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~~~IWaterR_e~ºll!'~~~-~~~oC!~ Association Intemationale des Ressources en Eau
Asociacion Internacional de Recursos Hidricos
As Esferas Púbica e Privada na Gestão dos Recursos Hídricos -
Comitê de Bacia Hidrográfica: Pacto Social, Instância Colegiada ou Pessoa
Jurídica de Direito Público?
Pedro Antônio Molinas1, Alejandra Silvia Bentolila1
Introdução
Nas décadas passadas, no Brasil e no mundo, o conhecimento relativo a gbstão
de recursos hídricos avançou de forma significativa. Podemos dizer hoje que existem
metodologias para abordar a grande maioria de problemas de natureza técnica I
susceptíveis de ocorrerem na gestão de uma determinada bacia.
Dois grandes temas, mesmo que equacionados, ainda exigem muito trabalho e
dedicação por parte dos responsáveis da gestão.
Trata-se, por um lado, da questão do monitoramento dos aspectos qualitativos da
água, por décadas relegado a um segundo plano, e que hoje representa um dos grandes
empecilhos na aplicação de metodologias de avaliação e gestão hídrica mais precisas e
sofisticadas. !
Por outro lado, a questão institucional, mesmo que relativamente bem definida I
da perspectiva jurídica, ainda exige grandes esforços de modo a atingir patamares I
mínimos de conhecimento aceitáveis e, em conseqüência, abordagens que contertt com
um amplo consenso dos especialistas.
1 Engenheiro em Recursos Hídricos, Msc., Consultor Independente, Av. Dom Luis 300- sala 707-Fortaleza- CE, fone/fax:+ 55.85.2649700- [email protected] 2 Dra. em Sociologia, Monsenhor Bruno 2320- 1801- Fortaleza- CE, fone: [email protected]
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Esta temática, de características eminentemente sociológicas, foge, em grande
parte, à tradicional formação dos profissionais que lidam com a gestão dos recursos
hídricos. Assim, o que se da em chamar "dimensão social" da gestão hídrica ainda
apresenta um desenvolvimento incipiente, com escassas experiências que o abordem no
país e, com quase nenhuma conceitualização teórica a respeito.
O presente trabalho pretende contribuir para uma melhor caracterização da
dimensão social da gestão de recursos hídricos, particularmente, abordando questões
relativas à compreensão e os alcances das esferas pública e privada, analisadas no
contexto dos Comitês de Bacia Hidrográfica.
Nós, profissionais da área de gestão de recursos hídricos, geralqtente
identificamos os Comitês de Bacia hidrográfica (CBH's) como um "instrumenio de !
gestão", isto é, como instância colegiada capaz de gerar consenso, mitigar conflitos e
intervir na identificação do "interesse público".
Isto significa admitir a existência de "interesses particulares ou privados". Por
outro lado, a identificação do interesse público significa admitir diferentes alternativas
para a resolução dos "problemas sociais" e, também, diferentes formas de representação I
ou de delegação do poder decisório. I
!
Assim, a reflexão sobre a gestão dos recursos hídricos e, particularmente, o
papel que desempenham I desempenharão os CBH' s (instituições que podemos
considerar paradigmática no modelo de gestão de recursos hídricos adotado no Brasil),
leva-nos a analisar as relações entre as esferas pública e privada e seus possíveis
conflitos. Neste contexto, o presente trabalho tem os seguintes objetivos:
(a) repensar a construção das esferas pública, privada e social, delimitando as
fronteiras e as relações entre Estado e Governo para, finalmente, abordar a
questão que nos preocupa: a regulação e controle por parte do Estado da esfera
pública e a fiscalização do Estado por parte da Sociedade;
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(b) relacionar esse conceitos com a dinâmica e constituição dos CBH' s, sua
sistemática de funcionamento e a sua conceitualização.
O público, o privado e o social3
H. Arendt, autora do livro "La Condición Humana" (1974), desenvolve: com
extrema lucidez a conceitualização das três grandes esferas do que ela denominJ Vila I
Activa4. Partindo da definição aristotélica do homem como zõon politikon, a filósofa
I
alemã, reconhece que as atividades humanas estão condicionadas pelo fato dos homens I
viverem juntos; assim, Arendt afirma que o homem que trabalhar, fabricar e construir
um mundo unicamente habitado por ele, seguiria sendo um animal laborans, mas teria
perdido sua "condição humana". Em outras palavras, o que Arendt define como "ação"
(entendida como tipo específico de atividade humana) é a única atividade que não pode
nem sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.
Para Arendt, a "ação" é um tipo especial de atividade, pois é a única atividade
que somente pode ser realizada por homens juntos; em outras palavras, somente esta
"ação11 é prerrogativa humana e somente esta depende da presença dos demais.
