"Boaventura e a filosofia: o ensino universitário", in Oliveira, P. E. (org.) Filosofia e...

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F FILOSOFIA E E EDUC A AÇ APROXIMAÇÕES E CONVERGÊNCIA A Paulo Eduardo de Oliveira (organizador) AÇ ÇÃO A AS

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FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇAAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAA

Paulo Eduardo de Oliveira (organizador)

AÇÇÃÃOO AASS

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FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÕÕEESS EE CCOONNVVEERRGGÊÊNNCCIIAASS

Paulo Eduardo de Oliveira (organizador)

Círculo de Estudos Bandeirantes 2012

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Com a educação presente, o homem não atinge plenamente a finalidade da sua existência. [...] Podemos trabalhar num esboço de educação mais conveniente e deixar indicações aos pósteros, os quais poderão pô-las em prática pouco a pouco.

Immanuel Kant

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Copyright © 2012

Todos os direitos desta edição reservados ao CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES

OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.) Filosofia e educação: aproximações e convergências / Paulo Eduardo de Oliveira (org.). Curitiba: Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012. ISBN 978-85-65531-01-6 1. Filosofia. 2. Educação. 3. História da Filosofia. 4. Filosofia da Educação. Inclui bibliografia.

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CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná Fone: (41) 3222-5193 http://www.pucpr.br/circuloestudos/ Presidente: Prof. Dr. Clemente Ivo Juliatto Diretor: Prof. Sebastião Ferrarini Conselho Editorial Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI Prof. Dr. Jean Lauand – USP Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França) Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP

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Nota do Organizador A sequência dos capítulos obedece, na medida do possível, a própria cronologia dos pensadores aqui contemplados. Esta mesma sequência é utilizada para a apresentação da breve biografia dos respectivos autores dos capítulos, na sessão Sobre os Autores. Procurou-se, ao longo de toda a obra, dar certa homogeneidade aos formatos das citações e referências bibliográficas utilizadas. Contudo, respeitou-se também o estilo de cada autor e, sobretudo, tomou-se o cuidado para manter as peculiaridades na forma de citação dos textos clássicos da Filosofia que, em muitos casos, não se alinham às normas técnicas vigentes. As notas de rodapé têm numeração sequencial em toda a obra, independentemente do capítulo, de modo a manter a unidade do trabalho.

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SSUUMMÁÁRRIIOO

AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO [[1100]] SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS [[1133]]

AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[1199]] Barbara Botter SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE

EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE [[3322]] Ricardo Tescarolo AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS EE OO

““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR”” [[4422]] Rogério Miranda de Almeida TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA [[5577]] Jean Lauand BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO [[7744]] Eduardo Vieira da Cruz MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[110000]] Celso Martins Azar Filho DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO [[112211]] Ethel Menezes Rocha

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LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[114444]] Gustavo Araújo Batista KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[116622]] Vera Cristina de Andrade Bueno RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS EE DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS [[117788]] Ericson Falabretti HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[119988]] Luiz Fernando Barrére Martin AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO

FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[220088]] Samuel Mendonça GGOOTTTTLLOOBB FFRREEGGEE EE OO EENNSSIINNOO DDAA MMAATTEEMMÁÁTTIICCAA [[223399]] Lafayette de Moraes Carlos Roberto Teixeira Alves NNIIEETTZZSSCCHHEE:: PPAARRAA UUMMAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA DDAA AAMMIIZZAADDEE [[225566]] Jelson Roberto de Oliveira FFRREEUUDD EE OO IIMMPPOOSSSSÍÍVVEELL OOFFÍÍCCIIOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[228866]] Fátima Caropreso EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, VVIIDDAA EE CCOOTTIIDDIIAANNOO:: UUMMAA LLEEIITTUURRAA AA PPAARRTTIIRR DDAA

PPRRAAGGMMÁÁTTIICCAA DDEE LLUUDDWWIIGG WWIITTTTGGEENNSSTTEEIINN [[330000]] Bortolo Valle GGAASSTTOONN BBAACCHHEELLAARRDD:: EESSPPÍÍRRIITTOO DDEE EESSCCOOLLAA EE SSOOCCIIEEDDAADDEE [[332299]] Fábio Ferreira de Almeida

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FFOOUUCCAAUULLTT,, AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE AASS RREESSIISSTTÊÊNNCCIIAASS AAGGOONNIIZZAANNDDOO AA

MMÁÁQQUUIINNAA PPAANNÓÓPPTTIICCAA [[334455]] Gilmar José De Toni RREEFFLLEEXXÕÕEESS AA PPAARRTTIIRR DDOO TTEEXXTTOO ““RRAACCIIOONNAALLIIDDAADDEE EE

RREEAALLIISSMMOO”” DDEE JJOOHHNN SSEEAARRLLEE [[336677]] Kleber Bez Birollo Candiotto SSAARRTTRREE,, EEXXIISSTTEENNCCIIAALLIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO [[338899]] Daniela Ribeiro Schneider CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS SSOOBBRREE AA IINNFFLLUUÊÊNNCCIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA

GGRRAAMMSSCCIIAANNAA NNOO PPEENNSSAAMMEENNTTOO DDEE DDEERRMMEEVVAALL SSAAVVIIAANNII [[440055]] Célia Kapuziniak ÉÉTTIICCAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO:: UUMMAA RREEFFLLEEXXÃÃOO AA PPAARRTTIIRR DDAA NNOOÇÇÃÃOO DDEE

CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO FFAALLÍÍVVEELL EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR [[442222]] Paulo Eduardo de Oliveira

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AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO O empenho filosófico destina-se não somente à

compreensão do mundo e do homem, mas também, ainda que implicitamente, à educação deste mesmo homem, cuja vida se desenrola na relação com o mundo. A prática educativa, por sua vez, encerra em seu interior uma determinada visão do homem e do mundo e, portanto, inclui uma posição filosófica definida, mesmo que tal posição nem sempre seja objeto da consciência dos atores envolvidos no processo educativo. Não se pode negar, portanto, as íntimas relações que se estabelecem entre Filosofia e Educação. Trata-se, certamente, não de sobreposições ou interferências arbitrárias, mas, isso sim, de mesclas teórico-conceituais que se foram tecendo juntas (o que corresponde ao sentido literal da palavra complexo ou complexidade), como os diferentes fios que se juntam para constituir uma única peça.

Dos antigos gregos aos filósofos dos nossos dias, percebem-se muitas trilhas de aproximação entre os distintos campos do saber filosófico e da ciência pedagógica, evidenciando-se, desse modo, as possibilidades inauditas de entrecruzamento e de diálogo, de convergências e de aproximações entre os habitantes destes dois espaços de teorização-compreensão da vida, do homem e do mundo. Dos Pré-Socráticos a Popper, os mais destacados filósofos também se dedicaram, de uma forma ou de outra, a atividades de ensino e docência; por outro lado, a maior parte dos grandes pensadores da educação, como Rousseau, Vygotsky, Piaget,

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Gramsci e Paulo Freire, por exemplo, também se revestiu de uma bagagem filosófica significativa.

Os ensaios reunidos neste volume estão assentados, precisamente, nesta perspectiva dialógica e convergente entre Filosofia e Educação. Objetivam, desse modo, servir aos intelectuais que se dedicam aos dois campos do saber, porque são filósofos-educadores ou educadores-filósofos. Destinam-se, ainda, aos estudantes de Filosofia e de Educação que, no esforço rigoroso e específico de suas áreas de investigação, sentem a necessidade de compreender sempre mais as interconexões entre o amor ao saber e a dedicação em educar. Não se trata de uma obra que encerra todas as questões nem que apresenta uma visão exaustiva de toda a história do pensamento filosófico em suas relações com o saber pedagógico. Mesmo assim, tem-se aqui uma abordagem bastante ampla de toda a filosofia, dos filósofos pré-socráticos aos pensadores atuais, em 22 diferentes perspectivas.

Como o leitor poderá verificar, na sessão Sobre os Autores, os co-autores desta obra têm a mais alta qualificação em seus respectivos campos de investigação, o que confere a este trabalho um elevado grau de profundidade dos temas tratados. Quero ressaltar, ainda, que todos estes co-autores são profissionais profundamente comprometidos ao mesmo tempo com a Filosofia e com a Educação, não só na tarefa de elaboração teórica destes dois campos, mas na própria atividade profissional de pesquisa e de ensino.

A cada um dos co-autores, quero manifestar minha mais profunda gratidão por todo o empenho na construção desta obra coletiva. Sem a presença generosa de cada um deles, este livro seria apenas mais um habitante do mundo da utopia. Mas, em razão de seu comprometimento, esta obra tornou-se realidade e, hoje, pode ser oferecida ao público brasileiro.

Agradeço também ao Círculo de Estudos Bandeirantes, Órgão Cultural afiliado à Pontifícia Universidade Católica do

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Paraná, que acolheu este trabalho para publicação. Ressalto, com esta referência, que o Círculo de Estudos Bandeirantes, nas primeiras horas do século XX, foi a instituição responsável pelo surgimento das primeiras escolas superiores de Filosofia em Curitiba e no Estado do Paraná, contribuindo para fazer nascer a Universidade Federal do Paraná e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Esta entidade é um exemplo vivo do quanto a Filosofia e a Educação andam de mãos dadas nas trilhas da história.

Fazemos votos de que as propostas aqui apresentadas sejam como sementes plantadas em terreno fértil, permitindo que brotem novos horizontes para a Filosofia e para a Educação neste nosso país, tão carente de ambas.

Prof. Paulo Eduardo de Oliveira Pontifícia Universidade Católica do Paraná

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SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS

BBAARRBBAARRAA BBOOTTTTEERR Licenciada em Filosofia e Doutorado em Filosofia Antiga pela Universidade Ca’Foscari de Veneza, desenvolvido em co-tutel na Universidade Charles de Gaulle-Lille III. Pós-doutoramento na Universidade de São Paulo. Foi Professora da PUC-Rio entre os anos de 2008 a 2010. RRIICCAARRDDOO TTEESSCCAARROOLLOO Possui doutorado em Educação pela USP, mestrado em Educação pela PUC-SP, graduação em Letras Português-Inglês e em Pedagogia. É professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCPR, onde também exerce o cargo de Pró-Reitor Comunitário. RROOGGÉÉRRIIOO MMIIRRAANNDDAA DDEE AALLMMEEIIDDAA Doutor em filosofia pela Universidade de Metz e em teologia pela Universidade de Estrasburgo, ambas na França. É professor no programa de Pós-Graduação de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor de filosofia na FASBAM (Faculdade São Basílio Magno) e de teologia sistemática no Studium Theologicum, em Curitiba.

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JJEEAANN LLAAUUAANNDD Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. Fundador e Presidente do CEMOrOc – Centro de Estudos Medievais Oriente e Ocidente, do EDF-FEUSP. EEDDUUAARRDDOO VVIIEEIIRRAA DDAA CCRRUUZZ Possui doutorado em Filosofia e mestrado em História da Filosofia pela Université de Paris IV; tem ainda mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo e graduação em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. CCEELLSSOO MMAARRTTIINNSS AAZZAARR FFIILLHHOO Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense e Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como Pesquisador Convidado pela École Normale Supérieure de Lyon em 2009 e em 2011, e é líder do Laboratório de Estudos Renascentistas (LERen-UFF). EETTHHEELL MMEENNEEZZEESS RROOCCHHAA Possui graduação pela PUC-Rio, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorado pela Boston University e pós-doutorado pela Yale University. Atualmente é Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro de corpo editorial e revisora de periódico da Revista Analytica (UFRJ).

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GGUUSSTTAAVVOO AARRAAÚÚJJOO BBAATTIISSTTAA Professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Uberaba-MG. Professor titular da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Fundação Carmelitana Mário Palmério, em Monte Carmelo-MG. Possui graduação nas áreas de Letras e Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pela qual também é Mestre em Educação; Doutor em Educação pela UNICAMP, tem pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. VVEERRAA CCRRIISSTTIINNAA DDEE AANNDDRRAADDEE BBUUEENNOO Possui graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia pela PUC-Rio; tem doutorado em Filosofia e Estética das Formas pela Université de Paris X, Nanterre, e pós-doutorado na University of Pennsylvania. Atualmente é professora assistente da PUC-Rio. EERRIICCSSOONN FFAALLAABBRREETTTTII Possui graduação em Filosofia pela UFPR, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é Professor Titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. LLUUIIZZ FFEERRNNAANNDDOO BBAARRRRÉÉRREE MMAARRTTIINN Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo, graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Filosofia e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professor da Universidade Federal do ABC.

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SSAAMMUUEELL MMEENNDDOONNÇÇAA Samuel Mendonça tem doutorado em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é Professor Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas. É assessor científico da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. LLAAFFAAYYEETTTTEE DDEE MMOORRAAEESS Possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo, graduação em Matemática pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, especialização em Filosofia e mestrado em Filosofia (Lógica) pela Universidade de São Paulo. Tem doutorado em Filosofia (Lógica) pela PUC-SP e pós-doutorado pela Universidade de Munchen. Atualmente, é professor titular da PUC-SP e da Faculdade São Bento. CCAARRLLOOSS RROOBBEERRTTOO TTEEIIXXEEIIRRAA AALLVVEESS Mestre em Filosofia pela PUC-SP, pesquisando na área de lógica, em especial “semântica da verdade” de Alfred Tarski. Atualmente, é professor no Colégio de São Bento, no Colégio Mundo Atual e da Escola Estadual Joaquim Eugênio Lima Neto, em São Paulo. JJEELLSSOONN RROOBBEERRTTOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR, onde é coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia. Autor de vários artigos publicados em revistas especializadas e dos livros A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010) e Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011), entre outros.

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FFÁÁTTIIMMAA CCAARROOPPRREESSOO Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Mestre em Filosofia e Metodologia das Ciências e Doutora em Filosofia pela mesma instituição. Realizou estágio de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. BBOORRTTOOLLOO VVAALLLLEE Possui graduação em Filosofia e Especialização em Filosofia da Educação e em Didática do Ensino Superior pela PUC-PR. Tem mestrado em Filosofia e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente, é Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, e docente do UNICURITIBA e da FAVI. FFÁÁBBIIOO FFEERRRREEIIRRAA DDEE AALLMMEEIIDDAA Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás; doutorado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desenvolvido em co-tutel com a Université de Bourgogne-França. GGIILLMMAARR JJOOSSÉÉ DDEE TTOONNII Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, Bacharel e Licenciado em Filosofia e Licenciado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Atualmente é professor da Universidade Federal da Integração Latino Americana.

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KKLLEEBBEERR BBEEZZ BBIIRROOLLLLOO CCAANNDDIIOOTTTTOO Possui graduação em Filosofia e Especialização em Ética pela PUCPR; mestrado em Educação pela mesma universidade e doutorado em Filosofia pela UFSCar. Co-autor dos livros Filosofia da linguagem, Filosofia da Ciência e Fundamentos da pesquisa científica, pela Editora Vozes, e do livro Da psicologia às ciências cognitivas, pela editora CRV. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. DDAANNIIEELLAA RRIIBBEEIIRROO SSCCHHNNEEIIDDEERR Psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Educação, Doutora em Psicologia Clínica, Pós-Doutora pela Universidade de Valência (Espanha), autora de vários capítulos de livros e artigos sobre psicologia existencialista, saúde mental, álcool e outras drogas. Autora do livro Sartre e a Psicologia Clínica (Editora da UFSC, 2011). CCÉÉLLIIAA KKAAPPUUZZIINNIIAAKK Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Foi professora de Filosofia da PUCPR. É co-autora de Docência: uma construção ético-profissional (Papirus). PPAAUULLOO EEDDUUAARRDDOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA Doutor e Mestre em Filosofia das Ciências Humanas pela PUCSP, com Pós-Doutorado pela UFPR. Graduado em Filosofia pela PUCPR e especialista em Filosofia Política pela UFPR. Atualmente, é professor titular do Departamento de Filosofia da PUCPR. Autor de Introdução ao pensamento de Karl Popper (Champagnat, 2010, em parceria com o Prof. Bortolo Valle); Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper (Paulus, 2011).

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Capítulo 1 AA PPEEDDAAGGOOGGIIAA AANNTTEESS DDAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA

Barbara Botter

FILOSOFIA, PEDAGOGIA E POLÍTICA: UMA UNIDADE

O título deste capítulo carrega uma ambiguidade: ao falar da pedagogia antes da pedagogia, falamos de que exatamente? Pretendemos tratar de uma pedagogia que, afastada de nós o suficiente para ser considerada só filosofia, ainda assim não abandona as características peculiares que a definem como pedagogia, compartilhando conosco um mesmo ethos e um mesmo território conceitual? Ou, antes, vamos nos ocupar de um conjunto de ideias, de noções, de sentidos e de valores que nasceram na Grécia Antiga e que serão utilizados para definir e delimitar o âmbito conceitual da hodierna pedagogia? Na verdade, uma e outra coisa: ao falar da pedagogia na primeira ocorrência do termo mencionado no título, falamos da paideia grega que se sobrepõe à filosofia e continua a viver na pedagogia contemporânea (segunda acepção do termo) como repertório de pensamentos e ações.

No período da Grécia clássica, filosofia, educação, antropologia e política coincidem. A filosofia grega não precisou criar uma nova disciplina chamada pedagogia, pois a convergência entre os dois pensamentos era algo natural. A filosofia é pedagógica e a pedagogia é filosófica, assim como a filosofia-pedagogia é política e a política é filosófico-

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pedagógica. A educação de um indivíduo perpassa as finalidades da retórica ou da matemática, pois o objetivo maior concentra-se no desenvolvimento das potencialidades do homem em si e como indivíduo da Polis. Esta convicção pode ser vista neste trecho da República de Platão.

- A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual se aprende. Como um olho que não fosse possível voltar das travas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado juntamente com a alma toda das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não? - Chamamos. - A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, 1993, 518 C-D).

Somente na época atual a filosofia e a pedagogia se

definem como processos distintos. Na sua origem, a filosofia é propriamente um projeto educativo; num segundo momento, a filosofia fornece os fundamentos do projeto pedagógico e a pedagogia vira uma consequência do progresso filosófico; num terceiro momento, a filosofia assume a tarefa crítica relativa às teorias educacionais (PAVIANI, 2008, p. 5-25).

Para entender esta evolução da relação entre filosofia e educação, é necessário voltar ao passado e à figura dos antigos filósofos.

É importante compreender em que grau dependemos dos conhecimentos herdados dos antigos, ao invés de achar que o passado, por simples necessidade cronológica, não vive conosco. Na realidade, nosso entendimento do passado, além de ser um acontecimento cristalizado no tempo, é também a vivência do passado em nós, através do nosso jeito de pensar e

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se comportar. Dessa maneira, a paideia1 dos antigos se manifesta em nós como atitude de agir e de raciocinar. Herdamos uma forma de reflexão que foi inaugurada pela filosofia, isto é, um jeito de procurar as respostas para aquelas questões “relevantes” que os gregos também consideraram importantes. Em primeiro lugar, destaca-se a importância que damos à razão, considerada pelos filósofos o instrumento para buscar e compreender o elemento responsável (aitia) pelos acontecimentos naturais e pelas ações humanas. É importante lembrar que o exercício da razão rende o homem independente do recurso à tradição, a qual tem autoridade apenas pelo fato mesmo de ser tradição e por não aceitar ser colocada em dúvida. A relevância da tradição perde progressivamente a supremacia com as invasões dos povos vindos do norte da península balcânica, por volta do século XII antes de Cristo e, com isso, perde importância a figura do basileus, o rei, exaltada nos versos da Ilíada e da Odisséia. Uma vez emudecidas as palavras do rei, e com elas a verdade depositada na tradição, os discursos míticos, poéticos e religiosos deixam de satisfazer as exigências pedagógicas dos gregos. Essa carência é o que fará os homens procurarem outros caminhos e buscarem perguntas que nunca precisaram ser feitas antes: qual é a origem de todas as coisas? O que é o homem? Como o homem deve se comportar na cidade?

Os pré-socráticos e os sofistas contribuíram para a formação do novo homem, nascido das cinzas da tradição, o qual repõe a fé apenas na autoridade do logos, na dúplice acepção que este termo possui, isto é, de razão e de discurso. Enquanto detentor da razão, o homem não recorre à palavra indiscutida dos deuses; enquanto detentor do discurso, o homem compartilha a sua palavra com os outros homens e se torna animal politicus.

1 A palavra paideia foi criada pelos Sofistas para indicar a natureza do seu ensino.

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O NOVO JEITO DE OLHAR PARA O MUNDO

Os pré-socráticos descobriram aquela maneira de olhar para o mundo que é a maneira científica ou racional. Viam o mundo como algo ordenado e inteligível, cuja história obedecia a um desenvolvimento explicável, organizado, compreensível. O mundo não é considerado um conjunto arbitrário de partes ou de eventos, nem responde a uma ordem determinada apenas pela vontade e pelo capricho da divindade. O mundo natural tem a sua ordem intrínseca, a qual é suficiente para explicar a sua estrutura. As explicações dos pré-socráticos são marcadas por três características: são internas, isto é, explicam o universo a partir das características que o constituem; são sistemáticas, isto é, explicam todos os eventos empregando os mesmos termos e métodos; são econômicas, isto é, empregam poucos conceitos e poucas operações. Os filósofos pré-socráticos não são personagens inúteis na gênese da elaboração de uma nova imagem do homem. Com isso, não estamos dizendo que todos os argumentos que eles apresentaram foram bons argumentos, nem isso nos parece algo relevante. O que nos parece relevante é que os pré-socráticos apresentaram “argumentos” sobre o cosmo, o homem e o convívio dos homens na cidade.

Os primeiros filósofos enfatizaram o domínio da faculdade racional. A razão é a faculdade capaz de estabelecer relações lógicas, isto é, de dar conta dos fenômenos naturais e antropológicos através da busca pelas causas. Ao alcançar este objetivo, a razão produz inferências. A inferência manifesta em primeiro lugar as razões, revela as causas e indica o responsável pelo efeito experimentado. Da inferência deriva a ciência demonstrativa, a saber, o processo de conhecimento que não se satisfaz apenas com a apreensão da existência dos fatos, mas também toma conta do porquê, dos motivos de sua existência.

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Embora seja exato afirmar que a filosofia introduz os fundamentos da paideia, do ethos e da episteme ocidentais, ou seja, do jeito de viver, de portar-se e de compreender característicos do Ocidente europeu, ela mantém um atributo que lhe é essencial e que desapareceu na época atual. A filosofia é a apreensão desinteressada da natureza. O historiador Heródoto, que viveu no século V a.C., narra uma primeira manifestação da atividade filosófica da seguinte forma. Heródoto narra o encontro de Sólon, o legislador de Atenas (VII-VI a.C.), um dos que são denominados Sete Sábios, com Creso, o rei de Lídia. Creso dirige-se a Sólon nestes termos: “Meu caro ateniense, a notícia da tua sabedoria e de tuas viagens chegou até nós. Não ignoro absolutamente que, por amar a sabedoria (philosopheon), percorreste muitos países, por causa de teu desejo de conhecer”. Naquele momento, o que representava a filosofia eram as viagens que Sólon realizou e que tinham como fim conhecer, adquirir vasta experiência da realidade e dos homens, descobrir países e costumes diferentes. Tal experiência pode fazer daquele que a possui um bom juiz nas coisas humanas e um homem apto ao convívio social.

Filosofia é o desejo pelo saber em si mesmo de uma maneira desinteressada e engloba tudo o que se refere à cultura intelectual. A filosofia é um bios, um estilo de vida e uma opção que não se situa no momento conclusivo da atividade filosófica, como uma consequência de um percurso de conversão. Ao contrário, esta escolha existencial se posiciona logo no começo, em uma complexa relação e interação entre a crítica a outras atitudes existenciais, a visão global do mundo, e a própria decisão voluntária e responsável. É a opção escolhida que determina até certo ponto a doutrina filosófica professada e o jeito de transmiti-la para os discípulos (HADOT, 1999, p. 167). As mutações que a filosofia produz aparecem em quem a pratica, no filósofo, ou seja, naquele que vive no estilo filosófico. A filosofia não possui nenhuma

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utilidade prática: ela é livre, pois não se submete a qualquer fim que lhe seja alheio. “Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, diz Aristóteles, mas nenhuma lhe será superior”. Isto pelo fato de que a tarefa da filosofia é uma tarefa essencialmente pedagógica: a produção do homem.

Hoje em dia parece estranho falar deste jeito, pelo fato de que na época atual o que impõe a sua força é justamente o interesse, o útil. A partir do pensamento marxista, a filosofia tem como escopo a transformação da realidade; a filosofia se propõe a mudar e fazer mudar a realidade. O ato de transformar não é em si mesmo ruim: com efeito, pode ser considerado um empenho político ou mesmo educativo (HÜHNE, 2006, p. 54). Porém, o filósofo grego objetaria que tudo isso não pode ser o fim último da filosofia. Quem filosofa tendo o útil como objetivo perde a liberdade. A ânsia de transformar perturba o momento do conhecimento. A filosofia, o amor desinteressado ao saber, se submeteria à prática e deixaria de ser filosofia.

Contudo, o que é mais novo na filosofia está em relação ao jeito particular de viver que é a escolha própria do filósofo. Existe uma enorme diferença entre a representação que os antigos faziam da filosofia e a representação hodierna da mesma disciplina, pelo menos na imagem transmitida aos estudantes por conta das necessidades do ensino universitário. Normalmente, os estudantes têm a impressão de que todos os filósofos esforçam-se sucessivamente para arquitetar, cada um de uma maneira original, uma nova construção sistemática e abstrata, destinada a explicar, de uma maneira ou de outra, o universo. O “jogo das interpretações” parece um conjunto de movimentos arbitrários no qual o sujeito, conscientemente ou até abandonando-se ao próprio inconsciente criativo, cria imagens da “realidade” para opor às dos outros.

Isso não entra na perspectiva do discurso filosófico antigo. Evidentemente, não estamos negando a extraordinária capacidade dos filósofos antigos de desenvolver uma reflexão

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sobre os problemas mais sutis da realidade natural e humana. Porém, essa atividade teórica deve ser situada em uma perspectiva diferente daquela que a filosofia indica hoje. Em primeiro lugar, a opção pelo modo de vida filosófico se situa na origem do caminho de pesquisa, e isso determina o processo educativo do filósofo e dos seus discípulos (HADOT, 1999, p. 169). “A Escola Eleata, fundada por Parmênides, e a Escola Pitagórica foram dois focos importantes do desenvolvimento e da transmissão deste tipo de saber” (FERREIRA, 1993, p. 34-35.). No domínio educativo interessa de modo especial a Escola Pitagórica, seja pelo seu ideal de vida que reveste a procura do saber com um caráter iniciático e religioso, seja pela sua contribuição na criação do currículo de estudos que foi considerado o fundamento das artes liberais, ou artes do trivium e do quadrivium, como foram chamadas na Idade Média. A filosofia como opção de vida determina a doutrina adotada pelo pensador e seu modo de ensino. Esta escolha não é tomada na solidão: nunca houve filosofia nem filósofos fora de um grupo, de uma comunidade, de uma escola filosófica e, precisamente, uma escola filosófica corresponde, na época antiga, a uma maneira de viver, a uma atitude de pensamento e de vida (hairesis2), um desejo de ser e de viver de certa maneira. Essa conversão existencial implica, por seu turno, certa visão do mundo, e será tarefa do discurso filosófico revelar e justificar racionalmente tanto essa opção de vida quanto essa representação do mundo. O discurso filosófico teórico, que normalmente se encontra na “História da Filosofia” não está na origem, mas no final dessa opção existencial (HADOT, 1999, p. 172).

O discurso filosófico deve ser compreendido na perspectiva do modo de vida e a escolha de vida particular do filósofo determina o seu ensino, sua paideia. Esta apuração nos leva a dizer que não se pode considerar o discurso filosófico

2 O termo significa propriamente “eleição”, “escolha”.

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como uma realidade existente em si e por si mesma, como uma disciplina a ser transmitida do alto de um púlpito. Não é possível estudar Sócrates separando o discurso de Sócrates da vida e da pedagogia de Sócrates.

Claro, hoje o filósofo, ou talvez fosse melhor se contentar em dizer o professor de filosofia, não pode retomar exatamente o modelo da filosofia antiga. Hoje parece impossível fazer de uma universidade uma comunidade pedagógica no sentido filosófico do termo, na qual mestres e discípulos vivem juntos experiências em comum num comum ideal. Mas, hoje, o discurso do professor de filosofia ainda pode se apresentar sob uma forma tal que o estudante possa percorrer um caminho de amadurecimento intelectual e espiritual e transformar-se interiormente.

LUGARES E MESTRES DA PAIDEIA Como vimos, a nova definição de homem que aparece na

Grécia, depois das invasões dos povos vindos da península balcânica, carrega o advento de um novo modo de pensar, alicerçado na racionalidade. O exercício da razão, antes de tudo, é um discurso público e compartilhado. A grande escola dos antigos é o convívio social, e isso é particularmente evidente em Atenas.

O novo arquétipo da cidade grega, a polis, criada depois do desaparecimento do basileus, pressupõe novas instituições e a autoridade é espalhada entre diferentes delegados. “A autoridade não repousa mais na tradição, mas na lei, nomos, fruto da ação do homem, regida pelo discurso elaborado, argumentado e persuasivo” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 199).

A mudança política carrega a necessidade de formar um homem diferente. A polis não necessita do chefe guerreiro ou do sacerdote que encarna a voz da verdade. Com esta mudança política, os gregos criam uma nova definição de

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homem e uma nova paideia, que dita os parâmetros daquilo que deve ser um homem: o homem politicus (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 199).

Aristóteles esclarece na sua Política que o homem é essencialmente ser da cidade3 e isso não indica apenas um lugar físico particular mas, antes, o caráter próprio do homem: o homem se faz tal só ao participar das práticas e das experiências dos outros homens.

Aristóteles não é nem original nem pretende ser original com esta afirmação: ele somente constata e reafirma o que aparecia como verdade ao grego do seu tempo. O homem é fruto da cidade, da sua paideia, e por decorrência toda criação humana terá a cidade como origem e – é importante não esquecer – como propósito ou, pelo menos, referência (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 201).

Nesta cidade, a educação se transmite na Ágora, nos

banquetes e nos ginásios4. O symposion, ou banquete, tem um sentido cultural de grande valor. Ao redor de uma mesa rica em vinho e comida, os gregos discutiam assuntos elevados e cantavam os versos dos poetas (HERÓDOTO 6. 129; ARISTÓFANES, Nuvens, 1353-1379). O symposion é descrito na homônima obra de Platão como um lugar que possui alto poder educativo. No Banquete platônico, cinco figuras de relevo, Sócrates, Aristófanes, Fedro, Pausânias e Alcibíades se reúnem na casa do tragediógrafo Ágaton, para comemorar a sua vitória nas Grandes Dionísias. A antiga educação aristocrática é baseada no conhecimento dos poetas antigos e só será reformada com o advento dos Sofistas, em Atenas. Os ginásios constituem um segundo pólo educativo. Eles, além de serem frequentados pelos jovens que querem praticar

3 Aristóteles, Política, 1253a: “É evidente que a polis é natural, e que o homem é por natureza um animal político e que o apolide por natureza e não por acidente é menos ou mais que um homem” (tradução nossa). 4 Para uma panorâmica exaustiva do assunto, ver Ferreira (1993).

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exercícios físicos, são procurados por muitos adultos que gozam da beleza e do espetáculo oferecidos pelos mais novos, e lhes dão dicas de vida. Sócrates escolhia frequentemente estes lugares para ensinar5. Finalmente, a Ágora é um importante centro cívico e comercial. Lá ficam os mais importantes edifícios públicos, vários templos, altares e estátuas. Lá se realizam as sessões da Ecclesia, a Assembleia, da Boulê, o Conselho dos Quinhentos, e dos Tribunais da Helieia. No edifício do Pritaneu, encontram-se gravados na pedra diversos documentos, o mais notório dos quais é o código de Sólon. A Ágora é, portanto, um local de grande afluxo, que os atenienses usam para conversar e transmitir a cultura (FERREIRA, 1993, p. 32).

É evidente que esta evolução da política ateniense do regime monárquico ao regime democrático permitiu a participação nos órgãos coletivos de governo a um número infinitamente maior de cidadãos e por isso as técnicas de argumentação se tornaram de grande importância. A essa exigência responderam prontamente aqueles filósofos que podem ser considerados mestres do discurso e professores de homens, visto que erigiam o homem em alvo de seu ensinamento: os Sofistas6. Embora os sofistas tenham sido considerados por muito tempo personagens negativos e falsos pedagogos, eles despertaram considerável entusiasmo entre os jovens da Atenas democrática (PLATÃO, Protágoras, 310a-311a; 314b-315d). Finalmente, foram eles que cunharam a palavra paideia para indicar a natureza essencialmente pragmática de seu ensino, o qual permitiu a muitos jovens atenienses intervir nas relações públicas graças à habilidade dialética e retórica. Na época da Grécia clássica, os Sofistas

5 Os seguintes diálogos de Platão, Laques, Lísis e Cármides, se passam no ginásio. 6 Protágoras, fr. Diels: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem”. Tradução de Rocha Pereira, 2005, p. 289.

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eram personagens suspeitos7 e seu nome é utilizado ainda hoje para designar aqueles que buscam perturbar o interlocutor com assuntos cavilosos. No século de Péricles, a palavra “sofista” era empregada sempre num sentido pejorativo por causa do tipo específico de saber que os Sofistas transmitiam e pelo fato deles serem itinerantes e remunerados (PLATÃO, Apologia 19e-20a; ISÓCRATES, Antídosis 3). Entre as duas características, a mais perigosa do ponto de vista político é a primeira, isto é, ensinar um tipo específico de saber; do ponto de vista filosófico, a segunda, pois para filósofos como Sócrates, Platão ou Aristóteles, e o mesmo pode ser dito para as Escolas helenísticas, a filosofia é um fim em si e não pode ser vista como meio em vista de uma finalidade alheia. Basta ler a Apologia de Sócrates, um dos primeiros escritos de Platão, para descobrir no diálogo entre Sócrates e os Sofistas um jogo ético, político e pedagógico, uma crítica açulada e intransigente aos sofistas e à face corrupta da sociedade ateniense. Os aristocratas, por fim, achavam os Sofistas personagens ameaçadores, pelo fato de serem peritos na arte reputada necessária aos membros de uma democracia e perigosa para o governo aristocrata. Ocupados em ensinar de que forma a racionalidade podia ser utilizada eficientemente, isto é, produzindo a persuasão e levando à derrota a argumentação do adversário, os sofistas se tornaram assim os primeiros professores da technê politiké, que com uma palavra atual podemos designar “cidadania”. “O discurso é plástico, dirão eles, e pode ser moldado de inúmeras formas, mais ou menos adequadas para o momento (kairós), que era o que de mais importante havia: perder ou não notar o kairós, a ocasião, impedia o sucesso do discurso” (PAGOTTO-EUZEBIO, 2010, p. 206).

7 Sobre as razões do escândalo que o ensino dos Sofistas provocou ver Rocha Pereira 2003, p. 448 e nota 7, citado por Ferreira 1993, p. 37 nota 32.

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Desta forma, o homem instruído pelos Sofistas consegue prever as reações dos membros da Assembleia, do Tribunal e dos outros órgãos. Devido à sua habilidade dialética e retórica, o cidadão educado na democracia alcança influir na tomada de decisão dos ouvintes pela sua competência comunicativa, pela sua capacidade de persuadir e consequentemente dominar o demos. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora da UnB, 1997. CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. COLLI, G. O Nascimento da Filosofia. Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1992. CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do Pensamento Filosófico Grego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora da UnB, 1987. DUMONT, J. P. Les Sophistes. Fragments et Témoignages. Paris: PUF, 1969. DUPRÉEL, E. Les Sophistes. Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Edition du Griffon, 1948. FERREIRA, J. R. Educação em Esparta e em Atenas. Dois métodos e dois paradigmas. In: LEÃO, D. F; FERREIRA, J.R; FIALHO, M. do Céu (ed.). Cidadania e Paideia na Grécia Antiga. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1993. GÓRGIAS. Testemunhos e Fragmentos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. HADOT, P. O que é a filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1999.

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Capítulo 2 SSÓÓCCRRAATTEESS EE AA FFOORRMMAAÇÇÃÃOO DDOO MMEESSTTRREE:: VVIIRRTTUUDDEE,, ÉÉTTIICCAA EE

EESSPPIIRRIITTUUAALLIIDDAADDEE

Ricardo Tescarolo

SÓCRATES, A ARTE DA MAIÊUTICA E O MESTRE VIRTUOSO A despeito de não haver registro de qualquer produção

escrita de sua autoria, a súbita transformação que atingiu a filosofia após Sócrates, “confirma-o de maneira que não tem comparação com os filósofos precedentes” (REALE, 1993, p. 253). Sem dúvida, “a filosofia socrática mostra ter tido peso decisivo no pensamento grego e, em geral, do pensamento ocidental” (ibidem). A partir desta inferência, adotar-se-á como iluminação o pensamento atribuído a Sócrates, mais precisamente a maiêutica, para refletir sobre a educação escolar e o papel decisivo do mestre, a partir da perspectiva da prática pedagógica.

A arte da maiêutica baseia-se na ideia de que o conhecimento está latente8 na mente do sujeito como razão inata e que, para se tornar consciente, precisa ser “parido” (“dado à luz”) mediante sequência lógica de perguntas.

8 Michael Polany, por exemplo, refere-se a essa razão latente como “conhecimento tácito” (The Tacit Dimension. The University of Chicago Press, 1996, p. 4), na medida em que “we can know more than we can tell” (“sabemos mais do que reconhecemos”).

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O primeiro texto dos diálogos de Platão, em ordem cronológica, a mencionar a maiêutica de Sócrates é o Simpósio. Neste diálogo, relatado por Platão, Sócrates repete as palavras da sábia sacerdotisa Diotima de Mantinéia, que sugere que a alma dos homens está grávida e quer dar à luz. No entanto, o parto não pode se realizar. Por essa razão, o mestre, tal qual o obstetra, deve ajudar o educando a dar à luz a verdade (aleteia).

Portanto, o mestre não é o que enche a mente do discípulo com informações, como se sua mente fosse uma caixa vazia. Na maiêutica, o mestre ajuda o discípulo a alcançar o conhecimento mediante um diálogo questionador. Foucault (2004) adverte que o mestre não pode mais se limitar a ser “o mestre da memória”, mas o mediador “na formação do indivíduo como sujeito” (p. 160), em que “o ato do conhecimento permanece ligado às exigências da espiritualidade” que vincula este ato à conversão do sujeito (idem, p. 267), condição que será atingida pela prática da aretê (virtude). Por conseguinte, o mestre de virtudes pressupõe o mestre virtuoso.

Mas será a virtude ensinável? A virtude pode ser ensinada, sim, mas menos pelos discursos e textos do que pelo exemplo, que se funda na ética e se nutre da sabedoria dedicada à construção da reciprocidade e do respeito à alteridade e à diversidade. A ética deve se constituir, pois, na sustentação da ação humana, integrada pela vontade e pelo livre-arbítrio, assumindo sentido mais radical como responsabilidade pelas consequências das iniciativas humanas e servindo de referência para o diálogo de cada pessoa com a própria consciência e com as consciências dos outros, despertando-os de uma eventual indiferença em relação à agressão à vida e à dignidade da pessoa.

Assiste-se hoje à substituição do paradigma social por outro que decorre de um processo de “dessocialização” (TOURAINE, 2007, p. 23), acompanhado por uma “penetração

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generalizada de uma violência de mil formas e faces, que rejeita todas as normas e os valores sociais” e a “escalada das reivindicações culturais, tanto sob a forma neocomunitária como sob a forma de apelo a um sujeito pessoal e à reivindicação de direitos culturais” (ibidem). E, no esforço de criação de “instituições e regras de direito que sustentarão a liberdade e a criatividade das pessoas, estão em jogo a família e a escola” e, em seu centro, os modelos educacionais (idem, p. 240).

Por isso, a atualização dos mestres na concepção da ética assume atualmente importância crucial. De fato, a eficácia da escola será principalmente resultado da virtuosidade da intervenção docente em seu interior. E apenas no contexto mais amplo da função social de formação do mestre é que as questões da sua intervenção ética terão sentido. Sua formação priorizará, destarte, o manejo mais amplo dos saberes, como projeto solidário e construção coletiva, alimentado pela profundidade e pelo confronto constante e convergente e considerando a aprendizagem em suas implicações emocionais, afetivas e relacionais.

A formação do mestre passa, então, a ser afetada pela natureza complexa do paradigma emergente, implicando o desenvolvimento das capacidades de identificar, analisar e operacionalizar sua ação tendo em conta, de um lado, as complexas circunstâncias contemporâneas. Os mestres, assim, aptos a elaborar e atualizar os saberes pedagógicos, não ficarão reduzidos a executores de projetos alheios ou planos acabados.

Enfim, a visão do mestre não pode se limitar a fixar o olhar no dedo que aponta, mas estender sua perspectiva para aquilo que o dedo aponta: a constelação das novas possibilidades nascidas no interior das novas, ricas, complexas e dinâmicas circunstâncias contemporâneas, mas que também se alimenta de perplexidade e consternação.

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Impõe-se, pois, a articulação de novos conhecimentos com novos objetivos e formas de aprendizagem e de ensino, pelo desenvolvimento de uma cartografia de relevâncias que funcione como um radar capaz de perscrutar uma nova epistemé fundada em dois eixos: a ética planetária e a espiritualidade. A ÉTICA E A ÉTICA PLANETÁRIA

A ética planetária, segundo O’Sullivan (2004), manifesta-se no seio de uma racionalidade industrial como um movimento transformador que transcende ao modernismo progressista, ainda que o inclua, e se empenha para favorecer um “habitat planetário sustentável para seres vivos interdependentes, além e contra o apelo disfuncional do mercado competitivo global” (p. 26). Isso implica parâmetros visionários e transformadores baseados em um desenvolvimento sustentável que se coloca contra os mitos do otimismo ilimitado no crescimento e na abundância e da produção industrial, da expansão tecnológica e do consumo a qualquer custo (idem, p. 28-39).

Embora as pessoas aparentemente tenham preservado e mobilizem sua capacidade de desencadear processos de intervenção transformadora, tal intervenção acabou se tornando uma prerrogativa dos cientistas que, sem “a textura das relações humanas”, ampliaram a esfera dos negócios humanos a tal ponto que extinguiram “a consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o ser humano” (ARENDT, 2001, p. 337), transformando-o no predador mais voraz da natureza.

A cosmovisão exclusivamente antropocêntrica e inter-humana, em sua natureza analítica, cientificista e instrumentalmente racionalista da realidade universal, separou a Noosfera — termo teilhardiano que corresponde à camada humana reflexiva da Terra, em vias de unificação

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física e união espiritual, que ele denominou ‘unanimização’ — da Biosfera, a camada viva não reflexiva que alimenta e sustenta a Noosfera, que por sua vez depende de sua preservação, numa simbiose cheia de energia, mas complexa e delicada (CHARDIN, 2003, p. 210).

Nesse contexto, é urgente que se desenvolva, em todas as instâncias da sociedade — e aqui colocamos em destaque a escola — uma ética planetária que se empenhe pela integridade da “realidade sagrada primordial” do universo (O’SULLIVAN, 2004, p. 379), estabelecendo um novo contrato de solidariedade com a terra, com a vida e com o outro, superando o relativismo moral e a privatização de valores ofertados ao deus-mercado.

Neste caso, o uso ético da razão questiona esses valores e se move em torno da questão da justiça, representando fenômeno interpessoal que passa a se constituir no conjunto dos princípios que só ocorrem no diálogo. Assim, quando a razão prática se pauta pelos princípios éticos, a vontade e a razão se amalgamam nos sujeitos humanos. O uso ético, portanto, leva em conta o que é bom para a sociedade como um todo e se questiona sobre a coerência do agir individual em relação ao projeto coletivo, representando, assim, atitude baseada em virtudes. Os princípios éticos, nesse caso, assumem natureza racional garantida por sua universalidade. Todas as iniciativas humanas, portanto, precisam assumir forma de valor e integrar determinada ética (cf. HABERMAS, 1989).

Tal condição nos reporta ao contrato ético imprescindível à educação, na medida em que é ela que recebe a responsabilidade coletiva de contribuir para a inclusão das crianças e dos jovens em um mundo em permanente metamorfose. Conforme entende Hannah Arendt (2002, p. 239), essa responsabilidade assume, na educação, uma forma de autoridade diferente da competência — certamente necessária, porém não suficiente —, decorrente dos saberes

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pedagógicos. Tal autoridade, delegada e legitimada pelo poder social, repousa na responsabilidade ética que os educadores assumem pelo mundo. É como se representassem, perante a criança e o jovem, todos os adultos. Acontece, porém, que a autoridade pública e política, em que se baseia a autoridade da escola e dos educadores, ou perdeu quase todo o sentido, ou tem o seu papel contestado — em razão da violência, da arbitrariedade, da impunidade e da corrupção nas esferas política e social.

É nesse cenário contemporâneo de crise que o mestre virtuoso deverá ser capaz, pelo testemunho de sua ação educativa, de ensinar os alunos a agirem eticamente em favor da dignidade humana e a responder pelo mundo e pela vida, cuja finalidade confunde-se com a própria finalidade da educação. E é exatamente a escola, ocupando o ‘lugar’ de uma consciência mais ampla sobre toda a cultura e o pensamento humanos, que se encontra hoje entre a tradição e a inovação, a conservação e a mudança, entre o passado e o futuro, e diante do seguinte dilema ético: se, como pessoas, amamos ou não o mundo e a vida o suficiente para assumirmos

a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, 2002, p. 247).

O contexto contemporâneo de crise também causa

profunda repercussão na história de cada pessoa, ao revelar ‘quem’ ela de fato é. A identidade real da pessoa se coloca, então, em oposição à sua personagem social, isto é, ao ‘que’ ela é, que se manifesta nos talentos, habilidades e serviços que ela

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pode exibir ou ocultar, conforme isso for útil ou necessário aos seus interesses particulares. Se a pessoa se limitar ao ‘que’ ela é, sua ação perde o caráter genuinamente humano e torna-se uma realização ordinária, sem a revelação da pessoalidade, reduzindo-se ao labor para satisfazer suas necessidades de sobrevivência ou ao trabalho que a reduz a instrumento ou mecanismo (recurso?) dedicado à fabricação de alguma coisa. A ação comunicativa, então, limitar-se-á a uma conversa vazia e insignificante para iludir o adversário. Enfim, a revelação e a emancipação humanas só ocorrem a partir da identidade única e singular de ‘quem’ é a pessoa, e não do ‘que’ ela é (idem, 2001, p. 193).

Nesse processo, a consciência, sob inspiração ética, é instada a assumir como princípio que toda pessoa é essencialmente livre e solidária, capaz de um protagonismo responsável.

Tal princípio, entretanto, pode parecer improvável, por depender muitas vezes de valores submetidos à perspectiva e ao interesse de quem, consciente ou inconscientemente, muitas vezes deles se serve desumanamente.

Como a convivência humana se baseia na necessidade histórica de estabelecer contratos de longo prazo que evoluem em leis, regimentos, normas e preceitos morais, a ética passa, então, a ser o princípio catalisador que garante a dignidade da vida humana, fundamentando as normas de respeito de todos por todos e a responsabilidade solidária de cada um pelo outro e pelo mundo.

Não obstante, considera-se aqui a ética que se funda também na “atribuição objetiva por parte da natureza do todo, [...] de tal espécie que mesmo o último membro de uma humanidade moribunda, em sua última solidão, lhe poderia ainda ser fiel” (JONAS, 2004, p. 272). Será, pois, na perspectiva da intervenção humana iluminada pelas virtudes que deve ser considerada a história de todas as pessoas.

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A ESPIRITUALIDADE A espiritualidade é a sabedoria que concilia a razão, a

emoção e a experiência com a consciência e a ética com a reflexão, a sensibilidade e a intuição, cuja condição central é o amor, mas não em sentido qualquer.

O amor, na espiritualidade, é “a afinidade do ser com o ser”, não exclusivo do ser humano, mas, como coloca Chardin, “uma propriedade geral da Vida [...] e, sob todos os seus matizes, o sinal mais ou menos direto marcado no âmago do elemento pela Convergência psíquica do Universo sobre si mesmo”. Só o amor nos vincula, reúne, integra, identifica e prende a todos os seres na Terra pelo mais fundo de nós mesmos através de uma ‘vibração fundamental’ que nos impele inexoravelmente para a Unidade, “no Sentido do Universo, Sentido do Todo: diante da Natureza, perante a Beleza, na Música, a nostalgia se apossa de nós — a expectação e o sentimento de uma grande Presença” (CHARDIN, 1986, p. 301).

Como seremos íntegros sem o mundo, a nossa ‘circunstância’, e sem a cumplicidade de todos os seres viventes e de todas as coisas existentes, nessa tessitura vital que se nutre do Espírito da Terra? Como seremos humanos sem essa “força primordial do espírito dotado de atividade volitiva, força animadora e criadora de valores”? Como seremos solidários e sensíveis ao outro sem o amor “que nos arranca do nosso isolamento individual e nos integra ao Real e ao convívio na comunidade humana”? (Idem, p. 348).

A espiritualidade é o amor reflexivo pela Vida que promove a transformação do self como autoconsciência, auto-reflexão e altruísmo em conexão com o universo, um viver além de nós mesmos, que não apresenta natureza nem racional, nem emocional, mas as duas amalgamadas. Daí a necessidade de se ter “sobre a natureza um ponto de vista, um conhecimento, um saber amplo e detalhado que nos permita

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precisamente conhecer não apenas sua organização global, mas seus detalhes” (FOUCAULT, 2004, p. 339).

A espiritualidade é reverência, uma espécie de confiança em nossa capacidade de usar amplamente o poder das virtudes; não de uma virtuosidade apenas inter-humana, mas uma virtuosidade planetária, o que “pressupõe um compromisso com a bondade do mundo, uma bondade que pode ser infinitamente multifacetada e plural, mas que reconhecemos como sendo muito maior e mais poderosa que nós mesmos” (SOLOMON, 2003, p. 100).

Tornamo-nos dessa forma sagrados, porque participamos, “como membros da comunidade universal que nos produz com a substância das estrelas” (O’SULLIVAN, 2004, p. 379), da dimensão sagrada de todo o universo. E a percepção da grandeza numinosa e inefável da vida conduz, na revelação de Teilhard de Chardin (1986), o nosso espírito ao ‘êxtase’, como o arrebatamento íntimo, o enlevo, o arroubo “que transporta para fora do mundo exterior e leva a participar de uma realidade superior e universal”, o Espírito da Terra (idem, p. 335). Por isso, nossa luta não pode mais se limitar apenas pela sobrevivência, mas pela ‘supervida’ universal que, no dizer de Chardin, é o nosso “acesso à vida consciente coletiva que ultrapassa a vida consciente individual [...], engendrada pela união dos centros pessoais entre si e pela união de todas as pessoas num foco ‘hiperpessoal’ de amor e de irreversibilidade” (p. 269).

Impõe-nos, pois, a espiritualidade que propicia a contemplação “da maravilha e do mistério do universo”; da “promoção do processo de criação de significado”; da concepção de “unidade da natureza e da humanidade”; “de um mito cultural que sirva de base para a fé na capacidade humana de participar de um mundo de justiça, compaixão”; além “do cuidado com o outro, amor e felicidade”, “de ideais de comunidade e interdependência”, “de atitudes de indignação e responsabilidade diante da injustiça, da

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indignidade, da violência e da opressão” (PURPEL apud O’SULLIVAN, 2004, p. 393-396).

Por isso, a espiritualidade catalisa as manifestações reveladoras do sagrado, como amor pela Vida, que se realiza na utopia de um mundo justo e fraterno. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. São Paulo: Forense Universitária, 2001. _______. Entre o Passado e o Futuro. Coleção Debates. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. BORGES, Jorge Luis. História da Eternidade. Trad. Carmen Cirne Lima. 4.ed. São Paulo: Globo, 1997. CHARDIN, Teilhard de. O Fenômeno Humano. [1955]. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 2003. FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. JONAS, Hans. O Princípio Vida – Fundamentos para uma biologia filosófica. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. O’SULLIVAN, Edmund. Aprendizagem Transformadora - Uma visão educacional para o século XXI. São Paulo: Cortez Editora; Instituto Paulo Freire, 2004. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 1993. SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para Céticos – Paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Capítulo 3 AAGGOOSSTTIINNHHOO DDEE HHIIPPOONNAA:: AA VVEERRDDAADDEE,, OOSS SSEENNTTIIDDOOSS

EE OO ““MMEESSTTRREE IINNTTEERRIIOORR””

Rogério Miranda de Almeida Ao iniciar a construção de sua teoria do conhecimento,

na obra intitulada Contra os acadêmicos, Agostinho ataca igualmente as teorias céticas da “média” e da “nova” Academia de Platão. A primeira teve como chefe de fila, ou como diretor, Arcesilau de Pitane (c. 315–c. 240 a.C.), enquanto que a “nova” Academia foi comandada por Carnéades de Cirene (c. 214–c. 128 a.C.), seguido por Clitômaco de Cartago, Filão de Larissa e Antíoco de Ascalona. Foi, sobretudo, graças às leituras de Cícero que o teólogo africano se familiarizou com a história e as principais ideias da Academia.

Do ponto de vista formal, a obra Contra os acadêmicos se divide em três livros e se apresenta como a primeira produção dos “diálogos de Cassiciaco” que se desenrolaram durante o chamado período de conversão do professor de retórica. Este período se acha compreendido entre o fim do verão de 386 e as primeiras semanas de 387. Cassiciaco era uma propriedade de um amigo de Agostinho, situada não muito distante de Milão, onde ele transcorreu esses meses discutindo questões filosóficas juntamente com a sua mãe, Mônica, com o filho, Adeodato, com o irmão, Navígio, o amigo, Alípio, alguns discípulos e mais dois parentes. Certo, os primeiros escritos agostinianos não derivam todos da convivência que tiveram

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esses personagens em Cassiciaco. Não são dessa época, por exemplo, A potencialidade da alma, O livre-arbítrio, A música e O mestre. Não obstante, com exceção de A imortalidade da alma e dos Solilóquios – que é propriamente um monólogo ou, mais exatamente, um diálogo de Agostinho consigo mesmo – todos os demais textos foram redigidos sob a forma de diálogo, inclusive o Contra os acadêmicos, A vida feliz e A ordem. A tônica que atravessa e caracteriza esses escritos é a questão da linguagem, da “iluminação interior”, da fiabilidade ou não fiabilidade dos sentidos e, em suma, a busca da verdade.

Retenha-se, contudo, que esta busca é paradoxal, na medida em que o “mestre interior” não pode prescindir nem dos sentidos nem da linguagem que a exprime. É, pois, esta problemática que pautará as reflexões que se seguem, as quais têm como ponto de partida e referência principal a obra Contra os acadêmicos. O CETICISMO E A BUSCA DA VERDADE

Não é por acaso que Agostinho põe na boca de seu discípulo Licêncio, já no Primeiro Livro de Contra os acadêmicos, a declaração de Cícero segundo a qual nada pode ser conhecido com certeza e que o sábio deve dedicar-se incansavelmente à busca da verdade, porquanto, mesmo na hipótese de que as coisas incertas possam eventualmente revelar-se como verdadeiras, o sábio não estaria isento de erro. Esta última possibilidade, prossegue o discípulo, estaria em total desacordo com a sua condição ou sua pretensão de sábio. Por conseguinte, e em contraste com a conclusão de seu interlocutor Trigésio, a opinião de Licêncio é a de que se se deve aceitar que o sábio é necessariamente feliz, e se o papel da sabedoria consiste tão somente na busca da verdade, forçoso é admitir que uma vida é feliz na medida mesma em que dura a investigação ou a procura da verdade (Cf. AGOSTINHO, 2006, p. 31). Melhor dizendo, a felicidade reside

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na busca contínua, incessante e infatigável da verdade, pois – pondera o defensor dos Acadêmicos – aquele que busca a verdade com menos tenacidade do que convém à finalidade do homem, jamais poderá atingir este fim, que é justamente a busca perfeita da verdade. Aquele, porém, que a procura sem trégua nem descanso pode considerar-se feliz, mesmo se não a encontra jamais (Cf. ibid., p. 35).

A partir dessas afirmações, não se pode senão chegar a esta constatação, ou a esta problemática: se todo filosofar é busca ou investigação, é o próprio conceito de filosofia, enquanto ciência, que agora deve ser questionado. Pois, com a obtenção desta ciência, cessa simultaneamente a sua busca e, por conseguinte, o processo filosofante, que se verá na necessidade de reconhecer o seu próprio termo, ou os seus próprios limites. Todavia, e conforme as declarações de Licêncio, se a felicidade e o fim da alma racional consistem no filosofar, a filosofia estaria paradoxalmente destinada a jamais atingir a verdade que procura. De sorte que o filosofar – e a felicidade que lhe está inerentemente vinculada – se resolveriam não propriamente na meta a que se propuseram, mas no vir-a-ser que conduziria a esta meta. O Primeiro Livro de Contra os acadêmicos termina, portanto, numa suspensão de sentido, e esta suspensão é tanto mais relevante quanto é o próprio Agostinho quem sublinha, numa tradição que remonta a Platão e a Aristóteles, que todos aspiram à felicidade, mas que a felicidade só será possível se a verdade for encontrada ou – ajunta o retórico – se ela for diligentemente procurada. Com efeito, afirma, “devemos colocar em segundo plano todo o resto e dar-nos inteiramente à busca da verdade, se quisermos ser felizes” (Ibid., p. 63).

No Segundo Livro, é o próprio Agostinho quem exporá, mas de maneira difusa, as características principais da filosofia acadêmica, segundo a qual não se deve aderir a qualquer doutrina ou a qualquer enunciado para não se incorrer em erro. Porém, o retórico ironiza esta atitude cética ao afirmar

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que os acadêmicos dizem seguir na vida prática a semelhança (similitudo) do verdadeiro (verum), quando na realidade ignoram a própria natureza do verdadeiro. Segue-se então uma análise crítica dessas noções e se demonstra – tanto da parte de Agostinho quanto da de Licêncio – que o cético é paradoxalmente obrigado a pressupor e a fazer uso da verdade. É que a própria escolha de excluir o “verdadeiro” para dar lugar ao “verossímil” não pode ser feita senão a partir do próprio conceito de “verdade” (Cf. ibid., p. 99, 109, 111). Ao invés, portanto, de admitir a noção de verossímil, os convivas aderiram à sugestão de Agostinho, que se propôs demonstrar estas duas possibilidades: 1) é muito mais provável que o sábio possa atingir a verdade; 2) não se deva manter para sempre o juízo em suspensão.

O Terceiro Livro se desenvolve como uma retomada e, ao mesmo tempo, um aprofundamento da problemática do paradoxo do ato de filosofar que, como vimos no Primeiro Livro, pressupõe a não apropriação total da verdade. Aqui também Agostinho examina – embora não mais sob a forma de diálogo, mas de exposição – uma passagem de Cícero sobre os acadêmicos e a definição estoica de Zenão acerca do “verdadeiro”. De suas análises resulta que o filosofar consiste essencialmente não na posse da verdade, mas na possibilidade mesma de se conhecer a verdade.

É, todavia, curioso o fato de Agostinho evocar, pela boca de seu interlocutor Alípio, a divindade marinha Proteu, que gozava da reputação de se metamorfosear e de conhecer o presente, o passado e o futuro. No entanto, este “velho do mar” – cuja residência Homero situava na ilha de Faros e Virgílio na de Cárpatos – não revelava facilmente seus presságios a quem o fosse consultar. Quem dele, pois, desejasse extrair profecias devia ir encontrá-lo na hora do repouso meridiano, quando seria possível amarrá-lo e, assim, coagi-lo a proferir seus vaticínios. Surpreendido, porém, e pleno de cólera, Proteu se transformava numa série de

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monstros, chegando mesmo a revestir as aparências da água e do fogo. Caso, contudo, não conseguisse suplantar seu adversário, o adivinho retomava sua forma primitiva e, então, consentia em falar.

Sintomático é, pois, ver Alípio – após recapitular a doutrina dos Acadêmicos, segundo a qual não se deve dar o seu assentimento irrefletidamente – assimilar esta suspensão de juízo àquela imagem de Proteu que – diz ele – se deixava amarrar tão somente para melhor fugir à tentativa de apreendê-lo (Cf. ibid., p. 141). Mais curioso ainda é constatar que também Agostinho faz apelo – certo, de maneira irônica – à mitologia e aos poetas que apresentam Proteu “como a figura da verdade”; esta verdade que ninguém poderá reter caso, “enganado por falsas imagens, tenha afrouxado ou deixado partir os nós da compreensão” (Ibid., p. 143). A compreensão a que se refere Agostinho remete obviamente à esfera da razão, que na tradição platônica, e neoplatônica, é a única capaz de apreender a essência dos objetos, mas desde que, à diferença da imaginação – que não cessa de deambular pelo mundo da sensibilidade e da efemeridade – não se deixe seduzir pela aparência e pelas transformações que o caracterizam. Ora, não esqueçamos de que o próprio Agostinho, além de sua formação retórica e musical, recorre frequentemente à mitologia e à literatura romanas9. De sorte que esta aversão e depreciação vis-à-vis da imaginação e da sensibilidade – que só tenderão a se acentuar ao longo de sua obra – já poderiam revelar-se como sintomas de um conflito ou de duas tendências que caracterizam um escritor em cujo estilo se fazem ressaltar a plasticidade, os jogos de palavras, as

9 Para a formação de Agostinho, veja a obra clássica de H.-I. MARROU, Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: E. De Boccard, 1958 (1ª. ed. 1938), capítulos I-III.

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imagens, as metáforas, as metonímias, a verve, a erótica e, enfim, a sedução e a beleza do dizer, ou do como dizer10.

Com relação à figura de Proteu que Agostinho evoca nessa passagem, não se pode deixar de pensar naquele registro do real que Lacan amarrará borromeanamente com os outros registros do imaginário e do simbólico. O real não pode ser concebido sem um e sem outro, todavia, ele permanece hostil a toda tentativa de captação, porquanto é de natureza proteiforme. Com efeito, pela experiência da fala e, portanto, da falha, da falta, dos ditos e dos inter-ditos que não cessam de reenviar a este impossível, o real se manifesta como aquele dado bruto que está continuamente a retornar e a se oferecer à simbolização, na medida mesma em que escapa, se elide e se a subtrai à significação enquanto tal. É o próprio Lacan quem chama a atenção para este paradoxo fundamental: “O real, ou aquilo que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização” (LACAN, 1975, p. 80). Isto quer dizer que a nossa percepção dos fenômenos só se dá, ou só se escreve, através das próprias sinuosidades e ambiguidades que atravessam, marcam, pontilham e informam o mundo dos sentidos. A PERCEPÇÃO OU A VERDADE DOS SENTIDOS

Não é, pois, fortuitamente que, no Terceiro Livro de Contra os acadêmicos, Agostinho desafia seus interlocutores quanto a saberem se este mundo realmente existe, porquanto se supõe que os sentidos enganam. Ora, este desafio é tanto mais importante quanto o retórico objeta que os argumentos que se evocam em torno da não fiabilidade dos sentidos jamais foram capazes de desmentir a força que eles exercem e, portanto, de levá-lo a convencer-se de que nada parece ou está como é. 10 No parágrafo 128 de Para além de bem e mal, Nietzsche dirá: “Quanto mais abstrata for a verdade que queres ensinar, tanto mais deverás seduzir para ela os sentidos” (NIETZSCHE, 1988, p. 95).

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Consequentemente, a principal objeção que se poderia levantar contra os céticos consiste no seguinte: conquanto eles se empenhem em demonstrar que as coisas podem ser diferentes do modo como aparecem aos nossos sentidos, elas não podem deixar de parecer aquilo que parecem ser (Cf. ibid., p. 165). É certo, pois, dizer que os sentidos percebem o falso; certo não é, porém, afirmar que nada percebem, porquanto não há como negar que o universo aparece aos nossos olhos como aquilo que contém o céu e a terra, ou que é visto como sendo o céu e a terra. Portanto, forçoso é concluir que o erro não reside nos sentidos – na medida em que os sentidos sentem somente aquilo que sentem – mas no julgamento que se dá de maneira precipitada, irrefletida, sobre aquilo que nos aparece como tal. Inversamente, não haverá engano quando não se der o seu assentimento além do necessário para persuadir alguém de que uma determinada coisa parece ser deste ou daquele outro modo (Cf. ibid., p. 169)11.

Para fundamentar a tese de que não se deve exigir dos sentidos mais do que eles podem perceber, Agostinho recorre à analogia que há entre o estado de vigília e o do sono. Sabe-se efetivamente que, no sono, as coisas se aproximam ainda mais do falso do que no estado de vigília. Se, pois, não se pode conhecer com certeza nem mesmo o fato de estarmos acordados, esta impossibilidade se revelará a fortiori quando se consideram os fenômenos do universo onírico. Todavia, retruca Agostinho, se os mundos se compõem de um mais seis, é patente que os mundos formam sete em qualquer situação ou estado em que nos encontrarmos. De igual modo, que nove sejam três vezes três e forme um quadrado de números inteligíveis, é necessariamente verdadeiro mesmo se toda a humanidade estivesse a ressonar. De sorte que os sentidos não devem ser acusados ao constatar-se que os 11 Convém, porém, lembrar que Agostinho não acusa os Acadêmicos de terem negado valor aos sentidos. O que ele ressalta é justamente não ter neles encontrado nenhuma crítica contra os sentidos (Cf. ibid., p. 167-169).

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delirantes são afetados por falsas visões, nem tampouco pelo fato de, quando sonhamos, percebermos coisas falsas (Cf. ibid., p. 167).

Essas ponderações nos conduzem quase irremediavelmente para as Meditationes de prima philosophia, de René Descartes, e, mais precisamente, para a Primeira Meditação, onde o filósofo francês realiza – deslavada e despudoramente – mais um de seus numerosos plágios sobre as intuições que, doze séculos antes, já havia avançado e desenvolvido o teólogo africano. Assim, baseando-se quase nos mesmos exemplos, Descartes assevera: “Seja que me encontre acordado ou dormindo, a soma de dois mais três é sempre cinco e o quadrado não tem mais que quatro lados” (DESCARTES, 1999, p. 408). Voltarei a esta problemática na terceira e última seção deste capítulo. Por enquanto, sublinhemos mais uma vez que, para Agostinho, o erro não reside nos órgãos dos sentidos, mas tão somente nos juízos que, irrefletidamente, emitimos sobre aquilo que parece ser. Donde o clássico exemplo da ilusão ótica, na qual o remo imerso na água parece quebrado ou oblíquo. Um epicureu – lembra Agostinho – poderia observar: “A respeito dos sentidos, nada tenho a lamentar, pois seria injusto deles exigir mais do que podem. Assim, tudo o que podem ver os olhos, estes veem algo verdadeiro. É então verdadeiro o que veem a respeito do remo na água?” (AGOSTINHO, 2006, p. 167).

Para Agostinho, não há dúvida de que é verdadeiro aquilo que aparece aos nossos olhos como sendo um remo quebrado. Verdadeiro também é o fato de que, para os navegantes, as torres, vistas de longe, parecem mover-se. Verdadeiro igualmente é o fenômeno indicando que a plumagem de certas aves muda de cor conforme o ângulo do qual ela é observada. De sorte que não se poderia confutar aquele que declarasse: “Sei que isto me parece branco, sei que meu ouvido encontra deleite nisto, sei que para mim isto tem

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um odor agradável, sei que para mim isto tem um doce sabor, sei que isto para mim é frio” (Ibid., p. 169).

Moustapha Safouan, no livro, L’échec du principe du plaisir, chama a atenção para algumas consequências que o problema da percepção acarretou para três filósofos: Platão, Berkeley e Kant. Em Berkeley, a aparência ou a percepção se teria anexado ao próprio eu, de modo que, ao reduzir-se o ser a esta mesma percepção, não se poderia evitar a consequência de negar o ser e, destarte, desprover a percepção de sua própria realidade ou de seu caráter de ser real. Quanto ao autor da Crítica da razão pura, existiria também uma anexação da aparência ou da percepção, não ao eu, mas ao sujeito do conhecimento, cuja função, através da influência que exercem as formas puras da intuição sobre as percepções, é a de organizar ou constituir o objeto como tal. Com relação à coisa mesma, esta permanece como que subtraída ao nosso conhecimento e, portanto, como uma coisa em si, um não-objeto. Isto equivale a dizer que o ser, o não-eu, é mantido, mas sem nenhuma identidade verificável para nós. Em outros termos, embora mantido, este ser continua sendo indeterminado e indeterminável (Cf. SAFOUAN, 1979, p. 23).

Em Platão, a percepção de que as coisas se apresentam numa perpétua instabilidade, mobilidade e mutabilidade – o mesmo remo, por exemplo, aparecendo ora inteiriço ora quebrado, ora mais longo ora mais curto, ora num lugar ora noutro – teria conduzido o filósofo a deslocar todos esses fenômenos, não para o percipiens, mas para as próprias coisas percebidas. Mas, assim fazendo, Platão as teria privado de todo status ontológico, de sorte que as realidades sensíveis – por se transformarem continuamente – não podem ser apreendidas pela razão enquanto conceitos. Quanto ao verdadeiro ser, este reside no reino das Ideias, ou das essências inteligíveis, que são divinas, porque inascíveis, imperecíveis, imutáveis, eternas. Assim, conclui Safouan, todo o problema do platonismo consiste em saber como é possível

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situar o verdadeiro ser acima do mundo sensível e, portanto, fora de nós, reivindicando ao mesmo tempo – em contraste com a incognoscibilidade da coisa-em-si kantiana – a possibilidade mesma de conhecê-lo. Por conseguinte, a distinção entre a aparência e a realidade que, na perspectiva idealista, é assimilada à distinção entre o que pertence ao sujeito e o que reside fora do sujeito, ou do alcance de seu conhecimento, já se acharia enunciada em Platão. Todavia, ela se exprime aqui sob a modalidade de uma separação entre as mutações do mundo sensível – que encerram uma aparência de ser – e o ser verdadeiro (Cf. ibid., p. 23-24).

Ora, na minha perspectiva, o que está em jogo, tanto em Platão quanto em Kant, não é – pelo menos em primeiro lugar – a cognoscibilidade ou a incognoscibilidade de uma dessas duas esferas, mas, sobretudo, o espaço por onde possam articular-se, melhor, entrelaçar-se, entressachar-se, imbricar-se, ou entre-mear-se, o inteligível e o sensível. Refiro-me, evidentemente, ao vínculo, ao meio ou ao entre-dois – Lacan diria a letra ou o real – pelo qual se efetua, ou não para de se efetuar, a significação e, consequentemente, a descarga da tensão que todo desejo encerra. É neste sentido que Roland Sublon afirma que a alma platônica e o esquema kantiano já se revelam como uma construção que tenta conjugar o idêntico e o diferente. De resto, é a manipulação da fita unilateral de Moebius que permite mostrar uma estrutura de borda, onde um registro não cessa de passar para o outro, ou pelo outro, no topos mesmo de uma linha sem ponto (Cf. SUBLON, 2004, p. 34).

Mas o objetivo que Moustapha Safouan realmente visa alcançar parece ser este: em Freud – que não questiona nem a realidade nem a veracidade da percepção – assiste-se a uma reviravolta radical, na medida em que o princípio do erro é colocado não no objeto, mas no próprio sujeito. Um sujeito – convém lembrar – ao qual o inventor da psicanálise atribui uma tendência originária, primordial, para a alucinação. Eis a

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razão pela qual a concepção freudiana da percepção estaria mais próxima daquela de Agostinho que daquelas de Platão, Berkeley e Kant. É o que deixa claramente pressupor o analista, ao explicar:

Porque, a partir do momento em que ele é submisso a essa tendência, e à necessidade de uma função secundária que dela resulta, o sujeito é suscetível não somente, como diz Agostinho, de julgar como verdadeiro aquilo que é falso (com o risco para o eu de intervir demasiadamente cedo), mas também de julgar como falso aquilo que é verdadeiro (com o risco para o eu de intervir demasiadamente tarde) – (SAFOUAN, 1979, p. 25).

Sem embargo, todo desejo é, por natureza, alucinatório,

porquanto ele traz consigo uma carga de tensão que quer incondicionalmente, imperiosamente, ser descarregada, aplacada, apaziguada. A própria distorção da realidade, que aparece ora de uma maneira ora de outra, já poderia ser a expressão inconsciente de uma tentativa do sujeito para deslocar a angústia, que acompanha todo desejo. É paradoxal, portanto – para retornarmos à questão da fiabilidade ou não fiabilidade dos sentidos – o fato de que não se pode conceber a busca da verdade, ou daquilo que se considera verdade, sem pensar ao mesmo tempo na ilusão, na aparência, no engano, na mentira, na dúvida. A DÚVIDA E A VOZ DO “MESTRE INTERIOR”

Com efeito, já no Contra os Acadêmicos, faz-se delinear a questão que nos diálogos posteriores – A vida feliz, Solilóquios, O livre-arbítrio – e, mais particularmente, nos tratados redigidos a partir de 399 – A Trindade e A Cidade de Deus – Agostinho explicitará como sendo a relação intrínseca entre o engano e a certeza, a razão e a hesitação, a dúvida e a existência. Deste modo, na Trindade e, mais especificamente,

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na Cidade de Deus, a dúvida será surpreendentemente apresentada como a instância a partir da qual o sábio poderá finalmente afirmar: “Se me engano, então eu existo”, “Si enim fallor, sum” (AGOSTINHO, 2000, p. 564). Mas, como eu insinuei logo acima, essa questão se faz de certo modo presente já no Contra os Acadêmicos e, mais precisamente, no Livro III, onde Agostinho enfatiza que seria um absurdo afirmar: “O sábio não sabe por que vive, não sabe de que modo vive, não sabe se vive e, enfim – não se poderia dizer algo de mais errôneo, delirante e insano – que o sábio existe e, ao mesmo tempo, ignora a sapiência” (AGOSTINHO, 2006, p. 155, grifos meus).

Difícil não é deduzir que a passagem sublinhada – não sabe se vive – foi a que deu ensejo para que se detectasse, já no Contra os Acadêmicos, um antecedente daquilo que, no século XVII, Descartes se apropriaria ao elaborar a sua teoria do “Cogito, ergo sum”. No diálogo seguinte, A vida feliz, essa questão será retomada e, nos Solilóquios, ela se tornará ainda mais explícita, na medida em que se trata aqui de um diálogo que Agostinho estabelece consigo mesmo ou, mais exatamente, entre si mesmo e a Razão. É a voz do “mestre interior” que indaga sobre o existir, o viver e o conhecer. A Razão lança esta interrogação: “Tu, que queres conhecer-te, sabes que existes?” A: “Eu o sei”. R: “Como o sabes?” A: “Não o sei”. R: “Tu te sentes simples ou múltiplo?” A: “Não o sei”. R: “Sabes que és movido?” A: “Não o sei”. R: “Sabes que pensas?” A: “Eu o sei”. R: “Logo, é verdade que pensas”. A: “É verdade” (Ibid., p. 533). Como se vê, o sujeito pode duvidar da maneira como sabe que existe, pode duvidar se é simples ou múltiplo, móvel ou fixo, mas não pode duvidar que existe, que pensa, que sabe, que conhece. Ele está, portanto, seguro que se sabe existente, vivente, pensante.

A questão da dúvida como um componente essencial do conhecimento, ou da busca da verdade, encontrou a sua formulação emblemática no tratado da Trindade, onde

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Agostinho, além de fazer uma espécie de balanço da filosofia pré-socrática, reitera o seu método fundamental do diálogo da alma consigo mesma. Assim, nesta passagem, o leitor poderá constatar não somente a dinâmica da introspecção agostiniana, mas também a apropriação ou, mais exatamente, o plágio direto e deslavado que Descartes sobre ela operou nas Meditações:

Mas porque se trata da natureza do espírito, retiremos da nossa consideração todos os conhecimentos que nos provêm do exterior, por intermédio dos sentidos do corpo, e consideremos com mais diligência o que já havíamos estabelecido, isto é, que todos os espíritos se conhecem a si mesmos com certeza. Os homens duvidaram se deviam atribuir a faculdade de viver, de recordar, de entender, de querer, de pensar, de saber, de julgar, ao ar, ou ao fogo, ou ao cérebro, ou ao sangue, ou aos átomos, ou a um quinto elemento de natureza corpórea ignorada, além dos quatros elementos conhecidos. Ou também se a estrutura e a constituição de nosso corpo eram capazes de realizar todas essas operações. Uns se esforçaram por defender tal opinião, outros tal outra. Todavia, quem poderia duvidar que vive, que recorda, que compreende, que quer, que pensa, que sabe, que julga? Porque, mesmo se duvida, vive; se duvida, recorda-se de onde provém a sua dúvida; se duvida, compreende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve dar o seu assentimento temerariamente. Portanto, quem duvida de outras coisas não deve duvidar de todas estas, porque, se não existissem, não poderia duvidar de nenhuma coisa (AGOSTINHO, 1998, p. 320).

Essa mesma ideia retornará na Cidade de Deus, livro que

o teólogo africano compôs no tempo em que ainda redigia A Trindade e, mais precisamente, entre 413 e 426. Ei-la, pois, reformulada e condensada:

Com respeito a essas verdades, não temo as objeções dos Acadêmicos. Eles dizem: “Supões que te enganas?” Eu replico:

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“Se me engano, então eu existo (Si enim fallor, sum)”. Quem não existe não pode enganar-se; portanto, se me engano, existo. E porque existo, se me engano, como posso enganar-me pensando que existo, quando é certo que existo porque me engano? Logo, já que eu devo existir porque me engano, então, mesmo quando me engano, não há dúvida de que eu não me engano no conhecimento de que existo. Segue-se também que eu não me engano enquanto conheço que me conheço. Assim como conheço que existo, assim também conheço que conheço (AGOSTINHO, 2000, p. 564).

Depois dessas considerações, urge, portanto, mais uma

vez reiterar: o paradoxo fundamental da construção da verdade efetuada pelo “mestre interior” consiste justamente em que dela a dúvida não pode ser excluída. Afinal de contas, seria possível pensar a verdade sem a mentira, o lógico sem o ilógico, o racional sem o irracional, a vontade de verdade sem a vontade de engano, de aparência, de ilusão? Isto quer dizer que a dúvida é radicalmente inerente à busca da verdade, cuja realização só pode dar-se através da linguagem que, por natureza, é incompleta, dispersa, fragmentária, lacunar. Neste sentido, o texto – enquanto espaço através do qual a multiplicidade de significantes não cessa de se desdobrar e de se repetir – já é sintomático da impossibilidade mesma de se lançar a última palavra, a última interpretação, a última significação. Assim, o que está em jogo em Agostinho e, finalmente, em todo pensador é a tentativa mesma de se inscrever, de se dizer e de se significar o desejo na sua eterna, sempre renovada e sempre recomeçada satisfação–insatisfação...

REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Tutti i dialoghi. Milano: Bompiani, 2006. _______. La città di Dio. Roma: Città Nuova, 2000. _______. La Trinità. Roma: Città Nuova, 1998.

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DESCARTES, René. Les méditations. In Oeuvres philosophiques, 3 v., Tome II. Paris: F. Alquié, 1999. LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975. MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: De Boccard, 1958. NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits vont Gut und Böse. In Kritische Studienausgabe, 15 v. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988. SAFOUAN, Moustapha. L’échec du principe du plaisir. Paris: Seuil, 1979. SUBLON, Roland. L’éthique ou la question du sujet. Strasbourg: Le Portique, 2004.

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Capítulo 4 TTOOMMÁÁSS DDEE AAQQUUIINNOO:: FFIILLOOSSOOFFIIAA EE PPEEDDAAGGOOGGIIAA

Jean Lauand

INTRODUÇÃO Tomás de Aquino (1224[5] – 1274) é, sem dúvida, o mais

importante pensador medieval. Sua filosofia – indissociável da teologia, em sua época – tem importantes projeções pedagógicas, também para o educador de hoje, para além do interesse meramente histórico. Neste estudo, destacaremos três aspectos, de especial atualidade, do pensamento tomasiano: a valorização do mundo material; a afirmação da primazia da virtude da prudentia; e sua perspectiva negativa em filosofia.

A vida de Tomás de Aquino está centrada no século XIII. Desde o século anterior – um século de renascimento cultural, após um longo período de aridez intelectual – já se estabeleciam as condições que possibilitariam as profundas inovações trazidas pelo pensamento do Aquinate.

De fato, com a queda do Império Romano no Ocidente (consumada em 476) e consequente instalação de reinos bárbaros no espaço geográfico da extinta Roma, a primeira Idade Média encontrava-se em condições precárias de cultura e educação. O esplendor da cultura clássica foi substituído pela “idade das trevas”: tribos bárbaras, não só analfabetas,

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mas (até há pouco) ágrafas, são a nova realidade dominante na Europa.

Do ponto de vista cultural e pedagógico, alguns autores, como Josef Pieper, preferem estabelecer o ano 529 como marco inicial da Idade Média. Nesse ano, ocorrem dois fatos emblemáticos: o imperador Justiniano (o império romano no Oriente permanecerá até 1453) fecha a Academia de Atenas: já não haverá lugar para a cultura pagã. E São Bento funda o mosteiro de Monte Cassino: não por acaso, os primeiros séculos medievais são, na História da Educação, chamados de “Idade Beneditina”.

Os mosteiros beneditinos serão, em meio à desolação cultural da primeira Idade Média, o refúgio onde se alojará e conservará o pouco conhecimento que restou do fim da Antiguidade, graças a educadores como Boécio e Cassiodoro.

Boécio, o “último romano”, um dos mais importantes nomes da história da educação, foi encarregado pelo rei Teodorico de organizar a cultura no reino ostrogodo. Conhecedor profundo da ciência e da filosofia gregas, Boécio empreende um projeto pedagógico realista: uma cultura de resumos. Ele sabe que o esplendor das culturas grega e romana desapareceu e que a nova realidade são os ostrogodos, incapazes de ascenderem às alturas do mundo clássico. E empreende, na corte do rei, uma pedagogia de traduções e conteúdos mínimos: a imponente geometria de Euclides, a aritmética, a astronomia... são reduzidas a livrinhos super elementares e sumaríssimos. Embora suas ambições para a filosofia fossem muito maiores, sua trágica morte (em 525, quatro anos antes do aparecimento da ordem beneditina) deixou o Ocidente sem traduções de Platão e com muito pouco de Aristóteles.

Boécio, uma inteligência superior, tinha talento para muito mais do que para resumos e traduções, mas, como grande educador, optou pela tarefa exigida por sua época: o trabalho obscuro e pouco original de elaboração de sementes

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secas, que pudessem um dia, em futuro longínquo, germinar, florescer e frutificar.

Cassiodoro, também um culto romano, colega de Boécio na corte de Teodorico, percebeu que não havia condições de cultivo do saber na tumultuada corte do reino bárbaro e, em 555, funda o mosteiro de Vivarium, marco importante na história da educação. Curiosamente, os bárbaros, em geral, respeitavam o espaço sagrado do mosteiro e Vivarium torna-se um paradigma para a Europa: a partir de então, o mosteiro será não só um lugar de oração, mas também de cultura: de estudo e cópia de livros e de ensino elementar.

Nos séculos XII e XIII, ocorrem mudanças significativas: intensifica-se a urbanização e muda também o centro de gravidade da educação: das escolas monásticas para as escolas catedrais e as nascentes universidades. Surgem as ordens mendicantes, os dominicanos (à qual Tomás se filiará) e os franciscanos; renascem as ciências e redescobre-se Aristóteles (inicialmente por meio de traduções do árabe na Espanha reconquistada) etc.

Se, na primeira Idade Média, o pensamento estivera praticamente limitado aos livros de Sentenças, compilação de pensamentos dos santos padres, e à preservação com pouco desenvolvimento daquela “cultura de resumos”, legada por Boécio, Cassiodoro ou Isidoro de Sevilha; agora, com o renascimento cultural do século XII, já podem ser elaboradas as Sumas, grandiosas sínteses pessoais, como a Suma Teológica de Tomás.

Nesse ambiente de efervescência intelectual é que se desenvolve, contra a corrente, o pensamento de Tomás, um dos primeiros membros da ordem dominicana e um dos primeiros grandes professores da Universidade de Paris, ambas fundadas em 1215.

Os três pontos do pensamento de Tomás que aqui destacaremos, por seu interesse pedagógico, estão, na verdade, interligados em torno do conceito central de Criação. Porque o

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mundo é criação, o corpo, a matéria são essenciais ao ser que Deus deu ao homem. Tomás assume corajosamente o ser corporal do homem em todas as suas dimensões, que incluem, evidentemente, o conhecimento, a aprendizagem e a educação. Por ser criado, por ter recebido esse ser corpóreo, acentua-se o caráter negativo da filosofia e da teologia: nosso conhecimento (e nossa linguagem) não consegue abarcar Deus nem as coisas, que foram criadas pelo Logos, a Inteligência divina. Assim, se a realidade é mistério para o homem, suas decisões de ação, que ainda por cima estão inseridas na concretude do “aqui e agora”, não podem ser diretamente guiadas por certezas abstratas, mas pela virtude pessoal do discernimento da decisão certa: a prudentia. O HOMEM COMO INTRÍNSECA UNIÃO ESPÍRITO-MATÉRIA

No centro da filosofia da educação de Tomás, encontra-se a tese fundamental de sua antropologia: anima forma corporis, a profunda unidade, no homem, entre espírito e matéria: a alma é forma substancial, em intrínseca união com a matéria.

Essa tese, originariamente aristotélica, não era, como se sabe, bem vista nos meios teológicos da época: era considerada perigosa para um cristianismo que não valorizava a matéria e o corpo; a doutrina teológica dominante pretendia uma concepção demasiadamente espiritualista do homem: o homem possuiria três almas e a alma verdadeiramente importante seria a espiritual (e não as duas corpóreas: sensitiva e vegetativa) e a condição carnal era considerada antes um estorvo para a elevação do espírito.

Contra essas antropologias “angelistas”, Tomás - corajosa e decididamente - afirma o homem total, com a intrínseca união espírito-matéria, pois a alma é forma: co-princípio ordenado para a intrínseca união com a matéria. Quando Tomás diz: “É evidente que o homem não é só a alma,

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mas um composto de alma e de corpo” (I, 75, 4) esse “é evidente”, na verdade, refere-se à verdade das coisas e não às opiniões teológicas de seu tempo...

Esse “materialismo” de Tomás está presente in-formando todo seu pensamento, por exemplo: quando discute o jejum excessivo nas questões de Quodlibet, dirá que o jejum é sem dúvida pecado (absque dubio peccat) quando debilita a natureza a ponto de impedir as ações devidas: que o pregador pregue, que o professor ensine, que o cantor cante..., que o marido tenha potência sexual para atender sua esposa! Aquele que assim se abstém de comer ou de dormir, oferece a Deus um holocausto que é fruto de um roubo12.

Tomás aceita tão completamente o corpo como integrante essencial da realidade do ser humano que esta união se projeta até na operação espiritual que é o conhecimento intelectual: “A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude” (C. G. 3, 144).

E contra aquela tradição teológica que afirmava a iluminação imediata da inteligência humana por Deus (para o Aquinate Deus nos deu sua luz, dando-nos o intelecto), Tomás afirma que só podemos chegar às ideias mais abstratas e às considerações mais espirituais a partir da realidade sensível, material, concreta: “O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas 12 Et ideo huiusmodi sunt adhibenda cum quadam mensura rationis: ut scilicet concupiscentia devitetur, et natura non extinguatur; secundum illud Ad Rom., XII, 1: “exhibeatis corpora vestra hostiam viventem; et postea subdit: rationabile obsequium vestrum. Si vero aliquis in tantum virtutem naturae debilitet per ieiunia et vigilias, et alia huiusmodi, quod non sufficiat debita opera exequi; puta praedicator praedicare, doctor docere, cantor cantare, et sic de aliis; absque dubio peccat; sicut etiam peccaret vir qui nimia abstinentia se impotentem redderet ad debitum uxori reddendum. unde Hieronymus dicit: “De rapina holocaustum offert qui vel ciborum nimia egestate vel somni penuria immoderate corpus affligit; et iterum rationalis hominis dignitatem amittit qui ieiunium caritati, vigilias sensus integritati praefert. (Quodl. 5, q. 9, a. 2, c).

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visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis” (I, 84, 7). Nesta afirmação resume-se a própria estrutura ontológica do homem. E, insistamos, mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível: “Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais”.

Esse voltar-se para o concreto, para o sensível, marca profundamente não só a pedagogia, mas é mesmo uma clave de interpretação de todo o pensamento de Tomás de Aquino.

Outro exemplo: a autoridade de Agostinho havia estabelecido (como no De Trinitate, sobretudo no livro XV) a memória como a primeira realidade do espírito, da qual procedem o pensar e o querer: é portanto um reflexo de Deus Pai, do qual procedem o Verbo e o Espírito Santo.

O jovem Tomás do Comentário às Sentenças ainda fala de três potências espirituais: memória, inteligência e vontade. Mas, na Summa e no De Veritate, rompe com essa visão, situando a memória como uma faculdade sensível. Por exemplo, quando na Suma explica que a memória é parte da Prudência, afirma: “A prudência aplica o conhecimento universal aos casos particulares, dos quais se ocupam os sentidos. Daí que a prudência requer muito da parte sensitiva, na qual se inclui a memória” (I-II, 49, 1 ad 1).

