As Cartas do Padre Antônio Sepp SJ

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Revista Latino-Americana de História Vol. 3, nº. 10 Agosto de 2014 © by PPGH-UNISINOS Página188 As cartas do padre Antônio Sepp S. J. Lucas Ferreira de Lara Resumo: A utilização de correspondências sempre foi fundamental para a Companhia de Jesus. Atuantes em várias partes do mundo, os jesuítas buscavam informar seus superiores acerca dos sucessos e obstáculos da atividade missionária. Suas cartas também eram lidas por outros membros da ordem, buscando inspiração, e por um público letrado em expansão, que buscava notícias e curiosidades de regiões inóspitas. Este artigo propõe uma breve análise da estrutura e das funções da correspondência jesuítica, tomando como exemplo as cartas do padre Antônio Sepp S. J. Palavras-chave: Jesuítas; Epistolografia; Reduções. Abstract: The use of letters has always been fundamental to the Society of Jesus. Active in various parts of the world, the Jesuits sought to inform their superiors about the successes and obstacles of missionary activity. Their letters were also read by other members of the order, seeking inspiration, and by an expanding literate public, seeking news and curiosities from inhospitable regions. This paper presents a brief analysis of the structure and functions of the Jesuit correspondence, taking as an example the letters of Father Antonio Sepp S.J. Keywords: Jesuits; Epistolography; Reductions. Cartas e a Companhia de Jesus Os jesuítas sempre se preocuparam em normatizar a prática epistolar. Geralmente, tentavam evitar alterações que desviassem as cartas de padrões estabelecidos oficialmente, procurando manter os modelos tradicionais. A estrutura da epistolografia jesuítica está ligada à tradição da Ars Dictaminis medieval, sistematizada no século XI. Tal modelo defendia uma divisão da epístola em cinco partes: salutatio, uma pequena saudação inicial; benevolentiae captatio, caracterizada como uma busca pela simpatia do leitor ao que será exposto; narratio, relato dos acontecimentos; petitio, solicitações feitas ao destinatário; conclusio, composta por uma certa reiteração dos pedidos feitos anteriormente e por uma despedida. Os humanistas, Mestrando em História pela USP.

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As cartas do padre Antônio Sepp S. J.

Lucas Ferreira de Lara

Resumo: A utilização de correspondências sempre foi fundamental para a Companhia de

Jesus. Atuantes em várias partes do mundo, os jesuítas buscavam informar seus superiores

acerca dos sucessos e obstáculos da atividade missionária. Suas cartas também eram lidas por

outros membros da ordem, buscando inspiração, e por um público letrado em expansão, que

buscava notícias e curiosidades de regiões inóspitas. Este artigo propõe uma breve análise da

estrutura e das funções da correspondência jesuítica, tomando como exemplo as cartas do

padre Antônio Sepp S. J.

Palavras-chave: Jesuítas; Epistolografia; Reduções.

Abstract: The use of letters has always been fundamental to the Society of Jesus. Active in

various parts of the world, the Jesuits sought to inform their superiors about the successes and

obstacles of missionary activity. Their letters were also read by other members of the order,

seeking inspiration, and by an expanding literate public, seeking news and curiosities from

inhospitable regions. This paper presents a brief analysis of the structure and functions of the

Jesuit correspondence, taking as an example the letters of Father Antonio Sepp S.J.

Keywords: Jesuits; Epistolography; Reductions.

Cartas e a Companhia de Jesus

Os jesuítas sempre se preocuparam em normatizar a prática epistolar. Geralmente,

tentavam evitar alterações que desviassem as cartas de padrões estabelecidos oficialmente,

procurando manter os modelos tradicionais. A estrutura da epistolografia jesuítica está ligada

à tradição da Ars Dictaminis medieval, sistematizada no século XI. Tal modelo defendia uma

divisão da epístola em cinco partes: salutatio, uma pequena saudação inicial; benevolentiae

captatio, caracterizada como uma busca pela simpatia do leitor ao que será exposto; narratio,

relato dos acontecimentos; petitio, solicitações feitas ao destinatário; conclusio, composta por

uma certa reiteração dos pedidos feitos anteriormente e por uma despedida. Os humanistas,

Mestrando em História pela USP.

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propondo a retomada da tradição clássica que via a carta como espaço para a conversação

informal (sermo), acabaram por realçar a oposição entre a carta formal (contentio) pensada

pelo dictator medieval e a carta familiar (sermo). (PÉCORA, 1999a, p. 36)

As Constituições da Companhia de Jesus, ao versarem sobre o assunto, propõem, grosso

modo, dois tipos de carta, seguindo a oposição sermo/contentio. As hijuelas, cartas que tratam

de assuntos internos à ordem, mais objetivas, amigáveis e, portanto, ligadas ao modelo da

correspondência clássica e, de outro lado, as cartas edificantes, que circulariam também no

exterior da Companhia e atenderiam a objetivos mais amplos, adequando-se ao modelo

sistemático da Ars Dictaminis (EISENBERG, 2000, p. 53-8). João Adolfo Hansen (1995)

aponta para o hibridismo de forma da carta produzida pelos inacianos:

Nela, o discurso trata de matéria de informação, figurando-a com

procedimentos familiares específicos da carta, entendida aqui como ele a

define, e, ao mesmo tempo, mescla-os com elementos doxológicos ou teórico-doutrinários da sua conceituação de epístola, formando uma espécie

de gênero misto refratário à sua classificação como “carta” ou “epístola”.

