As três faces de Adão: variações sobre Heathcliff
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As três faces de Adão: variações sobre Heathcliff
Heath n (uncultivated field) terreno não cultivado urzal, urzeco
sm
brejo, charco sm
Cliff n (geography) penhasco sm
falésia sf
Heathcliff1 é vegetação rasteira, de raízes grossas, que
cresce, espontânea e ramosa, nos rochedos e nas ribanceiras.
Germina em solos ácidos e pobres, e inibe o desenvolvimento
de outras plantas. Erica vulgaris, charneca. No prefácio à
segunda edição d’O morro dos ventos uivantes2, datado de 1850 (dois
anos após a morte de Emily Brontë, vitimada pela
tuberculose), Charlotte Brontë descreve a irmã como uma “moça
confinada à sua casa e à sua charneca”. Charneca literal, a
paisagem em torno de Haworth, vila de Yorkshire onde viveram
os Brontës; e charneca figurada, Heathcliff, o herói
byroniano d’O morro dos ventos uivantes.
‘Heathcliff’ serve-lhe como nome e sobrenome, posto que,
charneca erma e selvagem, é filho de pais desconhecidos.
Filho do diabo, ou dádiva do Senhor? Talvez pai de si mesmo,1 Como referência, nos valeremos, neste trabalho, da tradução de WutheringHeights feita por Ana Maria Chaves, publicada pela editora Lua de Papel, emSão Paulo, no ano de 2009.2 Dito prefácio em encontra-se publicado no vernáculo em BRONTË, Emily. Omorro dos ventos uivantes. Tradução de Vera Pedroso. São Paulo: Círculo doLivro S.A., 1985.
germinal. D’O morro dos ventos uivantes, Charlotte disse, no
prefácio citado: “é todo ele rústico, selvagem e espinhoso
como uma raiz de urze”. Heathcliff, o Morro dos Ventos
Uivantes (a propriedade) e O morro dos ventos uivantes (a obra) são
o mesmo urzal.
Em seleção póstuma dos poemas de Emily, Charlotte
recorda: “Minha irmã amava as charnecas. Para ela, flores
mais brilhantes que a rosa desabrochavam no negrume da urze;
fora de um sombrio buraco em uma lívida encosta, sua mente
podia fazer um Éden”3. Como conta Brian Wilks4, o reverendo
Patrick Brontë foi instruído e educado por intermédio da
poesia de Wordsworth, e acreditava ser a natureza a divina
educadora dos espíritos. Embora Emily partilhasse da
veneração do pai pelos mistérios do calmo mar de urze, não
abraçava o credo de Wordsworth. Em suas deambulações pelas
charnecas de Haworth, Emily encontrou a personificação da
natureza: esta não era a fertilidade e a renovação femininas
da Deusa-Mãe, que ensina à alma a serenidade e a alegria;
antes, era a violenta força masculina de Heathcliff5.
Harold Bloom escreveu, certa feita, que, “nos grandes
romances, personagens não se resumem a caracteres impressos
3 Tradução nossa para: “My sister loved the moors. Flowers brighter thanthe rose bloomed in the blackest of the heath for her ; out of a sullenhollow in a livid hill-side her mind could make an Eden”. BIBBY, Andrew.South Pennines and the Bronte Moors: Including Ilkley Moor. London: Frances LincolnLtd., 2005, p. 64.4 WILKS, Brian. The Bröntes. London, New York, Sydney, Toronto: Hamlyn,1975, p. 69.5 Cf. PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a EmilyDickinson. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 410.
sobre páginas; antes, são retratos pós-shakespearianos da
realidade de homens e mulheres: verdadeiros, prováveis,
viáveis”6. Ergo, é-nos facultado questionar: que significado
terá Heathcliff para Emily? Djin da família das ericáceas,
Heathcliff é indomável, personagem (character) que se furta à
caracterização. Na lição de Bloom:
Heathcliff nega toda e qualquer tradição,inclusive as afiliações byroniana eshakesperiana. Até certo ponto, talvez jamaispossível de ser determinado, Heathcliffencerra a crítica de Emily Brontë à tradiçãodo Alto Romantismo, no que respeita àrepresentação e exaltação do desejomasculino. Mas ninguém conseguiu até opresente desenvolver essa percepção; há quasetantos Heathcliffs quanto Hamlets.7
Alianças rompidas. Isolamento. Loucura. Amor perdido. De
fato, O morro dos ventos uivantes é marcado por uma “atmosfera de
claustrofobia sexual”8. Ao revisar suas origens românticas,
Emily parece interessada em criar novos paradigmas de
representação das relações naturais. Mas como o desejo masculino
penetra no universo de Emily? Ou ainda: como se define a
identidade sexual de Heathcliff? Se a intuição de Bloom está
correta, a “questão de gênero” ocupa o ponto de fuga do
painel pintado por Emily n’O morro dos ventos uivantes. E Deus...6 BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio deJaneiro: Objetiva, 2001, p. 138 e 139.7 BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio deJaneiro: Objetiva, 2003, p. 335.8 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 411.
criou o homem, esse Proteu semântico! Como Emily, a criadora,
se posiciona diante de Heathcliff? E como Heathcliff, o
homem, se posiciona diante de Catherine?
Sem a pretensão de esgotar o problema, descreveremos e
compararemos três tentativas clássicas de interpretação da
imagem de Heathcliff: como herói; como herói-vilão; e como
centelha alienada do Deus interior. Nas variegadas
desleituras a que O morro dos ventos uivantes foi submetido no
curso das gerações, as três propostas exegéticas do caráter
de Heathcliff foram freqüentemente reaproveitadas,
alternativa ou concomitantemente. São três faces de Adão,
três estratégias literárias de representação do desejo
masculino – e, também, de representação do masculino como
obscuro objeto de desejo.
Herói
Acreditava Emily – como Florbela Espanca – que das urzes
queimadas nascem rosas? Que a charneca rude abre-se em flor?
Heathcliff corresponde ao herói convencional da narrativa
vitoriana ortodoxa? É esse o entendimento esposado pelo
filósofo antifeminista Anthony M. Ludovici9. Na argumentação
de Ludovici, o “satânico” e o “mórbido” atribuídos às figuras
de Heathcliff e Catherine não seriam mais que distorções
advindas da narração de Nelly Dean, “uma empregada ignorante,
9 LUDOVICI, Anthony M. On Wuthering Heights. The Occidental Quarterly, Vol. 7,no. 3, Fall 2007.
incapaz de entender as pessoas cujas ações ela está
recontando”10. Para o autor, os protagonistas d’O morro dos
ventos uivantes não são mais que um homem e uma mulher
enamorados que lutam contra a força do destino.
Emily, segundo Ludovici, criou em Heathcliff a imagem do
amante ideal, por jamais se ter deparado com um homem que
inspirasse seu amor11. O personagem seria fruto do desabrochar
sexual de Emily na solidão das charnecas de Haworth. Os
instintos sexuais e a fértil imaginação da autora teriam
conjurado um incubo dos campos. Em depoimento12 publicado
junto ao prefácio da segunda edição d’O morro dos ventos uivantes,
Charlotte afirma: “Minha irmã Emily não era pessoa
comunicativa, nem permitiria que ninguém – nem mesmo a
família – penetrasse, sem pedir licença, nos recessos da sua
mente ou dos seus sentimentos”. Para Ludovici, é Heathcliff o
vento que acaricia a ostra – o amigo secreto, o namorado
erradio composto pelo coração insular de Emily.