Para além de todas as distinções (é evidente que há uma dimensão da memória que é intelectual - lembrar de um teorema - etc.) e tendo em conta que no homem tudo está integrado pela alma..., a memória é fundamentalmente sensorial.

O sensorial perpassa a pedagogia de Tomás (como em ad 2 de II-II, 49,1) ao apontar as leis fundamentais da memória, diz que para nos lembrarmos devemos estabelecer semelhanças (similitudines) adequadas para o que se quer recordar. Mas, afirma, não semelhanças usuais, pois guardamos melhor o invulgar. E, assim, prossegue o Aquinate, é necessário encontrar semelhanças, metáforas ou imagens,

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pois as realidades espirituais facilmente se esvaem se não estão “amarradas” a alguma semelhança corpórea (nisi quibusdam similitudinibus corporalis quasi alligentur). E isto, conclui, porque o conhecimento humano é mais forte com relação ao sensível.

A PRIMAZIA DA VIRTUDE DA PRUDENTIA É difícil subestimar a importância da virtude da

prudência, a principal das virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), no pensamento de Tomás: não é que ela seja a primeira inter pares, mas é principal em uma ordem superior, é a mãe das virtudes, genitrix virtutum (In III Sent., d 33, q 2, a 5, c) e a guia das virtudes, auriga virtutum (In IV Sent., d 17, q 2, a 2, dco).

Por mais destacada, porém, que seja a importância histórica do Tratado da Prudência de Tomás, seu interesse transcende o âmbito da história das ideias e instala-se - superadas as naturais barreiras de linguagem dos 750 anos que nos separam do Aquinate - no diálogo direto com o homem do nosso tempo, como rica contribuição para alguns de seus mais urgentes problemas existenciais.

Além do mais, a doutrina sobre a prudência tem o condão de expressar, de modo privilegiado, as diretrizes fundamentais de todo o filosofar de Tomás.

Para bem avaliar o significado e o alcance do Tratado da Prudência é necessário, antes de qualquer coisa, atentar para o fato de que prudência é uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformações semânticas com o passar do tempo: aquela palavra, que originalmente designava uma qualidade positiva, esvazia-se de seu sentido inicial ou passa até a designar uma qualidade negativa.

“Prudência” já não designa hoje a grande virtude, mas sim a conhecida cautela (um tanto oportunista, ambígua e

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egoísta) ao tomar (ou ao não tomar...) decisões. Se hoje a palavra prudência tornou-se aquela egoísta cautela da indecisão “em cima do muro”, em Tomás, ao contrário, ela expressa exatamente o oposto da indecisão: é a arte de decidir-se corretamente, isto é, com base não em interesses oportunistas, não em sentimentos piegas, não em impulsos, não em temores, não em preconceitos etc., mas, unicamente, com base na realidade: em virtude do límpido conhecimento do ser. É este conhecimento do ser que é significado pela palavra ratio na definição de prudentia: recta ratio agibilium, “reta razão aplicada ao agir”, como repete, uma e outra vez, Tomás.

Prudência é ver a realidade e, com base nessa visão, tomar a decisão certa. Por isso, como repete Tomás, não há nenhuma virtude moral sem a prudência, e mais: “sem a prudência, as demais virtudes, quanto maiores fossem, mais dano causariam” (In III Sent. d 33, q 2, a 5, sc 3). Com as alterações semânticas, porém, tornou-se intraduzível, para o homem de nosso tempo, uma sentença de Tomás como: “a prudentia é necessariamente corajosa e justa”13.

Sem esse referencial, tomamos nossas decisões fundamentados em quê? Quando não há a simplicitas, a simplicidade da prudência que se volta para a realidade como único ponto decisivo na decisão, ela acaba sendo tomada, como dizíamos, com base em diversos outros fatores: por preconceitos, por razões interesseiras, por impulso egoísta, pela opinião coletiva, pelo “politicamente correto”, por inveja ou por qualquer outro vício...

Mas este ver a realidade é somente uma parte da prudência; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é transformar a realidade vista em decisão de ação, em comando: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem...

13 Nec prudentia vera est quae iusta et fortis non est (I-II, 65, 1).

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O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro significado da clássica prudentia, atenta contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o real, por exemplo, aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” a realidade) e em sua dimensão prescritiva, no ato de comandar: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois, insistamos, a prudência toma corajosamente a decisão boa!).

A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas, comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de consultas esotéricas.

Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a realidade exige por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro moral” ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da justiça. É também o caso do radicalismo adotado por certas propostas religiosas. Tal como o “Ministério do Vício e da Virtude” do antigo regime Taliban, algumas comunidades cristãs - em vez de afirmar o direito (e o dever) do fiel de discernir o que é bom em cada situação pessoal concreta - simplificam grosseiramente: em caso de dúvida, é pecado e pronto!

O Tratado da Prudência de Tomás é o reconhecimento de que a direção da vida é competência da pessoa e o caráter dramático da prudência se manifesta claramente quando Tomás mostra que não há “receitas” de bem agir, não há critérios comportamentais operacionalizáveis, porque - e esta é outra constante no Tratado - a prudência versa sobre ações contingentes, situadas no “aqui e agora”.

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É que a prudência é virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a prudência não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro de xadrez” da situação “aqui e agora”, sobre a qual se dão nossas decisões concretas, e sabe discernir o “lance” certo, moralmente bom. E o critério para esse discernimento do bem é: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, caso-me ou não?, devo responder a este e-mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado, à plenitude da minha vida, minha realização enquanto homem. E para isto é necessário ver a realidade concretamente. De nada adiantam os bons princípios abstratos, sem a prudentia que os aplica - como diz Tomás - ao “outro pólo”: o da realidade (que significa “amar o próximo” nesta situação concreta?).

A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: sim, há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios gerais objetivos... mas, não operacionais concretos!

Por mais que nosso tempo insista em querer eliminar a verdade objetiva, no fundo sabemos que há certo e “errados” objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!” (falta razão).

Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude.

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Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato com facilidade, “espontaneamente”, com certo “automatismo” que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua estrangeira ou andar de bicicleta?).

Trata-se, portanto, de uma “inteligência” moral, da insubornável fidelidade ao real, que aprende da experiência e, portanto, como víamos, requer a memória como virtude associada: a memória fiel ao ser. No artigo dedicado à virtude da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in pluribus (geralmente).

Note-se que esta é também a razão da insegurança em tantas decisões humanas: a prudentia traz consigo aquele enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os imprudentes.

É dessa dramática imprudência da indecisão que falam alguns clássicos da literatura: do “to be or not to be...” de Hamlet aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que descreve “o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher” (DOSTOIÉVSKI, s.d., p. 226) e apresenta a massa que abdicou da prudência e se deixa escravizar, preferindo “até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal” (Ibidem, p. 225). E, assim, os subjugados declaram de bom grado: “Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis” (Ibidem, p. 224).

É interessante observar que, desde a tenra infância, o drama da decisão era-nos proposto sob diversas formas. Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com juras de amor eterno vinham anéis de vidro:

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O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.

E a inveja e a eterna insatisfação humana eram

ludicamente desmascaradas: a galinha do vizinho é que bota ovo amarelinho (e ainda por cima: bota um, dois,..., dez!).

E aprendíamos que a prudência só vem com a experiência: “enganei um bobo, na casca do ovo...”.

E mais: na ingenuidade da infância, assumíamos nossa incapacidade de realizar as escolhas fundamentais (como a de ter que decidir quem é que ia se encarregar da triste missão de jogar no gol...) e as confiávamos claramente à cega sorte (“lá em cima do piano tem um copo de veneno...” ou “minha mãe mandou escolher este daqui...”, ou ainda o “bem-me-quer”, “uni, duni, tê” etc.).

Hoje, adultos, não adotamos mais esse critério (que, pelo menos, tinha a vantagem de sinceramente reconhecer a incapacidade de decidir). Nós pretendemos não necessitar de uma virtude (toda a profunda antropologia das virtudes cardeais nem sequer está mais em nosso campo de visão...), pois presumimos dispor de recursos técnicos ou científicos que permitam tornar dispensável o âmbito moral, a virtude cardeal da prudência. Mas, não por acaso, “cardeal” vem da palavra latina cardus, gonzo, eixo em torno do qual se abre a porta (a porta da realização humana, do to be). Abdicar da Prudentia, a cardeal das cardeais, significa perder o eixo, o gonzo, tornar-se des-engonçado existencialmente! Abdicar da prudência é abdicar da realidade e confiarmos a um Ersatz - como ao Grande Inquisidor - as decisões fundamentais da existência...

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A PRUDENTIA NO PENSAMENTO “NEGATIVO” DE TOMÁS Neste tópico procuraremos mostrar como a doutrina da

prudência tem um caráter revelador de todo o posicionamento filosófico-teológico de Tomás.

Esse posicionamento é o de uma theologia negativa e de uma philosophia negativa. Precisamente pela ignorância desse decisivo caráter “negativo” no pensamento de Tomás é que ele tem sido frequentemente mal compreendido, até pelos tomistas. Aliás, o filosofar de Tomás é tal que é incompatível com um “tomismo”14, com um “sistema” filosófico ou com um racionalismo (e tantas vezes Tomás tem sido injustiçado com o rótulo de racionalista).

Examinemos três instâncias desse caráter negativo no pensamento de Tomás.

No que diz respeito ao conhecimento, Tomás assume uma philosophia negativa. Para a descrição desse posicionamento, recorremos à incomparável análise de Josef Pieper, em Unaustrinkbares Licht:

Limitamo-nos a falar apenas da philosophia negativa - embora Tomás tenha formulado também os princípios de uma theologia negativa. Certamente este traço também não aparece com clareza nas interpretações usuais; frequentemente é até ocultado. Será raro encontrar menção do fato de a discussão sobre Deus da Summa Theologica15 começar com a sentença: ‘Não podemos saber o que Deus é, mas sim, o que Ele não é’. Não pude encontrar um só compêndio de filosofia tomista, no

14 Josef Pieper, talvez o melhor intérprete de Tomás em nosso tempo, afirma: “Não pode haver um ‘tomismo’ porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S. Tomás é grande demais para isso (...). S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o imponente projeto de ‘escolher’ tudo (...). A grandeza e a atualidade de Tomás consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um ‘ismo’, isto é, não pode haver propriamente um ‘tomismo’ (‘propriamente’, isto é: não pode haver enquanto se entenda por ‘tomismo’ uma especial direção doutrinária caracterizada por asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios doutrinais)” (Thomas von Aquin: Leben und Werk. München: DTV, 1981, p. 27). 15 Quia de Deo scire non possumus quid sit sed quid non sit, non possumus considerare de Deo quomodo sit, sed potius quomodo non sit - Summa Theologica I, 3 prologus.

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qual se tenha dado espaço àquele pensamento, expresso por Tomás em seu Comentário ao De Trinitate de Boécio16: o de que há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o mais fraco é o que reconhece Deus na obra da criação; o segundo é o que O reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio superior reconhece-O como o Desconhecido: tamquam ignotum! E tampouco encontra-se aquela sentença das Quaestiones disputatae: ‘Este é o máximo grau de conhecimento humano de Deus: saber que não O conhecemos’, quod (homo) sciat se Deum nescire17. E, quanto ao elemento negativo da philosophia de Tomás, encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja dedicação ao conhecimento não é capaz sequer de esgotar a essência de uma única mosca. Sentença que, embora esteja escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum Apostolicum18, guarda uma relação muito íntima com diversas outras afirmações semelhantes. Algumas delas são espantosamente ‘negativas’ como, por exemplo, a seguinte: Rerum essentiae sunt nobis ignotae; ‘as essências das coisas nos são desconhecidas’19. E esta formulação não é, de modo algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer à primeira vista. Seria facilmente possível equipará-la (a partir da Summa Theologica, da Summa contra Gentes, dos Comentários a Aristóteles, das Quaestiones disputatae) a uma dúzia de frases semelhantes: Principia essentialia rerum sunt nobis ignota20; formae substantiales per se ipsas sunt ignotae21; differentiae essentiales sunt nobis ignotae22. Todas elas afirmam que os ‘princípios da essência’, as ‘formas substanciais’, as ‘diferenças essenciais’ das coisas, não são conhecidas.

Esse caráter “negativo” informa também seu modo de

fazer teologia, teologia essencialmente bíblica. Contra as rationes necessariae de um Anselmo, contra a pretensão de deduzir logicamente as verdades da fé, Tomás afirma o mistério para o homem, contraponto da liberdade de Deus:

16 I, 2 ad 1. 17 Quaest. Disp. de potentia Dei, 7, 5 ad 14. 18 Cap. I. 19 Quaest. Disp. de veritate 10, 1. 20 In De Anima 1, 1, 15. 21 Quaest. disp. de spiritualibus criaturis, 11 ad 3. 22 Quaest. Disp. de veritate 4, I ad 8.

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“Não há nenhum argumento de razão, naquelas coisas que são de fé23“.

E na questão: “Se Deus teria se encarnado se não tivesse havido o pecado do homem”, Tomás recolhe como objeções os argumentos tradicionais na Escolástica: “Sim, a Encarnação necessariamente ocorreria, pois a perfeição pressupõe a união do primeiro - Deus - com o último, o homem”; ou: “Seria absurdo supor que o pecado tivesse trazido para o homem a vantagem da Encarnação e que, portanto, necessariamente, teria havido Encarnação, mesmo sem o pecado”... Tomás, em sua resposta, refuta categoricamente essas objeções, afirmando: “A verdade sobre esta questão só pode conhecê-la Aquele que nasceu e se entregou porque quis (In III Sent. d 1, q 1, a 3, c.)”24.

Nesse quadro “negativo”, pode-se compreender melhor o significado da prudentia em Tomás: porque não conhecemos completamente as coisas, não podemos ter a certeza matemática nem critérios operacionais para discernir o bem; para a boa decisão moral, precisamos das (frágeis e incertas) luzes da prudentia: ter a memória do passado, examinar as circunstâncias (e as circunstâncias como fonte de moralidade detonam qualquer tentativa de espartilhar a conduta em “manuais de escoteiro” morais), recorrer ao conselho (não por acaso, com a supressão da prudentia na pregação da Igreja contemporânea, “conselho” deixou de significar aconselhar-se a si mesmo e passou só a significar conselho dado por outro), etc.

E é que também no que se refere à prudentia, estão, como pano de fundo, os dois elementos-chave de Tomás: mistério e liberdade. Afirmar a prudentia é afirmar que cada pessoa é a protagonista de sua vida, só ela é responsável, em suas decisões livres, por encontrar os meios de atingir seu fim: a 23 In III Sent. d 1, q 1, a 2, c. 24 Este exemplo está em Josef Pieper. Scholastik. München: DTV, 1978. O capitulo XI é indispensável para este tema.

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sua realização. Esses meios não são determináveis “a priori”; pertencem, pelo contrário, ao âmbito do contingente, do particular, do incerto, do futuro e, necessariamente, a prudentia se faz acompanhar da insegurança, da necessária insegurança que acompanha toda vida autenticamente humana. Afinal, para Tomás, o que o conceito de pessoa acrescenta à essência humana é precisamente a individualidade concreta: “alma, carne e osso, são configuradores do homem (sunt de ratione hominis); mas esta alma, esta carne e estes ossos são configuradores deste homem (sunt de ratione huius hominis) e assim ‘pessoa’ acrescenta à configuração da essência os princípios individuais” (I, 29, 2 ad 3).

Qualquer atentado contra a prudentia tem como pressuposto a despersonalização, a falta de confiança na pessoa, considerada sempre “menor de idade” e incapaz de decidir e, portanto, devendo transferir a direção de sua vida para outra instância: a igreja, o estado etc. Em qualquer caso, isso é sempre muito perigoso. Como é perigoso que a educação não se lembre dessa virtude...

REFERÊNCIAS LAUAND, Jean (org.) Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _______. “A mística da cozinha: de Heráclito a Adélia Prado”. International Studies on Law and Education. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No. 7, jan-abr 2011, pp. 55-68. Ed. on line: http://www.hottopos.com/isle7/55-68Jean.pdf _______. “Fingir para Germinar: Educação e Antropologia - I”. Revista Internacional d’Humanitats. São Paulo: Cemoroc-Feusp, No. 20, setn-dez 2010, pp. 29-34. Ed. on line: http://www.hottopos.com/rih20/jean.pdf PIEPER, Josef “Luz Inabarcável - o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás de Aquino” (trad. G. Greggersen; rev. téc.: Jean Lauand). Convenit. São Paulo: Mandruvá, No. 1. Ed. on line: http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm.

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TOMÁS DE AQUINO. A Prudência (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2005. _______. Sobre o ensino e os sete pecados capitais (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand). São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______. Verdade e conhecimento (trad. e estudos introdutórios Jean Lauand e M. B. Sproviero). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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Capítulo 5 BBOOAAVVEENNTTUURRAA EE AA FFIILLOOSSOOFFIIAA:: OO EENNSSIINNOO UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOO

Eduardo Vieira da Cruz

Em 1273, Boaventura faz uma série de conferências na

Universidade de Paris, onde adverte os presentes sobre os perigos que o estudo da filosofia poderia fazê-los correr25. Compreender os motivos que o levam a tal gesto é compreender, ao mesmo tempo, o contexto histórico-doutrinal em que se insere, o lugar que a filosofia ocupa no pensamento do doutor seráfico, assim como a função que o estudo da filosofia desempenha na construção do saber universitário de então.

Comecemos por esse último aspecto. Como, atualmente, o estudo do pensamento medieval não goza de grande

25 Trata-se de sua última obra, as Collationes in Hexaemeron (Conferências sobre os seis dias da Criação). A collatio (conferência) é, ao lado da homilia e do sermão, uma das formas da praedicatio (pregação) medieval. Há dois tipos de collatio: a monástica e a universitária. Enquanto a primeira é um abade ou um eminente religioso que a pronuncia, na collatio universitária cabe a um mestre em teologia a tarefa de desenvolver um conteúdo mais doutrinal, perante uma audiência composta de mestres, licenciados, bacharéis e estudantes inscritos na faculdade (cf. POIREL, 2002, p. 1138 e LIBERA, 1997, p. 10). Em outras duas séries de conferências, Boaventura aponta o caráter problemático da filosofia – e daqueles que a propagam – para a compreensão das verdades reveladas: nas Collationes de decem praeceptis (Conferências sobre os dez mandamentos), proferidas em 1267; e nas Collationes de septem donis spiritus sancti (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo), realizadas no ano seguinte. Os três textos encontram-se no quinto volume das Opera Omnia de Boaventura (1882-1902). Os dois primeiros foram objeto de traduções francesas (BOAVENTURA, 1991 e 1992, respectivamente).

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popularidade entre os estudantes de filosofia, é aconselhável relembrar algumas particularidades do ensino universitário deste período. O que se convencionou chamar de Universidade26 – e que se distingue, mais do que se costuma acreditar, daquilo que entendemos hoje por esse termo – constituía-se por quatro Faculdades, cuja importância, à primeira vista, estabelecia uma hierarquia pedagógica, reflexo das distinções de prestígio. Havia três Faculdades que encarnavam os estudos superiores: Direito (canônico e civil), Medicina e Teologia. Embora seja legítimo, por comodidade didática, reuni-las em uma mesma categoria, a scientia relativa a cada Faculdade não era por isso menos hierarquizada – a teologia, nesse aspecto, reinando absoluta. Entretanto, o que interessa à reflexão que aqui propomos não são as relações mais ou menos harmoniosas entre essas Faculdades, mas a relação comum em que se encontravam face à Faculdade de Artes27, responsável pelo ensino de disciplinas preparatórias e, desse ponto de vista, inferiores às que se ministravam nas outras28. Nesse sentido, parece-nos que o papel da Faculdade de Artes comportava certa ambiguidade, na medida em que essa inferioridade pode ser também, ou principalmente, entendida como anterioridade necessária. Com efeito, ela era passagem obrigatória no percurso estudantil daquele que ambicionasse ingressar em uma das outras três Faculdades. 26 Na Idade Média, o termo universitas evolui, a partir do seu sentido clássico de totalidade ou conjunto, e assume o valor de um termo jurídico, significando uma corporação ou comunidade com autonomia para, por exemplo, constituir estatutos próprios ou conferir graus acadêmicos. Aparece pela primeira vez em 1221, em um texto parisiense, na expressão “universitas magistrorum et scolarium”, para designar a comunidade de mestres e estudantes (cf. IMBACH, 2006, p. 1420). Para se adquirir uma noção geral da natureza e do funcionamento das universidades medievais, ver Verger, 1973. 27 O vocábulo ars (arte), quando usado no plural artes, significa as artes liberais (BLAISE, 1998). Com relação aos termos medievais, utilizamos, sempre que possível, o Lexicon de A. Blaise (1998) e, no que concerne especificamente a Boaventura, o Lexique de J. G. Bougerol (1969). 28 Em todas as quatro Faculdades, a trajetória estudantil findava pela obtenção da licença de ensino (licentia docendi).

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Desse modo, embora a teologia significasse um saber situado além daqueles veiculados pelos artistae29, sua superioridade não a resguardava do fato de que, em função da estrutura universitária, o estudante tinha acesso a ela apenas quando já se encontrava formado, em seus hábitos de pensamento, pela destreza no exercício das disciplinas do trivium e do quadrivium.

Mas é preciso circunscrever melhor o problema. As artes liberais – base do ensino no sistema educativo antigo e, depois, medieval – compunham-se, efetivamente, do trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). É a Boécio (480-525 d.C.), inventor do termo quadrivium30, que se deve esta repartição, que reúne, de um lado, as ciências relativas à expressão do conhecimento, ou seja, as artes da linguagem e, de outro, as ciências “matemáticas”. Séculos depois, a ênfase dada a cada disciplina varia. O estudo da retórica será pouco a pouco relegado a um plano secundário. É possível, já no século XI, com Béranger de Tours, detectar o emprego do termo “dialética” como significando o “uso do pensamento racional”. Contudo, é apenas no segundo terço do século XII, com a redescoberta do pensamento de Aristóteles pelo ocidente cristão – nas traduções de Boécio dos Primeiros Analíticos, dos Tópicos e das Refutações Sofísticas (sem esquecer a tradução contemporânea dos Segundos Analíticos por Jacques de Veneza) –, que a dialética assume uma importância inigualável, extrapolando os limites das artes e qualificando-se como o método por excelência do pensamento (Cf. CHENU, 1957, p. 20ss; LEMOINE, 2006; SOLÈRE, 2006). Ao fim do século, a constatação se impõe: “A dialética ganha em autonomia: de simples instrumento (dialectica utens), ela se torna meio de conhecimento (dialectia docens)”(CESALLI, 2006, p. 411). 29 Assim eram denominados os mestres da Faculdade de Artes. 30 Já o termo trivium é posterior, sendo forjado na época carolíngia (cf. LEMOINE, 2006, p. 95).

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Assim, a “destreza no exercício das disciplinas do trivium e do quadrivium” significa algo mais, diferente do que dizíamos há pouco. O século XIII conhece um novo estudante de Teologia, alguém cujo pensamento tem na dialética como que uma segunda natureza, alguém para quem só há de caber um único epíteto a Aristóteles, este mesmo pelo qual o estagirita passará, efetivamente, a ser designado: O Filósofo.

COMO SE TORNAR UM MESTRE EM TEOLOGIA31 De fato, essa destreza – não as consequências – era

condição sine qua non para a pretensão a uma carreira escolar. Embora encontremos algumas pequenas discrepâncias na historiografia, é consenso que tanto na Faculdade de Artes quanto na de Teologia os estudos eram longos e intensos, podendo perfazer, em alguns casos, dez anos na de Artes e outros quinze na de Teologia. Onde quer que esteja a verdade dos fatos, o que nos importa saber é que, uma vez apto a ingressar nos estudos de teologia, o postulante devia obter a aceitação de um mestre actu regens, isto é, um mestre que, além do título em teologia, pertencesse aos quadros ativos da Universidade. Vinha então o que se poderia chamar de aspecto passivo da trajetória recém-iniciada. Este consistia no acompanhamento (auditio) dos cursos do mestre durante um período de aproximadamente seis anos, ao final dos quais, se bem sucedido, o estudante obtinha o título de bacharel bíblico. Isto o credenciava a desenvolver a segunda parte de sua formação, em que se dedicava, durante um ou dois anos, à prática que estava na base da pedagogia medieval e, sobretudo, escolástica: a lectio. Cabia ao novo bacharel explicar – evitando, contudo, os problemas de interpretação ou de

31 Para aqueles que desejam aprofundar-se no tema da pedagogia medieval sob o ponto de vista técnico-metodológico, sugerimos a leitura do artigo de Glorieux, 1968.

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doutrina – dois livros por ano, de sua escolha: um do Novo e outro do Antigo Testamento.

Após esta fase, adquiria o grau de bacharel sentenciário e, enquanto tal, dedicava-se por mais dois anos à tarefa para a qual se preparara: a lectura. Tratava-se da leitura e explicação dos quatro livros das Sententiae de Pedro Lombardo. Redigido em torno de 1155-57, este texto de caráter enciclopédico – reunindo, segundo a técnica dialética, passagens bíblicas e patrísticas em aparente afrontamento, para, em seguida, reduzir as diferenças através de uma solução argumentada – se tornou o manual de base do ensino de teologia. Adotá-lo como objeto de um curso regular implicava em já possuir uma erudição considerável e uma disposição ainda maior para preencher as lacunas, nessa mesma erudição, que sua leitura, somada à tarefa de sua explicação, tornava evidente ao bacharel. Dois anos de curso sobre as Sententiae proporcionavam a ele duas coisas: primeiramente, tornar-se efetivamente um bacharel formado e, nessa condição, prosseguir sua atividade docente. Em segundo lugar, esta atividade o levava a multiplicar as pesquisas sobre as Sententiae, permitindo um acúmulo de notas que serviria como matéria prima para a redação do seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, obra cuja realização constituía uma das exigências para a obtenção da licença de ensino (licentia docendi) em Teologia32.

Apesar desse verdadeiro parcours du combattant, o bacharel formado ainda deverá esperar mais quatro anos antes de se tornar mestre. Nesse período, acompanhará seu mestre nas disputationes, atividade pedagógica que está na origem de um gênero literário característico da escolástica: as Quaestiones

32 No final do século XII, já se encontram exemplares de Comentários das Sentenças de Pedro Lombardo, mas é no século XIII que a produção desses comentários se generaliza, tornando-se o gênero literário mais difundido neste século (cf. ROBERT, 1950, p. 40ss). Para o aprofundamento do tema acerca do funcionamento das universidades medievais, ver principalmente Weijers, 1996 e Maierù, 1994.

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disputatae. Uma vez apto a desempenhar todas as funções constituintes da disputatio, inclusive a exercida pelo mestre, o bacharel recebe do Chanceler, em uma ocasião solene, sua Licentia Docendi. Doravante, exercerá a tríade que resume a atividade universitária do mestre em teologia: legere, disputare, praedicare33.

A RECEPÇÃO DO ARISTOTELISMO GRECO-ÁRABE Durante a primeira parte da Idade Média, assistimos ao

processo de adequação34, com maior ou menor sucesso, do neoplatonismo aos dogmas cristãos, resultando em um corpus teórico cujos paradigmas fundamentais, uma vez estabelecidos, permitiram uma coerência conceitual na abordagem de certo número de questões teológicas. Essa relativa estabilidade nas relações filosófico-teológicas parecia, ao menos sob o olhar panorâmico de longa duração, demorar mais do que a História costuma tolerar. Com o advento dos textos aristotélicos, é todo um equilíbrio que se encontra em xeque. Como vimos, o último terço do século XII conheceu um desenvolvimento pedagógico-metodológico sem precedentes, onde o estudo da dialética exerceu um papel central. A redescoberta dos libri naturales (Física, Metafísica, Da alma, etc.) de Aristóteles representará algo similar para o século XIII35. Mas esse acontecimento esconde outro: a rica tradição greco-

33 Lecionar, disputar, pregar. A tradução mais correta para disputatio seria, de acordo com Blaise (1998), o termo discussão. Preferimos, contudo, traduzir por disputa para manter o aspecto agonístico que caracterizava esta atividade, principalmente na sua forma “quodlibética”. De fato, enquanto nas questões disputadas, em suas duas formas, privada (privata ou in scholis) ou pública (publica ou ordinaria), há um único tema em discussão, normalmente escolhido pelo mestre, nas quaestiones de quodlibet os assuntos eram livres, variados e propostos por qualquer um dos presentes. Cf. Solère, 2006, p. 1304-1305; Ong-Van-Cung, 1998, p. 7-9 e Desbiens, 2009, p. 16-21. Este último está disponível na internet (ver referências bibliográficas). 34 Talvez o termo seja exagerado e devêssemos substituí-lo por combinação. 35 Com respeito à cronologia da recepção do corpus peripatético no ocidente cristão, ver os dois artigos de R. Gauthier, ambos publicados em 1982.

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árabe do comentário. Pode-se dizer que, ao emergir da noite dos tempos, Aristóteles já não é mais tão somente aristotélico. Envoltos, camada sobre camada, por comentários, adendos, interpretações, interpolações, seus textos se tornam inseparáveis de tudo o que deles se disse; eles trazem consigo séculos de indagações, dúvidas, hesitações, recuos e convicções, toda a concordância e a divergência – de Temistius a Averróis – de que o gênero humano é capaz. É preciso compreender que a recepção de Aristóteles significa, ao mesmo tempo, a recepção da tradição interpretativa de seus comentadores gregos e árabes. E essa dupla recepção ainda guarda outra significação: com a organização e o desenvolvimento das Universidades, o corpus peripatético se torna objeto de uma sistematização – a partir da codificação dos gêneros literários – que determinará as perspectivas do ensino nos séculos XIII e XIV.

Entretanto, já nos primeiros anos do século XIII, aparecem as primeiras restrições em relação ao pensamento aristotélico (Cf. BIANCHI, 1999, p. 89-128; ELDERS, 1988, p. 360-361; MANDONNET, 1911, p. 16-22). Tanto a proibição parisiense do ensino dos libri naturales, em 1210 e em 1215 (Cf. LIBERA, 2003, p. 27), quanto a consolidação do dogma da criação ex tempore pelo concílio de Latrão IV, em 121536, testemunham as dificuldades inerentes à inserção do aristotelismo greco-árabe no ocidente cristão. Embora essas

36 Opondo-se à tese aristotélica da eternidade do mundo, este concílio estabelece que o começo temporal do mundo deva ser definido como artigo de fé. O texto não deixa margem a dúvidas: “Firmiter credimus et simpliciter confitemur, quod unus solus est verus Deus, aeternus, (...) unum universorum principium: (...) qui sua omnipotenti virtute simul ab initio temporis utramque de nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem”. [“Nós acreditamos firmemente e professamos absolutamente que há apenas um único Deus, eterno, (...) princípio único de todas as coisas, (...) que, por sua virtude onipotente, criou do nada e no começo do tempo a criatura espiritual e a corporal”] (tradução nossa). Concilium Laterense IV, 1215, De Trinitate, sacramentis, missione canonica, etc., cap. 1, De fide catholica in: Denzinger, Enchiridion Symbolorum, n. 800, apud MICHON, 2004, p. 353.

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contrariedades – e restrições subsequentes37 – tenham inegavelmente obtido êxito em retardar a difusão, não foram capazes, todavia, de impedir que as ideias de Aristóteles e as de seus comentadores circulassem, cada vez mais, no interior da Universidade de Paris38, ao longo do segundo quarto do século XIII. De fato, certos mestres em teologia – de Alexandre de Halès a Alberto Magno – contribuíram, de maneira decisiva, para a superação da resistência de seus pares, trazendo para suas próprias reflexões algumas problemáticas originadas pela leitura do corpus peripatético. Graças a esse estudo sistemático, estabelece-se um conjunto de temas e de argumentações a partir dos textos de Aristóteles – comportando remissões e comparações às fontes greco-latinas e greco-árabes – sobre o qual se edificarão o debate e o ensino universitários da segunda metade do século39. Mas dessa efervescência conceitual, presente tanto na Faculdade de Artes40 quanto na de Teologia41, emergem dois problemas que estarão, mais tarde, implicados nas condenações promulgadas pelo Bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1270 e 127742, e na gênese do estatuto da Faculdade de Artes, adotado em 1° de

37 Confirmação da proibição de Aristóteles, em 1231, por Gregório IX, e interdição de Aristóteles em Toulouse, em 1245. Cf. Aquino, 1997, p. 382-383. 38 Restringimo-nos à Universidade de Paris em razão da carreira de Boaventura ter se desenvolvido nesta instituição, mas é evidente que a assimilação do aristotelismo greco-árabe é um fenômeno do ocidente latino e não apenas parisiense. Cf. Wéber, 1991, p. 2-12. 39 A esse respeito, ver Michon, 2004, p. 41-47 e Libera, 2003, p. 177-186. 40 Em 19 de março de 1255, a Faculdade de Artes incluía em seu programa oficial o ensino dos libri naturales de Aristóteles (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 9). Sobre o desenvolvimento e a evolução da Faculdade de Artes, em especial a partir dos anos 1250, os trabalhos de referência são: Weijers e Holtz, 1997; Weijers, 2002 e Glorieux, 1971. 41 Cf. Bazàn, 1985, p. 13-149. Para uma comparação entre as disputationes na Faculdade de Artes e na de Teologia, ver Weijers, 2009. 42 Com respeito às condenações, ver os trabalhos fundamentais de Hissete, 1977 e de Piché, 1999. Com relação à crise na Universidade de Paris, na década de 1270, cf. Libera, 2003, p. 191-220.

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abril de 127243: a tese da eternidade do mundo, atribuída a Aristóteles44, e a tese da unidade do intelecto possível (dito material) em todos os homens, atribuída a Averróis45. Como veremos mais adiante, Boaventura não as poupará de suas críticas.

BOAVENTURA E A FILOSOFIA Como o doutor seráfico considera a filosofia? Qual o seu

estatuto perante outros tipos de conhecimento? Qual a sua

43 “O estatuto de 1272 inicialmente proíbe os mestres e bacharéis da Faculdade de Artes de determinar ou de disputar as questões ‘puramente teológicas’. Em seguida, fornece com precisão as disposições que concernem à maneira de se conduzir diante das questões que pertencem tanto ao domínio da fé quanto ao da filosofia. (...) o estatuto acrescenta que se ao dar uma aula sobre um texto ou disputar uma questão, mestres e bacharéis encontrarem passagens ou argumentos filosóficos que ‘parecem em certa medida destruir a fé’, eles devem se ater a adotar uma dessas três soluções: dar uma refutação cabal desses textos ou argumentos; declará-los ‘falsos absolutamente [simpliciter] e totalmente errados’; passar por eles em silêncio, recusando-se a explicá-los ou a discuti-los” (BIANCHI, 2008, p. 98-99). Sobre o debate historiográfico acerca da constituição e das consequências do estatuto de 1272, consultar principalmente Bianchi, 1999, p. 165-201; Putallaz e Imbach, 1997, p. 128-134 e Pluta, 2002, p. 563-585. 44 Com relação a estes acontecimentos sob a perspectiva dos debates sobre a eternidade do mundo, cf. Michon, 2004, p. 35-47. Cyrille Michon tem razão em remeter o leitor aos três trabalhos a seguir: a exposição mais detalhada do problema feita por Dales, 1990, p. 50-85; e os artigos de Brown, 1991 e de Long, 1998 (sobretudo p. 52-67), que tratam dessas discussões na Universidade de Oxford. Para o contexto parisiense, indicamos a obra clássica de Mandonnet, 1911, p. 23-39. 45 Com relação à história dessa questão e de seus desdobramentos filosóficos e teológicos, assim como das restrições dogmático-coercitivas, ver o excepcional trabalho de Libera, 2004. Esse comentário exaustivo do De Unitate Intellectus Contra Averroistas, de Tomás de Aquino, não se limita ao que parece propor. Ao longo de suas mais de 500 páginas, A. de Libera analisa todos os autores implicados no problema – tenham ou não sido do conhecimento do próprio Tomás – dos comentadores greco-árabes aos autores latinos, cujas posições permitiram a certa vertente historiográfica, da qual Libera discorda, a invenção da expressão “averroismo latino”. O ideal é a leitura integral do texto, mas se a ocasião não se apresentar, indicamos ao leitor as seguintes passagens: p. 13-61; 73-77; 81-103; 108-127; 138-141; 163-173; 189-200 e, principalmente, p. 343-525. Aconselhamos, igualmente, um texto mais acessível, do mesmo autor (LIBERA, 1997, p. 9-73), assim como Bianchi, 1996, 45-93.

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natureza? Em um opúsculo, cujo título – De reductione artium ad theologiam –, lhe foi atribuído séculos depois46, Boaventura expõe, ainda que sucintamente, sua concepção sobre o conhecimento, suas diversas formas e as conexões que estabelecem entre si (BOAVENTURA, 1971). Mas, para compreender o que é dito, é preciso partir de certas considerações que nem sempre se encontram suficientemente explícitas no texto.

O pensamento de Boaventura pode ser resumido da seguinte maneira: Deus cria tudo o que há do nada (creatio de nihilo)47 e se manifesta em sua criação48. Assim, as criaturas carregam as marcas de Deus. Enquanto ser, o que existe se define por sua essência; mas, como criatura, é signo que remete a Deus49. Se tudo o que existe guarda em sua própria substância a marca que reluz, por que razão essa profusão de vestígios da ação divina, presente na natureza, não nos é visível? É porque não se trata da invisibilidade em si, mas para nós. Com efeito, a alma humana tem uma única natureza,

46 Embora tradicionalmente conhecido sob esse título, o conjunto de seus manuscritos (total de 34) apresenta 12 em que não há título algum e apenas 3, datados do século XV, adotam o nome em questão (MICHAUD-QUANTIN, 1971, p. 7). 47 Cf. Boaventura, 1967, p. 54-57 (c. 1, n. 1 e 2). Nas obras de Boaventura inserimos também, entre parêntesis, a referência tradicionalmente empregada quando se trata de autores medievais, para que o leitor a localize independentemente da edição consultada. No presente exemplo, sabemos, pela bibliografia, que se trata do Breviloquium, parte II; e pela referência entre parêntesis, que se trata do capítulo 1, números 1 e 2. 48 “Primum principium fecit mundum istum sensibilem ad declarandum se ipsum.” [“Le premier principe a fait ce monde sensibile pour se manifester lui-même”(BOAVENTURA, 1967, p. 118-119 (c. 11, n. 2)]. ”O primeiro princípio fez o mundo sensível para manifestar a si mesmo.” No caso do homem, Deus manifestou a sua potência ao fazê-lo a partir de naturezas distantes entre si, como é o caso do corpo e da alma no gênero da substância (uma corporal, outra espiritual) [cf. ibid., p. 112-113 (c. 10, n. 3)]; manifestou sua sabedoria ao criá-lo com um corpo harmonizado à alma [cf. ibid., p. 112-113 (c. 10, n. 4)]; e manifestou sua bondade e benevolência ao criá-lo sem mácula ou culpa e sem nenhum castigo nem miséria [cf. ibid., p. 114-115 (c. 10, n. 5)]. 49 Existem quatro tipos de signos, revelando os graus de proximidade e de distanciamento no modo como cada criatura representa o Criador: a sombra, o vestígio, a imagem e a semelhança (Cf. GILSON, 1953, p. 170-182).

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embora se defina de fato por dois estados: antes e depois do pecado original. Desse modo, a capacidade da alma deve ser avaliada em função do estado em que ela se encontra.

Primitivamente, em seu estado de inocência, Adão conhecia através de espécies inatas, assim como é o caso dos anjos50. Isso significa que ele conhecia os modelos pelos quais Deus criou todas as coisas. De fato, a natureza da alma humana é como um espelho cuja perfeição é comparável à do anjo51. Por outro lado, Deus é potência, bondade e luz. A face de Deus é a fonte de toda luz. Nesse sentido, Deus é chamado de Pai das luzes52. Ao criar a alma, Deus a ilumina em intensidade máxima e esta – já que espelho – torna-se reflexo divino, passando a ser, ela mesma, capaz de iluminar. Como a verdade é a luz da alma, a luz divina lhe transmite o conhecimento das razões eternas. Em Deus, a ideia é o conhecimento e o modelo do que é criado. Na alma, o reflexo da ideia – ou seja, a espécie – se torna fundamento, condição e medida da inteligibilidade máxima possível, constituindo o campo do humanamente verdadeiro53. 50 “Anima Adae habuit species innatas, ut etiam Angelus”[BOAVENTURA, 1885, p. 50 (II, d. 1, p. 2, a. 3, q. 2, concl.)]: “A alma de Adão tinha espécies inatas, como o Anjo também [as tem]”(tradução nossa). 51 “Et sic ante lapsum homo perfecta habuit naturalia”[BOAVENTURA, 1967, p. 122 (c. 11, n. 6)]. “E assim, o homem tinha uma natureza perfeita, antes da queda”(tradução nossa). 52 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2); 1971, p. 48-49 (prol. n. 1); 1994, p. 20-21 (prol. n. 1). 53 Com efeito, a inteligibilidade em si identifica-se com a inteligibilidade divina; a inteligibilidade propriamente humana define-se pelos limites do conhecimento de Adão no estado de inocência (por exemplo, Adão conhece perfeitamente todo o campo do criado, mas não conhece de maneira imediata e direta a essência divina, pois não vê Deus face a face; se tal fosse o caso, o pecado teria sido impossível) [cf. BOAVENTURA, 1885, p. 544-545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.)]; em contrapartida, a inteligibilidade para nós, isto é, após a queda, limita-se, por um lado, ao conhecimento abstrativo a partir das coisas sensíveis e, por outro, ao saber divino contido nas Escrituras e acessível a nós pelo duplo concurso da fé e do estudo do texto sagrado em seu sentido não literal ou espiritual (qualquer outro tipo de conhecimento implica uma ação divina, seja pela graça, seja pela iluminação da alma do bem-aventurado, após a morte, no estado de glória). Cf. Boaventura, 1967, p. 127 (c. 12, n. 5) e 1971, p. 60-61 (p. 1, n. 5); Gilson, 1953, p. 347-355.

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Para Adão, o mundo era então pleno de inteligibilidade, não apenas ao nível do conhecimento das essências das coisas, mas, sobretudo, na compreensão da comunhão da criatura ao Criador, expressa na visibilidade inequívoca do mundo como vestígio de Deus. Percorria com facilidade toda a escala dos signos – passando por sua própria alma, imagem e semelhança de Deus – em direção à fonte de tudo e para onde tudo o que é da ordem do espiritual anseia retornar54. No entanto, o pecado original afetou a transparência que assegurava a limpidez do reflexo, tornando opaca a superfície da alma55 e parecendo varrer do mundo os vestígios da arte divina56.

A queda de Adão é também a nossa. A nossa alma ainda é imagem de Deus, mas está deformada pelo pecado. Doravante, as razões eternas estão além de qualquer compreensão. Existe, em algum lugar, escondida pela nossa cegueira, a verdade que salva, ou só nos resta então suportar a existência, reféns do medo e da superstição? Não, para Boaventura ainda há esperança, porque Deus não nos abandonou. Longe disso. A vinda de Cristo é a prova. Resta-nos a luz reparadora, a iluminação que salva: a luz das Sagradas Escrituras57. Contudo, ela está escondida sob o manto das palavras em seu sentido literal. E tal como estamos cegos aos vestígios de Deus, somos como analfabetos face aos significados que se furtam à leitura. Reaprender a ler, tornar-

54 Todas as criaturas são vestígios, mas apenas as criaturas inteligentes ou espíritos racionais são imagens e somente as criaturas deiformes – isto é, o anjo, o homem no estado de inocência e a alma do bem-aventurado no estado de glória – são semelhanças de Deus. “Quasi per quosdam scalares gradus intellectus humanus natus est gradatim ascendere in summum principium, quod est Deus” [“Comme par les degrés d’une échelle, l’intelligence humaine est capable de s’élever graduellement jusqu’au principe souverain, qui est Dieu”] (BOAVENTURA, 1967, p. 122-123 [c. 12, n. 1]). ”Como pelos degraus de uma escada, a inteligência humana é capaz de elevar-se gradualmente até o princípio soberano, que é Deus” (tradução nossa). 55 Sobre a alma no estado de miséria (in statu miseriae), entendida como espelho obscurecido pelo pecado, ver Boaventura, 1885, p. 545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.). 56 Cf. Boaventura, 1967, p. 124-125 (c. 12, n. 4). 57 Cf. Boaventura, 1971, p. 48-49 e 60-61 (prol., n. 1 e p. 1, n. 5).

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se capaz de descobrir os significados por trás dos signos que os escondem, reconquistar a sabedoria que as ciências teimam, em vão, substituir: essa é a tarefa que se impõe. A partir da condição humana em seu estado de pecado, como inventar os meios para se alcançar a iluminação que salva? A questão que Boaventura se coloca no De reductione artium ad theologiam e que repete até na última de suas Collationes é se a filosofia tem e qual seria o seu papel no caminho da reparação.

No seu De reductione artium ad theologiam, Boaventura propõe uma classificação dos saberes, onde inicia de maneira clássica, referindo-se ao Didascalicon de Hugo de São Vitor, como se fosse estabelecer, a exemplo do que fora tradicional no século XII, uma lista das artes e scientiae de seu tempo. Com efeito, o doutor seráfico divide o conhecimento próprio às artes mechanicas – isto é, às técnicas inventadas pelo homem para compensar as deficiências inerentes ao corpo – em sete tipos, acompanhando assim a divisão anteriormente estabelecida por Hugo. Mas, as semelhanças entre as duas classificações terminam sem demora, logo suplantadas pelas diferenças de abordagens. Ao contrário de seus predecessores que se interessavam pela repartição criteriosa das artes e scientae existentes de maneira a formar um quadro coerente, quase escolar, Boaventura se interroga, sobretudo, pelas condições necessárias à existência de cada disciplina. Em outras palavras, que modo cognitivo está implicado na atividade formadora de tal ars ou tal scientia?

Mas, essa orientação já estava de certa maneira presente no Prólogo do De reductione. Assim como em outras de suas obras58, Boaventura lembra Jacó e o tema da fonte de toda perfeição e excelência que caracteriza o dom: a figura do Pai das luzes (1971, p. 48-49). A identificação de Deus à luz incriada que ilumina é correlata àquela que une luz e

58 Cf. Boaventura, 1966, p. 84-85 (prol. n. 2) e 1994, p. 20-21 (prol. n. 1).

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conhecimento59. Disso resulta que Boaventura distribui os saberes e os modos de conhecimento envolvidos conforme uma escala de iluminações. A primeira, relativa ao conhecimento implicado na produção de bens para suprir as deficiências do corpo, é chamada de luz exterior e se divide, como já dissemos, em sete, formando as sete artes mechanicas [Ibid., p. 50-55 (P. 1, n. 2)]. A segunda se refere ao conhecimento das coisas sensíveis e, nesse sentido, é chamada de inferior [Ibid., 54-57 (P. 1, n. 3)]60. A terceira nos permite alcançar o domínio das verdades inteligíveis e diz respeito ao conhecimento filosófico. Ela é chamada de interior porque a investigação filosófica busca as causas íntimas, utilizando os princípios inatos das ciências e da verdade natural. Ela comporta por sua vez uma tripla subdivisão, correlata da divisão da filosofia em racional, natural e moral, ocupando-se a primeira da verdade do discurso, a segunda da verdade das coisas e a última da verdade da conduta [Ibid., p. 56-61 (P. 1, n. 4)]. A quarta é a das Sagradas Escrituras e sua iluminação nos aproxima do que nosso estado de miseria impede de alcançar: a 59 Não se trata, evidentemente, da luz corporal. Ao contrário do que nos sugere o senso comum, Boaventura – a exemplo de Agostinho – pensa, com efeito, que se podemos dizer habitualmente que o sol ilumina, é porque a natureza da linguagem nos permite predicar metaforicamente. Na verdade, só Deus é luz no sentido próprio e absoluto. A criatura espiritual, anjo ou alma humana, visto que é ontologicamente dependente do Criador, só é relativamente a Deus e, portanto, é luz no sentido próprio, mas não absoluto. Assim, entre a luz incriada e as luzes criadas há uma analogia de proporção, ou seja, estas se distribuem em graus de acordo com a maior ou menor proximidade em relação a Deus. O sol, por sua vez, não é luz no sentido próprio, mas apenas metaforicamente. O sol é luz segundo uma atribuição fundamentada em uma analogia de proporcionalidade, uma vez que a luz corporal, apesar de radicalmente diferente da luz espiritual, ilumina os corpos assim como Deus ilumina as naturezas espirituais. Em vez de hierarquia de graus, temos uma semelhança de relação ou função (Cf. GILSON, 1953, p. 221-223). Com relação à luz física, sua criação, sua natureza e seu papel enquanto forma substancial comum a todos os corpos [cf. BOAVENTURA, 1885, p. 312-313; 317-318; 320-321 (II, d. 13, a. 1, q. 1, concl.; a. 2, q. 1, concl.; a. 2, q. 2, concl.)]. 60 Sobre o conhecimento sensível e do caráter ativo inerente ao tema da sensação, segundo Boaventura, em oposição à passividade que lhe deve ser atribuída de acordo com Tomás de Aquino, ver Wéber, 1974, p. 52-60, assim como o texto clássico de Gilson, 1953, p. 275-291.

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verdade que salva [Ibid., p. 60-63 (P. 1, n. 5)]. Assim, essas quatro luzes cobrem a totalidade do conhecimento humano. Mas, como a iluminação do conhecimento filosófico divide-se em três, a classificação final de Boaventura estabelece seis iluminações [Ibid., p. 62-63 (P. 1, n. 6)].

Embora cada uma das iluminações e seus respectivos conhecimentos não pareçam estar necessariamente interconectados, Boaventura considera que, na verdade, cada uma delas representa uma etapa e, enquanto tal, prepara-nos para a seguinte. Mas, essa complementaridade – expressão de uma ordem e de um sentido mais profundos – não nos é evidente, em razão do pecado original. Por isso, o estudo das Escrituras é fundamental. Entretanto, não adianta saber as passagens de cor, não basta conhecer a intimidade das palavras, pois de certo modo a letra é muda. É preciso ir além, tornar-se capaz de ler o texto através do seu sentido literal, para apreendê-lo em seu triplo sentido espiritual: o alegórico nos ensina em que acreditar; o moral, o modo correto de viver; o anagógico, a recuperar o que nos liga a Deus. Ao termo desse processo, constata-se que todos os outros conhecimentos já se encontram de alguma forma contidos no texto sagrado. Desse modo, cada um deles só exprime o seu verdadeiro sentido quando entendemos que ele espera, desde a noite dos tempos, pelo olhar espiritual capaz de reconhecê-lo61.

Por outro lado, o estudo das Escrituras requer, da parte do leitor, o domínio dos outros saberes, em especial o da filosofia. Mas, o aliado pode se transformar em traidor se não compreende a sua verdadeira razão de ser, colocando-se então como fim em vez de meio, recusando-se a prosseguir nessa jornada que ultrapassa os limites de sua própria

61 Cf. Boaventura, 1971, p. 60-63, 84-85 (P. 1, n. 5 e 7; P. 2, n. 26). Em relação a como os cinco conhecimentos já se encontram incluídos nas Sagradas Escrituras, ver, na mesma obra: sobre o conhecimento sensível, p. 64-69 (P. 2, n. 8-10); sobre o técnico, p. 68-73 (P. 2, n. 11-14); sobre o da filosofia racional, p. 72-77 (P. 2, n. 15-18); sobre o da filosofia natural, p. 76-81 (P. 2, n. 19-22); sobre o da filosofia moral, p. 80-85 (P. 2, n. 23-25).

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inteligibilidade, negando-se a continuar a experiência que substituiria as inquietações do filósofo pelo êxtase místico. Talvez isso explique o posicionamento adotado por Boaventura em seus últimos anos de vida. A partir dos anos 1260, o doutor seráfico parece se preocupar menos com a filosofia do que com esse papel de recusa que ela poderia desempenhar. Ao invés de etapa, a filosofia assumiria ares de obstáculo. Mas de que forma a passividade da recusa adquire contornos de ameaça? Esse é o problema que ainda nos resta tratar.

BOAVENTURA CONTRA A FILOSOFIA? Como vimos, a recepção do aristotelismo greco-árabe

significa um avanço sem precedentes na história do pensamento medieval. A exploração sistemática desse conjunto de saberes transforma tanto as modestas concepções filosóficas, até então veiculadas pelo quadrivium, quanto a maneira como se percebe a natureza e a conduta humanas, implicadas nas doutrinas religiosas. Desde o ano de 1240, os novos textos de Aristóteles são objeto de análises e sínteses que integram os cursos dos mestres em artes. Esta prática é finalmente institucionalizada, em 1255, com a inclusão de toda a obra do estagirita no programa regular da Faculdade de Artes. Por outro lado, a declaração de Alberto Magno, em 1254, de que, ao empreender o seu conjunto de paráfrases explicativas sobre a filosofia de Aristóteles, tinha o objetivo de torná-la inteligível aos latinos, testemunha, por si só, o enfraquecimento da resistência ao aristotelismo, no interior da própria Faculdade de Teologia (WÉBER, 1991, p. 3 e 10-11).

Entretanto, no meio da década de 1260, surge uma polêmica, envolvendo mestres em teologia e em artes. A historiografia pouco conhece sobre os bastidores da controvérsia de Paris, mas esta parece estar ligada a dois fenômenos subsequentes: primeiro, a mudança do corpus sobre

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o qual o mestre em artes se debruça cotidianamente resulta em tal proximidade e compreensão dos problemas filosóficos que não há por que não o reconhecer enquanto filósofo. Em segundo lugar, seu novo estatuto significa também – e não há por que ser diferente – a possibilidade de adotar uma vida filosófica autônoma e de aspirar a uma beatitude própria, como a descrita no fim da Ética a Nicômaco, que a seus olhos suplantaria a visão beatífica (cf. MICHON, 2004, p. 95-97). Embora não seja possível determinar as verdadeiras razões do conflito, os textos mostram que duas teses presentes nesse corpus estão diretamente implicadas nos acontecimentos que antecederam e, em certa medida, determinaram as condenações e restrições que se multiplicam a partir de 1270. Na década de 1260, as duas teses em questão, a saber, a da eternidade do mundo e a do intelecto único para todos os homens, são objeto de duras críticas, por parte de Boaventura, desde suas Collationes de decem praeceptis, proferidas em 1267. Na verdade, a crítica não se dirige somente às teses, mas também – ou sobretudo – àqueles que as divulgam em sala de aula ou em disputationes e sophismata62.

É interessante notar que Boaventura não se preocupa exatamente em refutá-las através de uma argumentação bem fundamentada, mas visa principalmente denunciá-las pelo que “são”: erros da filosofia. A posição de Boaventura pode ser resumida da seguinte forma: a filosofia é certamente útil para auxiliar na resolução de certas questões de fé, mas deve ser elevada pela fé, uma vez que, se permanecer em seu próprio nível, arrastará inevitavelmente ao erro aquele que dela faz uso. Com efeito, não existe verdade de fé que seja perfeitamente compreensível ao infiel, assim como não há

62 Sobre a história dos sophismata e de sua similaridade com as disputationes, cf. Libera, 2006.

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filósofo que não incorra em erro se não contar com o auxílio da luz da fé63.

Mas, estas teses ou erros Boaventura os conhece há muitos anos. No seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, escrito nos anos 1250-52, ele os estuda para melhor refutá-los. Sua argumentação é filosófica e fundamenta-se em considerações sobre o infinito. Dos seis argumentos apresentados, quatro remetem diretamente a Aristóteles (arg. 1, 2, 3 e 5)64. Entre estes, um é especialmente importante para o entendimento da correlação entre as duas teses e de suas consequências, muitas vezes inaceitáveis, para a organização das crenças inerentes à espiritualidade cristã do período. Trata-se do argumento de número 5, onde Boaventura se inspira na objeção aristotélica relativa ao infinito em ato [Física

63 Esta é uma convicção que o acompanha desde 1250: “Necesse est enim, philosophantem in aliquem errorem labi, nisi adiuvetur per radium fidei.” (“Com efeito, aquele que filosofa cai necessariamente em algum erro, exceto se ajudado pelo raio [de luz] da fé”) [tradução nossa]. Boaventura, 1885, p. 448 (II, d. 18, a. 2, q. 1, ad 6). 64 O primeiro afirma que é impossível acrescentar ao infinito [Do céu I, 12, 283a 9-10]. Assim, se o mundo fosse eterno, a duração do passado seria igualmente infinita e, consequentemente, o número de revoluções do sol também. Mas, a cada revolução solar correspondem doze lunares, o que leva à conclusão absurda de um infinito maior que outro. O segundo argumento começa com a proposição: “É impossível que os infinitos sejam ordenados” [Física VIII, 5, 256a 17-19]. Com efeito, toda ordem decorre do primeiro princípio em direção a um intermediário. Objeta-se, no entanto, que essa regra não se aplicaria a todo tipo de ordenação – logo não diria respeito à ordem temporal dos dias, em anterior e posterior – mas apenas ao caso da ordem causal. Mas, o animal é engendrado pelo animal segundo a ordem da causa, havendo então a necessidade de um primeiro princípio. E, como não há revolução do céu sem que ocorra uma geração de um animal por outro animal, é preciso admitir uma primeira revolução para salvaguardar a ordem da geração animal. O terceiro argumento fundamenta-se na impossibilidade de se atravessar os infinitos [Metafísica XI, 10, 1066a 35]. Bem, se o mundo não teve início, o passado deveria atravessar sua duração infinita para que o hoje lhe seja contíguo. Além disso, um evento passado infinitamente distante do presente, mas anterior a outro evento passado também infinitamente distante do presente, recoloca o problema da impossibilidade de haver diferenças de grandeza entre dois infinitos. Portanto, a rigor, os dois eventos em questão não podem ser entre si nem anterior nem posterior, o que os torna simultâneos. E, nesse caso, é a própria noção de tempo que entra em colapso. [Cf. BOAVENTURA, 1885, p. 20-21 (II, d. 1, p. 1, a. 1, q. 2, sc 1, 2, 3) e MICHON, 2004, p. 59-61].

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III, 5, 206a 8] e afirma que é impossível a existência simultânea de um número infinito de realidades [Física III, 5, 204a 20-25; Metafísica XI, 10, 1066b 11]. Admitamos a eternidade do mundo. Como, de certo modo, todas as coisas existem para o homem, os homens sempre habitaram o mundo. Isso significa que as sucessivas gerações humanas são também infinitamente numerosas e que o número de homens que existiram é igualmente infinito. Mas, não se trata aqui do infinito atual, pois o homem é um ser corruptível e sua vida tem uma duração finita. Todavia, cada homem possui uma alma racional. Visto que esta última é uma forma incorruptível, é preciso admitir a existência atual de um número infinito de almas racionais, o que é impossível. Logo, existem três consequências possíveis: o mundo foi criado do nada e no tempo, havendo assim um primeiro princípio, isto é um primeiro dia, um primeiro homem, etc.; o mundo é eterno, existiram infinitos homens, mas só há um número finito de almas que habitam sucessiva e alternadamente a infinidade de corpos corruptíveis; ou, então, o mundo é eterno, infinitos homens já o habitaram, porém há somente uma única alma racional para todos os homens. A segunda hipótese instaura a circulação das almas e é um erro filosófico refutável através do próprio Aristóteles. Mas, a última consegue ser um erro filosófico ainda pior, mais absurdo, mais incompreensível, pelo fato de seu autor, Averróis, pretender havê-la encontrado nos textos aristotélicos.

Nesse mesmo livro, mais à frente, Boaventura se interroga sobre a unidade ou a pluralidade da alma humana (racional) segundo o modo da substância. Nessa questão, critica a posição de que a alma humana, enquanto intelecto, é uma única em todos os homens, não somente com relação ao intelecto agente, mas também no que concerne o intelecto possível. Assinala a origem averroísta da posição e critica a tentativa do Comentador (Averróis) de impô-la a Aristóteles, como se ela estivesse presente no De anima e fosse

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necessariamente complementar à afirmação do estagirita a propósito da eternidade do mundo e do número infinito de homens que nos precederam. Termina sua conclusão com um duplo repúdio à posição averroísta: por ser falsa do ponto de vista da razão e por seu caráter herético. Com efeito, se a alma racional é única, nossa individualidade desaparece inevitavelmente com a morte, o que impede a imortalidade pessoal e a retribuição do mérito65.

Mas, no final dos anos 1260, o contexto mudou inteiramente. Não é tempo para análises e minúcias, é tempo de ir direto ao essencial. O ambiente universitário está tomado, para usar uma expressão de A. de Libera (1997, p. 19), por uma “urgência teológica”. Em 1267, Boaventura previne os estudantes e mestres em Artes contra os erros dos filósofos, mas sem citar nomes. É evidente que não os ignora. Os textos do Comentário das Sentenças o atestam. É como se isso não tivesse tanta importância, visto que a sedução exercida pelos textos aristotélicos e os de seus comentadores conduziria o leitor, cedo ou tarde, aos erros e à heresia. A investigação filosófica sem a luz da fé é presunçosa e inconsequente. Agrada-nos tanto com a limpidez dos raciocínios lógicos que nos esquecemos de polir o espelho da alma no estudo do texto sagrado. Boaventura não argumenta mais, mas denuncia. Afirmar a unicidade do intelecto equivale a negar a verdade da fé, a salvação das almas, a obediência aos mandamentos e a aceitar que o pior homem será salvo e ao melhor caberá a danação (cf. BOAVENTURA, 1992, p. 72). Boaventura previne, denuncia, mas também adverte. Referindo-se à Universidade, afirma daquele que concebe, sustenta e reproduz as duas teses de que tratávamos a pouco, que ele comete um grave erro e que, por isso, “tanto o autor, quanto o defensor e o imitador

65 Cf. Boaventura, 1885, p. 446-447 (II, d. 18, a. 2, q. 1, concl.). Sobre a individuação em Averróis, as origens de sua concepção da alma e o problema que a sua tese da unidade do intelecto material (possível) representou para a promessa cristã da salvação pessoal, na segunda metade do século XIII, ver Cruz, 2008, p. 318-353.

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estão, todos, proibidos aqui”(Ibid., p. 72). Em 1268, retoma o problema, ainda sem citar nomes, num tom menos enfático, mas com a escolha da imagem certa, aquela que toca a quem escuta e reforça a autoridade de quem a profere: a tese da unidade do intelecto postula a identidade substancial da alma de Cristo e da alma de Judas [cf. BOAVENTURA, 1891, p. 497 (coll. 8, n. 16)]. Não se pode imaginar maior injustiça.

Já em 1273, na última de suas Collationes, Boaventura reencontra as duas teses, mas desta vez, não denuncia nem comove: argumenta. Retoma o raciocínio empregado no Comentário e aponta as possíveis consequências de um mundo eterno: infinidade de almas, almas corruptíveis, transmigração de almas de corpo em corpo, ou então a unidade do intelecto em todos. Mas, diferentemente de 1267 e 1268, ele afirma, sem hesitação, mais enfaticamente que há vinte anos, que a tese da eternidade do mundo é genuinamente aristotélica e que a da unicidade do intelecto é o erro atribuído ao Filósofo (Aristóteles) segundo a interpretação do Comentador (Averróis)[Cf. BOAVENTURA, 1991, p. 213 (coll. 6, n. 4)].

Mas, é apenas no fim dessas conferências que Boaventura parece revelar a natureza de sua relação à filosofia. Para ele, não se chega a compreender toda a riqueza das Escrituras sem proceder a um estudo sério, ordenado e assíduo. É preciso então abordar os dois Testamentos antes de passar aos trabalhos da Patrística, às sumas e aos filósofos. Primeiro, deve-se conhecer bem o texto das Escrituras. O estudo da Patrística ajuda nesse trabalho, mas nela encontramos temas difíceis que exigem o auxílio das sumas e dos filósofos. Nas sumas não é difícil se perder, então é melhor se restringir às opiniões mais comuns. Mas, no estudo dos filósofos, a prudência é boa companhia. Embora indispensável, a filosofia constitui o maior perigo, porque a beleza dos discursos dos filósofos pode nos tirar o gosto pela

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leitura das Escrituras. A prudência aconselha, então, a restringir seu estudo ao estritamente necessário66.

Por tudo o que vimos, podemos concluir que a relação do doutor seráfico com a filosofia é tão complexa quanto ambígua. Ora etapa, ora obstáculo, parece-nos que a filosofia tem nessa oscilação uma das principais características do seu estatuto no pensamento de Boaventura. E embora nós, pós-modernos, pós-morte de Deus, tenhamos pouco em comum com suas aspirações, acreditamos que, ao menos em um ponto, Boaventura tenha sido atemporal: a filosofia realmente nos seduz. REFERÊNCIAS AQUINO, T. L’Unité de l’intellect contre les averroïstes, suivi des Textes contre Averroès antérieurs à 1270 (Texte latin. Traduction, introduction, bibliographie, chronologie, notes et index par Alain de Libera). Paris : Flammarion, 1997. _______. Questions disputées sur la vérité. Question X. L’esprit (De mente)(Texte latin de l’édition Léonine. Introduction, traduction, notes et postface par Kim Sang Ong-Van-Cung). Paris: Vrin, 1998. BAKKER, P. J. J. M. (ed.) Chemins de la pensée médiévale. Mélanges Zénon Kaluza. Turnhout: Brepols, 2002. BAZÀN, B. C. [et al.] Les Questions disputées et les questions quodlibétiques dans les facultés de théologie, de droit et de médecine. Turnhout: Brepols, 1985. BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”. Paris: Vrin, 2008. _______. Censure et liberté intellectuelle à l’Université de Paris (XIIIe-XIVe siècle). Paris: Les Belles Lettres, 1999.

66 Cf. Boaventura, Collationes in Hexaemeron, 1891, p. 421-422 (coll. 19, n. 6-15).

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Capítulo 6 MMOONNTTAAIIGGNNEE:: CCEETTIICCIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Celso Martins Azar Filho

Os Ensaios sempre foram vistos pela tradição como

contendo ideias importantes sobre a educação67: com efeito, um de seus temas mais constantes. E como Montaigne, a maior parte dos grandes humanistas preocupou-se em propor uma teoria pedagógica68. Trata-se de um dos motivos dominantes da cultura renascentista, com o qual a organização sócio-política e a ciência constituem questões solidárias e interdependentes.

Para avaliar a ambiência histórica de tal interesse, deve-se atentar para o quanto foi inaugural a época de transição entre o Medievo e Modernidade, e contemplar a revolução cultural sem precedentes que o período atravessa: uma ruptura radical que ocasiona tanto dúvida e prudência com relação a toda espécie de conhecimento e visão estabelecida do funcionamento e disposição do mundo, da sociedade e do 67 Porque a educação constitui um tema central para compreender a filosofia renascentista, boa parte do que aqui se lê já foi dito em meus escritos publicados: tento fazer aqui uma espécie de resumo dos pontos mais importantes relativos ao tema, mas gostaria de reenviar àqueles com relação a explicações que não pude detalhar aqui por falta de espaço. A edição dos Ensaios utilizada como referência é a de Pierre Villey (2004), e as citações desta obra serão daqui em diante marcadas pela abreviatura ‘E.’. As traduções são de minha responsabilidade. 68 Há mesmo quem afirme (TERDJMAN, 1986, p. 77) que o ideal educativo reivindicado por nossa sociedade contemporânea teria se originado em grande parte na Renascença.

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corpo, da alma ou da mente humanas, quanto reclama novas construções teóricas. Devemos partir daqui também para compreender como o ensaísta pode ter sido, além de um pedagogo, também um cético69, embora não se trate aí apenas de uma resposta a condições históricas determinadas, porém de algo que orienta sua obra; até o ponto em que, para melhor compreender seu ceticismo, precisamos nos voltar para sua pedagogia, e vice-versa. Pois temos aqui uma questão de método que fazendo parte essencial do projeto filosófico montaigniano, reflui sobre a própria forma do texto: além de destruir ou negar, no mesmo passo aí se afirma e constrói. É preciso não apenas indicar o que deve ou não ser feito, que não somente se discurse sobre um pretenso conhecimento já adquirido e comprovado, mas que o dito sirva de veículo pedagógico para o saber em causa. Que a linguagem mesma, apontando para além de si, sirva como gesto liberador abrindo tanto quanto mostrando as possibilidades e preparando o caminho, bem como também para ele: no ensaio, método e verdade, meios e fins, estão ligados. E se nos Ensaios, os conceitos além de polissêmicos, se estruturam em rede, de forma relacional se “entredefinindo” e modelando segundo as circunstâncias, formas e objetivos da meditação em curso, é porque se experimenta assim refletir o curso das coisas em sua experimentação por leitores e autor, ou a própria dinâmica do que chamamos realidade em seus múltiplos aspectos de representação, isto é, de construção. Ética, política, estética, fisiologia, história, psicologia, poesia, etc. – as “humanidades”, se pudermos evitar a separação estanque, então inexistente, entre ciências humanas e naturais – envolvem cada uma todas as outras em um discurso que tem o homem, não como centro, mas como ideal que se delineia pela busca do verdadeiro

69 Lembremos que, se Montaigne pode ser considerado, sem grandes ressalvas, um humanista ou um cético, com relação à sua filosofia, como é comum acontecer com as obras dos grandes pensadores, as comparações, venham de onde vierem, nunca serão completamente válidas.

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conhecimento: aquele capaz de reunir virtude e felicidade. Mesmo se este saber só possa se oferecer como probabilidade e nunca como algo dado, pois somente por meio de um esforço de formação simultâneo de si mesmo e do aluno/leitor segundo uma perspectiva que considera experiência, compreensão e comunicação como interdependentes pode ser realizado: e por isso a centralidade do problema educacional.

Quando Montaigne expõe suas ideias acerca da sabedoria, da verdadeira cultura e da autêntica virtude, o faz, como é comum em seu tempo, sob a forma de princípios pedagógicos. Todavia, o ensaísta não quis criar uma filosofia da educação como tal ou uma teoria pedagógica em si mesma. Nos Ensaios, o conhecimento do homem é mais importante que sua formação, esta advindo daquele: “Os outros formam o homem; eu o recito” (E. III, 2, 804). E poder-se-ia resumir em uma frase toda a intenção montaigniana neste sentido: educar pela filosofia (E. I, 26, 158 e seq.). O ensaísta não é um pedagogo, como também não é especialista em nenhum domínio, e não se cansa de dizê-lo: “Meu ofício e minha arte é viver” (E. II, 6, 379). Isto, aliás, talvez forme a exigência central de suas convicções sobre a educação: evitar, em primeiro lugar, o constrangimento e a limitação de qualquer especialização e/ou saber determinado e estático. Sempre tomando como base as singularidades individuais em sua permanente evolução, Montaigne busca a formação do homem como um todo; não de um guerreiro, de um teórico, de um diplomata, de um artista ou de um príncipe, mas de todos estes juntos em uma só personalidade, segundo o ideal do homem universal70 renascentista. Ao contrário, porém, da aspiração enciclopédica humanista característica da época, a ênfase deve ser posta na liberdade, na ideia de uma educação liberal que prepara o indivíduo para o mundo, seja este um

70 Como ilustração apenas, veja-se o clássico de Burckhardt, 1991, p. 115 e seq.

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campo de batalha, um palco, um baile, um julgamento ou uma biblioteca.

A censura aos especialistas nos Ensaios possui um alvo bastante concreto: a estrutura social do século XVI não permitindo a realização plena do modelo do homem cultivado em todos os sentidos, a estratificação social reproduz-se na esfera da atividade intelectual (AUERBACH, 1987, p. 271). De um lado, o volume de trabalho requerido pela redescoberta da herança antiga cria um novo tipo de especialista: o humanista – e, em relação à Idade Média, começa a prevalecer a especialização no trabalho científico. Porém, por outro lado, o crescente bem-estar de um número paulatinamente maior de pessoas pertencentes à aristocracia e à burguesia urbana, em paralelo a uma maior difusão de conhecimentos elementares (fruto do próprio movimento humanista), favorece a formação de uma nova camada “culta” que, embora exigindo uma maior participação na vida espiritual, necessita de um saber de gênero diferente da erudição especializada.

Notemos, entretanto, que Montaigne não ataca a especialização, o pedantismo, ou o saber puramente livresco em nome desta camada emergente ou em defesa de seu programa ideológico. Mesmo ocupando um lugar de destaque na constituição de sua ideologia – o modelo do honnête homme, que atingirá pleno florescimento sob o absolutismo francês do século XVIII –, o ensaísta não faz parte desta classe, mas de sua pré-história. Mesmo porque algumas características essenciais de sua obra – o empirismo, a concretude da expressão de suas observações e impressões, a proximidade da realidade mundana e popular, a aparente desordem da composição, a mistura de estilos, etc. –, não encontrariam boa acolhida na atmosfera cultural do honnête homme.

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Todavia, se a camada culta especializa-se, a nobreza francesa permanece em sua maior parte ignorante71. E o ensaísta – que em função de sua posição, de seus encargos diplomáticos e das viagens feitas também por escolha pessoal pela Europa, pôde observar e conviver com o conjunto da nobreza da época – julga-a inculta repetidas vezes: “e esses aos quais a minha condição mais ordinariamente me reúne, são pessoas que, na maior parte, cuidam pouco da cultura da alma” (E. II, 17, 658). E isso lhe parecerá tanto mais claro por sua própria educação clássica, incomum em seu meio, e pelo seu conhecimento pessoal da civilidade dos nobres italianos como exceção.

A cultura, o cultivo da alma, opõe-se à especialização ou à limitação e ao estreitamento do campo de atividades de um homem (seja seu ramo de trabalho intelectual ou não), e assim também ao militarismo que distinguia a aristocracia francesa de então72. Entretanto, o programa educativo montaigniano dirige-se à nobreza, como é comum na literatura pedagógica renascentista. Daqui já um primeiro paradoxo: Montaigne, que foi educado entre os camponeses de sua Gasconha natal, forjará uma educação para os infantes nobres73. Mas, o ideal educativo dos Ensaios, bem como suas concepções de honnête e de honnête homme, não são aristocráticos no sentido meramente classista da palavra: o decisivo aí, tal como para os humanistas em geral, é o aperfeiçoamento das qualidades morais do indivíduo, as quais não estão necessariamente ligadas ao seu nível social – e muito frequentemente o ensaísta tomará como 71 Schonberger, 1975, p. 495; Villey, 2004, p. 145. Para outro testemunho da época, que Montaigne conheceu bem, ver Castiglione, 1991, p. 81. 72 A continuação mesma da última citação, como muitas outras passagens, refere-se a isto: et ceux ausquels ma condition me mesle plus ordinairement, sont, pour la pluspart, gens qui ont peu de soing de la culture de l’ame, et ausquels on ne propose pour toute beatitude que l’honneur, et pour toute perfection que la vaillance. 73 Cf. Nakam, 1993, p. 77. Os detalhes da educação primorosa que em seguida recebeu Montaigne, como sua alfabetização em latim ou os instrumentos musicais com que era despertado, são por demais conhecidos para que nos alonguemos sobre eles. Acerca disto pode-se consultar Trinquet (1972) e Frame (1965), entre outros.

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modelos de conduta os camponeses (E. II, 17, 660, por exemplo).

Além da especialização, o dogmatismo é o outro grande inimigo de uma boa educação (E. III, 11, 1030). Contudo, se até mesmo os céticos têm seus “dogmas” (E. II, 12, 502), o que se recusa aqui não são exatamente princípios metodológicos ou definições estritas em si mesmas, mas em geral uma maneira de pensar que impeça a pesquisa contínua que deve ser toda ciência e toda filosofia. A má educação nos Ensaios é principalmente definida como aquela que toma como matéria um conhecimento baseado em princípios ou definições pré-estabelecidos e inquestionáveis para meramente fixá-los pela memória, conteúdo vazio sem aplicação prática. Para inverter tal tendência, Montaigne não vai apenas preconizar uma educação voltada para prática: a própria educação clássica então em voga regurgita de preceitos acerca do valor de um saber prático. O que se vai recomendar e empreender nos Ensaios é uma verdadeira revolução pedagógica em que prática e teoria nunca se separam.

A pedagogia renascentista é determinada pela admiração do mundo greco-romano enquanto experiência humana exemplar: a Antiguidade é tomada então como modelo. Nisto, o que costumamos chamar hoje de “humanismo”, desempenhou um papel fundamental. Um humanista74 é um homem ocupado com os studia humanitatis, as quais incluíam grammatica, rhetorica, poetica, historia e philosophia moralis (na forma em que tais designativos eram então entendidos), sempre caminhando a par da renovação da compreensão da Antiguidade; um estudioso das maneiras de usar a linguagem e de viver – e das implicações entre uma coisa e outra. No alto Renascimento – sob o impacto fascinante da redescoberta da verdadeira amplitude e profundidade do

74 O termo ‘humanista’ foi cunhado em fins do século XV para designar um professor e um estudante das ‘humanidades’: Cf. Kristeller, 1992, p. 113; Garin, 1995, p. 28 e 41.

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saber antigo – muitas vezes serão confundidas sabedoria, eloquência e mera repetição dos autores antigos. O colégio em que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à tarefa de ensinar o latim; visava-se a assimilação do estilo e do espírito dos antigos. Para tanto, a técnica pedagógica central envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como “livros de lugares-comuns”, nos quais o vasto corpo da literatura antiga era gradualmente posto à disposição, filtrada e organizadamente. O lugar-comum, espécie de provérbio útil, servindo como guia de conduta e referencial retórico, constituía-se como fio condutor, tanto para a escrita, como para a vida.

É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha composto os Ensaios com a ajuda de seus próprios cadernos de lugares-comuns (cf. VILLEY, 1933). No entanto, seu autor emprega suas anotações menos como recurso mnemônico do que como instrumento de uma filosofia na qual pensamento e ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. O ensaísta subverte a noção de lugar-comum em virtude de uma maneira de argumentar que lhe era peculiar trabalhando com a justaposição de oposições, arguindo “de ambos os lados” ou “em ambos os sentidos” – in utramque partem75. O resultado final é a transformação, no ensaio, deste instrumento do ceticismo acadêmico no de um ceticismo ainda mais radical, e que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista de educação. A principal serventia do modo in utramque partem de raciocínio consistia em ensinar a aplicar normas relativas à conduta humana em situações particulares. Metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir lugares-comuns, destruí-los, para observar e expor seus mecanismos de formação. Em síntese, o ensaísta transforma um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades 75 Sobre os loci communes e o modo de argumentação in utramque partem, sua origem aristotélica, sua história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por Montaigne, ver Schiffman, 1984, p. 163.

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em uma maneira de procurar a verdade. O movimento de crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio remodela o ceticismo para fazer deste um instrumento de pesquisa. Note-se que a própria concepção do ensaio já trazia em si o ensejo de um refazer constante em vistas de seu aperfeiçoamento contínuo, a composição dos Ensaios tendo se realizado segundo um processo de “aluvionamento” (segundo a expressão consagrada pela crítica), ou seja, de adições e remanejamentos ao longo dos 20 anos em que foi escrito. Já aqui encontramos o exemplo fundamental de como o ensaísta procura tornar concreto seu saber, fazendo com que forma e conteúdo se relacionem sempre muito intimamente para unir a teoria à prática. Através de uma autocrítica constante, que traz para o movimento da escrita o tempo vivido, fazendo de seu próprio texto o lugar e o instrumento do aprimoramento de suas ideias76.

Pois que se trata de criar uma educação que seja voltada para a prática (que por meio desta e para esta se realize, portanto), isto exige criar formas de arrancar seus atores da alienação em que se encontram mergulhados com relação tanto ao seu verdadeiro papel social, como quanto àquele que deveria ser o seu papel como educadores e pesquisadores – o que deve acontecer paralelamente à busca de uma nova forma de propor os fins e os meios de seus esforços.

Já o título de um dos grandes textos dos Ensaios versando sobre este assunto – o capítulo Du pedantisme (I, 25) – é importante para entender como uma disposição cética com relação às formas da educação então tradicional se impôs para que se pudesse cunhar uma nova pedagogia: no francês

76 Nos dois grandes ensaios sobre a educação – E. I, 25 e 26 –, temos dois bons exemplos de como o ensaio é um método que se experimenta sem cessar colocando em questão seus procedimentos no mesmo passo em que caminha em direção ao aprofundamento de suas noções diretoras (no caso, relativas à pedagogia): p. 136 e 148. Método de pesquisa e estilo literário, filosofia e retórica, enfim, ética, estética e política, aí se combinam, e com finalidades bem claras e definidas, como veremos.

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médio, a denominação ‘pedante’ significava preceptor, mestre-escola, pedagogo, em suma, professor77; se a língua francesa retém hoje apenas, como no português, o sentido pejorativo do termo, esta acepção começa a tomar forma no Renascimento – e no texto em questão podemos ver como isto aconteceu: pela reprovação do saber afastado da vida e das preocupações e necessidades cotidianas, e daí negligente com relação à sua dimensão moral ou à sua utilidade no aprimoramento da pessoa humana (LOGAN, 1975, p. 615-622; VINCENT, 1997). Atente-se para o fato de que Montaigne ataca, assim, tanto a educação escolástica, quanto certas tendências da pedagogia humanista (seu “gramaticismo”, por exemplo, mas especialmente o recomendar uma educação descuidada das particularidades das suas aplicações, das situações e de seus receptores).

Os humanistas criaram o conceito de uma espécie de nobreza, de aristocracia do espírito para a qual o “vulgar” deixa de ser uma questão de nível social e de nascimento para tornar-se uma pecha da ignorância e da incultura. Não se trata mais apenas do reconhecimento, comum na Antiguidade e na Idade Média, e renovado nos séculos XIII e XIV (quando a burguesia citadina retoma por conta própria, com fins de legitimação de seu novo status, o ideal cavalheiresco), de que a nobreza da alma não é um privilégio de nascimento, porém apanágio daqueles que agem nobremente (CURTIUS, 1991, p. 296; BAURMANN, 1939, p. 55). Trata-se, ao contrário, de uma valorização da boa educação que, tendo também raízes antigas, não encontra paralelo de igual intensidade na Idade Média78. Todo inculto chama-se agora, para os humanistas franceses, vulgaire, seja qual for sua classe social. Concorrem

77 O termo é emprestado, primeiro sob a forma pedante (1558), do italiano pedante, de origem grega. Em Montaigne, encontramos a primeira ocorrência de pédantisme (1580). Cf. Greimas e Keane, 1992; Dauzat, Dubois e Mitterand, 1971; Rey, 1992; Huguet, 2010. 78 Muito embora não seja algo de inaudito no medievo: veja-se o exemplo do Romance da Rosa.

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para isso a prosperidade da pré-burguesia emergente e, notadamente, a projeção dos humanistas e sua importância política79 nas cortes renascentistas – fatos que devem ser justificados pela formação de uma nova ideologia acerca da noção de nobreza. Assistimos no Renascimento a um novo arranjo das ciências e dos saberes, e – claro – das classes sociais e seus ideais80.

Logo no início de Do pedantismo, Montaigne cita um provérbio medieval que também se encontra em Rabelais (Gargântua, XXXIX): “magis magnos clericos non sunt magis magnos sapientes”. Traduzindo: “os maiores letrados não são os maiores sábios”. Notemos a ambiguidade do termo clericos que pode significar tanto clérigos, monges, como eruditos, letrados, sabedores; este duplo sentido é medieval (BLAISE, 1994) – embora a palavra seja de origem grega (ERNOUT e MEILLET, 1994) – e foi preservado pela língua francesa – mantendo até mesmo um caráter irônico no francês moderno (clerc). Ora, a ciência foi, ao longo da Idade Média, e era então ainda na maior parte, afazer do clero, de onde também saem, em primeiro lugar, os homens ocupados com o ensino (CHATEAU, 1971, p. 122, n. 4). Logo, não é de surpreender aquela identificação linguística; e aqui temos mais um elemento da crítica social montaigniana. Mas o que mais importa aí é a determinação da diferença, corriqueira nos Ensaios, entre erudição e sabedoria, onde o sçavant (que se pode traduzir por ‘erudito’ ou, mais diretamente, ‘sabedor’) não se confunde com o sage, o ‘sábio’. Toda a filosofia montaigniana é um esforço de compreensão e expressão simultâneos do que seja a sabedoria – conceito fundamental 79 Cf. Kristeller, 1992, p. 123. Note-se, de novo, que especialmente na França acontece uma espécie de identificação ideológica entre escritores burgueses e círculos aristocráticos: cf. Auerbach, 1987; Elias, 1990, vol. 1, p. 87. 80 A importância que assume então o problema educacional na literatura humanista pode ser explicada como um dos sintomas da transição sofrida pelo sistema de valores nas sociedades renascentistas, marcadamente no século XVI: cf. Elias, 1990, vol.1, p. 91 e 94.

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para a filosofia do Renascimento (RICE, 1958) –, frequentemente através da marcação de suas diferenças com relação à pura e simples cultura livresca que não conduz, por si só, a agir ou a pensar melhor. Este afastamento de um saber, agora percebido como presunçoso, debilitante e estéril, corre em paralelo à tentativa de obter um conhecimento que aproxime da virtude, do bem-viver, da felicidade. Vejamos um exemplo deste ensaio mesmo:

Embora pudéssemos ser sabedores pelo saber de outrem, ao menos sábios não podemos ser senão pela nossa própria sabedoria. “Detesto o sábio que não é sábio para si mesmo”. Como Ennius também diz: Não sabe nada que preste o sábio cuja ciência não lhe aproveita, se ele é avarento, gabola, efeminado, mais mole que uma ovelhinha. Pois adquirir a sapiência não basta: é preciso usufruir dela. Dionísio zombava dos gramáticos que têm o cuidado de se indagarem dos males de Ulisses e ignoram os próprios; dos músicos que afinam suas flautas e não afinam seus costumes; dos oradores que estudam para dizer a justiça, não para fazê-la. Se nossa alma não se movimenta melhor, se nosso julgamento não se faz mais são, tanto se me daria que meu colegial tivesse passado o tempo a jogar pelota: ao menos o corpo tornar-se-ia mais ágil (E. I, 25, 138).

E aqui lemos o sentido básico da investida contra o

pedantismo, na qual se visa, ao mesmo tempo, uma concepção da ciência e uma da educação, que são inseparáveis e igualmente falsas (CHATEAU, 1971, p. 124-125), ambas fruto de uma confusão do verdadeiro conhecimento com o enciclopedismo, o vão eruditismo e a ostentação de cultura inútil. E boa parte da ciência, como da educação, medieval, renascentista e de todos os tempos, tem sua parcela de culpa nisto. Ao contrário, no pensamento montaigniano e na própria ideia de ensaio, é evidente a importância do cultivo do espírito crítico, da capacidade de avaliar, pesar, apreciar a ciência – e o ensaísta diria mesmo ‘degustar’ (por exemplo, E. I, 25, 150).

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Uma postura passiva perante o saber, apenas armazenadora dos pensamentos e juízos de outrem, ainda que fossem dos mais excelentes espíritos, torna-os nocivos: é preciso julgar por e para si mesmo os julgamentos alheios e fazer assim nosso seu saber.

Nós sabemos dizer: Cícero diz assim; eis a moral de Platão; estas são as palavras mesmas de Aristóteles. Mas nós, que dizemos nós mesmos? Que julgamos? Que fazemos? Um papagaio faria tão bem quanto nós. [...] Conheço alguém que quando pergunto o que ele sabe, ele me pede um livro para aí o mostrar; e não ousaria dizer que tem o traseiro sarnento, sem ir imediatamente estudar em seu léxico, o que é sarnento, e o que é traseiro. Tomamos em nossa guarda as opiniões e o saber de outrem, e é tudo. É preciso torná-los nossos. [...] De que nos serve ter a pança cheia de comida se não a digerimos? Se ela não se transforma em nós? Se ela não nos faz crescer e fortifica? [...] Tanto nos deixamos levar nos braços de outros, que aniquilamos nossas forças (E. I, 25, 137).

Assim acontece que amiúde uma alma rica dos mais

variados conhecimentos nem por isso torne-se mais viva ou desperta, e que um espírito grosseiro e vulgar possa alojar em si, sem se emendar, os discursos e os julgamentos dos mais excelentes espíritos (E. I, 25, 134). Como disse uma princesa81 a Montaigne, os cérebros destes homens encolhem-se e amesquinham-se para dar lugar ao saber que não lhes pertence verdadeiramente. Nosso autor vai contrapor a esta forma equivocada outra que lhe é diametralmente oposta, respondendo à princesa com as seguintes palavras: “Mas outra

81 Notemos a referência constante à nobreza. “A primeira de nossas princesas” seria, segundo Villey (Ed. dos Ensaios, pg. 1240), Catarina de Bourbon, irmã de Henrique de Navarra. É interessante como o ensaísta com frequência refere-se e endereça-se às mulheres em meio a desenvolvimentos relativos à educação (aqui, na dedicatória do De l’institution des enfans e no maior e talvez o mais cético dos ensaios, a Apologia de Raimond Sebond). Com isso, aliás, opondo-se tacitamente ao preconceito contra as mulheres bem instruídas (criticado na página 140 do mesmo Du pedantisme).

