria é uma
questão de apenas informação, porque ensiná-la se o aluno
pode buscar tais informações em outros meios muito mais
atraentes, como a internet? Há como ser neutro na história
e em seu ensino?
Com este referencial, chego à conclusão de que não
existe a verdade na história, mas que podemos nos aproximar
desta, e que esta aproximação carrega sim, uma perspectiva
política, um projeto social, que pode ou não, ser pautado
nos princípios democráticos da justiça, igualdade e
compreensão da alteridade. Em consequência, o professor de
história não tem como ser neutro, e assim, deve ter uma
competência política, ou seja, de crítica histórica baseada
em tais princípios. Bons métodos, bons recursos didáticos,legitimasse “pela sua mera existência” (Rüsen, 2010: 27). Por outrolado, enfatizar a narratividade, implica em relativizar o discursohistórico (Rüsen, 2010: 131). Segundo este autor, há que encontrar umequilíbrio entre objetividade e narratividade, em que a racionalidademetódica na pretensão de verdade e as formas de apresentação dahistória envolvendo estética e retórica, são componentes intrínsecos àconstrução do discurso histórico, independente do tipo de destinatário(Rüsen, 2007: 28-31). O autor é categórico ao dizer que história não éficção, pois seu objetivo é tecer interpretações históricas que tenhamintenção de aproximação com a verdade.
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ou seja, competência técnica não garantem um ensino e
aprendizagem com a qualidade que defendo.
Como visto acima, tanto a Educação Histórica como o
Novo Paradigma Educativo da História podem ser campos
associados às preposições de Jörn Rüsen e Paulo Freire. A
relação entre a história como busca da verdade e a história
como busca de uma questão de ponto de vista, trato no item
três quando falo da empatia e da multiperspectividade. A
seguir, considero a metodologia histórica quando pensada
para a escola e consequentemente, como competências
imprescindíveis de os futuros professores de história
desenvolverem.
2. Construir o conhecimento a partir do princípio
investigativo
Como dito, literacia histórica é o termo referente à
construção de um modo específico de “ler” o mundo em acordo
com a ótica da história. Seria um letramento, uma
alfabetização própria da história, um raciocínio histórico,
e que, por isso mesmo, parte de procedimentos relativos à
história (Lee, 2006). Para construir este letramento
histórico, esta compreensão histórica do mundo e de si
mesmo – que Paulo Freire chama de conscientização10 – ,10 “Entende-se como conscientização como aquilo que traz adesmistificação de muitos problemas que acontecem pela falta de umasimples leitura. Tais descobertas provocam uma consciência reflexivaque tende ao comprometimento da transformação. Estas transformaçõessurgidas da conscientização dos homens e das mulheres se tornamalfabetizados e críticos mediante a sociedade em que vivem e não meros
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considero fundamental o levantamento do conhecimento prévio
do aluno; o trabalho com fontes documentais em sala de
aula; os conceitos substantivos e estruturais (ou de
segunda ordem); a capacidade de argumentação ou de
apresentar o conhecimento histórico; a empatia histórica e
o reconhecimento de que a natureza do conhecimento é
multiperspectivada. A seguir, consideraremos estes tópicos,
deixando os dois últimos para o item três.
2.1. Conhecimento prévio dos agentes escolares: de qual
problematização partir?
Não podemos restringir a necessidade de levantamento
sobre o conhecimento prévio do aluno somente à história.
Todo sujeito adquire conhecimentos extraescolares que podem
estar no campo da matemática, da linguagem, da sociologia,
da filosofia... Existe no chamado “senso-comum”, saberes
que podemos denominar de “populares” que não estão de todo
longe dos saberes científicos. Por sua vez, em alguns temas
temos certas “crenças” que vão contra o saber científico. É
a partir dos conhecimentos prévios dos alunos que se
realiza o planejamento didático-pedagógico, pois conheço o
sujeito com o qual estou lidando em sala de aula. Freire
busca transformar o que chama de consciência ingênua do
repetidores de palavras. Este é o fim do projeto que o métodofreiriano tem como proposta. Diferenciando-se do método tradicionalpor ser do tipo depósito onde o professor, somente ele, é dono de todoo saber e o aluno, ausente de luz, sendo, portanto, incapaz deconstruir saber”. SOUSA, Marcel Alcleante Alexandre de. (2011)Conscientização: A proposta de Paulo Freire para a educação. Partes.Disponível emhttp://www.partes.com.br/educacao/artigos/paulofreire.asp
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aluno em consciência crítica, para que o sujeito aja e
pense como instrumento social (FREIRE, 2003, 2007)
Como já mencionado, são importantes para o campo
investigativo da Educação Histórica, as protonarrativas ou
protoconhecimentos dos sujeitos escolares, isto é, os
conhecimentos ou saberes prévios, ou tácitos: “... do latim
Tacitus e quer dizer: sem ser expresso de um modo formal;
que se subentende”. Pensando tal palavra relacionada ao
domínio da Educação Histórica, seria “o conhecimento que os
alunos adquirem antes ou até mesmo depois do contacto com o
ensino formal. É deste modo um conhecimento muito pessoal
incorporado na experiência dos alunos, envolvendo factos,
crenças, emoções, perspectivas, intuições e até
habilidades” (Barbosa, 2006: 10).
Os conhecimentos anteriores (quer dizer, as teorias enoções já construídas) funcionam como marcoassimilador a partir do qual se outorgam significadosa novos objetos de conhecimento. Na medida em que seassimilam novos significados a este marco, este mesmovai de modificando e enriquecendo. (Aisenberg, 1994:138)
Se os conhecimentos prévios dos alunos são apreendidos
pela pesquisa, possibilita-se uma “potencialização” da
aprendizagem, pois estes conhecimentos prévios são marcos a
partir do qual os alunos darão significado aos conteúdos
oiu saberes escolares.