É esse o Heathcliff de Kate Bush e Stephenie Meyer. É
também o Heathcliff da bela adaptação cinematográfica de
1939, dirigida por William Wyler e estrelada por Laurence
10 Tradução nossa para: “an ignorant serving-woman, incapable ofunderstanding the people whose actions she is recording”. LUDOVICI. OnWuthering Heights, p. 29.11 LUDOVICI. On Wuthering Heights, p. 28.12 Referido depoimento (que tinha por objetivo “remover a poeira” daslápides de Emily e Anne Brontë, esclarecendo elementos acerca de suasidentidades) também encontra-se publicado em BRONTË, Emily. O morro dosventos uivantes. Tradução de Vera Pedroso. São Paulo: Círculo do Livro S.A.,1985.
Olivier e Merle Oberon. A propósito, cabe tecer algumas
considerações.
Analisando o ciclo de produções do drama romântico que
se iniciou a partir da segunda metade dos anos 30, o
professor Heitor Capuzzo identifica na tensão entre o mundo
dos amantes e o mundo da sociedade o leitmotiv do gênero. Nesse
sentido, os “paralelismos em contraponto” marcariam a
oposição entre, por um lado, a dimensão espaço-temporal do
idílio amoroso e, por outro lado, a dimensão espaço-temporal
da práxis cotidiana:
As reiterações temporais apontam para otratamento de urgência do amor recém-descoberto; o imediatismo na formação docasal; a abrupta reação externa ao parcentral; a súbita despedida de um dosamantes.As reiterações espaciais propõe níveisdiferenciados para os amantes e os demaispersonagens, através de primeiros planos coma utilização do fundo em contraponto; o claroe o escuro; o interior e o exterior; quasesempre sugerindo uma subjetividade e umaobjetividade.13
No jogo de ‘heróis’ e ‘vilões’ que articula o drama
romântico, é imprescindível que se demarque a fronteira entre
a subjetividade do universo particular dos amantes e a
13 CAPUZZO, Heitor. Lágrimas de luz: o drama romântico no cinema. Belo Horizonte: Editora UFMG, Laboratório Multimídia da Escola de Belas Artes, 1999, p. 73.
objetividade do pragmatismo cotidiano14. São dois os níveis de
tempo e espaço: o do amor e o do conflito. Na lição de
Capuzzo:
Como os amantes estão sempre acuados, o mundopragmático torna-se um feroz empecilho para aconsumação da felicidade do casal. A paisagemao redor torna-se agressiva e a fragilidadedos amantes permite que seu destino sofra ainterferência dos coadjuvantes que se tornam,por isso mesmo, poderosos. Como os amantesconquistam a empatia do espectador, há umcontraponto entre a lógica da experiênciaconcreta do público com sua aspiração lúdica,próxima do idealismo.15
A adaptação cinematográfica d’O morro dos ventos uivantes
ajudou a referendar o carisma do drama romântico junto ao
grande público. William Wyler trabalhou por dois anos para
persuadir o produtor Samuel Goldwyn a deixá-lo dirigir o
filme, baseado no roteiro de Charles MacArthur e Bem Hecht, e
originalmente escrito por Sylvia Sidney e Charles Boyer16.
Conforme John Harrington, “a força da versão de Wyler está no
tratamento das ferramentas do cinema [inclusas as estratégias
narrativas do drama romântico], mais que na tradução verbal,
para a tela, da publicação”17.
14 Cf. CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 74.15 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 76.16 V. HARRINGTON, John. Wyler as auteur. Em KLEIN, Michael; PARKER, Gillian(Org.). The English novel and the movies. New York: Frederick Ungar PublishingCo., 1981, p. 67.17 Tradução nossa para: “The strength of the Wyler version is in thehandling of the tools of cinema rather than in the verbal translation
O filme é centrado no dilema de Catherine entre o
selvagem e natural amor por Heathcliff e a civilizada e
ordenada vida da sociedade adequada18. Como indica Capuzzo:
“Trata-se da tragetória de uma maldição. Heathcliff é um
‘presente de Deus’ e, ao ser menosprezado por Cathy, torna-se
um ‘enviado do mal’. Cathy comete a falha trágica de ‘não
ouvir os deuses’, procurando a falsa segurança do mundo
terreno”19. Vaidosa, mesquinha e materialista, a personagem
não consegue se desligar do universo terreno, e conspurca
Penistone Crag, a dimensão espaço-temporal do idílio amoroso,
rocha que, na infância, ela e Heathcliff transformaram em um
castelo. Ansiando por uma vida elegante e confortável, Cathy
pede a Heathcliff que fuja do Morro dos Ventos Uivantes e lhe
traga o mundo. Casa-se com Linton e, após o regresso de
Heathcliff, morre por não suportar o conflito moral entre o
amor de infância e a fidelidade ao marido. Ensina Capuzzo:
O singular da encenação de Wyler é o destaquepara o fato de a experiência amorosa servital e inevitável. Se for truncada, acarretanum suplício infernal. O amor é um casamentode almas. Por isso mesmo, os amantes no dramaromântico tornam-se superiores pelo quesentem, distanciando-se dos demais mortais.Daí a necessidade de um outro espaço, regidopor um outro tempo. Pelo fato de Heathcliff eCathy negligenciarem o “presente dos deuses”,foram cruelmente castigados. Somente os
from print to screen”. HARRINGTON. Wyler as auteur..., cit., p. 67.18 Cf. HARRINGTON. Wyler as auteur..., cit., p. 78.19 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 94.
deuses podem interferir no destino dosamantes, sendo que, neste caso específico,eles nada fizeram para que a união do casalnão se consumasse. Como não foi possível aexperiência amorosa, o par central tornou-seassombrado, assim como o “castelo”desaparecido na paisagem, dando lugar a um“pântano estéril”.20
No curso do película, Isabella dirá a Heathcliff: “Você
não é obscuro e horrível como todos pensam; você está cheio
de dor”. Com efeito, o protagonista é retratado como uma
vítima do caráter inescrupuloso, indisciplinado e anárquico
do sexo feminino. Devido ao pecado original de Catherine, é
Heathcliff expulso do paraíso e condenado a vagar entre
espinhos e abrolhos.
Estabelecendo uma comparação entre as estruturas
conceituais do livro e do filme, George Bluestone21 propõe que
a interpretação de Heathcliff como herói convencional
configuraria uma “gondalização” d’O morro dos ventos uivantes.
Durante a juventude, sob a liderança de Branwell, os irmãos
Brontë inauguraram um jogo de invenção e composição literária
conjunta, a Scribblemania. Compuseram, então, um mundo de
fantasia partilhado. Nesse tumulto febril de criação, tiveram
origem os Reinos de Glasstown, Angria e Gondal. Sobre a
fundação de Gondal, da pena de Emily e Anne, Wilks comenta:
20 CAPUZZO. Lágrimas de luz..., cit., p. 96.21 BLUESTONE, George. Novels into film. Baltimore: Johns Hopkins UniversityPress, 2003.