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coisa acontece: pois nossa alma tanto mais se alarga quanto mais se enche” (E. I, 25, 134).

Assim podemos nos aplicar à ciência, tanto de maneira que esta nos seja formadora e enobrecedora, quanto de modo deformador e prejudicial: mas mesmo que haja uma forma errada de se ocupar da ciência e do conhecimento em geral cujas consequências são nocivas, o estudo e a cultura não são o mal em si (como poderia parecer significar a opinião da princesa).

[...] e creio que vale mais dizer que o mal provém da maneira ruim com que eles se aplicam às ciências; e que, pelo modo como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se façam mais doutos. A dizer a verdade, o cuidado e as despesas de nossos pais não visa senão a nos mobiliar a cabeça de ciência; do julgamento e da virtude, poucas notícias. Apregoai de um passante ao nosso povo: ‘Olha o homem sabedor!’ E de um outro: ‘Olha o homem bom!’ Não faltará quem torne os olhos e seu respeito para o primeiro. Seria preciso um terceiro pregão: ‘Olha os cabeças pesadas!’ Gostamos de perguntar: ‘Sabe ele grego ou latim ? Escreve em verso ou em prosa?’ Mas se tornou melhor ou mais avisado, que era o principal, isso fica para trás. Seria preciso se perguntar quem sabe melhor e não quem sabe mais. Esforçamo-nos unicamente para encher a memória, e deixamos o entendimento e a consciência vazios (E. I, 25, 136).

Se Montaigne ataca a ciência (termo que, como é comum na

época, significa o saber em geral), não é para se recusar a ela, mas para compreendê-la melhor: em diversos pontos dos Ensaios, e também no Do Pedantismo, Montaigne testemunhará a favor das ciências e de seu valor. À busca do verdadeiro conhecimento serve o ensaio, experimentando e educando nosso julgamento82. Aperfeiçoar-se na conduta e no julgar são 82 O “julgamento” (jugement) constitui, na filosofia montaigniana, a instância intelectual superior, que avalia e decide com base na razão e na sensação realizando sua síntese, ou combinando suas operações e dados, no juízo. Ele estabelece uma

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tarefas interdependentes e ligadas pela noção de sabedoria. E isto não se consegue empregando apenas a memória: não se trata, como está dito na última citação, de “mobiliar a cabeça”, mas de se formar corretamente, ou melhor, de forjar: “Prefiro forjar minha alma que mobiliá-la”(E. III, 3, 819).

Melhor uma “cabeça bem feita que bem cheia” (E. I, 26, 150). Precisamente esta distinção confundiu os leitores dos Ensaios: pois qual a diferença entre a douta ignorância que serve de travesseiro suave, doce e saudável para repousar uma cabeça bem-feita (E. III, 13, 1073) e a ignorância pura e simples? A melhor resposta vem de outro cético (ou que pelo menos foi julgado também frequentemente como tal), Diderot: “A ignorância e a despreocupação são dois travesseiros muito doces: mas para julgá-los como tais é preciso ter a cabeça tão bem feita quanto Montaigne” (apud P. Villey na edição dos Ensaios tomada aqui como referência, p. 1199).

Tratamos de uma educação que visa o talento: “Um homem erudito não é erudito em tudo; mas o homem de talento é em tudo capaz, e mesmo em ignorar” (E. III, 2, 806). Daí a recusa montaigniana em assumir uma postura professoral: ele próprio está preocupado em aprender – os Ensaios perfazem a história de seu aprendizado –, e é seguindo o seu caminho que ele lança luz sobre o nosso. Porque neste campo, no domínio da filosofia moral, tal como a estuda o ensaísta, pensamento e ação são inseparáveis na letra, como no espírito; na escrita, como na vida. Julgar é agir. Como, porém, chegar à condição de bem agir? O que é aquele “saber melhor” mencionado acima – este saber que nos permite, inclusive, bem ignorar – e de que maneira se alcança tal conhecimento? Esta questão está em jogo no bojo da concepção de uma

espécie de critério formal, sempre local e contingente, não necessariamente engajado em normas ou referido a valores obrigatórios, e que por isso não entra em contradição com a dúvida contínua inerente ao ensaio. “O julgamento é um utensílio para todos os propósitos e em tudo se intromete. Por este motivo, nos ensaios que dele aqui faço, emprego toda sorte de ocasião” (E. I, 50, 301).

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filosofia ensaística, quer dizer, entendida como busca constante de sua possibilidade. À ciência, ou ao conhecimento puro e simples dos fatos e letras, deve-se juntar o ensaio do senso83, isto é, a experimentação do julgamento ou do bom-senso – que só se pode constituir no ensaio da ação (E. I, 25, 142). E ainda:

Ora, o saber não deve ser pregado na alma, mas deve ser incorporado a esta; não deve regá-la, deve tingi-la; e, se não a muda, nem melhora seu estado imperfeito, mais vale certamente que o deixemos onde está. É um gládio perigoso, que embaraça e fere o dono, quando empunhado por mão fraca e que não lhe sabe manejar, “de sorte que fora melhor nada ter aprendido84.

Bem pensar e bem fazer: tal deve ser o fruto do

verdadeiro conhecimento (E. I, 25, 141). O crucial para tanto é a maneira de travar contato com a ciência, de lidar e de se relacionar com o conhecimento: o ensaísta enfatiza, sobretudo, a inter-relação entre o método pedagógico correto, a situação e a natureza do aluno (E. I, 25, 142-143).

A Renascença, vimos, retoma o saber greco-romano, e este prescreve em geral subordinação à medida natural. Não se trata de crer que a educação tem pouco valor, tendência cuja radicalização por motivos religiosos levara anteriormente até a condenação de todo ensinamento e de toda cultura “humana” (GARIN, 1995, p. 45 e seq.; CHATEAU, 1971, p. 134). Muito diversa é a motivação da corrente anti-intelectualista que atravessa o humanismo desde Petrarca – e que, em Montaigne, 83 L’essay du sens (E. I, 25, 140). Note-se como, neste trecho mesmo, o ensaísta joga com o duplo sentido francês de sens: senso e sentido. 84 E. I, 25, 140. Atenção aqui para a equiparação, frequente nos Ensaios do processo de conhecimento ao processo digestivo. Note-se que incorporar não significa lá aceitar, mas transformar. É importante marcar a maneira pela qual a linguagem ensaística serve não só de veículo às ideias montaignianas, porém as exprime em si mesma, através de seus termos, ritmos, imagens, etc. Desta forma, à análise conceitual “descarnada”, escolástica, vêm juntar-se poderosos instrumentos literários de expressão.

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entre outros, emprega o arsenal argumentativo do ceticismo antigo em seu favor –, a qual tem por fundamento a exigência de que todo aprendizado deva ser justificado por sua contribuição para a melhora do caráter do aprendiz85. Portanto, é precisamente uma diretriz educativa que assim se impõe com o fim de otimizar o próprio processo pedagógico, de acordo com os objetivos então acreditados essenciais. Por outro lado, o intento de seguir a natureza não serve mais apenas de suporte ideológico à manutenção de uma hierarquia social cristalizada: os humanistas pensavam no homem como construtor de si mesmo e de seu destino. A boa educação é aquela que considera a natureza individual de seus sujeitos e as ocasiões, e a estas se adapta para tentar transformá-las segundo suas interações. Uma das características da sabedoria montaigniana é facultar ao homem o reconhecimento de sua própria condição; ou o saber que para cada homem há um afazer e conhecimento apropriado à sua disposição pessoal e às oportunidades que se lhe oferecem. Neste sentido, também um camponês, se sabe e faz o que lhe é devido, será considerado sábio. E se os nobres devem ser educados, isto não significa esquecer o lugar que lhes cabe: a guerra e o governo, não as letras, devem ser suas principais ocupações. Não há aqui contradição: o combate humanista contra o conceito de nobreza hereditária e a ligação ideológica de raça e

85 Logan, 1975, p. 621. É bem verdade que tal crítica do saber deita suas raízes na Idade Média e permanece paralela à revalorização da cultura no Renascimento Carolíngio como uma espécie de exigência de medida que seria inerente ao verdadeiro conhecimento (GARIN, 1995, 57-58); mas é verdade também que aí o fim moral consiste basicamente na salvação e na fé que devem, não somente orientar o saber, porém dominá-lo (GILSON, 1986, p. 41). Note-se ainda que os humanistas são normalmente cristãos e por vezes atacam o saber e a cultura em geral com disposição, senão idêntica, vizinha à medieval. A originalidade montaigniana, aliás, é precisamente não recusar o saber como um todo, de maneira obscurantista, mas desenvolver suas dúvidas pelo raciocínio cuidadoso, chegando, com método, a algumas dificuldades filosóficas cruciais: isto o torna, segundo Popkin (1979, p. 53-54) diferente dos outros céticos do século XVI, e mais importante do que qualquer um deles.

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virtude não impedem que os Ensaios, e o Renascimento como um todo, continuem bastante sensíveis a tais ideias (cf. E. III, 5, 850-851; BAURMANN, 1939, p. 58). Igualmente, mesmo que a identificação de virtude e coragem guerreira seja recusada, o humanismo fará concessões à virtude bélica. E Montaigne chegará a dizer, no final de Do Pedantismo, que “o estudo das ciências amolece e efemina as coragens mais do que as endurece e viriliza” (E. I, 25, 143); e termina por relatar a opinião dos nobres do séquito de Charles VIII – então conquistador sem esforço de Nápoles e de boa parte da Toscana, berço do Renascimento – os quais culparam precisamente o refinamento da nobreza italiana (que o ensaísta, vimos, tinha em alta conta) por sua fatídica derrota. Mas há aqui também uma ironia evidente dirigida contra seus compatriotas. É preciso repetir: não estamos frente a uma pura e simples recusa da educação ou da ciência, mas lemos a crítica de uma formação mal feita conjugada com recomendações acerca da maneira correta de educar, maneira esta que deve estar intimamente relacionada à natureza e condição do aluno.

Mas há mais que isso: que se insista que a compreensão correta, não só da pedagogia, mas da filosofia ensaística, depende de se perceber como seu lado prático efetivamente se articula em função de sua elaboração teórica e/ou vice-versa. Montaigne tenta fazer já no seu texto justamente aquilo que ele recomenda: sua busca do saber pretende ter um efeito prático sobre autor e leitores, ou seja, à pedagogia deve se seguir um resultado ético e sócio-político. Para estimular os nobres à verdadeira cultura, o ensaísta vai atacar aquela apenas aparente, inútil e prejudicial, e mostrar que há uma filosofia que lhes seria benéfica. Ao invés de tentar fazer do nobre um filósofo (como por vezes parecem pretender os humanistas), Montaigne vai apresentar a filosofia à corte (BOUCHARD, 2007, p. 65). E com isso ainda – e agora seguindo os humanistas – faz da nobreza um ideal para todos os homens.

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Logo, não se trata de uma espécie de casuística da educação, porém de uma, digamos, especialização de sua aplicação. Seria um erro reduzir todo alcance e fim da mensagem montaigniana à classe aristocrática. O objeto da filosofia ensaística é o homem, e seu objetivo mais lato, sua formação. Montaigne procura através de exemplos e situações particulares atingir o universal. Daí o interesse, não por uma classe ou grupo determinados, mas por cada caso singular – que se expressa já no fato do ensaísta pretender através de si mesmo, no auto-retrato que são os Ensaios, retratar a condição humana86.

O esforço para definir o que é saber e educar bem se refere tanto às classes sociais como à natureza dos indivíduos: ora, uma e outra coisa estão ligadas no imaginário da época. A resposta de Montaigne é fazer uma crítica de tal injunção conectada com o exame do saber. Por exemplo: se não requeremos muita ciência das mulheres e dos nobres, não é porque toda ciência seja nociva ou inútil, mas porque esta nossa ciência o é, reflexo de uma situação sócio-política perversa (E. I, 25, 140-141). A separação entre teoria e prática espelha uma divisão social que atribui o trabalho intelectual a certas classes (clérigos, humanistas, professores). O pedante é resultado desta divisão. O que Montaigne percebe muito bem é que esta divisão é apenas aparente, dado que jamais poderia se constituir realmente: os caminhos pelos quais teoria e prática se unem podem até escapar ao senso comum, mas jamais à realidade de sua integração necessária. Assim este saber inútil se encaixa em uma situação em que a nobreza está mais preocupada em defender seus interesses familiares ou partidários do que a França; e em que os professores estão mais preocupados com sua difícil sobrevivência do que com seus alunos ou com o verdadeiro saber. O pedante é então

86 Veja-se o começo do ensaio Du Repentir (III, 2) que serviu de modelo a Auerbach (1987, cap. 12) em sua famosa análise do método montaigniano.

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uma espécie de parasita social, porque o pedantismo tornou-se uma espécie de doença social (PANICHI, 2007, p. 890) que não toca apenas a uma classe determinada: de um lado, temos o pedante em pessoa, aquele que professa um conhecimento sem valor e sem sentido, de outro a atitude pedante do nobre que crê que o status por si só (e nisto se visa também a noblesse de robe, pré-burguesia emergente, a qual Montaigne pertencia) confere um saber inspirado cuja prova se encontra, seja pelo nascimento, seja pelo triunfo social, em um momento em que tais coisas, como hoje talvez, tornaram-se muito próximas.

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Capítulo 7 DDEESSCCAARRTTEESS,, MMÉÉTTOODDOO EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO

Ethel Menezes Rocha*

Os primeiros esforços de Descartes foram dedicados,

juntamente com o filósofo da natureza Isaac Beeckman, a problemas de matemática, musicologia, cinemática e hidrostática. Como resultado, no final de 1618, Descartes completa seu primeiro livro (que só será publicado em 1650), Compedium Musicae, que dedica a Beeckman. O trabalho inicial de Descartes em matemática, como era o caso de um modo geral nas matemáticas, não é formulado sob a estrutura lógica silogística aprendida com seus professores escolásticos. Além do fato de, no século dezessete, as matemáticas de um modo geral não utilizarem a lógica silogística, o que só ocorre no século dezenove, quando a lógica passa a ser considerada o núcleo das matemáticas, Descartes considerava a lógica formal inadequada para as ciências. Na Parte II do Discurso sobre o Método, no Prefácio à edição francesa dos Princípios da Filosofia, nas Regras para a Direção do Espírito e mesmo em seu último escrito A Procura da Verdade, Descartes expressamente se opõe aos dois objetivos centrais da teoria aristotélica referente à lógica: tanto à ideia aristotélica de fornecer uma explicação sistemática de silogismos demonstrativos, quanto à ideia de fornecer uma teoria normativa do pensamento, isto é, à ideia de que é tarefa da filosofia fornecer um conjunto de regras

* Pesquisadora do CNPq e PRONEX/CNPQ/FAPERJ.

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para pensar corretamente. Descartes sustenta que inferência é algo que os homens, por serem criaturas racionais, fazem naturalmente e de modo correto, considerando, portanto, vazia e inútil a constituição de um conjunto de regras externas que regulariam o acesso à verdade. Em suas palavras: “Além disso, as cadeias com as quais os dialéticos87 supõem regular a razão humana [para alcançar o conhecimento das coisas] me parecem de pouca utilidade...”(Regra II)88. Mais ainda, segundo ele, a lógica formal silogística quase sempre constitui um obstáculo ao exercício da função natural da razão, impedindo-a de funcionar do modo que lhe é próprio, isto é, como afirma no Prefácio dos os Princípios, “... a lógica dos escolásticos corrompe o bom senso no lugar de ampliá-lo”. Que sua crítica ao formalismo da lógica silogística se baseia na essência da razão e seu funcionamento natural fica claro, por exemplo, na obra Regras para Direção do Espírito, quando Descartes opõe o fato de a razão trabalhar quando se empenha em perceber claramente uma inferência com o fato dela entrar de férias quando dispensa essa operação e segue cegamente preceitos formais. Em suas palavras:

Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a razão. Eles prescrevem certas formas de raciocínio nas quais as conclusões se seguem com tal necessidade irresistível que se a razão nelas confia, embora de certa maneira entre de férias dispensando considerar clara e atentamente uma inferência particular, pode, todavia, concluir por vezes algo de acertado meramente em virtude da forma (Regra X).

Mesmo em seu último escrito, A Procura da Verdade, provavelmente escrito em 1641, mas só publicado após sua

87 “Dialética” é o termo utilizado por Descartes para se referir à lógica escolástica. 88 Ver também Discurso sobre o Método, Parte II, AT VI:17.

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morte, Descartes mantém sua oposição à lógica formal em favor do uso natural da razão e a tese de que esta é corrompida por aquela. Nesse texto, Eudoxus, personagem que no diálogo veicula as teses cartesianas, afirma:

Todos esses pontos foram afirmados e desenvolvidos não por meio da lógica, ou de uma regra ou modelo de argumento, mas apenas pela luz da razão e bom senso. Quando essa luz opera por si mesma, é menos provável que erre do que quando se esforça ansiosamente para seguir as inúmeras e diferentes regras, invenções do engenho e ócio humanos, que servem mais para corrompê-la do que para torná-la mais perfeita (AT X: 521).

Em alternativa ao modelo lógico silogístico formal,

Descartes adota em seus trabalhos em matemática o que tipicamente no século dezessete considera-se o modelo matemático de raciocínio: prova de teoremas a partir de axiomas, definições e postulados.

Seu trabalho em geometria e álgebra, juntamente com um conjunto de três sonhos na noite de 10 de novembro de 161989, o convencem de seu dever de estender a clareza dessas ciências às outras ciências, sobretudo à filosofia, já que, segundo ele, os princípios que fundam todas as outras ciências derivam da filosofia. A noite do sonho foi, portanto, uma noite de descoberta da sua missão: reformar as ciências. Em oposição a formular um conjunto de regras externas ao pensamento que o module, essa reforma envolve a sistematização em regras das “primeiras sementes depositadas pela natureza nos espírito humano” que consistem, portanto, no modo como naturalmente pensamos. Como fica claro na Regra VI das Regras, a sistematização desses modos naturais 89 O conteúdo dessa série de três sonhos é narrado por Adrienne Baillet, biógrafo de Descartes, em seu livro La vie de M. Des-Cartes (Paris: Horthemels, 1691). O que ainda restou do texto original, está publicado em AT X, 213 [C. Adam e P. Tannery (orgs.), Oeuvres de Descartes (Paris: Vrin/CNRS, 1964-76)].

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de pensar que seria uma disciplina contendo “os primeiros rudimentos da razão humana” e que deveria “se estender à descoberta de verdades em qualquer que seja o campo teórico”, é a matemática universal. Essa disciplina, entretanto, não consiste nas matemáticas particulares como a aritmética e a geometria, que são apenas exemplos de como o método é aplicado, mas sim em uma ciência mais universal que expressa a própria natureza da razão. O método universal não é uma generalização das matemáticas particulares, mas a expressão em regras da natureza do pensamento, cuja clareza se manifesta nas matemáticas particulares, e deve se aplicar a todo tipo de conhecimento. Há uma identidade entre o método – a matemática universal – e a razão, e não entre o método e as matemáticas. Nas palavras de Descartes (Regra IV),

esses pensamentos me fizeram desviar dos estudos particulares de aritmética e geometria para uma investigação geral das matemáticas [...] Quando considerei o assunto mais de perto percebi que a única preocupação da matemática é com questões de ordem e medida [...] Isso me fez perceber que deve haver uma ciência geral que explique tudo que pode ser questionado acerca de ordem e medida [...] e essa ciência deve ser chamada mathesis universalis (AT X: 378).

Assim, o raciocínio matemático (e, como vimos, não a

lógica silogística) é um exemplo de raciocínio que, segundo Descartes, deve ser adotado pelas outras ciências, em particular a filosofia, na medida em que na matemática os princípios inatos do método são naturalmente aplicados. Apesar disso, como veremos, embora compartilhasse do encantamento com o ideal geométrico com muitos filósofos - tais como Espinosa, Hobbes, Russell e Platão – Descartes, com base em uma distinção entre o método matemático sintético e o método matemático analítico, não assume para a investigação da verdade de um modo geral um modelo

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dedutivista de ciência, isto é, um modelo que envolva um sistema formal baseado em axiomas e definições.

As declarações oficiais de Descartes acerca do método para investigação da verdade estão nas Regras para Direção do Espírito (principalmente entre as Regras II e VIII) e, mais tarde, em seu sumário no Discurso sobre o Método (principalmente Parte II). Em termos gerais as regras do método para conhecer são: a) só aceitar como verdadeiro o que é indubitável; b) analisar o máximo possível os problemas em partes mais simples; c) mover-se do simples para o mais complexo e d) rever e verificar completamente as conclusões a que chegar. Visto que é através da razão que se dá o conhecimento, nas Regras Descartes examina a natureza da razão e como esta funciona. Nesse exame, fica claro que as operações cognitivas da razão são as operações da intuição e dedução que consistem “nas vias mais certas para o conhecimento” e “as únicas em que devemos confiar na aquisição de nosso conhecimento” (Regra VIII). A razão adquire conhecimento através das operações da intuição e da dedução, portanto, porque estas são as operações que consistem em seu funcionamento natural.

Em algumas passagens das Regras, Descartes descreve o que entende por intuição e dedução. Por exemplo, na Regra III, ele afirma:

Por intuição [...] designo a concepção de uma mente clara e atenta que é tão fácil e distinta que não há espaço para dúvida acerca do que por ela compreendemos [...] e [por] dedução [...] a inferência de alguma coisa que segue-se necessariamente de alguma outra proposição que é conhecida com certeza [...] visto serem inferidas de princípios verdadeiros e conhecidos através de um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento no qual cada proposição individual é claramente intuída.

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Isto é, a princípio, a operação da intuição é o ato pelo qual o intelecto apreende o objeto simples que lhe é imediatamente dado e, por isso mesmo, o produto dessa operação é uma evidência. E a operação da dedução, por sua vez, que também resulta em um produto evidente, é um ato complexo que supõe uma sequência intuitiva de atos intuitivos.

Segundo Descartes, portanto, a natureza da razão se expressa pelas operações da intuição e dedução conjuntamente e não apenas pela intuição, na medida em que o conhecimento não é apenas do simples e imediatamente dado, mas sim de um corpo sistemático. As duas operações se complementam, formando um único processo “graças a um tipo de movimento do pensamento que considera por intuição cada objeto em particular, ao mesmo tempo em que vai passando aos outros” (Regra XI). A intuição apreende dados evidentes e a dedução conecta dados evidentes por meio de elos evidentes. A dedução, portanto, além de depender da memória que permite reter os dados a conectar, depende da intuição para ter os dados e para estabelecer os elos de conexão. Sendo assim, dedução no sentido introduzido por Descartes é a operação cognitiva que, ao contrário da intuição, envolve a memória e que permite um tipo de movimento da razão de inferência de uma coisa a partir de outra. Como veremos, entretanto, Descartes admite que mesmo na operação da intuição ocorre um tipo de inferência, uma inferência direta, que diferentemente da dedução, não exige a memória.

O fato do método, segundo Descartes, ser a expressão do modo como naturalmente a razão funciona, explica por que Descartes, na Regra IV, afirma que “o método não pode ir tão longe a ponto de nos ensinar a realizar as operações da intuição e dedução”. Se a razão conhece apenas através da intuição e dedução, não pode aprender um conjunto de regras acerca de como intuir ou deduzir a não ser já intuindo e/ou deduzindo. Sendo assim, o modo como se aprende o método é

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aplicando-o. As regras do método cartesiano não são meramente normativas no sentido de serem formuladas independentemente de sua aplicação, mas, ao contrário, são constitutivas do método de tal modo que não é possível compreendê-las independentemente de segui-las. As Meditações satisfazem estritamente as regras do método: através da dúvida, e ao longo das meditações seguintes, busca algo simples (cogito), movendo-se para o mais complexo, incluindo revisões e verificações das teses avançadas a partir disso. Sendo assim, o conteúdo das Meditações torna o método manifesto e o exame desse conteúdo envolve o conhecimento das regras do método que, por sua vez, envolvem a aplicação do próprio método. Sendo assim, a leitura das Meditações, além de resultar no conhecimento acerca das teses ali defendidas, resulta no conhecimento e na aplicação do próprio método. Portanto, embora não se possa ensinar a intuir e deduzir, o exame do procedimento de Descartes das Meditações pode nos levar a compreender essas operações.

Ainda que nas Meditações Descartes tenha abandonado a terminologia introduzida nas Regras para designar as operações cognitivas (intuição e dedução), o modo como Descartes responde a uma objeção que consta no conjunto das Segundas Objeções às Meditações, recolhidas por Mersenne, torna explícito que o argumento do Cogito tem um caráter intuitivo e que este é oposto ao silogismo:

Mas, quando percebemos que somos coisas pensantes, trata-se de uma primeira noção que não é extraída de nenhum silogismo; e quando alguém diz “Penso, logo sou ou existo”, ele não concluiu sua existência de seu pensamento por meio de um silogismo, mas reconhece ser evidente por uma intuição simples da mente.

Em outras palavras, segundo Descartes, o argumento do

Cogito é uma verdade primitiva, isto é, uma verdade adquirida por uma intuição simples da mente, pois “... se a deduzisse

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por meio de silogismo, deveria antes conhecer esta premissa maior: Tudo que pensa é ou existe”. Apesar de, segundo essa resposta, o argumento do Cogito não supor o conhecimento da premissa maior, Descartes parece admitir um tipo de relação entre esta premissa e a verdade da proposição “Penso, logo existo”, como fica claro pelo que se segue na resposta: “Mas ao contrário, esta [a premissa maior “Tudo que pensa é ou existe”] lhe é ensinada por ele experimentar em seu próprio caso que não é possível que ele pense sem existir” (AT VII: 140). Descartes, entretanto, não explica nessa resposta como isso ocorre.

É em Conversações com Burman, com base em uma distinção entre conhecimento implícito e conhecimento explícito que Descartes explica a relação entre o princípio primitivo “penso, logo existo” e o princípio universal “tudo que pensa é”, e essa explicação permite um passo adiante na compreensão do que Descartes entende pela operação da intuição. A tese defendida nesse texto é a de que, embora o conhecimento do cogito dependa da verdade da noção de que “Tudo que pensa é”, não depende, entretanto, de seu conhecimento explícito. Assim, a verdade da instância (Eu penso, logo existo) não independe da verdade do princípio universal (Tudo que pensa é), mas o conhecimento explícito da verdade desse princípio não é necessário para o reconhecimento da indubitabilidade da instância. Ao contrário, como diz Descartes a Burman, é a experiência interna da evidência da instância “Eu penso, logo existo” que permite tornar explícito a verdade e, portanto, tornar conhecida a verdade do princípio geral “Tudo que pensa é”. Em seus termos:

Antes da conclusão “estou pensando, logo existo”, a maior “tudo aquilo que pensa, existe” pode ser conhecida pois é uma realidade anterior à minha inferência, e minha inferência depende dela […] Mas não se segue que eu sempre esteja

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expressa e explicitamente consciente dessa anterioridade, ou que eu a conheça antes da minha inferência (AT V: 147).

Em outras palavras, Descartes introduz aqui uma

distinção entre o conhecimento implícito de certas noções comuns e universais em cuja verdade não se pensa a não ser no momento em que pensamos em suas instâncias particulares. Embora tenhamos um conhecimento implícito dessas noções comuns e universais, esse conhecimento só é tornado explícito e, nesse sentido, é tornado de fato um conhecimento, no momento em que a verdade da instância é experimentada ou intuída. Em suas palavras, imediatamente a seguir, na mesma passagem acima citada: “Não presto atenção [...] à noção geral ‘tudo aquilo que pensa existe’ [...] em vez disso, é nas instâncias particulares que as encontramos.” Essa afirmação de que o princípio universal é conhecido quando temos a experiência internamente da verdade de uma (ou mais) de suas instâncias é ainda confirmada na resposta que Descartes dá a um novo conjunto de objeções feitas por Gassendi (publicado juntamente com suas objeções originais, em 1644, em um volume intitulado Disquisitio Metaphysica sive Dubitationes et Instantiae) após este ter lido as respostas de Descartes ao primeiro conjunto de suas objeções. Diz Descartes:

o autor afirma que quando digo “Estou pensando logo existo” pressuponho a premissa maior “Tudo que pensa existe” [...] O erro mais importante que nosso crítico faz aqui é supor que o conhecimento de proposições particulares deve sempre ser extraído de proposições universais, seguindo a mesma ordem do silogismo.

Imediatamente antes dessa passagem, nessa mesma

resposta, Descartes afirma:

Quanto ao princípios comuns e axiomas, [...] os homens que são criaturas dos sentidos, como todos somos em um nível

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pré-filosófico, não pensam neles ou prestam atenção a eles. Ao contrário, visto que estão em nós desde o nascimento com tamanha clareza, e visto que os experimentamos em nós mesmos, negligenciamo-los e só pensamos neles de modo confuso e nunca em abstrato ou separadamente das coisas materiais e instâncias particulares.

Podemos dizer, portanto, que no que diz respeito ao

estabelecimento do princípio que fundamenta a metafísica segundo Descartes, a operação cognitiva da intuição não só me permite perceber imediatamente a verdade da proposição “penso, logo existo”, independentemente de qualquer outro conhecimento explícito, mas, além disso, permite conhecer a verdade do princípio universal e comum, de cuja verdade sua verdade é dependente, através de um movimento interno na razão de explicitação de noções comuns.

Parece ser possível então, a partir da explicação do argumento do Cogito, inferir que, segundo Descartes, há um movimento interno da razão ainda no momento de sua operação mais simples, a intuição, em que noções comuns e primeiros princípios são explicitados a partir da consciência da verdade de alguma proposição. Esse movimento interno da razão, através do qual os princípios e as noções comuns são explicitados, consiste num tipo de inferência, uma inferência direta, nos termos de Descartes, na medida em que consiste em um movimento da mente que vai da compreensão implícita de noções simples e princípios universais para a apreensão filosófica intuitiva de certas proposições particulares e destas de volta para a compreensão, agora explícita, do que a condiciona. Apesar de consistir em uma inferência, entretanto, esse movimento não se confunde nem com o que na tradição silogística chama-se de dedução lógica, nem com a dedução considerada por Descartes como uma das operações fundamentais da razão. Por um lado, trata-se de uma inferência pré-discursiva e, portanto, uma inferência não silogística. Por outro lado, na medida em que ocorre no

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interior do ato de intuir que, por uma atenção cuidadosa explicita princípios e noções implícitas na apreensão da verdade de proposições particulares, essa inferência não consiste em uma dedução, mas antes numa preparação de dados que poderão ou não ser conectados com outros em uma dedução. Assim, o processo pelo qual a razão compreende noções primitivas e primeiros princípios com base no conhecimento de particulares revela, em parte, a natureza da razão, na medida em que revela um movimento interno à razão, isto é, um movimento interno à operação da intuição, cujo produto evidente é condição para que se realize a outra operação cognitiva natural da razão, a dedução.

Segundo Descartes, exceto pela limitação da razão humana, todos os objetos de dedução podem ser objetos de intuição. Sendo assim, embora as duas operações não sejam idênticas, porque a intuição tem uma natureza tal que instantaneamente apreende seu objeto e a dedução consiste em um processo que envolve a memória, na medida em que a diferença entre elas tem como base apenas a limitação da mente humana que não pode perceber verdades complexas de uma só vez, a compreensão da operação da intuição lança alguma luz para a compreensão da dedução. A dedução no sentido cartesiano é a operação cognitiva que, como a intuição, produz evidências mas que, diferentemente da intuição, infere essas evidências a partir de evidências (alcançadas por intuição) e por elos também evidentes (apreendidos também por intuição). Parece plausível, portanto, afirmar que segundo Descartes, no ato cognitivo podem operar dois tipos de inferência que, nos termos de Descartes na Regra VI (AT X: 387) consistiriam em uma dedução “direta” ou “indireta”: a inferência direta, operada no ato da intuição de verdades particulares para a explicitação de princípios e noções comuns, e a inferência indireta, operada pela dedução que consiste em um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento de uma intuição para outra.

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Na Regra VII, Descartes ocupa-se com a explicação do que ele entende pela operação cognitiva da inferência indireta, isto é, a dedução, operação necessária visto que admitimos “como certas as verdades que, como dissemos acima, não são deduzidas imediatamente a partir de primeiros princípios evidentes”. Se a ciência não se constitui apenas de verdades simples, mas sim de um complexo articulado de verdades simples, cabe à operação de inferir indiretamente, isto é, deduzir, a função de expandir o conhecimento. A dedução é a inferência indireta em oposição à dedução direta realizada na intuição e pode ser chamada também de “enumeração”ou “indução” (Regra XI, AT X: 408). Na dedução, o intelecto, que não pode apreender ao mesmo tempo todo o conteúdo, com auxílio da memória, retém as partes individuais da enumeração, permitindo combiná-las todas depois em um todo. A dedução, portanto, segundo Descartes, é o meio pelo qual a partir das noções comuns e primeiros princípios fazemos composição de modo a alcançarmos verdades mais complexas. Assim, pode-se afirmar que Descartes concebe que por intuição descobrimos as conexões simples entre noções comuns e princípios, seja entre eles mesmos, seja entre instâncias dos princípios e eles, e que por dedução (que, diferentemente da dedução silogística depende de conteúdos conhecidos já que depende da intuição de verdades e de elos conectivos) descobrimos as conexões mais complexas entre verdades, expandindo assim o conhecimento.

Paralelamente ao método da matemática universal de descoberta de novos conteúdos de conhecimento, Descartes expressamente se preocupa com o modo adequado para expor os conteúdos de conhecimento. Com essa preocupação em mente, Descartes retoma, em suas Respostas às Segundas Objeções, a questão da justificação ou explicitação dos axiomas e princípios universais, quando faz distinção entre as exposições de conteúdos via análise e síntese. É interessante notar que, ao longo de sua obra, Descartes experimenta

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diferentes métodos de exposição de sua doutrina. Ele se serve da narrativa autobiográfica no Discurso, da fábula no Mundo, da exposição em forma de diálogo em A Procura da Verdade, do formato de texto didático (ao menos intencionalmente) nos Princípios da Filosofia e, ao menos aparentemente, de uma adaptação das disputas escolásticas nas Objeções e Respostas publicadas juntamente com as Meditações Metafísicas. No caso específico das Meditações, entretanto, o método da descoberta via intuição-dedução exposto nas Regras e resumido no Discurso, se expressa segundo um novo aspecto: a ordem analítica de exposição de conhecimento. Como veremos, a disciplina que contém os “rudimentos da razão humana”, isto é, a matemática universal apresentada nas Regras, visto sistematizar o modo como naturalmente os homens pensam, de certa forma antecipa o método analítico de exposição de conhecimento e é nesse sentido que é possível então afirmar que a via analítica, segundo Descartes é um método de exposição e de descoberta de conteúdos cognitivos.

Em resposta aos autores das Segundas Objeções, que o instam a apresentar sua doutrina segundo o modelo geométrico, isto é, partindo de definições, axiomas e postulados, Descartes apresenta alguns de seus argumentos segundo esse método dos geômetras, mas não sem antes introduzir uma discussão geral onde apresenta uma distinção interna ao método matemático: a ordem e a maneira de demonstrar conteúdos. A ordem, diz Descartes, consiste na organização da exposição de tal modo que aquilo que é apresentado antes pode ser conhecido sem recurso às proposições que se seguem e que estas que se seguem devem ser conhecidas apenas por recurso às que a precedem. Nos termos de Descartes “consiste apenas em que as coisas propostas em primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem”.

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Essa foi a ordem seguida nas Meditações, como afirma o próprio Descartes no Resumo das Meditações:

tendo procurado nada escrever nesse tratado de que não tivesse demonstrações muito exatas, vi-me obrigado a seguir uma ordem semelhante àquela de que se servem os geômetras, a saber, adiantar todas as coisas das quais depende a proposição que se busca, antes de concluir algo dela.

Visto que tanto a via sintética quanto a analítica são

“aquelas de que se servem os geômetras”, ambas estão, portanto, de acordo com essa ordem, a ordem das razões. No que diz respeito à ordem, portanto, não há distinção entre a via sintética e a via analítica. Entretanto, ao prosseguir, Descartes explica que é quanto ao modo como demonstram que a via analítica e a via sintética se distinguem.

A via sintética de exposição parte de uma longa série de definições, axiomas, postulados, teoremas e problemas, movendo-se em uma cadeia contínua de raciocínios e demonstrações para provar teoremas, demonstrando assim o que está contido nas conclusões. A via analítica, por outro lado, não supõe nada como previamente dado. Ela começa de um problema que vai sendo analisado em questões mais simples até que alguma verdade mais simples e evidente seja percebida, a partir da qual é possível solucionar o problema. Na via sintética, portanto, o ponto de partida são as coisas consideradas como primeiras na cadeia de raciocínio e estas são assim consideradas expressamente por definições, axiomas e postulados. Essa via, segundo Descartes, convém à Geometria, na medida em que as primeiras noções supostas, a partir das quais se demonstram as proposições geométricas, estão de acordo com o que é dado aos sentidos, sendo portanto facilmente aceitas como axiomas por todos. O interlocutor é levado a assentir porque percebe como cada passo se segue do que foi dado anteriormente.

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A via sintética de exposição, entretanto, não convém às questões da Metafísica. A principal dificuldade resulta do fato de que não é possível conceber as primeiras noções da metafísica como axiomas, pois, ainda que por sua própria natureza sejam noções muito claras, elas não acordam com o que recebemos dos sentidos. Visto que em metafísica os diferentes autores discordam mesmo quanto às proposições mais básicas (tais como se o mundo é criado ou não, se há espaço vazio, etc.) e visto que as primeiras noções são distintas (e muitas vezes opostas) do que nos fornecem os sentidos, faz-se necessária a via analítica para que cada um possa alcançar por ele mesmo os primeiros princípios. Sendo assim, um primeiro aspecto em que a via analítica e a via sintética de demonstração são distintas é o fato de que, na primeira e não na segunda, as primeiras noções e princípios são justificados e explicitados. O método analítico, em oposição ao sintético, não considera coisa alguma como previamente dada. Uma exposição segundo esse método começa por um problema particular e o divide em questões mais simples até chegar a alguma verdade evidente. Nessa via, o interlocutor só se convence se ele próprio tem insights das primeiras noções e princípios de tal modo que “a análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta [...] de sorte que [...] o leitor [...] não entenderá menos perfeitamente a coisa assim demonstrada e não a tornará menos sua do que se ele próprio a houvesse descoberto”. Visto que nas Meditações o conhecimento é obtido não apenas por intuição do simples, mas também por dedução do mais complexo, e visto que Descartes, nas Respostas às Segundas Objeções afirma que nas Meditações seguiu apenas a via analítica, é necessário admitir que a via analítica envolve as operações da intuição e da dedução.

Descartes acreditava que com seu método analítico tinha reconstituído o método secreto dos matemáticos gregos da antiguidade. Apesar de não esclarecer em que medida seu

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método é uma variação ou generalização do método dos antigos matemáticos, Descartes deixa claro que a semelhança entre os dois métodos diz respeito à própria natureza da operação cognitiva da mente humana, como fica claro, por exemplo, na Regra IV das Regras para direção do Espírito, onde ele afirma:

Com efeito, a mente humana tem não sei quê de divino, em que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram lançadas de tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas e abafadas por estudos feitos indiretamente, produzem um fruto espontâneo. É o que experimentamos, nas ciências mais fáceis, a Aritmética e a Geometria: de fato, vemos bastante bem que os antigos Geômetras utilizaram uma espécie de análise que estendiam à solução de todos os problemas, ainda que não a tenham transmitido à posteridade. E agora floresce um gênero de Aritmética, que se chama Álgebra, que permite fazer para os números o que os Antigos faziam para as figuras. Estas duas coisas não passam de frutos espontâneos dos princípios naturais do nosso método.

Descartes, portanto, em algum aspecto importante se

filia à tradição analítica de matemáticos como o grego Pappus. Pappus de Alexandria, cuja descrição do método de análise dos gregos antigos é considerada a mais “completa e informativa” (BATTISTI, 2010) e a “única explícita e extensiva” (HINTIKKA,1978), a esse respeito afirma:

A análise é o caminho que parte do que é buscado – como se tivesse sido admitido – e através de seus concomitantes, em sua ordem, segue até algo suposto na síntese. Pois na análise supomos como já tendo sido feito aquilo que é buscado, e nos perguntamos de que resulta, e de novo o que é o antecedente desse último, até que em nosso caminho de trás para frente possamos lançar luz sobre algo já conhecido e o primeiro na ordem [...] Na síntese, por outro lado, supomos como já tendo sido feito o que foi alcançado por último na análise, e ordenando em sua ordem natural como consequente o que antes era antecedente, e relacionando-os uns aos outros, ao

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final chegamos à construção da coisa buscada (PAPPUS, 1876-1877, in HINTIKKA, 1978, p. 76).

Uma primeira coisa a ser notada é que, na descrição de

Pappus, a síntese aparece como uma complementação da análise e que a análise não faria sentido se não fosse seguida pela síntese, na busca de conhecimento. Pode-se dizer, portanto, que o método descrito por Pappus é um método analítico-sintético. Mas, se é assim, não caberia buscar a semelhança entre o método de Descartes e a dos matemáticos antigos considerando o método em sua totalidade já que, como vimos, Descartes pretende, nas Meditações, ter seguido somente a via analítica.

Admitindo então que na descrição de Pappus não há um método de análise, e sim um método composto de análise e síntese para a descoberta e exposição do conhecimento e que para Descartes o método de descoberta e de exposição é apenas analítico, talvez seja possível encontrar a semelhança entre os dois métodos voltando-se para o aspecto direcional da análise e da síntese. Aparentemente, tanto para Pappus quanto para Descartes as duas vias seguem direções inversas, sendo a síntese um raciocínio direto, linear ascendente, e a análise um raciocínio de direção oposta. Apesar disso, ao menos à primeira vista, no caso de Descartes, esse não parece ser de fato o caso se considerarmos, por exemplo, o texto das Respostas às Segundas Objeções, onde Descartes apresenta sua argumentação exposta nas Meditações transformada para a via sintética. Apesar de uma seguir a via sintética e, a outra, a analítica, percebe-se que as principais linhas da argumentação são as mesmas e na mesma direção. Tanto a prova da existência de Deus quanto a distinção real entre corpo e alma seguem nessas respostas exatamente a mesma ordem das Meditações: a partir da ideia de Deus, existente em nós, Descartes mostra que Deus existe e a partir do conhecimento

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de que a alma pode existir independentemente da existência do corpo mostra que a alma é distinta do corpo.

Seguindo a linha interpretativa exposta em Hintikka e Remes (1974) e em Hintikka (1978) parece mais plausível afirmar que a semelhança entre o método moderno de análise e a via analítica do método analítico-sintético utilizado pelos matemáticos gregos na antiguidade reside no aspecto de intercalações e interdependências entre os elementos conhecidos com relação ao todo do conhecimento almejado: a conexão entre os objetos geométricos que são partes de uma figura, no caso da geometria, e a conexão entre proposições simples verdadeiras e verdades mais complexas, no caso da filosofia.

Segundo Hintikka, o aspecto mais importante do método antigo recuperado por Descartes e seus contemporâneos é a ideia de que a análise é uma análise de configuração e não de provas. Isto é, na geometria dos gregos antigos, o início e o final da análise eram objetos geométricos e não verdades geométricas. Os passos da análise, portanto, eram de um objeto geométrico para a construção de outro ou outros. Esses passos de um objeto para outro eram mediados por sua interdependência num contexto do todo da configuração da figura cujos elementos eram objetos construídos. As construções auxiliares de objetos teriam, portanto, um papel fundamental: seriam elas as responsáveis pela explicitação das intercalações e interdependências das partes da figura relevantes para a resolução do problema. Assim, a análise de uma figura geométrica mostraria ou explicitaria as inter-relações entre diferentes objetos geométricos na figura. Ainda segundo Hintikka, os predecessores de Descartes gradativamente introduziram o uso de métodos algébricos para a expressar as interdependências entre os objetos de uma figura geométrica de tal modo que coube a Descartes a geometria analítica propriamente dita, na qual qualquer dependência entre

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quaisquer objetos geométricos pode ser algebricamente representada bem como a matematização da física, segundo o que os diferentes fatores de uma configuração física podem, por análise, ser expressos matematicamente. Segundo Hintikka, portanto, “o método de Descartes pode ser considerado como o resultado desse tipo de extensão do método de análise das configurações geométricas para todo complexo de elementos interdependentes”. Assim, a semelhança entre o método cartesiano de análise e a via analítica do método de Pappus parece residir no fato de que a análise é uma análise de configurações e inter-relações. Se, como vimos acima, é pelas operações da intuição e da dedução que, segundo Descartes, a razão naturalmente chega a verdades descobrindo suas conexões diretas ou indiretas, então o método analítico de Descartes é aquele segundo o qual por intuição e por dedução obtemos uma verdade particular e “lançamos os olhos sobre tudo o que ela contem”(Resposta às Segundas Objeções).

Para concluir, gostaria de lembrar ainda três pontos que parecem relevantes para a questão da educação segundo a filosofia de Descartes. Primeiro, que no sistema cartesiano, a via analítica é mais adequada ao ensino. Apesar disso, Descartes mostra que essa via não é eficaz em todos os casos. Depois que, para o sistema cartesiano, o conhecimento depende mais do desenvolvimento das operações cognitivas do que da aquisição de conteúdos cognitivos. Apesar disso, em consequência do que, como vimos, ele considera problemático na lógica silogística, Descartes distingue sua busca por tornar o raciocínio mais perspicaz dos preceitos da lógica silogística. Em terceiro lugar, que nos sistema cartesiano a erudição não é sinônimo de educação.

Nas Respostas às Segundas Objeções, Descartes expressamente afirma que a via analítica é a “mais verdadeira e a mais própria ao ensino”, mas não a recomenda a qualquer um. A via analítica, em princípio, é a via mais adequada na

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medida em que, como vimos, “mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta”. Ao permitir que o leitor lance os olhos sobre tudo o que está envolvido em um determinado conhecimento, permite que ele compreenda “perfeitamente a coisa assim demonstrada” e a torne sua como “se ele próprio a tivesse descoberto (Respostas às Segundas Objeções). Apesar disso, Descartes faz uma ressalva: essa via não é adequada para um leitor desatento ou preguiçoso, já que não oferece uma cadeia ininterrupta de raciocínio. Embora Descartes caracterize a operação cognitiva da dedução como “movimento ininterrupto e contínuo do pensamento”, como vimos, esse movimento depende dos resultados obtidos por intuição. Intuição e dedução são complementares. E se, como vimos, a intuição consiste não só na consciência imediata da verdade de um conteúdo, mas também na consciência de uma rede de noções simples e primeiros princípios imediatamente apreendidos a partir dela, a exposição do conhecimento pela via analítica não pode se limitar a uma cadeia linear de raciocínios. Sendo assim, essa via “não é capaz de convencer os leitores teimosos e pouco atentos”. Para estes, a via sintética é a mais adequada, pois envolve apenas um raciocínio linear, conseguindo assim “arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e opiniático que seja”, embora “não dê inteira satisfação aos espíritos que desejam aprender porque não ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta” (Repostas às Segundas Objeções).

Além disso, Descartes considera a importância de desenvolver as operações cognitivas e sua relação com a aquisição de conteúdos cognitivos. Na Regra IX, Descartes afirma que “é preciso dirigir toda a acuidade do espírito para as coisas menos importantes e mais fáceis e nelas nos determos tempo suficiente até nos habituarmos a ver a verdade por intuição de uma maneira distinta e clara” e, na Regra X, afirma que

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para que o espírito se tome perspicaz, deve exercitar-se em procurar o que já por outros foi encontrado, e em percorrer metodicamente até mesmo os mais insignificantes ofícios e artes dos homens, mas sobretudo os que manifestam ou supõem ordem.

Isto, segundo Descartes, é possível e necessário para o

conhecimento cultivar as operações cognitivas e este cultivo se dá cultivando a perspicácia, ao intuir cada coisa em particular, e a sagacidade, ao deduzir com arte umas das outras. Descartes explicita o que entende por cultivo da intuição através de uma analogia com os artesãos que, segundo ele, adquirem a capacidade de distinguir com precisão coisas muito delicadas e pequenas porque são acostumados a fixar o olhar em um único ponto. Do mesmo modo, diz ele, visto que a atenção voltada para muitas coisas ao mesmo tempo é sempre confusa, tornar nossas mentes mais claras e, nesse sentido, propícias ao conhecimento, depende de dedicarmos nossa atenção para o mais simples e fácil. E, para explicar o cultivo da dedução, Descartes sugere que se considere atentamente as artes mais simples, especialmente aquelas onde a ordem prevalece, como a tecelagem, cujas linhas se entrelaçam em infinitos padrões, ou os jogos que envolvem aritmética, porque são atividades onde “nada permanece escondido e que correspondem inteiramente à capacidade do conhecimento humano”. Note-se que, apesar da ênfase no refinamento das operações cognitivas, Descartes pretende ainda assim observar uma certa distância com relação à lógica silogística. Diz ele ainda, na Regra X:

Alguns espantar-se-ão, talvez, que neste lugar em que procuramos os meios de nos tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas das outras, omitamos todos os preceitos dos Dialéticos, com os quais julgam eles governar a razão, prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio [...] é sobretudo para evitar que nossa razão entre de férias quando

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investigamos a verdade de alguma coisa, que rejeitamos estas formas lógicas como contrárias ao nosso objetivo.

E por fim, ao distinguir educação de erudição, Descarte

parece sugerir que, no que diz respeito à educação, a quantidade de conteúdos aprendidos, escritos ou pensados não é relevante. Em carta a Voetius, de maio de 164390, Descartes afirma:

Digo “educação” e não “erudição”. Pois se no significado do termo “erudição” você pretende incluir tudo o que é aprendido dos livros, independentemente da qualidade, de bom grado concordo que você é o homem mais erudito de todos... Por “educado” quero dizer o homem que apurou sua inteligência e caráter por estudo e cultivo cuidadosos. Estou convencido que se adquire essa educação não pela leitura indiscriminada de qualquer livro, mas pela leitura frequente e repetida apenas do melhor, pela discussão com os já educados, quando se tem oportunidade e, finalmente, pela contínua contemplação das virtudes e busca da verdade.

REFERÊNCIAS BATTISITI, Cesar. “O Método de Análise Cartesiano e o seu Fundamento”. In: Scientiæ Studia, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 571-96, 2010. BEHBOUD, Ali. “Greek Geometrical Analysis”. In: Centaurus, v. 37, p. 52-86, 1994. DESCARTES, R. Adam, C. and Tannery, P (ed.). Oeuvres de Descartes (rev. edn., 12 vols. Paris: Vrin/CNRS, 1964-76). HINTIKKA, J. e REMES, U. The method of analysis. Dordretch: Publishing Company, 1974.

90 AT VIIIB 25-194. Carta resposta de Descartes a dois escritos de Voetius (Confraternitas Mariana – 1642 e Admiranda Methodus – 1643), onde este ataca violentamente as teses de Descartes. Antes disso, Voetius garantiu a condenação formal da filosofia cartesiana na Universidade de Utrecht, da qual era reitor.

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HINTIKKA, J., “A discourse on Descartes’ method” in Hooker, M., Descartes: critical and interpretive essays. Baltmore: The Johns Hopkins University Press, 1978, pp. 74-88.

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Capítulo 8 LLOOCCKKEE,, OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EE AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Gustavo Araújo Batista

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS Neste capítulo, nós nos encarregaremos de elaborar uma

explanação pontual sobre algumas categorias pelas quais o filósofo inglês John Locke (1632-1704) estrutura o seu pensamento filosófico-educacional, razão pela qual se torna imperativa a necessidade de explicitar de que maneira teria sido feito o desenvolvimento de tais categorias, pois a compreensão da sua articulação é de fundamental importância para se compreender melhor a forma e o conteúdo dos quais este eminente pensador ter-se-ia servido, à guisa de conferir maior consistência, coerência e coesão, tanto à sua teoria filosófica, em geral, quanto à sua proposta pedagógica, em particular.

Outrossim, aqui foram selecionados alguns dos conceitos-chave presentes na obra Ensaio sobre o Entendimento Humano91 (1690), obra capital da epistemologia lockeana, a qual, por sua vez, constitui a síntese magna de suas elucubrações acerca da origem, dos fundamentos, dos princípios, dos limites, da extensão, da possibilidade, da validade e da finalidade do conhecimento em geral e, em particular, do conhecimento filosófico-científico, sob a 91 Denominada, doravante, Ensaio.

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perspectiva empirista. De igual modo, foram extraídas algumas categorias da sua principal obra pedagógica, qual seja: Alguns Pensamentos sobre Educação92 (1692/3), que estabelece critérios para a educação dos filhos das classes nobiliárquicas de sua época.

Para facilitar a exposição das categorias escolhidas, que foram destacadas conforme a sua capacidade de fornecer uma percepção sumária e esquemática da epistemologia e da pedagogia arquitetadas por Locke, aqui faremos algumas subdivisões, apostando, igualmente, que isso propiciará um vislumbrar mais claro e distinto do ideário utilizado pelo pensador britânico para compor o seu legado intelectual. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA EXPERIÊNCIA

Entendendo-se por categorias epistemológicas os elementos que fundamentam o pensamento acerca de questões sobre o conhecimento. A epistemologia que se encontra em Locke permite enquadrar tais elementos na corrente filosófica conhecida como ‘empirismo’93 que, sumariamente, defende a tese de que a origem, o fundamento, a extensão, as condições de possibilidade e de validade do conhecimento estão determinados a partir da experiência. Consequentemente, o empirismo refuta todo e qualquer tipo de conhecimento que não tenha a experiência como sua pedra de toque, ou seja, sua base. Sendo assim, a categoria experiência é a primeira que

92 Denominada, doravante, Pensamentos. 93 A palavra ‘Empirismo’ deriva da palavra grega zzzzzzzz (empeiria ou empiria), que significa ‘experiência’. Estabelecendo o primado da experiência, “o empirismo é a afirmação de que o conhecimento humano está confinado dentro das fronteiras da experiência e que para lá destas fronteiras o que existe são unicamente problemas insolúveis ou sonhos arbitrários” (ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1981, p. 418). Trata-se, pois, de um movimento filosófico que tem entre as suas finalidades emancipar epistemologicamente o ser humano, isto é, dar-lhe inteira, total, completa e plena autoridade e responsabilidade sobre as questões que dizem respeito ao conhecimento.

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deve ser abordada, à guisa de explicitação da epistemologia lockeana.

De acordo com a seguinte citação, extraída do Ensaio, tem-se o que Locke entende por experiência:

Suponhamos então que a mente seja, como se diz, um papel em branco, vazio de todos os caracteres, sem quaisquer ideias. Como chega a recebê-las? De onde obtém esta prodigiosa abundância de ideias, que a activa e ilimitada fantasia do homem nele pintou, com uma variedade quase infinita? De onde tira todos os materiais da razão e do conhecimento? A isto respondo com uma só palavra: da EXPERIÊNCIA. Aí está o fundamento de todo o nosso conhecimento; em última instância daí deriva todo ele. São as observações que fazemos sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter (LOCKE, 2005, p. 106-107, grifos do autor).

Experiência é, segundo tal perspectiva, tanto a

observação do contato feito entre os sentidos e os objetos externos à mente (observação tal que pode ser resumidamente denominada ‘sensação’ ou ‘experiência externa’) quanto a observação que a mente faz das suas próprias atividades a partir dos dados fornecidos pela sensação (observação que, por seu turno, pode ser sumariamente reconhecida como ‘reflexão’ ou ‘experiência interna’).

A educação, pensada a partir de tal ótica, não será outra coisa senão uma atividade por meio da qual se colocará o indivíduo em condições de realizar, por si próprio, mas não sem orientação, suas experiências, razão pela qual a experiência constitui, portanto, uma categoria imprescindível não somente para se compreender o que Locke pensa acerca do conhecimento, mas também para se apropriar do seu pensamento pedagógico, haja vista que ela tem primazia no

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processo educativo, pelo fato de que a sua ausência simplesmente inviabilizaria a existência da atividade pedagógica, porquanto a educação está orientada para o conhecimento que, por sua vez, não será possível, conforme o empirismo, se não houver o concurso da experiência. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA MENTE

Em se tratando da categoria mente, Locke elabora uma concepção sobre ela de maneira extensiva. Ele se serve de algumas metáforas para defini-la, dentre as quais a mais conhecida é a da tabula rasa94. As outras metáforas das quais se tem notícia são: a) a folha de papel em branco; b) o quarto escuro; e c) o armário vedado contra a luz, com pequenas aberturas, pelas quais imagens das coisas visíveis no exterior podem entrar. Conforme testemunha Yolton,

a expressão tabula rasa [távola vazia] aparece nos primeiros Ensaios sobre a lei da natureza, de Locke, onde diz que os “recém-nascidos são simplesmente rasae tabulae [távolas vazias]” (p. 137). Também usou a frase no Rascunho B do Ensaio: “Parecendo-me provável, pois, que não existe noção, ideia ou conhecimento de qualquer coisa originalmente na alma, mas que no início ela é perfeitamente rasa tabula, inteiramente vazia, mas capaz de receber aquelas noções ou ideias que são os objetos apropriados do nosso entendimento” (Drafts, org. Nidditch e Rogers, § 12, p. 128). No próprio Ensaio, inicia o seu programa de aquisição de ideias dizendo: Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, uma folha de papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias (2.1.2). Uma outra passagem refere-se à mente

94 Távola rasa, ou seja, mesa vazia. Tal metáfora não é originalmente lockeana, já que pertence ao jargão filosófico desde Aristóteles (384-322 a.C.), que, provavelmente, empregou-a, pela primeira vez, na história do pensamento filosófico ocidental. O sentido de tal metáfora é afirmar que a mente é, em princípio, uma instância desprovida de todo e qualquer conteúdo, razão pela qual não se lhe deve imputar como inato o que quer que seja, a não ser, obviamente, as suas faculdades ou capacidades, que são as suas formas, porém, não os seus conteúdos, adquiridos, pois, somente pelas duas vias supracitadas, a saber: a sensação e a reflexão.

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como um quarto escuro: “sensação e reflexão”, diz ele, são “as janelas pelas quais a luz é introduzida nesse quarto escuro. Pois parece-me que o entendimento [isto é, uma das principais operações da mente] não difere muito de um armário totalmente vedado contra a luz, com apenas algumas pequenas aberturas que permitem a entrada de imagens visíveis externas, ou ideias de coisas existentes do lado de fora” (YOLTON, 1996, p. 271-272).

Por tais metáforas, conclui-se que Locke tinha como

escopo fazer entender que a mente não é, em sua origem, dotada de elementos inatos, afirmação fundamental em sua argumentação contra o ‘inatismo’, sobretudo o de matriz cartesiana95. Ao atacar dessa forma o racionalismo, o anti-inatismo defendido por Locke constitui, sob a perspectiva dialética adotada nesta pesquisa, uma antítese que procurava abalar até aos últimos fundamentos a tese racionalista, apresentando argumentos que advogam a veracidade dessa antítese empirista. Os três primeiros capítulos do Ensaio são destinados a destruir a tese de que existem princípios inatos, sejam eles teóricos ou práticos. Os argumentos apresentados para tal vão no sentido de que é possível, apenas pelo simples emprego das faculdades mentais do ser humano, que lhe são naturais, chegar ao conhecimento da verdade sem a intermediação de ideias inatas, motivo pelo qual não há necessidade de, tampouco razoabilidade em, admiti-las, sendo até mesmo um absurdo fazê-lo. A seguinte citação exemplifica como Locke refuta os argumentos dos racionalistas:

De facto, nem as crianças nem os idiotas têm delas o menor conhecimento. E tanto bastará para destruir o consenso universal exigido pelas verdades inatas. Efectivamente,

95 O inatismo (também conhecido como racionalismo) cartesiano leva tal epíteto por causa de seu fundador, René Descartes (1596-1650), cujo nome, em latim, é Renatus Cartesius. De acordo com ele, a mente é dotada de três tipos de ideias, a saber: ideias inatas, ideias adventícias e ideias fictícias: “Mas dessas ideias umas me parecem inatas, outras adventícias, outras feitas por mim” (DESCARTES, 1993, p. 13-14).

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afigura-se-me quase uma contradição dizer que há verdades impressas na alma que podem não ser conhecidas: imprimir, neste caso, se significa alguma coisa, significa precisamente tornar conhecido; pois a impressão, no espírito, de verdades que o espírito ignore, dificilmente terá algum sentido. E assim, se as crianças e os idiotas têm alma (ou espírito), com os tais princípios nela impressos terão forçosamente de se aperceber deles, e de conhecer e aceitar, necessariamente, a sua verdade. Ora, como tal não acontece, é evidente que não existem impressões desse gênero (LOCKE, 2005, p. 33, grifo do autor).

Outra observação tecida por Locke no que se refere ao

argumento racionalista ainda em questão é aquela que, se tal argumento fosse válido, então nada de novo se aprenderia, o que Locke nega, pois “algo de que éramos ignorantes se aprende de facto” (LOCKE, 2005, p. 45). Desse modo, Locke defende que a mente procede gradualmente, partindo da percepção das ideias, bem como de seus nomes, até chegar às conexões que estabelecem entre si. Exemplificando sua argumentação, Locke novamente recorre ao comportamento da mente da criança, cujo raciocínio procede de elementos mais simples e particulares para, posteriormente, chegar a questões mais complexas e gerais:

Assim, por exemplo, uma criança rapidamente concordará com que “uma maçã não é o fogo”, depois de ter aprendido no convívio familiar as distintas ideias dessas duas diferentes coisas, e de ter aprendido também que as palavras maçã e fogo servem para designar; mas só muito mais tarde, por certo, a mesma criança verá a verdade da seguinte afirmação: “É impossível que a mesma coisa seja e não seja”. E isso porque, sendo embora as suas palavras igualmente fáceis de aprender, já o mesmo se não passa com o seu significado, mais amplo e abstracto do que aquelas coisas sensíveis de que a criança teve experiência directa muito antes de aprender o seu exacto sentido; na verdade, a aquisição dessas ideias gerais requer muito mais tempo. E até que tal se verifique, será debalde que tentaremos fazer compreender a uma criança qualquer proposição formada com ideias desse género; todavia, à medida que as for apreendendo, e que apreender os seus

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nomes, logo dará o seu assentimento tão facilmente a essas proposições como às anteriores; e tanto a umas como a outras, pelo mesmo motivo: por verificar que as ideias que tinha na cabeça concordam ou discordam, consoante as palavras que as designam são afirmadas ou negadas umas das outras (LOCKE, 2005, p. 46, grifos do autor).

Depois de empenhar-se em discorrer acerca da sua

repugnância em admitir princípios especulativos inatos, Locke dedicar-se-á, em sequência, a argumentar contra a existência de princípios inatos práticos (ou morais). Ele não negou a evidência, tampouco a validade, dos princípios teóricos, apesar de negar-lhes o inatismo; em relação às máximas (princípios) morais, verificar-se-á que o procedimento adotado será o mesmo, haja vista que, assim como para com os princípios teoréticos, “as máximas morais requerem a aplicação do entendimento para poder descobrir-se a certeza das verdades que encerram” (LOCKE, 2005, p. 53). DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA ENTENDIMENTO

O entendimento é, segundo Locke, a principal faculdade mental, uma vez que ele é responsável pela elevação do gênero humano em relação aos demais seres terrenos, motivo pelo qual dedica o seu Ensaio à tarefa de investigar essa capacidade mental, com o intuito de desvelar o seu poder, o seu alicerce, o seu limite e a sua extensão. Assim se expressa na Introdução de sua referida obra:

Uma vez que é o Entendimento que eleva o homem acima dos outros seres sensíveis, lhe dá as vantagens de que goza e lhe permite o domínio que sobre eles tem – certamente que o seu estudo é merecedor de todo o interesse e digno da maior aplicação. O entendimento, tal como os olhos, embora nos permita ver e compreender todas as coisas, não se apercebe a si próprio; e é preciso muita arte e esforço para colocá-lo à distância que lhe permita constituir-se um objecto para si

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mesmo. Mas, quaisquer que sejam as dificuldades que barrem o caminho desta investigação, e haja o que houver capaz de nos ocultar teimosamente a nós próprios, estou certo de que toda a luz com que pudermos iluminar os nossos próprios espíritos, todo o conhecimento que obtivermos sobre o nosso próprio entendimento, nos dará a maior alegria e nos permitirá ainda grandes progressos no conhecimento das restantes coisas (LOCKE, 2005, p. 21, grifo do autor).

Sendo o entendimento a faculdade mais nobre do ser

humano (pela qual o mesmo conduz-se a si próprio), é preciso, portanto, discipliná-lo para que faça jus a tal atributo, a fim de que conduza as demais faculdades mentais corretamente, levando o indivíduo à senda da virtude, uma vez que, quando mal orientado, o entendimento produz o danoso efeito de uma conduta imprópria para o ser humano, qual seja, um comportamento repleto de vícios. Assim, a proposta pedagógica lockeana consiste em fazer com que o entendimento humano seja educado de forma a buscar o conhecimento para a virtude, sem a qual o homem não se tornaria senhor de si mesmo. Logo no começo de sua obra intitulada Sobre a Conduta do Entendimento, Locke não poupa esforços no sentido de argumentar acerca da supremacia que o entendimento exerce sobre a vontade humana que, por mais rebelde que seja, acaba seguindo-o em última instância, motivo pelo qual a educação do entendimento requer tanto cuidado:

O último recurso ao qual um homem tem a recorrer na conduta de si mesmo é seu entendimento, o qual nós distinguimos entre as faculdades da mente e damos o supremo comando da vontade como o de um agente, embora a verdade seja que o homem que é o agente determina a si mesmo para esta ou aquela ação voluntária sobre algum conhecimento precedente, ou aparência de conhecimento, no entendimento. Nenhum homem nunca se posicionou sobre qualquer coisa exceto sobre alguma visão ou outra coisa que lhe servisse de razão para aquilo que faz; e quaisquer

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faculdades que ele empregue, o entendimento, com tal luz que tenha, bem ou mal informado, constantemente lidera; e através daquela luz, verdadeira ou falsa, todos seus poderes operativos são dirigidos. A própria vontade, por mais absoluta e incontrolável no que quer que possa ser pensado, nunca falha em sua obediência aos ditados do entendimento. Os templos têm as suas imagens sacras, e nós vemos que influência elas sempre têm tido sobre uma grande parte da humanidade. Mas em verdade as ideias e imagens nas mentes dos homens são os poderes invisíveis que constantemente os governam, aos quais eles todos universalmente tributam uma pronta submissão. É, portanto, da mais alta preocupação que grande cuidado deveria ser tomado acerca do entendimento, para conduzi-lo correto na busca do conhecimento e nos julgamentos que ele faça (LOCKE, 1996, p. 167, tradução nossa).

DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA RAZÃO

Ao tratar da categoria razão, Locke incumbe-se de precisar os diferentes significados que tal palavra possui. Devido, pois, à polissemia de tal vocábulo, o filósofo inglês esmera-se em dar-lhe um significado mais exato, a fim de, com isso, conferir maior inteligibilidade a seus escritos. No Capítulo XVII do IV Livro do seu Ensaio, assim se expressa:

A palavra razão tem diferentes significados na língua inglesa. Às vezes, aplica-se a princípios verdadeiros e claros; outras vezes, a deduções claras e justas desses princípios; e outras, aplica-se à causa, e particularmente à causa final. Mas considerá-la-ei aqui com um significado diferente de todos estes, e esse significa a faculdade do homem pela qual se supõe que ele se distingue dos animais e os ultrapassa em muito (LOCKE, 2005, p. 929, grifos nossos).

Através do supracitado significado dado à palavra

‘razão’, nota-se que Locke não a distingue rigorosamente daquilo que concebe como ‘entendimento’, motivo pelo qual podem ser tratados, sob a sua perspectiva, como sinônimos,

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haja vista que ambos (entendimento e razão) são as faculdades mentais responsáveis pela diferenciação e pela elevação da natureza humana em relação aos demais seres presentes no mundo sensível. Todavia, poder-se-ia fazer uma objeção a Locke no tocante ao fato de que, sendo a razão e o entendimento sinônimos, que motivo haveria, então, para se falar de uma e de outro?

Em resposta a tal objeção que lhe pudesse ser feita, esta citação, extraída do mesmo capítulo ao qual se fez menção no final do parágrafo anterior, lança luzes no que diz respeito à necessidade da parte de Locke em explicitar a importância da atividade racional, uma vez que, através dela, torna-se possível ao ser humano ter o seu conhecimento ampliado e o seu assentimento organizado, o que o entendimento sozinho não conseguiria. Consequentemente, entendimento e razão seriam, assim, quase sinônimos, uma vez que, embora a ambos se deva o fato do ser humano ser superior aos demais seres terrestres, é a razão a faculdade que coroa o entendimento, conferindo-lhe a magnitude que se lhe tributa e auxiliando as demais faculdades mentais. A presente citação faz-se útil para um melhor esclarecimento quanto ao papel desempenhado pela razão:

Se o conhecimento geral, como se mostrou, consiste numa percepção de acordo ou desacordo das nossas próprias ideias, e o conhecimento da existência de todas as coisas fora de nós (com a única excepção de Deus, cuja existência todo o homem pode certamente conhecer e demonstrar a si próprio a partir da sua própria existência96) unicamente se obtém pelos sentidos – então, que lugar fica para o exercício de qualquer outra faculdade que não seja a percepção exterior e a percepção interior? Que necessidade há de razão? Muita: tanto para o desenvolvimento do nosso conhecimento como para regular o

96 Note-se aqui a aproximação de Locke com Descartes, para o qual a certeza da existência de Deus pode ser deduzida a partir da certeza da existência que o indivíduo tem de si mesmo.

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nosso assentimento, porque tem que ver tanto com o conhecimento como com a opinião, e é necessária para auxiliar todas as nossas outras faculdades intelectuais, e na verdade contém duas delas, a saber: sagacidade e ilação (LOCKE, 2005, p. 929, grifos do autor).

Além de sua importância em âmbito gnosiológico, Locke

confere à razão a tarefa de tornar o ser humano virtuoso, uma vez que somente um comportamento racional seria compatível com uma conduta virtuosa e vice-versa, ou seja, razão e virtude precisam caminhar pari passu, haja vista que somente assim o ser humano seria liberto de suas inclinações97, as quais, via de regra, rebaixam-no à pura animalidade; consequentemente, pensar aqui a educação significa afirmar tratar-se de uma atividade cujo encargo supremo é consolidar, por intermédio de hábitos, a obediência à razão, posto ser isso a única maneira de estabelecer a virtude, finalidade máxima de todo o processo educacional e conditio sine qua non para a emancipação humana do nível da simples bestialidade. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA IDEIA

A ideia é a categoria fundamental da qual Locke utiliza-se para designar todo e qualquer conteúdo que se encontre na

97 Aqui tomadas como sinônimas de ‘tendências’, tratam-se, segundo Abbagano (que também admite a sinonímica desses termos), em seu verbete TENDÊNCIA, de “todo impulso habitual e constante para a ação. Nisso a [tendência] distingue-se do impulso [...], que é a ação súbita e temporária” (ABBAGNANO, 2003, p. 948, grifo do autor). O termo ‘inclinação’ é de extrema relevância para o pensamento lockeano, principalmente em se tratando de compreender a finalidade mais importante da educação, que é, para Locke, a virtude, que consiste no hábito de ser racional, ainda que os desejos e inclinações se oponham a tal, conforme se verifica na Seção 33 dos seus Pensamentos: “Como a resistência do corpo repousa principalmente em ser capaz de suportar privações, assim também o é em relação à mente. E o grande princípio e fundação de toda virtude e valor está colocado nisto, que um homem seja capaz de negar-se a si mesmo os seus próprios desejos, contrariar suas próprias inclinações, e puramente seguir aquilo que a razão ordena como o melhor, apesar do apetite inclinar-se para o outro caminho” (LOCKE, 1996, p. 25, grifos do autor; tradução nossa).

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mente, ou seja, a ideia é a matéria-prima com a qual a mente constrói o pensamento; destarte: “Se todo o homem tem por si mesmo consciência de que pensa e se aquilo a que o seu espírito se aplica, quando pensa, são as ideias que aí estão, não há dúvida de que os homens têm no seu espírito várias ideias” (LOCKE, 2005, p.105, grifo do autor).

Em outra passagem do Ensaio, Locke apresenta uma concepção mais precisa daquilo que denomina ‘ideia’: “Chamo ideia a tudo aquilo que a mente percebe em si mesma, tudo o que é objecto imediato de percepção, de pensamento ou de entendimento” (LOCKE, 2005, p. 156). Ao investigar a origem das ideias, sem as quais não pode haver objeto da percepção, do pensamento ou do entendimento, Locke argumenta que, no tocante à sua origem, existe, a rigor, uma só fonte que origina as ideias, qual seja: a experiência; esta, por sua vez, bifurca-se em: sensação (experiência externa) e reflexão (experiência interna)98. DA CATEGORIA EPISTEMOLÓGICA CONHECIMENTO

Depois de ser passada em revista a categoria ideia, torna-se momento oportuno discorrer acerca da categoria conhecimento, porquanto se trata de uma das peças mais importantes para se montar o curioso quebra-cabeça que constitui o pensamento filosófico e pedagógico lockeano; afinal, todos e quaisquer esforços envidados por Locke em seu Ensaio convergem para um só fim: tratar da problemática do conhecimento (que, por sua vez, conflui para a problemática educacional). Assim sendo, faz-se necessário apresentar a definição saída da pena do próprio filósofo sobre o que ele entende por conhecimento:

98 “Estas duas fontes, isto é, as coisas externas materiais, como objectos de SENSAÇÃO, e as operações internas da nossa mente, como objectos da REFLEXÃO, são, para mim, os únicos princípios de onde todas as nossas ideias originariamente procedem” (LOCKE, 2005, p. 108, grifos do autor).

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Parece-me que o conhecimento não é outra coisa senão a percepção da conexão e do acordo, ou do desacordo e da oposição em quaisquer das nossas ideias. É só nisto que ele consiste. Onde esta percepção estiver, há conhecimento, e onde não estiver, nós não poderemos chegar ao conhecimento, embora possamos imaginar, conjecturar ou acreditar (LOCKE, 2005, p. 719, grifos do autor).

Conforme essa passagem, Locke, além de distinguir o

conhecimento da imaginação, da conjectura e da crença, define-o principiando pela categoria percepção, a qual já foi abordada pelo presente estudo; em seguida, o filósofo recorre a outros quatro termos (conexão ou acordo, desacordo ou oposição), tratando os dois primeiros como sinônimos entre si, bem como os dois últimos. Apesar de não se preocupar em defini-los, ele, por um lado, trata de explicitar de quais tipos podem ser, ocupando-se, por outro lado, de definir tal tipologia, constituindo-os, assim, em categorias do seu pensamento.

Além de sugerir a sua própria definição de conhecimento, Locke também se empenha em examinar outras acepções desse termo. Assim, antes de expor os graus de conhecimento defendidos por ele, eis que o mesmo se dedica a explanar sobre outras formas pelas quais o conhecimento é concebido; são elas: conhecimento atual e conhecimento habitual. Conhecimento atual é a categoria pela qual Locke designa “a percepção presente que o espírito tem do acordo ou do desacordo de algumas das suas ideias ou da relação que elas têm umas com as outras” (LOCKE, 2005, p. 725), isto é, trata-se do conhecimento que consiste na percepção que a mente tem em um dado momento atual ou presente de sua atividade. Em relação ao conhecimento habitual, tem-se que tal categoria expressa, segundo Locke, aquele conhecimento que ocorre quando

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um homem conhece uma proposição quando esta proposição esteve uma vez presente no seu espírito e ele percebeu evidentemente o acordo ou o desacordo das ideias de que ela é composta e a fixou de tal maneira na sua memória que, todas as vezes que volte a reflectir sobre esta proposição, e a vê-la sempre sob o seu verdadeiro ponto de vista, sem dúvida, nem hesitação, lhe dá o seu assentimento, e está seguro da verdade que ela contém. É o que se pode chamar, segundo a minha opinião, conhecimento habitual (LOCKE, 2005, p. 725, grifos do autor).

Assim sendo, nota-se que o conhecimento habitual é o

conhecimento que consiste no registro que a mente faz através da memorização da percepção, ou seja, é o conhecimento que é franqueado à mente através da sua faculdade mnemônica, o que leva à conclusão de que, sem a memória, não seria possível falar em tal acepção de conhecimento.

Prosseguindo em sua tarefa de discorrer acerca do conhecimento, Locke expõe que o mesmo possui três graus, que são por ele designados pelas seguintes categorias: conhecimento intuitivo (ou, simplesmente, intuição), conhecimento demonstrativo (ou, simplesmente, demonstração) e conhecimento sensitivo.

Em se tratando do conhecimento intuitivo, tem-se a declarar que tal grau de conhecimento ocorre, conforme Locke, nas seguintes circunstâncias:

Se reflectirmos sobre a nossa maneira de pensar, veremos que algumas vezes o espírito se apercebe do acordo ou desacordo de duas ideias imediatamente por elas próprias sem a intervenção de uma outra, o que, eu penso, se pode chamar conhecimento intuitivo (LOCKE, 2005, p. 729, grifos do autor).

Em se considerando o conhecimento demonstrativo,

percebe-se que se trata do grau de conhecimento no qual a mente percebe mediatamente a conexão ou a desconexão entre duas ou mais ideias, ou seja, em se percebendo o acordo ou o desacordo entre duas ou mais ideias, há o intermédio de uma

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ideia ou até mesmo mais de uma. Tal grau de conhecimento ocorre devido à insuficiência da mente em sempre perceber o acordo ou o desacordo entre as suas ideias de forma imediata. Assim sendo,

quando o espírito não pode juntar as suas ideias para perceber o seu acordo ou desacordo, por meio de uma imediata comparação, e por assim dizer justapondo-as ou aplicando-as umas às outras, é então obrigado a servir-se da intervenção de outras ideias (uma ou mais, conforme o caso) para descobrir o acordo ou o desacordo que procura; e isto é o que chamamos demonstração (LOCKE, 2005, p. 730-731, grifos do autor).

Considerando-se o conhecimento sensitivo, tem-se que se

trata de uma categoria que expressa o grau de conhecimento que consiste na percepção da existência particular de objetos externos, percepção essa que se encontra entre a certeza imediata da intuição e a probabilidade mediata da demonstração, sendo, pois, diferente de ambas. Ao se referir ao conhecimento sensitivo, Locke fá-lo nos seguintes termos:

Na realidade, o espírito tem ainda da existência particular dos seres finitos fora de nós uma outra percepção, que indo para além da simples probabilidade, mas não atingindo perfeitamente nenhum dos precedentes graus de certeza, passa sob o nome de conhecimento. [...] É por isso que, julgo eu, podemos acrescentar às duas espécies anteriores de conhecimento também a que diz respeito à existência de objectos particulares exteriores, em virtude desta percepção e conhecimento que temos da entrada das ideias que nos vêm destes objectos, e, assim, podemos admitir estes três graus de conhecimento, a saber: o intuitivo, o demonstrativo e o sensitivo, em cada um dos quais há diferentes graus e meios de evidência e de certeza (LOCKE, 2005, p. 738-739, grifos do autor).

À luz dessa citação, verifica-se que, no que tange ao fato

de estar mais próximo da certeza (estado em que a percepção torna-se conhecimento indubitável) e da evidência (estado em

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que a percepção torna-se conhecimento claro e distinto), o conhecimento sensitivo encontra-se entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento demonstrativo, pois sendo o conhecimento sensitivo, por um lado, inferior à intuição (pelo fato de não possuir os mesmos níveis de certeza e de evidência que ela), é, por outro lado, superior à demonstração (considerando-se que se encontra em um patamar no qual a sua certeza e a sua evidência são superiores àquelas que se fazem presentes na demonstração). CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, apontamos algumas das mais relevantes categorias epistemológicas do pensamento de John Locke, selecionadas com o intuito de prover uma concepção panorâmica e introdutória em relação ao pensamento deste egrégio filósofo empirista que, por sua vez, apresenta ideias acerca da educação iluminadas por suas ideias acerca do conhecimento.

Em suma, ao discorrer sobre a experiência, a mente, o entendimento, a razão e a ideia, Locke elabora a sua concepção de conhecimento de maneira a estabelecer uma hierarquia entre os seus três modos, de acordo com o seu grau de certeza mais ou menos imediata, hierarquia essa que poderia ser expressa nestes termos: no supremo patamar, a intuição, cuja certeza é incontestável, por ser imediatamente evidente; no patamar intermediário, o conhecimento sensitivo, cuja característica é ser mais incerto que a intuição e menos duvidoso que a demonstração, não sendo mais tão imediato quanto a intuição, nem carecendo de tantas provas quanto a demonstração; no ínfimo patamar, a demonstração, cuja certeza é a menos imediata em relação aos demais (intuição e conhecimento sensitivo), já que se trata do tipo de conhecimento que mais necessita de provas, dele fazendo o tipo de conhecimento que não é imediatamente evidente.

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Por ser um dos principais teóricos do empirismo britânico, Locke advoga em todo o processo de construção do conhecimento o primado da experiência, porquanto sem ela não há ideias e, sem elas, não há conteúdos mentais, o que, ipso facto, paralisa toda e qualquer atividade mental e, portanto, todo o conhecimento. Por este motivo e em decorrência de tal perspectiva, é impossível conceber a educação prescindindo da experiência, por tratar-se de uma atividade por meio da qual o corpo e a mente do ser humano devem ser disciplinados para conhecer e agir, nunca se perdendo de vista, é claro, a virtude, elemento indispensável para a formação do ser humano, o qual é materializado por Locke em seus escritos sobre educação na figura do gentil-homem, cuja nobreza de caráter e de conduta apenas terá a virtude por prova inconteste. Assim, a superioridade humana só poderá ser garantida ou legitimada se houver um comportamento racional o bastante para demonstrar a sua capacidade de superar os obstáculos impostos por suas inclinações animalescas, ou seja, em Locke, pode-se admitir que, em se tratando de educação: Nulla salus ex virtute99!

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. e VISALBERGHI, A. História da Pedagogia. Lisboa: Livros Horizonte, 1981. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DESCARTES, R. Meditationes De Prima Philosophia: Meditatio Tertia. Campinas: IFCH-UNICAMP: 1993. LOCKE, J. Some Thoughts Concerning Education and Of the Conduct of the Understanding. Indianapolis, Indiana, USA: Hackett Publishing Company, Inc, 1996.

99 Fora da virtude não há salvação.

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_______. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 2005. 2 vols. YOLTON, J. W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

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Capítulo 9 KKAANNTT EE AA TTAARREEFFAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Vera Cristina de Andrade Bueno

I – INTRODUÇÃO Embora não seja um dos fatos mais discutidos pelos

comentadores de sua filosofia, Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo que, ao longo de sua vida, ocupou-se, ora de forma mais explícita ora de forma menos explícita, com questões e temas ligados à educação. Em geral, ele é mais lembrado por sua preocupação inicial com questões ligadas à ciência e à metafísica, o que o levou à elaboração de suas obras pré-críticas e críticas. Mas, diferentemente de muitos filósofos que o antecederam, Kant foi professor durante toda a sua vida e viveu do ensino que praticava, seja como tutor nas casas das famílias abastadas (1748-1754), seja como Privatdozent - título que se dava àqueles que ensinavam nas universidades, mas cujo ensino era pago diretamente pelos alunos que frequentavam os cursos e não pela Universidade – seja, finalmente, como Professor da Universidade de Königsberg, o que aconteceu a partir de 1770. Além de ter sido professor durante toda a sua vida, Kant ministrou quatro cursos sobre pedagogia, o que o levou a tratar explicitamente de temas ligados à educação. As anotações feitas para esses cursos foram dadas a T. Rink, seu amigo e ex-aluno, para que ele as editasse e publicasse, o que foi feito em 1803, um ano antes da

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morte do filósofo, com o título Über Pedagogik100. Kant ainda escreveu outros textos nos quais explicita suas posições a respeito da educação. Num deles, em que apresenta sua proposta para seus cursos de inverno de 1765 e 1766, faz uma crítica da educação dada aos jovens101; em outros dois, publicados em 1766 e 1767, refere-se, elogiando, à educação dada no Instituto Philantropinium102. Em suas obras críticas de filosofia prática, aborda temas que vão influenciar profundamente sua concepção de educação: o de liberdade e o de autonomia103.

Segundo Foley Rhys Davids, o fato de a educação ter tido um destaque especial no ensino universitário na época de Kant, razão pela qual foram introduzidos na universidade os cursos de pedagogia, se deve à atenção crescente dada à questão dos direitos humanos e à crença no valor do indivíduo e da criança, temas que ganharam força no final do século XVIII. No que concerne aos direitos da criança, é incontestável a influência de Rousseau. Este chamou a atenção para a

100 Über Pedagogik. In: Kant´s gesammelte Schriften, Königlich Preussichen Akademie der Wissenschaften, Berlin-Leipzig, 1923, Ak, 9: 441-499. As letras Ak indicam o volume e a página da edição da Academia de Ciências de Berlim. Em português, Sobre a pedagogia. Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. Daqui em diante, SP. 101 Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-1766. Ak, 2:306-307. Há uma tradução desse texto para a língua inglesa com o título “M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter semester 1765-1766”. In: Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridege University Press, 1992, p. 291-2. 102 “Essays regarding the Philanthropinum”. In: Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 98-104; Ak, 2:447-452. O Instituto Philantropinium, fundado por Johann Bernhard Basedow, em 1774, em Dessau, tem uma concepção educacional fortemente influenciada por Rousseau. 103 Dentre essas obras, as mais fundamentais são: a Fundamentação da metafísica dos costumes, tradução de Guido Antônio de Almeida. Edição bilíngüe. São Paulo: Discurso editorial e Editora Barcarolla Ltda, 2009, daqui em diante, FMC; Crítica da razão prática, tradução de Valério Rohden. Edição bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, daqui em diante, CRPr; Crítica da faculdade do juízo, tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, daqui em diante, CFJ; A Metafísica dos costumes, tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2003.

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necessidade de se levar em conta o que a criança é em si mesma enquanto criança, deixando provisoriamente de lado o homem no qual ela vai se tornar. Mesmo que não se possa negar que a criança seja um ser em constante mudança, ela tem seu modo próprio de ser, diferente daquele do adulto. Na formação da criança, valores antigos como o individualismo, os privilégios, as convenções tinham de ser ultrapassados para que a sua natureza racional e supra-sensível pudesse ser resgatada. Esse resgate é possível em função das disposições naturais do ser racional, que trazem consigo o sentido moral que precisa ser incentivado pelo exemplo e pela educação104.

II – A INFLUÊNCIA DE ROUSSEAU NA FILOSOFIA PRÁTICA

KANTIANA E A IMPORTÂNCIA DESSA FILOSOFIA PARA A

EDUCAÇÃO A leitura das obras de Rousseau foi de suma importância

para a formação da filosofia prática kantiana e é nessa filosofia que Kant vai buscar os fundamentos determinantes para sua concepção de educação105. No entanto, se, no que concerne à filosofia prática, Kant procede de uma forma inteiramente a priori, ou seja, levando em conta o que vale universal e necessariamente para todos os seres racionais,

104 Ver: Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (Ueber Pedagogik), trans. Annete Churton, introduction by C.A. Foley Rhys Davids (Boston: DC. Heath and Co., 1900). 105 A respeito da influência recebida de Rousseau, Kant diz o seguinte: “Sou um investigador por inclinação. Tenho uma sede insaciável (consuming) de conhecimento [...]. Houve um tempo em que acreditei que isso constituía a honra da humanidade e desprezava as pessoas que não sabiam nada. Rousseau me corrigiu nisso. Esse preconceito ao qual estava preso desapareceu. Aprendi a honrar a humanidade e eu me acharia mais inútil dos trabalhadores comuns, se não acreditasse que essa minha atitude pode dar valor a todas as outras ao estabelecer os direitos da humanidade” (Ak, 20:44, apud Allen Wood, “General introduction” in: Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p.xvii). Kant refletiu intensamente sobre a moralidade por volta da metade dos anos sessenta, do século XVIII, época em que leu Sobre o contrato social e o Emílio.

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independentemente da situação de cada um deles, no que concerne à sua preocupação com a educação, e na aplicação a ela do que é válido universal e necessariamente, Kant vai proceder empiricamente. Nessa ótica, Kant vê a educação consistindo no aperfeiçoamento da raça humana. A educação, para Kant, tem de levar em conta o aperfeiçoamento da espécie com todas as suas subespécies, a saber, todas as raças e não apenas o indivíduo em seu contexto mais restrito. “O destino final da raça humana é o aperfeiçoamento moral [...] Como, então, poderemos lutar por esse aperfeiçoamento e de onde ele pode ser esperado? De nenhuma outra parte a não ser da educação”106.

Mas, o que entende Kant por “raça” e por “aperfeiçoamento moral”? O conceito de raça, como dito acima, tem a ver com o de espécie humana; por sua vez, Kant conceitua a espécie humana como aquilo que no ser humano é infalivelmente hereditário: “As propriedades que pertencem essencialmente à espécie humana em si mesma, e que são comuns a todos os seres humanos, são, na verdade, enquanto tais infalivelmente hereditárias”107. Os conceitos de raça e de espécie humana trazem consigo o conceito de alguma coisa que é submetida a uma regularidade, a saber, a uma lei. Se, para Kant, o conceito de natureza implica uma submissão à lei, o conceito de natureza humana pode ser visto, nesse caso, como sendo análogo, do ponto de vista filosófico, aos de raça e de espécie humana108.