A vivência cotidiana do aluno, seus contatos pessoaiscom familiares, amigos, a interação com a mídialevam-no a formular conceitos espontâneos que carecemde forma de explicitação a ser construídas no
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processo de aprendizagem formal. Nesse processo, osmesmos instrumentos que levam à construção dosconceitos espontâneos podem ser retomados para acaminhada em direção à construção dos conceitoscientíficos (Abud, 2005: 312).
Uma abordagem mais “cognitivista”, como de Ausubel,
também considera que só se aprende, ou melhor, apenas se
produz uma “aprendizagem significativa”, se os saberes
trabalhados na escola forem relacionados (ancorados) aos
saberes que já se tem, então adquiridos no cotidiano do
aluno. Segundo Ausubel, os saberes prévios dos alunos são
informações e recursos introdutórios, uma vez que tem a
função de servir de ponte entre o que o aluno já sabe e o
que ele deve saber para que o conteúdo possa ser realmente
aprendido de forma significativa. O levantamento do saber
prévio do aluno também é um elemento atrativo, visando
provocar o interesse e desejo de aprende (AUSUBEL, 2003).
O ensino tradicional, pautado na memorização, na aula
expositiva que apresenta uma história-verdade, priorizando
fatos, nomes e datas, pressupõe que o aluno chegue “vazio”
de conhecimentos, e em razão disso, o conhecimento seja
exposto pelo professor para que ele assimile, o que Freire
chama de “educação bancária” – o professor depositaria o
conhecimento na cabeça de seu aluno –. Seria desprezar o
caráter social do conhecimento histórico a favor de uma
erudição (Barros, 2007: 4). Já a noção de que a
aprendizagem histórica deva partir do conhecimento prévio
do aluno, entende que este conhecimento não é certo e nem
errado, mas que são importantes para que o aluno faça esta
“ancoragem”, reelaborando, por vezes superando ou mesmo16
criando outros conhecimentos. Nesta perspectiva, a escola
não mais teria a função de ensinar, mas sim, como diz Maria
Auxiliadora Schmidt, seria um “espaço de experiência
(individual e social) dos sujeitos do conhecimento”
(Schmidt, 2009: 11). A escola não mais “depositaria” o
conhecimento no educando, mas colocaria o conhecimento em
construção conjunta entre professores e alunos.
Em sala de aula, evidentemente, antes de cada tema a
ser trabalhado, não há como o professor elaborar e aplicar
uma pesquisa fundamentada em instrumentos, metodologias e
recursos adequados para colher o conhecimento prévio do
aluno e assim, planejar suas aulas11. Porém, há como
iniciar a unidade temática com perguntas aos alunos em uma
situação de diálogo. Aplicar um questionário sobre o tema
ainda é uma sugestão, desde que se não imponha a ideia de
que o aluno deve responder o “correto”, mas sim o que sabe
sobre o assunto. Uma problematização, em forma de pergunta,
pode ser lançada para iniciar o trabalho didático-
pedagógico, por exemplo: A Ditadura Militar no Brasil ainda
tem desdobramentos em nossos dias? O brainstorming também
pode ser usado: pergunta-se uma palavra que defina ou que
11 O levantamento do conhecimento prévio do aluno quando pensado para apesquisa, em geral, também pode pode ser realizado por intermédio deum questionário ou de entrevista. Um instrumento de pesquisa pode seraplicado em sala de aula, mas também, o pesquisador pode recorrer àobservação. A realização da pesquisa pela observação ocorre em contatodireto dos pesquisadores com o objeto/sujeito de pesquisa e com autilização de técnicas que se aproximam da pesquisa etnográfica,documentando ações, interações e representações que permeiam ocotidiano da prática escolar (André, 1995: 41). O que significaarticular o empirismo da coleta de dados com a participação efetiva nocampo de investigação, bem como produzir documentos históricos atravésda História Oral (entrevistas) para produção da História do TempoPresente (Alberti, 2005: 158).
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vem à mente sobre determinado assunto. Se um aluno diz algo
incoerente, como por exemplo, “democracia” em relação à
Ditadura, isto não é destacado como erro, mas tratado como
noção que se deve superar na construção da literacia
histórica.
Esta competência refere-se ao conhecimento sobre quem
é o aluno, o que ele pensa, o que ele precisa saber. É o
ponto de partida para que o professor selecione uma
problematização. O método Paulo Freire12 vai nesta
orientação também com a chamada “etapa de investigação”,
quando se busca conjuntamente, o professor e o aluno, as
palavras e temas mais significativos, as “carências” ou
problemas da vida do aluno, de acordo com seu universo
vocabular e da comunidade onde ele vive. A temática da aula
decorre desta etapa, com as palavras ou temas, denominados
“geradores”. Nessa fase ocorrem as interações de
aproximação e conhecimento mútuo, bem como a anotação das
palavras da linguagem dos membros do grupo, respeitando seu
linguajar típico.
Desta forma, o currículo de história provém, não da
legislação curricular, mas do interesse dos alunos, sendo
que “Somente uma escola centrada democraticamente no
seu educando e na sua comunidade local, vivendo as
suas circunstâncias, integrada com seus problemas,
levará os seus estudantes a uma nova postura diante
dos problemas de contexto” (FREIRE, 2003: 85). O12 São várias as obras de Paulo Freire. Ver site com obras em portuguêse espanhol para download: http://acervo.paulofreire.org/xmlui/search?fq=location.coll%3A12 http://acervo.paulofreire.org/xmlui/search?fq=location.coll%3A12
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caminho pode ser duplo: lançar uma palavra, por exemplo,
“Ditadura”, e a partir das respostas dos alunos,
desenvolver a unidade temática considerando o local em que
o aluno vive (Houve Ditadura na cidade? Como seus
habitantes a vivenciaram? Existe documentação sobre o fato
na cidade?) ou se o problema vivenciado pelo aluno em sua
cidade é, por exemplo, uma fábrica de papel que emprega a
maioria dos seus pais, o tema gerador pode ser “Trabalho”.