No início, junto com Anne, ela [Emily] apenasaderiu aos mais sofisticados jogos queBranwell e Charlotte organizaram, aceitandoas regras distribuídas, e deixando sualiderança para os mais velhos. Mas com apartida de Charlotte para Roe Head [umaescola para jovens moças], em 1831, Emily eAnne instauraram um novo ímpeto para suasnarrativas da estória, fundando seu próprioReino de Gondal para explorar enquantoBranwell e Charlotte continuavam adesenvolver Angria. Com Branwell preocupadocom a escrita de História dos Jovens Homens e suasexplorações de Haworth, as duas meninasrapidamente estabeleceram seu novo jogo nocurso de linhas mais fantasiosas do que odomínio de Charlotte e Branwell permitiria.Enquanto Glasstown e Angria eram os palcospara intrigas políticas e campanhasmilitares, Gondal, nascida das leituras deByron, era em todos os aspectos mais poética,seu cenário, mais obviamente romântico e suaspessoas, os típicos foras-da-lei, bandidos,exilados e prisioneiros das narrativas deByron.22
22 Tradução nossa para: “At first, together with Anne, she merely added tothe more shophisticated games that Branwell and Charlotte organised,accepting roles allotted, and taking her lead from her elders. But withCharlottes departure for Roe Head in1831, Emily and Anne found a newimpetus to their story telling, founding their own Kingdom of Gondal toexplore while Branwell and Charlotte continued to develop Angria. WithBranwell preoccupied with writing the History of Young Men and hisexplorations of Haworth, the two girls quicky established their new gamealong more fanciful lines than Charlotte and Branwell’s dominance hadparmitted. Where Glasstown and Angria were the settings for politicalintrigue and military campaigns, Gondal, born of readings in Byron, wasin every respect more poetic, its scenary, more obviously romantic andits people the typical outlaws, bandits, exiles and prisioners of Byron’snarratives”. WILKS. The Bröntes..., cit., p. 68.
Para afirmar-se como escritora original, Emily precisou
libertar-se de Gondal e da rede juvenil de criação coletiva
tecida por Branwell, o gênio manqué que se tornara
melancólico, alcoólatra e incapaz de organizar sua própria
vida23. Em seu depoimento, Charlotte rememora:
Há cerca de cinco anos, após um prolongadoperíodo de separação, eu e minhas duas irmãsvoltamos a reunir-nos em casa. Residindo numremoto distrito, onde a instrução poucoprogresso fizera e onde, em conseqüência, nãohavia satisfação em procurar relações sociaisfora do círculo doméstico, dependíamosinteiramente de nós mesmas e umas das outras,da leitura e do estudo para preenchermos asnecessidades de diversão e de ocupação dasnossas vidas. O mais alto estímulo e o maiorprazer que conhecêramos desde a infânciabaseara-se em tentativas de composiçãoliterária. A princípio costumávamos mostrar oque escrevíamos; ultimamente, porém, essehábito de comunicação e consulta fora postode lado, daí resultando ignorarmos mutuamenteos progressos que cada qual tinha feito.
N’O morro dos ventos uivantes, a autora emula Byron,
explorando zonas impensadas da identificação entre amor e
morte já presente no Alto Romantismo – e na Scribblemania. Como
indica o filósofo Georges Bataille24, n’O morro dos ventos uivantes
23 V. WILKS. The Bröntes..., cit., p. 65.24 A propósito, recomendamos a leitura do ensaio ‘Emily Brontë’, constanteda versão castelhana, clandestina, da obra La literatura y el mal, do filósofoGeorges Bataille, disponibilizada na internet desde o ano 2000 noendereço eletrônico www.elaleph.com. As referências à obra feitas aseguir foram retiradas da versão citada.
Emily torna explícita a intuição, subjacente ao labor dos
românticos, de que “o erotismo é a ratificação da vida até na
morte”; ou, ainda, de que o amor é a verdade da morte, e a
morte, a verdade do amor. Segundo Harold Bloom:
As paixões de Gondal quase não são moderadasn’O morro dos ventos uivantes, nem poderiam ser; areligião de Emily Brontë é essencialmenteerótica, e sua visão de sexualidadetriunfante é tão misturada com a morte quenós não podemos imaginar nenhuma consumaçãopara o amor de Heathcliff e CatherineEarnshaw exceto com a morte.25
Daí que a obra apresente uma “eloqüência sádica”26
incompatível com a narrativa vitoriana tradicional: o corpo é
o toldante véu material que deve ser despedaçado para que a
paixão se realize. Na observação de Bluestone, “o amor
apaixonado é impossível por quê o corpo, o agente deste mundo,
simplesmente não pode sustentá-lo. A morte é a redentora, não
a stasis”27. Aqui, Emily atingiria revelações ainda mais
sombrias que as da “escuridão visível” de Byron. Ora,
transformar Heathcliff em um herói convencional, conforme
Bluestone, implica em negar a “dimensão horripilante da
25 Tradução nossa para: “The passions of Gondal are scarcely moderated inWuthering Heights, nor could they be; Emily Brontë’s religion is essentiallyerotic, and her vision of triumphant sexuality is so mingled with deaththat we can imagine no consummation for the love of Heathcliff andCatherine Earnshaw except death.” BLOOM, Harold (Org.). Emily Brontë’sWuthering Heights. New York: Infobase Publishing, 2007, p. 5 e 6.26 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 414.27 BLUESTONE. Novels into film..., cit., p. 102 e 103.
identificação total”28, sobre a qual se firmariam os alicerces
do Morro dos Ventos Uivantes: eis-nos de volta ao Reino de
Gondal. Após demonstrar que a versão cinematográfica de
Wylder não sustenta o tema da identidade espiritual entre os
amantes – identidade esta, reitere-se, que não pode ser
plenamente realizada até que a alma esteja livre da armadilha
do corpo –, Bluestone argumenta:
Qual é o resultado da concessão dessesatributos gêmeos, romantismo e desejo deengrandecimento, sobre Cathy, na versãocinematográfica?O efeito é forçar a estória de Emily Brontëdentro de um molde convencional de Hollywood,a estória do estável rapaz e da dama. Aconvenção deve ser razoavelmente familiar.Uma dama criada em vizinhanças respeitáveisencontra-se a si mesma dividida entre um desua “própria espécie” e um estranho atraente.O primeiro é impotente, rico, desinteressantee gentil; o segundo é revoltantementemasculino, pobre, apaixonado, e rude. Porrazões românticas e sexuais, a damaclaramente prefere o forasteiro. Se a damanão está disposta a escapar com o estranho(como em Aconteceu naquela noite, de Capra), elacomeça a torná-lo respeitável, aprimorar suatabela de maneiras tal como sua renda (comoem Janela Indiscreta, de Hitchcock). Em WutheringHeights, a estória faz uma trágica reviravoltadevido à má sorte.29
28 BLOOM. Gênio..., cit., p. 334.29 Tradução nossa para: “What is the result of bestowing these twinattributes, romanticism and desire for aggrandizement, on Cathy, in themovie version? The effect is to force Emily Brontë’s story into aconventional Hollywoos mold, the story of the stable boy and lady. The
Não representando o herói convencional, o estável rapaz
de um drama romântico, mas o epicentro de um “catálogo de
horrores ctônicos”30, Heathcliff surgiu a alguns como o avatar
de um anjo caído. O abismo do Mal e a violência sagrada a ele
associados o converteriam em um anti-herói. Noutras palavras:
Heathcliff seria Byron redivivo, o belo e maldito poeta cujo
trabalho foi dominado pela interlocução entre imagens de luz
e trevas31. Esta interpretação será analisada em nosso próximo
tópico.
