As Esferas Pública e Privada na Gestão dos Recursos Hídricos - Comitê de Bacia Hidrográfica:...

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I l Association Intemationale des Ressources en Eau Asociacion Internacional de Recursos Hidricos As Esferas Púbica e Privada na Gestão dos Recursos Hídricos - Comitê de Bacia Hidrográfica: Pacto Social, Instância Colegiada ou Pessoa Jurídica de Direito Público? Pedro Antônio Molinas 1 , Alejandra Silvia Bentolila 1 Introdução Nas décadas passadas, no Brasil e no mundo, o conhecimento relativo a gbstão de recursos hídricos avançou de forma significativa. Podemos dizer hoje que existem metodologias para abordar a grande maioria de problemas de natureza técnica I susceptíveis de ocorrerem na gestão de uma determinada bacia. Dois grandes temas, mesmo que equacionados, ainda exigem muito trabalho e dedicação por parte dos responsáveis da gestão. Trata-se, por um lado, da questão do monitoramento dos aspectos qualitativos da água, por décadas relegado a um segundo plano, e que hoje representa um dos grandes empecilhos na aplicação de metodologias de avaliação e gestão hídrica mais precisas e sofisticadas. ! Por outro lado, a questão institucional, mesmo que relativamente bem definida I da perspectiva jurídica, ainda exige grandes esforços de modo a atingir patamares I mínimos de conhecimento aceitáveis e, em conseqüência, abordagens que contertt com um amplo consenso dos especialistas. 1 Engenheiro em Recursos Hídricos, Msc., Consultor Independente, Av. Dom Luis 300- sala 707- Fortaleza- CE, fone/fax:+ 55.85.2649700- [email protected] 2 Dra. em Sociologia, Monsenhor Bruno 2320- 1801- Fortaleza- CE, fone: +55.85.2467254- [email protected]

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Asociacion Internacional de Recursos Hidricos

As Esferas Púbica e Privada na Gestão dos Recursos Hídricos -

Comitê de Bacia Hidrográfica: Pacto Social, Instância Colegiada ou Pessoa

Jurídica de Direito Público?

Pedro Antônio Molinas1, Alejandra Silvia Bentolila1

Introdução

Nas décadas passadas, no Brasil e no mundo, o conhecimento relativo a gbstão

de recursos hídricos avançou de forma significativa. Podemos dizer hoje que existem

metodologias para abordar a grande maioria de problemas de natureza técnica I

susceptíveis de ocorrerem na gestão de uma determinada bacia.

Dois grandes temas, mesmo que equacionados, ainda exigem muito trabalho e

dedicação por parte dos responsáveis da gestão.

Trata-se, por um lado, da questão do monitoramento dos aspectos qualitativos da

água, por décadas relegado a um segundo plano, e que hoje representa um dos grandes

empecilhos na aplicação de metodologias de avaliação e gestão hídrica mais precisas e

sofisticadas. !

Por outro lado, a questão institucional, mesmo que relativamente bem definida I

da perspectiva jurídica, ainda exige grandes esforços de modo a atingir patamares I

mínimos de conhecimento aceitáveis e, em conseqüência, abordagens que contertt com

um amplo consenso dos especialistas.

1 Engenheiro em Recursos Hídricos, Msc., Consultor Independente, Av. Dom Luis 300- sala 707-Fortaleza- CE, fone/fax:+ 55.85.2649700- [email protected] 2 Dra. em Sociologia, Monsenhor Bruno 2320- 1801- Fortaleza- CE, fone: [email protected]

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Esta temática, de características eminentemente sociológicas, foge, em grande

parte, à tradicional formação dos profissionais que lidam com a gestão dos recursos

hídricos. Assim, o que se da em chamar "dimensão social" da gestão hídrica ainda

apresenta um desenvolvimento incipiente, com escassas experiências que o abordem no

país e, com quase nenhuma conceitualização teórica a respeito.

O presente trabalho pretende contribuir para uma melhor caracterização da

dimensão social da gestão de recursos hídricos, particularmente, abordando questões

relativas à compreensão e os alcances das esferas pública e privada, analisadas no

contexto dos Comitês de Bacia Hidrográfica.

Nós, profissionais da área de gestão de recursos hídricos, geralqtente

identificamos os Comitês de Bacia hidrográfica (CBH's) como um "instrumenio de !

gestão", isto é, como instância colegiada capaz de gerar consenso, mitigar conflitos e

intervir na identificação do "interesse público".

Isto significa admitir a existência de "interesses particulares ou privados". Por

outro lado, a identificação do interesse público significa admitir diferentes alternativas

para a resolução dos "problemas sociais" e, também, diferentes formas de representação I

ou de delegação do poder decisório. I

!