Fazia parte da retórica jesuítica negar o estilo, já que a ideia era conter a disposição ao

rebuscado. Segundo Alcir Pécora (1999b), o estilo jesuítico deveria perseguir a simplicidade e

a gravidade, não se perdendo em palavras “inchadas de orgulho”. A retórica enxuta, contudo,

geralmente é compensada pela grande extensão e mescla de assuntos abordados, já que, sendo

trocada a intervalos longos, dependendo de improváveis chegadas e partidas de navios, fazia-

se necessário aproveitar todas as ocasiões para fornecimento de informações abundantes

através das correspondências.

No caso da atuação da Companhia de Jesus na América ou em outras partes do globo, os

superiores tinham como dever escrever cartas ao provincial, e estes ao Pe. Geral, com

informações sobre o trabalho nas missões, escritas tanto em sua língua materna como em

latim, de modo a impedir que a diversidade linguística se tornasse um obstáculo. Tais

orientações encontram-se na oitava parte das Constituições da Companhia de Jesus, voltada à

união dos membros da Ordem com seus superiores e entre si:

[674] L - Os Superiores locais e os Reitores que residem na província, assim

como os enviados a produzir fruto no campo do Senhor, devem escrever

cada semana ao seu Superior Provincial, se tiverem possibilidade. O Provincial e os outros Superiores devem igualmente escrever todas as

semanas ao Geral, se ele estiver perto. Se, residindo no estrangeiro, não

houver facilidade de comunicação, tanto os enviados a ministérios

apostólicos como os Superiores locais e Reitores, assim como os Provinciais,

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escreverão ao Geral uma vez por mês. (CONSTITUIÇÕES, 2004, p. 192)

Elas deveriam contar fatos edificantes e transmitir informações sobre a vida e a atividade

jesuítica local, seus êxitos e dificuldades, para que os demais jesuítas, em outras missões ou

nos colégios e igrejas na Europa, soubessem e se consolassem.

[675] M - Para que as notícias da Companhia possam comunicar-se a todos,

proceder-se-á da seguinte maneira: os que em diversas casa ou colégios

dependem do Provincial escreverão todos os quatro meses uma carta em

língua vernácula, que contenha só notícias de edificação [...]. (CONSTITUIÇÕES, 2004, p. 192)

Assuntos como saúde ou problemas pessoais deveriam constar em outra carta, escrita de

acordo com a necessidade e permanecendo sob sigilo. As cartas eram lidas também durante as

refeições, para a edificação de quem as ouvisse. Em resumo, para os jesuítas, as

correspondências informavam e tinham o objetivo de reunir os dispersos em um só coração,

não só transmitindo experiências místicas, mas também as provocando. Como afirma Hansen,

no caso dos missionários “[...] a função inicial da correspondência como relatório é

sobredeterminada no consumo da mesma pela comunidade da Cia., produzindo-se um novo

valor de uso, o de uma leitura edificante.” (HANSEN, 1995, p. 108-9) Dessa forma, a

correspondência acaba cumprindo duas grandes funções iniciais: fornecer informações sobre

o andamento da ação, tratando tanto de negócios exteriores quanto interiores à Ordem, e

propagar e reforçar internamente o controle, a obediência e a piedade da sua devotio

moderna.” (HANSEN, 1995, p. 108), já que os inacianos encontravam-se dispersos pelo

mundo e era necessário unir os ânimos em torno da realização da vontade divina.

Embora as diretrizes gerais da Companhia de Jesus tenham sido, em muitos casos,

ajustadas pelos padres provinciais e caracterizadas por uma grande adaptabilidade às situações

que se apresentavam, implicando uma série de mudanças pontuais nas formas de pregar,

catequizar ou, mais precisamente, de persuadir, no que diz respeito à produção epistolar dos

missionários americanos, notamos uma extrema sintonia com as normas da Companhia e com

as cartas escritas por jesuítas atuantes na Europa ou em outros continentes. Para Fernando

Torres Londoño (2002), as Constituições, ao ditarem um conjunto de condutas relativas à

comunicação de seus membros, acabaram por compor um sistema de informações que atuava

como suporte para tomadas de decisão. Segundo o historiador, este sistema, hierárquico e

vertical, permitia "informar a partir da base nas cartas periódicas. Reunir registros e

intercambiar opiniões à procura de uma decisão. Comunicar por escrito a decisão a partir do

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governo geral. Acatar a decisão nas instâncias." (LONDONO, 2002, p. 14-5). Tal estrutura,

possibilitava aos jesuítas, uma certa uniformidade quanto às políticas a serem adotadas em

localidades e contextos tão diversos.

O Padre Antônio Sepp

O estudo da produção epistolar do Pe. Antônio Sepp se apresenta como de grande

importância para compreendermos melhor as normas da escrita jesuítica. Os muitos anos

como mestre de Retórica e Gramática em colégios da Companhia na Europa, assim como a

autoria e direção de peças teatrais edificantes, mostram um indivíduo extremamente imbuído

dos preceitos e regras inacianas.