A partir das palavras geradoras, pode-se criar
situações existenciais, inseridas na realidade local,
que devem ser discutidas com o intuito de abrir
perspectivas para a análise crítica consciente de
problemas locais, regionais e nacionais: se existiu
Ditadura na cidade do aluno, ele conhece alguém que a
protagonizou e pode entrevista-lo? Existe acervo na
cidade sobre o tema que pode ser verificado? Ou ainda:
há a possibilidade de visita a uma fábrica para se ver
como trabalham seus funcionários? Há como saber o
montante de empregos gerados, assim como de riqueza
gerada ao dono?
Todas as matérias, referentes às ciências humanas
ou às ciências exatas, podem seguir este método de
problematização através de um tema gerador. No caso de
Paulo Freire, este foi pensado para a alfabetização,
do qual adaptamos aqui para história. Quando se diz
conhecimento prévio do aluno, não apenas as noções
sobre determinada matéria são interessantes de serem
19
averiguadas. No início do ano letivo, é recomendável o
professor saber qual o contexto em que a escola está
inserida, quais as condições socioeconômicas dos seus
alunos, em termos de renda familiar, estrutura
familiar, se já trabalham, se moram com os pais, se já
possuem sua própria família. Também o universo
cultural é importante: livros, filmes, música, lazer,
sites, programas de TV, etc. que sejam prediletos.
Algumas correntes pedagógicas dizem que este
procedimento é “partir da realidade do aluno”, mas
temos que ter em mente que devemos chegar em algum
lugar. Estas informações devem integrar o fazer
didático-pedagógico, no interesse de fazer com que o
aluno supere, sofistique ou reelabore de forma mais
satisfatória, suas noções e sua realidade.
2.2. Como se chega a determinado conhecimento?
Porque a equação para se calcular um triângulo é “A =
(h.b)/2”? Um ensino tradicional coloca como pronta a
fórmula e só resta aos alunos, aplicá-la. Se eu sei como os
matemáticos chegaram a tal equação, eu compreendo os
procedimentos, a metodologia, e assim, fica mais fácil de
usá-la, sem ter que recorrer à mera memorização. O educando
deve ter “meios para o pensar autêntico, porque recebendo
as fórmulas que lhes damos, simplesmente as guarda. Não as
incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de
algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de
20
procura. Exige reinvenção” (FREIRE, 2007: 104-105). Uma
reação química fica mais esclarecida se a faço em
laboratório ou ao misturar os ingredientes de um bolo. Na
filosofia, como pensamos filosoficamente? Neste item, o
destaque é para a afirmação de que o professor precisa
saber a epistemologia do campo de conhecimento em que
ministra suas aula para possibilitar a construção do
conhecimento.
Para Peter Lee, a literacia histórica demanda um
“compromisso de indagação” com as “marcas de identificação”
da história, como “passado”, “acontecimento”, “evento”,
“causa”, “mudança”, etc., “o que requer um conceito de
evidência” (Lee, 2006: 136). Isabel Barca entende que a
aprendizagem da história implica em “uma leitura
contextualizada do passado a partir da evidência fornecida
por variadíssimas fontes” (Barca, 2006: 95). Também para
Carlos Barros: “Educar con fuentes, y uma bibliografia
mínima, comporta a estas alturas uma triple actualización
historiográfica: enseñar la historia como una ‘ciencia com
sujeto’, procurar aprocinaciones globales y analizar el
presente a la manera de los historiadores” (Barros, 2007:
19).
Assim, o uso escolar do documento histórico também é
uma metodologia didático-pedagógica importante, porque
atada à investigação histórica: “os documentos não serão
tratados como fim em si mesmos, mas deverão responder às
indagações e às problematizações de alunos e professores”
(Schmidt; Cainelli, 2009: 117). A utilização da fonte
21
documental remete ao fundamento do método histórico, aos
processos necessários à construção do conhecimento
histórico, seja pelos historiadores, seja pelos professores
e alunos em sala de aula: “É preciso construir juntamente
com a criança os meios para que ela entenda os
procedimentos da construção historiográfica e como o
historiador analisa os vestígios nos documentos para
escrever história” (Cainelli; Tuma, 2009: 212).
Seria própria da alfabetização histórica “ler fontes
históricas diversas, com suportes diversos, com mensagens
diversas”, considerando suas intenções, sua validade, bem
como o cruzamento com outras fontes e mensagens (Barca,
2004: 133). A análise crítica de fontes em sala de aula
produz a capacidade de “transpor” tal análise para os
materiais culturais com os quais o sujeito se depara no
cotidiano, o que dizer que a literacia histórica tende a
ultrapassar os muros da escola, adquirindo propósito e/ou
sentido para sua vida prática. Em outras palavras, este
sentido para a vida prática, não significa utilizar o
conhecimento de forma utilitarista, mas sim, articular
reflexão e ação, de modo que se construa o coletivo
democrático.
Em sala de aula, as questões levantadas às fontes
documentais, são as mesmas que aquelas levantadas pelos
historiadores: Quem fez [este objeto, imagem, HQ, música,
poema, filme, carta, etc.]? Quando fez? Para quem fez? Com
qual intenção fez? Quem teve acesso? Qual o suporte? Onde
está hoje? Outros documentos eram contrários na época?
22
Outros documentos foram produzidos pelo mesmo autor?
Francisco César Ferraz (1999) sugere para o trabalho com
uma fonte imagética que podem ser adaptadas para outras
fontes e servem tanto ao historiador como ao professor-
investigador/seus alunos. Apenas o professor-investigador
saberá selecionar as perguntas à(s) fonte(s) conforme o
grau de dificuldade de sua turma.