Assim, a reflexão sobre a gestão dos recursos hídricos e, particularmente, o

papel que desempenham I desempenharão os CBH' s (instituições que podemos

considerar paradigmática no modelo de gestão de recursos hídricos adotado no Brasil),

leva-nos a analisar as relações entre as esferas pública e privada e seus possíveis

conflitos. Neste contexto, o presente trabalho tem os seguintes objetivos:

(a) repensar a construção das esferas pública, privada e social, delimitando as

fronteiras e as relações entre Estado e Governo para, finalmente, abordar a

questão que nos preocupa: a regulação e controle por parte do Estado da esfera

pública e a fiscalização do Estado por parte da Sociedade;

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(b) relacionar esse conceitos com a dinâmica e constituição dos CBH' s, sua

sistemática de funcionamento e a sua conceitualização.

O público, o privado e o social3

H. Arendt, autora do livro "La Condición Humana" (1974), desenvolve: com

extrema lucidez a conceitualização das três grandes esferas do que ela denominJ Vila I

Activa4. Partindo da definição aristotélica do homem como zõon politikon, a filósofa

I

alemã, reconhece que as atividades humanas estão condicionadas pelo fato dos homens I

viverem juntos; assim, Arendt afirma que o homem que trabalhar, fabricar e construir

um mundo unicamente habitado por ele, seguiria sendo um animal laborans, mas teria

perdido sua "condição humana". Em outras palavras, o que Arendt define como "ação"

(entendida como tipo específico de atividade humana) é a única atividade que não pode

nem sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.

Para Arendt, a "ação" é um tipo especial de atividade, pois é a única atividade

que somente pode ser realizada por homens juntos; em outras palavras, somente esta

"ação11 é prerrogativa humana e somente esta depende da presença dos demais.

Neste sentido, a organização política não é somente diferente, mas opõ~-se à

associação natural, cujo centro para os gregos era a família. Assim, a organJação

familiar, o mundo das necessidades e da esfera privada, opõem-se, na persp~ctiva :

aristotélica, à organização política, ao mundo das liberdades: a esfera pública.

Ser político, na experiência da polis grega, significava que todo podia se~ dito,

que dentro dela não existia lugar para a força ou a violência, pois, era uma experiência

3 Este item nada mais é do que um resumo da nossa interpretação do capítulo 11. do livro "La Condición Humana" de H. Arendt, Ediciones Paidós, Barcelona, 1993. Todo é qualquer erro de interpretação a nos

I

~~ .

4 A saber a esfera do público, do privado e do social

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entre iguais5. Para o modo de pensar grego, mandar, no lugar de persuadir, era uma

forma pré-política para tratar com pessoas cuja existência estava ao margem da polis.

A tradução latina do zõom politikon aristotélico por animal social - "o homem é

um animal social", é produto da interpretação de Santo Tomás, que revela até que ponto

tinha se perdido o conceito grego de política (que dizia respeito à polís, ao discurso, aos

iguais) durante a Idade Média. \ 'I

I

Ao comparar o governo familiar com o governo político, Santo Tomás faz uma I

operação que nenhum grego faria; para um grego, o poder do paterjamilias ou dominus

absoluto e a esfera propriamente política excluíam-se mutuamente.

A identificação errônea das esferas social e política é tão antiga como a

adaptação das expressões gregas ao pensamento cristão, mas a confusão toma-se, ainda

maior, quando a sua interpretação depende dos conceitos modernos de público e

privado.

A distinção entre a esfera privada e pública corresponde ao que os gregos

chamavam de familiar e político~ a aparição da esfera social, que não é nem pública,

nem privada, se dá com a chegada da Idade Moderna, especificamente, com o

surgimento da nação- estado.

A nítida divisão que os gregos faziam entre a esfera pública (polis = atividades

relacionadas com um mundo comum) e a esfera privada (família = atividades I

relacionadas à conservação da vida), tem-se apagado por completo na experiência I

' moderna; é muito comum, infelizmente, ver que as comunidades políticas são I

governadas como se fossem "grandes famílias", cujos assuntos cotidianos são tratados

por uma "gigantesca administração doméstica de alcance nacional".

5 Lembre-se que no domínio da po/is, quedam excluidos, os escravos e as mulheres, que não formavam parte do público e sim do mundo das necessidades.

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A responsabilidade coletiva da "coisa pública", por vezes encontr~-se !

"delegada" a um "paterfamilias", cujo domínio absoluto, coloca "aquilo a que todos I

pertence" como sendo resultado de um "pacto" que negligencia o complexo processo de

geração do consenso, transformando a consensualidade na mais tola unanimidade. 1

I O pensamento científico que corresponde a este tipo de interpretação não é

"político", mas "econômico"; trata-se de uma "economia social" que indica hma I

administração doméstica coletiva. Neste sentido, o conjunto de fatriílias !

economicamente organizadas que hoje chamamos de SOCIEDADE, e que tem na

Nação sua forma política de organização, é produto de uma expressão que os ~gos I

considerariam uma brutal contradição: o que hoje chamamos de SOCIEDAIJE é

produto da "economia politica'', uma contradição de termos, do ponto de vi4 dos

antigos, pois qualquer coisa que fosse econômica (do mundo das necessidades) era por i

definição um assunto familiar (doméstico), e por tanto não - político.

