Artigo (Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 12, p. 526-544: MAIS DO MESMO: OS VÍCIOS DE...

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Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Volume XII.

Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.

Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636

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SUMÁRIO:

O PEDIDO DE SUSPENSÃO DE DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS À FAZENDA

PÚBLICA: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO E SUA

NECESSIDADE EM FACE DO ORDENAMENTO BRASILEIRO ATUAL

Alex Feitosa de Oliveira .............................................................................................................5

AS AÇÕES COLETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: DE ONDE

VIEMOS, ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS?

Andre Vasconcelos Roque ....................................................................................................... 36

O PROCESSO COLETIVO E O ACESSO À JUSTIÇA SOB O PARADIGMA DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Antônio Gomes de Vasconcelos

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau

Alana Lúcio de Oliveira ........................................................................................................... 66

O EFEITO DEVOLUTIVO E OUTROS EFEITOS

Clarissa Diniz Guedes .............................................................................................................. 83

A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O APARENTE CONFLITO DE LEIS

Felipe Sartório de Melo

Nevitton Vieira Souza ............................................................................................................ 114

RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA: O PODER JUDICIÁRIO E A SOCIEDADE

COMO PROTAGONISTAS DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

Fernanda Estevão Picorelli ..................................................................................................... 135

NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A LITISPENDÊNCIA INTERNACIONAL

Flávia Pereira Hill .................................................................................................................. 163

CONSIDERAÇÕES SOBRE QUESTÕES DE DIREITO PROBATÓRIO (EM MATÉRIA

PENAL)

Flávio Mirza .......................................................................................................................... 193

“DECRETO DEL FARE” E MEDIAZIONE; AVVOCATI MEDIATORI OPE LEGIS

Giovanni Matteucci ................................................................................................................ 208

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O CABIMENTO DAS CHAMADAS DEFESAS HETEROTÓPICAS DO EXECUTADO

Gustavo José Mizrahi ............................................................................................................. 217

AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Gustavo Neroni Fernandes ..................................................................................................... 242

A EVOLUÇÃO DAS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS FASES

METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA COMPREENSÃO DA

TUTELA COLETIVA

Henrique Camacho

Yvete Flávio da Costa ............................................................................................................ 264

A COOPERAÇÃO E A PRINCIPIOLOGIA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. UMA

PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO

Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Tatiana Machado Alves .......................................................................................................... 289

A GARANTIA FUNDAMENTAL DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

Humberto Santarosa de Oliveira ............................................................................................. 316

A EXTENSÃO DA COISA JULGADA NO NOVO CPC E A EXTINÇÃO DA AÇÃO

DECLARATÓRIA INCIDENTAL: UMA MEDIDA DE SEGURANÇA JURÍDICA

Laís Fernandes Almeida ......................................................................................................... 339

EXECUÇÃO CIVIL – ENTRAVES E PROPOSTAS

Leonardo Greco ..................................................................................................................... 399

L’ARBITRAGE ET L’EVOLUTION CONTEMPORAINE DES MODES DE REGLEMENT

DES CONFLITS

Loïc Cadiet ............................................................................................................................ 446

LAICIDADE OU DITADURA DO AGNOSTICISMO?

Luiz Marcelo Cabral Tavares ................................................................................................. 463

AÇÃO RESCISÓRIA COM BASE EM ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO

JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Marcelo Muratori ................................................................................................................... 497

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MAIS DO MESMO: OS VÍCIOS DE REPRESENTAÇÃO RECURSAIS, A

IMPOSSIBILIDADE DE SANEAMENTO POSTERIOR NAS INSTÂNCIAS

EXCEPCIONAIS E A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA

Márcio Carvalho Faria ........................................................................................................... 526

A EFETIVIDADE DO PROCESSO E A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Marco Antonio dos Santos Rodrigues ..................................................................................... 545

DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS NO PROJETO DO NOVO CPC

Marco Aurélio Scampini Siqueira Rangel

Pedro Henrique da Silva Menezes .......................................................................................... 562

O JUSTO PROCESSO ARBITRAL E O DEVER DE REVELAÇÃO (DISCLOSURE) DOS

PERITOS

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro

Leonardo Faria Schenk........................................................................................................... 581

O SISTEMA DE PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS

POSSÍVEIS REPERCUSSÕES NO DIÁLOGO DO PODER JUDICIÁRIO COM OS

DEMAIS PODERES.

Pedro Duarte Pinto ................................................................................................................. 598

TRANSAÇÃO PENAL

Pedro Gomes de Queiroz ........................................................................................................ 652

PIERO CALAMANDREI E LA TUTELA CAUTELARE

Remo Caponi ......................................................................................................................... 696

TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL: O ANTECEDENTE DO PRECEDENTE

Renê Francisco Hellman ........................................................................................................ 706

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O PEDIDO DE SUSPENSÃO DE DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS À

FAZENDA PÚBLICA: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO

E SUA NECESSIDADE EM FACE DO ORDENAMENTO BRASILEIRO ATUAL

Alex Feitosa de Oliveira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará

(UFC). Defensor Público Federal.

RESUMO: O trabalho objetiva realizar uma análise da atual situação do pedido de

suspensão da decisão judicial em face do ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto,

pretende-se realizar um estudo com enfoque constitucional do instituto, em especial com o

estudo da constitucionalidade do pedido face às disposições da Carta Magna. Ainda, se

deseja verificar a atual utilidade de tal instrumento processual, indagando se com outros

instrumentos processuais postos à disposição da Fazenda Pública, seria possível a obtenção

dos mesmos efeitos do pedido de suspensão. Também se verifica se o uso do instrumento

está sendo realizado de forma apropriada pelos entes públicos.

PALAVRAS-CHAVE: Suspensão. Decisão. Constitucionalidade. Utilidade.

ABSTRACT: The work aims to conduct an analysis of the current request for suspension

of judicial decision in the Brazilian law. Therefore, we intend to conduct a study of

constitutional approach of the institute, in particular the study of the constitutionality of the

application against the provisions of the Constitution. It intends to check the current utility

of such procedural instrument, analyzing if, with other procedural tools madeavailable to

the Government, it would be possible to obtain the same effects of the request for

suspension. It includes the verification of whether the use of the instrument is being

conducted appropriately by public entities.

KEYWORDS: Suspension. Decision. Constitutionality. Utility.

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa a realizar uma abordagem constitucional acerca do

instituto de pedido de suspensão de decisão judicial, também denominado pedido de

suspensão de segurança1.

Em relação à nomenclatura utilizada, preferimos neste trabalho o termo

suspensão de decisão judicial2, visto que atualmente, como veremos, o pedido de

suspensão pode ser direcionado tanto a liminares, sentenças ou mesmo acórdãos em

processos não mais restritos ao mandado de segurança.

De forma resumida, tal instrumento permite ao Poder Público suspender a

executividade de decisão liminar ou mesmo sentença ou acórdão prolatado contra pessoa

jurídica de direito público3 em face do eventual cumprimento desta decisão causar grave

lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Como se nota, é uma

ferramenta posta ao Poder Público em defesa do interesse da coletividade, suprimindo

momentaneamente e de forma provisória, até o trânsito em julgado do processo, garantia

deferida judicialmente a um particular. Nota-se de pronto a força de tal instrumento, visto

que supre, mesmo que temporariamente, a execução de garantia de cidadão que,

eventualmente já violada no mundo dos fatos, teve seu reconhecimento dentro de uma

demanda judicial.

Em virtude de contrariar outras garantias dos indivíduos particularmente

considerados, o pedido de suspensão sofre várias críticas, em especial acerca de sua

constitucionalidade. A discussão remonta à origem do instituto, porém não deixa de ser

atual, até mesmo porque a nova lei do mandado de segurança4 reafirmou as características

presentes no instituto.

Entretanto, não se tem notado a existência de muitas discussões acerca da

necessidade de tal instrumento em face do atual estado de coisas do ordenamento jurídico

brasileiro, em especial em face dos meios recursais disponíveis às partes em uma demanda

1 Conforme será disposto, várias são as disposições legislativas que preveem o instituto, não cabendo, neste

momento do trabalho, elencá-las. 2 Também utilizaremos o termo abreviado pedido de suspensão. 3 Também será tratada a possibilidade de o pedido de suspensão de segurança ser protocolado por pessoa jurídica de direito privado, em casos excepcionais, quando no exercício de atividade pública e em defesa da

coletividade. 4 Lei 12.016/09.

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judicial, mais especificamente a possibilidade de recursos com efeito suspensivo. Assim,

embora por muitos considerado constitucional e democrático, o instituto da Suspensão da

Segurança merece uma melhor reflexão acerca de alguns pontos não suficientemente

abordados, de forma que a legislação aplicável e a construção jurisprudencial não

ofereceram ainda uma conformação cientificamente adequada, quando em contraste

interesses igualmente públicos e relevantes.

Ademais, o uso indiscriminado deste instrumento também traz à tona a

discussão acerca da real necessidade do mesmo, bem como da maturidade do Estado

Brasileiro para utilizar tal instrumento somente em casos excepcionais, quando realmente

há um risco de grave lesão a bens importantes da coletividade (segurança, saúde, ordem e

economia públicas).

Assim, pretende-se neste trabalho realizar uma discussão acerca da real

necessidade do instrumento, não deixando de realizar um enfoque constitucional do

instituto, traçando as principais teses acerca da constitucionalidade ou da

inconstitucionalidade do pedido de suspensão de decisão judicial.

2 HISTÓRICO DO PEDIDO DE SUSPENSÃO

O pedido de suspensão de decisão judicial contrária à Fazenda Pública, em que

pese ter seus fundamentos atribuídos a momentos anteriores5 da história, surge no Brasil

com a lei de mandado de segurança6, no ano de 1936. Tal lei foi publicada com o objeto de

regular a disposição constitucional7 que inaugurava o instituto do mandado de segurança

no ordenamento jurídico brasileiro. Não à toa, em virtude de ter sua criação atrelada a tal

5 Marcelho Abelha dispõe que as raízes do instituto podem ser atribuídas ao direito romano, com o instituto da intercessio, que consistia no veto que um magistrado fazia à execução de um ato ordenado por outro.

Afirma em sua obra que “Ora, não há dúvidas de que a origem do pedido de suspensão de execução de

decisão encontra ao menos inspiração na intercessio do período formulário”. Mais adiante continua

discorrendo que “É justamente essa inspiração romana que talvez venha a justificar a existência desse

instituto não só no Brasil, mas também nos países que adotam medida similar à nossa”. RODRIGUES,

Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: sustação da eficácia da decisão judicial proferida contra o Poder

Público. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.64-65. 6 Lei 191, de 1936, que dispunha: “Nos casos do art. 8º, §9º e art. 10º, poderá o Presidente da Corte Suprema,

quando se tratar de decisão da justiça local, a requerimento do representante da pessoa jurídica de direito

público interna interessada, para evitar grave lesão à ordem, à saúde ou à segurança pública, manter a

execução do ato impugnado até o julgamento do feito, em primeira ou em segunda instâncias”. 7 A Constituição de 1934 foi a primeira a prever o instituto do mandado de segurança em seu texto, visto que

em fases anteriores da historia do ordenamento brasileiro, a via do habeas corpus era utilizada também para

combater atos do Poder Público em situações não penais.

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instrumento constitucional, foi inicialmente denominada de pedido de suspensão de

segurança, nomenclatura ainda atualmente utilizada na doutrina e jurisprudência pátria.

Voltando ainda à origem do instituto, verifica-se que um dos principais

motivos ensejadores de sua criação foi a falta de previsão normativa, naquele momento8,

de recurso com efeito suspensivo da decisão que deferia a liminar em sede de mandado de

segurança9.

Entretanto, como veremos ao longo deste trabalho, após seu surgimento, várias

alterações foram introduzidas no instituto aqui discutido, com mudanças legislativas em

normas processuais civis que desvirtuaram em muito a função originalmente pensada para

o pedido de suspensão, sendo necessária, portanto, que seja realizada, para melhor

compreensão das discussões a serem aqui travadas, uma abordagem histórica que disponha

sobre a evolução do instituto.

2.1 Evolução legislativa

Várias foram as alterações legislativas em relação ao pedido de suspensão de

segurança, não sendo objeto do presente trabalho tratar com exaustão todas estas

alterações, mas apenas situar as principais modificações dentro do contexto em que foram

realizadas, para que se possa ter uma visão histórica ampla, que sirva como subsídio para a

análise constitucional do instituto.

Como já dito, o pedido de suspensão foi inicialmente criado em relação aos

processos de mandado de segurança, disposição esta surgida no ordenamento brasileiro no

ano de 1936. Após tal disposição legislativa, em que pese a Constituição Federal de 1937

ter abolido o writ constitucional do mandado de segurança, durante a vigência da citada

carta Magna, foi editado o Código de Processo Civil de 193910

, que trazia dispositivos

8 De fato não havia previsão de recurso contra a decisão que deferia a liminar em mandado de segurança,

visto que o recurso de agravo de instrumento era meio inexistente naquela época. 9 Na realidade, a proposta inicial legislativa era que o pedido da entidade pública fosse no sentido de atribuir

efeito suspensivo ao recurso contra decisão que deferia liminar em mandado de segurança. Marcelo Abelha

Rodrigues assim discorre: a proposta original do anteprojeto legislativo, de autoria do senador Alcântara

Machado, dava ao pedido de suspensão a função de atribuir efeito suspensivo ao recurso devidamente

interposto no caso concreto contra a decisão no mandado de segurança, sendo que a duração da medida

cingir-se-Ia ao julgamento desse recurso. O anteprojeto acabou recebendo modificações que, essencialmente,

desvincularam o pedido de suspensão da interposição recursal e impuseram a suspensão da decisão do mandado de até seu final julgamento”. A suspensão de segurança in Direito processual público: A Fazenda

Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 147-148. 10 Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro daquele ano.

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relativos ao mandado de segurança em seu Título V, arts. 319 a 331. Em relação ao pedido

de suspensão, também tal norma trouxe dispositivos sobre o tema, nos termos do art. 328,

in verbis:

Art. 328. A requerimento do representante da pessoa jurídica de

direito público interessada e para evitar lesão grave à ordem, à

saúde ou à segurança pública poderá o presidente do Supremo

Tribunal Federal ou do Tribunal de Apelação, conforme a

competência, autorizar a execução do ato impugnado.

Apesar de algumas poucas diferenças, o instituto continuava mantido no

ordenamento brasileiro. Com o fim do Estado Novo e a promulgação da Constituição de

1946, novamente a Constituição traz disposição expressa prevendo o writ of mandamus11

.

Já no ano de 1951, editou-se a Lei nº 1.533, que revogava as disposições relativas ao

mandado de segurança do Código de Processo Civil de 1939. O art. 13, que dispunha a

respeito do pedido de suspensão, previa, em sua redação original:

Art. 13. - Quando o mandado for concedido e o presidente do

Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos ou do

Tribunal de Justiça ordenar ao juiz a suspensão da execução da

sentença, desse seu ato caberá agravo de petição para o Tribunal a

que presida.12

Celso Agrícola Barbi dispõe que, após a promulgação da Constituição de 1946,

inicia-se um período de uso em maior escala do mandado de segurança, o que provocou

reações da Administração Pública no intuito de frear consequências prejudiciais que

algumas liminares deferidas aos cidadãos provocavam ao Poder Público. Afirma o mesmo

que:

11 De fato, o art. 141, § 24 previa o mandado de segurança. Ressalte-se que nenhuma outra carta política de

nosso país aboliu novamente o instrumento. 12 Analisando a redação do art. 13 verifica-se que a mesma peca ao não arrolar os motivos que deveriam ser

levantados para a concessão da medida suspensiva, ao contrário do regulamento pretérito, ficando ao arbítrio

do presidente a eleição do motivo que justificasse o pedido de suspensão. Um outro detalhe decorrente da

equivocada técnica legislativa é que o art. 13 não contemplou expressamente a possibilidade de suspensão da decisão que concede liminarmente a segurança; no entanto, tal raciocínio poderia ser deduzido do raciocínio

silogístico – se poderia suspender a sentença, que tem caráter de definitividade, também poderia suspender a

decisão in limine.

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Nos anos de 1946 a 1955, a propósito da importação de bens,

especialmente automóveis, que as autoridades do executivo

sustentavam não obedecer às exigências fiscais e cambiais,

surgiram então os denominados mandados de segurança coletivos,

para liberação de centenas de veículos de uma só vez. Obtida a

liminar e retirados da Alfândega os carros, os impetrantes

desinteressavam-se do andamento do feito, retardavam-no

deliberadamente, ou mesmo promoviam seu extravio, em conluio

com funcionários menos escrupulosos.13

Por consequência, foi editada a Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964,

complementar à Lei nº 1.533/51, ainda restrita ao mandado de segurança. No que interessa

ao presente estudo, dispunha o art. 4º daquela Lei:

Art. 4º Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito

público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à

segurança e à economia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual

couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em

despacho fundamentado, a execução da liminar, e da sentença,

dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo no prazo de

(10) dez dias, contados da publicação do ato.

Confere-se que esse artigo traz novamente expressas as hipóteses de cabimento

do instituto, suprimindo a falha na redação do art. 13 da Lei nº 1.533/51. Em relação a tais

hipóteses, em comparação com o art. 13 da Lei nº 191/36, vê-se que, entre as justificativas

para a suspensão da liminar ou sentença concessiva da segurança, foi incluída a grave lesão

à economia pública – restando mantidas as graves lesões à ordem, à saúde e à segurança

pública.

Justificando a promulgação da lei 4.348/64, em especial dos dispositivos que

tratam da suspensão de segurança, ao comentar a afirmação do autor acima citado,

Juvêncio Vasconcelos Viana dispõe que:

13 Do mandado de segurança. 7. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1993. p. 176-177.

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Denegados esses mandados de segurança, era praticamente

impossível a restituição do status quo ante, fazer a recuperação dos

veículos dispersos no território nacional ou ter a devolução

completa dos valores pagos a servidores. Tais problemas trouxeram

para nossa ordem jurídica, como sabemos, normas impeditivas de

liminares para liberação de mercadorias estrangeiras e de concessão

de aumentos e vantagens para servidores, bem como, em 1964, o

perfil do pedido de suspensão de segurança que temos até hoje (Lei

n. 4.348/64).14

Assim, após essa fase de afirmação legal da suspensão de segurança15

, seguiu-

se uma série de diplomas legislativos ampliando a aplicação desse instituto. Houve

ampliação da suspensão de segurança para os processos de ação civil pública, nos termos

do art. 1216

da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, bem como para a ação ordinária, ação

popular e ação cautelar inominada conforme art. 4º17

da Lei nº 8.437, de 30 de junho de

1992, já sob a égide da Constituição de 1988. Ainda foi estendido o instituto para a

antecipação de tutela através da lei nº 9.494, de 10 de setembro de 199718

e para o habeas

data, através da Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997, em conformidade com o art.

1619

.

14 Efetividade do processo em face da Fazenda Pública. São Paulo: Dialética, 2003, p. 236. 15 Foi exatamente da experiência da lei 4.348/64 que se estendeu, através de outras normas, o pedido de

suspensão para situações que não fossem a de processo de mandado de segurança. 16 Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a

agravo. § 1º A requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à

ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o

conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da publicação do ato. 17 Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso,

suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou

seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em

caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde,

à segurança e à economia públicas. § 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo

de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em

julgado. 18 Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto

nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº

5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. 19 Art. 16. Quando o habeas data for concedido e o Presidente do Tribunal ao qual competir o conhecimento

do recurso ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, desse seu ato caberá agravo para o Tribunal

a que presida.

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Cabe ainda fazer menção ao reforço, novamente infraconstitucional, que foi

dado à suspensão de segurança, através da publicação da Lei nº 8.038, de 28 de maio de

1990, que, a pretexto de regulamentar as competências (constitucionais) jurisdicionais do

STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), incluiu no art. 25, como outros

procedimentos, o seguinte:

Art. 25 - Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria

constitucional, compete ao Presidente do Superior Tribunal de

Justiça, a requerimento do Procurador-Geral da República ou da

pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave

lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública,

suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar ou

de decisão concessiva de mandado de segurança, proferida, em

única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou

pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.

§ 1º - O Presidente pode ouvir o impetrante, em cinco dias, e o

Procurador-Geral quando não for o requerente, em igual prazo.

§ 2º - Do despacho que conceder a suspensão caberá agravo

regimental.

Por fim, merece menção ainda a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de

agosto de 2001, que procedeu a profundas e controvertidas alterações ao regramento da

suspensão mandamental, notadamente nas Leis 4.348/64 e 8.437/92.20

E, mais

20 Acresceu os §§ 2º e 3º ao art. 4º da Lei nº 4.348/64: § 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o

agravo a que se refere o caput, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para

conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 2º Aplicam-se à suspensão de segurança de que

trata esta Lei, as disposições dos §§ 5º a 8º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. Alterou a

redação dos §§ 2º e 3º e incluiu os §§ 4º a 9º ao art. 4º da Lei nº 8.437: § 2º O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em setenta e duas horas. § 3º Do despacho que conceder ou negar a

suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua

interposição. § 4º Se do julgamento do agravo de que trata o § 3º resultar a manutenção ou o

restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do

Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 5º É cabível também o

pedido de suspensão a que se refere o § 4º, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto

contra a liminar a que se refere este artigo. § 6º A interposição do agravo de instrumento contra liminar

concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o

julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. § 7º O Presidente do Tribunal poderá conferir

ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a

urgência na concessão da medida. § 8º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes,

mediante simples aditamento do pedido original. § 9º A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal

vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal.

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recentemente, a nova Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016, de 07 de agosto de

2009, consolidando praticamente toda a legislação e jurisprudência dominantes sobre o

writ e revogando as Leis nº 1.533/51 e 4.348/64, então ainda vigentes, manteve a

normatização da suspensão mandamental, no art. 15, nos verbetes seguintes:

Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito

público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave

lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o

presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo

recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da

liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito

suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a

julgamento na sessão seguinte à sua interposição.

§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se

refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao

presidente do tribunal competente para conhecer de eventual

recurso especial ou extraordinário.

§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1º

deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento

interposto contra a liminar a que se refere este artigo.

§ 3º A interposição de agravo de instrumento contra liminar

concedida nas ações movidas contra o poder público e seus agentes

não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de

suspensão a que se refere este artigo.

§ 4º O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito

suspensivo liminar se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade

do direito invocado e a urgência na concessão da medida.

§ 5º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas

em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender

os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante

simples aditamento do pedido original.

Como se nota, apesar da abordagem aqui realizada não adentrar em todos os

pormenores da legislação que envolve o pedido de suspensão, que não são poucos, pode-se

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concluir que o instituto ainda carece de uma sistematização. Percebe-se que vários foram

os dispositivos legislativos a tratar da questão, havendo um princípio de convergência

sistêmica a partir da publicação da nova lei mandado de segurança, ao menos no que

respeita ao processo deste writ. Entretanto, ainda não há uma sistematização do instituto

para os diferentes tipos de ação, havendo previsões legislativas distintas e às vezes até

contraditórias para cada tipo procedimento. Ademais, verifica-se que, em nenhuma das

constituições brasileiras houve a previsão de tal instituto, o que traz à tona a possibilidade

de se questionar a constitucionalidade de tal instrumento processual, principal foco do

presente trabalho. Seria o instituto justificado à luz da principiologia e dos fundamentos

constitucionais atuais? Em razão disso, faz-se imperioso colocar o instituto sob o crivo

constitucional, para que se observe se o mesmo está em consonância com a ordem

constitucional vigente.

3 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DISPOSITIVO

Muitas discussões já se travaram acerca da constitucionalidade do pedido de

suspensão, até mesmo por não ser o instituto um instrumento tão novo em nosso

ordenamento.

Entretanto, várias alterações surgiram na ordem jurídica nacional desde a

primeira previsão do instrumento processual aqui discutido, devendo o operador do direito

fazer uma reanálise da necessidade e mesmo da constitucionalidade do dispositivo à luz da

nova situação presente.

Como vimos, o pedido de suspensão de segurança é um mecanismo posto à

disposição do poder público, e apenas dele, visto que o particular não possui instrumento

semelhante, para suspender uma decisão liminar contrária a tal ente, desde que presentes os

requisitos legalmente dispostos, quais sejam: grave lesão à ordem, à segurança, à saúde e à

economia públicas.

Assim, é certo que muitas discussões já foram travadas em relação à

constitucionalidade do dispositivo. Por exemplo, Elton Venturi dispõe que:

A duvidosa constitucionalidade do dispositivo, aliás, há muito tem

sido objeto de especulação doutrinária, seja pela sua concepção

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originária, seja pela forma de seu processamento em juízo. Invoca-

se, invariavelmente, a violação das garantias constitucionais do

acesso à justiça e do devido processo legal21

.

Já Juvêncio Vasconcelos Viana discorre que:

Alguns afirmarão que o pedido de suspensão é inconstitucional. De

outro lado, entretanto, argumenta-se que sempre que estiver em

jogo relevante interesse público ou for manifesta a ilegalidade da

decisão concessiva liminar (v.g. hipóteses de incompetência,

ausência de fundamentação), justifica-se plenamente a aplicação da

regra questionada, não se vislumbrando nesse procedimento

qualquer eiva de inconstitucionalidade por ofensa ao direito de

ação. É que o direito de ação, constitucionalmente assegurado, deve

ser exercido regularmente, sem abusos ou espíritos de emulação, e

em perfeita harmonia com a ordem jurídica.22

Percebe-se, portanto, que a discussão envolve um tema bastante digladiador de

opiniões, devendo ser analisado com muita cautela. De fato, podem ser abordados diversos

prismas atinentes à constitucionalidade do instituto, desde o aspecto formal até o material

e, dentro deste, se questionar vários pontos existentes no ordenamento, como por exemplo,

procedimento, legitimação, competência, etc. Entretanto, o principal objeto do presente

trabalho está em discutir a constitucionalidade material do instituto, principalmente no

concerne à discussão de supremacia do interesse público sobre o privado, bem como sua

necessidade em face do momento jurídico atual.

3.1 As hipóteses de cabimento e a constitucionalidade do pedido

O foco principal desde não pretensioso discurso é atentar para os aspectos

materiais/constitucionais do pedido de suspensão. E dentro destes aspectos materiais o

21 Suspensão de Liminares e Sentenças Contrárias ao Poder Público. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2005, p. 29 22 Ibidem, p. 237.

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primeiro que surge como um dos principais pontos de discussão é acerca da possibilidade

de suspensão de uma decisão jurídica correta, mas que, por afetar interesses da

Administração Pública que vão além do interesse individual, é cassada através do citado

instrumento. Ou seja, é constitucional a previsão de suspensão de segurança nos casos

dispostos legalmente, sem análise do conteúdo da decisão atacada?

De fato, este é a talvez a principal característica do instituto, pois, caso se

adentre no mérito da decisão, pelo menos considerando a atual configuração de nosso

ordenamento, tal instrumento se confundiria em muito com o recurso de agravo de

instrumento23

.

Para melhor visualizarmos a questão aqui posta, tomemos, por exemplo, a

decisão envolvendo o exame do ENEM de 2011. Foi proposta ação civil pública pelo

Ministério Público Federal do Ceará24

em que foi concedida liminar para que os candidatos

pudessem visualizar suas provas de redação e os espelhos de correção. Ora, um direito

plenamente consagrado em nosso ordenamento25

. Decisão juridicamente correta. Contudo,

23 A jurisprudência do STF, indo além do que prevê o instituto, tem admitido uma análise, ainda que

superficial dos fundamentos da decisão na via do pedido de suspensão. Juvêncio Vasconcelos Viana relata tal

ocorrência ao afirmar que “Assim, por exemplo, cuidando-se de causa a respeito da qual já esteja firmada

jurisprudência a favor do autor, não deveria a presidência suspender a execução da liminar. Faria a

presidência juízo acerca da probabilidade de reforma da decisão – ou da sentença – um exame da aparência do bom direito da entidade requerente. Ou seja, passa-se a verificar os requisitos próprios da tutela cautelar,

quais sejam, o fumus boni juris e o periculum in mora, sendo que esse último permeia-se nas diversas

espécies de grave lesão, citadas pela lei.” Ibidem, p.238. 24 Processo nº 0000014-35.2012.4.05.8100, Justiça Federal do Ceará. 25 Inclusive reconhecida em várias ações individuais propostas. Senão vejamos um desses julgados:

EMENTA PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. PRELIMINAR DE PREVENÇÃO POR

CONEXÃO A AÇÃO COLETIVA AFASTADA. ENEM 2011. DISPONIBILIZAÇÃO DO ESPELHO

DIGITALIZADO DA PROVA DE REDAÇÃO. DIREITO DO ALUNO. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º,

XXXIII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

1. Afasta-se a preliminar de prevenção por conexão da presente ação com a ação civil pública nº. 0000014-

35.2012.4.05.8100 que tramita perante o Juizo da 1ª Vara da mesma Seção Judiciária (CE) o que impunha a

reunião dos processos não merece prosperar, porquanto não se vislumbra a possibilidade de conflito entre o julgamento desta ação individual e aquela ação civil pública. 2. O CDC, cujas regras se aplicam de modo

geral à ação civil pública ( art. 117) estabelece que o julgamento da ação coletiva que verse acerca de direito

difuso ou coletivo não repercute em direitos ou interesses individuais.Todavia se a ação coletiva envolver

direitos individuais homogêneos, a coisa julgada em tais ações não afeta a açao individual a não ser para

favorecer o indivíduo e desde que este este requera a suspensão da ação individual, no prazo de 30 (trinta)

dias a contar da ciência nos autos da propositura da ação coletiva, conforme se deflui do art. 104 c/c o art. 81

do CDC, o que não ocorreu na hipótese. 3. Precedente do STJ: Segunda Seção, CC 111727, Relator: Min.

Raul Araújo, julg. 25/08/10, publ. DJ: 17/09/2010, decisão unânime. 4. A Constituição Federal assegura a

todos o direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo

ou geral, que serão prestadas no prazo legal, nos termos do art. 5º, XXXIII. Dessa forma, há de se reconhecer

ao aluno o direito de acesso ao espelho da prova de redação como forma de assegurar o direito constitucional à informação e a ampla defesa. 5. O fato do edital do ENEM nº 07, de 18 de maio de 2011, não prevê a

disponibilização da prova de redação ou dos espelhos de correção, não constitui impedimento para o

exercício do direito, tendo em conta que o edital deve estar em consonância com a constituição e a lei. O

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através de um deferimento de pedido de suspensão, o presidente do TRF da 5ª região

suspendeu os efeitos de tal decisão26

.

Tal caso paradigma serve para suscitar os questionamentos acerca da

constitucionalidade de tal dispositivo, e aqui é utilizado apenas com este objetivo. Como

dito, a decisão liminar está juridicamente correta, mas, por violar interesses da

Administração Pública, neste caso lesão à ordem pública, em consonância com as

disposições do pedido de suspensão, tal liminar teve suspensos seus efeitos27

. No caso de

mandado de segurança, cujo objetivo é resguardar um direito líquido e certo de um

cidadão, não se estaria indo de encontro a essa garantia constitucional ao se deferir o

pedido de suspensão de segurança?

Muitos defendem que sim. Acreditam alguns doutrinadores que o pedido de

suspensão de segurança viola direitos constitucionais dos cidadãos, exatamente por

suprimir a eficácia de um direito líquido e certo reconhecido judicialmente. Por exemplo,

Cassio Scarpinela Bueno, ao comparar o instituto com a garantia do mandado de segurança

afirma que:

“Se o que o mandado de segurança tem de mais caro é sua

predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis

ao impetrante, seja liminarmente ou a final, a mera possibilidade da

‘suspensão de segurança’ coloca em dúvida a constitucionalidade

do instituto. Em verdade, tudo aquilo que for criado pelo legislador

infraconstitucional para obstaculizar, dificultar ou empecer a

plenitude da eficácia do mandado de segurança agride sua previsão

edital é a lei que rege o concurso, porém suas normas só vinculam as partes se estiverem respeitando o

ordenamento jurídico pátrio. 6. Acerca do Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pela

Subprocuradoria Geral da República, pela União e pelo INEP, no qual restou estabelecido que apenas a partir

de 2012 a exibição das provas e dos espelhos seria viabilizada, já decidiu esta E. Segunda Turma que "não tem o condão de afastar a apreciação do Judiciário em situações como a presente, em que se alega lesão de

direito, em face da garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXV da CF/88, segundo o qual a lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"(PROCESSO: 00029144120124050000,

AG123447/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO, Segunda Turma,

JULGAMENTO: 08/05/2012, PUBLICAÇÃO: DJE 17/05/2012 - Página 381). 7.Os honorários advocatícios

devem ser mantidos no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), porquanto foram fixados com respaldo no art.

20, parágrafo 4º, do CPC. 8. Remessa oficial e apelação improvidas. (PROCESSO:

00002508420124058100, APELREEX24941/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL

FRANCISCO BARROS DIAS, Segunda Turma, JULGAMENTO: 30/10/2012, PUBLICAÇÃO: DJE

08/11/2012 - Página 131) 26 Pedido de suspensão de segurança nº SL 4293-CE, julgado pelo Presidente do TRF da 5ª Região. 27 Não iremos neste momento aprofundar o questionamento se realmente houve, no caso concreto, uma

violação aos interesses previstos legalmente, o que, acredita-se não ocorreu, visto que a ordem pública não

sofreu grave lesão em face desta decisão.

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constitucional. Nesse sentido, não há como admitir a

constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua

natureza jurídica. É instituto que busca minimizar efeitos do

mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se de figura

inconstitucional”. 28

Assim, o deferimento do pedido de suspensão de segurança violaria direito

fundamental do cidadão. Por outro lado, há quem sustente que em nome da ordem,

economia, saúde e segurança públicas, um direito individual, mesmo reconhecido em sede

de mandado de segurança, por exemplo, pode ser sacrificado em prol dos interesses da

coletividade. Como justificativa para se defender a constitucionalidade, muitas vezes

utiliza-se do argumento de que qualquer direito previsto constitucionalmente pode ser

relativizado, inclusive aquele direito assegurado por uma decisão liminar. De fato,

conquanto os direitos e garantias fundamentais não sejam absolutos, uma exceção como a

do pedido de suspensão demanda um reforço normativo no ordenamento, que se traduziria

num mínimo de previsão constitucional, de preferência específico para o mandado de

segurança. Observa-se que quando o constituinte quis propor limites aos direitos

fundamentais, ele o fez expressamente. E esse reforço normativo muitas vezes não é bem

exposto pela doutrina pátria. Senão vejamos o que dispõe Marcelo Abelha Rodrigues:

A nosso ver, portanto, é o próprio texto constitucional que assegura

a constitucionalidade do incidente de suspensão de execução de

decisão, seja quando assegura a proteção dos direitos individuais e

coletivos, seja quando se protegem os direitos sociais do art. 6º,

quando se prevê a ampla defesa, e, principalmente, quando se

protege o direito contra ameaça de lesão, que, no caso, é o que

ocorre29

.

Data vênia o entendimento acima exposto, parece que é possível justificar a

inconstitucionalidade do dispositivo utilizando-se os mesmos argumentos. De fato,

28 Mandado de Segurança. São Paulo, Saraiva, 2002. p.179.

29 Ibidem, p 125.

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defender a constitucionalidade do instituto utilizando como base argumentativa os direitos

do cidadão é, no mínimo, contraditório.

A despeito destas falhas quando da justificação da relativização dos direitos

dos cidadãos, conforme já relatado, talvez o principal argumento em defesa da

constitucionalidade do instrumento seja aquele baseado na supremacia do interesse público

sobre o privado. Neste caso, em face do direito da coletividade, que seria afetado se a

decisão judicial fosse de pronto executada, posterga-se tal execução para momento

posterior, após o trânsito em julgado do processo, onde já restaria plenamente comprovado

o direito pleiteado. Confirmando tal abordagem, no sentido de justificar a

constitucionalidade, o Ministro Sepúlveda Pertence afirmou em antigo julgado que o

instituto da suspensão de segurança:

É compatível com a Constituição porque verdadeiramente

inconciliável com o Estado de Direito e a garantia constitucional da

jurisdição seria impedir a concessão ou permitir a cassação da

segurança concedida, com base em motivos de conveniência

política ou administrativa, ou seja, a superposição ao direito do

cidadão das razões de estado; não é o que se sucede na suspensão

de segurança, que susta apenas a execução provisória da decisão

recorrível: assim como a liminar ou a execução provisória de

decisão concessiva de mandado de segurança , quando recorrível,

são modalidades criadas por lei de tutela cautelar do direito

provável – mas ainda não definitivamente acertado – do impetrante,

a suspensão dos seus efeitos, nas hipóteses excepcionais

igualmente previstas em lei, é medida de contracautela com vistas a

salvaguardar, contra o risco de grave lesão a interesses públicos

privilegiados, o efeito útil do êxito provável do recurso da entidade

estatal30

Como se vê, no aspecto material aqui abordado, para aqueles que defendem a

constitucionalidade do pedido de suspensão, argumenta-se a defesa da supremacia do

interesse público sobre o privado. Resta saber se, neste momento histórico, o Poder Público

30 TP, AgRSS 1149/PE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 03.04.1997, p. 18.138.

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está apto a fazer tal distinção de supremacia, buscando realmente o interesse público, da

sociedade, ao invés do interesse do ente que é demandado em uma ação. Isto porque, como

se tem visto nas demandas judiciais em que há deferimento de pedido de suspensão, que

não são poucas, muitas vezes o interesse protegido não é o da sociedade, mas do ente que

utiliza tal meio. Não é à toa que uma das principais críticas ao pedido de suspensão de

segurança é o seu uso inadequado. Por exemplo, vejamos como trata a questão do uso

inadequado Lúcia Valle Figueiredo:

Acontece que inconstitucional, a meu ver, é o uso que é feito do

artigo, porque se não fora o uso mal feito desse artigo, nós teríamos

exatamente aquela colocação inicial a que me reportei, dos

temperamentos à concessão da medida. Entretanto, tem sido feito,

às escâncaras, exatamente isso: o uso abusivo desse art. 4º, que nos

induz, a todos, a afirmar sua inconstitucionalidade, porque alegado

o interesse público relevante, nem é o mesmo justificado, e a

medida é concedida, suspendendo-se até a sentença. Portanto,

suspende-se até uma sentença, que já resultou de um exame, de

uma cognição completa da lide. A meu ver, utilizado desta maneira,

tenho de afirmar ser o artigo inconstitucional. Agora, acho possível

ser aproveitado como não inconstitucional, caso se lhe desse um

direcionamento próprio”.31

O argumento acima utilizado, data vênia, também não pode ser sustentado, pois

a doutrinadora defende a constitucionalidade do instituto, salientando a

inconstitucionalidade de seu uso, o que não nos parece justificável. Isto porque uma norma

não depende de seu bom ou mau uso para ser declarada constitucional. O mau uso de uma

norma deve ser combatido por outros instrumentos diferentes do controle de

constitucionalidade.

De fato, a questão que envolve o mau uso deve se situar não no plano da

constitucionalidade, mas no plano da política, em que se possa analisar se o momento

histórico é adequado para a manutenção de um instrumento tão poderoso nas mãos do

31 A liminar no mandado de segurança in Curso de Mandado de Segurança. Coord. Celso Antônio

Bandeira de Mello. São Paulo: Ed. RT, 1986, p. 111.

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Poder Público, muitas vezes desvirtuado de seu objetivo original.

Então, posicionando-se sobre a questão em relação à constitucionalidade, em

especial quanto ao aspecto de prevalência do interesse público sobre o privado, temos que

a norma é plenamente constitucional. Ora é plenamente possível, em um caso concreto,

que o cumprimento de uma decisão judicial realmente cause grave lesão à Administração

Pública e, em ocorrendo isso, a mesma deve sim ter sua execução suspensa. Isto porque,

conforme dispõe Marcelo Abelha Rodrigues:

Isso não quer dizer que o interesse privado é inconvivível com o

interesse coletivo, até porque se digo que aquele está limitado pelas

arestas deste último, é porque, então, admito a convivência de

ambos num mesmo momento histórico e social. Aliás, reside

exatamente aí o ponto nodal da questão: ao se pretender suspender

a execução de uma decisão, não se verifica o acerto ou desacerto do

convencimento do magistrado, qual seja, a legalidade ou

ilegalidade da referida decisão, nem, muito menos, significa

sacrificar o interesse individual, apesar de esta ser a expressão

rotineiramente utilizada, mas, contrario sensu, quer-se apenas

evitar que o interesse coletivo possa ser prejudicado ou lesionado

enquanto não se tem a certeza definitiva de afirmação do direito

daquele em favor de quem foi concedida a decisão cuja eficácia

pretende ser temporariamente suspensa.32

Como se nota, caso realmente haja, no caso concreto, grave lesão à

coletividade, é plenamente justificável a utilização do pedido de suspensão. Ou seja, a

norma é constitucional. Entretanto, em virtude do mau uso e de outros fatores aqui

tratados, defende-se que a mesma não é mais necessária ao nosso ordenamento.

Isto porque a grande questão que envolve a necessidade de tal medida é saber

se o Poder Público está em condições suficientes de fazer o uso adequado do instituto,

incluindo aqui também o Poder Judiciário na análise desta abusividade, e, em caso

negativo, decidir-se pela extinção de tal instituto do nosso ordenamento, não pela via da

inconstitucionalidade, mas pela via legislativa, o que inclusive já foi objeto de proposição

32 Ibidem, p.123.

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em nosso ordenamento, conforme Projeto de Lei 6.544/2006, de autoria do Deputado

Federal Carlos Souza, que pretendia retirar do ordenamento o pedido de suspensão, cuja

motivação é transcrita abaixo:

A vigente Carta Política, no seu art. 5º, inciso LXIX, estabeleceu a

garantia fundamental do mandado de segurança, visando a proteger

direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas

data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for

autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício das

atribuições do poder público.

Estabeleceu, ainda, no inciso XXXV do mesmo artigo, a garantia

fundamental da inafastabilidade do Poder Judiciário, sempre que

houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça.

Infere-se, da leitura dos dispositivos constitucionais apontados, que

o constituinte originário pretendeu excluir do mundo jurídico

qualquer reserva legal que permitisse ao legislador

infraconstitucional condicionar ou restringir o âmbito de aplicação

tanto do mandado de segurança quanto do direito de ação.

Ora bem, o art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964, ao suspender a

execução da liminar e da sentença em sede de mandado de

segurança, a pretexto de “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à

segurança e à economia públicas”, padece de manifesto vício de

inconstitucionalidade, por vulnerar as garantias fundamentais

aludidas.

Pelas mesmas razões, apresenta flagrante eiva de

inconstitucionalidade o art. 5º do mesmo diploma legal, ao vedar a

concessão de medida liminar de mandado de segurança impetrado

com vistas à “reclassificação ou equiparação de servidores

públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens”.

É certo que as justificativas apresentadas, baseadas na inconstitucionalidade

dos dispositivos, não são os melhores fundamentos de justificação. Isto porque, conforme

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já exposto, acredita-se que os principais fundamentos da medida são a sua desnecessidade,

em face da existência de outros instrumentos processuais que dão ao Poder Público a

possibilidade de proteger o interesse público, conforme veremos adiante, ou mesmo o mau

uso do instrumento, comprovado historicamente, em face do despreparo dos agentes

públicos que comandam as instituições do país, bem como do Poder Judiciário em coibir

tais usos inadequados. Infelizmente, com o advento da Lei 12.016/09, tal projeto foi

arquivado por perda de objeto, visto que pretendia promover alterações na lei 4.348/64,

revogada pela nova lei do mandado de segurança.

3.2 Da desnecessidade do instituto em face da existência de outros meios processuais

Como mais um argumento favorável à desnecessidade do instituto, além da

questão relativa ao mau uso do mesmo, observa-se que o instituto deixa de ser necessário

dentro do ordenamento jurídico, uma vez prevista a possibilidade ampla de recurso das

decisões de urgência, tanto pela via do agravo de instrumento quanto pela via da apelação,

ambas carreadas com a possibilidade de concessão do efeito suspensivo.

A nova Lei nº 12.016/09, superando os entendimentos doutrinários em sentido

contrário, deixa clara a possibilidade de interposição de agravo de instrumento da decisão

em sede de liminar, seja a de concessão, seja a de indeferimento do pedido. Ademais, é

importante destacar que, em virtude de reforma processual, buscou-se dar maior

importância ao agravo de instrumento, retirando-lhe matérias que não tinham o caráter de

urgência (as quais passaram a ser enfrentadas por agravo retido nos autos); tornou referido

recurso, pelo menos em sua concepção, mais eficiente e apto a responder a demandas

urgentes.

Marçal Justen Filho, por exemplo, ao criticar o instituto, traz como um dos

argumentos contrários ao mesmo o princípio da unicidade dos recursos visto que

principalmente após o advento da lei 9.139/05, que permitiu ao relator do recurso a

possibilidade de concessão de efeito suspensivo recursal nos casos de danos

potencialmente reversíveis tal regra:

Importou o efeito da derrogação das normas processuais anteriores,

que dispunham sobre o mesmo tema. Por efeito da nova legislação,

a ponderação do cabimento da suspensão da eficácia da decisão

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recorrida, em virtude de risco danosos de outra ordem, foi retirada

da competência do presidente do tribunal e foi integrada na

competência do magistrado relator do recurso.33

A concepção do autor talvez seja um pouco forçada ao afirmar ser um caso de

derrogação da norma, mas condiz com o que foi exposto no tópico anterior: a necessidade

de alteração legislativa. E tal alteração legislativa seria necessária apenas para confirmar a

extirpação deste instrumento de nosso ordenamento, também por já existirem outros meios

processuais para defesa dos interesses dos entes públicos.

Nada obstante, com base numa complicada isonomia material do processo,

ainda seria possível e até mesmo aceitável a previsão em lei de uma preferência ou

preponderância na ordem de apreciação dos pedidos suspensivos dos agravos de

instrumento e das apelações pelo tribunal quando o recurso interposto pelo Poder Público

fosse fundamentado nos pressupostos da suspensão de liminar (“grave lesão à ordem, à

saúde, à segurança e à economia públicas”). Poderia se pensar até mesmo que, nestes

casos, o recurso de agravo de instrumento fosse direcionado ao presidente do tribunal que

analisaria o mérito da questão e não somente possibilidades não jurídicas como aquelas

elencadas na lei 12.016/09 e outros diplomas legislativos.

É claro que o que se está aqui a discorrer não contradiz com o entendimento

antes exposto acerca da constitucionalidade do dispositivo, quando analisado sob o prisma

da supremacia do interesse público sobre o privado, mas apenas poderia servir, por

exemplo, como uma fase de transição entre o estágio atual e a retirada total do instituto do

ordenamento, tendo em vista a sua plena desnecessidade, aqui defendida.