Neste sentido, a organização política não é somente diferente, mas opõ~-se à
associação natural, cujo centro para os gregos era a família. Assim, a organJação
familiar, o mundo das necessidades e da esfera privada, opõem-se, na persp~ctiva :
aristotélica, à organização política, ao mundo das liberdades: a esfera pública.
Ser político, na experiência da polis grega, significava que todo podia se~ dito,
que dentro dela não existia lugar para a força ou a violência, pois, era uma experiência
3 Este item nada mais é do que um resumo da nossa interpretação do capítulo 11. do livro "La Condición Humana" de H. Arendt, Ediciones Paidós, Barcelona, 1993. Todo é qualquer erro de interpretação a nos
I
~~ .
4 A saber a esfera do público, do privado e do social
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entre iguais5. Para o modo de pensar grego, mandar, no lugar de persuadir, era uma
forma pré-política para tratar com pessoas cuja existência estava ao margem da polis.
A tradução latina do zõom politikon aristotélico por animal social - "o homem é
um animal social", é produto da interpretação de Santo Tomás, que revela até que ponto
tinha se perdido o conceito grego de política (que dizia respeito à polís, ao discurso, aos
iguais) durante a Idade Média. \ 'I
I
Ao comparar o governo familiar com o governo político, Santo Tomás faz uma I
operação que nenhum grego faria; para um grego, o poder do paterjamilias ou dominus
absoluto e a esfera propriamente política excluíam-se mutuamente.
A identificação errônea das esferas social e política é tão antiga como a
adaptação das expressões gregas ao pensamento cristão, mas a confusão toma-se, ainda
maior, quando a sua interpretação depende dos conceitos modernos de público e
privado.
A distinção entre a esfera privada e pública corresponde ao que os gregos
chamavam de familiar e político~ a aparição da esfera social, que não é nem pública,
nem privada, se dá com a chegada da Idade Moderna, especificamente, com o
surgimento da nação- estado.
A nítida divisão que os gregos faziam entre a esfera pública (polis = atividades
relacionadas com um mundo comum) e a esfera privada (família = atividades I
relacionadas à conservação da vida), tem-se apagado por completo na experiência I
' moderna; é muito comum, infelizmente, ver que as comunidades políticas são I
governadas como se fossem "grandes famílias", cujos assuntos cotidianos são tratados
por uma "gigantesca administração doméstica de alcance nacional".
5 Lembre-se que no domínio da po/is, quedam excluidos, os escravos e as mulheres, que não formavam parte do público e sim do mundo das necessidades.
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A responsabilidade coletiva da "coisa pública", por vezes encontr~-se !
"delegada" a um "paterfamilias", cujo domínio absoluto, coloca "aquilo a que todos I
pertence" como sendo resultado de um "pacto" que negligencia o complexo processo de
geração do consenso, transformando a consensualidade na mais tola unanimidade. 1
I O pensamento científico que corresponde a este tipo de interpretação não é
"político", mas "econômico"; trata-se de uma "economia social" que indica hma I
administração doméstica coletiva. Neste sentido, o conjunto de fatriílias !
economicamente organizadas que hoje chamamos de SOCIEDADE, e que tem na
Nação sua forma política de organização, é produto de uma expressão que os ~gos I
considerariam uma brutal contradição: o que hoje chamamos de SOCIEDAIJE é
produto da "economia politica'', uma contradição de termos, do ponto de vi4 dos
antigos, pois qualquer coisa que fosse econômica (do mundo das necessidades) era por i
definição um assunto familiar (doméstico), e por tanto não - político.
I
Assim, se a comunidade natural da família nascia da necessidade, a comunidade I
política da polis nascia da esfera da liberdade. A política na Antigüidade jamais I seria
um meio destinado a proteger à sociedade, sejam eles os proprietários (como pensava
Locke), ou sejam eles os produtores (como pensava Marx). , i
I
I
Na Antigüidade, a força ou a violência somente se justificavam na esfera pfvada
ou doméstica, pois era o único meio de dominar a necessidade; ao contrario, a pamir do
surgimento da nação- estado, o monopólio legal da força passa a ser exercidJ pelo
I Estado.
1 o pensamento político que nos rege desde o século xvn (só pode o homem I
escapar da violência mediante o estabelecimento de um governo), considera a "alte de
governar" como forma de trazer justiça; ao contrário, a igualdade da polis, loJge de I
estar relacionada como esta idéia de justiça, era a própria essência da LffiERDADE.
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No mundo moderno, as esferas social e política estão muito menos I
diferenciadas; a administração doméstica a nível nacional, toma 11desnecessáribn ou !
prescindível o mundo das liberdades.
Trás a caída do Império Romano, se nos ofereceu (e aceitamos) um subst~tuto à
cidadania; o conceito medieval de "bem comum" , longe de demarcar a existênbia de
uma esfera política, somente irá a reconhecer que "os indivíduos particulare~ têm
· d d , · I , · Interesses em comum, e que somente po em conservar e aten er o seu propno negocto,
se um deles toma para si a tarefa de cuidar deste interesse comum" 6.