I

Assim, se a comunidade natural da família nascia da necessidade, a comunidade I

política da polis nascia da esfera da liberdade. A política na Antigüidade jamais I seria

um meio destinado a proteger à sociedade, sejam eles os proprietários (como pensava

Locke), ou sejam eles os produtores (como pensava Marx). , i

I

I

Na Antigüidade, a força ou a violência somente se justificavam na esfera pfvada

ou doméstica, pois era o único meio de dominar a necessidade; ao contrario, a pamir do

surgimento da nação- estado, o monopólio legal da força passa a ser exercidJ pelo

I Estado.

1 o pensamento político que nos rege desde o século xvn (só pode o homem I

escapar da violência mediante o estabelecimento de um governo), considera a "alte de

governar" como forma de trazer justiça; ao contrário, a igualdade da polis, loJge de I

estar relacionada como esta idéia de justiça, era a própria essência da LffiERDADE.

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No mundo moderno, as esferas social e política estão muito menos I

diferenciadas; a administração doméstica a nível nacional, toma 11desnecessáribn ou !

prescindível o mundo das liberdades.

Trás a caída do Império Romano, se nos ofereceu (e aceitamos) um subst~tuto à

cidadania; o conceito medieval de "bem comum" , longe de demarcar a existênbia de

uma esfera política, somente irá a reconhecer que "os indivíduos particulare~ têm

· d d , · I , · Interesses em comum, e que somente po em conservar e aten er o seu propno negocto,

se um deles toma para si a tarefa de cuidar deste interesse comum" 6.

O 0 d ,C. • d d 0 1 A 1. d cresctmento a estera pnva a, o auge o socta e a emergeneta a

SOCIEDADE, são os traços característicos da nossa modernidade. O au~e da

administração doméstica a nível nacional- o social- não somente apaga a fronteirJ entre I

o privado e o político (uma contradição para os gregos), mas também fez corrt que

chamemos de privada à esfera da intimidade, praticamente desconhecida antes da! Idade I

Média. '

Na Antigüidade, enfatizava-se o traço privativo do privado, literalmente

significava ver-se desprovido de alguma coisa; hoje, a esfera privada opões-se bl.nto a I

esfera social (desconhecida para os antigos), como a esfera política. O privado motlemo,

não mais se refere ao mundo das privações e sim à proteção da privacidade (do ín~imo), e, como tal, opõe-se não a esfera política, e sim à esfera social.

O grande defensor do privado, no sentido de íntimo, foi J.J. Rousseau7, qÓe não

I

lutou contra a opressão do Estado e sim contra a opressão da Sociedade para com o I

Indivíduo. Assim, não seria de grande importância que uma nação seja formada por I

iguais ou desiguais, pois a sociedade sempre exigiria que seus membros atuem c9mo si !

todos fossem da mesma grande família, com um único interesse e uma única opinião.

6 H Arendt, La Condición Humana. pág. 46. Paidós, Barcelona, 1993. 7 J.J. Rousseau. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político (1757}, Coleção os Pensado es, Volume I, Nova Cultural, São Paulo, 1999.

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A este respeito é interessante demarcar a coincidência entre o auge da sociedade

e a decadência da família; tudo parece indicar que o que aconteceu foi a absorção da

unidade familiar nos grupos sociais. O surgimento da burocracia, como última e melhor

desenvolvida etapa de governo numa nação-estado, é o governo de ninguém, sem

necessariamente ser um não- governo.

Assim, a economia somente conseguiu adquirir caráter científico quando os

homens se transformaram em seres sociais; por isso, dar como certo que existe um

interesse comum da sociedade como um todo, somente pode ser considerado peça de

ficção.

Por outro lado, a esfera pública moderna , aquilo que se relaciona com o cdmum,

diz respeito a tudo aquilo que pode ser visto e ouvido por todos, por tanto diz relspeito I

I

ao comunicável. O termo público, significa ao mesmo tempo, o "próprio mundo, I

enquanto é comum a todos"; relaciona-se, assim, com aquilo que é fabricadb por I

homens que habitam juntos o mundo.

A esfera pública nos iguala nas nossas diferenças, ou como afirma Arendt "nos

junta e, não obstante, impede que caiamos um acima do outro". A esfera pública

depende assim da permanência, não é possível construir uma esfera pública para uma

única geração, por exemplo. Porque a diferença do "bem comum", o mundo comum

transcende nosso tempo vital, tanto para o passado como para o futuro; ela esta ai antes

de nos chegarmos e a nós sobreviverá.

Como afirma Arendt, "é o que temos em comum não só com nossos

contemporâneos, mas com quem antes esteve e com quem ainda não está". Neste

sentido, a publicidade ou publicização é condição imprescindível para assegurar a

sobrevivência da esfera pública.

A realidade da esfera pública radica na simultânea presença de inumeráveis

perspectivas e aspectos nos quais o mundo comum se apresenta (H. Arendt). Assibt, ser I,

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visto e ouvido por todos, não se opõe ao fato de que todos vêem e ouvem desde uma

posição diferente.

Em outras palavras, a esfera pública não está garantida pela "natureza comum

entre os homens", mas diz respeito ao fato de que, a pesar das diferenças de posição,

todos os homens estão interessados por um mesmo objeto.