Porém, nada impediria a retirada do instituto do ordenamento jurídico já neste

momento, visto que, conforme já amplamente disposto, seu uso inadequado não está sendo

aceito pela coletividade, real beneficiária de tal instrumento, ao menos no plano teórico.

3.3 O princípio da isonomia

Outro questionamento atinente ao pedido de suspensão de segurança e sua

constitucionalidade diz respeito à violação ao princípio da isonomia, pois o indivíduo

33 Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.782.

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estaria com menos armas para defesa do seu direito em relação à Administração Pública.

Isto porque, conforme dito, a legislação em questão traz a possibilidade de manejo do

instituto apenas pelos entes públicos34

.

Por exemplo, Nelson Nery Junior afirma que:

Fere o princípio da isonomia, pois o Poder Público teria as

seguintes oportunidades para impugnar a decisão concessiva da

liminar, suspendendo a eficácia do ato coator: a) agravo; b) pedido

de suspensão; c) agravo contra denegação do pedido de suspensão;

d) novo pedido de suspensão no STF ou STJ; e) agravo interno

(CPC, art. 557, §1º) contra ato do presidente do STF ou STJ que

denega o segundo pedido de suspensão. O particular, a seu turno,

somente poderia impugnar a decisão denegatória de liminar com o

recurso de agravo. São cinco chances contra uma, em flagrante

ofensa à CF, art. 5º, caput, I35

.

Como se nota, há posicionamento no sentido de que o instituto em questão

violaria o princípio da isonomia. Entretanto, fazendo-se uma detalhada análise das normas

constitucionais, podemos verificar que a proteção do interesse público pode sobrepor

outros princípios no caso concreto, inclusive o princípio da isonomia.

Marcelo Abelha Rodrigues bem discorre sobre a questão:

Em se tratando de proteção da ordem, da economia, da segurança e

da saúde pública, tema do nosso trabalho, há que se admitir a

existência, ainda que abstratamente, de proteção a direitos difusos.

Neste ponto está o Estado legitimado na proteção de tais direitos,

na exata medida em que o próprio texto constitucional determinou

34 Aqui também considerados o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito privado em exercício de

função pública, conforme tem reconhecido a jurisprudência pátria. A título de exemplo veja: PROCESSUAL

CIVIL. SUSPENSÃO DE DECISÃO. LEGITIMIDADE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA.

PARALISAÇÃO DE OBRAS DO METRÔ. RISCO INVERSO DE LESÃO À ECONOMIA E À ORDEM

PÚBLICAS. 1. As pessoas jurídicas têm legitimidade para requerer suspensão de decisão quando estiverem

no desempenho de serviços públicos por delegação de competência, onde inafastável o interesse público e a

iminente lesão aos bens jurídicos tutelados pelas leis de regência 2. Já existindo recursos financeiros,

materiais, maquinário pesado e pessoal qualificado para a execução do empreendimento, o comprometimento

da parte da obra já realizada (maior parte) caracteriza a potencialidade de grave lesão à ordem e à economia públicas. 3. Agravo a que se nega provimento. (AgRg na SLS . 2/PI, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL,

CORTE ESPECIAL, julgado em 29/06/2005, DJ 19/09/2005, p. 170) 35 Código de Processo Civil comentado. 5. Ed. São Paulo: RT, 2001, p. 1.650.

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ser, nos arts. 1º ao 6º e nos próprios 170, 200, etc., de sua

incumbência direta a promoção da defesa, da proteção, da garantia

e da conservação da ordem jurídica, da saúde, da segurança e da

economia públicas.36

Assim, a justificativa daqueles que defendem a constitucionalidade se baseia

exatamente em argumentar que não se trata de um privilégio da Administração, mas sim de

uma prerrogativa, conferida exatamente para a defesa da coletividade e dos valores

previstos constitucionalmente para que o Estado a defenda. O mesmo doutrinador arremata

a questão afirmando:

Assim, retomando a questão da constitucionalidade da suspensão

de segurança, tem-se que este instituto deve ser tomado como

materialmente constitucional porque funciona como uma

prerrogativa processual do Poder Público. Por sua vez, dita

prerrogativa decorre dos reflexos da normatização dos interesses

que concernem à sociedade e que são geridos pelo Poder Público. É

que a normatização destes interesses está submetida a dois

postulados máximos (regime jurídico de direito público) que são o

princípio da legalidade e o da supremacia do interesse público.37

E se concorda com tal posicionamento, com a ressalva, já exaustivamente

disposta aqui, de que o uso deve ser o adequado e, em caso de não o ser, conforme se

visualiza em nosso ordenamento no momento atual e na história recente, a medida não

seria na verdade inconstitucional, mas desnecessária e incabível em face da situação

histórica vivida pela Administração Pública brasileira, que não amadureceu o suficiente

para utilizar tal instituto apenas de maneira excepcional38

.

36 Ibidem, p.120. 37 Ibidem, p. 121. 38 A doutrina, em sua maioria, defende uma interpretação restritiva no uso do pedido de suspensão. A

jurisprudência também tem alguns parcos julgados em que defende a interpretação restritiva das hipóteses de

utilização do instrumento. Por exemplo, PROCESSUAL CIVIL. SUSPENSÃO DE LIMINAR.

INSTRUMENTO PROCESSUAL DE EXCEÇÃO. LEGISLAÇÃO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. FEITOS DE NATUREZA PENAL. 1. Em face da ausência de previsão legal, não é possível a utilização de

Pedido de Suspensão para sobrestar os efeitos de liminar concedida em Revisão Criminal, que suspendeu o

cumprimento de condenação por prática de peculato. 2. Agravo Regimental a que se nega provimento. (AgRg

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Assim, outras medidas podem ser visualizadas para a retirada do ordenamento

jurídico brasileiro deste instituto ou mesmo uma maior cobrança da população e dos órgãos

fiscalizadores por um uso adequado do mesmo. A respeito desta cobrança, pode-se citar

uma iniciativa citada por Elton Venturi, narrando que:

Para que se tenha uma breve ideia da controvérsia atualmente

gerada pelo uso indiscriminado dos pedidos de suspensão, diversas

organizações da sociedade civil brasileira, irresignadas com a

possível arbitrariedade com a qual o TRF da 1ª Região ordenou as

suspensões de provimentos judiciais liminares que, acatando

pedido do Ministério Público Federal em ação civil pública,

suspendiam a construção da Usina de Belo Monte, no Estado do

Pará, encaminharam à “Relatoria de Independência de Juízes e

Advogados da ONU” uma solicitação formal no sentido de que a

referida entidade expeça recomendações ao Estado brasileiro, no

sentido de se superar a contradição do mecanismo dos pedidos de

suspensão de liminares e sentenças, na medida em que se verifica

flagrante acúmulo de duas funções contraditórias pelo Presidente

do Tribunal, que tem o poder de anular decisões contrárias ao

Poder Executivo ao mesmo tempo em que tem a necessidade de

negociar com este Poder o orçamento do Tribunal, confundindo

assim, a relação política com a competência para julgar o Poder

Público, conforme notícia divulgada no site www.global.org.br.39

Como se nota, um desses caminhos é pressionar o Estado brasileiro para que,

mesmo não retirando o instituto do ordenamento, pelo menos o utilize de forma adequada,

realizando uma interpretação restritiva dos casos de aplicação da norma.

4 CONSTITUCIONALIDADE DO PEDIDO DE SUSPENSÃO PER SALTUM

Além da discussão acerca da constitucionalidade do pedido de suspensão

na SLS .190/SE, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/03/2006, DJ

10/04/2006, p. 94) 39 Ibidem, p. 34.

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propriamente dito, questiona-se ainda com mais veemência, com maiores adeptos a favor

de sua inconstitucionalidade, a possibilidade de renovação do pedido de suspensão

denegado junto aos Tribunais Superiores que foi inicialmente trazida pela MP 2.180-35 e

posteriormente confirmada pela lei 12.026/09. Dispõem os §§ 1º e 2º do art. 15 da Lei nº

12.016/09:

Art. 15. [...].

§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se

refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao

presidente do tribunal competente para conhecer de eventual

recurso especial ou extraordinário.

§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1º

deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento

interposto contra a liminar a que se refere este artigo.

Esses dois dispositivos, também previstos nos §§ 3º e 4º da Lei nº 8.437/92,

preconizam, de forma sucinta, que das decisões de indeferimento dos pedidos de suspensão

perante os tribunais de 2ª instância, podem os entes públicos legitimados fazer um novo

pedido de suspensão ao STJ ou STF, requerendo a sustação dos efeitos da liminar

concedida, em face das hipóteses de grave lesão previstas.

Conforme já citado através de trecho do ilustre processualista Nelson Nery

Júnior, considerando-se as situações possíveis através da análise da norma, na concessão

de uma liminar, caberá tanto um pedido de suspensão, quanto a interposição do agravo de

instrumento; se aquele pedido for indeferido, caberá tanto um novo pedido de suspensão,

quanto o atravessamento de agravo interno; desprovido o agravo de instrumento

eventualmente interposto, caberá um novo pedido de suspensão, e, desprovido o agravo

interno do indeferimento do pedido de suspensão, caberá novo pedido de suspensão. Uma

vez não acolhidos todos aqueles pedidos de suspensão, e proferida sentença que modifique

a decisão de mérito,40

caberá mais um pedido de suspensão, e indeferido esse pedido e

interposto (e denegado) eventual agravo interno do indeferimento, caberiam novos pedidos

40 Isso porque há entendimento no sentido de que, se a suspensão de liminar que foi objeto de agravo interno foi indeferida pelo órgão pleno do Tribunal, e a sentença mantém os mesmos fundamentos e a mesma decisão

de mérito, haveria vinculação do Presidente desse Tribunal da suspensão de segurança que viesse a ser

prolatada.

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de suspensão, uma vez que, conforme a natureza do tema versado, as suspensões poderão

ser duplas, indo tanto ao STJ quanto ao STF. Numa situação extrema, mas legalmente

autorizada, o Poder Público teria nada mais que doze oportunidades de suspensão

mandamental para um mesmo processo.

Em que pese defendermos a constitucionalidade do pedido de suspensão de

segurança, achando-a, entretanto, desnecessária, o instituto da renovação do pedido de

segurança, a nosso ver, foge da razoabilidade. O pedido de suspensão de segurança já seria

o meio adequado para corrigir graves lesões ao interesse público não sendo necessária a

criação de mais um instrumento para defesa deste interesse, pois neste caso, em face da

gritante irrazoabilidade e desproporcionalidade, entendemos por inconstitucional tal

dispositivo.

Trata-se de verdadeiro e inegável abuso na utilização da via processual para se

buscar qualquer que seja o fim público almejado, com excesso de atividades burocráticas e

custosas para a Fazenda Pública, tornando ainda mais ineficiente o Poder Judiciário,

notadamente na segunda instância (mediante violação ao devido processo legal e à duração

razoável do processo).

Outro detalhe relevante no que diz respeito à pluralidade de suspensões está no

fato de que as de segundo nível (ou seja, as que decorrem de negativa de suspensão ou de

agravo interno, dirigidas ao STF ou ao STJ conforme o tema) já não possuem por

fundamento aquela decisão cautelar originalmente proferida pelo juiz natural, mas atacam

uma decisão com análise restrita aos fundamentos da suspensão negada – ordem, saúde,

segurança ou economia públicas – aliadas eventualmente a um mínimo de verificação do

fumus boni juris por parte da Administração. Dessa forma, corre-se o risco de ter uma

decisão suspensa por um Tribunal sem o conhecimento explícito de sua fundamentação,

que poderia motivar nova negativa, mas que, em virtude da restrição argumentativa da

primeira suspensão de liminar, acaba sendo obscurecida pelo teor desta.

Costuma-se apontar, ainda nessa hipótese, a questão da suspensão da não

suspensão ou suspensão “per saltum”41

, ou ainda a suspensão “por salto de instância”42

,

41 ROCHA, Caio Cesar Vieira. O pedido de suspensão de decisões proferidas contra o poder público.

Dissertação. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2006, p. 155. 42 CAVALCANTE, Mantovanni Colares. Mandado de Segurança. Dialética. São Paulo: 2002, p. 171.

Ainda segundo este autor, p. 173, “Essa fórmula de interposição de nova suspensão de segurança, dirigida

diretamente ao presidente do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, acaba formando

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reforçando a abusividade do instituto, diante da qualificação da violação da garantia do juiz

natural, por autorizar que tribunal superior decida sobre matéria ainda em discussão no

juízo monocrático, quando haveria a clara necessidade de esgotamento da instância

inferior.

Entretanto, ainda se discute em sede jurisprudencial a possibilidade de

julgamento do novo pedido de suspensão antes de esgotadas as instâncias do pedido de

suspensão anterior43

.

A despeito das questões processuais acima postas apenas a título de trazer mais

subsídios para o debate, o certo é que a medida em questão soa como desproporcional e

irrazoável, por ultrapassar os limites constitucionais permitidos para proteção do interesse

público, já protegido através da possibilidade do primeiro pedido de suspensão.

5 CONCLUSÃO

O presente trabalho, dentro das limitações existentes, procurou verificar

aspectos constitucionais relativos ao pedido de suspensão de segurança. Iniciou-se através

de uma breve análise histórica do instituto, trazendo as principais alterações legislativas

ocorridas desde seu surgimento no ordenamento jurídico brasileiro, no ano de 1936. Viu-se

que, apesar de todas as críticas formuladas por ilustres processualistas o pedido de

suspensão continua sendo amplamente utilizado, até mesmo em casos que originariamente

não estariam englobados em suas hipóteses.

Dentro do objetivo pretendido, procurou-se verificar as principais teses que

sustentam a constitucionalidade e a inconstitucionalidade do instituto. Foram trazidos os

argumentos de supremacia do interesse público sobre o privado, bem como a defesa de

uma jurisdição seletiva, ficando a cargo dos órgãos de jurisdição especial o julgamento de feitos que

competiria aos órgãos de jurisdição comum.” [grifos no original]. 43 O STJ, mudando seu posicionamento, tem vislumbrado a possibilidade de julgamento do novo pedido de

suspensão antes de esgotadas as instâncias do pedido anterior. Por exemplo: AGRAVO REGIMENTAL.

SUSPENSÃO DE LIMINAR. PLEITO INDEFERIDO PELO PRESIDENTE DO TRIBUNAL A

QUO. FORMULAÇÃO DE NOVO PEDIDO PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

AGRAVO INTERNO NA CORTE DE ORIGEM. DESNECESSIDADE. – Nos processos de incidência da

Lei n. 8.437, de 30.6.1992, o ajuizamento de novo pedido de suspensão junto ao Superior Tribunal de Justiça,

após negado o primeiro pelo Presidente do Tribunal a quo, não se condiciona à interposição ou ao julgamento

de agravo interno na origem. Precedente: AgRg na SL n. 96-AM. Agravo provido, a fim de que seja decidido

o mérito do pedido de suspensão. (CE, AgRg na SLS 370/PE, rel. Min. Barros Monteiro, j. 06.06.2007, DJ 13.08.2007). Já o STF tem sido mais restrito, não possibilitando a análise do pedido antes de esgotadas as

instâncias do pedido anterior, salvo em casos excepcionais (STF, STA 311/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, j.

12.03.2009).

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mandamentos constitucionais que garantem ao estado a utilização de meios (prerrogativas)

para proteger os interesses coletivos. Ao mesmo tempo, apresentaram-se argumentos no

sentido da inconstitucionalidade do dispositivo como violação ao princípio da isonomia, do

devido processo legal, entre outros.

Ademais, também se verificou o problema da constitucionalidade do chamado

pedido de suspensão per saltum, uma espécie de renovação de pedido de suspensão

denegado por tribunal de 2ª instância, direcionado ao STF ou STJ.

Como resultado da reflexão, entende-se que a norma que prevê o pedido de

suspensão de segurança pode sim ser justificada como norma constitucional, por ter como

fundamento a proteção do interesse da coletividade. Acontece que, conforme exposto, o

uso inadequado de tal dispositivo, aliado a outras alternativas recursais presentes

atualmente em nosso ordenamento acabam por não mais justificar, pelo menos neste

momento histórico, a manutenção do pedido de suspensão

Assim, não estando a máquina pública, aqui entendida não somente como a

gama dos três poderes, preparada para a utilização de forma restritiva e excepcional do

pedido de suspensão, urge como medida necessária e essencial a extinção de tal instituto do

nosso ordenamento, sendo a via legislativa a mais adequada para tal tarefa, visto que a

inconstitucionalidade do dispositivo, no nosso entendimento, não pode ser declarada.

De forma contrária, em relação ao pedido de suspensão de segurança per

saltum, entende-se que o mesmo viola o princípio da razoabilidade e proporcionalidade,

trazendo uma garantia que vai além do interesse da coletividade, visto que tal interesse já

pode ser verificado quando do julgamento do primeiro pedido de suspensão, sendo,

portanto, um privilégio da Administração Pública, devendo assim ser declarada

inconstitucional pela Corte Suprema.

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AS AÇÕES COLETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: DE

ONDE VIEMOS, ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS?

COLLECTIVE ACTIONS IN CONTEMPORARY BRAZILIAN LAW: WHERE WE

COME FROM, WHERE ARE WE AND WHERE WILL WE GO?

Andre Vasconcelos Roque

Doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ.

Professor de Direito Processual Civil em cursos de pós-

graduação (UFJF e UNIT). Membro do IBDP, CBAr e IAB.

Advogado.

RESUMO: O tema das ações coletivas, nas últimas décadas, vem recebendo destaque cada

vez maior na doutrina brasileira. O desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil foi

marcado por três grandes momentos: a aprovação da Lei da Ação Civil Pública em 1985, a

promulgação da Constituição da República de 1988, e o advento do Código de Defesa do

Consumidor em 1990. No entanto, embora não sejam poucos os méritos, os processos

coletivos no Brasil falharam em sua promessa de proporcionar uniformidade de decisões,

celeridade e economia processual. O presente artigo, assim, visa a investigar quais são as

perspectivas para as ações coletivas no Brasil, destacando o recente desenvolvimento de

um microssistema de processos coletivos, as tentativas de codificação sobre a matéria e o

papel que elas desempenharão no futuro, junto com outros meios de resolução coletiva de

litígios.

PALAVRAS-CHAVE: Ações coletivas – Microssistema – Reformas legislativas –

Incidente de resolução de demandas repetitivas.

ABSTRACT: The theme of collective actions, in recent decades, received growing

attention in the Brazilian doctrine. The development of collective protection in Brazil was

marked by three major episodes: the approval of the Public Civil Action Law in 1985, the

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promulgation of the Constitution of 1988 and the advent of the Code of Consumer

Protection in 1990. However, in spite of its considerable merits, collective actions in Brazil

failed in its promise to provide uniformity of decisions, speed and procedural economy.

This article therefore aims to investigate what are the prospects for collective action in

Brazil, highlighting the recent development of a microsystem of collective actions, the

attempts to approve a code on the matter and the role they will play in the future, along

with other collective dispute resolution procedures.

KEYWORDS: Collective actions – Microsystem – Legislative reforms – Incident of

repetitive dispute resolution.

SUMÁRIO: 1. De onde viemos – 2. Onde estamos – 3. Para onde vamos; 3.1 O

microssistema dos processos coletivos; 3.2 Rumo à codificação?; 3.3 As ações coletivas e

outros meios de resolução coletiva de litígios – 4. Considerações finais – 5. Referências

bibliográficas.

1. De onde viemos

O tema das ações coletivas, nas últimas décadas, vem recebendo destaque cada vez

maior na doutrina brasileira. Mesmo a partir das discussões que se desenvolvem sobre o

novo Código de Processo Civil, que concentrou sua atenção em outro instituto voltado à

resolução de litígios de massa (o “incidente de resolução de demandas repetitivas”), não se

arrefeceram os debates sobre os novos rumos da tutela coletiva no Brasil, suas perspectivas

e dificuldades. A rejeição, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos

Deputados, do Projeto de Lei nº 5.139/2009, que propunha uma nova Lei da Ação Civil

Pública, foi apenas uma etapa (negativa?) no lento processo de aprimoramento da tutela

coletiva no Brasil.

Uma ação coletiva, por definição, envolve a tutela de interesses compartilhados por

outras pessoas, que não atuam formalmente no processo1. Em qualquer ação dessa

1 Segundo MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro, Ações coletivas e meios de resolução coletiva de

conflitos no direito comparado e nacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 30, a noção de

legitimidade extraordinária (que se caracteriza pela falta de coincidência entre as partes da relação jurídica

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natureza, a pretensão deduzida estará vinculada a uma coletividade, categoria, classe ou

grupo, bem como a indivíduos, não pertencendo o bem tutelado, com exclusividade, às

partes formais do processo. Diferencia-se o instituto em questão do litisconsórcio, na

medida em que tal fenômeno seria incapaz de tutelar de forma minimamente eficiente e

adequada os interesses de milhares ou até mesmo de milhões de pessoas em um único

processo, sem comprometer seu bom andamento e sua razoável duração.

Sem dúvida nenhuma, o direito brasileiro ocupa papel de destaque entre os países

da civil law no âmbito das ações coletivas. Não é a oportunidade adequada para se

apresentar um exame histórico detalhado da matéria no Brasil, mas não se poderia deixar

de destacar três diplomas que foram essenciais para a consolidação da tutela coletiva no

país: a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), a Constituição da República de 1988 e

o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Ao longo dos últimos vinte anos,

não apenas foram aprovadas estas e outras leis importantíssimas, como se despertou o

interesse de substanciosa doutrina sobre o tema. O assunto desponta, a todo momento, em

inúmeras monografias, dissertações de mestrado, teses de doutoramento e artigos

específicos2.

Em linhas gerais, as ações coletivas brasileiras se desenvolveram a partir das class

actions norte-americanas, mas por via indireta, principalmente através dos estudos da

doutrina italiana na década de setenta do século passado3. Embora já existisse no Brasil a

Lei da Ação Popular desde a década anterior (Lei nº 4.717/1965), até aquele momento, a

doutrina ainda não havia voltado as suas atenções para o estudo dos interesses coletivos e

da sua tutela em juízo4.

Os estudos da doutrina italiana sobre o tema durante os anos setenta foram aqui

recebidos por importantes processualistas. O desenvolvimento da problemática atinente à

proteção dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos foi marcado pelo

processual e as partes da relação jurídica de direito material defendida em juízo) seria essencial à definição

de uma ação coletiva. 2 V. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Defendant class action brasileira: limites propostos para o “Código

de Processos Coletivos”. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro;

WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos

Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 308/309. 3 V., GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. In: A

marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 17/23, reproduzido em GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado. 9 ed. rev. atual. e amp. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 792/797. 4 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 192.

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pioneiro estudo do mestre José Carlos Barbosa Moreira, intitulado A ação popular do

direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses

difusos” e publicado originalmente ao final da década de setenta5. Em síntese, tal estudo

estabeleceu uma tipologia dos interesses supraindividuais, refletindo na classificação legal

adotada anos mais tarde pelo art. 81 do Código de Defesa do Consumidor6.

Ainda no final da década de setenta do século XX, também se destacaram no estudo

do tema os não menos eminentes juristas Ada Pellegrini Grinover e Waldemar Mariz de

Oliveira Júnior, que publicaram importantes trabalhos, em que buscavam desbravar os

novos conceitos e questões envolvidas na tutela jurisdicional dos interesses coletivos e

difusos7. Os esforços e o ativismo da doutrina processualista, aliados à fase de

redemocratização e de fortalecimento dos novos direitos por que passava o Brasil na

década seguinte, criaram as condições ideais para o desenvolvimento da tutela coletiva8. O

Ministério Público começou também a chamar para si novas responsabilidades, como a

proteção ambiental e ao patrimônio público, indo além da tradicional persecução penal e da

defesa dos incapazes.9

5 V. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela

jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: Temas de direito processual (primeira série). 2 ed. São

Paulo: Saraiva, 1988, p. 110/123. 6 V., nesse sentido BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular... Op. Cit., especialmente p.

111/113, refletindo sobre hipóteses que caracterizam os atuais direitos difusos e coletivos stricto sensu. Por

outro lado, a noção de direitos individuais homogêneos constitui uma inovação do sistema jurídico brasileiro,

em certa medida inspirado neste aspecto nas class actions americanas de tipo (b)(3). V. WATANABE,

Kazuo. Disposições gerais (arts. 81 a 90). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 826. 7 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. In: Novas tendências do

Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990 (estudo publicado originalmente em 1979) e

OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos, Revista de

Processo, n. 33, p. 7/25, jan./mar. 1984 (trabalho publicado originalmente em 1978). 8 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit., p. 193; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes.

Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2013, v. 4, p. 30. Segundo pondera Márcio Flávio

Mafra Leal, não houve propriamente um movimento social para o desenvolvimento das ações coletivas no

Brasil, mas sim uma “revolução” de professores e profissionais do Direito, influenciados pelos estados da

doutrina italiana. V. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 184. No entanto, se não fossem as condições sociais e históricas de redemocratização do Brasil na época, é provável que os processos coletivos tivessem ficado confinados aos

círculos acadêmicos. 9 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 193.

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2. Onde estamos

Como já visto acima, o desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil foi marcado

por três grandes momentos: a aprovação da Lei da Ação Civil Pública em 1985, a

promulgação da Constituição da República de 1988, e o advento do Código de Defesa do

Consumidor em 199010

. Passados mais de vinte anos desde a aprovação da Lei de Ação

Civil Pública, o direito brasileiro consolidou-se em uma posição de vanguarda na matéria.

A experiência do Brasil influenciou outros países, sobretudo na América Latina, a

prestigiarem e consolidarem a tutela de direitos e interesses transindividuais em seus

ordenamentos jurídicos11

.

A legislação brasileira atual em termos de ações coletivas, que se encontra

estruturada basicamente na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do

Consumidor, revela extraordinários méritos. Em primeiro lugar, o art. 81 do Código

consumerista estabelece uma definição legal do que constituem os interesses e direitos

difusos e coletivos stricto sensu, evitando controvérsias que ainda não foram bem

resolvidas até hoje em outros países12

. Além disso, inovando em relação à doutrina italiana

clássica, previu uma categoria dos chamados direitos e interesses individuais homogêneos,

em certa medida inspirada nas class actions americanas de categoria (b)(3), permitindo

assim que direitos individuais de origem comum pudessem ser coletivamente tutelados em

10 Evidentemente, o presente estudo não tem por objetivo apresentar um exame histórico detalhado das ações

coletivas no Brasil. Sobre o tema, entre muitos outros, v. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit.,

p. 191/200; LEAL, Márcio Flávio Mafra. Op. Cit., p. 183/187; LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil

pública. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 150/158; DINAMARCO, Pedro da

Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 36/40; LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do

processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 52/55 e MANCUSO, Rodolfo de Camargo.

Jurisdição coletiva e coisa julgada – teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 47/55. 11 De uma forma geral, a influência foi sentida de forma indireta, passando sobretudo pelos princípios do

Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América, que incorporou a ideia brasileira da tutela

jurisdicional dos interesses difusos, com algumas modificações. Nesse sentido, relatando a influência do

Código Modelo sobre as legislações do Uruguai, Argentina, Portugal, Chile, Paraguai, Peru, Venezuela e

Colômbia, em maior ou menor extensão, v. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Modelo de Processos

Coletivos para Ibero-América – Exposição de Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.).

Tutela coletiva – 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos; 15 anos do

Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006, p. 26/27. 12 Segundo José Carlos Barbosa Moreira, os direitos difusos eram conhecidos ao final da década de setenta na

doutrina italiana como um “personagem absolutamente misterioso”. V. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular do direito brasileiro... Op. Cit., p. 113. A expressão é encontrada em VILLONE, Massimo.

La collocazione istituzionale dell’interesse diffuso. La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato.

Milano: Giuffrè, 1976, p. 73.

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um único processo, com o objetivo de promover o acesso à justiça, a economia processual

e uniformidade das decisões.

Ainda que se possa eventualmente questionar se o direito pátrio andou bem ou não

em estabelecer uma categorização apriorística de direitos que podem ser tutelados em

processos coletivos13

, não há dúvidas de que a solução prevista representou uma louvável

tentativa de superação das controvérsias doutrinárias então existentes14

.

Além de romper, ainda que em parte15

, com o dogma do processo individualista,

preocupado apenas em resolver conflitos atomizados, não molecularizados16

, a legislação

brasileira ainda revela outros méritos. Algumas disposições do CDC são muito

interessantes.

Um exemplo é o regime da coisa julgada, em que não se aderiu à sistemática pro et

contra (com a formação de coisa julgada material erga omnes independentemente do

resultado), nem à alternativa do modelo secundum eventum litis (em que somente haverá

formação de coisa julgada material em caso de vitória do grupo). O legislador brasileiro

procurou contornar os inconvenientes dos dois modelos clássicos, ao estabelecer um

regime peculiar, no qual a coisa julgada opera com eficácias diferentes nos planos coletivo

e individual. No plano coletivo, a coisa julgada se apresenta pro et contra, impedindo que

sejam repropostas ações coletivas idênticas por qualquer dos colegitimados,

independentemente do resultado da demanda17

. Entretanto, a extensão de seus efeitos à

esfera jurídica dos membros da coletividade terá eficácia secundum eventum litis, somente

para beneficiar o grupo (art. 103 do CDC). Embora talvez seja a hora de repensar o regime

13 Para uma crítica ampla sobre o tema, v. ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions – ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: Juspodivm, 2013, p. 542 e ss. 14 V. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos – Conceito e legitimação para agir. 6 ed. rev.

atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 82/86. 15 A ressalva é importante porque a legislação brasileira em matéria de ações coletivas ainda não conseguiu

romper completamente as amarras do processo individual. Nesse sentido, entre outros, v. ALMEIDA,

Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,

p. 109 (entendendo que nem mesmo as recentes propostas de sistematização, analisadas a seguir,

conseguiram romper com os dogmas do processo individual regulado no CPC). 16 A expressão é utilizada por Kazuo Watanabe. V. WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os

problemas emergentes da práxis forense, Revista de Processo, n. 67, jul./set. 1992, p. 23. 17 Salvo na hipótese de improcedência por insuficiência de provas em relação às ações para defesa de direitos e interesses difusos e coletivos, hipótese em que não haverá a formação de coisa julgada material (coisa

julgada secundum eventum probationem) e uma nova ação coletiva poderá ser proposta por qualquer um dos

legitimados ativos, desde que se apresente nova prova.

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da coisa julgada nas ações coletivas brasileiras18

, não se pode deixar de reconhecer que a

solução apresentada é bem interessante.

Apesar dos méritos da legislação sobre ações coletivas no Brasil, há ainda muito a

se fazer. A experiência brasileira na matéria se amadureceu razoavelmente, mas também

revelou sérias deficiências de nosso sistema. Uma das dificuldades observadas na prática

tem sido o tempo de tramitação das ações civis públicas. Muito embora se trate de uma

questão comum a todo o processo civil, que ainda não recebeu o equacionamento devido

em muitos outros países mundo afora19

, sendo ilusão imaginar que a morosidade da justiça

seria um problema exclusivamente nacional, não se pode também ignorar que o problema

assume feições ainda mais graves e patológicas no âmbito das ações coletivas brasileiras.

Além disso, embora seja verdade que a legislação brasileira teria rompido, pelo

menos em parte, com o dogma de um processo eminentemente individualista, não se pode

deixar de considerar que nenhuma ruptura ocorre sem resistência. Inicialmente, alguns

juristas e juízes apontaram obstáculos aparentemente insuperáveis nas ações coletivas ou

consideraram que estava sendo instituído um injusto privilégio contra o réu, especialmente

em relação ao regime da coisa julgada20

. Nada obstante, o fortalecimento dos novos

direitos e o processo de redemocratização no Brasil ao final da década de oitenta do século

XX criaram um ambiente propício para que pouco a pouco fosse superada a resistência dos

mais conservadores.

Muito mais grave do que a resistência de alguns juristas e juízes foi constatar que a

legislação processual, construída sobre alicerces individualistas, precisava ser conformada

à nova realidade. Embora o Código de Defesa do Consumidor disciplinasse vários aspectos

das ações coletivas, diversos institutos permanecem regulados somente no Código de

Processo Civil. Coube à doutrina e à jurisprudência a árdua tarefa de revisitar os institutos

do processo civil individual e adaptá-los gradativamente para a realidade das ações

coletivas, nem sempre com resultados animadores. Evidência disso são os problemas

observados na prática quanto à litispendência, conexão, continência e prevenção, institutos

18 Sobre o ponto, confira-se, amplamente, ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions... Op. Cit., p. 590 e ss. 19 V. amplamente, sobre as causas da morosidade dos processos judiciais, ROQUE, Andre Vasconcelos, A

luta contra o tempo nos processos judiciais: um problema ainda à busca de uma solução. Revista Eletrônica

de Direito Processual, n. 7, p. 237-263, jan./jul. 2011, disponível em www.redp.com.br (acessado em 19 de

agosto de 2012). 20 V., por exemplo, MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Na ação do consumidor, pode ser inútil a defesa do fornecedor, Revista do Advogado, v. 33, dez. 1990, p. 80/82, reeditado em uma coletânea de obras do

autor: MESQUITA, José Ignacio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2007, v. 3, p. 221/225.

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ainda não disciplinados de forma satisfatória nas demandas coletivas. Não é incomum, por

exemplo, que várias ações civis públicas, concomitantes ou sucessivas, sejam processadas

em diferentes juízos, ocasionando decisões contraditórias, harmonizadas apenas nas

instâncias superiores21

.

A própria legislação sobre processos coletivos apresenta sérias deficiências em

alguns aspectos. No Brasil, em sede de direitos e interesses individuais homogêneos, a lei

se satisfaz com a publicação de um edital no Diário Oficial, convocando os interessados a

intervirem como litisconsortes na ação coletiva, se quiserem. Segundo o art. 94 do CDC,

outros meios de comunicação são possíveis, mas apenas a publicação do edital é

obrigatória. A deficiência da forma de comunicação se afigura evidente: a presunção de

conhecimento a todos pela simples publicação no Diário Oficial transmuda-se em

verdadeira ficção jurídica22

. Com exceção dos casos de repercussão na mídia, é provável

que os interessados nunca tomem ciência da ação civil pública e jamais se habilitem para

liquidar individualmente a condenação genérica, em caso de procedência do pedido (art. 97

do CDC)23

.

Pior: como o sistema de vinculação na lei brasileira não adota como referência a

ação coletiva, preferindo levar em consideração a conduta dos autores individuais em suas

ações singulares, o problema se potencializa. Ao não adotar nem o sistema de inclusão

(opt-in), nem o de exclusão (opt-out), o prazo de trinta dias previsto no art. 104 do CPC

21 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos – Exposição de

Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 1. O exemplo dos

casos envolvendo a discussão sobre as assinaturas de telefonia fixa é bastante eloquente. Segundo um estudo

empírico realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ), presidido por Kazuo

Watanabe, foram propostas vinte e seis ações coletivas de idêntico objeto contra a Telesp, tanto na Justiça

Estadual como Federal. As várias ações coletivas ajuizadas, todavia, não foram capazes de conter a sangria

de milhares de ações individuais também questionando a legalidade da assinatura telefônica, sobretudo nos

Juizados Especiais Cíveis. As dúvidas envolvendo qual seria o juízo competente, a possibilidade de reunião das ações coletivas e mesmo de suspensão dos processos individuais ensejaram o Conflito de Competência nº

48.177/SP, apreciado pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça. V. STJ, CC 48.177/SP, 1ª S, rel.

Min. Francisco Falcão, rel. p/ ac. Min. Teori Albino Zavascki, j. 14.9.2005, DJ 5.6.2006 e o estudo do

CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses metaindividuais. Ações coletivas. Brasília: Ideal, 2007, p. 62 e segs. 22 V., entre outros, VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Alguns aspectos sobre a ineficácia do procedimento

especial destinado aos interesses individuais homogêneos. In: MILARÉ, Édis (Coord.). A ação civil pública

após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 328/329. 23 A propósito, defende Paulo Cézar Pinheiro Carneiro que o direito à informação desponta, ao mesmo

tempo, como ponto de partida (no campo individual) e ponto de chegada (nas ações coletivas) rumo ao

efetivo acesso à justiça. Ponto de partida porque, sem ele, vários direitos não seriam reclamados em ações

individuais. E ponto de chegada porque eventuais direitos reclamados nas ações coletivas precisam ser conhecidos pelos interessados, para que eles possam usufruir da tutela jurisdicional. V. CARNEIRO, Paulo

Cézar Pinheiro. Acesso à justiça – Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. 2 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2003, p. 54/55.

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para que o autor requeira a suspensão de sua demanda individual passa a ser ilusório24

.

Ainda que se entenda que a publicação do edital no Diário Oficial bastaria para dar início

ao prazo previsto no dispositivo, provavelmente poucas pessoas terão conhecimento

efetivo da demanda coletiva e menos indivíduos ainda suspenderiam seus processos. O

resultado dessa equação é trágico: várias ações civis públicas e individuais sobre a mesma

questão tramitam ao mesmo tempo em diversos juízos, comprometendo seriamente os

objetivos da tutela coletiva.

Finalmente, não se pode desprezar a resistência do Poder Público às ações

coletivas25

. Nesse sentido, o principal recuo sofrido nos últimos anos se deu quando o art.

16 da Lei de Ação Civil Pública foi modificado, para dispor que a coisa julgada erga

omnes ficaria restrita aos limites da competência territorial do órgão prolator26

.

O dispositivo merece severas críticas. Primeiro, porque fraciona o alcance das

ações coletivas, estimulando a instauração de vários processos idênticos na hipótese de

danos de âmbito regional ou nacional27

. Em um momento em que o processo civil está

disposto a lançar mão até mesmo de súmulas vinculantes para lidar com o aumento da

litigiosidade, tal medida parece na contramão da evolução do processo civil brasileiro.

Além disso, a lei ignora que, quando o interesse for difuso ou coletivo stricto sensu, haverá

indivisibilidade ontológica do objeto, não se admitindo por isso o fracionamento da tutela

processual28

.

24 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 262. 25 Nesse sentido, aludindo aos recuos ocasionais da tutela coletiva, v. MENDES, Aluisio Gonçalves de

Castro. O anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivos: uma visão geral e pontos sensíveis. In:

GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito

Processual Coletivo... Op. Cit., p. 17. 26 Este não foi o único recuo imposto pelo legislador às ações coletivas, todavia. Outros exemplos criticáveis

de reforma legislativa podem ser encontrados no art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, acrescentado pela Medida

Provisória 2.180-35/2001, que restringe os efeitos da sentença em ações coletivas propostas por associações aos associados com domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator e no art. 1º, parágrafo

único da Lei de Ação Civil Pública, também inserido pela Medida Provisória 2.180-35/2001, que proíbe a

propositura de ações coletivas que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, FGTS e outros fundos

de natureza institucional cujos beneficiários possam ser individualmente determinados. 27 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da coisa julgada (arts. 103 e 104). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al.

Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto... Op. Cit., p. 939;

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 149/157; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.

Ações coletivas... Op. Cit., p. 264/266 e MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública – Em defesa

do meio-ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007, p. 300. 28 V., DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 150; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública... Op. Cit., p. 298 e FREIRE E SILVA, Bruno. A ineficácia da tentativa de limitação territorial

dos efeitos da coisa julgada na Ação Civil Pública. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.).

Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 338/339. V., no entanto, a posição de

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Por outro lado, a partir do momento em que foi aprovado o Código de Defesa do

Consumidor, a coisa julgada nas ações coletivas passou a ser regulada pelo art. 103 do

CDC. O legislador da Lei nº 9.494/1997, além de motivado por intenções censuráveis de

enfraquecer a tutela coletiva29

, foi incompetente: esqueceu-se de inserir a alteração no

CDC30

. Além disso, esqueceu-se de alterar o art. 18 da Lei de Ação Popular, fonte de

inspiração do art. 16 original da Lei de Ação Civil Pública. Como, em certas hipóteses, a

causa de pedir na ação popular e na ação civil pública poderá ser a mesma, a distinção de

regimes jurídicos para as duas espécies de ações coletivas se mostra despropositada e

ilógica, a reforçar a falta de técnica processual do legislador31

.

Por fim, a inovação inserida pela Lei 9.494/1997 cometeu um gravíssimo equívoco,

ao confundir os conceitos de jurisdição e competência32

. Uma decisão judicial proferida

em um determinado estado pode produzir efeitos em todo o território nacional. Por

exemplo, uma decisão em São Paulo pode vincular bens e pessoas no estado do Rio de

Janeiro, desde que cumpridas as formalidades estabelecidas na legislação processual, tais

como a expedição e autuação de carta precatória. Isso porque todos os órgãos do Judiciário

possuem jurisdição nacional, atributo este decorrente da própria soberania. Ao tolher a

eficácia territorial de uma decisão judicial, o atual art. 16 da Lei 7.347/85 afronta a

jurisdição dos juízes e, em última medida, a própria soberania e independência do

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo – tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos; São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 79/80 (considerando que o dispositivo não pode operar para direitos e

interesses difusos e coletivos em virtude de sua indivisibilidade, mas sustentando que, nos individuais

homogêneos, ele pode ser interpretado como uma norma limitadora do rol dos substituídos). 29 Nesse sentido, v. ABELHA, Marcelo. Ação civil pública e meio ambiente. 2 ed. rev. amp. e atual. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 245/246. No mesmo sentido, v. LEONEL, Ricardo de Barros. Op.

Cit., p. 175/180 e 282/285 e GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública refém do autoritarismo. In: O processo – Estudos & Pareceres. São Paulo: Perfil, 2005, p. 238. 30 Segundo Aluisio Mendes, o artigo 16 da Lei 7.345/85 deveria ser considerado revogado de forma tácita

pelo art. 103 do CDC. V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 265.

Também nesse mesmo sentido, FERREIRA, Rony. Coisa julgada nas ações coletivas. Restrição do artigo 16

da Lei de Ação Civil Pública. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 139 e ARAÚJO FILHO, Luiz

Paulo da Silva. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito processual. São Paulo: Saraiva,

2002, p. 185. O argumento se mostra duvidoso, porém, uma vez que o próprio artigo 103 do CDC, em seu

parágrafo 3º, se refere ao art. 16 da Lei de Ação Civil Pública. V. ABELHA, Marcelo. Ação civil pública...

Op. Cit., p. 249, nota 4. 31 V. MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 20 ed. rev. atual. e amp. São Paulo:

Saraiva, 2007, p. 262/263. 32 Nesse sentido, v. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública... Op. Cit., p. 298 e NERY JR.,

Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.

258.

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Judiciário33

. Os limites da coisa julgada não devem ser determinados pela competência do

órgão jurisdicional, mas sim pelo objeto do processo, que poderá ultrapassar a área de

competência territorial do juízo34

.

Durante muito tempo, apesar da posição da doutrina dominante35

contra o atual art.

16 da Lei da Ação Civil Pública, a jurisprudência se mostrou vacilante. O Supremo

Tribunal Federal, ao apreciar o pedido liminar na ADIN nº 1.576 ajuizada contra a MP nº

1.570/1997, que se transformou na Lei nº 9.494/1997, afastou a inconstitucionalidade do

dispositivo36

. Segundo o entendimento capitaneado pelo relator Min. Marco Aurélio,

mesmo na redação primitiva, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública limitava a coisa

julgada erga omnes à área de atuação do órgão jurisdicional. O voto do Min. Nélson

Jobim, proferido nesse mesmo sentido, com a devida vênia, incorreu no mesmo equívoco

cometido pelo legislador, ao asseverar que a eficácia erga omnes da coisa julgada deveria

estar restrita à competência territorial do juiz prolator porque, caso contrário, estariam

sendo invertidos os critérios da competência e da territorialidade. Como se vê, o próprio

33 Com efeito, vários autores têm defendido de forma explícita, por vários fundamentos (como a

inobservância do princípio do acesso à justiça, do direito de ação, da razoabilidade, da garantia da coisa

julgada, do devido processo legal, entre outros) a inconstitucionalidade do atual art. 16 da Lei de Ação Civil

Pública. V., entre outros, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 264/266;

LAZZARINI, Marilena. As investidas contra as ações civis públicas. In: LUCON, Paulo Henrique dos

Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 159/162; NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis comentadas... Op. Cit., p. 258, nota 1; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 5 ed.

rev. e amp. São Paulo: Atlas, 2001, p. 122 (sem fundamentar seu entendimento pela inconstitucionalidade);

LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 285 (enfatizando a possibilidade de um conflito prático de julgados

e, em última análise, a violação da garantia constitucional da coisa julgada) e LENZA, Pedro. Op. Cit., p.

288. 34 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. (arts. 103 e 104). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro

de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 942/943. 35 V., contudo, em sentido minoritário, defendendo a constitucionalidade do atual art. 16 da Lei de Ação Civil

Pública, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública – Comentários por artigo. 6 ed. rev. amp.

e atual. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 430; MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 31 ed.

São Paulo: Malheiros, 2008, p. 247/250 e ARRUDA ALVIM, Eduardo. Apontamentos sobre o processo das

ações coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo civil coletivo... Op. Cit., p. 56/58 (sustentando expressamente não apenas a constitucionalidade do dispositivo, como a plena eficácia da

limitação territorial para todas as categorias de ações civis públicas). Em sentido um pouco diverso,

DINAMARCO, Pedro da Silva. Competência, conexão e prevenção nas ações coletivas. In: MILARÉ, Édis

(Coord.). A ação civil pública após 20 anos... Op. Cit., p. 507/508 (sustentando que o art. 16 da Lei de Ação

Civil Pública privilegia o critério de competência da proximidade do dano para as ações coletivas e que

somente quando, na prática, for impossível fracionar a tutela jurisdicional coletiva é que ela deverá ter

abrangência maior que a do limite da competência territorial do órgão julgador) e TALAMINI, Eduardo.

Limites territoriais da eficácia das decisões no processo coletivo. Disponível em

http://www.migalhas.com.br (acessado em 26 de julho de 2013) (asseverando o propósito censurável

escondido por trás da norma, mas rejeitando a tese de inconstitucionalidade e buscando interpretar o

dispositivo em conformidade com o art. 93 do CDC, para considerar como âmbito de competência territorial a abrangência dos danos “locais”, “regionais” e “nacionais”, não a comarca ou a seção judiciária, afastando

assim a hipótese de fracionamento de pretensões coletivas indivisíveis). 36 V. STF, ADIn-MC 1.576, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.4.1997, DJ 6.6.2003.

