As três faces de Adão: variações sobre Heathcliff

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As três faces de Adão: variações sobre Heathcliff Heath n (uncultivated field) terreno não cultivado urzal, urzeco sm brejo, charco sm Cliff n (geography) penhasco sm falésia sf Heathcliff 1 é vegetação rasteira, de raízes grossas, que cresce, espontânea e ramosa, nos rochedos e nas ribanceiras. Germina em solos ácidos e pobres, e inibe o desenvolvimento de outras plantas. Erica vulgaris, charneca. No prefácio à segunda edição d’O morro dos ventos uivantes 2 , datado de 1850 (dois anos após a morte de Emily Brontë, vitimada pela tuberculose), Charlotte Brontë descreve a irmã como uma “moça confinada à sua casa e à sua charneca”. Charneca literal, a paisagem em torno de Haworth, vila de Yorkshire onde viveram os Brontës; e charneca figurada, Heathcliff, o herói byroniano d’O morro dos ventos uivantes. ‘Heathcliff’ serve-lhe como nome e sobrenome, posto que, charneca erma e selvagem, é filho de pais desconhecidos. Filho do diabo, ou dádiva do Senhor? Talvez pai de si mesmo, 1 Como referência, nos valeremos, neste trabalho, da tradução de Wuthering Heights feita por Ana Maria Chaves, publicada pela editora Lua de Papel, em São Paulo, no ano de 2009. 2 Dito prefácio em encontra-se publicado no vernáculo em BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. Tradução de Vera Pedroso. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1985.

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As três faces de Adão: variações sobre Heathcliff

Heath n (uncultivated field) terreno não cultivado urzal, urzeco

sm

brejo, charco sm

Cliff n (geography) penhasco sm

falésia sf

Heathcliff1 é vegetação rasteira, de raízes grossas, que

cresce, espontânea e ramosa, nos rochedos e nas ribanceiras.

Germina em solos ácidos e pobres, e inibe o desenvolvimento

de outras plantas. Erica vulgaris, charneca. No prefácio à

segunda edição d’O morro dos ventos uivantes2, datado de 1850 (dois

anos após a morte de Emily Brontë, vitimada pela

tuberculose), Charlotte Brontë descreve a irmã como uma “moça

confinada à sua casa e à sua charneca”. Charneca literal, a

paisagem em torno de Haworth, vila de Yorkshire onde viveram

os Brontës; e charneca figurada, Heathcliff, o herói

byroniano d’O morro dos ventos uivantes.

‘Heathcliff’ serve-lhe como nome e sobrenome, posto que,

charneca erma e selvagem, é filho de pais desconhecidos.

Filho do diabo, ou dádiva do Senhor? Talvez pai de si mesmo,1 Como referência, nos valeremos, neste trabalho, da tradução de WutheringHeights feita por Ana Maria Chaves, publicada pela editora Lua de Papel, emSão Paulo, no ano de 2009.2 Dito prefácio em encontra-se publicado no vernáculo em BRONTË, Emily. Omorro dos ventos uivantes. Tradução de Vera Pedroso. São Paulo: Círculo doLivro S.A., 1985.

germinal. D’O morro dos ventos uivantes, Charlotte disse, no

prefácio citado: “é todo ele rústico, selvagem e espinhoso

como uma raiz de urze”. Heathcliff, o Morro dos Ventos

Uivantes (a propriedade) e O morro dos ventos uivantes (a obra) são

o mesmo urzal.

Em seleção póstuma dos poemas de Emily, Charlotte

recorda: “Minha irmã amava as charnecas. Para ela, flores

mais brilhantes que a rosa desabrochavam no negrume da urze;

fora de um sombrio buraco em uma lívida encosta, sua mente

podia fazer um Éden”3. Como conta Brian Wilks4, o reverendo

Patrick Brontë foi instruído e educado por intermédio da

poesia de Wordsworth, e acreditava ser a natureza a divina

educadora dos espíritos. Embora Emily partilhasse da

veneração do pai pelos mistérios do calmo mar de urze, não

abraçava o credo de Wordsworth. Em suas deambulações pelas

charnecas de Haworth, Emily encontrou a personificação da

natureza: esta não era a fertilidade e a renovação femininas

da Deusa-Mãe, que ensina à alma a serenidade e a alegria;

antes, era a violenta força masculina de Heathcliff5.

Harold Bloom escreveu, certa feita, que, “nos grandes

romances, personagens não se resumem a caracteres impressos

3 Tradução nossa para: “My sister loved the moors. Flowers brighter thanthe rose bloomed in the blackest of the heath for her ; out of a sullenhollow in a livid hill-side her mind could make an Eden”. BIBBY, Andrew.South Pennines and the Bronte Moors: Including Ilkley Moor. London: Frances LincolnLtd., 2005, p. 64.4 WILKS, Brian. The Bröntes. London, New York, Sydney, Toronto: Hamlyn,1975, p. 69.5 Cf. PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a EmilyDickinson. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 410.

sobre páginas; antes, são retratos pós-shakespearianos da

realidade de homens e mulheres: verdadeiros, prováveis,

viáveis”6. Ergo, é-nos facultado questionar: que significado

terá Heathcliff para Emily? Djin da família das ericáceas,

Heathcliff é indomável, personagem (character) que se furta à

caracterização. Na lição de Bloom:

Heathcliff nega toda e qualquer tradição,inclusive as afiliações byroniana eshakesperiana. Até certo ponto, talvez jamaispossível de ser determinado, Heathcliffencerra a crítica de Emily Brontë à tradiçãodo Alto Romantismo, no que respeita àrepresentação e exaltação do desejomasculino. Mas ninguém conseguiu até opresente desenvolver essa percepção; há quasetantos Heathcliffs quanto Hamlets.7

Alianças rompidas. Isolamento. Loucura. Amor perdido. De

fato, O morro dos ventos uivantes é marcado por uma “atmosfera de

claustrofobia sexual”8. Ao revisar suas origens românticas,

Emily parece interessada em criar novos paradigmas de

representação das relações naturais. Mas como o desejo masculino

penetra no universo de Emily? Ou ainda: como se define a

identidade sexual de Heathcliff? Se a intuição de Bloom está

correta, a “questão de gênero” ocupa o ponto de fuga do

painel pintado por Emily n’O morro dos ventos uivantes. E Deus...6 BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio deJaneiro: Objetiva, 2001, p. 138 e 139.7 BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio deJaneiro: Objetiva, 2003, p. 335.8 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 411.

criou o homem, esse Proteu semântico! Como Emily, a criadora,

se posiciona diante de Heathcliff? E como Heathcliff, o

homem, se posiciona diante de Catherine?

Sem a pretensão de esgotar o problema, descreveremos e

compararemos três tentativas clássicas de interpretação da

imagem de Heathcliff: como herói; como herói-vilão; e como

centelha alienada do Deus interior. Nas variegadas

desleituras a que O morro dos ventos uivantes foi submetido no

curso das gerações, as três propostas exegéticas do caráter

de Heathcliff foram freqüentemente reaproveitadas,

alternativa ou concomitantemente. São três faces de Adão,

três estratégias literárias de representação do desejo

masculino – e, também, de representação do masculino como

obscuro objeto de desejo.

Herói

Acreditava Emily – como Florbela Espanca – que das urzes

queimadas nascem rosas? Que a charneca rude abre-se em flor?