O 0 d ,C. • d d 0 1 A 1. d cresctmento a estera pnva a, o auge o socta e a emergeneta a
SOCIEDADE, são os traços característicos da nossa modernidade. O au~e da
administração doméstica a nível nacional- o social- não somente apaga a fronteirJ entre I
o privado e o político (uma contradição para os gregos), mas também fez corrt que
chamemos de privada à esfera da intimidade, praticamente desconhecida antes da! Idade I
Média. '
Na Antigüidade, enfatizava-se o traço privativo do privado, literalmente
significava ver-se desprovido de alguma coisa; hoje, a esfera privada opões-se bl.nto a I
esfera social (desconhecida para os antigos), como a esfera política. O privado motlemo,
não mais se refere ao mundo das privações e sim à proteção da privacidade (do ín~imo), e, como tal, opõe-se não a esfera política, e sim à esfera social.
O grande defensor do privado, no sentido de íntimo, foi J.J. Rousseau7, qÓe não
I
lutou contra a opressão do Estado e sim contra a opressão da Sociedade para com o I
Indivíduo. Assim, não seria de grande importância que uma nação seja formada por I
iguais ou desiguais, pois a sociedade sempre exigiria que seus membros atuem c9mo si !
todos fossem da mesma grande família, com um único interesse e uma única opinião.
6 H Arendt, La Condición Humana. pág. 46. Paidós, Barcelona, 1993. 7 J.J. Rousseau. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político (1757}, Coleção os Pensado es, Volume I, Nova Cultural, São Paulo, 1999.
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A este respeito é interessante demarcar a coincidência entre o auge da sociedade
e a decadência da família; tudo parece indicar que o que aconteceu foi a absorção da
unidade familiar nos grupos sociais. O surgimento da burocracia, como última e melhor
desenvolvida etapa de governo numa nação-estado, é o governo de ninguém, sem
necessariamente ser um não- governo.
Assim, a economia somente conseguiu adquirir caráter científico quando os
homens se transformaram em seres sociais; por isso, dar como certo que existe um
interesse comum da sociedade como um todo, somente pode ser considerado peça de
ficção.
Por outro lado, a esfera pública moderna , aquilo que se relaciona com o cdmum,
diz respeito a tudo aquilo que pode ser visto e ouvido por todos, por tanto diz relspeito I
I
ao comunicável. O termo público, significa ao mesmo tempo, o "próprio mundo, I
enquanto é comum a todos"; relaciona-se, assim, com aquilo que é fabricadb por I
homens que habitam juntos o mundo.
A esfera pública nos iguala nas nossas diferenças, ou como afirma Arendt "nos
junta e, não obstante, impede que caiamos um acima do outro". A esfera pública
depende assim da permanência, não é possível construir uma esfera pública para uma
única geração, por exemplo. Porque a diferença do "bem comum", o mundo comum
transcende nosso tempo vital, tanto para o passado como para o futuro; ela esta ai antes
de nos chegarmos e a nós sobreviverá.
Como afirma Arendt, "é o que temos em comum não só com nossos
contemporâneos, mas com quem antes esteve e com quem ainda não está". Neste
sentido, a publicidade ou publicização é condição imprescindível para assegurar a
sobrevivência da esfera pública.
A realidade da esfera pública radica na simultânea presença de inumeráveis
perspectivas e aspectos nos quais o mundo comum se apresenta (H. Arendt). Assibt, ser I,
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visto e ouvido por todos, não se opõe ao fato de que todos vêem e ouvem desde uma
posição diferente.
Em outras palavras, a esfera pública não está garantida pela "natureza comum
entre os homens", mas diz respeito ao fato de que, a pesar das diferenças de posição,
todos os homens estão interessados por um mesmo objeto.
Ao contrário, viver uma vida completamente privada significa estar privado da
realidade que se constitui quando se é visto e ouvido por todos; o homem privado não
aparece e qualquer coisa que realize carece de significado para os outros.
i
A relação entre o público e o privado, mal se compreende hoje em dia, pelo
equacionamento errado entre propriedade e riqueza, e o seu inverso, carência de I
propriedade e pobreza.
Nas suas origens, possuir uma propriedade significava ter "seu próprio lugar em
alguma parte concreta do mundo", e assim, pertencer ao corpo político. É assim que, a
expulsão de um cidadão podia significar não somente a confiscação da sua propriedade,
como a destruição da mesma.
O significado político da riqueza privada, diz respeito a ter assegurados os meios
para a subsistência, condição necessária para ser admitido na esfera pública, pois
garantia a dedicação à atitude pública. "Entrar no mundo que todos temos em comum"
significou também a politização da propriedade privada; com o nascimento da cidade -
estado, quem dava prioridade a ampliação da propriedade em detrimento à possibilidade
de ingressar na vida da polis, era considerado um "servo da necessidade", "um e~cravo
por sua própria vontade".