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Supremo Tribunal Federal confundiu os institutos da competência e dos limites subjetivos

da coisa julgada por ocasião do julgamento do pedido liminar37

. Nada obstante, o mérito

não chegou a ser apreciado, pois a Medida Provisória objeto de impugnação na ADIN

acabou convertida na Lei nº 9.494/1997 e a ação foi julgada prejudicada por falta de

aditamento à petição inicial.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sempre houve posicionamentos

distintos e conflitantes sobre a matéria ora versada38

. Embora a orientação dominante

naquele tribunal acolhesse a limitação prevista pelo atual art. 16 da Lei da Ação Civil

Pública, não havia uma posição consolidada acerca do tema.

No ano de 2011, a Corte Especial do STJ, ao apreciar os Recursos Especiais nº

1.243.887 e 1.247.150, julgados no regime do art. 543-C do CPC, reconheceu, ainda que

em obiter dictum, que não apenas o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública embaralha

institutos processuais diversos, como também que tal norma deveria ser revisitada à luz do

art. 93 do CDC. Assim, se o dano é de escala local, regional ou nacional, o juízo

competente, sob pena de ser inócuo o provimento, lançará mão de comando capaz de

recompor ou indenizar os danos local, regional ou nacionalmente, levados em

consideração, para tanto, os seus beneficiários, independentemente da limitação atinente à

competência territorial do órgão prolator39

. Consequentemente, caberia ao consumidor

escolher o juízo mais conveniente para deflagrar a fase de liquidação e de execução

individual da sentença genérica de condenação (seu domicílio, o domicílio do réu, o foro

dos bens sujeitos à eventual expropriação ou o da sentença).

O overrruling veio no ano seguinte, em precedente da Terceira Turma, relatado

pela Min. Nancy Andrighi40

. Decidiu-se expressamente no caso que “a distinção, defendida

inicialmente por Liebman, entre os conceitos de eficácia e de autoridade da sentença, torna

37 No mesmo sentido, v. BATISTA, Roberto Carlos. Coisa julgada nas ações civis públicas: direitos

humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 193. 38 Compare-se, por exemplo, a posição outrora dominante em STJ, RESP 293.407, 4ª T., rel. Min. Barros

Monteiro, rel. p/ ac. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.10.2002, DJ 7.4.2003; RESP 253.589, 4ª T., rel. Min. Ruy

Rosado de Aguiar, j. 16.8.2001, DJ 18.3.2002; RESP 485.842, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, j. 6.4.2004, DJ

24.5.2004; RESP 665.947, 1ª T., rel. Min. José Delgado, j. 2.12.2004, DJ 12.12.2005 e EREsp 293.407,

Corte Especial, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 7.6.2006, DJ 1.8.2006 (aceitando a limitação imposta

pelo atual art. 16) com STJ, RESP 557.646, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, j. 13.4.2004, DJ 30.6.2004; RESP

218.492, 2ª T., rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. 2.10.2001, DJ 18.2.2002; REsp 411.529, 3ª T., rel.

Min. Nancy Andrighi, j. 24.6.2008, DJe 5.8.2008 (em sentido contrário, afastando tal limitação). 39 V. STJ, RESP 1.243.887, Corte Especial, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 19.10.2011, DJe 12.12.2011 e

RESP 1.247.150, Corte Especial, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 19.10.2011, DJe 12.12.2011. 40 V. STJ, RESP 1.243.386, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 12.6.2012, DJe 26.6.2012.

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inóqua a limitação territorial dos efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LAP.

A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada

aquela, os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da

competência territorial do órgão julgador”. A jurisprudência mais recente do Superior

Tribunal de Justiça, assim, se inclina no sentido de afastar a limitação estabelecida no atual

art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, esperando-se que haja consolidação desse

entendimento pelos próximos anos41

.

Assim, entre erros e acertos, o mérito obtido pelas ações coletivas no Brasil se

revela notável, porém, limitado em certa medida. Muitos direitos e interesses de natureza

difusa e coletiva stricto sensu, que não tinham até a década de oitenta do século XX

nenhum instituto processual capaz de proporcionar uma tutela adequada, finalmente

puderam ser levados ao conhecimento do Poder Judiciário, com destaque para a proteção

do meio-ambiente. Políticas públicas de diversa natureza puderam ser discutidas através de

processos coletivos, incluindo a regulação de serviços públicos como telefonia, gás e

petróleo, energia elétrica, entre outros. Consolidou-se o regime de proteção e defesa do

consumidor. Ademais, não se pode olvidar do desenvolvimento de ampla doutrina

especializada sobre o tema. Dado o período relativamente curto em que as ações coletivas

foram consagradas de forma mais consistente na legislação nacional, os méritos não são

poucos, nem podem ser ignorados.

No entanto, embora não sejam poucos os méritos, eles são em certa medida

limitados. De forma geral, os processos coletivos no Brasil falharam em sua promessa de

proporcionar uniformidade de decisões, celeridade e economia processual. Apesar do

ajuizamento de várias ações coletivas, nenhuma foi capaz de conter a verdadeira enxurrada

de demandas individuais envolvendo as mais diversas questões. Apenas para ficar nos

exemplos mais atuais, não custa lembrar a imensa quantidade de ações envolvendo os

expurgos inflacionários nas cadernetas de poupança, os pedidos de revisão de

aposentadorias e as demandas questionando a cobrança de assinatura nas contas de

telefone42

, entre muitas outras hipóteses43

.

41 O Projeto de Lei nº 5.139/2009 e o Projeto de Lei do Senado nº 282/2012 possuem regras que, se

aprovadas, representarão a superação da limitação territorial estabelecida pelo atual art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, na medida em que determinam que a competência territorial do órgão prolator não restringirá a

coisa julgada nas ações coletivas. 42 V., nesse sentido, o estudo do CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses... Op. Cit., p. 62 e segs.

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Nem todos os vícios podem ser atribuídos a deficiências na legislação. Contudo, a

revisitação e o correto equacionamento de alguns aspectos da tutela coletiva poderia

facilitar bastante o seu aperfeiçoamento. Como se concluiu em um estudo empírico sobre

as ações coletivas, a principal causa do ajuizamento de demandas coletivas de idêntico

objeto, ao lado de outros processos individuais versando sobre a mesma questão, foi a

ausência de previsão legislativa expressa para o tratamento uniforme de questões

processuais surgidas em ações coletivas repetitivas, bem como de uma orientação

jurisprudencial mais precisa. Isto se dá especialmente em relação aos institutos da conexão,

litispendência, prevenção e, em certa medida, a competência, sobretudo após a

modificação promovida no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública em 199744

. Apenas para se

ter uma ideia, em uma das ações civis públicas em matéria de assinatura telefônica, os

autos foram remetidos de um juízo para outro nada menos que quatro vezes. Dois

processos foram remetidos três vezes e mais três casos foram enviados de um órgão

judicial para outro em pelo menos duas oportunidades. Todo esse tumulto para se decidir

uma questão de mérito relativamente simples, na medida em que a jurisprudência

dominante tem entendido pela legalidade da assinatura.

Por esses motivos, sem deixar de lado as inúmeras conquistas acumuladas, parece

que chegou a hora de repensar o modelo brasileiro de processos coletivos.

3. Para onde vamos?

3.1 O microssistema dos processos coletivos

O primeiro passo para a sistematização das ações coletivas no Brasil foi dado pela

doutrina. A publicação de numerosos estudos sobre o tema, a reestruturação de cursos de

graduação e pós-graduação, incluindo a matéria na grade curricular, bem como a realização

de inúmeros eventos sobre o tema foram condições indispensáveis para que se cogitasse,

43 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 262/263 (referindo-se a outros

exemplos, como lides que diziam respeito a tributos, tais como a CPMF, reajuste da tabela do imposto de

renda, progressividade do IPTU, taxa de lixo ou de iluminação pública, aumento de alíquotas, incidência de

contribuições sociais sobre determinadas categorias; além de incontáveis discussões pertinentes aos funcionários públicos em torno de pleitos como o direito ao reajuste anual, a contagem de tempo dos

celetistas incorporados ao regime único, a transformação de cargos e a extinção de direitos). 44 V. CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses... Op. Cit., p. 87.

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pouco a pouco, de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos que, embora não totalmente

independente, possui importantes peculiaridades.

A inadequação de alguns institutos e princípios do processo individual,

principalmente os que dizem respeito à litispendência, conexão e continência, fortaleceram

a ideia de que estaria surgindo no Brasil um verdadeiro Direito Processual Coletivo45

.

A premissa básica desse novo ramo consiste em reconhecer sua autonomia, na

medida em obedece a princípios e institutos próprios, distintos do direito processual

individual46

. Evidentemente, alguns princípios são comuns a todos os ramos do processo,

notadamente os de origem constitucional, como o devido processo legal e o contraditório.

Mesmo estes, porém, assumem feições peculiares no processo coletivo. O devido processo

legal nas ações coletivas, por exemplo, não exige que os titulares dos direitos tutelados

compareçam pessoalmente em juízo, mas que sejam representados de forma adequada pelo

legitimado coletivo47-48

. Da mesma forma, institutos como a conexão, continência e

litispendência devem ser revisitados. Dada a pluralidade de colegitimados para ingressar

com ação civil pública, não se pode exigir a identidade de partes formais para que haja

litispendência. Estes institutos processuais devem ser reavaliados não segundo os

parâmetros típicos do processo civil individual, mas de acordo com o bem jurídico tutelado

na esfera transindividual.

A concepção de um Direito Processual Coletivo autônomo levou a doutrina a

sustentar a existência de um microssistema legislativo de ações coletivas, estruturado

basicamente na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor. Embora

não se tenha alcançado ainda um sistema verdadeiro, as duas leis se complementam e se

inter-relacionam: a Lei 8.078/90, ao regular a defesa coletiva dos consumidores, previu em

45 Ao que parece, uma das primeiras obras a utilizar a expressão Direito Processual Coletivo foi a de

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro – Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. Outra obra importante a adotar tal perspectiva é de MANCUSO,

Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada... Op. Cit., passim. 46 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES,

Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 11. 47 O princípio é o mesmo no direito norte-americano, em que se considera respeitado o devido processo legal

nas class actions pela representatividade adequada. V. ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions... Op. Cit.,

p. 131/135. Na ausência de uma sistematização teórica das ações coletivas, a jurisprudência americana

considera excepcional a vinculação dos membros ausentes através de seu representante. Não se trata, porém,

de exceção a uma garantia constitucional. Trata-se, isto sim, da revisitação e adequação do devido processo

legal ao Direito Processual Coletivo. 48 V., nesse mesmo sentido, GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual

Coletivo... Op. Cit., p. 12/13 (referindo-se ao princípio de participação, que no processo coletivo não pode ser

exercido de forma individual, mas sim através de um “representante adequado”).

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seu art. 117 uma autorização para que suas disposições fossem aplicadas aos direitos

tutelados na Lei 7.347/85, acrescentando-lhe um dispositivo (art. 21) nesse sentido49

. Por

outro lado, o Código de Defesa do Consumidor se abriu também para as normas contidas

na Lei de Ação Civil Pública, ao permitir, em seu art. 83, todas as espécies de ações

capazes de promover a adequada e efetiva tutela dos interesses dos consumidores, bem

como ao estabelecer, de forma expressa, a aplicação subsidiária das disposições da Lei

7.347/85 (art. 90)50

.

O microssistema das ações coletivas originado da relação de interdependência entre

o CDC e a Lei de Ação Civil Pública é complementado ainda por várias disposições

esparsas tais como os arts. 3º a 7º da Lei nº 7.853/1989; art. 3º da Lei nº 7.913/89; arts. 210

a 213, 215, 217 a 219 e 222 a 224 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº

8.069/1990); art. 17 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa); art. 2º da

Lei nº 9.494/1997; arts. 80 a 83, 85 e 91 a 93 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e

arts. 21 e 22 da Lei nº 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança).

3.2 Rumo à codificação?

Em um aprofundamento da reflexão sobre a situação do microssistema de processos

coletivos, importantes processualistas chegaram à conclusão de que, passado o período

49 Nesse sentido, o veto presidencial ao art. 89 do CDC, que previa textualmente a aplicação das normas da

lei consumerista a outros direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, acabou ineficaz, porque o art.

117 da Lei 8.078/90 foi sancionado, inserindo um novo art. 21 na Lei de Ação Civil Pública praticamente no

mesmo sentido do dispositivo vetado. Além disso, também foi sancionado o art. 110 do CDC, que alterou a

Lei da Ação Civil Pública para ampliar seu cabimento para qualquer outro interesse difuso ou coletivo. A

doutrina dominante segue esse entendimento, com o qual se concorda integralmente. V., nesse sentido,

WATANABE, Kazuo. Disposições gerais (arts. 81 a 90). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código

Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 872/873; GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação civil pública. Defesa de interesses individuais homogêneos. Tutela coletiva e tutela individual. In: O

Processo – Estudos & Pareceres... Op. Cit., p. 489 e NERY JR., Nélson; NERY, Rosa Maria de Andrade.

Leis civis... Op. Cit., p. 254, nota 2. 50 A concepção de um microssistema das ações coletivas hoje se encontra consolidada na doutrina. V., entre

muitos outros, ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 582; ALMEIDA,

Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 55/61; MANCUSO, Rodolfo

de Camargo. Jurisdição coletiva... Op. Cit., p. 52/55 e DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de

direito processual civil... Op. Cit., p. 126/127. A jurisprudência também vem admitindo a existência de um

microssistema de processos coletivos, com seus próprios institutos e princípios, como se verifica em STJ,

RESP 510.150, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, j. 17.2.2004, DJ 29.3.2004 (“A lei de improbidade administrativa,

juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um

microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se

e subsidiam-se”).

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inicial de amadurecimento e consolidação das ações coletivas, era chegada a hora de

repensar o modelo e, mais que isso, de reunir as normas hoje esparsas sobre a matéria em

uma ordenação geral e sistemática51

. Isso se deu por pelo menos dois motivos

fundamentais. Primeiro, porque muitos institutos processuais ainda não haviam sido

regulados de forma satisfatória para as demandas coletivas, especialmente a conexão,

continência e litispendência. Por outro lado, a regulação da matéria em uma complexa

interação de normas autorremissivas cria um sistema inconsistente, que apresenta muitas

dificuldades práticas.

A primeira proposta de sistematização da matéria em um Código de Processo

Coletivo foi elaborada por Antonio Gidi em 2002 e publicada no início de 200452

. Em

linhas gerais, a proposta, intitulada Código de Processo Civil Coletivo. Um modelo para

países de direito escrito, reflete a inequívoca influência da experiência norte-americana das

class actions sobre seu autor. Em alguns aspectos específicos, a proposta apresenta

inovações dissonantes do entendimento da doutrina brasileira dominante, tal como se

verifica com a categorização das ações coletivas, em que se prevê apenas os direitos

difusos e individuais homogêneos (artigo 1.1)53

. Em outros pontos, a proposta revela certa

influência da experiência americana como, por exemplo, no artigo 3.1, em que se

estabelecem os critérios para aferir a adequação do representante e de seu advogado, em

sua maioria extraídos da doutrina e da jurisprudência formadas nos Estados Unidos.

Finalmente, em relação a alguns outros dispositivos, como a competência territorial (artigo

4), ela se limita a repetir a sistemática brasileira atual em linhas gerais, inovando apenas ao

promover criticável concentração de ações coletivas envolvendo danos regionais e

51 A ideia de um Código de Processos Coletivos, entretanto, não convenceu a todos os autores. Nesse sentido, VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 35/41 (sustentando que um código

em matéria de processos coletivos poderia proporcionar um engessamento ainda maior na jurisprudência e

criar a oportunidade para que o Congresso revogasse muitas conquistas já adquiridas). Em sentido um pouco

diverso, ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 82/85

(afirmando ser favorável à codificação, mas demonstrando forte ceticismo com os riscos de engessamento e

de retrocessos nas ações coletivas e com as propostas apresentadas até o momento, concluindo ser necessário

antes discutir e incorporar diretrizes metodológicas e principiológicas que possam orientar uma futura

proposta). 52 Na realidade, embora a proposta de Antonio Gidi tenha sido publicada na Revista de Processo, n.º 111,

cuja data nominal corresponde a julho-dezembro de 2003, essa proposta apenas veio efetivamente a público

em 2004, na medida em que a Revista de Processo costuma ser comercializada alguns meses depois da data constante na capa. 53 Contudo, a inovação é mais aparente que substancial, porque o conceito de direitos difusos apresentado na

proposta engloba as atuais categorias de direitos e interesses difusos e coletivos stricto sensu.

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nacionais na Justiça Federal. Sua tônica geral consistiu em aperfeiçoar os instrumentos de

direito positivo nos países de civil law para a tutela coletiva.

Ainda no ano de 2002, em uma reunião promovida pelo Instituto Ibero-Americano

de Direito Processual, surgiu a ideia de um Código Modelo de Processos Coletivos para

Ibero-América, a partir de uma intervenção de Antonio Gidi54

. O principal objetivo era

apresentar não só um repositório de princípios, mas um modelo concreto, adaptável às

peculiaridades de cada um dos países envolvidos, para futuras reformas legislativas na

matéria. A proposta foi elaborada pelos eminentes professores Ada Pellegrini Grinover,

Kazuo Watanabe e Antonio Gidi e apresentada ao final de 2002. Uma comissão integrada

por vários juristas convocados pelo Instituto Ibero-Americano55

aperfeiçoou a proposta,

àquela altura já convertida em anteprojeto56

. Após debatidas as novas propostas,

finalmente o anteprojeto foi aprovado em outubro de 2004, nas Jornadas Ibero-

Americanas, em Caracas (Venezuela).

O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América apresenta algumas

disposições no mesmo sentido que a proposta de Antonio Gidi. Um exemplo se encontra

logo no art. 1º, na categorização dos interesses e direitos objeto de tutela coletiva (são

enunciadas apenas duas categorias: os difusos e os individuais homogêneos)57

. Além disso,

o Código Modelo procurou incorporar em suas normas institutos processuais que não são

específicos da tutela coletiva, mas que se revelam de extraordinária importância prática,

como a antecipação dos efeitos da tutela (art. 5º).

54 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América – Exposição

de Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 27. 55 A comissão foi integrada pelos seguintes juristas e professores: Ada Pellegrini Grinover, Aluisio

Gonçalves de Castro Mendes, Anibal Quiroga León, Antonio Gidi, Enrique M. Falcón, José Luiz Vázquez

Sotelo, Kazuo Watanabe, Ramiro Bejarano Guzmán, Roberto Berizonce e Sergio Artavia. 56 Durante as discussões do anteprojeto do Código Modelo, antes mesmo de formar a comissão revisora,

vários juristas haviam sido convocados para manifestar sua opinião sobre o Código. A coordenação dessa

tarefa coube a Antonio Gidi (Brasil) e Eduardo Ferrer Mac-Gregor (México), que reuniram os trabalhos em

um livro: GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). La tutela de los derechos difusos,

colectivos e individuales homogéneos – Hacia un Código Modelo para Iberoamérica. 2 ed. Ciudad de

México: Porrúa, 2004. 57 Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, a primeira versão do Código Modelo previa as três

categorias conhecidas de interesses e direitos transindividuais. Na segunda versão, procurou-se o consenso

mediante uma divisão bipartida. Não houve uma ruptura total, todavia, porque os interesses e direitos

coletivos stricto sensu foram agrupados e denominados difusos. V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.

O Código Modelo de Processos Coletivos para os países ibero-americanos. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo civil coletivo... Op. Cit., p. 732 e MENDES, Aluisio Gonçalves de

Castro. Ações coletivas nos países ibero-americanos: situação atual, Código Modelo e perspectivas, Revista

de Processo, v. 153, nov. 2007, p. 205.

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A partir do final de 2003, as discussões envolvendo o Código Modelo chegaram aos

cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil. No âmbito da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo (USP), tais debates resultaram na ideia de um Código

Brasileiro de Processos Coletivos, mais adaptado à realidade brasileira58

. As propostas em

torno de uma legislação sistematizada sobre ações coletivas, sob a coordenação de Ada

Pellegrini Grinover, foram progressivamente trabalhadas. Após transformada em

anteprojeto, a proposta foi enviada em 2005 aos membros do Instituto Brasileiro de Direito

Processual (IBDP). Posteriormente, o anteprojeto foi encaminhado ao Ministério da

Justiça. Em janeiro de 2007, foi apresentada uma nova versão do anteprojeto, incorporando

sugestões da Casa Civil, Secretaria de Assuntos Legislativos, Procuradoria da Fazenda

Nacional e dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São

Paulo.

Durante o primeiro semestre de 2005, agora no âmbito dos cursos de pós-graduação

stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade

Estácio de Sá (UNESA), desenvolveram-se debates não somente em torno do Código

Modelo, como também do anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos

elaborado em São Paulo. A ideia inicial estava voltada para a apresentação de sugestões e

propostas para a melhoria do anteprojeto. Nada obstante, as discussões acabaram

evoluindo para uma reestruturação mais ampla, sob a coordenação de Aluisio Gonçalves

de Castro Mendes, com o escopo de oferecer uma proposta alternativa comprometida com

o fortalecimento dos processos coletivos59

. O anteprojeto de Código Brasileiro de

Processos Coletivos elaborado na UERJ/UNESA foi apresentado no segundo semestre de

2005 aos membros do IBDP e, posteriormente, também encaminhado ao Ministério da

Justiça.

No ano de 2008, é constituída Comissão Especial, formada por juristas e integrantes

da magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia para analisar as

propostas encaminhadas ao Ministério da Justiça60

. Depois de inúmeras reuniões e

58 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos – Exposição de

motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 2/3. 59 Nesse sentido, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Construindo o Código Brasileiro de Processo

Coletivos: o anteprojeto elaborado no âmbito dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA. In:

LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 281. 60 A comissão foi formada pelos seguintes membros: Rogério Favreto (Secretário da Reforma do Judiciário

na ocasião), Luiz Manoel Gomes Jr., Ada Pellegrini Grinover, Alexandre Lipp João, Aluisio Gonçalves de

Castro Mendes, André da Silva Ordacgy, Anizio Pires Gavião Filho, Antonio Augusto de Aras, Antonio

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audiências públicas, recuou-se na proposta ambiciosa de um Código de Processos

Coletivos, optando-se pelo consenso possível em torno da elaboração de um Anteprojeto

de nova Lei da Ação Civil Pública, em que, ainda que abandonadas algumas ideias mais

inovadoras, como a previsão expressa de legitimação do indivíduo para as ações coletivas e

do controle judicial da representatividade adequada, seriam aperfeiçoados alguns dos

pontos mais críticos da tutela coletiva no Brasil. O anteprojeto foi concluído em fevereiro

de 2009 e remetido ao Presidente da República, sendo incorporado ao II Pacto

Republicano. Ainda em 2009, encaminhada para a Câmara dos Deputados, a proposta foi

registrada como Projeto de Lei nº 5.139/2009.

O aludido projeto de lei, entre outras importantes inovações, estabelecia uma

relação de princípios pertinentes ao processo coletivo; aprimorava de forma importante as

regras de competência para as ações coletivas; criava os Cadastros Nacionais de Processo

Coletivos e de Inquéritos Civil e Compromissos de Ajustamentos de Conduta; admitia a

flexibilização do procedimento nas ações coletivas; aprimorava as formas de comunicação

da coletividade em matéria de direitos individuais homogêneos; afastava a limitação

territorial para a coisa julgada, hoje prevista no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública;

fortalecia a coisa julgada pro et contra, desde que se tratasse de questões de direito; previa

que o ajuizamento de ações coletivas ensejava a suspensão dos processos individuais com

objeto correspondente e aprimorava as regras atinentes à liquidação e à execução, a serem

promovidas, sempre que possível, de forma coletivizada.

No âmbito da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o

Projeto de Lei nº 5.139/2009 recebeu parecer favorável quanto à constitucionalidade, sendo

rejeitado no mérito, todavia, sob os fundamentos de que, caso aprovado, ensejaria

tratamento desigual entre as partes nos processos coletivos; conferiria poderes excessivos

ao Ministério Público e à Defensoria Pública; ensejaria insegurança jurídica e estimularia o

ajuizamento de ações coletivas temerárias61

. Em razão disso, foi interposto recurso para

que o mérito venha a ser reexaminado pelo plenário da Câmara, ainda não apreciado até a

presente data.

Gidi, Athos Gusmão Carneiro, Consuelo Yatsuda Yoshida, Elton Venturi, Fernando da Fonseca Gajardoni,

Gregório Assagra de Almeida, Haman Tabosa de Moraes e Córdova, João Ricardo dos Santos Costa, José

Adonis Callou de Araújo Sá, José Augusto Garcia de Sousa, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Luiz

Rodrigues Wambier, Petrônio Calmon Filho, Ricardo de Barros Leonel, Ricardo Pippi Schimidt e Sérgio Cruz Arenhart. 61 V., nesse sentido, parecer do Dep. José Carlos Aleluia, que conduziu a decisão da maioria da Comissão de

Constituição e Justiça, disponível em www.camara.gov.br (acessado em 19 de agosto de 2012).

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O ano de 2012 trouxe outro acontecimento importante. Trata-se das propostas

destinadas à modernização do Código de Defesa do Consumidor, incluindo normas sobre

comércio eletrônico, superendividamento e processos coletivos. Os trabalhos da comissão

de juristas então nomeada62

resultaram em três anteprojetos encaminhados ao Senado

Federal, dando origem aos Projetos de Lei do Senado nº 281 (disposições gerais e

comércio eletrônico), 282 (ações coletivas) e 283 (crédito ao consumidor e

superendividamento). O Projeto nº 282/2012, que é o que mais importa para os fins do

presente estudo, encampa alguns dispositivos que já estavam previstos no Projeto de Lei nº

5.139/2009, tais como regras sobre competência nas ações coletivas, criação dos Cadastros

Nacionais de Processos Coletivos e de Inquéritos Civis e Compromissos de Ajustamento

de Conduta e a flexibilização procedimental.

Além disso, o projeto prevê algumas outras propostas interessantes, tais como

regras específicas de arbitramento de honorários de advogado e de compensação financeira

à associação autora, como forma de incentivar outros legitimados a pleitear a tutela

coletiva. Alguns dispositivos, porém, são bastante criticáveis, tal como o que permite a

condenação do réu em obrigações específicas ressarcitórias, inibitórias ou em indenizações

por danos morais e materiais independentemente de pedido do autor. Ainda que

absolutamente relevante a tutela coletiva, permitir a condenação do réu sem qualquer

pedido expresso representa perigosa fragilização de garantias fundamentais no processo,

que não se justifica, mesmo diante de interesses transindividuais.

3.3 As ações coletivas e outros meios de resolução coletiva de litígios

Sem prejuízo da recente apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 282/2012, ao

que tudo indica, em vez de aprimorar as ações coletivas, sobretudo aquelas para defesa de

direitos e interesses individuais homogêneos, a tendência nos últimos anos tem sido

concentrar as atenções sobre o projeto do novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei nº

8.046/2010), aprovado no Senado Federal ao final do ano de 2010 e atualmente em

discussão na Câmara dos Deputados.

62 Referida comissão de juristas foi presidida pelo Min. Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça,

sendo ainda composta pelos seguintes membros: Ada Pellegrini Grinover, Cláudia Lima Marques, Kazuo

Watanabe, Leonardo Roscoe Bessa e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer.

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Uma de suas inovações mais importantes do projeto do novo CPC, com efeito, está

no incidente de resolução de demandas repetitivas. Estabelece a proposta que, havendo

questão comum de direito capaz de gerar a multiplicação de processos, instaura-se o

incidente, a ser apreciado diretamente pelo tribunal, com a suspensão de todos os processos

individuais na área de competência territorial do tribunal. A tese jurídica a ser definida

pelo tribunal no julgamento do incidente vinculará todos os órgãos judiciais inferiores, que

deverão decidir em conformidade à decisão do incidente, sob pena de ajuizamento de

reclamação. O propósito desse instituto, evidentemente, consiste em não somente evitar a

multiplicação de processos idênticos, como também proporcionar isonomia e segurança

jurídica.

Tal proposta tem inspiração no direito comparado, em especial na Alemanha63

,

onde já se previa o instituto do procedimento-modelo (Musterverfahren) no âmbito da

jurisdição administrativa (desde 1991), do mercado de capitais (desde 200564

) e da

jurisdição sobre assistência e previdência social (desde 2008). O Musterverfahren alemão

funciona, guardadas as proporções, de forma semelhante ao proposto incidente no projeto

do novo CPC65

. Além disso, o novo instituto também encontra raízes no direito nacional,

mais precisamente no incidente de julgamento por amostragem dos recursos especial e

extraordinário repetitivos (arts. 543-B e 543-C do CPC atual).

Os incidentes de julgamento por amostragem já existentes hoje no Brasil e o

proposto incidente de resolução de demandas repetitivas consistem, em linhas gerais, em

um novo sistema de resolução coletiva de litígios, denominado de “casos-teste” ou de

“processos-piloto”. Seu funcionamento pode ser sintetizado da seguinte forma: em um

conjunto de causas repetitivas sobre o mesmo tema, selecionam-se alguns processos

representativos de toda a controvérsia – de preferência, aqueles cujas manifestações das

63 V., a propósito, a exposição de motivos redigida pela comissão de juristas que elaborou o anteprojeto do

novo CPC, com referência expressa ao direito alemão. 64 A vigência do Musterverfahren no âmbito do mercado de capitais foi prevista de forma temporária, mas

vem sendo prorrogada sucessivamente e pode se tornar definitiva em breve. 65 Sobre o Musterverfahren alemão, entre outros, v. CABRAL, Antonio do Passo, O novo procedimento-

modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas in DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras

complementares de processo civil. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 241/261 (embora sem se referir à existência

do instituto no direito alemão desde 1991) e, mais recentemente, adotando uma abordagem comparativa com

o projeto do novo CPC, RODRIGUES, Baltazar José Vasconcelos, Incidente de resolução de demandas

repetitivas: especificação de fundamentos teóricos e práticos e análise comparativa entre as regras previstas no projeto do novo Código de Processo Civil e o Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz do direito alemão,

Revista Eletrônica de Direito Processual, v. VIII, jul./dez. 2011, p. 93/108 (disponível em www.redp.com.br,

acessado em 19 de agosto de 2012).

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partes contenham maior variabilidade de argumentos e cujas decisões contemplem maior

número de fundamentos –, deixando os demais processos suspensos. Os casos

representativos são, em seguida, encaminhados para uma instância superior ou um

colegiado mais amplo para definição da tese aplicável. Uma vez definida a tese comum, ela

deverá ser aplicada não só aos representativos, mas também aos demais processos

suspensos, promovendo isonomia, segurança jurídica e economia processual.

Evidentemente, muitas das vantagens proporcionadas pelo modelo de casos-teste

são também perseguidas pelas ações coletivas. Assim, poderia a implementação do

incidente de resolução de demandas repetitivas preencher totalmente o espaço das ações

coletivas no ordenamento jurídico brasileiro?

Ao contrário do que se poderia imaginar, o incidente de resolução de demandas

repetitivas previsto no projeto do novo CPC, caso aprovado, não afastará a necessidade de

adequada tutela coletiva no Brasil. Isso porque os objetivos perseguidos pelas ações

coletivas são mais amplos que os almejados pela resolução de casos-piloto ou casos-teste.

Como se viu, o incidente previsto no novo CPC tem por finalidade evitar a multiplicação

de processos, proporcionando isonomia e segurança jurídica. Não está entre suas

finalidades, todavia, promover o acesso à justiça, nem assegurar a tutela de direitos

ontologicamente coletivos.

As ações coletivas, por outro lado, ao permitirem a agregação de pretensões

ínfimas, do ponto de vista individual, em um só processo, incrementam o acesso à justiça.

Se um determinado réu proporciona danos individualmente ínfimos, mas que assumem

significativa proporção global (pense-se, por exemplo, no caso em que uma fábrica

comercialize cem gramas a menos do que consta em embalagens de sabão em pó), somente

as ações coletivas funcionarão como instrumento idôneo de tutela. Além disso, muitas

vezes os titulares dos direitos em discussão não possuem informação ou incentivos

suficientes para litigar em juízo.

Assim, as ações coletivas mostram-se capazes de romper com a força inercial dos

litigantes individuais, algo que o incidente de resolução de demandas repetitivas não seria

capaz, sequer em tese, de alcançar, eis que pressupõe a existência, ou pelo menos a

potencialidade, de ações individuais que possam ser qualificadas como repetitivas. Isso

sem falar que somente o processo coletivo se destina a proporcionar a tutela de direitos

difusos e coletivos stricto sensu.

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Não é por acaso, aliás, que o fortalecimento de institutos análogos no direito

comparado se verificou sem prejuízo das ações coletivas. Na Alemanha, a adoção do

procedimento-modelo (Musterverfahren) ocorreu sem o abandono das tradicionais ações

coletivas propostas por associações (Verbandsklagen). Da mesma forma, na Inglaterra, as

decisões de litígios de grupo (group litigation order), que representam uma técnica de

julgamento de casos-piloto, foram previstas sem que fossem abolidas as ações

representativas (representative actions). Não há motivo para que se acredite que o

incidente de resolução de demandas repetitivas, caso venha a ser aprovado no Brasil, torne

desnecessário o aprimoramento das ações coletivas no direito pátrio.

4. Considerações finais

O momento atual, como se percebe, é de amadurecimento e de aprimoramento da

tutela coletiva no Brasil.

Como visto, o direito brasileiro ocupa hoje posição de vanguarda entre os países da

civil law no âmbito das ações coletivas. Seu sistema de tutela de direitos e interesses

metaindividuais se encontra razoavelmente estruturado na Lei de Ação Civil Pública e no

Código de Defesa do Consumidor. Muitos direitos e interesses de natureza difusa e

coletiva stricto sensu, que não encontravam até a década de oitenta do século passado

nenhum instituto processual capaz de proporcionar tutela adequada, finalmente puderam

ser submetidos ao Poder Judiciário. Políticas públicas diversas puderam ser discutidas

através das ações coletivas. Consolidou-se o regime de proteção e de defesa do

consumidor. Além disso, não se pode também ignorar o desenvolvimento de ampla

doutrina especializada sobre o tema dos processos coletivos.

Isso é, ao mesmo tempo, um fato animador e preocupante. Animador, porque

mostra que hoje estamos em uma situação melhor que há décadas atrás, em que muitos

direitos simplesmente não podiam ser levados diante de um magistrado, representando

efetiva denegação de justiça. Preocupante, porque em algum momento acreditamos, talvez

ingenuamente, que as ações coletivas – ou mesmo processos judiciais, de forma geral –

pudessem resolver todos os problemas que afligem a nossa sociedade.

O fenômeno da litigiosidade no Brasil deve ser estudado não apenas em sua

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dimensão estritamente jurídica, mas também por aspectos sociológicos, econômicos e

políticos. Afinal, quais são as condições sociais que estimulam o incremento no número de

demandas ajuizadas no país, sobretudo a partir da Constituição de 1988? Em que medida a

redemocratização e o desenvolvimento dos meios de comunicação facilitaram o acesso à

informação? Quais são as causas econômicas que influem na propositura de uma ação

judicial? Em que medida maiores indenizações (incluindo aí os denominados punitive

damages) contribuem para este fenômeno? Muito pouco se sabe sobre isso.

O fato é que se torna preciso buscar a valorização do ordenamento jurídico em sua

dimensão objetiva, abandonando a concepção de tutela exclusivamente de direitos

subjetivos, algo tão arraigado na cultura brasileira que, para estruturar a tutela coletiva,

criaram-se novas categorias de direitos (difusos, coletivos e individuais homogêneos).

Concessionárias, grandes empresas e litigantes habituais em geral raciocinam a

questão sob o aspecto macroeconômico. Se a perspectiva de certo comportamento ilícito

proporcionar a estimativa de um montante de condenações judiciais inferior aos custos

operacionais para a correção dessa conduta, as empresas continuarão a praticar o ilícito,

ensejando o ajuizamento de inúmeras demandas repetitivas. Tais agentes direcionam sua

conduta não sob o código lícito/ilícito, mas de acordo com o código lucrativo/não-

lucrativo. Assim é que serviços não solicitados, cobranças indevidas, mau atendimento e

falhas variadas na prestação de serviços e fornecimento de produtos se transformaram em

acontecimentos corriqueiros no Poder Judiciário brasileiro.

Em uma primeira tentativa, imaginou-se coibir tal conduta com a adoção de

institutos como o dano moral punitivo, mas tal alternativa, longe de representar qualquer

solução, pode vir a incentivar o ajuizamento de demandas temerárias. Quanto às ações

coletivas, embora devam efetivamente ser aprimoradas, também não podem resolver a

ineficiência sistemática dos órgãos públicos em geral. Processos judiciais são sempre

ferramentas complexas e onerosas, a serem manejadas preferencialmente para situações

específicas e pontuais, não para corrigir deficiências estruturais na sociedade.

Talvez uma das soluções para diminuir a alta taxa de litigiosidade brasileira esteja

em incrementar o papel das agências reguladoras, incentivando uma atuação mais enérgica

de sua parte, inclusive mediante a aplicação de severas penalidades em âmbito

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administrativo contra os litigantes habituais, sempre que tal medida for necessária66

.

Seria possível, ainda, cogitar a internalização de potenciais litígios travados entre

esses grandes litigantes e consumidores, talvez com a criação de instâncias de julgamento

nas próprias agências reguladoras, desde que se garantisse a imparcialidade e

independência de seus integrantes, providência que tem se revelado muito difícil no Brasil,

por variados motivos. Outra proposta interessante seria incrementar as custas processuais

cobradas dos litigantes habituais sempre que sucumbirem em uma demanda judicial – de

acordo, naturalmente, com critérios a serem previamente definidos, para evitar surpresa às

partes –, justamente porque sua atuação proporciona utilização de demasiados recursos da

máquina judiciária.

O fato é que se precisa, urgentemente, pensar na tutela do ordenamento jurídico não

só do ponto de vista dos direitos subjetivos e da lide processualizada, mas em sua

dimensão objetiva, em uma perspectiva macroeconômica, para evitar a litigiosidade em seu

nascedouro, a fim de que se possa superar a crise numérica do Poder Judiciário.

O próprio estudo das ações coletivas deve ser inserido nessa temática. Como já é

notório, algumas dificuldades têm sido verificadas quanto ao tempo de tramitação dos

litígios coletivos, sobretudo nas demandas em defesa de direitos e interesses individuais

homogêneos. Tal situação pode ser atribuída, pelo menos em parte, a deficiências no

sistema de vinculação dos integrantes do grupo e na sua notificação, bem como à ausência

de disciplina legal satisfatória para os institutos da conexão, continência e litispendência no

âmbito dos processos coletivos.

O tema da tutela coletiva no Brasil, portanto, ainda que não seja a panaceia para

todos os males, permanecerá atual e desafiador para as próximas décadas.

66 Com entusiasmo acompanhou-se, por exemplo, recente intervenção protagonizada pela ANATEL, em que

se restringiu a comercialização de novas linhas de telefone para as piores companhias de telefonia celular em

cada estado. Os lucros perdidos pelas companhias penalizadas, aliados à publicidade negativa, parecem um

fator punitivo-pedagógico muito mais eficiente que qualquer indenização por danos morais em processos individuais. Evidente que tal atuação das agências reguladoras deve ser oportunamente regulamentada e

debatida, mas a esperança é que esse seja o início de um novo paradigma para o serviço de telefonia celular e,

mais amplamente, para as relações de consumo no Brasil.

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O PROCESSO COLETIVO E O ACESSO À JUSTIÇA SOB O PARADIGMA DO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Antônio Gomes de Vasconcelos

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas

Gerais (2007), Mestre em Direito pela Universidade Federal

de Minas Gerais (2002), Especialista em Direito Público pela

FDMM (1989), Graduado em Direito pela Universidade

Federal de Minas Gerais (1987), Graduado em Filosofia pela

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1978).

Atualmente é professor adjunto da UFMG e juiz titular da 5ª

Vara do Trabalho de BH - Tribunal Regional do Trabalho 3ª

Região

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau

Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas

Gerais (2003), Mestre em Direito pela Universidade Federal

de Minas Gerais (1994), Professora associada da UFMG.

Vice Diretora da Divisão de Assistência Judiciária da

Faculdade de Direito da UFMG

Alana Lúcio de Oliveira

Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas

Gerais. Procuradora do Estado de Minas Gerais.

RESUMO: Em essência, o processo coletivo ostenta caráter de interesse público,

porquanto, consubstancia-se em respeitável instrumento de participação política da

sociedade na gestão pública e na construção do bem comum. Dados seus contornos,

sobrepõe-se ao processo individual, em importância, por assegurar o acesso à justiça e a

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efetividade da prestação jurisdicional, realizando direitos fundamentais na perspectiva do

Estado Democrático de Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso à Justiça- Processo Coletivo- Interesse Público.

ABSTRACT: The collective process bears character of public interest because, in essence,

is consolidated in respectable instrument of political participation of society in public

administration, in building the common good, overlapping in importance, given its

contours, by ensuring access to fairness and effectiveness of adjudication, conducting

fundamental rights from the perspective of a Democratic State of Right.

KEYWORDS: Colletive process - Accsess to Justice - Public interest

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O paradigma do Estado Democrático de Direito – 3.

Processo coletivo de interesse público e o acesso à justiça no paradigma do Estado

Democrático de Direito – 4. Conclusões – 5. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea vivencia as consequências das profundas

transformações que a marcaram desde a reestruturação do modelo capitalista. O modelo

resultante da desregulamentação dos mercados financeiros possibilitou a criação de novos

produtos financeiros e multiplicou as possibilidades de lucros puramente especulativos e,

consequentemente, sem a necessidade de investimento em atividades produtivas1. Tal

reestruturação foi favorecida pela elevação, ao paroxismo, da internacionalização das ações

políticas e macroeconômicas globais inspiradas no pensamento neoliberal hegemônico que,

por sua vez, foi potencializada pela extraordinária evolução das novas tecnologias da

comunicação. O contexto decorrente de uma complexa interação de elementos

multifacetários proporcionou uma expansão sem precedentes do capitalismo coexistente

com a da situação econômica e social de um número cada vez mais crescente de pessoas.

1 BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009

p. 21

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A esse revigoramento do sistema capitalista não correspondeu um progresso na

área social. Ao contrário, um tal estado da arte fez emergir uma relação paradoxal entre as

promessas da ordem jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito e a

realidade decorrente das transformações ditadas por forças hegemônicas neutralizadoras da

função transformadora destas novas ordens jurídicas.

À concomitante ampliação normativa dos direitos sociais corresponde a

emergência dos conflitos de massa oriundos da lesão sistêmica dos direitos sociais e da

incapacidade do sistema judiciário de responder às demandas oriundas desse cenário. A

isso, soma-se a persistência de uma cultura jurisdicional individualista calcada no

paradigma do estado liberal, apesar de, uma vez mais, no plano normativo a ação coletiva

deter lugar privilegiado na nova ordem jurídica brasileira.

Sem perder de vista o amplo espectro dos elementos implicados na

configuração desse contexto de ausência de efetividade dos direitos sociais e de crise da

justiça, o alvo do presente artigo é analisar o processo coletivo, enquanto instrumento

promotor do acesso à justiça2 e de realização de direitos fundamentais, sob o paradigma do

Estado Democrático de Direito. Restringe-se, portanto, por questão metodológica, à

perspectiva técnica-processual, reservando para estudos posteriores as indispensáveis

abordagens inter e transdisciplinares para a apreensão da questão numa perspectiva mais

abrangente e complexa.

A perspectiva adotada é a da tutela processual coletiva como processo de

interesse público3, à luz da teoria da instrumentalidade do processo

4.

2 Mauro Cappelletti foi precursor do movimento de pensamento de acesso à justiça, potente reação erigida

contra uma imposição dogmática do processo. (O Acesso à Justiça e a função do Jurista em nossa época.

Revista de Processo, São Paulo, n. 61, p 144-160, jan/mar. 1991. p. 144). 3 Refere-se ao entendimento segundo o qual o processo coletivo se presta às demandas judiciais que envolvam interesses referentes à preservação da harmonia e à realização dos objetivos constitucionais da

sociedade, ou seja, defesa de interesses públicos primários, bem como o fomento aos direitos fundamentais.

(DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. Vol. 04,

5.ed., Salvador:JusPodivim, 2010. p.35).

Vale afirmar que o termo interesse público é equívoco e passível de divergências conceituais. Não obstante,

assenta-se que o único interesse público legítimo é aquele que coincide com os interesses da coletividade

delimitados pelo paradigma normativo da ordem jurídica. Nesse sentido, o interesse público a que se refere é

o interesse público primário e nunca o interesse público secundário, enquanto vontade egoística da

administração pública momentaneamente instalada. Desta feita, a primazia do interesse público atualmente,

a despeito de imperiosa, demanda a ponderação de valores e aplicação da proporcionalidade, a fim de fixar o

interesse social prevalente. (CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. JusPodivm,Belo Horizonte, 2008.p.62). 4 O instrumentalismo é tendência metodológica arquitetada sobre os pilares erguidos pelo movimento de

acesso à justiça, que conforma o processo como instrumento de realização efetiva e substancial da ordem

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A tônica do acesso à justiça envolve a compreensão dos institutos processuais

sob um espectro de democracia, de participação e de afirmação de direitos fundamentais.

Como tal, contrapõe-se a uma visão engessada, eminentemente privatista, isoladora e

técnica da ordem processual5.

A relevância do movimento de acesso à justiça está na busca pela conformação

do processo às atuais demandas sociais de celeridade e efetividade, em prol da edificação

de seu caráter instrumental e social.

Nesse contexto, em face das múltiplas formas de litigiosidade, a técnica

processual preocupa-se em erguer mecanismos aptos à proteção e afirmação de interesses

múltiplos, despontando a tutela processual coletiva.

O manto sobre o qual se realiza o processo coletivo é tecido sobre um ideal de

sensibilidade social, uma vez que as decisões proferidas em sede de ação coletiva possuem

a qualidade de imprimir reflexos a um maior número de pessoas e, assim, o potencial de

soluções mais equânimes e democráticas, dirigidas às demandas de interesse público.

Emerge a temática do caráter de interesse público do processo coletivo, sob as

premissas erigidas no Estado Democrático de Direito.