Ao contrário, viver uma vida completamente privada significa estar privado da

realidade que se constitui quando se é visto e ouvido por todos; o homem privado não

aparece e qualquer coisa que realize carece de significado para os outros.

i

A relação entre o público e o privado, mal se compreende hoje em dia, pelo

equacionamento errado entre propriedade e riqueza, e o seu inverso, carência de I

propriedade e pobreza.

Nas suas origens, possuir uma propriedade significava ter "seu próprio lugar em

alguma parte concreta do mundo", e assim, pertencer ao corpo político. É assim que, a

expulsão de um cidadão podia significar não somente a confiscação da sua propriedade,

como a destruição da mesma.

O significado político da riqueza privada, diz respeito a ter assegurados os meios

para a subsistência, condição necessária para ser admitido na esfera pública, pois

garantia a dedicação à atitude pública. "Entrar no mundo que todos temos em comum"

significou também a politização da propriedade privada; com o nascimento da cidade -

estado, quem dava prioridade a ampliação da propriedade em detrimento à possibilidade

de ingressar na vida da polis, era considerado um "servo da necessidade", "um e~cravo

por sua própria vontade".

Assim, a propriedade privada é muito mais que "riqueza individualmente

possuída" e compreende-se, assim, a dificuldade que hoje temos em ter uma esfera

pública verdadeiramente livre sem um adequado estabelecimento do privado, enquanto

esfera do doméstico, da satisfação das necessidades para a subsistência.

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Constata-se que aquilo que antes foi chamado de "auge do social", coincide com

a transformação do interesse privado em interesse público; isto é, o social adota o I

disfarce de "uma organização de proprietários que, no lugar de exigir o acesso à ~sfera

pública devido a sua riqueza, pede proteção para acumular mais riqueza" (H. Arendt).

A diferença que existe entre o "mundo em comum" e a "riqueza em comu~"8 é I

que a última sempre será alguma coisa para ser usada e consumida, enquanto que a

esfera pública ou o mundo em comum é aquilo que necessariamente transcende as I

margens de uma vida individual.

A "riqueza em comum" jamais poderá ser comum no mesmo sentido em que

falamos de um "mundo comum", mas a contradição que existe no moderno conc~ito de I

governo, onde o único que o povo tem em comum são seus interesses privados, indica

claramente que a esfera pública converteu-se em uma função da esfera privada, elque a

esfera privada, transformada em intimidade não protegida, passou a ser o único interesse

em comum, e transformou-se na esfera social.

A absorção da esfera privada e da esfera pública pela esfera social, fez com que

elas perdessem as suas respectivas características: aquilo que deve permanecer seguro e

oculto do mundo comum e aquilo que necessita mostrar-se ou exibir-se publicJmente

para que possa existir.

Estado e Governo; construção do consenso e mitigação dos conflitos

Se admitimos os CBH' s, enquanto "instrumento de gestão" ou in$tância

colegiada capaz de gerar consenso e mitigar conflitos, toma-se necessário repe~sar as

fronteiras e as relações entre Estado e Governo, para abordar com mais precisão a

dinâmica entre regulação por parte do Estado e fiscalização por parte da sociedad~.

8 Note-se a diferença entre riqueza e capital; unicamente quando a riqueza se transforma em !capital, quando a sua função é a produção de mais capital é que a propriedade privada se aproxima 1 aquela permanência inerente ao mundo comum. ·

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A única instituição capaz de reproduzir normas de comportamento, reproduzir

valores e transmiti-los com eficiência a todos os indivíduos é o Estado. O Estado não

somente educa, protege, da assistência aos seus cidadãos, mas assegura uma mínima

coesão social.

Max Weber9, define o Estado como o "conjunto de instituições que compõem e

exercem o poder político numa sociedade territorial mente definida". Por sua definição,

entende-se que o Estado detém o monopólio legal da força (poder de polícia), seja a

força armada ou seja a força coercitiva legal, através dos órgão da sua administração.

I

Porém, é necessário fazer uma diferenciação importante. Estado não é sinônimo

de Governo. A palavra Estado significa, etimologicamente, "aquilo que é fixo", portanto

traz consigo a idéia de permanência, característica que o Estado compartilha com a

esfera pública.

Assim como a esfera social, o Estado enquanto organização do poder, surge da

necessidade de administrar o conjunto das atividades dos cidadãos e confirmar seu

domínio sobre estes últimos. E aqui, surge uma distinção importante; quando se fala do

Estado, a partir da ótica de M. Weber, não podemos esquecer que ele diferenciava o

poder enquanto domínio, ou a possibilidade de exercer a própria vontade sobre a

vontade dos outros, e o poder enquanto força coercitiva legítima, ou a possibilidade de

ser obedecido.

Neste sentido, a utilização do conhecimento para administrar coisas e controlar o

d . I' fi I .. comportamento as pessoas, tmp tca, ao mesmo tempo, azer com que os atores soctats

sejam capazes de identificar-se uns com os outros, com uma ideologia, com uma forma

de sociedade. Isto é, sem um mínimo de consenso nenhum Estado - Nação pode

instaurar-se e perdurar.