Quadro – Algumas problematizações possíveis num documento
visual
Procedência de umaimagem
Quem fez? Onde? Quando? Para quem? Onde ficou?Houve alguma forma de exposição pública? Comofoi sua recepção? Como foi sua conservação? Qualera a posição do(s) autor(es) da imagem nasociedade? E do(s) seu(s) destinatário(s)? Éassinada? É dedicada a alguém? Encontra-sealguma inscrição no corpo da imagem ou no verso(fotografia)?
Finalidade de umaimagem
Por quem foi feita? Para quem? Sua finalidadefoi bem sucedida? Seguiu um padrão anterior oufoi original? Qual sua importância para asociedade em que se originou? Sua conservaçãoatendeu aos desígnios de sua elaboração econfecção? Houve alteração posterior em suaforma e/ou conteúdo?
Tema ouAssunto
Qual o título? É um tema original ou seguiumodelo anterior? Existem temáticas secundárias?Como se articula(m) com a principal? Existempessoas retratadas? Quem é/são? Quais são seusatributos? Que estão fazendo? Como se vestem?Existe alguma hierarquização no(s) tema(s)?Quais são os objetos retratados? Como elesaparecem? Qual a sua função dentro do tema?
23
Pertencem às pessoas retratadas? Quais osatributos da paisagem? Relacionam-se com aspessoas retratadas? Relacionam-se com os objetosretratados? Qual é o tempo retratado (dia/noite;calor/frio; estação do ano;sol/claridade/névoa/chuva? Existe indício detempo histórico retratado? Que práticas sociaiso conteúdo iconográfico é capaz de abordar?
EstruturaTécnico-Formal
Qual é o suporte (tela, parede, rocha, cartão,papel, chapa fotográfica, pôster, etc.)? Quaisforam as técnicas e os materiais utilizados?Houve inovação ou utilizaram-se técnicas e/oumateriais conhecidos? Como se estrutura suacomposição? Qual o papel desempenhado peladistribuição das cores, dos tons e dasluminosidades? Existe alguma hierarquizaçãoformal? O aspecto formal intensifica ouenfraquece o entendimento temático? Qual oestilo adotado? Houve intenção de aproximaçãocoma realidade? Existe alguma articulação entreo estilo e a sociedade retratada ou procedênciado autor?
Simbolismo
Existem simbolismos identificáveis? Quais são?Permitem várias interpretações? Havia condiçõespara os coetâneos à imagem identificarem ossimbolismos? O(s) autor(es) escreveu(eram) algoa respeito de possíveis interpretações daimagem? Como se articulam os simbolismos com otema?
Respeitando-se a faixa etária do aluno, para a
aprendizagem histórica através dos mesmos procedimentos do
historiador, pode ser feita com as três perguntas básicas
das quais nos fala Hilary Cooper (2012: 34), até mesmo para
24
crianças pequenas, na fase inicial da aprendizagem
histórica:
1) Conhecimento prévio: O que sei sobre isto [pessoa, objeto,
música, filme, imagem, HQ, carta, etc.]?
2) Levantamento de hipóteses: O que posso adivinhar sobre
isto? e
3) Problemática/pesquisa: O que gostaria ou preciso saber
sobre isto?
Há que se destacar que este trato com as evidências
não implicam necessariamente na construção de um
conhecimento histórico destituído de uma interpretação, e
que esta por sua vez, implica em valores.
Novamente, vale lembrar que aqui damos exemplo da
história, mas outras matérias podem ser pensadas da mesma
forma. E outra coisa: crianças pequenas também podem ser
inseridas no processo de construção do conhecimento. O
exemplo mais contundente é quando se aprende a somar e a
subtrair, em que se usam objetos para a demonstração. Ao
construir o conhecimento sobre fração repartindo um bolo, a
criança tem a prática, a experiência da fração. Aprender
não é só experimentar, mas ter acesso à metodologia de
determinado conhecimento, tendo a investigação como
princípio investigativo. Segundo Freire “[...] aprendam,
sobretudo, a aprender. A identificar-se com a sua
realidade” (FREIRE, 2003: 85). Assim, a educação crítica
seria aquela “que levasse o homem a uma nova postura diante
25
dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A da pesquisa
ao invés da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos
e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de
vida” (FREIRE, 2007: 101).
2.3. Os conceitos substantivos e estruturais (ou de segunda
ordem)
Toda aprendizagem envolve um processo mnemônico, mas
os conceitos são compreendidos/construídos gradualmente, a
partir da relação com os conceitos prévios que o sujeito
comum adquire na sua experiência (Barca, 2004: 137). Os
conceitos históricos substantivos são recortes
temporais/geográficos da história, e estão mais vinculados
às informações históricas ou conteúdos históricos, por
exemplo: Revolução Francesa, Feudalismo, Renascimento,
Guerra de Canudos, Revolução Industrial, Ditadura Militar,
etc.
O livro didático de história e alguns currículos de
história são organizados com base nestes conceitos
substantivos. Mesmo a história temática, como por exemplo,
“Trabalho”, traz uma organização interna pautado em uma
cronologia: trabalho nas sociedades comunais, trabalho
escravo, servidão, trabalho assalariado, etc. Porém, todo
conceito substantivo não existe em estado puro, ou seja,
sem que conceitos de meta-história (conceitos estruturais
ou conceitos de segunda ordem) estejam subentendidos. No
entanto, geralmente, o estagiário ou o professor de
história se preocupa apenas com esta ordem de conceitos, o
26
que implica no destaque às informações atadas aos nomes e
datas. Não que uma cronologia histórica de acontecimentos
na medida em que uma contextualização histórica se faz
necessária para discutir um recorte temático. Aqui as
perguntas poderiam ser, em relação à Ditadura Militar, por
exemplo: Quando ocorreu Ditadura Militar? Como iniciou?
Qual sua duração? Quais episódios mais marcantes? Quais são
os agentes que podem ser destacados neste processo?