2. O PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A maioria dos autores constitucionais, conforme revelam os estudos de direito

comparado, concordam que o Estado Democrático6 de Direito corresponde a uma profunda

alteração no paradigma do estado constitucional, de tal ordem a autorizar a referência a um

estado (neo) constitucional ou mais precisamente a vários (neo) constitucionalismos7.

jurídica material. Voz de relevo que ostenta ser um dos delineadores dessa tendência é Cândido Rangel

Dinamarco. (A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1996). 5 Dinamarco não afasta a essência técnica do processo, mas defende a instrumentalidade do processo afeta

também à realidade social e política (A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Malheiros,

1996). Não se desconhece pelo que vale citar, ainda que não seja opção adotada pelo estudo presente , o

entendimento contrário ao caráter instrumentalista do processo, no qual se defende o processo como um

direito e como criador e regente do próprio direito, mas nunca como instrumento de realização de direitos

(SILVA, Rosemary Cipriano da. Direito e processo: A legitimidade do Estado Democrático de Direito

através do processo. Arraes Editores , Belo Horizonte, 2012. p.97). 6 Inicialmente, imperioso destacar que Democracia é conceito nocional, não comportando delineamento

único, e altamente complexo para aqueles que se aventuram em teorizá-lo. Assim é que o discurso aqui proposto opta por um viés majoritário na doutrina jurídica que repousa a essência da democracia no conceito

participativo e inclusivo de efetivação de direitos fundamentais. 7 CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005,p. 9

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Trata-se da superação do “estado de direito legislativo”, não sendo mais

adequada a separação entre lei e justiça. Devemos, portanto, admitir que o direito

contemporâneo compõe-se de regras e de princípios, ambos eivados de idêntica natureza

normativa8. Essa perspectiva transcende a concepção positivista e individualista da

jurisdição, uma vez que alcança um sentido atrelado à normatividade dos princípios

constitucionais de justiça e à efetividade dos direitos. Nesse sentido, o processo coletivo

assume posição privilegiada na ordem jurídico-processual, compreendida em conexão com

o direito constitucional.

José Afonso da Silva9 esclarece que o Estado de Direito é a forma de Estado

em que são fixadas diretrizes normativas para organizar e limitar o exercício do poder. A

noção de democracia, então, surge como um qualificativo de conteúdo material, uma

diretriz fundamental da atuação do poder, na medida em que abre espaço para a

participação popular com ênfase nos direitos fundamentais10

.

A pós-modernidade transcende a lição da democracia formal representativa,

manifestada primordialmente no exercício do direito político constitucional do voto,

volvendo vistas a uma noção de democracia considerada sob um viés substancial. Esse

qualificativo democrático é elemento legitimador do poder, então constituído

juridicamente, no qual o cidadão se insere nos centros de decisão política e participa

ativamente dos destinos coletivos (democracia substancial). Trata-se da chamada

legitimação democrática do poder,11

o que se coaduna com a doutrina que considera a

democracia como uma dimensão indissociável do Estado de Direito, cuja eventual cisão

torna o Estado de Direito um “esqueleto de princípios e regras formais”12

.

8 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. 6. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005,p. 109 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed., rev. e atual. Editora Malheiros.

São Paulo, 2005.p.113 10 Para os fins deste artigo comunga-se do entendimento acerca do qual os direitos fundamentais variam

conforme a modalidade de Estado, a ideologia e os princípios consagrados na Constituição, sendo, pois,

reflexos dos direitos humanos em cada Estado. Neste sentido, a fundamentalidade é a expressão da

indispensabilidade daqueles direitos para a organização social, política e econômica de uma dada sociedade,

a base a ser observada nas relações intersociais (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12.

ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p.514-515). 11 SILVA, José Afonso da .Op.cit.p.113 12A despeito da cizânia entre doutrinadores e operadores do direito que vislumbram reticências entre a integração do Estado de direito e a Democracia, comunga-se da doutrina que conjuga as duas expressões

enquanto dimensões qualificadoras do Estado, por todos, cita-se Canotilho. J. J. Gomes (Estado de Direito,

Fundação Mário Soares. Gradiva: 1999.p.27-28).

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A democracia substancial pauta-se na afirmação dos direitos fundamentais,

reconhecidos pela observância de valores inerentes à pessoa, indutivos das ações e das

escolhas políticas e exigíveis de toda a sociedade e do próprio Estado. O cidadão sai da

posição inerte de espectador e de mero reivindicador de direitos e concretizações

substanciais da democracia representativa, assumindo postura decisiva nas escolhas e na

gestão públicas.

Nesse paradigma, a democracia assume um caráter ligado à efetivação de

direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos, vinculando Estado e sociedade

em prol da transformação da realidade social, compartilhando responsabilidades e esforços

para o bem comum.

A noção de democracia substancial coincide com a denominada democracia

deliberativa13

, tratada por Cláudio Pereira Souza Neto, na qual a cidadania não se restringe

ao exercício do direito político, mas clama por uma participação social ativa em todo

processo democrático de elaboração de leis, de gestão pública e de resolução de conflitos

sociais (cidadania social e participativa). Ela tem como corolário a possibilidade de

argumentação no espaço público e justificação das escolhas políticas através de um canal

de diálogo e deliberação.

O Estado Democrático de Direito é, portanto, um Estado no qual o poder -

constituído democraticamente como resultado da soberania popular- é exercido dentro de

limites juridicamente estabelecidos e que se pauta nos ditames dos direitos fundamentais,

tornando o cidadão corresponsável pelos destinos da sociedade. É o mote onde as relações

entre Estado e sociedade são redesenhadas na busca pela complementaridade entre a

realização pessoal do indivíduo e a harmonia das relações sociais.

Entremeio às premissas de participação e de cidadania ativa, de inclusão nos

centros de poder, elevando o conteúdo emancipador da democracia, incorpora-se a

essencialidade da tutela processual coletiva como instrumento de transformação da

realidade social e de consumação de direitos fundamentais.

13 Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio

democrático In A Nova Interpretação Constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org). Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 316.

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3. O PROCESSO COLETIVO DE INTERESSE PÚBLICO E O ACESSO À

JUSTIÇA NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Sob as vestes do referencial teórico elementar acaudilhado por Cappelletti14

, o

acesso à justiça é um movimento em prol da afirmação do caráter instrumental15

e

socializante do processo, bem como de análise crítica dos instrumentos oferecidos aos

indivíduos para tornar efetiva a prestação jurisdicional. A partir da constatação de

problemas concretos, o movimento de acesso à justiça permite erigir soluções favoráveis à

adequação da resposta jurisdicional ofertada.

É da essência desse movimento a concepção do processo como um instrumento

de realização efetiva dos direitos violados ou ameaçados de violação, um processo a

serviço de metas, não apenas legais e jurisdicionais, mas também sociais e políticas16

.

A temática do acesso à justiça deve ser observada tendo como esteio os

paradigmas do Estado Democrático de Direito e a valorização do processo que se mostra

um imperativo da própria estrutura democrática, porquanto, inefetivo é o reconhecimento

dos direitos fundamentais se desacompanhados de instrumentos que os imponham.

Boaventura Santos assevera que, uma vez destituídos de mecanismos que

fizessem impor o seu respeito, os direitos passariam a “meras declarações de conteúdo e

função mistificadores”17

18

.

14 CAPPELLETTI, Mauro .Op.cit. Passim 15 A instrumentalidade do processo repousa suas raízes na tese de que o processo não é um fim em si mesmo,

mas antes um instrumento de realização efetiva de direitos, não possui valor absoluto e não pode se distanciar

das normas substanciais e das exigências sociais de pacificação de conflitos (DINAMARCO, Cândido

Rangel.op.cit.p. 379). 16 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Execução - Rumos Atuais do Processo Civil em face da Busca de efetividade na prestação Jurisdicional. Revista de Processo, São Paulo, ano 24, n. 93, p. 28-44, jan./mar.

1999. p.29. 17 SANTOS, Boaventura Souza. O Acesso à Justiça in Associação dos Magistrados Brasileiros, Justiça:

Promessas e Realidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p.406. 18 Nesse sentido, Antônio Gomes de Vasconcelos reconhece o esgotamento da concepção formal do princípio

de democracia, no diz respeito aos mecanismos de positivação e de reconhecimento dos diretos: “Esse

modelo encontra-se exaurido. Defronta-se com a crise de insuficiência do modelo de racionalidade da

filosofia (epistemologia da consciência) e da ciência moderna (método cientifico) transposto para o direito

moderno – que tende a acreditar que a mera existência dos direitos no plano normativo e de instituições

encarregadas de sua operacionalização realiza a justiça, independentemente da sua efetividade”

(VASCONCELOS, Antônio Gomes de. A Jurisdição como fator de promoção dos direitos fundamentais vista sob enfoque dos princípios razão dialógica e da complexidade. Tese publicada no XIV Congresso

Nacional dos magistrados da Justiça do Trabalho (AMATRA III), Disponível em:

www.conamat.com.br/teses/jurisdicao_como.doc.)

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O direito ao acesso efetivo à justiça tem sido progressivamente reconhecido

como sendo de importância capital entre os direitos individuais e sociais. A titularidade de

direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.

Esse arcabouço permite destacar a perspectiva da teoria da complexidade19

,

pela qual todo tema deve ser considerado a partir de uma análise complexa, não

particularizada. Ora, se é assim, não se pode enfrentar a crise da jurisdição20

partindo-se de

uma visão minimalista e individualizada, relativizando a técnica processual. A elevação de

mecanismos alternativos de solução de conflitos21

, com caráter desjudicializador, não pode

ser considerada como a panaceia de todos os males, uma vez que, o processo é essencial à

afirmação da democracia no Estado de Direito e, consequentemente, à implementação de

direitos fundamentais.

Defende-se a noção do processo focado no compromisso estatal,

constitucionalmente formulado, de exercer a atividade jurisdicional (ou poder de

jurisdição) com vistas à sustentação de direitos e garantias fundamentais.

O Processo deve ser acolhido como um instrumento para a realização dos fins

sociais do Estado, uma ferramenta fundamental de alcance dos objetivos essenciais da

sociedade, possuindo, pois, função social e construtiva. Dessa feita, seu estudo parte da

premissa de que a ciência jurídica é humana, normativa, aplicada e contextualizada,

associando-o aos diversos aspectos históricos, culturais, políticos e econômicos existentes

no âmbito de sua aplicação, a fim de que se justifique.

Tem-se que a função social do processo, nas palavras de José Carlos Barbosa

Moreira22

, está no estímulo à eliminação das diferenças (maior igualdade) e na primazia

dos interesses coletivos sobre os individuais.

19 A teoria mencionada propugna que os pressupostos da razão dialógica e da complexidade, norteadores do conhecimento e da ação (ação pública – jurisdição e administração), para os quais avançou a filosofia da

linguagem e a ciência contemporâneas (que aceitou o papel do sujeito, da incerteza e da desordem na busca

do conhecimento científico), são coerentes com os fundamentos e os princípios democráticos do Estado

Democrático de Direito (CF/88) e com a dinâmica da sociedade contemporânea (VASCONCELOS, Antônio

Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais para a aplicação do Princípio da

Democracia Integral e da Ética de Responsabilidade na Organização do Trabalho e na Administração da

Justiça: o Sistema Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista. Estudo de caso – a questão trabalhista

regional e os resultados da instituição matricial de Patrocínio-MG (1994–2006).907 f. Tese de Doutorado –

Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, defendida em dezembro/ 2007.) 20 Refere-se às mesas de debate acerca das carências da jurisdição, da cultura de damandismo e da

litigiosidade em repetição, bem como da morosidade da justiça e da necessária celeridade do processo. 21 Refere-se ás formas alternativas de solução de conflitos e fortalecimento de mecanismos de prevenção de

litígios, ao que se dá louvor. 22 Por um processo socialmente efetivo. Revista Síntese de Direito e Processo Civil, Porto Alegre, n. 11,

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Essa é a conjuntura que exalta o processo coletivo como meio de acesso à

justiça, por se prestar à participação social, na medida em que tutela direitos que espraiam

seus nortes para além do acervo jurídico do indivíduo singularmente considerado.

A ideia fundante do processo coletivo é possibilitar a cognição judicial dos

interesses metaindividuais por iniciativa de um único ente intermediário, legalmente

legitimado para a tutela de direitos da coletividade, a fim de incrementar o acesso à justiça,

o que remete à essência de interesse público do processo coletivo, e, consequentemente, de

instrumento realizador de direitos fundamentais.

Ricardo de Barros Leonel23

esclarece que o processo coletivo tem intensa

dimensão política, pois o equacionamento dos conflitos a ele relativos implica em escolhas

políticas, trazendo à sociedade a possibilidade de influir em decisões fundamentais do

Estado através do exercício da jurisdição coletiva.

A par do exposto, a função social do processo coletivo deve ser ainda

reconhecida na sua formulação enquanto meio de solução de conflitos que oportuna a

realização e a defesa de direitos sociais, na medida em que a teorização dos direitos

metaindividuais e sua definição legal24

servem como um instrumento facilitador do

reconhecimento de direitos fundamentais sociais, ampliando os meios de sua dedução em

juízo25

.

Esse é o entendimento que imprime caráter de interesse público ao processo

coletivo como um instrumento a favor do interesse público primário erigido pelos grupos

sociais e almejado pela sociedade, cujo escopo é a manutenção do Estado Democrático de

Direito.

Nesse sentido, o processo coletivo, além de se consubstanciar em instrumento

de tutela de direitos coletivos em sentido amplo, deve conter em seu conceito o elemento

de litigação de interesse público, senão pela natureza transcendente dos direitos que visa

proteger, pela potencialidade de servir à preservação da harmonia e a realização dos

objetivos constitucionais da sociedade26

.

maio-jun. 2001, p. 5-14. 23 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de Processo Coletivo. São Paulo: RT, 2002. p.31. 24 Artigo 81, do Código de Defesa do Consumidor. 25 Neste sentido , é bem de ver, o artigo 83, III, da LOMPU, encampa a tese defendida ao prescrever a ação civil pública trabalhista como instrumento hábil á defesa dos direitos coletivos dos trabalhadores em face do

desrespeito aos direitos sociais trabalhistas constitucionalmente garantidos. 26 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Op.cit.p.35

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Assim é que a tutela metaindividual sobrepõe-se em importância e efetividade,

despontando o privilégio às decisões coletivas, visto que essas são capazes de influir nos

destinos políticos da sociedade e de se projetarem para além da relação processual definida

pelas partes.

A sistematização e a edificação de um processo coletivo efetivo estão

absolutamente ligadas à noção de democracia em uma sociedade pluricêntrica, vez que

somente a manifestação de interesses coletivos é capaz de influir na perspectiva política do

Estado.

Nas lições de Boaventura Santos27

, a mobilização política e cidadã só faz

sentido se houver interesse coletivo e mecanismos erigidos para sua tutela efetiva e

eficiente, cuja manifestação é adequada aos nortes da ação coletiva.

4. CONCLUSÕES

A noção de um Estado Democrático de Direito é a noção de interação entre as

dimensões de participação social no processo de elaboração do direito e na definição e

execução dos fins do Estado, sempre e absolutamente volvidos à edificação e

concretização de direitos fundamentais das diversas gerações. Trata-se, pois, de paradigma

construído sob a premissa da participação ativa e responsável dos cidadãos na realização

do projeto social que se forjou constitucionalmente.

Sob tal paradigma, o processo dirige suas atenções à afirmação de seu caráter

instrumental e sua adequação às novas realidades sociais constatadas. Edifica-se como um

sistema arquitetado sob as estruturas da socialização, do acesso à justiça e da realização de

direitos fundamentais. O processo concorre para a consagração da cidadania e para a

interação entre a realidade social e o direito material. Impõe-se a formulação,

reformulação, reinterpretação e revisitação de práticas, institutos, regras e princípios

jurídicos em prol do alcance dessa finalidade.

O Estado Democrático de Direito é eminentemente um Estado de justiça

material social. É aquele no qual a jurisdição se faz presente. Sendo assim, o Estado

Democrático de Direito é indissociável do Processo enquanto um mecanismo

disponibilizado pelo ordenamento jurídico para a concretização de direitos. De nada vale a

27 SANTOS, Boaventura Souza. Op. Cit.p.109-111.

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positivação de direitos pela seara legislativa ou jurisprudencial quando apartada de

mecanismos democráticos com ímpeto de impor sua efetivação.

O grande serviço prestado pela moderna doutrina processualista, com lastro em

uma noção social e instrumental do processo, foi a afirmação do comprometimento da

ordem jurídica processual com valores constitucionalmente estabelecidos enquanto um

patamar mínimo de cidadania e dignidade. Assim é que o processo coletivo se mostra

absolutamente absorto pelo caráter instrumentalista do processo por ser conformado pela

participação democrática da sociedade na jurisdição. O devido processo legal coletivo

redefine os institutos processuais clássicos em favor da efetividade do processo coletivo

para afirmação de seu sentido.

O processo coletivo distingue-se do processo individual em importância, pela

marca que ostenta de interesse público, uma vez que possui o potencial de estender suas

decisões para um grande número de pessoas e de influir nos planos políticos da sociedade.

É a tutela coletiva processual que possui o potencial de descortinar as

demandas da sociedade e de transformar a realidade factual através da extensão subjetiva

da coisa julgada coletiva.

Além disso, a tutela processual coletiva possui o condão de prevenir conflitos

por intermédio da ação jurisdicional já que é capaz de determinar a conduta pública em

vistas de ameaça de lesão a direitos. Esse é o mais relevante sentido do processo coletivo

e, em síntese, o que o configura como um processo de interesse público por essência: a

possibilidade de influir nas diretrizes políticas pautadas pelos bens jurídicos tutelados por

meio das ações coletivas preventivas e reparatórias.

Os males causados pela persistência do modelo liberal-individualista como

paradigma ainda orientam a prática judiciária e o déficit de efetividade da jurisdição,

remetendo o processo coletivo a um plano secundário, destituindo-o de sua função

estratégica na realização de direitos fundamentais substanciais, na pacificação social e na

realização da justiça. Ao se reconhecer sua função estratégica na realização do projeto de

sociedade coerente com o Estado Democrático de Direito, inscrito na constituição federal,

confere-se-lhe o status de instrumento processual de elevado interesse público, pondo em

relevo seu potencial transformador da sociedade e sua aptidão para influir e inibir escolhas

políticas contrárias ao princípio de justiça fundante da sociedade brasileira.

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Direito Público e Direito Privado por uma nova Summa Divisio Constitucionalizada. Belo

Horizonte, editora Del Rey, 2008.

BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material

sobre o processo. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2003.

_____. CARMONA, Carlos Alberto. A posição do Juiz: Tendências Atuais. Revista de

Processo, São Paulo, ano 24, n. 96, p. 96-112, out./dez. 1999.

BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo:

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O EFEITO DEVOLUTIVO E OUTROS EFEITOS

Clarissa Diniz Guedes

Doutora em Direito Processual pela Universidade de São

Paulo - USP, Mestre em Direito Processual pela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Professora

Assistente de Direito Processual na Universidade Federal de

Juiz de Fora - UFJF.

RESUMO: Com este trabalho, busca-se analisar a utilidade de se adotar uma classificação

dos efeitos recursais que inclua, ao lado dos efeitos suspensivo e devolutivo, a categoria do

“efeito translativo”, definido como o efeito que possibilita a transferência das questões de

ordem pública para o conhecimento do juízo recursal. A partir da análise das lições de

Machado Guimarães e Angelo Bonsignori, buscar-se-á resgatar o sentido original do efeito

devolutivo, bem como alguns dos diversos significados adotados no decorrer da história.

Com base nos fundamentos históricos e de direito comparado extraídos dos textos

examinados, será respondida a indagação acerca dos princípios que regem o efeito

devolutivo. À luz desses princípios, concluir-se-á sobre a utilidade ou inutilidade, bem

como sobre as possíveis implicações de se atribuir natureza de efeito autônomo à

transferência das questões de ordem pública.

PALAVRAS-CHAVE: efeitos recursais, efeito devolutivo, efeito translativo, princípios

processuais, efeito autônomo.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the utility of adopting a classification of the

appellation effects that includes, alongside the suspensive effect and devolutive effect, the

category of “translative” effect, defined as the effect which enables the transfer of public

order issues to the knowledge of the appellate court. From the analysis of Machado

Guimarães and Angelo Bonsignori this paper will retrieve the original sense of devolutive

effect, as well as some of the various meanings adopted throughout history. Based on

historical and comparative law fundamentals extracted from the texts examined, will be

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answered the question about the principles that govern the devolutive effect. In the light of

these principles, we will be able to conclude on the usefulness or uselessness, as well as the

possible implications of attributing the nature of autonomous effect to the transfer of public

order issues.

KEYWORDS: appellation effects, devolutive effect, translative effect, procedural

principles, autonomous effect.

1 Classificações dos efeitos recursais: os desmembramentos do efeito devolutivo

São múltiplas as classificações dos efeitos recursais. Rigorosamente,

consideram-se efeitos recursais as consequências da interposição do recurso sobre o

pronunciamento impugnado e sobre o desenvolvimento do processo.1

Araken de Assis anota, com razão, a ausência de clareza sobre a matéria no

âmbito doutrinário e na disciplina legislativa, que conduzem ao enquadramento, como

efeitos recursais, de fenômenos estranhos ao plano da eficácia, bem como outros que,

“embora efeitos no sentido próprio do termo, e discerníveis nos trâmites recursais,

mostram-se inidôneos à configuração de um tronco independente”.2 Entende este autor

que, apesar da dificuldade de se alcançar um posicionamento harmonioso sobre o tema, há

uma exigência mínima a ser observada, único aspecto que se sobrepõe à intuição e ao

arbítrio do classificador: a coerência intrínseca do arranjo proposto.

Evita-se, assim, tanto o reducionismo, quando o tautologismo –

vícios reprováveis em qualquer esquema. E, no entanto, as

classificações visam à melhor compreensão dos fenômenos

examinados. A sistematização indiferente a tal aspecto torna-se

inócua e sem relevância prática. 3

1 Concordam parcialmente com a assertiva: ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2ª ed.. São Paulo: RT,

2008, p. 216; NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, n. 26, p.

140. 2 Araken de Assis (Op. cit., pp. 216-217), menciona, entre os efeitos que não merecem ser considerados

autônomos, porque decorrem de outro, o expansivo (ou extensivo) e o translativo. Já Flávio Cheim Jorge (Teoria geral dos recursos cíveis. Forense: Rio de Janeiro, 2003, p. 245 e s.) considera que o único efeito

recursal em sentido estrito seria o devolutivo. 3 ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 218.

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Afigura-se essencial, antes de tudo, distinguir, com Renzo Provinciali, os

efeitos inerentes ao exercício de quaisquer faculdades processuais decorrentes dos direitos

de agir ou excepcionar – nas quais estão incluídos os recursos –, denominados efeitos

genéricos, daquelas consequências que se ligam direta e especificamente aos recursos,

consideradas efeitos recursais específicos.4 Somente estes últimos efeitos, por serem

consequências próprias e peculiares às impugnações de decisões judiciais que incidem

sobre o provimento recorrido,5 devem ser entendidos como efeitos dos recursos.

Sob essa perspectiva, exclui-se da classificação dos “efeitos recursais” o

chamado efeito de “prolongamento da litispendência”, por vezes denominado efeito

“obstativo”, “impeditivo”, “preventivo” ou simplesmente “efeito de adiamento” da coisa

julgada ou da “preclusão”.6 A despeito de ser mencionado por parcela considerável da

4 PROVINCIALI, Renzo. Sistema delle impugnazioni civili secondo la nuova legislazione. Parte generale.

Padova: Cedam, 1948, pp. 290-291, § 50. 5 No ordenamento brasileiro, para serem consideradas recursos, as impugnações devem ter lugar dentro do

mesmo processo em que proferida a decisão impugnada. É dizer: a natureza recursal de um remédio

direcionado à reforma ou invalidação de decisão judicial pressupõe a ausência de trânsito em julgado do

provimento impugnado. Cf. nesse sentido, a definição de José Carlos Barbosa Moreira, amplamente utilizada

pela doutrina: “pode-se conceituar recurso, no direito processual civil brasileiro, como o remédio voluntário,

idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de

decisão judicial que se impugna” (Comentários ao Código de Processo Civil. 12ª ed.. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, v.5, p. 233). 6 Sobre a questão terminológica, Cândido Rangel Dinamarco alude ao “efeito direto e imediato de prevenir a

preclusão temporal”, e explica que, antes do juízo de admissibilidade recursal, não há como saber se o

recurso obstará ou adiará a preclusão. De fato, se o recurso for conhecido, a decisão recorrida jamais

precluirá, porque será substituída pelo juízo de mérito (art. 512 do CPC); se não for, a preclusão apenas terá

sido adiada (Efeitos dos recursos. In: A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 120).

Quanto a preferir fazer referência a “preclusão”, e não necessariamente ao “trânsito em julgado”, justifica

Dinamarco ao argumento de que este ocorrerá apenas quando a decisão recorrida for uma sentença, acórdão

ou decisão monocrática que tenham julgado definitivamente a causa. Embora se concorde que o termo

“preclusão”, por ser mais abrangente, é preferível à “prevenção do trânsito em julgado”, há que se ressalvar a

assertiva de que apenas as sentenças, acórdãos ou decisões monocráticas finais dão origem ao trânsito em

julgado, pois também algumas decisões interlocutórias são suscetíveis de transitar em julgado e produzir

coisa julgada (cf., neste sentido: STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1057808/PR, j. 25.8.2009, DJe 9.9.2009).

Quanto à denominação “prolongamento da litispendência”, explica Dinamarco que este apenas ocorrerá

quando o ato recorrido for uma sentença (op. cit., pp. 122-123). Ressalte-se, porém, que, para uma corrente

doutrinário-jurisprudencial minoritária, a afirmação não se aplica à totalidade dos casos – há quem entenda

que o recurso de agravo de instrumento contra decisão interlocutória tem o condão de prolongar a

litispendência ainda que, proferida a sentença, o agravante não tenha dela recorrido, desde que subsista o

interesse recursal (cf., sobre o tema: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4ª

ed.. São Paulo: RT, 2006, n. 11.1, pp. 576 e s., em que a autora discorre sobre os argumentos utilizados pelos

defensores desta tese, nada obstante a ela se posicione contrariamente; favoravelmente ao prolongamento da

litispendência pelo agravo de instrumento, após sentença irrecorrida: ALVES, Francisco Glauber Pessoa.

Agravo de Instrumento Julgado depois de proferida sentença não tendo sido conhecida a apelação. Revista

de Processo, São Paulo, v. 95, jul./set. 1999, p. 255 e s.). Ainda assim, é possível afirmar que o

prolongamento da litispendência decorre, regra geral, dos recursos interpostos contra a decisão final da causa.

Logo, não poderia ser considerado um efeito que se aplica a todos os recursos.

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doutrina como efeito recursal, ao lado dos efeitos devolutivo e suspensivo, não se trata de

efeito que concerne especificamente aos recursos.7

Deste modo, embora a prevenção da coisa julgada ou da preclusão sejam

fatos relevantes, por exemplo, para efeitos de contagem do prazo para propositura de

ação rescisória,8 não podem ser considerados relevantes para efeitos de serem incluídos

numa classificação referente às consequências específicas dos recursos.

Há também quem acresça aos efeitos devolutivo, suspensivo e “impeditivo”, os

efeitos “expansivo” ou “extensivo” 9

e “substitutivo”.

Na ótica de Barbosa Moreira e Araken de Assis, o efeito “expansivo” não

configuraria uma categoria autônoma, por tratar-se de desmembramento do efeito

devolutivo.10

Argumenta-se que, sendo o “efeito extensivo” o “fenômeno pelo qual, em

certos casos, o recurso interposto por um litisconsorte aproveita aos restantes (...) antes que

7 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 257. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio

Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal. 3ª ed.. São Paulo: RT, 2001, p.

49. 8 Confira-se o Enunciado 401 da Súmula do STJ: “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando

não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.” O verbete é motivado pela necessidade

prática de se estabelecer o momento exato do iter procedimental a ser considerado como termo a quo do

prazo para ajuizamento de rescisória. Alguns julgados que precederam à edição da Súmula 401 fazem menção à indivisibilidade da sentença e da coisa julgada para justificar o início do prazo no momento do

trânsito em julgado do último pronunciamento judicial. Nesse sentido: “A coisa julgada material é a

qualidade conferida por lei à sentença/acórdão que resolve todas as questões suscitadas pondo fim ao

processo, extinguindo, pois, a lide. Sendo a ação una e indivisível, não há que se falar em fracionamento da

sentença/acórdão, o que afasta a possibilidade do seu trânsito em julgado parcial. Consoante o disposto no

art. 495 do CPC, o direito de propor a ação rescisória se extingue após o decurso de dois anos contados do

trânsito em julgado da última decisão proferida na causa.” (STJ, 2ª T., Rel. Francisco Peçanha Martins, REsp

404777/DF, j. 21.11.2002, DJ 9.6.2003, p. 214). Cuida-se, porém, de entendimento que contraria a orientação

dominante no Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de formação gradual da coisa julgada,

conforme decidido no julgado a seguir: “Sob pena de ofensa à garantia constitucional da coisa julgada, não

pode tribunal eleitoral, sob invocação do chamado efeito translativo do recurso, no âmbito de cognição do

que foi interposto apenas pelo prefeito, cujo diploma foi cassado, por captação ilegal de sufrágio, cassar de ofício o diploma do vice-prefeito absolvido por capítulo decisório da sentença que, não impugnado por

ninguém, transitou em julgado.” (STF, Tribunal Pleno, AC 112/RN, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 1.12.2004, DJ

4.2.2005). Em sede doutrinária, a coisa julgada parcial é frequentemente invocada para sustentar-se a

imutabilidade e indiscutibilidade da parte /capítulo de sentença independente que não tenha sido objeto de

recurso (cf., sobre o tema, as remissões feitas no item 3.3 deste trabalho). 9 A referência ao efeito extensivo ou expansivo é corrente no direito italiano. Nesse sentido, explica Barbosa

Moreira (op. cit., n. 143, p. 257, nota de rodapé 37: “O tema ocorria com maior frequência entre os

processualistas penais italianos, a propósito dos arts. 203 e 204 do Código de 1930, onde a própria rubrica

legal adotava a expressão (hoje, o art. 587 do Código de 1988 alude à estensione dell´impugnazione).”

Acresça-se que o code di procedura civile vigente dispõe, no art. 336, intitulado “Effetti della riforma o della

cassazione”: “La riforma o la cassazione parziale ha effetto anche sulle parti della sentenza dipendenti dalla parte riformata o cassata. La riforma o la cassazione estende i suoi effetti ai provvedimenti e agli atti

dipendenti dalla sentenza riformata o cassata.” 10 MOREIRA, José Carlos Barbosa. n. 143. Op. cit., p. 257; ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 218-219.

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de um efeito, per se, parece mais adequado falar de extensão subjetiva dos efeitos

propriamente ditos”.11

Mencione-se, ainda, que, além do aproveitamento do resultado pelos

litisconsortes que não recorreram (“efeito extensivo subjetivo”), a doutrina cogita do

“efeito extensivo objetivo”, que diz respeito às consequências do provimento do recurso

sobre outros atos processuais ou sobre outras partes da decisão recorrida que não tenham

sido objeto de impugnação. Neste particular, não há como afastar a explicação de que a

“expansão” das consequências da interposição do recurso a capítulos distintos – que não

tenham sido diretamente impugnados – do ato decisório recorrido, subordinados à parte

que foi objeto de impugnação, decorre, simplesmente, da extensão do efeito devolutivo.12

O “efeito substitutivo” é também consequência do efeito devolutivo, e não

propriamente dos recursos, porquanto “a substituição da decisão recorrida pela decisão do

recurso não é uma consequência natural de seu conteúdo, mas tão somente uma

repercussão indissociável do efeito devolutivo, o qual permite o reexame e,

consequentemente, a sobreposição de uma decisão sobre a outra”. 13

Voltar-se-á ao ponto, oportunamente, quando da abordagem das implicações

do efeito devolutivo.

Outra classificação inclui a referência ao “efeito diferido”. Conforme Alcides

de Mendonça Lima, este incide quando o julgamento de um recurso encontra-se

subordinado à interposição e conhecimento de outro recurso.14

É o que ocorre com o

agravo retido, previsto no art. 523, caput, do CPC vigente. Nesse caso, tanto a remessa do

agravo retido ao órgão competente para julgamento, como, também, a própria

admissibilidade, ficam sujeitos à interposição e conhecimento da apelação, que

11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. n. 143. Op. cit., p. 257. 12 Há exemplos de “efeito expansivo” (art. 336 do codice di procedura civile) no direito italiano. Hipótese peculiar de efeito expansivo diz respeito à aplicabilidade do art. 336 do Código italiano a decisões prolatadas

em procedimentos diversos, mas dependentes entre si (prejudicialidade externa). A jurisprudência italiana,

com apoio em Liebman, Andrioli e Satta-Punzi, tem decidido que nas hipóteses em que seja impugnada

apenas uma sentença não definitiva, sem que se recorra daquela definitiva, e constituindo uma delas

pressuposto lógico ou jurídico da outra, os efeitos prejudiciais determinados pela reforma ou cassação da

sentença não definitiva se produzirão sobre aquela definitiva, sem que se considere que sobre esta teria se

verificado a coisa julgada formal, pois se trata de coisa julgada apenas aparente, porquanto necessariamente

condicionada à pendência de recurso contra a sentença não definitiva que é antecedente lógico ou jurídico

(PICARDI, Nicola (a cura di). Le fonti del diritto italiano i testi fondamentali commentati con la dottrina e

annotati con la giurisprudenza. Codice di Procedura Civile. Milano: Giuffrè, 2010, p. 986, com remissões

à doutrina e jurisprudência italianas). 13 JORGE, Flávio Cheim. Op. cit., p. 252. 14 LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, n. 187, p. 288-289; Idem, Recursos cíveis:

Sistema de normas gerais. Rio de Janeiro – São Paulo: Freitas Bastos, 1963, p. 255.

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determinam a remessa dos autos para o juízo recursal. Na realidade, o que ocorre é que os

efeitos do recurso de agravo retido ficam diferidos no tempo, aguardando a oportuna

interposição da apelação. Não se trata o “efeito diferido” de um efeito autônomo, senão

que de uma exigência procedimental para que os recursos produzam seus efeitos próprios.

Resta, então, a classificação adotada majoritariamente pela doutrina, alusiva à

dicotomia dos efeitos suspensivo e devolutivo.

Quanto ao primeiro, trata-se do efeito de impedir a eficácia imediata da

decisão. Diz Barbosa Moreira que

A expressão ‘efeito suspensivo’ é, de certo modo, equívoca, porque

se presta a fazer supor que só com a interposição do recurso passem

a ficar tolhidos os efeitos da decisão, como se até esse momento

estivessem eles a manifestar-se normalmente. Na realidade, o

contrário é que se verifica: mesmo antes de interposto o recurso, a

decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz,

e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que

cessaria se não se interpusesse recurso. Cabe ressalvar que, em

determinadas hipóteses (v.g., art. 558), o óbice à eficácia da decisão

recorrida não nasce da previsão legal de recurso normalmente

dotado de efeito suspensivo, mas de ato judicial que, no caso

concreto, diante de tais ou quais circunstâncias, suspende aquela

eficácia.15

Raciocínio idêntico foi adotado por Pontes de Miranda, que se referia ao efeito

suspensivo como um efeito que decorre “mais da recorribilidade do que do recurso”.16

Essa

observação, lembrada por muitos,17

não afasta a conclusão de que a suspensividade é efeito

do recurso em sentido amplo, independentemente das subclassificações que se distinguem

15 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 143, p. 258. 16 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,

1975, tomo 7, p. 11. 17 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 959. Flávio Cheim

Jorge diz que este efeito está mais diretamente relacionado à ineficácia da decisão, decorrente de previsão legislativa (Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 249-250. Em sentido

análogo, Ovídio Baptista da Silva (Curso de processo civil. Processo de Conhecimento. 7ª ed.. Rio de

Janeiro: Forense, 2005, v. 1, p. 403.

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os efeitos da recorribilidade ou da pendência de recurso, da interposição, da remessa e do

julgamento do recurso.18

O efeito devolutivo, que é o mais característico dos efeitos recursais, pode ser

provisoriamente definido como o “efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad

quem o conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição”. Cuida-se do

conceito fornecido por José Carlos Barbosa Moreira, ao qual acresce a seguinte

observação, atinente às peculiaridades da lei processual vigente no ordenamento pátrio:

De lege lata, há devolução sempre que se transfere ao órgão ad

quem algo do que fora submetido ao órgão a quo – algo, repita-se;

não necessariamente tudo. Inexiste, portanto, recurso totalmente

desprovido de efeito devolutivo, com ressalva dos casos em que o

julgamento caiba ao mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida.

O que pode acontecer, conforme se assinalará nos momentos

oportunos, é que variem, de um para outro recurso, a extensão e a

profundidade do aludido efeito. Aquela – desde já convém observar

– nunca ultrapassará os lindes da própria impugnação: no recurso

parcial (...), a parte não impugnada pelo recorrente escapa ao

conhecimento do órgão superior, salvo se por outra razão (como

nos casos do art. 475) este se houver de pronunciar a propósito.19

Cuida-se da noção ampla de efeito devolutivo, que remonta à sua origem,

concomitante ao surgimento da apelação romana, e que, pelas razões que serão expostas,

permanecem vivas e não devem ser olvidadas.

Há quem, ao argumento de amparar-se nas disposições legais (art. 515, caput,

do CPC),20

limite o efeito devolutivo às questões que tenham sido objeto de impugnação

18 Assim, por exemplo, a doutrina portuguesa, parcialmente seguida por Araken de Assis (op. cit., pp. 219-

220) distingue os efeitos recursais conforme o estágio em que se encontre o recurso. Refere-se aos efeitos (a)

da pendência do recurso: o impedimento à formação da coisa julgada e o prolongamento da litispendência;

(b) da interposição: o devolutivo e o suspensivo, já explicados; (c) da expedição do recurso: o efeito

suspensivo da marcha do processo em primeiro grau – explica-se, dessa forma, a menção ao fato de o agravo

não obstar ‘o andamento do processo’, constante da segunda parte do art. 497 – e o efeito não suspensivo a

tal prosseguimento; e (d) do julgamento do recurso: a substituição do ato impugnado pelo pronunciamento do

tribunal, confirmando, reformando ou anulando o ato decisório proferido no órgão a quo. Cf., a propósito,

MENDES, Armindo Ribeiro. Os recursos no Código de Processo Civil revisto. Lisboa: Lex, 1998, n. 16,

pp. 56-57. 19 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., pp. 259-261. 20 Em sentido análogo, o art. 1.026 do Projeto de Novo CPC - PL 8.046/2010, na versão do substitutivo

aprovado na Câmara dos Deputados em julho de 2013.

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pelo recorrente, reservando, para as demais questões, que porventura venham a ser

enfrentadas pelo órgão ad quem, um efeito autônomo, denominado “translativo”.

(...) O efeito translativo serviria para distinguir a devolução operada

por força da impugnação do legitimado, assentada no princípio

devolutivo, e a ocorrida independentemente da impugnação,

abrangendo matérias de ordem pública, e decorrente do princípio

inquisitório.21

Aqueles que defendem a autonomia do efeito translativo invocam-na sob o

argumento de que este efeito se opõe ao devolutivo, porque amparado no princípio

inquisitivo, enquanto este encontraria respaldo no dispositivo.

Assim, Nery Jr. entende que “O poder dado pela lei ao juiz para, na instância

recursal, examinar de ofício as questões de ordem pública não arguidas pelas partes não se

insere no conceito de efeito devolutivo em sentido estrito, já que isso se dá pela atuação do

princípio inquisitório e não pela sua antítese, que é o princípio dispositivo, de que é

corolário o efeito devolutivo dos recursos”.

Para este autor, o efeito devolutivo pressupõe “ato comissivo de interposição

do recurso, não podendo ser caracterizado quando há omissão da parte ou interessado sobre

determinada questão não referida nas razões ou contrarrazões do recurso”.22

Será objeto de análise, mais adiante, a questão da necessidade ou

desnecessidade de distinguir um efeito próprio para justificar a transferência de questões

não impugnadas mediante recurso. Antes disso, proceder-se-á ao resgate conceitual do

termo “efeito devolutivo”, no sentido original e naquele adotado por alguns ordenamentos

no decorrer da história, para, na sequência, analisar em que medida merecem ser

preservadas as conceituações históricas e provenientes do direito estrangeiro.

Em seguida, serão examinadas, com o mesmo propósito, as possíveis

implicações de se atribuir natureza de efeito autônomo à transferência das questões de

ordem pública.

21 ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 216-217, amparado na concepção de Nelson Nery Jr. (Teoria Geral dos

Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 482), da qual diverge, por considerar “mais natural” compreender o conhecimento e o julgamento das questões de ordem pública como uma “consequência intrínseca ao efeito

devolutivo, relativa à sua profundidade”. 22 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 484.

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2 Conceito de efeito devolutivo e princípios regentes

A partir de uma observação histórico-comparativa sobre o efeito devolutivo,

José Carlos Barbosa Moreira revela serem variados os limites deste efeito em diversos

ordenamentos e épocas:

Entre nós, sob o direito anterior, não era pacífica a conceituação do

efeito devolutivo: enquanto a minoria dos escritos o reconhecia,

com maior ou menor amplitude, sempre que alguma questão, seja

qual for a sua natureza, se submete ao crivo de novo julgamento,

havia quem preferisse limitá-lo às hipóteses de reapreciação da

causa, ou, antes, do mérito, no todo ou em parte, mas sem restrição

de profundidade.

Percebe-se a afinidade entre essa segunda

concepção e a sustentada por certos autores italianos, em cujo

entendimento se deve excluir do âmbito do efeitos devolutivo

aquilo que as partes, de maneira voluntária e expressa, levam à

revisão do juízo superior, e confinar-lhe a atuação às questões que

este, automaticamente – isto é, independentemente de tal iniciativa

– , fica investido do poder de reapreciar, ao julgar o recurso. O

mecanismo do efeito devolutivo só seria necessário para explicar a

atividade cognitiva em nível mais alto com referência à matéria que

não seja objeto de suscitação especificada pelos litigantes.23

O trecho supracitado é amparado em texto clássico da doutrina italiana sobre o

efeito devolutivo24

e, particularmente quanto aos aspectos do direito processual pátrio,

remete às lições de Luiz Machado Guimarães.25

De ambos pode-se extrair a ausência de

vinculação necessária entre o efeito devolutivo e a definição do objeto do recurso pelas

partes.

Bonsignori afirma textualmente a existência de um efeito devolutivo concreto e

específico, exercício automático, pelo juízo de segundo grau, do poder-dever de examinar

os fundamentos e razões em que se baseiam a demanda e as exceções já deduzidas em

23 Op. cit., pp. 259-260. 24 BONSIGNORI, Angelo. L’effetto devolutivo dell’appello. Rivista Trimmestrale di Diritto e Procedura

Civile. Milão: Giuffrè, 1974, v. 38, pp. 1326-1370. 25 GUIMARÃES, Luiz Machado. Efeito devolutivo da apelação. In: Estudos de direito processual civil. Rio

de Janeiro/São Paulo: Editora Jurídica e Universitária LTDA., 1963.

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primeira instância, independentemente de uma expressa “repropositura” pelas partes. Esse

efeito devolutivo – que, segundo o autor, teria sido limitado pelo codice di procedura civile

de 1940 – conecta-se a dois aspectos do recurso de apelação: o beneficium commune, que

consiste na possibilidade de o recurso favorecer tanto a parte recorrente como a parte

recorrida, e a denominada apelatio generalis, possibilidade de interposição genérica e

imotivada da apelação.26

A concepção do jurista italiano é interessante porque vai na

contramão do entendimento de alguns juristas brasileiros, que excluem do efeito

devolutivo qualquer influência do princípio inquisitivo.

Ademais, as considerações de José Carlos Barbosa Moreira, reproduzidas no

início deste tópico, conduzem a questionamentos concernentes ao efeito devolutivo na

atualidade, tais como: a natureza das questões sobre as quais incide este efeito (se apenas

as questões atinentes à decisão final da causa ou se também a matéria decidida

incidentemente no processo); a amplitude da devolução, relativamente à matéria a ser

analisada pelo órgão recursal.

O primeiro questionamento afigura-se de simples solução.

A restrição do efeito devolutivo ao julgamento final da causa, que como regra

geral é alvo do recurso de apelação, remonta à própria origem romana deste efeito, num

momento em que vigia a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias.27

Diante

disso, parece correto entender que, à proporção em que os ordenamentos admitam a

interposição de recursos contra as decisões interlocutórias, há uma propensão ao

entendimento de que o efeito devolutivo abrange também as questões incidentemente

decididas no processo.

26 BONSIGNORI, Angelo. Op. cit., pp. 1326-1327. 27 A regra geral de vedação da apelação contra as interlocutiones foi estabelecida em Constituições do Baixo

Império que datam de 364 e 378 d.C. (Código Theodosiano 11.36.16; 11.36.18 e 11.36.23). O Código Theodosiano (11.36.1) registra ressalva aos casos de dano irreparável, quando também as interlocutórias

eram passíveis de impugnação pela appellatio, em Constituição do tempo de Constantino. (COSTA, Moacyr

Lobo da. A origem do agravo no direito lusitano. In: AZEVEDO, Luiz Carlos de. COSTA, Moacyr Lobo da.

Estudos de história do processo: Recursos. São Paulo: FIEO, 1996, p. 135). O direito romano clássico

estabeleceu definitivamente a irrecorribilidade das interlocutórias como regra geral. Não havia recurso

especificamente destinado à impugnação das interlocutiones de primeiro grau e o uso da apelação era

permitido apenas excepcionalmente para este fim. A inapelabilidade das interlocutórias foi categoricamente

imposta por Justiniano (Cód. Justinianeu 7.62.36), sob a justificativa de que não se poderia experimentar

dano das interlocutórias, já que ao tempo da apelação poderiam ser expostas as razões em que se fundassem a

pretensão de obter algum direito, tais como a produção de prova testemunhal e a apresentação de

documentos. A proibição era justificada ante a necessidade de se impedir o prolongamento indefinido dos pleitos. Assim, quando fosse denegado algum direito por decisão interlocutória, o juiz determinaria que se

consignasse por escrito para que a parte prejudicada pudesse suscitar a questão na apelação contra a sentença

final.

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Ademais, se em épocas remotas a preocupação dos jurisconsultos referia-se

predominantemente às questões de direito substancial, a evolução do processo acarretou o

incremento das situações em que se consideram lesivas as decisões que suprimem direitos

de cunho processual, referindo-se, apenas indiretamente, a direitos materiais. Dentre estas,

podem se citar as decisões relativas à concessão de medidas cautelares e à admissão da

produção de provas ilícitas com prejuízo a direitos fundamentais. Apesar de, regra geral,

não se referirem ao mérito, a realçada importância destas questões determina a

transferência da matéria ao órgão ad quem, pela via do agravo.