9 M. Weber, Economia e Sociedad, FCE, México, 1964.

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O Estado moderno exige, de cada um dos que a ele recorrem, a adesão aos ideais

que ele promulga; isto é, para pertencer e ser reconhecido pelo Estado, este exige que

cada um de nós, renuncie a uma parte dos nossos desejos individuais, considerados não

socializáveis.

O conceito de Estado traz consigo a idéia de permanência e de unidade face ao

conceito de sociedade, o conceito de Governo traz consigo a idéia de diversidade e

mudança. O Estado é a entidade permanente que garante as regras do jogo para que a

sociedade, que é naturalmente portadora de turbulência e interesses diferenciados,

mantenha um mínimo de interesse no mundo em comum.

Para gerar esse consenso o Estado utiliza instituições e instâncias que facilitam a

adesão das pessoas aos ideais que ele promulga; isto é, para administrar a tensão • entre

seus cidadãos, que naturalmente tem interesses diferentes e às vezes contraditórios,

escolhe uma determinada configuração de valores, que passam a ser reconhecidos como

"bem comum".

Para manter o controle desse espaço "público", transformado em espaço social, o

Estado tem que ser reconhecido como "mediador'', tendo, assim, a "responsabili~ade"

de evitar conflitos maiores e garantir direitos a todos e, no melhor dos casos, um direito

em comum (o direito a ter direitos).

Observe-se que, embora a criação do Estado responda à defesa dos interesses

privados, a mesma terminou beneficiando à esfera pública, àquilo que nos iguala na I

diversidade.

Na negociação para consolidar o controle da "coisa pública", instauram+se as

"garantias" oferecida pelo Estado, sob a forma de direitos de cidadania; o Estado passa

assim a ser reconhecido como "mediador'' dos conflitos sociais.

Analisar as relações entre Estado e Sociedade a partir de configurações concretas

e situações histórico- políticas específicas, abre a possibilidade de extrapolar o do~ínio I

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do "bem comum" para atingir a verdadeira esfera pública, onde já não seja possível

ignorar o fosso que existe entre a legalidade e os códigos de conduta que de fato

vigoram.

I

Para isto, é preciso repensar as lutas em tomo da distribuição desigual de

recursos materiais e simbólicos, pois cada vez com mais freqüência "aquilo que a todos

pertence", isto é a esfera pública, passa a ser tratada como questão técnica, de

gerenciamento, de administração, isto é, passa a ser abordada com os inst~entos

próprios da esfera privada, da esfera "doméstica".

Evidentemente, se uma questão é considerada técnica, as soluções para ela

também serão técnicas. Entretanto, o que essa opção esconde é que a "luta pela I

I

definição legítima é uma luta pelo poder de di-visão do mundo social" (Pierre

Bourdieu 10). Isto é, quando tentamos criar uma definição legítima, estamos querendo

que essa definição seja conhecida e reconhecida como a mais exata, a melhor, a

verdadeira.

Porém, muitas vezes se esquece que toda "nomeação legítima" é produto da

visão de mundo do seu autor. Esse "esquecimento" é chamado de manipulação I

simbólica, procedimento a partir do qual a luta pelas classificações transforma-se numa

luta pelo monopólio do fazer ver e fazer crer.

Este ato, que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem fo~ça de I

lei, é um ato simbólico que produz a existência de aquilo que enuncia. Portanto, as

classificações, apoiam-se em características que nada tem de natural, pois são o produto I

da relação de forças no campo das lutas pela delimitação e nomeação legítima. Em

outras palavras, toda nomeação reconhecida institui uma realidade, e portanto a

realidade é socialmente construída.

10 P. Bourdieu, Coisas Ditas, Brasiliense, São Paulo, 1990.

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A força real dos discursos ou das retóricas não é proporcional ao seu valor de

verdade; por tanto, a única alternativa é "objetivar a ambição de objetivar"11, pois, quem

tem mais poder simbólico é capaz de conservar ou transformar as di-visões do mundo

social, é capaz de instituir conceitos legítimos, é capaz de fazer coisas com palavras.

CBH's: Dinâmica, sistemática de funcionamento e conceitualização

Com base nos conceitos apresentados no item anterior, podemos afirmar :que, a

conceitualização dos CBH dependerá, em grande parte três aspectos relevantes:

(a) a capacidade de identificação de "interesses comuns" associados com a

problemática dos CBH' s, enquanto instituições;

I

I

(b) o poder dos CBH's de conservar ou de transformar as di-visões do mundo

social, isto é, a capacidade que os mesmos têm de elaborar e transmitir

enunciados socialmente válidos;

(c) a forma e condições de como os CBH' s se tnserem na dinâmica entre

regulação por parte do Estado e fiscalização por parte da sociedade.

Iniciemos a discussão com a análise das formas mais freqüentes de identificação

do "interesse público" no gerenciamento ou gestão das águas.

A primeira alternativa, é a hipótese da filiação (da participação no nível mais

elementar, do "fazer parte"), com seus desdobramentos: a existência de interesses

privados ou particulares (os dos usuários) e a tensão entre uma instância colegiada, com

limitado poder decisório e uma instância estatal executiva, encarregada de promover o

"disciplinamento legal" dos usos das águas estaduais ou federais.