Assim, a propriedade privada é muito mais que "riqueza individualmente
possuída" e compreende-se, assim, a dificuldade que hoje temos em ter uma esfera
pública verdadeiramente livre sem um adequado estabelecimento do privado, enquanto
esfera do doméstico, da satisfação das necessidades para a subsistência.
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Constata-se que aquilo que antes foi chamado de "auge do social", coincide com
a transformação do interesse privado em interesse público; isto é, o social adota o I
disfarce de "uma organização de proprietários que, no lugar de exigir o acesso à ~sfera
pública devido a sua riqueza, pede proteção para acumular mais riqueza" (H. Arendt).
A diferença que existe entre o "mundo em comum" e a "riqueza em comu~"8 é I
que a última sempre será alguma coisa para ser usada e consumida, enquanto que a
esfera pública ou o mundo em comum é aquilo que necessariamente transcende as I
margens de uma vida individual.
A "riqueza em comum" jamais poderá ser comum no mesmo sentido em que
falamos de um "mundo comum", mas a contradição que existe no moderno conc~ito de I
governo, onde o único que o povo tem em comum são seus interesses privados, indica
claramente que a esfera pública converteu-se em uma função da esfera privada, elque a
esfera privada, transformada em intimidade não protegida, passou a ser o único interesse
em comum, e transformou-se na esfera social.
A absorção da esfera privada e da esfera pública pela esfera social, fez com que
elas perdessem as suas respectivas características: aquilo que deve permanecer seguro e
oculto do mundo comum e aquilo que necessita mostrar-se ou exibir-se publicJmente
para que possa existir.
Estado e Governo; construção do consenso e mitigação dos conflitos
Se admitimos os CBH' s, enquanto "instrumento de gestão" ou in$tância
colegiada capaz de gerar consenso e mitigar conflitos, toma-se necessário repe~sar as
fronteiras e as relações entre Estado e Governo, para abordar com mais precisão a
dinâmica entre regulação por parte do Estado e fiscalização por parte da sociedad~.
8 Note-se a diferença entre riqueza e capital; unicamente quando a riqueza se transforma em !capital, quando a sua função é a produção de mais capital é que a propriedade privada se aproxima 1 aquela permanência inerente ao mundo comum. ·
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A única instituição capaz de reproduzir normas de comportamento, reproduzir
valores e transmiti-los com eficiência a todos os indivíduos é o Estado. O Estado não
somente educa, protege, da assistência aos seus cidadãos, mas assegura uma mínima
coesão social.
Max Weber9, define o Estado como o "conjunto de instituições que compõem e
exercem o poder político numa sociedade territorial mente definida". Por sua definição,
entende-se que o Estado detém o monopólio legal da força (poder de polícia), seja a
força armada ou seja a força coercitiva legal, através dos órgão da sua administração.
I
Porém, é necessário fazer uma diferenciação importante. Estado não é sinônimo
de Governo. A palavra Estado significa, etimologicamente, "aquilo que é fixo", portanto
traz consigo a idéia de permanência, característica que o Estado compartilha com a
esfera pública.
Assim como a esfera social, o Estado enquanto organização do poder, surge da
necessidade de administrar o conjunto das atividades dos cidadãos e confirmar seu
domínio sobre estes últimos. E aqui, surge uma distinção importante; quando se fala do
Estado, a partir da ótica de M. Weber, não podemos esquecer que ele diferenciava o
poder enquanto domínio, ou a possibilidade de exercer a própria vontade sobre a
vontade dos outros, e o poder enquanto força coercitiva legítima, ou a possibilidade de
ser obedecido.
Neste sentido, a utilização do conhecimento para administrar coisas e controlar o
d . I' fi I .. comportamento as pessoas, tmp tca, ao mesmo tempo, azer com que os atores soctats
sejam capazes de identificar-se uns com os outros, com uma ideologia, com uma forma
de sociedade. Isto é, sem um mínimo de consenso nenhum Estado - Nação pode
instaurar-se e perdurar.
9 M. Weber, Economia e Sociedad, FCE, México, 1964.
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O Estado moderno exige, de cada um dos que a ele recorrem, a adesão aos ideais
que ele promulga; isto é, para pertencer e ser reconhecido pelo Estado, este exige que
cada um de nós, renuncie a uma parte dos nossos desejos individuais, considerados não
socializáveis.
O conceito de Estado traz consigo a idéia de permanência e de unidade face ao
conceito de sociedade, o conceito de Governo traz consigo a idéia de diversidade e
mudança. O Estado é a entidade permanente que garante as regras do jogo para que a
sociedade, que é naturalmente portadora de turbulência e interesses diferenciados,
mantenha um mínimo de interesse no mundo em comum.