Por outro lado, há decisões interlocutórias que podem implicar violações

diretas a direitos materiais, como ocorre no processo de execução e na fase de

cumprimento de sentença.

Também as sentenças terminativas, apesar de não solucionarem o mérito da

causa, ganham especial relevo, seja pelo status constitucional do direito de ação (art. 5º,

XXXV), seja pela autonomia do processo, traduzida na doutrina das condições da ação e

dos pressupostos processuais. As antigas “decisões interlocutórias com força de

definitivas”, que não dizem respeito ao mérito, suscitam controvérsias jurídicas de

destaque.

Além disso, deve-se consignar que, no ordenamento brasileiro vigente, é

possível a prolação de decisões interlocutórias cujo conteúdo refira-se às sentenças de

mérito (assim, por exemplo, o indeferimento liminar da reconvenção, amparado na

decretação de decadência), fato que atrai a incidência do efeito devolutivo quanto ao

“mérito da causa”.

Desse modo, por mais que se concorde que, no estágio atual do processo, deva-

se diminuir a quantidade de recursos contra as interlocutórias – o que, aliás, foi objeto de

reformas recentes no Código de Processo Civil vigente28

e é alvo da proposta legislativa

referente ao Projeto de Novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado nº

28 A propósito, as modificações implementadas pela Lei 10.352/2001, que inverteram – na prática – a regra

geral até então vigente do cabimento do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias, mediante

previsão da possibilidade de o relator convertê-lo em agravo retido na quase totalidade dos casos. Na

sequência, a Lei 11.187/2005 estipulou obrigatoriedade de tal conversão em todos os casos em que a decisão

agravada não fosse suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida. Estabeleceu, também, a

irrecorribilidade da decisão do relator que convertesse em retido o agravo de instrumento (cf. a redação

atribuída ao art. 527, II e parágrafo único do CPC vigente).

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166/2010, em trâmite na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº 8.046/2010)29

– ,

não se pode negar que a necessidade de reexame do conteúdo de diversas decisões desta

natureza conduz à ilação de que também incide o efeito devolutivo sobre tais

pronunciamentos.

Sob essa ótica, a concepção do efeito devolutivo como aquele que incide

apenas sobre as sentenças de mérito merece registro somente para efeitos históricos, mas

não é de maior interesse no que concerne à fixação da natureza das questões que são

transferidas por força deste efeito.

Registre-se, porém, que a relação entre o efeito devolutivo e o mérito da causa

repercutiu, em período ainda recente do direito processual civil brasileiro, sobre o segundo

questionamento, acerca da amplitude da devolução, relativamente à matéria ser analisada

pelo órgão recursal.

Sobre este aspecto, fundamental a análise dos dispositivos contidos nos arts.

820 e 846 do CPC de 193930

por Luiz Machado Guimarães31

, referentes ao efeito

devolutivo que, para o autor, atinha-se ao reexame do mérito da causa pelo órgão julgador

do recurso. Amparado nessa premissa da imprescindibilidade de um exame do mérito em

primeiro grau de jurisdição, realçava o autor a importância do efeito devolutivo na

classificação dos recursos, por entender que, pela devolução do pleno conhecimento da

causa ao tribunal de recurso, atendia-se à exigência do duplo grau de jurisdição.

29 O texto do Projeto mantém o recurso de agravo, mas restringe-lhe o cabimento às decisões interlocutórias

expressamente previstas na lei, onde se inserem, entre outras, aquelas referentes à tutela de urgência e de

evidência; as decisões interlocutórias de mérito; as proferidas na fase de cumprimento de sentença e na

execução. 30 Dizia Machado Guimarães: “O novo Código de Processo Civil, porém, quebrando essa tradição, foi muito

mais rigoroso e preciso na conceituação do duplo grau de jurisdição, exigindo, como condição de

admissibilidade do segundo exame pleno, uma decisão sobre o mérito proferida em primeira instância. Assim

é que concede, no art. 846, o recurso de agravo ‘das decisões que impliquem a terminação do processo principal sem lhe resolverem o mérito’ (as chamadas decisões interlocutórias com força de definitivas),

tornando, portanto, necessária a volta dos autos ao juiz a quo, para a pronúncia sobre o mérito, no caso de ser

provido o agravo, em virtude de não caber a este recurso, dado seu caráter estrito, o efeito devolutivo” (Op.

cit., p. 218). Veja-se que, por ser de agravo o recurso interponível, à época, contra as sentenças terminativas

(então denominadas decisões interlocutórias com força de definitivas), e justamente por não permitir o CPC

de 1939 que se examinasse o mérito, pela primeira vez, no juízo recursal, dizia então o jurista que o efeito

devolutivo apenas se aplicava ao recurso de apelação: “Ficou o recurso de apelação reservado às sentenças

definitivas de primeira instância (art. 820), só podendo ser consideradas definitivas, à vista do preceito

contido no citado art. 846, as decisões finais que definirem o mérito do litígio e, portanto, aptas a produzirem

coisa julgada” (Op.cit., p. 219). Essa concepção de efeito devolutivo necessariamente vinculado ao duplo

grau de jurisdição (i.e., dupla apreciação do mérito da causa) acabou superada no CPC vigente com a inserção do § 3º ao art. 515, o que não constitui, em absoluto, uma novidade, pois já era prevista nas

Ordenações do Reino. 31 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit., pp. 216-226.

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Abstraídas as questões que se referem ao duplo grau de jurisdição32

como

atributo do efeito devolutivo, interessa, no particular, a compreensão – ainda atualíssima –

de Machado Guimarães do que seria o “pleno” conhecimento da causa pelo tribunal

recursal.

Sobre o ponto, explicava o autor que a devolutividade da apelação não

dependia da alegação de vícios da sentença capazes de torná-la nula; bastava que se

alegasse a injustiça da decisão e todas as questões da causa seriam transferidas ao órgão

recursal.

Na sequência, elucidava o que deveria se compreender por “efeito devolutivo

amplo”, abrangente de todas as questões da causa:

Todos os tratadistas reconhecem que esta é a função da apelação:

corrigir a injustiça da sentença recorrida. Cumpre, entretanto, bem

esclarecer o sentido desta expressão, para que se não suponha que o

magistrado investido da apelação fica adstrito à simples apreciação

da justiça da sentença recorrida em face do material de cognição

recolhido na primeira instância. Seria, por exemplo,

processualmente justa a sentença que julgasse improcedente a ação

por não haverem sido alegados determinados fatos, ou, se diria, por

não terem sido provados, – o que não impediria, porém, a sua

reforma, desde que tais fatos viessem a ser alegados e provados no

juízo de apelação.

32 Para parte da doutrina, o efeito devolutivo pressupõe que o reexame da decisão seja feito por órgão diverso

do que a prolatou e, desse modo, nem todo recurso teria efeito devolutivo (cf. MOREIRA, José Carlos

Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 12ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2005, n. 143, v. 5, p. 260). Renzo Provinciali anota que se trata de distinção tradicional que tem raízes históricas no processo

romano germânico, onde o juiz de primeiro grau exercia poderes delegados pelo princeps, este que detinha

amplos poderes para rever a decisão da causa. A competência para o julgamento era, portanto, do órgão

julgador do recurso, e apenas era exercida por órgão de hierarquia em caráter delegado; a revisão da decisão

constituía, portanto, na devolução das atribuições ao juízo competente. Cf. PROVINCIALI, Renzo. Sistema

delle impugnazioni civili secondo la nuova legislazione. Parte generale. Padova: Cedam, 1948, p. 21: “L’

effetto devolutivo è tradizionale nei vari mezzi di impugnazione: ma non ne è un inseparabile attributo.”; e

pp. 51-52: “I mezzi di impugnazione devolutivo sono principalmente diretti a rilevare errori, in procedendo

o in judicando (...), del primo giudice; il che pone l’esigenza che la cognizione del conflitto sai devoluta ad

un giudice diverso e superiore. Per contro, i mezzi di impugnazione non devolutivi sono diretti alla

rimozione di un pregiudizio derivante dalla decisione impugnata principalmente sulla basse di elementi o nuovi o ignoti al giudice che ha emessa la decisione impugnata: d’onde l’inutilità dell’ intervento, di un

giudice diverso e superiore, no essendovi da sindacare alcun errore comisso dal giudice che ha pronunziata

la decisione impugnata.”

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O efeito devolutivo da apelação transfere ao tribunal superior a

cognição de toda a demanda. Faculta-se a renovação do processo e

não apenas a renovação do julgamento; visa-se corrigir, além dos

erros do magistrado a quo, os erros e deficiências da conduta

processual das partes. Deve, portanto, o tribunal de apelação

conhecer e julgar a causa como se fôra, de acôrdo com a conhecida

expressão ‘uma segunda primeira instância’.33

Vê-se, portanto, que a concepção originária de efeito devolutivo é ampla, e

dela não se extrai nenhuma limitação apriorística aos termos das razões de apelação. Fala-

se em devolução da demanda, pura e simplesmente, para julgamento no órgão recursal.

É evidente que este rejulgamento da causa, como se fosse o Tribunal uma

“segunda primeira instância” não se aplicava, invariavelmente, a todos os ordenamentos. A

incidência do efeito devolutivo em toda a sua amplitude era regra vigente, à época do texto

de Machado Guimarães, nos sistemas processuais italiano e francês, coincidentes com a

previsão do velho direito português.34

35

Tal efeito sofria restrições mais ou menos rígidas

conforme o ordenamento jurídico. Isso fica muito claro quando o autor delimita, com

respaldo em lições da doutrina italiana, as questões que poderiam ser transferidas pela

apelação em cada modelo processual:

Como expõe CARNELUTTI em sua imaginosa linguagem, não se

trata, na apelação, de reparar o edifício já construído, mas de

reconstruí-lo. A reconstrução, entretanto, pode ser efetuada de

diversas maneiras: ou se utilizam apenas os materiais que já

serviram na primeira construção, ou, então, além desses, podem ser

usados novos materiais.

No processo austríaco apelação constitui, sem dúvida, um segundo

grau de jurisdição, um novo estágio da relação processual, porque o

juiz do recurso não se limita a verificar se houve erro na sentença

recorrida, mas faz um segundo exame da causa para inquirir se a

33 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit. pp. 220-221. 34 Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 75; Ordenações Manuelinas, Livro III, Título 57; Ordenações

Filipinas, Livro III, Título 72. 35 Cf., sobre o assunto, SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Civil.

Rio de Janeiro: Perseverança, 1879, v. 2, §333; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários

ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1959, tomo 11, p. 155.

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decisão recorrida é justa. Trata-se, porém, de exame limitado, que

se realiza sobre o mesmo material recolhido em primeira instância,

dentro dos limites fixados nos motivos aduzidos pelo apelante. Não

há um conhecimento ex novo da causa, não sendo lícito às partes

invocar novas exceções, nem fatos e provas que já não tenham sido

alegados e deduzidos em primeira instância (ZPO austr. § 482).

Na apelação do tipo francês e italiano, ao contrário, não há quase

limites com referência à produção de novos meios de ataque e de

defesa (jus novorum). Há a plena equiparação entre as atividades

do primeiro e as do segundo grau, de forma que, neste último, é

facultado às partes fazerem tudo aquilo que poderiam ter feito no

primeiro (beneficium nondum deducta deducendi et nondum

probata probandi).36

Observa-se, portanto, que, à conceituação anteriormente mencionada – a qual

designava como devolutivo o efeito de transferir o julgamento da causa para o órgão

julgador da apelação, comparado por Carnelutti à reconstrução de um edifício –, somam-se

as possíveis limitações à incidência deste efeito, que não modificam o conceito fornecido.

Independentemente da abrangência das questões que poderiam ser conhecidas

pelo tribunal, haveria sempre rejulgamento da causa em sede de apelação. Na metáfora

carneluttiana, fosse utilizado material novo ou apenas aproveitado o já existente, haveria

sempre “reconstrução do edifício”.

Veja-se que, embora não se fizesse distinção entre os planos de incidência do

efeito devolutivo, está claro que a devolutividade ampla a que se refere Machado

Guimarães – então presente nos ordenamentos francês e italiano, bem como no direito

reinol português –, dizia respeito: tanto aos limites da matéria que seria objeto de

conhecimento pelo Tribunal – i.e., à abrangência da reforma ou invalidação –, como,

também, aos fundamentos fáticos e jurídicos que embasariam a decisão do tribunal.

Nesse ponto, é possível traçar um paralelo com a sistematização doutrinária

atual, que distingue o efeito devolutivo horizontal (plano referente à extensão do recurso,

ou seja, aos limites da reforma e invalidação pretendidos) e vertical (plano referente aos

fundamentos utilizados pelo órgão recursal para decidir o recurso).

36 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit., p. 221.

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Machado Guimarães escreveu logo após a promulgação do Código de Processo

Civil de 1939, o qual havia acolhido o sistema austríaco, que delimitava de forma mais

restrita a incidência do efeito devolutivo, sob a perspectiva da extensão. Entre nós, tratava-

se de uma inovação no plano da legislação federal, porquanto, ressalvadas as

particularidades dos Códigos Estaduais, o direito precedente (Ordenações e jurisprudência

sobre Regulamento 737/1850) via no recurso de apelação uma nova possibilidade de

julgamento – amplo – da causa.

No Código de Processo Civil de 1939, semelhantemente ao que ocorre com o

Código vigente, a apelação tinha como função apenas facultar uma nova apreciação dos

elementos de cognição acumulados na primeira instância:

Reabre-se a discussão sobre as alegações de fato e respectivas

provas, a respeito das quais já se pronunciou o juiz de primeiro

grau. Corrige-se o erro do juiz, sem que seja possível, porém,

reparar as deficiências da conduta processual das partes. A

reconstrução do edifício é efetuada com os mesmos materiais que

serviram para a primeira construção, sem a possibilidade, salvo

motivo de força maior, da utilização de novos materiais.

É assim que o art. 824 [do CPC de 1939] dispõe que a apelação

devolverá à superior instância o conhecimento integral das questões

suscitadas e discutidas na ação. Note-se bem: a devolução não é o

pleno conhecimento da causa, mas das mesmas questões já

suscitadas, isto é, não se permitem, no juízo de apelação, novas

questões, ainda que pertinentes à causa. 37

Instaurava-se, então, no ordenamento pátrio, a adoção de um recurso de

apelação atrelado à atuação dos tribunais recursais restrita às questões debatidas em

primeiro grau, o que acarretou a modificação dos contornos legislativos do efeito

devolutivo. Não se permitia mais que os órgãos recursais procedessem a um rejulgamento

amplo da causa; os tribunais deveriam limitar-se aos contornos da sentença apelada e às

questões debatidas na ação.

Deve-se advertir, todavia, que a mudança legislativa não alterou, em absoluto,

o conceito de efeito devolutivo: o fenômeno traduzido por este efeito continuou sendo a

37 Op. cit., p. 224-225.

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transferência do julgamento de determinada matéria para o órgão recursal. As modificações

incidiram sobre o âmbito de incidência deste efeito, determinado pela sistemática do

Código de Processo Civil então vigente.

Tanto é assim que a regulação contida no Código Processo Civil de 1939,

voltada ao recurso de apelação, não seguia os principais ordenamentos continentais da

época, para os quais o efeito devolutivo tinha contornos legislativos mais amplos.38

Tenha-se presente que, apesar da limitação mais restrita do efeito devolutivo no

Código de 1939, em que ficou suprimida a possibilidade de se “prover ao apelante como ao

apelado, por ser recurso comum a ambas as partes” (beneficium commune), considerava

Machado Guimarães que o Código havia mantido, na essência, o efeito devolutivo. Assim,

o entendimento correto sobre a matéria era o de que o efeito devolutivo autorizava o

Tribunal a embasar o julgamento da apelação nas alegações ou exceções do apelado, ainda

que diversas do fundamento da sentença ou das razões do recorrente. Nesse caso, não

haveria reformatio in pejus, mas, tão somente, aplicação do efeito devolutivo. Veja-se o

ponto em que Machado Guimarães critica a orientação contrária da jurisprudência:

Firmou-se na jurisprudência o princípio de que a sentença transita

em julgado na parte em que é desfavorável ao apelado, e este, não

recorrendo, reputa ter aquiescido à decisão no que lhe foi contrária.

Esta regra tem tido, porém, aplicação às vezes exagerada e errônea

por parte de certos tribunais de apelação. Assim é que já tem sido

julgado que a parte vencida na preliminar, mas vencedora no

mérito, não pode, no recurso interposto pela parte contrária, insistir

na preliminar, porque sobre esta não versa o recurso. Ora, é preciso

não esquecer que, tanto para propor ação como para impugnar a

sentença, é condição necessária a existência do interesse, o qual, na

hipótese de recurso, resulta do fato de ter sido o recorrente vencido,

isto é, de haver decaído da sua pretensão. A parte que não foi

prejudicada pela sentença não pode dela recorrer, por falta de

38 Essa discrepância não impediu os aplausos de Machado Guimarães, por diversas razões. A primeira delas,

já detectada pelas codificações estaduais anteriores ao Código de 1939, dizia respeito à escassez das vias de

comunicação em nosso país e do fato de serem muitas vezes as comarcas muito afastadas da sede do tribunal

de recurso, o que dificultava de produção de novas provas em apelação e acarretava um processo dispendioso e demorado. Além disso, a dedução na primeira instância, de todas alegações e exceções possíveis, mediante

a respectiva produção da provas, ao mesmo tempo em que observava o princípio da imediação, constituía

mecanismo de prevenção à má-fé e à deslealdade processuais (op. cit., p. 225-226).

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interesse, o que não a impede, todavia, quando interposta a

apelação pelo vencido, de fazer valer novamente todos os motivos

alegados em prol do seu direito, inclusive aqueles já rejeitados em

primeira instância. Não se trata nesse caso de reformatio in pejus

mas de simples aplicação da devolução plena.39

Logo, a devolução implicava – como ainda implica – o conhecimento de todas

as questões da causa debatidas em primeiro grau, ainda que não decididas ou rejeitadas

pelo órgão a quo.

Conquanto o texto sob análise, alinhado à concepção da época, se referisse

apenas à apelação, a exposição de Luiz Machado Guimarães demonstra que os diferentes

contornos do efeito devolutivo nos diversos ordenamentos períodos não desnaturam a

característica principal que lhe é atribuída, qual seja, a eficácia de transferência de

determinada matéria para o julgamento do tribunal.

Mantida esta característica, observa-se que, conforme se conceda maior ou

menor importância à atividade dos órgãos recursais, ampliam-se ou restringem-se os

limites do efeito devolutivo. A vinculação do tribunal aos limites da pretensão recursal não

é um elemento característico do devolutivo; cuida-se, antes, de matéria alusiva à regulação

deste efeito em cada ordenamento.

Malgrado não se trate de uma regra absoluta, é bem possível que em

determinadas épocas e ordenamentos se consiga estabelecer uma conexão entre a maior

abrangência do efeito devolutivo e a centralização política do Estado, mormente em

sistemas em que não se verifica uma independência efetiva entre os Poderes Judiciário e

Executivo.

Contudo, não se pode estabelecer uma relação necessária entre o autoritarismo

estatal e a ausência de restrições ao efeito devolutivo.40

A questão envolve diversos outros

fatores, com destaque para a necessidade de se equilibrar a situação dos litigantes mediante

suprimento de deficiências técnicas da atuação dos respectivos advogados; a relevância

jurídica atribuída a certas questões, consideradas de ordem pública; a busca da decisão

justa, que depende da análise da integralidade dos fundamentos e questões subjacentes ao

39 Op. cit., pp. 223-224 (negritou-se). 40 Não parece possível sequer estabelecer uma relação necessária entre Estados autoritários e incremento dos

poderes do juiz. Sobre o tema, cf. GRECO, Leonardo. Publicismo e Privatismo no processo civil. Revista de

Processo, São Paulo, v. 164, out. 2008.

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recurso e, ainda, a celeridade processual.

Nessa linha, os arts. 515, §§ 1º e 2º e 516 do vigente Código de Processo Civil

Brasileiro estabelecem a possibilidade de o tribunal apreciar: “a) as questões examináveis

de ofício, a cujo respeito o órgão a quo não se manifestou – v.g., a da nulidade do ato

jurídico que se teria originado o suposto direito do autor, e em geral as quaestiones juris;

b) as questões que, não sendo examináveis de ofício, deixaram de ser apreciadas a despeito

de haverem sido suscitadas e discutidas pelas partes.”41

Está claro que a profundidade do

efeito devolutivo relaciona-se, ora com a importância das questões de ordem pública,

reguladas por normas de natureza cogente, ora com a necessidade de se obter uma decisão

justa, mediante análise de todos os fundamentos e questões que concernem à decisão (ou à

parte da decisão) impugnada.

Por outro lado, embora o caput do art. 515 tenha estabelecido que a apelação

devolverá ao tribunal apenas a matéria impugnada (delimitação dos contornos legislativos

do efeito devolutivo), o § 3º do referido dispositivo autoriza expressamente a ampliação do

efeito devolutivo na extensão (plano da horizontalidade), ao determinar que o Tribunal

aprecie o mérito da causa ainda não julgado em primeiro grau, sempre que a causa se

encontre madura para julgamento e não haja necessidade de dilação probatória. Trata-se de

norma que amplia a atividade cognitiva do Tribunal com vistas à simplificação e agilização

do iter procedimental. Idêntico raciocínio é aplicável ao § 4º do art. 515, que contém

disposição que confere ao órgão ad quem poderes para sanar os vícios processuais

eventualmente existentes, sem que haja necessidade de remessa dos autos ao primeiro grau.

Em todas essas hipóteses, há ampliação do efeito devolutivo, relativamente à

argumentação das partes ou ao objeto impugnado.

Enfim, como já sinalizado, o texto de Machado Guimarães fornece uma

amostra da impossibilidade de se estabelecer, seja na origem, seja na aplicação do efeito

devolutivo aos diversos ordenamentos, uma relação unívoca entre efeito devolutivo e

princípio dispositivo.

A regulação dos limites do efeito devolutivo sofre influência tanto do princípio

dispositivo como do inquisitivo, em maior ou menor intensidade, a depender das

características de cada processo.42

41 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 244, p. 447. 42 Seguindo a mesma orientação, Rodrigo Reis Mazzei escreve que “o efeito devolutivo remete ao reexame,

automaticamente, além da matéria recorrida, todas as questões que o Judiciário tem o dever de ofício de

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3 Implicações da compreensão do “efeito translativo” como efeito recursal autônomo

ou como componente do efeito devolutivo

O cerne da discussão acerca da existência de um efeito autônomo, denominado

translativo, consiste em se saber se a possibilidade de cognição ex officio das matérias de

ordem pública pelos tribunais a) produziria um efeito recursal novo, autônomo e oposto ao

efeito devolutivo;43

ou, se, diversamente, b) trata-se de manifestação do efeito devolutivo,

na perspectiva vertical (profundidade).44

Discorreu-se no tópico precedente acerca da inexistência de relação unívoca e

necessária entre a impugnação do recorrente e os contornos do efeito devolutivo.

Assentada, pois, a premissa de que o efeito devolutivo é regido não apenas pelo princípio

dispositivo, mas também pelo inquisitivo, não se afigura útil ou necessária a classificação

que inclui o efeito translativo entre as consequências dos recursos. Padece a referida

classificação da “coerência intrínseca do arranjo proposto” cogitada por Araken de Assis.45

Com efeito, a compreensão do “efeito translativo” como uma consequência

autônoma dos recursos, decorrente da aplicação do princípio inquisitivo na esfera recursal,

não leva em conta a profundidade do efeito devolutivo e induz a um entendimento

equivocado deste.

Não fossem suficientes essas considerações de natureza teórica, cumpre

explicitar a repercussão, no plano prático, da aceitação ou rejeição do efeito translativo

como categoria autônoma. É que, conforme se adote um ou outro posicionamento, será

diverso o entendimento acerca: 1) da necessidade de iniciativa da parte para fins de

transferir a apreciação da matéria ao órgão ad quem e, com isso, obter a reforma da decisão

impugnada; 2) da justificativa para a não apreciação de tais matérias no âmbito dos

recursos excepcionais e 3) da “contaminação” das matérias de ordem pública sobre a parte

examinar, espelhando a prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo no julgamento do

recurso” (O efeito devolutivo e seus desdobramentos. Dos Recursos. Vitória: ICE, 2001, v. 1, pp. 135-140).

Por isso mesmo, conclui Cheim Jorge, é incorreto “vincular e associar o denominado efeito devolutivo

unicamente ao princípio dispositivo. Também aqui tem incidência o princípio inquisitório, só que a sua

manifestação ocorre de forma particular, unicamente em relação às questões que podem ser conhecidas de

ofício, tais como, por exemplo, as nulidades processuais, às quais compete ao Judiciário conhecer de ofício a

qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição” (op. cit., p. 253). 43 Assim: NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit., pp. 482-484. 44 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 244, p. 447 e ss.. 45 ASSIS, Araken de. Op. cit., p. 218.

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da decisão que não foi objeto de impugnação, sem que se possa cogitar do trânsito em

julgado dos capítulos dependentes destas matérias.

É o que se passa a analisar na sequência.

3.1 O pedido de reforma é indispensável para a verificação do efeito devolutivo?

A indagação acerca da imprescindibilidade ou prescindibilidade do pedido de

reforma é importante, na medida em que parte da doutrina defende que somente haveria

efeito devolutivo nas hipóteses em que fosse possível obter nova decisão sobre o mérito

recursal. É dizer: o pedido de reforma seria essencial à verificação do efeito devolutivo, de

forma que a pretensão à simples anulação não configuraria hipótese de devolução.

Assim é que, no direito italiano, o recurso de cassação foi considerado por

Renzo Provinciali um recurso não devolutivo, justamente porque a decisão da Corte apenas

cassava a decisão recorrida, sem que houvesse nova decisão a respeito, que pudesse

substituir a recorrida.46

No caso, porém, do recurso de cassação italiano, a ausência de

substituição da decisão impugnada por outro provimento decorria de disposição de lei e

não da iniciativa do recorrente.

Para Dinamarco, em caso de simples anulação do provimento recorrido, sem a

prolação de outro que lhe substitua, opera-se apenas a devolução parcial.47

Há, portanto,

incidência do efeito devolutivo, ainda que de forma restrita. No entendimento deste

professor, até por coerência ao princípio dispositivo, a reforma da decisão depende,

necessariamente, de pedido de nova decisão. Havendo, tão somente, pretensão anulatória

da decisão recorrida, o tribunal atuaria extra petita caso concedesse mais do que foi

pedido.

Há que se indagar, contudo, se o pedido de reforma é imprescindível para que o

órgão recursal profira nova decisão, em substituição à impugnada.

Por força do princípio dispositivo, afigura-se que sim.

No caso, porém, da apelação contra sentença terminativa (art. 515, § 3º), há

quem defenda a desnecessidade de pedido de reforma para julgamento ex officio do mérito

46 Op. cit., p. 51. 47 Chegamos a essa conclusão porque o tema foi abordado justamente no trecho do texto que cuida da

devolução parcial. Cf. Os efeitos dos recursos. In: NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda

Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. São Paulo: RT, 2002, pp. 36-37.

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pelo órgão ad quem, quando a causa já estiver madura para julgamento. Nesse sentido,

Cândido Rangel Dinamarco interpreta a norma como uma autorização legal implícita para

o julgamento imediato da causa, independentemente de pedido.48

Em sentido oposto, Flávio Cheim Jorge argumenta que o § 3º deve ser

interpretado em consonância com o disposto no caput, que reflete a máxima tantum

devolutum quantum appellatum. Assim, o pedido do apelante para que o tribunal julgue o

mérito da causa seria requisito intransponível para que se aplique a regra que permite o

julgamento da causa pelo órgão recursal. Essa seria uma interpretação mais coerente com a

sistemática do Código de Processo Civil e do próprio caput do artigo. Outros argumentos

utilizados para sustentar essa interpretação seriam a impossibilidade de o Tribunal julgar

pretensão diversa da deduzida e a ocorrência de reformatio in pejus, porque a decisão

quanto ao mérito da causa poderia ser desfavorável ao apelante.49

Ainda assim, em homenagem ao princípio da efetividade e à duração razoável

do processo, a jurisprudência tem-se posicionado, na linha do que propugna Dinamarco, 50

pela possibilidade de conhecimento de ofício da causa pelo Tribunal, desde que presentes

os requisitos do § 3º, fato que, por si só, demonstra que o efeito devolutivo não está

adstrito ao princípio dispositivo. Desse modo, ainda que não haja iniciativa da parte

mediante pedido expresso de apreciação do mérito, se a causa estiver madura, deverá o

Tribunal proceder ao julgamento.

3.2 Questões de ordem pública nos recursos excepcionais: efeito devolutivo ou

translativo?

48 Op. cit., pp. 38-39. 49 JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 268. 50 “Sem embargo da deficiência técnica, havendo na apelação pedido pela improcedência total do pleito

inicial, é de considerar-se como devolvida ao tribunal toda a matéria discutida nos autos, ainda que não haja pedido específico do apelante.” (STJ, 4ª Turma, REsp 469921/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo

Teixeira, julgado em 06/05/2003, DJ 26/05/2003, p. 366).

“Consoante a pacífica jurisprudência do STJ, extinto o processo sem julgamento de mérito, em face da

preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, o Tribunal, ao afastar a nulidade, pode de imediato julgar o

feito, ainda que inexista pedido expresso nesse sentido, máxime se a controvérsia disser respeito à questão

estritamente de direito.” (STJ, 2ª Turma, AgRg nos EDcl no Ag 1124316/RJ, Rel. Ministro Herman

Benjamin, julgado em 03/11/2009, DJe 16/12/2009).

“Extinto o processo, sem julgamento de mérito, por ilegitimidade passiva ad causam, pode o tribunal, na

apelação, afastada a causa de extinção, julgar o mérito da contenda, ainda que não haja pedido expresso nesse

sentido, máxime se, como no caso concreto, as razões de apelação estão pautadas na procedência do pedido

inicial, porque demonstrado o fato constitutivo do direito e não contraposta causa extintiva desse mesmo direito. Deficiência técnica que não tem força bastante para se opor à mens legis, fundada na celeridade,

economia e efetividade.” (STJ, 4ª Turma, REsp 836.932/RO, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, julgado em

06/11/2008, DJe 24/11/2008).

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Conforme assinalado, a compreensão do julgamento de ofício das questões de

ordem pública em sede recursal como decorrência do efeito devolutivo51

ou como um

efeito recursal autônomo, contraposto ao devolutivo, possui diferentes repercussões em

sede de recursos excepcionais.

Para os que se filiam à defesa da existência autônoma de um efeito translativo,

a proibição ou impossibilidade de conhecimento ex officio de matéria de ordem pública nos

recursos especial ou extraordinário teria como fundamento a exigência constitucional de

prequestionamento para as matérias que são objeto destes recursos.52

Este requisito

constituiria um óbice à incidência do efeito translativo.

Já quem defende posicionamento contrário – no sentido da desnecessidade do

efeito translativo como categoria autônoma – explica que “a solução encontra-se na

profundidade do efeito devolutivo dos recursos excepcionais que, distinta dos demais

recursos, exclui a incidência do princípio inquisitório em tais circunstâncias”.53

Com efeito, não há como negar que os recursos excepcionais têm o âmbito de

devolutividade restrito, o que decorre da caracterização desses meios de impugnação como

“recursos de estrito direito”. Dessa forma, a transferência aos Tribunais Superiores atém-se

às matérias eminentemente jurídicas, excluída a apreciação das questões fático-probatórias.

A vedação à aplicação do princípio inquisitório decorre do caráter de direito

estrito desses recursos, cuja admissibilidade depende da alegação expressa, nas razões

recusais, de vício que configure uma das hipóteses de cabimento previstas na Constituição

(arts. 102, III e 105, III). Inexistente tal alegação, o recurso excepcional não deve sequer

ser conhecido pelo Tribunal Superior, ainda que a decisão recorrida padeça de vício

decorrente de violação de norma de ordem pública. Isso ocorre porque os recursos

excepcionais não têm como objetivo precípuo a tutela da situação subjetiva das partes, o

que justificaria a atuação judicial oficiosa com a finalidade de fazer cumprir, nos casos

específicos, normas que veiculam matérias de ordem pública.

51 Nesse sentido, é expresso Bonsignori (op. cit., passim). 52 NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit., pp. 487-488, 53 Op. cit., p. 256, com remissão ao artigo de FLEURY, José Theophilo. Fundamento Insuficiente – Prejudicialidade do recurso especial em face do recurso extraordinário e vice-versa. In: WAMBIER, Teresa

Arruda Alvim; ALVIM NETO, José Manoel de Arruda (Org.). Aspectos polêmicos e atuais do recurso

especial e do recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1997, p. 330.

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Ressalte-se, por fim, que a vedação da aplicação do princípio inquisitório nos

recursos excepcionais incide apenas no momento da admissibilidade recursal. Uma vez

admitido o recurso especial ou extraordinário, se o Tribunal entender, no momento do

julgamento do mérito recursal, pela aplicabilidade de dispositivos legais que veiculem

normas de ordem pública, nada obsta que o pedido de reforma ou invalidação seja

analisado à luz de tais preceitos. Por força deste raciocínio, o verbete da Súmula 456 do

Supremo Tribunal Federal – aplicável, por analogia, aos recursos especiais – permite que,

uma vez conhecido o recurso com fundamento em violação a determinado dispositivo, o

tribunal julgue a causa, aplicando o direito à espécie. A escolha dos fundamentos jurídicos

– sejam ou não de ordem pública – que embasam a decisão é matéria atinente à incidência

do efeito devolutivo.

3.3 Da “contaminação” das matérias de ordem pública sobre a parte da decisão que

não foi objeto de impugnação

Aspecto interessante a ser considerado diz respeito aos reflexos do julgamento, com

base em normas que veiculam matéria de ordem pública, de recursos que impugnam

apenas parte da decisão recorrida.

Os doutrinadores que sustentam a existência do efeito translativo como tronco

autônomo propõem – na contramão da jurisprudência e doutrina majoritárias – que o

reconhecimento de nulidade processual ou da ausência de pressupostos ao julgamento de

mérito em sede de recurso de devolutividade parcial acarreta a invalidação de todo o

processo.

Dessa forma, a parte independente de uma sentença de mérito não impugnada, seria

anulada pela prolação de acórdão que reconhecesse, em sede de apelação parcial, a

ilegitimidade ad causam de uma das partes. E, nesse exemplo, o fenômeno que justificaria

a ampliação da transferência da matéria, supostamente restrita pela incidência do art. 515,

caput, do CPC, seria a translatividade dos recursos.

Em primeiro lugar, deve ser esclarecido que a impossibilidade de, com amparo em

matéria de ordem pública, proceder-se à reforma ou invalidação de uma parte autônoma

irrecorrida da decisão em sede de recurso parcial, não se explica pela limitação da extensão

do recurso pelo objeto da impugnação da parte.

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Não é o caput do art. 515 que acarreta a imutabilidade das partes não recorridas da

sentença, cujo conteúdo seja independente do capítulo impugnado. Do contrário, não seria

possível a extensão do efeito devolutivo para permitir ao Tribunal que procedesse ao

julgamento de mérito da causa pela primeira vez, por força do disposto no § 3º do citado

artigo.

As normas que permitem o conhecimento ex officio de matérias de ordem pública

pelo órgão judicial (especialmente o art. 301, § 4º), poderiam perfeitamente propiciar que

se ampliasse a extensão do efeito devolutivo, a despeito da falta de impugnação por uma

das partes, não fosse o obstáculo intransponível representado pela coisa julgada.54

Nesse sentido, antes de ser um fundamento determinante da impossibilidade de

alteração da parte não recorrida da sentença, o caput do art. 515 reflete, na dicção de

Dinamarco, “de modo muito direto e elegante a teoria dos capítulos de sentença, que

permite ver nesta tantas decisões quantos forem os preceitos emitidos”.55

Sendo os

capítulos não impugnados independentes e autônomos da parte impugnada da sentença,

incidirá sobre eles a coisa julgada material.56

Com efeito, prevalece no ordenamento brasileiro o entendimento de que a coisa

julgada relativa aos capítulos independentes da sentença de mérito forma-se de maneira

gradual.57

Por isso, ressalvadas as hipóteses de capítulos interdependentes, o recurso

54 Questão, aliás, reforçada pelo Projeto de Novo CPC - PL 8.046/2010, na versão do substitutivo aprovado

na Câmara dos Deputados em julho de 2013 (art. 1.026, § 1º: “Serão, porém, objeto de apreciação e

julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido

solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado”.) 55 DINAMARCO, Cândido Rangel. Efeitos dos recursos. In: A nova era do processo civil. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 122-123. 56 Sob o aspecto subjetivo, Cândido Rangel Dinamarco chega a afirmar que o mesmo capítulo de sentença

pode transitar em julgado em relação a uma parte e ser objeto de recurso por seu litisconsorte, no

litisconsórcio simples: “Todas as vezes que venha a ser dado provimento ao recurso interposto só por um dos

litisconsortes ou por alguns, restando alguns deles sem recorrer”, o pronunciamento do órgão ad quem “será diferente do pronunciamento já trânsito em julgado para a parte que não apelou”. Isso ocorre justamente

em decorrência do princípio do quantum devolutum quantum appellatum. (Litisconsórcio. 7ª ed.. São Paulo:

Malheiros, 2002, p. 152-153). 57 É esta a posição ostentada na doutrina, por exemplo, por José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao

Código de Processo Civil. 11ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 355-356; 14ª ed.., 2008, pp. 356-357),,

Cândido Rangel Dinamarco (Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 115; e 3ª ed.. 2008, item

57, p. 119); José Roberto dos Santos Bedaque (Direito e processo: influência do direito material sobre o

processo. 2ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 48); Humberto Theodoro Júnior (Ação Rescisória e

Julgamentos Fracionados do Mérito da Causa. In: ASSIS, Araken de. et al (Coord). Direito civil e processo:

Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008, pp. 565-572); e Eduardo Arruda

Alvim (Direito processual civil. 2ª ed.. São Paulo: RT, 2008, p. 624). O que ocorre é que, “se dentro do prazo um dos capítulos recorríveis vier a ser efetivamente impugnado por recurso, não o sendo o outro, ou

outros, é claro que passam em julgado estes e não passa aquele” (DINAMARCO, Cândido Rangel.

Capítulos..., cit., p. 115).

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“afasta a coisa julgada” apenas “envolvendo o capítulo impugnado”, mas “o mesmo não se

pode dizer quanto aos capítulos não impugnados”.58

4 Síntese das conclusões

O efeito devolutivo, que é o mais característico dos efeitos recursais, pode ser

definido como o efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad quem o

conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição, o que inclui os

fundamentos e questões subjacentes à decisão recorrida, ainda que não analisados pelo

juízo a quo.

A incidência deste efeito é regida pelos princípios dispositivo e inquisitivo.

Logo, a vinculação do tribunal aos limites da pretensão recursal não é um elemento

característico ou conceitual do efeito devolutivo. Trata-se de matéria alusiva à regulação

dos limites da incidência deste efeito em cada ordenamento jurídico positivo.

Conforme se conceda maior ou menor importância à atividade dos órgãos

recursais, ampliam-se ou restringem-se os limites do efeito devolutivo.

A modificação legislativa dos contornos do efeito devolutivo, com a ampliação

da matéria analisada – inclusive de ofício – pelo órgão ad quem, não torna necessária ou

útil a classificação que inclui o efeito translativo entre as consequências dos recursos.

Por se tratar de categoria que corresponde, tão somente, a uma nova roupagem

de um efeito já conhecido – ou mesmo a uma “antiga roupagem”, se considerarmos a

origem deste efeito, quando a apelação era genérica e propiciava o beneficium commune – ,

afigura-se que a contraposição do efeito translativo ao efeito devolutivo possa causar

prejuízo à compreensão do fenômeno.

Além de ser equivocada a ideia de oposição entre o efeito que devolve o

conhecimento da matéria impugnada pela via recursal e o – mesmo – efeito que transfere

José Carlos Barbosa Moreira anota em publicação recente: “a) ao longo de um mesmo processo, podem

suceder-se duas ou mais resoluções de mérito, proferidas por órgãos distintos, em momentos igualmente

distintos; b) todas essas decisões transitam em julgado ao se tornarem imutáveis e são aptas a produzir coisa

julgada material, não restrita ao âmbito do feito em que emitidas” (Sentença Objetivamente Complexa,

Trânsito em Julgado e Rescindibilidade. In: NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2007, p. 177). 58 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa Julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba:

Juruá, 2007, p. 372.

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as matérias de ordem pública pelo órgão ad quem, a introdução de uma nova categoria

pode vir a obscurecer a compreensão do efeito devolutivo e suas irradiações.

A falta desta compreensão, por sua vez, refletirá na aplicação dos institutos e

na interpretação dos princípios processuais no âmbito dos recursos.

Especificamente quanto aos recursos excepcionais, a compreensão de que o

efeito devolutivo decorre não apenas do princípio dispositivo, mas também do inquisitivo,

reflete diretamente na possibilidade de conhecimento da causa, em sua plenitude, pelos

tribunais superiores, desde que admitido o recurso especial ou extraordinário. Este

raciocínio foi adotado pelo verbete da Súmula 456 do Supremo Tribunal Federal aplicável

a todos os recursos de direito estrito.

Ainda, a concepção de um efeito devolutivo associado apenas ao princípio

dispositivo, com a criação de outro efeito - o translativo - relacionado ao princípio

inquisitivo, pode gerar certa confusão com a ideia de trânsito em julgado parcial e

progressivo dos capítulos de sentença. Ao se defender a existência de um efeito específico,

diverso do devolutivo, para justificar a ampliação da cognição dos tribunais quanto às

questões de ordem pública, corre-se o risco de se tolerar a reforma ou invalidação de uma

parte autônoma irrecorrida da decisão em sede de recurso parcial. Esta questão não se

explica, porém, pela limitação da extensão do recurso pelo objeto da impugnação da parte

ou por sua eventual ampliação em prol do efeito translativo. Não são os efeitos recursais

que acarretam a mutabilidade ou imutabilidade das partes não recorridas da sentença, cujo

conteúdo seja independente do capítulo impugnado, mas o obstáculo intransponível

representado pela coisa julgada.

Diante destas considerações, conclui-se que o panorama histórico-doutrinário sobre o

conteúdo do efeito devolutivo, ao lado da repercussão prática de suas características,

confirmam a tese de que este efeito decorre tanto do princípio dispositivo como do

princípio inquisitivo, sendo inútil a invocação do efeito translativo como consequência

autônoma dos recursos.

5 Referências bibliográficas

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A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O APARENTE CONFLITO

DE LEIS

INTERNATIONAL LEGAL COOPERATION AND THE APPARENT CONFLICT

OF LAWS

Felipe Sartório de Melo

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito

Santo (UFES). Membro-fundador do Núcleo de Estudos em

Arbitragem e Processo Internacional (NEAPI).

Nevitton Vieira Souza

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito

Santo (UFES). Monitor de Direito Internacional Público.

Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES). Membro-fundador do Núcleo de

Estudos em Arbitragem e Processo Internacional (NEAPI).

RESUMO: Decorrentes da crescente circulação de pessoas, bens e serviços, as relações

jurídicas com elementos de estrangeiria tornaram-se cada vez mais constantes, requerendo

dos Estados auxílio mútuo para a efetiva prestação da tutela jurisdicional. A cooperação

jurídica entre os Estados nacionais afigura-se, nesse contexto, tema de grande

desenvolvimento, tendo, no Brasil, os tratados internacionais como sua principal fonte

normativa. Em razão de a Constituição Federal de 1988 ter-se limitado a estabelecer a

competência da Corte responsável por tramitar e julgar o processo homologatório de

decisões estrangeiras, torna-se inevitável a ocorrência de conflitos de normas, cuja análise

constitui o objeto deste trabalho.

PALAVRAS CHAVE: Relações Jurídicas. Conflito Aparente de Normas. Cooperação

Jurídica Internacional. Homologação de Sentenças Estrangeiras. Hierarquia dos Tratados

Internacionais.

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ABSTRACT: Due to the growing movement of people, goods and services, the legal

relations with foreign elements have become increasingly frequent, requiring states mutual

assistance to effective the constitutional right of adjudication. The legal cooperation

between national states becomes, in this context, subject of great development, and, in

Brazil, the international treaties are their primary source of rules. As the Federal

Constitution only established the jurisdiction of the Court responsible for transact and

judge the process of ratifying foreign judgments, it is inevitable that occur conflicts of

laws, whose analysis is the subject of this work.

KEYWORDS: Legal Relations. Apparent Conflict of Laws. International Legal

Cooperation. Recognition of Foreign Judgments. Hierarchy of International Treaties.

1. INTRODUÇÃO

No mundo contemporâneo, todos os povos estão fortemente aproximados e

vinculados uns aos outros, as informações movem-se como mercadorias e as fronteiras

estão cada vez mais tênues, propiciando a aceleração das relações econômicas

mundializadas e tornando patente a necessidade de uma tutela jurisdicional multipolar que

seja capaz de conferir segurança às relações nascidas nesse contexto. A globalização gera

uma situação em que o bem-estar de cada Estado é tocado por fatos ou decisões que estão

fora de seu alcance, de modo que todos dependem de todos, e todos sofrem as

consequências dos mesmos fenômenos.

O desenvolvimento da sociedade internacional e a intensificação das relações

entre os Estados nacionais tiveram como consequência imediata a aurora do interesse pelo

estudo da cooperação interjurisdicional, uma vez que a crescente complexidade das

relações sociais, culturais, políticas e econômicas reclama cada vez mais a prestação de

uma tutela jurisdicional plena, eficaz e sem fronteiras. Tal cenário justifica o escopo do

presente trabalho, que repousa sobre a percepção da importância dispensada à cooperação

jurídica internacional, notadamente no que tange ao reconhecimento de decisões

estrangeiras.

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Sob a ótica do intercâmbio de atos processuais entre as jurisdições de diferentes

Estados, principiaremos este estudo demonstrando a relevância da cooperação jurídica

internacional para a consecução de uma prestação jurisdicional assecuratória dos direitos

demandados. Em seguida, passando pela análise do regime convencional, evidenciaremos

a importância da uniformização das regras de cooperação interjurisdicional para a

diminuição das barreiras que estorvam o intercâmbio de medidas processuais estrangeiras.

Dentro da perspectiva do direito interno, serão examinadas, também, as normas

que estabelecem o procedimento homologatório das decisões alienígenas no Brasil,

conferindo especial deferência às mudanças advindas com a Emenda Constitucional nº

45/2004.