Heathcliff corresponde ao herói convencional da narrativa

vitoriana ortodoxa? É esse o entendimento esposado pelo

filósofo antifeminista Anthony M. Ludovici9. Na argumentação

de Ludovici, o “satânico” e o “mórbido” atribuídos às figuras

de Heathcliff e Catherine não seriam mais que distorções

advindas da narração de Nelly Dean, “uma empregada ignorante,

9 LUDOVICI, Anthony M. On Wuthering Heights. The Occidental Quarterly, Vol. 7,no. 3, Fall 2007.

incapaz de entender as pessoas cujas ações ela está

recontando”10. Para o autor, os protagonistas d’O morro dos

ventos uivantes não são mais que um homem e uma mulher

enamorados que lutam contra a força do destino.

Emily, segundo Ludovici, criou em Heathcliff a imagem do

amante ideal, por jamais se ter deparado com um homem que

inspirasse seu amor11. O personagem seria fruto do desabrochar

sexual de Emily na solidão das charnecas de Haworth. Os

instintos sexuais e a fértil imaginação da autora teriam

conjurado um incubo dos campos. Em depoimento12 publicado

junto ao prefácio da segunda edição d’O morro dos ventos uivantes,

Charlotte afirma: “Minha irmã Emily não era pessoa

comunicativa, nem permitiria que ninguém – nem mesmo a

família – penetrasse, sem pedir licença, nos recessos da sua

mente ou dos seus sentimentos”. Para Ludovici, é Heathcliff o

vento que acaricia a ostra – o amigo secreto, o namorado

erradio composto pelo coração insular de Emily.

É esse o Heathcliff de Kate Bush e Stephenie Meyer. É

também o Heathcliff da bela adaptação cinematográfica de

1939, dirigida por William Wyler e estrelada por Laurence

10 Tradução nossa para: “an ignorant serving-woman, incapable ofunderstanding the people whose actions she is recording”. LUDOVICI. OnWuthering Heights, p. 29.11 LUDOVICI. On Wuthering Heights, p. 28.12 Referido depoimento (que tinha por objetivo “remover a poeira” daslápides de Emily e Anne Brontë, esclarecendo elementos acerca de suasidentidades) também encontra-se publicado em BRONTË, Emily. O morro dosventos uivantes. Tradução de Vera Pedroso. São Paulo: Círculo do Livro S.A.,1985.

Olivier e Merle Oberon. A propósito, cabe tecer algumas

considerações.

Analisando o ciclo de produções do drama romântico que

se iniciou a partir da segunda metade dos anos 30, o

professor Heitor Capuzzo identifica na tensão entre o mundo

dos amantes e o mundo da sociedade o leitmotiv do gênero. Nesse

sentido, os “paralelismos em contraponto” marcariam a

oposição entre, por um lado, a dimensão espaço-temporal do

idílio amoroso e, por outro lado, a dimensão espaço-temporal

da práxis cotidiana:

As reiterações temporais apontam para otratamento de urgência do amor recém-descoberto; o imediatismo na formação docasal; a abrupta reação externa ao parcentral; a súbita despedida de um dosamantes.As reiterações espaciais propõe níveisdiferenciados para os amantes e os demaispersonagens, através de primeiros planos coma utilização do fundo em contraponto; o claroe o escuro; o interior e o exterior; quasesempre sugerindo uma subjetividade e umaobjetividade.13

No jogo de ‘heróis’ e ‘vilões’ que articula o drama

romântico, é imprescindível que se demarque a fronteira entre

a subjetividade do universo particular dos amantes e a

13 CAPUZZO, Heitor. Lágrimas de luz: o drama romântico no cinema. Belo Horizonte: Editora UFMG, Laboratório Multimídia da Escola de Belas Artes, 1999, p. 73.

objetividade do pragmatismo cotidiano14. São dois os níveis de

tempo e espaço: o do amor e o do conflito. Na lição de

Capuzzo:

Como os amantes estão sempre acuados, o mundopragmático torna-se um feroz empecilho para aconsumação da felicidade do casal. A paisagemao redor torna-se agressiva e a fragilidadedos amantes permite que seu destino sofra ainterferência dos coadjuvantes que se tornam,por isso mesmo, poderosos. Como os amantesconquistam a empatia do espectador, há umcontraponto entre a lógica da experiênciaconcreta do público com sua aspiração lúdica,próxima do idealismo.15

A adaptação cinematográfica d’O morro dos ventos uivantes

ajudou a referendar o carisma do drama romântico junto ao

grande público. William Wyler trabalhou por dois anos para

persuadir o produtor Samuel Goldwyn a deixá-lo dirigir o

filme, baseado no roteiro de Charles MacArthur e Bem Hecht, e

originalmente escrito por Sylvia Sidney e Charles Boyer16.

Conforme John Harrington, “a força da versão de Wyler está no

tratamento das ferramentas do cinema [inclusas as estratégias

narrativas do drama romântico], mais que na tradução verbal,

para a tela, da publicação”17.

14 Cf. CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 74.15 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 76.16 V. HARRINGTON, John. Wyler as auteur. Em KLEIN, Michael; PARKER, Gillian(Org.). The English novel and the movies. New York: Frederick Ungar PublishingCo., 1981, p. 67.17 Tradução nossa para: “The strength of the Wyler version is in thehandling of the tools of cinema rather than in the verbal translation

O filme é centrado no dilema de Catherine entre o

selvagem e natural amor por Heathcliff e a civilizada e

ordenada vida da sociedade adequada18. Como indica Capuzzo:

“Trata-se da tragetória de uma maldição. Heathcliff é um

‘presente de Deus’ e, ao ser menosprezado por Cathy, torna-se

um ‘enviado do mal’. Cathy comete a falha trágica de ‘não

ouvir os deuses’, procurando a falsa segurança do mundo

terreno”19. Vaidosa, mesquinha e materialista, a personagem

não consegue se desligar do universo terreno, e conspurca

Penistone Crag, a dimensão espaço-temporal do idílio amoroso,

rocha que, na infância, ela e Heathcliff transformaram em um

castelo. Ansiando por uma vida elegante e confortável, Cathy

pede a Heathcliff que fuja do Morro dos Ventos Uivantes e lhe

traga o mundo. Casa-se com Linton e, após o regresso de

Heathcliff, morre por não suportar o conflito moral entre o

amor de infância e a fidelidade ao marido. Ensina Capuzzo:

O singular da encenação de Wyler é o destaquepara o fato de a experiência amorosa servital e inevitável. Se for truncada, acarretanum suplício infernal. O amor é um casamentode almas. Por isso mesmo, os amantes no dramaromântico tornam-se superiores pelo quesentem, distanciando-se dos demais mortais.Daí a necessidade de um outro espaço, regidopor um outro tempo. Pelo fato de Heathcliff eCathy negligenciarem o “presente dos deuses”,foram cruelmente castigados. Somente os

from print to screen”. HARRINGTON. Wyler as auteur..., cit., p. 67.18 Cf. HARRINGTON. Wyler as auteur..., cit., p. 78.19 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 94.

deuses podem interferir no destino dosamantes, sendo que, neste caso específico,eles nada fizeram para que a união do casalnão se consumasse. Como não foi possível aexperiência amorosa, o par central tornou-seassombrado, assim como o “castelo”desaparecido na paisagem, dando lugar a um“pântano estéril”.20

No curso do película, Isabella dirá a Heathcliff: “Você

não é obscuro e horrível como todos pensam; você está cheio

de dor”. Com efeito, o protagonista é retratado como uma

vítima do caráter inescrupuloso, indisciplinado e anárquico

do sexo feminino. Devido ao pecado original de Catherine, é

Heathcliff expulso do paraíso e condenado a vagar entre

espinhos e abrolhos.

Estabelecendo uma comparação entre as estruturas

conceituais do livro e do filme, George Bluestone21 propõe que

a interpretação de Heathcliff como herói convencional

configuraria uma “gondalização” d’O morro dos ventos uivantes.