Para gerar esse consenso o Estado utiliza instituições e instâncias que facilitam a
adesão das pessoas aos ideais que ele promulga; isto é, para administrar a tensão • entre
seus cidadãos, que naturalmente tem interesses diferentes e às vezes contraditórios,
escolhe uma determinada configuração de valores, que passam a ser reconhecidos como
"bem comum".
Para manter o controle desse espaço "público", transformado em espaço social, o
Estado tem que ser reconhecido como "mediador'', tendo, assim, a "responsabili~ade"
de evitar conflitos maiores e garantir direitos a todos e, no melhor dos casos, um direito
em comum (o direito a ter direitos).
Observe-se que, embora a criação do Estado responda à defesa dos interesses
privados, a mesma terminou beneficiando à esfera pública, àquilo que nos iguala na I
diversidade.
Na negociação para consolidar o controle da "coisa pública", instauram+se as
"garantias" oferecida pelo Estado, sob a forma de direitos de cidadania; o Estado passa
assim a ser reconhecido como "mediador'' dos conflitos sociais.
Analisar as relações entre Estado e Sociedade a partir de configurações concretas
e situações histórico- políticas específicas, abre a possibilidade de extrapolar o do~ínio I
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do "bem comum" para atingir a verdadeira esfera pública, onde já não seja possível
ignorar o fosso que existe entre a legalidade e os códigos de conduta que de fato
vigoram.
I
Para isto, é preciso repensar as lutas em tomo da distribuição desigual de
recursos materiais e simbólicos, pois cada vez com mais freqüência "aquilo que a todos
pertence", isto é a esfera pública, passa a ser tratada como questão técnica, de
gerenciamento, de administração, isto é, passa a ser abordada com os inst~entos
próprios da esfera privada, da esfera "doméstica".
Evidentemente, se uma questão é considerada técnica, as soluções para ela
também serão técnicas. Entretanto, o que essa opção esconde é que a "luta pela I
I
definição legítima é uma luta pelo poder de di-visão do mundo social" (Pierre
Bourdieu 10). Isto é, quando tentamos criar uma definição legítima, estamos querendo
que essa definição seja conhecida e reconhecida como a mais exata, a melhor, a
verdadeira.
Porém, muitas vezes se esquece que toda "nomeação legítima" é produto da
visão de mundo do seu autor. Esse "esquecimento" é chamado de manipulação I
simbólica, procedimento a partir do qual a luta pelas classificações transforma-se numa
luta pelo monopólio do fazer ver e fazer crer.
Este ato, que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem fo~ça de I
lei, é um ato simbólico que produz a existência de aquilo que enuncia. Portanto, as
classificações, apoiam-se em características que nada tem de natural, pois são o produto I
da relação de forças no campo das lutas pela delimitação e nomeação legítima. Em
outras palavras, toda nomeação reconhecida institui uma realidade, e portanto a
realidade é socialmente construída.
10 P. Bourdieu, Coisas Ditas, Brasiliense, São Paulo, 1990.
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A força real dos discursos ou das retóricas não é proporcional ao seu valor de
verdade; por tanto, a única alternativa é "objetivar a ambição de objetivar"11, pois, quem
tem mais poder simbólico é capaz de conservar ou transformar as di-visões do mundo
social, é capaz de instituir conceitos legítimos, é capaz de fazer coisas com palavras.
CBH's: Dinâmica, sistemática de funcionamento e conceitualização
Com base nos conceitos apresentados no item anterior, podemos afirmar :que, a
conceitualização dos CBH dependerá, em grande parte três aspectos relevantes:
(a) a capacidade de identificação de "interesses comuns" associados com a
problemática dos CBH' s, enquanto instituições;
I
I
(b) o poder dos CBH's de conservar ou de transformar as di-visões do mundo
social, isto é, a capacidade que os mesmos têm de elaborar e transmitir
enunciados socialmente válidos;
(c) a forma e condições de como os CBH' s se tnserem na dinâmica entre
regulação por parte do Estado e fiscalização por parte da sociedade.
Iniciemos a discussão com a análise das formas mais freqüentes de identificação
do "interesse público" no gerenciamento ou gestão das águas.
A primeira alternativa, é a hipótese da filiação (da participação no nível mais
elementar, do "fazer parte"), com seus desdobramentos: a existência de interesses
privados ou particulares (os dos usuários) e a tensão entre uma instância colegiada, com
limitado poder decisório e uma instância estatal executiva, encarregada de promover o
"disciplinamento legal" dos usos das águas estaduais ou federais.
Esta hipótese de filiação é a mais comum das interpretações em relação aos
CBH' s. A abordagem, um tanto imediatista, decorrente do fato de existir, quase sempre,
11 P. Bourdieu, Coisas Ditas, Brasiliense, São Paulo, 1990.
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uma certa homogeneidade de interesses privados em grande parte das bacias e do fato
de subjazer, na imensa maioria da população, um certo apego ripariano.