Nascido no dia 21 de dezembro de 1655, em Kaltern, no Tirol alemão (atualmente

território italiano), Antônio Clemente Sepp era filho de pais nobres. Ainda menino, chamou a

atenção por seus dotes musicais, tornando-se menino-cantor na corte vienense, função para a

qual eram selecionadas apenas seis crianças em todo o território da Áustria.

Após concluir o ginásio, no colégio jesuíta de Innsbruck, a capital do Tirol, entrou para a

Companhia de Jesus, aos 19 anos de idade, obtendo, no noviciado dos anos seguintes, a

formação espiritual, filosófica, literária e humanística dos membros da Companhia, além de

aperfeiçoar-se ainda mais no estudo da música, religiosa e profana. Atuou por muito tempo

como professor em colégios jesuítas como os de Landsberg e Augsburgo, lecionando diversas

matérias, entre elas Música e Humanidades (Línguas Clássicas).

Após vários anos aguardando a autorização de sua solicitação junto ao Geral da Ordem

para ser enviado às Missões de Ultramar, embarcou rumo ao novo continente, chegando a

Buenos Aires em abril de 1691. (RABUSKE, 1976, p. 35-42) Durante 41 anos, o Pe. Antônio

Sepp atuou como missionário nas terras da Província Jesuítica do Paraguai, fundando a

missão de São João Batista entre 1697-1710 e atuando em diversas outras reduções no

processo de conversão dos indígenas, em sua formação pastoral e administração temporal.

Faleceu em janeiro de 1733, na missão de São José.

As fontes

As cartas escritas pelo padre Antônio Sepp em 1691 e dirigidas, em grande parte, a

seu irmão Gabriel von und zu Rechegg, escritas tanto em latim, a língua utilizada pela

Companhia, como em alemão, sua língua materna, constituem o mais antigo documento

escrito sobre as reduções ao longo do rio Uruguai e, consequentemente, sobre parte do atual

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Rio Grande do Sul. Intitulado Viagem às Missões Jesuíticas (tradução) e tendo sido editado

em 1698, o livro reunindo parte deste material continha, na edição inicial publicada pelo

irmão, apenas cinco cartas. Ao todo se supõe que a obra teve quatro edições. (HARNISCH,

1972, p. 47)

Outra obra baseada nas cartas do padre Sepp é Trabalhos Apostólicos, sendo que as

cartas que a constituem foram escritas por ele em 1700, abrangendo o período de 1693 a 1701

e tendo sido editada pela primeira vez em 1710.1 O livro, durante sua edição, foi dividido em

capítulos, que não necessariamente correspondem ao conteúdo de cada carta escrita por Sepp,

podendo duas ou mais correspondências compor um capítulo ou, ao contrário, uma única

carta ter sido desmembrada em vários capítulos. Os nomes dados aos nove capítulos da

primeira compilação e aos trinta e cinco da segunda seguem a lógica de pequenos resumos

dos acontecimentos e temas que serão descritos na sequência. Como exemplos, temos De

como estão organizadas as aldeias de índios convertidos; Prodigiosa conversão de Moreyra,

aquele mágico, tirano e régulo sexagenário ou Edificam-se hospitais para acolher os

contaminados de ambos os sexos.

Embora no presente artigo nos debrucemos mais sobre as cartas que compõem o livro

Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos, não podemos deixar de citar outros

dois importantes escritos do padre Antônio Sepp. O primeiro deles é a carta escrita pelo

missionário quando este já contava com mais de 25 anos de atuação entre os indígenas na

Província Jesuítica do Paraguai, a Carta latina de 13 de junho de 1714, procedente de São

Xavier e endereçada ao Pe. José Preiss, S.J. Está publicada na terceira edição da obra Pe.

Antônio Sepp, SJ - O Gênio das Reduções Guaranis, do Pe. Arthur Rabuske SJ (2003), que se

encarregou da tradução do documento, baseado na tradução alemã de Johann Mayr (1988).

Nos apêndices da segunda edição ampliada do livro de Rabuske, encontramos ainda a relação

de instruções escritas pelo próprio padre Sepp na Redução de São José, em 1732, e destinada

aos jesuítas recém-chegados às missões. Algumas instruções relativas ao governo temporal

das reduções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas nos permite um olhar

mais aprofundado sobre os métodos de trabalho dos missionários e a vida econômica das

reduções. A tradução vernácula deste documento data de 1958, de autoria do padre Pedro

1 Atualmente, ambas as compilações encontram-se publicadas, no Brasil, em uma edição de 1972 da Livraria

Martins Editora em conjunto com a Editora da Universidade de São Paulo, contendo notas e introdução de

Wolfgang Hoffmann Harnisch e com tradução de Reymundo Schneider e dos alunos da Companhia de Jesus em

Pareci.

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Inácio Schmitz, S.J.

Objetivos diversos, redes variadas

É importante ressaltar que as cartas publicadas pelo irmão do Padre Antônio Sepp, na

obra Viagem às Missões Jesuíticas, estão presentes em outras publicações, anteriores ou do

mesmo período. Edições diferentes, mas com o mesmo título original, surgem em diversas

cidades, como, por exemplo, em Brixen (1696), Nürnberg (1697) e Ingolstadt (1712)

(HARNISCH, 1972, p. 48). Tais publicações servem para demonstrar a circulação dessas

cartas pela Europa e a existência de uma rede de leitores ávidos por este tipo de escritos.