Durante a juventude, sob a liderança de Branwell, os irmãos

Brontë inauguraram um jogo de invenção e composição literária

conjunta, a Scribblemania. Compuseram, então, um mundo de

fantasia partilhado. Nesse tumulto febril de criação, tiveram

origem os Reinos de Glasstown, Angria e Gondal. Sobre a

fundação de Gondal, da pena de Emily e Anne, Wilks comenta:

20 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 96.21 BLUESTONE, George. Novels into film. Baltimore: Johns Hopkins UniversityPress, 2003.

No início, junto com Anne, ela [Emily] apenasaderiu aos mais sofisticados jogos queBranwell e Charlotte organizaram, aceitandoas regras distribuídas, e deixando sualiderança para os mais velhos. Mas com apartida de Charlotte para Roe Head [umaescola para jovens moças], em 1831, Emily eAnne instauraram um novo ímpeto para suasnarrativas da estória, fundando seu próprioReino de Gondal para explorar enquantoBranwell e Charlotte continuavam adesenvolver Angria. Com Branwell preocupadocom a escrita de História dos Jovens Homens e suasexplorações de Haworth, as duas meninasrapidamente estabeleceram seu novo jogo nocurso de linhas mais fantasiosas do que odomínio de Charlotte e Branwell permitiria.Enquanto Glasstown e Angria eram os palcospara intrigas políticas e campanhasmilitares, Gondal, nascida das leituras deByron, era em todos os aspectos mais poética,seu cenário, mais obviamente romântico e suaspessoas, os típicos foras-da-lei, bandidos,exilados e prisioneiros das narrativas deByron.22

22 Tradução nossa para: “At first, together with Anne, she merely added tothe more shophisticated games that Branwell and Charlotte organised,accepting roles allotted, and taking her lead from her elders. But withCharlottes departure for Roe Head in1831, Emily and Anne found a newimpetus to their story telling, founding their own Kingdom of Gondal toexplore while Branwell and Charlotte continued to develop Angria. WithBranwell preoccupied with writing the History of Young Men and hisexplorations of Haworth, the two girls quicky established their new gamealong more fanciful lines than Charlotte and Branwell’s dominance hadparmitted. Where Glasstown and Angria were the settings for politicalintrigue and military campaigns, Gondal, born of readings in Byron, wasin every respect more poetic, its scenary, more obviously romantic andits people the typical outlaws, bandits, exiles and prisioners of Byron’snarratives”. WILKS. The Bröntes..., cit., p. 68.

Para afirmar-se como escritora original, Emily precisou

libertar-se de Gondal e da rede juvenil de criação coletiva

tecida por Branwell, o gênio manqué que se tornara

melancólico, alcoólatra e incapaz de organizar sua própria

vida23. Em seu depoimento, Charlotte rememora:

Há cerca de cinco anos, após um prolongadoperíodo de separação, eu e minhas duas irmãsvoltamos a reunir-nos em casa. Residindo numremoto distrito, onde a instrução poucoprogresso fizera e onde, em conseqüência, nãohavia satisfação em procurar relações sociaisfora do círculo doméstico, dependíamosinteiramente de nós mesmas e umas das outras,da leitura e do estudo para preenchermos asnecessidades de diversão e de ocupação dasnossas vidas. O mais alto estímulo e o maiorprazer que conhecêramos desde a infânciabaseara-se em tentativas de composiçãoliterária. A princípio costumávamos mostrar oque escrevíamos; ultimamente, porém, essehábito de comunicação e consulta fora postode lado, daí resultando ignorarmos mutuamenteos progressos que cada qual tinha feito.

N’O morro dos ventos uivantes, a autora emula Byron,

explorando zonas impensadas da identificação entre amor e

morte já presente no Alto Romantismo – e na Scribblemania. Como

indica o filósofo Georges Bataille24, n’O morro dos ventos uivantes

23 V. WILKS. The Bröntes..., cit., p. 65.24 A propósito, recomendamos a leitura do ensaio ‘Emily Brontë’, constanteda versão castelhana, clandestina, da obra La literatura y el mal, do filósofoGeorges Bataille, disponibilizada na internet desde o ano 2000 noendereço eletrônico www.elaleph.com. As referências à obra feitas aseguir foram retiradas da versão citada.

Emily torna explícita a intuição, subjacente ao labor dos

românticos, de que “o erotismo é a ratificação da vida até na

morte”; ou, ainda, de que o amor é a verdade da morte, e a

morte, a verdade do amor. Segundo Harold Bloom:

As paixões de Gondal quase não são moderadasn’O morro dos ventos uivantes, nem poderiam ser; areligião de Emily Brontë é essencialmenteerótica, e sua visão de sexualidadetriunfante é tão misturada com a morte quenós não podemos imaginar nenhuma consumaçãopara o amor de Heathcliff e CatherineEarnshaw exceto com a morte.25

Daí que a obra apresente uma “eloqüência sádica”26

incompatível com a narrativa vitoriana tradicional: o corpo é

o toldante véu material que deve ser despedaçado para que a

paixão se realize. Na observação de Bluestone, “o amor

apaixonado é impossível por quê o corpo, o agente deste mundo,

simplesmente não pode sustentá-lo. A morte é a redentora, não

a stasis”27. Aqui, Emily atingiria revelações ainda mais

sombrias que as da “escuridão visível” de Byron. Ora,

transformar Heathcliff em um herói convencional, conforme

Bluestone, implica em negar a “dimensão horripilante da

25 Tradução nossa para: “The passions of Gondal are scarcely moderated inWuthering Heights, nor could they be; Emily Brontë’s religion is essentiallyerotic, and her vision of triumphant sexuality is so mingled with deaththat we can imagine no consummation for the love of Heathcliff andCatherine Earnshaw except death.” BLOOM, Harold (Org.). Emily Brontë’sWuthering Heights. New York: Infobase Publishing, 2007, p. 5 e 6.26 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 414.27 BLUESTONE. Novels into film..., cit., p. 102 e 103.

identificação total”28, sobre a qual se firmariam os alicerces

do Morro dos Ventos Uivantes: eis-nos de volta ao Reino de

Gondal. Após demonstrar que a versão cinematográfica de

Wylder não sustenta o tema da identidade espiritual entre os

amantes – identidade esta, reitere-se, que não pode ser

plenamente realizada até que a alma esteja livre da armadilha

do corpo –, Bluestone argumenta:

Qual é o resultado da concessão dessesatributos gêmeos, romantismo e desejo deengrandecimento, sobre Cathy, na versãocinematográfica?O efeito é forçar a estória de Emily Brontëdentro de um molde convencional de Hollywood,a estória do estável rapaz e da dama. Aconvenção deve ser razoavelmente familiar.Uma dama criada em vizinhanças respeitáveisencontra-se a si mesma dividida entre um desua “própria espécie” e um estranho atraente.O primeiro é impotente, rico, desinteressantee gentil; o segundo é revoltantementemasculino, pobre, apaixonado, e rude. Porrazões românticas e sexuais, a damaclaramente prefere o forasteiro. Se a damanão está disposta a escapar com o estranho(como em Aconteceu naquela noite, de Capra), elacomeça a torná-lo respeitável, aprimorar suatabela de maneiras tal como sua renda (comoem Janela Indiscreta, de Hitchcock). Em WutheringHeights, a estória faz uma trágica reviravoltadevido à má sorte.29

28 BLOOM. Gênio..., cit., p. 334.29 Tradução nossa para: “What is the result of bestowing these twinattributes, romanticism and desire for aggrandizement, on Cathy, in themovie version? The effect is to force Emily Brontë’s story into aconventional Hollywoos mold, the story of the stable boy and lady. The

Não representando o herói convencional, o estável rapaz

de um drama romântico, mas o epicentro de um “catálogo de

horrores ctônicos”30, Heathcliff surgiu a alguns como o avatar

de um anjo caído. O abismo do Mal e a violência sagrada a ele

associados o converteriam em um anti-herói. Noutras palavras:

Heathcliff seria Byron redivivo, o belo e maldito poeta cujo

trabalho foi dominado pela interlocução entre imagens de luz

e trevas31. Esta interpretação será analisada em nosso próximo

tópico.