Surgem assim manifestações associativas, muitas vezes carregadas de
regionalismo, que tratam o recurso hídrico como um bem que podemos definir como de
caráter local e que, mesmo não contrariando o caráter publico do mesmo, no imaginário
coletivo, ele torna-se propriedade exclusiva dos que moram na bacia.
Atribuímos esse tipo de associação, em grande parte, à crises de representação
dessas parcelas de sociedade em relação aos aparelhos do Estado, sejam estas niais o I
menos passageiras.
Para entender melhor isto, vejamos como e quais relações se estabelecem entre
sociedade e Estado, através das diferentes instâncias de representação.
Com a Modernidade, o homem deixa de ser o centro do universo, e ,quem I
ocupará esse lugar é o Estado. Como? Através de um conjunto de instituições, ocupada
por pessoas habilitadas para deliberar sobre os assuntos públicos, em nome daqueles a
quem se lhes outorga a capacidade de "delegar o poder" ("o poder surge do povo").
A representação combina o princípio de soberania do povo, as liberdades
fundamentais dos cidadãos e a formação de órgãos ou instituições nas quais se delega a
autoridade pública. Porém, o que está em jogo na hipótese do pacto social é, pbr um
lado, a legitimidade absoluta do mediador (o Estado), e por outro, a suposta presença de
uma instância geradora da "unidade social".
A eficácia da representação encontra-se vinculada ao reconhecimento das
liberdades políticas e civis que colocam de manifesto a diversidade do social, em I
instâncias muito específicas. Portanto, a representação não é somente um instrumento
usado no sistema democrático (delegação do poder cidadão na figura de um
representante), ela é utilizada, também, como expressão simbólica da geração do
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consenso num espaço que teria como fim a identificação do "interesse geral" dentre os
interesses particulares.
Assim, na verdade, os representantes não obtêm unicamente poder pela
delegação ou mandato, mas também por ocuparem um lugar de visibilidade que os
habilita, se necessário, a opor-se à opinião de quem lhe dera o mandato.
Deveremos admitir que o espaço público, espaço que supõe o livre trânsito das
informações e admite a confrontação de opiniões, está de mãos dadas com os órgãos
que têm os meios mais apropriados para atingir o maior número de pessoas e formar a
opinião delas. Por isto, autores como Claude Lefort12 prefiram utilizar a expressão I
"Estado Social", no lugar da expressão "Sociedade Civil", mais conhecida, mais
cômoda, porém menos explicativa.
Neste sentido, podemos afirmar que as iniciativas coletivas (e os CBH' s se
constituem numa delas) adquirem sentido quando passam a ser sustentadas por uma
rede de associações na qual os diferentes grupos manifestam seus interesses ~ suas I
aspirações, tomam consciência da sua força e da sua real possibilidade de influir nas
decisões tomadas pelo poder público.
Estas formas de organização não deixam de ser entidades representativas,
mesmo que a sua "representação" jogue um papel importante somente durante um curto
período (durante a defesa de interesses locais, durante períodos de escassez hídrica ou
quando o poder público faz intervenções que afetam o poder local, por exemplo). 1
É necessário, assim, destacar que a representação institucionalizada não se
limita á delegação política através do voto; existe, de fato, um conjunto de fonrlas de
representação nas quais a informação circula, nas quais podem-se expressar as
diferentes opiniões e interesses setoriais.
12 Lefort, C; Democracia y representación, In La sociedad contra la política, Colección Piedra Libre, Nordan Comunidad, Montevideo, 1993.
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Nesta perspectiva, os CBH' s teriam como principal função a de dar
sustentabilidade ao espaço social, facilitando a modificação dos pontos de vista,
fazendo-se reconhecer pelo poder público e legitimando, ante a "opinião pública",
novos direitos.
De aí a importância de entender melhor o conceito de "participação". Não nos
referimos aqui à tão difundida dicotomia entre "democracia representativa" e
"democracia participativa", mas num nível mais elementar, destacamos que a
participação é, em primeira instância, o resultado da "filiação", do "sentir-se parte", "do
ter direito a ter direitos", como expressa C. Lefort, citando à H. Arendt.
Assim, com a hipótese da filiação no âmbito dos CBH, enfatizamos que a tensão
entre uma instância colegiada, com limitado poder decisório, e uma instância ~tatal
executiva, encarregada de promover o "disciplinamento legal" dos usos das águas
estaduais ou federais, é o resultado de uma interpretação que podemos considerar
simplista da "participação".
Em outras palavras, a ação coletiva não supõe a participação ativa de toda a
comunidade (modelo da democracia direta), mas a faculdade de avaliar o sentido da
ação daqueles que sim participam efetivamente da tomada de decisões.
Neste sentido, acreditamos que a participação no âmbito dos CBH' s de~e ser
entendida como a capacidade de antecipar estratégias diferenciadas, adquirir a
capacidade de avaliar o sentido da ação daqueles que detêm temporariamente o "poder
público", de avaliar o papel dos diferentes agentes políticos, e desta maneira, ter o
direito à intervir num processo político que desborda as margem do Estado.