Os conceitos de segunda ordem são constitutivos da
cognição histórica, isto é, dizem respeito aos fundamentos
teóricos e metodológicos da história, à natureza do
conhecimento histórico, entre outros: explicação histórica,
fontes e evidências, consciência histórica, inferência,
imaginação histórica, interpretação, narrativa, etc. Tais
conceitos também são ligados à noção temporal, como
mudança, permanência, evolução e transição (Lee, 2001).
A construção de uma literacia histórica ocorre na
interdependência entre os conceitos substantivos e os
conceitos de segunda ordem. Por exemplo, se o conceitos
substantivo é “Ditadura Militar”, posso problematizar este
tema realizando uma relação passado-presente com a
pergunta: A censura realizada naquele período é mesma que
ocorre hoje? Qual o significado de “democracia” para aquele
período? Todos concordam com aquele sistema político? Quem
eram os agentes da Ditadura e quem eram os agentes da
resistência à mesma? Hoje temos defensores de uma Ditadura
Militar no país?
27
Outras perguntas podem ser realizadas, mas sempre
entendendo que o passado não acaba completamente, pois
sempre somos resultado de um passado. A história é um
processo dinâmico, em que ocorrem mudanças, mas também
permanências. A literacia histórica se constrói neste
sentido, o passado problematizado implica na
problematização do presente e vice-versa. Estas
problematizações são importantes para realizar o futuro.
Vale lembrar que estas indagações acima sugeridas precisam
ser instigadas pelo uso escolar da evidência, da fonte
histórica (jornais, filmes, música, etc.)13.
É a partir destas evidencias que os alunos podem
mobilizar a metodologia da história para produzir
conhecimento histórico sob orientação do professor. Desta
forma, a evidência não é apenas fonte histórica, mas também
recurso didático, já que está sendo explorada em sala de
aula na construção do saber histórico escolar e não como
mera ilustração ou confirmação do que fala o professor.
Este procedimento de problematização histórica, quando
internalizado, faz com que o aluno veja e faça a realidade,
para além da sala de aula, ou seja, temas, fatos, discursos
que se apresentam no cotidiano, podem ser desnaturalizados,
historicizados, desmontados criticamente por intermédio da
metodologia própria da história.13 O período é rico em fonte histórica e outras estão sendo descobertasno Brasil no momento com a “Comissão da verdade”. O relatório “BrasilNunca Mais” pode ser uma ótima indicação de conjunto de fonteshistóricas. Ver site:http://www.armazemmemoria.com.br/cdroms/producaocdrom/01/index.htm(Acesso em 10 de setembro de 2014). Ver livro: BRANDÃO, AntônioCarlos; DUARTE, Milton Fernandes. Um relato para a história. Brasil NuncaMais. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1985.
28
Do mesmo modo, se internalizo a matemática, as normas
da linguagem, a filosofia, etc., posso mobilizá-las no
cotidiano, posso colocar a meu serviço qualquer tipo de
conhecimento. Assim, o saber escolar não se torna algo
distante da vida. Todas as matérias apresentam conceitos
substantivos e conceitos estruturantes. Os primeiros, quase
sempre ao nível das informações, e que, portanto, podem ser
facilmente descartados. Já os conceitos estruturais são
aquele que são internalizados, que “ficam” e podem ser
usados.
2.4. Formas de apresentação do conhecimento
Também integra a aprendizagem, a capacidade de
apresentar, divulgar, comunicar os “resultados” do
conhecimento produzido. Isabel Barca resume: seria
“exprimir a sua interpretação e compreensão”, ou seja, a
história aprendida, “utilizando a diversidade dos meios de
comunicação atualmente disponíveis” (Barca, 2004: 134).
Toda forma de conhecimento precisa ser externalizada, para
que o educando tenha condições de criar uma narrativa
coerente do que aprendeu.
Para Rüsen, quando empreendemos uma narrativa
histórica – que aqui estamos entendendo como forma de
apresentação da história – damos significado/sentido
histórico às nossas experiências (Rüsen, 2012: 37), por
isso a narrativa histórica seria uma “operação mental
constitutiva” (Rüsen, 2010; 43). Portanto, fazer com que o
aluno apresente de algum modo uma narrativa sobre o que foi
29
aprendido, implica em dar condições para que este demonstre
mudanças conceituais, explicações, interpretações,
relações, argumentações, sistematizações,
contextualizações, etc. É a competência narrativa que
“constitui a qualificação à qual todo aprendizado histórico
está, ao fim e ao cabo, relacionado” (Rüsen, 2010: 47).
Esta narrativa pode ser de diferentes formas enão apenas em
história: escrita, desenho, filme, teatro, etc.
Segundo Ivo Mattozzi (2004), a narração é uma forma de
discurso em que se ordena o passado, e implica em
representar o processo histórico pautado nas mudanças e
permanências. Seria uma ideia de “continuidade”, de relação
entre passado, presente e futuro “tornando-se história”
(Rüsen, 2012: 39). A descrição também não pode ser
excluída, porque é um tipo de narrativa, porém, precisa ser
superada pela argumentação, explicação e problematização.
O debate, a discussão, o confronto de
perspectivas/narrativas, “o movimento entre sujeitos
diferentes”, também devem integrar a construção do
aprendizado histórico ou de qualquer outro aprendizado na
medida em que implica na “intersubjetividade discursiva, em
uma relação aberta de comunicação racional-argumentativa”
(Rüsen, 2010: 48).
Há que se considerar que hoje, o universo cultural da
criança e do jovem engloba canais midiáticos e virtuais.
Isso aponta para a construção de uma cognição mais
complexa, inclusive com maior capacidade de sistematização
de informação, e disso o ensino de história não pode se
30
omitir, ao contrário, deve aproveitar, complexificando e
inter-relacionando níveis, fatores e atores, através de
diversas fontes, comparando aquelas divergentes, ensaiando
explicações coletivas (Barros, 2007: 19), diversos tipos de
recursos didáticos. Então, a necessidade de tomar estes
materiais como fonte ou acervo de fontes, mas igualmente,
de utilizá-los como recurso de divulgação dos debates
empreendidos em sala de aula ou de espaço próprio de
debates extraescolar: blogs, vídeos, sites, comunidades
virtuais, etc. A socialização de exercícios, de tarefas
didático-pedagógicas, de bibliografia, dica de filmes, de
sites, pode ser realiza pelo blog da turma como forma de
adequar-se ás habilidades que o nosso aluno adquiriu no
mundo virtual.