Herói-vilão

Emily Brontë tinha seis anos em 1824, quando George

Gordon, o Lord Byron, morreu tentando liderar bandoleiros

gregos numa revolta contra os turcos. Como muitos homens e

mulheres do período, as irmãs Brontë apaixonaram-se pela

poesia, pelo mito e pela personalidade de Byron. “O mais

convention ought to be reasonably familiar. A lady bred in respectablesurroundings find herself torn between one of her “own kind” and anattractive stranger. The first is effete, wealthy, uninteresting, andkind; the second is rebelliously masculine, poor, passionate, and rough.For romantic and sexual reasons, the lady cleary prefers the outsider. Ifthe lady is not willing to run away with the stranger (as in Capra’s ItHappened One Night), she sets out to make him respectable, to improve histable manners as well as his income (as Hitchcock’s Rear Window). InWuthering Heights, the story takes a tragic turn due to a run bad luck”.BLUESTONE. Novels into film..., cit., p. 100.30 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 414.31 Acerca da natureza paradoxal da persona assumida por Byron, recomendamosa leitura de PESTA, Duke. “Darkness visible”: Byron and the romanticanti-hero. Em BLOOM, Harold (Org.). Lord Byron. Broomall: Chelsea HousePublishers, 2004.

sedutor de todos os anjos caídos”32, Byron transitava entre o

céu e o inferno, e – como destaca Harold Bloom – sua

“sexualidade passivo-agressiva – a um só tempo

sadomasoquista, homoerótica, incestuosa, e ambivalentemente

narcisista – claramente estabelece o padrão para o

ambiguamente erótico universo de Jane Eyre e O morro dos ventos

uivantes”33.

Como componentes do herói byroniano, Pesta elenca o

perigo, a potência sexual e o desrespeito pelas convenções da

sociedade “decente”, bem como a afirmação da liberdade

individual e da radical auto-expressão34. Pondera Charlotte,

no prefácio à segunda edição d’O morro dos ventos uivantes:

Heathcliff revela um único sentimento humano,que não é o seu amor por Catherine; o qual éum sentimento selvagem e desumano, uma paixãoque poderia fervilhar e brilhar na máessência de um gênio do mal, um fogo quepoderia formar o centro tormentoso — a almaeternamente sofredora de um magnata do mundoinfernal; e, pela sua insaciável einterminável devastação, acarreta a execuçãoda sentença que o condena a levar consigo oinferno, aonde quer que ele vá.

32 BLOOM, Harold. Anjos caídos. Tradução de Antonio Nogueira Machado. Rio deJaneiro: Objetiva, 2008, p. 24.33 Tradução nossa para: “Byron’s passive-agressive sexuality – at oncesadomasochistic, homoerotic, incestuous, and ambivalently narcissistic –clearly sets the pattern for the ambiguously erotic universes of Jane Eyreand Wuthering Heights”. BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 2.34 Cf, PESTA. “Darkness visible”..., cit., p. 64.

A descrição de Charlotte poderia se aplicar não só a

Heathcliff mas, também, a Byron e ao Lúcifer de John Milton,

ambos magnatas do inferno tomados por seus desejos. C. S.

Lewis defendia que os demônios eram os anjos que não

conseguiram amadurecer35. Ora, se a maturidade implica na

assimilação das leis da sociedade e da cortesia convencional,

a incondicionada exaltação, em Heathcliff, Byron e Lúcifer,

da soberania dos impulsos primários da infância, faz deles os

modelos do anjo caído.

Com efeito, na narração de Nelly Dean, após a morte do

sr. Earnshaw, Heathcliff e Catherine “tinham prometido

crescer como selvagens e, como o jovem patrão [Hindley]

descurava totalmente da sua educação, viviam livres de sua

tutela”. Eis o reino da infância bravia e arisca, totalmente

dissociado da práxis cotidiana e da razão baseada em um

cálculo de interesse. Nesse universo, como destaca Camille

Paglia, “Catherine e Heathcliff são sacerdotes automutilantes

de um culto pagão da natureza violenta e não natural”36.

Heathcliff imagina o Paraíso como um mundo destituído de

adultos.

Catherine, contudo, vê-se obrigada a amadurecer, logo

após entrar em contato com os Linton. Presa entre a realidade

social da Granja dos Tordos e o byronismo demoníaco do Morro

dos Ventos Uivantes, a jovem tenta uma solução de

compromisso, uma frágil conciliação entre o vale fértil e

35 V. BLOOM. Anjos caídos..., cit., p. 38.36 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 421.

belo e a região montanhosa, hostil e poluída. Acerca do

caráter alegórico da topografia do livro de Emily, cindida

entre a Granja e o Morro, Paglia ensina:

Wuthering heights segue a geografia psicossexualde Antônio e Cleópatra, de Shakespeare. A GranjaThrushcross, a propriedade de Linton, é comoa Roma de César, um mundo respeitável depersonas sexuais estáticas. O morro dosventos uivantes dos Earnshaw, como o Egito deCleópatra, é um reino de energia brutanatural e descontroladas metamorfoses. Asmontanhas românticas são sublimes, exaltadas,extremas. A granja é a natureza administrada,contida, agrária, habilmente simbolizada pelovôo de um tordo, belo passado não predatório.Em Shakespeare, o herói tem de escolher entredois mundos opostos, mas em Emily Brontë é aheroína. Voltando de sua estada na GranjaThrushcross, Catherine é a Cleópatra boêmiatransformada em serena Otávia. “Em vez de umaselvagenzinha doida, sem chapéu, saltandopara dentro de casa e pulando para abraçar-nos inteiramente sem fôlego, desmontava de umbelo pônei negro uma pessoa muito digna, comos cachos castanhos caindo de debaixo de umchapéu de castor, e um comprido manto de panoque era obrigada a segurar com ambas as mãospara poder andar”. Essa nova persona decorosaé adquirida à custa de muita perda devitalidade. O símbolo da granja é o queHeathcliff chama de “os vazios olhos azuisdos Linton”. Os Linton são deuses do céulouros, que representam, como o César deShakespeare, um apolinismo impossível, árido.Os olhos deles são vazios porque cegos para oreino escuro, turvo, da dionisíaca força da

natureza de Heathcliff. A granja está aoabrigo das tempestades que açoitam e aplastama vegetação do morro. Essa paisagem hostil de“ventos frios e cortantes do céu do Norte” éo toque de mestre do romance. Aí está o maisimportante afastamento da aurora do altoromantismo, em que a natureza, mesmo quandomais tumultuosa, é em geral uma inexaurívelfonte de fertilidade. Para ela, a natureza ébasicamente força, não alimento. Ela cria, emoutras palavras, uma natureza sem uma mãe.37

Pontuamos, anteriormente, a diferença entre a natureza

como Deusa-Mãe, em Wordsworth, e como força masculina, em

Emily. Ora, os ideais românticos acerca de uma natureza

benevolente entraram em decadência no curso do século XIX: a

vida selvagem transformou-se de Parvati em Kali. As

representações da sexualidade, manifestação do natural no

cultural, acompanharam referido processo. Não se podia,

doravante, ignorar o componente perverso ínsito nos

relacionamentos amorosos. As urzes não são lírios do campo:

daí que o livro de Emily, centrado em um personagem

seminalmente viciado, apresente-se como “um redemoinho

sadomasoquista de barulho e movimento primitivos, o rasgar e

despedaçar do sparagmós dionisíaco, que só se torna tolerável

ou mesmo inteligível pelo brilhante artifício de

distanciamento dos quadros narrativos em série”38. A inovação

formal, habilmente manuseada por Emily, de articular quadros

dentro de quadros – narrações dentro de narrações – decanta,37 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 412.38 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 413.

por meio da estabilidade, da razão e do senso comum de Nelly

Dean e Lockwood, a turbulência disforme da relação de

Catherine e Heathcliff, cujas identidades estão em contínuo

deslocamento.