Herói-vilão
Emily Brontë tinha seis anos em 1824, quando George
Gordon, o Lord Byron, morreu tentando liderar bandoleiros
gregos numa revolta contra os turcos. Como muitos homens e
mulheres do período, as irmãs Brontë apaixonaram-se pela
poesia, pelo mito e pela personalidade de Byron. “O mais
convention ought to be reasonably familiar. A lady bred in respectablesurroundings find herself torn between one of her “own kind” and anattractive stranger. The first is effete, wealthy, uninteresting, andkind; the second is rebelliously masculine, poor, passionate, and rough.For romantic and sexual reasons, the lady cleary prefers the outsider. Ifthe lady is not willing to run away with the stranger (as in Capra’s ItHappened One Night), she sets out to make him respectable, to improve histable manners as well as his income (as Hitchcock’s Rear Window). InWuthering Heights, the story takes a tragic turn due to a run bad luck”.BLUESTONE. Novels into film..., cit., p. 100.30 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 414.31 Acerca da natureza paradoxal da persona assumida por Byron, recomendamosa leitura de PESTA, Duke. “Darkness visible”: Byron and the romanticanti-hero. Em BLOOM, Harold (Org.). Lord Byron. Broomall: Chelsea HousePublishers, 2004.
sedutor de todos os anjos caídos”32, Byron transitava entre o
céu e o inferno, e – como destaca Harold Bloom – sua
“sexualidade passivo-agressiva – a um só tempo
sadomasoquista, homoerótica, incestuosa, e ambivalentemente
narcisista – claramente estabelece o padrão para o
ambiguamente erótico universo de Jane Eyre e O morro dos ventos
uivantes”33.
Como componentes do herói byroniano, Pesta elenca o
perigo, a potência sexual e o desrespeito pelas convenções da
sociedade “decente”, bem como a afirmação da liberdade
individual e da radical auto-expressão34. Pondera Charlotte,
no prefácio à segunda edição d’O morro dos ventos uivantes:
Heathcliff revela um único sentimento humano,que não é o seu amor por Catherine; o qual éum sentimento selvagem e desumano, uma paixãoque poderia fervilhar e brilhar na máessência de um gênio do mal, um fogo quepoderia formar o centro tormentoso — a almaeternamente sofredora de um magnata do mundoinfernal; e, pela sua insaciável einterminável devastação, acarreta a execuçãoda sentença que o condena a levar consigo oinferno, aonde quer que ele vá.
32 BLOOM, Harold. Anjos caídos. Tradução de Antonio Nogueira Machado. Rio deJaneiro: Objetiva, 2008, p. 24.33 Tradução nossa para: “Byron’s passive-agressive sexuality – at oncesadomasochistic, homoerotic, incestuous, and ambivalently narcissistic –clearly sets the pattern for the ambiguously erotic universes of Jane Eyreand Wuthering Heights”. BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 2.34 Cf, PESTA. “Darkness visible”..., cit., p. 64.
A descrição de Charlotte poderia se aplicar não só a
Heathcliff mas, também, a Byron e ao Lúcifer de John Milton,
ambos magnatas do inferno tomados por seus desejos. C. S.
Lewis defendia que os demônios eram os anjos que não
conseguiram amadurecer35. Ora, se a maturidade implica na
assimilação das leis da sociedade e da cortesia convencional,
a incondicionada exaltação, em Heathcliff, Byron e Lúcifer,
da soberania dos impulsos primários da infância, faz deles os
modelos do anjo caído.
Com efeito, na narração de Nelly Dean, após a morte do
sr. Earnshaw, Heathcliff e Catherine “tinham prometido
crescer como selvagens e, como o jovem patrão [Hindley]
descurava totalmente da sua educação, viviam livres de sua
tutela”. Eis o reino da infância bravia e arisca, totalmente
dissociado da práxis cotidiana e da razão baseada em um
cálculo de interesse. Nesse universo, como destaca Camille
Paglia, “Catherine e Heathcliff são sacerdotes automutilantes
de um culto pagão da natureza violenta e não natural”36.
Heathcliff imagina o Paraíso como um mundo destituído de
adultos.
Catherine, contudo, vê-se obrigada a amadurecer, logo
após entrar em contato com os Linton. Presa entre a realidade
social da Granja dos Tordos e o byronismo demoníaco do Morro
dos Ventos Uivantes, a jovem tenta uma solução de
compromisso, uma frágil conciliação entre o vale fértil e
35 V. BLOOM. Anjos caídos..., cit., p. 38.36 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 421.
belo e a região montanhosa, hostil e poluída. Acerca do
caráter alegórico da topografia do livro de Emily, cindida
entre a Granja e o Morro, Paglia ensina:
Wuthering heights segue a geografia psicossexualde Antônio e Cleópatra, de Shakespeare. A GranjaThrushcross, a propriedade de Linton, é comoa Roma de César, um mundo respeitável depersonas sexuais estáticas. O morro dosventos uivantes dos Earnshaw, como o Egito deCleópatra, é um reino de energia brutanatural e descontroladas metamorfoses. Asmontanhas românticas são sublimes, exaltadas,extremas. A granja é a natureza administrada,contida, agrária, habilmente simbolizada pelovôo de um tordo, belo passado não predatório.Em Shakespeare, o herói tem de escolher entredois mundos opostos, mas em Emily Brontë é aheroína. Voltando de sua estada na GranjaThrushcross, Catherine é a Cleópatra boêmiatransformada em serena Otávia. “Em vez de umaselvagenzinha doida, sem chapéu, saltandopara dentro de casa e pulando para abraçar-nos inteiramente sem fôlego, desmontava de umbelo pônei negro uma pessoa muito digna, comos cachos castanhos caindo de debaixo de umchapéu de castor, e um comprido manto de panoque era obrigada a segurar com ambas as mãospara poder andar”. Essa nova persona decorosaé adquirida à custa de muita perda devitalidade. O símbolo da granja é o queHeathcliff chama de “os vazios olhos azuisdos Linton”. Os Linton são deuses do céulouros, que representam, como o César deShakespeare, um apolinismo impossível, árido.Os olhos deles são vazios porque cegos para oreino escuro, turvo, da dionisíaca força da
natureza de Heathcliff. A granja está aoabrigo das tempestades que açoitam e aplastama vegetação do morro. Essa paisagem hostil de“ventos frios e cortantes do céu do Norte” éo toque de mestre do romance. Aí está o maisimportante afastamento da aurora do altoromantismo, em que a natureza, mesmo quandomais tumultuosa, é em geral uma inexaurívelfonte de fertilidade. Para ela, a natureza ébasicamente força, não alimento. Ela cria, emoutras palavras, uma natureza sem uma mãe.37
Pontuamos, anteriormente, a diferença entre a natureza
como Deusa-Mãe, em Wordsworth, e como força masculina, em
Emily. Ora, os ideais românticos acerca de uma natureza
benevolente entraram em decadência no curso do século XIX: a
vida selvagem transformou-se de Parvati em Kali. As
representações da sexualidade, manifestação do natural no
cultural, acompanharam referido processo. Não se podia,
doravante, ignorar o componente perverso ínsito nos
relacionamentos amorosos. As urzes não são lírios do campo:
daí que o livro de Emily, centrado em um personagem
seminalmente viciado, apresente-se como “um redemoinho
sadomasoquista de barulho e movimento primitivos, o rasgar e
despedaçar do sparagmós dionisíaco, que só se torna tolerável
ou mesmo inteligível pelo brilhante artifício de
distanciamento dos quadros narrativos em série”38. A inovação
formal, habilmente manuseada por Emily, de articular quadros
dentro de quadros – narrações dentro de narrações – decanta,37 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 412.38 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 413.
por meio da estabilidade, da razão e do senso comum de Nelly
Dean e Lockwood, a turbulência disforme da relação de
Catherine e Heathcliff, cujas identidades estão em contínuo
deslocamento.