3. A natureza multiperspectivada do conhecimento
Saber o que pensa, quem é e o que quer nosso aluno,
mostrar como chegamos a determinado conhecimento pela
metodologia, construir conceitos específicos de determinada
matéria, apresentar uma narrativa argumentativa e/ou
sistematizada de variadas forma sobre o se aprendeu, não
garante um ensino e aprendizado de qualidade.
No caso da história, embora o uso escolar do documento
histórico nos reporte aos procedimentos que o historiador
considera para construir a escrita da história, e sirva ao
propósito de mostrar ao aluno como o conhecimento histórico
é construído, isto não basta para construir uma literacia
31
histórica. Nos currículos da década de 90 dos quais já
destacamos seu caráter tecnicista, enfatiza-se apenas o
trabalho com fontes em sala de aula, ou seja, apenas a
metodologia, e não o “conteúdo” ou o significado histórico
que as fontes podem mostrar. Neste item desenvolvo a
questão da empatia e da multiperpesctividade como aspectos
integrantes da construção da literacia histórica.
Igualmente, não podemos restringir a necessidade
de levantamento sobre o conhecimento prévio do aluno
somente à história. Todo sujeito adquire conhecimentos
extraescolares que podem estar no campo da matemática,
da linguagem, da sociologia, da filosofia... Existe no
chamado “senso-comum”, saberes que podemos denominar
de “populares” que não estão de todo longe dos saberes
científicos. Por sua vez, em alguns temas temos certas
“crenças” que vão contra o saber científico. É a
partir deles que se realiza o planejamento didático-
pedagógico.
3. 1. Empatia Histórica
Segundo Juliano da Silva Pereira (2012) o conceito de
empatia foi cunhado no século XIX por Rudol Lotze para
caracterizar a habilidade que o público tem em se projetar
no objeto artístico. Posteriormente, tal conceito foi
assumido pela psicanálise, no sentido do psicoterapeuta
compreender as emoções e razões dos atos de seu paciente.
Para a literacia histórica, enfatiza-se o componente
32
cognitivo da empatia, que refere à capacidade de
compreender os sentimentos, perspectivas, noções, ideias de
outra pessoa, do passado ou do presente. Peter Lee diz que
poderíamos substituir a palavra “empatia” por
“compreensão”. Mais precisamente: “compreensão histórica”,
que não é um sentimento, “Embora envolva o reconhecimento
de que as pessoas possuem sentimentos” (Lee, 2003: 20).
Tomo aqui o conceito de empatia em seu duplo: como
compreensão do Outro na história e como compreensão do
Outro em sala de aula. No trabalho pedagógico, o professor
precisa ter esta empatia para com seu aluno, compreendendo
porque aquele sujeito pensa daquela forma. Realizado o
levantamento do conhecimento prévio do aluno, eu posso ter
acesso ao que ele pensa, mas a explicação sobre o porquê
ele pensa daquela forma, só o professor pode realizar. Esta
compreensão é necessária, para que eu possa realizar o
trabalho pedagógico através da interação, do diálogo.
No caso do aprendizado histórico, entender o processo
histórico, no curso do tempo, seria construir e reconstruir
identidade(s) – a consciência de si –, na relação com o
“Outro” – a alteridade –, estabelecendo “um quadro
interpretativo do que experimenta como mudança de si mesmo
e de seu mundo...” (Rüsen, 2001: 58)14. A construção de
identidade implica na construção da alteridade, e mais do14 Rüsen chama a atenção para três dimensões que o raciocínio históricorequer: a competência interpretativa, que significa conectarsignificados e sentidos com a realidade presente (Rüsen, 2007: 111-117), de ver “o passado no presente”. Esta “competência” reporta àvinculação do entendimento do passado com “acertar no futuro”demonstrando uma competência orientativa, em que situar-se no tempoentendendo o fluxo da experiência capacita a tomada de posição o quesempre implica em construção de valores e ao mesmo tempo, de práticas.
33
que isto, uma forma de “se colocar no lugar do Outro”
(empatia) para entender e respeitar o que este Outro pensa,
objetiva, necessita, vivencia, rejeita, admira, questiona,
etc. Porém, mais do que se colocar no lugar do Outro, com a
empatia “a nossa compreensão histórica vem da forma como
sabemos como é que as pessoas viram as coisas, sabendo o
que tentaram fazer, sabendo que sentiram os sentimentos
apropriados aquela situação” (Lee, 2003: 21).
Em sala de aula, o Outro é o aluno, e uma aprendizagem
de qualidade só pode ocorrer quando me familiarizo com
este, quando me aproximo de seu repertório sociocultural.
Nós, como adultos, costumamos nomear o Outro, o aluno,
dizer quem ele é, sem que façamos um exercício de empatia
capaz de quebrar a hierarquia professor-aluno.
Peter Lee entende que a empatia histórica seria a
capacidade dos alunos reconstruírem os objetivos, os
valores, as crenças do Outro, aceitando que estes podem ser
diferentes dos seus. O autor destaca a empatia histórica
como “disposição” (reconhecimento de que ações e
pensamentos são próprios de um contexto histórico) e como
“realização” (compreensão da intenção dos sujeitos nas
ações humanas em outro contexto temporal) (Lee, 2003: 20-
21). Sempre lembrando que ensinar e aprender história é
“saber entender – ou procurar entender – o “Nós” e os
“Outros”, em diferentes tempos, em diferentes espaços”.