Ato contínuo, e por fim, iremos nos debruçar sobre a aparente concorrência entre

normas de direito internacional e normas de direito interno, identificando o posicionamento

patrocinado pela doutrina internacionalista brasileira, bem como demarcando as linhas do

entendimento jurisprudencial sobre a existência de antinomia entre as normas em matéria

de cooperação jurídica internacional. Ademais, importa destacar que foi empregado o

método dedutivo-comparativo neste trabalho.

2. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

2.1. Importância da Cooperação Jurídica Internacional

O fenômeno da globalização no mundo hodierno revela a crescente e necessária

interação entre os Estados. Esse fenômeno, essencialmente caracterizado por um processo

de aprofundamento da integração econômica, política, social e cultural, tem facilitado

sobremaneira o acesso aos meios de comunicação e de circulação de capitais e pessoas, do

que decorre a elevação do número de demandas judiciais caracterizadas por elementos de

estrangeiria. Nessa esteira, a adequada e oportuna comunicação entre jurisdições distintas –

que se denomina cooperação interjurisdicional ou cooperação jurídica internacional –,

materializada pela realização de atos processuais externos à jurisdição à qual se vincula a

autoridade judicial ou administrativa, é mister à efetiva prestação da tutela jurisdicional.

A cooperação jurídica internacional pode ser concebida, na lição do professor

Luiz Olavo Baptista, como “o intercâmbio internacional para o cumprimento

extraterritorial de medidas processuais provenientes de judicatura de um outro Estado e

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para a execução extraterritorial de sentença estrangeira”,1 mostrando-se imprescindível na

atualidade, uma vez que, “se as relações econômicas internacionais eram apenas uma

recorrência, hoje se tornaram a principal característica do planeta”,2 como afirma Adriana

Beltrame.

Nesse sentido, o Estado, na realização de sua função como pacificador social,

somente proporcionará a completa tutela jurisdicional quando dispuser de mecanismos que

tornem possível o intercâmbio de atos processuais para além de seus limites geográficos.

Doutro modo, a falta ou a incompletude da cooperação poderá significar a ineficácia do

poder jurisdicional.3

A cooperação jurídica internacional mostra-se relevante e necessária sobretudo

nos processos em que a tutela a ser prestada carece da realização de diligências não

possíveis de serem satisfeitas na jurisdição onde a tramitação ocorre. Nesses casos, a

ausência de cooperação entre as jurisdições importará no impedimento do acesso ao

hipotético direito postulado, uma vez que a prestação jurisdicional mostrou-se incompleta.

Em seus escritos sobre o Direito Processual Internacional, Irineu Strenger conclui

que a cooperação jurídica internacional traduz-se no fato de “as autoridades e tribunais de

um país auxiliarem as autoridades e tribunais de outro país, fazendo as notificações ou

praticando as diligências que se tornarem necessárias ao exercício ou à defesa dos direitos

dos indivíduos”.4

Num apanhado histórico, o intercâmbio de atos jurisdicionais deu-se em virtude

de uma “obrigação moral”, haja vista que os Estados motivavam seu agir em uma cortesia,

objetivando, com isso, o prestígio internacional.5 Uma vez que a ocorrência de pedidos de

cooperação intensificou-se, os Estados passaram a regulamentar essa matéria tanto na

ordem jurídica interna quanto na celebração de tratados internacionais, de modo que a

1 BAPTISTA, Luiz Olavo. Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros.

Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995, p. 343.

2 BELTRAME, Adriana. Reconhecimento de sentenças estrangeiras. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p.

05.

3 MADRUGA, Antenor. O Brasil e a jurisprudência do STF na idade média da cooperação jurídica

internacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 54, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

mai. 2005, p. 03.

4 STRENGER, Irineu. Direito Processual Internacional. São Paulo: LTr, 2003, p. 86. Apud BELTRAME, Adriana. Reconhecimento de sentenças estrangeiras. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 16.

5 ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 3ª ed. atual. e ampl. Rio de

Janeiro: Renovar, 2006, p. 266.

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aproximação entre os sistemas jurídicos próprios de cada Estado soberano revelou-se

inerente à cooperação jurídica internacional.

2.2. Relevância do Regime Convencional

Com o propósito de conferir agilidade e eficiência ao intercâmbio dos atos

necessários à prestação jurisdicional, a cooperação jurídica internacional precisa

acompanhar o desenvolvimento e a crescente internacionalização das relações econômicas

e sociais, o que se torna possível com a elaboração de normas especiais, dotadas da

capacidade de estabelecer um procedimento cooperativo que seja concomitantemente

célere e menos oneroso. Para tanto, torna-se premente repensar os tradicionais sistemas de

soluções de controvérsias decorrentes do “comércio jurídico plurinacional”.6

A normatização unilateral dos Estados acerca dessa matéria não é bastante,

entrementes, para o êxito da cooperação jurídica internacional. A atuação particular de

cada Estado deve coexistir com a uniformização das normas relativas à cooperação, cujo

aperfeiçoamento será produto da segurança e especialização do trâmite dos atos

jurisdicionais.

Com base em alguns dos marcos estabelecidos pela Conferência de Direito

Internacional de Haia7 – cujo desiderato é a promoção da uniformização das regras de

Direito Internacional Privado –, Nádia de Araújo, ao tratar desse tema, compreende haver

uma propensão ao seguimento de um padrão de cooperação similar. Reflexo dessa

padronização é a presença, exempli gratia, das Autoridades Centrais nas mais modernas

convenções que tratam da cooperação jurídica internacional.

Por meio da centralização dos pedidos de cooperação em um órgão previamente

eleito pelo Estado-parte, a indicação de Autoridades Centrais é uma técnica que visa a

uniformizar a tramitação dos atos jurisdicionais. Dessarte, o recebimento e o

processamento dos pedidos de cooperação dirigidos a um país ficarão a cargo do órgão

indicado como Autoridade Central, a quem compete, em razão do domínio do

procedimento interno adotado para a recepção e concretização do ato requerido, e a fim de

garantir o pleno cumprimento da medida solicitada, realizar uma espécie de juízo de

admissibilidade prévio.

6 ARAÚJO, Nádia de. Medidas de cooperação interjurisdicional no Mercosul. Revista de Processo, vol.

123, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, mai. 2005, pp. 01-02.

7 ARAÚJO, 2005, op. cit., pp. 01-02.

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O processo de uniformização das regras de cooperação interjurisdicional, ressalte-

se, foi contemplado pelo Código de Bustamante e pelos Tratados de Montevidéu, tornando

patente que esse movimento há muito vem ocorrendo no continente americano e que, por

sua influência, inúmeros tratados têm sido celebrados entre os países americanos. Ademais,

a cooperação jurídica internacional também foi favorecida pela consolidação do

movimento de integração que deu origem ao Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Os blocos econômicos regionais, reconhecendo a importância da cooperação

jurídica internacional, têm demonstrado especial interesse no estabelecimento de

instrumentos uniformizadores das normas de cooperação interjurisdicional nos Estados

membros, tanto assim que a União Europeia e o Mercosul, por exemplo, instituíram o

Regulamento (CE) nº 44/2001 e o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em

Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, respectivamente. Tal

reconhecimento se dá em função de que “somente pelo Direito há possibilidade de outorga

de segurança jurídica às novas relações criadas no novel espaço regional”, e de que

unicamente a integração jurídica “poderá permitir e propiciar o necessário à integração

econômica”, conforme assenta Maria do Carmo Puccini Caminha.8

É evidente, por conseguinte, a relevância conferida aos tratados internacionais no

contexto da uniformização das normas tocantes à cooperação jurídica internacional. Fontes

do Direito Internacional por excelência, os tratados trazem maior segurança às relações

jurídicas pactuadas entre os sujeitos dotados de capacidade jurídica internacional,

possuindo funções semelhantes às das leis no Direito interno, acorde com as lições de

Valerio de Oliveira Mazzuoli.9

Nessa esteira, o Brasil tem-se mostrado a par dos esforços da cooperação

interjurisdicional ao celebrar tratados internacionais – bilaterais e multilaterais – que

adotam procedimentos mais céleres para a tramitação dos requerimentos de cooperação

jurídica internacional.

Desse modo, como parte inafastável do estudo da cooperação jurídica

internacional, a relação existente entre as normas de Direito Internacional e as normas de

Direito interno será esquadrinhada, neste trabalho, à luz dos fundamentos da Teoria Geral

8 CAMINHA, Maria do Carmo Puccini. Os juízes do Mercosul e a extraterritorialidade dos atos

jurisdicionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, vol. 44, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jul. 2003, p. 02.

9 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 5ª ed. rev., atual. e ampl. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 163.

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do Direito. Enfrentar-se-á, outrossim, a questão do conflito de normas relativas ao

reconhecimento de decisões estrangeiras, que ocorre, no sistema jurídico brasileiro, por

meio do processo homologatório, de competência do Superior Tribunal de Justiça.

2.3. Das Normas que Estabelecem o Processo Homologatório de Decisões Estrangeiras

no Brasil

As cartas rogatórias e o reconhecimento e execução de decisão estrangeira são os

instrumentos tradicionais de cooperação jurídica internacional, acorde com o entendimento

amplamente esposado pela doutrina. Além desses, como uma terceira modalidade de

cooperação, alguns autores apresentam, outrossim, o pedido de informação sobre o direito

estrangeiro. É possível, ainda, conceber o auxílio direto e as redes de cooperação como

novos instrumentos da cooperação interjurisdicional na hodiernidade.10

No ordenamento jurídico brasileiro, historicamente, o pedido de reconhecimento

de decisão estrangeira – que pode ser caracterizado como a concessão de eficácia à decisão

prolatada por autoridade constituída em jurisdição distinta da que se pretende produza o

título efeitos – se dá por meio do processo homologatório, importando registrar que é

através do reconhecimento que a decisão alienígena logra extraterritorialidade. E as normas

regentes do reconhecimento de tais decisões em nosso sistema jurídico revelam que a

competência para o procedimento homologatório está assentada constitucionalmente, ao

passo que são as leis infraconstitucionais que encerram a sua regulamentação, a saber, o

Código de Processo Civil, a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro11

e, ainda, o

Regulamento da Corte Superior competente.

Até a publicação da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, a

competência para processar e julgar originalmente os pedidos de homologação de

sentenças estrangeiras e de concessão de exequatur às cartas rogatórias repousava sobre o

Supremo Tribunal Federal. Com a vigência da referida Emenda e a nova redação dada ao

artigo 105, I, i, da Constituição Federal, essa competência foi atribuída ao Superior

Tribunal de Justiça, que fixou, por meio da Resolução nº 09/2005, o procedimento de

tramitação dos pedidos de reconhecimento de decisões estrangeiras.

10 ARAÚJO, 2005, op. cit., p. 02.

11 Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010.

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No que toca à nova redação do supracitado dispositivo da Carta Política de 1988,

corrente doutrinária nacional entende ter havido tão somente o assentamento da

competência para processar os pedidos de homologação nos casos em que este for exigido

– corrente à qual nos filiamos sem prejuízo de nossa consideração aos eminentes juristas

dos quais divergimos.12

Por certo, a dicção constitucional insculpida no artigo 105, I, i, não

estabelece a obrigatoriedade do processo homologatório ao reconhecimento de sentenças

oriundas de outros Estados, de modo que lega às leis infraconstitucionais o dever de

regular a utilização do instituto da homologação.

No mesmo sentido é o ensinamento de Oscar Tenório, proeminente jurista na

doutrina do Direito Internacional Privado no Brasil:

Limita-se a Constituição a estabelecer a competência exclusiva do Supremo

Tribunal Federal para homologar sentença estrangeira. É uma regra de

competência constitucional. Só o Supremo Tribunal e só ele. Não contém o

texto constitucional a regra de que a sentença estrangeira, seja qual for a sua

natureza, tenha de ser homologada. A homologação, mantida a competência

do Supremo Tribunal Federal, que é de natureza constitucional, depende de

legislação ordinária. A esta compete determinar a natureza das sentenças

que dependem de homologação.13

Da compreensão de que a Carta Magna não fixou a obrigatoriedade do

procedimento homologatório decorre consequência digna de nota, qual seja, o

reconhecimento da possibilidade de que lei infraconstitucional superveniente prescreva

tanto as hipóteses de exigência de homologação quanto as de dispensa, a exemplo do que

se deu com a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº

4.657/1942.

Os requisitos que a sentença estrangeira deve reunir a fim de estar apta a produzir

efeitos na ordem jurídica brasileira estão previstos no artigo 15 do Decreto-Lei nº

4.657/1942, cuja alínea e acolhe o requisito da prévia homologação pela Corte Superior

competente. O parágrafo único da referida norma, todavia, asseverava que as sentenças

12 Dentre tais doutrinadores, destacamos o professor Haroldo Valladão, para quem o texto constitucional não

só estabeleceu a competência para a homologação, mas também instituiu a obrigatoriedade de que todos os

títulos oriundos de outros países sejam homologados para que produzam efeitos no Brasil. Para mais

detalhes: VALLADÃO, Haroldo Teixeira. Carta de homologação de sentença estrangeira. In FRANÇA, R. Limongi. Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 13. São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 271-272. 13 TENÓRIO, Oscar Acioli. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi,

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meramente declaratórias do estado das pessoas dispensavam homologação, o que

significava dizer que, uma vez cumpridos os demais requisitos para aplicação de ato

estrangeiro, possuíam efeito imediato no Brasil.

À prolação da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, em 1942, seguiu-se a

resistência ao parágrafo único de seu artigo 15 por parte da doutrina, que, capitaneada pelo

professor Haroldo Valladão, imputou-lhe a pecha de inconstitucionalidade, conforme

evidencia Barbosa Moreira.14

Malgrado a oposição da doutrina, o entendimento jurisprudencial assentou a

constitucionalidade do dispositivo combatido, tendo sido a questão suplantada com o

advento do Código de Processo Civil de 1973, cujo artigo 483 estabelece que a sentença

proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada.

Nota-se, portanto, que o estatuto processual não diferençou o tratamento conferido às

sentenças declaratórias nem o outorgado às de qualquer outra natureza. Com isso, aquela

parte da doutrina que se opôs ao parágrafo único do artigo 15 do Decreto-Lei nº

4.657/1942 entendeu que ele fora derrogado.

Sobre a questão, Alexandre Câmara esclarece:

[...] a Emenda Constitucional nº 45 atribuiu ao STJ a competência originária

para a homologação de sentenças estrangeiras. Retorna-se, assim, ao regime

que vigorou por força das Constituições de 1934 e 1937. O direito brasileiro

vigente admite, sem qualquer impedimento, que a lei dispense de

homologação, para que produza efeitos no Brasil, alguma sentença.

Inegavelmente, a mudança de orientação do texto constitucional não é capaz

de repristinar o parágrafo único do art. 15 da Lei de Introdução ao Código

Civil, eis que não existe repristinação tácita. Nada impede, porém, que

aquele dispositivo venha a ser expressamente repristinado por lei. Do

mesmo modo, nada impede que venha a ser editada lei que dispense de

homologação qualquer outra espécie de sentença estrangeira.15

14 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: (Lei nº 5.869, de 11 de

janeiro de 1973). 15ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 77. 15 CÂMARA, Alexandre Freitas. A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a homologação de sentença estrangeira: primeiras impressões, pp. 06-07. In TIBURCIO, Carmen; e BARROSO, Luís Roberto (Orgs.).

O Direito Internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de

Janeiro: Renovar, 2006.

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Temos por certo, desta maneira, que a intentio legis do preceito constitucional

gravado no artigo 105, I, i, é tão somente fixar na Corte Superior de Justiça a competência

para homologação de decisões estrangeiras, nos casos em que esta for exigida. Tanto assim

que, atualmente, a obrigatoriedade do processo homologatório como requisito da

concessão de eficácia às sentenças estrangeiras no Brasil apenas encontra guarida nas

normas infraconstitucionais, aí incluídas as de ordem regimental.

Como reflexo da atual necessidade da cooperação jurídica internacional, não se

pode olvidar a possibilidade de que normas infraconstitucionais apresentem hipóteses de

dispensa de homologação de decisões adventícias. Ademais, tendo em conta a importância

do regime convencional no processo de integração interjurisdicional, deve-se reconhecer

admissível, também, em tratados internacionais celebrados pelo Brasil, a existência de

normas que visem à facilitação da tramitação processual, inclusive por meio da dispensa do

procedimento homologatório de decisão estrangeira.

Importa ressaltar que não se trata de mera hipótese, senão da realidade atualmente

vislumbrada nas mesas de negociações internacionais. Ao discorrer sobre a cooperação

interjurisdicional no Mercosul, Nádia de Araújo informa que, em lugar de se fazer revisões

nos Tratados de Montevidéu ou no Código de Bustamante, em todo o continente americano

optou-se pela realização de novas convenções em matérias diversas, convenções que

contenham não somente normas materiais, mas também normas concernentes à solução de

conflitos, a fim de que a justiça não seja interrompida nas fronteiras dos países.16

No tema da cooperação jurídica internacional, a existência de flagrante

sobreposição normativa entre os países do Mercosul – dos quais o Brasil faz parte – é

também apontada por Nádia de Araújo, restando evidente que, nessas circunstâncias, não

se pode afastar a análise do aparente conflito de normas em matéria de cooperação

interjurisdicional.

Para demonstrar a importância de adentrarmos nessa seara, evocamos a

Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, assinada no Panamá em 30 de janeiro

de 1975. Com o fito de “estabelecer procedimentos úteis e efetivos de cooperação

jurisdicional internacional para que se tornasse realidade o propósito de a justiça não ser

interrompida na fronteira de cada um dos Estados”,17

o referido instrumento foi ratificado

16 ARAÚJO, 2005, op. cit., p. 06.

17 Ibidem.

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pelo Brasil por meio do Decreto nº 1.898/1996. O artigo 7º dessa Convenção

Interamericana estatui, ipsis litteris, que “as autoridades judiciárias das zonas fronteiriças

dos Estados Partes poderão dar cumprimento, de forma direta, sem necessidade de

legalização, às cartas rogatórias previstas nesta Convenção”.

De igual maneira, o artigo 19 do Protocolo de Medidas Cautelares, firmado em

Ouro Preto pelos Estados Partes do Mercosul, estabelece que

Artigo 19 [...]

4ª § - Os Juízes ou Tribunais das zonas fronteiriças dos Estados Partes

poderão transmitir-se, de forma direta, os exhortos ou cartas rogatórias

previstos neste Protocolo, sem necessidade de legalização.

5º § - Não será aplicado no cumprimento das medidas cautelares o

procedimento homologatório das sentenças estrangeiras.

Indubitavelmente, à luz da dicção literal dos dispositivos supracitados, os

signatários do Protocolo de Medidas Cautelares tinham por objetivo a criação, nas zonas

fronteiriças, de um espaço de efetiva cooperação, com vistas a conferir maior segurança às

relações jurídicas nelas realizadas. Levando-se em conta que, no âmbito do Mercosul, os

pedidos de reconhecimento de sentença estrangeira tramitam, de forma simplificada, por

meio de Carta Rogatória – haja vista o estabelecido no Protocolo de Cooperação e

Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa,

conhecido como Protocolo de Las Leñas (Decreto nº 2.067/96) –, da leitura do artigo 19 do

Protocolo de Ouro Preto depreende-se que o processo homologatório tornou-se dispensável

naquelas regiões.

Visando a uma compreensão mais acurada das nuanças da cooperação jurídica

internacional, e no intento de dirimir esses aparentes conflitos de normas, o contato com a

Teoria Geral do Direito é imprescindível, sobretudo pelo fato de o constituinte ter-se

omitido quanto à hierarquia dos tratados internacionais – com exceção dos tratados em

matéria de Direitos Humanos – na ordem jurídica nacional. E essa preciosa tarefa – cujo

tema é objeto do tópico seguinte – restou a cargo da doutrina e da jurisprudência.18

3. QUESTÕES RELATIVAS A APARENTES CONFLITOS DE NORMAS

INTERNACIONAIS E O DIREITO INTERNO

18 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 366.

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A Constituição brasileira de 1988 não estatuiu de forma clara, em nenhum de seus

dispositivos, qual a posição hierárquica dos tratados comuns perante o ordenamento

jurídico interno, conforme assevera Mazzuoli.19

Havendo legado esse mister à opinião da

doutrina e da jurisprudência pátrias, o legislador constituinte possibilitou o travamento de

discussões acerca desse tema, cuja importância para a consecução da plena e efetiva

prestação jurisdicional no que tange à cooperação jurídica internacional é salutar,

merecendo, portanto, ser analisado de forma detida à luz dos princípios jurídico-positivos e

dos critérios para a solução de conflitos de normas previstos na ordem jurídica.

A questão do conflito normativo é, eminentemente, sistemática, de modo que

julgamos conveniente evocar a noção de sistema. No entanto, antes de enfrentarmos tal

questão como um problema teórico, é necessário observar que o impasse da concorrência

entre normas de tratados internacionais (comuns) e leis internas (infraconstitucionais) pode

ser deslindado, a priori, de duas maneiras. A uma, prevalecendo os tratados sobre o direito

interno infraconstitucional, comunicando, assim, plena vigência ao compromisso

internacional, sem embargo de leis ulteriores que o contradigam. A duas, esse problema é

resolvido garantindo-se aos tratados apenas tratamento paritário, id est, existindo conflito

entre tratado e lei interna aplica-se o critério cronológico – lex posterior derogat legi

priori.

No tocante à relação entre as normas internacionais e a ordem interna,

tradicionalmente, duas importantes correntes apresentam-se na tentativa de melhor

equacionar a questão, quais sejam, o monismo e o dualismo. Esta última corrente é

endossada, no âmbito internacional, por Triepel e Anziotti, tendo no cenário nacional

obtido apoio de Amílcar de Castro.20

Para os defensores do dualismo, a ordem

internacional e a ordem interna são ordens jurídicas distintas e autônomas que não

interagem entre si, apenas se tangenciando. Da mesma forma, possuem objetos distintos,

sendo da alçada do Direito Internacional a regulamentação estrita da relação entre os seus

sujeitos – Estados e Organizações Internacionais –, cabendo ao Direito interno reger as

relações intraestatais. Como consequência, não há que se falar em conflito normativo entre

tais ordens, uma vez que para um ato internacional produzir efeitos na órbita interna ele

19 Ibidem. 20 CASTRO, Amilcar de. Direito internacional privado. 5ª ed., aum. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004,

pp. 123-124.

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precisa ser transformado, passando a ser considerado ato normativo interno e não mais

internacional.21

A escola monista, por seu turno, tem como precursor Hans Kelsen,22

para quem a

ordem jurídica é una, constituindo um verdadeiro sistema, que engloba tanto as normas

internacionais como as internas, sendo necessárias normas que coordenem tais domínios

com vistas a disciplinarem ambos harmoniosamente, indicando quais teriam prevalência

em caso de conflito.23

No Brasil, a maior parte da doutrina advoga esta corrente, sendo o

posicionamento de Celso D. de Albuquerque de Mello,24

Haroldo Valladão,25

José

Francisco Rezek26

e Valerio de Oliveira Mazzuoli.27

Na esteira da análise da existência de conflito de normas como problema inerente

ao sistema jurídico, sumamente interessante é a definição de sistema nas palavras de Maria

Helena Diniz, para quem “sistema significa nexo, uma reunião de coisas ou conjunto de

elementos, e método, um instrumento de análise”, sendo o sistema jurídico a “ferramenta

metodológica que ocupa um lugar central no exame desse problema, permitindo solucioná-

lo satisfatoriamente”.28

Em sendo o direito algo dinâmico, que está em perpétuo

movimento, acompanhando as relações interpessoais, modificando-se, adaptando-se às

novas exigências e necessidades da vida, é inegável a existência de conflitos normativos.29

Ante o postulado da coerência do sistema, no enfrentamento do conflito

normativo a ciência jurídica aponta critérios aos quais o aplicador do direito deve recorrer

para escapar dessa situação atípica. Tais critérios, nos dizeres da autora supracitada, “não

são princípios lógicos, assim como o conflito normativo não é uma contradição lógica. São

critérios normativos, princípios jurídico-positivos, pressupostos implicitamente pelo

21BARROSO, Luís Roberto. Constituição e tratados internacionais: Alguns aspectos da relação entre direito

internacional e direito interno. In: TRINDADE, Antônio A. Cançado et al (Orgs.). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: Estudos em homenagem ao professor Celso D. de Albuquerque Mello.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 186-187. 22 TIBURCIO, Carmen. Fontes do Direito Internacional – Os tratados e os conflitos normativos. In:

TRINDADE, 2008, op. cit., pp. 296-299. 23 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 440-466. 24 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, vol. 2. 15ª ed. rev. e ampl. Rio

de Janeiro: Renovar, 2004, 135-136. 25 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, pp. 53

e 94. 26 REZEK, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 463. 27 MAZZUOLI, 2011, op. cit., pp. 369-379. 28 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 7-8 e 15. 29 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 5ª ed. atual. São Paulo:

Saraiva, 1999, pp. 69-70.

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legislador [...]”,30

e toca-nos analisá-los neste trabalho, tendo em conta a importância de se

saber qual das duas normas antinômicas deve ser aplicada a fim de se alcançar a melhor e

mais justa decisão no caso concreto.

A doutrina apresenta critérios para a solução de antinomias no Direito interno,

para a solução de conflito entre normas de Direito Internacional privado, bem como

princípios para a resolução dos conflitos entre normas de Direito Internacional público,

mas, em razão da proposta de debruçar-nos sobre os conflitos de normas em matéria de

cooperação jurídica internacional, analisaremos os critérios solucionadores dos conflitos

entre normas de Direito Internacional e normas de Direito Interno.

Os conflitos entre norma de Direito Internacional e norma de Direito Interno

ocorrem quando uma lei interna contraria um tratado internacional e, nessa hipótese, a

jurisprudência formada pela Corte Permanente de Justiça Internacional, desde os anos

1930, tem consagrado a superioridade da norma internacional sobre a interna.31

Em que pese o posicionamento doutrinário, vigora na jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal (STF) o entendimento de que um tratado, uma vez formalizado, passa a

ter força de lei ordinária, podendo, por isso, revogar as disposições em contrário, ou ser

revogado (perder eficácia) diante de lei posterior. Desse modo, tratando-se de instrumentos

internacionais comuns (excluídos, portanto, os tratados de Direitos Humanos, que,

aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos

dos respectivos membros, ingressam na ordem jurídica com status de emenda

constitucional, conforme dispõe o § 3º do art. 5º da Constituição brasileira), a

jurisprudência do STF tem adotado a possibilidade de treaty override no Direito brasileiro,

entendendo ser possível a superação de um tratado em virtude da edição de lei posterior.32

Tal entendimento se dá em razão da conclusão alcançada pelo STF no julgamento

do Recurso Extraordinário nº 80.004/SE, decidido em 1978, que considerou haver uma

estrita relação de paridade normativa entre tratados e leis ordinárias editadas pelo Estado,

de modo que a normatividade dos tratados internacionais permite, no que toca à hierarquia

das fontes, situá-los no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam

as leis internas. Para Mazzuoli, o fato de o STF ter colocado os tratados internacionais

30 DINIZ, 2009, op. cit., p. 33. 31 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulalio do Nascimento e. Manual de direito internacional

público. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 62. 32 MAZZUOLI, 2011, op. cit., pp. 367-369.

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ratificados pelo Brasil no mesmo plano hierárquico das normas infraconstitucionais reflete

a concepção monista moderada e, dessa forma, qualquer tratado internacional passaria a

fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária federal.33

Os doutrinadores brasileiros que, posicionando-se ao lado da visão monista tida

como radical – pois advoga a prevalência das normas internacionais sobre as normas

internas –, asseguravam ser esta a posição adotada historicamente pela Suprema Corte

brasileira, receberam com perplexidade a mudança de posição expressa a partir de 1978.

Ao analisar a questão, todavia, Jacob Dolinger, citado por Luís Roberto Barroso, constatou

que, na verdade,

[...] a leitura que a maioria dos autores fazia das decisões do Supremo

Tribunal Federal era antes reflexo de sua própria crença no primado do

direito internacional do que expressão da realidade dos julgados. Ao

contrário do sugerido, a orientação da mais alta Corte é o do monismo

moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nível

hierárquico da lei ordinária, sujeitando-se ao princípio consolidado: em caso

de conflito, não se colocando a questão em termos de regra geral e regra

particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior.34

Nessa esteira, a concessão do status de lei ordinária federal aos tratados

internacionais implica, em caso de conflito entre a norma internacional e a lei interna, a

aplicação do princípio geral relativo às normas de idêntico valor, é dizer, o critério

cronológico (lex posterior derogat legi priori), que se remonta ao tempo em que as normas

começaram a ter vigência, restringindo-se somente ao conflito de normas pertencentes ao

mesmo plano. Para Kelsen, se se tratar de normas gerais estabelecidas pelo mesmo órgão

em diferentes ocasiões, a validade da norma editada em último lugar sobreleva à da norma

fixada em primeiro lugar e que a contradiz.35

Destarte, o critério lex posterior derogat legi

priori significa que de duas normas do mesmo nível ou escalão, a última prevalece sobre a

anterior.

Cumpre apresentarmos a perplexidade demonstrada por Mazzuoli sobre o

tratamento dispensado aos tratados internacionais ordinários pelo STF – perplexidade da

qual compartilhamos –, que admitiu que um acordo bilateral ou multilateral estabelecido

33 Ibidem. 34 BARROSO, 2008, op. cit., p. 190. 35 DINIZ, 2009, op. cit., p. 34.

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no âmbito internacional por sujeitos plenamente capazes possa ser unilateralmente

revogado por um dos seus Estados Partes, o que não é razoável, menos ainda jurídico.36

O

mais razoável, a nosso ver, seria dispensar às normas internacionais ordinárias o mesmo

tratamento que a legislação tributária dispensa aos tratados dessa matéria, alçando-os ao

nível de supralegalidade – acima das normas ordinárias internas e inferiores apenas à

Carta Magna.37

Impende salientar, outrossim, a possibilidade da existência de antinomia entre

normas pertencentes a planos distintos, havendo conflito entre os critérios para a sua

resolução. Tais antinomias, também denominadas antinomias de segundo grau, podem

revelar conflitos entre os critérios: a) hierárquico e cronológico; b) de especialidade e

cronológico; e c) hierárquico e de especialidade. Na primeira hipótese, sendo uma norma

anterior-superior antinômica a uma posterior-inferior, pelo critério hierárquico deve-se

optar pela primeira e pelo cronológico, pela segunda. Na segunda hipótese, se houver uma

norma anterior-especial conflitante com uma posterior-geral, seria a primeira preferida

pelo critério de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico. Por fim, na terceira

possibilidade, no caso de uma norma superior-geral ser antinômica a uma inferior-especial,

prevaleceria a primeira, aplicando-se o critério hierárquico e a segunda, utilizando-se o da

especialidade.38

No que tange às normas em matéria de cooperação jurídica internacional,

acreditamos possuírem caráter especial, haja vista terem como objetivo principal a

facilitação do intercâmbio de atos processuais além dos limites territoriais do Estado, por

meio do estabelecimento de uma sistemática própria entre os signatários, em contraposição

às normas internas que ordinariamente já estabelecem um procedimento geral e comum de

comunicação interjurisdicional. Via de consequência, normas gerais, ainda que posteriores,

não teriam o condão de revogar tais normas convencionais de índole especial, haja vista o

princípio lex specialis derogat legi generali.

Há que se falar, também, de modo particular, nos conflitos normativos que

envolvem normas materialmente constitucionais e normas formalmente constitucionais,

36 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 369. 37 O artigo 98 do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/66, estabelece a prevalência dos tratados

internacionais em matéria tributária na ordem brasileira ao asseverar: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes

sobrevenha.” 38 DINIZ, 2009, op. cit., p. 49.

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dentro do contexto da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos. Em

virtude do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, os tratados internacionais de

proteção dos Direitos Humanos têm a índole e o nível de normas materialmente

constitucionais, sendo que o quórum que o § 3º do artigo 5º estabelece atribui eficácia

formal a esses tratados no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, atribui-lhes o caráter de

formalmente constitucionais. Desse modo, tem-se que todo tratado internacional em

matéria de Direitos Humanos que ingressa no Direito interno brasileiro possui o status de

materialmente constitucional, podendo, ainda, ser formalmente constitucional, desde que

aprovado pelo quórum do § 3º do artigo 5º da Constituição.

Tal caracterização norteia a escolha da norma que será aplicada no caso de haver

conflito entre normas de nível materialmente constitucional e normas formalmente

constitucionais. Os tratados aprovados pelo quórum do § 3º do artigo 5º da Constituição

(isto é, formalmente constitucionais) prevalecerão sobre aqueles que são apenas

materialmente constitucionais, quando forem antinômicos entre si. Essa preferência se dá

em razão da aprovação dos primeiros pela maioria qualificada estabelecida no referido §

3º.39

Ademais, na hipótese de haver antinomia entre normas materialmente

constitucionais, será aplicado o princípio da primazia da norma mais favorável ao ser

humano (ou princípio internacional pro homine), expressamente consagrado pelo artigo 4º,

inciso II, da Carta de 1988, segundo o qual o Brasil deve se reger nas suas relações

internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos.40

O mesmo princípio

será aplicado quando do conflito de normas formalmente constitucionais entre si, haja vista

a primazia da norma mais benéfica ao ser humano.

Destarte, entendemos que eventuais normas de cooperação jurídica internacional

contidas em tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos ratificados pelo

Brasil, independentemente de aprovadas ou não sob o quórum previsto pelo artigo 5º, § 3º,

da Carta Magna, terão prevalência hierárquica sobre as demais leis ordinárias e

supralegais.

39 Entendimento que restou consagrado pelo voto-vista do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343-1/SP, no qual

demonstrou que os tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos que não foram aprovados com o quórum qualificado do artigo 5º, §3º, da Constituição Democrática, portanto apenas materialmente

constitucionais, gozariam do status de supralegalidade, haja vista o inegável valor especial de seu texto. 40 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 836.

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4. CONCLUSÃO

A dinâmica das relações jurídico-sociais, influenciadas pelo processo de

globalização, repercutiu na ocorrência cada vez maior de elementos de estrangeiria nas

demandas submetidas ao Judiciário, reclamando do Estado posição que salvaguarde a

prestação satisfatória do provimento jurisdicional. Nesse contexto, não raras vezes será

necessário o intercâmbio de atos processuais entre as jurisdições de Estados distintos, seja

durante o andamento processual – com vistas a alcançar provas, efetuar intimações etc. –,

seja ao final – a fim de executar a decisão exarada.

A Cooperação Jurídica Internacional é apresentada como verdadeira ponte entre a

jurisdição nacional e as jurisdições alienígenas, ponte esta estabelecida especialmente

pelos tratados internacionais, bilaterais e multilaterais, principais fontes modernas do

Direito Internacional. Seguindo os exemplos da Convenção de Haia, observa-se a

tendência uniformizadora também no tocante às normas de cooperação interjurisdicional,

mediante a adoção de técnicas como o estabelecimento de Autoridades Centrais.

O Brasil não está alheio à necessidade de cooperação, tendo firmado importantes

acordos internacionais na matéria, que possibilitam um tratamento mais célere e menos

oneroso dos principais instrumentos de cooperação interjurisdicionais, quais sejam, a

concessão de exequatur às cartas rogatórias e o reconhecimento de decisões estrangeiras.

Tais procedimentos possuem competência constitucionalmente atribuída ao Superior

Tribunal de Justiça, conforme artigo 105, I, i, da Carta Magna.

Historicamente, o Brasil adota o processo homologatório como meio hábil para o

reconhecimento de decisões proferidas fora da jurisdição nacional. Restou assentado,

contudo, que o dispositivo constitucional supracitado não teve a intenção de estabelecer a

obrigatoriedade do processo homologatório para as decisões alienígenas produzirem

efeitos na órbita interna, deixando à legislação infraconstitucional a tarefa de estabelecer as

hipóteses de exigência e de dispensa de homologação. Tão-somente estabeleceu, o referido

dispositivo, que quando se fizer necessário o processo homologatório, este deverá ser

tramitado perante a Corte por ele indicada.

Observou-se que a exigência da decisão estrangeira a ser submetida à

homologação possui natureza infraconstitucional, consubstanciada, atualmente, na Lei de

Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657/42 –, artigo 15, alínea e;

no Código de Processo Civil de 1973, artigo 483; e na Resolução nº 09 do Superior

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Tribunal de Justiça, artigo 4º, caput. Por outro giro, restou constatada a existência de

hipóteses de dispensa de homologação ou de concessão de exequatur previamente à

execução de atos provenientes de jurisdições estrangeiras, plasmados, por exemplo, no

artigo 7º da Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, ratificada por meio do

Decreto nº 1.898/96, e no artigo 19 do Protocolo de Medidas Cautelares, promulgado pelo

Decreto nº 2.626/98.

Tendo em vista o aparente conflito entre normas internacionais com normas

internas, bem como diante do silêncio do texto constitucional de 1988 quanto à posição

hierárquica dos tratados internacionais no sistema jurídico brasileiro, foram identificados

na doutrina e na jurisprudência as seguintes conclusões: a) O posicionamento conferido

pelo Supremo Tribunal Federal aos tratados internacionais comuns é o de equiparação com

a legislação ordinária, com consequente adoção dos critérios cronológico (lex posterior

derogat legi priori) e de especialidade (lex specialis derogat legi generali) para solução de

eventuais conflitos; b) Os tratados em matéria tributária possuem status supralegal

assegurado pelo artigo 98 do Código Tributário Nacional, devendo prevalecer sobre

quaisquer normas ordinárias que com eles conflitem, sejam anteriores sejam posteriores; e

c) Os tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, sejam ou não aprovados

sob o quórum especial do artigo 5º, § 3º, da Carta Magna, devido a sua matéria

constitucional, gozam de idêntica prevalência sobre as normas ordinárias e supralegais.

Destarte, concluímos que, inobstante a existência de exigência infraconstitucional

de homologação prévia de decisão estrangeira, bem como de concessão prévia do

exequatur, ambas perante a Corte constitucionalmente competente, para que a decisão

estrangeira e o ato rogado possam ser executados no Brasil, aquela deve ser compreendida

tão-somente como a regra geral ordinária, não excluindo a possibilidade de normas

internas ou internacionais, seja pela especialidade, seja pelo posicionamento que ocupem

no sistema jurídico nacional, estabelecerem hipóteses de isenção àquela regra, em atenção

à cooperação jurídica internacional.

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RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA: O PODER JUDICIÁRIO E A

SOCIEDADE COMO PROTAGONISTAS DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS

SOCIAIS

SHARED RESPONSABILITY:

THE JUDICIARY AND THE SOCIETY AS ACTORS

OF THE SOCIAL RIGHTS EFFECTIVENESS

Fernanda Estevão Picorelli

Mestre em Direito Público e Evolução Social pela UNESA;

Especialista em Administração do Poder Judiciário (MBA)

pela FGV/Rio; Especialista em Direito Civil pela UNESA;

Analista Judiciário da Justiça Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO: A acepção corrente da jurisdição, atrelada à singela aplicação da lei aos fatos

da lide, hoje está defasada, cedendo espaço à ideia de que o direito é realizado quando um

conflito é prevenido ou solucionado de modo eficaz e eficiente. Este desiderato pode ser

alcançado, conquanto haja uma política judiciária que seja fulcrada na gestão da qualidade.

Colima-se que esta resulte na abertura a outros ramos do saber, na participação de novos

atores sociais no processo de formulação das escolhas públicas, por meio da Governança, e

no contínuo fomento à cultura da adoção dos meios complementares de acesso à justiça.

PALAVRAS-CHAVE: política judiciária - gestão da qualidade - governança

ABSTRACT: The current meaning of the jurisdiction, related to the simple application of

the law to the facts of the dispute, is now outdated, giving way to the conception that the

right is to be considered as carried out when a conflict is prevented or solved in an

effective and efficient way. This goal can be reached, as long as there is a judiciary policy

that is based on quality management. It is expected that this results in the opening to other

branches of knowledge, in the participation of new social actors in the process of choosing

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public policies, by means of governance, and in the continuous promotion of the culture in

which complementary means of access to justice are adopted.

KEYWORDS: judiciary policy - quality management - governance

INTRODUÇÃO

A chamada crise do Judiciário, consubstanciada na defasagem entre as expectativas

sociais e o que efetivamente se consegue realizar em termos de prestação jurisdicional,

deflagra severas críticas e manifestações para que aquele Poder abandone o imobilismo e

hermetismo corporativo, redescubra sua missão pública e repense sua forma de atuação na

sociedade. Afinal, se o titular do poder é o povo e o Estado organizado é mero gestor da

coisa pública, a finalidade de obter o bem-estar social a que aquele ente se destina deve ser

efetivamente cumprida, sob pena de esvaziar-se a própria razão de ser do Estado.

Sob essa perspectiva, este estudo apresenta, a partir do intercâmbio com outras

ciências e da ruptura de vetustos paradigmas, um conjunto de soluções para alicerçar uma

política judiciária que venha a maximizar a efetividade dos direitos fundamentais e, ipso

facto, a legitimidade do Judiciário, saindo de cena a visão unívoca que se tem dado à

ampliação de sua estrutura e de reiteradas alterações legislativas para resolver as

dificuldades por ele enfrentadas. Não se trata de apresentar certezas, mas de operar com

outros ramos do conhecimento para que se iluminem caminhos que apontem para uma

prática administrativa mais consentânea com os compromissos finalísticos do Judiciário, a

partir da participação de novos atores sociais e da expertise necessária ao enriquecimento

do complexo processo de formulação das escolhas públicas, por meio da governança, e de

outras necessárias ações políticas continuadas e eficientes que reduzam a avassaladora

demanda que é dirigida àquele ente estatal. Como conseqüência, espera-se que a

democratização do acesso à justiça possa ser vivida como verdadeira arena de aquisição de

direitos e de animação para uma cultura cívica.

1. A Administração Pública no contexto do Estado Democrático de Direito

Na experiência brasileira, a formação do Estado foi eminentemente autoritária.

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Em Portugal e, como consequência, também no Brasil, houve grande atraso na

chegada do Estado liberal. Permaneceram, assim, indefinida e indelevelmente, os traços

do patrimonialismo, para o que contribuiu a conservação do domínio territorial do rei, da

Igreja e da nobreza. O colonialismo português que, como o espanhol, foi produto de uma

monarquia absolutista, legou-nos o ranço das relações políticas, econômicas e sociais de

base patrimonialista, que predispõe à burocracia, ao paternalismo, à corrupção e à

ineficiência.

O entrelaçamento de dois sistemas de organização - burocracia e relações pessoais -

projetaria uma distorção que marcaria profundamente o desenvolvimento de nossa cultura

jurídico-institucional e político-administrativa, caracterizada pela coexistência antagônica e

conflitante de procedimentos racionais (burocracia) com formas tradicionais

(patrimonialismo). Ambas expressões foram utilizadas em termos sociológicos por Max

Weber para configurar o desenvolvimento de certa prática de organização política pré-

moderna e, também, designar fenômenos distintos, movidos por “princípios reguladores

opostos”1. Esclareça-se: a burocracia como foi entendida por Weber, consistente no

método de administração do Estado, imparcial, eficiente e hierarquizado, deveria ter como

objetivo a reiteração da dominação racional-legal e não patrimonialista ou carismática. Ao

mesmo tempo em que foi estabelecido um encadeamento de regras normativas para

reforçar o poder pelo povo, passou a existir um sistema para manter uma classe dominante

no poder (a classe burocrática). Trata-se de contradição das formas de dominação, que fez

eclodir, de um lado, a burocracia, como dominação racional-legal; de outro, a estamentária,

como dominação tradicional patrimonialista. Apesar de epistemologicamente

contraditório, o trinômio burocracia-patrimonialismo-democracia, é uma realidade no

território brasileiro, que, contudo, vem sendo guerreada por meio de ações políticas que

objetivam anular seus indesejáveis efeitos (vg. Resolução nº 07/2005, do CNJ, por meio da

qual foi combatido o costume contra constitutionis chamado nepotismo no Poder

Judiciário).

Não resta dúvida de que o nascedouro da produção jurídica no Brasil e a forma

como os tribunais vieram a institucionalizar-se estão profundamente amarrados a um

passado econômico e sócio-político colonial. Isso permite compreender que o direito

1 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 87.

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oficial nem sempre representou o genuíno espaço de cidadania, de participação e das

garantias legais para grande parte da população. A Constituição de 1824, primeiro esforço

de institucionalização do novo país independente, pretendeu iniciar, apesar das vicissitudes

que levaram à sua outorga, um Estado de direito, quiçá um protótipo de Estado liberal. Mas

foi apenas o primeiro capítulo de uma instabilidade cíclica que marcou a experiência

republicana brasileira, jamais permitindo a consolidação do modo liberal e, tampouco, de

um Estado verdadeiramente social. De visível mesmo, a existência paralela e onipresente

de um Estado corporativo, cartorial, com total descompromisso com a justiça e a

liberdade2.

Assim, a constituição estrutural dessa cultura jurídica beneficiou, de um lado, a

prática do favor, do clientelismo, do nepotismo e da cooptação; de outro, introduziu um

padrão de legalidade e de estrutura institucional inegavelmente formalista, retórico,

eclético e ornamental. Incluindo suas características individualistas, antipopulares e não-

democráticas, o liberalismo brasileiro haveria de ser contemplado igualmente por seu

incisivo traço juridicista. Ademais, o cruzamento entre individualismo político e

formalismo legalista delineou politicamente a montagem do cenário principal de nosso

direito: o bacharelismo liberal, incapaz de situar-se criticamente diante do sistema jurídico.

A conclusão que se pode extrair dessa breve perspectiva histórica e da releitura

questionada das ideias, das experiências normativas e das instituições jurídicas é a imediata

necessidade de articular, na teoria e na prática, um projeto crítico de reconstrução

democrática no direito nacional, o que envolve a problematização e a ordenação

pedagógica de estratégias efetivas fundadas na democracia, no pluralismo e na

interdisciplinaridade, que conduzam a uma historicidade social do jurídico, capaz de

formar novos operadores e juristas orgânicos, comprometidos com a superação dos velhos

paradigmas e com as transformações das instituições (públicas e privadas) arcaicas,

elitistas e não-democráticas. Uma cultura jurídica que reflita, crítica e autocriticamente,

ideias, padrões normativos e instituições, sintonizada com anseios e aspirações dos novos

sujeitos sociais e comprometida com horizontes mais participativos e emancipadores, tudo

em conformidade com a Constituição de 1988, o mais bem-sucedido empreendimento

2 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a

construção do novo modelo. [II]. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 66.