Mas o fato é que Catherine mostra-se incapaz de decidir-
se entre Heathcliff e Linton, a natureza e a cultura, ou, na
terminologia de Bataille, a preferência pelo instante
presente e a consideração do porvir. Nos delírios febris que
se seguem à luta entre Heathcliff e Linton, Catherine imagina
que foi arrancada do Morro dos Ventos Uivantes aos doze anos,
sendo forçada a se tornar “esposa de um estranho, exilada e
proscrita” do que fora seu mundo. E lamenta: “Quem me dera
ser de novo aquela criança meio selvagem, audaciosa e
livre... e rir das ofensas em vez de me preocupar com elas!”.
Porém, Heathcliff não aceita a subsistência da
antinomia. A propósito, diz a Catherine: “Depois de arrasares
o meu palácio, não penses que podes construir uma cabana e
vangloriares-te da tua generosidade ao oferecê-la para eu
morar”. Ainda com Bataille, poderíamos dizer que a ferocidade
semiaplacada e o fogo reprimido de Heathcliff reivindicam a
soberania da “parte maldita” (do jogo, do aleatório, do
perigo) sobre a sociedade. Se a cultura representa a ordem
dos valores, a transgressão de Heathcliff surgirá,
necessariamente, como uma Rebelião do Mal contra o Bem. Narra
Nelly Dean:
[Heathcliff] tinha perdido os benefícios dasua anterior educação: o trabalho, pesado econtínuo, do raiar ao pôr do sol, haviaextinguido a sua curiosidade de outrora, bemcomo o seu gosto pelos livros e pelo saber.[...] Conseqüentemente, o aspecto físicotornou-se o espelho de sua degradação mental;adotou um comportamento desleixado e umaaparência ignóbil; o seu mau humor naturaldeu origem a um excesso, quase demente, deinsociabilidade, sentindo, por isso, umprazer mórbido em despertar a aversão (e nãoa simpatia) dos poucos que o rodeavam.
Como disse Bataille, Heathcliff “encarna uma verdade
primeira, a da criança que se rebela contra o mundo do Bem,
contra o mundo dos adultos, e é arrastado, por sua revolta
sem reservas, ao partido do Mal”. Este o tropo do Paraíso
perdido.
Face ao caráter transgressor d’O morro dos ventos uivantes39, o
pintor e poeta pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti escreveu,
certa feita:
É um demônio de um livro, um incrívelmonstro, combinando todas as mais fortestendências femininas, de Mrs. Browning40 a Mrs.Brownrigg41. A ação está situada no inferno –
39 Como referência, nos valeremos, neste trabalho, da tradução de WutheringHeights feita por Ana Maria Chaves, publicada pela editora Lua de Papel, emSão Paulo, no ano de 2009.40 Elizabeth Barrett Browning, poeta da era vitoriana, esposa de RobertBrowning.41 Elizabeth Brownrigg, parteira executada em 1767 por torturar até amorte suas aprendizes.
é apenas aparência que os lugares e aspessoas tenham nomes ingleses lá.42
O comentário de Rossetti reflete o espanto que se seguiu
à publicação da obra, em 1847. Apreciadores e detratores do
livro escandalizavam-se face ao “explosivo sadismo feminino”43
que rebentava de suas páginas. A alusão a Elizabeth Brownrigg
– cuja estátua, nos dias que correm, compõe o acervo do
London Dungeon, museu britânico de eventos históricos macabros
– evidencia o desconcerto e o alarme que trouxe aos leitores
a fusão, proposta por Emily, entre desejo e desespero, amor e
morte.
Elaborada à época do lançamento da obra, uma resenha
anônima afirmava:
42 Tradução nossa para: “It is a fiend of a book, an incredible monster,combining all the strongler female tendencies from Mrs. Browning to Mrs.Brownrigg. The action is laid in Hell, - only it seems places and peoplehave English names there”. Citado em BLOOM, Harold (Org.). Emily Brontë’sWuthering Heights. New York: Infobase Publishing, 2007, p. 4. 43 BLOOM. Gênio..., cit., p. 333.
N’O morro dos ventos uivantes, o leitor é chocado,nauseado, quase molestado com detalhes decrueldade, inumanidade e o mais diabólicoódio e vingança; e, ainda, algumas passagensde poderoso testemunho do supremo poder doamor – mesmo sobre demônios em forma humana.As mulheres no livro são de uma estranhanatureza diabólico-angélica, tentadoras eterríveis, e os homens são indesejáveis forado próprio livro.44
Aduzimos, acima, à teoria de Anthony M. Ludovici,
conforme a qual Heathcliff seria o desenvolvimento, por
Emily, da imagem do amante ideal. No afã de elucidar os
elementos sadomasoquistas presentes na obra, Camille Paglia
sustentará hipótese diversa: Heathcliff, na verdade, seria
uma variação da própria Emily. Com efeito, a composição da
personagem partiria de uma dinâmica de criação literária que
Paglia denominou identificação transexual, na qual “um autor homem
se projeta em uma personagem mulher, e vice-versa”45. Nesse
sentido, a intelectual americana afirma:
A amoralidade e o poder pagão do romantismoconcentram-se no herói byroniano Heathcliff,produto de uma espantosa transformação
44 Tradução nossa para: “In Wuthering Heights, the reader is shocked,disgusted, almost sickened by details of cruelty, inhumanity and the mostdiabolical hate and vengeance, and even some passages of powerfultestimony of the supreme powe of love – even over demons in the humanform. The women in the book are of a strange fiendish-angelic nature,tantalising and terrible, and the men are undesirable out of the bookitself...” Citado em WILKS, Brian. The Bröntes. London, New York, Sydney,Toronto: Hamlyn, 1975, p. 118.45 PAGLIA, Camille. Personas sexuais: O prefácio cancelado. Sexo, arte e culturaamericana. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
sexual. Heathcliff é Emily Brontë, uma mulherque levou ao máximo os limites do gênerosexual e, não encontrando satisfação na arte,morreu.46
Assim, o delírio báquico que consome o livro seria
irradiado por um amor que transcende as definições sexuais.
Não são raras as referências históricas à masculinidade de
Emily. No depoimento publicado junto ao prefácio da segunda
edição d’O morro dos ventos uivantes, Charlotte apresenta a irmã
como uma pessoa “mais forte do que um homem, mais simples do
que uma criança”. E prossegue:
Sob uma cultura destituída de sofisticação,gostos naturais e uma aparência modesta,jaziam um fogo e um poder secretos, quepoderiam ter inflamado as veias e alimentado o cérebro deum herói; mas ela não tinha conhecimentosmundanos; os seus poderes não se adaptavamaos aspectos práticos da vida: ela nãosaberia defender os seus mais manifestosdireitos, lutar pelas suas mais legítimasconveniências. (grifo nosso)
Heathcliff, uma mulher transfigurada em herói. N’O morro
dos ventos uivantes, as identidades sexuais representariam uma
abstração à parte, em outra dimensão de espaço e tempo, que
devem ser destruídas para que a plena união de Catherine e
Heathcliff – irmãos-espírito – ocorra. Paglia divisa,
subjacente à obra, um erotismo lésbico, que seria herdeiro do
46 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 404.