(Barca, 2005: 16). A empatia histórica remete à compreensão
contextualizada do Outro que viveu no passado, mas também
do Outro que vive no presente e predispõe a problematização
34
e contextualização do Eu inserido no mundo e na interação
com os outros. E assim, podemos pensar a empatia pedagógica
como esta compreensão contextualizada do aluno, de sua
realidade.
Através da análise das fontes históricas, o sujeito
pode desenvolver a empatia histórica, já que as fontes
mostram modos diferentes de perceber uma realidade,
conforme a época, lugar, sexo, geração, classe social,
religião, etnia, etc. Enfim, segundo os códigos culturais
daquele que produziu o documento histórico. No contraste
com fontes diversas, da mesma época e lugar, ou mesma época
e lugares diferentes, ou de épocas diferentes e mesmo
lugar, o “investigador” pode reconhecer que não existe
apenas uma perspectiva, de que a escrita da história como
retrato fiel da realidade é impossível. Em um movimento
tensional, a literacia histórica como forma específica de
“ler” o mundo e a si mesmo, pressupõe que valores,
comportamentos, crenças, objetivos, concepções, são
construídos historicamente, ou seja, devem ser
contextualizados, desnaturalizados, vistos de modo
empático. Ao mesmo tempo, a forma de “ler” o mundo
historicamente também é plural e provisória, pois o
conhecimento histórico é de natureza multiperspectivada
(Barca, 2001: 30), assim como outras formas de
conhecimento.
3. 2. Multiperspectividade
35
Os alunos devem entender que não existe uma história
única, que a escrita da história está condicionada ao
contexto histórico, aos interesses políticos e sociais, às
posições do historiador. A escrita da história é contínua,
plural e coletiva, e envolve também crenças e imaginação
(Barros, 2007: 19). Assim como existe a
multiperspectividade até mesmo nas ciências exatas, como na
física, em que diferentes teorias podem ser contrapostas.
Mesmo que se entenda que a natureza do conhecimento
histórico é multiperspectivada, há que se considerar que
nem toda “versão histórica” pode ser aceita como válida
(Barros, 2007: 22). Segundo Isabel Barca, existe uma
multiplicidade de perspectivas em história, devido aos
pressupostos e contextos diferenciados de produção
histórica. Porém, ao contrário da abordagem relativista,
entendo que existem critérios intersubjetivos de validação
das produções historiográficas, entre eles, o mais
consensual seria o da “consistência da evidência”. São as
fontes que fornecem indícios sobre o passado, diferenciando
uma abordagem ficcional da histórica (Barca, 2001: 30).
Peter Lee ainda nos alerta que compreender o Outro, ter
empatia, nem sempre significa aceitá-lo ou compartilhar de
sua cultura (Lee, 2003: 20).
Argumenta Rüsen, que na historiografia existe um tipo
de “objetividade” e poderíamos estender isso ao ensino e
aprendizado histórico. Porém, alerta o autor, que deve
haver a intersubjetividade, o consenso que algo aconteceu
realmente ou que algo deve ser considerado antiético
36
(Rüsen, 1996: 98). A objetividade compreende a coerência
teórica, que se refere à reconstrutibilidade histórica
pelas fontes e a coerência prática que pressupõe
plausibilidade, o convencimento pelo argumento e não pela
força, na comunidade de historiadores (Rüsen, 1996: 96-97).
Mas o maior regulador desta intersubjetividade seria a
categoria de igualdade (ou alteridade). Uma categoria,
segundo o autor, universal, e assim, as diferenças devem
ser compreendidas, explicadas, porém, todo modo de viver,
pensar e agir do passado que fere a igualdade (ou a
alteridade), não pode ser considerado adequado, porque não
pode servir para moldar práticas e representações do
presente e do futuro (Rüsen, 1996: 97)15.
Nesta direção, conforme a faixa etária dos alunos é
possível um ensino de história fundamentado na
historiografia, com as seguintes questões: Como o
historiador chegou a determinadas questões? Quais
evidências o historiador apresentou para chegar a
determinada conclusão? Existem outras perspectivas sobre o
mesmo assunto? O livro didático de história configura a
única versão? Em qual versão o livro didático de história
se baseia? Esta ordem de questões implica não somente ao
trato com fonte histórica em sala de aula, mas também com15 Também Bustamante corre na mesma direção: os enfoquesdesconstrucionistas ou relativistas foram importantes quando havia anecessidade de desmontar a história única, eurocêntrica, maniqueístas,porém, no momento, o objetivo de aproximação com a verdade implica no“a busca do reconhecimento, de coexistência, de dignidade, e derespeito entre os sujeitos sociais” (Bustamante, 2011: 171), daí que“sem a verdade como categoria, não existe possibilidade deestabelecer, dentre as diversas interpretações, a mais correto”(Bustamante, 2011: 172), pois “nenhuma história deve ser aceita àscegas” (Bustamante, 2011: 175).
37
textos historiográficos que podem não apenas contextualizar
historicamente um período, mas mostrar que existem
diferentes interpretações sobre o mesmo assunto.
Em outras matérias, também é necessário entender
que existem diferentes perspectivas. É mister entender que
o conhecimento é acumulado, e que embora algumas teorias
não nos sirvam mais na atualidade, não podem ser
descartadas. A física quântica não pode desprezar a física
clássica, apesar de rechaça-la em alguns pontos, assim como
a história não pode esquecer que muitas informações sobre
acontecimentos passados já tiveram sua existência
comprovada, mas são passíveis de serem reinterpretados.
Então temos duas questões que devem ser compreendidas: a
história da matéria que se ministra, com suas abordagens
diferentes produzidas no decorrer do tempo e o conflito de
abordagens que ocorrem no mesmo momento histórico e que
professor precisa tomar uma posição para escolher a mais
plausível cinetificamente. Além do mais, não seria profícuo
que os alunos considerem a história como apenas uma questão
de ponto de vista: “Eles precisam de exercitar um
pensamento crítico, de aprender a seleccionar respostas
mais adequadas sobre o real, passado e presente” (Barca,
2001: 30).