O conceito de aperfeiçoamento moral, ou de moralidade, tem a ver com a razão humana e, em especial, com a razão que 106 Moralphilosophie Collins, Ak, 27:470-1, apud Robert Louden, Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 15. 107 “Determination of the concept of human race”. In: Anthropology History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 153-154; Ak, 8: 99-100. 108 O conceito de raça e de espécie, como contendo aquilo que é invariavelmente hereditário, tem uma conotação empírica, mas está relacionado àquele de natureza, que tem uma conotação mais filosófica. Na FMC Kant afirma que “toda coisa na natureza atua segundo leis” (p. 183; Ak, B36; 4:412).

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se relaciona imediatamente com a vontade, a razão prática. Esse conceito, segundo Kant, leva-nos a pressupor a ideia de liberdade109. A ideia de liberdade foi sendo paulatinamente formada; ela é decorrente da filosofia crítica kantiana, que investiga a possibilidade de certos conceitos e ideias. Em sua filosofia crítica, Kant justifica a possibilidade de pensarmos a liberdade sem o risco de contradição em relação ao determinismo da natureza física, pois ela é uma ideia que pertence ao domínio do pensamento, que concerne ao supra-sensível110. Não há na modernidade, segundo Kant, uma concepção de moralidade que tome a liberdade como uma ideia, isto é, como um tipo de representação que possibilita ao ser humano determinar suas escolhas em função da lei da razão111, e que faça, por sua vez, dessa mesma lei uma máxima112 para sua vida independentemente de outras influências que ele possa sofrer113.

A razão, tomada de um modo geral, é a faculdade pela qual o ser humano procura princípios e conceitos suficientes para justificar a possibilidade de certos fatos. Do ponto de

109 Kant estabelece a distinção entre conceito e ideia da seguinte maneira: conceito é uma representação universal por meio da qual podemos pensar as coisas e também conhecê-las. A ideia é uma representação por meio da qual podemos apenas pensar certas coisas, mas não podemos conhecê-las. Para haver conhecimento de um objeto é preciso que tenhamos experiência sensível desse objeto. A ideia é um conceito cujo objeto representado não pode ser encontrado na experiência. Nesse sentido, não podemos encontrar a liberdade na experiência. A respeito da distinção entre conceito e ideia, ver de I. Kant, Prolegômenos, §40. Tradução para a língua portuguesa de Tânia Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. Ak, 4:328. 110 Crítica da razão pura, tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A532/B560. As letras A e B referem-se, respectivamente, à primeira e a segunda edição da obra. Daqui em diante, a referência à obra será feita com as iniciais CRP, seguidas das letras A e B. 111 CRPr, p. 331; A, 168; Ak, 5:94. 112 Segundo Bittner, “máximas são regras de vida: elas expressam que tipo de ser humano quero ser [...]. Elas contêm o sentido de minha vida; [...] Nesse sentido, como regra de vida, está sua procurada universalidade (Allgemeinheit). [...] [A máxima é o] princípio determinante de uma vida”. “Máximas”. In: Studia kantiana 5 (2003):14-15. 113 CRPr, p. 97-103; A, 51-54; Ak, 5: 29-30.

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vista meramente lógico, a razão é a faculdade por meio da qual, de proposições mais gerais, inferimos proposições menos gerais, ou que, inversamente, das menos gerais, buscamos aquelas mais gerais. Do ponto de vista prático, ou seja, do ponto de vista da determinação da vontade, ela é a faculdade dos princípios em função dos quais podemos realizar coisas as quais, sem esses princípios, não poderiam ser realizadas. Os princípios da razão pura se manifestam a nós como deveres114. O dever determinado pela própria razão é a autonomia115. Nesse sentido, ao afirmar que o fim da educação é o aperfeiçoamento moral da raça humana, Kant está propondo que o fim da educação seja ensinar àqueles que pertencem à raça humana, em especial as crianças e os jovens, a fazerem uso de sua liberdade e autonomia.

A concepção de razão prática significa uma ampliação do uso da razão, pois por meio dessa concepção, Kant acabou se dando conta de que a razão humana não tem apenas uma função cognitiva, como se costuma admitir. E é justamente a concepção prática da razão que dá a Kant a possibilidade de considerar a educação como aperfeiçoamento moral. O papel final da educação é levar o ser humano a reconhecer o valor de sua vida como ser racional. O reconhecimento desse valor contribui para a formação do seu caráter. O caráter do ser humano é formado não só pelos princípios que ele adota, mas também pelo propósito que faz para mantê-los. O caráter é, segundo Kant, “uma consequente maneira de pensar prática segundo máximas imutáveis”116. Isso quer dizer que o caráter não concerne apenas à escolha dos princípios, mas também à

114 FMC, p. 115-119; Ak, 4:397-98. 115 CRPr, p. 139; A, 72; Ak, 5:42. 116 CRPr, p. 535; A, 271; Ak, 5:152.

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proposta de se ater a eles. Ele é um modo consequente de pensar e de agir117.

Em função dos conceitos de razão prática, de vontade e de liberdade, o fim almejado para a educação não é o treinamento mecânico, como muitas vezes acontece, mas a prática do pensamento. O projeto de educação até então adotado, segundo Kant, é o da disciplina, da cultura e da civilização. Para ele, a moralização ainda não faz parte do projeto educacional vigente. E, no entanto, enquanto não se levar em conta a prática da moralização, a educação não estará atendendo à realização dos fins últimos dos homens. Parece que a educação vigente leva em conta apenas o interesse dos Estados, pois a “felicidade dos estados cresce na medida da infelicidade dos homens”. Como os homens poderão ser felizes se aquilo que têm de mais digno não é levado em conta? É verdade que a felicidade para os seres racionais depende em grande parte do cumprimento de leis, mas não se trata de qualquer lei. As leis dos Estados não são suficientemente abrangentes para que os homens vislumbrem sua felicidade apenas pelo cumprimento delas. Não é que elas não devam ser cumpridas. Mas, além delas, são necessárias também as condições para que os indivíduos possam seguir a lei da razão pura, a lei que eles mesmos se dão, por meio de suas máximas, fundadas na ideia de liberdade. Se essas condições são suprimidas, se não houver a preocupação com a ideia de liberdade, eles não poderão nem ao menos almejar a felicidade, pois o que há de mais valioso no ser humano não foi levado em conta. Nesse sentido, o processo da educação não deve priorizar o ser humano como cidadão pertencendo a um Estado, ou mesmo o indivíduo pertencendo a uma família, mas sim o ser racional que está acima das distinções de país e de família. Kant entende que a tarefa da educação é ajudar o 117 Kant se refere ao modo de pensar consequente no §40 da Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 140-141; B, 158; Ak, 5:294.

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ser humano a se tornar não apenas um cidadão (Burger), mas também, e principalmente, um cidadão do mundo (Weltburger). Ele parece adotar, em relação à educação, uma posição análoga a que adota em relação à filosofia: a valorização de uma concepção cósmica de educação, assim como valoriza a concepção cósmica de filosofia118.

III – O PAPEL DA HISTÓRIA DA NATUREZA HUMANA E A

EDUCAÇÃO Porém, o desenvolvimento do ser humano não é visto

apenas como resultante dos progressos provenientes do uso razão. O desenvolvimento é visto também como resultante do papel que a natureza desempenha em relação a ele. Se levarmos em conta o que Kant propõe em seu primeiro ensaio sobre a história humana, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, publicada em 1784119, veremos o quanto o progresso da humanidade depende de uma superação das dificuldades postas pela natureza. Essas dificuldades são vistas com uma finalidade. É como se, por meio delas, a natureza contribuísse para o desenvolvimento do ser humano, pois é pela superação das dificuldades que encontra que o ser humano se desenvolve e se aperfeiçoa120. Assim, o desenvolvimento inicial do ser humano no decorrer

118 Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 42. Ak, 16:24; CRP, A838/B866. 119 A palavra Ideia que aparece no título deve ser entendida em seu uso regulativo (CRP, A644-45/B672-73). Uma ideia em seu uso regulativo não vale para o conhecimento de objeto algum, mas vale para nos orientar numa maneira de lidar com certos dados. Nesse texto, Kant não está atribuindo valor cognitivo ao seu conteúdo, mas apenas oferecendo um modo possível de se lidar com a história da humanidade de um ponto de vista filosófico. Cf. Lewis White Beck, Kant Selections. New York: Macmillan Publishing Company, 1988, p. 413. 120 Essa concepção de uma natureza que contribui para o desenvolvimento da espécie humana, ou seja, a concepção teleológica da natureza, é tratada também, especialmente, no §83 da “Metodologia da faculdade do juízo teleológico”, da Crítica da faculdade do juízo, p. 270-274; B, 388-395; Ak, 5:430-434.

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da história não é o resultado de uma deliberação intencional, mas sim o resultado de uma natureza que o estimula a desenvolver suas potencialidades até que ele se dê conta do poder que tem, poder que é inteiramente diferente daquele da natureza121.

A “Quarta proposição” da Ideia tem como enunciado: “O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia”122. É só a partir da decisão do indivíduo de enfrentar e superar os antagonismos da natureza, e, em especial, os da própria natureza humana, que ele vai conseguir progredir em sua espécie.

Pelo fato de pertencer à natureza e pela necessidade de superar essa mesma natureza, o ser humano precisa de outro ser humano. Isso porque ele é dependente da natureza na qual está inserido e a qual lhe impõe obstáculos, mas ele também é dependente de outros seres humanos, não apenas enquanto seres naturais, mas enquanto seres que já superaram algumas dificuldades e já estão num grau de racionalidade mais desenvolvido. Sem outros seres de sua espécie, o ser humano não sobreviveria nos primeiros anos de sua vida.

Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de tal maneira que não prejudicam a si mesmos. [...] Mas o homem tem necessidade da própria razão. Não tem instinto e precisa formar por si mesmo o projeto de sua própria conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade imediata de o realizar, [...] outros devem fazê-lo por ele123.

A proposta kantiana para a educação tem, portanto,

como pano de fundo uma concepção segundo a qual a

121 Os textos em que Kant trata do conceito do sublime vão nessa direção. Ver especialmente o §28 da CFJ, p.106, B102; Ak, 5:260. 122 Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Rodrigo Neves e Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 9. 123 Sobre a pedagogia, p.11; Ak, 9:441.

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natureza desempenha inicialmente um papel preponderante na vida humana, não só como natureza física, mas também como natureza especificamente humana, a qual traz em germe todo o potencial que a razão humana representa. A natureza física é trazida à baila por conta de um modelo de interpretação kantiano da história, segundo o qual a natureza tem como fim o aperfeiçoamento do ser humano. Mas, para que a natureza atinja seu fim, outros seres humanos, em função do desenvolvimento que conseguiram atingir, precisam ser atuantes.

Nesse sentido, Kant chama a atenção para a ideia de que, para cada etapa do desenvolvimento humano, além da natureza física, está envolvida também toda a espécie humana. Ou seja, o grau de aperfeiçoamento que o ser humano atingiu não é apenas o resultado de seu progresso e empenho pessoal, mas daquele de toda raça humana.

De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por sua vez, depende daqueles. Por isso a educação não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração que lhe segue124.

IV. AS PRÁTICAS A SEREM DESENVOLVIDAS NA EDUCAÇÃO Segundo Kant, se podemos pensar na educação como

uma arte, seu procedimento teria de se orientar por quatro práticas que nada mais fariam do que desabrochar gradativamente “os germens que residem no ser humano”: a da disciplina, a da cultura, a da civilidade e a da moralidade. No entanto, ainda que essa divisão esteja presente em Sobre a pedagogia, ela não é mantida com muito rigor no decorrer do texto. O que foi tratado como pertencendo a uma prática é

124 SP, p. 20; Ak, 9:446.

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retomado como pertencendo também à outra. Podemos dizer, levando em conta a preocupação principal de Kant, que nessa obra a divisão principal é estabelecida entre educação física e educação moral. Isso quer dizer que certos aspectos da cultura e mesmo da civilização acabam fazendo parte da educação física e deixando para a prática da moral aquilo que tem a ver mais diretamente com o desenvolvimento da autodeterminação e da formação do caráter da criança. Assim, as três primeiras práticas caem sob a rubrica da educação física e vão levar em conta os elementos corporais, intelectuais e emocionais da criança. A passagem de uma prática para a outra tem a ver com a passagem de uma atitude mais receptiva para uma mais ativa e autônoma.

A prática da disciplina leva em conta principalmente a natureza animal do ser humano. Segundo Kant, a educação deve impedir que o que há nele de animal não o prejudique quando criança tanto em sua vida individual quanto em sua vida social. Para isso, no entanto, “seria melhor usar poucos instrumentos e deixar que as crianças aprendam muitas coisas por si mesmas; dessa forma aprenderiam mais eficazmente”125. Aqui, já estaria presente, ainda de forma embrionária nesse primeiro estágio da educação, a ideia de liberdade. Na medida em que se pressupõe livre, é possível para o educador estabelecer uma relação com a criança em que ela perceba seus limites, sem que com isso se sinta oprimida. “É preciso, diz Kant, sobretudo cuidar para que a disciplina não trate as crianças como escravos, mas sim que faça que elas sintam sempre a sua liberdade, mas de modo a não ofender a dos demais: daí que devam encontrar resistência”126. Ou seja, há de se pôr limites à vontade da criança, mas esse limite deve vir de uma forma que faça sentido para ela e que venha da forma mais natural possível: o limite de sua liberdade está no

125 SP, p.46; Ak, 9:462. 126 SP, p.50; Ak, 9:464.

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respeito à liberdade dos demais. Esse limite é algo que ela tem de sentir como uma resistência à sua vontade.

A prática da cultura é aquela na qual o ser humano não é visto principalmente em função de sua natureza animal, mas sim em função de sua natureza humana. Aqui, Kant insiste, mais uma vez, para que se preste atenção à natureza e ao que ela pode oferecer em favor do ser humano. Por meio da educação física, a criança é levada a se exercitar por si mesma para que tenha força, habilidade, rapidez e segurança, o que, por sua vez, a ajudará a lidar com situações da natureza que lhe são desfavoráveis. No desenvolvimento físico, os jogos desempenham um papel fundamental, pois eles “além de desenvolver a habilidade, provocam exercício dos sentidos; por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos lugares do céu com a ajuda do Sol, e assim por diante”127. Os jogos também mostram para a criança um pouco da vida em sociedade, pois, por meio deles é possível o exercício de não se ser inoportuno para com os outros e nem tampouco tirar vantagem deles. É preciso, por parte dos adultos, “não prejudicá-la em nada, não inspirar noções de comportamento que servirão apenas para torná-la acanhada e tímida, ou que, ao contrário, lhe sugiram o desejo de se fazer prevalecer”128.

A prática da civilidade promove habilidades que possibilitam ao ser humano atingir os fins que ele quer para si. Kant dá como exemplo de habilidade o saber ler e escrever, ter condições de praticar alguma arte, como tocar algum instrumento. A prática da civilidade forma mais diretamente o indivíduo para a vida em sociedade. O indivíduo deve ser querido e influente em sua vida social. Isso requer dele o hábito da gentileza e da prudência.

127 SP, p.55-56; Ak, 9:467. 128 SP, p. 58; Ak, 9:469.

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O último estágio da prática educacional é a da moralidade. Essa prática tem a ver com as escolhas que o ser humano faz. Nesse estágio do processo educacional, o foco não é a habilidade para se alcançar fins, mas a educação para que o homem possa escolher fins que possam ser considerados bons. Fins bons, diz Kant, são aqueles “necessariamente aprovados por todos e podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um”129. Um fim aprovado por todos tem de ter origem naquilo que todos os seres racionais têm em comum: a razão humana. Um fim bom é um fim determinado pela razão, sem a influência de nada sensível. Ter a vontade determinada pela razão pura significa recusar a influência que os sentidos têm sobre essa mesma vontade, o que gera desprazer. Pela prática da moralização vai sendo dada à criança a oportunidade para que ela saiba lidar com o desprazer em vista de um bem maior. Essa prática possibilita que a criança comece a reconhecer que o desprazer inicial acaba resultando num sentimento positivo de auto-satisfação, uma vez que ela agiu de acordo com um fim bom. Essa prática indica o caminho da autodeterminação e da autonomia, pois ser autônomo é fazer da lei da razão a sua máxima. Kant diz o seguinte a respeito do papel das máximas para o ser humano:

A cultura da moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre a disciplina. Esta impede os defeitos; aquelas formam a maneira de pensar. É preciso proceder de tal forma que a criança se acostume a agir segundo máximas e não segundo certos motivos. A disciplina não gera senão um hábito, que desaparece com os anos. É necessário que a criança aprenda a agir segundo certas máximas, cuja equidade ela própria distinga. Vê-se facilmente ser difícil desenvolver tal coisa nas crianças, e que por isso a cultura moral requer muitos conhecimentos por parte dos pais e mestres130.

129 SP, p.21; Ak, 9:450. 130 SP, p. 75; Ak, 9:480.

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A dificuldade que Kant vê no processo de moralização reside no fato de que não basta que a criança, o jovem e o adulto sigam as leis da razão pura. É preciso que eles as sigam porque escolheram segui-las por elas mesmas e não por alguma recompensa que possam usufruir ou por alguma punição que possam sofrer. Embora Kant entenda que, em certas ocasiões, a criança deva ser punida, quando, por exemplo, mente, a educação moral consiste em fazer com que a criança aprenda gradativamente a respeitar a lei pela lei, o que na verdade representa o respeito pela razão pura. Seguir a lei gera, naquele que a segue, o sentimento de autocontentamento, resultante do fato de se ter feito o que devia ser feito. Esse sentimento, no entanto, não pode ser visto como algo análogo à felicidade, pois ele tem de acompanhar necessariamente a consciência da virtude131.

Assim, toda prática da moralização envolve a adoção de máximas que determinam o que queremos ser. A adoção de uma máxima pressupõe que o ser humano seja capaz de pensar por si mesmo e decidir o que ele quer fazer de si. Talvez possamos dizer que a educação consiste na passagem da inteira dependência de um ser humano, a criança, em relação a outro ser humano, o adulto, até a sua independência em relação a esse. Daí Kant ter como o objetivo da educação o incentivo à prática da autonomia e da autodeterminação.

V – A TÍTULO DE CONCLUSÃO Pelo tratamento que dá às questões levantadas pelos

pensadores da modernidade; pelo fato de ter sido professor durante toda a sua vida; e, especialmente, pelos conceitos que formou no decorrer de sua filosofia crítica, conceitos de razão, de natureza humana, de história, de progresso, e especialmente, aqueles de liberdade e de autonomia, que

131 CRPr, p. 417; A,211; Ak, 5:117. Virtude para Kant é seguir a lei da razão.

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possibilitam que a razão humana seja considerada de uma forma ampliada, Kant foi um filósofo que contribuiu para o reconhecimento do valor e da dignidade que os homens podem alcançar por serem racionais. Esses valores, por tudo aquilo que trazem consigo, dizem respeito à educação humana e ao fim mais importante que ela visa atingir: a formação do caráter e a prática da virtude. REFERÊNCIAS BITTNER, R. “Máximas”. Studia Kantiana 5 (2003):17-25. FOLEY RHYS DAVIDS, C.A. Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (Ueber Pedagogik), trans. Annete Churton, (Boston: DC. Heath and Co., 1900). KANT, I. “M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter semester 1765-1766”. In Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1992 _______. “Essays regarding the Philanthropinum” (1776). In Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. _______. Crítica da razão pura (A1781; B1787). Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. _______. Prolegômenos (1783). Tradução de Tânia Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. AA, 4:328. _______. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784). Tradução de Rodrigo Neves e Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______. Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). Tradução de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial e Editora Barcarolla Ltda, 2009.

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_______. “Determination of the concept of human race” (1785). In Anthropology History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 153-154; 8: 99-100. _______. Crítica da razão prática (1788). Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______. Crítica da faculdade do juízo (1790). Tradução de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. _______. Metafísica dos costumes (1797), tradução de Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2003. _______. Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. _______. Sobre a pedagogia (1803). Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. LOUDEN, R. Anthropology, History and Education. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. WHITE BECK, L. Kant Selections. New York: Macmillan Publishing Company, 1988. WOOD, A. “General introduction” in: Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

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Capítulo 10 RROOUUSSSSEEAAUU:: AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOOSS SSEENNTTIIMMEENNTTOOSS

EE DDAASS VVIIRRTTUUDDEESS

Ericson Falabretti

Para formar um homem raro o que devemos fazer? Muito sem dúvida: impedir que nada seja feito.

Rousseau Rousseau abre o Emílio reafirmando um princípio da sua

filosofia sobre a relação entre cultura e natureza: “Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem” (1992, p. 9). Degenerar, como a sequência do texto indica, significa mudar, transformar, desfigurar, moldar e, também podemos dizer, educar. Todavia, a educação, como a saída do estado de natureza em direção ao estado social, se impõe ao indivíduo e à espécie como uma das consequências de uma cadeia de relações historicamente estabelecidas: “... e o gênero humano, se não mudasse de vida, pereceria” (ROUSSEAU, 1978a, p. 31). No Discurso sobre a Desigualdade e no Contrato Social, a degeneração está antecipada nas próprias coisas e é colocada em curso pela associação entre os obstáculos à manutenção da vida e a capacidade própria da natureza humana em realizar progressos psicológicos e morais como reposta a esses obstáculos. No entanto, isso não significa dizer que a sociedade já estava presente no estado de natureza ou, mesmo, que no comportamento do homem natural já encontramos hábitos e disposições típicas do homem social;

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mas, tão somente, enuncia a ideia de que a natureza carrega em si a possibilidade de uma condição não natural.

Como na obra política, a educação pública e doméstica, nascida das mãos dos homens, é necessária para a continuidade da vida, pois a criança não educada – abandonada somente aos ensinamentos espontâneos da natureza – jamais chegaria a ser um homem:

Nascemos fracos, precisamos de força, nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência, nascemos estúpidos precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação (ROUSSEAU, 1992, p. 10).

Educar esse ser fraco e incompleto, na perspectiva de

Rousseau, pode significar preservar e, ao mesmo tempo, transformar. A diferença entre a boa e a má educação, entre a boa e a má política, está na combinação desses dois princípios, na intervenção, seja coletiva ou individual, que coloca em curso um processo ambíguo com finalidades antitéticas: mudar para conservar ou para desfigurar. Mas conservar exatamente o quê? Mudar para qual direção? Na perspectiva rousseauniana, não apenas a vida, mas certo estilo ou princípio de vida precisa ser conservado e orientado para o seu fim.

Para suprir a necessidade de continuidade de vida não é preciso transformar o homem retirando-o do seu curso natural. Seja na política ou na educação, tudo deve começar pela compreensão da natureza e pelo entendimento do homem: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). O pacto social deve garantir os direitos naturais – liberdade e igualdade – e a educação deve permitir que a criança passe à condição de homem, realizando as virtudes que estão previamente dadas na sua natureza. Desse modo, Rousseau, no Emílio, retoma o sentido de perfectibilidade como abertura e potência, conceito chave da

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antropologia e da teoria da história construída no Discurso sobre a Desigualdade. O estudo da antropologia deve guiar a educação e a política, pois é fundamental conhecer os homens para educá-los e para determinar os seus direitos. No Segundo Discurso, Rousseau estabeleceu que no homem, somente no homem, podemos encontrar a liberdade e a perfectibilidade, marcas essenciais da natureza humana. Diferente dos animais, o homem pode se desviar do caminho traçado pela natureza ou pelo hábito, responder livremente, por exemplo, diante de uma situação qualquer e escolher um comportamento inédito e inesperado. Enquanto o animal age por instinto, o homem age por vontade, pode aprender com o meio e modificar o seu comportamento, desviando-se do caminho traçado pela natureza. Essa potência inventiva e adaptativa, exclusiva da natureza humana, é o que em Rousseau podemos denominar perfectibilidade: “É a faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo” (ROUSSEAU, 1978c, p. 243). Desse modo, para educar um homem, é preciso conhecer a natureza humana e entender até onde ele pode progredir sem deixar o seu centro natural, isto é, mudar de acordo com o que já está previamente dado como possibilidade, realizar a face virtuosa da sua perfectibilidade. Assim, a educação proposta por Rousseau não objetiva a invenção ou a transformação do homem em função de um modelo social ou metafísico; ao contrário, a boa educação deve permitir que o homem amadureça – tal como ocorre com as plantas - conforme a inclinação e as leis da sua própria ordem genuína. Nesse sentido, é preciso harmonizar o tempo da educação à lógica da própria natureza: “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica” (ROUSSEAU, 1992, p. 22).

No Livro I do Emílio, Rousseau apresenta como deve ser a educação de uma criança na sua primeira fase da vida, do nascimento aos dois anos de idade, e estabelece um princípio para guiar todo o processo de educação pensado para o

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Emílio132 até a fase adulta: a liberdade. Rousseau quer atacar os preconceitos, os medos, as superstições e manias colocadas em prática na educação tradicional: “Trata-se de impedi-la de morrer que de fazê-la viver” (ROUSSEAU, 1992, p. 16). Com receio de acidentes e de uma morte prematura - como aquelas provocadas por quedas – ou incomodados pelo exercício ingênuo da liberdade infantil, o costume das mães e dos médicos era enfaixar as crianças como se fossem múmias. Na perspectiva de Rousseau, estamos diante de uma prática usual que fornece um importante elemento significativo do sentido da educação, não apenas para o corpo como, também, para o espírito: a dependência. Por isso, o maior problema, desde o início, não está em descobrir os cuidados mais importantes que devem ser dedicados à criança, para isso basta seguir a natureza e deixar a criança livre, nesse caso, literalmente solta. Nessa primeira fase, mais do que as crianças, são os pais, as amas, os médicos, os preceptores que devem ser vigiados e combatidos, isto é, educados. A criança é frágil e os cuidados para garantir a sua vida são aqueles solicitados pelo próprio corpo. A alimentação, por exemplo, não deve estragar o paladar, enfraquecer o físico e, por isso mesmo, deve ser a mais natural possível. Rousseau, falando principalmente para as mulheres nobres e burguesas, discute como as mulheres fundam o vínculo inicial com seus filhos, não recusando o primeiro ato que faz de uma mulher uma verdadeira mãe: a amamentação. E, nessa mesma direção, totalmente diferente dos preceitos da época, é a liberdade do corpo, dos movimentos que deve ser preservada e garantida para que o desenvolvimento físico e motor não sejam comprometidos:

Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos os nossos usos não são senão sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na

132 Utilizamos a palavra Emílio, em itálico, para designar a obra de Rousseau, e Emílio, sem itálico, para as referências ao personagem da obra. [Nota do organizador].

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escravidão; ao nascer, envolvem-no em um cueiro; ao morrer, encerram-no em um caixão; enquanto conserva sua figura humana está acorrentado às nossas instituições (ROUSSEAU, 1992, p. 17).

Esses preceitos de uma má-educação, antes de serem

descritos no Emílio, encontram a sua expressão política no Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Na sua primeira obra, Rousseau critica o sistema de educação responsável por perverter o espírito e enfraquecer o corpo e, o mais importante, constata que esse processo de corrupção é uma imposição das relações de poder – hábitos, instituições políticas e sociais – historicamente estabelecidas. Em nossa sociedade, a educação, enquanto um fenômeno de cultura, atende somente à cultura e à sociedade, não ao homem: “Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum se usam: saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade...” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347).

No caso do homem social, a educação está intimamente associada ao processo histórico de relações de dependência e alienação. Educar, no contexto da história factual descrita no primeiro Discurso, significa valorativamente conduzir mal, degenerar para transformar contra a natureza. Semelhante ao papel desempenhado pelas letras e pelas artes, a educação faz com que os homens amem a sua condição de escravos. Cria, para tanto, a uniformidade do gosto, o conformismo estético e molda a conduta moral no decoro e nas regras de polidez: “Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento” (ROUSSEAU, 1978d, p. 347). Na avaliação de Rousseau, essa má condução se realiza integralmente como um processo de desnaturação, que faz com que os homens adquiram a condição de civilizados: viver em função da

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aparência, do reconhecimento público. Portanto, como está descrito no Discurso sobre as ciências e as artes, a educação assim como as ciências e as letras, sempre servindo aos interesses do poder político, suplantam a natureza para instaurar e conservar os homens obedientes a uma ordem e condição artificiais: “Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos nossos campos abandonados, lá perecem indigentes e desprezados” (ROUSSEAU, 1978d, p. 348).

Como resposta a esse processo de alienação, ao desprezo pelas virtudes e pelo cidadão, encontramos em Rousseau as alternativas da obra política e da educação articuladas em torno de duas perspectivas que já adiantamos: a transformação e a preservação.

Com o Contrato Social, temos a formação de uma ordem civil que oferece aos homens a condição de viverem em sociedade conservando, do ponto de vista do direito político, as mesmas relações que dispunham no estado de natureza. No entanto, paradoxalmente, para realizar o pacto social os homens devem ser desnaturados. Para formar uma sociedade de homens livres, sob o governo da vontade geral, não servem nem os selvagens e, muito menos, os homens policiados acostumados ao gosto da servidão. É fundamental romper radicalmente com o estado de natureza – transformar as condições de vida - para que o pacto social possa garantir – preservar – os direitos naturais. Assim, é a própria condição do cidadão - autônomo sem ser selvagem - juntamente com os princípios do direito político, que determinam como deve ser a educação no interior de um estado legítimo: desnaturar o homem para preservar os seus direitos.

Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, hesitando entre as suas inclinações e os seus

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deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada (ROUSSEAU, 1992, p. 13).

Essa lógica ambígua do pensamento rousseauniano –

transformar para preservar - não parece nada estranha, seja no interior do Contrato Social ou mesmo como resultado de uma sociedade corrompida. Nesse último caso, a nossa própria experiência testemunha os prejuízos à liberdade que resultam do nosso sistema educacional. Nesse aspecto, como já indicamos na análise acerca do Discurso sobre as Ciências e as Artes, a educação forma o homem sempre em função dos interesses da sociedade politicamente estabelecida: “Tais foram os antigos persas, nação singular no seio da qual se apreendia a virtude, como entre nós se aprende a ciência” (ROUSSEAU, 1978d, p. 338). Na dimensão do Contrato Social, podemos dizer, a desnaturação é necessária e boa. Já para a sociedade de fato – constituída historicamente – ela é instrumento do poder – de dominação – e se caracteriza como meio de degeneração: “Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem” (ROUSSEAU, 1978d, p. 343).

Mas, então, podemos nos perguntar: fora do Contrato Social estamos condenados a uma educação alienante? Na sociedade forjada historicamente é possível uma boa educação que respeite a condição essencial do homem, a sua autonomia? Ainda mais: quando a possibilidade de uma boa educação, no interior dessa sociedade ilegítima, também deve desnaturar?

De imediato, podemos dizer sim para as duas primeiras questões. Primeiro, porque não há espaço na sociedade para que o homem se comporte conforme os seus impulsos naturais. Isso significaria a ruína do homem e, ainda, do próprio liame social. Depois, a ordem social supõe um homem social, não tem sentido lógico pensar em constituir uma

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sociedade para selvagens ou, ainda, educar um homem para ser um selvagem. Mas, então, como desnaturar o homem sem fazê-lo perder a sua autonomia? Esse, sem dúvida alguma, é o problema fundamental com que a obra Emílio se depara. Como educar o Emílio para o mundo e, ainda, conservá-lo livre?

O caminho indicado por Rousseau supõe uma opção pela educação doméstica ou privada. Primeiro, é preciso considerar que a educação pública, no sentido que encontramos na República de Platão, somente seria indicada se ainda pudéssemos contar com cidadãos e com pátria, mas essas palavras, como diz Rousseau (1992, p. 14), “devem ser riscadas das línguas modernas”. Depois – retomando a mesma perspectiva crítica construída no primeiro Discurso – todas as instituições educacionais abertas ou públicas, sempre colaborando com o espírito de sociabilidade da modernidade, “somente servem para fazer homens de duas caras, parecendo sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada senão a si mesmos” (ROUSSEAU,1992, p. 14).

Mas, então, em que consiste essa educação doméstica? E como, de modo geral, ela pode responder positivamente às exigências de autonomia e transparência numa sociedade que recusa essas condições aos seus cidadãos?

O princípio geral da educação doméstica, completamente contrário à direção formativa da educação pública, está orientado para a conservação da liberdade e da autonomia natural como modelo do homem a ser formado: “O homem deve ser educado para si mesmo” (ROUSSEAU, 1992, p. 23). O que significa isso? Ao enunciar esse princípio – “ser educado para si mesmo” – Rousseau, nesse caso, não estaria reproduzindo os valores e as orientações de uma educação individualista, muito próxima, por exemplo, ao modelo de educação burguesa? Toda nossa educação aberta – institucional - está fundada na realização de um projeto de vida individual, porém sem qualquer fundamento com a nossa subjetividade, com a realização de um homem autônomo, pois

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esse projeto está estruturado em um arquétipo exterior, em um modelo de homem construído pela sociedade. Desde a infância, somos educados para sermos professores, médicos, engenheiros, políticos ou, até mesmo, para sermos nada. O que importa nesse processo massificante é ser capaz de atender ao chamado pré-determinado dos pais ou da sociedade e, desse modo, constituir uma carreira, ou, ainda, realizar um projeto que, em última instância, se sobrepõe à nossa condição existencial originária e aos nossos verdadeiros interesses. Ao criticar a educação, Rousseau (nós podemos generalizar a sua análise) identifica uma crise que se revela moral. Esse projeto individualista que conduz a educação significa, entre outras coisas, desaparecimento da virtude e da vontade originária do sujeito. A opção por essa educação pública burguesa, individualista e massificante, é a opção pela não virtude e, além disso, pela supressão de uma vida guiada pela própria vontade:

Na ordem social onde todos os lugares estão marcados, cada um deve ser educado para o seu. Se um indivíduo, formado para o seu, dele sai, para nada mais serve. A educação só é útil na medida em que a carreira acorde com a vocação dos pais; em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno, nem que seja apenas em virtude dos preceitos que lhe dá. No Egito, onde o filho era obrigado a abraçar a profissão do pai, a educação tinha, pelo menos, um fim certo. Mas entre nós, quando somente as situações existem e os homens mudam sem cessar de estado, ninguém sabe se, educando o filho para o seu, não trabalha contra ele (ROUSSEAU, 1992, p. 15).

No sentido contrário desse processo dominante, ser

educado para si mesmo significa, na perspectiva rousseauniana da educação doméstica, atender ao chamado da natureza: apreender a viver, isto é, apreender a guiar a vida em função daquelas virtudes reconhecidas no homem antes do processo de corrupção e degeneração suplantá-las. No Emílio, Rousseau pensa a educação a partir de virtudes

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complementares e inseparáveis presentes no homem natural: resignação, autodeterminação, transparência e reconhecimento. Primeiro, ser virtuosamente instruído – educado – é verdadeiramente apreender a viver. Nesse sentido, antes de ser formado para seguir uma determinada profissão, antes de apreender as virtudes cívicas, Emílio, como todo aluno, deve conhecer a sua própria natureza – o corpo e o espírito – e os deveres e sentimentos necessários para se conservar na condição de homem:

Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de homem (...) Que se destine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco importa. Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar (ROUSSEAU, 1992, p. 15).

Na perspectiva da pedagogia rousseauniana,

apreendemos a viver quando não saímos do curso na natureza e, sobretudo, quando elevamos a autodeterminação ao seu grau mais extremo: a nossa felicidade independe de tudo o que nos é estranho. É preciso considerar que fora do estado de natureza ou do contrato social quase não há possibilidade de autodeterminação, ou somos educados para reproduzir o mesmo estilo de vida – agradar aos outros – e, nesse caso, integramos o “rebanho chamado sociedade” ou, ao contrário, resistimos à corrupção e nos tornamos anômalos em relação aos homens em sociedade. Aí está o grande problema a ser enfrentado pelo preceptor do Emílio: como se conservar, apreender a viver – ser chamado a si mesmo – e, ao mesmo tempo, viver em sociedade e interagir com os homens? Emílio viverá numa sociedade real, obedecerá às leis do Estado e, inevitavelmente, se entregará ao convívio social. Apreender a aceitar que a vida é dolorosa, triste e solitária é seu primeiro desafio, é o passo inicial para ser educado como homem e a viver em si mesmo:

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O destino do homem é sofrer em qualquer época. O próprio cuidado da sua conservação está ligado à dor. Felizes os que só conhecem na infância os males físicos, males bem menos cruéis, bem menos dolorosos do que os outros e que bem mais raramente do que eles nos fazem renunciar à vida! Ninguém se mata com dores de gota; somente as da alma suscitam o desespero. Temos dó da sorte da infância, mas é da nossa que deveríamos ter. Nossos maiores males vêm de nós mesmos (ROUSSEAU, 1992, p. 23).

Depois de ser educado para aprender a sofrer, para

aceitar que mesmo sendo bom dificilmente será feliz, um desafio ainda maior será saber viver entre os homens sociáveis sem, contudo, reconhecer-se neles. O Emílio deve ser solidário e, ao mesmo tempo, independente. Nesse sentido, se ele precisa ser educado para suportar as agruras da vida, também deve evitar sucumbir aos maiores vícios que nascem do próprio sujeito e, de certa forma, não deixam de ter relação direta com a miserabilidade da vida: o medo da morte e da dor. Mas quais seriam esses males descendentes diretos da consciência da morte e do medo da dor? Na perspectiva da pedagogia rousseauniana, o amor próprio e a indiferença estão na origem dos vícios e das falsas virtudes sociais e devem o seu nascimento principalmente às nossas fraquezas e aos nossos medos. Depois de ensinar ao Emílio que o sofrimento é inevitável, combater o amor próprio e a indiferença, sentimentos que formam a alma e o caráter do homem social, é, sem dúvida alguma, o principal desafio da pedagogia rousseauniana.

No segundo Discurso e no Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau concebe, no homem selvagem, dois preceitos que governam o seu comportamento e que são anteriores à razão; um referente à autodefesa (que interessa somente à preservação do indivíduo) e outro definido como piedade. Com isso, Rousseau tematiza como o comportamento do

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homem selvagem era imediato, e ao mesmo tempo, com a definição de piedade (atributo que confere ao homem selvagem a disponibilidade de agir com violência somente quando está em jogo a sua sobrevivência), procura refutar todos aqueles filósofos, como Aristóteles, por exemplo, que confundiram, na interpretação de Rousseau, o homem selvagem com o homem social. A sociabilidade para Rousseau, como já adiantamos no início desse texto, não está de modo algum inscrita na natureza humana como pensava Aristóteles: pois se, por um lado, a piedade conduz o homem em direção a outro semelhante, por outro lado, o sentimento de autodefesa, para equilibrar, insiste em afastá-lo. A piedade funciona como uma espécie de paixão reguladora, normatizadora do sentimento de autodefesa, impedindo, desse modo, que o homem selvagem seja tomado por uma individualidade sem limites, guiado unicamente por um sentimento egoísta, suscetível de cometer atos de violência gratuitos, como no estado de natureza que Rousseau entendeu ser aquele que Hobbes defendia em suas obras: “Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater” (ROUSSEAU, 1978c, p. 239). No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau nos apresenta a ideia de que um homem, para realmente entender a natureza dos seus sentimentos e das paixões que se passam no seu interior, precisa travar contatos com outros homens. O próprio desenvolvimento das paixões, da piedade natural, por exemplo, pressupõe uma relação de proximidade entre os homens. Não é a piedade natural, descrita no segundo Discurso e no Ensaio, aquele sentimento que - ao contrário da piedade característica dos homens civilizados, que consiste em separá-los - nasce no selvagem de uma relação de identidade com o seu semelhante? Relação que o impede, sobretudo, de ser agressivo com outro homem, não por temer vingança, represálias ou, ainda, por algum imperativo moral que abomine a violência. Mas, fundamentalmente, a piedade

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natural conduz esse homem a sair de si, a se colocar no lugar do outro e, nesse instante, a compreender, em primeiro lugar, o significado e as consequências da violência para o outro. Somente, então, depois de se colocar no lugar do outro, depois de experimentar o sentimento de identidade, o homem natural era capaz de formar a ideia do que é um ato de agressão em si mesmo. Nesse sentido, uma das condições essenciais para que o sujeito possa realmente conhecer os seus estados subjetivos, formar novas ideias e sentimentos é que ele já tenha observado e comparado estados semelhantes em outros homens.

Como nos deixamos emocionar pela piedade? Transportando-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele que sofremos. Figuremo-nos quanto de conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como poderia eu imaginar males dos quais não formo ideia alguma? Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não pode ser clemente, justo, ou piedoso, nem tampouco mau e vingativo. Quem nada imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano (ROUSSEAU, 1978b, p. 175).

A piedade natural é, sobretudo, reconhecimento,

transparência, negação da indiferença. No homem natural o que impera é o equilíbrio entre o amor de si e a visão do outro. No segundo Discurso, a piedade natural se explica, conforme as palavras de Rousseau, pela seguinte máxima: “Procure o teu bem causando o menor mal possível e outrem” (ROUSSEAU, 1978c, p. 254)

É a experiência da piedade natural que deve ser preservada pela educação, esse sentimento inato e anterior a todo ato de reflexão, capaz de espontaneamente produzir no homem uma aversão de ver sofrer dor ou morte, qualquer outro ser sensível, sobretudo quando se trata de um semelhante. Desse modo, no livro IV do Emílio, Rousseau

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retoma a piedade como sentimento moral que deve reforçar os laços entre os homens civilizados, verdadeiro antídoto contra o individualismo e o amor próprio, sentimentos reforçados pelo projeto individualista da educação pública historicamente estabelecida:

Em uma palavra, ensinai a vosso aluno a amar todos os homens, inclusive os que os desdenham; fazei com que ele não se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; falai diante dele, e com ternura, do gênero humano, com piedade até, mas nunca com desprezo. Homem, não desonres o homem (ROUSSEAU, 1992, p. 253).

A piedade, independente do fundamento no estado

natural, na sociedade depende de uma educação adequada dos nossos sentimentos, seja através da razão ou da imaginação. No Emílio, Rousseau quer dar continuidade a esse sentimento inato, pois a piedade, agora pensada na educação do homem social, converte-se, primeiro, na consciência de que o sofrimento domina a vida social e, depois, produz em nós o sentimento de vergonha da ausência de resposta. Para existir a piedade, no contexto de fato pensado no Emílio, não se depende de uma sociedade livre e constituída de homens transparentes. No Emílio, ela é uma alternativa ao projeto da vontade geral e constitui o elo natural entre as pessoas que não realizaram nenhum pacto. É o liame mudo – não dito, não pactuado – instituído pela própria natureza, agora reforçado pela educação. É o sentimento que torna possível estabelecer relações de reconhecimento numa sociedade orientada para a indiferença. Ao atribuir à piedade essa força de aproximação e transparência, Rousseau encontra um aspecto novo na política, agora distinto das operações de direito. No Emílio, a piedade é o fator mais importante de aliança entre as pessoas, o único sentimento que torna possíveis as relações cooperativas e benévolas entre os homens em escala individual e social. Pois ela permite aos homens encontrar uma base segura para si

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mesmos na vida: o reconhecimento. Não é, portanto, o direito e, por consequência, não é o Estado que produz a justiça, mas um sentimento que deve ser desenvolvido pela educação. Apesar de ser inata, a piedade, fundamentalmente na sociedade, não é espontânea, é preciso ser cultivada, precisamos ser educados para a compaixão. Nesse sentido, antes de tudo, é preciso discutir como a piedade opera no homem: combatendo o amor próprio e restaurando o equilíbrio e, finalmente, aproximando os homens.

Primeiro, a piedade natural não apenas combate os ímpetos egoístas do amor-próprio, mas garante a continuidade do equilíbrio pela oposição das paixões: o amor de si e a piedade. O amor de si é uma paixão primitiva, que nunca deixa o homem, fonte de todas as outras; visa antes de tudo garantir a própria conservação; mas inclina-se para o outro; satisfaz-se quando as necessidades estão saciadas. O amor de si é o sentimento do querer, a boa intenção é a base desse amor que não separa o ato de realizar o bem do sentimento de querer o bem: “O que nos serve, nós o procuramos; mas o que nos quer servir, nós o amamos. O que nos prejudica nós evitamos; mas o que nos quer prejudicar nós o odiamos” (ROUSSEAU, 1992, p. 236). Já o amor próprio, nascido dos nossos vícios, fonte de conflitos, é integralmente egoísta e está na origem das paixões “odientas e irascíveis”: a inveja e a necessidade de honra desmedida. O amor próprio não opera com o reconhecimento, mas com a comparação; exige sempre do outro preferência e distinção. O amor próprio é o sentimento da aparência, da vida social, da honra etc.

Diferente do amor próprio, a piedade está na origem de todos os sentimentos que aproximam as pessoas. É natural, por exemplo, que uma pessoa ajudada sinta gratidão por quem a ajudou. A gratidão, nesse caso, é apreciação, avaliação e valoração do outro. Quem ajuda, sente compaixão, apreende que tem valor, assim como aquele que é ajudado:

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reciprocidade de valoração, o amor de si se realiza na compaixão pelo outro.

Para manter o equilíbrio entre a piedade e o amor de si é preciso, através da educação, primeiro na criança, conservar a sua disposição natural para a piedade: “o primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma; o segundo é amar aos que dela se aproximam” (ROUSSEAU, 1992, p. 236). Depois, no caso do adolescente, é preciso educá-lo para o reconhecimento do outro, ampliando a sua ideia de sofrimento: “Aos dezesseis anos o adolescente sabe o que é sofrer [...] mal sabe, porém, que os outros seres também sofrem” (ROUSSEAU, 1992, p. 248). Portanto, a piedade nasce da consciência da semelhança e do sofrimento, é a saída de si mesmo; é a identificação com o outro:

Com efeito, como nos comoveremos até a piedade, senão em nos transportando para fora de nós mesmos e nos identificando com o animal sofredor, abandonando, por assim dizer, nosso ser para pegar o dele? Nós só sofremos na medida em que julgamos que ele sofre; não em nós é nele que sofremos (ROUSSEAU, 1992, p. 249).

No Emílio, Rousseau pensa a educação a partir de um

ponto de vista restritivo. É preciso que o progresso do Emílio se conforme aos limites da espécie e das paixões naturais. Ser instruído – educado - verdadeiramente é aprender a suportar os bens e os males desta vida sem se curvar, conservando-se autônomo. O Emílio é educado fora do Contrato Social, cercado de pessoas egoístas, dissimuladas e corrompidas nas suas vontades, ele deve se constituir em um ser moral que, ao mesmo tempo, preserve a sua autonomia e se permita viver entre essas mesmas pessoas. Quando pensamos na piedade, o maior desafio enfrentado pelo Emílio, portanto, num sentido contrário do cidadão que aderiu ao Contrato Social, é se conservar e aprender a viver entre os homens como um cidadão livre e, ao mesmo tempo, realizar o estilo de vida dos

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homens do seu tempo - casar por exemplo – e participar politicamente da vida de seu país.

No livro quinto do Emílio, parte final da obra, Rousseau debate esse problema de maneira muito pontual. Após viajar por diversas nações, aprender as línguas mais faladas na Europa, apreciar espetáculos e obras de arte, conhecer diferentes costumes e sistemas de governo, Emílio responde ao seu preceptor o que aprenderá, o que fixará dessa etapa necessária do seu processo de educação. Primeiro, responde indicando uma espécie de inação política: “Parece-me que para se tornar livre nada se tem que fazer; basta não deixar de sê-lo” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). Depois, na mesma linha, manifestando um sentimento de letargia diante dos bens materiais e do próprio futuro, diz ao seu mestre: “Que farei com a minha fortuna? [...] Não me atormentarei para retê-la, mas ficarei firmemente no meu lugar” (ROUSSEAU, 1992, p. 570). Finalmente, decepcionado com o mundo que conheceu de perto em sua diversidade, Emílio expressa a liberdade como conformismo, apatia, aceitação diante do próprio destino: “Que me importa a minha condição na terra? Que me importa onde esteja?” (ROUSSEAU, 1992, p. 570).

A esse “desinteresse extremado” - novamente é o problema da indiferença que está em causa - nascido da decepção com os costumes dos homens e com as sociedades e governos, Rousseau contrapõe o apelo à consciência das leis naturais, verdadeiros princípios de ordem e de moral que “servem de lei positiva para o sábio” (ROUSSEAU, 1992, p. 571). Emílio realmente não encontrou essas leis em nenhuma forma governo ou sociedade que visitou, pois elas não dependem de convenções, mas estão, como Rousseau quer finalmente ensinar ao Emílio, “no coração do homem livre, ele as carrega por toda parte consigo” (ROUSSEAU, 1992, p. 571). Um homem virtuoso, que conserva em si mesmo intactos a paixão da piedade e o sentimento de liberdade, recusa a inação política e o projeto de uma vida consagrada unicamente

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aos seus interesses privados. O homem virtuoso é capaz de reconhecer e encontrar nas leis positivas e nos costumes, mesmo entre o caos e a injustiça, princípios de justiça e ordem: “A simples aparência de ordem leva-o a conhecê-la e amá-la [...] Não é verdade que não tire nenhum proveito das leis, elas lhe dão a coragem de ser justo entre os maus [...] Não digas portanto: que me importa onde esteja? Importa estares onde podes cumprir teus deveres” (ROUSSEAU, 1992, p. 572).

O Emílio e o cidadão do Contrato Social, semelhante ao selvagem, devem ser auto-suficientes e solitários; devem cultivar o amor de si e a piedade; devem participar das assembleias púbicas e, mesmo assim, votar com a própria consciência, devem reconhecer, amar e reforçar na própria pátria as virtudes cívicas que se escondem sob o espesso manto da corrupção e da aparência.

O dilema do Emílio se converteu no drama do próprio Rousseau. Na sua narrativa autobiográfica dos Devaneios de um caminhante solitário, é o princípio de educação do Emílio – piedade e resignação - e a sua condição de vida – a solidão – que animam o texto da primeira à última página. A resignação e a piedade – apreender a aceitar os males da vida e a amar a humanidade – são os sentimentos de um homem livre capaz de reconhecer a sua natureza, ainda que desfigurada pela história e pelas convenções:

Teria amado os homens a despeito deles próprios. Cessando de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao meu afeto. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, inexistentes enfim para mim, visto que o quiseram. Mas eu, afastado de tudo e de todos, que sou eu mesmo? (ROUSSEAU, 1986, p. 23).

Na busca do autoconhecimento – educação para si

mesmo - é impossível para o sujeito não reconhecer a oposição de um jogo de forças que moldam o seu comportamento, a sua disposição moral. A autonomia, nesse caso, não remete mais a uma unidade, mas ao reconhecimento de uma divisão que

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opõe a força das normas do instinto moral diante dos imperativos ditados pela sociabilidade.

O rompimento como a unidade histórica, a tentativa de resgate da unidade essencial perdida supõe uma nova pedagogia. A autonomia, no Emílio encontra, enfim, o seu lugar na educação dos sentimentos, no cultivo do deslocamento do eu em direção ao outro. Na obra Emílio Rousseau segue, de certo modo, a estrutura argumentativa do segundo Discurso. Como o homem natural, o Emílio – o educando – está fora do tempo, não tem pai, não tem mãe, é o modelo universal da criança, não representa nenhuma criança singularmente, representa a criança em essência. Nesse caso, é a criança antes da corrupção dos costumes e da educação: é preciso, pois, “considerar nosso aluno o homem abstrato, o homem exposto a todos os acidentes da vida humana” (ROUSSEAU, 1992, p. 16).

A educação rousseauniana tem como desafio preparar a criança para viver em sociedade, cumprir os seus deveres de cidadão e, ao mesmo tempo, conservar-se livre. Nesse sentido, o Emílio deve ser educado para ser um sábio, no entanto, totalmente distinto da forma corrompida do sábio, aquele com respostas para todas as dúvidas. O Emílio tem mais perguntas do que respostas, ele é educado com vistas ao autodomínio, à compreensão do sentido aberto do seu tempo e da vida dos seus semelhantes. Outro ponto, que explica essa condição de sábio, é que o Emílio, desde a sua infância, não é visto como aluno, mas como discípulo da natureza. O Emílio não está diante de um professor, mas de um mestre que é, como ele próprio, abstrato e impessoal. O professor trabalha com um conjunto de conteúdos que precisam ser apreendidos pelo aluno num determinado tempo. O mestre está sempre voltado para o próprio discípulo, para a realização de uma essência: no caso do Emílio, para a formação do homem e do cidadão. A pedagogia rousseauniana, portanto, enquanto educação dos sentimentos e das virtudes, procura unir o que a história

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separou: cultura e natureza. No Emílio, Rousseau aponta para uma pedagogia que busca o desenvolvimento de um homem que permanece ligado ao seu centro natural para continuar a ser, verdadeiramente, um homem.

REFERÊNCIAS ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978a. _______. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978b. _______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978c. _______. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Abril Cultural, 1978d. _______. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. São Paulo: Brasiliense, 1982. _______. Os Devaneios de um caminhante solitário. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. _______. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. _______. Carta a D’Alembert. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. _______. Júlia ou a nova Heloísa. Campinas: Editoras da Universidade de Brasília e da Unicamp, 1994.

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Capítulo 11 HHEEGGEELL,, HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Luiz Fernando Barrére Martin

Desde a publicação de suas primeiras obras, Hegel já

demonstra preocupação com o papel da história da filosofia para a filosofia. A solução hegeliana para a relação da filosofia com sua história trará como consequência um certo modo de considerar o estudo da história da filosofia e, além disso, seu ensino. Dessa perspectiva, surgem questões como a seguinte: de que maneira se deve ler um filósofo? Qual a relevância efetiva da história da filosofia para a filosofia? O estudo da história da filosofia consistiria numa abdicação da própria filosofia? Teria apenas um caráter de erudição o conhecimento e o estudo da história da filosofia?

Questões como essas podem ser feitas quando pretendemos debater a respeito do papel da história da filosofia para a filosofia e, além disso, que espécie de ensino da filosofia podemos esperar a partir dessa relação. Hegel pode ser considerado talvez o primeiro filósofo a explicitamente se referir a esse relacionamento da filosofia com sua história de maneira positiva. Dessa maneira, o passado da filosofia começa, segundo Hegel, a ter relevância para a filosofia.

O que buscamos tão somente neste estudo é voltarmos os olhos para o ensaio de Hegel no qual aparece pela primeira vez essa temática. Trata-se de sua primeira publicação, a saber, o escrito Diferença entre o sistema da filosofia de Fichte e de

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Schelling (HEGEL, 1968). Nele já se desenha de modo bastante nítido essa exigência de relevância da história da filosofia para a filosofia. Mas, antes de efetivamente se dedicar a expor essa relação entre a filosofia e sua história, Hegel primeiro procura criticar duas maneiras de compreensão desse relacionamento existentes em sua época. Assim, o filósofo desenvolve uma crítica ao que ele denomina de visão histórica dos sistemas filosóficos a partir de uma dupla divisão dessa forma de abordagem da história da filosofia.

Num primeiro momento, Hegel criticará uma forma geral de visão histórica. Segundo o que preconiza essa visão, a história da filosofia consistiria numa mera doxografia, ou seja, numa história das opiniões filosóficas aparecidas no decorrer da história. Já o segundo momento da crítica é dirigido a uma concepção histórica que parte de uma representação da filosofia como uma espécie de ofício (Handwerkskunst) que se aperfeiçoa com o passar do tempo (HEGEL, 1968, p. 10). Poderia então ser incorporada à filosofia a noção de progresso.

Com referência à visão propriamente histórica das filosofias, é característico da mesma o distanciamento que ela toma em relação aos sistemas filosóficos, na medida em que por eles se interessa apenas como um conhecimento sem importância. Ela não estabelece nenhum vínculo com os sistemas. É como se apenas tomasse ciência de que eles existem e isso fosse suficiente. Existem os sistemas A, B, C, D etc. Desta perspectiva, nenhum pode ser mais interessante do que o outro. A rigor, é indiferente para a vista histórica interessar-se por este ou por aquele sistema. À maneira de uma erudição vazia, ela cuida apenas de acrescentar à sua coleção este sistema, aquele sistema, mais aquele outro, de acordo com o ritmo descompassado de sua curiosidade. A visão histórica, portanto, não passa de um acumular de conhecimentos mumificados. Nas palavras de Hegel, trata-se de uma “curiosidade que coleciona conhecimentos” (HEGEL, 1968, p. 9). E no caso da filosofia, um conhecimento de pouco

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valor, uma mera opinião: “ela [a visão histórica] não pode estabelecer outra forma de relacionamento com os sistemas filosóficos do que a seguinte: que eles são opiniões; e tais acidentes, como opiniões, não podem nada contra ela”133. Um conhecimento, não uma ciência (Wissenschaft), esse é o destino da filosofia segundo a visão histórica.

É somente numa época em que a potência da vida cada vez mais se enfraquece que a enfastiada visão histórica pode surgir. E não há como não pensar num fenecer da vida quando se lê a descrição hegeliana da atitude histórica. A todo momento se associa a mesma à ideia de morte. Veja-se este trecho: “Uma época que tem atrás de si jazendo como um passado (morto) uma tal quantidade de sistemas filosóficos, parece dever chegar àquela indiferença, que a vida chega, após ter se experimentado em toda sorte de formas” (HEGEL, 1968, p. 9). Em primeiro lugar, é significativo que Hegel utilize o verbo liegen para se referir aos sistemas filosóficos considerados segundo a perspectiva de uma época que adotou a visão histórica a respeito dos mesmos: esse verbo (liegen) pode ter o sentido de jazer, e jazer significa estar morto, o que bem casa com a ideia que Hegel quer exprimir no trecho supracitado. No contexto em questão, no qual se pretende mostrar que a vida está no antípoda do que preconiza a visão histórica, ter o verbo liegen o sentido há pouco indicado, ressalta essa ideia de que os sistemas filosóficos do passado são apenas objetos de curiosidade a respeito de algo que não tem mais importância, que está morto134. Ao contrário, e é isso 133 Nas suas considerações sobre a noção de história da filosofia, diz Hegel a respeito da opinião: “O que nós podemos em primeiro lugar considerar como consequência daquilo que precede, é que em história da filosofia nós não lidamos com opiniões. Na vida comum, é verdade, temos opiniões, isto é, ideias a respeito das coisas exteriores; um pensa isso, o outro pensa aquilo. Mas o trabalho do espírito do universo é mais sério; lá se encontra a universalidade. Trata-se aqui das determinações gerais do espírito; não é questão aqui de opiniões referentes a isso ou aquilo” (HEGEL, 1990, p. 145). 134 Ainda contra a visão histórica, veja-se o seguinte comentário de Hegel: “Aquilo que é histórico, a saber, do passado, não é mais, está morto. A tendência histórica abstrata,

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que Hegel quer afirmar em contraponto à atitude histórica, “o espírito vivo, que habita numa filosofia, requer, para se revelar, ser gerado por um espírito de mesma família (verwandt)” (HEGEL, 1968, p. 9). Uma filosofia não é um conhecimento morto, objeto de uma curiosidade indiferente, pois, como acabamos de ver, ela é dotada de vida, e para que haja o reconhecimento daquilo que existe de vivo nela, é preciso assumir uma outra atitude – da qual somente é capaz um espírito que reconhece o espírito vivo de uma filosofia – no que concerne ao relacionamento a ser estabelecido com essa filosofia.

No que respeita ao segundo momento da crítica à visão histórica, Hegel se dirige fundamentalmente a Reinhold. Vejamos, agora, por que a concepção filosófica de Reinhold pode ser considerada uma forma de atitude histórica.

Segundo a exposição hegeliana, trata-se na filosofia (de Reinhold) de um desenvolvimento contínuo da mesma mediante o surgimento, a cada vez, de um novo sistema filosófico que, com maior abrangência, prolonga a tarefa que os anteriores sistemas começaram. Cada sistema é uma visão particular que busca realizar a tarefa que os anteriores não conseguiram. O êxito da nova visão particular na sua tarefa de “penetração na realidade do conhecimento humano” (HEGEL, 1968, p. 10) está vinculado ao estudo das tentativas (Versuche) anteriores, talvez para ver o que pode ser aproveitado e o que não pode, e onde acertaram de modo que se evite o

que se ocupa de objetos inanimados, expandiu-se bastante nos últimos tempos. É um coração defunto que encontra sua satisfação no ocupar-se daquilo que está morto, de cadáveres. O espírito vivo diz: deixai os mortos enterrar seus mortos e me siga (cf. Mateus 8,22). Os pensamentos, as verdades, os conhecimentos que eu possuo somente segundo a forma histórica, estão fora do meu espírito, quer dizer, mortos para mim; meu pensamento, meu espírito não estão aí presentes, minha consciência daí está ausente. A posse de conhecimentos puramente históricos assemelha-se à possessão jurídica de coisas, das quais eu não sei o que fazer”. Ou ainda: “Todavia, quando uma época trata tudo historicamente, ocupando-se sempre de um mundo que não existe mais, vagando por entre tumbas, o espírito renuncia à sua vida própria, que consiste em pensar a si” (HEGEL, 1990, p. 156 e p. 156-7).

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cometimento dos mesmos erros, permitindo-se que seja possível de outro modo realizar a tarefa da filosofia. Cada novo sistema que busca completar a tarefa não realizada pelo anterior seria como um acréscimo, que vem a se justapor ao que já possuímos. O novo sistema continua o anterior na tentativa de concluir a tarefa almejada. Diferentemente da primeira espécie de visão histórica, existe aqui um interesse pelas filosofias do passado, e que não se configura numa mera curiosidade despretensiosa com relação ao que de vivo ainda poderia haver numa filosofia qualquer. Todavia, esse interesse, que se traduz num conhecimento das filosofias passadas, vai somente até certo limite. Segundo Hegel, a concepção de filosofia que funda tal espécie de ponto de vista a respeito da filosofia e da história da filosofia é a de que a filosofia seria uma forma de ofício que se aperfeiçoa mediante a descoberta de novas técnicas (HEGEL, 1968, p. 10). O termo desse processo de aperfeiçoamento seria então a invenção da técnica que realize de uma vez por todas a tarefa primordial da filosofia, e tudo que até então se efetuou com vistas a esse intento deve ser considerado como “exercícios preliminares de grandes cabeças” (HEGEL, 1968, p. 10). Diante, então, da visão particular que resolve o problema da filosofia, o passado da mesma não teria mais relevância. O passado era digno de interesse enquanto não se havia ainda obtido êxito na tarefa da filosofia. A partir do momento que se alcançou esse êxito, o passado da filosofia mereceria, caso houvesse ainda interesse, ser conhecido, nos termos de Hegel, apenas como “exercícios preliminares de grandes cabeças”. As diversas filosofias aparecidas no decurso histórico, a partir desse momento, não são mais fonte de conhecimentos com vistas à realização da tarefa da filosofia. Tornam-se simplesmente uma fonte de curiosidade: um saber morto que nada mais nos diz além do que o fato de terem um dia tentado realizar a tarefa da filosofia.

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Mas, contudo, a história da filosofia não é para Hegel um arquivo do que se tornou obsoleto: “Não se trata tampouco na filosofia nem de aperfeiçoamentos constantes nem de visões particulares” (HEGEL, 1968, p. 10). O absoluto, diz Hegel, e sua manifestação, a razão, são eternamente uma e a mesma coisa. Toda razão que se dirige a si mesma e se reconhece como tal, produz uma filosofia verdadeira e resolve sua tarefa, que é sempre a mesma em todos os tempos135 (HEGEL, 1968, p. 10). Vemos aqui, então, Hegel afastar-se da concepção histórica e mostrar aquilo que o distingue da mesma, ao considerar a possibilidade de toda razão que se dirige a si mesma e se reconhece como razão produzir uma filosofia verdadeira. Cada filosofia, produzida pela razão particular de uma época determinada, é o que já podemos observar, é digna de valor, pois é uma filosofia verdadeira. O que distingue uma filosofia da outra, sua particularidade, não alcança a essência da mesma. É na forma do sistema que a particularidade se expressa. O historiador que não vê a essência de uma filosofia como algo particular não terminará como aquele outro historiador, que diante de um sem número de filosofias essencialmente diferentes sente-se frustrado por não ter como assentir a qualquer uma delas. “Quem está enredado por uma peculiaridade, vê no outro nada mais do que peculiaridades” (HEGEL, 1968, p. 11). É o caso da atitude histórica, tanto na sua feição mais geral, quanto na sua feição reinholdiana, para a qual todo sistema filosófico constitui uma peculiaridade estranha a outras peculiaridades.

Para se chegar à essência da filosofia, observa Hegel, é preciso que a especulação filosófica se eleve a si mesma e ao absoluto. A especulação é a própria atividade da razão sobre si mesma, que, como manifestação do absoluto, fundamenta-se a

135 A tarefa da filosofia “consiste nisto, unificar as pressuposições, pôr o ser no não-ser como vir-a-ser; a cisão no absoluto – como seu fenômeno; o finito no infinito – como vida” (HEGEL, 1968, p. 16). Ou ainda: “O absoluto deve ser construído para a consciência, [tal] é a tarefa da filosofia” (HEGEL, 1968, p. 16).

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si mesma (HEGEL, 1968, p. 11-12). A essência racional da filosofia está presente em toda filosofia verdadeira. Assim, cada filosofia não pode ser tomada como essencialmente diferente da outra. A especulação filosófica, partindo desse pressuposto, qual seja, do reconhecimento do espírito vivente que habita toda filosofia verdadeira (cf. HEGEL, 1968, p. 9), não vê cada sistema como uma particularidade essencialmente diferente de outras particularidades. A especulação “deve encontrar a si mesma através das formas particulares” (HEGEL, 1968, p. 12). Podemos dizer, então, que cada filosofia assume uma forma particular e, assim, difere, no plano da forma, das outras filosofias particulares, ao mesmo tempo que, na sua essência, todas elas se identificam, pois são obras da mesma razão una desdobrando-se no processo histórico e que as reconhece como seus frutos. O espírito da filosofia pode então encontrar a si mesmo em cada filosofia, na forma que ele toma segundo a época na qual se originou. Segundo tal concepção da essência da filosofia, não é sua história um conjunto de opiniões mortas, que nada mais têm a nos dizer. Todo sistema é digno de interesse filosófico porque expressa a forma em que a razão se organizou numa figura com o material fornecido por uma época particular. Interessar-se por uma filosofia particular significa querer compreender de que maneira o absoluto nela se exprimiu. Tal como uma autêntica obra de arte, que se basta a si mesma, devemos interessar-nos por ela.

Já Lukács salientava a importância filosófica que, em Hegel, tinha a história da filosofia para a filosofia: “Ele é o primeiro no qual a história da filosofia ultrapassou o nível da simples enumeração dos fatos ou a crítica abstrata. Uma tal superação já se encontra conscientemente consumada na Diferença”136. Para Hegel, “a filosofia possui uma longa história 136 Lukács ainda nota que Hegel foi o primeiro a tomar a sério a questão da história da filosofia, que para tornar mais contundente seu ponto de vista, o recurso à história da filosofia servia para iluminar todos os aspectos possíveis do problema que o

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unitária na qual ela se desenvolve, história que representa o desdobramento da razão unitária” (LUKÁCS, 1981, p. 419-420).

Também Martial Guéroult atentou para essa importância da dimensão filosofante da história da filosofia em Hegel:

O interesse dessa primeira concepção hegeliana é o de conferir a cada doutrina encarada nela mesma um valor em si, de se recusar aplicar ao mundo das filosofias a noção de verdade corrente no conhecimento comum ou na ciência dos fenômenos. Por essa presença da razão, da verdade, da ideia da filosofia em cada filosofia, Hegel funda a perenidade das filosofias como objetos eternamente válidos para a filosofia e para a história (GUEROULT, 1979, p. 443).

Dentro desse quadro, a verdade que cada filosofia

propõe não envelheceria em virtude de poder ser objeto de estudo numa época posterior à que surgiu. Nas suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel assinala que o passado filosófico encontra seu valor e significado como um momento particular no desenvolvimento da história da filosofia. Se uma filosofia de uma época anterior à nossa não é capaz de responder a questionamentos que nos fazemos hoje, este fato não significa que ela não tenha mais nada a nos dizer. Apenas indica que o aprendizado que dela podemos extrair não deve comportar exigências que extrapolem aquilo que seria o esperado na sua época de surgimento (Cf. HEGEL, 1974, p. 352ss). O mundo de Platão não é o mesmo que o nosso:

Não devemos alimentar a pretensão de encontrar presentes na filosofia antiga os problemas da nossa consciência e os interesses do nosso mundo, visto que tais questões

concernia, além de torná-lo mais convincente, graças à argumentação a mais ampla possível. Assim, nos escritos críticos de Iena, “na polêmica contra Schulze, ele faz uma comparação detalhada entre o ceticismo antigo e o ceticismo moderno; na sua exposição sobre o direito natural, ele opõe as concepções filosófico-sociais de Platão e de Aristóteles às ideias modernas...” (LUKÁCS, 1981, p. 420).

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pressupõem um determinado desenvolvimento do pensamento. Desta maneira, toda a filosofia, precisamente por ser expressão dum especial grau de desenvolvimento, pertence ao seu tempo e está circunscrita aos seus próprios limites (HEGEL, 1974, p. 355).

De acordo com a concepção hegeliana, o estudo da

história da filosofia torna possível que tenhamos contato com formas de organização do pensamento filosófico que servirão para alimentar o pensamento filosófico da atualidade. Dessa perspectiva, o passado da filosofia não constituiria verdadeiramente um passado, pois trata-se de nos ocuparmos com formas de pensamento que determinaram aquilo que a filosofia é hoje. Hegel não acredita, portanto, que o passado da filosofia envelheça. Se há algo que envelhece é a pretensão das diversas filosofias em ser a determinação última e absoluta do pensamento filosófico (Cf. HEGEL, 1974, p. 351-352). A história da filosofia é, para o filósofo, capaz de nos fazer melhor compreender aquilo que somos hoje. Nesse sentido, o ensino da história da filosofia é vital para que os estudantes possam, ao tomar contato com esse passado, ter condições de apreender a articulação do pensamento filosófico do presente a partir do conhecimento de formas filosóficas que, segundo Hegel, contribuíram para o que a filosofia é hoje.

REFERENCIAS GUEROULT, M. Histoire de l’Histoire de la Philosophie, en Allemagne de Leibniz a nos jours. Paris: Aubier, 1979. HEGEL, G. W. F. Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie. Hamburg: Felix Meiner, 1968. _______. Leçons sur l’histoire de la philosophie, Introduction: Système et histoire de la philosophie. vol. 1, Paris: Gallimard, 1990. _______. Introdução à história da filosofia. Sao Paulo: Ed. Abril, 1974.

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LUKÁCS, G. Le Jeune Hegel, sur les rapports de la dialectique et de l’économie. vol. I. Paris: Gallimard, 1981.

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Capítulo 12 AASS CCRRÍÍTTIICCAASS DDEE MMAARRXX EE HHUUMMEE ÀÀ FFIILLOOSSOOFFIIAA CCOOMMOO

FFUUNNDDAAMMEENNTTOOSS PPAARRAA AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Samuel Mendonça

INTRODUÇÃO Embora muito se tenha produzido no Brasil sobre Marx

e a educação, nos últimos anos, Saviani (2008 e 2010), Lombardi (2008), Sanfelice (2008), Duarte (2008 e 2010), Sousa Junior (2010), nem por isto o autor de O Capital deixou de ser uma referência importante para a educação. O esforço de diversos intelectuais brasileiros e de outros países tem evidenciado a atualidade de Marx para as questões da educação nos tempos hodiernos. Então, a crise do capitalismo, especialmente a de Wall Street, em 2008, revelou a atualidade dos escritos de Marx para a compreensão da dinâmica da vida social (HOBSBAWN, 2011).

David Hume (1999), por sua vez, tem sido fonte de estudos em filosofia e diversas áreas do conhecimento sistemático, especialmente em virtude dos pressupostos do empirismo. A ciência da educação recepciona os pressupostos do empirismo quando em relação ao pragmatismo e, embora não se pretenda discorrer sobre autores desta corrente educacional, é preciso reconhecer em Dewey (1985) sua maior expressão.

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Com efeito, a nossa preocupação, neste capítulo, gira em torno da crítica de Marx à filosofia, que se dá por meio da crítica à ideologia alemã, da mesma forma que a ponderação de David Hume em relação à filosofia será objeto de investigação. Isto posto, pretendemos argumentar que tanto a crítica de Marx ao idealismo alemão quanto a de Hume à filosofia e, neste caso, à metafísica, constituem-se fundamentos da educação, na medida em que, por educação, entendemos as possibilidades de intervenção do homem na contínua transformação da sociedade e, neste sentido, as construções abstrusas não parecem auxiliar neste processo. De forma específica, formulamos a pergunta deste capítulo nos seguintes termos: as críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se elementos para a fundamentação da educação? É preciso dizer que Marx e Hume não possuem posições sequer próximas sobre o Estado, a Política a Economia ou a Educação, e não é pelo fato de que faremos a aproximação pontual quanto à questão da metafísica e da ideologia que isto possa significar a aproximação teórica dos referidos autores.

Embora em contextos distintos, veremos que as críticas destes pensadores às formulações abstrusas são as razões da ausência de uma perspectiva mais efetiva na educação, na consideração da vida humana. Embora não tenha sido este o olhar deles, então, utilizamos de seus argumentos para fundamentar a nossa posição de que os fundamentos da educação devem ser repensados. Dito de outro modo, não se encontram em Marx ou em Hume elementos da construção que pretendem fundamentar a educação a partir da crítica da metafísica e da ideologia e, portanto, o risco de equívocos desta aproximação é exclusivo do autor137.

137 Os estudos de Marx e de Hume foram feitos em contextos distintos. Hume e Marx foram lidos na graduação em filosofia, mas Hume foi lido enfaticamente por ocasião do mestrado, também em filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. No doutorado em educação, reli Marx, especialmente com professores do

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Uma concepção de educação que tenha como ponto de partida o ‘ideal’ de educação já evidencia – embora não se tenha definido que ideal é este – a ausência de ações concretas, seja quanto à concepção de educador e mesmo quanto ao perfil do aluno que está em formação. Fala-se em ideal de educação e este posicionamento é, muitas vezes, apolítico, no sentido de que não inclui as vicissitudes da vida social. Por concepção ‘ideal’ de educação concebe-se a comodidade: afinal, que ações concretas são reivindicadas a partir de um ideal de educação? Ações ideais, ou seja, mais uma vez a ausência das contradições sociais, dado que, no plano ideal, elas são equacionadas e equacionáveis. Não queremos com isto afirmar que não se pode ter ideal por educação. O que argumentamos é que o ideal que não aponta para o mundo humano e material certamente será insuficiente para equacionar os problemas determinados e concretos da educação.

Enquanto o filósofo escocês terá a metafísica como alvo, Marx, por outro lado, terá Hegel como o seu principal foco de crítica. Com estes elementos propedêuticos, que dizem respeito à concepção de homem e de mundo, isto é, a partir da definição de conhecimento que considera a experiência o seu leitmotiv, para o primeiro autor, e também considerando a concepção de trabalho para Marx, então, a nossa concepção de educação será apresentada no contexto da práxis social.

Do ponto de vista formal, investigaremos os termos crítica e superação em Descartes (1983) e em Kant (1999), justamente com o propósito de oferecer ao leitor elementos de nossa compreensão daquilo que julgamos ser o essencial para a fundamentação da educação, isto é, a noção de crítica. Podemos afirmar que o racionalismo de Descartes é superado pelo empirismo de Hume. Kant ‘acorda’ do sono dogmático

consagrado Departamento de História, Filosofia e Educação da Universidade Estadual de Campinas.

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com Hume. O autor das três críticas influencia Hegel que, por sua vez, é o maior alvo de Marx. Estas conexões evidenciam a interlocução entre os autores selecionados neste capítulo. Em seguida, faremos a análise minuciosa de Hume (1999) quanto à sua crítica à filosofia abstrusa e, posteriormente, junto da crítica de Marx à Ideologia Alemã, obra de 1845[6], dissecaremos a questão da origem das ideias de Hume, assim, teremos elementos para fundamentar a educação sem rodeios e a partir da vivência humana. O exame de elementos da Ideologia Alemã evidenciará a concepção de educação de Marx que deve partir da práxis social. Com estes elementos, exploraremos o conceito de trabalho ao longo da história do pensamento, de forma propedêutica, porquanto trata-se de tema central do pensamento marxiano, de modo a constituir mais um aspecto daquilo que nomeamos fundamentos da educação.

Em sentido lato, entendemos o educador como um sujeito dotado de valores e hábitos, que busca transformar a vida social e elabora o seu sentido na história por meio do trabalho. Não existe papel do educador a priori, mas, se existem desafios para fundamentar a educação a partir da crítica do idealismo e da metafísica, por certo dentre esses desafios podemos incluir o de compreender a contribuição dos clássicos para a fundamentação da educação. Como construir fundamentos da educação sem a contribuição dos clássicos do pensamento, neste caso, Marx e Hume?

É preciso considerar que os escritos de Marx sobre a educação não se circunscrevem no âmbito de práticas pedagógicas, no entanto, mesmo que ele não tenha publicado escritos específicos sobre a educação, é possível derivar elementos que estão presentes na educação, seja na perspectiva de fundamentos, de política ou, mais especificamente, de concepção de educação. Ora, não é por acaso que a recente obra de Sousa Junior (2010) explicita, em seu primeiro capítulo: “como e por que as formulações

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marxianas podem ser consideradas uma contribuição importante para o pensamento educacional” (p. 20).

A nossa expectativa não é a de inovação das ideias de Marx ou de Hume em torno da educação, mas, antes, de apontar para perspectivas que coloquem em relevo a crítica da metafísica e da ideologia como base para a construção de fundamentos da educação para os tempos hodiernos. CONSIDERAÇÕES SOBRE CRÍTICA E SUPERAÇÃO NA BUSCA DE

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO É necessário explicar o que entendemos por superação e

crítica. Os pensadores da Ilustração, como Kant, por exemplo, já falavam de superação, da mesma forma que o racionalista francês Descartes138 tratava da necessidade de vencer-se a si mesmo. Com o propósito de alcançar o primeiro objetivo, isto é, a elucidação dos termos crítica e superação, examinaremos as concepções de Descartes e Kant com o propósito de construir elementos que fundamentem a educação. A crítica sugere a autocrítica que reivindica a superação, então, em se tratando daquilo que é essencial para a educação, eis o nosso primeiro desafio.

Não se trata de revisitar o conceito de superação tal como já foi pensado no século XVII, mas de considerar os paradoxos existentes na vida humana e de explicitar a

138 Descartes, na obra Discurso do Método, especialmente na terceira parte, quando trata das máximas da moral provisória, anuncia a necessidade de uma espécie de superação. Ele chama a atenção para o vencer-se a si mesmo, mas em relação à fortuna. “[...] acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível” (DESCARTES, 1983, p. 43). A superação anunciada aqui, mesmo indiretamente, não está de acordo com a que vemos em Marx. Antes, diz respeito à tentativa de buscar na razão a plenitude do conhecimento, desconsiderando inclusive as conquistas externas e os bens materiais. Em Marx, a perspectiva de superação parte exatamente das condições materiais como balizas da transformação social.

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necessidade dela para a possibilidade da crítica. Dito de outro modo, devemos enfatizar a natureza do próprio homem na tentativa da sua superação, na medida em que não existe uma essência do humano em Marx e nem tampouco em Hume, mas o homem é o resultado das relações sociais vividas na história a partir do trabalho ou o produto da experiência sensível. Saviani (2010) reforça o que temos elaborado ao longo destas reflexões, isto é, o que distingue o ser humano de outras espécies é fundamentalmente o trabalho:

No caso dos seres humanos, sua atividade vital, que é o trabalho, distingue-se daquelas de outras espécies vivas por ser uma atividade consciente que se objetiva em produtos que passam a ter funções definidas pela prática social. Por meio do trabalho, o ser humano incorpora, de forma historicamente universalizadora, a natureza ao campo dos fenômenos sociais. Neste processo, as necessidades humanas ampliam-se, ultrapassando o nível das necessidades de sobrevivência e surgindo necessidades propriamente sociais (p. 426).

Por conseguinte, se o processo de humanização aponta o

trabalho como propulsor do homem, então, elaboramos a possibilidade de crítica do sujeito que trabalha; afinal, Marx concebe o trabalho consciente – e não o trabalho alienado – como base da transformação social. Por trabalho consciente não entendemos a abstração do conceito de trabalho, mas sua experiência na práxis social.

Quais as razões que justificam a escolha de Descartes e Kant para a análise da superação e crítica neste capítulo que tem Marx e Hume como referenciais teóricos? Embora já tenhamos tratado de algumas relações entre os autores, por ocasião da introdução, vale reforçar que Kant influenciou Hegel no que se refere à crítica do conhecimento; todavia, Hegel passou a fundamentar a sua crítica a partir da dialética, inserindo a perspectiva da história em sua filosofia, mas, ainda assim, trabalhou com a noção do absoluto, alvo preciso de

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Marx. Desde 1844, com a obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, é notável o reconhecimento de Marx a Hegel, mesmo que tenhamos esta observação a partir da crítica do primeiro em relação ao segundo. Descartes foi uma das referências importantes de Kant na construção da filosofia do sujeito, visto ter construído as bases do racionalismo, escola filosófica do século XVII, que estabelecia a razão humana como fonte e método para a construção do conhecimento. Kant vai além de Descartes, considerando também a experiência como base do conhecimento e foi Hume o autor que despertou Kant do sono dogmático; afinal, “embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isto todo ele se origina justamente da experiência” (KANT, 1999, p. 53). Este excerto da Crítica da Razão Pura evidencia a síntese que Kant promove a partir do racionalismo e do empirismo.

Portanto, temos Descartes como precursor de Kant – embora Leibniz também tenha influenciado o filósofo das três críticas – e Kant como precursor de Hegel. Hegel, por sua vez, foi o principal alvo de Marx na crítica à ideologia alemã; assim, justificamos a escolha desses pensadores para o tratamento dos termos superação e crítica. Há outros elementos que justificam a escolha desses autores: Descartes e Kant, pelo fato de serem filósofos idealistas; Marx e Hume, em virtude da crítica ao idealismo.

A superação sugerida pelos pensadores racionalistas dizia respeito a uma concepção de homem e de mundo balizada no contexto da transição da Idade Média para a Moderna. Anteriormente, a verdade era tida como revelada por Deus, e a Igreja Católica determinava a ordem do mundo. Superação, naquele contexto, dizia respeito à tentativa dos pensadores em serem protagonistas do conhecimento e não mais se submeterem à aceitação da autoridade divina na esfera cognitiva. A emergência da ciência moderna, as grandes navegações e outras inovações produziram um momento de incertezas. Lembremos, por exemplo, das vidas de Giordano

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Bruno e Galileu Galilei e suas dificuldades na defesa de ideias que contrariavam os interesses da época. Descartes foi mais prudente, na medida em que inovou na construção de uma nova forma de conceber o mundo, o racionalismo, indicando o homem e a razão como elementos que marcariam a humanidade ocidental. Entretanto, com a condenação de Galileu, em 1633, Descartes renunciou à publicação de sua obra intitulada Tratado do Mundo e da Luz, em que também aderia à tese do movimento da terra.

O contexto dos séculos XVI e XVII, no campo filosófico e científico, teve a superação como grande inspiração destes pensadores, superação essa que buscava a coerência, a certeza ou, em outros termos, o método científico como único a prover segurança para o conhecimento. A este propósito, conviria, para uma maior elucidação, servirmo-nos das afirmações de Pessanha:

A superação das incertezas não poderia resultar de correções parciais que tentassem aproveitar as ruínas da visão de mundo medieval. Não era possível utilizar as ‘velhas muralhas que haviam sido construídas para outros fins’. Ao contrário, era preciso começar tudo de novo, encontrar novo ponto de partida e demarcar novo itinerário que conduzisse, com segurança, a certezas científicas universais. As múltiplas opiniões eram caminhos vários e inseguros que não levavam a qualquer meta definitiva e estável. Era necessário, portanto, que se encontrasse não um caminho – mais um ao lado de tantos outros –, porém o caminho certo, aquele que se impusesse a todos os demais como único legítimo, porque o único capaz de escapar ao labirinto das incertezas e das estéreis construções meramente verbais, para conduzir afinal à descoberta de verdades permanentes, irretorquíveis, fecundas. Era preciso achar a via – o hódos dos gregos – que levasse à meta ambicionada: precisava-se achar o método para a ciência (1983, p. IX).

Observamos, pois, que superação para os racionalistas

indica, conforme as observações de Pessanha, a construção do

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conhecimento seguro e verdadeiro, de cunho científico, atrelado necessariamente à construção de um método. No entanto, em que medida a compreensão da crítica aqui anunciada aproxima-se da proposta por Kant na Crítica da Razão Pura e mais, em que medida o conceito de crítica pode efetivamente contribuir para a construção de fundamentos da educação?

Kant critica o racionalismo e o empirismo na formulação da sua filosofia crítica. No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, de abril de 1787, o filósofo afirma que:

a crítica não é contraposta ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro como ciência (pois esta tem que ser sempre dogmática, isto é, provando rigorosamente a partir de princípios seguros a priori), mas sim um dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo princípios há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica precedente da sua própria capacidade (KANT, 1999, p. 47).

Observamos a evidente crítica ao dogmatismo da razão,

porém, não há contraposição entre a crítica e o procedimento dogmático da razão, mas sim há contraposição entre a crítica e o dogmatismo. Kant assinala os riscos de se assumir um posicionamento sem a cuidadosa crítica da razão. Ainda no contexto idealista, Hegel também irá por este caminho e é neste sentido que Marx (2007) critica Hegel e os idealistas alemães. Veremos, a seguir, a concepção de filosofia de Hume.

A CRÍTICA DE DAVID HUME À FILOSOFIA ABSTRUSA139 David Hume (1771-1776) é considerado a maior

expressão do empirismo e a sua segunda seção, Origem das

139 Parte destas reflexões foi examinada em meu Projeto e Monografia Jurídica (2009).

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Ideias, da obra, Investigação acerca do Entendimento Humano, evidencia algumas de suas principais concepções dentro dessa corrente da teoria do conhecimento clássica. Cabe observar, também, que sua obra acabou por influenciar correntes importantes do pensamento moderno, com destaque para o positivismo, pondo em relevo a necessidade de fundamentação de um conhecimento seguro, objetivo e científico e, neste sentido, fundado nos sentidos humanos. Embora Marx critique os empiristas, é nítida a influência deles no pensamento do filósofo de Os Manuscritos.

Hume estava convencido de que a ciência da natureza humana era mais importante do que qualquer outra ciência, justamente em virtude de que qualquer investigação científica depende, necessariamente, da natureza do homem. Neste sentido, pensamos a partir do filósofo que, se compreendermos as relações entre as ideias, ou ainda, se conseguirmos atingir com propriedade a elucidação do conhecimento humano, então teremos alguns dos elementos necessários para o conhecimento em física ou em outras ciências. Em outros termos, na perspectiva do filósofo, será possível estabelecer uma teoria do conhecimento quando desvendarmos a ciência da natureza humana. Ora, a construção de fundamentos da educação se coloca exatamente neste contexto, na medida em que o que se pretende é a construção de balizas seguras para possibilitar a transformação social.

Esta ciência da natureza humana evidencia um tipo de filosofia que Hume denomina filosofia da natureza humana. Uma filosofia que se pauta na experiência sensível do homem e não na especulação sobre as ideias, base fundamental para a compreensão da educação. Ele insere na investigação filosófica, então, um aspecto que não era usual para a filosofia na sua época, a saber, o caráter pragmático da filosofia. A seguir, apresentaremos os argumentos sobre os quais Hume sustenta este novo filosofar.

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A contribuição de David Hume quanto a uma definição de filosofia aponta para elementos que influenciaram a modernidade no que diz respeito à construção do conhecimento. Evidentemente, não é nosso propósito neste capítulo aprofundar esta influência, mas não poderíamos deixar de explicitar quais os fundamentos que balizam a estruturação do conhecimento deste autor, a ponto de influenciar escolas filosóficas como o positivismo e o materialismo histórico de Marx, por exemplo.

O positivismo140, em virtude da sua base teórica, sustenta-se na ideia de que a ciência positiva é aquela que parte da natureza humana. Que natureza é essa? A que será explicitada por Hume, ou seja, aquela que considera a experiência sensível como condição do conhecimento. A perspectiva de Marx141 também trabalha com esta perspectiva de conhecimento pragmático, na medida em que critica o conhecimento metafísico e afirma que o conhecimento deve ser necessariamente condição de mudança do mundo, fazendo das relações econômicas o fundamento das relações humanas e sociais.

140 “Este termo foi utilizado pela primeira vez por Saint-Simon, para designar o método exato das ciências e sua extensão para a filosofia. [...] Foi adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente filosófica que, na segunda metade do século XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações. A característica do positivismo é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível” (ABBAGNANO, 1999, p. 776), e ainda: “Doutrina que rejeita a metafísica e fundamenta o conhecimento nos fatos” (CUVILLIER, 1969, p. 124). 141 “Engels designou o cânon de interpretação histórica proposta por Marx, mais precisamente o que consiste em atribuir aos fatores econômicos entre os quais: técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção, peso preponderante na determinação dos acontecimentos históricos. O pressuposto deste cânon é o ponto de vista antropológico, defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é constituída intrinsecamente (em sua própria natureza) por relações de trabalho e de produção de que o homem participa para prover às suas necessidades” (ABBAGNANO, 1999, p. 652).