hermafroditismo romântico de Byron47. Contrapondo-se à tese de
que Heathcliff teria sido inspirado em Brawell, a intelectual
americana disserta:
Heathcliff é uma das grandes personas sexuaishermafroditas do romantismo, uma representaçãoonírica de Emily Brontë como Byronnaturalizado. [...] Muitos comentáriosadiantaram a tese tradicional mas absurda deque Heathcliff é modelado em Branwell Brontë,único homem entre seis irmãos no presbitériode Haworth. [...] Em termos de personassexuais, Branwell era a antítese total doativo, veemente e imperioso Heathcliff.Fisicamente truncado, auto-indulgente,morrendo finalmente viciado em ópio, Branwellpertencia à categoria de virilidadesonhadora, vacilante, degenerada, tipificadapelo Coleridge real e pelo Usher de Poe.48
Tomada do homem, a mulher, osso de seus ossos e carne de
sua carne, deve ser nele reabsorvida, junto a ele desfazer-se
em pó. Como Bataille já defendeu, a reprodução sexuada é a
negação do isolamento do ser, posto que a morte – ou a petite
mort – deste como indivíduo representa uma condição para a
sua sobrevivência como espécie. O arrebatamento de divina
embriaguez e autodestruição do erotismo representa uma
ruptura com o mundo dos cálculos e das máscaras sociais.
Seria esse o ensinamento d’O morro dos ventos uivantes. Nessa
esteira, argumenta Paglia:
47 Cf. PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 419.48 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 417.
Heathcliff e Catherine buscam a aniquilaçãosadomasoquista de suas identidades distintas.O desejo deles de desfazer-se um no outroproduz um gigantesco corpo-espírito no texto,impedindo que os outros membros da famíliaatinjam a estatura normal.49
É de se destacar que, como fusão total de imagens de
alma, o relacionamento de Heathcliff e Catherine difere das
relações de Byron com suas amantes – mesmo, a incestuosa
relação com sua meia-irmã Augusta Leight. O herói-vilão
byroniano procura expressar sua individualidade, enquanto
Heathcliff pretende suprimi-la na comunhão com seu duplo
hermafrodita. Se Heathcliff é fruto do reconhecimento tardio
– contra Wordsworth – de que a natureza não é benevolente,
mas violenta, seu desejo sexual não se apresentará como
manifestação de fertilidade, mas de morbidez: daí a
substância doentia de seu filho Linton. A advertência de
Catherine a Isabella alerta-nos contra a identificação
absoluta entre Heathcliff e o herói-vilão: “Sim, não penses
que ele oculta rios de benevolência e afeição sob toda aquela
dureza exterior! Ele não é nenhum diamante bruto, nenhuma
ostra grosseira onde se esconde uma pérola; é um homem
terrível, feroz, desapiedado”. Heathcliff não lideraria
bandoleiros gregos numa revolta contra os turcos. Ele
próprio, condenando os sentimentos de Isabella, dirá,
posteriormente: “Fez de mim um herói romanesco, esperando49 PAGLIA. Personas sexuais..., cit., p. 411 e 412.
condescendência ilimitada da minha devoção e cavalheirismo.
Não consigo imaginá-la como uma criatura racional, já que tão
obstinadamente se agarrou a uma idéia fantasiosa do meu
caráter, agindo de acordo com as falsas imagens em que
acreditava”. A interpretação de Heathcliff como duplo
hermafrodita, centelha alienada de uma unidade divina
primitiva, será objeto de nosso próximo tópico.
Centelha alienada do Deus interior
Por conseguinte, desde que a nossa naturezase mutilou em duas, ansiava cada um por suaprópria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, noardor de se confundirem, morriam de fome e deinércia em geral, por nada quererem fazerlonge um do outro. E sempre que morria umadas metades e a outra ficava, a que ficavaprocurava outra e com ela se enlaçava, querse encontrasse com a metade do todo que eramulher — o que agora chamamos mulher — quercom a de um homem; e assim iam-se destruindo.[Platão, O banquete, 191b]50
É célebre o mito do andrógino narrado por Aristófanes
n’O banquete de Platão, segundo o qual, como punição aos seres
humanos – que, então, tinham duas cabeças e oito membros –,
Zeus cindiu-os em dois. O eros consistiria na infatigável
50 Valemo-nos da tradução de José Cavalcante de Souza, publicada em Diálogos/ Platão ; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ; tradução enotas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. SãoPaulo : Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)
busca pela metade amputada de si, movida pela saudade
enquanto dor no membro já perdido. A cosmovisão platônica
encontra eco na doutrina cabalista do Adão Cadmo, o Homem
Arquetípico que, andrógino, precede a Criação e a Queda,
marcadas pelo surgimento da finitude e da cisão. Também
apresenta alguns paralelos com o esquema universal proposto
por Emily n’O morro dos ventos uivantes. Moribunda, Catherine diz a
propósito de Heathcliff: “Não quero vê-lo turvado pelas
lágrimas, nem desejá-lo entre as paredes de um coração
dolorido, mas sim estar com ele, e nele, na verdadeira acepção das
palavras” (grifo nisso). Como indicamos acima, o amor entre
Catherine e Heathcliff é, na verdade, auto-amor refletido de
uma mesma alma, cindida em dois corpos: os amantes são duplos
hermafroditas em busca de reconciliação.
Subjacente à narrativa d’O morro dos ventos uivantes, é
possível discernir uma filosofia ou, ainda, uma gnose51
pessoal: Emily é, como reconhece Lord David Cecil52, uma
mística. Também Harold Bloom identificará, na obra , “um tipo
de fé poética, como a de Blake ou Emerson, que se assemelha a
alguns aspectos (mas não a outros) do antigo Gnosticismo, sem
de nenhuma maneira derivar efetivamente de textos
51 Para uma introdução ao gnosticismo, recomendamos efusivamente a leiturade BLOOM, Harold. Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Rio deJaneiro: Objetiva, 1996.52 CECIL, David. Early victorian novelists: essays in revaluation. London: Constable &Co LTD, 1934, p. 151.
Gnósticos”53. Desenvolvendo o ponto, o crítico literário
argumenta:
Emily Brontë, notadamente, como se abraçasseo gnosticismo da Antiguidade, dirige-se aoDeus interior, o pneuma, ou centelha queremonta a um período anterior às noções deCriação e Queda. [...] Emily é visionária,que invoca o próprio gênio como divindade,com grande firmeza e extrema eloqüência.54
Nessa interpretação, dentro da doutrina de Emily,
Catherine e Heathcliff são as centelhas alienadas do Deus
interior, o Adão Cadmo. Assim, participam de uma alma
anterior à Criação e à Queda, e que “está para além de toda
ideologia, toda formulação meramente social, para além
igualmente do sonho de justiça ou da vida melhor, porque está
para além deste cosmos, ‘esta despedaçada prisão’”55. O amor
entre Heathcliff e Catherine não seria amor, mas o impulso
dialético que mobiliza o (re)equilíbrio de um sistema
espiritual mais amplo. Nesse sentido, Bloom discorre:
Mas “amor” parece um termo inadequado para aconexão entre Catherine e Heathcliff. Não
53 “[...] an original gnosis, a kind of poetic faith, like Blake’s orEmerson’s, that resembles some aspects (but not others) of ancientGnosticism without in any way actually deriving from Gnostic texts”.BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 4.54 BLOOM. Gênio..., cit., p. 338.55 Tradução nossa para: “[...] is beyond every ideology, every merelysocial formulation, beyond even the dream of justice or of a better life,because it is beyond this cosmos, ‘this shattered prison’”. BLOOM. EmilyBrontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 6.