Conclusão
A literacia histórica, − abarcando a otimização dos
conhecimentos históricos adquiridos de forma extraescolar,
38
a análise de fontes em sala de aula, a construção de
conceitos históricos, o desenvolvimento da empatia, da
noção da história como de natureza multiperspectivada e a
construção de narrativas históricas −, quando
internalizada, produz algumas capacidades: de análise
crítica em relação aos materiais culturais com os quais o
sujeito se depara na vida prática, a noção de identidade e
alteridade, a compreensão do Outro para além da tolerância
(já que tolerar seria aguentar, suportar o Outro, “apesar”
de ele ser diferente) e a
reelaboração/superação/otimização/melhoria dos saberes
históricos adquiridos fora da escola.
Sobretudo, o aprendizado está relacionada com a vida
prática: “aprendizagem é estimulada quando as situações-
objecto de conhecimento se apresentam significativas, com
sentido pessoal” (Barca, 2009: 13). Para Peter Lee, no
contexto do ensino de história, é admissível a noção de
“passado prático”, o passado deve então “servir” para a
vida do aluno, o conhecimento histórico pode permitir que o
presente faça sentido (Lee, 2008: 20).
A teoria da história e a didática da história carecem,
diz Rüsen, de convergir na mesma fundamentação – a vida
prática –, o que quer dizer que, tanto em uma como na
outra, deve-se partir da mesma problemática, a de situar-se
na temporalidade que abarca a duração, a mudança, de modo a
orientar-se no tempo construindo e reconstruindo a
consciência histórica (Rüsen, 2007: 91-93). Por
conseguinte, empreendendo “a compreensão do mundo e de si”
39
em um processo de formação da identidade (Rüsen, 2007:
101), rumo a um “engajamento” ou tomada de posição
(sustentando valores) junto com ações (atuando em
sociedade) em relação à vida prática, o que se denomina
“práxis” (Rüsen, 2007: 102).
Para Freire, a educação desvinculada da vida, mas
centrada na palavra, esvazia a realidade o que tolheria o
desenvolvimento da criticidade e conscientização,
indispensável à democratização (FREIRE, 2007: 102).
O saber histórico dos historiadores não é visto por
Rüsen, como algo que deveria ser reproduzido ou
simplificado em sala de aula, o que ele critica como sendo
“didática da cópia” (Rüsen, 2001: 89), o que já era
questionado por outros pesquisadores, em especial por
Chervel (1990), como a “transposição didática” do saber
acadêmico para o espaço escolar. Pensar que a ciência de
referência é transposta para o universo escolar através de
uma forma “vulgarizada”, reduziria a questão da formação do
professor de história “na profissionalização pedagógica
como a mera obtenção de competência técnica em sala de
aula, com o que os termos ‘aplicação’ e ‘mediação’ fazem
sentido” (Rüsen, 2001: 90). Nesta linha da “transposição
didática”, se o conhecimento já está dado, necessitando
apenas ser exposto aos alunos, a formação docente se
cumpria apenas com o estudo das matérias relacionadas aos
conceitos substantivos.
Como a proposta é a construção o conhecimento em sala
de aula, a profissionalização do professor significa o
40
desenvolvimento das capacidades ou competências técnicas e
valorativas, aqui mencionadas, no sentido de possibilitar a
mobilização também dos conceitos estruturantes do
conhecimento. O estudante de história, o futuro professor
de história, precisa ele mesmo desenvolver a capacidade
historiográfica, ele mesmo saber como se escreve sobre o
passado, mediante determinados pressupostos teóricos e
metodológicos, para que depois, em sala de aula, empreenda
com seus alunos as mesmas capacidades: “¿como vamos enseñar
a los alumnos a ‘pensar historia’ si nosotros no lo
praticamos?”. Por isso, “la investigación y la enseñanza
son, o deberían ser fases consecutivas e interrelacionadas
de um mismo processo de conocimento histórico” (Barros,
2007: 3).
Neste sentido, o conhecimento é construído ativamente
pelos sujeitos em sala de aula, sendo que o professor não é
aquele que simplesmente reproduz o conhecimento, ou ainda,
que media ou facilita o conhecimento. O professor como mero
mediador abre a guarda para uma maior poder da esfera
administrativa (Barros, 2007: 9). Da mesma forma, a
construção do conhecimento não pode ficar apenas ao cargo
do aluno, pois, os resultados coletivos dependem do
professor (Barros, 2007: 10), ou seja, a aproximação da
verdade através da análise das evidências históricas, no
caso do aprendizado histórico, apenas o professor poderia,
partindo de sua formação historiográfica e pedagógica,
orientar. Orientar no sentido de escolher as fontes
compatíveis com seus objetivos de ensino, assim como os
41
textos de apoio, as práticas e dinâmicas pedagógicas, a
forma em que se darão os debates (Barros, 2007: 23). Em
outras palavras, o professor que sabe da epistemologia da
área de conhecimento da qual ministra suas aulas, a
realidade da escola e do aluno, tem condições de construir
sua autonomia e provocar em seus alunos a mesma situação de
agente ou protagonista do conhecimento. É na autonomia no
ato da construção do conhecimento que nunca é individual
que o sujeito internaliza a democracia como práxis.
A multiperspectividade das interpretações é inerente
ao conhecimento, o que significa que os profissionais da
história não tem uma única explicação para o passado – nem
para o presente –. O ensino e a pesquisa em história sempre
foram campos em que os debates são acolhidos, mesmo porque,
também integra a forma histórica de ver o mundo (literacia
histórica), a capacidade de argumentação. Contudo, o que
precisa ser evidenciado é o fato de que o professor de
história precisa pensar seu fazer em acordo com os
princípios de uma sociedade de ética democrática, que preza
a justiça, igualdade e compreende a alteridade.
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