Mas o fato é que Catherine mostra-se incapaz de decidir-

se entre Heathcliff e Linton, a natureza e a cultura, ou, na

terminologia de Bataille, a preferência pelo instante

presente e a consideração do porvir. Nos delírios febris que

se seguem à luta entre Heathcliff e Linton, Catherine imagina

que foi arrancada do Morro dos Ventos Uivantes aos doze anos,

sendo forçada a se tornar “esposa de um estranho, exilada e

proscrita” do que fora seu mundo. E lamenta: “Quem me dera

ser de novo aquela criança meio selvagem, audaciosa e

livre... e rir das ofensas em vez de me preocupar com elas!”.

Porém, Heathcliff não aceita a subsistência da

antinomia. A propósito, diz a Catherine: “Depois de arrasares

o meu palácio, não penses que podes construir uma cabana e

vangloriares-te da tua generosidade ao oferecê-la para eu

morar”. Ainda com Bataille, poderíamos dizer que a ferocidade

semiaplacada e o fogo reprimido de Heathcliff reivindicam a

soberania da “parte maldita” (do jogo, do aleatório, do

perigo) sobre a sociedade. Se a cultura representa a ordem

dos valores, a transgressão de Heathcliff surgirá,

necessariamente, como uma Rebelião do Mal contra o Bem. Narra

Nelly Dean:

[Heathcliff] tinha perdido os benefícios dasua anterior educação: o trabalho, pesado econtínuo, do raiar ao pôr do sol, haviaextinguido a sua curiosidade de outrora, bemcomo o seu gosto pelos livros e pelo saber.[...] Conseqüentemente, o aspecto físicotornou-se o espelho de sua degradação mental;adotou um comportamento desleixado e umaaparência ignóbil; o seu mau humor naturaldeu origem a um excesso, quase demente, deinsociabilidade, sentindo, por isso, umprazer mórbido em despertar a aversão (e nãoa simpatia) dos poucos que o rodeavam.

Como disse Bataille, Heathcliff “encarna uma verdade

primeira, a da criança que se rebela contra o mundo do Bem,

contra o mundo dos adultos, e é arrastado, por sua revolta

sem reservas, ao partido do Mal”. Este o tropo do Paraíso

perdido.

Face ao caráter transgressor d’O morro dos ventos uivantes39, o

pintor e poeta pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti escreveu,

certa feita:

É um demônio de um livro, um incrívelmonstro, combinando todas as mais fortestendências femininas, de Mrs. Browning40 a Mrs.Brownrigg41. A ação está situada no inferno –

39 Como referência, nos valeremos, neste trabalho, da tradução de WutheringHeights feita por Ana Maria Chaves, publicada pela editora Lua de Papel, emSão Paulo, no ano de 2009.40 Elizabeth Barrett Browning, poeta da era vitoriana, esposa de RobertBrowning.41 Elizabeth Brownrigg, parteira executada em 1767 por torturar até amorte suas aprendizes.

é apenas aparência que os lugares e aspessoas tenham nomes ingleses lá.42

O comentário de Rossetti reflete o espanto que se seguiu

à publicação da obra, em 1847. Apreciadores e detratores do

livro escandalizavam-se face ao “explosivo sadismo feminino”43

que rebentava de suas páginas. A alusão a Elizabeth Brownrigg

– cuja estátua, nos dias que correm, compõe o acervo do

London Dungeon, museu britânico de eventos históricos macabros

– evidencia o desconcerto e o alarme que trouxe aos leitores

a fusão, proposta por Emily, entre desejo e desespero, amor e

morte.

Elaborada à época do lançamento da obra, uma resenha

anônima afirmava:

42 Tradução nossa para: “It is a fiend of a book, an incredible monster,combining all the strongler female tendencies from Mrs. Browning to Mrs.Brownrigg. The action is laid in Hell, - only it seems places and peoplehave English names there”. Citado em BLOOM, Harold (Org.). Emily Brontë’sWuthering Heights. New York: Infobase Publishing, 2007, p. 4. 43 BLOOM. Gênio..., cit., p. 333.

N’O morro dos ventos uivantes, o leitor é chocado,nauseado, quase molestado com detalhes decrueldade, inumanidade e o mais diabólicoódio e vingança; e, ainda, algumas passagensde poderoso testemunho do supremo poder doamor – mesmo sobre demônios em forma humana.As mulheres no livro são de uma estranhanatureza diabólico-angélica, tentadoras eterríveis, e os homens são indesejáveis forado próprio livro.44

Aduzimos, acima, à teoria de Anthony M. Ludovici,

conforme a qual Heathcliff seria o desenvolvimento, por

Emily, da imagem do amante ideal. No afã de elucidar os

elementos sadomasoquistas presentes na obra, Camille Paglia

sustentará hipótese diversa: Heathcliff, na verdade, seria

uma variação da própria Emily. Com efeito, a composição da

personagem partiria de uma dinâmica de criação literária que

Paglia denominou identificação transexual, na qual “um autor homem

se projeta em uma personagem mulher, e vice-versa”45. Nesse

sentido, a intelectual americana afirma:

A amoralidade e o poder pagão do romantismoconcentram-se no herói byroniano Heathcliff,produto de uma espantosa transformação

44 Tradução nossa para: “In Wuthering Heights, the reader is shocked,disgusted, almost sickened by details of cruelty, inhumanity and the mostdiabolical hate and vengeance, and even some passages of powerfultestimony of the supreme powe of love – even over demons in the humanform. The women in the book are of a strange fiendish-angelic nature,tantalising and terrible, and the men are undesirable out of the bookitself...” Citado em WILKS, Brian. The Bröntes. London, New York, Sydney,Toronto: Hamlyn, 1975, p. 118.45 PAGLIA, Camille. Personas sexuais: O prefácio cancelado. Sexo, arte e culturaamericana. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

sexual. Heathcliff é Emily Brontë, uma mulherque levou ao máximo os limites do gênerosexual e, não encontrando satisfação na arte,morreu.46

Assim, o delírio báquico que consome o livro seria

irradiado por um amor que transcende as definições sexuais.