Entre a redação das correspondências e a sua publicação há todo um processo que

envolve distância, autores e reescritas. Não podemos desconsiderar também os critérios de

seleção do compilador, problemas de tradução e censuras. Fazendo coro ao que dissemos há

pouco, Rafael Cesar Scabin afirma ser necessário inserir estes textos jesuíticos na política de

escrita e circulação de cartas da Companhia de Jesus, expressa nas Constituições e em

documentos posteriores, sabendo que a leitura destas correspondências atendia a

determinações específicas tanto internamente, buscando informar, promover a união e

proporcionar experiências místicas devocionais, quanto externamente, divulgando o trabalho

missionário e atraindo novos membros e contribuições (SCABIN, 2010, p. 3).

Os relatos produzidos pelos missionários do Novo Mundo alcançavam não só seus

“irmãos em Cristo”, pelo testemunho edificante e pelos exemplos de submissão e entrega aos

preceitos da Companhia, como também iam ao encontro dos anseios de um público letrado

crescente, atraído pela curiosidade das descrições do continente inóspito e do selvagem

americano. Como afirma Adriana Gabriel Cerello:

[...] as cartas produzidas na América eram enviadas para os mais diferentes destinatários e nem por isso deixavam de ser lidas, traduzidas e editadas por

outros que as manipulavam como melhor convinha aos interesses de

informar, dar alento e de exemplificar aos demais dentro da Ordem. (CERELLO, 2008, p. 262)

Quanto aos usos, a carta passa a determinar-se como gênero adequado a várias

motivações contemporâneas de uma demanda leiga, sempre crescente no século XVI, e ao

programa evangélico da Companhia. As mesmas cartas enviadas por Sepp aos seus

superiores, depois de censuradas, traduzidas para diversas línguas e publicadas em coletâneas

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de cartas das missões editadas na Europa durante o século XVII, passam a ser lidas como

texto devocional e apologético, quando não de curiosidades „etnográficas‟.

Apesar de escreverem em épocas e locais diferentes, motivados por circunstâncias

diversas, os missionários jesuítas estavam ligados por laços institucionais e devocionais

comuns. Ao instruir os provinciais sobre os temas merecedores de serem relatados nas cartas,

por exemplo, a Companhia de Jesus também definia os contornos da imagem que gostaria de

deixar para a posteridade.

Desde a sua origem, a Ordem preocupou-se com a preservação de seus registros

institucionais e daqueles relativos às suas ações missionárias ao redor do mundo. A

documentação escrita da Companhia é imensa e deve-se estar sempre atento à

intencionalidade com que foi produzida e ao contexto em que se inseria. Levando em conta

essa “consciência histórica” dos jesuítas, a grande quantidade de relatos escritos possibilitou o

surgimento de uma extensa historiografia inaciana, empenhada em legitimar e relembrar as

obras notáveis de conversão no mundo todo.

É preciso estar atento ao fato de que muitas das obras disponíveis que apresentam cartas

de missionários jesuítas, foram produzidas por membros da própria Companhia de Jesus ou

por pesquisadores simpatizantes à Ordem. Apesar de, em muitos casos, apresentarem

introduções e notas com informações baseadas em extensa documentação, trazem à tona

visões parciais e adjetivadoras da atuação dos inacianos e até mesmo de seus escritos, como é

possível observar na introdução da edição brasileira de Viagem às Missões Jesuíticas e

Trabalhos Apostólicos, já citada anteriormente:

Não há nada que testemunhe tão bem o estilo, a feição de um homem, do que

sua maneira de manejar a língua. A linguagem do Pe. Sepp é admirável, colorida, rica, substanciosa. Revela o homem viril, reto, o homem cheio de

humor, o homem de fibra, de caráter íntegro [...]. (HARNISCH, 1972, p. 51)

Wolfgang Hoffmann Harnisch afirma ainda que pela forma como o missionário apresenta

suas descrições, deduz-se claramente que ele não pretendia organizar documentos e não

pensava em futuras publicações, desejando apenas transmitir a seus companheiros “tudo o que

vira e o que passara”. No entanto, o próprio padre Sepp contradiz essa suposta ingenuidade ao

discorrer, no prefácio às correspondências que compõem Trabalhos Apostólicos, sobre o

porquê de ter escrito várias cartas em alemão e não em latim, como era o hábito da

Companhia:

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Uma única cousa queria aqui observar ao pio e benévolo leitor é que,

ocupado por tantas e tamanhas curas de almas, não me foi possível inserir tudo nesta folha, minuciosamente; nem, tampouco exprimir tudo em latim: o

aperto de tempo me coagiu a dividi-lo, e não tanto me animou, como me

compeliu a exprimir algumas cousas em alemão, afim de que servissem a utilidade de grande número de leitores. (SEPP, 1972, p. 102)

O missionário, ao optar pelo alemão em decorrência da falta de tempo que a escrita em

latim poderia requerer, atende às normas da Companhia através de um relato minucioso de

suas ações. Mesmo que não tenham sido escritas na língua exigida, como as cartas enviadas à

Europa eram geralmente revisadas e editadas por superiores da Ordem, o problema seria

facilmente resolvido através de traduções. O importante era que os relatos circulassem,

atendendo ao maior número de pessoas possível. Se pensarmos que Antônio Sepp estava

inserido no sistema de informações apresentado por Londoño e comentado anteriormente,

tendo lido relatos de outros missionários durante seus anos de noviciado e de espera para vir

ao Novo Mundo, isso implicaria admitir que o autor sabia que suas correspondências seriam

copiadas e possivelmente publicadas (vale lembrar que seu irmão de sangue custeou uma

dessas publicações) o que, por se tratar de um jesuíta, significaria ter plena consciência dos

cuidados com o que escrevia, com a forma com que escrevia, enfim, com a mensagem que

buscava transmitir e legitimar.