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Retomando a questão da filosofia em Hume, trata-se de conceito fundamental para o entendimento da sua teoria da origem das ideias, afinal, a metafísica ou especulação que tem como fundamento a causalidade ou outros princípios racionais, não evidencia elementos aceitáveis em uma investigação filosófico/educacional, pelo menos no que se refere à proposta por Hume. A base de sua filosofia é pragmática e seu fundamento está na ação humana.

Hume (1972) afirma existirem duas espécies de filosofia, que ele denomina filosofia da ação e filosofia racional. A filosofia da ação considera o homem como um ser sensível e, portanto, enfatiza o sentimento como base das vivências. A ação humana está na própria vida. Esta perspectiva filosófica não requer elementos teóricos de explicação conceitual, mas está centrada no apetite sensorial. O que se pode reconhecer neste tipo de filosofia é que a natureza humana é voltada para a vivência humana, que se baseia nos hábitos.

Por outro lado, uma outra categoria de filosofia descreve o homem como um ser racional e enfatiza o entendimento dos hábitos e não os próprios hábitos como principal elemento de descrição do homem, ou seja, o homem é um ser que compreende e racionaliza o mundo. Para essa espécie de filosofia, a natureza humana é especulativa e o seu propósito é encontrar os princípios que fundamentam nosso entendimento do homem. O grande propósito dessa filosofia, portanto, é o de conseguir aprovação; em outros termos, os filósofos dessa espécie esperam a aprovação de outros filósofos, contribuindo assim para o entendimento do futuro.

Com essas duas espécies de filosofia, que ele classifica de filosofia fácil e filosofia abstrusa, ressalta que a primeira é de preferência da humanidade, pois diz respeito à vivência do homem. Hume evidencia a sua opção e, mais do que isto, a sua marca na história. A opção pela filosofia fácil ou filosofia da ação, embora não exclua a filosofia racional, fundamenta-se na própria natureza humana, ou seja, nos costumes e

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sentimentos. Observamos aqui uma crítica à filosofia racional ou, mais precisamente, à metafísica.

O filósofo desconfia da filosofia racional afirmando que:

A um filósofo profundo é fácil cair em erro nos seus raciocínios sutis: e um erro gera necessariamente outro, enquanto ele continua a deduzir as suas consequências e não recua diante de nenhuma conclusão, por mais insólita que pareça e por mais que contradiga a opinião popular. Mas o filósofo que não tem outro propósito senão representar o senso comum da humanidade com cores mais belas e mais atraentes, quando porventura cai em erro, não dá outro passo mais longe; e, renovando o seu apelo ao senso comum e aos sentimentos naturais, volta ao caminho certo e assim se resguarda contra toda ilusão perigosa (HUME, 1972, p. 130)142.

Por outro lado, uma filosofia só baseada na ação, na

vivência, sem o cuidadoso entendimento, estaria também sujeita a erros ou, no mínimo, ao seu não entendimento, o que equivale a um problema. Neste sentido, ele defende a necessidade da razão como método de compreensão da natureza humana. Hume não defende a utilização da razão como fonte do conhecimento, mas exatamente como recurso, como instrumento; a fonte do conhecimento reside na sensibilidade e nos sentimentos humanos.

Portanto, o filósofo escocês defende uma filosofia intermediária, que nomeia de raciocínio exato, como o modelo adequado de percepção da natureza humana. Diz ele:

142 Lê-se no original: “It is easy for a profound philosopher to commit mistake in his subtitle reasoning’s; and one mistake is the necessary parent of another, while he pushes on his consequences, and is not deterred from embracing any conclusion, by its unusual appearance, or its contradiction to popular opinion. But a philosopher, who purposes only to represent the common sense of mankind in more beautiful and more engaging colors, if by accident he falls into error, goes no farther; but renewing his appeal to common sense, and the natural sentiments of the mind, returns into the right path, and secures himself from any dangerous illusions” (HUME, 1999, p. 88).

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Supõe-se que o tipo mais perfeito se encontre no meio caminho entre estes dois extremos, dando provas de igual capacidade e gosto pelos livros, pela sociedade e pelos negócios; mostrando na conversa esse discernimento e delicadeza que decorrem das belas-letras; e, nos negócios, essa probidade e exatidão que são o resultado natural de uma justa filosofia (HUME, 1972, p. 130)143.

A filosofia de David Hume rechaça elementos

metafísicos como base de fundamentação de quaisquer pesquisas, inclusive para o foco deste capítulo, a educação, em virtude da ausência de dados sensíveis, contrariando uma perspectiva empírica. Distancia-se, também, por outro lado, da sensação sem o devido entendimento, culminando neste modelo de filosofia que parte do sensível para estabelecer as conexões por meio do entendimento. Em outros termos, o que o filósofo escocês critica na filosofia racional não é a lógica, o rigor do pensamento, mas as relações de pensamento estabelecidas pelos conceitos abstratos, que geram outros conceitos, e assim por diante. A lógica é um instrumento chave da filosofia deste autor, na legitimação do conhecimento experimental e, também, na produção do conhecimento educacional de qualquer natureza.

A filosofia adequada para a fundamentação do conhecimento humano, em David Hume, e coerente para fundamentar a educação, é a filosofia exata, que não distancia o homem da sua natureza sensorial. A este respeito, ele recomenda:

Cultiva a sua paixão pela ciência, diz ela, mas que tua ciência seja humana e tenha aplicação direta à ação e à sociedade. Quanto ao pensamento abstruso e às investigações profundas,

143 No original se lê: “The most perfect character is supposed to lie between those extremes; retaining an equal ability and taste for books, company, and business; preserving in conversation that discernment and delicacy which arise from polite letters; and in business, that probity and accuracy which are the natural result of a just philosophy” (HUME, 1999, p. 89).

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eu os proíbo e os castigarei severamente com a cismadora melancolia que eles provocam, com a interminável incerteza de que nunca te poderá livrar, e com a fria acolhida que terão tuas pretensas descobertas quando as quiseres comunicar. Seja filósofo, mas, em meio de toda a tua filosofia, não te esqueças de ser homem (HUME, 1972, p. 130)144.

Partindo destes elementos de fundamentação de filosofia

de David Hume, passaremos a analisar a crítica de Marx à ideologia alemã, da mesma forma que a exposição de aspectos da origem das ideias, ponto central do pensamento de Hume. A CRÍTICA À IDEOLOGIA ALEMÃ DE MARX E A ORIGEM DAS IDEIAS

DE HUME Após a crítica de Hume quanto à filosofia abstrusa, que,

em última análise, refere-se à crítica da metafísica, examinaremos, na mesma perspectiva, a crítica de Marx (1818-1883) ao idealismo alemão, no sentido de continuar a construção de subsídios para a fundamentação da educação; afinal, que concepção de educação pode ser pensada sem a mediação do homem e das transformações sociais? É nesta direção que justificamos a escolha de Marx e Hume, dado que, embora em contextos distintos, criticam construções nebulosas e abstrusas. Em que pese o fato de que Marx critique os empiristas, pretendemos evidenciar que, ao menos do ponto de vista deste aspecto singular, isto é, da crítica à metafísica, sua argumentação se aproxima da de Hume. Então, tanto o empirismo como o materialismo, neste sentido, servem de fundamentos para a educação nos termos que temos pensado.

144 No original, se lê: “Indulge your passion for science, says she, but let your science be human, and such as may have a direct reference to action and society. Abstruse thought and profound researches I prohibit, and will severely punish, by the pensive melancholy which they introduce, by the endless uncertainty in which they involve you, and by the cold reception which your pretended discoveries will meet with, when communicated. Be a philosopher; but, amidst all your philosophy, be still a man” (HUME, 1999, p. 90).

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Nunca é demais reafirmar que não se trata de considerar Marx um empirista ou Hume um materialista, mas de perceber que os dois referenciais teóricos partem da crítica de fundamentos ideológicos e provenientes da imaginação. Suas perspectivas partem do homem e da vivência social. Marx (2007) assevera:

Bem ao contrário do que acontece com a filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui se sobre da terra para o céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam, ou engendram mentalmente, tampouco do homem dito, pensado, imaginado ou engendrado mentalmente para daí chegar ao homem de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e de seu processo de vida real para daí chegar ao desenvolvimento dos reflexos ideológicos e aos ecos desse processo de vida (p. 48).

Ora, a construção de Marx revela a ênfase dada à

dimensão humana. Veremos que é o trabalho, a partir dos meios de produção, que baliza o desenvolvimento do homem. Construções idealistas e metafísicas, isto é, aquelas que descem prontas do céu para a terra, não descrevem os conflitos humanos, não partem da vida humana, mas de suposições e abstrações que, em muitos casos, são incapazes de revelar as vicissitudes das contradições da vida em sociedade.

As construções ideológicas nascem das atividades humanas, então, por certo, Marx não concorda com ideologia que tenha a abstração como fonte, mas direciona a construção ideológica que tenha o seu nascedouro na vida do homem, em específico nas contradições da sociedade. Da mesma forma que Hume argumenta que as ideias nascem das experiências, Marx (2007) afirma que “também as formações nebulosas que se condensam no cérebro dos homens são sublimações necessárias de seu processo material de vida, processo empiricamente registrável e ligado a condições materiais” (p. 49).

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Neste sentido, a crítica de Marx ao idealismo alemão se fundamenta, principalmente, na falta de autenticidade do homem - ou mesmo na ausência de autonomia - seja no contexto da moral, da religião, da metafísica ou de outra ideologia. Se a construção parte de perspectiva deslocada da vivência humana, portanto, não será útil ao humano. A educação que não tenha o humano como centro será, por certo, insuficiente para equacionar as contradições da sociedade. Então, como fundamento da educação, argumentamos que a crítica ao idealismo se trata de baliza fundamental, da mesma forma que a crítica à metafísica de Hume.

Marx defende o desenvolvimento do homem na história, isto é, sua produção material e suas relações materiais transformam a realidade. O pensamento do homem é o resultado dessas relações. É neste sentido que ele critica o posicionamento de Hegel, que tem a consciência como base da construção da história, e principalmente os supostos críticos de Hegel, dado que, segundo Marx (2007), não conseguiram investigar os pressupostos gerais-filosóficos, mantendo-se dependentes do filósofo da Fenomenologia. O pensador de O Capital argumenta que

a crítica alemã até em seus mais novos esforços não abandonou o terreno da filosofia. Bem longe de investigar seus pressupostos gerais-filosóficos, o conjunto de suas perguntas inclusive cresceu sobre o chão de um único e determinado sistema filosófico, o hegeliano. Não apenas em suas respostas, já nas perguntas jazia uma mistificação. Essa dependência de Hegel é o motivo pelo qual nenhum desses novos críticos sequer tentou uma crítica abrangente do sistema hegeliano, por mais que todos eles afirmem ter superado Hegel (MARX, 2007, p. 39).

O autor de Os Manuscritos enfatiza a necessidade da

transformação do homem para a construção de suas bases teóricas, então, a partir do distanciamento do idealismo, o materialismo histórico se desenvolve. Argumenta Marx (2007)

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que a vida determina a consciência e não o contrário e, por consciência, ele compreende a vivência do sujeito no mundo e não uma abstração.

Ora, como construir subsídios para a educação a partir da crítica ao idealismo apresentada por Marx? Parece-nos que a concepção de educação deva ser dinâmica o suficiente para expressar a experiência humana, em suas contradições, e mais, não servem de fundamento para a educação elementos que não estejam vinculados essencialmente à atividade material do homem. As premissas que sustentam a concepção de homem, para Marx, a partir da caracterização da transformação social, definem este sujeito na história, nas contradições da vida material. Em outros termos, a história não se resume em abstração ou a um discurso metafórico, antes, diz respeito à vivência social. De forma precisa, Marx, da mesma forma que Hume, rechaça a especulação, apontando para a dimensão material da vida, todavia, critica também os empiristas145 e reafirmamos que a aproximação pontual destes autores, no que se refere à crítica da metafísica, não faz deles ‘partidários’ de uma mesma ideologia. Vejamos como Marx define estas condições:

Suas premissas são os homens, mas não tomados em algum isolamento ou rigidez fantástica qualquer, mas sim em um processo de desenvolvimento real e empiricamente registrável, sob a ação de determinadas condições. E tão logo se expõe esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como continua sendo mesmo entre os empiristas abstratos, ou uma imaginária de sujeitos imaginários, como é para os idealistas. Ali onde termina a

145 Em que pese o fato de que Marx critique os empiristas abstratos, entre os quais Hume é partidário, em contraposição aos empiristas materialistas, dentre os quais podemos citar Hobbes e Bacon, por exemplo, no sentido de que os primeiros negam que a natureza corresponda à origem da experiência, mesmo assim, no que se refere à crítica específica da filosofia de Hume, percebemos o ponto de diálogo segundo o qual justifica a nossa aproximação entre estes dois clássicos da filosofia (BACKES, 2007, p. 49).

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especulação, quer dizer na vida real, começa também a ciência real e positiva, portanto, a representação da ação prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens (MARX, 2007, p. 49).

A compreensão do homem em sua historicidade revela o

principal alvo de Marx, isto é, as construções abstratas. Como vimos, Hume também apresenta esta crítica ao tratar da filosofia abstrusa e, também, quando trata da questão da origem das ideias, o filósofo escocês é ainda mais enfático ao dizer que há diferença nas percepções da mente, por exemplo, quando tratamos de alguma impressão dos sentidos, como a sensação de calor, ou quando nos lembramos desta sensação. Em outros termos, considera que a primeira esfera de percepções (sensações) é mais forte do que a segunda (memória). As sensações mais fortes (dos sentidos primários) são sempre mais vivas do que a mera lembrança delas. Por exemplo, se um indivíduo entra em contato com o fogo, ele sentirá a dor da queimadura do calor de forma incomparável, mais intensa, do que aquele que lê sobre a queimadura. Neste sentido, estabelece uma prioridade em termos da origem das ideias, ou seja, a sua teoria do conhecimento se fundamenta na experiência. Isto não significa que a razão não tenha o seu papel na teoria do conhecimento de Hume, porém, este papel é secundário. Ou seja, a razão não é fonte do conhecimento, mas instrumento de entendimento deste conhecimento. Isto não significa que desconsideraremos a razão para a fundamentação da educação, mas a crítica de Hume é relevante, na medida em que reivindica a conexão entre o que se pensa com o que se tem no mundo fenomênico.

A razão é importante como faculdade de transpor, combinar, aumentar ou diminuir o material fornecido pela experiência, no que diz respeito à construção de ideias, mas não pode, segundo ele, servir de base para a construção do

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conhecimento, pois, o que fundamenta o conhecimento é efetivamente a experiência sensível.

Segundo o filósofo escocês, há uma diferença significativa entre a imaginação e a vivência, e ele evidencia a supremacia da segunda em relação à primeira, dizendo que:

o mais vivo pensamento é ainda inferior à mais embotada das sensações. Podemos observar que uma distinção semelhante vale para todas as demais percepções da mente. Um homem presa de um acesso de cólera é atuado de maneira diversa daquele que apenas pensa nessa emoção. Se me disserem que tal ou tal pessoa está enamorada, eu compreenderei facilmente o que isso significa, e farei uma ideia justa da sua situação, mas nunca poderei confundir essa ideia com as agitações e desordens reais da paixão (HUME, 1972, p. 134)146.

Isto posto, consideramos como fundamento da teoria de

Hume, portanto, a tese segundo a qual a origem das ideias reside nas sensações. Para sustentar a afirmação de que as ideias são inferiores às sensações, ele apresenta dois argumentos. O primeiro diz respeito a qualquer ideia complexa. Ele entende por ideia complexa a que não é simples, ou seja, a que tem em sua estruturação abstrações ou ainda aglutinação de conceitos sem uma base sensível correspondente. Por exemplo, a expressão Deus existe é para o autor uma ideia complexa, na medida em que não se pode oferecer uma comprovação simples e objetiva para o vocábulo Deus, tratando-se de uma abstração. Diz que esta ideia complexa de Deus, como qualquer outra ideia complexa, tem sua origem na experiência. Pode parecer estranho este

146 Lê-se no original: “The most lively thought is still inferior to the dullest sensation. We may observe a like distinction to run through all the other perceptions of the mind. A man, in a fit of anger, is actuated in a very different manner from one who only thinks of that emotion. If you tell me, that any person is in love, I easily understand your meaning, and form a just conception of his situation: but never can mistake that conception for the real disorders and agitations of the passion” (HUME, 1999, p. 96).

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argumento num primeiro momento, mas se observarmos mais de perto e de forma criteriosa, concluiremos que Deus existe, de fato, como ideia e, neste sentido, resta investigar a sua origem que, segundo o pensador, reside tão somente na experiência humana. Ou seja, temos clareza dos conceitos de bondade e de sabedoria formulados com base na experiência no universo humano. Para formar a ideia de Deus, basta aumentar em grau infinito estes conceitos e chegaremos à ideia de um ser infinitamente bondoso e sábio. Isto é, Deus é o resultado da nossa faculdade de aumentar a experiência vivida e uma criação do homem, não sendo, para Hume, objeto da ciência e, portanto, deve ser deixado de lado por não oferecer elementos objetivos e pragmáticos para a sua formulação. A respeito da proposição de que a origem das ideias reside na experiência sensível, provoca o autor:

Os que desejam negar que esta proposição seja universalmente verdadeira e mostrar que ela comporta exceções, só têm um método, aliás, bastante fácil, de refutá-la: basta apresentarem uma ideia que, em sua opinião, não derive desta fonte. Caberá então a nós, se quisermos sustentar a nossa doutrina, apontar a impressão ou percepção viva que lhe corresponde (HUME, 1972, p. 135)147.

Essa provocação evidencia uma perspectiva aberta ao

diálogo e fortalece a teoria do autor, na medida em que não parte de uma perspectiva dogmática, fechada, mas abre espaço para a interlocução e possibilidade de revisão de seus argumentos.

O segundo argumento apresentado por Hume para sustentar a tese de que todas as ideias complexas têm origem

147 No original se lê: “Those who would assert, that this position is not universally true nor without exception, have only one, and that easy method of refuting it; by producing that idea, which, in their opinion, is not derived from this source. It will then be incumbent on us, if we would maintain our doctrine, to produce the impression or lively perception, which corresponds to it” (HUME, 1999, p. 98).

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nas ideias simples e que, por sua vez, toda ideia simples tem origem em uma experiência sensível, assegura que uma pessoa privada de um dos órgãos dos sentidos não consegue ter ideia correspondente à experiência advinda daquele órgão. Um surdo, por exemplo, que tenha nascido surdo, não tem ideia dos sons, ou ainda um cego de nascença não consegue saber a diferença entre as cores. Considerando o argumento válido, então parece possível afirmar que a sua teoria tem uma base de sustentação forte, pelo menos no que diz respeito ao que ela se propõe demonstrar, ou seja, a origem das ideias está nas sensações e a ausência de um dos sentidos interrompe a possibilidade de sensação daquele sentido e, portanto, de formação de quaisquer conhecimentos derivados dele. Quais as implicações desta teoria para fundamentar a educação? É preciso partir da experiência dos sentidos para pensar e repensar a educação. É também fundamental que possamos nos valer da possibilidade de construir fundamentos que sejam efetivamente necessários à vida humana.

Hume insere um elemento contraditório à sua teoria logo após a construção destes dois argumentos. Para a nossa reflexão, trata-se de uma estratégia para fortalecer a sua teoria e não para contradizê-la. Este fenômeno contraditório talvez prove, “não ser de todo impossível que uma ideia surja sem a correspondente impressão” (HUME, 1972, p. 135).

Admitindo que uma pessoa possa inserir uma tonalidade de azul em um feixe que apresenta ausência da quaisquer tons, em uma sequência lógica do mais forte para o mais fraco, de um espectro luminoso de cor azul, sem ter tido a experiência anterior desta tonalidade específica, parece configurar uma contradição à teoria segundo a qual a experiência é fonte das ideias. O autor formula:

Coloquem-se diante dele todos os diferentes matizes de azul, menos esse, em ordem gradualmente descendente do mais carregado ao mais claro; é evidente que ele perceberá um

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vazio no lugar onde falta esse matiz e sentirá uma distância maior entre as cores contíguas nesse lugar do que em todos os outros. Pergunto agora se lhe será possível suprir essa falha com a sua imaginação e formar por si mesmo a ideia desse matiz particular, embora nunca lhe tenha sido apresentado pelos sentidos. Creio que poucos negarão essa possibilidade; e isso servirá talvez como prova de que as ideias simples não derivam sempre e em todos os casos das correspondentes impressões; se bem que este exemplo seja tão singular, que mal merece nos detenhamos nele e alteremos, por sua causa, o nosso princípio geral (HUME, 1972, p. 136)148.

Em que medida esse elemento contraditório rechaça a

teoria de Hume? Percebemos que o autor coloca um exemplo singular e, mesmo assim, para que a pessoa insira a tonalidade que está faltando na sequência de cores, ela parte de tonalidades mais fracas e mais fortes dos dois lados do espectro, e é capaz de preencher a lacuna em virtude destas experiências sensíveis dadas, ou seja, o elemento contraditório, neste sentido, parece fortalecer a teoria do autor de que as ideias têm origem na experiência sensível. Se imaginássemos um exemplo diferente em que uma pessoa não experimentou um tom específico de uma cor específica indefinida, esta pessoa conseguiria preencher a lacuna com o tom que está faltando, se não apresentássemos os tons anteriores e posteriores? Parece que a resposta é não, ou seja, o que faz com que a pessoa preencha este matiz não é a imaginação ou

148 Conforme o original: “Let all the different shades of that color, except that single one, be placed before him, descending gradually from the deepest to the lightest; it is plain, that he will perceive a blank, where that shade is wanting, and will be sensible, that there is a greater distance in that place between the contiguous colors than in any other. Now I ask, whether it be possible for him, from his own imagination, to supply this deficiency, and raise up to himself the idea of that particular shade, trough it had never been conveyed to him by his senses? I believe there are few but will be of opinion that he can: and this may serve as a proof, that the simple ideas are not always, in every instance, derived from the correspondent impressions; though this instance is so singular, that it is scarcely worth our observing, and does not merit, that for it alone we should alter our general maxim” (HUME, 1999, p. 99).

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outro elemento, mas justamente a experiência anterior advinda da experiência sensível.

Este argumento do elemento contraditório é muito interessante para que possamos repensar a educação; afinal, partimos das concepções de educação que temos para diagnosticar as ações necessárias ao aprimoramento da educação, contudo, o que concebemos partindo do que já temos são ideias fantasiosas e distantes da realidade educacional stricto sensu. Neste sentido, a pergunta fundamental que devemos fazer, para fundamentar a educação a partir de outras balizas, não é aquela que questiona sobre o que é a educação, mas, devemos colocar em relevo para quê concebemos a educação. Se a educação não busca a sua teleologia, então, qual é o seu sentido?

Logo, percebemos que Hume sustenta a sua teoria mesmo considerando a possibilidade de críticas. E o desafio está dado: se alguém acredita que a experiência sensível não é fonte das ideias, então, deverá apresentar um exemplo de ideia que tenha vindo de outra fonte. O mesmo raciocínio deve ser formulado no contexto da educação, isto é, se alguém não está satisfeito com a educação como temos nos tempos atuais, então, deve buscar as alternativas que sejam as balizas de uma nova educação.

Entendemos que tanto o exemplo do elemento contraditório, como, igualmente, a fundamentação da origem das ideias de Hume, apresentados de forma breve neste capítulo, aproximam-se da crítica de Marx à ideologia alemã, na medida em que as fantasias, a imaginação e as ideias abstrusas são preteridas.

A preocupação de Marx, neste contexto, é com a especulação e, por esta razão, a filosofia é o seu alvo. Aliás, ele é enfático ao dizer que

essas abstrações não têm em si, separadas da história real, nenhum valor. Elas podem servir apenas para facilitar o

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ordenamento do material histórico, para indicar a sucessão de seus diferentes estratos. Mas não oferecem, de maneira alguma, como a filosofia o faz, receita ou esquema através dos quais as épocas históricas possam ser apoiadas e compreendidas (MARX, 2007, p. 50).

A concepção de filosofia que Marx critica é a hegeliana,

enciclopédica, construída a partir de princípios universais. Marx defende que a filosofia deva ser capaz de transformar a realidade e não apenas interpretá-la. Ora, a fundamentação da educação parte destas balizas, quais sejam, (i) a crítica como procedimento a ser utilizado por todos os sujeitos dispostos a repensar a educação, (ii) a compreensão do homem na sua dinâmica social, (iii) a percepção do conhecimento como constructo do homem, a partir das relações sociais e (iv) as condições materiais como base da concepção de homem e de mundo. É neste contexto que investigaremos, a seguir, a importância do trabalho para Marx. Para o êxito desta análise, situaremos, de forma propedêutica, a questão do trabalho ao longo da história do pensamento e identificaremos a caracterização do trabalho para o filósofo de O Capital.

A QUESTÃO DO TRABALHO Evidente que a concepção de trabalho exaustivamente

analisada, dissecada e esquadrinhada por Marx em Formações Econômicas Pré-capitalistas e também em outros escritos refere-se a um momento histórico distinto do nosso. As necessidades do operário do século XIX são as mesmas do operário dos tempos atuais? Qual a importância de se pensar a distinção entre trabalho mecânico e trabalho intelectual? Enfim, as críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se de elementos para a fundamentação da educação? Temos observado, ao longo destas reflexões, que as críticas de Marx e Hume à filosofia podem se constituir em fundamentos da educação, todavia, a noção de trabalho também é importante

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neste processo. Não se pretende discutir as relações de trabalho, embora tratemos também delas, mas examinar as correlações deste conceito com a construção de fundamentos para a educação.

A noção de trabalho não tem seu nascedouro com o desenvolvimento do capitalismo. Seja como maldição divina no contexto da Bíblia Sagrada, ou no sentido de transformar intencionalmente a realidade e, portanto, tendo como premissa a relação entre o homem e a natureza, a noção de trabalho remete ao período antigo. A distinção entre trabalho manual e atividade intelectual remonta à filosofia clássica e, somente a partir do século XV, o trabalho manual passa a ser também reconhecido (ABBAGNANO, 1999, p. 964). Os pensadores modernos divergiam quanto à importância do trabalho manual, tendo Bacon ascendência ao experimentalismo, mas Descartes não considerava o trabalho manual, dada a sua compreensão de que é a razão humana a fonte e procedimento do conhecimento; por outro lado, Leibniz foi uma exceção, dado que “insistia na importância do trabalho dos artesãos, dos agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos músicos, não só em proveito da ciência, mas também da vida e da civilização” (ABBAGNANO, 1999, p. 965).

A partir do romantismo, começou-se a estabelecer a relação entre o trabalho e a natureza do homem. É curioso notar que a formulação que será objeto de críticas de Marx tem o seu nascedouro na formulação de Hegel, na medida em que o filósofo da Fenomenologia, em virtude de sua ênfase na questão da história, inseria o trabalho como mediador entre o homem e o mundo. O homem se humaniza na satisfação de suas necessidades e isto se dá pelo trabalho. Observamos o terreno fértil segundo o qual Marx irá se desenvolver posteriormente. Com efeito, Hegel considerava que o bárbaro era preguiçoso e, portanto, o trabalho vinculava-se à dimensão da civilização. De todo modo, a formulação hegeliana de trabalho, que inclui a percepção de que este leva à substituição

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do homem pela máquina, foi aceita por Marx como um presente. O autor de O Capital, no entanto, divergia de Hegel no sentido de estabelecer a distinção natural e material do trabalho, enquanto o filósofo idealista atribuía-lhe caráter espiritual. Crítico da metafísica, como já observamos no item anterior, Marx assevera que os homens distinguem-se dos animais pela capacidade de construção de seus bens materiais. O homem não é homem por ser da espécie dos hominídeos, mas porque transforma a sua vida. Aliás, na última tese contra Feuerbach, diz Marx: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo” (MARX, 1978, p. 53). Evidente que a concepção de homem está presente nesta tese e, portanto, a noção de trabalho é a espinha dorsal desta concepção. Ora, se a noção de trabalho é fundamental para a antropologia marxiana, então, a concepção de educação de Marx, necessariamente, inclui a noção de trabalho.

Embora a obra A Ideologia Alemã diga respeito à crítica da filosofia em sentido geral, o conceito de trabalho também é nela examinado. Marx acentua ainda mais a noção de trabalho, ao enfatizar que o homem não se humaniza individualmente, mas exatamente na coletividade, isto é, é preciso o outro homem para que, por meio do trabalho, nas relações sociais, desenvolva-se a própria dimensão da consciência. Este posicionamento se sustenta quanto ao trabalho não alienado, dado que o trabalho alienado refere-se ao distanciamento do homem como sujeito, tendo acepção de objeto ou de mercadoria. Com efeito, problematizamos: é o trabalho que humaniza o homem ou o homem que, por meio do trabalho, se humaniza? A ênfase de Marx deixa esta lacuna e, em que pese o fato de que o problema possa parecer linguístico, é preciso reconhecer que a ênfase do pensador de Os Manuscritos está no homem, em última instância, e não no trabalho, dado que não há trabalho em si, mas o trabalho existe em virtude do homem. Neste sentido, haveria uma essência do homem para Marx? Esta questão é complexa e evidencia que a crítica a Hegel

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parece não resolver o problema anunciado por Marx; afinal, é o homem o sujeito do mundo.

Com efeito, a noção de trabalho é aquela segundo a qual o homem pode transformar a sociedade; na perspectiva marxiana, então, a fundamentação da educação deve indicar mais este aspecto, isto é, o trabalho na perspectiva de transformação social. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pudemos perceber, embora Marx não tenha escritos específicos sobre educação, na consideração do ensino ou da prática pedagógica, e embora Hume tenha sido utilizado neste capítulo para fortalecer a crítica de Marx à filosofia, considerando a influência que este recebeu dos empiristas, há muitas contribuições que podem fundamentar a educação a partir da crítica desses autores à filosofia.

De forma precisa, a discussão do conceito de crítica realizada a partir de Descartes e Kant, da mesma forma que a argumentação de Hume quanto à filosofia e de Marx quanto à ideologia, constituíram-se de bases teóricas que propiciaram a construção de resposta à pergunta deste capítulo, qual seja: as críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se elementos para a fundamentação da educação? Observamos que sim, e estes elementos podem ser aqui retomados: (i) a crítica como procedimento a ser utilizado por todos os sujeitos dispostos a repensar a educação, (ii) a compreensão do homem na sua dinâmica social, (iii) a percepção do conhecimento como constructo do homem, a partir das relações sociais, (iv) as condições materiais como base da concepção de homem e do mundo e, por fim, (v) a noção de trabalho como fundamental para a humanização do homem.

Por derradeiro, essas reflexões não pretendem inserir Marx e Hume como interlocutores de problemas sociais ou educacionais e, como já dissemos, a responsabilidade pela

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imprecisão ou mesmo pela ousadia de aproximar Marx e Hume deu-se exclusivamente em virtude de que muito já se produziu sobre Marx e a educação e não faria sentido apresentar um capítulo no contexto da obra Filosofia e Educação: aproximações e convergências, sem que se apontasse para alguma possibilidade de originalidade.

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TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Ática, 1980.

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Capítulo 13 GGOOTTTTLLOOBB FFRREEGGEE EE OO EENNSSIINNOO DDAA MMAATTEEMMÁÁTTIICCAA

Lafayette de Moraes

Carlos Roberto Teixeira Alves

Gottlob Frege estava mergulhado no turbilhão amedrontador que envolveu a matemática no final do século XIX e começo do século XX, sendo arrastado pelas ondas e também ajudando a girar os ventos da mudança. Queria-se encontrar uma pátria para a matemática; afinal, ela era ou não uma ciência?

Nessa época, Frege era professor na Universidade de Jena, desde maio de 1874 (O’CONNOR e ROBERTSON, 2002), onde começou como Privatdozen, um professor privado, pago fora da folha oficial de salário da universidade. Ele tinha uma vida reclusa em Jena, com mínimo contato com colegas e mesmo com seus alunos, trabalhando com persistência, mas de modo ausente de alarde. Não participava de congressos, não fazia críticas a trabalhos externos, apenas cumpria a rotina de seu serviço de professor, consumindo suas horas vagas em seus projetos misteriosos. Seu único contato mais frequente, que o punha a par de tudo o que ocorria no mundo da matemática fora dos muros de Jena, era o filósofo Rudolf Eucken, que viria a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1908.

De sua residência reclusa de Jena não dava para ouvir todo o estardalhaço que o mundo da matemática estava

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sofrendo com as grandes transformações do ponto de vista filosófico. Mas Eucken deve ter falado muito disso a Frege. Este, por sua vez, devagar e em silêncio, tecia as páginas significativas que iriam dar rumo ao esforço de grandes matemáticos e filósofos para situar a matemática em um lugar entre as ciências e orientar os métodos de didática da matemática que culminariam na Matemática Moderna, que se aprende hoje nos colégios, e faz dela uma linguagem verdadeiramente universal, a mesma em todo lugar e aprendida do mesmo modo, segundo as mesmas ideias, por todos os alunos do mundo.

A CARREIRA EM JENA Friedrich Ludwig Gottlob Frege nasceu em Wismar, no

estado de Mecklenburg, na Pomerânia, à época sob controle da Suécia e que atualmente faz parte da Alemanha (O’CONNOR e ROBERTSON, 2002), no ano da Primavera dos Povos, em 1848, quando os ventos da democracia obrigavam as velhas monarquias europeias a adotarem constituições mais liberais. Parece que a mãe de Frege, Auguste Bialloblotzky, era de origem polonesa e que seu pai, Alexander Frege, mesmo sendo de origem alemã, não era ainda assim de Wismar, mas estava ali na época do nascimento de Frege a serviço, como diretor de uma escola para garotas, direção que seria mais tarde assumida por Auguste após a morte de Alexander, em 1866 (SLUGA, 1980, p. 41).

Frege ingressou na Universidade de Jena em 1869, uma instituição pequena, mas que já tinha renome. Frege escolheu a matemática, mas também cursou química e filosofia. Sua capacidade foi logo notada por seu professor Ernst Abbe, grande matemático. O apadrinhamento de Abbe foi importante para a estabilidade da carreira de Frege dentro de Jena (SLUGA, 1980, p. 41). O doutorado de Frege foi na Universidade de Göttingen, em 1873, com a dissertação Über

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eine geometrische Darstellung der imaginären Gebilde in der Ebene, a respeito das leis que fundamentam parte da geometria (O’CONNOR e Robertson, 2002). Na época, a prova de habilitação para se ascender a um cargo de professor dentro das universidades alemãs passava pela apresentação de uma tese de habilitação. O cargo de Privatdozen veio com a tese de habilitação Echnungsmethoden, die sich auf eine Erweitung des Grössenbegriffes gründen, que tratava dos grupos abelianos149. Em 1879, quando publicou o primeiro volume de sua grande obra, o Begriffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens (Notação conceitual, uma linguagem formal modelada sobre a aritmética, para o pensamento puro), conseguiu, por recomendação de Abbe, o cargo definitivo de ausserplanmässinger Professor (SLUGA, 1980, p. 42). O DEBATE FILOSÓFICO EM TORNO DA MATEMÁTICA

Havia, no século XIX, uma tendência histórica para se acreditar que o pensamento humano era naturalista. De fato, de meados do séc. XVIII até o início do século XIX, ocorreu um grande avanço nas pesquisas das ciências naturais, como a biologia e a medicina, a partir da observação dos corpos que a natureza fornecia. A tecnologia desse tempo, a energia motriz do vapor, a teoria sobre os fluidos e sobre os gases, a metalurgia, a química, tudo tirava seus resultados de uma ciência experimental baseada na observação dos fenômenos naturais. Seria uma consequência fácil situar todo pensamento humano dentro de uma esfera naturalista. Mas, no caso da matemática, as coisas não eram tão fáceis assim.

149 Um grupo abeliano é um grupo dentro do qual a relação entre os números permite a comutação deles. Em geral, dizemos que é abeliano o grupo G de números onde a

relação * entre x e y, com {x, y} ∈ G, tal que x*y = y*x. Por exemplo, o grupo adição e o grupo multiplicação são grupos abelianos, pois a + b = b + a e a · b = b · a.

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Enquanto Frege mantinha-se isolado na pequena Jena, um debate poderoso em torno da caracterização da ciência alimentava os esforços de filósofos e cientistas em Paris, centro intelectual do tempo. A pergunta fundamental era: a matemática é ou não é uma ciência empírica?

Se a matemática fosse um tipo de geometria, bem, é notável que a geometria de Euclides é muito empírica, baseada em nossa observação natural do universo. Por exemplo, a primeira definição do livro I dos Elementos de Euclides é a definição de ponto: ponto é aquilo que não tem partes. Euclides introduz a ideia de parte sem defini-la, porque o que concebe como parte é uma divisão em porções menores, uma noção meramente naturalista, baseada na observação cotidiana. Por outro lado, na época de Frege, os matemáticos János Boilay (húngaro) e Nikolai Lobatchevsky (russo) haviam inventado novas geometrias, nas quais os postulados euclidianos do paralelismo (base fundamental da geometria euclidiana) não valiam e que – ao menos na época, antes da relatividade de Einstein – era notável que essas novas geometrias não eram naturais, mas puramente conceituais.

Se a matemática, então, fosse uma aritmética, bem, a aritmética parecia ser bastante empírica também, pois começava com a contagem dos objetos e os números naturais pareciam ser fruto dessa contagem. No entanto, havia novas e curiosas aritméticas, como a soma de números reais e números imaginários. Os números imaginários eram puramente conceituais, pois tinham como unidade o número √�1. Mas havia aritméticas muito boas e elegantes para esses números imaginários, como os quatérnions de Hamilton.

Reduzir a matemática à geometria ou à aritmética resultava no mesmo problema: a matemática era uma ciência empírica ou era uma convenção linguística? Em termos filosóficos, o que era a matemática: um realismo ou um nominalismo?

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Frege, nesse ponto, foi categórico: todos tinham dúvidas em classificar a matemática porque ela ainda carecia de rigor nas suas definições fundamentais. Ele disse:

Com a matemática eu comecei. Pareceu-me a necessidade mais urgente melhorar os fundamentos dessa ciência. [...] A imperfeição lógica da linguagem era um obstáculo para tais investigações. Eu sugeri um remédio em meu Begriffsschrift. Então, vim da matemática para a lógica (FREGE in SLUGA, 1980, p. 42).

O trabalho de Frege, então, foi tornar rigorosos os

fundamentos da matemática e, assim, facilitar sua compreensão e estudo. O RIGOR LÓGICO COMO TENDÊNCIA

Frege não era o único que pensava em um rigor para a matemática, na época. Essa já era uma tendência em muitos círculos, e ninguém foi tão bom nisso quanto foram os matemáticos italianos. Um dos melhores matemáticos desse grupo era Giuseppe Peano, da Universidade de Turim. Sua habilidade era encontrar erros nas definições padrões, ou seja, Peano tinha a incrível faculdade de estabelecer com rigor as definições corretas de qualquer problema de matemática. Peano começou em Turim uma escola de ‘rigorosistas’, que enfatizavam a necessidade de estabelecer com clareza e com um mínimo de linguagem as bases de todo problema.

Peano começou, então, na década de 1880, seu projeto de reduzir a matemática toda à aritmética. Para isso, seria necessário estabelecer os fundamentos da aritmética. Foi o que Peano fez, lançando seus cinco axiomas, os Axiomas de Peano.

As notícias sobre Peano começaram a correr pelos círculos matemáticos da Europa. Mas, a fama do Grupo de Peano (que incluía os matemáticos Giovanni Vailati, Cesare Burali-Forti, Mario Pieri e Gino Fano) veio com o Congresso

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Internacional de Filosofia de Paris, que abriu em 1º de agosto de 1900. O matemático e filósofo inglês Bertrand Russell estava no Congresso e ficou impressionado com a sagacidade da equipe de Peano. Sempre os argumentos do grupo de Peano eram os mais concisos e os mais exatos, tinham um rigor invejável, seus argumentos eram inferidos de modo elegante e simples, e eles sempre encontravam com extrema facilidade os erros nos argumentos dos adversários, como também conseguiam estabelecer o argumento preciso para vencerem todas as questões. Russell reconheceu que a força do Grupo de Peano estava na notação matemática rigorosa que haviam criado. Russell, em sua autobiografia, tomou aquilo como uma revelação: o caminho estava na lógica, o problema se resolvia todo na lógica. O grande projeto então seria reduzir a matemática a uma lógica rigorosa e eficaz. Russell passaria a buscar os manuais e textos que tratasse de uma aplicação efetiva de um rigor lógico sobre a matemática. E, assim, acabou por saber do trabalho de Frege.

Não vamos entrar aqui no mérito de Russell, de como ele encontrou aquela antinomia perniciosa que atrapalhou severamente o projeto de Frege. Não há espaço aqui para expormos toda a teoria matemática por trás do Paradoxo do Barbeiro de Sevilha. Nem é esse o tema deste trabalho. Aqui vamos nos ocupar da grande contribuição de Frege para o ensino da matemática, a partir da concepção de uma linguagem matemática rigorosa. O LOGICISMO

Frege conhecia o trabalho de Peano desde antes do Congresso de Paris de 1900. Percebeu no projeto de Peano que a matemática estava sendo reduzida a uma aritmética, o que era bom, pois eliminava toda geometria e afastava as concepções muito vagas de Euclides. A redução da Aritmética a cinco pequenos axiomas e a redução da matemática a essa

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aritmética enxuta estava exatamente no rumo pretendido por Frege. Uma simbologia rígida, precisa, bem definida e facilmente manipulada segundo regras claras de inferência. A isso poderia ser reduzida a matemática. Esse projeto ficou conhecido como tese logicista ou logicismo.

O logicismo foi enunciado pela primeira vez por Frege e, depois, redescoberto independentemente por Russell, que com Whitehead escreveu o Principia Mathematica, com o objetivo de efetivar o logicismo (BARKER, 1969, p. 107). Em linhas gerais, essa tese logicista ensinava que havia uma relação entre a aritmética, juntamente com todo o restante do edifício matemático, e a lógica. Mas não poderia ser a lógica de Aristóteles. Seria necessária uma lógica mais ampla, extremamente formalizada (isto é, baseada em símbolos) e rigorosa (com definições precisas). O projeto, então, exigia que todos os símbolos não-lógicos da Teoria dos Números fossem definidos com rigor, de modo que não se pudesse confundir dois símbolos ou ter uma interpretação ambígua de qualquer deles. Assim, seria necessário definir rigorosamente aquelas expressões usadas por Peano, como sucessor imediato, zero, etc., que não têm a natureza lógica das conexões, como a soma (+) ou o produto (x). Em outras palavras, seria necessário criar uma lógica que fornecesse definições de onde se pudesse deduzir todos os Axiomas de Peano (BARKER, 1969, p. 107-108).

Desse modo, Frege pretendeu uma matemática toda baseada em uma teoria dos números, cujo cerne seria uma teoria dos números naturais, segundo os Axiomas de Peano. Conhecer e estudar matemática passava por um aprendizado da ideia e da natureza do que é um número.

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O APRENDIZADO DA MATEMÁTICA A PARTIR DA IDEIA DE

NÚMERO Frege preocupou-se com o ensino da matemática,

porque ele sabia do esforço genial que muitos matemáticos faziam para subirem de nível a partir de um conhecimento historicamente precário e confuso das noções básicas da matemática. Ele criticou o modo displicente e presunçoso com que se trata a noção básica de toda matemática, a noção de número inteiro:

Tanto é o conceito de número inteiro positivo tomado como livre de qualquer dificuldade, que se imagina possível tratá-lo de maneira cientificamente completa e adequada a crianças, cada uma delas podendo conhecê-lo precisamente sem maiores reflexões e sem se familiarizar como que outros pensaram a seu respeito. Falta, portanto, frequentemente aquele primeiro pré-requisito da aprendizagem: o saber do não saber (FREGE, 1980, p. 200).

Só é possível ensinar direito a partir de um aprendizado

bem feito. O ensino da matemática, para Frege, não pode ser confundida com uma ‘genealogia dos processos primitivos até os modernos algoritmos’. Não se pode ‘imaginar’ as fases primitivas da matemática e querer ensinar crianças fazendo uma analogia entre essas hipotéticas fases primitivas e as idades das crianças (FREGE, 1980, p. 202):

O que dizer então daqueles que, ao invés de prosseguir este trabalho onde ele não aparece ainda realizado, o menosprezam, se dirigem ao quarto das crianças ou se transportam para as mais antigas fases conhecidas de desenvolvimento da humanidade, a fim de lá descobrir, como J. S. Mill, algo como uma aritmética de pãezinhos e pedrinhas! Falta apenas atribuir ao sabor do pão um significado particular para o conceito de número150.

150 Frege está se referindo à seguinte passagem da obra de Mill (as sílabas em itálico são de Mill) [MILL, 1974, p. 256]: “A expressão ‘duas pedrinhas e uma pedrinha’ e a

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Ensinar matemática, então, não é ensinar uma História

dos processos matemáticos, mas ensinar as definições fundamentais de modo claro, para se evitar confusões e ambiguidades posteriores que viriam de uma interpretação psicológica do que seria a natureza dos números. Frege escreveu:

De resto, também em manuais de matemática aparecem expressões psicológicas. Quando alguém se sente na obrigação de fornecer uma definição sem ser capaz de fazê-lo, procura ao menos descrever a maneira como pode chegar ao objeto ou conceito em questão (FREGE, 1980, p. 203).

Um exemplo típico disso pode ser visto nestas gravuras

que seguem, tiradas de um livro didático elementar, típico manual de ensino inicial de aritmética para crianças, usado nas escolas norte-americanas nos meados do século XIX.

expressão ‘ três pedrinhas’, representam o mesmo estado físico. Eles são nomes dos mesmos objetos, mas desses objetos em dois estados diferentes: embora denotem as mesmas coisas, sua conotação é diferente”. Mill retorna ao problemas das pedrinhas mais adiante e diz que cada nome de número denota um fenômeno físico e conota uma propriedade física desse fenômeno (MILL, 1974, p. 256), e acrescenta (MILL, 1974, p. 611): “Que coisa é, então, que é conotado pelo nome de um número? Naturalmente, alguma propriedade pertencente ao aglomerado de coisas que chamamos pelo nome, e essa propriedade é a maneira característica de que a aglomeração é composta, e pode ser separada de parte.”

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Figura 1 e 2 – Livro didático de matemática de meados de século XIX, EUA (First book in arithmetic de Milton Browning Goff [1831-1890], fonte: http://digital.library.pitt.edu/n/nietz/, acessado em jul/2011). As crianças aprendem aqui, na página 1 do livro, que os números são quantidades de coisas. Na página 11 do livro as crianças aprendem uma analogia entre a linguagem natural e a simbologia matemática, levando para dentro da aritmética as ambigüidades da compreensão da linguagem natural. Ainda mais: os alunos são convidados a entender que uma operação entre números é uma operação entre quantidades.

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Note como os números são meramente uma contagem de coisas (depois o aluno aprende a somar ‘quantidades’ de um mesmo objeto como as contas de um ábaco).

Frege critica severamente esse modo empirista de encarar a Teoria dos Números. Uma verdadeira aritmética deve ser livre de interpretações segundo ‘pontos de vista’. Ela deverá ser analítica, ser óbvia e limitada a um único modo de ser descrita. Ele escreveu:

A maioria dos matemáticos em investigações desta natureza contentam-se em satisfazer suas necessidades imediatas. Se uma definição presta-se de bom grado às demonstrações, se em nenhum momento esbarra-se em contradições, se conexões entre temas aparentemente distantes entre si deixam-se perceber, e se deste modo resulta uma ordem e regularidade superiores, costuma-se então considerar a definição suficientemente estabelecida, indagando-se pouco por sua legitimidade lógica. Este procedimento tem, em todo caso, o mérito de não facilitar o desvio completo com respeito aos fins. Também eu sou de opinião que as diferenças devem ser confirmadas por sua fecundidade, pela possibilidade de com elas serem conduzidas demonstrações. Mas deve-se atentar bem ao fato de que o rigor de uma demonstração permanece ilusório, ainda que a cadeia de raciocínio não tenha lacunas, enquanto as definições apenas justificarem-se retrospectivamente, por não se ter esbarrado em nenhuma contradição. Portanto, tem-se sempre obtido de fato apenas uma certeza empírica, e deve-se estar sempre preparado para encontrar por fim ainda uma contradição que faça desmoronar todo o edifício. Por isso acreditei dever remontar aos fundamentos lógicos gerais um pouco mais do que a maioria dos matemáticos talvez julgue necessário. Nesta investigação ative-me firmemente aos seguintes princípios: deve-se separar precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo; deve-se perguntar pelo significado das palavras no contexto da proposição, e não isoladamente; não se deve perder de vista a distinção entre conceito e objeto. Para obedecer ao primeiro princípio empreguei a palavra representação sempre em sentido psicológico, e distingui as representações dos conceitos e objetos. Se não se observa o segundo princípio, fica-se quase obrigado a tomar como

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significado das palavras imagens internas e atos da alma individual, e deste modo a infringir também o primeiro. Quanto ao terceiro ponto, não passa de ilusão pretender que seja possível converter um conceito em objeto sem alterá-lo (FREGE, 1980, p. 204).

Após uma longa exposição, em que critica os pontos de

vista anteriores de outros matemáticos e filósofos a respeito da aritmética, e após apresentar o seu entendimento a respeito do que considera ser a aritmética em si mesma, Frege conclui assim151:

§ 87. Espero ter neste escrito tornado verossímil que as leis aritméticas sejam juízos analíticos, e consequentemente a priori. A aritmética seria, portanto, apenas uma lógica mais desenvolvida, cada proposição aritmética uma lei lógica, embora derivada. As aplicações da aritmética à explicação da natureza seriam elaborações lógicas de fatos observados106; calcular seria deduzir. As leis numéricas não necessitariam, como acredita Baumann107, de confirmação prática para serem aplicáveis ao mundo exterior; pois no mundo exterior, na totalidade do espacial, não há conceitos, propriedades de conceitos e números. Portanto, as leis numéricas não são propriamente aplicáveis às coisas exteriores: não são leis da natureza. São, porém, aplicáveis a juízos que valem para coisas do mundo exterior: são leis das leis da natureza. Não acertam uma conexão entre fenômenos da natureza, mas uma conexão entre juízos; e entre estas incluem-se também as leis da natureza (FREGE, 1980, p. 267).

Aritmética é pura linguagem, resolvida no âmbito de

uma linguagem rigorosa, sem nada de empírico a considerar. Ensinar aritmética é ensinar os algoritmos que permitam inferências a partir de uma quantidade discreta de símbolos. Aritmética é manipulação de símbolos segundo leis lógicas.

151 As notas 106 e 107 que aparecem no trecho são do próprio Frege. Na nota 106, ele acrescenta que “a própria observação já implica uma atividade lógica”. Na nota 107, ele faz referência à obra de Baumann: “Baumann, Die Lehren von Zeit, Raum und Mathematik, vol. II, p. 670”.

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CONSEQUÊNCIA DO FORMALISMO DE FREGE: A DIDÁTICA DA MATEMÁTICA MODERNA

É assumido na história da filosofia que Frege foi o fundador da Filosofia Analítica, que via a solução dos problemas filosóficos e científicos em uma estruturação rigorosa da linguagem, em uma lógica forte. Russell, Wittgenstein, Carnap e Whitehead são alguns dos outros nomes dessa linha de pensamento. É claro que o projeto analítico não vingou universalmente, como queriam seus fundadores, mas ao menos vingou na matemática. O progressivo formalismo a que foi submetida a matemática levou ao estruturalismo da Escola de Bourbaki, na década de 1950-60. Todos os livros didáticos de matemática seriam escritos, a partir da década de 1970, seguindo esse formalismo rígido, começando pelos conjuntos das Teorias dos Números, base fundamental da aritmética conforme foi a proposta de Frege. George Steiner já escrevia, em 1958, que havia uma crise da linguagem poético-literário, que na ciência e na matemática o discurso preferido era o formal, simbólico e rigoroso, e apontou como a matemática, depois do grande movimento formalista que se iniciou no fim do século XIX, tornou-se desprovida totalmente de empirismo (STEINER, 1988, p. 32-33):

É no curso do século XVII que significativas áreas da verdade, da realidade e da ação afastam-se da esfera da manifestação verbal. De modo geral, é correto dizer que, até o século XVII, o enfoque e o conteúdo predominantes nas ciências naturais eram descritivos. A matemática tem uma longa e brilhante história da notação simbólica; mas até mesmo a matemática era a representação taquigráfica de proposições verbais aplicáveis ao arcabouço da descrição linguística e significativas no interior deste. O raciocínio matemático, com algumas exceções que se puderam notar, estava estribado nas condições materiais da experiência. Estas, por sua vez, eram ordenadas e governadas pela língua. Durante o século XVII,

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isso deixou de ser a regra geral, iniciando-se uma revolução que transformou para sempre o relacionamento do homem com a realidade e alterou, de modo radical, as formas de pensar.

Com a formulação da geometria analítica e da teoria das

funções algébricas, com o desenvolvimento do cálculo por Newton e Leibniz, a matemática deixa de ser uma notação dependente, um instrumento do empírico. Converte-se em uma linguagem fantasticamente fecunda, complexa e dinâmica. E a história de tal linguagem caracteriza-se pela progressiva intraduzibilidade. Ainda é possível verter para equivalentes verbais, ou ao menos para estreitas aproximações, os processos da geometria clássica e da análise funcional clássica. Depois que a matemática se torna moderna, contudo, e começa a demonstrar sua enorme capacidade de concepção autônoma, tal tradução torna-se cada vez menos possível. As grandes arquiteturas de forma e de significado concebidas por Gauss, Cauchy, Abel, Cantor e Weirstrass afastam-se da linguagem em um ritmo sempre crescente. Ou, mais exatamente, exigem e desenvolvem linguagens próprias tão articuladas e complexas como aquelas do discurso verbal. E entre essas linguagens e as de uso comum, entre o símbolo matemático e a palavra, as pontes ficam cada vez mais frágeis, até por fim desmoronarem.

O grande mérito de Frege, então, foi ter iniciado a instalar os trilhos que construiriam essa linguagem que é típica da matemática e que a Escola de Bourbaki levaria para dentro dos manuais escolares de matemática, conhecida como Matemática Moderna. Há bastante crítica de pedagogos a respeito desse formato. Aqui não é o lugar desta discussão. Só para encerrar esse viés didático, cabe citar Maria Bicudo e Antonio Garnica (2003, p. 55):

O texto matemático tem um estilo que o diferencia de qualquer outro texto. Construído a partir de uma gramática

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própria, a Lógica Matemática, e explicitado com os recursos de uma linguagem artificial, no sentido de ser constituída por símbolos que pretensamente dispensam semântica, o texto matemático é apresentacional no sentido de ocultar os caminhos de elaboração das argumentações nele expostas. Re-traçar (sic) essa trajetória de construções é um dos papéis que alunos e professores têm à frente. Para esse re-traçar sugere-se, então, um trabalho hermenêutico do texto matemático para as salas de aula.

Como professor, Frege sofria com seu novo modo de

encarar a matemática, a lógica e o ensino desse conhecimento. Em 1922, um novo administrador da Universidade de Jena, Max Vollert, investigou a eficiência das aulas de Frege (MILKOV, 2001, p. 563). Muitos professores de filosofia tinham Frege em alta conta, sabiam que ele estava ensinando algo muito importante, a ponto de mandar seus filhos frequentarem as aulas dele, mas ninguém entendia o que ele estava fazendo. Ele tinha poucos alunos, pois os estudantes tinham grande dificuldade em acompanhar seu raciocínio. Max Vollert concordava que ele era um professor inteligentíssimo, isso era fora de questão, por isso Frege continuava professor em Jena. Mas Frege viveu, já em seu tempo de professor, as dificuldades que aquele rigor impunha, as exigências que fazia: uma mente muito preparada para entender a manipulação e o jogo de símbolos que, por culpa de Frege, a matemática se tornaria nos séculos XX e XXI. REFERÊNCIAS

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Capítulo 14 NNIIEETTZZSSCCHHEE:: PPAARRAA UUMMAA PPEEDDAAGGOOGGIIAA DDAA AAMMIIZZAADDEE

Jelson Roberto de Oliveira

Pretende-se, neste texto, mostrar como, partindo de um

diagnóstico da crise educacional e cultural de seu tempo, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche estabelece um novo papel para a educação, o cultivo de si, fazendo da pedagogia uma atividade estética. Para isso, analisa-se o papel pedagógico da solidão como forma de cultivo de homens nobres, em contraposição à vulgarização da cultura moderna, e chega-se à noção de amizade como espaço experimental, único ambiente no qual o projeto de renovação da cultura se torna factível. FILISTEÍSMO E JORNALISMO: A VULGARIZAÇÃO DA CULTURA MODERNA

Nietzsche tem um grande interesse pelo tema da educação desde os seus primeiros escritos, seja porque ele mesmo se reconhece como fruto dela, seja porque acredita que ela desempenha um papel relevante no processo de renovação cultural. Esse interesse explicita-se em textos como as Considerações extemporâneas, principalmente a primeira, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, e a terceira, Schopenhauer como educador, proferidas na Akademisches Kunstmuseum, em Basiléia, no ano de 1872. O tom geral desses textos de juventude não só fazem de Nietzsche um filósofo da

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educação ou um professor preocupado com o seu papel sociocultural mas, sobretudo, demonstram a sua inquietação teórica com a crise educacional e cultural de seu tempo, marcado, segundo ele, pelo “filisteísmo cultural” ou pela “cultura jornalística”, que conduziram a sociedade moderna às raias da banalização. Se a reflexão nietzschiana nesse momento doa à Filosofia um papel importante, ela também parte de um diagnóstico: “todo filosofar é restringido a uma aparência de erudição” (FT, 2)152 sem que seja cumprida a sua exigência maior, que é “viver filosoficamente” (FT, 2). O filisteísmo cultural, termo do qual Nietzsche reivindica a autoria, se contrapõe, portanto, “aos filhos das musas, aos artistas, aos autênticos homens da cultura” (Co. Ext. I, 2), que seriam os responsáveis pela separação entre vida e pensamento, tornando a educação um processo de nivelamento e vulgarização da cultura.

Contra esse processo, Nietzsche esboça, com cada vez mais força, a ideia de uma cultura superior, baseada na Filosofia e nas Artes, e para a qual a educação teria um papel preponderante. Distanciando-se do espírito utilitário que tomara conta do ambiente educacional e levara ao enfraquecimento da cultura, como resultado nefasto do projeto de universalização da educação pela via da intervenção do Estado, cujo crescimento foi amplamente favorecido pelo projeto iluminista, Nietzsche tenta retomar uma espécie de erudição aristocrática que não se deixa render pela utilidade,

152 Nesse capítulo, usaremos as siglas convencionais para citação dos escritos de Nietzsche: FT (A Filosofia na época trágica dos gregos); Co. Ext. I (Primeira Consideração Extemporânea – Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino); Co. Ext. III (Terceira Consideração Extemporânea – Schopenhauer como Educador); HH (Humano, Demasiado Humano); A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); KSA (Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe - edição crítica em 15 volumes, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari – a sigla será seguida do número do volume, número do fragmento, ano de escrita e página da edição); BM (Além de Bem e Mal); CW (O Caso Wagner); EH (Ecce Homo); CI (Crepúsculo dos Ídolos). Seguindo as letras, para as obras publicadas, constarão os números arábicos referentes ao número do aforismo da obra.

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mas se beneficia da aristocracia espiritual predefinida pela própria natureza. De um lado, Nietzsche expõe um diagnóstico contundente que aponta os resultados maléficos da extensão da educação e da cultura para todos; de outro, ele evidencia a urgência de que a Filosofia e as Artes sejam retomadas como experiências existenciais. A Filosofia é a estratégia contra a divisão do trabalho científico que passou a marcar a educação como um ensinar por disciplinas, atomizando e fragmentando o saber. O exemplo contrário é a cultura clássica, na qual a Filosofia garantia a unidade entre conhecimento e vida, cultura e natureza. A mera erudição jamais seria capaz de ver e tratar os verdadeiros problemas da cultura, os mais profundos. Só uma educação aristocrática, baseada na Filosofia, que valorizasse e promovesse a liberdade espiritual em alto grau, poderia oferecer alguma saída para a crise cultural. Para isso, o saber deveria ser despido de sua erudição esvaziada e deveria ser vivido como experiência vital. É como vida que o conhecimento retomaria o seu caráter transformador e efetivo, dirigindo-se para o estabelecimento de castas intelectuais que realizariam assim a tarefa da educação.

É claro que as ideias de Nietzsche podem soar bastantes esdrúxulas para um tempo, como o nosso, no qual a educação é anunciada como direito de todos e dever do Estado. O filósofo alemão é bastante conhecido pelo uso frequente de uma linguagem dura e intensa para compensar a solidez com que os valores estão impregnados na sociedade. Ele acredita que sua luta pela renovação da cultura precisa interferir e desacomodar e, para isso, o modo de expressão de sua filosofia também vai se fazendo cada vez mais cortante, incisivo e perigoso. O que talvez seja evidente em seus textos sobre a educação, entretanto, seja o diagnóstico (mesmo que discordemos de sua receita), que é também uma denúncia que faz ver o quanto, por detrás dos discursos oficiais que tentam garantir educação para o maior número de pessoas possível,

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esconde-se um processo de empobrecimento da cultura. Em outras palavras: as políticas governamentais de promoção da educação prezam pela quantidade e bem pouco pela qualidade; o que é para todos acaba sendo desqualificado, fraco e nivelado. Enquanto se entretém o povo com pouco, a velha elite (que nem sempre é uma elite espiritual) acaba por se alojar em núcleos educacionais de razoável qualidade, lugar a partir de onde implementa sua estratégia de domínio. Ao denunciar esse modelo, Nietzsche também explicita como essa elite econômica ainda não é uma elite cultural e que a ideia de uma “aristocracia espiritual” nada tem a ver com esse tipo de sistema social de dominação pela via do poder político ou das benesses econômicas. O modo de pensar nietzschiano sempre se manteve avesso a essa hipótese. Sua preocupação é com a mediocridade cultural promovida por esses grupos políticos e econômicos que se mantém num status quo ainda de forma grosseira, ao qual chamam de verdadeira cultura ou de cultura nacional. Isso não passaria de uma mentira erudita. SOBRE O PRESENTE DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO

O nivelamento cultural diagnosticado por Nietzsche, no seu tempo, seria resultado do fato de que a cultura perdera sua relação com a natureza e a vida, no sentido de que se tornara meramente um acúmulo de informações a serviço do estado ou do mercado e reduzira-se a formar profissionais, funcionários e técnicos, e não verdadeiros homens livres. Faltam os guias espirituais e sobram os mestres sem vocação, os meros funcionários do saber e “filisteus da cultura” (Co. Ext. III, 3). Como mero eruditismo, a sabedoria se tornou simples acúmulo utilitarista de saberes desconectados e estéreis. Nietzsche, ao valorizar a Filosofia e as Artes (ao invés do historicismo e do jornalismo dominantes), pretende resgatar o verdadeiro papel da educação: educar é ensinar o além-do-homem, no sentido de promover a criação e a

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superação de si; é despertar os sentidos para elevação da cultura; é afirmar a tragicidade da vida e preparar para lidar com ela; é educar para o raro, o excepcional e o superior.

Para que isso seja possível, o filósofo mostra a urgência de um novo modelo educacional, uma nova academia, que se dedique à formação dos mestres cultivados na solidão e experimentados em relações amistosas, cuja efetividade não pode se dar em todos os homens, mas naqueles que a natureza dotou dessas possibilidades. A educação não é mera instrução ou atividade de repasse de informações, mas uma espécie de estética de si, na qual os indivíduos são auto-formados a partir das vivências mais próprias.

A reflexão de Nietzsche parte de uma constatação: a educação ocorre pelo esforço e pela disciplina e exige boa dose de rigor, aspereza e severidade, como antídotos “à indolência, o comodismo, em suma, esta propensão à preguiça” (Co. Ext. III, 1), que age na maioria dos indivíduos: “Ao ser perguntado que natureza encontrou nos homens em todos os lugares, o viajante que viu muitos países e povos e vários continentes respondeu: eles tem uma propensão à preguiça” (Co. Ext. III, 1). No geral, os homens, afirma Nietzsche, se deixam levar pelos costumes e pelas opiniões, temendo “os aborrecimentos que lhes seriam impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas” (Co. Ext. III, 1). Viver com “modos emprestados e opiniões postiças” (Co. Ext. III, 1) é viver segundo o rebanho, sem coragem de se tornar aquilo que se é, esquecendo-se que “todo homem é um milagre irrepetível” (Co. Ext. III, 1), que o homem é “novo e incrível como todas as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso” (Co. Ext. III, 1). Por preguiça o homem deixa a si mesmo em reserva, despoja-se de seu gênio, vive “fora do seu eixo”, alimentando-se de “opiniões recebidas” e “fantasias frouxas”, matando o tempo e ocupando-se com banalidades.

“Viver segundo a nossa própria lei e conforme a nossa própria medida” (Co. Ext. III, 1) passa a ser o papel reservado

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a cada indivíduo humano e por ele passa a verdadeira educação. Todo processo educativo não é outro senão aquele que cria a emancipação do rebanho, a coragem de desprender-se, de assumir a responsabilidade pela própria existência, de não jurar obediência a não ser a si mesmo: “ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu” (Co. Ext. III, 1). A educação é essa “empresa penosa e perigosa de cavar em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser” (Co. Ext. III, 1). As metáforas arquitetônicas da escavação e da construção de pontes servem de símbolo para a transposição (como superação) e a escada (como aprofundamento). Superar a si mesmo é lidar com o fluxo do rio heraclitiano que escorre sob os nossos pés como sinal da vida que não cessa e que exige algum tipo de arte como atividade estética de dar forma e figuração estética ao que não se deixa fixar. É descer ao oco de si mesmo para revisitar as opções próprias, a se “despojar setenta vezes das sete peles” (Co. Ext. III, 1) que recobrem, como invólucro, o homem em sociedade. Trata-se de um risco de ferimento tão grave “que nenhum médico poderia curá-lo” (Co. Ext. III, 1). EDUCAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO E O PAPEL EMANCIPATÓRIO DA

ARTE Para esse processo perigoso e arriscado, Nietzsche

requisita a educação:

Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores (Co. Ext. III, 1).

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Como processo de libertação, a educação não leva ao homem o que ele não tem, mas desvela nele aquilo que ele tem e que fora negado pela pressão do rebanho que tenta reduzir o que é próprio ao nível do que é comum e vulgar. É esse próprio que resiste à educação, que quer nivelar e tornar igual e que se torna, por isso mesmo, o motivo central de outro modo de pensar e educação, como uma atividade artística de libertar o homem em si mesmo, de alforriar esse seu próprio, como o seu essencial, recusando tudo o que é artificial ou artefato: “E eis aí o segredo de toda formação, ela não procura os membros artificiais, os narizes de cera, os olhos de cristal grosso” (Co. Ext. III, 1). Esse tipo de educação constrói uma imagem falsa e degenerada do homem e faz de toda a cultura uma peça de horrores, tédio e cansaço.

Ao contrário, aquela outra educação é somente libertação, extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas, ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva noturna; ela é imitação e adoração da natureza, no que esta tem de maternal e misterioso, ela consuma a natureza quando, conjurando os acessos impiedosos e cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira (Co. Ext. III, 1).

É como libertação que a educação se torna uma espécie

de jardinagem, que retira as ervas daninhas sem anular o que é próprio, mas, ao contrário, consumando o que é natural. Nietzsche reconhece, na tradição educativa do Ocidente, justamente, a tentativa vã de anular aquilo que é natural e humano, demasiado humano. Esse modelo educativo não só não alcançou esse objetivo, como também levou o homem ao adoecimento e ao enfraquecimento. Ao pensar num novo modelo de educação e ao associá-la a uma atividade estética, Nietzsche destaca o papel de canalizar artisticamente os aspectos negativos, impiedosos e cruéis, levando-os “a bom

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termo”. Ao invés de anular, canalizar, portanto: a educação é um exercício de jardinagem, que liberta no homem a sua natureza própria, favorecendo o seu crescimento como forma de disponibilizar mais material para a sua arte. Crescidas, as plantas podem ser moldadas com mais criatividade e engenho.

Nessa tarefa, Nietzsche é radicalmente anti-platônico, se pensarmos na posição do filósofo grego, por exemplo, no livro X da República, para quem os poetas (e os artistas em geral) não teriam lugar na sociedade ideal porque eles afastam o homem da verdade, agem sobre a componente irracional da alma e levariam o homem a assumir comportamentos desmedidos e imorais. A arte deveria ser condenada porque suscita as paixões que deveriam ser abafadas, encanta e ilude a alma, libertando-a da dor, não porque a elimina, mas porque a esconde e faz esquecer. A arte comunica o erro, sendo uma forma de magia sobrenatural. Não só Nietzsche, ao contrário de Platão, valoriza a arte no processo educativo, mas, sobretudo, a valoriza justamente por aquilo que ela tem de condenável para Platão: o entusiasmo e a embriaguez. A força emancipatória da arte estaria ligada, em Nietzsche, a essa capacidade de escapar dos freios racionais153 que são, em si mesmos, rédeas de nivelamento que padronizam os comportamentos e vulgarizam e anulam as verdades mais próprias de cada ser.

Ora, é preciso notar que tanto a referência a Homero como educador de toda a Grécia, como a censura ao

153 No Íon, Platão escreve: “Assim também a Musa: só a Musa forma os inspirados, e por meio desses constitui uma cadeia de outros, tomados pela inspiração divina. Todos os bons poetas épicos, não pela sua arte, mas porque possuídos e inspirados pela divindade, exprimem todos aqueles belos cantos seus, assim como os bons poetas mélicos; e, como aqueles agitados por furor coribântico, dançam, tendo perdido todo freio racional, assim os mélicos, perdido todo o freio racional, compõem aquelas suas belas poesias. Apenas alcançam uma harmonia e um ritmo, agitam-se todos por um furor báquico possuídos pela divindade; e como bacantes que chegam a rios de mel e leite, quando são possuídos pela divindade, tendo então perdido toda a razão, assim a alma dos poetas mélicos – o que eles mesmos contam” (PLATÃO, Íon, 533e-504a.)

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tratamento que ele conferia aos deuses e heróis, tem por trás de si uma tradição muito anterior a Platão. Xenófanes já reconhecia que, “desde o início, todos aprenderam seguindo Homero” (1996, p. 70, Frag. 10), reconhecimento que não o impede de criticar o conteúdo de tais ensinamentos: “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo, adultério e fraude mútua” (1996, p. 70, Frag. 11). Heráclito, por sua vez, censura Homero em termos ainda mais ásperos: “Homero merecia ser expulso dos certames e açoitado, e Arquíloco igualmente” (1996, p. 89, Frag. 42). Diógenes Laércio também relata que Heráclito costumava dizer que “Homero merecia ser afastado dos concursos a pauladas, como também Arquíloco”. Segundo o mesmo Diógenes Laércio, Xenófanes “escreveu versos épicos, elegias e jambos contra Hesíodo e Homero e se fez censor de suas afirmações sobre os deuses” (IX, 18). Sexto Empírico dá uma versão de versos atribuídos a Xenófanes: “Os deuses são acusados por Homero e Hesíodo de tudo o que entre nós é vergonhoso e repreensível e vemo-los cometer roubo, adultério e empregar entre eles a mentira”. No geral, esses depoimentos dão conta da importância da poesia para a educação grega mas, ao mesmo tempo, testemunham a mudança de concepção que atinge seu auge na condenação dirigida por Platão à poesia e ao poder inebriante da palavra, segundo ele a maior representante do pensamento do vulgo, dos que não pensam, dos oportunistas e demagogos. Cultura essa que repousava em grande parte sobre as palavras dos poetas, que gozavam de um imenso prestígio e que eram frequentemente utilizadas para nortear a vida e a ação política dos cidadãos. A condição dessa crítica, obviamente, tem a ver com o processo de laicização da palavra, que perde gradativamente seu tom de sacralidade na pólis grega. Se antes a palavra poética era inquestionável, o projeto socrático pretende levar os jovens a não admitir as palavras que lhes são transmitidas sem submetê-las ao exame da razão.

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A razão, para Platão, é o que estimula o homem a resistir aos impulsos irracionais da alma, mantendo “a calma em meio aos infortúnios” e entendendo que “não vale a pena levar muito a sério nenhuma das coisas humanas” (PLATÃO, A República, 604c). Entendendo a razão como “a nossa melhor parte”, Platão não vê outro caminho para a educação senão a sua afirmação e, consequentemente, a negação da arte:

Seria justo, então, pegá-lo [o artista-poeta] e colocá-lo numa posição correspondente à do pintor, pois, criando obras que, confrontadas com a verdade, têm pouco valor, assemelha-se a ele e, relacionando-se com outra parte da alma, a que é como ele, mas não com a melhor, por aí também se iguala a ele. E assim, já teríamos motivo justo para não acolhê-lo numa cidade que deve ser governada por boas leis, pois ele desperta e nutre essa parte da alma, tornando-a forte, destrói a razão, como quando numa cidade alguém, passando o poder para mãos dos maus, entrega-lhes a cidade e causa a morte dos mais bem educados (PLATÃO, A República, 605b).

O texto Platônico também remete, de alguma forma, à

metáfora da jardinagem usada por Nietzsche: “Ela [ a imitação poética] os nutre e irriga, quando devia deixar que secassem, e dá-lhes o comando sobre nós, quando devia fazê-los submissos a nós para que nos tornemos melhores e mais felizes e não piores e mais infelizes” (PLATÃO, A República, 606d). Obviamente, entre Platão e Nietzsche está Schopenhauer, que já tinha resgatado os artistas do limbo ao qual foram condenados por Platão e para quem ela deveria ser considerada como o único conhecimento verdadeiro, porque conduz à intuição e à exposição das Ideias e da própria Vontade, como coisa-em-si do mundo. A posição de Nietzsche é bastante próxima a essa de Schopenhauer, portanto – não à toa é no texto sobre Schopenhauer como educador que essas ideias de valorização da arte para a educação aparecem. Ao contrário de Platão, portanto, para quem a educação deveria “deixar que secassem” a “impulsividade e os apetites da

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alma” (PLATÃO, A República, 606d) consideradas contrárias à razão, em Nietzsche a educação deveria conjurar “os acessos impiedosos e cruéis” e os “levar a bom termo”. Ou seja, ao invés da anulação proposta por Platão (deixar secar), os apetites da alma deveriam ser canalizados (podados, preparados, na forma do cultivo de um horto) de forma artística. A arte teria, então, em Nietzsche, a função educativa da jardinagem que evoca o “terrível esforço, o tremendo dever de me educar a mim próprio” (Co. Ext. III, 2) que Nietzsche vislumbra no papel do educador que, no limite, é equivalente à profissão do jardineiro, e para o que Schopenhauer seria o exemplo perfeito. Schopenhauer é, confessa Nietzsche, o mestre, “o educador filósofo” que poderia “não somente descobrir a força central, mas também impedir que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças” (Co. Ext. III, 2). É tarefa dos educadores buscar a harmonização artística das forças: “eu imaginava que sua tarefa educativa consistiria principalmente em transformar todo homem num sistema solar e planetário que me revelasse a vida, e em descobrir a lei de sua mecânica superior” (Co. Ext. III, 2).

Para Nietzsche, ao contrário, os educadores alimentaram um “ódio hereditário do que é natural” (Co. Ext. III, 2) que condenou a alma moderna a “ser estéril e sem alegria” (Co. Ext. III, 2). No tempo das doenças e das epidemias, Nietzsche reconhece a urgência de educadores como médicos da cultura: “Jamais tivemos tanta necessidade de educadores morais e jamais foi tão pouco provável encontrá-los; nas épocas em que os médicos são mais necessários, na ocasião das grandes epidemias, é então que eles estão também mais expostos ao perigo” (Co. Ext. III, 2). A urgência dos verdadeiros mestres espirituais é equivalente à sua raridade: o verdadeiro educador não é aquele que permanece, conforme Kant, “atrelado à Universidade”, submetido aos governantes, salvando “as aparências de uma fé religiosa”, suportando “viver entre colegas e estudantes” segundo o modelo do

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sistema educacional do iluminismo, que fez da Filosofia uma mera “filosofia de professores” (Co. Ext. III, 2).

O filósofo, como verdadeiro renovador da cultura, deveria tomar as rédeas, portanto, do processo educativo. O filósofo deveria ser, sobretudo, um filósofo da educação e não reduzir a sua tarefa de educador ao atendimento das necessidades do Estado: “Então, como vê o filósofo a cultura de nossa época? Completamente diferente, é preciso confessar, de todos estes professores de filosofia satisfeitos com o Estado em que vivem” (Co. Ext. III, 3). A solidão e o aprofundamento no que lhe é próprio fazem o verdadeiro filósofo educador ver com outros olhos a cultura de seu tempo e apontar nela o que há de equivocado e doentio. Seu diagnóstico é contundente:

Quando ele pensa na pressa geral, no crescimento vertiginoso da queda, no desaparecimento de todo recolhimento, de toda simplicidade, ele parece quase discernir os sintomas de uma extirpação e de um desenraizamento completos da cultura. As águas da religião estão em refluxo e deixam atrás de si pântanos e poças; as nações se opõem novamente com a maior hostilidade e desejam se quebrar totalmente. As ciências, praticadas sem medida e abandonadas ao mais cego laissez-faire, se retalham e dissolvem tudo em que se acredita firmemente; as classes cultas e os Estados civilizados são arrastados por uma corrente de dinheiro gigantesca e desprezível. Jamais o mundo foi mais mundano, mais pobre de amor e de bondade. As classes cultas não são mais os faróis ou os asilos em meio a todo esse turbilhão de espírito secular. A cada dia, elas se tornam mais inquietas, mais vazias de amor e pensamento. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, tudo, aí incluídas a arte e a ciência desta época. O homem culto degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, por ele quer negar com mentiras a doença geral e é um estorvo para os médicos (Co. Ext. III, 3).

A falta de “amor e de pensamento” é equivalente

simbólico da falta de amizade e de solidão não apenas como sintoma, mas como causa da epidemia que obteve da educação

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o seu aval. Quando “tudo na terra é determinado exclusivamente pelas forças mais grosseiras e mais malignas, pelo egoísmo dos proprietários e pelos déspotas militares” (Co. Ext. III, 3), o filósofo educador, como médico da cultura, faz-se urgente e, ao mesmo tempo, é ameaçado pelo doente. Há risco de contaminação quando se quer negar a doença. Cabe ao filósofo educador erguer mais uma vez a “imagem do homem”: “no meio destes perigos da nossa época, quem então doravante consagrará seus serviços de sentinela e cavalheiro à ideia de humanidade, ao tesouro do templo sagrado e intangível que as várias gerações pouco a pouco acumularam?” (Co. Ext. III, 3). Nietzsche fala aqui da herança cultural que forma aquilo que ele chama, então, de humanidade. Contra ela haveria o risco da animalidade: o desvio da imagem do homem faz com que a cultura caia “na animalidade, ou seja, numa rigidez mecânica” (Co. Ext. III, 3). Note-se que a animalidade não é contraposta à humanidade, mas ao mecanicismo racional, ao pensamento científico dominante, ao tecnicismo do progresso e do pensar por disciplinas de forma fragmentada. Quem animaliza o homem, portanto, é o sistema educacional que tenta enquadrá-lo nos seus rígidos esquemas de aperfeiçoamento e não aquele que o capacita para lidar com sua animalidade – ou mesmo com suas próprias monstruosidades. VIVER FILOSOFICAMENTE: A MELHOR FORMA DE ENSINAR

Por isso, no lugar de um modelo educativo de transmissão de saber segundo valores, costumes e uma mentalidade mercantil e estatal, Nietzsche pretende uma educação filosófica que ocorra pelo exemplo de vida. Se ele sabe que a Filosofia é o único conhecimento capaz de conduzir o homem para a plena liberdade de si mesmo (e não as ciências fragmentárias e os conhecimentos tecnicistas), ele também sabe que ela precisa ser antes vivida. O erro maior do

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modelo tradicional é que ele ensina o que não vive. O maior desafio da Filosofia é ensinar o que antes é vivido ou, melhor ainda, ensinar pela própria vida, educar pela forma de viver. É isso o que Nietzsche elogia em Schopenhauer, seu mestre:

Estimo tanto mais um filósofo quanto mais ele está em condições de servir de exemplo. Ninguém duvida, por exemplo, de que ele pudesse arrastar no seu cortejo povos inteiros [...]. Mas o exemplo deve ser dado pela vida real e não unicamente pelos livros; deve portanto ser dado, como ensinavam os filósofos da Grécia, pela expressão do rosto, pela vestimenta, pelo regime alimentar, pelos costumes, mais ainda do que pelas palavras e sobretudo mais do que pela escrita. Como estamos longe ainda, na Alemanha, desta corajosa visibilidade de uma vida filosófica! (Co. Ext. III, 3)

A Filosofia é antes, para Nietzsche, “vida filosófica que

integra todas as “coisas humanas” e “mais próximas”. A Filosofia não passaria, então, de uma “doutrina das coisas mais próximas” (KSA 8, 40 [16], de 1879, p. 581), ou até mesmo de uma espécie de “dieta pessoal” que “busca meu ar, minha altura, meu clima, minha espécie de saúde, pelo rodeio de minha mente” (A, 553). Como vida, a Filosofia exige atenção para tudo o que fora negligenciado pela tradição – e não apenas negligenciado, mas justamente contra o que toda a tradição educativa, na esteira de Platão, empenhou-se: regime alimentar, lugar e clima, repouso, enfim, tudo o que diz respeito à vida é de interesse filosófico, porque toda filosofia (ou todo o pensamento em geral) não é mais do que um sintoma e um efeito da própria vida.

Perguntar-me-ão porque é que contei todas estas coisas pequenas e, segundo o juízo tradicional, indiferentes; causarei assim dano a mim próprio, e tanto mais quando estou destinado a representar grandes missões. Resposta: estas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, recreação, toda a casuística do egoísmo – são muito mais importantes do que tudo quanto se concebeu e até agora se considerou

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importante. É aqui justamente que importa começar, aprende de novo. O que a humanidade até agora teve em séria consideração não são sequer realidades, são simples imaginações; em termos mais estritos, mentiras provenientes dos instintos maus de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo – todos os conceitos de ‘Deus’, ‘alma’, ‘virtude’, ‘pecado’, ‘além’, ‘verdade’, ‘vida eterna’... Mas foi neles que se procurou a grandeza da natureza humana, a sua ‘divindade’... Todas as questões da política, da organização social, da educação, foram de cima ao fundo totalmente falsificadas porque se tomaram como grandes homens os homens mais perniciosos – porque se ensinou a desprezar as coisas ‘pequenas’, ou seja, as preocupações fundamentais da vida... [...] O necessário não é apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar – todo o idealismo é mentira perante o necessário -, mas para o amar... (EH, Porque sou tão sagaz, § 1).

É preciso “aprender de novo” a valorizar a vida como

assunto filosófico e educativo, buscar a natureza humana como algo digno e grandioso, negar os idealismos em nome da valorização das coisas humanas, transformar a educação numa experiência vital. Compreendendo a vida como o assunto da filosofia, Nietzsche considera as grandes verdades descobertas pela Filosofia e ensinadas pela educação como meras ilusões imagéticas, cujo resultado não foi outro senão o adoecimento do próprio homem, cansado e entediado consigo mesmo de tal forma que se tornou um animal preguiçoso, preferindo o conforto da ignorância ou a segurança mentirosa dos conceitos do que o trabalho rigoroso e arriscado da verdadeira cultura. As próprias instituições educativas, portanto, teriam se rendido a essa preguiça cultural. No tempo em que a preguiça e a ignorância viram epidemia, Nietzsche dirige um novo convite para a cultura: “nos educar contra o nosso tempo” (Co. Ext. III, 3), tornar-se um extemporâneo a partir da vivência mais própria de tudo o que o tempo favorece de mais seu, porque a superação do tempo presente é uma “vantagem de conhecer verdadeiramente este tempo”, ou seja, é do

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diagnóstico corajoso do tempo vivido que nasce a possibilidade de sua superação.

Para esse projeto, os modos tradicionais de organização do sistema educativo e os tradicionais estabelecimentos de ensino já não são suficientes: “Como frequentemente se fica satisfeito com este amálgama de espíritos bicórneos e instituições envelhecidas que tem o nome de liceu!” (Co. Ext. III, 2), ironiza Nietzsche. Resta então, a pergunta: onde e como esse projeto teria alguma efetividade? A PEDAGOGIA DA SOLIDÃO: O CULTIVO DE SI COMO META DA

EDUCAÇÃO Ainda no texto de 1872, Nietzsche dá uma pista: a

solidão e a amizade. Se a marca do filisteu da cultura é a busca por notoriedade e aplauso da massa (como aprovação do seu tempo e não, justamente, como negação), o verdadeiro educador deve fugir disso. “É triste [escreve o filósofo] vê-lo [o filisteu] à caça do menor traço de notoriedade para si; e seu triunfo estrepitoso, muito estrepitoso, quando ele foi finalmente lido, tem algo de doloroso e comovedor” (Co. Ext. III, 3). Vivendo com medo de perder seus preciosos bens e honras, o filósofo já não pode mais “assumir sua atitude pura e verdadeiramente antiga com relação à filosofia” (Co. Ext. III, 3), ou seja, já não pode mais vivê-la. Vive aqui e acolá, o filósofo, sentindo-se o mais solitário dos homens na medida em que assume a Filosofia como sua forma de vida. Viver filosoficamente é, sobretudo, viver solitariamente, o mais das vezes “desenganado na sua afanosa procura de homens totalmente confiáveis e compassivos” (Co. Ext. III, 3).

Nietzsche reconhece esse traço de verdade no seu mestre Schopenhauer: “Ele era verdadeiramente um solitário; realmente, nenhum amigo com a mesma disposição de temperamento se moveu para consolá-lo” (Co. Ext. III, 3). A solidão radical é a característica mais própria do filósofo

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educador, porque é nela que ele experimenta a si próprio. A solidão tem um papel profilático e higiênico, porque ajuda a limpar da sujeira que acumulamos na vida social. Ela é a premissa, a condição e a garantia da liberdade espiritual. Por isso ela se torna tão perigosa e a sociedade, em geral, ergue-se contra ela, nas mais variadas formas:

Em todo lugar onde houve poderosas sociedades, governos, religiões, opiniões públicas, em suma, em todo lugar onde houve tirania, execrou-se o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde nenhum tirano pode penetrar, a caverna da interioridade, o labirinto do coração: e isto deixa enfurecido os tiranos (Co. Ext. III, 3).

A solidão, como condição, é o caminho para a elevação e

é ela que conduz para a mais radical das libertações, aquela que forma o campo próprio no qual nenhum poder exterior pode penetrar. O labirinto abriga a alma do filósofo como quem guarda um monstro perigoso. É nela que o filósofo põe “a salvo sua liberdade no fundo de si próprio” (Co. Ext. III, 3) e nisso torna-se perigoso.

Não à toa toda a moral e a cultura foram, para Nietzsche, uma tentativa de anular a solidão, de tornar o homem um animal de rebanho, a serviço do que a educação se tornou um processo de domesticação, de adestramento, de enfraquecimento. A solidão é a fuga da “coerção social”, do “cerceamento e confinamento na paz da comunidade” (GM, I, 11). A educação, na medida em que é tarefa de adestramento, contribuiu para o enfraquecimento do ser humano:

Chamar a domesticação de um animal seu ‘melhoramento’ soa, para nós, quase como uma piada. Quem sabe o que acontece nos adestramentos em geral duvida de que a besta seja aí mesmo ‘melhorada’. Ela é enfraquecida, tornam-na menos nociva, ela se transforma em uma besta doentia através do afeto depressivo do medo, através do sofrimento, através

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das chagas, através da fome (CI, Os ‘melhoradores’ da humanidade, 2).

Domado e enjaulado, o homem enfraqueceu-se e tornou-

se uma besta ainda mais doentia, ainda mais perigosa e ameaçadora. O monstro não é, nesse caso, o que o homem é, mas o que ele se torna depois do adestramento. A cultura, segundo Nietzsche, “não teve uma vez mais nenhum outro meio de torná-lo inofensivo, fraco, senão adoecê-lo – esta foi a luta com o ‘grande número’” (CI, Os ‘melhoradores’ da humanidade, 2). Como processo de adestramento, a educação exigiu a anulação do indivíduo e de tudo o que lhe é próprio. Não raro, os filósofos educadores solitários acabam, por não se deixarem adestrar, mal-compreendidos:

Eles sabem, esses solitários e livres de espírito, que parecerão constantemente em qualquer circunstância, diferentes daquilo que eles próprios pensam de si; embora só queiram a verdade e a honestidade, se tece em torno deles uma rede de mal-entendidos; e a violência do seu desejo não poderá impedir, apesar de tudo, que emane de sua ação uma bruma de opiniões falsas, de acomodações, de meias-verdades, de silêncios complacentes, de interpretações errôneas (Co. Ext. III, 3).