Não são raras as referências históricas à masculinidade de

Emily. No depoimento publicado junto ao prefácio da segunda

edição d’O morro dos ventos uivantes, Charlotte apresenta a irmã

como uma pessoa “mais forte do que um homem, mais simples do

que uma criança”. E prossegue:

Sob uma cultura destituída de sofisticação,gostos naturais e uma aparência modesta,jaziam um fogo e um poder secretos, quepoderiam ter inflamado as veias e alimentado o cérebro deum herói; mas ela não tinha conhecimentosmundanos; os seus poderes não se adaptavamaos aspectos práticos da vida: ela nãosaberia defender os seus mais manifestosdireitos, lutar pelas suas mais legítimasconveniências. (grifo nosso)

Heathcliff, uma mulher transfigurada em herói. N’O morro

dos ventos uivantes, as identidades sexuais representariam uma

abstração à parte, em outra dimensão de espaço e tempo, que

devem ser destruídas para que a plena união de Catherine e

Heathcliff – irmãos-espírito – ocorra. Paglia divisa,

subjacente à obra, um erotismo lésbico, que seria herdeiro do

46 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 404.

hermafroditismo romântico de Byron47. Contrapondo-se à tese de

que Heathcliff teria sido inspirado em Brawell, a intelectual

americana disserta:

Heathcliff é uma das grandes personas sexuaishermafroditas do romantismo, uma representaçãoonírica de Emily Brontë como Byronnaturalizado. [...] Muitos comentáriosadiantaram a tese tradicional mas absurda deque Heathcliff é modelado em Branwell Brontë,único homem entre seis irmãos no presbitériode Haworth. [...] Em termos de personassexuais, Branwell era a antítese total doativo, veemente e imperioso Heathcliff.Fisicamente truncado, auto-indulgente,morrendo finalmente viciado em ópio, Branwellpertencia à categoria de virilidadesonhadora, vacilante, degenerada, tipificadapelo Coleridge real e pelo Usher de Poe.48

Tomada do homem, a mulher, osso de seus ossos e carne de

sua carne, deve ser nele reabsorvida, junto a ele desfazer-se

em pó. Como Bataille já defendeu, a reprodução sexuada é a

negação do isolamento do ser, posto que a morte – ou a petite

mort – deste como indivíduo representa uma condição para a

sua sobrevivência como espécie. O arrebatamento de divina

embriaguez e autodestruição do erotismo representa uma

ruptura com o mundo dos cálculos e das máscaras sociais.

Seria esse o ensinamento d’O morro dos ventos uivantes. Nessa

esteira, argumenta Paglia:

47 Cf. PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 419.48 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 417.

Heathcliff e Catherine buscam a aniquilaçãosadomasoquista de suas identidades distintas.O desejo deles de desfazer-se um no outroproduz um gigantesco corpo-espírito no texto,impedindo que os outros membros da famíliaatinjam a estatura normal.49

É de se destacar que, como fusão total de imagens de

alma, o relacionamento de Heathcliff e Catherine difere das

relações de Byron com suas amantes – mesmo, a incestuosa

relação com sua meia-irmã Augusta Leight. O herói-vilão

byroniano procura expressar sua individualidade, enquanto

Heathcliff pretende suprimi-la na comunhão com seu duplo

hermafrodita. Se Heathcliff é fruto do reconhecimento tardio

– contra Wordsworth – de que a natureza não é benevolente,

mas violenta, seu desejo sexual não se apresentará como

manifestação de fertilidade, mas de morbidez: daí a

substância doentia de seu filho Linton. A advertência de

Catherine a Isabella alerta-nos contra a identificação

absoluta entre Heathcliff e o herói-vilão: “Sim, não penses

que ele oculta rios de benevolência e afeição sob toda aquela

dureza exterior! Ele não é nenhum diamante bruto, nenhuma

ostra grosseira onde se esconde uma pérola; é um homem

terrível, feroz, desapiedado”. Heathcliff não lideraria

bandoleiros gregos numa revolta contra os turcos. Ele

próprio, condenando os sentimentos de Isabella, dirá,

posteriormente: “Fez de mim um herói romanesco, esperando49 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 411 e 412.

condescendência ilimitada da minha devoção e cavalheirismo.

Não consigo imaginá-la como uma criatura racional, já que tão

obstinadamente se agarrou a uma idéia fantasiosa do meu

caráter, agindo de acordo com as falsas imagens em que

acreditava”. A interpretação de Heathcliff como duplo

hermafrodita, centelha alienada de uma unidade divina

primitiva, será objeto de nosso próximo tópico.

Centelha alienada do Deus interior

Por conseguinte, desde que a nossa naturezase mutilou em duas, ansiava cada um por suaprópria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, noardor de se confundirem, morriam de fome e deinércia em geral, por nada quererem fazerlonge um do outro. E sempre que morria umadas metades e a outra ficava, a que ficavaprocurava outra e com ela se enlaçava, querse encontrasse com a metade do todo que eramulher — o que agora chamamos mulher — quercom a de um homem; e assim iam-se destruindo.[Platão, O banquete, 191b]50

É célebre o mito do andrógino narrado por Aristófanes

n’O banquete de Platão, segundo o qual, como punição aos seres

humanos – que, então, tinham duas cabeças e oito membros –,

Zeus cindiu-os em dois. O eros consistiria na infatigável

50 Valemo-nos da tradução de José Cavalcante de Souza, publicada em Diálogos/ Platão ; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ; tradução enotas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. SãoPaulo : Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)

busca pela metade amputada de si, movida pela saudade

enquanto dor no membro já perdido. A cosmovisão platônica

encontra eco na doutrina cabalista do Adão Cadmo, o Homem

Arquetípico que, andrógino, precede a Criação e a Queda,

marcadas pelo surgimento da finitude e da cisão. Também

apresenta alguns paralelos com o esquema universal proposto

por Emily n’O morro dos ventos uivantes. Moribunda, Catherine diz a

propósito de Heathcliff: “Não quero vê-lo turvado pelas

lágrimas, nem desejá-lo entre as paredes de um coração

dolorido, mas sim estar com ele, e nele, na verdadeira acepção das

palavras” (grifo nisso). Como indicamos acima, o amor entre

Catherine e Heathcliff é, na verdade, auto-amor refletido de

uma mesma alma, cindida em dois corpos: os amantes são duplos

hermafroditas em busca de reconciliação.

Subjacente à narrativa d’O morro dos ventos uivantes, é

possível discernir uma filosofia ou, ainda, uma gnose51

pessoal: Emily é, como reconhece Lord David Cecil52, uma

mística. Também Harold Bloom identificará, na obra , “um tipo

de fé poética, como a de Blake ou Emerson, que se assemelha a

alguns aspectos (mas não a outros) do antigo Gnosticismo, sem

de nenhuma maneira derivar efetivamente de textos

51 Para uma introdução ao gnosticismo, recomendamos efusivamente a leiturade BLOOM, Harold. Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Rio deJaneiro: Objetiva, 1996.52 CECIL, David. Early victorian novelists: essays in revaluation. London: Constable &Co LTD, 1934, p. 151.

Gnósticos”53. Desenvolvendo o ponto, o crítico literário

argumenta:

Emily Brontë, notadamente, como se abraçasseo gnosticismo da Antiguidade, dirige-se aoDeus interior, o pneuma, ou centelha queremonta a um período anterior às noções deCriação e Queda. [...] Emily é visionária,que invoca o próprio gênio como divindade,com grande firmeza e extrema eloqüência.54

Nessa interpretação, dentro da doutrina de Emily,

Catherine e Heathcliff são as centelhas alienadas do Deus

interior, o Adão Cadmo. Assim, participam de uma alma

anterior à Criação e à Queda, e que “está para além de toda

ideologia, toda formulação meramente social, para além

igualmente do sonho de justiça ou da vida melhor, porque está

para além deste cosmos, ‘esta despedaçada prisão’”55. O amor

entre Heathcliff e Catherine não seria amor, mas o impulso

dialético que mobiliza o (re)equilíbrio de um sistema

espiritual mais amplo. Nesse sentido, Bloom discorre:

Mas “amor” parece um termo inadequado para aconexão entre Catherine e Heathcliff. Não