As cartas de Sepp

As cartas de Antônio Sepp, presentes na obra publicada no Brasil, contêm narrativas

riquíssimas e que, baseadas nos preceitos epistolares da Companhia de Jesus, referem-se

predominantemente ao cotidiano de trabalho. A fundação de uma nova redução em São João

Batista, no ano de 1698, é uma delas. Sepp nos relata o êxodo de parte da população indígena

da Missão de São Miguel para a nova localidade, descrevendo, além das atividades

executadas na construção da nova redução, os motivos que o levaram a escolher tal região.

Em cartas como esta, o missionário mostra-se um explorador e observador atento, seja da

geografia e dos recursos naturais locais, seja dos povos com quem travou contato e dos quais

estudou a língua e os hábitos a fim de por em prática meios para sua evangelização:

Explorar o sítio era tão necessário a nós como todos os de Europa, antes de

povoarem uma terra, e aos romanos antes de tomarem posse das colônias.

Inquiriam bem a situação do lugar, se era palustre, arenoso, etc., a que ventos estava exposto, se rodeado de montes e bosques, se irrigado por

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riachos e rios aprazíveis; além disso a abundância de águas e fontes [...] e mil outras cousas necessárias para fundar uma aldeia ou uma povoação.

(SEPP, 1972, p. 139-40)

Em suas cartas enviadas aos irmãos de ordem e também aos de sangue (alguns eram

religiosos de outras ordens), Sepp também deixa clara a utilização que fazia da música no

contato com os indígenas e o fascínio que ela despertava neles. Relata as aulas ministradas

aos corais que ele próprio formava para a execução de obras sacras, assim como as

habilidades instrumentais que os nativos desenvolviam, em instrumentos construídos por eles

com a supervisão do missionário. Chega até a relatar a confecção de um órgão para uma das

missões, na qual se utilizou de tábuas de cedro:

E assim vendo que a miséria dos órgãos usados até então entre os índios não provinha tanto da falta de recursos como de seu estado miserável, deu-me o

R. Pe. Provincial, Pe. Lauro Nuñez, ordem de fazer um órgão, como os da

Europa, ou de mandar fazê-lo, reservando-me a superintendência da obra.

[...] Como, porém, a quantidade de estanho e chumbo arranjada [...] só bastasse para fazer os tubos menores, cuidei que os maiores, do chamado

sub-baixo, se fizessem de tábuas de cedro desbastadas [...] (SEPP, 1972, p.

117-18).

Enxergando nas cartas que escrevia uma das únicas possibilidades de contato com os

irmãos de Ordem na Europa, o missionário também não se furta em apelar a seus mestres e

conhecidos para que atendam aos seus pedidos, solicitando itens que lhe são caros,

principalmente no ensino musical dos neófitos. Como dissemos anteriormente, a divisão

epistolar prevista pela Ars Dictaminis medieval, à qual a epistolografia jesuítica está

intimamente ligada, incluía uma parte exclusiva às solicitações aos destinatários, a petitio. O

trecho que reproduziremos abaixo é extenso, mas ajuda a ilustrar essa potencialidade atribuída

às correspondências, ao mesmo tempo em que apresenta um panorama de como,

materialmente, alguns pedidos poderiam ser atendidos. Ao solicitar partituras a seus colegas

europeus, Sepp escreve:

Tende piedade, por amor ao Cristo, de meus milhares de pobres músicos e

mandai-me as Missas, as Vesperas breves, breviores e brevissimas, bem como as Ladainhas do senhor Melchior Glettle, mestre-capela da catedral de

Augsburgo. Não tenho coragem de solicitar os motetes, mas, se apesar disso

vierem, seria como se um anjo do céu os trouxesse para o Paraguai. Mas vós

logo respondereis: Meu caro Padre Antônio, do fundo do coração folgamos em te enviar tudo, mas quem no-las pagará? Primeiramente eu me

comprometo, e comigo mais seis Padres missionários, de rezarmos seis

Santas Missas na intenção daquele, seja religioso ou leigo, que queira arcar com as despesas. Pelo Padre, porém, que mas enviar, nós queremos rezar

vinte Missas, pelos seus esforços. Depois não pretendo que sejam novas.