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institucional da história brasileira, cujo corpo normativo orienta-nos na busca de uma

democracia substantiva.

Entretanto, sabido que a esperança é um desejo imemorial que acompanha os

homens desde sempre, é preciso que não nos deixemos iludir. Adverte-nos Norberto

Bobbio3 que o “Estado Democrático e Estado Burocrático estão historicamente muito

mais ligados um ao outro do que sua contraposição pode fazer pensar”. O Povo é

soberano e democrata quando da ocorrência das eleições; passado o período eleitoral volta

a ser aquele refém de uma camada pequena da sociedade que passa a comandá-la,

desconsiderando a sua satisfação na ação gestacional que foi confiada ao Estado. O

instrumento dessa disfunção estatal é a burocracia.

A burocracia, preconizada por Max Weber, traduz-se, com visto, em método

gerencial impessoal, que gera igualdade aos cidadãos, estável, seguro e racional. Com

esses atributos, reafirma o Estado de direito, possibilita de forma eficaz o exercício da

democracia formal e traz estabilidade ao sistema social por meio da efetividade do

princípio da segurança jurídica. Sociologicamente, também unido ao Estado de direito,

constitui-se a burocracia em estrutura de dominação racional-legal, que impede o exercício

do poder pelo cidadão e afasta a concretização da democracia substancial. Assumindo,

ainda, sua forma disfuncional, com ênfase nos meios empregados (onde o valor

instrumental converte-se em valor final), qualifica-se pelo excesso de ritualismos,

papelório, procedimentos e superconformidade às regras, caso em que se torna verdadeiro

obstáculo à ultimação de eventual estratégia assumida pelo ente estatal, que, não se pode

perder vista, deve ser sempre voltada à realização do bem comum e nunca para os seus

próprios interesses.

2. A satisfação do usuário do serviço público como elemento indissociável do conceito

de qualidade

Restaurada a democracia, a Constituição ora vigente, promulgada em 05 de outubro

de 1988, foi pródiga em estabelecer medidas para o fortalecimento do Poder Judiciário,

objetivando, também, a melhoria da prestação jurisdicional.

3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. [I]. 19. reimp. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:

Campus, 1992, p. 24.

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A Emenda Constitucional nº 45/2004, que instituiu a chamada Reforma do Poder

Judiciário, ao contrário do alardeado, não trouxe em si solução para o crônico problema da

ineficiência da máquina judiciária, inegavelmente abalada pela demanda de ações que é

dirigida ao Poder Judiciário, notadamente em razão de seu papel de servir de canal de

expressão para grupos que demandem a promoção dos objetivos comuns expressos pelos

direitos fundamentais. Aliado a esse fato, Vera Lúcia Feil Ponciano4 aponta como

determinantes no número de processos: (a) a disparidade gravíssima entre o discurso

jurídico e a planificação econômica; (b) a instabilidade normativa e a inflação jurídica

decorrente da produção legislativa desordenada e desenfreada pelo Executivo e

Legislativo, inclusive contrariando a Constituição Federal; (c) a produção legislativa

impulsionada unicamente pelo clientelismo político; (d) a omissão do Estado na

implantação das políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos garantidos pela

atual Constituição; (e) a desobediência à Constituição e às leis pelo próprio poder público e

(f) o aumento da burocracia estatal.

Assim, por força das profundas transformações econômicas e sociais que se deram

ao longo do último século, aliadas àqueles outros fatores, as estruturas, competências e

normas estatais experimentaram um crescente distanciamento da realidade social, até o

ponto de a sociedade e os operadores do sistema jurídico declararem, à unanimidade, a

existência de uma situação de crise do Judiciário.

Impende assentar que, de forma clara e precisa, deixou o legislador constitucional

consignado na Lei Maior como princípios: razoável duração do processo, celeridade (art.

5º, inciso LXXVIII) e eficiência (art. 37), outorgando aos magistrado a tarefa de dizer o

direito segundo as regras constitucionais de aplicação imediata, sem aguardar a palavra do

Legislativo, como era até então. Extrai-se desse conjunto de normas encontrar-se implícito

o princípio da boa administração – consagrado também, de forma expressa, nos artigos

VIII e X na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e no artigo 41 da Carta de

Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta de Nice) –, o qual é idôneo a deflagrar

para o jurisdicionado o direito subjetivo, de natureza fundamental, de exigir tal prática dos

administradores da res publica.

4 PONCIANO, Vera Lúcia Feil. Morosidade da Justiça: Crise do Judiciário ou crise do Estado? O Estado do

Paraná. Edição de 10/07/2008.

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Dessa contemporânea principiologia, infere-se, outrossim, que, no Estado

democrático contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e legalmente

assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do

direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. A tutela efetiva é,

portanto, não apenas uma garantia, mas, ela própria, um direito fundamental, cuja eficácia

irrestrita é preciso assegurar, em respeito à própria dignidade humana5. Como consectário

lógico, tem-se que a garantia do acesso à Justiça não se esgota no direito de provocar o

exercício da função jurisdicional, mas no fato de que a tutela pretendida seja oportunizada

de forma eficaz e eficiente.

A esse propósito, importa distinguir o conceito de eficiência e eficácia, uma vez

que a eficácia, na ciência do direito, denota a aptidão de uma lei ou ato jurídico de produzir

efeitos. Aqueles termos estão sendo empregados neste estudo na esteira da ciência da

administração e da economia, considerados básicos para o estudo da gestão das

organizações. Com efeito, a norma técnica não-compulsória NBR ISO 9000:20056, de

aplicação universal e da qual é subscritora o Brasil, fornece a seguinte definição para

aqueles vocábulos:

Eficácia: Extensão na qual as atividades planejadas são realizadas e os

resultados planejados alcançados.

Eficiência: Relação entre o resultado alcançado e os recursos usados.

5 GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo, p. 01. Disponível em:

<http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 13/05/2013.

6 A International Standard Organization - ISO (Organização Internacional de Padrões) é uma organização

com sede em Genebra - Suíça e com escritórios em praticamente todos os países do mundo, que se ocupa em desenvolver normas voluntárias (não-compulsórias), tendo como objeto a maioria dos ramos tecnológicos

(engenharia em geral, segurança, meio ambiente, responsabilidade social, qualidade etc.). A sua função é a de

promover a normatização de produtos e serviços para que a qualidade destes seja permanentemente

melhorada. O Brasil, como signatário, pode adotar as normas emitidas pela ISO, que são traduzidas para o

português pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e recebem um prefixo “NBR”,

caracterizando-as como normas brasileiras. O ano que se inclui é o da última revisão da norma. Dentre as

normas ISO, destaca-se o conjunto (ou família) 9000, voltado especificamente para o tema gestão, o qual

possui a seguinte lógica: ISO 9000:2005: fornece informações sobre a rationale da qualidade e define a

terminologia a ser utilizada na Gestão da Qualidade; ISO 9001:2008: apresenta os requisitos universais para a

gestão com qualidade; ISO 9004:2010: fornece orientação sobre aprimoramento contínuo da qualidade,

apresentando complementações aos requisitos da NBR ISO 9001:2008 (básicos ou mínimos), sofisticação ou alargamento da sua abrangência. Convém ressaltar que existem outros modelos de sistemas de gestão;

todavia, praticamente todos convergem para os mesmos elementos de gestão sustentável.

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Em geral, a eficiência está intimamente relacionada aos custos de realização do

processo (tempo, gastos, instalações etc.).

Várias são as alternativas de combinação de eficácia e de eficiência dentro de um

processo de trabalho de uma organização. Por exemplo: uma sentença proferida com

observância de todas as garantias substanciais, mas que no seu iter procedimental não foi

observado o prazo razoável, resulta em processo eficaz, porém ineficiente. Ou um

particular atendimento, cuja informação não é fornecida tendo em vista que o processo

judicial não foi localizado no cartório judiciário e, além disso, o atendimento completo é

realizado em duas horas. Nesse caso estamos diante de um processo ineficaz e ineficiente.

Maria Elisa Macieira e Mauriti Maranhão7 apresentam outra forma de abordar

eficiência e eficácia, trazendo luz à sua melhor compreensão:

Qualificação Ação descritora da condição

Eficaz Executa corretamente aquilo que é feito

(não necessariamente o que é feito é a real

necessidade do destinatário final do produto

ou serviço).

Eficiente Alcança os objetivos planejados

(considerando as necessidades dos

usuários), desenvolvendo no destinatário

final a percepção de satisfação com o

serviço prestado.

Eficaz e eficiente

Faz, sob custo compatível, o que realmente

precisa ser feito.

7 MACIEIRA, Maria Elisa; MARANHÃO Mauriti. Como implementar a gestão em unidades judiciárias. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 34.

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Para aqueles autores, que detêm ampla experiência e conhecimento em

implementação de sistemas de gestão em unidades do Judiciário fluminense, a experiência

mostra que

Em geral, algumas organizações fazem mais do que precisa ser

feito, deixam de fazer algumas coisas essenciais e as coisas que

fazem não são nem eficientes nem eficazes. É uma combinação

explosiva de insatisfação dos usuários (que se frustram por não

terem as suas necessidades atendidas) com desperdício (realização

de atividades desnecessárias, que não agregam valor).

Em resumo, combinar eficiência e eficácia dos processos de

trabalho significa atender às necessidades dos usuários dos

próximos processos, sob custo mínimo, e obter a rentabilidade

capaz de manter a instituição permanentemente reconhecida. Em

termos práticos, a adequada combinação de eficácia e eficiência

determina completamente a qualidade do processo.

Importa consignar, outrossim, que consoante o padrão técnico NBR ISO

9000:2005, sistema (ou modelo) é o conjunto de elementos que estão inter-relacionados ou

interativos e sistema de gestão são atividades coordenadas para dirigir e controlar uma

organização ou, em outras palavras, para estabelecer política e objetivos, e para atingir

estes objetivos. O termo qualidade, adicionado ao sistema de gestão, tal como preceitua

aquela norma técnica, é o conjunto de características diferenciadoras de um produto ou

serviço que estão em conformidade com os requisitos estabelecidos pelo sistema de gestão

para a satisfação do cliente.

Quanto maior a quantidade de recursos (pessoas, dinheiro, bens tangíveis e

intangíveis), mais complexo se torna o processo de gestão. A complexidade aumenta

quando se está diante de sistemas sociais considerados como não-lineares8, tal como é o

8 Os sistemas inorgânicos, pelo fato de serem regulados por leis da ciência exata, apresentam comportamento

linear, com relações de causa e efeito bem definidas (por exemplo, para aumentar a concentração de sal em determinada solução para X%, basta adicionar Y gramas de sal). Evidente que o comportamento linear torna

o tratamento dos sistemas inorgânicos mais simples e plenamente previsível. Com o surgimento dos sistemas

sociais (povoados por homens), as relações de causa e efeito passaram a ser de outra ordem, não mais

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Judiciário. Essa é uma das razões que faz com que a gestão constitua uma atividade

especializada nas organizações, a exigir, portanto, uma expertise, particularmente da alta

cúpula administrativa, que é quem efetivamente delibera, ou em outras palavras, define os

objetivos a serem alcançados e o meio hábil a cumpri-los. São os indivíduos que tomam

decisões, que afetam o destino das organizações por eles dirigidas. Aliás, conforme

salienta o guru da qualidade japonesa Kaoru Ishikawa, citado por Geraldo R. Caravantes9:

“A qualidade é uma revolução da própria filosofia administrativa, exigindo uma

mentalidade de todos os integrantes da organização, principalmente da alta cúpula”.

Há senso comum quanto à generalidade de funcionamento das organizações serem

associadas a sistemas sociais. A figura que se segue mostra um esquema da concepção

biológica dos sistemas, dotando-o de um mecanismo de retroalimentação característico de

todo ser vivo.

Esse processo, que deve ser estabelecido entre as organizações e a sociedade, será

responsável pela estratégia a ser definida - e redefinida, se for o caso - por aquelas. Essa

ideia que está alinhada com os ditos sistemas abertos contrapõe-se aos primados do

modelo burocrático, adotado pelo Judiciário brasileiro, que encerra uma autorreferência e

se concentra tão-somente no processo enquanto fim, desconsiderando a eficiência

envolvida.

A moderna concepção de gestão da Qualidade Total10

desenvolveu-se nos anos 50

a partir dos trabalhos de Armand V. Feigenbaum, Joseph M. Juran e Winston Edwards

lineares, tornando-se muito mais complexas e, por isso mesmo, maior se justifica a presença de

conhecimentos multidisciplinares para lidar com as variáveis em jogo.

9 CARAVANTES, Geraldo R.; CARAVANTES C.; BIJUR, W. Administração e Qualidade: a superação dos

desafios. São Paulo: Makron Books, 1997, p. 32. 10 O controle de qualidade é dito total por englobar todas as pessoas e ser exercido em todos os lugares da

organização, envolvendo todos os níveis e todas as unidades.

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Deming. Assim, complementarmente ao conceito adotado pela ISO, que tem como função

a normatização de produtos e serviços para que a qualidade destes seja permanentemente

melhorada, passamos a trazer o entendimento acerca do que vem a ser qualidade,

consoante a melhor doutrina.

Para Feigenbaum11

, a qualidade implica a perfeita satisfação do usuário, podendo

aquela ser conceituada como “uma maneira de se gerenciar os negócios da empresa, sendo

que o aprimoramento da qualidade só pode ser alcançado em uma empresa com a

participação de todos”.

Joseph M. Juran12

, consultor conceituado internacionalmente em gestão da

qualidade, define que qualidade é a “adequação do produto ou serviço ao uso”, ou seja, à

necessidade do cliente.

Por seu turno, Deming13

, conhecido como o guru da qualidade desde 1950, diz que:

“Em vez de estabelecer cotas numéricas, a administração para a qualidade deveria

trabalhar para melhorar o processo. O fluxograma indica um processo. O problema é saber

de que maneira melhorá-lo”.

Para Vicente Falconi Campos14

, “um produto ou serviço de qualidade é aquele que

atende perfeitamente, de forma confiável, de forma acessível, de forma segura e no tempo

certo às necessidades do cliente”.

Observa-se que, apesar do princípio da eficiência insculpido expressamente na

Carta Magna e do movimento no Brasil a favor da qualidade como parâmetro a ser

perseguido nas organizações, o Poder Judiciário, mesmo diante de sua alta complexidade

organizacional, retarda em racionalizar a sua administração. Exemplo disso é que só a

partir da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de nº 70, de 18/03/2009, o

11 FEIGENBAUM, Armand Vallin apud BUENO, Marcos. Gestão pela Qualidade Total: uma estratégia

administrativa. Um tributo ao mestre do controle da qualidade total, Kaoru Ishikawa, p. 15. Disponível em:

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12 JURAN, Joseph M.; GRYNA, Frank M. Controle da qualidade. São Paulo: Makron, McGraw-Hill, 1991,

p. 45.

13 DEMING, William Edwards apud GAZ, Ricardo; Santana, Talita Gomes de. Unidos pela qualidade. Rio

de Janeiro: COP Editora Ltda., 2004, p. 5 (Artigo publicado na Revista Tendências do Trabalho, edição nº

355).

14 CAMPOS, Vicente Falconi. TQC: Controle da Qualidade Total (no estilo japonês). Belo Horizonte, MG:

Bloch Editora, 1992, p. 02.

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Judiciário divulgou seu planejamento estratégico, uma imprescindível ferramenta de

gestão. Insta consignar que o processo de gestão estratégica constitui um esforço

disciplinado para produzir decisões e ações fundamentais sobre o que uma organização é,

aonde quer chegar, e utilizando quais meios. Portanto, pode-se dizer que uma organização

sem estratégia é uma organização sem rumo, bem como que, ao pretendermos agilizar um

processo sem ao menos um rumo estabelecido, o que se obtém é uma aceleração da

desordem muito possivelmente já existente. Sob outro prisma, de nada adianta um

planejamento estratégico sem os efetivos meios de controle acerca da qualidade do serviço

prestado, estando ínsito neste conceito, conforme demonstrado, a satisfação do destinatário

final do serviço.

O princípio da boa administração, previsto expressamente, como apontado alhures,

em importantes documentos internacionais e implícito em nosso sistema constitucional, há

de expandir suas fronteiras para compreender não só uma lógica economicista, que

restringe sua avaliação aos outputs da função. O Estado democrático de direito deve ser

instrumento eficaz e eficiente, a serviço do todo social, indiscriminadamente. Para isso, os

fundamentos e as modernas técnicas administrativas apenas se justificam se toda a

estrutura funcional tiver conhecimento e planejar seu trabalho em conformidade com as

demandas da sociedade, sob a primazia dos valores humanos e sociais, submetendo o

econômico à dinâmica e necessidades sociais15

. Como consectário dessa assertiva, tem-se

que a participação social há de ser promovida por ocasião das escolhas públicas, da

implementação das políticas de gestão correspondentes, ainda no momento da avaliação.

É essa ampliação de sentido da ideia de qualidade que tem evidenciado a

insuficiência do modelo burocrático e do argumento que firma a legitimidade da ação

estatal na operational autothority, já que desconsidera o ponto assinalado por Jocelyn

Bourgon16

, segundo o qual o próprio conceito do resultado desejável em tempos de Estado

democrático de direito abarca a exigência da presença da sociedade como agente de

15 PASOLD, Cesar Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 3ª edição. Santa Catarina: Editora

Diploma Legal, 2007, p. 35.

16 BOURGON, Jocelyn. New Governance and Public Administration: Towards a Dynamic Syntesis. Disponível em: <http://jocelynebourgon.com/documents/Governance%20Paper-

Canberra%20_Feb_16_v21%20_PMilley%20Edits_.pdf>. Acesso em 15/05/2013.

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deliberação. Afinal, democracia, na lição de Norberto Bobbio, é o “poder em público” 17

.

Assim, a eficiência como princípio posto à administração judiciária há de incorporar o

incremento da cidadania ativa como valor no processo de decisão, tanto quanto aqueles

outros outputs da atuação estatal, quantitativamente aferíveis.

José Afonso da Silva parece caminhar na direção das teorias da administração

quando afirma que o conceito de eficiência não é jurídico, mas econômico, servindo para

qualificar atividades que correspondam, numa concepção muito geral, a fazer acontecer

com racionalidade, o que implica medir os custos que a satisfação das necessidades

públicas importam em relação ao grau de utilidade alcançado, servindo, também, para

orientar a atividade administrativa, no sentido de conseguir os melhores resultados, com os

meios escassos de que dispõe e a menor custo18

.

3. O pernicioso isolamento científico e a governança como novo paradigma relacional

do Poder Judiciário

Se boa administração envolve a abertura do direito a um modelo de administração

funcional e à democratização da função administrativa, isso exigirá do Judiciário a

cunhagem de uma postura compatível com o novo desenho de ação inclusivo, num

contexto oposto àquele firmado na verticalidade das relações, tão caro ao modelo

burocrático. Nessa quadra, o emprego do conceito essencialmente democrático de

governança, mencionado pela primeira vez pelo Banco Mundial, em 1992, como atributo

desejável à administração pública, restou disseminado, podendo ser descrito como uma

estratégia de governo que, reconhecendo suas limitações, admite o envolvimento e a

necessária contribuição de outros atores sociais, cidadãos ou organizações, que integrem a

constelação de agentes qualificados ao enriquecimento do processo de decisão ou, de outro

modo, pode ser descrito como o modo pelo qual os valores subjacentes de uma Nação são

institucionalizados.

17 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. [II]. Tradução de

Daniela Beccaccia Versiani. 9. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 386.

18 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª edição. São Paulo: Malheiros,

2012, p. 671.

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Apesar dessas proposições, o Judiciário, mesmo recebendo com a nova ordem

política novos poderes, maior independência, desatrelando-se do Poder Executivo,

marchou rumo ao enfrentamento dos novos direitos sem propostas novas, sem abrir mão de

suas prerrogativas, mantendo-se no seu silencioso feudalismo. Rodolfo de Camargo

Mancuso19

, a esse respeito, alerta para a prática de uma política judiciária equivocada

calcada no incessante aumento da estrutura física, focada na vertente quantitativa do

problema, isto é, no volume excessivo de processos: ao aumento da demanda (mais

processos), se intenta responder com um incessante crescimento de base física do

Judiciário (mais fóruns, mais juízes, mais equipamentos de informática, enfim, mais

custeio), sem que se dê conta de que tal “estratégia”, desacompanhada de uma gestão

eficiente, muito se aproxima do popular “enxugar gelo”, a par de agravar a situação

existente, na medida em que o aumento da oferta acaba por alimentar a demanda,

disseminando junto à população a falácia de que toda e qualquer controvérsia pode e deve

ser judicializada, quando, antes, caberia expandir a informação quanto ao acesso a outros

meios, auto e heterocompositivos, além de outras medidas calcadas em um plano nacional

de política judiciária, que considere todas as concausas que afetam o complexo sistema

Judiciário e as várias interfaces desse mesmo sistema.

Seis anos depois da Constituição de 1988, veio a Reforma do Poder Judiciário, via

Emenda Constitucional nº 45/2004, e com ela a criação do Conselho Nacional de Justiça,

chamado de controle externo do Judiciário. Objetivou o CNJ responsabilizar-se pela

sujeição do Poder Judiciário à disciplina administrativa por ele imposta, mantidas as

decisões judiciais fora do seu alcance, e democratizar o Poder, submetido a uma

verticalização administrativa incompatível com qualquer modelo de administração

moderna. Consequência direta desse quadro é a de que a gestão era realizada de forma

descontinuada, a depender do administrador de plantão, e as “estratégias” contemplavam,

na maioria das vezes, projetos pessoais daquele, sem considerar qualquer racionalidade

sistêmica nas ações empreendidas. De forma geral, eram prestigiadas ações imediatistas,

em detrimento de ações de médio ou longo prazo.

19 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no Contemporâneo

Estado de Direito (nota introdutória). Disponível em: <http://www.processoscoletivos.net/doutrina/19-

volume-1-numero-2-trimestre-01-01-2010-a-31-03-2010/93-a-resolucao-dos-conflitos-e-a-funcao-judicial-no-contemporaneo-estado-de-direito-nota-introdutoria>. Acesso em 15/05/2013.

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Diante desse quadro, uma das medidas prioritárias adotadas pelo CNJ foi a de

impor planejamento estratégico, através da já referida Resolução nº 70/2009, por meio da

qual se destacou a necessidade do estabelecimento, por todos os tribunais, de metas de

curto, médio e longo prazos, que deveriam estar associadas a indicadores de resultado e a

planos de ação previamente estabelecidos, levando o Poder Judiciário a superar a prática de

funcionar sem projetos, sem saber o que está fazendo, sem qualquer controle efetivo sobre

o resultado (ainda que meramente quantitativo) de sua administração e de suas realizações.

Sobre esse contexto caótico encontrado no Poder Judiciário, a então Corregedora do

Conselho Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, manifestou-se20

:

Dentro dos Tribunais de Justiça, vinte sete ilhas isoladas, foram

encontradas práticas administrativas absolutamente condenáveis

sob o aspecto técnico, descontinuadas e sem responsabilização dos

administradores. Tudo era feito de forma pessoal e na base do

improviso. Era imprescindível agregar, uniformizar e planejar para

assim caminhar junto, vencendo diferenças abismais entre os

Tribunais e, o que é pior, dentro do mesmo Tribunal varas ou

gabinetes inviabilizados por acúmulo de processos, falta de

equipamentos e falta de gestor, situações por vezes críticas com

direto reflexo na produção da atividade-fim.

A falta de uniformidade, assim como de transparência na prática judiciária, levou o

CNJ a adotar, como objetivo macro, vencer o silencioso proceder do Judiciário, a chamada

caixa preta, introduzindo a publicidade como norma das práticas administrativas. Criou,

assim, cadastros importantes para traçar o perfil e dimensionar o tamanho da Justiça

brasileira, tais como o Justiça em Números e o Justiça Aberta, este último a cargo da

Corregedoria Nacional, e estabeleceu metas a serem seguidas pelos tribunais. Tentou,

outrossim, democratizar a burocracia daquele Poder criando os recursos para que se abrisse

ao controle social, descuidando-se, todavia, de prever mecanismos de participação em

20 CALMON, Eliana. CNJ e democratização do Poder Judiciário. Revista Interesse Nacional, de 03/01/2012, p. 1-13. Disponível em: <http://interessenacional.uol.com.br/2012/01/cnj-e-democratizacao-do-poder-

judiciario>. Acesso em 15/05/2013, p. 5

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deliberações e de ausculta dos resultados efetivamente obtidos pelos destinatários das

ações empreendidas (feedback), os quais deveriam servir como vetores para a redefinição

da estratégia e das metas da organização. Em outras palavras, buscou-se um resultado

quantitativo, mas não há qualquer previsão de um procedimento dentro do sistema para

verificar se a instituição está, de fato, gerando o resultado qualitativo que deve ser

esperado. Imperioso anotar que não é possível fazer juízos de valor consistentes quando se

reduz o campo de observação de processos cujos níveis de complexidade são muito

elevados: há que se levar em consideração que a expectativa externa que se apresenta ao

Judiciário é a de que ele funcione como instância moral, que não se expressa apenas nas

demandas de cláusulas jurídicas, mas também na confiança reinante da população na

justiça21

. A introdução de aspectos morais e de valores a serem observados pelo Judiciário

dota este não só de um protagonismo no jogo democrático, mas também de uma igual

responsabilidade de criar mecanismos para que seja passível de críticas, de modo que seja

factível verificar se, efetivamente, está alinhado com as aspirações constitucionais. Afinal,

o Judiciário, como ente estatal, não se legitima pela sua só existência, mas pelos resultados

profícuos que traz para a sociedade. Nas palavras de Austin Gordilho22

, “um sistema

administrativo pode se afigurar a um jurista uma magnífica arquitetura de construção da

ordem, mas se a comunidade a que ele serve não tem a mesma percepção, o sistema não

tem valor, donde uma das primeiras causas possíveis de um parassistema”.

Amartya Sen23

, na obra A idéia de Justiça, referindo-se às instituições e ao processo

substancial democrático, assevera que a sociedade não pode simplesmente entregar a tarefa

da justiça a algumas das instituições e regras sociais que entende como precisamente

corretas e depois aí descansar, libertando-se de posteriores avaliações pessoais ou de

moralidade. Precisamente quanto ao papel das instituições nesse jogo democrático,

preconiza, ainda, que “a democracia tem de ser julgada não apenas pelas instituições que

existem formalmente, mas também por diferentes vozes, de diversas partes da população,

na medida em que de fato possam ser ouvidas”.

21 MAUS, Ingborg. O Judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 23.

22 GORDILHO, Austin A. La administración paralela. 3. reimp. Madrid: Cuadernos Civistas, 2001, p. 84-85. 23 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 117.

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Não é ocioso consignar, outrossim, que o ritmo incessante que conduz o objetivo de

se cumprirem metas, pontuais e fragmentadas de um todo existente, leva a essa entropia

que se observa no Poder Judiciário. Movido pelo presente e saturado pelo instantâneo,

vive o Judiciário como se o passado não tivesse nada a dizer e o futuro fosse demasiado

incerto para ser construído. Assim, dedica todos os esforços e atenção à tramitação

daqueles processos estabelecidos em metas fragmentadas, desviando a atenção para todo o

acervo existente, que, um dia, se o administrador de plantão não mudar de direção,

integrará as novas metas que vierem a ser editadas. Com isso, legitima-se a ausência de

uma política administrativa sustentável e continuada junto àquele Poder, posto que,

cumprindo os atos administrativos expedidos pelo CNJ, sente-se o Judiciário confortável e

também desestimulado a procurar encampar uma política judiciária racional e eficiente,

que o leve a sair desse círculo vicioso rumo a um conjunto de práticas de boa

administração que o conduza a um desejado círculo virtuoso.

O artigo 37 da CF, com a redação da EC nº 19/1998, vinculou a promoção de

magistrados pelo critério de merecimento à aferição de seu desempenho, segundo critérios

objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e

aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento. A capacitação é,

portanto, a tônica da política administrativa implementada a partir da Constituição, sendo

exigida deste o vitaliciamento. Nesse passo, a Escola de Magistrados, vinculada ao STF,

editou a Resolução nº 02/2007, considerando o período de vitaliciamento como etapa do

concurso de ingresso da magistratura.

Iluminado pelas novas diretrizes constitucionais, atentou o CNJ para a necessidade

de sistematização de aspectos relacionados à capacitação do magistrado. No que se refere à

seleção, formação e aperfeiçoamento dos juízes, foi editada a Resolução nº 64/2008, que

dispõe sobre o afastamento de magistrados para fins de aperfeiçoamento profissional, a que

se refere o artigo 73, I, da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 (Lei Orgânica

da Magistratura Nacional). Também fez editar a Resolução nº 75/2009, na qual

regulamentou de forma minudente o concurso público a ser realizado por cada tribunal

para seleção de magistrados, deixando a seu cargo, ainda, a preparação da fase de

formação, na qual deverão ser ministradas matérias próprias das Ciências Sociais, sem

denotar, contudo, qualquer preocupação com as ciências afetas à temática da

administração judiciária. Intenta-se, assim, dar ao futuro magistrado formação tão-

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somente humanitária, de todo necessária, olvidando-se daquelas que agregariam valor no

exercício de suas funções administrativas, enquanto gestor.

Desse conjunto de normas, do qual se depreende que foi preterida a importância da

questão da expertise necessária para administrar as complexas variáveis relacionadas à

função administrativa judiciária, destaca-se também a Resolução do CNJ de nº 49/2007.

Por meio deste ato normativo previsão para que os órgãos do Poder Judiciário relacionados

no art. 92, incisos II ao VII da Constituição Federativa do Brasil, passassem a organizar em

sua estrutura unidade administrativa competente para elaboração de estatística e plano de

gestão estratégica do Tribunal. Assevera, ainda, que a referida unidade será composta

preferencialmente (e não obrigatoriamente) por servidores com formação em direito,

economia, administração, ciência da informação, sendo indispensável servidor com

formação em estatística. Tal órgão terá a incumbência de enviar dados para o CNJ, quando

solicitado, a fim de instruir ações (decerto de forma monopolítica, vale dizer, sem qualquer

participação dos atores sociais) na política judiciária nacional. Pelo teor daquele

documento, enfim, observa-se que o objetivo da unidade de estatística e de gestão

estratégica é tão-somente munir os detentores do poder de deliberação dos resultados em

número mensurados, a fim de que se possa proceder a uma avaliação institucional quanto

ao número de processos julgados e aqueles ainda pendentes de julgamento para que, ao

final, sejam promovidas ações que visem a otimizar o julgamento do acervo exponencial

remanescente. Infere-se dessa sistemática que não há qualquer compromisso com o

resultado quantitativo obtido. Para atingir a qualidade de que se está a falar, faz-se

necessária, como mencionado, a competência gerencial, não somente para planejar e

implementar ações que visem à obtenção da qualidade do serviço, quanto para considerar

os indicadores de desempenho, durante e após a implementação, e retroalimentar o sistema

para corrigir os eventuais desvios, que sempre ocorrem, particularmente quando o que se

está em jogo é um sistema social.

Imperioso consignar que, caso não haja uma mudança de cultura que passe,

necessariamente, pela formação dos profissionais de direito, nenhuma reforma que se

pretenda será bem sucedida. Nessa esteira, seria de bom alvitre que as Escolas da

Magistratura dedicassem parte de seu conteúdo programático a essa questão.

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Rogério José B. S. Nascimento24

, ao discorrer sobre os obstáculos enfrentados para

a concretização de uma aspirada reforma do sistema de gestão do Judiciário, apontou como

uma das causas a prevalência do que ele denominou de uma “contaminação de lógica

instrumental”. In verbis:

Trata-se de pensar a prestação única e exclusivamente a partir da

perspectiva de seus agentes. Ou seja, olhando para dentro da

prestação jurisdicional, sem olhar para seu resultado em relação à

sociedade. Significa fazer uma reflexão limitada ao atendimento

das próprias estruturas corporativas envolvidas na prestação

jurisdicional, preocupada apenas com o que é bom para o melhor

funcionamento do ponto de vista do agente público, sem levar em

conta o que seja um bom funcionamento pela perspectiva da

sociedade, do participante dos processos levados ao Judiciário.

Essa visão, muito comum, costuma reduzir o debate sobre reforma

da gestão do sistema judiciário a uma discussão sobre como reduzir

a demanda por julgamento ou como agilizar o atendimento à

demanda existente, sem tocar no problema da qualidade da

prestação jurisdicional.

Apesar dessas considerações, deve-se aplaudir o fato de que o Judiciário tem

ensaiado sair do seu hermetismo corporativo ao estabelecer, por exemplo, convênios com o

objetivo de melhorar os seus serviços. Nesse sentido o convênio firmado, em 2009, com o

Banco Central do Brasil, que contou com o apoio da Federação Brasileira dos Bancos, com

o objetivo de aprimorar o sistema BACEN-JUD, revolucionando o sistema de penhoras até

então utilizado. Esse é um exemplo de que as parcerias formadas pelos diversos atores

sociais são muito bem-vindas, quando o que se está em foco é otimizar os procedimentos e

reduzir os custos empregados na sua realização para se obter um resultado organizacional

de excelência.

24 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Reforma de sistemas de gestão na área de Justiça. In Política de Gestão Pública Integrada. Bayma de Oliveira, Fátima (org). Rio de Janeiro: FGV, 2008, p. 193-

198, p. 194

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Outras ações foram adotadas pelo CNJ – das quais destaca-se o Movimento pela

Conciliação –, o qual também editou inúmeras resoluções para resolver ou minorar

problemas que muito afligem a população e que envolvem o cumprimento do art. 37 da

Constituição da República e os princípios ali elencados. Todas essas iniciativas são

louváveis, mas ainda são pontuais e esparsas, e não surtiram o efeito esperado de prestar,

de forma sustentável, duradoura e integrada ao sistema de justiça uma prestação

jurisdicional de qualidade, decorrente da melhoria contínua do sistema. As ações de

mutirões, por exemplo, apesar de importantes, não cumprem esse papel: são metas de

manutenção do próprio sistema vigente. É preciso que tal medida não seja importante de

per si, mas porque assim foi considerada dentro de um sólido e racional planejamento

estratégico, que leve em conta todas as interfaces do sistema. Sendo importantes para o

sistema judicial, aquelas ações não devem ser ocasionais, mas continuadas, até quando

consideradas benéficas ao sistema judiciário e à sociedade. O mesmo se diga à questão do

fomento dos demais meios complementares de acesso à Justiça.

Quanto ao resultado das medidas (fragmentadas) adotadas pelo CNJ, a Ministra

Eliana Calmon25

, no final do seu mandato frente à Corregedoria do CNJ, afirma, com um

certo desalento, que

As metas ainda estão sendo cumpridas, aqui e ali, com as

dificuldades de sempre, falta de recursos financeiros, falta de

pessoal, servidores despreparados e, na minha visão, em muitas

situações falta de crença na possibilidade de mudar com atitude e

determinação, ingredientes primeiros para qualquer alteração que

se queira implementar.

A cada ano o CNJ faz uma avaliação do cumprimento das metas e,

a partir daí, divulga os resultados da atuação de cada Tribunal, com

total transparência, estimulando o empenho dos Tribunais.

Entendemos lento, bem lento, o enfrentamento e cumprimento das

metas, mas o certo é que o trabalho já começou e prossegue.

25 CALMON, Eliana. CNJ e democratização do Poder Judiciário. Revista Interesse Nacional, de 03/01/2012,

p. 1-13, p. 7. Disponível em: <http://interessenacional.uol.com.br/2012/01/cnj-e-democratizacao-do-poder-

judiciario>. Acesso em 15/05/2013.

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Com a Constituição de 1988, cujo texto é abundante em normas programáticas,

marcado pela redemocratização e pelo constitucionalismo que inseriu o Judiciário no

centro da arena pública, a demanda pelo serviço público de justiça, já se anotou, aumentou

vertiginosamente. De fato, consoante o Relatório Justiça em Números 201126

, publicado

em outubro de 2012, a tramitação total da movimentação processual em todos os ramos do

Judiciário nacional (exceto no STF e Conselhos), alcançou, naquele ano, cerca de 90

milhões de processos. Desse quantitativo 71% já estavam pendentes desde o início do ano

e os processos restantes ingressaram durante o ano, valendo isso a dizer que o montante

apurado equivale à soma dos casos novos e dos casos pendentes que aguardam o

julgamento pelo Judiciário de nosso país. Esse acervo exponencial, frente a uma instituição

que pouco se modernizou – apesar da ampliação de despesas orçamentárias e do número de

servidores – causou um déficit gradativo de processos entrados e processos julgados,

resultando no conhecido congestionamento da justiça, ante a formação de um acúmulo de

processos à espera da prestação jurisdicional; esse acúmulo foi denominado pelo CNJ de

taxa de congestionamento e tem como finalidade mensurar se a Justiça consegue decidir

com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas e os casos

pendentes de períodos anteriores são finalizados ao longo do ano. O referido relatório

aponta que o índice global da taxa de congestionamento do Judiciário brasileiro é de

73,6%, percentual que aumentou em cerca de 3,6% em relação a 2010.

Diante dessa perspectiva que aponta para um demandismo avassalador, impende

ressaltar que a morosidade judicial se mostra como o principal fator de desencanto social,

posto que a justiça tarda e, considerando esse só fato, pode sim falhar. A prestação

jurisdicional a destempo corrói a própria autoridade do Poder Judiciário, afastando dos

tribunais grande parte da população.

Questão que afeta profundamente o desenvolvimento econômico e social de um

país é a capacidade do Judiciário de se apresentar como uma instância legítima na solução

de conflitos que surgem no ambiente social, empresarial e econômico. Partindo dessa

premissa, foi criado pela FGV o Índice de Confiança na Justiça no Brasil - ICJBrasil, que é

um levantamento estatístico trimestral de natureza qualitativa. Tal índice objetiva retratar o

26 CNJ, Relatório em Números 2011, publicado em outubro/2012. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-

numeros/relatorios, p. 447-448. Acesso em 11/08/2013.

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grau de “confiança” da população no Poder Judiciário, vale dizer, se o cidadão acredita que

aquela instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que

benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada

em conta no dia a dia do cidadão comum. A comunidade alvo daquela pesquisa é

constituída de habitantes, com 18 anos ou mais, de oito unidades federativas (UF):

Amazonas, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do

Sul e Distrito Federal, que juntas representam aproximadamente 55% da população do

país, segundo dados do Censo 2010 do IBGE. Pois bem, o relatório ICJ-Brasil do 4º

trimestre de 2012, disponibilizado no sítio eletrônico da FGV no 1º trimestre de 201327

,

demonstra que:

1) 50% dos entrevistados já utilizaram os serviços do Judiciário.

Referido estudo esclarece que as ações apontadas pelos entrevistados relacionam-se

aos anos anteriores a 2000 (10%), aos anos de 2000 a 2006 (21%) e 2007 a 2010 (69%);

que, relativamente à satisfação com o Poder Judiciário, segue a tendência que vem sendo

observada nos períodos anteriores no que diz respeito à má avaliação do Judiciário como

prestador de serviços públicos: para 90% dos entrevistados o Judiciário é moroso,

considerando que resolve os conflitos de forma lenta ou muito lentamente. Além disso,

79% disseram que os custos para acessar o Judiciário são altos ou muito altos e 69% dos

entrevistados acreditam que o Judiciário é difícil ou muito difícil para utilizar. Outros dois

problemas apontados pelos entrevistados são a falta de honestidade (64% dos entrevistados

consideram o Judiciário nada ou pouco honesto) e a parcialidade (62% acreditam que o

Judiciário é nada ou pouco independente). Não obstante a má percepção do Judiciário, a

maioria dos entrevistados em questão declarou que procuraria o Judiciário para resolver os

conflitos em que vierem a ser envolvidos.

2) 37% dos entrevistados declara confiar no Poder Judiciário.

27 FGV, Índice de Confiança na Justiça - ICJ- Brasil. 4º trimestre de 2012. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10754/Relatorio_ICJBrasil_4TRI_2012.pdf?seq

uence=1, p. 12-16. Acesso em 12/08/2013.

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Comparando a confiabilidade no Poder Judiciário com a confiabilidade nas outras

instituições (Partidos Políticos, Congresso Nacional, Ministério Público, Polícia, Governo

Federal, Imprensa escrita, Grandes empresas, Emissoras de TV, Igreja Católica, Forças

Armadas), depreende-se do relatório em questão que o Poder Judiciário só é mais confiável

que as Emissoras de TV, o Congresso Nacional e os Partidos Políticos, tendo ficado abaixo

do patamar da Polícia.

Para aqueles que não acionariam o Judiciário, ainda que houvesse necessidade, o

argumento mais frequente relaciona-se aos aspectos da administração da justiça,

considerando que 65% não o fariam por julgarem que a resolução do problema demoraria

muito, que seria caro ou porque não confiavam no Judiciário para a solução dos conflitos.

Alinhados com os dados estatísticos que demonstram o baixo índice de

confiabilidade da população na Justiça, Maria Teresa Sadek e Rogério Bastos Arantes28

,

avaliando o quadro de crise do Judiciário, observam que esta debilidade torna-se ainda

mais gritante quando se leva em consideração que apenas cerca de 33% das pessoas

envolvidas em algum tipo de conflito dirigem-se àquele ente estatal em busca de uma

solução para seus problemas. Tal dado é extremamente preocupante, uma vez que indica

tanto um descrédito na justiça quanto o fato de que, se a maior parte daqueles que

poderiam recorrer ao Judiciário o fizessem, o sistema estaria próximo ao colapso.

Apresentado o panorama da crise da Justiça brasileira, é preciso asseverar que: a)

elaborar políticas públicas no intento de concretizar o princípio da boa administração,

passa necessariamente pelas reformas legislativas, que têm ocorrido em larga escala, mas

não só. A razoável duração processual, por exemplo, não é uma oferta, ou melhor, um

resultado que se busca pelo fim, mas desde a gênese do processo. Partindo dessa

proposição, a tempestividade será uma realidade que se concretizará em todo o iter

processual; b) devam existir estatísticas qualitativas idôneas que avaliem o seu

desempenho e, principalmente, que seus dados sejam efetivamente considerados como

indicadores para se buscar a alta performance do seu sistema como um todo: da atividade

meio à atividade fim.

Em uma situação de crise, como a que se enfrenta no Judiciário e em outras áreas

da Administração Pública, não se pode mais admitir a ação episódica, apoiada na

28 SADEK, Maria Teresa; ARANTES, Rogério Bastos. A crise do judiciário e a visão dos juízes. Revista

USP, nº 21. São Paulo: USP, mar-abr. 1994, p. 39.

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metodologia do ensaio e erro, sendo imperioso que aquela se opere através de ações

estrategicamente planejadas com adequação aos meios e necessidades diagnosticadas na

realidade. A expertise necessária para lidar com o tema gestão tem sido olhada com muito

preconceito, o que pode ser concebido como verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento

racional da administração judiciária. Não há mais espaço para se insistir no modelo

técnico-burocrático, ou, ao menos, para se insistir naquilo que o referido modelo apresenta

de disfuncionalidade. Urge que se construa o Judiciário democrático, aberto à ampla

participação da sociedade e com magistrados, principalmente da alta cúpula, adredamente

preparados para que entendam não só entendam os novos signos das modernas técnicas de

gestão pública, mas também que compreendam a necessidade de sua aplicação na política

da administração judiciária e, uma vez internalizada essa cultura, passem a ter uma visão

sistêmica, integrada de seu funcionamento, saindo do isolamento científico, metodológico

e racionalizado, sendo considerado este último predicado, contemporaneamente, como

verdadeira patologia que conduz à simplificação do saber. De fato, a racionalização,

segundo Edgard Morin29

, encerra o real em um sistema de ideias coerentes, fato que induz

a que seja ignorada a ação dialógica da racionalidade. Com efeito, tudo aquilo que, no

mundo real, contradiz aquele sistema coerente é afastado. Assevera, ainda, aquele filósofo

que, com freqüência, a racionalização se desenvolve na própria mente dos cientistas e que

devemos lutar cem cessar contra a deificação da razão, sendo esta, entretanto, nossa única

ferramenta confiável, à condição de ser não só crítica, mas autocrítica.

Construído esse novo cenário, decerto se suavizarão, ou quiçá, desaparecerão os

contornos liberais absolutistas do Judiciário, dando lugar àqueles próprios de um Estado

democrático de direito, que conclama não ser lícito ao jurista se abrigar atrás dos muros da

técnica dogmática e formalista para isentar-se da responsabilidade, que é sua, em relação à

sociedade. Toda a sua ação e visão devem ser orientadas para esta, para o bem comum e

nunca para seu próprio interesse. Tem-se a semente de um raciocínio que, quiçá, até o final

do século XXI se desenvolverá por completo: a de que a legitimidade do agir estatal

repouse não só no fato de que sua ação se encontre coerente com o que preconiza a lei (ou

na oferta de serviço público que reverencie unicamente a quantidade), mas também na

sintonia com seus compromissos finalísticos e nos resultados qualificativos alcançados a

29 MORIN, Edgard. Introdução ao pensamento complexo. 4ª edição. Porto Alegre: Sulina, 2011., p. 70.

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partir de suas estratégias racionais e eficientes de atuação. Esperemos, pois, que o pêndulo

da história se movimente.

CONCLUSÃO

A existência de uma crise no Poder Judiciário é consenso. A questão, no entanto, é

que, diante da necessidade de se traçarem estratégias para superá-la, são muitas as vozes

que se levantam propondo caminhos diversos e muitas soluções são asseveradas. A

perquirição é complexa e não se esgota, por certo, numa ou noutra solução, considerando

que diversas são as concausas que interferem no sistema, devendo crescer a consciência de

que nenhuma ação e saber isolados são capazes de dar resposta efetiva ao problema. Se não

faltam remédios, o mesmo não se diga quanto à disposição de aglutiná-los de forma

racional, eficiente e, sobretudo, a partir da participação cívica. O estudo aponta como

resistência passiva às propostas de mudança a censura judicial desenvolvida sob forte

inspiração de aplicação de velhos paradigmas às novas realidades, mantendo os gestores do

Judiciário frente a estas uma postura conservadora, orientada pela obsoleta concepção de

ser o Estado o único detentor do conhecimento necessário para gerir as atividades que lhe

são inerentes. Tal postura funciona como bloqueio à exploração das propostas de novos

modelos relacionais, como o da governança, assim como de um modelo de gestão da

qualidade e, como resultado do emprego deste, de ações políticas permanentes, como a de

fomento aos meios complementares de acesso à justiça, que poderiam estar sendo

empregados para a obtenção de uma maior eficiência da administração judiciária. Tudo a

partir do indispensável aproveitamento da expertise de agentes qualificados ao

enriquecimento do processo de decisão e de uma alta cúpula adredemente preparada para a

elaboração de estratégias que levem em conta não só o aspecto quantitativo, mas a

qualidade do serviço prestado à sociedade.