53 “[...] an original gnosis, a kind of poetic faith, like Blake’s orEmerson’s, that resembles some aspects (but not others) of ancientGnosticism without in any way actually deriving from Gnostic texts”.BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 4.54 BLOOM. Gênio..., cit., p. 338.55 Tradução nossa para: “[...] is beyond every ideology, every merelysocial formulation, beyond even the dream of justice or of a better life,because it is beyond this cosmos, ‘this shattered prison’”. BLOOM. EmilyBrontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 6.

existem elementos de transferência nestarelação, nem podemos chamar a conexãoenvolvida de narcisista ou anaclítica. [...]Esses extraordinários vitalistas, Catherine eHeathcliff, não desejam aqui o que cada umnão possui e ainda não encontrou, e assim oaumento de si mesmos. Eles são um ao outro, oque não é nem são nem possível, e que nãocomporta, em absoluto, nenhuma doutrina deliberação. Somente o Gnosticismo, das maisextremas visões, pode acomodá-los, pois, comoadeptos gnósticos, Catherine e Heathcliff sópodem entrar no pleroma ou na completudejuntos, como presumivelmente eles fizeramdepois da morte auto-induzida de Heathcliffpor inanição.56

Similarmente, Lord David Cecil leciona:

Os heróis e heroínas de Emily Brontë não amamuns aos outros por quê eles encontram naspersonalidades dos outros prazer, ou por quêeles admiram o caráter dos outros. Elestalvez superficialmente sejam atraídos porsemelhantes razões, como Catherine Earnshaw éatraída por Edgar Linton. Mas seussentimentos profundos são despertados apenas

56 Tradução nossa para: “But ‘love’ seems an inadequate term for theconnection between Catherine and Heathcliff. There are no elements oftransference in that relation, nor can we call the attachment involvedeither narcissistic or anaclitc. If Freud is not applicable, then neitheris Plato. These extraordinary vitalists, Catherine and Heathcliff, do notdesire in that wich each does not possess, do not lean themselves againstone another, and do not even find and thus augment their own selves. Theyare one another, wich is neither sane nor possible, and wich does notsupport any doctrine of liberation whatsoever. Only of most extreme ofvisions, Gnosticism, could accomodate them, for, like the Gnostic adepts,Catherine and Heathcliff can only enter the pleroma or fullness together,as presumably they have done after Heathcliff’s self-induced death bystarvation”. BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 7.

por alguém pelo qual eles sintam um senso deafinidade, que procede do fato de que ambossão expressiões de um mesmo princípioespiritual.57

Pode-se afirmar, de qualquer modo, com e contra Cecil,

que a contraposição entre o eterno e o temporal, a unidade

incorruptível e a pluralidade dos ciclos de geração e

corrupção, é elemento que diferencia os sentimentos de

Catherine por Heathcliff e Linton. Catherine afirma amar

Linton pelo fato de ele amá-la e por ser bonito, jovem,

alegre e rico. Em contrapartida, diz amar Heathcliff por ser

ele um outro eu para além dela própria. E continua:

Os meus grandes desgostos neste mundo foramos desgostos de Heathcliff, e eu acompanhei esenti cada um deles desde o início; é ele queme mantém viva. Se tudo o mais perecesse e eleficasse, eu continuaria, mesmo assim, aexistir; e, se tudo o mais ficasse e elefosse aniquilado, o universo se tornaria paramim uma vastidão desconhecida, a que eu nãoteria a sensação de pertencer. O meu amorpelo Linton é como a folhagem dos bosques:irá se transformar com o tempo, sei disso,como as árvores se transformam com o inverno.Mas o meu amor por Heathcliff é como as

57 Tradução nossa para: “Emily Brontë’s heroes and heroines do not loveeach other because they find each other's personalities pleasant, orbecause they admire each other's characters. They may be superficiallyattracted for such reasons, as Catherine Earnshaw is attracted to EdgarLinton. But their deeper feelings are onlu roused for someone for whomthey feel a sense of affinity, that comes from the fact that they areboth expressions of the same spiritual principle”. CECIL. Early victoriannovelists..., cit., p. 156.

penedias que nos sustentam: podem não ser umdeleite para os olhos, mas sãoimprescindíveis.

Em The butterlfy58, ensaio redigido por Emily em agosto de

1842, pode-se discernir uma cosmologia implícita: toda a

criação é igualmente má, e a natureza encontra-se submetida

ao princípio da destruição. Todos os seres são instrumentos

da morte de outros, e a presença do homem na terra, maculada

pelo pecado, é similar à feia lagarta na flor. Porém, tal

como a borboleta justifica a lagarta, a realização futura do

homem, em um novo céu e em uma nova terra, justifica a vasta

máquina de produção do mal que constitui o universo.

Aproximando o ensaio de 1842 e o romance de 1847, Cecil

procura expor a estrutura fundamental da gnose pessoal de

Emily. Identifica dois axiomas básicos, que se veriam

refletidos na formatação d’O morro dos ventos uivantes:

O primeiro é que todo o cosmos criado,animado ou inanimado, mental e físicoigualmente, é a expressão de certosprincípios espirituais vivos – de um lado oque pode ser chamado o princípio datempestade [o Morro dos Ventos Uivantes;Heathcliff e os Earnshaw] – do áspero, doimpiedoso, do selvagem, do dinâmico; e, poroutro lado, o princípio da calmaria [a Granjados Tordos; os Linton] – do suave, domisericordioso, do passivo e do domesticado.

58 Texto disponível, na íntegra, emhttp://bethanya2literature.blogspot.com/2011/10/butterfly-emily-bronte.html.

Além disso, a despeito de sua aparenteoposição, esses princípios não estão emconflito. Ou – Emily Brontë não deixa claro oque acha – cada um é a expressão de umdiferente aspecto de um mesmo e únicoespírito permeador; ou eles são as partescomponentes de uma harmonia. O mondo de nossaexperiência é, face a isso, cheio dediscórdia. Mas isso se dá unicamente por quê,na limitada condição de sua encarnaçãoterrestre, esses princípios encontram-sedesviados do curso que sua naturezadeterminava seguir, e retirados de seusrespectivos caminhos eles são transformadosde forças positivas em negativas; a calmariatorna-se uma fonte de fraqueza, não deharmonia, no esquema natural; a tempestadeuma fonte não de vigor frutífero, mas deperturbação. Mas quando eles estão livres deseus cativeiros de carne, eles fluemdesimpedidos e sem conflito; e mesmo nestemundo suas discórdias são transitórias. Oprincípio singular, dirige-os em últimainstância, cedo ou tarde impõe umequilíbrio.59

59 Tradução nossa para: “The first is that the whole created cosmos,animate and inanimate, mental and physical alike, is the expression ofcertain living spiritual principles - on the one hand what may be calledthe principle of storm - of the harsh, the ruthless, the wild, thedynamic; and on the other the principle of calm - of the gentle, themerciful, the passive and the tame./ Secondly, in spite of their apparentopposition these principles are not conflicting. Either - Emily Brontëdoes not make clear wich she thinks - each is the expression of adifferent aspect of a single pervading spirit; or they are the componentparts of a harmony. The world of our experience is, on the face of it,full of discord. But that is only because in the cramped condition oftheir eartly incarnation these principles are diverted from following thecourse that their nature dictates, and get in each other's way they arechanged from positive into negative forces; the calm becomes a source ofweakness, not of harmony, in the natural scheme; the storm a source notof fruitful vigour, but of disturbance. But whem they are free fromfleshly bonds they flow unimpeded and unconflicting; and even in this

Nessa arquitetônica metafísica, o sobrenatural seria a

expressão das leis da natureza60. Sendo toda a realidade

decorrência de um princípio espiritual singular, não haveria

diferença efetiva entre o natural e o cultural. Tampouco

haveria antítese entre a vida e a morte, visto que o

falecimento do corpo não destrói, mas liberta o princípio

espiritual para que este se manifeste plenamente neste mundo.