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Sejam tão velhas, rasgadas e sujas como queiram, desde que sejam legíveis, porque os músicos indígenas já escrevem bem as notas [...] E se alguém

perguntar para onde mandar o pacote, para que chegue ao Paraguai,

respondo-lhe: Se estiver em Gênova ou Roma, então já está no Paraguai,

indiferente se demora um pouco mais ou menos. O melhor seria entregar a encomenda ao Padre Procurador em Roma. Esse a passará ao Procurador do

Paraguai, que agora é enviado para Roma. E caso não estiver aí nenhum

Procurador, então ao Procurador das Duas Índias, que se mantém ininterruptamente em Roma. [...] Com o pagamento, digo, é bem fácil. A

saber, do modo seguinte: A Província daqui restitue tudo ao Padre

Procurador de Munique, indistintamente se êle gasta muito ou pouco por um Padre. Tivesse eu sabido disto, quando ainda me achava em minha

Província, e tivesse eu também sabido quais as coisas que muito se precisam

e insistentemente se solicitam no Paraguai, teria eu logo em Munique

comprado muitas coisas para o Paraguai e as levado comigo, e com isto por certo teria prestado a esta Província e a todos os Missionários um grande

obséquio. (SEPP, 1972, pp. 74-5)

Embora agradeça o envio de quaisquer materiais musicais, o missionário solicita

partituras específicas, aquelas que lhe serão úteis nas atividades juntos aos indígenas, mesmo

que se encontrem "velhas, rasgadas e sujas". Salientando que partituras em péssimas

condições seriam bem vindas, desde que legíveis, e referindo-se à situação de seus "milhares

de pobres músicos" índios, o jesuíta reforça retoricamente seu apelo. Ao comprometer-se em

rezar muitas missas em nome daqueles que atenderem a seu pedido, Sepp parece deixar clara

a incapacidade de arcar com os custos de tal encomenda, compensando tais despesas com

benefícios "espirituais". Interessante notar que o missionário se compromete a rezar missas

tanto para religiosos quanto para leigos, o que nos permite supor que o jesuíta sabia que sua

correspondência poderia atingir leitores externos à Companhia ou que, em último caso, seus

irmãos de Ordem poderiam apelar para o auxílio de financiadores leigos.

Ao explicar o procedimento pelo qual seu pedido poderia ser atendido, o missionário nos

permite entrever as dinâmicas que envolviam as solicitações de jesuítas em missão pelo

mundo. A centralidade de Roma fica evidente, assim como o papel de porto de saída

desempenhado pela cidade de Gênova: "Se estiver em Gênova ou Roma, então já está no

Paraguai". Da mesma forma, a entrega ao Padre Procurador, que remeteria a encomenda ao

Procurador do Paraguai ou ao das Duas Índias, explicita uma hierarquia e até mesmo uma

burocracia interna à Companhia de Jesus.

A referência às formas de pagamento é extremamente interessante por nos permitir

algumas suposições. Antônio Sepp explica que a província do Paraguai restitui aos padres

procuradores europeus os gastos efetuados para suprir suas demandas. Afirma ainda que se

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soubesse disso antes de vir à América, teria comprado muitas coisas das quais agora sentia

necessidade. Essa evidência aponta para um desconhecimento de um membro da Companhia

no que se refere às normas e procedimentos práticos da mesma. De forma mais clara, nos

permite supor uma confusão burocrática, possível devido à divisões administrativas entre

províncias, com maior ou menor alinhamento a Roma, seja por questões políticas, seja pelas

dificuldades impostas pela distância.

Quanto ao desconhecimento das coisas "que muito se precisam e insistentemente se

solicitam no Paraguai", é evidente que em seu tempo de preparação para vir às missões o

jesuíta tenha entrado em contato com diversas cartas de missionários atuantes em terras

paraguaias, assim como em outros pontos do globo. É de se estranhar, então, que Sepp não

tenha lido em nenhum momento algo referente aos pedidos feitos por missionários paraguaios

que pudessem prepará-lo para o que viria encontrar. Cabe a suposição: é bem provável que as

correspondências lidas pelo jesuíta tenham, anteriormente, passado pela censura de superiores

da Companhia, da mesma forma que suas próprias cartas passariam futuramente. Talvez estes

censores tenham mantido apenas partes que buscassem comover e incentivar a participação de

outros irmãos na vida missionária e, por isso, tenham deixado de lado trechos que

explicitassem dificuldades puramente materiais. Provável também que estes padres superiores

tenham se encarregado de suprir as demandas solicitadas nestas cartas, não vendo necessidade

em manter os apelos missionários nas versões das cartas lidas junto aos colégios ou

encaminhadas à publicação e ampla divulgação a um público leigo. Tratam-se,

evidentemente, de suposições.

Dos escritos do padre Sepp também é possível apreendermos muito a respeito da

produção de alguns itens que marcaram a economia missioneira. O autor descreve a criação e

a enorme quantidade de rebanhos de gado vacum; destaca a importância da produção de

couros para a colônia, citando até preços e negociações. Relata a queima dos campos, o

cultivo de erva-mate, trigo, frutas, algodão, vinhas etc. Desta forma, faz da carta um relato

minucioso de suas atividades, buscando informar ao máximo, abarcando a maior quantidade

de assuntos, conforme pregam as normas da Companhia.

Em todos os momentos, o padre busca mostrar-se um servo de Deus, humilde e obediente

para com as atividades cotidianas da missão e paciente diante das inúmeras adversidades.