existem elementos de transferência nestarelação, nem podemos chamar a conexãoenvolvida de narcisista ou anaclítica. [...]Esses extraordinários vitalistas, Catherine eHeathcliff, não desejam aqui o que cada umnão possui e ainda não encontrou, e assim oaumento de si mesmos. Eles são um ao outro, oque não é nem são nem possível, e que nãocomporta, em absoluto, nenhuma doutrina deliberação. Somente o Gnosticismo, das maisextremas visões, pode acomodá-los, pois, comoadeptos gnósticos, Catherine e Heathcliff sópodem entrar no pleroma ou na completudejuntos, como presumivelmente eles fizeramdepois da morte auto-induzida de Heathcliffpor inanição.56
Similarmente, Lord David Cecil leciona:
Os heróis e heroínas de Emily Brontë não amamuns aos outros por quê eles encontram naspersonalidades dos outros prazer, ou por quêeles admiram o caráter dos outros. Elestalvez superficialmente sejam atraídos porsemelhantes razões, como Catherine Earnshaw éatraída por Edgar Linton. Mas seussentimentos profundos são despertados apenas
56 Tradução nossa para: “But ‘love’ seems an inadequate term for theconnection between Catherine and Heathcliff. There are no elements oftransference in that relation, nor can we call the attachment involvedeither narcissistic or anaclitc. If Freud is not applicable, then neitheris Plato. These extraordinary vitalists, Catherine and Heathcliff, do notdesire in that wich each does not possess, do not lean themselves againstone another, and do not even find and thus augment their own selves. Theyare one another, wich is neither sane nor possible, and wich does notsupport any doctrine of liberation whatsoever. Only of most extreme ofvisions, Gnosticism, could accomodate them, for, like the Gnostic adepts,Catherine and Heathcliff can only enter the pleroma or fullness together,as presumably they have done after Heathcliff’s self-induced death bystarvation”. BLOOM. Emily Brontë’s Wuthering Heights..., cit., p. 7.
por alguém pelo qual eles sintam um senso deafinidade, que procede do fato de que ambossão expressiões de um mesmo princípioespiritual.57
Pode-se afirmar, de qualquer modo, com e contra Cecil,
que a contraposição entre o eterno e o temporal, a unidade
incorruptível e a pluralidade dos ciclos de geração e
corrupção, é elemento que diferencia os sentimentos de
Catherine por Heathcliff e Linton. Catherine afirma amar
Linton pelo fato de ele amá-la e por ser bonito, jovem,
alegre e rico. Em contrapartida, diz amar Heathcliff por ser
ele um outro eu para além dela própria. E continua:
Os meus grandes desgostos neste mundo foramos desgostos de Heathcliff, e eu acompanhei esenti cada um deles desde o início; é ele queme mantém viva. Se tudo o mais perecesse e eleficasse, eu continuaria, mesmo assim, aexistir; e, se tudo o mais ficasse e elefosse aniquilado, o universo se tornaria paramim uma vastidão desconhecida, a que eu nãoteria a sensação de pertencer. O meu amorpelo Linton é como a folhagem dos bosques:irá se transformar com o tempo, sei disso,como as árvores se transformam com o inverno.Mas o meu amor por Heathcliff é como as
57 Tradução nossa para: “Emily Brontë’s heroes and heroines do not loveeach other because they find each other's personalities pleasant, orbecause they admire each other's characters. They may be superficiallyattracted for such reasons, as Catherine Earnshaw is attracted to EdgarLinton. But their deeper feelings are onlu roused for someone for whomthey feel a sense of affinity, that comes from the fact that they areboth expressions of the same spiritual principle”. CECIL. Early victoriannovelists..., cit., p. 156.
penedias que nos sustentam: podem não ser umdeleite para os olhos, mas sãoimprescindíveis.
Em The butterlfy58, ensaio redigido por Emily em agosto de
1842, pode-se discernir uma cosmologia implícita: toda a
criação é igualmente má, e a natureza encontra-se submetida
ao princípio da destruição. Todos os seres são instrumentos
da morte de outros, e a presença do homem na terra, maculada
pelo pecado, é similar à feia lagarta na flor. Porém, tal
como a borboleta justifica a lagarta, a realização futura do
homem, em um novo céu e em uma nova terra, justifica a vasta
máquina de produção do mal que constitui o universo.
Aproximando o ensaio de 1842 e o romance de 1847, Cecil
procura expor a estrutura fundamental da gnose pessoal de
Emily. Identifica dois axiomas básicos, que se veriam
refletidos na formatação d’O morro dos ventos uivantes:
O primeiro é que todo o cosmos criado,animado ou inanimado, mental e físicoigualmente, é a expressão de certosprincípios espirituais vivos – de um lado oque pode ser chamado o princípio datempestade [o Morro dos Ventos Uivantes;Heathcliff e os Earnshaw] – do áspero, doimpiedoso, do selvagem, do dinâmico; e, poroutro lado, o princípio da calmaria [a Granjados Tordos; os Linton] – do suave, domisericordioso, do passivo e do domesticado.
58 Texto disponível, na íntegra, emhttp://bethanya2literature.blogspot.com/2011/10/butterfly-emily-bronte.html.
Além disso, a despeito de sua aparenteoposição, esses princípios não estão emconflito. Ou – Emily Brontë não deixa claro oque acha – cada um é a expressão de umdiferente aspecto de um mesmo e únicoespírito permeador; ou eles são as partescomponentes de uma harmonia. O mondo de nossaexperiência é, face a isso, cheio dediscórdia. Mas isso se dá unicamente por quê,na limitada condição de sua encarnaçãoterrestre, esses princípios encontram-sedesviados do curso que sua naturezadeterminava seguir, e retirados de seusrespectivos caminhos eles são transformadosde forças positivas em negativas; a calmariatorna-se uma fonte de fraqueza, não deharmonia, no esquema natural; a tempestadeuma fonte não de vigor frutífero, mas deperturbação. Mas quando eles estão livres deseus cativeiros de carne, eles fluemdesimpedidos e sem conflito; e mesmo nestemundo suas discórdias são transitórias. Oprincípio singular, dirige-os em últimainstância, cedo ou tarde impõe umequilíbrio.59
59 Tradução nossa para: “The first is that the whole created cosmos,animate and inanimate, mental and physical alike, is the expression ofcertain living spiritual principles - on the one hand what may be calledthe principle of storm - of the harsh, the ruthless, the wild, thedynamic; and on the other the principle of calm - of the gentle, themerciful, the passive and the tame./ Secondly, in spite of their apparentopposition these principles are not conflicting. Either - Emily Brontëdoes not make clear wich she thinks - each is the expression of adifferent aspect of a single pervading spirit; or they are the componentparts of a harmony. The world of our experience is, on the face of it,full of discord. But that is only because in the cramped condition oftheir eartly incarnation these principles are diverted from following thecourse that their nature dictates, and get in each other's way they arechanged from positive into negative forces; the calm becomes a source ofweakness, not of harmony, in the natural scheme; the storm a source notof fruitful vigour, but of disturbance. But whem they are free fromfleshly bonds they flow unimpeded and unconflicting; and even in this
Nessa arquitetônica metafísica, o sobrenatural seria a
expressão das leis da natureza60. Sendo toda a realidade
decorrência de um princípio espiritual singular, não haveria
diferença efetiva entre o natural e o cultural. Tampouco
haveria antítese entre a vida e a morte, visto que o
falecimento do corpo não destrói, mas liberta o princípio
espiritual para que este se manifeste plenamente neste mundo.