Esta hipótese de filiação é a mais comum das interpretações em relação aos

CBH' s. A abordagem, um tanto imediatista, decorrente do fato de existir, quase sempre,

11 P. Bourdieu, Coisas Ditas, Brasiliense, São Paulo, 1990.

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uma certa homogeneidade de interesses privados em grande parte das bacias e do fato

de subjazer, na imensa maioria da população, um certo apego ripariano.

Surgem assim manifestações associativas, muitas vezes carregadas de

regionalismo, que tratam o recurso hídrico como um bem que podemos definir como de

caráter local e que, mesmo não contrariando o caráter publico do mesmo, no imaginário

coletivo, ele torna-se propriedade exclusiva dos que moram na bacia.

Atribuímos esse tipo de associação, em grande parte, à crises de representação

dessas parcelas de sociedade em relação aos aparelhos do Estado, sejam estas niais o I

menos passageiras.

Para entender melhor isto, vejamos como e quais relações se estabelecem entre

sociedade e Estado, através das diferentes instâncias de representação.

Com a Modernidade, o homem deixa de ser o centro do universo, e ,quem I

ocupará esse lugar é o Estado. Como? Através de um conjunto de instituições, ocupada

por pessoas habilitadas para deliberar sobre os assuntos públicos, em nome daqueles a

quem se lhes outorga a capacidade de "delegar o poder" ("o poder surge do povo").

A representação combina o princípio de soberania do povo, as liberdades

fundamentais dos cidadãos e a formação de órgãos ou instituições nas quais se delega a

autoridade pública. Porém, o que está em jogo na hipótese do pacto social é, pbr um

lado, a legitimidade absoluta do mediador (o Estado), e por outro, a suposta presença de

uma instância geradora da "unidade social".

A eficácia da representação encontra-se vinculada ao reconhecimento das

liberdades políticas e civis que colocam de manifesto a diversidade do social, em I

instâncias muito específicas. Portanto, a representação não é somente um instrumento

usado no sistema democrático (delegação do poder cidadão na figura de um

representante), ela é utilizada, também, como expressão simbólica da geração do

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consenso num espaço que teria como fim a identificação do "interesse geral" dentre os

interesses particulares.

Assim, na verdade, os representantes não obtêm unicamente poder pela

delegação ou mandato, mas também por ocuparem um lugar de visibilidade que os

habilita, se necessário, a opor-se à opinião de quem lhe dera o mandato.

Deveremos admitir que o espaço público, espaço que supõe o livre trânsito das

informações e admite a confrontação de opiniões, está de mãos dadas com os órgãos

que têm os meios mais apropriados para atingir o maior número de pessoas e formar a

opinião delas. Por isto, autores como Claude Lefort12 prefiram utilizar a expressão I

"Estado Social", no lugar da expressão "Sociedade Civil", mais conhecida, mais

cômoda, porém menos explicativa.

Neste sentido, podemos afirmar que as iniciativas coletivas (e os CBH' s se

constituem numa delas) adquirem sentido quando passam a ser sustentadas por uma

rede de associações na qual os diferentes grupos manifestam seus interesses ~ suas I

aspirações, tomam consciência da sua força e da sua real possibilidade de influir nas

decisões tomadas pelo poder público.

Estas formas de organização não deixam de ser entidades representativas,

mesmo que a sua "representação" jogue um papel importante somente durante um curto

período (durante a defesa de interesses locais, durante períodos de escassez hídrica ou

quando o poder público faz intervenções que afetam o poder local, por exemplo). 1

É necessário, assim, destacar que a representação institucionalizada não se

limita á delegação política através do voto; existe, de fato, um conjunto de fonrlas de

representação nas quais a informação circula, nas quais podem-se expressar as

diferentes opiniões e interesses setoriais.

12 Lefort, C; Democracia y representación, In La sociedad contra la política, Colección Piedra Libre, Nordan Comunidad, Montevideo, 1993.

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Nesta perspectiva, os CBH' s teriam como principal função a de dar

sustentabilidade ao espaço social, facilitando a modificação dos pontos de vista,

fazendo-se reconhecer pelo poder público e legitimando, ante a "opinião pública",

novos direitos.

De aí a importância de entender melhor o conceito de "participação". Não nos

referimos aqui à tão difundida dicotomia entre "democracia representativa" e

"democracia participativa", mas num nível mais elementar, destacamos que a

participação é, em primeira instância, o resultado da "filiação", do "sentir-se parte", "do

ter direito a ter direitos", como expressa C. Lefort, citando à H. Arendt.

Assim, com a hipótese da filiação no âmbito dos CBH, enfatizamos que a tensão

entre uma instância colegiada, com limitado poder decisório, e uma instância ~tatal

executiva, encarregada de promover o "disciplinamento legal" dos usos das águas

estaduais ou federais, é o resultado de uma interpretação que podemos considerar

simplista da "participação".