Não raro esses homens, assim incompreendidos, tomam

semblantes terríveis e “é possível que se autodestruam por serem o que são” (Co. Ext. III, 3), ou seja, por recusarem o processo de padronização exigido pela cultura. É por isso que é preciso construir um espaço no qual esses homens grandiosos possam deixar fluir as energias que, do contrário, podem levar à destruição. Esse espaço não é outro senão a amizade. O valor pedagógico da solidão, portanto, está intimamente ligado à amizade como espaço de disputa e luta entre iguais: “Justamente estes solitários têm necessidade de amor, têm necessidade de companheiros com os quais possam se mostrar abertos e francos, tal como o são para si mesmos, e

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em presença de quem cessaria a tensão do silêncio e da dissimulação” (Co. Ext. III, 3). Só na amizade, portanto, haveria lugar para a verdade absoluta do que é próprio a cada indivíduo. COMUNIDADE DE SOLITÁRIOS

Só entre amigos ele pode se mostrar sem dissimulação. Na amizade, os indivíduos mostram-se “abertos e francos” como se estivessem em frente a si mesmos. O amigo é outra forma de eu, um terceiro com o qual o próprio eu pode dialogar. É o amigo, como uma necessidade, que faz suportar a solidão. É na amizade que Nietzsche vislumbra a possibilidade de experimentação desse seu projeto educativo: o amigo resgata o eu de sua profundidade avassaladora, aquela que deixa surgir o perigo da dissolução do próprio eu, que transforma cada indivíduo numa “erupção vulcânica”: “Retirem deles estes amigos, e vocês provocarão um perigo maior ainda” (Co. Ext. III, 3), adverte o filósofo que viveu em solidão, tendo inventado para si mesmo os espíritos livres como figuração dos amigos impossíveis:

Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os “espíritos livres”, aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem o título de Humano, Demasiado Humano: não existem esses “espíritos livres”, nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes – uma compreensão para os amigos que faltam (HH, Prólogo, 2).

A amizade, de um lado, “mantém a alma alegre” no

meio da solidão, que é penosa e dolorida, mas necessária como condição da elevação do espírito. Como terapêutica, a amizade

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integra também a possibilidade da disputa e da querela, da infidelidade e do rompimento – formas de fugir do escuro radical de si mesmo que não é outro senão o próprio fosso da loucura ou da morte. Nietzsche, no texto de 1872, fala desse sentimento citando o escritor alemão Heinrich Von Kleist, que se suicidara em meio a profunda tristeza e amargura, juntamente com sua amiga Henriette Fogel, que havia desenvolvido um câncer que lhe retirara todas as expectativas de uma vida feliz:

Heinrich Von Kleist morreu por causa desta ausência de amor, e o mais terrível remédio que se pode aplicar aos homens excepcionais é fazê-los recolher-se tão profundamente a si mesmos; cada uma de suas fugidas para o mundo exterior tomaria a forma de uma erupção vulcânica (Co. Ext. III, 3).

De um lado, há o reconhecimento, portanto, do grande

perigo da solidão na radical opção por si mesmo; e, de outro, a necessidade da amizade como forma de vida vitoriosa que ajude a suportar esse perigo do isolamento. O modelo schopenhauriano é assumido por Nietzsche: a vida feliz é a vida heroica, “o modelo daquele que luta com enormes dificuldades por aqui e que de uma maneira ou de outra aproveita a todos e que acaba por vencer” (SHOPENHAUER apud NIETZSCHE [Co. Ext. III, 3]). É na capacidade de enfrentar fadigas e pesares, insucessos e ingratidões que se vislumbra a capacidade de entender a vida mesma como uma tensão e, mesmo aí, desejá-la ardentemente e ter a capacidade de torná-la Filosofia, matéria e assunto filosófico. A vida alimenta a Filosofia com “questões insólitas”, que devem ser tematizadas por todos os que não querem simplesmente passar pela vida e por toda cultura que se queira superior: “Por que é que vivo? Que lição devo aprender com a vida? Como me tornei o que sou e por que devo eu sofrer por ser assim?” (Co. Ext. III, 3). Perguntas para as quais o teatro

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público dos homens vulgares emite rapidamente respostas que soam cômicas ao homem de exceção.

O heroísmo é a arma pela qual o verdadeiro educador educa: porque nele os obstáculos da vida se apresentam como condição para o crescimento e para a elevação. O papel da educação e da cultura em geral não seria outro que fazer nascer em nós o artista e o filósofo, como processos de elevação: “A humanidade deve constantemente trabalhar para engendrar os grandes homens – eis aí a sua tarefa, e nenhuma outra” (Co. Ext. III, 6). A educação deveria cultivar num jovem, afirma Nietzsche, a compreensão de si mesmo

sobretudo como uma obra carente da natureza, mas ao mesmo tempo como um testemunho das intenções maiores e mais maravilhosas desta artista: ela malogrou, dever-se-ia dizer; mas quero honrar sua grande intenção colocando-me a seu serviço, a fim de que mais uma vez tenha mais sucesso (Co. Ext. III, 6).

É assim que a cultura deveria se colocar a serviço da

natureza: “filha do conhecimento de si, e da insatisfação de si, de todo indivíduo” (Co. Ext. III, 6), a cultura vivencia o indivíduo e assume seu expediente artístico.

Ora, é na amizade, mais uma vez, como forma superior de amor, que o homem se vê a si mesmo:

É difícil levar alguém a este estado de conhecimento impávido de si, porque é impossível ensinar o amor; pois é no amor que a alma adquire, não somente uma visão clara, analítica e desdenhosa de si, mas também este desejo de olhar acima de si e buscar com todas as suas forças um eu superior, ainda oculto não sei onde. Assim, somente aquele que prendeu seu coração a algum grande homem recebe deste fato a primeira consagração da cultura (Co. Ext. III, 6).

É na amizade e no amor aos homens superiores que a

cultura adquire capacidade para elevação. O filósofo

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educador, portanto, torna-se o amigo, um desejável objeto de amizade e de veneração. Na amizade, como relação com interpares escolhidos entre os grandes homens, a verdadeira educação seria factível,

de modo que os homens com os quais vivemos pareçam um campo onde jazem os esboços das mais preciosas esculturas, onde tudo nos grita: ‘Venham, nos ajudem, cheguem-se a nós, aproximem o que se harmoniza, nossa aspiração para devir integralmente é imensa’ (Co. Ext. III, 6).

A metáfora estética é usada novamente para inferir o

sentido de crescimento possibilitado nas relações amicais. Num tempo em que a cultura como um todo se torna maléfica aos indivíduos nobres e na qual o Estado e todas as demais instituições concorrem para o seu desaparecimento, é na amizade entre espíritos livres que a educação alcançaria o seu papel. Só aí a educação poderia recuperar o seu desejado estado de comoção (cf. Co. Ext. III, 8) e os riscos de cataclismo que envolvem todo grande empreendimento cultural. Nietzsche, inspirado por Diógenes, escreve sobre a filosofia universitária: “é exatamente isto que seria preciso escrever como epitáfio na tumba da filosofia universitária: ‘Ela não comoveu ninguém’” (Co. Ext. III, 8). Como uma “velha alcoviteira”, a Filosofia não desperta mais o desejo de filósofos “tão pouco viris”, não os comove mais. Como amigos, os grandes homens são também os amigos da sabedoria e tem como tarefa a reconstituição de sua jovialidade:

Se é assim que ocorre na nossa época, então, a dignidade da filosofia é esmagada; parece como se ela mesma se tenha tornado algo ridículo e indiferente: de modo que todos os seus verdadeiros amigos têm o dever de testemunhar contra esta confusão, ou pelo menos mostrar que somente são ridículos e indiferentes estes falsos servidores e estes indignos representantes da filosofia. Mais ainda, eles próprios provam

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com suas ações que o amor da verdade é uma coisa terrível e poderosa (Co. Ext. III, 8).

De um lado, então, a amizade seleciona os exemplos

raros de homens superiores que são os únicos verdadeiros educadores; e, de outro, é do seu exemplo que nasce a amizade da sabedoria que caracteriza a própria Filosofia como tarefa amorosa num tempo em que ela, velha, já não desperta mais o tesão dos seus admiradores. É por esses dois motivos que a amizade merece grande destaque na obra de Nietzsche e, em termos pedagógicos, abre a possibilidade de efetivação desses desafios educativos apontados pelo autor no seu diagnóstico. É preciso, então, voltar à pergunta sobre a efetividade desse projeto: de que forma a amizade se constitui como espaço pedagógico para Nietzsche? AMIZADE EXPERIMENTAL

A amizade é tida por Nietzsche como uma espécie de reunião de solitários numa “espécie de claustro para ‘espíritos livres’” (KSB 5, p. 188). Se a solidão e a extemporaneidade são as marcas do filósofo educador nos escritos do chamado primeiro período, no segundo período a solidão é a condição para a liberdade do espírito e possibilita ao homem um excesso de alegria consigo mesmo que o leva em direção aos amigos, fazendo da amizade não só um lugar de celebração dos espíritos livres, mas, sobretudo, um espaço de partilha da alegria.

Numa carta a Erwin Rohde, datada de 15 de dezembro de 1870, Nietzsche escreve: “Eu não suportarei por muito tempo a atmosfera das universidades. Assim, um dia ou outro, nós romperemos esse jugo: para mim esta é uma coisa decidida. E nós fundaremos então uma nova Academia grega”. A nova Academia é uma alternativa à vida nas universidades, cuja instituição não desperta mais o interesse do jovem professor,

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tamanha a sua descrença em relação à possibilidade de que a educação de sua época favoreça a elevação da cultura. Além disso, como Academia grega, a nova experiência teria como marca fundamental justamente a amizade, como uma comunidade de iguais que se autoeducassem a si mesmos, numa perspectiva aristocrática. O que Nietzsche vislumbra é um tipo de “centro espiritual”154, no qual se pudessem livremente produzir e em que se favorecessem “as inclinações que temos para criar no domínio da arte e da literatura” (Co. Ext. I, 1). Como escreve Nietzsche, em carta a Rohde, de 15 de dezembro de 1870,

lá nos instruiremos mutuamente, nossos livros não serão mais do que anzóis para ganhar companheiros para a nossa comunidade claustro-artística [klösterlich-künsterliche Genossenschaft]. Nós viveremos, trabalharemos, nos alegraremos uns aos outros – esta é, talvez, a única forma de trabalhar por todo o mundo (KSB, 3, p. 166).

Aos poucos, Nietzsche entende que esse tipo de

comunidade filosófica pode contribuir muito mais para a renovação da cultura do que os velhos estabelecimentos de ensino de seu tempo. E foram várias as experiências das quais ele participara desde a juventude: a Germânia, a Franconia, a expectativa em relação a Bayreuth (tão marcante no que tange à amizade com Richard Wagner, que envolvia também o nome de Schopenhauer) e, depois disso, os dias idílicos de Sorrento, logo após o rompimento com o músico. Foi na experiência de Sorrento que Nietzsche pôde vislumbrar com mais força o papel pedagógico da amizade: nessa pequena colônia, ao pé do mediterrâneo italiano, Nietzsche, Malwida von Meysenbug, Paul Brenner e Paul Rée fundaram um claustro natural para leituras, debates e longos passeios, que foram

154 Carta a Carl von Gersdorff, de 16 de fevereiro de 1868, e a Paul Deussen, de 2 de junho do mesmo ano.

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fundamentais para a elaboração de Humano, demasiado humano, o livro que marca a conquista de um pensamento próprio de Nietzsche.

Numa carta enviada a Reinhardt von Seydlitz (KSB 5, p. 188), Nietzsche demonstra todo o seu entusiasmo com essa experiência:

Este será um tipo de claustro para “espíritos livres” [...] Por que eu te relato isso? Oh, você pode adivinhar meu desejo secreto: - nós ficaremos cerca de um ano em Sorrento. Eu voltarei em seguida a Basileia, a menos que eu não edifique meu claustro em estilo superior, quero dizer, “a escola de educadores” (onde esses se eduquem a si mesmos).

Nietzsche encontra, em Sorrento, a chance de efetivar o

seu desejo de fundar a sua “escola para educadores” (KSA 8, 23 [136], de 1876-1877, p. 261), um lugar no qual a vida pudesse servir de fonte para o conhecimento (GC, 324), fazendo com que um “punhado de certos homens” (Hundert-Männer-Schaar) fosse capaz de renovar a cultura a partir da afirmação de um “estilo” de vida baseada na liberdade de espírito e na partilha da alegria: “Educar os educadores! Mas os primeiros educadores devem educar-se a si mesmos! E para isso eu escrevo” (KSA 8, 5 [25], de 1875, p. 46]). A experiência comunitária de seleção de espíritos livres, através dos laços amicais, torna-se uma escola de educadores porque nela uns educam os outros pela vida e pela capacidade de transformar o próprio pensamento em algo vivo – justamente o oposto daquilo que se pratica nos estabelecimentos de ensino modernos.

Num fragmento intitulado Escola de Educadores, Nietzsche enumera as diferentes personalidades que deveriam fazer parte dessa experiência e possibilitar uma educação recíproca, coletiva e transdisciplinar: “o médico, o físico, o economista, o historiador da cultura, o especialista da história da Igreja, o especialista dos gregos e o especialista do Estado”

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(KSA 9, 4[5], de 1875, p. 40). O desejo de Nietzsche parte da constatação de que nos estabelecimentos tradicionais “os educadores, eles mesmos não são educados” (KSA 9, 23[136], de 1876-1877, p. 452). Contra a cultura filisteísta e jornalística de seu tempo, a única possibilidade vislumbrada por Nietzsche é o recolhimento, numa espécie de vita contemplativa (GC, 329), na qual homens superiores pudessem experimentar a si mesmo através dos laços de amizade. É por ela que se pratica a vida como arte e a solidão como atividade artística: enquanto arte de viver, a amizade para Nietzsche recupera o ideal epicurista do Jardim: “viver amigavelmente em comum na maior simplicidade” (KSA 8, 17 [50], de 1876, p. 305). A simplicidade é o antídoto contra a pressa, o barulho e o excesso da vida moderna: “Nós viveremos na maior simplicidade”, escreve Nietzsche a Carl von Gersdorff (KSB 5, p. 163), pois ele sabe que “para uma liberação intransigente do espírito se preferirá a vida mais simples” (KSA 8, 23[157], de 1876-1877, p. 462).

Se a exigência do filósofo é que a educação se dê como experiência e não apenas como ensino-aprendizado, é só nesse tipo de comunidade de amigos que esse modelo se torna factível. Educando os educadores, a amizade faria deles um “bom cimento” (KSA 7, 29 [26], de 1873, p. 634) para uma nova cultura. Como reunião de homens raros, inicialmente pensada a partir dos ideais românticos e metafísicos dos primeiros escritos, pouco a pouco vai sendo pensado como um espaço prático, um lugar experimental que reunisse “homens num grande centro para engendrar homens melhores” (KSA 9, 3 [75], de 1875, p. 36). É primeiro educando a si mesmos que esses homens raros poderiam contribuir para o crescimento cultural de todos. Trata-se de uma forma de consagração da vida ao conhecimento. Só os amigos podem fornecer a base para a boa educação e, por isso, Nietzsche chega a escrever como sexto mandamento do espírito livre: “Farás com que teus filhos sejam educados por teus amigos” (KSA 8, 19[77], de

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1876, p. 348). O curioso fragmento esclarece o papel dado por Nietzsche para a amizade: o verdadeiro educador é o amigo e só ele pode ensinar o teu filho porque ele é igual a você.

Assim, a amizade se torna o espaço pedagógico fundamental, porque ela possibilita o verdadeiro crescimento individual, criando laços relacionais mais intensos e verdadeiros, não mais baseados somente na compaixão (ajudar o outro), mas no trabalho artístico sobre si mesmo no sentido de se embelezar para o amigo. Na solidão da vida contemplativa, os pares agem na igualdade de condições e isso contribui para que um se apresente ao outro da melhor forma possível:

Fica sem resposta a questão de saber se somos mais úteis ao outro indo a seu encontro e ajudando-o – o que pode suceder de modo apenas superficial, quando não é uma interferência e remodelação tirânica -, ou fazendo de si mesmo algo que o outro vê com deleite, como um belo, tranquilo jardim fechado, que tem muros altos para as tempestades e a poeira da estrada, mas também um portão hospitaleiro (A, 174).

No fim, é como “pequenos Estados experimentais” (A, 453)

que as relações de amizade estabelecem as possibilidades de vivências próprias e de cultivo artístico de si mesmo entre iguais. Ao contrário do que ocorre na cultura doentia, na amizade “os indivíduos se tratam como iguais” (BM, 259) e vinculam-se pela via da resistência, da simplicidade, da coragem e da alegria que consolidam o caráter de uma “aristocracia sã” (BM, 259)155. É como espaço de expressão de força, imposição de estilo e disciplina do caráter, que a amizade se torna espaço pedagógico experimental de favorecimento da cultura. Mais uma vez, Nietzsche recorre à metáfora da jardinagem para falar do cultivo de plantas raras:

155 Sobre a amizade como possibilidade de efetividade de uma “ética” em Nietzsche, ver meu livro Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011).

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Por que não conseguiríamos sucesso com o homem do mesmo modo como os chineses com uma árvore – de modo que de um lado haja rosas e do outro peras? Esses processos naturais de seleção do homem, por exemplo, que até então foram praticados com lentidão e imperícia extremas, poderiam estar nas mãos dos próprios homens; e a velha infâmia das raças, das lutas sociais, dos ardores nacionalistas e dos ciúmes pessoais, poderia, portanto, ser reduzida a curtos períodos de tempo – tudo ao menos de modo experimental. – Continentes inteiros se dedicariam desde então a essa experimentação consciente! (KSA 9, 11 [276], de 1881, p. 547).

Na amizade, o homem conquista a plena liberdade e

autonomia porque nela a experimentação possibilita que ele se torne rei de si mesmo: “o melhor que fazemos nesse interregno, é ser o máximo possível nossos próprios reges [reis] e fundar pequenos estados experimentais. Nós somos experimentos: sejamo-lo de bom grado” (A, 453). Como experimento, o homem precisa decidir-se por isso e aproveitar as relações como forma de cultivo de si. A educação, como tarefa artística, cumpre a regra necessária então: “Uma coisa é necessária. – ‘Dar estilo’ a seu caráter – uma arte grande e rara” (GC, 290). E é só na amizade que esse projeto se torna efetivo e nela vislumbramos a urgência de que a educação comece sendo uma pedagogia da solidão e se torne também uma pedagogia da amizade.

REFERÊNCIAS

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_______. Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 15ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. _______. Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. _______. A Gaia Ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. _______. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2ª ed., 2000. _______. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2ª ed.; 3ª reimpressão. _______. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio; São Paulo: Loyola, 2007. _______. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70, 1995. _______. Fragmentos Finais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. _______. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. _______. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York: DTV/Walter de Gruyter & Co., 1988. _______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York: DTV/Walter de Gruyter & Co., 1986. PLATÃO. Diálogos. Volumes XII-XIII. Leis e Epínomis. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1980. _______. A República. Ou sobre a justiça, diálogo político. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

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Capítulo 15 FFRREEUUDD EE OO IIMMPPOOSSSSÍÍVVEELL OOFFÍÍCCIIOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Fátima Caropreso

Só pode ser educador quem é capaz de compreender, por empatia, a alma infantil e nós adultos não compreendemos as crianças porque deixamos de compreender nossa própria infância (FREUD, 1913, p. 191).

No prólogo ao livro de August Aichhorn (1925), Freud

diz considerar o educar, assim como o governar e o curar, como ofícios impossíveis. Ele não expõe, nesse prólogo, as razões que o levaram a considerar a educação uma tarefa impossível; no entanto, podemos inferir algumas dessas razões a partir das hipóteses elaboradas, ao longo de sua obra, para explicar o desenvolvimento do psiquismo. Nesse texto, vamos tentar extrair do pensamento freudiano reflexões que parecem significativas para a questão da educação. Em vão procuraríamos em Freud dicas positivas acerca da tarefa de educar. Sua maior contribuição, nesse campo, parece consistir em desfazer ilusões acerca do poder da educação e do controle que a mesma pode exercer sobre o desenvolvimento do indivíduo.

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O INSTINTO DE AUTO-PRESERVAÇÃO É O MOTOR DE TODA

APRENDIZAGEM A prematuração do ser humano ao nascer, e o

consequente estado de desamparo em que se encontra em seus primeiros anos de vida, é o motor de todo o desenvolvimento psíquico. Esse desamparo é o que leva o indivíduo a abrir mão das suas formas primárias imediatas de satisfação; a conhecer o mundo e perceber que sua sobrevivência depende de um outro ser humano; e, consequentemente, a se identificar com os valores morais e demais normas culturais que lhes são transmitidas, em grande parte, por esse outro.

Desde o Projeto de uma psicologia (1895/1950), Freud defendeu, como uma das premissas fundamentais de sua teoria, a hipótese de que o funcionamento psíquico é governado pela tendência a manter o nível de excitação o mais baixo possível, isto é, por uma tendência para evitar o desprazer. Os estímulos provenientes do mundo externo, em princípio, poderiam ser descarregados pela via reflexa; contudo, aqueles que se originam no próprio corpo, dando origem às necessidades vitais, ao menos em parte, não poderiam ser descarregados por tal via. Tais estímulos imporiam a exigência de que uma ação específica fosse executada, como a obtenção de alimento no caso da fome. Freud formula a hipótese de que, em um momento inicial, todo funcionamento psíquico trabalharia no sentido da busca da descarga da excitação da forma mais direta possível, ou seja, todos os processos mentais seriam regidos pelo “princípio do prazer”, como Freud o denomina em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911). No entanto, o desprazer resultante desse modo de funcionamento primário faria com que, ao menos parte do mesmo, fosse inibido, dando origem a um modo de funcionamento secundário, no qual o princípio de prazer seria substituído pelo “princípio de realidade”. Nesse segundo tipo de funcionamento, o mundo externo seria levado em consideração na busca da satisfação e,

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portanto, certo nível de desprazer passaria a ter que ser tolerado, em detrimento da descarga imediata da excitação. A partir de então, tornar-se-ia possível e necessário conhecer o mundo, e esse conhecimento, segundo Freud, teria como meta última propiciar a satisfação de uma necessidade. Assim, seria o instinto de sobrevivência que impulsionaria o indivíduo ao pensamento e ao conhecimento do mundo externo. Freud recusa, portanto, a ideia de um impulso autônomo para o conhecimento. Em Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), ele afirma – referindo-se à curiosidade sexual, mas podemos estender isso para a curiosidade em geral – que o desejo da criança pelo conhecimento “não desperta espontaneamente, incitado talvez por alguma necessidade inata de estabelecer as causas; ele surge sob o estímulo do instinto de auto-preservação” (FREUD, 1908a, p. 212).

A partir do momento em que o princípio de realidade é instaurado, a dependência do indivíduo em relação a um outro pode ser percebida, e as imposições desse outro, o qual é veículo das normas culturais, se impõem ao sujeito como condições para obter o seu amor e cuidado e, portanto, como condições para a própria sobrevivência. O educador teria o papel de representar os interesses da cultura e do princípio de realidade nesse processo e, assim, auxiliar o Eu em sua tarefa de dominar o princípio do prazer. Em Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico, Freud observa:

A educação pode ser descrita, sem mais vacilações, como incitação a vencer o princípio do prazer e substituí-lo pelo princípio de realidade; portanto, quer acudir em auxílio daquele processo de desenvolvimento em que o eu se vê envolvido, e para este fim se serve das recompensas de amor por parte do educador (FREUD, 1911, p. 228-229).

As medidas educativas visariam exigir da criança

tolerância a certa quantia de desprazer resultante da renúncia à satisfação imediata das exigências pulsionais, apresentando

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como recompensa a tal sacrifício o amor daquele que educa. Essa renúncia exigida, no entanto, muitas vezes seria ocasião de conflitos e sofrimento psíquico. Nesse embate entre natureza e cultura – e na submissão da natureza à cultura – é que se daria o desenvolvimento do indivíduo, de acordo com o pensamento freudiano. Freud, contudo, chama a atenção para o fato de que a natureza não deve e não pode ser esquecida. Na verdade, a natureza impõe limites intransponíveis a esse processo de subordinação do indivíduo à cultura. Essa parece ser uma das principais contribuições do seu pensamento para a educação. A AÇÃO DA NATUREZA SOBRE O DESENVOLVIMENTO CULTURAL

DO INDIVÍDUO Uma das constatações fundamentais de Freud, como se

sabe, foi a presença da sexualidade na infância e a importância da mesma para o desenvolvimento do ser humano. De acordo com a teoria freudiana, as pulsões sexuais manifestar-se-iam, nos primeiros anos de vida, de forma plural, ou seja, elas não estariam organizadas e subordinadas a uma atividade sexual e a um objeto específicos, como na sexualidade adulta. Ao contrário, uma série de pulsões distintas – de “pulsões parciais”, como são denominadas pelo autor – se manifestariam e buscariam a satisfação de forma independente entre si156. Freud caracteriza a sexualidade infantil como “auto-erótica”, uma vez que as pulsões sexuais parciais encontrariam satisfação no próprio corpo, sendo independentes, portanto, de um objeto externo. Dos destinos dessas pulsões parciais dependeriam, em grande medida, as características da personalidade de uma pessoa, assim como sua capacidade intelectual.

156 Essas pulsões parciais, segundo Freud, podem ser ditas “perversas”, no sentido de que elas não estão direcionadas para a sexualidade genital.

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No desenvolvimento sexual infantil, parte das pulsões parciais acabaria se submetendo à sexualidade genital. Outra parte das mesmas poderia se fixar em determinados tipos de atividades e, por consequência, não prosseguir o desenvolvimento em direção à sexualidade genital. Essa inibição do desenvolvimento criaria a predisposição à neurose e à perversão. Quanto maior a parcela pulsional que se fixasse nas atividades sexuais pré-genitais157, mais precária seria a organização genital do indivíduo e menor seria a parcela de pulsão sexual disponível para a sublimação. Em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), Freud observa:

Durante esse desenvolvimento, uma parte da excitação sexual trazida pelo próprio corpo é inibida como sendo inútil para a função reprodutiva e, nos casos favoráveis, é conduzida à sublimação. As forças que podem ser empregadas nas atividades culturais são, portanto, em grande medida, obtidas através da sufocação daqueles que são conhecidos como os elementos perversos da excitação sexual (FREUD, 1908b, p. 188-189).

A sublimação é definida por Freud como “a capacidade

de trocar sua meta sexual originária por outra não sexual, mas que é psiquicamente relacionada à primeira” (FREUD, 1908b, p. 187). Da capacidade de sublimação do indivíduo, dependeria seu potencial para a busca do conhecimento, para o trabalho, para as produções artísticas e culturais em geral, enfim, seria a partir da sublimação que se erigiria a cultura. Portanto, pode-se dizer que seria, em grande medida, sobre ela que a educação deveria se apoiar para a inserção do indivíduo na cultura. A educação deveria, dessa forma, criar condições favoráveis para a sublimação. Como diz Millot (1987, p. 53), deveria “orientar para fins culturais as pulsões parciais que

157 Consequentemente, maior seria a propensão para ocorrer uma regressão libidinal, que poderia conduzir a uma neurose ou perversão sexual.

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não se fundem na corrente genital, ou seja, favorecer a sublimação”.

No entanto, esse processo de desenvolvimento pulsional do indivíduo não seria determinado apenas pelas influências externas que atuassem sobre ele, pois, segundo Freud, os fatores constitucionais exerceriam um papel fundamental nesse processo. A intensidade constitucional das pulsões sexuais, em particular, seria fator de grande importância no curso do desenvolvimento. No mesmo texto de 1908, anteriormente mencionado, Freud afirma:

A intensidade originária da pulsão sexual provavelmente varia em cada indivíduo; certamente, a proporção daquela que é apta para a sublimação varia. Parece-nos que é a constituição inata de cada indivíduo que decide, em primeira instância, quanto da pulsão sexual será possível sublimar e fazer uso. Em adição a isso, os efeitos da experiência e as influências intelectuais sobre seu aparelho mental conseguirão produzir a sublimação de uma porção maior das pulsões sexuais (FREUD, 1908b, p. 187-188).

Nessa passagem, fica claro que, embora Freud atribua

aos fatores constitucionais o peso maior na determinação da capacidade do indivíduo para a sublimação, ele reconhece que esta é também influenciada pelas experiências e pelas influências intelectuais que atuam sobre a criança. Tendo isso em vista, podemos dizer que a educação deveria ter como um de seus objetivos, como dissemos anteriormente, criar condições propícias à sublimação, fornecendo à criança alternativas que lhe permitissem canalizar a pulsão sexual disponível para fins culturais desejados. No entanto, a educação não poderia perder de vista os limites constitucionais e as diferenças constitucionais entre os indivíduos. Ainda nesse texto de 1908, Freud argumenta que a experiência ensina que, para a maioria das pessoas, há um limite além do qual sua constituição não pode cumprir as

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demandas da civilização. Por isso, diz ele, é uma injustiça social que os padrões da civilização demandem de cada um a mesma conduta. Ao não levar em consideração a disposição constitucional do indivíduo e ao impor os mesmos padrões de conduta a todos os indivíduos, a sociedade estaria favorecendo o surgimento de patologias psíquicas. No entanto, certo nível de restrição ao desenvolvimento pulsional é necessário para a existência da cultura.

O PAPEL DA REPRESSÃO NO DESENVOLVIMENTO DO INDIVÍDUO Freud reconhece que certo nível de repressão pulsional e

redirecionamento das pulsões sexuais para fins culturais é condição necessária para a própria existência da cultura. Esse processo, inclusive, seria em parte organicamente determinado. No texto Três ensaios para uma teoria da sexualidade (1905), a necessidade da suposição de uma repressão orgânica atuando sobre as pulsões é enfatizada. Contudo, Freud aponta que uma repressão excessiva da sexualidade pode ter um efeito nocivo para o desenvolvimento da criança, ao favorecer a inibição de seu desenvolvimento. Nesse caso, a severidade da educação estaria contribuindo para estancar, ao menos parcialmente, um processo que, se não tivesse se deparado com tal obstáculo, poderia ter seguido seu curso rumo à maturidade sexual, à sublimação, enfim, rumo a um desenvolvimento favorável. A sufocação intensa das pulsões sexuais – um dos piores erros da educação de seu tempo – dilapidaria as forças que, caso contrário, poderiam, a partir de seu desenvolvimento, ser empregadas no trabalho cultural, argumenta Freud. Em O interesse pela psicanálise (1913), ele observa:

Quando os educadores tiverem se familiarizado com os resultados da psicanálise acharão mais fácil se reconciliar com certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas,

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não correrão o risco de superestimar as moções pulsionais socialmente inúteis ou perversas que aflorem na criança. Eles deixarão de tentar uma sufocação violenta dessas moções quando perceberem que tais intervenções frequentemente produzem resultados não menos indesejados que a própria má conduta que a educação teme deixar passar na criança (FREUD, 1913, p. 192).

Freud acrescenta, em seguida, que a sufocação violenta

de uma pulsão não a extingue, nem permite dominá-la, mas produz uma repressão em virtude da qual é estabelecida a inclinação para a contração de uma neurose posteriormente. Essa predisposição à neurose se deveria ao fato de que os impulsos relacionados às atividades reprimidas continuariam ativos no inconsciente, podendo voltar a se manifestar de forma indireta a partir dos sintomas neuróticos. Ao mesmo tempo, quanto maior a parcela pulsional impedida de prosseguir o seu desenvolvimento, mais frágil será a organização subsequente e menor será a parcela pulsional apta para a sublimação. Assim, uma das contribuições da psicanálise freudiana para a educação consiste em mostrar quantas contribuições valiosas para a formação do caráter prestam as pulsões associais e perversas nas crianças quando não são submetidas à repressão, mas sim afastadas de suas metas originais e dirigidas para outras a partir do processo da sublimação.

Para Freud, as virtudes de uma pessoa se desenvolvem como formações reativas e sublimações sobre o terreno das pulsões parciais. Assim, segundo ele, “a educação deveria ter um cuidado extremo em não cegar essas preciosas fontes de força e se limitar a promover os processos pelos quais essas energias podem ser guiadas até o bom caminho” (FREUD, 1913, p. 192). Como comenta Millot (1987), Freud não solicita ao educador que se abstenha, mas apenas que não ultrapasse os seus direitos e sua função por uma repressão excessiva da

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vida sexual infantil, o que se chocará com os próprios fins da educação ao comprometer o desenvolvimento da criança.

Freud considera, como dissemos no início deste capítulo, que é a partir do instinto de auto-preservação que o desejo de conhecer desperta na criança. É necessário conhecer o mundo, em primeiro lugar, para se defender de possíveis perigos e, assim, garantir a sobrevivência. No entanto, Freud insiste em que há um acontecimento específico na vida da criança que, justamente por representar para a mesma uma ameaça imaginária à sua sobrevivência, desperta de forma especial a curiosidade infantil: o nascimento dos irmãos ou a percepção da possibilidade de que novas crianças possam surgir para lhe retirar a atenção e os cuidados dos pais. Tal situação despertaria na criança a curiosidade sexual relacionada, principalmente, à origem dos bebês. Essa curiosidade seria, segundo o autor, a base da curiosidade em geral, o que o leva a defender que ela não deve ser reprimida, pois, nesse caso, correr-se-ia o risco de produzir na criança uma inibição do desejo de conhecer e da capacidade de reflexão em geral.

No texto O esclarecimento sexual das crianças (1907), Freud argumenta que não há justificativa para recusar às crianças esclarecimentos sobre a vida sexual. Segundo ele, fazer mistério sobre a sexualidade somente privaria a criança de obter um ganho intelectual de atividades para as quais ela estaria psiquicamente preparada. Dessa forma, diz ele: “Se o propósito dos educadores é sufocar o poder da criança de pensamento independente tão cedo quanto possível, em favor da “bondade”, que eles prezam tanto, eles não podem iniciar isso melhor do que as enganando em matéria sexual” (FREUD, 1907, p. 136-137). Se as crianças não têm suas dúvidas esclarecidas – e ele insiste que respostas fantasiosas, tais como a que os bebês são trazidos pela cegonha, não satisfazem, na maior parte das vezes, a curiosidade infantil –, elas continuam se atormentando com o problema e tentando encontrar soluções para os mesmos em segredo.

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Em Sobre as teorias sexuais da criança (1908), Freud volta a dizer que, ao receberem respostas míticas, as crianças muitas vezes não acreditam, a princípio, nas informações dos adultos e percebem que há algo proibido que estes querem lhes ocultar. Essa situação pode ser a primeira ocasião de um conflito psíquico, diz ele, pois algumas opiniões – pelas quais elas sentem predileção pulsional, mas que não são “corretas” para os grandes – entram em oposição a outras sustentadas pela autoridade dos adultos, mas que não as agradam. A partir desse conflito, poderia resultar uma dissociação psíquica, de forma que

o conjunto de pontos de vista que estão comprometidos com serem “bons”, mas também com a suspensão da reflexão, se torna dominante e consciente; enquanto o outro conjunto, para o qual o trabalho investigativo da criança teria, entretanto, conseguido novas evidências, mas que não são para serem levadas em conta, tornam-se os pontos de vista sufocados e inconscientes (FREUD, 1908, p. 214).

Assim, estaria sendo tolhida a capacidade da criança

para a reflexão e o pensamento livre e, ao mesmo tempo, estaria sendo fortalecida a suspensão do juízo diante de um conhecimento que vem de pessoas que possuem “autoridade”, mas que não lhes parece verdadeiro. Em outras palavras, a capacidade de raciocínio da criança estaria sendo inibida em detrimento da sua capacidade de crença no que lhe parece irracional. Em Análise da fobia de um menino de cinco anos (1909, p. 85), Freud diz: “a criança não mente sem razão e, em geral, inclina-se mais que os adultos para o amor à verdade”. Podemos dizer que, ao ocultar-lhes a verdade e substituí-la por repostas fantasiosas, o adulto estaria introduzindo a mentira na vida da criança, para a qual ela não se inclina, inicialmente, mas à qual pode acabar cedendo, diante da “autoridade” que a ela vem associada. Ainda no texto sobre as teorias sexuais infantis, Freud comenta em relação à

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curiosidade sexual infantil: “Esse especular e duvidar, contudo, torna-se o protótipo de todo o trabalho intelectual posterior direcionado para a solução de problemas e o primeiro fracasso tem um efeito paralisante sobre todo o futuro da criança” (FREUD, 1908, p. 219).

Nos textos desse período, Freud defende que é necessário fornecer à criança um esclarecimento gradual sobre a vida sexual e que a escola deveria se incumbir dessa tarefa. A escola deveria introduzir nos ensinamentos sobre o mundo animal a questão da reprodução e de seu significado e, ao mesmo tempo, insistir que os seres humanos compartilham com os animais superiores todo o essencial de sua organização. A sexualidade, diz ele, “desde o início deve ser tratada como qualquer outra coisa digna de ser conhecida” (FREUD, 1907, p. 138).

Então, ao não satisfazer ou reprimir a curiosidade sexual infantil e passar a ideia de que há algo de errado em relação à sexualidade, o adulto estaria criando uma situação desfavorável ao desenvolvimento da sexualidade, o qual, em condições favoráveis, poderia, dependendo dos fatores constitucionais envolvidos, conduzir à maturidade sexual e ao fortalecimento da capacidade de sublimação. Em Análise terminável e interminável (1937), contudo, Freud afirma ter superestimado anteriormente o valor profilático do esclarecimento sexual da criança. Ele diz ter concluído que, muitas vezes, as crianças não abrem mão de suas próprias teorias sexuais, mesmo recebendo esclarecimentos, e mantém suas fantasias sexuais próprias de maneira a perpetuar uma cisão psíquica com potencial patogênico.

Na etapa final de sua obra, Freud atribui uma ênfase ainda maior aos determinantes constitucionais no desenvolvimento psíquico e propõe que não só a intensidade das pulsões sexuais tem um papel crucial nesse desenvolvimento, mas também a intensidade da pulsão de morte, ou da agressividade. Assim, os limites impostos à

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educação pelos fatores constitucionais tiveram sua importância acentuada nessa etapa da teoria do autor. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o pensamento freudiano, a educação, como representante do princípio de realidade, das normas e exigências culturais, não poderia ser exercida sem o reconhecimento dos limites impostos a cada indivíduo pela sua própria natureza, isto é, pela sua constituição, assim como sem a consideração dos desejos, da realidade psíquica da criança. Em algumas ocasiões, Freud defende que apenas o adulto analisado e que “reencontrou sua própria infância” seria capaz de compreender o psiquismo infantil e, portanto, só ele estaria apto para educar. No entanto, Freud reconhece os limites da educação e a dificuldade ou mesmo impossibilidade de se definir especificamente onde e como o educador deveria intervir. Apesar de encontrarmos nos textos freudianos algumas dicas acerca de como o educador não deveria agir, muito pouco ele diz a respeito de como positivamente o educador deveria atuar. As próprias premissas de sua teoria impedem o estabelecimento de uma proposta positiva que permitisse guiar a educação. No texto sobre o pequeno Hans, Freud afirma:

Que a educação da criança possa exercer uma poderosa influência, favorável ou desfavorável, sobre a predisposição patológica [...] é, pelo menos, muito provável, mas parece inteiramente problemático saber a que deve aspirar a educação e onde esta tem que intervir (FREUD, 1909, p. 117).

A contribuição de Freud para a educação parece

consistir em esclarecer os fundamentos sobre os quais a capacidade intelectual do indivíduo emerge e os mecanismos pelos quais a sua personalidade e a sua inserção na cultura se desenvolvem. Ao elucidar os limites que a constituição

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individual e que a realidade psíquica colocam às tentativas de modelar o indivíduo de acordo com certos padrões, e ao insistir na impossibilidade de estabelecer regras fixas que permitam conduzir a tarefa de educar de forma segura e adequada, Freud contribui para desfazer certas ilusões a respeito da educação. Nesse sentido, podemos dizer que a sua contribuição para essa área é, sobretudo, crítica e indireta.

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299

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Capítulo 16 EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, VVIIDDAA EE CCOOTTIIDDIIAANNOO:: UUMMAA LLEEIITTUURRAA AA PPAARRTTIIRR

DDAA PPRRAAGGMMÁÁTTIICCAA DDEE LLUUDDWWIIGG WWIITTTTGGEENNSSTTEEIINN

Bortolo Valle

O modelo epistemológico ocidental, que ilustra a racionalidade educativa moderna, nasce, também, das convicções que alimentaram os ideais do Racionalismo francês e do Empirismo inglês. Por um lado, o sujeito soberano da razão, por outro, as leis matemáticas que governam a natureza. Descartes e Bacon partilharam, por vias distintas, de um otimismo sedutor: a verdade evidente se nos impõe. A razão retamente conduzida e o uso do procedimento metodológico adequado foram tomados como condição necessária ao desenvolvimento e progresso humano em todas as suas dimensões. Em linhas gerais, a Educação moderna ilustrou-se sob o signo de uma racionalidade cognitivo-instrumental.

Os séculos XIX e XX, ao mesmo tempo em que se tornaram receptores dos produtos gestados por aquela racionalidade, viram emergir instâncias de crítica à razão instrumental. Todo progresso neles contidos é, de alguma forma, resultado da conjugação de categorias educativas que reivindicavam a autonomia do sujeito e sua capacidade de interferência na natureza. Estes séculos são também, por sua vez, reveladores do potencial de risco presente naquele tipo de racionalidade ordenada e hierarquizada, mais próxima das leis

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de mercado do que propriamente do homem emancipado. Estes dois últimos séculos foram, como consequência, palco de uma mudança na racionalidade educativa. Neles, o ideal positivado foi sendo substituído por um ideal dialógico: o mundo da consciência e dos fatos foi cedendo lugar ao mundo da linguagem. A virada linguística158 constitui um dos fenômenos decisivos de tal crítica. A substituição lenta, porém gradual, de uma racionalidade instrumental por uma racionalidade dialógica imprimiu uma reorientação nos fundamentos do processo educativo humano.

Dentre as características do giro linguístico, esta reflexão pretende olhar para as contribuições daquilo que se denominou “virada linguística pragmática”, que tem em Ludwig Wittgenstein um de seus maiores representantes. De maneira singular, o filósofo de Viena, centralizando sua preocupação sobre a linguagem e seu uso, substitui o sujeito desprendido da sociedade moderna pelo sujeito engajado das comunidades contemporâneas. Lá Descartes, aqui Wittgenstein. Lá a autonomia da razão, aqui um sujeito constituído pelo contexto. Lá a subjetividade, aqui a intersubjetividade. Apresentar os traços característicos dessa nova racionalidade é o objetivo deste capítulo. A concepção pragmática da linguagem, conforme o Wittgenstein tardio, não deixa de ser uma referência importante nos atuais debates sobre os fundamentos da Educação.

Com a publicação das Investigações Filosóficas, Wittgenstein reforma sua concepção de linguagem defendida inicialmente no Tractatus Logico-Philosophicus. A linguagem deixa de ser um instrumento de comunicação do 158 “A virada linguística (...) foi um passo definitivo para sepultar a herança platônica, cartesiana e kantiana, de que há um intelecto com uma capacidade de inteligibilidade (ascese platônica), um sujeito com uma mente cognitiva com capacidade de produzir por si só o pensamento (conhecimento calcado na certeza cuja fonte é o cogito cartesiano, entendido como substância sem extensão, mental), e um ser dotado de uma razão cujos princípios puros, a priori, armam uma rede para toda e qualquer apreensão racional do mundo (intelectualismo kantiano)” (ARAÚJO, 2004, p. 107).

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conhecimento e passa a ser a condição de sua possibilidade e constituição. Parece, então, que a linguagem de matriz objetivista, designativa e instrumentalista perde seu lugar de preferência, abrindo espaço para a recuperação do dinamismo da linguagem ordinária na elaboração de nossas proposições. Wittgenstein parece estar ciente de que o ideal de exatidão da linguagem é um entre tantos mitos filosóficos. Esta postura inovadora imprime, há seu tempo, novos rumos também à árdua tarefa de fundamentação da Educação.

Admitindo-se que a linguagem expressa um mundo sem nenhum vínculo com situações concretas de uso, ela é destituída de qualquer sentido, conforme podemos perceber nas anotações do parágrafo 88 das Investigações, quando o autor argumenta em a favor das necessárias condições de uso: “o ideal de exatidão não é unívoco, não sabemos como o devemos conceber, a não ser que tu próprio determines o que é que receberá esse nome; mas vai-te ser difícil fazer uma determinação destas; uma que te satisfaça” (WITTGENSTEIN, 1995b, § 88).

Aqui, o filósofo se mostra convencido de que é impossível determinar a significação das palavras sem a necessária consideração do contexto sócio-prático em que são utilizadas. O autor tem convicção, também, de que a linguagem é sempre ambígua, uma vez que suas expressões não são possuidoras de uma significação definitiva. Toda pretensão de uma exatidão linguística faz cair numa ilusão metafísica. Esta mudança de direção exige reconsiderar toda a pretensão do isomorfismo (a linguagem igual ao mundo). A partir dela também podemos recolher um material que permite rever as estruturas basilares de um discurso educativo específico, aquele produzido pelas bases positivas que pretendiam inserir a educação numa concepção científica do mundo.

Apresentaremos, a seguir, alguns conceitos-chave, emanados de Investigações Filosóficas, com o objetivo de

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visualizar possibilidades inovadoras e alternativas à educação de matriz científica. As noções de jogos de linguagem, seguimento de regra e formas de vida permitem um alargamento das bases epistemológicas que sustentam a educação. O CENÁRIO DA PRAGMÁTICA: WITTGENSTEIN REPENSANDO

WITTGENSTEIN Na obra que marca a segunda fase do pensamento de

Wittgenstein – as Investigações Filosóficas – efetiva-se definitivamente a denominada virada linguístico-pragmática. Wittgenstein e Pierce159 compõem as referências mais significativas da opção pelo critério de uso na elaboração dos significados. A virada linguística representou a tarefa de substituição do primado da consciência pelo da linguagem; deu possibilidade de falar sobre o mundo, mostrando que as questões de verdade poderiam assumir outra perspectiva, aquela do signo da linguagem ao invés daquele da interioridade. Os critérios de verdade deveriam ser reunidos no âmbito da linguagem.

O movimento percorre um histórico que se desdobra primeiramente de uma proximidade com a sintaxe, passando, em seguida, pelos desafios da semântica, culminando na pragmática. A tarefa de análise da linguagem se inicia fundamentada na convicção de que seria possível a separação entre o significado da palavra e as situações em que a mesma se encontra. A preocupação dos filósofos não se resumia, no entanto, a este exercício de distinção; pretendiam de igual maneira compor uma força tarefa que assumisse o compromisso de clarificar a linguagem, livrando-a de todos os elementos estranhos capazes de torná-la fonte de confusões. Não podemos deixar de considerar o empreendimento de 159 Charles Sanders Peirce é um dos fundadores da Semiótica. No conjunto de sua obra, pode-se perceber o direcionamento pragmático impresso a considerações sobre a lógica simbólica e a metodologia científica.

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Frege160, especialmente devotado aos alicerces da matemática e à construção de uma linguagem formal, uma Begriffschrift, ou seja, uma escrita do conceito. A este respeito, Frege esclarece:

deve-se separar do conteúdo de uma frase a parte que se pode apenas aceitar como verdadeira ou falsa. Chamo essa parte de pensamento expresso pela frase [...] É apenas essa parte do conteúdo que diz respeito à lógica. Chamo qualquer outra coisa que mascare o conteúdo de uma frase de coloração de um pensamento (FREGE, s/d, p. 198).

É sobre esta influência fregeana que também o Tractatus,

para a conclusão de seu propósito, deveria ser orientado. O objetivo de seu autor, na ótica de D´Agostini (2003, p. 208), era “de manter-se no puro nível da análise lógico-linguística, sem pôr em jogo o problema da realidade, do conhecimento ou do mundo”. O Tractatus, então, é parte do conjunto daquelas obras que tentaram banir a linguagem ordinária do cenário de possibilidades de significação do mundo. É clara a influência de Frege sobre Wittgenstein. A linguagem formal cumpriria, assim, o propósito de uma representação clara do dizível.

No Tractatus, a concepção de linguagem se mostra numa teoria figurativa da proposição, constituindo um retrato lógico da realidade. Em um empreendimento que recorda Kant, Wittgenstein parte do factum da linguagem para determinar os limites do que possa ser expresso, sem dúvida, um fato inquestionável que a linguagem, assim como o pensamento, constitui a natureza universal e privada dos seres humanos.

Os limites do pensado serão traçados na linguagem, e tudo aquilo que porventura esteja situado no outro lado da linguagem inteligível identifica-se com o sem sentido e com o ininteligível. O pensado corresponde à totalidade das proposições genuínas e a ciência natural se faz referir pela

160 Matemático e filósofo germânico, nascido em Wismar, Mecklenburg-West, na Pomerania. É considerado o fundador da moderna lógica matemática e uma das principais influências sofridas por Wittgenstein.

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totalidade das proposições verdadeiras (VALLE, 2003, p. 59-60).

Aquele banimento, contudo, não duraria para sempre. A

recuperação da linguagem ordinária começa a aparecer nos textos de Wittgenstein que datam da década de 1940. A força expressiva dos significados cede lugar à força dos enunciados. Nesse contexto, uma nova possibilidade se afirmaria com o abandono das pretensões de uma linguagem formal capaz de captar a essência do mundo. O contexto social e a situação diária se apresentam como desafios diante do restrito espaço da proposição lógica a espelhar o mundo. Como nota D’Agostini (2003, p. 207):

Ian Hacking, no texto de 1975, de título Linguaggio e filosofia (Linguagem e Filosofia), propõe uma rápida reconstrução, distinguindo uma primeira fase de “apogeu dos significados”, que coincidiria com o trabalho de Frege, de Russell, do primeiro Wittgenstein e de outros pensadores analíticos, aproximadamente até os anos cinquenta, depois uma segunda fase de “apogeu dos enunciados”, típica do trintênio entre o segundo pós-guerra e a metade dos anos setenta.

O eixo fundamental da virada pragmática pode ser

localizado na possibilidade de se falar sobre o mundo a partir da linguagem ordinária, ou comum, vivenciada não mais a partir daquela forma cristalina e artificial conforme desejada por Frege e Wittgenstein no Tractatus. Num primeiro momento, da virada linguística, pretendia-se um encaixe perfeito entre as formulações da ciência e da filosofia com a sintaxe lógica ideal e universal. Agora, nesse tempo de perspectiva pragmática, há todo um interesse pela linguagem comum, do cotidiano, cuja análise não precisa necessariamente estar fixada numa proximidade com uma forma lógica objetiva, mas possuir relação possível e aceita no mundo.

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O centro da linguagem não é mais a proposição assertórica. O mundo é visto como a síntese de possíveis fatos, para uma comunidade linguística, para uma comunidade de interpretação, cujos membros têm condições de entender-se entre si, acerca de algo no mundo. Esse salto da semântica para a pragmática introduz uma diferença entre o “real” representado em proposições veritativas e o “verdadeiro” como resultado do posicionamento da discussão quanto à pretensão de validez de uma asserção interpretada pelos interlocutores, na qual se leva em conta sua validade epistêmica para uma comunidade (ARAÚJO, 2004, p. 109).

O trabalho analítico deixou de ser uma busca incessante

da lógica pelo significado ideal. O trabalho assume agora a função de clarear a linguagem a partir da própria linguagem. A linguagem ultrapassa a simples função isomórfica desde uma explicação, oportunizada pela flexibilização das possibilidades da ação na fala. Nesse sentido, à filosofia ainda cabe o exercício de clarificação conceitual. Ela prossegue em sua função terapêutica, não mais no sentido de atingir uma linguagem perfeita, mas naquele de clarear os conceitos a partir da linguagem ordinária. Portanto, o desenvolvimento da chamada reflexão filosófica sobre a questão da linguagem, no âmbito analítico, pode ser interpretada como segue:

Nos anos cinquenta a oitenta, com base em diversos critérios: a) com a abertura da análise à linguagem comum; b) como virada do referencialismo; c) como passagem de uma visão normativa da lógica e da análise a uma visão heurística e ‘construcionista’ de uma e de outra. As três ‘passagens’ (embora nem sempre se tratasse de um efetivo desenvolvimento) documentam complexivamente uma abertura a âmbito de indagação, como as ‘formas de vida’ ou as ‘intenções’, abertura que se revela afim, em muitos aspectos, da investigação fenomenológico-hermenêutica de abertura, além dos confins do transcendentalismo e do objetivismo científico (D’AGOSTINI, 2003, p. 216).

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No contexto da pragmática, conforme pensada nas Investigações Filosóficas, as questões concernentes à linguagem se distanciarão das pretensões de certeza em relação ao mundo. Os problemas deverão ser dissolvidos pelas comunidades culturais na troca de informações. A proposta presente em Investigações Filosóficas denuncia o limite filosófico presente no Tractatus. Nela se apresenta a variedade dos modos de significação da linguagem corrente. A equivalência entre significado e verdade, obtida pela apresentação das condições de sua verdade, é substituída por uma equivalência expressa na significação e no uso: ou seja, a significação é o uso. O rigorismo do Tractatus não é abandonado, mas perde seu status de superioridade, tornando-se mais um entre os tantos exercícios de significação no uso. INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS

No Tractatus, Wittgenstein tinha como objetivo resolver os problemas da Filosofia que, segundo ele, resultavam da má compreensão da lógica de nossa linguagem. Ao final de seu escrito, estava o filósofo tão satisfeito e tinha o forte convencimento de ter chegado a um ponto de certeza definitiva e intocável. Desse modo, assim escreve no prefácio: “Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas” (WITTGENSTEIN, 1995a, p. 28).

No entanto, em Investigações Filosóficas, Wittgenstein reconhece os limites daquilo que havia exposto no Tractatus, de tal forma que tinha a intenção de ver esta sua nova obra publicada junto com a primeira. Seu desejo repousava na necessidade de mostrar que esta só poderia ser entendida à luz daquela. Nas Investigações, é evidente o esforço para corrigir os limites antes não percebidos no Tractatus (por isso a obra era intocável e definitiva). Podemos considerar, então, que entre

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uma obra e outra não existe uma ruptura quanto à temática de fundo, qual seja, a intenção clarificadora de nossas proposições da linguagem. Wittgenstein continua tentando responder à mesma pergunta: como se pode falar sobre o mundo?

De súbito, pareceu-me então que devia publicar conjuntamente a minha velha com a minha nova maneira de pensar: que esta só podia ser verdadeiramente iluminada pelo contraste e contra o campo de fundo daquela. Desde que há 16 anos comecei de novo a ocupar-me de Filosofia, tive que reconhecer erros graves no que escrevi no meu primeiro livro (WITTGENSTEIN, 1995b, p. 166).

Wittgenstein, ao tentar uma resposta à sua pergunta, não

estava simplesmente abandonando sua antiga forma de pensar, pelo contrário, estava, a partir de uma autocrítica, reformulando as conclusões do Tractatus e ampliando a análise da linguagem. Se, no Tractatus, a análise se dava por meio da sintaxe, nas Investigações, a tarefa migra para a pragmática. De acordo com a apresentação sistemática que faz nas Investigações Filosóficas, o primeiro ponto de enfrentamento com o Tractatus a ser reformulado neste momento é o necessário abandono da busca pelo simples. A esse respeito, diz o filósofo:

Mas quais são as partes constituintes simples de que a realidade se compõe? – quais são as partes constituintes simples de uma cadeira? – os pedaços de madeira de cuja reunião ela resulta? Ou as moléculas, ou os átomos? (WITTGENSTEIN, 1995b, § 47).

No Tractatus, a realidade complexa poderia ser reduzida

às suas partes simples, identificadas como fato atômico e este poderia ser espelhado pela linguagem, mostrando seu valor de verdade. A esse respeito, escreve Stegmüller (1977, p. 432):

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Entre as críticas diretas figura a rejeição que Wittgenstein faz do absolutismo e do atomismo contidos no Tractatus. O absolutismo vem expresso na tese de que o mundo, como fato, é divisível em fatos mais simples de um e apenas um modo; o atomismo consiste na assertiva de que esta divisão conduz aos fatos mais simples (os fatos atômicos elementares), em cuja formação aparecem novamente coisas atômicas, isto é, indivíduos e atributos indecomponíveis. As duas teses agora são abandonadas.

Assim, vemos que não mais se defende a conexão direta

do nome com o fato atômico, a isomorfia linguagem-mundo. Agora, para cada objeto nomeado existem diversas possibilidades de estados de coisa e, mesmo que o objeto ou o portador do nome desaparecesse, ainda assim teríamos a possibilidade de compreender a proposição. Se disser “Piaget morreu”, por mais que o portador do nome não mais exista, isso não quer dizer que tudo que eu sei sobre o professor suíço tenha desaparecido junto com o ‘objeto’. Diz Wittgenstein (1995b, § 80):

Eu digo: ‘Ali está uma cadeira’. E se eu me deslocar para ir buscar e ela de repente desaparecer da minha vista? – ‘Então não era uma cadeira, era uma ilusão qualquer’. – Mas alguns segundos mais tarde vemos de novo a cadeira, podemos tocar-lhe, etc. – ‘Então é porque a cadeira afinal lá estava, e o seu desaparecimento foi uma ilusão qualquer’. – Mas supõe que, passado algum tempo, desaparece outra vez – ou parece desaparecer. O que é que devemos dizer? Dispões de regras para esses casos, que estipulem se se pode ainda chamar a esta coisa ‘cadeira’? Mas sente-se a sua falta ao usarmos a palavra ‘cadeira’? Devemos dizer que, de facto, não associamos qualquer sentido a esta palavra, uma vez que não estamos munidos de regras para todas as possibilidades do seu emprego?

Assim, mesmo que a cadeira, referida na citação,

desapareça aos nossos olhos, continuamos sabendo de sua existência e sobre ela podemos fazer referências. São variados

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os aspectos sobre um mesmo objeto. Estes aspectos determinam o contexto de uso, o contexto de fala. Tal contexto se apresenta na indicação do filósofo na força da regra:

Uma regra é como um sinal postado a meio do caminho. – Não deixa ele também qualquer dúvida em aberto sobre o caminho que eu tenho que seguir? Mostra a direção que eu tenho que seguir quando passo por ele, se pela estrada, pelo campo ou a corta-mato? Como se determina o sentido em que eu devo segui-lo? Na direcção, por exemplo, do dedo indicador da mão nele desenhada, ou na direcção oposta? – E se em vez de um sinal postado a meio do caminho estiver uma cadeia cerrada de sinais, ou traços de giz que se cruzam no chão? – Há apenas neste caso uma interpretação? – Bom, então afinal posso dizer que o sinal não deixa qualquer dúvida em aberto. Ou melhor: às vezes deixa uma dúvida em aberto, outras vezes não. E isto já não é uma proposição filosófica, mas uma proposição empírica (WITTGENSTEIN, 1995b, § 85).

A pragmática, portanto, inscreve um novo quadro capaz

de produzir um significativo abalo nas pretensões do Tractatus. Qual a arquitetônica dos recursos para a formação do significado que emerge das Investigações? Já no primeiro parágrafo, o filósofo oferece algumas pistas. Acompanhemos o raciocínio:

Agora pensa na seguinte aplicação da linguagem: eu mando uma pessoa às compras. Dou-lhe uma folha de papel na qual se encontra escrito o seguinte: cinco maçãs vermelhas. […] Mas como sabe ele onde e como deve procurar a palavra ‘vermelha’ e o que tem a fazer com a palavra ‘cinco’? […] Todas as palavras chegam algures a um fim. - Mas qual é a denotação da palavra ‘cinco’? – Aqui não se falou disso, mas apenas de como a palavra cinco é usada (WITTGENSTEIN, 1995b, § 1, grifos nossos).

Segue-se disso que não precisamos mais perguntar sobre

o significado de uma palavra, antes devemos prestar atenção ao contexto da fala, quer dizer, ao ambiente (situação,

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momento, circunstância) em que ela está sendo utilizada. Caso não haja compreensão, estamos habilitados a perguntar: “O que você quis dizer com esta expressão?” Wittgenstein parece estar convicto de que todas as palavras, quando ditas, têm intenção de transmitir alguma informação, seja uma piada, uma oração, uma ordem, um agradecimento, etc. Entender o contexto em que determinada expressão foi pronunciada é deparar-se com a multiplicidade de jogos de linguagem que a podem produzir no cotidiano. O conceito de jogo de linguagem e o necessário arcabouço de suas regras de suporte tornam-se, portanto, fundamentais na determinação dos significados. OS JOGOS DE LINGUAGEM E O SEGUIMENTO DE REGRAS

A expressão jogo linguagem não recebe por parte do filósofo uma definição acabada. No desenvolvimento da obra, pode-se perceber o emprego da expressão em vários contextos. Num primeiro momento, designa certas formas primitivas de linguagem, por exemplo, as utilizadas pelas crianças quando aprendem a falar. De igual maneira, também faz referência a tudo aquilo que se convenciona chamar de ‘ato de fala’, como comandar, agradecer, felicitar, mentir etc. (cf. WITTGENSTEIN, 1995b, § 23). Mas também designa a linguagem ordinária, tomada com as atividades nas quais está implicada. Em suma, por esta expressão Wittgenstein quer apontar para certos sistemas linguísticos particulares, que fazem parte das atividades nas quais as palavras assumem sentidos particulares: construir um objeto a partir de uma descrição, desenvolver um raciocínio, formar e testar hipóteses, elaborar previsões.

Um jogo de linguagem, com suas regras, tem sentido tão somente no interior de um determinado contexto. Se formos capazes de jogar, somos capazes de entender a multiplicidade das regras que condicionam o jogo determinado. Na base do

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jogo, encontramos, portanto, as regras afinadas numa gramática. Esta não garante o êxito do jogo, mas determina se possui ou não sentido. Não basta conhecer as palavras, devem-se conhecer seus possíveis usos. Sobre as regras de um jogo, pode-se considerar:

Elas abrangem um número ilimitado de ocasiões, constituindo padrões para o uso correto de expressões. Nós as invocamos para justificar ou criticar empregos de palavras, o que significa que elas constituem nossas razões para usar as palavras do modo que usamos. E se, ao indagarmos por que usamos as palavras, ambicionamos estabelecer as causas para termos adotado certas regras, essa será uma questão irrelevante para o significado das palavras em foco (embora possa ser relevante para sua etimologia). O significado é o uso em conformidade com as regras gramaticais (GLOCK, 1998, p. 360).

Sobre essa condição necessária para obtenção do

significado, Glock dispõe: “Seguir uma regra é uma expressão verbal indicativa de realização: há uma diferença entre crer que se está seguindo uma regra e estar de fato seguindo-a” (GLOCK, 1998, p. 312). Pois as regras nada mais são do que padrões definidos de correção e que não necessariamente descrevem, por exemplo, como as pessoas se vestem, mas definem o que é se vestir com sentido e adequadamente161. Senão, vejamos o que diz próprio Wittgenstein ao tratar do ‘seguimento da regra’ e suas relações com os costumes:

161 Segundo Glock, “no ‘Tractatus’, as regras linguísticas constituem a SINTAXE LÓGICA, um complexo sistema de cálculo, contendo normas inexoráveis ocultas por sob a superfície da linguagem natural. Em meados da década de trinta, Wittgenstein já se afastara dessa ideia do CÁLCULO COMO MODELO para a linguagem. Rejeitara, em particular, a ideia de que, sendo ignoradas por nós, guiam o comportamento linguístico e determinam aquilo que faz sentido dizer. O papel estratégico de sua celebrada discussão acerca da atividade de seguir uma regra é esclarecer o modo como as regras guiam o nosso comportamento e determinam o significado das palavras” (GLOCK, 1988, p. 312).

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É aquilo que chamamos ‘seguir uma regra’ algo que apenas um homem, uma vez na vida, pudesse fazer? – E isto é naturalmente uma nota acerca da gramática e da expressão ‘seguir uma regra’. Não pode ser que uma regra tenha sido seguida uma única vez por um único homem. Não pode ser que uma comunicação tenha sido feita, que uma ordem tenha sido dada ou compreendida apenas uma vez. Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma proposição significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica (WITTGENSTEIN, 1995b, § 199).

Logo, seguir uma regra significa muito mais do que

simplesmente praticar o jogo de linguagem correto, é antes uma técnica aprendida em determinada forma de vida.

Mas, quantas espécies de frase existem? Porventura asserção, pergunta e ordem? Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego do que denominamos signos, palavras, frases. E essa variedade não é algo fixo, dado de uma vez por todas; mas, podemos dizer, novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem surgem, outros envelhecem e são esquecidos (cf. WITTGENSTEIN, 1995b, § 23-24).

Nesse sentido, podemos dizer que na multiplicidade dos jogos de linguagem apresenta-se também a pluralidade das formas de vida, bem como o indispensável caráter social para a elaboração de uma linguagem com significado. É numa determinada interação social que adquirimos essa prática, é por pertencermos a certa forma de vida que temos a possibilidade de jogar. Diz Wittgenstein (1995b, § 23-24):

Dar ordens e agir de acordo com elas. Descrever um objeto a partir do seu aspecto ou das suas medidas. Construir um objeto a partir de uma descrição (desenho). Fazer conjecturas sobre o acontecimento. Formar e examinar uma hipótese. Representação dos resultados de uma experiência através de tabelas e diagramas. Inventar uma história; lê-la.

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Representação teatral. Cantar numa roda. Resolver advinhas. Fazer uma piada; contá-la. Resolver um problema de aritmética aplicada. Traduzir de uma língua para outra. Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.

Nas Investigações Filosóficas, apresentam-se as

consequências da diversidade de linguagens162. Cada uma delas, no Wittgenstein tardio, obedece às próprias regras de significação, e pode-se dizer que nenhuma é melhor nem mais correta que a outra. Não existe uma hieraquia de conceitos. Não existe um superconceito capaz de servir como base para a derivação de outros dele dependentes. Os jogos são independentes entre si. As expressões jogo de linguagem e sistema linguístico particular, no entanto, não parecem ser equivalentes na obra do autor. Um sistema linguístico particular propicia uma abertura que nos faz adentrar no jogo. É clara a opção preferencial do autor pela palavra jogo. A linguagem não é um conjunto de signos coerentes e lógicos fundados sobre princípios gerais. O jogo surge espontaneamente, sem uma direção específica. O homem, afirma Wittgenstein (1995a, 4.002),

possui a capacidade de construir linguagens com as quais pode expressar qualquer sentido sem ter nenhuma noção de como e do que significa cada palavra – tal como se fala sem se saber como os sons individuais são produzidos.

Wittgenstein (1995b, § 70-71), ainda, entende o próprio

jogo de linguagem como um jogo. Isto se deve ao fato de ele 162 No prefácio do volume sobre Wittgenstein, na coleção “Os Pensadores” (São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 13), há a seguinte consideração acerca desta época: “A linguagem – diz o ‘segundo Wittgenstein’ – engendra ela mesma superstições das quais é preciso desfazer-se, e a filosofia deve ter como tarefa primordial o esclarecimento que permita neutralizar os efeitos enfeitiçadores da linguagem sobre o pensamento. O centro deste enfeitiçamento da linguagem sobre a inteligência encontra-se nas tentativas para se descobrir a essência da linguagem; é necessário, ao contrário, não querer descobrir o que supostamente esteja oculto sobre a linguagem, mas abrir os olhos para ver e desvendar como ela funciona”.

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reconhecer que não existe um único jogo de linguagem, não existe uma forma geral da proposição como havia defendido no Tractatus (WITTGENSTEIN, 1995a, 6). Deve-se também à sua intenção de mostrar as similitudes ou semelhanças de família existentes entre os diferentes jogos de linguagem conforme o que se pode constatar nos parágrafos 65 e 66 de Investigações Filosóficas. Mais especificamente, no final da proposição 66, pode-se ler: “... e o resultado dessa investigação é o seguinte: vemos uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Presenças de conjunto e de pormenor”. Nos espaços de interação não param de surgir novos jogos de linguagem, mantendo entre si certas semelhanças, que são chamadas ‘semelhanças de família’.

Entretanto, semelhança ou parentesco não é identidade. A semelhança não envolve uma propriedade comum invariável. Ao dizer que alguma coisa é semelhante a outra coisa, não estou de forma alguma postulando identidade entre ambas. As semelhanças podem variar dentro de um determinado jogo de linguagem ou ainda de um jogo de linguagem para outro, isto é, essas semelhanças podem aparecer ou desaparecer completamente dentro de um jogo de linguagem, ou ainda aparecer ou desaparecer na passagem de um jogo de linguagem para outro, ao passo que a forma lógica tractariana, enquanto essência, deveria necessariamente permanecer a mesma em todos os contextos linguísticos (CONDÉ, 1998, p. 92).

AS SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA, A FORMA DE VIDA E A

GRAMÁTICA Os parentescos, presentes em todos os jogos de

linguagem, podem ser entendidos como uma complicada rede de ações e significações que mudam de um para outro jogo. Conscientes da existência de variados jogos, brincadeiras tais como tabuleiro, roda, cartas, em grupo, individual etc., somos conduzidos a reconhecer igualmente a presença dos mais

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diversificados jogos de linguagem, que possuem em comum apenas o fato de serem tomados como jogo, mais praticamente como formas de agir no mundo. Tratando da questão dos jogos, numa analogia com jogos de tabuleiro, Wittgenstein (1995b, § 66) escreve:

Considera, por exemplo, os processos aos quais chamamos ‘jogos’. Quero com isto dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? Não respondas: tem de haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam ‘jogos’ – mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum. – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que todos têm em comum, mas verás parecenças, parentescos, e em grande quantidade. Como foi dito: não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com seus múltiplos parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas correspondências com a primeira classe mas desaparecem muitos aspectos comuns, outros aparecem […] Olha para o papel que desempenham a habilidade e a sorte. E quão diferente é a habilidade no xadrez e a habilidade no jogo de tênis. […] E o resultado dessa investigação é o seguinte: vemos uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Parecenças de conjunto e de pormenor.

Assim, Wittgenstein mostra que não há uma essência

comum a todos os jogos fora do fato de serem tomados como jogos. Não há nada em comum na linguagem que pudéssemos colocar como sendo sua essência unitária e universal. Abandonando a pretensão de essência, o filósofo pede apenas para que focalizemos nosso olhar no modo como utilizamos a linguagem no dia-a-dia, que prestemos atenção aos usos das diferentes palavras e como seu emprego nos revela o caráter de sua mutabilidade permanente; basta olhar! Certa linguagem não é mais importante e esclarecedora que outra. Cada uma se resolve no interior de seu jogo. Uma linguagem científica é apenas um jogo dentre tantos outros, não detém

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nenhuma exclusividade. Uma formulação da física quântica, uma afirmação moral ou ainda um aceno de mão e um jogo de amarelinha são incomensuráveis. Seu sentido está no próprio jogo que as produz. Como não ter presente a imagem da velha cidade indicada pelo autor na passagem seguinte?

A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de travessas e largos, casas antigas e modernas, e casas com reconstruções de diversas épocas; tudo isto rodeado de uma multiplicidade de novos bairros periféricos com ruas regulares e as casas todas uniformizadas (WITTGENSTEIN, 1995b, § 18).

Os jogos de linguagem pedem somente a presença dos

falantes inseridos numa forma de vida. Com estes termos (jogos de linguagem e formas de vida), buscava o filósofo, por um lado, demonstrar a ligação existente entre as palavras e as proposições por meio da intenção dos falantes. De outro, desejava mostrar, de uma maneira mais geral e profunda, que os atos de jogar fazem parte da história natural do homem. O jogo de linguagem, portanto, é uma atividade afinada com uma forma de vida partilhada por parceiros linguísticos. Sua identidade é produzida pela inserção no contexto cultural e social, na adoção de opiniões e crenças comuns a um tipo determinado de atividades precisas.

Aqui estão presentes dois aspectos. Conforme o primeiro deles, nossa história natural, ou atividade humana, ressalta a dimensão biológica e cultural presente nas formas de vida, pois, segundo Spaniol, a forma de vida envolve não apenas uma dimensão biológica, mas principalmente cultural. Isso é atestado pelos jogos de linguagem. Muito mais complexo, o segundo aspecto diz respeito ao problema da fundamentação. Vimos que a noção de jogo de linguagem nega qualquer forma de essência ou fundamento último. A forma de vida constitui o lugar no interior do qual a linguagem se assenta (CONDÉ, 1998, p. 104).

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Por meio da noção de forma de vida, Wittgenstein faz deslocar a força da significação em direção àquela da compreensão. Parece, portanto, que a força motriz das Investigações se assenta numa antropologia filosófica que substitui a base lógica desejada no Tractatus. Participar de uma forma de vida é se adaptar a uma determinada maneira de compreender o mundo, de agir e de se relacionar. É poder não só entender o que é dito, mas também entender as ambiguidades possíveis de determinados enunciados; é participar de uma comunidade cultural.

Uma pessoa que chegue a uma terra desconhecida aprenderá algumas vezes a língua dos seus habitantes através de explicações ostensivas, que estes lhe darão; e muitas vezes terá de adivinhar a interpretação destas explicações; e algumas vezes adivinhará corretamente, outras vezes incorretamente (WITTGENSTEIN, 1995b, § 32).

Devemos entender, por exemplo, que participar de uma

forma de vida não é só conhecer a língua de determinado país, mas é compreender o modo como aquela comunidade vive. Podemos conhecer as palavras, conhecer as regras gramaticais de determinada língua, porém, se não nos são próximas as circunstâncias do cotidiano daqueles que a praticam, teremos sérias dificuldades para saber o que pretendem expressar. Assim,

saber do significado envolve saber a que objeto alguém se refere numa dada ocasião de uso, se é gíria ou não, se é um segmento incompleto de uma fala, se a prosódia importa ou não, etc. Saber disso é simplesmente saber como usar e, geralmente quem sabe usar, sabe o significado (ARAÚJO, 2004, p. 111).

Resulta desse posicionamento o fato de saber que os

significados não podem ser entendidos de maneira privada, eles são decorrência de processos intersubjetivos. Enquanto

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ferramenta, a linguagem pede que se compreenda o contexto e a dinâmica de sua utilização. Se nossa intenção é pregar, usamos o martelo; caso queiramos parafusar, o instrumento adequado é a chave de fenda, e assim por diante. Esse é também o procedimento que deriva de um jogo de linguagem. Quando queremos rezar, contar uma piada, declamar um poema, fazer uma operação matemática, emitir um juízo ou um som que signifique dor etc. dispomos de modos específicos para a ação. Não podemos simplesmente admitir a possibilidade de martelar usando a chave de fenda? Evidente e, talvez, cheguemos ao resultado esperado, porém, as dificuldades serão manifestas.

Ao utilizarmos a ferramenta indicada para cada operação, nossas chances de êxito aumentam. Diz Wittgenstein no parágrafo 1 das Investigações filosóficas: “todas as palavras chegam algures a um fim”; ou seja, todas as palavras transmitem alguma informação, mas se praticarmos o jogo adequado veremos nosso esforço traduzido em sucesso. Seguimos o filósofo em mais uma indicação esclarecedora:

A religião ensina que a alma pode subsistir quando o corpo se desintegra. Compreendo eu então o que a religião ensina? – Claro que compreendo, eu posso ter dessa ideia diversas imagens visuais. Já se fizeram pinturas sobre estes temas. E por que seriam estas pinturas apenas uma reprodução imperfeita do pensamento expresso em palavras? Por que não podem desempenhar a mesma função da doutrina expressa em palavras? E o essencial é a função (WITTGENSTEIN, 1995b, parte II, IV-4).

Parece existir uma espécie de constância no

comportamento humano alicerçado sobre as regras; ela seria responsável por certa estabilidade em nossas relações. É por isso que podemos falar de uma uniformidade natural nos comportamentos de reação. As regras de convivência que herdamos nos mantêm numa regularidade que fixa traços de

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nossa cultura específica. Estas regras não são dadas a priori, não são produtos de uma mente alçada por sobre o mundo. Elas não são exclusivas de um cogito isolado. Não estão no interior de um eu desengajado. Por isso, como indicamos acima, elas não podem ser cumpridas em instância privada. As regras também não compõem uma espécie de condição prévia das coisas. Aliás, se poderia afirmar que são elas que apresentam as condições em que as expressões e o mundo adquirem sentido. O sentido ou sua carência emergem de uma atividade social em constante transformação. O filósofo esclarece:

O médico pergunta: ‘Como é que ele se sente?’ A enfermeira responde: ‘Ele está a gemer’. Um relato acerca do comportamento. Mas tem que necessariamente existir para ambos a questão de saber se este gemer é realmente genuíno, realmente a expressão de qualquer coisa? Não poderiam, por exemplo, tirar a seguinte conclusão ‘Se está a gemer, temos que lhe dar mais analgésico’ sem ter que ocultar um termo médico? Não é o essencial a função que para eles desempenha a descrição do comportamento? ‘Mas, então, eles adotam justamente um pressuposto tácito’. Mas o processo do nosso jogo de linguagem assenta, então, sempre num pressuposto tácito (WITTGENSTEIN, 1995b, parte II, V-4).

Estaríamos em condições de afirmar que o uso da

linguagem no espaço de um jogo não pode ser feito indiscriminadamente. Nossos jogos são determinados por regras, ou seja, por sua gramática e é por isso que vivenciamos certa constância em nossas relações. Não podemos duvidar que o ato de gemer, como expresso na citação acima, signifique ‘ter dores’. Gemer pressupõe dor e, portanto, podemos tomar medidas curativas. Não faz sentido perguntar pelo significado do gemer, ou de cada uma das palavras. Perguntar-se sobre o que o interlocutor quis dizer com determinada expressão é não entender o jogo. O não domínio

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do jogo revela falta de familiarização com determinada atividade. Resta então, ensinar o jogo:

A forma de vida na qual concordam todos os utentes de uma linguagem é uma forma de vida onde seguir regras se tornou uma espécie de segunda natureza não redutível a quaisquer explicações mentalistas, na medida em que estas incorreriam sempre num vício de circularidade, já que a possibilidade da sua ocorrência pressupõe como um dado primitivo precisamente aquilo que elas pretendem explicar e fundamentar. Pôr em questão, como diz Pears, a autoridade que me leva a chamar de vermelho à cor de uma dada flor é auto-excluir-me do jogo de linguagem de descrever as cores das coisas (ZILHÃO, 1993, p. 175).

A prática de um jogo não é uma disposição herdada naturalmente. É preciso aprender a jogar; é preciso dominar suas regras. Assim, essa espécie de adestramento inicial torna possível nossa participação no ambiente em que estamos. É necessário, portanto, certo tipo de adestramento não intencional. De fato, temos um caráter de não intencionalidade em tal situação. Para ilustrar, o autor das Investigações remete ao exemplo do livro Confissões com que abre as Investigações Filosóficas, para criticar o modus operandi destacado por Santo Agostinho para descrever um sistema de comunicação.

Santo Agostinho descreve, poderíamos dizer, um sistema de comunicação; só que nem tudo aquilo que chamamos de linguagem é este sistema. E isto é o que se tem que dizer em todos aqueles casos em que se põe a questão ‘Pode-se usar esta descrição ou não?’ A resposta então é: ‘Sim, pode usar-se, mas apenas para este domínio estritamente circunscrito [linguagem primitiva], não para a totalidade que tinhas a pretensão de descrever’ (WITTGENSTEIN, 1995b, § 1).

Wittgenstein continua mostrando que essa ‘linguagem

primitiva’ descreve uma forma de comunicação, mas ela não

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abarca todas as nuances e toda a complexidade de nossa linguagem.

É isso mesmo que é notável na intenção, nos processos da consciência, que para eles [um povo que não conhece o jogo de xadrez] a existência do costume, da técnica, não é necessária; que é, por exemplo, pensável que num mundo, no qual não existem jogos, duas pessoas joguem uma partida de xadrez, ou também só o princípio de uma partida de xadrez e depois sejam interrompidas. Mas o jogo de xadrez não é definido pelas suas regras? E como é que estão estas regras presentes no espírito daquele que têm a intenção de jogar xadrez? Seguir uma regra é análogo a obedecer a uma ordem. É-se para isso adestrado e reage-se de uma determinada maneira. Mas se, quer à ordem quer ao adestramento, uma pessoa reage de uma maneira, outra pessoa de outra maneira, etc.? Quem é que tem razão? (WITTGENSTEIN, 1995b, § 205).

Assim, podemos dizer que sempre temos a intenção de

usar determinado jogo de linguagem. Este não é usado de forma automática; se entendemos as regras, sabemos usá-las. E é só pelo fato de termos consciência das regras é que somos capazes de perceber quando ela é violada. É por isso que a adequação da regra ao contexto é de responsabilidade daquele que fala.

A variação dos critérios de julgamento é o domínio da significação conceitual; tal é um dos mais esclarecedores resultados da terapia filosófica. Daí também fica claro que, do ponto de vista da pragmática filosófica, a diferença categorial entre o substantivo mesa e o adjetivo vermelho torna-se operatória somente após a introdução de associações convencionais e elementares que têm a função não de conectar o pensamento com a realidade que lhe é exterior, mas de tornar possível o pensamento significativo assim como a significação da realidade. O conteúdo está para o pensamento assim como este para a realidade, a saber, são duas condições de possibilidade, e estas são geradas por associações convencionais e elementares que introduzem a função

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transcendental no interior da empeiria (MORENO, 2005, p. 388).

Que distância desde as pretensões do Tractatus! Não

sendo mais a isomorfia mundo-linguagem o objetivo a ser alcançado pela análise, um número mais expressivo de fatores é reivindicado na composição do significado de nossas expressões. Os elementos lógicos e os dados sensíveis constituem apenas parte do amplo conjunto de tantos outros jogos possíveis. Uma determinada palavra pode ter um número indefinido de emprego, e o problema filosófico mais expressivo mostra-se no exercício de vigilância do uso das regras nas paisagens da gramática de um jogo, tanto em sua superficialidade quanto em sua profundidade.

Porque os problemas, que devem desaparecer, são mal-entendidos gramaticais, isto é, provêm de uma interpretação errônea do emprego ou da gramática de nossa linguagem, também o trabalho filosófico toma a forma de uma consideração gramatical. E, à medida que a gramática designa as regras do emprego de uma palavra, ou também, o complexo das regras que constituem uma linguagem, ela é “anterior” ao uso concreto das palavras e da linguagem das situações particulares da vida (SPANIOL, 1989, p. 111).

Neste sentido, Wittgenstein (1995b, § 664) afirma:

No uso de uma palavra podia distinguir-se uma ‘gramática de superfície’ de uma ‘gramática profunda’. Aquilo que no uso de uma palavra é imediatamente registrado por nós é o seu modo de aplicação na construção da frase, por assim dizer a parte do seu uso que se pode captar com o ouvido. – E agora compara a gramática profunda da palavra ‘intencionar’ com aquilo que a sua gramática de superfície nos deixaria conjecturar. Não é de admirar que se ache difícil saber-se onde se está.

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A gramática superficial é aquela que subjaz à estrutura de uma frase. É a gramática, por exemplo, aprendida na escola, indicando o valor gramatical de cada palavra numa frase (sujeito, predicado etc.). A gramática profunda, por sua vez, subjaz como condição de possibilidade. Numa metáfora, tomando como exemplo um rio, poderíamos dizer que a gramática superficial equivaleria às suas margens em constante mudança, e a gramática profunda seria equivalente ao seu leito. Wittgenstein (1995b, § 665) esclarece:

Imagina que uma pessoa, com a expressão facial de dor, aponta para a sua cara e diz: ‘Abracadabra!’. – Nós fazemos-lhe a pergunta: ‘O que é que queres dizer?’ E a sua resposta é: ‘Quero dizer que tenho dores de dentes’. O teu pensamento imediato é: como é que, com aquela palavra, se pode ‘querer dizer dores de dentes’? Ou o que significa, então, com aquela palavra, quer dizer dores de dentes? E, no entanto, num outro contexto, terias afirmado que a atividade mental de querer dizer isto e aquilo é, justamente, o que é mais importante no uso da linguagem. Mas como é então? Não posso dizer com a expressão ‘abracadabra’ quero eu dizer dores de dentes? Com certeza; mas isto é uma definição, não é uma descrição do que se passa em mim ao pronunciá-la.

Compreender a gramática profunda é entender como se

vive em determinada forma de vida; é conhecer os contextos nos quais é possível proferir uma determinada palavra, mas é também a exigência para que se possa dar um encaminhamento adequado na solução de um problema. Sim, a filosofia preserva ainda, nas Investigações, sua função terapêutica.

De fato, à terapia não concerne propor distinções funcionais entre níveis de sentido, mas exclusivamente combater confusões conceituais. Esse combate é travado, indistintamente, em qualquer nível de elaboração do sentido, sendo que a própria distinção resulta do combate. Durante o processo terapêutico, vemos que há diferentes formas de se

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introduzir normas na linguagem – o uso nominal das palavras, as provas e demonstrações matemáticas e lógicas (MORENO, 2005, p. 301).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Das análises depreendidas que se estendem dos jogos de linguagem, passando pela noção de seguimento de regras, semelhanças de família, forma de vida e chegando às noções de gramáticas superfical e profunda, podemos recolher ideias matrizes que nos permitem três linhas de raciocínio. A primeira nos conduz ao reconhecimento da renovação produzida por Wittgenstein sobre suas primeiras convicções. As Investigações efetuaram uma modificação definitiva no modelo de isomorfismo pretendido no Tractatus. A linguagem formal não abarca a totalidade de nossas expressões. Não cabe dizer que aquela linguagem tenha se tornado invalidada, caberia, antes, afirmar que é apenas uma entre tantas outras possibilidades de dizer o mundo. Se o Tractatus sustentou a positividade da Verdade Jurídica, as Investigações, por seu turno, permitem o rompimento das amarras que mantêm cativa a Ontologia. A escola, como espaço privilegiado para a educação formal, não pode ser o local de uma linguagem engessada.

Uma segunda linha de raciocínio permite-nos afirmar que a mudança constatada imprimiria um sentimento de desassossego nas pretensões de uma concepção científica do mundo, conforme os auspícios do Círculo de Viena. A utopia de uma ciência unificada sob a égide de uma linguagem formalizada e do recurso à verificação empírica elitiza apenas um procedimento – o bom procedimento – em detrimento da pluralidade dos demais recursos de nossa linguagem. Além disso, o modelo matemático melhor adaptado às ciências duras, não poderia ser transposto com tanta facilidade para as ciências humanas, jurídicas e sociais. A noção de jogo de

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lingagem coloca-nos frente à pluralidade das linguagens, sendo nenhuma delas suficiente. A escola, como lugar de ciência, é também lugar da vida. Uma cientificização do mundo e da linguagem estaria a serviço do progresso, mas por outra via, seria o palco da morte do espírito.

A terceira linha de reflexão, resultado das duas anteriores, é aquela que nos oferece condições para uma crítica às pretensões de elencar os elementos formais como melhor critério para a elaboração de nossos currículos. A educação é uma forma de vida. Nela, os jogos de linguagem se sucedem. Não há primado entre os jogos, uma vez que não existe uma linguagem melhor que a outra. Não há uma hierarquia entre eles. Um jogo não possui autoridade sobre outro. A pretensão de verdade se limita à regra do jogo.

Finalmente, a concepção pragmática de linguagem, defendida por Wittgenstein, desenha um contexto epistemológico desafiador. A Educação não se sustenta sobre uma linguagem única, universal, com pretensão de exclusividade. A comunidade educativa não pensa na verdade teoricamente, ela vê a verdade que pratica. Mais do que lutar por uma verdade definida, a base educativa que emerge das reflexões do autor sugere atenção ao contexto intersubjetivo experimentado por seus protagonistas.

É posssível afirmar que a Educação é ela mesma um jogo de linguagem. Por extensão, suas partes contitutivas podem ser entendidas como jogos dentro de jogos. A verdade, mais do que dependente de um estatuto privilegiado conferido tanto ao Sujeito quanto ao Objeto, é encontrada em suas regras constituintes. Existe uma variedade de jogos de linguagem na Educação e seu sentido é determinado pela diferença de suas regras. Cada jogo é independente. Nada existe de comum entre as regras a não ser a semelhança de família. Talvez Wittgenstein, com a renovação, seja alento para um incursão mais aberta sobre as questões de partes significativas do discurso educativo numa sociedade de contornos complexos

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como esta de nossos tempos. É fundamental uma modificação na maneira de olhar a Educação. O olho não pode modificar o objeto, tem de modificar a si mesmo. REFERÊNCIAS

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ZILHÃO, Antonio. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem: estudos sobre Wittgenstein. Lisboa: Colibri, 1993.

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Capítulo 17 GGAASSTTOONN BBAACCHHEELLAARRDD:: EESSPPÍÍRRIITTOO DDEE EESSCCOOLLAA EE SSOOCCIIEEDDAADDEE

Fábio Ferreira de Almeida

O pensamento de Gaston Bachelard é, antes de tudo,

uma filosofia de rigor. Sua obra é fruto, no sentido mais próprio do termo, de um trabalho; trabalho exigente, um vigoroso esforço. Para o pensamento, tal como ele nos é apresentado pela filosofia bachelardiana, o cansaço, não sendo eventual, é revigorante. O espírito se constitui efetivamente, enfim, nestes momentos em que se retoma.