Não estamos defendendo a participação direta, em detrimento da representação
política institucionalizada; um processo não se dá sem o outro. A ação coletiva
promovida por este tipo de participação, que reacende a discussão acerca da existência !
de uma esfera pública, onde são impossíveis os fenômenos de "desafiliação social",
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somente adquire um alcance mais geral st se articulam com as formas mais
institucionalizadas de representação.
Tampouco se trata de minimizar a função da representação política (associada I
diretamente ao funcionamento do Governo) em beneficio daqueles modos de
representação que surgem dentro da sociedade. Trata-se de explicitar as diferenças (e as
relações) entre poder político e Estado, pois é a representação democrática a qtie faz
com que o Estado não se feche sobre si mesmo e apareça como força onipotente, imune
às demandas sociais.
Nas democracias, o Estado encontra-se sujeito às demandas sociais, e em última
instância, está desposado de decisão política. Quem possui a decisão política é o I
Governo, instância transitória e dependente da adesão do povo.
O poder do Estado, a "grande máquina", coexiste com um sistema dinâmico que
supõe a reconstituição periódica dos órgãos de deliberação e de decisão pública; é o
governo, ao mesmo tempo, que impede que se abata sobre os homens uma potência
única capaz de decidir por todos, para constituir a Nação.
Infelizmente, na América Latina, é freqüente a confusão entre estas duas
instâncias, relacionadas, porém diferentes. Governo e Estado não são a mesma coisa. A
estratégia para fazer com que Estado e Governo "se pareçam" a ponto de pod~ ser
confundidos, baseia-se no desconhecimento da distinção entre Estado e Sociedade Civil.
Este desconhecimento acarreta, também, a confusão entre Estado e poder
político transitório (Governo). A partir de aí, é possível perverter toda e qualquer forma I
de representação social; pois todos as formas de representação social passam a ver -se
integradas em um único sistema de poder.
Esta questão da diferenciação entre Estado e Governo é chave para os CBH' s, I
entanto fica relativamente simples delimitar o relacionamento dos CBH' s em relação ao
Estado; isto é, em relação ao monopólio legítimo da força exercido pelo mesmo,! mas
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não resulta facilmente diferenciável a relação que deverá existir entre CBH' s e
Governo, entanto aludem a formas de representação em que podem coexistir
contradições.
Todo e qualquer esforço no sentido de explicitar claramente até onde chega o
Estado e o que se constitui como Governo (poder político transitório), contribui para a
constituição de CBH' s que não pervertam suas formas de representação, sendo po~sível
afirmar que em regiões onde Estado e Governo não sejam claramente diferenciáveis,
assistiremos à organização de CBH' s que pouco contribuirão no desenvolvimento da
sociedade civil, por ver-se integrados a um único sistema de poder.
Um tipo similar de perversão acontece com uma problemática supostamente i
oposta, a utilização dos CBH's como instrumentos de defesa I promoção dos direitos
dos indivíduos, ou seja de interesses privados. Isto acontece, na medida que a
representatividade social da instituição e a sua capacidade de se legitimar perante
instâncias de decisão do Estado vê-se claramente influenciada pela transformação dos
interesses privados em bem comum.
Esta problemática nos autoriza a enunciar a segunda hipótese, a hipótese da
legitimação dos CBH' s como instituições para - estatais ou como instituições onde o
Estado tem uma presença determinante.
Nesta segunda alternativa, a bacia hidrográfica, sua dinâmica e conceitualização
passam pelo paradigma do planejamento ("a bacia como unidade de planejamento'i). A
sistemática de funcionamento dos CBH's passa, assim, a ver-se definida pelas
"reivindicações" de determinados grupos de interesse, que "agem" antes que o Estado
formule uma sanção ou modifique uma legislação.
Este tipo de estratégia é a mais freqüentemente adotada pelos diferentes grupos I
de interesses presentes nos CBH' s: convoca-se a "opinião pública" para que esta se I
posicione (a favor ou contra) um determinado projeto.
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Infelizmente, quando examinam-se as lutas que mobilizam coletividades em
tomo a defesa de um "novo direito", vemos que a legitimação das reivindicações é i feita
através da estratégia de convocação da "opinião pública", como forma de transformar
interesses privados em interesse público. E como se não fosse "legítimo" def~nder
interesses privados em nome próprio, é como se fosse impossível difundir as
reivindicações de indivíduos e coletividades num espaço verdadeiramente público. Por
que? Porque, tais grupos de interesses (que são absolutamente legítimos) sempre
conseguiram ver suas reivindicações atendidas, quando invocaram ou reivindicaratÍl em
nome do "bem comum".