Em outras palavras, a ação coletiva não supõe a participação ativa de toda a

comunidade (modelo da democracia direta), mas a faculdade de avaliar o sentido da

ação daqueles que sim participam efetivamente da tomada de decisões.

Neste sentido, acreditamos que a participação no âmbito dos CBH' s de~e ser

entendida como a capacidade de antecipar estratégias diferenciadas, adquirir a

capacidade de avaliar o sentido da ação daqueles que detêm temporariamente o "poder

público", de avaliar o papel dos diferentes agentes políticos, e desta maneira, ter o

direito à intervir num processo político que desborda as margem do Estado.

Não estamos defendendo a participação direta, em detrimento da representação

política institucionalizada; um processo não se dá sem o outro. A ação coletiva

promovida por este tipo de participação, que reacende a discussão acerca da existência !

de uma esfera pública, onde são impossíveis os fenômenos de "desafiliação social",

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somente adquire um alcance mais geral st se articulam com as formas mais

institucionalizadas de representação.

Tampouco se trata de minimizar a função da representação política (associada I

diretamente ao funcionamento do Governo) em beneficio daqueles modos de

representação que surgem dentro da sociedade. Trata-se de explicitar as diferenças (e as

relações) entre poder político e Estado, pois é a representação democrática a qtie faz

com que o Estado não se feche sobre si mesmo e apareça como força onipotente, imune

às demandas sociais.

Nas democracias, o Estado encontra-se sujeito às demandas sociais, e em última

instância, está desposado de decisão política. Quem possui a decisão política é o I

Governo, instância transitória e dependente da adesão do povo.

O poder do Estado, a "grande máquina", coexiste com um sistema dinâmico que

supõe a reconstituição periódica dos órgãos de deliberação e de decisão pública; é o

governo, ao mesmo tempo, que impede que se abata sobre os homens uma potência

única capaz de decidir por todos, para constituir a Nação.

Infelizmente, na América Latina, é freqüente a confusão entre estas duas

instâncias, relacionadas, porém diferentes. Governo e Estado não são a mesma coisa. A

estratégia para fazer com que Estado e Governo "se pareçam" a ponto de pod~ ser

confundidos, baseia-se no desconhecimento da distinção entre Estado e Sociedade Civil.

Este desconhecimento acarreta, também, a confusão entre Estado e poder

político transitório (Governo). A partir de aí, é possível perverter toda e qualquer forma I

de representação social; pois todos as formas de representação social passam a ver -se

integradas em um único sistema de poder.

Esta questão da diferenciação entre Estado e Governo é chave para os CBH' s, I

entanto fica relativamente simples delimitar o relacionamento dos CBH' s em relação ao

Estado; isto é, em relação ao monopólio legítimo da força exercido pelo mesmo,! mas

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não resulta facilmente diferenciável a relação que deverá existir entre CBH' s e

Governo, entanto aludem a formas de representação em que podem coexistir

contradições.

Todo e qualquer esforço no sentido de explicitar claramente até onde chega o

Estado e o que se constitui como Governo (poder político transitório), contribui para a

constituição de CBH' s que não pervertam suas formas de representação, sendo po~sível

afirmar que em regiões onde Estado e Governo não sejam claramente diferenciáveis,

assistiremos à organização de CBH' s que pouco contribuirão no desenvolvimento da

sociedade civil, por ver-se integrados a um único sistema de poder.

Um tipo similar de perversão acontece com uma problemática supostamente i

oposta, a utilização dos CBH's como instrumentos de defesa I promoção dos direitos

dos indivíduos, ou seja de interesses privados. Isto acontece, na medida que a

representatividade social da instituição e a sua capacidade de se legitimar perante

instâncias de decisão do Estado vê-se claramente influenciada pela transformação dos

interesses privados em bem comum.

Esta problemática nos autoriza a enunciar a segunda hipótese, a hipótese da

legitimação dos CBH' s como instituições para - estatais ou como instituições onde o

Estado tem uma presença determinante.

Nesta segunda alternativa, a bacia hidrográfica, sua dinâmica e conceitualização

passam pelo paradigma do planejamento ("a bacia como unidade de planejamento'i). A

sistemática de funcionamento dos CBH's passa, assim, a ver-se definida pelas

"reivindicações" de determinados grupos de interesse, que "agem" antes que o Estado

formule uma sanção ou modifique uma legislação.

Este tipo de estratégia é a mais freqüentemente adotada pelos diferentes grupos I

de interesses presentes nos CBH' s: convoca-se a "opinião pública" para que esta se I

posicione (a favor ou contra) um determinado projeto.

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Infelizmente, quando examinam-se as lutas que mobilizam coletividades em

tomo a defesa de um "novo direito", vemos que a legitimação das reivindicações é i feita

através da estratégia de convocação da "opinião pública", como forma de transformar

interesses privados em interesse público. E como se não fosse "legítimo" def~nder

interesses privados em nome próprio, é como se fosse impossível difundir as

reivindicações de indivíduos e coletividades num espaço verdadeiramente público. Por

que? Porque, tais grupos de interesses (que são absolutamente legítimos) sempre

conseguiram ver suas reivindicações atendidas, quando invocaram ou reivindicaratÍl em

nome do "bem comum".