Pode-se afirmar que isso é sem dúvida correto para sua epistemologia, que elogia, como deixa explícito o capítulo III de Le rationalisme appliqué, os “trabalhadores da prova”, estes que constituem o cerne da chamada “cidade científica”. Entretanto, também a poesia não prescinde deste trabalho e, tanto quanto a ciência, radica no rigor e num dolorido esforço sua fonte. Conhecer o real, a natureza, bem como conceber imagens que cantem o mundo, com efeito, é tarefa exigente cujo resultado se realiza de fato como obra. Em Bachelard, contudo, a fineza de percepção, seja da ciência seja da poesia, reside num seu idealismo que, naturalmente, se configura de uma maneira muito particular. É este idealismo que gostaria de tomar como ponto de partida para análise do papel da educação na obra do filósofo.

Esta análise não depende de se admitir e nem quer considerar, como afirma Michel Fabre, que Bachelard faz do

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problema da educação o tema central de sua obra (FABRE, 1995, p. 2). Já de saída, haveria de se perguntar se há, de fato, um tema que mereça, em detrimento dos demais, ser elevado a tal posição. O problema da educação e o tema da formação, no entanto, constituem um dos mais fecundos campos de reflexão abertos pela filosofia de Bachelard e, partindo daquele idealismo, é que se poderá mostrar de que maneira a escola se apresenta como um “espaço” de construção do espírito; espaço de abertura, dinamismo e, por que não dizê-lo, espaço também de transgressão. Neste momento, então, aparece o terceiro elemento que a análise a seguir pretende destacar e parece não ser precipitado supor que o leitor minimamente familiarizado com a obra do filósofo já o esteja aguardando deste o título, que remete, com efeito, à famosa divisa com que Bachelard encerra o livro La formation de l’esprit scientifique: a sociedade, a sociedade confrontada com a escola ou, parafraseando o enunciado da “tese filosófica” desta mesma obra, a escola que se forma contra a Sociedade163. Idealismo, formação e sociedade: eis, portanto, os elementos que, como pretendemos apresentar, devem balizar a reflexão acerca da educação a partir da obra do filósofo do novo espírito científico.

IDEALISMO E LEITURA Se, como vimos, rigor e precisão, marcas facilmente

reconhecíveis no trabalho do cientista, pertencem igualmente à atividade poética, a leitura não é exclusividade desta, como se poderia imediatamente pensar: ela caracteriza da mesma forma o pensamento científico. E é esta leitura que melhor caracteriza o idealismo bachelardiano. Em Idéalisme discursif, texto emblemático a este respeito, publicado inicialmente na

163 Cf. Bachelard (1970a, p. 23): “Eis então a tese filosófica que vamos defender: o espírito científico deve se formar contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a instrução da Natureza, contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e variado”.

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revista Recherches philosophiques, em 1934, e retomado na coletânea póstuma intitulada Etudes, encontramos valiosas indicações para se compreender o significado desta afirmação. O que Bachelard coloca em jogo aí é o problema geral da objetividade exigida pela racionalidade científica frente à realidade do mundo, frente à natureza. Esta questão será marcante em Le nouvel esprit scientifique e, de fato, o não-cartesianismo da ciência moderna introduz nas fundações da certeza este elemento desestabilizador que é o discurso, a comunicação, o diálogo. “O pensamento”, escreve Bachelard, “começa por um diálogo sem precisão em que sujeito e objeto se comunicam mal, pois são ambos diversidades desencontradas”. E continua: “É tão difícil reconhecer-se como sujeito puro e distinto, quanto isolar centros absolutos de objetivação” (BACHELARD, 1970b, p. 86). Idealismo discursivo, como bem sugere Georges Canguilhem, em sua Apresentação da coletânea de 1970 (p. 8-9), prepara os espíritos para que recebam as lições do novo espírito científico. Mais do que uma leitura da atividade científica, então, o que a epistemologia bachelardiana parece empreender é o esforço em mostrar que a ciência ela mesma se constitui como uma leitura do real e, com isso, se define, no sentido mais próprio do termo, como theoria164.

Se o real imediato é um simples pretexto de pensamento científico e não mais um objeto de conhecimento, será necessário passar do como da descrição ao comentário teórico.

164 Vale mencionar aqui o conhecido artigo de 1963, “Perspectives sur l’histoire des sciences”, publicado como último capítulo de seus Études d’histoire de la pensée scientifique, em que Alexandre Koyré afirma, em resposta a Henry Guerlac, que o acusava de idealista: “De fato, acredito que (e se nisso há idealismo, estou pronto a assumir o opróbrio de ser um idealista e suportar as críticas e reprimendas de meu amigo Guerlac) que a ciência, a de nossa época bem como a dos gregos, é essencialmente theoria, busca da verdade, e que por isso ela tem e sempre teve uma vida própria, uma história imanente, e que somente em função de seus próprios problemas, de sua própria história, é que ela pode ser compreendida por seus historiadores” (KOYRÉ, 2007, p. 398-399).

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Esta explicação prolixa espanta o filósofo que quer sempre que toda explicação se limite a desdobrar o complexo, a mostrar o simples no composto. Ora, o verdadeiro pensamento científico é metafisicamente indutivo. Como mostraremos insistentemente, ele lê o complexo no simples, ele diz a lei que corresponde ao fato, a regra que corresponde ao exemplo (BACHELARD, 1937, p. 6).

Em sentido epistemológico, então, leitura é teoria. A

imagem do comentário é, a este respeito, significativa e parece ser precisamente por esta via que se compreende o caráter histórico que distingue a epistemologia bachelardiana. Vale a pena aqui recorrer novamente a Canguilhem, que em seu conhecido artigo L’objet de l’histoire des sciences, de 1966, afirma que “o objeto em história das ciências nada tem em comum com o objeto da ciência” (CANGUILHEM, 1975, p. 17). De fato, quando a história se dirige à ciência, ela tem em vista aquilo que surge a partir do discurso que ela constrói; a história se dirige, em suma, a estes objetos que surgem do trabalho que o cientista empreende sobre aqueles objetos primeiros, naturais, que, sobretudo na era do novo espírito científico, não são mais que “pré-textos”. A história das ciências, ressalta ainda Canguilhem, não toma o discurso científico do mesmo modo que este toma, para constituir-se, o objeto natural. É precisamente aí, neste discurso construído, que a história empreende, por sua vez, sua leitura das crises, identifica a tensão e as regras de julgamento, as normas e a normalização levadas a cabo, enfim, tudo aquilo que constitui a ciência desde seu próprio interior. É no sentido desta leitura que o epistemólogo pode afirmar que “o verdadeiro pensamento científico é metafisicamente indutivo”. Aqui, à imagem galileana do livro, cuja leitura se torna possível uma vez dominada a linguagem matemática com que se pode representar o real, substitui-se a imagem da leitura pela qual, por assim dizer, se elimina a distância que separa o olho e o texto, leitor e autor ou, enfim, sujeito e objeto: sem impor sua

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obra às cores e à diversidade da Natureza, a razão científica, ao elaborar-se a si mesma, constrói ao mesmo tempo seus objetos – objetiva-se, portanto – e é deste “lugar” que ela olha o exterior. Este parece ser o sentido do comentário teórico.

Além disso, é preciso lembrar que a indução possui agora um sentido muito nítido, correlato do sentido do “vetor epistemológico” de que nos fala Le nouvel esprit scientifique (BACHELARD, 1937, p. 4): ela vai do racional ao real e não o inverso, do real ao geral como queria, por exemplo, a ciência de Descartes e de Galileu, fundamentando a imagem do livro. O primado da leitura não elimina, portanto, o caráter essencialmente teórico da ciência, mas por não mais precisar da Natureza, isto é, por causa da cisão entre o conhecimento comum e o conhecimento científico (que é o que marca, em suma, a objetividade que inaugura a era do novo espírito científico quando (a teoria einsteiniana da Relatividade vem deformar os conceitos primordiais que se considerava até então imóveis) [BACHELARD, 1937, p. 7] a theoria não pretende mais dizer matematicamente o como da Natureza, mas construir matematicamente o dado; não mais um modelo, uma representação, mas o próprio existente, o fenômeno mesmo. Daí porque “o mundo, doravante, surge como o pólo de uma objetivação, o espírito como o pólo de uma espiritualização” (BACHELARD, 1970b, p. 94). Tal objetivação e espiritualização, bem se vê, não se opõem, elas estão em diálogo, são complementares. E não é precisamente isso que, assim como a leitura, confere ao pensamento científico uma dinâmica própria? Este diálogo, enfim, essa discursividade é o cerne mesmo do idealismo bachelardiano.

O idealismo discursivo, que coordena e subordina as ideias, começa envolto em lentidão e dificuldades. Mas seu inacabamento lhe promete um porvir, a consciência de sua fraqueza primeira é uma promessa de vigor. O espírito dinamizado toma consciência de si em sua retificação. Diante do real devolvido à objetividade, o espírito consegue pensar a

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objetividade, isto é, consegue se desligar de si mesmo, de seu próprio pensamento. Diante da realidade organizada, o espírito assume uma estrutura. Ele adquire o hábito da idealização (BACHELARD, 1970b, p. 91).

Este hábito da idealização é a démarche mesma da leitura,

é como teoria que o espírito lê o complexo no simples, que ele pode dizer a lei que corresponde ao fato. Esta é a dinâmica que dá vida e vigor e que, deste modo, reinaugura o espírito científico. O novo espírito científico, então, tem por metafísica o idealismo e por método a indução. Mas trata-se, com efeito, aqui de um idealismo discursivo que permite ao sujeito eliminar suas singularidades, permitindo-lhe tornar-se um objeto para si próprio (ver BACHELARD, 1970b, p. 92) e, a partir desta crise, o estatuto ontológico do real assume este curioso privilégio: o da provisoriedade, do inacabamento. Neste sentido é que a indução coloca o fracasso (l’échec) no horizonte do pensamento científico e, assim fazendo, garante a ele vitalidade e juventude.

O artigo Idéalisme discursif se encerra com uma fórmula, muitas vezes lembrada, que reflete bem o que foi dito até aqui: “eu sou o limite de minhas ilusões perdidas” (BACHELARD, 1970b, p. 97). Esta fórmula, que o próprio Bachelard destaca com itálico, já se insinua no “paradoxo pedagógico”, que o filósofo enxerga na base da cultura e que enuncia da seguinte maneira: “a objetividade de uma ideia será tanto mais clara, tanto mais distinta quanto mais ela se mostrar sobre um fundo de erros cada vez mais profundos e mais diversos” (BACHELARD, 1970b, p. 89). O que sobressai daí é o papel que o erro assume na epistemologia bachelardiana, papel que deve ser imediatamente reconhecido como pedagógico, evitando assim o equívoco insistente de compreendê-lo propedeuticamente. E o que significa este papel pedagógico do erro? Ora, não significa que se aprende com o erro, no sentido em que podemos imaginar um moralista se precipitar

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em afirmar, mas que é no erro que melhor se pensa, que o erro é como que o elemento mesmo da reflexão. Uma passagem do último capítulo de Le nouvel esprit scientifique ilustra bem isso:

O espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Ele julga seu passado histórico condenando-o. Sua estrutura é a consciência de seus erros históricos. Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como retificação de uma ilusão comum e primeira. Toda a vida intelectual da ciência atua dialeticamente nesta diferencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. A própria essência da reflexão, é compreender que não se compreendia (BACHELARD, 1937, p. 173-4).

Este é o sentido propriamente pedagógico do erro: ele

ensina a viver, viver nesta fronteira, às vezes larga, mas quase sempre muito tênue, entre a certeza e a dúvida; ele ensina o gosto do risco, que não é mais que o gosto de abstração, o gosto pelo esforço do comentário teórico, pela leitura. Assim, pensar significa retificação, leitura significa invenção e, com isto, abertura e alargamento das possibilidades de conhecer. Este paradoxo pedagógico é que amedronta o pedagogo de primeira hora, esse ingênuo servidor da sociedade, pois, não alcançando o registro da ideia, se contenta com ilusões perenes. Para ele, ler é receber solenemente o texto e não dizê-lo. Somente quando a ideia de que “para ter sucesso é preciso errar” (BACHELARD, 1937, p. 173)165 deixar de constituir um paradoxo é que a cultura – e aí é possível enxergar Bachelard como um crítico da cultura, no sentido mesmo nietzschiano do termo – terá alcançado sua maioridade. A formação, tal como a entende Bachelard, é um encaminhar-se do espírito para esta maioridade.

165 “Il faut errer pour aboutir”.

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FORMAÇÃO DO ESPÍRITO E REFORMA DA RAZÃO O livro de 1938, La formation de l’esprit scientifique, se

anuncia como uma psicanálise do conhecimento objetivo. “A psicanálise na epistemologia?”, esta pergunta é o título do capítulo IV do famoso ensaio que Dominique Lecourt dedica ao pensamento de Bachelard, Bachelard ou le jour et la nuit. Lecourt tem total razão ao identificar na noção de obstáculo epistemológico o “ponto de inserção” da psicanálise na epistemologia, tal como Bachelard a concebe166. Tal inserção se liga, muito claramente, ao caráter essencialmente histórico da epistemologia bachelardiana, mas também àquele idealismo ao qual se submete a busca científica de maior objetividade. É, portanto, em nome da objetividade que se deve empreender a análise do conhecimento e tal análise é histórica na medida em que parte sempre necessariamente do presente da ciência em questão para interrogar seu passado; é da atualidade que se pode julgar, analisar e, por fim, curar o espírito das seduções às quais está exposto em sua humana existência, isto é, na medida em que é no mundo e junto às coisas. No primeiro capítulo da obra de 1938, intitulado precisamente La notion d’obstacle épistémologique, Bachelard esclarece, logo nas primeiras linhas, como deve ser entendida a noção de obstáculo epistemológico:

Quando se buscam as condições psicológicas dos progressos da ciência, chega-se facilmente à convicção de que é em termos de obstáculos que é preciso colocar o problema do conhecimento científico. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no próprio ato íntimo de conhecer que aparecem, por uma espécie de necessidade funcional, lentidões e abalos. É aí que

166 Lecourt (1974, p. 125). O estudo de Lecourt mereceria uma leitura mais cuidadosa que não pode ser feita aqui. Suas hipóteses acerca do pensamento de Bachelard são, quase todas, muito precisas e lúcidas.

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mostraremos causas de estagnação e até de regressão, é aí que descobriremos causas de inércia que denominaremos obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1970a, p. 13).

O problema do conhecimento, portanto, só poderá ser

bem considerado se se perceber que ele não diz respeito à Natureza, mas exclusivamente à razão. O erro assume com isso a positividade de que antes falávamos e também um importante papel pedagógico, pois ele ocorre apenas no íntimo, no âmago do ato de conhecer. O fracasso da experiência é, portanto, um fracasso da razão. Os obstáculos surgem precisamente nos momentos em que este esforço de abstração declina, em que o ímpeto indutivo é retido, quando a vigilância esmorece diante dos apelos sedutores da unidade do sujeito. É por isso que se deve, como ressalta Bachelard, em Le rationalisme appliqué, separar muito claramente “o caráter absoluto das censuras” da “relatividade da vigilância”. Tal distinção reafirma aquela separação entre conhecimento comum e conhecimento científico, entre a opinião (que é fruto da vontade do sujeito que se crê muito bem constituído e certo do mundo que o cerca) e o pensamento (que é intelectualmente construído segundo valores de racionalidade e por constante aprimoramento). Com efeito, “só se penetra verdadeiramente na filosofia racional quando se compreende que se compreende, quando se pode denunciar seguramente os erros e as falsas compreensões” (BACHELARD, 1994, p. 77). E poucas linhas mais à frente, nesta mesma obra, quase dez anos depois da publicação de La formation de l’esprit scientifique, Bachelard reafirma sua psicanálise do conhecimento objetivo:

A psicanálise do conhecimento objetivo e do conhecimento racional trabalha neste nível esclarecendo as relações entre a teoria e a experiência, entre a forma e a matéria, entre o rigoroso e o aproximativo, entre o certo e o provável – todas as dialéticas que demandam censuras especiais para que não se passe sem precaução de um termo a outro (BACHELARD, 1994, p. 79).

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Como se vê, a psicanálise do conhecimento objetivo, do

conhecimento racional tem também, e talvez mesmo acima de tudo, um papel pedagógico. A formação do espírito, como constante reforma da razão, ao mesmo tempo em que estimula o dinamismo da experiência, o esforço intenso do pensamento, na medida enfim que aprofunda e amplia a teoria, preserva às vivências seu caráter próprio e, assim, resguarda o sentimento do mundo e o caráter subjetivo que escapa a toda medida e a toda objetividade. O aparecimento de La psychanalise du feu no mesmo ano de La formation de l’esprit scientifique parece apontar para isso. Esta “unidade contraditória”, segundo a expressão de Lecourt (1974, p. 146), este “irritante problema da dualidade da obra de Bachelard” se esclarece muito naturalmente na medida em que se compreende sua démarche psicanalítica e pedagógica. É o que indica a citação a Paul Éluard, epígrafe que abre esta outra psicanálise: “Não se deve ver a realidade tal como eu sou”167.

A psicanálise parece estar para o pensamento de Bachelard, da mesma forma que a crítica está para o pensamento de Kant, o que se confirma, a nosso ver, pela seguinte passagem deste seu La psychanalyse du feu:

Longe de maravilhar-se, o pensamento objetivo deve ironizar. Sem esta malévola vigilância, jamais tomaremos uma atitude verdadeiramente objetiva. Se o que interessa é examinar homens, iguais, irmãos, a simpatia é a base do método. Mas diante deste mundo inerte, que não vive nossa vida, que não padece nenhuma de nossas penas e que não exalta nenhuma de nossas alegrias, devemos refrear todas as expansões, devemos coibir nossa pessoa. Os eixos da poesia e da ciência são, a princípio, inversos. Tudo o que a filosofia pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem feitos. É, portanto, necessário contrapor ao espírito poético expansivo, o espírito científico taciturno

167 “Il ne faut pas voir la réalité telle que je suis”.

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para o qual a prévia antipatia é uma saudável precaução (BACHELARD, 1999 , p. 12).

A atitude verdadeiramente objetiva, a antipatia do

racionalista, depende, portanto, destes limites bem estabelecidos. Mas o mundo jamais cessa de seduzir a razão e o pensamento comum – dos homens, nossos irmãos, nossos iguais – não se contenta com o que não lhe serve e repele o que a opinião julga ser a origem de penas e percalços. Aqui é preciso lembrar, no entanto, que a opinião não pensa, que ela julga mal e que, por um tribunal assim constituído, instaura-se a barbárie por falta ou por má educação. O que Bachelard entende por “formação” é fundamentalmente “reforma”, reforma da razão, reforma do espírito, e isto se dá dentro de limites bem estabelecidos pelo pensamento científico que é – eis aí uma lição importante de pedagogia – excludente, excelente, arrogante e... contrário à Sociedade.

ESPÍRITO DE ESCOLA E SOCIEDADE Para Bruno Duborgel, que encontra na obra de Bachelard

“os eixos principais de uma renovação do pensamento e do ato pedagógico”, se os métodos se multiplicam, falta espírito pedagógico à escola. Ainda que muito consciente de que não há na obra do filósofo nenhum tratado de pedagogia, o que Duborgel nos apresenta em seu artigo L’éveil de l’être aux croisées du connaître é, então, este “novo espírito pedagógico” que passa necessariamente por “um novo equilíbrio do pensar e do sonhar” e, em sua opinião, deste equilíbrio a obra bachelardiana, se não fornece nenhum método, nenhuma teoria, oferece um testemunho de incontestável riqueza (ver DUBORGEL, 1975). O que chamamos aqui de “espírito de escola” é, entretanto, algo bastante distinto deste novo espírito pedagógico. Na verdade, o que gostaríamos de propor como conclusão é que o espírito de escola é o próprio espírito da

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ciência contemporânea, e que se há um “espírito pedagógico” a ciência não representa apenas uma parte dele. É o que, segundo nos parece, sobressai, por exemplo, do último parágrafo do artigo de 1951, L’actualité de l’histoire des sciences, que nos permitiremos transcrever integralmente:

A história das ciências, meditada nos valores de progresso e nas resistências dos obstáculos epistemológicos, nos oferece verdadeiramente o homem integral. Se essa história tem uma atualidade manifesta, é precisamente porque, com efeito, sente-se que ela representa um dos traços profundos do destino do homem. A ciência tornou-se parte integrante da condição humana. Ela tornou-se? Ela já não o era quando o homem compreendeu o interesse da pesquisa desinteressada? Ela não era, desde a Antiguidade, uma verdadeira ação social do homem solitário? Não há pensamento científico que seja verdadeiramente egoísta. Se o pensamento científico fosse primitivamente egoísta, ele assim teria permanecido. Seu destino era outro. Sua história é uma história de especialização progressiva. A ciência é, atualmente, inteiramente socializada. Há alguns séculos a história das ciências tornou-se a história de uma cidade científica. A cidade científica, no período contemporâneo, tem uma coerência racional e técnica que afasta toda volta atrás. O historiador das ciências, caminhando ao longo de um passado obscuro, deve ajudar os espíritos a se conscientizarem do valor profundamente humano da ciência atual (BACHELARD, 1972, p. 151-2).

O que interessa à escola, o que deve, por assim dizer,

animar a escola, é então isso que anima a cidade científica, ou seja, a consciência clara do destino do homem. E se nos for permitido dizê-lo assim, esta consciência é propriamente consciência histórica. Mas o que isso significa? Ora, significa consciência da atualidade, que é o que impede todo recuo na história, toda regressão, e o que impele, enfim, o espírito rumo à superação do próprio espírito. Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, a especialização assinala aquele progresso permanente, assinala também a socialização

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profunda e crescente do pensamento científico, seu valor profundamente humano.

É este valor que, num registro completamente diferente, ressoa também da obra poética, dos devaneios de leitura. Temos aí um aspecto comum à epistemologia e à filosofia literária, ligação que pode ser bem percebida no importante artigo de 1936, Le surrationalisme. Este “surracionalismo”, Bachelard o esclarece como sendo “uma razão experimental suscetível de organizar surracionalmente o real, como o sonho experimental de Tristan Tzara organiza surrealisticamente a liberdade poética” (BACHELARD, 1972, p. 7-8). É este valor profundamente humano da literatura, isto é, a integralidade que o homem encontra – ou reencontra – também na poesia, que é retomado, por exemplo, na obra inaugural da série da década de 40, L’eau et les rêves, na qual lemos que

a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. O homem é um homem à medida em que é um além do homem [surhomme] (BACHELARD, 1942, p. 23).

E a obra imediatamente posterior, L’air et les songes, já se

abre com a afirmação de que a imaginação é a faculdade de “deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de nos liberar das imagens primeiras, de mudar as imagens”. E logo em seguida: “Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. Ela é, no psiquismo humano, a própria experiência de abertura, a própria experiência de novidade” (BACHELARD, 1998, p. 5-6). Não é esta mesma experiência fundamental de abertura e de novidade que nos apresenta a ciência contemporânea em sua coerência racional e técnica, e também por seu caráter socializado? Assim, tanto a ciência como a literatura, tanto a racionalidade objetiva quanto o devaneio poético, tanto a

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reflexão como a leitura exigem o homem integral e este, bem se pode adivinhar, repele todo humanismo ingênuo e passivo. Somente neste sentido é que o pensamento da ciência e da poesia se firma como pensamento que possibilita a experiência da dignidade propriamente dita do homem. Podemos afirmar, então, que o pensamento que encontra o “homem integral” pensa contra o humanismo.

Este pensamento do contra – a ciência e a literatura –, pensamento de uma escola permanente, é o que resulta da inversão com a qual Bachelard encerra seu livro sobre A formação do espírito científico e para a qual temos acenado desde o título. A passagem é bastante conhecida:

A ciência só existe por uma Escola permanente. É esta escola que a ciência deve fundar. Então, os interesses sociais serão definitivamente invertidos: a Sociedade será feita para Escola e não a Escola para a Sociedade (BACHELARD, 1970a, p. 252).

Compreender esta inversão e seu significado para a

educação, para escola, passa evidentemente pela pergunta acerca destes “interesses sociais”. Que interesses são esses? Diríamos que são precisamente os interesses da vida, dos valores correntes da vida que, em nossa época, sobretudo, reduzem-se ao sucesso, ao êxito, à prosperidade e à vitória. O que a escola deve ensinar, o que se exige da escola, seu papel, tornou-se este: preparar para a vida ou, talvez devêssemos dizer antes, facilitar a vida, torná-la mais confortável. E não é isso uma forma de avareza? Feita para a sociedade, a escola forma o homem avaro. O que embota o espírito de escola é o que poderíamos chamar de uma pedagogia realista que, no mesmo estilo do obstáculo realista, do “complexo de Arpagon”, deve ser psicanalisada. “Do ponto de vista psicanalítico e nos excesso de ingenuidade, todos os realistas são avaros. Reciprocamente, e agora sem reserva, todos os avaros são realistas” (BACHELARD, 1970a, p. 131-2). Com

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efeito, o “espírito de escola” depende de uma “psicanálise do sentimento de posse”168.

Contrariamente a esta pedagogia detestável, o interesse a que a escola deve servir é o interesse do espírito e é neste sentido – socializado e generoso – que se deve compreender a injunção de que a Sociedade deve ser feita para a Escola. A dinâmica do espírito deve orientar a vida, é pelo espírito que se vive e diríamos mesmo que só assim o homem constrói verdadeiramente o mundo: pela dinâmica dos valores que são fatalmente imobilizados pelo que serve à vida. O espírito coloca tais valores em movimento, em tensão. O espírito é que faz vibrar os valores. Para retomar a fórmula de uma das últimas obras de Bachelard, do período em que toda esta dinâmica se concentra na noção de poética (última fase necessariamente), digamos por fim que o homem integral é um “ser não fixado”169. Por isso, a Escola é permanente. REFERÊNCIAS BACHELARD, G. Le nouvel esprit scientifique. Paris: Felix Alcan, 1937. _______. L’eau et les rêves. Paris: José Corti, 1942. _______. La formation de l’esprit scientifique. Paris: J. Vrin, 1970a. _______. “Idéalisme discursif”. In: BACHELARD, G. Études. Paris: J. Vrin, 1970b. _______. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972.

168 Bachelard (1970a, p. 131). Em francês: “sentiment d’avoir”. 169 Trata-se de La poétique de l’espace (Paris: PUF, 1998), no capítulo IX intitulado La dialectique du dehors et du dedans. Penso que vale a pena citar a passagem inteira: “Assim, o ser em espiral, que se designa do exterior como um centro bem determinado, jamais alcançará seu centro. O ser do homem é um ser não-fixado. Toda expressão o desfixa. No reino da imaginação, mal uma expressão é enunciada e o ser tem necessidade de outra expressão, o ser deve ser o ser de outra expressão” (p. 193).

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_______. Le rationalisme appliqué. Paris: PUF, 1994. _______. L’air et les songes. Paris: José Corti, 1998. _______. La psychanalyse du feu. Paris: Gallimard/Folio, 1999. CANGUILHEM. G. Etudes d’histoire de la pensée scientifique. Paris: J. Vrin, 1975. DUBORGEL, B. “L’éveil de l’être aux croisées du connaître. Elements bachelardiens pour un nouvel esprit pédagogique”. In: Revue française de pédagogie. Vol. 31, 1975, pp. 83-95. FABRE, M. Bachelard éducateur. Paris: PUF, 1995. KOYRÉ, A. Études d’histoire et de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 2007. LECOURT, D. Bachelard ou le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974.

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Capítulo 18 FFOOUUCCAAUULLTT,, AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE AASS RREESSIISSTTÊÊNNCCIIAASS

AAGGOONNIIZZAANNDDOO AA MMÁÁQQUUIINNAA PPAANNÓÓPPTTIICCAA

Gilmar José De Toni Como a proposta deste trabalho é um abordagem sobre

Foucault e a educação, sabemos que podemos partir de vários textos deste autor para tal discussão. Por escolha nossa, partiremos de uma perspectiva que pode ser encontrada no segundo eixo de suas investigações, muito explorada por pesquisadores do campo educacional, conhecido como o eixo genealógico. Nele, Foucault trata sobre o poder, suas estratégias e as formas de saber, e a publicação de Vigiar e Punir, em 1975, inaugura esse eixo de investigação. Por isso, pensaremos sobre o sistema educacional em Foucault a partir de alguns conceitos essenciais presentes nesta obra, tais como: a disciplina e sua principal máquina, o panóptico170.

Foucault utilizou esses conceitos para mostrar o funcionamento da sociedade ocidental, principalmente a partir do final do século XVIII, e também para mostrar como o indivíduo Moderno é produzido a partir da contribuição dessa forma arquitetônica. Utilizaremos essa ideia do panóptico como o modelo que, segundo ele, distribui as relações de forças ou de poder com suas estratégias e que servem para caracterizar nossa sociedade como disciplinar, que é onde se

170 Sobre o Panóptico e a disciplina, ver o livro Vigiar e punir: nascimento da prisão.

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localiza o arquivo do saber com suas técnicas que captam o indivíduo e seu comportamento.

Tendo em vista que o panóptico e a disciplina são as duas principais formas que se desenvolvem na estrutura da sociedade ocidental, pelo menos nos últimos três séculos, através da fórmula “ver sem ser visto”, que gera o poder para o observador, e, também a partir da demonstração de Foucault em seus últimos escritos em que aponta a “crise das instituições disciplinares”171, o fracasso de algumas ou a tentativa de abolição de outras, queremos aqui, para pensar a escola e o sistema educacional, problematizar esta fórmula do “ver sem ser visto”, que foi a fórmula por excelência para que se produzissem as relações de poder-saber nos “micro-diagramas”172 que se encontram em nossa sociedade. Ou seja, queremos mostrar que talvez esta fórmula funcione não somente para quem observa, mas também para as multiplicidades constantemente vigiadas, e que, possivelmente, pode ser este um dos motivos que levaram essas estruturas à derrocada – não à crise generalizada – pois, o que as coloca em crise são os novos mecanismos da “sociedade de controle”173 que surgem depois da Segunda Guerra Mundial; no entanto, o fato de que o indivíduo observado também observa pode estar, há muito tempo, contribuindo para o fracasso de algumas delas.

171 Foucault aponta a crise das instituições disciplinares em uma entrevista com o título “A sociedade disciplinar em crise”, que se encontra no livro Ditos e Escritos IV da tradução brasileira. 172 Para se entender ou conhecer melhor o conceito de diagrama, ver o livro Foucault de Deleuze, no capítulo: “Do arquivo ao diagrama”, onde Deleuze apresenta cada formação ou período histórico apresentados por Foucault como formações diagramáticas, em que cada uma dessas formações estabelece suas próprias relações de forças ou de poder. Utilizo aqui o conceito de micro-diagrama para mostrar que cada instituição disciplinar da sociedade ocidental, seja ela a escola, o hospital, a prisão, etc. é um pequeno diagrama contido em um diagrama maior que é o todo da sociedade. 173 Sobre a sociedade de controle ver o livro de Deleuze Conversações, no capítulo, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”.

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Considerando que, em tais instituições, a produção de saber, pelo menos aqueles que estão relacionados com o controle do corpo, é efeito do poder que se estabelece entre os indivíduos, como afirma Foucault, de alto a baixo, de um lado a outro e de forma transversal, isso significa dizer que essas estruturas produzem poder e saber tanto para quem observa como para quem está sendo observado. Ou seja, podemos ter uma ideia de uma fórmula que é um “encontro de olhares”, ou melhor, algo que constitui uma situação de “ser visto e ver”, pois todos sabem que estão sendo vistos, mas também todos têm a noção de que veem também e que influenciam a partir deste ver. Obviamente, esta forma de ver não é a mesma de quem vigia, mas o fato de que o observado sabe que está sendo visto, é prova de que ele sabe como a estrutura funciona, e, por isso mesmo, quem está sendo observado consegue, de certa forma, manipular a estrutura.

Com isso querendo dizer que, se pensarmos como as relações de forças ou de poder são exercidas entre os indivíduos, segundo Foucault, perceberemos que essas relações funcionam movimentando-se tanto de um lado como do outro, de alto para baixo e vice-versa e, também, que elas se cruzam em uma transversalidade, ou como em uma meada onde os pontos e os nós dessas relações se encontram em determinado momento, considerando que não há centralidade do poder, ou um ponto fixo de onde ele emana. Então, a partir dessa fórmula, podemos talvez tentar demonstrar alguns motivos que levaram as estruturas da disciplina a apresentar seu fracasso, que é o caso da prisão, já no começo do século XIX, e de algumas outras estruturas que entraram em crise no decorrer do século XX.

O que estamos tentando dizer aqui é que o sujeito, que está constantemente sob observação, também tem a visão da instituição em que está inserido, e, por isso mesmo, influencia diretamente na organização dessa instituição e na maneira de seu funcionamento, ao mesmo tempo em que produz um tipo

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de autonomia no seu interior e se auto produz. É ele, de certa maneira, que determina o funcionamento do espaço em que está, seja na escola, na prisão, no orfanato, na fábrica, assim como em outras instituições disciplinares. Salvo, talvez, algumas que envolvem a saúde e o poder médico, mas, mesmo essas estão sujeitas às mudanças provocadas pelos sujeitos que as frequentam mais que pelo próprio poder médico.

Claro que, se falarmos do hospital, sabemos que o poder médico está presente em toda a estrutura dessa instituição, principalmente quando se trata da relação do poder médico sobre os pacientes, pelo fato de que ele detém o saber médico, pois é ele que tem o conhecimento necessário para o internamento, o isolamento, o tratamento, o diagnóstico e a cura, e também, é o médico que tem o papel de indicar as regras técnicas para o funcionamento de tais instituições. Contudo, devemos lembrar que parte da influência no funcionamento da máquina hospitalar está nas mãos do público que a utiliza, pois esse público se movimenta, reclama e interdita os centros de saúde, porque produz resistência contra a forma como este modelo atua com a população, por que esse público sabe como ele funciona, se bem ou mal, e exige constantemente sua adequação e readequação, a partir de medidas políticas e administrativas a favor ou contra certos modos de funcionamento da máquina-hospital.

Já na escola, percebe-se uma certa emancipação do aluno frente à estrutura disciplinar; pois, em certos aspectos, estas estruturas já não dão mais conta de fazer efetivamente o controle e a formação do aluno. Ainda resta saber se as escolas estão preparadas para educar com as novas formas que a sociedade atual de controle impõe, considerando que os alunos, em parte, utilizam aparelhos da sociedade de controle, enquanto certas escolas, ou quase sua maioria, ainda vivem com os mecanismos, métodos e técnicas da disciplina. E o fato dos alunos usarem certos aparelhos em sala representa, por

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um lado, que eles sabem que podem obter os conteúdos que os professores estão ministrando de forma mais rápida, por outro lado, pode simplesmente representar uma forma de resistência a esse modelo de educação. Se a crise ou decadência da estrutura disciplinar, como o próprio Foucault já apontava, é um fato real na atualidade, nos colocamos a pensar se realmente as instituições pedagógicas estão conseguindo desenvolver seu papel como estruturas com projetos e modelos para educar com eficiência, tendo em vista os novos instrumentos tecnológicos utilizados pelos alunos, mas que, no entanto, as escolas não os têm e muito menos os professores.

Por isso, estamos dizendo que já não faz mais tanto sentido dizer ou utilizar o argumento de que somente o aluno está sendo vigiado, regulado, dominado ou que somente ele está sob o controle de alguém, ou seja, do aparelho ou da máquina educacional. Isso se dá justamente porque ele, o aluno, sabe muito bem como estas estruturas funcionam, com todos os seus programas disciplinares, suas regras de condutas, formas de exame/prova, controle das ausências e presenças, das políticas educacionais ou a própria política estatal enquanto mantenedora do sistema educacional, entre tantas outras formas de controle. Isso porque, tanto o aluno como os pais – bem como todo o conjunto de profissionais que fazem parte do sistema educacional: professores, psicólogos, coordenadores pedagógicos, diretores, assistente social, associações de pais e mestres, sindicatos, etc. – todos sabem como funciona o aparelho político direcionado à instituição escolar.

O estudante vê ou percebe o descaso do aparelho político ou dos próprios políticos com relação à educação. Porém, não queremos aqui entrar em tais problemas, pois a maioria desses problemas é conhecida por todos. Enfim, somente para apontar algumas lacunas que ficam em aberto pelas administrações políticas, poderíamos citar como exemplo a falta de verba para as escolas e as consequências

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que isso gera, tais como: escolas sucateadas; sem segurança (o que torna a escola, em certos locais, um ponto de venda de todo o tipo de entorpecente mais do que um local de educação); escolas sem materiais para os educadores incentivarem os alunos; baixo incentivo para o transporte dos estudantes e a falta de uma alimentação adequada; falta de incentivo para os professores como: salários, planos de saúde tanto física quanto psicológica adequada para tais profissionais; falta de um plano de carreira com estímulos; o excesso de hora/atividade semanal. Tais problemas provocam stress e outros tipos de enfermidades tanto psíquicas quanto somáticas em todos os que estão ligados a esse aparelho.

Todo esse conjunto de desmotivações é maior que as motivações e faz com que a qualidade da educação caia a níveis baixíssimos. Essa mesma desmotivação contribui para que a estrutura disciplinar não possa cumprir com o seu papel de fomentadora de um indivíduo capaz de produzir conhecimentos no nível esperado. E isso também leva ao desmascaramento e desmantelamento desta máquina disciplinar, e faz com que aquele que estava somente sendo visto sem ver, há muito tempo também veja. Esse “ser visto e ver” ao mesmo tempo demonstra que o aparelho educacional, há muito, não está totalmente sob o controle de quem pensa estar controlando, mas, quem está sendo controlado também controla. E nesse ponto, não podemos deixar de pensar no aparelho prisão, pois nele, podemos dizer que, há muito tempo, quem controla, em grande parte, são as organizações criminosas, e o controlam de tal maneira que fazem essa estrutura funcionar a seu favor.

Esse aspecto de controle que estamos pensando, também a partir do vigiado/observado, se dá pelo fato de que, no momento em que este indivíduo sabe como funciona tal aparelho no qual está inserido, passa a utilizar todos os tipos de artifícios e formas de persuasão para atingir seus objetivos e fazer tal aparelho funcionar a seu favor, e a partir disso,

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parte da sua aprendizagem já não fica mais sob o encargo do sistema de educação escolar, mas o indivíduo se torna autônomo e ao mesmo tempo resistente ao modelo educacional. Se falarmos da escola no Brasil, por exemplo, onde o Estado quer diminuir custos que incidem diretamente na qualidade da educação e formação do sujeito, e que, no entanto, este indivíduo sabe que não passa de um mero banco de dados ou de um “punhado” de números para o Estado, e que, este mesmo Estado, não o quer retido em uma determinada série por reprovações, portanto, o aluno aprende somente a porcentagem que a prova/exame, ou a escola, exige de sua aprendizagem para que ele não fique retido na mesma série.

Portanto, o aluno se torna autônomo porque o restante da sua formação já não se dará mais de forma direta e efetiva pela instituição educacional, mas se dará por conta do próprio aluno, ou seja, ele aprende aquilo que quer aprender por si mesmo, sem a influência de um mestre/professor. Na sociedade atual, ele desenvolve outras maneiras para adquirir conhecimento, que irá contribuir para a sua própria formação enquanto sujeito, a partir da utilização de mecanismos e instrumentos que não são mais aqueles proporcionados pelo professor/mestre, e nem pelas regras estabelecidas pelo sistema educacional/escolar.

E ao falar que o aluno produz resistência ao modelo escolar não estamos dizendo que ele desrespeita esse modelo. O estudante, dentro de certo limite, respeita as regras do sistema educacional, limite este que se estende até o ponto em que ele percebe que o aparelho em que está inserido não está preocupado efetivamente com ele, como afirmam os discursos institucionalizados. Portanto, a partir daí, quando percebe esse descaso ou abandono, percebe que há uma falha do “olho do poder”, ou que este olho não está lá onde supostamente deveria estar; por conseguinte, percebe, também, que não está mais totalmente sob o domínio deste aparelho. No entanto,

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ainda se vê preso a ele, que ainda, apesar de todo o descaso, quer lhe ditar normas. Nesse instante, ele se rebela contra o aparelho, e aí se torna um resistente. Contudo, a partir daí, o aparelho deveria mudar ou estar constantemente em transformação, em reformas, em rupturas com certos valores e práticas para poder gerir seu projeto com mais eficiência, e, no caso do aluno, ele sabe que isso não ocorre com o aparelho educacional, então, o aluno irá se auto construir, e esse auto construir-se, agora, é construir-se do jeito que ele quer, sem a influência do modelo escolar.

Essa autoconstrução se dá por outros instrumentos, outras máquinas que encontramos na atualidade, que fazem parte da sociedade de controle ou da comunicação, e que fazem parte da vida cotidiana de cada um, estamos falando dos novos sistemas tecnológicos como: a televisão, a informática e seus computadores, a internet, filmes, vídeos, jogos; todas as influências que são exercidas pelo marketing e toda uma série de outros artifícios que estão presentes no cotidiano da vida de cada indivíduo. Então, enquanto a escola trabalha com a ideia de que os alunos estão sob seu domínio, pode-se perceber que eles não estão somente sob esse domínio, mas que estão exercendo certo tipo de domínio, pelo simples fato de que não dependem totalmente desta instituição para fundamentar aquilo que eles querem ser, pois buscam novos caminhos nessas alternativas para sua formação e aquisição de conhecimentos novos.

É neste aceitar ou receber e impor certo domínio – não somente na estrutura disciplinar da escola, mas em qualquer outra também – que se desenvolvem as resistências ao modelo das instituições que tentam ser constituídas, pois há quanto tempo não é mais ou não é somente a força do Estado que domina ou mantém certo controle sobre o sistema penitenciário? E isso por acaso seria diferente com a escola? Ou com a fábrica? Ou seja, desde o início do sistema fabril, não são os operários, que estando ligados diretamente ao “chão da

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fábrica”, desenvolvem cotidianamente todo o tipo de técnicas ou de pequenas “gambiarras” para facilitar ou aprimorar a eficiência das máquinas e dos produtos?

Entre as estruturas da disciplina, conforme entende Foucault, a nosso ver, talvez a escola esteja entre as primeiras das instituições, depois das prisões, em que o indivíduo está, há muito tempo, colocando em “xeque”, testando sua funcionalidade, não necessariamente para ver o seu fim, mas, pelo menos, para provocar nela certa desestruturação na sua forma de agir sobre os indivíduos e seus corpos, pois, ao sair da família, o primeiro contato que o indivíduo terá, será com a creche/escola, que é uma estrutura disciplinar que tem as mesmas características de “vigilância e normalização”174 que a família. Porém, suas relações se estendem de forma bem mais ampla, e, em alguns casos, mais fechada e, em outras, mais abertas do que a família. Contudo, se a escola não consegue desenvolver já na criança certo anseio em fazer com que ela permaneça dentro do seu espaço, em certo momento, quando ela, depois de passar por vários anos atrelados nesse modelo, o indivíduo passa a perceber que pode se rebelar contra esse aparelho para alterá-lo, e ele o fará, mesmo sabendo que isso implica em sua formação ou educação.

O fato de a escola ensinar ao indivíduo a desenvolver outro tipo de conhecimento diferente daquele que aprende em sua família faz com que ele aprenda, desde cedo, certo conhecimento de como funciona automaticamente essa estrutura com toda sua rede de relações de força e de poder-saber. Aí ele percebe que não está mais em casa, mas que está na escola, e passa a comparar as formas de funcionamento das estruturas e percebe que elas são semelhantes em certos aspectos; portanto, começa a agir para descobrir todo o funcionamento das engrenagens deste aparelho e, ao mesmo 174 Sobre a vigilância e normalização, ver o livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault, onde ele dedica um capítulo para mostrar como se fundamenta esse sistema do século XVII em diante, mas, principalmente, a partir do final do século XVIII.

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tempo, passa a colocar em xeque a estrutura educacional pela resistência ativa e constante nos espaços da escola. Este xeque dado pelo aluno acontece em todas as instâncias e em toda a rotina escolar, pois no momento em que ele percebe que simplesmente faz parte de um conjunto de números para quem governa, ele instaura sua resistência.

Portanto, nessa resistência já está implícita a ideia ou o desejo de mudanças, mutações ou rupturas de algo que ele não deseja mais, e, consequentemente, já estão presentes, neste momento, as relações de forças que passam a atuar em formas variadas de resistências, e, como afirma Foucault, elas podem acontecer de forma silenciosa ou a partir de agitações ou movimentos, seja onde for, em instituições ou em qualquer forma da organização da sociedade, e emerge de forma plural devido ao aspecto relacional das correlações de poder. Como mostra Foucault, em suas manifestações, as resistências

são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. Mas isso não quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado à infinita derrota. As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível (FOUCAULT, 1999, p. 91-92).

Por conseguinte, nessas resistências aos modelos

institucionalizados da escola, uma das primeiras coisas que é colocada em xeque é o modelo de exame/prova, pois aí o próprio aluno percebe que ele precisa somente uma porcentagem muito baixa de aproveitamento escolar, e, nessa

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porcentagem, ele sabe que ainda pode influenciar no final da soma total para não ficar retido na mesma série. Ou seja, os professores/educadores, os coordenadores pedagógicos, os diretores, os psicólogos, a escola, o sistema educacional e o próprio Estado, são neste momento postos à prova, e todos devem fazer “malabarismo” para poder passar esse aluno adiante. É neste ponto que o aluno vence o Estado e toda a cadeia que está abaixo dele dentro da instituição educacional, pois aí deverão ser criados infinitos artifícios dentro dessa estrutura de vigilância/normalização e dominação/controle – pois a avaliação se multiplicará em mil facetas diferentes como: provas, trabalhos, recuperação, exame final, conselhos de classes, etc. – para poder, no final das contas, ou no final do ano letivo, encaminhar o aluno para a série subsequente.

Ainda, em contrapartida, todos os indivíduos que estão sob vigilância e também aqueles que vigiam, em qualquer instituição, seja ela de curar, de educar, de punir ou de produzir, acabam entrando e contribuindo ao mesmo tempo para o desenvolvimento ou para o aparecimento de manifestações de certos distúrbios emocionais, físicos, psicológicos e profissionais, ou a própria estrutura propicia esses fatores, pois todos estão ligados direta e cotidianamente a essas redes que envolvem todos os aspectos do ser humano. Esses são aspectos que exigem um custo para a saúde tanto dos profissionais que trabalham nas instituições bem como daqueles que nelas estão inseridos. Ou seja, há um conjunto de enfermidades provocadas principalmente nos profissionais que atuam nessas estruturas, e que são necessários anos de tratamento ou até mesmo o afastamento permanente. Portanto, isso também se torna um fator que produz certa desmotivação para que novos agentes se profissionalizem para trabalhar nessas estruturas, pois elas produzem certo descrédito na população externa por conta disso.

Contudo, se pensarmos o fracasso da prisão que há muito tempo foi detectado, como o fracasso de um tipo de

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estrutura disciplinar/panóptica, podemos perceber, no entanto, que em outras estruturas, só foi possível detectar certas ineficiências mais tardiamente. Se entramos no meio de uma crise generalizada de todas as instituições disciplinares, é porque uma série delas, foi talvez, como diz Deleuze, “gerenciando sua agonia” com um pouco mais de cautela, mas que, na atualidade, todas enfrentam uma série de dificuldades para serem geridas, e, ao se perceber essa agonia, percebe-se que elas demonstram certo fracasso em alguns aspectos de seu funcionamento.

Se Foucault, ao apontar o começo do século XIX como o momento em que já havia sido detectado o fracasso da prisão, que foi denunciada na época como o grande fracasso da justiça penal, pelo fato de não diminuir os crimes e as reincidências, por conseguinte, também se pode dizer que aí já se inicia o primeiro grande fracasso do modelo da disciplina. Nas palavras de Foucault:

desde o começo a prisão deveria ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade (FOUCAULT, 2001, p. 131-132).

Contudo, a prisão continua enraizando-se em nossa

sociedade, mostrando que o seu fracasso é acompanhado pela sua manutenção.

Com isso, podemos dizer que o panóptico, como uma grande máquina, assim como qualquer outra máquina, fornece elementos para que todos aprendam e saibam como elas funcionam. Assim também como todos aprendem e sabem como funcionam o direito penal e suas leis, a política, a educação, a produção, a punição, a correção, etc., claro que

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não se sabe por inteiro, mas pelo menos todos têm uma noção que abrange todo o campo social e o funcionamento de toda a “máquina seja ela concreta ou abstrata”175. Portanto, sabe-se que ao longo da história da humanidade, sempre se produziram e aperfeiçoaram formas variadas de máquinas, e todas essas máquinas sempre estiveram presentes na formação da subjetividade dos indivíduos; mas, ao mesmo tempo, sempre a humanidade esteve tentando encontrar meios de fuga de certos tipos de máquinas. E para melhor fugir delas, é necessário conhecê-las.

Nesta fuga ou nesta mutação de certos aparelhos ou máquinas, podemos dizer, também, que o homem sempre está em pleno desenvolvimento de suas atividades para produzir formas de resistências, e, cada vez que isso ocorre, há uma mudança também em sua subjetividade. Deleuze, ao tratar sobre quais são as nossas verdades hoje, se pergunta:

Que poderes é preciso enfrentar e quais são as nossas possibilidades de resistência hoje, quando não podemos nos contentar em dizer que as velhas lutas não valem mais? E será, acima de tudo, que não estamos assistindo, participando da ‘produção de uma nova subjetividade’? As mutações do capitalismo não encontram um ‘adversário’ inesperado na

175 Entendemos aqui por máquinas concretas e abstratas a própria figura do panóptico como descreve Deleuze eu seu livro sobre Foucault, no capítulo “Um novo cartógrafo”. Neste capítulo, ele define o panoptismo como uma máquina que tem essas duas características, ou seja, ela é concreta porque funciona como uma estrutura arquitetônica com sua forma do visível, que são as instituições como a escola, a fábrica, o hospital, a prisão, etc. que são destinadas para o fechamento e isolamento, que tem por objetivo agir sobre o comportamento dos indivíduos para transformá-los. Ela é abstrata porque produz ou faz produzir no se interior as formas do enunciável, que são as formas discursivas, como por exemplo, o direito penal no caso da prisão, um discurso pedagógico no caso da escola, um discurso psiquiátrico no caso do hospital psiquiátrico, e, desta maneira, são articuladas formas discursivas ou enunciáveis em todas as instituições panópticas. Então, a partir disso, utilizamos o conceito de máquina concreta para todas as formas de aparelhos, e de máquinas abstratas para todas as formas discursivas que fazem parte da sociedade como um todo, seja ela voltada para o campo da política, para o sistema jurídico, educacional ou para o discurso médico, psiquiátrico, etc.

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lenta emergência de um Si como foco de resistência? Cada vez que há uma mutação social, não há um movimento de reconversão subjetiva, com suas ambiguidades, mas também seus potenciais? (DELEUZE, 1988, p. 123).

Se isto é verdade, os motivos que nos levam a essa fuga

ao longo da história são muitos e variados. Podem ser para fugir da dominação física, subjetiva ou intelectual; da dor ou do sofrimento; das condições políticas ou culturais; da opressão, da servidão ou da escravidão; da repressão ou da guerra. Pois, de uma forma ou de outra, essas fugas existem e são formas de lutas, de resistências e de produção de novas subjetividades. E nelas nos encontramos com todo tipo de máquinas que nos colocam em tais condições. E, a todo instante, estamos tentando nos livrar delas. E essas tentativas se dão nas lutas, nas fugas que nos levam, ou em que nos deixamos ser levados, para outras condições, que são, ou podem ser nossa ida ao encontro de outros tipos de máquinas, que nós aceitamos e queremos, dependendo de nossas condições históricas.

Portanto, nesse jogo histórico, as máquinas estão presentes, pois podemos querer sair de uma máquina de opressão ou de dominação política – Nazismo/Fascismo, por exemplo – e procurar outra em que possamos exercitar nossa liberdade e construir nossa subjetividade. Ou, se hoje tentamos uma fuga do Capitalismo, é também para fugir da opressão, da exclusão ou das formas de dominação deste modelo; do trabalho exaustivo nesta grande máquina na qual somos as principais engrenagens, ou talvez, simplesmente, para podermos exercitar nossa preguiça, pois como dizia o poeta e escritor Mario Quintana, “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda” (QUINTANA, 2000, p. 19), e a roda, se não é, por excelência, a mãe de todas as máquinas, é pelo menos a

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engrenagem principal do progresso tecnológico em toda a nossa história.

Assim, do mesmo modo que tentamos fugir de certos agenciamentos concretos, também fugimos das grandes máquinas abstratas como a política. Pois, em determinado momento, se buscou uma fuga do feudalismo, das monarquias, do Stalinismo, do Fascismo, do Nazismo, ou se tenta sair das “garras” do capitalismo na atualidade, considerando também que todos esses sistemas foram ou são grandes formações diagramáticas com suas próprias relações de forças ou de poder que agem para capturar os indivíduos.

Não estamos de forma alguma dizendo aqui que estamos ou devemos estar em guerra com as máquinas e que devemos nos desfazer delas. Pelo contrário, buscamos a fuga sim, de algo que tenta nos dominar, pois queremos sair, sim, de máquinas que nos causam sofrimentos e procuramos desenvolver outras que nos proporcionem maior conforto, prazer e segurança. Pois, como já afirmamos, as máquinas, sejam elas abstratas ou concretas, estão presentes em todo o nosso processo civilizatório, e, como afirma Félix Guattari,

na verdade, não tem sentido o homem querer desviar-se das máquinas já que, afinal das contas, elas não são nada mais do que formas hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas de certos aspectos de sua própria subjetividade – e estes aspectos, diga-se de passagem, não são daqueles que o polarizam em relações de dominação e de poder (GUATTARI, 2001 in PARENTE, 2001, p. 177).

Partindo, então, desta ideia de que há fugas ou

resistências a certas máquinas por diversos motivos, assim como se fugiu das máquinas do suplício pelo sofrimento, pela dor e pela humilhação, a tentativa de fuga da máquina panóptica/disciplinar não é diferente, os motivos sim é que podem sê-lo. E, por acaso foi diferente com a aristocracia grega, romana e com toda a nobreza feudal e monárquica que

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sempre tiveram horror a todo tipo de instrumento tecnológico, como o arado, a enxada ou os instrumentos de tear, etc., por estes estarem associados ao trabalho de subsistência? No entanto, todos os tipos de instrumentos técnicos sempre estiveram ligados ao desenvolvimento social e ao diagrama de cada época. Na reflexão de Deleuze referente a certas máquinas e equipamentos, ele mostra o seguinte:

Que é preciso que os instrumentos, é preciso que as máquinas materiais tenham sido primeiramente selecionadas por um diagrama, assumidas por agenciamentos. Os historiadores deparam frequentemente com essa exigência: as armas chamadas hoplíticas são tomadas nos agenciamentos da falange; o estribo é selecionado pelo diagrama do feudalismo; o pau escavador, a enxada e o arado não formam um progresso linear, mas remetem respectivamente às máquinas coletivas que variam com a densidade da população e o tempo de pousio. Foucault mostra, a esse respeito, como o fuzil só existe enquanto instrumento em ‘um maquinário cujo princípio não é mais a massa imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis e componíveis’. A tecnologia é então social antes de ser técnica. Ao lado dos altos-fornos ou da máquina a vapor, o panoptismo foi pouco celebrado... Mas seria injusto confrontar os processos disciplinares com invenções como a máquina a vapor... Eles são muito menos e, entretanto, de certo modo, são muito mais (DELEUZE, 1988, p. 49).

Com isso, podemos tomar como exemplo o camponês,

que ao longo da história sempre foi aperfeiçoando seus instrumentos de trabalho para garantir com mais eficácia as necessidades de subsistência do grupo social ao qual pertencia ou, simplesmente, para se livrar dos trabalhos exaustivos. Assim como faz o operário dentro da sociedade industrial. Como afirmamos acima, ele sempre está inventando novas técnicas ou “gambiarras” com objetivos semelhantes. Ou seja, o que são essas grandes máquinas disciplinares de tratamento psíquico-mental, de produção, de trabalho, de corrigir, de

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educar, de punir senão máquinas que desenvolvem técnicas que têm sua ligação imediata com um campo social, que, em determinado momento da história da nossa sociedade, sentiu sua necessidade de implantação? “E se as técnicas, no sentido estrito da palavra, são tomadas nos agenciamentos, é porque os próprios agenciamentos, com suas técnicas, são selecionados pelo diagrama” (DELEUZE, 1988, p. 49), e aí, no diagrama da disciplina, essas máquinas tiveram sua necessidade de implantação em dado momento histórico.

A partir disso, queremos dizer também que o diagrama da disciplina, caracterizado pelo aparelho panóptico como uma grande máquina de produção de subjetividade, aparece como uma necessidade de um dado momento no campo social. Se pensarmos a sociedade do século XVII, por exemplo, que vai internar o louco, porque ainda não o reconhecia como louco, e, como Foucault mostra, esse internamento será uma contribuição para a “experiência da loucura”, que terá como auxílio, o modo de “exílio” e o modelo do leproso. Tudo isso somente se faz, de certa forma, porque houve um medo social do insano, portanto, se usam os leprosários como uma máquina que serviu para depósito da loucura, isto é, naquele momento, houve essa necessidade social do internamento do insano. O que hoje nós assistimos, vai no sentido contrário, ou seja, vivemos uma tentativa de se livrar dessa máquina de presa psíquica, pois já não se tem tanto medo da loucura como um mal que deve ser separado do quadro social. Como diz Foucault, na entrevista com o título “Poder e Saber”:

Viveu-se, durante séculos, com a ideia de que, se não os internássemos em primeiro lugar, isso seria perigoso para a sociedade; em segundo, isso seria perigoso para eles próprios. Dizia-se que era preciso protegê-los contra eles próprios internando-os, que a ordem social arriscava ser comprometida. Ora, assiste-se, hoje, a uma espécie de abertura geral dos hospitais psiquiátricos – isso se tornou bastante sistemático – e se percebe que isso não aumenta de modo

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algum a taxa de perigo para as pessoas sensatas (FOUCAULT, 2003, p. 233-234).

Então, desde Pinel e depois Tuke, que vão liberar os

loucos de suas correntes no decorrer do século XVIII, pode-se perceber a distância entre o momento dessa liberação dos acorrentados para os dias atuais, em que está em pauta a discussão para uma possível liberação de certos tipos de loucos do hospital psiquiátrico. O que esses dois médicos fizeram, principalmente Pinel, senão a abolição de um tipo de instrumento, ou seja, das correntes? E, por conseguinte, põe-se em decadência tal modelo, livrando “os loucos de suas correntes, sem esconder o outro acorrentamento, mais eficaz, ao qual os destinava”, como diz Deleuze (1988, p. 63). E disso se pode dizer que, neste período – de Pinel até a atualidade – o que é que ocorre senão uma substituição de um tipo de máquina para colocar um outro tipo em funcionamento? Claro que com objetivos diversos e variados, ou como o próprio Foucault afirma, no livro História da Loucura, no capítulo “Nascimento do Asilo”, que é “impossível saber ao certo aquilo que Pinel tinha a intenção de fazer quando decidiu a liberação dos alienados” (FOUCAULT, 2000, p. 467), mas, para Foucault, isso não importava nessa ambiguidade que marca a obra de Pinel e o sentido que ela terá no mundo moderno.

De qualquer forma, a liberação das correntes ou a ideia de uma não internação de determinados tipos de loucos na atual sociedade, representa, nada mais ou nada menos, do que uma fuga conseguida, no caso de Pinel em relação às correntes, e uma tentativa de fuga ou de abolição desta máquina atual que é o hospital psiquiátrico, que, por sua vez, não deixa de ser uma grande máquina como qualquer outra, assim como é a escola, a prisão, a fábrica, etc., de que, na sua maioria, sempre se tenta uma fuga, pois nem todos gostam ou querem estar ligados a elas cotidianamente.

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Da mesma forma como houve a necessidade da implantação da grande máquina que é o hospital psiquiátrico, para separar o insano dos espaços sociais, ocorreu com a máquina prisão, pois Foucault, ao observar que o final do século XVIII foi responsável pelo rompimento com uma série de ilegalidades que eram toleradas no Antigo Regime, também mostrará, que na passagem deste século para o XIX, reaparecem vários novos ilegalismos que poderiam ter acabado, mas que se tornam ameaças por reatarem novas relações no espaço social. Portanto, há aí, neste momento histórico, uma necessidade da instalação da máquina prisão, considerando que ela será e terá o papel fundamental de gerenciar as ilegalidades permitidas, pois quando Foucault diz que a prisão cria a delinquência, que ela “fabrica uma categoria de indivíduos que entram num circuito junto com ela: a prisão não corrige; ela chama incessantemente os mesmos” (FOUCAULT, 1997, p. 43), está afirmando que ela também ajuda a controlar as outras ilegalidades por se relacionar com elas.

Por conseguinte, pode-se dizer que essas ilegalidades permitidas talvez sejam alguns dos motivos que levam os criminosos à reincidência; também podemos dizer que é por aí que esse aparelho fracassa, porque não consegue punir adequadamente e nem reeducar como deveria, conforme o projeto inicial ao qual a prisão se propôs, como afirma Michel Foucault. Entretanto, não é somente este aparelho que é reincidente. Sabemos, há tempos, que o hospital psiquiátrico também tem um alto índice de reincidência, e isso demonstra que ele também não consegue atingir seu objetivo que é o de curar, mas simplesmente tratar a loucura. Obviamente que no caso do hospital psiquiátrico, isto não tem relação somente com suas técnicas e sua estrutura, mas também com a própria psiquiatria, pois até onde se sabe, ela não tem nenhuma fórmula para curar a loucura.

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Estamos apontando aqui – sem um aprofundamento maior, por uma economia de espaço e também porque não é nosso objetivo neste capítulo – que se pode pensar as formas de reincidências em várias instituições disciplinares. Só para frisar esta questão, podemos dizer, de certa forma, que a própria escola também tem suas formas de reincidências, ou seja, todo o sistema educacional, do qual fazemos parte ainda hoje, também está longe de produzir uma escola que seja voltada para a formação integral da criança, com métodos criativos que tornem o espaço escolar um atrativo para elas de maneira tal que as faça ter vontade ou desejo de ir e permanecer dentro de sua estrutura. E, se há reincidências nas prisões, é porque elas conseguem arrastar o delinquente para o seu interior e manipulá-lo no momento em que está fora delas, ato esse que talvez a escola não conseguiu ou não consiga fazer ainda hoje.

Contudo, a escola que tem a mesma característica que as outras estruturas disciplinares, tem esse alto índice de reincidências, mas, também sabemos, que grande parte das reincidências ocorre ao longo da vida dos indivíduos, já com a prisão, a reincidência é quase imediata. Se pensarmos uma criança ou um adolescente, por exemplo, quando abandona a escola, desde a primeira vez que o faz, acaba entrando e saindo dela diversas vezes, e, geralmente, não acaba sua formação em tempo hábil, e vai reincidir novamente na escola, quando já está na fase adulta. E, neste caso, se pensarmos no Brasil, podemos observar esse aspecto da reincidência nos diversos programas do Estado voltados para a formação de jovens e adultos, como uma forma de reintegração desses indivíduos ao sistema educacional e depois profissional.

Isso ocorre porque os próprios indivíduos sentem a necessidade de uma formação ou uma qualificação mais adequada, que é uma exigência de outra estrutura disciplinar que é a fábrica, porque esta exige uma qualificação que, por sua vez, faz gerir ou sustentar outra estrutura disciplinar que é

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a família. Enfim, isso tudo demonstra alguns aspectos da razão pela qual Foucault aponta o fracasso e a crise dos sistemas disciplinares, pois ele percebeu que essas estruturas não respondem, não correspondem, não funcionam como deveriam, ou, simplesmente, porque estão sendo substituídas por novas estruturas sociais conforme o modelo de sociedade no qual estamos entrando desde as primeiras décadas do século XX, ou seja, a sociedade de controle ou das comunicações.

Finalmente, disso se segue que, o fato de Foucault afirmar que o modelo panóptico/disciplinar está em crise ou em decadência, seja talvez porque o indivíduo não se verga para o modelo ou instituição que tenta se impor sobre ele, ao contrário, esse indivíduo usa sua resistência e sua esperteza para colocar em xeque o modelo que tenta dobrá-lo. Portanto, a disciplina panóptica, seja ela no modelo da prisão, da escola, da fábrica, do hospital, do hospital psiquiátrico, etc., está, em certos aspectos, dominando ainda. Mas lá, quando ela nasceu, nasceram junto com ela seus focos de resistência com suas estratégias de confronto, que formularam suas próprias relações de força que começaram a conduzi-la ao seu fim, e, como percebemos na atualidade, a sociedade de controle da qual fala Deleuze, veio para dar o golpe de misericórdia nesse modelo de estrutura de fechamento e de isolamento. REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Conversações. (1972 – 1990). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. _______. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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_______. Estratégia, poder–saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. _______. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. _______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. _______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001. _______. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. _______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25º ed. Petrópolis: Vozes, 2002. GUATTARI, Félix. Da produção da subjetividade. In: PARENTE, André (org.) Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001. QUINTANA, Mario. A preguiça como método de trabalho. São Paulo: Ed. O Globo, 2000.

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Capítulo 19 RREEFFLLEEXXÕÕEESS AA PPAARRTTIIRR DDOO TTEEXXTTOO

““RRAACCIIOONNAALLIIDDAADDEE EE RREEAALLIISSMMOO”” DDEE JJOOHHNN SSEEAARRLLEE

Kleber Bez Birollo Candiotto

Neste capítulo, procuramos mostrar como Searle analisa os pressupostos da metafísica ocidental para descrever aspectos da universidade tradicional; e, ao mesmo tempo, explica os propósitos do pós-modernismo no âmbito das universidades. Sua análise surge da intenção de entender os debates nas universidades americanas e sobre as propostas de mudança de ensino. Concentrou-se, portanto, na compreensão dos pressupostos filosóficos da concepção tradicional do ensino superior e as consequências educativas da sua aceitação ou da sua não aceitação.

Iniciemos localizando o contexto do filósofo e sua obra. John Searle (1931-) é conhecido principalmente por suas contribuições em Filosofia da Linguagem e Filosofia da Mente. Em suas publicações sobre Filosofia da Mente, Searle procurou resgatar questões como consciência, intencionalidade e causação mental como partes integrantes do mundo. Segundo ele, a visão científica do mundo predominante no século XX desconsiderou estas questões devido à sua ontologia subjetiva, incorrendo em explicações insatisfatórias sobre as possíveis relações entre mente e cérebro (SEARLE, 2000).

Devido à ontologia da subjetividade, os modelos que têm como pressuposto a distinção entre observação e coisa

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observada, que são os modelos da ciência positivista e neopositivista, não contemplam a subjetividade, pois têm como finalidade abordar somente os aspectos objetivos da realidade. Searle entende que essa postura científica possui uma visão reducionista de mundo.

De acordo com o modelo de como a realidade deve ser e de como é representada, parece difícil abordar algo irredutivelmente subjetivo no universo. Assim, a visão científica do mundo, ao eliminar toda referência à subjetividade ontológica, não possibilita definir, por exemplo, a mente e a consciência.

Entre seus principais desdobramentos, essa visão científica, de acordo com a compreensão de Searle (2000), promoveu o desenvolvimento do materialismo que rejeita qualquer referência à subjetividade e, por consequência, reduz as explicações da mente aos correlatos neuronais do cérebro. O materialismo rejeita a subjetividade porque procura descrever a mente como uma entidade ontologicamente objetiva, não reconhecendo sua ontologia subjetiva.

Para Searle, então, o materialismo se caracteriza pelo seu aspecto reducionista, entendendo que a realidade é formada exclusivamente por entidades físicas ou materiais. Dessa forma, segundo Searle (1997), o materialismo não consegue explicar os fenômenos mentais em geral e a consciência em particular. Sua estratégia explicativa é incoerente, uma vez que a redução de suas explicações elimina o que é “essencial sobre a mente e a consciência: a subjetividade” (SEARLE, 2000, p. 58).

Descartes excluiu a consciência como objeto da ciência (SEARLE, 1984, p.19-20 e 1997, p. 126). Consequentemente, a mente (res cogitans) foi excluída das ciências naturais, as quais se ocuparam unicamente da matéria (res extensa). A separação entre matéria e mente produziu significativos avanços, a partir do século XVII, em ciências como física, química e biologia. No entanto, a partir do século XIX, com o advento da pretensão de

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fundar uma psicologia científica, os pressupostos metodológicos das ciências naturais permaneceram atrelados a tal pretensão.

A suposição de que o mental e o físico são dois reinos distintos é, para Searle (1997, p. 148), um preconceito filosófico, sendo, portanto, um erro conceitual. Este é o principal obstáculo que impede um estudo adequado da mente, com explicações causais da consciência em todas as suas formas e variações.

As soluções apresentadas para o problema da relação mente-corpo, de forma geral, acabaram negando a existência ou enfraquecendo conceitualmente uma ou outra destas entidades. Contudo, devido aos êxitos das ciências físicas, os fenômenos mentais foram ou minimizados ou ajustados às explicações materiais (SEARLE, 1997, p. 42).

Segundo Searle, é possível identificar também no próprio dualismo uma implícita redução da compreensão da consciência, pelo fato de ser mais fácil afirmar que a mente é simplesmente algo diferente do corpo, ao invés de procurar uma definição do que é mental176.

Não se obtém a compreensão da consciência mediante o reducionismo objetivo, mas só se alcança na complexidade do subjetivo. Assim, as reduções explicativas aplicadas no âmbito das ciências causais não são adequadas para abordar a mente e a consciência. Isso se deve às características da subjetividade inerentes aos fenômenos mentais que são sempre de primeira

176A origem da dificuldade argumentativa do dualismo pode ser representada pela argumentação inicial de Descartes na ideia do Cogito. A esse respeito, é importante a reflexão de TEIXEIRA (2000, p. 29): “A partir de sua filosofia (o cartesianismo), a questão da separação entre matéria e pensamento torna-se um problema filosófico. O cartesianismo formula e institui esse problema específico, a partir de uma demonstração filosófica na qual Descartes supõe que podemos deduzir, numa cadeia de raciocínios coerentes, que corpo e alma são duas substâncias distintas, e que suas propriedades são incompatíveis. Descartes estabelece uma cadeia de raciocínios dedutivos a partir do Cogito. Embora nunca tenha dito o que é pensar e muito menos o que é existir, Descartes toma como certeza primeira, basilar, a proposição Penso, logo existo.”

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pessoa, como, por exemplo, a dor é sempre a dor de alguém e somente esta pessoa sabe onde e quanto está doendo.

A visão científica do mundo, com seus aspectos reducionistas ou dicotômicos, define também a concepção do espaço onde a pesquisa é realizada, a saber, a universidade. Searle apresenta estas influências em seu artigo Rationality and Realism, What is at Stake? [Racionalidade e Realismo, o que está em jogo?], publicado em 1993. Ao elaborar o referido texto, o autor teve por objetivo refletir sobre a forma com que as universidades norte-americanas estavam desenvolvendo seus programas de pesquisa e analisar seus pressupostos epistemológicos e ontológicos. Searle focou sua reflexão na postura do ensino superior em relação à pesquisa. As discussões sobre os objetivos do ensino superior, segundo Searle, levam ao desenvolvimento de duas formas distintas de universidade: a universidade tradicional e a universidade do pós-modernismo177. Entretanto, o autor explica que tais formas de universidade existem enquanto distintas subculturas universitárias. Para Searle (1993, p. 3),

em algumas das disciplinas das humanidades e das ciências sociais, e mesmo em algumas escolas profissionais, desenvolvem-se agora duas subculturas universitárias mais ou menos distintas, poderia quase dizer-se duas universidades diferentes. A distinção entre as duas subculturas atravessa fronteiras e não está claramente marcada. Mas existe.

Para o autor, a existência de duas distintas subculturas

universitárias não constitui diretamente algo inviável, visto que pode oportunizar um fator válido, que é o debate sobre os

177 O termo é usado pelo próprio Searle, porém o autor deixa claro que esse conceito não está bem definido, e nem bem coerente. O uso do termo é estabelecido a partir da ideia de que seriam aceitos pelos próprios partidários desse tipo de universidade (SEARLE, 1993, p. 2).

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temas filosóficos centrais, tais como a missão da universidade ou suas bases epistêmicas, metafísicas ou políticas. Entretanto, não há esse debate entre a universidade tradicional e a universidade do pós-modernismo. E se é realizado, ao menos não é explícito. É possível que haja muitos debates sobre questões específicas, tais como quotas para raças ou políticas do Estado para a Universidade, porém há pouca discussão sobre os pressupostos da universidade tradicional e de suas alternativas.

Sobre as características principais entre a universidade tradicional e o discurso do pós-modernismo, Searle (1993, p. 4) afirma que

a universidade tradicional reclama o amor ao conhecimento pelo seu próprio valor e pelas suas aplicações práticas, e procura ser apolítica ou pelo menos politicamente neutra; a universidade do pós-modernismo pensa que todo o discurso é em qualquer caso político e procura usar a universidade para fins políticos benéficos e não repressivos.

Searle procura esclarecer a formação da tradição

intelectual ocidental, a partir dos seguintes aspectos: concepção de realidade, relações entre a realidade e o pensamento, relações entre a realidade e a linguagem. Inicialmente, esta concepção de realidade é o que define a própria tradição e determina simultaneamente noções como verdade, realidade, conhecimento, razão, racionalidade, lógica, justificação e demonstração. O conjunto destas noções é denominado por Searle de metafísica ocidental, constituindo a concepção ocidental de ciência que tem o objetivo de

alcançar um conjunto de frases verdadeiras, idealmente sob a forma de teorias precisas, frases essas que são verdadeiras porque correspondem, pelo menos aproximadamente, a uma realidade que tem uma existência independente (SEARLE, 1993, p. 5).

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Quando Searle menciona “existência independente”, remete-se à sua reflexão sobre realismo externo, a tese de que

há um mundo real independente de nós [...]. ‘Realismo’ porque afirma a existência do mundo real, e ‘externo’ para distingui-lo de outros tipos de realismo – por exemplo, o realismo dos objetos matemáticos [...] ou dos fatos éticos (SEARLE, 2000, p. 22).

O realismo externo é a base para outras compreensões

filosóficas como a teoria da verdade como correspondência e a teoria referencial do pensamento e da linguagem.

Segundo a perspectiva do realismo externo, existe um mundo independente da vontade humana. Porém, só é possível expressar os fatos contando com um conjunto de conceitos já existentes, ou seja, utilizando uma linguagem. Os fatos independem totalmente dos conceitos utilizados para expressá-los, pois a sua existência é o pressuposto para sua expressão. Para que seja possível expressá-los, deve haver antes a existência de mentes, conceitos e linguagens, o que permite um mesmo fato possuir variadas formas de expressão, em diferentes linguagens.

Embora possa haver diversas formas para expressá-lo, o fato como tal é o mesmo e, por isso, independe de suas expressões. A distância entre a Terra e a Lua, por exemplo, pode ser expressa sob diferentes formas: quilômetros, pés ou metros, mas a existência desta distância é real, é a mesma, independentemente da representação humana.

O realismo externo não é compreendido como uma teoria, mas é a condição necessária para as elaborações e os desenvolvimentos das teorias178. A concepção da tradição da metafísica ocidental, portanto, tem como base os pressupostos do realismo externo.

178 Mais detalhes em Faigenbaum (2001, p. 173-177) e Searle (2000, p. 28-43).

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A tradição da metafísica ocidental, segundo Searle (1993, p. 3), não se define como linear, unificada, tanto em seu pretérito como em seu presente. O conhecimento medieval é um exemplo típico da inexistência de uma linearidade na tradição da metafísica ocidental, pois os pressupostos de conhecimentos baseados na Revelação tornaram-se obsoletos perante os resultados da ciência moderna, especialmente com o advento do heliocentrismo.

Quando se menciona algo sobre a metafísica ocidental, remete-se inevitavelmente a um ponto específico de sua história e a um teórico específico daquele período. Toda vez que, por exemplo, se fala de dualismo corpo-mente, inevitavelmente, é lembrado o francês René Descartes, do século XVII, como seu teórico. Decorre, então, um dos princípios centrais da metafísica ocidental em sua atualidade: há uma dificuldade em alcançar a precisão e a objetividade, pois qualquer explicação culmina em uma teoria específica, de acordo com o modo de ser de um determinado tempo e espaço. Vale destacar que toda teoria tem seu autor e quando se emprega uma teoria, inevitavelmente se remete a seu autor. A ideia de teoria é fundamental na construção da metafísica ocidental.

Com a elaboração de uma teoria é possível produzir as construções intelectuais sistemáticas, um aspecto fundamental da tradição ocidental que teve e tem como propósito descrever e explicar a realidade em todas as suas divisões, chamadas de áreas.

É claro que as construções intelectuais tomaram um rumo específico no ocidente com a ideia de experiências sistemáticas, iniciadas na Europa, a partir da Renascença, com pensadores como Guilherme de Ockham e Giordano Bruno, e organizadas no período moderno com autores como Francis Bacon, Galileu Galilei e John Locke. A ideia de experiências sistemáticas oportunizou as construções teóricas da realidade, amparadas na perspectiva do realismo externo.

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Além da ideia de teoria como construção intelectual sistemática a partir das experiências sistemáticas, há outra característica da metafísica ocidental: a sua qualidade autocrítica, o que não lhe possibilita uma tradição unificada. “A ideia de uma crítica consistiu sempre em submeter qualquer crença aos mais rigorosos padrões de racionalidade, justificação e verdade” (SEARLE, 1993, p. 6).

Searle questiona o hábito mais comum da crítica da metafísica ocidental, que é julgar todas as crenças, todos os conceitos ou todos os pressupostos sob a ótica da racionalidade, da lógica e da justificação. Com esse objetivo, a própria racionalidade, a própria lógica e a própria justificação podem se tornar uma crença, submetendo-se também à crítica.

Para Searle, a autocrítica é uma característica tão complexa da metafísica ocidental que se transforma em autodestrutiva. Da crítica renascentista aos dogmas medievais, passando pela crítica iluminista aos princípios da causalidade, culmina na crítica pós-moderna da crença na racionalidade e até na crença da crença.

A intenção neste texto é analisar algumas características essenciais da metafísica ocidental que se articulam na pesquisa acadêmica contemporânea. Algumas dessas questões têm vínculos consistentes com a educação contemporânea, como pode ser verificado no seguinte questionamento de Searle (1993, p. 8):

Ora, o que aceitamos exatamente quando somos ‘logocêntricos’, isto é, quando aceitamos o ideal grego de ‘logos’ ou razão, e com que ficamos comprometidos quando nos entregamos ao pensamento ‘linear’, isto é, quando tentamos pensar direito? Se pudermos compreender as respostas a estas questões, saberemos pelo menos qualquer coisa sobre o que está em jogo nos debates atuais no ensino superior.

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Para encontrar respostas ao questionamento destacado acima pelo autor, deve-se partir da compreensão de alguns princípios básicos da metafísica ocidental. No âmbito da metafísica ocidental, uma teoria de verdade predominou entre as tantas pensadas por vários autores: a teoria da verdade como correspondência. Atacar essa teoria de verdade é colocar em causa toda a tradição da metafísica ocidental, porque qualquer de seus princípios básicos tem como referência esta teoria da verdade.

Searle (1993, p. 8) destaca o realismo como primeiro princípio básico da metafísica ocidental, pois sustenta que a realidade existe independentemente das representações humanas. A realidade é representada, em suas mais variadas áreas, a partir do pensamento e da linguagem, mas aquela realidade existe com ou sem este pensamento e esta linguagem; existe de maneira autônoma.

Entretanto, as representações humanas da linguagem e do pensamento levam à existência de outras áreas da realidade que são efetivamente construções sociais. Partes da realidade como a propriedade, o governo, o casamento e até mesmo a educação têm a sua existência a partir da criação e sustentação pelo comportamento cooperativo humano. Essa realidade é chamada de realidade social179 e as partes dessa realidade são nomeadas pelo autor de fatos institucionais180. 179 Realidade social é constituída a partir da organização e manutenção dos fatos institucionais, que são partes do mundo real, fatos objetivos do mundo, fatos que somente existem devido ao acordo humano. Nesse sentido, há coisas que existem somente porque cremos que existem. Há também o que Searle chama de fatos brutos, que são os fatos que não necessitam das instituições humanas para existirem. Contudo, para enunciar um fato bruto, o homem necessita da instituição da linguagem. Porém, é distinto o fato enunciado do enunciado do mesmo. A partir, portanto, da instituição da linguagem é que se estrutura a realidade social. Ver Searle (1997b, p. 21-27 e 196-202) e (2000, p. 105-108). 180 Fato institucional é uma subclasse especial de fatos sociais que se constituem a partir das instituições humanas. Um fato social é qualquer fato que se relacione à intencionalidade coletiva, de acordo com a conduta coletiva. São fatos institucionais a compra e venda pelo dinheiro, o matrimônio, a propriedade, a escola ou a universidade, etc. Ver Searle (1997b, p. 21-27).

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Existe uma realidade que independe de qualquer representação humana, mas a partir da instituição da linguagem, que é um fato que existe somente pelos acordos humanos (fatos institucionais), tal realidade pode ser representada. O vocabulário ou sistema de representações, pelo qual é possível formular verdades, é uma criação humana; “e as motivações que nos levam a investigar tais matérias são características contingentes da psicologia humana” (SEARLE, 1993, p. 9).

Para melhor entender a questão da linguagem, vejam-se os seguintes princípios básicos da metafísica ocidental, tal como os compreende Searle:

1. Um conjunto de características verbais é a condição

para elaborar qualquer afirmação decorrente de um conjunto de motivações que levam o indivíduo à pesquisa e à investigação: este seria um primeiro princípio básico da linguagem. No entanto, a parte do mundo representada independe das categorias verbais e das motivações da pesquisa para existir. Segundo Searle (2000, p. 22-23), esta existência independente das representações e motivações humanas (realismo externo), e constitui a base das ciências naturais.

2. Um segundo princípio básico da metafísica ocidental,

no âmbito da linguagem, é estabelecer uma comunicação entre indivíduos sobre objetos e estados de coisas do mundo que existem independentemente da linguagem. Portanto, a linguagem possui, segundo Searle, um caráter comunicativo e um caráter referencial. O caráter comunicativo contempla a possibilidade do indivíduo de expressar seus próprios pensamentos, ideias ou conclusões para outro indivíduo. Já o caráter referencial da linguagem é a possibilidade de, entre indivíduos, referirem-se a objetos e estados de coisas cuja existência independe deles e da própria linguagem. Quando

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há a comunicação oportunizada pela linguagem, há a intenção de que o ouvinte reconheça o significado do orador, ou seja, que o compreenda. O que une essa possibilidade é o ato de fala181, que possui grande variedade de usos de linguagem.

3. A linguagem tem a função de representação da

realidade: eis o terceiro princípio básico da metafísica ocidental que tem relação com a questão linguagem. As afirmações procuram descrever como são as coisas do mundo mediante uma linguagem que o represente, pois, caso contrário, temos uma afirmação falsa. Portanto, a validade ou falsidade de uma afirmação é uma questão de precisão na representação, ou seja, uma afirmação é verdadeira se, e somente se, a afirmação corresponde aos fatos. O critério para verificação de verdade ou falsidade de uma afirmação passa a ser basicamente a partir da teoria da correspondência, formando o que Searle chama de Pano de Fundo da metafísica ocidental. A metafísica ocidental tem uma preocupação direcionada à verdade e seus três princípios básicos, até aqui analisados, possuem uma relação de interdependência, pois

na sua maior parte, o mundo existe independentemente da linguagem (princípio 1) e uma das funções da linguagem é representar como são as coisas no mundo (princípio 2). Um aspecto crucial no qual a realidade e a linguagem entram em contato é marcado pela noção de verdade. Em geral, as afirmações são verdadeiras na medida em que representam com precisão uma característica qualquer da realidade que existe independentemente da afirmação (princípio 3) (SEARLE, 1993 p. 13).

4. A metafísica ocidental caracteriza o conhecimento

como algo peculiarmente objetivo. Esse é o seu quarto princípio básico. A validade de uma afirmação, como já

181 O conceito de ato de fala ocupa a primeira fase dos trabalhos escritos de Searle. Uma apresentação sintética desta noção pode ser encontrada em Searle (2000, p. 133-140).

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apresentado, é uma questão de representação precisa de uma realidade independente. A subjetividade não tem nenhum mérito na construção do conhecimento ou ao menos na sua validade. Sobre esse quarto princípio, o autor ressalta a distância tomada entre o pesquisador e sua pesquisa. Esse distanciamento é decorrente do critério da importância da pesquisa, ou seja, esta é relevante se descrever com precisão uma realidade cuja existência é independente do sujeito pesquisador. A pesquisa sobre essa realidade baseia-se nos critérios de verdade por correspondência. Naturalmente, o conhecimento é representado pela linguagem e quem faz as representações são os investigadores particulares, com sua subjetividade. Assim, a verdade por correspondência eliminaria qualquer ato de sentimentalismo, visto que o conhecimento de algum fato é possível apenas sob o aspecto objetivo. A intenção de Searle não é afirmar que há uma incoerência na metafísica tradicional, por destacar o conhecimento objetivo como o único válido. A possibilidade de não existir uma verdade objetiva supõe um relativismo, ou seja, uma falta de conexão essencial tanto com a verdade quanto com a falsidade. O conhecimento, no entanto, que está em pauta nessa discussão (o conhecimento objetivo como o único válido), enquadra-se nos pressupostos da metafísica ocidental.

5. Um quinto princípio da metafísica ocidental é o

caráter formal da lógica e da racionalidade que a sustenta. Tradicionalmente, segundo Searle, fazendo clara referência a Kant, a razão divide-se em teórica e prática, sugerindo o que é razoável acreditar e o que é razoável fazer, respectivamente. A metafísica ocidental, por sua vez, preocupa-se intensamente com o emprego da racionalidade da lógica, da justificação, da demonstração, etc., a partir de uma concepção que lhe é própria, para estabelecer a validade do conhecimento. Entretanto, a concepção desses itens empregados, por si

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mesma, é insuficiente para estabelecer em que acreditar e o que fazer. A racionalidade possui um caráter representativo e convencional, pois a avaliação de uma afirmação (ou seja, a verificação da verdade a partir da racionalidade contida na afirmação) é realizada a partir de um conjunto de modos de proceder, de métodos ou de padrões fornecidos pela racionalidade no confronto ou comparação com outras afirmações. A lógica vem a ser, nesta perspectiva, um mecanismo que comprova e apresenta uma estrutura de pressupostos já aceitos. Dessa forma, a lógica pode levar ao convencimento da verdade de uma afirmação, porém, por si mesma, não diz aquilo em que acreditar, mas permite verificar se a afirmação é verdadeira ou falsa. Searle não tenta refutar a lógica e a racionalidade, mas procura esclarecer em que elas se sustentam e quais suas funções na tradição da metafísica ocidental. Para ele,

a lógica e a racionalidade fornecem padrões de demonstração, validade e razoabilidade; mas os padrões só operam sobre um conjunto previamente dado de axiomas, pressupostos, fins e objetivos. A racionalidade, enquanto tal, não faz afirmações substantivas (SEARLE, 1993, p. 14).

Os cinco princípios básicos da metafísica ocidental,

apresentados acima, têm por consequência o último desses princípios, a saber, a elaboração de um conjunto de critérios para avaliar produtos intelectuais.

Dados um mundo real, uma linguagem pública para falar acerca dele e as concepções de verdade, conhecimento, racionalidade, etc., implícitos na metafísica ocidental, haverá um conjunto complexo, mas não arbitrário, de critérios para ajuizar os méritos relativos de afirmações, teorias, explicações, interpretações e outros tipos de considerações (SEARLE, 1993, p. 15).

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Qualquer afirmação, teoria, explicação, etc., para obter relevância, é necessário que se submeta a avaliações a partir de critérios definidos de maneiras objetiva e intersubjetiva. Um critério é objetivo quando sua aplicação for desprovida da sensibilidade das pessoas, considerando a interpretação, a crítica ou a admiração desnecessárias. Estão submetidas a esse critério as ciências naturais, quando formulam teorias como, por exemplo, a lei da gravidade ou a estrutura da molécula.

Há também critérios da avaliação de uma produção intelectual que são considerados intersubjetivos, pois se reportam a características amplamente partilhadas da sensibilidade humana. Atualmente, a aplicação dos critérios intersubjetivos é direcionada a áreas chamadas de ciências humanas. Áreas como as da História e da Educação exigem a prática da interpretação, a discussão, a crítica, etc. Nestes termos, a intersubjetividade é central à atividade intelectual.

Dados os dois tipos de critérios de avaliação intelectual, o objetivo e o intersubjetivo, Searle explica que não existe entre eles uma linha divisória precisa. O próprio critério objetivo, que por vezes é considerado o único válido e preciso, devido à sua neutralidade182, contém uma forma de intersubjetividade.