Descreve-se como um pecador e busca, no modelo de Jesus Cristo, a redenção através de uma

fé imbatível e inabalável. Ao final de um capítulo intitulado Ordem do dia dos missionários,

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no qual descreve suas atividades rotineiras, desde o nascer até o pôr do sol, Sepp diz:

Disso tudo se pode inferir os grandes esforços e trabalhos dum missionário.

A folha de papel vai para o fim, recomendo-me, pois, à oração piedosa de todos os meus diletíssimos amigos e caríssimos conhecidos. Queiram todos

rezar por mim, o maior dos pecadores, e para minhas ovelhinhas, para que,

todos juntos, possamos entrar no redil celeste. (SEPP, 1972, p. 93)

Para Hansen, é justamente da contínua referência ao pecado que o discurso extrai sua

força, encenando-se como uma luta constante de autocontrole quanto às paixões, direcionadas

para a evangelização do índio (HANSEN, 1995, p. 99). Como fica claro pelo trecho acima,

toda ação executada pelo missionário é vista por ele, e por conseguinte, pela Companhia de

Jesus, como o desdobramento de uma ação extraterrena, o Drama da Salvação.

Tal exacerbação dos próprios defeitos, porém, não nos impede de notar uma certa

tendência à autopromoção por parte do Padre Sepp, principalmente ao abordar suas

habilidades técnicas e tomadas de decisão. Nos trechos em que se refere à música, área na

qual possuía extensa formação, o jesuíta cita outros missionários que trabalharam as práticas

musicais junto aos neófitos, mas não deixa de apresentar-se como um pioneiro:

De todos os pontos cardiais e de mais de cem milhas os missionários me

mandam seus músicos, para que os instrua nessa arte, que lhes é

completamente nova, e que difere da velha música espanhola, que êles ainda

têm, como o dia da noite. Até agora nada se sabia aqui de nossas divisões de compassos e espécies de andamentos. Até hoje, os espanhóis, como vi em

Sevilha e Cadiz, não tem notas dobradas, quanto menos tríplices [...].

Portanto, tenho que começar com estes meus cantores com o começo da escala tonal [...]. Todos os missionários estão muito satisfeitos e agradecem

ao sumo Deus, por lhes haver enviado, após tantos anos, um homem que

agora também imprime à música um novo impulso. Em reconhecimento,

êste me manda uma barriquinha de mel, o outro açúcar e frutas americanas. A modéstia e o pudor que competem a um religioso não permitem à pena

que esta escreva o quanto os índios me veneram e amam. (SEPP, 1972, pp.

76-7).

Ou, de maneira bem mais sutil, permite-nos entrever a inovação de suas ações na

fundação da nova missão de São João Batista:

Para que as construções não se fizessem espalhadas aqui e ali, sem ordem e

em conflito com as regras da arte arquitetônica, e se correspondessem, bem dispostas, em longa série, dividi a planície ou área da futura aldeia em duas

partes iguais [...] A paróquia ou templo, e a casa dos padres missionários,

ocuparia o meio da praça. Esta praça seria o centro, donde partiriam as ruas

paralelas, igualmente distantes de um lado e outro. Dêste modo se poderia administrar os sacramentos por caminho consideravelmente mais curto,

evitando-se que o doente viesse a falecer sem Viático, em razão das voltas

supérfluas que retardam a marcha do ministro de Deus. [...] Nesta icnografia

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de minha aldeia, além de outros inconvenientes, deviam evitar-se do mesmo modo os becos [...]. (SEPP, 1972, pp. 158-9)

Não há como questionar o importante papel desempenhado por Sepp em terras

americanas quanto à transmissão do estilo moderno2, série de inovações nas formas de se

fazer música surgidas, principalmente, na Itália do século XVII. O ponto a ser levantado aqui

é que o missionário faz questão de salientar as transformações que realiza, ressaltando que

ensinaria tudo partindo praticamente do zero, já que seus antigos irmãos inacianos, embora

esforçados no ensino musical dos neófitos, "não eram músicos profissionais, mas só criaram

de fantasia". (SEPP, 1972, p. 73) Além disso, não deixa de dizer o quão felizes estão outros

missionários com suas ações e o quanto agradecem a Deus por sua presença e a ele próprio,

presenteando-o constantemente. Importante pontuarmos também que, embora afirme que "a

modéstia e o pudor" o impedem de escrever o quanto é amado pelos indígenas, intenciona,

por esta simples menção, deixar tal fato subentendido.

Quanto ao segundo excerto, embora esta autopromoção apareça de maneira sutil, é

perceptível através do estudo da presença jesuíta na Província do Paraguai. Sepp descreve,

com riqueza de detalhes, as decisões tomadas na estruturação da planta da nova redução,

explicando o ordenamento das ruas e onde será erigida cada construção, dizendo também o

porquê de suas escolhas. No entanto, em nenhum momento o jesuíta nos apresenta tal forma

de planejamento arquitetônico como algo já estabelecido pela Companhia de Jesus, em uso há

muitas décadas e utilizado, inclusive, na estruturação das diversas missões já existentes

quando de sua chegada à América. Tudo nos parece novo e de uma engenhosidade espantosa,

fruto dos esforços de um jesuíta que parece pensar em cada detalhe na busca da salvação dos

indígenas.