Aplicando à narrativa d’O morro dos ventos uivantes os axiomas

apresentados, Cecil observará:

De um lado, nós temos o Morro dos VentosUivantes, a terra da tempestade; elevadosobre a árida charneca, nua devido ao choquedos elementos, a casa natural da famíliaEarnshaw, impetuosos, indômitos filhos datempestade. De outro lado, protegida nofrondoso vale abaixo, fica a Granja dosTordos, a apropriada casa dos filhos dacalmaria, os suaves, passivos, tímidosLintons. Juntos, cara grupo, seguindo suaprópria natureza em sua própria esfera,combinam para compor a harmonia cósmica. É adestruição e o restabelecimento destaharmonia o tema da estória. Ela começa com achegada, no Morro dos Ventos Uivantes, de umelemento estranho – Heathcliff. Ele, também,é um fihlo da tempestade; e a afinidade entreele e Catherine Earnshaw faz com que eles seapaixonem um pelo outro. Mas desde então eleé um elemento estranho, ele é a fonte da

world their discords are transitory. The single principle that ultimatelydirects them sooner or later imposes an equilibrium”. CECIL. Early victoriannovelists..., cit., p. 152.60 Cf. CECIL. Early victorian novelists..., cit., p. 159.

discórdia, inevitavelmente interrompendo otrabalho da ordem natural. Ele impele o pai,Earnshaw, entrar em conflito com o filho,Hindley, e como resultado Hindley entra emconflito com ele próprio, Heathcliff. A ordemé mais intensamente deslocada por Catherine,que é seduzida para unir-se a si mesma em um“não-natural” casamento com Linton, o filhoda calmaria. O choque desta infidelidade e osmaus-tratos de Hindley, a seu turno, perturbaa natural harmonia da natureza de Heathcliff,e transforma-o, de um elemento alienígena naordem estabelecida, em uma força ativa para asua destruição. Ele não é, portanto, comousualmente se supõe, um homem perverso quevoluntariamente sucumbe a seus perversosimpulsos. Como todos os personagens de EmilyBrontë, ele é a manifestação de forçasnaturais atuando involuntariamente sob apressão de sua própria natureza. Mas ele éuma força natural que foi frustrada em seuescape natural, e que é então se tornainevitavelmente destrutiva, como uma cheiatorrencial desviada de seu leito, que fluisobre a região circundante, deixandodevastado tudo o que jaz em seu caminho. Nadapode detê-la, até que sejam removidos osobstáculos que impedem-na em seu leitonatural.61

61 Tradução nossa para: “On the one hand, we have Wuthering Heights, theland of storm; high on the barren moorland, naked to the shock of theelements, the natural home of the Earnshaw family, fiery, untamedchildren of the storm. On the other, sheltered in the leafy valleybellow, stands Thrushcross Grange, the appropriate home of the childrenof calm, the gentle, passive, timid Lintons. Together each group,following its own nature in its own sphere, combines to compose a cosmicharmony. It is the destruction and re-establishment of this harmony wichis the theme of the story. It opens wich the arrival at Wuthering Heightsof an extraneous element - Heathcliff. He, too, is a child of the storm;and the affinity between him and Catherine Earnshaw makes them fall inlove with each other. But since he is an extraneous element, he is a

Em síntese: é Heathcliff a força do negativo, que, tal qual

Shiva, conduz ao movimento uma realidade a princípio

estática. Comprometendo o solipsismo monádico do Morro dos

Ventos Uivantes e da Granja dos Tordos, a(s) unidade(s)

inicial(is), indiferenciada(s), Heathcliff guia o princípio

espiritual, através da cisão e da particularidade, a uma nova

unidade, pluralista (simbolizada pela associação, final,

entre Hareton e Cathy). Unidade indiferenciada (universal

abstrato); particularidade; unidade diferenciada (universal

concreto/singularidade). Não é inconseqüente a utilização,

aqui, da terminologia hegeliana. Com efeito, tanto o filósofo

alemão quanto a poeta britânica desenvolvem gnoses pessoais

centradas na revelação do espírito a si, no tempo. Ambos, em

seus respectivos âmbitos de atuação, desenvolveram esquemas

universais centrados no jogo entre o estático e o dinâmico, o

source of discord, inevitably disrupting the working of the naturalorder. He drives the father, Earnshaw, into conflict with the son,Hindley, and as a result Hindley into conflict with himself, Heathcliff.The order is still further dislocated by Catherine, who is secuced intouniting herself in an 'unnatural' marriage with Linton, the child ofcalm. The shock of her infidelity and Hindley's ill-treatment of him now,in its turn, disturbs the natural harmony of Heathcliff's nature, andturns him from an alien element in the established order, into a forceactive for its destruction. He is not therefore, as usually supposed, awicked man voluntarily yielding to his wicked impulses. Like all EmilyBrontë's characters, he is a manifestation of natural forces actinginvoluntarily under the pressure of his own nature. But he is a naturalforce wich has been frustrated of its natural outlet, so that itinevitably becomes destructive; like a mountain torrent diverted from itschannel, wich flows out on the surrounding country, layng waste whatevermay happen to lie in its way. Nor can it stop doing so, until theobstacles wich kept it from its natural channel are removed”. CECIL. Earlyvictorian novelists..., cit., p. 165.

eterno e o temporal. Um e outro mostram que o homem, anjo

caído (ou Adão expulso do paraíso), apesar de – ou mesmo,

devido à – sua rebelião contra o Bem e a ordem dos valores, é

o veículo indispensável para que a harmonia se instaure no

cosmos, completado o círculo da criação.

Conclusão

“Estou quase entrando no meu céu; o céu dos outros, não

cobiço nem tem para mim qualquer valor!”. Estas são palavras

de Heathcliff, quando, assombrado pelo espectro de uma

esperança, já se prenuncia sua morte. Herói, anti-herói ou

centelha alienada do Deus interior, Heathcliff é, de qualquer

forma, o símbolo do gênio de sua criadora. Também ela, em seu

silêncio, repudiava para si o céu dos outros, e criou o seu

próprio. O morro dos ventos uivantes é o mapa que registra a

topografia deste céu, que, verdade seja dita, suprassume o

céu e o inferno em uma nova unidade. Catherine sonha que,

encontrando-se no céu – dos outros –, sentiu-se infeliz e foi

expulsa pelos anjos. Sua Queda lançou-a ao urzal do Morro dos

Ventos Uivantes, onde encontrou alegria. As urzes não são

lírios do campo – mas tampouco são lírios místicos. A gnose

pessoal de Emily Brontë a distancia irreversivelmente da

cosmovisão da ortodoxia cristã – bem como da cosmovisão do

Alto Romantismo e de qualquer outro movimento cultural

precedente. Semelhante originalidade reflete-se em

Heathcliff, que, numa infinidade de faces – propostas de

interpretação às mais diversas, das quais tentamos, aqui,

fornecer três exemplos significativos –, permanece um

mistério. O culto à força masculina das charnecas subjaze às

três variações de Heathcliff apresentadas aqui. Da mesma

forma, no núcleo da luta de Heathcliff contra a práxis

cotidiana, parece subsistir a fé poética na redenção da

mundo, já manifestada em The butterlfy. Chegado o momento, até a

morte há de morrer, e será instaurado o império da felicidade

e da glória. É esta a lição que, no crepúsculo do Alto

Romantismo, a Emily visionária parece extrair da observação

das charnecas de Haworth.