Disso não se conclui que os critérios intersubjetivos são arbitrários ou inconsistentes e somente a objetividade é válida, uma vez que em áreas como as da Física e da Química os padrões são determinados de forma precisa pelos algarismos. Pelo contrário, os critérios intersubjetivos devem conter, de acordo com os princípios da metafísica ocidental, uma racionalidade e uma lógica para que não sejam permitidas conclusões aleatórias decorrentes de interpretações, críticas, etc. Aqui se encontra o princípio crucial para a concepção tradicional de universidade e que, segundo Searle, é o mais rejeitado pela cultura do pós-modernismo. 182 O termo neutralidade, nesse texto, está sendo usado no sentido de que quem aplica os critérios de avaliação objetiva não tem qualquer interferência, pois o que está em questão é algo independente do sujeito.

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Com esses princípios básicos da metafísica ocidental é possível desenvolver uma reflexão sobre as condições de realização da pesquisa no ensino superior em relação a seus critérios de avaliação. Existe, portanto, uma concepção consistentemente formada de conhecimento, verdade, significado, racionalidade, realidade e os critérios para avaliar as produções intelectuais, com um entrelaçamento entre elas.

De acordo com a concepção de realismo externo, o conhecimento, a linguagem, a verdade, a realidade, a racionalidade e a lógica se completam. Ou seja, para a metafísica tradicional, o conhecimento descreve uma realidade representada por uma linguagem; seus critérios de verdade são julgados de acordo com a correspondência entre as proposições e a realidade representada. Por fim, a racionalidade e a lógica são os critérios utilizados para a avaliação do processo, que pode ser de caráter objetivo ou intersubjetivo.

A metafísica ocidental, segundo Searle, é a base da tradição intelectual e educativa nas universidades que se dedicam à pesquisa, pois “o ideal acadêmico da tradição é o do investigador imparcial entregue à indagação do conhecimento objetivo que tenha validade universal” (SEARLE, 1993, p. 16). Contudo, esse ideal de pesquisa acadêmica é rechaçado pelo discurso do pós-modernismo.

O impasse entre a universidade tradicional e a universidade do pós-modernismo está basicamente nas avaliações da produção intelectual delas decorrentes. Esse é o centro da reflexão de Searle em seu artigo Rationality and Realism. O impasse surge devido ao não comprometimento, por parte da universidade do pós-modernismo, com as pretensões de imparcialidade e objetividade da universidade tradicional.

Torna-se claro que a aceitação da metafísica ocidental na organização dos conteúdos e métodos do ensino superior atinge a maior parte das disciplinas acadêmicas, inclusive as disciplinas que dependem da representação humana como a

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arte, a literatura, a história, etc. O objetivo da aceitação da metafísica ocidental é aplicar os padrões de racionalidade, conhecimento e verdade a tais disciplinas, o que é contrariado pelo discurso da universidade do pós-modernismo.

Os ataques aos ideais tradicionais da universidade têm uma origem que não é epistemológica, mas sim política, como mostra Searle:

Se a relação entre a metafísica ocidental e os ideais tradicionais da universidade é (mais ou menos) óbvia, é muito menos óbvia (na verdade, é difícil de entender) a relação entre os ataques à metafísica ocidental e as propostas educativas. É pura e simplesmente um fato que, na história recente, a rejeição da metafísica ocidental andou de mãos dadas com as propostas de mudanças politicamente motivadas do currículo (SEARLE, 1993, p. 17).

Segundo o autor, as motivações de transformação

política nas universidades se deparam com a metafísica ocidental, sendo esta um obstáculo, pois é a responsável pela estrutura tradicional de universidade. Essa estrutura organiza-se sob os ideais de objetividade, racionalidade e verdade da realidade, conforme as perspectivas do realismo externo. A forma com que a universidade tradicional direciona as produções intelectuais traz obstáculos ao propósito de atingir objetivos sociais mais importantes.

O que está em questão é que a produção intelectual, quando elaborada apenas sob critérios de objetividade e racionalidade, torna-se indiferente em relação aos objetivos sociais e, por isso, seu trabalho atinge níveis de esterilidade, ou seja, só tem significado no âmbito estritamente intelectual.

Uma das intenções do autor é argumentar que o ensino superior tende a conter uma característica e uma responsabilidade com a política. Quanto mais as universidades conservam a tradição de transmitir aos seus estudantes um conjunto de verdades objetivas sobre uma

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realidade, mais o ensino superior se distancia das transformações que levam a alcançar objetivos sociais benéficos.

A tradição de transmissão de verdades objetivas promove um estado conservador e elitista do ensino superior. Aqueles valores intelectuais tradicionais são conservados e voltados exclusivamente aos poucos que ingressam no ensino superior, tornando-se elitista.

A rejeição à metafísica ocidental deve ser desenvolvida por uma crítica séria e eficiente, com a intenção exclusiva de promover transformações políticas e alcançar objetivos sociais. A crítica da universidade do pós-modernismo deve ser analisada com atenção, pois é a sua rejeição à metafísica ocidental que motiva a revisão do ensino superior. Mas Searle ressalta que a atitude mais coerente seria o contrário: mediante a necessidade de revisar a concepção do ensino superior é que deveria surgir a crítica à metafísica ocidental.

Searle defende a ideia de que é necessário desenvolver uma crítica à metafísica ocidental com o propósito de romper com os obstáculos de objetividade e racionalidade da universidade tradicional. Portanto,

a maior consequência isolada da rejeição da metafísica ocidental é o fato de tornar possível um abandono dos padrões tradicionais de objetividade, verdade e racionalidade, e o fato de abrir caminho a uma estratégia educativa na qual um dos objetivos principais é alcançar a transformação social e política (SEARLE, 1993, p. 18-19).

A mudança a partir da concepção da universidade do pós-

modernismo, nas estruturas do ensino superior, desenvolve um caráter de excelência acadêmica com diferentes concepções. As universidades que se dedicam à investigação são estimuladas a adotar critérios diferentes de valor acadêmico, critérios oriundos de uma nova concepção de pesquisa ocorrida pela mudança desenvolvida pela universidade do pós-modernismo.

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A mudança desenvolvida na universidade do pós-modernismo promove um abandono do compromisso com a verdade e com a excelência intelectual que constitui o próprio âmago da metafísica ocidental, em favor de uma preocupação política. Contudo, a concepção de política no novo discurso tem um caráter de representatividade na estrutura do currículo, principalmente porque

um dos propósitos do ensino já não é, como antes se pensava, permitir que o estudante se torne membro de uma cultura humana, intelectual e universal mais ampla; ao invés, o novo objetivo é reforçar o seu orgulho como membro de um subgrupo particular e a sua auto-identificação com esse grupo. Por esta razão, a representatividade na estrutura do currículo, nas leituras exigidas e na composição do corpo docente torna-se crucial. Se abandonarmos o compromisso com a verdade e com a excelência intelectual que constitui o próprio âmago da metafísica ocidental, parece arbitrário e elitista pensar que alguns livros são intelectualmente superiores a outros, que algumas teorias são pura e simplesmente verdadeiras e outras falsas, e que algumas culturas produziram produtos culturais mais importantes que outras (SEARLE, 1993, p. 19).

A nova organização, portanto, tem um caráter partidário

com a defesa dos interesses e necessidades de grupos. O argumento é que as mudanças estruturais da sociedade dividida em grupos exigem novos padrões de excelência acadêmica. A excelência acadêmica da nova organização não tem finalidade intelectual de objetividade, nem a finalidade de transformação social, mas de caráter moral ou político. Com isso, a própria concepção de pesquisa, de acordo com a subcultura universitária do pós-modernismo, sofre uma mudança, passando da ideia de um domínio a investigar para a ideia de que há uma causa a defender, o que, para Searle (1993, p. 20), pode inclusive prejudicar a própria prática da pesquisa.

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A mudança nos novos padrões de excelência acadêmica exige o abandono de certas características da metafísica ocidental, como a imparcialidade decorrente do compromisso com a objetividade e a verdade. Na concepção tradicional, por exemplo, seria possível falar sobre ateísmo sem ser ateu, pois o caráter acadêmico independe das atitudes morais.

O caráter de imparcialidade dos pesquisadores em sua pesquisa não é possível no discurso da universidade do pós-modernismo, pois não há uma investigação independente da causa moral a defender. Segundo Searle, os adeptos a essa reforma têm por objetivo principal a defesa de uma certa causa.

A ideia de que a resolução de alguns problemas políticos ou sociais se desenvolva a partir da criação de uma nova ciência para aquela área é também atacada, pois a própria ideia de ciência é encarada como repressiva na concepção dos reformistas do currículo das universidades. Uma nova teoria científica, para os reformistas (ligados aos propósitos da universidade do pós-modernismo), não pode ser a base para a construção de uma nova orientação política, ou seja, o desenvolvimento de uma nova orientação política não necessita do acompanhamento de uma nova teoria científica, pois a orientação política já está determinada.

De acordo com o que foi exposto, há uma observação a ser destacada. Toda essa modificação do discurso tradicional da metafísica ocidental para o discurso do pós-modernismo, no âmbito das universidades que se dedicam à investigação, está pautada também numa modificação de vocabulário. Tradicionalmente, por exemplo, se referia a ideia de disciplina acadêmica como domínio a estudar, mas com a nova orientação política passa a ser causa a promover (SEARLE, 1993, p. 22).

A principal modificação de vocabulário destacado por Searle é a ideia do que é ser acadêmico:

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se a verdade e a validade objetivas não existem, tanto podemos discutir a pessoa que apresenta o argumento e os motivos que terá para o apresentar, como podemos discutir a pretensa validade do argumento e a alegada verdade das suas conclusões (SEARLE, 1993, p. 21).

A concepção de acadêmico como o investigador de uma

realidade da qual é independente passa por modificações, sendo que o próprio sujeito se torna a referência para a validade e aceitação da sua produção intelectual. “Antes, os estudiosos tentavam ultrapassar as limitações dos seus próprios preconceitos e pontos de vista. Hoje, exaltam-se estas limitações” (SEARLE, 1993, p. 21). Não significa que a produção intelectual não tem referências e, por isso, tende ao relativismo. Significa que os referenciais em questão mudaram e têm como centro o sujeito, uma vez que a avaliação e a validação das produções intelectuais estão calcadas nos pressupostos subjetivos.

Como foi visto, todo discurso que rejeite a metafísica ocidental traz várias modificações na maneira de ser da universidade. Segundo Searle, esse discurso é proveniente do próprio meio do ensino superior, com propósitos de transformações políticas. Para o autor, é provavelmente impossível rejeitar por completo a tradição da metafísica ocidental devido às suas próprias características básicas, a começar pelo realismo externo, destacado anteriormente.

A universidade do pós-modernismo tem a característica de refutar as bases da universidade tradicional, mas seus argumentos183 são inconsistentes no que se refere à base epistêmica da metafísica ocidental. Para ela, todo discurso é um qualquer caso político, usando a universidade para fins políticos.

183 A propósito, a própria ideia de argumento já indica que existam pressupostos sólidos que sustente e afirme a base da verdade de uma afirmação, como apresenta Searle (1993, p. 25).

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Searle não tem a intenção de defender a ideia da metafísica tradicional como plenamente válida, rejeitando a universidade para fins políticos. O conjunto de pressupostos da metafísica ocidental pode conter incoerências para representar a relação entre sujeito e a realidade, porém deve haver alternativas a serem encontradas. Alguns de seus pressupostos, segundo Searle, não poderão jamais ser refutados ou ignorados, como por exemplo, a ideia de que existe um mundo independe da vontade humana (o realismo externo).

Certamente, a tradição acarreta, em alguns casos, exageros (e por isso que em seu conjunto não é perfeita), como a forte ênfase na objetividade. Porém, remeter-se ao outro extremo, o da subjetividade, em que tudo depende do sujeito, também parece incoerente.

Searle não condena o fato de as universidades conterem certos objetivos políticos. Mas não aceita o fato de que elas sejam usadas com finalidades exclusivamente políticas, rejeitando por completo a metafísica ocidental em favor de um discurso pós-moderno. A crítica, portanto, deixada por Searle é de que pensadores atuais que negam o realismo, dizendo que a realidade é uma construção humana, “negaram uma das condições da inteligibilidade das nossas práticas linguísticas comuns sem terem fornecido uma concepção alternativa dessa inteligibilidade” (SEARLE, 1993, p. 26).

A concepção de universidade é tema de muitas discussões em educação, mas seus debates são mais acentuados na esfera política. Por isso, a contribuição de Searle está em promover a discussão sobre os temas centrais que dizem respeito à missão da universidade mediante suas bases epistêmicas e metafísicas.

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REFERÊNCIAS FAIGENBAUM, Gustavo. Conversaciones con John Searle. Buenos Aires: Libros en Red, 2001. SEARLE, John R.; DENNETT, Daniel Clement; CHALMERS, David John. O mistério da consciência. São Paulo: Paz e Terra, 1998. SEARLE, John R. A Redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______. La Construcción de la realidad social. Barcelona: Paidós, 1997b. _______. Mente, cérebro e ciência. Lisboa: Edições 70, 1984. _______. Mente, linguagem e sociedade: filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. _______. Rationality and Realism, What is at Stake? Reprinted by permission of Dædalus, Journal of the American Academy of Arts and Sciences, from the issue entitled, “The American Research University”, Fall 1993, Vol. 122, No. 4. Tradução de Desidério Murcho. Disponível em http://www.disputatio.com/articles/007-1.pdf. TEIXEIRA, João de Fernandes. Mente, Cérebro e Cognição. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Capítulo 20 SSAARRTTRREE,, EEXXIISSTTEENNCCIIAALLIISSMMOO EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Daniela Ribeiro Schneider

A EDUCAÇÃO ENQUANTO FENÔMENO Refletir acerca da relação da filosofia existencialista de

Jean-Paul Sartre (1905-1980) com a educação passa por compreender a esta enquanto fenômeno (MARTINS e BICUDO, 1983). Para tanto, é preciso entendê-la enquanto um conjunto de manifestações ou ocorrências articuladas entre si, que se desvela em direção a um fim, que é exatamente o sentido do ato educativo.

Este conjunto de ocorrências diz respeito às várias dimensões da ação educativa, passando: a) pela relação professor-aluno; b) pela relação entre a construção e a transmissão de conhecimentos; c) pelo contexto e as condições onde ocorrem o ato educativo; d) pelas políticas educacionais na base deste contexto.

Desta forma, a educação passa por essas várias dimensões e define seu fim: realizar processos de transformação do homem e do mundo (FREIRE, 1983). Verifica-se, assim, que a educação é um processo incrustado de historicidade que vai definir os seus contornos. Isto significa que cada época histórica construiu este fenômeno de um modo singular, conforme as circunstâncias que o determinaram. Com isso, conforme as condições e interesses

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em jogo, configuram-se diferentes modelos educacionais. Isso significa, por outro lado, que a educação serve de mediador para o processo histórico da humanidade, na medida em que a transmissão do saber construído pelos homens é crucial no ato de sua humanização e da sua constituição sociocultural.

Discutiremos adiante as contribuições do Existencialismo Moderno para compreender o fenômeno da educação em suas diferentes dimensões e em sua historicidade. Antes, porém, veremos quais os principais pressupostos da filosofia e psicologia existencialistas.

A FILOSOFIA E A PSICOLOGIA EXISTENCIALISTAS DE SARTRE A filosofia e a psicologia produzidas pelo francês Jean-

Paul Sartre, a partir da década de 1930, embasaram-se, principalmente, no método fornecido pela Fenomenologia de Husserl, na antropologia concretizada pelo Existencialismo de Kierkegaard e no horizonte teórico e epistemológico do Materialismo Histórico-Dialético. A síntese específica desses três elementos denomina-se Existencialismo Moderno.

A busca de uma sistematização rigorosa para a filosofia fez com que o alemão Husserl (1859-1938) desenvolvesse um método para as ciências denominado Fenomenologia, cuja proposta fundamental era o retorno ao mundo vivido, já que as filosofias de até então sustentavam seus conhecimentos em abstrações da realidade. O princípio central da Fenomenologia consiste, portanto, na “volta às coisas mesmas”, ou seja, aos fenômenos, na forma como estes ocorrem no seu contexto, sendo o conhecimento formulado a partir da descrição da realidade concreta, deixando de lado pressupostos e preconceitos (DARTIGUES, 1973).

O dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) construiu um sistema filosófico denominado Existencialismo, cujas concepções contrapõem-se ao Hegelianismo no fato deste negligenciar “a insuperável opacidade da experiência vivida”

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(SARTRE, 1987a, p. 115). Com isso, resgata a singularidade da existência do homem, ressaltando-o como ser concreto no mundo. Chama atenção, de outra parte, para a subjetividade como um componente irrevogável da realidade.

O Materialismo Histórico-Dialético, desenvolvido por Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), tinha também, como ponto de partida, a crítica à filosofia de Hegel, por esta ser uma dialética idealista, propondo a “inversão hegeliana”, ao estabelecer como base para se conhecer a realidade a materialidade, mantendo, no entanto, a concepção dialética. O ponto de partida para a compreensão da realidade humana deve ser sempre a história, pois o homem é um ser eminentemente histórico e social.

Não se trata, como na concepção idealista da história de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer sempre no solo da história real; não de explicar a práxis a partir da ideia, mas de explicar as formações ideológicas a partir da práxis material. [...] Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias (MARX, 1987, p. 55-6).

A concepção dialética compreende, portanto, a realidade

como um processo histórico sempre em curso, no qual as contradições são elementos constitutivos. Nessa perspectiva, o homem é produto da história, ao mesmo tempo em que a produz. Da mesma forma, a subjetividade não existe em si mesma, já que é sempre produto das relações sociais, ativamente apropriadas pelo sujeito.

O Existencialismo Moderno, consolidado por Sartre, consiste na síntese desses três elementos, constituindo, assim, uma filosofia e uma psicologia peculiares. Representa uma superação das filosofias idealistas e das psicologias mentalistas que delas se desdobram, bem como das filosofias materialistas clássicas e das psicologias objetivistas pertinentes, na medida em que não se reduz ao determinismo

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das ideias, nem ao determinismo da matéria. (SCHNEIDER, 2011; SCHNEIDER e CASTRO, 1998).

Sendo assim, Sartre postula uma dialética entre a dimensão da subjetividade e a dimensão da objetividade, base de sua ontologia.

A teoria sobre o ser da realidade, em Sartre, implica a constatação de que a materialidade, as coisas e, portanto, a objetividade são componentes indescartáveis desta realidade e que existem independentemente do homem ou da dimensão subjetiva.

Por outro lado, implica a compreensão da dimensão de subjetividade como o outro pólo da realidade, constituído pela região da consciência, pautada pelo princípio da intencionalidade, tomado da fenomenologia de Husserl, no qual toda “consciência é consciência de alguma coisa”. Mostra, com isto, a impossibilidade da subjetividade sustentar-se em si mesma, já que necessita sempre das coisas transcendentes para existir. Isto significa que a consciência só se sustenta por ser relação a alguma coisa, é distância de si, é transparência, sem opacidade, sem plenitude de si. Portanto, a subjetividade é para-si, implicando a noção de movimento, de relação. A consciência define-se, assim, pelo pólo de relação ao objeto que por condição ela não é, define-se, portanto, pelo seu não-ser. Por exemplo, quando sonho, sonho com algum objeto, pessoa, ou situação; quando tenho raiva é de alguém, ou de uma situação; quando penso... penso em alguma coisa. A consciência é, portanto, o que não é, sendo assim, ela é o nada (SARTRE, 1997).

Eis que a outra dimensão, a de objetividade, torna-se, então, indescartável para a compreensão da realidade. Este absoluto, constituído pelas coisas, pela materialidade, independe da consciência para existir. É a região do Ser, que é em-si. Ser em-si significa que o ser é opaco, fechado em si, que não é nem passividade nem atividade, é inerente a si; desconhece, pois, a alteridade, não mantém relação com o

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outro (SARTRE, 1997). Porém, ainda que não tenha alteridade, só aparece, só é reconhecido, só é organizado para uma consciência.

Portanto, as duas regiões ontológicas que compõem a realidade, o ser e o nada, as coisas e a consciência, o em-si e o para-si, a objetividade e a subjetividade, mesmo sendo aspectos da realidade irredutíveis entre si, portanto dois absolutos, ainda assim, não se sustentam um sem o outro. São, portanto, dois absolutos relativos. Relativos porque, o primeiro (em-si) existe independente do segundo (consciência), mas só se organiza, só ganha sentido pela presença deste. O segundo (para-si) para existir depende da relação estabelecida com aquele (com as coisas), apesar de ser distinto dele.

Sendo a consciência simplesmente a condição de estabelecer “relação a” e a materialidade um componente independente e indescartável da realidade, consolidam-se as bases para a superação da filosofia da interioridade, da psicologia do si mesmo, da noção da consciência enquanto “caixa preta”, depósitos de conteúdos, fazendo uma crítica ao substancialismo cartesiano e seu consequente subjetivismo. Para tanto, basta assumir, segundo Sartre (1968), o princípio da intencionalidade em sua radicalidade:

Hei-nos libertos da ‘vida interior’: [...] porque, no fim de contas, tudo está fora, tudo, até nós próprios: fora, no mundo, entre os outros. Não é em nenhum refúgio que nos descobriremos: é na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens (SARTRE, 1968, p. 29-31).

Temos aqui em síntese a ontologia de Sartre e seus

desdobramentos. Com ela, pode-se colocar a epistemologia no seu devido lugar, já que se acaba com a primazia do conhecimento. O ser existe anteriormente ao conhecimento que dele se tenha. Sendo assim, o ser do fenômeno é transfenomenal, escapa ao conhecimento (SARTRE, 1997).

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Dessa forma, o conhecimento não está dado a priori, é sempre segundo, ontologicamente falando, quer dizer, uma construção resultante da relação da consciência com as coisas, do homem com o mundo. Somente assim, devolvemos ao homem a sua condição de ser sujeito: sujeito do conhecimento e, em consequência, sujeito da sua própria história, individual e humana (SARTRE, 2002b; SCHNEIDER, 2011).

A ontologia sartriana desdobra-se, assim, na compreensão de uma antropologia histórica, dialética e existencial. Sartre esclarece em sua conferência O Existencialismo é um Humanismo que não existe uma natureza humana, se por isso entendermos uma essência a priori e universal de homem, na qual cada sujeito singular se enquadraria, lógica típica da filosofia aristotélica, mantida pelas filosofias idealistas. Há, entretanto, uma condição humana, no sentido de um conjunto de limites que definem a situação do homem no universo. Explica o filósofo:

As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pagã ou senhor feudal ou proletário. O que não muda é o fato de que para ele, é sempre necessário estar no mundo, trabalhar, conviver com os outros e ser mortal. Tais limites não são nem subjetivos nem objetivos; ou, mais exatamente, têm uma face objetiva e uma face subjetiva. São objetivos na medida em que podem ser encontrados em qualquer lugar e são sempre reconhecíveis; são subjetivos porque são vividos e nada são se o homem não os viver, ou seja, se o homem não se determinar livremente na sua existência em relação a eles (SARTRE, 1987b, p. 60).

Temos que esclarecer essa condição humana. O primeiro

aspecto é que o homem é, inelutavelmente, corpo e consciência. O corpo é uma “coisa”, portanto, é em-si. Já a consciência é para-si. O homem é, assim, a totalização perpétua do em-si-para-si, uma totalização sempre em curso, pois não há síntese final possível (SARTRE, 1997). É essa totalização que

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definirá os contornos do eu ou da personalidade (SCHNEIDER, 2011).

Poderíamos igualmente conceituar o ser do homem como se faz com a consciência, escapando ao “princípio da identidade”, característico do em-si (que define que o “ser é o que é”), dizendo que “o homem é o que não é e não é o que é” (SARTRE, 1997). Primeiro, ao nos reportarmos à relação corpo/consciência, acima referida: o homem está impossibilitado de ser simples corpo (em-si) por ser consciência, e impossibilitado de ser simples consciência (para-si) por ser, também, seu corpo. Daí a noção de totalização em curso.

Concomitantemente, o homem é uma perpétua temporalização, quer dizer, o homem está sempre no tempo. É através do homem que o tempo vem ao mundo. Dessa forma, o homem é seu passado (que é em-si, posto que já passou, é fato, é coisa). Mas não se reduz a sê-lo, já que está sempre frente a seu devir, ao seu futuro (que é nada, posto que ainda não é). Assim, ele é essa totalização do passado, presente e futuro.

Em relação ao vir-a-ser, enquanto característica fundamental, poderíamos afirmar que o homem é suas possibilidades. A possibilidade é aquilo que falta ao homem, o que ele busca para se completar, na medida em que é um permanente devir. Ser sua própria possibilidade é definir-se como “evasão de si rumo a...”. Portanto, o homem é o ser que coloca perpetuamente em questão seu ser, conforme afirma Heidegger. Ao questionar-se, transcende a situação em que está inserido, indo rumo a seus possíveis (SARTRE, 1997).

Essas noções deságuam na noção ontológica de liberdade, fundamental na antropologia e psicologia sartrianas. Essa transcendência “em direção a...”, este existir para além de sua essência, para além de seus motivos, é o que Sartre denominou liberdade: “o homem é livre porque não é si mesmo, mas presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A

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liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser” (SARTRE, 1997, p. 545).

Sendo assim, o fundamental no homem é sua práxis, seu fazer. Ao lançar-se no mundo, ele se escolhe determinado ser que quer ser. A liberdade é exatamente a escolha de ser realizada pelo sujeito. O homem não pode deixar de escolher; mesmo não escolher é ainda escolher, ou seja, o homem é condenado a ser livre. Tal condição de liberdade desemboca na noção de responsabilidade: o sujeito é responsável por seu ser, na medida em que é ele que escolhe seu destino.

Essas escolhas, porém, não são gratuitas, quer dizer, o sujeito não é livre para fazer o que bem entender, ou quando bem desejar. A escolha sempre se dá em situação, ou seja, ocorre a partir de um contexto, tem seus contornos. O homem deve escolher, portanto, dentro de uma estrutura de escolha (SARTRE, 1997). Sendo assim, o homem é um ser-em-situação e a descrição e localização desta situação é fundamental em sua compreensão existencial (BURSTOW, 2000; SCHNEIDER, 2011).

É preciso compreender, ainda, que escolher-se é lançar-se em direção a um fim, ou seja, ir em direção a um projeto-de-ser, conceito também fundamental na perspectiva sartriana.

O homem nada mais é do que aquilo que ele fez de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. [...] De início o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto (SARTRE, 1987b, p. 30).

Este projeto é livre unificação (em-si-para-si,

corpo/consciência, passado/presente) do homem em direção a um devir. O meu projeto diz respeito ao meu ser-no-mundo em totalidade, portanto, expressa-se em cada um dos meus atos, gestos, palavras (SARTRE, 1997).

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O projeto de ser é constituído pelo homem a partir de sua história de relações. Essa constatação nos faz compreender que, primeiro, o homem existe, surge no mundo, só depois, a partir do seu processo de relações, é que ele se define, delineia sua essência, seu projeto. Isso significa que, na realidade humana, a existência precede à essência, princípio fundamental do existencialismo sartriano, na continuidade do existencialismo de Kierkeggard. Com esse princípio, Sartre ressalta a centralidade do processo histórico para o homem e também a noção da personalidade como um processo em construção, aproximando seu existencialismo do materialismo histórico-dialético (SCHNEIDER, 2011).

É preciso entender, ainda, que quando faço minhas escolhas, à luz de meu projeto, não escolho só para mim, mas também para os outros. A escolha de cada sujeito implica uma escolha para todos os homens, pois, ao realizarmos o homem que queremos ser, estamos abrindo uma possibilidade humana: se eu posso ser assim ou assado, qualquer outro pode sê-lo também. Se escolho um casamento monogâmico, exemplo dado por Sartre (1987a), estou escolhendo este tipo de relação não só para mim, mas para todos os outros. O homossexual horroriza ao homem moralista porque coloca essa opção como uma escolha humana e, portanto, possível também para ele, moralista, e para qualquer outro (SARTRE, 2002a).

Essa situação supõe uma estrutura fundamental da realidade humana que é nosso ser-com-o-outro, aproximando-se, neste aspecto, da filosofia de Heidegger. Em Sartre, o homem é um ser-para-si-para-o-outro. O outro é um mediador indispensável entre mim e mim mesma. Declara o existencialista que

a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou

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contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros (SARTRE, 1996, p. 59).

No existencialismo sartriano, a subjetividade não é uma

entidade em si, uma estrutura mental; ela é um processo dialético de apropriação da objetividade, de interiorização da exterioridade. A subjetividade só existe como subjetividade objetivada. Quer dizer, o sujeito encontra-se inserido em condições materiais, sociais, familiares, existenciais concretas e é no processo de apropriação dessas condições que constitui sua subjetividade, que imediatamente se objetiva, através de seus atos (sua práxis), seus pensamentos, suas emoções (SARTRE, 1987a). Sendo assim, a subjetividade sempre ocorre como intersubjetiva (DANELON, 2010).

O homem, portanto, antes de mais nada, está inserido em um processo de relações: com a materialidade que o cerca, com seu corpo, com os outros, com a sociedade, com o tempo. Em específico, as relações socioculturais concretizam-se na vida das pessoas através da mediação de coletivos específicos denominados grupos. O grupo, na perspectiva do Existencialismo Moderno, não é somente uma reunião de indivíduos com o mesmo objetivo, mas sim o tecimento de pessoas à luz de um projeto comum, quer dizer, um entrelaçamento de personalidades implicadas social, cultural, afetiva e psicologicamente. Uma pessoa pode estar inserida em vários grupos, sem os quais não se reconhece como sendo quem deseja ser; ela não se define sem o grupo, assim como o grupo não se constitui enquanto tal sem a sua participação. Sendo assim, os grupos são o suporte existencial da vida das pessoas. São os grupos, espontâneos ou instituídos, os responsáveis pela construção e transmissão dos diversos tipos de conhecimento, sejam eles científicos, religiosos, populares, etc. Estão, portanto, na base dos processos educativos.

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Irremediavelmente tecidos entre si, os indivíduos, os grupos e a história humana são totalizações em curso, ou seja, elementos em constante processo de construção-desconstrução-reconstrução. A dialética, portanto, é a característica constitutiva da realidade humana (SARTRE, 2002b). SARTRE, O EXISTENCIALISMO E A EDUCAÇÃO

Conforme o modelo de educação que prevalece, decorre a perspectiva sobre a relação professor-aluno e o papel de cada um no processo educacional, a relação entre a construção e a transmissão do conhecimento, as condições do ato educativo. As concepções da filosofia fenomenológico-dialética de Sartre são contribuições importantes para se pensar o fenômeno educativo, dentro de certa perspectiva educacional.

Inicialmente, podemos argumentar que Sartre foi um crítico do modelo da pedagogia tradicional. Ainda que não tenha textos específicos sobre o tema, Sartre apoiou ativamente o movimento dos estudantes de maio de 1968, que criticava o sistema de educação vigente. A crítica à filosofia idealista, bem como ao que Sartre (1968) denominou filosofia alimentar, com a lógica da representação mental, ou da consciência como repositório de conteúdos, faz com que o modelo da pedagogia tradicional, centrada na autoridade do professor, no seu papel de fonte única de transmissão do conhecimento, que deve ser recebido passivamente pelo aluno, ou seja, o modelo da chamada pedagogia bancária por Freire (1983), seja questionado até suas raízes ontológicas e antropológicas pela filosofia sartriana.

É bem por isso que certos autores, que defendem um modelo de pedagogia tradicional, autoritária, são críticos da filosofia de Sartre, como é o caso de Benhamida em seu conhecido artigo O existencialismo de Sartre e a educação: a falta de fundamentação para as relações humanas (BURSTOW, 2000).

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A influência da fenomenologia aproxima Sartre da chamada Pedagogia Nova ou Escolanovismo, que postula uma educação centrada no aluno e em suas potencialidades, sendo o professor um facilitador do processo de aprendizagem (MARTINS e BICUDO, 1983). A concepção sartriana de uma filosofia centrada no sujeito está em consonância com essa perspectiva. A noção do projeto de ser em Sartre indica um caminho para o processo educativo, no sentido do ato pedagógico dever oportunizar uma aprendizagem significativa, na medida em que se constitua um sentido do aprendizado que seja incorporado ao devir do sujeito. Este é o diferencial da proposta da Pedagogia Nova: o ato educativo terá mais impacto se disser respeito ao campo de possibilidades de ser do aprendiz, que se reconhece no processo de apropriação ativa do conteúdo. Conforme discute Danelon (2010, p. 14), “a educação não se constitui num processo de formação ou de objetivação da subjetividade, mas ela apresenta as ferramentas necessárias para o sujeito projetar seu ser, a partir de suas escolhas, num futuro”.

Desta forma, esse ato pedagógico é situado no tempo e no espaço. Como disse Santana (2011, p. 16), falando das contribuições de Sartre à educação,

não há como pensar a educação sem a sua constituição na situação. Neste sentido, a educação deve ser construída, inventada, a partir da situação já constituída de significados, que precisam ser transpostos para criar novas possibilidades de significações.

No entanto, as críticas ao Escolanovismo, por esta

abordagem estar em consonância com a perspectiva liberal de homem e sustentar-se numa concepção subjetivista e pouco crítica do processo educativo, são também compartilhadas pelas críticas ao subjetivismo na filosofia de Sartre. Por um lado, como vimos acima, o existencialismo se coloca na direção de uma pedagogia centrada no aluno. Mas, por outro lado, a

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perspectiva materialista-histórica que lhe dá embasamento faz com que Sartre, sem negar a dimensão subjetiva da realidade humana, conceba-a de forma dialética e, com isto, se aproxime da perspectiva da teoria histórico-cultural de Vygotski, afastando-se, de certo modo, das filosofias e psicologias fenomenológicas que, em sua maioria, acabam presas a um excessivo subjetivismo.

Na teoria histórico-cultural, o pedagógico constitui-se na relação entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado, sendo que pressupõe a natureza social da aprendizagem, ou seja, é pelo processo de interações sociais, ocorridas em contextos específicos, a partir do processo de mediação semiótica, que o sujeito desenvolve as funções psicológicas superiores (ANTONIO, 2008; ZANELLA, 2001). Neste aspecto, a perspectiva do ser-com-o-outro, enquanto elemento fundante da psicologia existencialista, serve de embasamento para a noção de mediação social, como aspecto central da constituição do sujeito. Esta noção dialética, melhor desenvolvida em Saint Genet: comediante e ator (SARTRE, 2002a) e na Crítica da Razão Dialética (SARTRE, 2002b), descreve a historicidade do sujeito, na sua relação com os grupos, com a cultura, com o social. Com isso, fundamenta o processo educativo, compreendido enquanto relação dialética entre a produção e transmissão do conhecimento por/para sujeitos concretos e a sociedade (ANTONIO, 2008).

Aproxima-se, com isso, da educação libertária que, segundo Freire (1979), concebe o conhecimento como parte da realidade concreta do homem e este reconhece o seu caráter histórico e transformador. Aqui o conceito ontológico de liberdade, em Sartre (1997), e do homem como sendo liberdade-em-situação são fundamentos para uma pedagogia crítica, em que o sujeito é construtor do conhecimento e, portanto, da realidade social, em um processo mediado pelas diferentes instituições da sociedade. Vejamos o que o próprio Freire argumenta em seu livro Pedagogia do Oprimido:

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A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens. A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa. “A consciência e o mundo, diz Sartre, se dão ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela” (FREIRE, 1987, p. 40).

A filosofia sartriana oferece, assim, substratos

ontológicos, antropológicos e psicológicos para fundamentar uma educação crítica e libertária. Conforme argumenta Burstow (2000, p. 116),

o quadro que Sartre apresenta fornece o que faltava. Estabelece a base para processar relações afirmativas e, ao mesmo tempo, para processar relações de auxílio. Além disso, estabelece novas orientações muito importantes para a educação. Convoca a nós educadores para despertar as pessoas quanto à violação da liberdade em sociedade e a meios de consertar isso por auxílios ao indivíduo em suas espirais, isto é, em seu próprio e original emergir.

Desta forma, a educação, com base em Sartre, faz com

que compreendamos que o processo educativo é uma práxis libertadora, desde que se compreenda que “o essencial não é o que fizeram do homem, mas aquilo que ele faz do que fizeram dele” (SARTRE, 2002a). REFERÊNCIAS ANTONIO, Rosa Maria. Teoria Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica: o desafio do método dialético na didática. Maringá, 2008. Obtido

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em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2290-6.pdf. Acessado em 10/08/2011. BURSTOW, Bonnie. A filosofia sartreana como fundamento da educação. Educação & Sociedade, ano XXI, nº 70, Abril/2000. DANELON, Marcio. Intersubjetividade e Educação: o estatuto do olhar nas relações educativas. Uma reflexão a partir da fenomenologia existencial de Sartre. Obtido em: http://www.anped.org.br/33encontro/app/webroot/files/file/Trabalhos%20em%20PDF/GT17-6668--Int.pdf. 2010. Acessado em 10/08/2011. DARTIGUES, André. O que é Fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. MARTINS, Joel; BICUDO, Maria A. V. Estudos sobre Existencialismo, Fenomenologia e Educação. São Paulo: Moraes, 1983. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1987. SANTANA, Marcos R. Esboços de uma ética da educação em Sartre. Filosofia e Educação (Online) – Revista Digital do Paideia. Vol. 3, Nº 1, Abril de 2011 – Setembro de 2011. SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968. _______. Questão de Método. Coleção Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987a. _______. O Existencialismo é um Humanismo. Coleção Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987b. _______. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997. _______. Saint Genet: Autor e Mártir. Petrópolis: Vozes, 2002a. _______. Crítica da Razão Dialéctica (precedido pelo Questão de Método). Rio de Janeiro: DP &A, 2002b.

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SCHNEIDER, Daniela e CASTRO, Daniela. Contribuições do Existencialismo Moderno para Psicologia Social Crítica. Cadernos de Psicologia. Rio de Janeiro: UERJ, nº 8, Série Social e Institucional, 1998, p. 139-149. SCHNEIDER, Daniela. Sartre e a Psicologia Clínica. Florianópolis: EdUFSC, 2011. ZANELLA, Andréia. Vygostski: contexto, contribuição para a psicologia e o conceito de desenvolvimento proximal. Itajaí: Ed. UNIVALI, 2001.

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Capítulo 21 CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS SSOOBBRREE AA IINNFFLLUUÊÊNNCCIIAA DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA

GGRRAAMMSSCCIIAANNAA NNOO PPEENNSSAAMMEENNTTOO DDEE DDEERRMMEEVVAALL SSAAVVIIAANNII

Célia Kapuziniak

INTRODUÇÃO Os textos escritos sobre a teoria (ou pedagogia) histórico-

crítica, em geral, - pelo menos aqueles que chegaram às nossas mãos -, relacionam o pensamento de Dermeval Saviani com a teoria marxista, - até porque o mesmo o faz diretamente – e em alguns casos fazem um exaustivo estudo da influência do pensamento de Marx-Engels na construção da teoria histórico-crítica. No entanto, não levam suficientemente em conta a influência do pensamento de Gramsci, de forma específica. Em muitos escritos, o filósofo é olimpicamente ignorado. Saviani, segundo nossa compreensão, tem uma concepção do papel da educação, e da escola, especificamente, na transformação da sociedade e vice-versa, que deita suas raízes no pensamento de Gramsci, quando reflete sobre o papel da educação na luta de hegemonias e na transformação das relações sociais. Inclusive, encontramos diversas citações da obra de Gramsci em seus escritos.

Tentando contribuir para sanar esta lacuna, procuraremos mostrar neste capítulo, ainda que não de forma exaustiva, uma íntima relação entre os dois pensadores. Será dedicado um espaço maior à exposição do pensamento do

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filósofo italiano por ser, talvez, o menos conhecido do público leitor. Já a teoria de Saviani é muito conhecida nos meios educacionais brasileiros e não precisa, em nossa opinião, de ampla descrição. Por este motivo, limitamo-nos a estabelecer seus pontos de articulação.

GRAMSCI, O FILÓSOFO DA SUPERESTRUTURA Antonio Gramsci foi um filósofo italiano que viveu entre

o final do século XIX e início do século XX. Membro do Partido Socialista, participou da insurreição operária italiana, no final da Primeira Guerra Mundial, e fundou, em 1921, o Partido Comunista Italiano, do qual foi nomeado Secretário Geral, em 1924. Eleito Deputado, foi preso pelo governo fascista de Mussolini, em 1926, e condenado a vinte anos de prisão. Cumpriu onze anos, até sua morte184. Na prisão, escreveu numerosas páginas, depois agrupadas, sendo que as mais conhecidas receberam o título de Cadernos do Cárcere185. Gramsci pensou o marxismo como uma “filosofia da práxis”. Esta expressão, por ele usada, reflete suas intenções, mas não pode ser entendida como procura de dissociação da teoria com relação à ação, e especificamente a ação política. A prática, para o nosso filósofo, é a prática da teoria, por isso discordava do caráter dogmático do marxismo oficial, promulgado na época pelo Partido Comunista da União Soviética e seguido fielmente pelos partidos comunistas de outros países. Gramsci percebeu que o idealismo neo-hegeliano, apesar de seguir um caminho errado no aspecto idealista, poderia recuperar para o marxismo seu caráter dialético, que estava se perdendo ao 184 Na verdade foi libertado antes de sua morte, mas em um estado de debilidade tal que veio a falecer pouco depois. Sua libertação deveu-se ao medo – por parte dos fascistas - de que, morrendo na prisão, se tornasse um mártir comunista. 185 A edição completa dos Cadernos do Cárcere começou a ser publicada pela primeira vez no Brasil em 1999. Pode-se encontrar hoje em: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, 6 vols. Edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2002.

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transformar-se num simples materialismo, e um materialismo determinista que acaba levando a um fatalismo. Sua intenção é “de pôr em relevo como o fatalismo não é senão um revestimento por débeis de uma vontade ativa e real” e mostrar a futilidade do determinismo mecânico que se trata de uma “filosofia ingênua da massa e apenas enquanto elemento intrínseco de força [...] se torna causa de passividade, de imbecil auto-suficiência (GRAMSCI, 1978a, p. 33).

Para ele, a concepção mecanicista (e aí pode entrar o marxismo dogmático que está criticando) pode ser comparada a uma religião de subalternos. Para Gramsci, a realidade humana está enraizada, orgânica e dialeticamente, no mundo e na cultura. O positivismo é um pseudo-subjetivismo e o materialismo (não dialético) despersonaliza o homem, tornando-o, por consequência, incapaz de ação.

Gramsci foi chamado de filósofo da superestrutura e criticado por entender o Estado de uma forma distinta daquela dos marxistas ortodoxos, e, nesta perspectiva, entender que a educação tem uma função importante na conscientização e na libertação das massas. Os marxistas ortodoxos entendem que somente com a mudança da infra-estrutura, do modo de produção, através de uma revolução, ou tomada do poder, é possível haver mudança social. Indo na contramão, Gramsci desenvolverá ideias sobre o conjunto da sociedade. Na verdade, Gramsci não põe a política acima da economia, mas entende – como para Marx – que a economia não é a simples produção de objetos materiais, mas sim o modo pelo qual os homens associados produzem e reproduzem não só objetos materiais, mas suas próprias relações sociais globais. Ele reconhece o papel determinante das relações econômicas, mas entende que as estruturas e as superestruturas formam um “bloco histórico”. Isto significa dizer que o conjunto das relações sociais de produção se reflete no conjunto complexo e contraditório das superestruturas. Um elemento essencial na determinação da especificidade e da novidade da teoria

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política de Gramsci é o conceito de “sociedade civil” como portadora material da figura social da hegemonia, como esfera de mediação entre a infraestrutura econômica e o Estado em sentido restrito.

Por enquanto, pode-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos chamados comumente de ‘privados’ e o da ‘sociedade política ou Estado’, que correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico” (GRAMSCI, 1978c, p. 10).

O conceito de “sociedade civil” é o meio privilegiado

através do qual Gramsci enriquece, com novas determinações, a teoria marxista do Estado. Gramsci esclarece que o capitalismo avançado exige novas referências conceituais. A organização social que Marx conheceu era a da sociedade capitalista não desenvolvida, ligada à própria organização burguesa para defesa de seus interesses. Não chegou a conhecer – e isso determina seu pensamento a respeito da sociedade organizada – os grandes sindicatos englobando milhões de pessoas, os partidos políticos operários e populares legais e de massa, os parlamentos eleitos por sufrágio universal direto e secreto, os jornais proletários de imensa tiragem, etc. (uma realidade contemporânea a Gramsci, sem contar o capitalismo posterior às crises orgânicas, o fenômeno das mídias, etc.). Por isso, Marx não poderia captar plenamente uma dimensão essencial das relações de poder numa sociedade capitalista desenvolvida: precisamente aquela “trama privada” a que Gramsci se refere, que mais tarde irá chamar de “sociedade civil”, de “aparelhos privados de hegemonia”. Ou seja, os organismos de participação política aos quais se adere voluntariamente e que não se caracterizam pelo uso da repressão.

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O Estado, considerado num sentido amplo, comporta duas esferas principais: a sociedade política (chamada também de “estado em sentido estrito” ou de “Estado de coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos usados pela classe dominante para deter o monopólio legal da repressão e da violência, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle do sistema político-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massas), etc.

O ponto nevrálgico está na função que cada uma das esferas exerce na organização da vida social, na articulação e reprodução das relações de poder: o Estado seria o equivalente à ditadura mais hegemonia. Ou seja, a sociedade política, somada à sociedade civil, resultaria na hegemonia revestida de coerção. No âmbito da sociedade civil, as classes buscam exercer a hegemonia. Pela sociedade política, exercem sempre uma ditadura, ou seja, uma dominação mediante a coerção. Se, por um lado, a sociedade política sempre recebeu mais atenção dos estudiosos, Gramsci se concentra na sociedade civil. Na sociedade capitalista avançada, já não é possível exercer a dominação somente através dos meios coercitivos, isto é, mediante a sociedade política. Surge a necessidade de conquistar o consenso ativo e organizado como base para a dominação. Essa necessidade é gerada pela ampliação da socialização da política. A supremacia designa o momento sintético que unifica a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção e a ditadura.

A partir desta compreensão, pode-se perceber que a superação não poderá acontecer apenas pela via econômica e muito menos de assalto. Em vez de prever a extinção quase automática do Estado – como aparece em Marx-Engels e em

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Lênin –, Gramsci vislumbra uma luta no terreno da política e das instituições a fim de tornar possível o fim da alienação que se expressa na existência de um Estado separado da sociedade. A complexidade das sociedades ocidentais, de capitalismo desenvolvido, onde há uma maior autonomia do político, não torna possível “um assalto revolucionário ao poder”.

As crises, nas sociedades ocidentais, tornam-se mais complexas, não se manifestando única e imediatamente como resultado de crises econômicas, mesmo que aparentemente catastróficas, e não impõem uma solução rápida e um choque frontal; elas se articulam em vários níveis, englobando um período histórico mais ou menos longo. Por isso, são chamadas, por Gramsci, de “crise orgânica”, ou seja, uma crise, que à diferença das “crises ocasionais” ou conjunturais, não comporta a possibilidade de uma solução rápida por parte das classes dominantes e significa uma progressiva desagregação do velho “bloco histórico”. No aspecto econômico, a crise orgânica apresenta-se como manifestação de contradições estruturais do modo de produção; no aspecto superestrutural, político-ideológico, aparece como crise de hegemonia. A crise de hegemonia é a expressão política da crise orgânica e é o tipo específico de crise revolucionária nas sociedades mais complexas, onde existe um alto grau de participação política organizada.

A decisão da crise é resolvida no âmbito da política, a partir da iniciativa dos sujeitos políticos coletivos, pela sua capacidade de fazer política, pelo envolvimento de grandes massas na solução de seus próprios problemas, pela luta cotidiana conquistando espaços e posições, sem perder de vista o objetivo final de promover transformações de estrutura que ponham fim à formação econômico-social capitalista. Isso fica claro nestas palavras:

A compreensão crítica de si mesmo advém, portanto, através de uma “luta de hegemonias” políticas, de direções

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contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, para chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real (GRAMSCI, 1978a, p. 29).

Na estratégia gramsciana, a conquista da hegemonia passa pela transformação da classe dominada em classe dominante, pois quando se vence uma batalha na guerra de posições, esta é uma decisão permanente. E esta é uma batalha cultural, pois é neste terreno que as classes subalternas sofrem passivamente a hegemonia das velhas classes dominantes e não poderão se elevar à condição de classes dirigentes. Isso porque a direção política é também inevitavelmente direção ideológica. Mediante a cultura, a ideologia das classes superiores se torna a ideologia das classes dominadas. Por este motivo, a “reforma intelectual e moral” ocupa um lugar decisivo na reflexão gramsciana, assim como o protagonismo atribuído aos intelectuais orgânicos.

Isso posto, advém a questão: como se dá essa luta de hegemonias? A batalha por posições na sociedade civil? Comecemos por advertir que, como afirma Gramsci,

toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais (GRAMSCI, 1981, p. 37).

E, para realizar essa função hegemônica, a classe

dominante recorre às chamadas instituições, entre elas e de modo privilegiado, a escola. Para estabilizar uma relação de dominação, e com isso as relações de produção, faz-se indispensável a dominação das consciências, e isso se dá mediante a ideologia. Essa dominação das consciências ocorre por existir uma ilusória concessão de liberdade. Somente fazendo com que a classe oprimida acredite que opta

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livremente por essa concepção de mundo, que partilha da mesma cosmovisão, torna-se possível a dominação ideológica.

Segundo nosso autor, “pela própria concepção do mundo pertence-se sempre a um determinado grupo” (GRAMSCI, 1978a, p. 22), mas só aqueles que conseguem sistematizar sua concepção de mundo podem participar ativamente na construção do mundo. Portanto,

criticar a própria concepção do mundo significa torná-la unitária e coerente, e elevá-la até ao ponto a que subiu o pensamento mundial mais avançado. Significa também, portanto, criticar toda a Filosofia até agora existente (GRAMSCI, 1978a, p. 22).

Podemos afirmar que nenhum grupo social vai ter a

hegemonia se não tiver uma concepção de mundo unitária e coerente. A educação entra aqui como elemento fundamental no processo de elevar os “simples de sua condição, para que eles tenham acesso ao patrimônio cultural da humanidade” (GRAMSCI, 1978a, p. 27). É preciso, por isso, “construir um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não só de escassos grupos intelectuais” (GRAMSCI, 1978a, p. 29).

Apesar de Gramsci compreender a escola como parte dos aparelhos do Estado e instrumento para a transmissão da ideologia da classe dominante, não a considera somente com função reprodutivista. Dentro dela deverá ocorrer a conquista de posições e esta conquista será travada pelo trabalho incansável dos intelectuais orgânicos. Para o filósofo italiano, todos os homens são intelectuais, enquanto possuem conhecimento intelectual, ou técnico sobre alguma coisa. Mas alguns homens têm a função de intelectual. A história nos mostra que

cada grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para

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si, ao mesmo tempo e organicamente, um ou mais grupos de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência (GRAMSCI, 1978b, p. 343).

Existem, pois, intelectuais orgânicos das duas classes. É

imperativo que a classe oprimida crie e amplie o número dos seus intelectuais, que ofereçam à sua classe uma nova concepção do mundo e que tenham uma práxis diferenciada dos intelectuais da classe dominante:

o modo de ser do novo intelectual não pode continuar a consistir na eloquência, matriz exterior e momentânea dos afetos e das paixões, mas no misturar-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente... (GRAMSCI, 1978b, p. 347).

Dentro deste contexto, a escola ocupa papel basilar, pois

ela é “instrumento para elaborar os intelectuais de diversos graus” (GRAMSCI, 1978b, p. 347). Para Gramsci, mede-se a cultura de um país pela complexidade vertical de suas escolas. Ele percebe a necessidade de criar uma larga base social para a seleção e elaboração de altas qualificações intelectuais e assim elevar a capacidade das massas de compreender e modificar o mundo. As massas precisam apropriar-se do saber acumulado pela humanidade, pois

criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”, significa também, e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer, transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral (GRAMSCI, 1981, p. 13).

Trata-se de dirigir organicamente toda a massa

economicamente ativa para uma mudança, seguindo novos esquemas. Mas esse processo não se dá nos primeiros estágios pela massa, mas por intermédio de uma elite, “cuja concepção

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implícita em sua atividade humana já se tenha tornado, em uma certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida” (GRAMSCI, 1981, p. 23).

Mas, por que e como se difundem, tornando-se populares, as novas concepções do mundo? “Neste processo de difusão (que é, simultaneamente, de substituição do velho e, muito frequentemente, de combinação entre o novo e o velho), influem (e como em que medida) a forma racional em que a nova concepção é exposta e apresentada...” (GRAMSCI, 1981, p. 25) assim como a autoridade do expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se apoia.

O homem simples não muda de ideia de forma fácil. Ele precisa ser convencido de maneira fulgurante e permanecer na convicção. De aqui se deduz que o movimento cultural que pretenda substituir o senso comum e as velhas concepções do mundo precisa considerar duas necessidades, a saber:

1) Não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos...; 2) trabalhar incessantemente para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para tornarem-se os seus sustentáculos. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é a que realmente modifica o “panorama ideológico” de uma época (GRAMSCI, 1981, p. 27).

Gramsci considera que “uma construção de massa”

deste porte não pode ocorrer “arbitrariamente”, em torno de uma ideologia qualquer, pela vontade formalmente construtiva de uma personalidade ou um grupo que se proponha esta tarefa pelo fanatismo de suas convicções (GRAMSCI, 1981, p. 28). A história nos mostra que as mudanças ocorrem pelo conjunto integral da vontade coletiva ao mudar o bloco histórico, e este se faz por um processo que leva em conta o homem como uma série de relações. A

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humanidade que se reflete em cada indivíduo é composta de diversos elementos: o indivíduo, os outros homens com quem se relaciona e a natureza. Mas estas relações não são mecânicas, são complexas, ativas e conscientes e correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual.

Daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central... Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações (GRAMSCI, 1981, p. 39).

Para Gramsci, o homem deve ser concebido como um

bloco histórico que combina elementos subjetivos e individuais e elementos de massa (objetivos ou materiais), por isso, o melhoramento ético nunca será puramente individual, porque a síntese dos elementos constitutivos da individualidade se realiza e desenvolve numa atividade para o exterior, numa atividade transformadora das relações externas. Chega a afirmar que “por isso é possível dizer que o homem é essencialmente ‘político’, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os homens realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natureza humana’” (GRAMSCI, 1981, p. 47).

Chegamos aqui no ponto, a nosso ver, nevrálgico, no que diz respeito à educação: para nosso autor, é um fato filosófico que, ao introduzir uma nova moral correspondente a uma nova concepção do mundo, está sendo determinada uma reforma filosófica total. Mas não se chega a este ponto do processo sem passar por aquilo que Gramsci chama de catarse,

para indicar a passagem do momento puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na

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consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do “objetivo ao subjetivo” e da necessidade à liberdade”. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e tornando-o passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fonte de iniciativas (GRAMSCI, 1981, p. 53).

O filósofo concebe a dialética histórica passando pela

subjetividade. Eis aí sua grande originalidade e enorme contribuição para uma educação transformadora. Para o autor, o momento “catártico” é o ponto de partida de toda a filosofia da práxis e o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético. Aqui a filosofia gramsciana faz uma articulação com a dialética hegeliana e tenta alcançar a superação entre idealismo e materialismo (tentativa fracassada por Hegel, em sua opinião).

Gramsci não teve como foco principal a educação, mas sim a formulação de uma filosofia da práxis que propiciasse a estreita união entre o pensamento e a ação. Esta filosofia da práxis deveria desembocar numa reforma revolucionária da sociedade, onde teriam lugar tanto a organização e igualdade socialista como a liberdade cultural. A educação está inclusa no que o autor compreende como sociedade civil e tem papel importante na luta de hegemonias. Portanto, como já foi afirmado, sua concepção de escola não é reprodutivista, e embora ele não formule uma teoria pedagógica, aponta alguns direcionamentos para a atividade educativa e como se deve dar a conquista de espaços a partir da escola. Dito isso, podemos afirmar que há uma forte influência de sua elaboração filosófica no pensamento de Dermeval Saviani quando este constrói sua pedagogia histórico-crítica.

A TEORIA HISTÓRICO-CRÍTICA Segundo Libâneo, a pedagogia histórico-crítica foi sendo

tecida

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na linha das sugestões das teorias marxistas que não se satisfazendo com as teorias crítico-reprodutivistas postulam a possibilidade de uma teoria crítica da educação que capte criticamente a escola como instrumento coadjuvante no projeto de transformação social (LIBÂNEO, 1991, p. 31).

Na obra Escola e democracia, Saviani, depois de descrever

as teorias da educação e seu posicionamento diante do problema da marginalidade (ele as classifica em dois grupos: as não críticas; e as crítico-reprodutivistas), faz alguns questionamentos a respeito da escola:

é possível encarar a escola como uma realidade histórica, isto é, suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana? [...] é possível articular a escola com os interesses dominados? [...] é possível uma teoria da educação que capte criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade? (SAVIANI, 1997, p. 41).

Ele responde afirmativamente propondo uma nova

teoria que se imponha

a tarefa de superar tanto o poder ilusório (que caracteriza as teorias não-críticas) como a impotência (decorrente das teorias crítico-reprodutivistas) colocando nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado (SAVIANI, 1997, p. 41).

Para o autor, uma educação assim concebida retoma a

luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Uma teoria crítica da educação deve incorporar a luta contra a marginalidade, mas fazê-lo por intermédio da escola. Isso significa oferecer aos trabalhadores um ensino de melhor qualidade, que torne possível a apropriação por parte desta classe de todo o saber produzido pela humanidade. “O papel de uma teoria crítica da educação

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é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes” (SAVIANI, 1997, p. 42).

Pelo exposto anteriormente acerca do pensamento de Gramsci, já é possível ir percebendo a aproximação de Saviani. No mesmo livro, o autor chega a afirmar que uma pedagogia revolucionária deve identificar

as propostas burguesas como elementos de recomposição de mecanismos hegemônicos e se (dispor) a lutar concretamente contra a recomposição desses mecanismos de hegemonia, no sentido de abrir espaço para as forças emergentes da sociedade, para as forças populares, para que a escola se insira no processo mais amplo de construção de uma nova sociedade (SAVIANI, 1997, p. 67, grifos nossos).

Ao propor três teses que funcionam como antítese por

referência às ideias dominantes nos meios educacionais, o autor afirma o caráter revolucionário da pedagogia da essência e do caráter reacionário da pedagogia da existência. Nas duas está ausente a perspectiva histórica. Falta-lhes a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação. Ambas são ingênuas e idealistas, mas a pedagogia da essência, pelo menos, dá grande importância à transmissão de conhecimentos, de conteúdos culturais, e isto lhe confere um caráter revolucionário, implica o acesso das camadas trabalhadoras ao conhecimento disponível, única forma de se passar da igualdade formal para a igualdade real (SAVIANI, 1997, p. 74).

Para Saviani, as duas teorias são antíteses e faz-se necessário realizar uma superação dialética, realizar uma síntese que ultrapasse o momento antitético. Essa síntese, essa superação será feita por uma pedagogia revolucionária que, centrada na igualdade essencial, não somente formal, entre os homens, procure “converter-se, articulando-se com as forças emergentes da sociedade, em instrumento a serviço da

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instauração de uma sociedade igualitária” (SAVIANI, 1997, p. 75). A síntese dialética está na conjugação da subjetividade com a objetividade, do indivíduo com a sociedade e seus determinantes históricos (o que seria realizado pela filosofia da práxis, segundo Gramsci).

O autor compreende que uma pedagogia revolucionária concebe a educação não como determinante principal das transformações sociais (como o faz a pedagogia escolanovista). Reconhece ser um elemento secundário e determinado. Mas, não por isso incapaz de influenciar no processo de transformação da sociedade, exatamente porque se relaciona dialeticamente com a sociedade. O momento de superação dialética se dá na “superação da crença, seja na autonomia, seja na dependência absoluta da educação em face das condições sociais vigentes” (SAVIANI, 1997, p. 76). A importância da educação se dá pelo seu papel de transmissora de uma certa ideologia, porque quando se esgotam os mecanismos de recomposição de hegemonia, são acionados outros, como os meios de comunicação de massa e as tecnologias de ensino. “Passa-se, então, a minimizar a importância da escola e a se falar em educação permanente, educação informal, etc. No limite, chega-se mesmo a defender a destruição da escola” (SAVIANI, 1997, p. 78). Mas, quem defende a desescolarização são os já escolarizados e que têm interesse em manter a classe trabalhadora alheia ao conhecimento. Para o autor, é claro que uma “pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola” (SAVIANI, 1997, p. 79).

O autor faz questão de frisar que os métodos que defende mantêm sempre presente a vinculação entre educação e sociedade, de tal modo, que o ponto de partida pedagógico deve ser a prática social e esta deve ser também o ponto de chegada, passando pela problematização, instrumentalização e catarse. Ora, difícil não perceber o pensamento gramsciano aqui presente. O filósofo italiano muitas vezes afirmou a

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necessidade de fazer com que as massas criticassem sua concepção de mundo, tornando-a unitária e coerente - para tanto é necessário partir-se da própria prática social, problematizando-a – e elevá-la até o ponto a que subiu o pensamento mundial mais avançado – o que se faz com a instrumentalização. A catarse, como foi abordado acima, é extremamente relevante para Gramsci, porque é por meio dela que se supera a antiga concepção de mundo e se elabora uma nova. Como Gramsci, que entendia que o processo educativo realizava a síntese dialética entre sujeito e sociedade, Saviani afirma que “a educação, portanto, não transforma de modo direto e imediato e sim de modo indireto e mediato, isto é, agindo sobre os sujeitos da prática” (SAVIANI, 1997, p. 82).

Nos dois autores, percebe-se que o objetivo final da educação é a transformação social, passando pela transformação da prática social, e esta acontece pela mediação da educação. Por isso, Saviani afirma que a compreensão da prática social passa por uma alteração qualitativa. O que Gramsci chama de mudança de concepção de mundo. Para o filósofo italiano, “a própria concepção do mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade” (GRAMSCI, 1981, p. 13) e criar uma nova cultura exige saber interpretar esta realidade e substituir o senso comum com as velhas concepções do mundo. Nesta esteira, Saviani mostra a necessidade das camadas populares se apropriarem das “ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diuturnamente para se libertar das condições de exploração em que vivem” (SAVIANI, 1997, p. 81).

Não foi intenção, neste momento, fazer um estudo exaustivo das implicações pedagógicas do pensamento de Gramsci, nem tampouco esgotar as possíveis influências filosóficas no pensamento de Dermeval Saviani. Somente nos propusemos fazer algumas considerações que consideramos necessárias sobre a articulação filosófica entre os dois pensadores. Dadas as suas diferenças de contexto histórico, de

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vivência pessoal e de perspectiva, não poderíamos realizar aproximações excessivas, que seriam forçadas. Mas, de todo modo, parece-nos que a influência do filósofo italiano no pensamento de Saviani ficou bastante evidenciada. Isto não lhe tira brilho, nem originalidade, simplesmente mostra como caminha a construção do pensamento humano. De forma dialética, vamos elaborando novas reflexões que buscam dar conta de nosso tempo, sempre apoiando-nos nos ombros dos que nos precederam. REFERÊNCIAS GRAMSCI, Antonio. Introdução ao Estudo da Filosofia e do Materialismo Histórico. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978a. _______. Problemas da Vida Cultural. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978b. _______. Os intelectuais e a organização da cultura. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978c. _______. Concepção Dialética da História, 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. LIBÂNEO, José Carlos. A Didática e as Tendências Pedagógicas. In CONHOLATO, M. Conceição et al. (orgs). A Didática e a Escola de 1° grau. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1991. SAVIANI, Dermeval. Educação, cidadania e transição democrática. In: COVRE, Maria de Lourdes M. (org.) A cidadania que não temos. São Paulo: Brasiliense, 1986. _______. Pedagogia Histórico-crítica: primeiras aproximações. 6 ed. Campinas: Autores Associados, 1997. _______. Escola e Democracia. 31 ed. Campinas: Autores Associados, 1997.

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Capítulo 22 ÉÉTTIICCAA EE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO:: UUMMAA RREEFFLLEEXXÃÃOO AA PPAARRTTIIRR DDAA NNOOÇÇÃÃOO

DDEE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO FFAALLÍÍVVEELL EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR

Paulo Eduardo de Oliveira A trajetória intelectual de Karl Raimund Popper (1902-

1994), embora tenha sido desenvolvida principalmente no campo da filosofia, conserva alguns traços significativos de natureza pedagógica. Com efeito, no período da juventude, Karl Popper fez incursões na área da educação, em razão dos estudos realizados no Instituto Pedagógico de Viena, com a intenção inicial de tornar-se professor secundário de matemática e física (POPPER, 1977). Ele estava também profundamente interessado na reforma educacional de seu país, em razão da visão crítica que tinha em face do sistema educacional vigente (HACOHEN, 2000). Além disso, algumas atitudes de Popper denotam sua própria “posição pedagógica”: o costume de nunca usar as mesmas anotações de aulas anteriores, mas sempre preparar material novo (POPPER, 1977); o fato de ter imposto para si mesmo a regra de “jamais criticar seus discípulos em público” (OLIVEIRA, 2011, p. 91), a fim de não desmotivá-los; e mesmo a consciência de que todo intelectual (e, portanto, todo educador) deve primar pela clareza, pela honestidade e pela modéstia intelectuais (POPPER, 1996).

Contudo, a compreensão das relações entre a filosofia de Popper e a educação não pode ser estabelecida a partir desses

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poucos traços de caráter biográfico: ela depende de uma visão mais orgânica de sua obra e, sobretudo, de seu racionalismo crítico. As reflexões que seguem representam um esforço para condensar, nos limites de poucas páginas, algumas indicações que poderão permitir tal compreensão. EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO

Qual é o objetivo da educação? Não se pode responder apressadamente a esta questão fundamental sem, antes, oferecer solução a outra pergunta de igual relevo: o que é o conhecimento? Ora, todo o processo pedagógico está profundamente imbricado com o problema do conhecimento: a educação é, sempre, uma forma sistematizada de trabalho com a matéria-prima do saber humano socialmente construído e conservado. Em decorrência, os processos pedagógicos serão sempre o reflexo de uma determinada “teoria do conhecimento”.

Segundo Popper (1975, p. 313-315), há, basicamente, dois modos de se compreender o conhecimento (e, em consequência, o processo educativo ou, como se prefere dizer atualmente, o processo ensino-aprendizagem): 1) a “teoria do balde mental” e 2) a “teoria do holofote”.

A “teoria do balde mental” afirma que, previamente à formulação do que sabemos, é preciso acumular uma série de percepções e experiências sensíveis acerca do mundo. Só depois, então, de posse destas sensações assimiladas, separadas e classificadas é possível formular teorias, ou seja, explicações da realidade. Esta é a base da doutrina empirista, cuja influência é sentida de forma profunda na tradição científica (e pedagógica) do ocidente, a partir da Modernidade, na esteira do pensamento de Bacon, Locke, Hume e outros filósofos empiristas.

A “teoria do holofote”, por sua vez, advoga o papel decisivo da observação, ao invés da simples percepção. Uma

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observação é uma percepção, mas não é uma percepção espontânea, senão uma percepção planejada e preparada. À nossa solicitação para um estudante “fazer observações”, ele perguntará, antes de mais nada: “Observar o quê?”. Por isso, conclui Popper, “sempre uma observação é precedida por um interesse em particular, uma indagação, ou um problema – em suma, por algo teórico” e, por isso, “as observações são sempre seletivas e pressupõem alguma coisa como um princípio de seleção” (POPPER, 1975, p. 314). Neste sentido, continua Popper (1975, p. 318), “as observações são secundárias às hipóteses”. As observações, embora não sejam o ponto de partida, são o segundo passo, e assim “desempenham um papel importante como testes que uma hipótese deve experimentar no curso do exame crítico que fizermos dela” (POPPER, 1975, p. 318). Portanto, nossas conjecturas ou hipóteses servem, precisamente, como holofotes a iluminar o campo de nossas observações.

A teoria do conhecimento, na perspectiva popperiana, portanto, não se conforma a uma visão estática e definitiva da ciência, mas propõe uma compreensão dinâmica, anti-dogmática e crítica do saber científico. Para ele, “a ciência de hoje se edifica sobre a ciência de ontem (e assim é o resultado do holofote de ontem); e a ciência de ontem, por sua vez, se baseia na ciência do dia anterior” (POPPER, 1975, p. 318). Portanto, a educação não é um “encher cabeças” (balde mental), com saberes e conhecimentos definitivos (pois não existem conhecimentos e saberes que possam pretender ou merecer tal designação). Ao contrário, a educação é um processo que deve tornar as pessoas críticas diante da ciência e do próprio conhecimento. A adoção da atitude crítica, chave central do racionalismo crítico, como Popper designa sua filosofia, é a principal razão do empenho pedagógico do mestre. Mas, assumir tal atitude não é, em si, também, um fim: trata-se de uma posição necessária para que se possa chegar ao que realmente deve marcar a nossa história pessoal, ou seja,

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“lutar por um mundo melhor” (POPPER, 1999, p. 17). Aqui está um aceno para a dimensão ética da epistemologia (e da pedagogia) de Popper. A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

O problema central do pensamento de Popper, no que se refere a uma relação entre sua filosofia e a educação, reside em seu conceito de ciência. Para ele,

a ciência jamais persegue o objetivo ilusório de tornar finais ou mesmo prováveis suas respostas. Ela avança, antes, rumo a um objetivo remoto e, não obstante, atingível: o de sempre descobrir problemas novos, mais profundos e mais gerais, e de sujeitar suas respostas, sempre provisórias, a testes sempre renovados e sempre mais rigorosos (POPPER, 1974, p. 308).

Popper entende que a verdade não pode ser facilmente

alcançada, nem de forma sistêmica nem em nível elementar. Mesmo quando estamos na verdade, não temos condições de sabê-lo (POPPER, 1992, p. 85). Essa posição se contrapõe à atitude demasiado confiante na ciência, iniciada em Francis Bacon, e cujo ápice pode ser encontrada no positivismo de Augusto Comte, como veremos mais à frente. Com efeito, “enquanto Bacon afirma que a ciência é capaz de chegar à verdade, ou a fragmentos dela, Popper assevera que a ciência não consegue fazê-lo de modo conclusivo, embora seja esse seu único objetivo” (VALLE e OLIVEIRA, 2010, p. 47).

Na perspectiva popperiana, todo saber é provisório, conjectural e, portanto, carente de base para legitimar qualquer coisa, a não ser nossas próprias crenças (POPPER, 1982, p. 63). Isso porque “não pode haver nenhuma explicação que não precise de mais uma explicação” (POPPER, 1992, p. 155). Em consequência, sua proposta epistemológica não consiste na “obtenção de enunciados absolutamente certos, irrevogavelmente verdadeiros” (POPPER, 1974, p. 39), mas em

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posições provisórias, que precisam ser testadas a fim de darem razões críticas de sua validade, validade que, contudo, jamais se torna definitiva.

Assim, a ciência deve ser construída a partir do método da tentativa e erro, ou seja, “o método da apresentação de hipóteses ousadas, com o fito de submetê-las a severas críticas que permitirão identificar os pontos em que erramos” (POPPER, 1977, p. 94). Como se percebe, o esforço não consiste na defesa de teorias, como notadamente a posição positivista o faz, mas, ao contrário, na atitude ininterrupta de testá-las. Daí o caráter permanentemente falível do conhecimento e a perene condição de testabilidade das teorias. Os testes vencidos, as provas nas quais as teorias se saem bem, jamais elevam o status de uma teoria no sentido de lhe outorgar o selo de teoria verdadeira, pois “as teorias científicas sempre se mantêm na condição de hipóteses ou conjecturas” (POPPER, 1977, p. 88). Contudo, a condição permanentemente conjectural das teorias não nos desobriga da busca da verdade, porquanto, como escreve Popper, “o que temos em mira é a verdade: testamos as nossas teorias na esperança de eliminar as que não sejam verdadeiras” (POPPER, 1992, p. 58).

Isso leva-nos a compreender, em síntese, que “não pode haver, em ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidas” (POPPER, 1974, p. 49). Pode-se concluir, portanto, que a tese central da epistemologia de Popper está no

reconhecimento de que as nossas teorias, mesmo as mais importantes, e até as que são realmente verdadeiras, nunca deixam de ser suposições ou conjecturas. Se, de fato, são verdadeiras, não o podemos saber, nem a partir da experiência, nem de qualquer outra fonte (POPPER, 1992, p. 64).

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Na experiência humana, segundo a interpretação popperiana, não há outra possibilidade de construção do conhecimento a não ser sob esta perspectiva permanente da falibilidade. Esse único ponto já seria suficiente para estabelecer laços teóricos significativos com o campo da educação: por exemplo, permitiria reconhecer que nenhuma pedagogia tem o direito de permitir que os professores se mostrem a seus alunos como “donos da verdade”. Só isso já seria uma verdadeira revolução pedagógica, mas vejamos ainda outros pontos. A CONCEPÇÃO POPPERIANA DE RACIONALISMO CRÍTICO

O racionalismo crítico é o eixo central do pensamento de Karl Popper. As principais teses do racionalismo crítico constituem a base para qualquer empenho de aproximação entre suas concepções e o campo da educação. Tais teses podem ser resumidas nos pontos que seguem.

Primeiro: nosso conhecimento progride por ensaio e erro: não há, portanto, conhecimento que possa ser admitido como absolutamente válido. Desse modo, uma atitude dogmática diante da ciência (e da educação, por consequência) é um equívoco.

Em segundo lugar, o racionalismo crítico aborda o problema da indução. A lógica indutiva, que fundamenta as perspectivas empirista e positivista do conhecimento, compromete a validade do conhecimento produzido com a sua intervenção, em razão dos problemas lógicos encerra (POPPER, 1974, 1975, 1992). A solução de Popper consiste em rejeitar a indução e adotar os procedimentos dedutivos, em face da “assimetria entre falsificação e verificação” (VALLE e OLIVEIRA, 2010, p. 101) que ele descobre e acentua. Portanto, na concepção popperiana, o conhecimento nasce a partir de conjecturas ousadas, nascidas de um ato livre da imaginação, por meio de processos dedutivos.

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Terceiro ponto: a visão crítica das teorias e a necessidade de submetê-las a testes rigorosos. Uma vez que o conhecimento e a ciência não são constituídos de teorias estabelecidas de modo definitivo e absoluto, o racionalismo crítico exige a adoção da testabilidade como recurso metodológico fundamental. Os testes empíricos procuram refutar as conjecturas e hipóteses (matéria prima da ciência, na visão de Popper), eliminando as mais fracas. As teorias que resistem aos testes empíricos são aceitas de modo provisório, até o momento em que testes futuros, mais elaborados, porventura as refutem. A possibilidade de refutação por novos testes impede a afirmação da “verdade justificada” de uma teoria: podemos, eventualmente, até ter chegado à verdade, mas não podemos afirmá-lo em definitivo. Desse modo, o conhecimento científico expressa não o acesso à verdade, mas a verossimilhança de nossas teorias com aquilo que o mundo “parece ser”. As teorias que resistem aos testes empíricos são corroboradas e jamais justificadas, aumentando assim o seu grau de verossimilhança.

Ponto quatro. A principal característica de uma teoria científica é a refutabilidade ou falseabilidade: toda teoria deve mostrar em que condições pode ser refutada ou falseada. Teorias que se imunizam dos testes são, na visão popperiana, elaborações pseudo-científicas. Os exemplos clássicos de teorias pseudo-científicas, para Popper, são a psicanálise de Freud, a psicologia individual de Adler e as teorias de Marx (VALLE e OLIVEIRA, 2010, p. 20-23).

Em quinto lugar, tem-se a tese de que o racionalismo crítico parte da convicção de que não podemos ter justificações positivas para nossas crenças, mas podemos ter razões críticas para mantê-las ou abandoná-las. Assim, compreende-se que um dos principais avanços da epistemologia de Popper em relação à tradição anterior, sobretudo do positivismo, é a “transposição do problema da justificação para o problema da crítica” (POPPER, 1992, p. 54). A atitude crítica não é apenas

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uma nota peculiar da análise científica proposta por Popper, mas uma marca decisiva da própria noção de racionalidade que o filósofo defende. Com efeito, ele afirma, “o que distingue a atitude da racionalidade é a abertura à crítica” (POPPER, 1992, p. 60).

Sexto ponto. A admissão da impossibilidade lógica de saber se atingimos a verdade por meio da ciência (e do conhecimento humano, em geral) nos impede de adotar qualquer postura dogmática. A máxima socrática, que fundamenta esta tese, é assim traduzida por Popper: “talvez eu esteja equivocado e você possa estar certo” (citar aqui a Autobiografia). Daí decorre que a “honestidade” e “modéstia” intelectuais devem ser assumidas como consequência da visão não dogmática da ciência e da consciência da falibilidade do conhecimento humano. Por isso, afirma Popper, “um racionalista, mesmo quando se julgue intelectualmente superior a outros, deverá repelir toda pretensão de autoridade” (POPPER, 1987, p. 246). O CARÁTER FALIBILISTA DA EPISTEMOLOGIA POPPERIANA

Os pontos analisados acima evidenciam o caráter falibilista da filosofia de Popper. Embora sua preocupação seja a “busca da verdade”, ele entende que a ciência é um empreendimento, em sua própria natureza, limitado. Mas, a impossibilidade de acesso à verdade, ou a impossibilidade de se saber do alcance da verdade, não diminui a responsabilidade do cientista e nem lhe permite afrouxar os próprios valores morais. É assim que Popper não cede à atração do ceticismo e do relativismo, construindo uma epistemologia realista e, ao mesmo tempo, comprometida com a ética.

Enquanto a crença dogmática na ciência permite toda sorte de dominação de uns sobre os outros, a crença nos limites do conhecimento científico exige uma atitude de

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modéstia, de tolerância, de respeito pelo outro, de convivência pacífica. Essa é a principal consequência ética da epistemologia de Popper. A defesa da liberdade depende de uma visão não dogmática da natureza e da ciência. Esse ponto de inúmeros reflexos na prática pedagógica, principalmente no que diz respeito ao que Paulo Freire denomina “pedagogia da autonomia”.

Os limites do conhecimento humano não são devidos, exclusivamente, à nossa imperícia e aos poucos recursos de que dispomos. Antes, as limitações da ciência estão ligadas à própria natureza do universo: ele não é uma realidade estática, pronta, definida e acabada, mas algo em constante processo de mudança, à semelhança do que Heráclito propôs. De fato, o desenvolvimento de novas teorias, sobretudo no campo da biologia e da física, mostra que o mundo está em contínuo movimento, em transformação, em permanente “vir-a-ser”. E este desenvolvimento não segue os cânones deterministas de uma matemática e de uma lógica pré-definidas. Em muitos casos, os desdobramentos da natureza são aleatórios, caóticos e, portanto, imprevisíveis. Assim, não há ciência que seja capaz de ter acesso à verdade absoluta do mundo, porque o mundo está em movimento indeterminado, indefinido, o mundo está aberto ao futuro e nossas previsões não apresentam grau de confiança suficiente para podermos adotar nossas teorias como verdades absolutas. A natureza não cede aos estratagemas deterministas de nossa ciência.

A epistemologia de Popper torna-se, desse modo, uma resposta à crise da ciência iniciada a partir da segunda metade do século XIX com a desconstrução da certeza absoluta que se devotou ao modelo moderno de cientificidade. O “fim das certezas” (PRIGOGINE, 1996) não encontrou, na filosofia de Popper, um caminho alternativo de “busca das certezas” (como era a pretensão dos positivistas lógicos). Mesmo assim, Popper não se entregou ao ceticismo nem ao relativismo. Ao contrário, buscou uma forma de compreender a ciência e de

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adotá-la apesar de suas contingências e de seus limites. Mas, ao adotar uma ciência falível e indeterminista, Popper fez corresponder uma opção moral, isto é, uma atitude ética, cujas implicações são fundamentais para os desdobramentos históricos e para o progresso da própria ciência e, em suma, para a prática educativa. A CONCEPÇÃO POSITIVISTA DE CONHECIMENTO E DE EDUCAÇÃO

O contraponto da posição de Popper, acerca da ciência, é a doutrina positivista, na concepção original proposta por Augusto Comte e na versão contemporânea do Positivismo Lógico defendido pelo Círculo de Viena. A ciência, na visão positivista, é o “estado fixo e definitivo” (COMTE, 1988, p. 4)

do desenvolvimento do conhecimento humano, resultado da superação dos estágios teológico e metafísico que a precederam.

A tradição positivista conferiu à ciência uma imagem fictícia. Ao invés de mostrar suas possibilidades reais, tal tradição atribuiu à atividade científica uma série de características que, no decorrer da história recente da própria ciência, se mostraram insustentáveis. A primeira e mais significativa dessas características refere-se à noção de verdade. Para o positivismo, o conhecimento científico, em virtude de sua precisão matemática e do rigor metodológico de sua construção, não apenas revela a verdade das coisas, mas identifica-se com a própria verdade. Tal concepção, por vezes, nos leva a usar o conceito de verdadeiro e de científico como se fossem sinônimos.

Outra importante característica que a tradição positivista atribui à ciência é o caráter determinista do mundo. Para os adeptos da concepção filosófica proposta por Augusto Comte, o mundo está pronto, acabado e definido de uma vez por todas. Numa palavra, ele está posto (o que, em latim, se afirma pela expressão positum, da qual deriva o conceito de

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positivismo). Ora, se o mundo está determinado de modo absoluto e nós conseguimos explicá-lo pelo elevado grau de avanço de nossa ciência, então nossas explicações tornam-se a expressão daquilo que o mundo, de fato, é. A visão determinista assenta-se na crença de que o mundo respeita a regularidade do universo, como se o mesmo universo fosse obrigado a respeitar as leis da natureza e as leis científicas. Assim, todo o nosso empenho encerra-se em “tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis” (COMTE, 1988, p. 7, grifo do autor). Note-se o destaque que Comte dá à palavra leis: de fato, a natureza, para ele, obedece a certas regras imutáveis. Esse é, em suma, o que significa o determinismo físico.

Cabe ressaltar, ainda, outra nota que a ciência recebeu daqueles que sustentam a crença positivista. Trata-se da confiança irrestrita no método indutivo. Desde Francis Bacon, a indução é a forma lógica aplicada à investigação científica. Nas palavras de Comte:

Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência (COMTE, 1988, p. 5).

A indução é uma forma de raciocínio que, partindo da

verdade de premissas particulares, verificadas pela experiência, tende a afirmar a verdade de premissas universais. Assim, se a proposição ‘este cisne é branco’ é verdadeira, uma vez que foi verificada inúmeras vezes pela experiência, também devemos considerar como verdadeira a proposição ‘todos os cisnes são brancos’. O raciocínio indutivo é resultado da visão determinista, pois devota à natureza uma regularidade extrema, como se ela fosse um relógio de precisão absoluta e de movimentos eternamente repetidos, mas também na redução da validade do conhecimento aos dados observados.

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O que sustenta o raciocínio indutivista é, segundo Alan Chalmers (1993), o princípio de indução, que pode ser assim expresso: se um grande número de As, sobre uma ampla variedade de condições, apresenta a propriedade B, então todos os As têm a propriedade B. Trata-se, pois, de uma crença cega de que as experiências futuras deverão se comportar exatamente como as experiências do passado. Se assim fosse, a verdade, para a ciência, não seria apenas um ideal longínquo, mas uma conquista já efetivada definitivamente.

Não raras vezes, esta equivocada concepção de ciência é conservada na forma como se concebe a educação, sobretudo no modo como o ensino de ciências é construído. Muitos textos didáticos apresentam uma linguagem que não consegue esconder os jargões positivistas. De modo geral, a física newtoniana serviu como modelo para a construção das ciências modernas, sua visão de mundo e, por consequência, para o ensino das ciências. Algumas de suas principais características são fundamentais para se compreender os traços de uma pedagogia positivista da ciência. Deve-se considerar, pois, que a física de Newton observa as exigências do método experimental desenvolvido por Galileu, no qual se destacam os seguintes elementos: a materialização da ciência, a geometrização do espaço, a matematização da natureza e a aplicação da lógica indutiva para fins de experimentação do mundo natural.

Não estariam os nossos “projetos pedagógicos” ainda fortemente embebidos destes traços positivistas? Não fosse assim, seria de perguntar qual é a razão que justifica, então, o demasiado valor que se dá, na grade curricular, às ciências naturais e à matemática, em detrimento das outras áreas do conhecimento, como as artes, a filosofia e a história, por exemplo.

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A EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA FALIBILISTA Eis algumas teses que resumem, por assim dizer, a

epistemologia popperiana e que servem de baliza para se compreender a educação em perspectiva falibilista (POPPER, 1991):

a) O conhecimento assume muitas vezes o caráter de

expectativas. As expectativas têm, geralmente, o caráter de hipóteses, de conhecimento provisório ou conjectural: são incertas. Devemos, pois, encarar as nossas hipóteses de modo crítico, evitando que se tornem dogmas. Devemos testá-las com severidade de modo a sabermos se é ou não possível demonstrar a sua falsidade.

b) Apesar da incerteza, ou do seu caráter hipotético,

muito de nosso conhecimento é objetivamente verdadeiro: corresponde a fatos objetivos. De outro modo, dificilmente poderíamos ter sobrevivido como espécie. Neste sentido, escreve Popper, é preciso considerar que

seria um grave erro, no entanto, concluir que a incerteza de uma teoria – isto é, o caráter conjetural e hipotético – diminui sua pretensão de descrever a realidade. Toda assertiva a equivale à afirmativa de que a é real. Quanto ao caráter conjectural de a, é preciso não esquecer que, antes de mais nada, uma conjectura pode ser verdadeira, e descrever uma situação real; em segundo lugar, se for falsa, contraditará alguma situação real (descrita pela sua negação verdadeira). Além disso, se testarmos nossa conjectura, e conseguirmos refutá-la, perceberemos claramente a existência de uma realidade, contra a qual ela se chocou (POPPER, 1982, p. 144).

c) Deve-se por isso distinguir muito claramente entre a

verdade de uma expectativa, ou de uma hipótese, e a sua certeza. Mais ainda, deve-se distinguir duas ideias: a ideia de verdade e a ideia de certeza; ou, por outras palavras, entre verdade e verdade certa. Há muita verdade em muito do

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nosso conhecimento, mas pouca certeza. A verdade é objetiva: consiste na correspondência aos fatos. A certeza, no entanto, raramente é objetiva: geralmente não passa de um forte sentimento de confiança, ou convicção, embora baseada em conhecimento insuficiente.

A filosofia de Popper, tal como se apresenta sinteticamente nestas teses, ajuda-nos a compreender os limites da ciência humana, embora não precisemos deixar de aceitar a ciência como o melhor tipo de conhecimento de que dispomos. Basta que compreendamos a sua natureza e estejamos conscientes disso. Em razão disso, é preciso, então, assumir uma postura pedagógica coerente, que elimine os ranços de dogmatismo e presunção, tão comuns nos ambientes escolares. PARA CONCLUIR: RACIONALIDADE CRÍTICA, ÉTICA E EDUCAÇÃO

Uma última questão: a aproximação entre racionalidade crítica, educação e ética. Vimos, desde o início, que a resposta para a questão “o que é educação” precisa ser construída somente depois da resposta ao problema “o que é conhecimento”. Da posição que se adota diante do problema do conhecimento, nasce, necessariamente, a atitude pedagógica. De uma visão positivista e dogmática da ciência brota uma pedagogia dogmática; de uma visão crítica, modesta e falibilista do conhecimento nasce uma pedagogia crítica, modesta e falibilista.

A questão não é apenas epistemológica e pedagógica, mas também ética. Com efeito, o racionalismo crítico é antes uma atitude do que uma teoria: portanto, a proposta popperiana tem uma dimensão ética fundamental, que não pode ser desconsiderada (OLIVEIRA, 2011). De fato, como afirma Artigas (apud OLIVEIRA, 2011, p. 94), “a ética de Popper proporciona a chave para compreender e interpretar adequadamente toda a sua filosofia, incluída a sua

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epistemologia”. De fato, como temos acentuado em outros escritos,

a filosofia de Popper não encerra, apenas, uma ética pessoal, vivida pelo filósofo. Ela se nos apresenta como uma proposta, um ideal de vida e, quiçá, um compromisso filosófico e intelectual. Ela nos recorda que os intelectuais têm um papel fundamental que não pode ser esquecido: importa que assumam sua responsabilidade pessoal, primando pela modéstia e pela honestidade (OLIVEIRA, 2011, p. 158).

Esta ética é capaz de abrir um horizonte totalmente novo

para a prática pedagógica. As aulas, as avaliações, as relações professor-aluno e aluno-aluno, bem como a relação professor-professor podem ser beneficiadas por esta abordagem. A aprendizagem dos alunos, sobretudo, terá ganhos significativos: poderá ser tratada não como simples “aquisição de um saber” (que exige apenas adesão acrítica e memorização), mas um processo crítico de construção conjectural do conhecimento. Em suma, a pedagogia do “aprender a aprender” e a do “aprender a ser” poderão encontrar, no racionalismo crítico de Popper, um fundamento filosófico e ético que lhes dê orientação.

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