Do mesmo modo com que a Companhia de Jesus preocupou-se com sua autoimagem,

aquela que preservaria e difundiria, não é difícil que Antônio Sepp, missionário inaciano com

ampla formação artística e intelectual, tenha buscado valorizar, através das cartas, sua imagem

como jesuíta pioneiro, inventivo e protagonista de importantes transformações no universo

missioneiro. A eficácia do procedimento poderia ser verificada pela imagem do padre Sepp

com a qual nos deparamos até os dias atuais, a de um "gênio das reduções". (RABUSKE,

1976)

2 “Enquanto o estilo antigo baseava-se em normas composicionais derivadas da música romana contra-

reformista, o estilo moderno utilizava inúmeras técnicas composicionais, sobretudo italianas, derivadas da

ópera e da música instrumental.” (CASTAGNA, 2004, p. 2)

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Considerações finais

Para que seja possível estudar a produção epistolar da Companhia de Jesus é necessário

analisar as várias dimensões que acompanham tais cartas: as regras estabelecidas pela Ordem,

o autor (em que lugar se encontra na hierarquia da Companhia de Jesus), os destinatários, que

conceitos a carta procura transmitir, bem como por quem ela será lida e como retornará as

ideias propostas. É necessário identificar o modelo discursivo religioso, buscando ler nos

textos também aquilo que eles não dizem, que se encontra nas entrelinhas, já que o que

permanece escrito consiste em uma seleção, que intenciona dizer algo e, por consequência,

não dizer algo.

De acordo com Carla Berto, essas cartas devem ser tratadas como comunicação escrita

que atende a determinadas demandas:

É importante notar que todos esses textos epistolares possuem uma dimensão retórica que conduz o leitor. Assim sendo, tanto os significantes como os

significados produzidos nas cartas jesuíticas só teriam condições de oferecer

sentido conforme os termos são colocados em relação entre si e com o seu contexto. (BERTO, 2011, p. 1)

Há na Companhia um grande desejo por uniformidade e, ao mesmo tempo, existe uma

grande quantidade e variedade de experiências. Para Alcir Pécora, “a epistolografia jesuítica

não é apenas uma descrição da ação missionária, é também parte fundamental dessa ação.”

(PÉCORA, 1999a) O desejo de missão faz parte da identidade espiritual da Companhia. É

algo tão esperado dos padres que não é possível saber se as cartas enviadas o foram por sua

vontade própria ou por vontade da instituição inaciana. No entanto, embora o que transpareça

nas cartas seja em grande medida a voz da Instituição, demonstrando a submissão e

obediência do “irmão em Cristo” à uniformidade pregada pela Companhia de Jesus, é possível

nos utilizarmos destas correspondências na tentativa de perscrutar elementos que ajudem a

entender melhor determinados personagens históricos e o cenário que envolvia suas ações,

como é o caso do jesuíta Antônio Sepp.

Devemos ter em conta que o missionário em questão escrevia sabendo que seria lido por

muito outros, talvez desejando ser lido por muitos outros, tendo plena consciência do poder de

influência, convencimento, dissuasão e apelo de suas correspondências. Seria ingênuo de

nossa parte crer que seus relatos eram produzidos de acordo com as possibilidades ou que o

"aperto de tempo" e as diversas atividades da vida missionária o impedissem de descrever

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minuciosamente aquilo que desejava (SEPP, 1972, p. 102). O envio constante de informações

aos superiores e provinciais era norma da Companhia e os missionários certamente

reservariam tempo para esta atividade, mesmo que por diversos problemas os relatos, ao invés

de semanais, fossem mensais ou até mesmo quadrimestrais. Tudo isso já estava previsto nas

Constituições.

Voltando ao prefácio das correspondências que compõem Trabalhos Apostólicos, lemos:

Sòmente, pois, exporei em sinopse o que ano por ano me aconteceu aquí no

cultivo deste vinha paraguaia, só e ùnicamente para propagar o louvor e

glória do Deus três vêzes Ótimo-Máximo, bem como para consolação e edificação e recomendação dos leitores, e não com o intuito de divulgar o

meu nome. Por fim, toma à boa parte, leitor benévolo, tudo o que se refere

acêrca do meu trabalho, nem duvides por forma alguma do que lês: pois tudo é bem verdade averiguei eu mesmo, tendo por mestra a experiência própria.

(SEPP, 1972, p. 102).

Levando em conta as afirmações contidas neste excerto e observando a preocupação do

missionário, presente em todo o seu relato, com a escolha de palavras, argumentos e situações

descritas, acreditamos que o Padre Antônio Sepp expunha exatamente aquilo que gostaria de

relatar, da forma e com a intensidade que desejava. Suas correspondências não buscavam

apenas informar ou edificar, como quer nos fazer crer o jesuíta, mas eram estruturadas de

forma a criar determinada imagem do padre missionário. E isso é perceptível na riqueza de

detalhes com que descreve situações e atividades nas quais se destaca, como as artimanhas

realizadas para a conversão de um "afamado" feiticeiro, seus esforços e sucessos no ensino

musical dos indígenas ou a fundação de uma nova redução. Certamente pensava em como

seria lido, interpretado e lembrado, tanto por seus irmãos de ordem quanto pelo público leigo.

Nada mais natural em um homem que dominava plenamente a utilização das cartas, imbuído

dos preceitos e normas inacianas.

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Sepp, SJ - O Gênio das Reduções Guaranis. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

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