Aplicando à narrativa d’O morro dos ventos uivantes os axiomas
apresentados, Cecil observará:
De um lado, nós temos o Morro dos VentosUivantes, a terra da tempestade; elevadosobre a árida charneca, nua devido ao choquedos elementos, a casa natural da famíliaEarnshaw, impetuosos, indômitos filhos datempestade. De outro lado, protegida nofrondoso vale abaixo, fica a Granja dosTordos, a apropriada casa dos filhos dacalmaria, os suaves, passivos, tímidosLintons. Juntos, cara grupo, seguindo suaprópria natureza em sua própria esfera,combinam para compor a harmonia cósmica. É adestruição e o restabelecimento destaharmonia o tema da estória. Ela começa com achegada, no Morro dos Ventos Uivantes, de umelemento estranho – Heathcliff. Ele, também,é um fihlo da tempestade; e a afinidade entreele e Catherine Earnshaw faz com que eles seapaixonem um pelo outro. Mas desde então eleé um elemento estranho, ele é a fonte da
world their discords are transitory. The single principle that ultimatelydirects them sooner or later imposes an equilibrium”. CECIL. Early victoriannovelists..., cit., p. 152.60 Cf. CECIL. Early victorian novelists..., cit., p. 159.
discórdia, inevitavelmente interrompendo otrabalho da ordem natural. Ele impele o pai,Earnshaw, entrar em conflito com o filho,Hindley, e como resultado Hindley entra emconflito com ele próprio, Heathcliff. A ordemé mais intensamente deslocada por Catherine,que é seduzida para unir-se a si mesma em um“não-natural” casamento com Linton, o filhoda calmaria. O choque desta infidelidade e osmaus-tratos de Hindley, a seu turno, perturbaa natural harmonia da natureza de Heathcliff,e transforma-o, de um elemento alienígena naordem estabelecida, em uma força ativa para asua destruição. Ele não é, portanto, comousualmente se supõe, um homem perverso quevoluntariamente sucumbe a seus perversosimpulsos. Como todos os personagens de EmilyBrontë, ele é a manifestação de forçasnaturais atuando involuntariamente sob apressão de sua própria natureza. Mas ele éuma força natural que foi frustrada em seuescape natural, e que é então se tornainevitavelmente destrutiva, como uma cheiatorrencial desviada de seu leito, que fluisobre a região circundante, deixandodevastado tudo o que jaz em seu caminho. Nadapode detê-la, até que sejam removidos osobstáculos que impedem-na em seu leitonatural.61
61 Tradução nossa para: “On the one hand, we have Wuthering Heights, theland of storm; high on the barren moorland, naked to the shock of theelements, the natural home of the Earnshaw family, fiery, untamedchildren of the storm. On the other, sheltered in the leafy valleybellow, stands Thrushcross Grange, the appropriate home of the childrenof calm, the gentle, passive, timid Lintons. Together each group,following its own nature in its own sphere, combines to compose a cosmicharmony. It is the destruction and re-establishment of this harmony wichis the theme of the story. It opens wich the arrival at Wuthering Heightsof an extraneous element - Heathcliff. He, too, is a child of the storm;and the affinity between him and Catherine Earnshaw makes them fall inlove with each other. But since he is an extraneous element, he is a
Em síntese: é Heathcliff a força do negativo, que, tal qual
Shiva, conduz ao movimento uma realidade a princípio
estática. Comprometendo o solipsismo monádico do Morro dos
Ventos Uivantes e da Granja dos Tordos, a(s) unidade(s)
inicial(is), indiferenciada(s), Heathcliff guia o princípio
espiritual, através da cisão e da particularidade, a uma nova
unidade, pluralista (simbolizada pela associação, final,
entre Hareton e Cathy). Unidade indiferenciada (universal
abstrato); particularidade; unidade diferenciada (universal
concreto/singularidade). Não é inconseqüente a utilização,
aqui, da terminologia hegeliana. Com efeito, tanto o filósofo
alemão quanto a poeta britânica desenvolvem gnoses pessoais
centradas na revelação do espírito a si, no tempo. Ambos, em
seus respectivos âmbitos de atuação, desenvolveram esquemas
universais centrados no jogo entre o estático e o dinâmico, o
source of discord, inevitably disrupting the working of the naturalorder. He drives the father, Earnshaw, into conflict with the son,Hindley, and as a result Hindley into conflict with himself, Heathcliff.The order is still further dislocated by Catherine, who is secuced intouniting herself in an 'unnatural' marriage with Linton, the child ofcalm. The shock of her infidelity and Hindley's ill-treatment of him now,in its turn, disturbs the natural harmony of Heathcliff's nature, andturns him from an alien element in the established order, into a forceactive for its destruction. He is not therefore, as usually supposed, awicked man voluntarily yielding to his wicked impulses. Like all EmilyBrontë's characters, he is a manifestation of natural forces actinginvoluntarily under the pressure of his own nature. But he is a naturalforce wich has been frustrated of its natural outlet, so that itinevitably becomes destructive; like a mountain torrent diverted from itschannel, wich flows out on the surrounding country, layng waste whatevermay happen to lie in its way. Nor can it stop doing so, until theobstacles wich kept it from its natural channel are removed”. CECIL. Earlyvictorian novelists..., cit., p. 165.
eterno e o temporal. Um e outro mostram que o homem, anjo
caído (ou Adão expulso do paraíso), apesar de – ou mesmo,
devido à – sua rebelião contra o Bem e a ordem dos valores, é
o veículo indispensável para que a harmonia se instaure no
cosmos, completado o círculo da criação.
Conclusão
“Estou quase entrando no meu céu; o céu dos outros, não
cobiço nem tem para mim qualquer valor!”. Estas são palavras
de Heathcliff, quando, assombrado pelo espectro de uma
esperança, já se prenuncia sua morte. Herói, anti-herói ou
centelha alienada do Deus interior, Heathcliff é, de qualquer
forma, o símbolo do gênio de sua criadora. Também ela, em seu
silêncio, repudiava para si o céu dos outros, e criou o seu
próprio. O morro dos ventos uivantes é o mapa que registra a
topografia deste céu, que, verdade seja dita, suprassume o
céu e o inferno em uma nova unidade. Catherine sonha que,
encontrando-se no céu – dos outros –, sentiu-se infeliz e foi
expulsa pelos anjos. Sua Queda lançou-a ao urzal do Morro dos
Ventos Uivantes, onde encontrou alegria. As urzes não são
lírios do campo – mas tampouco são lírios místicos. A gnose
pessoal de Emily Brontë a distancia irreversivelmente da
cosmovisão da ortodoxia cristã – bem como da cosmovisão do
Alto Romantismo e de qualquer outro movimento cultural
precedente. Semelhante originalidade reflete-se em
Heathcliff, que, numa infinidade de faces – propostas de
interpretação às mais diversas, das quais tentamos, aqui,
fornecer três exemplos significativos –, permanece um
mistério. O culto à força masculina das charnecas subjaze às
três variações de Heathcliff apresentadas aqui. Da mesma
forma, no núcleo da luta de Heathcliff contra a práxis
cotidiana, parece subsistir a fé poética na redenção da
mundo, já manifestada em The butterlfy. Chegado o momento, até a
morte há de morrer, e será instaurado o império da felicidade
e da glória. É esta a lição que, no crepúsculo do Alto
Romantismo, a Emily visionária parece extrair da observação
das charnecas de Haworth.