Sem sombra de dúvidas, isto é um signo inquietante da persistência de formas de
atuar antidemocráticas, pois são o resultado da transformação do privado em intetesse
público. Em outras palavras, ninguém está negando a defesa de interesses privados,
somente questionamos a sua defesa em nome do "bem comum". Isto nos leva a abordar
uma última problemática, o reconhecimento dos limites da democracia.
A democracia não oferece resposta para todos os problemas que a economia de
mercado coloca. Estimular essa onipotência da democracia cria expectativas
desmesuradas, e gera inúmeros problemas. Precisamos de outros instrumentos~ de
outros valores, de outras conceitualizações para explicarmos os problemas , que
decorrem da falta de gestão ou de planejamento.
Alguns economistas poderiam argumentar, a este respeito, que a autonomia
relativa da Sociedade Civil e a expansão das liberdades individuais estão em estreita
relação com um tipo específico de organização econômica, chamada capitalismo. E eles I
teriam razão, pois capitalismo e democracia estão historicamente ligados na nossa
experiência ocidental.
Porém, uma coisa é reconhecer esta afinidade, e outra, muito diferente, é I
acreditar que o real se reduz aos efeitos de determinadas leis econômicas ou que as I
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soluções para todos os problemas estão baseadas, exclusivamente, em "formulações
técnicas".
Parafraseando à Lefort, podemos dizer que, se a democracia tem a capacidade de
acolher o conflito e a divergência de interesses, somente ela tem a capacidade de nos dar
acesso ao real. Pese ao que passou-se a defender na última década, "o real não se reduz I
aos efeitos de presuntas leis econômicas, o acesso ao real supõe que tenha~os
permanentemente em conta aquilo que antes chamava-se de questão social" 13.
Conclusões
Para finalizar, pode-se dizer que a conceitualização dos CBH's, a partir da
perspectiva acima exposta, leva-nos à enfatizar a necessidade de:
(a) repensar uma sistemática de funcionamento dos CBH's, onde o interesse
público, o interesse privado, o Governo e o Estado não se confondam;
(b) redefinir os CBH' s ancorados num instância jurídica, mas que nem por isso
desconheça a "questão social"; para isto propomos a possibilidade de definir
o CBH como "pessoa jurídica de direito público com competência
territorial";
(c) lembrar que, nas nossas sociedades, a identificação plena entre Estado e
comunidade é tão problemática, como o é a separação total das duas
instâncias; a primeira gera um Estado totalitário, a segunda trás o risco da
dissolução do tecido social e a transformação do cidadão num "ser do
ressentimento" ou em um "ser da reivindicação".
A definição dos CBH' s como "pessoa jurídica de direito público com
competência territorial", permitiria repensar a regulação estatal, sem cair na armadilha
do paternalismo político ou do laissez-faire econômico.
13 Claude Lefort. p./47.
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Vejamos melhor a definição acima proposta. À diferença da formulação vigente
na maioria das legislações estaduais, onde os CBH' s são instituídos mediante um ato de
governo, a existência dos mesmos, enquanto pessoas jurídicas, passa a depender de
aspectos legais supra-governamentais, o que os afastaria das ingerências provenientes
do Governo.
Os CBH' s, porém, não somente se definem enquanto pessoa jurídica, eles se
cristalizam em instituições de direito público; isto é, eles assumem definitivamente um
compromisso, não com o Estado, mas sim entre si e com a Sociedade. Isto é, tudo aquilo
que o Estado lhes forneceu e/ou lhes fornece para sua consolidação institucional, deve
retomar, não ao Estado, mas sim à sociedade.
i
Finalmente, a competência territorial, consolidaria os CBH' s enquanto I
instrumentos de gestão e não enquanto espaço de negociação das compensações. Não se
trata de compensar "perdas", de ajustar "contas" entres usuários, empresas ou estados,
trata-se de fazer com que os CBH' s assumam um caráter mais permanente,
possibilitando a criação de uma verdadeira instância de regulação.
Neste sentido, a regulação não se confunde com uma simples maximização da
utilidade do recurso hídrico através da estratégia de transpor o comportamento racional
a escalas maiores que a dos indivíduos, pois, não acreditamos que o que resulta possivel I
para cada indivíduo em circunstâncias especiais, seja necessariamente possível para
todos os indivíduos nessas mesmas circunstâncias.
A regulação poderia, assim, ser entendida como "fiuto do ruído inesperado~ da
luta por novos direitos, conseqüência dos esforços contraditórios da maioria" 14. Esto
supõe reconhecer as dissonâncias, os interesses contraditórios sem os travestir em "bem
comum".
14 E Enriquez, Las Formas de Adhesión a/ Estado, In La sociedad contra la política, p. 165, PiJdra Libre, ediciones. I
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Se o Estado assumisse a possibilidade de desenvolver este tipo específico de
regulação (onde negociar não mais significa ceder ao poder do mais forte), ele deixaria
de ter que trabalhar insistentemente para que os cidadão adiram aos ideais que este
promulga. Eles adeririam espontaneamente.
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