Sem sombra de dúvidas, isto é um signo inquietante da persistência de formas de

atuar antidemocráticas, pois são o resultado da transformação do privado em intetesse

público. Em outras palavras, ninguém está negando a defesa de interesses privados,

somente questionamos a sua defesa em nome do "bem comum". Isto nos leva a abordar

uma última problemática, o reconhecimento dos limites da democracia.

A democracia não oferece resposta para todos os problemas que a economia de

mercado coloca. Estimular essa onipotência da democracia cria expectativas

desmesuradas, e gera inúmeros problemas. Precisamos de outros instrumentos~ de

outros valores, de outras conceitualizações para explicarmos os problemas , que

decorrem da falta de gestão ou de planejamento.

Alguns economistas poderiam argumentar, a este respeito, que a autonomia

relativa da Sociedade Civil e a expansão das liberdades individuais estão em estreita

relação com um tipo específico de organização econômica, chamada capitalismo. E eles I

teriam razão, pois capitalismo e democracia estão historicamente ligados na nossa

experiência ocidental.

Porém, uma coisa é reconhecer esta afinidade, e outra, muito diferente, é I

acreditar que o real se reduz aos efeitos de determinadas leis econômicas ou que as I

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soluções para todos os problemas estão baseadas, exclusivamente, em "formulações

técnicas".

Parafraseando à Lefort, podemos dizer que, se a democracia tem a capacidade de

acolher o conflito e a divergência de interesses, somente ela tem a capacidade de nos dar

acesso ao real. Pese ao que passou-se a defender na última década, "o real não se reduz I

aos efeitos de presuntas leis econômicas, o acesso ao real supõe que tenha~os

permanentemente em conta aquilo que antes chamava-se de questão social" 13.

Conclusões

Para finalizar, pode-se dizer que a conceitualização dos CBH's, a partir da

perspectiva acima exposta, leva-nos à enfatizar a necessidade de:

(a) repensar uma sistemática de funcionamento dos CBH's, onde o interesse

público, o interesse privado, o Governo e o Estado não se confondam;

(b) redefinir os CBH' s ancorados num instância jurídica, mas que nem por isso

desconheça a "questão social"; para isto propomos a possibilidade de definir

o CBH como "pessoa jurídica de direito público com competência

territorial";

(c) lembrar que, nas nossas sociedades, a identificação plena entre Estado e

comunidade é tão problemática, como o é a separação total das duas

instâncias; a primeira gera um Estado totalitário, a segunda trás o risco da

dissolução do tecido social e a transformação do cidadão num "ser do

ressentimento" ou em um "ser da reivindicação".

A definição dos CBH' s como "pessoa jurídica de direito público com

competência territorial", permitiria repensar a regulação estatal, sem cair na armadilha

do paternalismo político ou do laissez-faire econômico.

13 Claude Lefort. p./47.

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Vejamos melhor a definição acima proposta. À diferença da formulação vigente

na maioria das legislações estaduais, onde os CBH' s são instituídos mediante um ato de

governo, a existência dos mesmos, enquanto pessoas jurídicas, passa a depender de

aspectos legais supra-governamentais, o que os afastaria das ingerências provenientes

do Governo.

Os CBH' s, porém, não somente se definem enquanto pessoa jurídica, eles se

cristalizam em instituições de direito público; isto é, eles assumem definitivamente um

compromisso, não com o Estado, mas sim entre si e com a Sociedade. Isto é, tudo aquilo

que o Estado lhes forneceu e/ou lhes fornece para sua consolidação institucional, deve

retomar, não ao Estado, mas sim à sociedade.

i

Finalmente, a competência territorial, consolidaria os CBH' s enquanto I

instrumentos de gestão e não enquanto espaço de negociação das compensações. Não se

trata de compensar "perdas", de ajustar "contas" entres usuários, empresas ou estados,

trata-se de fazer com que os CBH' s assumam um caráter mais permanente,

possibilitando a criação de uma verdadeira instância de regulação.

Neste sentido, a regulação não se confunde com uma simples maximização da

utilidade do recurso hídrico através da estratégia de transpor o comportamento racional

a escalas maiores que a dos indivíduos, pois, não acreditamos que o que resulta possivel I

para cada indivíduo em circunstâncias especiais, seja necessariamente possível para

todos os indivíduos nessas mesmas circunstâncias.

A regulação poderia, assim, ser entendida como "fiuto do ruído inesperado~ da

luta por novos direitos, conseqüência dos esforços contraditórios da maioria" 14. Esto

supõe reconhecer as dissonâncias, os interesses contraditórios sem os travestir em "bem

comum".

14 E Enriquez, Las Formas de Adhesión a/ Estado, In La sociedad contra la política, p. 165, PiJdra Libre, ediciones. I

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Se o Estado assumisse a possibilidade de desenvolver este tipo específico de

regulação (onde negociar não mais significa ceder ao poder do mais forte), ele deixaria

de ter que trabalhar insistentemente para que os cidadão adiram aos ideais que este

promulga. Eles adeririam espontaneamente.

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