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NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A LITISPENDÊNCIA INTERNACIONAL

Flávia Pereira Hill

Professora Adjunta de Direito Processual Civil da UERJ.

Mestre e Doutora em Direito Processual pela UERJ. Tabeliã.

RESUMO: O presente artigo propõe-se a analisar criticamente a vedação à litispendência

internacional contida no artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro à luz do direito

comparado, dos princípios fundamentais processuais e dos contornos da sociedade

globalizada contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Litispendência internacional; cooperação jurídica internacional;

Direito Processual Civil Transnacional.

ABSTRACT: The present study aims to critically examine the international “lis pendens”

prohibition described on the article 90 of the Brazilian Civil Procedure Code, taking into

consideration the comparative law, the fundamental rights and the characteristics of the

contemporary society.

KEY WORDS: International “lis pendens”; International Judicial Cooperation;

Transnational Civil Procedure.

1. Introdução.

O Direito Processual Civil vê-se atualmente premido por critérios, princípios e

influências de diferentes ordens que lhe impõem profundas marcas e despertam para a

reflexão em torno de institutos que tradicionalmente encontravam-se tranquilamente

acomodados.

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A prova da veracidade dessa afirmação encontra-se, antes de mais nada, no fato de

que estamos na chamada fase instrumentalista ou teleológica da ciência processual, a qual

rechaça uma visão exclusivamente jurídica e autocentrada dos institutos processuais,

clamando, ao contrário, por seu arejamento, de modo a que se abram as janelas para que os

princípios processuais aclarem o exame dos conceitos processuais outrora assentados1. Já

não bastam belos conceitos, se estes não se coadunarem com os escopos para os quais

foram criados e não se prestarem a atingi-los com efetividade. Imergimos em uma

atmosfera que nos impinge um forte (e permanente) espírito crítico e reflexivo a respeito

dos institutos processuais.

Encontra-se no centro da tônica o Direito Processual como garantidor do acesso à

justiça, sendo este o mínimo existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, o

mais basilar dos princípios fundamentais23

-4.

O eixo central de pensamento do Direito Processual moderno desloca-se, assim, para

o jurisdicionado, o destinatário da prestação jurisdicional.

O Direito Processual encontra o seu fundamento no atendimento dos anseios e

expectativas do jurisdicionado e dele extrai a sua renovada legitimidade ao longo dos

tempos.

E o jurisdicionado contemporâneo encontra-se, por sua vez, imerso em uma

sociedade globalizada, da qual eclode um número crescente de litígios cujos contornos

transcendem os limites políticos dos Estados.

1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. São Paulo: Malheiros.

2001. pp. 252-274. 2 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O princípio da

Dignidade da Pessoa Humana. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2011. pp. 243-244. 3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. Ed. São Paulo: Saraiva. 2010. pp. 336-337. 4 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível no endereço

eletrônico: www.mundojuridico.com.br. Consulta realizada em 10/02/2012.

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Essa nova realidade se impõe de forma irretorquível e exige que os institutos

processuais sejam examinados sob sua ótica, sob pena de se presenciar uma delicada crise

de legitimidade do Direito Processual, decorrente do afastamento entre os instrumentos

processuais e a sociedade que deles é destinatária e à qual devem servir.

Nesse contexto, um dos institutos processuais que, a nosso sentir, merece nova

reflexão à luz dos novos parâmetros que hoje regem a ciência processual consiste na

litispendência internacional, mais especificamente a sua vedação, prevista no artigo 90 do

Código de Processo Civil em vigor, que remonta a 1973, ou seja, exatas quatro décadas

atrás.

Vejamos, guardados os estreitos limites deste trabalho, quais os principais fatores a

serem considerados ao se empreender essa nova abordagem do tema.

2. A rejeição à litispendência internacional no artigo 90 do CPC de 1973.

O Código de Processo Civil de 1973, atualmente em vigor, rechaça a existência de

litispendência internacional em seu artigo 90. Isso importa afirmar ser perfeitamente

autorizado ao jurisdicionado deflagrar ações idênticas — segundo a teoria da tríplice

identidade (tria eadem), com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de

pedir5 — perante o Poder Judiciário de Estados diversos, caso o mérito corresponda à

competência internacional concorrente (artigo 88 do CPC de 1973)6.

O teor do artigo 90 vem sendo aceito, desde a entrada em vigor do diploma

processual, com considerável tranquilidade pelos processualistas brasileiros7-

8 e ressoa,

5 Tendo em vista que o presente trabalho não se propõe a analisar os elementos da demanda e as suas

diferentes teorias, cingimo-nos, nesta sede, a adotar a clássica referência à teoria da tríplice identidade, que

consiste no critério identificador mais amplamente utilizado. 6 Tratando-se de competência internacional exclusiva do Poder Judiciário Brasileiro, contemplada no artigo

89 do CPC/1973, não há que se falar em repetição de ações em Estados diversos, visto que será competente,

com exclusividade, o Judiciário brasileiro, afastando-se a competência dos tribunais dos demais países. 7 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 52. Ed. Rio de Janeiro:

GEN Forense. 2011. p. 172. 8 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. Op. Cit. P. 344.

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igualmente em uníssono, na jurisprudência, seja do Supremo Tribunal Federal9, seja, com o

advento da Emenda Constitucional no 45/2004, do Superior Tribunal de Justiça

10.

Justifica-se o teor do artigo 90 com a (inquietante) afirmação de que ao Brasil é

“indiferente” que penda ação idêntica (“bis in idem”) perante o Judicário de outro país.

Tratar-se-ia, portanto, de um problema “dos outros”, em nada importando ou repercutindo

para nós.

Prossegue-se a justificativa reafirmando o conceito tradicional de soberania, sob a

alegação de que ao Brasil interessaria apenas reafirmar a sua soberania mediante o

prestígio à sua jurisdição nacional, por ser esta um poder estatal.

Merece destaque o seguinte e emblemático trecho de julgado do Supremo Tribunal

Federal, citando respeitável doutrina pátria, in verbis:

“Mostra-se relevante, no contexto ora em exame, a norma

inscrita no art. 90 do CPC que consagra a prevalência da

competência internacional da autoridade judiciária brasileira

sobre processos em curso no exterior ou sobre decisões já

proferidas por tribunais estrangeiros, ainda que com trânsito

em julgado, pois, enquanto não sobrevier a homologação,

pelo Supremo Tribunal Federal, do ato sentencial alienígena,

inexistirá qualquer obstáculo a que a Justiça do Brasil

conheça da mesma causa e de todas aquelas que, com ela,

guardem relação de conexidade. Neste sentido, cabe ter

presente a observação feita por NELSON NERY JUNIOR e

por ROSA MARIA ANDRADE NERY (“Código de

Processo Civil Comentado", p. 542, 4ª ed., 1999, RT):

‘Enquanto a autoridade brasileira for competente, na forma

9 STF. SEC 5778, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12/05/2000, publicado em DJ 19/05/2000 PP-00028. 10 STJ. SEC 4933/EX, Rel. Ministra ELIANA CALMON, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/12/2011, DJe

19/12/2011.

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do CPC 88 I a III e 89 I e II, e não houver homologação da

sentença estrangeira no Brasil (CF 102 I h), remanesce para o

Estado brasileiro o poder de julgar a causa já ajuizada (não se

induz litispendência), ou já julgada (não se reconhece coisa

julgada) em outro país. (...) À justiça brasileira é indiferente

que se tenha ajuizado ação em país estrangeiro, que seja

idêntica a outra que aqui tramite. O juiz brasileiro deve

ignorá-la e permitir o regular prosseguimento da ação. (...)

Mesmo que a ação já tenha sido decidida no país estrangeiro,

com trânsito em julgado, tal circunstância deve ser ignorada

pelo juiz brasileiro. Somente depois de homologada pelo STF

(CF 102 I h; CPC 483 e 484) é que a sentença estrangeira terá

eficácia no Brasil’.” (SEC 5778, Relator(a): Min. CELSO DE

MELLO, julgado em 12/05/2000, publicado em DJ

19/05/2000 PP-00028)

Lamentamos que o disposto no artigo 90 do CPC de 1973 seja praticamente

reproduzido no artigo 24 do Projeto de novo Código de Processo Civil, em tramitação11

.

Corre-se o risco de perder uma valiosa oportunidade de se admitir a litispendência

internacional em nosso ordenamento. Chama a atenção o fato de que, logo a seguir, nos

artigos 26 e 27, o Projeto curiosamente cuida da Cooperação Internacional que, a nosso

sentir, corrobora precisamente a admissão da litispendência internacional, conforme

esclareceremos ao longo deste estudo.

Parece-nos que a aparente tranquilidade com que o tema vem sendo tratado nas

últimas quatro décadas12

, tanto pela doutrina amplamente majoritária quanto pela

jurisprudência pátrias, não reflete a miríade de fatores que sobre ele converge e que o torna

um tema complexo e digno de nova reflexão, conforme pontuaremos a seguir.

11 Toma-se, aqui, em referência o texto do Projeto de novo CPC após a Emenda Aglutinativa Global aos

Projetos de Lei no 6.025, de 2005, e no 8.046, de 2010, ambos do Senado Federal. 12 O interregno de quarto décadas, para um tema flagrantemente suscetível às influências do cenário

internacional, já não representaria, por si só, um forte indício de que este merece uma nova reflexão, se

considerarmos as profundas mudanças decorrentes do fenômeno da globalização?

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3. O crescente isolacionismo da solução trazida pelo artigo 90 do CPC de 1973.

Ao se investigar o tema, constata-se, a partir das clássicas lições de Haroldo

Valladão, que, em verdade, a solução trazida pelo artigo 90 do CPC de 1973 nem sequer

reflete a tradição brasileira a respeito da litispendência internacional, mas, ao contrário,

com ela rompe13

.

Ademais de o Código de Processo Civil de 1939 não trazer disposição semelhante,

em 1928, o Brasil já aderira ao Código Bustamante, que, em seu artigo 394, admite a

litispendência internacional14

. Entende-se majoritariamente que o referido tratado

prevalece até hoje, entre os países signatários, sobre a vedação inscrita no artigo 90 do

CPC brasileiro, sendo, pois, admissível a litispendência internacional entre tais Estados15

.

A litispendência internacional também é reconhecida pelo Brasil enquanto membro

do Mercosul. O Protocolo de Las Leñas, ratificado por nosso país, admite, em seu artigo

2216

, a litispendência internacional entre seus países signatários, notadamente Argentina,

Paraguai, Uruguai, além do Brasil.

Acrescente-se que até mesmo a norma que inspirara o artigo 90 do CPC brasileiro17

,

notadamente o artigo 3º do Código de Processo Civil Italiano de 1940, foi revogada pela

13 VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. 3. 5. Ed. 1980. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.

1978. P. 143. 14 CÓDIGO BUSTAMANTE. “Artigo 394. A litispendência, por motivo de pleito em outro Estado contratante, poderá ser alegada em matéria cível, quando a sentença proferida em um deles, deva produzir no

outro os efeitos de coisa julgada.” 15 GRECO, Leonardo. “A competência internacional da justiça brasileira”. In Revista da Faculdade de

Direito de Campos. Ano VI, n. 7. Dezembro de 2005. P. 187. 16 PROTOCOLO DE LAS LEÑAS. “Artigo 22. Quando se tratar de uma sentença ou de um laudo arbitral

entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos, e que tenha o mesmo objeto de outro processo

judicial ou arbitral no Estado requerido, seu reconhecimento e sua executoriedade dependerão de que a

decisão não seja incompatível com outro pronunciamento anterior ou simultâneo proferido no Estado

requerido. Do mesmo modo não se reconhecerá nem se procederá à execução, quando se houver iniciado um

procedimento entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos e sobre o mesmo objeto, perante

qualquer autoridade jurisdicional da Parte requerida, anteriormente à apresentação da demanda perante a autoridade jurisdicional que teria pronunciado a decisão da qual haja solicitação de reconhecimento.” 17 CELLI JUNIOR, Umberto. “Litispendência internacional no Brasil e no Mercosul”. In Revista Brasileira

de Direito Processual. Belo Horizonte: Editora Fórum. Ano 19, n. 76, outubro a dezembro de 2011. P. 220.

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Lei no 218 de 1995. Este diploma reformou o sistema italiano de Direito Internacional

Privado, passando a admitir a litispendência internacional em seu artigo 7º18

.

O isolacionismo da solução contemplada no CPC brasileiro mostra-se flagrante ao se

comparar o nosso ordenamento jurídico com aquele de países como Alemanha, Áustria,

França e Suíça, além da Itália, conforme destacado, todos a admitir a litispendência

internacional19-20

.

A litispendência internacional é tradicionalmente admitida pela União Europeia.

A Convenção de Bruxelas de 1968, em seu artigo 2121

, dispõe que o tribunal do

Estado-membro perante o qual tenha sido ajuizada ação idêntica em segundo lugar a

suspenda até que o tribunal do outro Estado-membro examine a sua própria competência.

O Regulamento (CE) no 44/2001, que trata da competência, do reconhecimento e da

execução de decisões em matéria civil e comercial, igualmente admite, no artigo 2722

, a

litispendência internacional entre os Estados-membros da União Europeia.

18 Lei Italiana no 218/1995 “Art. 7. Pendenza di un processo straniero. 1. Quando, nel corso del giudizio, sia

eccepita la previa pendenza tra le stesse parti di domanda avente il medesimo oggetto e il medesimo titolo

dinanzi a un giudice straniero, il giudice italiano, se ritiene che il provvedimento straniero possa produrre

effetto per l'ordinamento italiano, sospende il giudizio. Se il giudice straniero declina la propria giurisdizione

o se il provvedimento straniero non è riconosciuto nell'ordinamento italiano, il giudizio in Italia prosegue,

previa riassunzione ad istanza della parte interessata. 2. La pendenza della causa innanzi al giudice straniero

si determina secondo la legge dello Stato in cui il processo si svolge. 3. Nel caso di pregiudizialità di una

causa straniera, il giudice italiano può sospendere il processo se ritiene che il provvedimento straniero possa

produrre effetti per l'ordinamento italiano.” 19 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. Cit. Merece destaque a seguinte passagem, in verbis: “Essa mudança

profunda trazida pela Lei no 218/1995, que põe a Itália em sintonia com a inelutável necessidade do mundo

contemporâneo de crescente cooperação judicial entre os países, deveria servir de reflexão para o legislador brasileiro, tendo em vista o fato de que o art. 90 do CPC/73, que veda a litispendência internacional, como se

verá mais adiante, é cópia fiel das revogadas disposições do antigo Código de Processo Civil Italiano. Vale

notar também que países como a Alemanha e a Áustria também aceitam a exceção de litispendência

internacional no processo, ‘não diferenciando se uma primeira ação já é pendente no país ou no estrangeiro’.

Na Suíça, admite-se a ‘litispendência internacional tão-somente quando existam expectativas de que o juiz

alienígena profira decisão dentro de um prazo razoável’.” P. 225. 20 PASSOS, Marcos Fernandes. “Breves comentários acerca de competência e de litispendência

internacionais”. In Revista SJRJ. Rio de Janeiro, v. 31. Agosto 2011. pp. 59-73. 21 Convenção de Bruxelas. “Artigo 21. Quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e

entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados Contratantes, o

tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar.Quando estiver

estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal

declarase incompetente em favor daquele.”

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Recentemente, foi editado o Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12/12/2012, que

alterou o citado Regulamento no 44/2001 e que será aplicado a partir de 10/01/2015, o qual

dispõe, em seu artigo 33º23

, que o tribunal do Estado-membro pode suspender, inclusive de

ofício, um processo de sua competência internacional concorrente, caso seja previsível que

o tribunal do país terceiro profira decisão passível de ser reconhecida e executada

internamente em seu país e a suspensão seja necessária para a correta administração da

justiça.

A referida norma dispõe que o tribunal do Estado-membro pode dar prosseguimento

ao processo a qualquer momento se (a) o tribunal do país terceiro tiver suspendido ou

encerrado a ação perante si ajuizada; (b) se o tribunal do Estado-membro considerar

improvável que a ação em curso perante tribunal do país terceiro seja concluída em um

prazo razoável; ou (c) for necessário dar prosseguimento ao processo, internamente, para

garantir a correta administração da justiça.

Por fim, o artigo 33º autoriza que o tribunal do Estado-membro decrete a extinção da

ação ajuizada internamente, se o processo instaurado perante o tribunal do país terceiro

tiver sido concluído e resultar em uma decisão passível de reconhecimento e de execução

nesse Estado-membro.

22 Regulamento (CE) no 44/2001 “Artigo 27.1. Quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de

pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados-Membros, o

tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja

estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar. 2. Quando estiver

estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal

declara-se incompetente em favor daquele.” 23 Regulamento (UE) nº 1215/2012 “Artigo 33o. 1. Se a competência se basear nos artigos 4o ,7o, 8o ou 9o e estiver pendente uma ação num tribunal de um país terceiro no momento em que é demandado o

tribunal de um Estado-Membro numa ação com a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes que a

ação no tribunal do país terceiro, o tribunal do Estado-Membro pode suspender a instância se: a) For

previsível que o tribunal do país terceiro profira uma decisão passível de ser reconhecida e,

consoante os casos, executada no Estado-Membro em causa; e b) O tribunal do Estado-Membro

estiver convencido de que a suspensão da instância é necessária para a correta administração da

justiça. 2. O tribunal do Estado-Membro pode dar continuação ao processo a qualquer momento se: a)

A instância no tribunal do país terceiro tiver sido suspensa ou encerrada; b) O tribunal do Estado-

Membro considerar improvável que a ação no tribunal do país terceiro se conclua num prazo razoável; ou

c) For necessário dar continuação ao processo para garantir a correta administração da justiça. 3. O

tribunal do Estado-Membro encerra a instância se a ação no tribunal do país terceiro tiver sido concluída e resultar numa decisão passível de reconhecimento e, se for caso disso, de execução nesse

Estado-Membro. 4. O tribunal do Estado-Membro aplica o presente artigo a pedido de qualquer das

partes ou, caso a lei nacional o permita, oficiosamente.”

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Constata-se, assim, que a União Europeia, que se encontra na proa do moderno

pensamento jurídico-processual, atualmente admite a litispendência internacional

envolvendo países terceiros, não apenas entre os seus Estados-membros.

O Regulamento (UE) nº 1215/2012 afigura-se, de fato, mais vanguardista e elogiável

do que se poderia, à primeira vista, inferir.

Merece destaque que a norma comunitária reconhece que a noção de “correta

administração da justiça” deve envolver não apenas elementos internos de um dado país ou

bloco regional, mas sim todos os seus desdobramentos, ainda que perante países terceiros.

Ou seja, não se pode ser categórica e peremptoriamente “indiferente” à repetição de uma

mesma ação, com a movimentação estéril e não raro desleal da máquina judiciária, pelo

simples fato de que esta fora ajuizada perante o Poder Judiciário de outro país.

O mencionado Regulamento recomenda que o magistrado avalie, in casu, a

probabilidade de que seja proferida decisão pelo tribunal estrangeiro que possa vir a ser

executada internamente. Trata-se de exigir do magistrado contemporâneo uma conduta

compatível com a realidade à sua volta. Se os litígios oferecem, cada vez mais, contornos

transnacionais, é preciso que o magistrado passe a lidar e a considerar seriamente esses

fatores.

Novos desafios à correta administração da justiça são impostos pela sociedade

globalizada, dentre eles a maior probabilidade de que sejam propostas ações idênticas

perante Estados diversos. E não se mostra uma postura sadia e consciente simplesmente

ignorar essa realidade, supondo que tal postura traria menos inconvenientes ao Judiciário

nacional. Ledo engano.

Primo occuli, podemos pensar que seria mais trabalhoso ao magistrado nacional

proceder à avaliação prevista no Regulamento (UE) nº 1215/2012 do que fechar os olhos

para a questão e permitir, invariavelmente, o prosseguimento do processo.

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No entanto, essa suposição não resiste a um olhar um pouco mais detido.

Com o substancial aumento do número de litígios transnacionais, em decorrência do

incremento das relações entre empresas e cidadãos de diferentes países, forçoso convir que

o ajuizamento de ações repetidas em diferentes países tende igualmente a se avolumar.

Portanto, o que outrora poderia seria considerado uma repetição ocasional e rara, que mais

valesse a pena ser ignorada, atualmente deve ser levada a sério.

Do contrário, o Poder Judiciário de cada país tende a, cada vez mais, deixar-se

movimentar para julgar uma ação que já se encontra em curso perante o Judiciário de outro

país (concorrentemente competente sob o critério internacional). A movimentação

(desnecessária) do Poder Judiciário na atualidade é um verdadeiro luxo ao qual nenhum, ou

quase nenhum, país do mundo pode se dar, considerando-se as queixas e as inúmeras

propostas para se contornar a sobrecarga e a demora na solução dos processos judiciais em

diferentes partes do globo. Prova de que esse problema aflige inclusive países europeus

reside nas reiteradas condenações proferidas pela Corte Europeia de Direitos Humanos em

virtude da excessiva demora dos processos judiciais.

Ora, se o volume de litígios transnacionais se agiganta, fazendo surgir novos desafios

e também mazelas para os tribunais nacionais, como é o caso da repetição de ações em

diferentes países, os tribunais devem igualmente acompanhar essas mudanças, sobre elas

refletindo e reagindo. Isso implica em avaliar seriamente a litispendência internacional,

verificando se, em cada caso concreto, realmente se justifica a movimentação da máquina

judiciária de dois Estados diversos.

Age com particular acerto a União Europeia ao empreender uma visão global da

Administração da Justiça.

De fato, no mundo globalizado contemporâneo, do qual emergem litígios que podem,

em tese, ser ajuizados em diferentes países, trata-se não apenas de uma postura afinada

com os princípios processuais fundamentais, mas, mais pragmaticamente, quase de uma

questão de sobrevivência que os tribunais nacionais se enxerguem mutuamente como

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exercentes todos de uma mesma função, a função jurisdicional, e desenvolvam um espírito

colaborativo e coordenado.

No cenário internacional de nossos dias, ignorar os desdobramentos internacionais

por supor tratar-se de um problema “dos outros” poderá acarretar surpreendentes

consequências internas, como movimentação desnecessária do Judiciário local, já

assoberbado, chancelamento de condutas desleais das partes e enfraquecimento da

cooperação jurídica internacional, que funciona em um sistema de mão dupla entre os

países.

Atualmente, muito se fala sobre coooperação jurídica internacional. Pois bem, a

litispendência internacional é, essencialmente, questão de cooperação jurídica

internacional24

.

Desenvolver um espírito cooperativo não é decantar a sua beleza teórica, mas, ao

revés, adotar práticas reiteradas que o implementem e desenvolvam na prática. A

cooperação jurídica internacional exige uma mudança de postura prática na condução e na

solução dos litígios, que leve em conta, e a sério, a existência de tribunais estrangeiros

concorrentemente competentes e os veja como colaboradores para a adequada entrega da

prestação jurisdicional ao cidadão. Sublinhe-se que, em Direito Processual, a prestação

jurisdicional é referida sempre no singular, não no plural. Falar em “prestações

jurisdicionais” revela o desafino de tais palavras e descortina as suas anomalia e

excepcionalidade.

Verifica-se, assim, que o disposto no artigo 90 do Código de Processo Civil

brasileiro de 1973, ao rejeitar a litispendência internacional, já destoava, à época da edição

desse diploma, da tradição nacional, e o decorrer dessas quatro décadas apenas demonstrou

o quão isolada tal disposição passou a ser, seja se comparada com os tratados assinados

pelo Brasil, seja com os ordenamentos jurídicos de outros países.

24 Nesse sentido, PASSOS, Marcos Fernandes. Op. cit. P. 68.

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É por tais razões que Umberto Celli Junior afirma, com razão, que o artigo 90 do

CPC brasileiro, com suas “anacrônicas disposições”, “é incompatível com a atual projeção

do país em um contexto irreversível de globalização e interdependência econômica e

comercial entre os países”25

.

4. Regressando às origens: o instituto da litispendência e a sua dupla finalidade.

De novo e mais uma vez, ressaltamos nesta sede o que vimos propugnando alhures:

os litígios com feição que extrapolam os limites políticos de um Estado não podem ser

relegados aos porões do Direito Processual. Ou melhor: o edifício do Direito Processual

contemporâneo não mais admite porões. Todos os seus institutos devem ser iluminados e

arejados pelos princípios fundamentais processuais, especialmente pelo compromisso

último dessa ciência com a efetividade do processo, a exigir que todos os seus institutos

processuais estejam permanentemente comprometidos com as suas finalidades, ou seja,

que sirvam adequada e eficazmente aos propósitos para os quais foram criados.

Os institutos processuais não existem por existir, como figuras teoricamente belas e

meramente decorativas, mas com finalidades precisas a serem perquiridas, com funções

definidas que os colocam como engrenagens à serviço do concreto alcance do fim último

da ciência processual: garantir o acesso à justiça com efetividade.

E não existem “processos de segunda categoria”, pois isso significaria admitir a

existência, em pleno século XXI, de “jurisdicionados de segunda categoria”, com

inadmissível quebra de isonomia; todos os processos instaurados devem ser devidamente

considerados e inseridos como objeto de preocupação e exame da ciência processual.

Os litígios transnacionais não têm como ser relegados a um suposto “segundo

patamar” ou ser escondidos nos (inadmissíveis e, espera-se, inexistentes) porões da ciência

processual, à margem dos compromissos acima indicados. Essa postura já seria

insustentável caso tais litígios representassem um volume diminuto e, agora mais do que

25 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. cit. p. 232.

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nunca, com o grande aumento de seu volume nas últimas décadas, salta aos olhos a sua

total inviabilidade.

Diga-se diretamente: deixar de render aos litígios transnacionais as mesmas

preocupações que rendemos aos litígios essencialmente internos representa fazer injustiça a

um número cada vez maior de jurisdicionados.

Portanto, também aqui precisamos dar um passo atrás e voltar às origens do instituto

da litispendência.

As duas razões primordiais pelas quais o instituto da litispendência foi concebido

são: (a) economia processual, evitando o “desperdício de energia jurisdicional que

derivaria do trato da mesma causa por parte de vários juízes”; e (b) evitar soluções

contraditórias26

.

Pois bem. As duas finalidades acima descritas não estão infensas a vulnerações

quando se trate de litígios transnacionais.

Há sim movimentação desnecessária do Poder Judiciário brasileiro quando damos

prosseguimento a uma ação já em curso alhures, que verse sobre matéria de nossa

competência internacional concorrente e haja elementos indicativos de que a decisão

estrangeira reúna condições de ser reconhecida e executada internamente em nosso país.

Podemos até preferir — como vimos preferindo — ignorar o fato de que, rechaçando a

litispendência internacional, acabamos por contribuir para o ainda maior assoberbamento

de nosso Judiciário, mas essa é uma realidade concreta; não é por fingirmos não vê-la que

ela deixa de existir.

Opta-se, assim, por prosseguir com uma fase de conhecimento, que demanda do juiz

brasileiro o dispêndio de longos anos e de muitas energias, paralelamente a esforço

equivalente que é empreendido por magistrado de outro país, quando seria autorizado ao

26 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. Op. cit. P. 282.

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Judiciário brasileiro intervir nesse litígio apenas em sua fase final, para fins de

reconhecimento e execução da decisão estrangeira.

Entendemos que a melhor solução consiste em, adotando-se os prudentes critérios

traçados no Regulamento no 1215/2012 da União Europeia, admitir que o magistrado

brasileiro, verificando que a ação de sua competência internacional concorrente é idêntica

a outra ajuizada anteriormente perante o Judiciário de outro país, empreenda um exame

perfunctório da causa estrangeira, verificando a probabilidade de que, naquela ação, seja

proferida decisão passível de ser reconhecida e executada internamente no Brasil. Em caso

afirmativo, recomenda-se a suspensão da ação em curso no Brasil, a bem da correta

administração da justiça.

De fato, o magistrado brasileiro empreenderá uma verificação prévia acerca do

futuro juízo de delibação a ser exercido pelo Superior Tribunal de Justiça. E consideramos

não haver qualquer impedimento quanto a esse salutar expediente. Não estará o magistrado

brasileiro usurpando a competência do E. STJ e a sua avaliação, por óbvio, não será

vinculante para aquele Tribunal Superior. Esse prudente exame servirá apenas para que o

magistrado brasileiro possa exercer corretamente a sua competência internacional

concorrente, bem gerindo o processo perante si ajuizado. Tal avaliação será fundamental

para que o magistrado “a quo” decida se deve ou não suspender a ação brasileira.

Candido Rangel Dinamarco admite que o magistrado brasileiro proceda a uma

avaliação prévia acerca do futuro juízo de delibação a ser exercido pelo STJ, a fim de

suspender a ação brasileira em curso, desde que já tenha sido proferida decisão transitada

em julgado nos autos do processo estrangeiro27

. Ou seja, o mencionado processualista

admite que o magistrado de instância inferior realize tal exame prévio, com o que

concordamos inteiramente.

No entanto, divergimos de tal posicionamento em um aspecto. Entendemos que tal

avaliação pode e deve ser feita não apenas quando já haja decisão estrangeira transitada em

julgado, portanto apta a ser objeto de ação de homologação de sentença estrangeira perante

27 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. Op. Cit. P. 346.

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o STJ. Antes disso, estando pendentes duas ações idênticas, uma perante o Poder Judiciário

brasileiro e outra perante o estrangeiro, é de todo recomendável que o magistrado

brasileiro, verificando que a ação em curso em nosso país foi ajuizada posteriormente,

proceda a tal verificação.

Registremos que a posição defendida por Dinamarco já se mostra mais avançada do

que aquela sustentada pelas doutrina e jurisprudência majoritárias de nosso país, pois, para

elas, prevalece — a todo custo e ao arrepio de quaisquer outros valores ou princípios

envolvidos — a competência internacional concorrente brasileira, ao argumento antes

destacado de pura preservação da soberania, sequer se admitindo que o magistrado pátrio

cogite suspender o processo em curso no Brasil, independentemente da fase em que se

encontre o processo estrangeiro, vale dizer, ainda que haja decisão estrangeira transitada

em julgado.

Segundo o entendimento majoritário, o STJ deve, inclusive, negar homologação a

uma decisão estrangeira transitada em julgado, ainda que ela reúna todos os requisitos

legais pertinentes, caso tenha sido proferida uma decisão pelo Judiciário brasileiro, mesmo

que seja uma simples decisão acautelatória28

-29

.

Portanto, pugnamos por entendimento diverso daquele hoje prevalecente em nosso

país, pois consideramos recomendável que o Poder Judiciário brasileiro adote uma postura

cooperativa e coordenada em relação ao Poder Judiciário estrangeiro, mediante uma

28 “SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. ACORDO DE DIVÓRCIO E GUARDA DOS FILHOS

MENORES. SENTENÇA PROFERIDA PELA JUSTIÇA BRASILEIRA EM RELAÇÃO À GUARDA.

IMPOSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO NESSE PONTO. PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. 1. De acordo com o art. 35 do ECA, a guarda poderá ser revogada a qualquer tempo por meio de decisão judicial

fundamentada, ouvido o Ministério Público. 2. A existência de sentença da Justiça brasileira sobre a guarda

dos filhos menores impossibilita a homologação do provimento judicial estrangeiro que lhe contrarie, mesmo

que seja prolatada após o trânsito em julgado da decisão a qual se pretende homologar. Nesses casos, deve-se

preservar a soberania nacional. Precedentes. 3. Devidamente apresentada a documentação exigida e

inexistindo óbices na ordem jurídica interna, é possível a homologação da sentença estrangeira apenas quanto

à dissolução da sociedade conjugal. 4. Pedido de homologação de sentença estrangeira deferido em parte.”

STJ. SEC 4.830/EX, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/09/2013, DJe

03/10/2013. 29 HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. VISITAÇÃO E HOSPEDAGEM DE FILHO

BRASILEIRO. TEMA APRECIADO PELA JUSTIÇA PÁTRIA.- Não se pode homologar sentença estrangeira envolvendo questão decidida pela Justiça brasileira. Nada importa a circunstância de essa decisão

brasileira não haver feito coisa julgada. STJ. SEC .819/FR, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE

BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 30/06/2006, DJ 14/08/2006, p. 247.

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prudente avaliação do caso concreto, a fim de que sejam bem ponderados todos os valores

e princípios envolvidos no litígio em questão.

Essa avaliação deve ser feita caso a caso, segundo as peculiaridades concretas, mas,

em tese, pode e deve ser feita, a fim de evitar um delicado e censurável “bis in idem” entre

ação ajuizada no Brasil e outra idêntica ajuizada no exterior e que possa (e deva) vir apenas

a ser executada em nosso país.

Antes que se pense que a admissão da litispendência internacional feriria de morte a

higidez dos interesses nacionais, recordem-se dois pontos. A uma, cogita-se da

litispendência internacional apenas quanto a matérias de competência internacional

concorrente do Brasil (art. 88, CPC), não havendo que se falar quanto a matérias de sua

competência internacional exclusiva (art. 89, CPC). Portanto, apenas seria possível pensar

na ocorrência de litispendência internacional quanto a ações estrangeiras que versem sobre

matéria que, segundo a própria legislação brasileira, também poderiam ser julgadas por

tribunais alienígenas.

A duas, o juízo de delibação exercido pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I,

“i”, CF/1988) tem por escopo justamente evitar que sejam executadas em nosso país

decisões estrangeiras que afrontem a ordem pública e a soberania nacional (requisitos

negativos)30

.

Portanto, antes de reconhecer a existência de litispendência internacional e suspender

ou extinguir o processo instaurado perante o nosso Poder Judiciário, o magistrado

brasileiro verificará se o tribunal estrangeiro é concorrentemente competente para o

julgamento do pedido e se eventual decisão proferida por este provavelmente poderá ser

executada em nosso país, por não violar a ordem pública e a soberania nacional. Não se

trata, pois, de um “cheque em branco”, mas de uma prudente análise do caso concreto

empreendida pelo magistrado competente para o exame da causa em nosso país.

30 A respeito dos requisitos para a homologação de decisões estrangeiras: HILL, Flávia Pereira. A

antecipação da tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Rio de Janeiro: GZ Editora.

2010. pp. 43-62.

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Em linhas gerais, a mesma lógica e os mesmos critérios que norteiam a nossa postura

com vistas a admitir a execução de uma decisão estrangeira no Brasil pautarão o

reconhecimento de litispendência no caso concreto. Se provavelmente uma dada decisão

estrangeira poderá ser executada em nosso país, então, emerge a desnecessidade de que

prossiga o curso de uma ação idêntica deflagrada perante o Judiciário brasileiro.

A afronta, em tais circunstâncias, da primeira finalidade do instituto da

litispendência, notadamente a economia processual, é flagrante. Trata-se de um extremo

luxo que claramente não pode ser suportado pelo nosso Poder Judiciário, que luta

diuturnamente contra a sua sobrecarga de trabalho e a duração excessiva dos processos,

com a implementação de reformas processuais, mecanismos de filtragem de recursos e

adoção dos precedentes, reestruturação de seus órgãos, estipulação de prazos e das

chamadas “Metas” para a solução das causas, dentre outras variadas medidas.

Nem se diga que mais vale repetir, no Brasil, o julgamento da causa instaurada

perante o Judiciário de outro país, mesmo presentes os elementos acima indicados, em pura

homenagem e reafirmação do conceito tradicional de soberania nacional.

Data venia, não vislumbramos como a repetição pura e simples do julgamento de

uma causa pelo Judiciário brasileiro, em afronta à economia processual e à boa

administração da justiça, possa significar vantagem real para nosso país. Mormente porque

afronta à soberania nacional tudo indica que a solução trazida pelo Judiciário estrangeiro

não representará, já que este consiste justamente em um dos requisitos negativos do juízo

de delibação, que cumpre ao magistrado brasileiro analisar perfunctoriamente antes de

reconhecer a litispendência internacional.

A admissão da instauração concomitante de uma mesma ação perante o Poder

Judicário de dois países concorrentemente competentes deve ser algo excepcional em

nossos dias, ancorada em fundamentos consistentes e de elevada estatura. Essa postura

voltada à livre admissão da repetição de ações, em si mesma, não se presta em absoluto a

reafirmar ou fortalecer a soberania nacional.

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Rememore-se, em brevíssimas palavras, o que tivemos a oportunidade de

desenvolver com mais vagar em outras paragens31

-32

. Atualmente, em uma sociedade

intensamente ligada no âmbito internacional, o conceito de soberania adotou novas

roupagens, passando cada país a reconhecer que não está isolado no mundo e que depende,

cada vez mais, de relações saudáveis e cooperativas com os outros Estados. Não se afirma

isso com um tom ingênuo, mas sim em reconhecimento a um “espírito de sobrevivência e

autopreservação” dos países no cenário atual. Por conseguinte, afirmar que a litispendência

internacional deva ser peremptoriamente rechaçada como pura afirmação do que

erroneamente se intitula soberania nacional consiste, a nosso sentir, em um desserviço para

as relações internacionais e para a cooperação jurídica internacional envolvendo o nosso

país.

A segunda finalidade do instituto da litispendência, qual seja, evitar decisões

contraditórias, também se mantém vulnerável quanto aos litígios transnacionais, em

decorrência da absoluta vedação à litispendência internacional.

Instaurando-se ações idênticas paralelamente perante o Poder Judiciário de países

concorrentemente competentes, há o risco concreto de que sejam proferidas decisões

judiciais contraditórias entre si. E, conforme analisado acima, em circunstâncias tais que a

decisão estrangeira reuniria condições de ser executada em nosso país.

Nem se argumente que o simples fato de uma decisão estrangeira poder vir a

solucionar diversamente um dado litígio consista em fundamento bastante para justificar

que ela deva ser simplesmente ignorada.

Valhamo-nos do raciocínio empreendido para fins de exercício do juízo de delibação.

Neste, não cabe ao Judiciário brasileiro reexaminar o mérito da decisão estrangeira, para

fins de avaliar se, caso a pretensão fosse solucionada em nosso país, a solução teria sido a

mesma dispensada alhures. Incumbe ao Judiciário de nosso país verificar apenas se o

31 HILL, Flávia Pereira. A antecipação da tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Op.

Cit. pp. 93-97. 32 HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como forma de acesso à justiça no século XXI:

os reflexos e desafios da sociedade contemporânea para o Direito Processual Civil e a concepção de um

Título Executivo Transnacional. Rio de Janeiro: GZ Editora. 2013. Especialmente itens 4.3 e 4.4, pp. 60-73.

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tribunal estrangeiro é competente, se a decisão alienígena viola a ordem pública e a

soberania nacional, além da presença de outros requisitos legais, como citação válida. Não

se imiscui o Superior Tribunal de Justiça no mérito da decisão estrangeira. Esse é

precisamente um dos pilares da cooperação jurídica internacional.

Reafirme-se que a execução de uma decisão estrangeira em nosso país não pressupõe

a avaliação do acerto da solução trazida, mas sim da observância de determinadas regras

precisas e da não violação da soberania nacional e da ordem pública.

A se admitir o rejulgamento da causa pelo Judiciário brasileiro como requisito para a

sua execução internamente, então, genuína cooperação não haverá. Restará demonstrada,

em seu lugar, a profunda desconfiança com o Judiciário estrangeiro.

A própria essência do instituto da litispendência se ancora na possibilidade de serem

proferidas decisões contraditórias em cada qual das ações ajuizadas, ou seja, é ínsita a esse

instituto a potencialidade de soluções díspares entre si. E essa possibilidade está presente

tanto em litígios internos, que envolvem a mobilização de dois órgãos jurisdicionais

integrantes do Poder Judiciário brasileiro, quanto transnacionais, deflagrando a

movimentação do Poder Judiciário de Estados diversos. O risco é essencialmente o mesmo

e, portanto, deve ser igualmente contornado em ambas as hipóteses.

O proferimento de decisões contraditórias, especialmente quando a decisão

estrangeira possa vir a ser executada no Brasil, conforme destacamos antes, fragiliza o

Poder Judiciário como um todo às vistas do jurisdicionado. Não nos iludamos ao pensar

que haveria uma visão hermética e estanque por parte da sociedade quanto aos magistrados

de tal ou qual país. A prestação jurisdicional a ser entregue é uma só; ou esse serviço é

prestado a contento, com efetividade, coerência e celeridade, ou caem por terra tais

principais escopos da ciência processual, para os quais não há carimbos em passaportes.

Conclui-se, assim, que as duas finalidades que justificam a concepção do instituto da

litispendência, quais sejam, economia processual e afastamento de possíveis decisões

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contraditórias, estão presentes também na repetição de ações perante o Poder Judiciário de

países diversos.

Mostra-se, pois, de todo recomendável aplicar este instituto também aos litígios

transnacionais, a bem das duas finalidades antes destacadas. O fato de uma das ações

idênticas ter sido deflagrada perante o Poder Judiciário de outro país não é suficiente para

afastar a perpetração dos riscos antes apontados.

Além disso, consiste em raciocínio falacioso e equivocado supor que a inadmissão da

litispendência internacional não traria consequências desfavoráveis para o Poder Judiciário

de nosso país, eis que a rejeição da litispendência internacional ocasionará a desnecessária

movimentação de nossa máquina judiciária, sobrecarregando-a ainda mais, e estará

presente o risco de serem proferidas decisões contraditórias acerca da mesma pretensão.

5. Os princípios fundamentais processuais, a boa fé e o abuso do direito de ação.

Uma das características que o Direito Processual vem apresentando nesse novo

milênio consiste na valorização dos princípios fundamentais processuais. Os mais diversos

países do mundo passam a sustentar a ciência processual sobre os mesmos princípios

fundamentais, especialmente o acesso à justiça, a efetividade, a duração razoável do

processo, o contraditório e a boa fé.

Como resultado, verifica-se que, embora haja diferenças nos procedimentos adotados

em diferentes ordenamentos nacionais, essencialmente, todos visam a traduzir e aplicar os

mesmos princípios fundamentais processuais. Essa identidade quanto à essência do Direito

Processual, ou seja, quanto aos escopos em razão dos quais os intrumentos processuais são

criados e utilizados, propicia uma aproximação entre os países e fomenta o diálogo e a

cooperação jurídica internacional entre eles. Facilita-se, assim, uma visão coordenada entre

os desdobramentos processuais perante diferentes Estados e, de igual modo, a circulação

de decisões judiciais no âmbito internacional33

.

33 Para maior aprofundamento do tema, HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como

forma de acesso à justiça no século XXI: os reflexos e desafios da sociedade contemporânea para o Direito

Processual Civil e a concepção de um Título Executivo Transnacional. Op. cit.

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Nesse contexto, a categórica rejeição do instituto da litispendência internacional,

prevista no artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, destoa dessa nova

conformação do Direito Processual no século XXI34

.

A aproximação dos ordenamentos jurídicos em virtude de sua atração pelos

princípios fundamentais se presta a fomentar e facilitar a cooperação jurídica internacional

e legitimar uma nova visão crítica em torno dos institutos processuais.

Nesse contexto, a litispendência internacional deve ser enfocada também sob o

prisma dos princípios fundamentais, como mecanismo hábil a concretizar o acesso à

justiça, a economia, a celeridade, a efetividade e, de igual modo, a lealdade processual35

.

Não nos iludamos ao pensar que a fragilidade da cooperação jurídica internacional e

de uma visão colaborativa entre o Poder Judiciário de diferentes países não possa ser

utilizada maliciosamente pelo jurisdicionado como forma de alcançar escopos não

chancelados pelo Direito Processual.

Em outras palavras, as arestas ainda existentes na cooperação jurídica internacional

podem servir eficazmente à conduta desleal das partes.

Analisemos a hipótese mais comum, em que, tendo sido a parte ré regularmente

citada na ação estrangeira, mesmo assim, opta por instaurar ação idêntica perante o

Judiciário brasileiro — valendo-se do fato de a competência internacional, segundo nossas

regras, ser concorrente —, movimentando paralelamente a máquina judiciária de dois

países, perante os quais serão observados essencialmente os mesmos princípios

fundamentais processuais, ainda que sob as vestes de procedimentos diversos.

À luz dos princípios que regem a ciência processual na atualidade, dentre os quais a

economia processual, a cooperação jurídica internacional e o acesso à justiça, a

34 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. Cit. p. 227. 35 Esta é uma preocupação crescente por parte de juristas que se ocupam do tema. CELLI JUNIOR, Umberto.

Op. Cit. p. 228.

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movimentação concomitante do Judiciário de dois países com vistas a obter duas decisões

judiciais acerca da mesma pretensão não pode mais ser vista com serena naturalidade. Essa

postura deliberada revela, quando menos, uma conduta descompromissada e de duvidosa

lealdade da parte interessada que, ciente da primeira ação, ajuíza outra idêntica a seguir. O

Direito Processual da atualidade, imerso em uma sociedade globalizada, deve ser visto em

sua inteireza, ou seja, abarcando todos os desdobramentos, inclusive aqueles perante países

diversos.

É preciso reconhecer que movimentar duplamente a máquina judiciária, seja de um

mesmo país, seja de países diversos, consiste em conduta que merece se analisada sob o

prisma da boa fé. Caso desvirtue as finalidades do direito de ação e acabe por representar

um fator de instabilidade e de risco à boa administração da justiça, deve ser coibida e

censurada.

Ignorar tal conduta sistematicamente irá, em última análise, fomentar a sua

proliferação, transmitindo ao jurisdicionado a errônea noção de que pode se valer da

competência internacional concorrente com vistas a impor à parte contrária defender-se em

dois processos e, ao final, ainda sujeitá-la à decisão que mais agrada ao litigante contumaz.

É preciso ter em mente que, em um processo contencioso, há partes com interesses

contrapostos. Portanto, se uma delas deflagra, deliberadamente, duas ações idênticas, à

outra será imposto defender-se em ambas e, mais grave, em países diversos, com inegáveis

ônus. Assim sendo, a conduta das partes envolvidas em litígios transnacionais deve ser

analisada com seriedade pelos magistrados envolvidos, pois o esgarçamento da boa fé

ocasionará não apenas consequências nefastas para o Poder Judiciário, mas também para a

contraparte.

Do mesmo modo que deve ser garantido ao jurisdicionado pertencente a essa

sociedade globalizada o mais amplo acesso à justiça, independentemente dos limites

políticos dos Estados, dele deve ser cobrada uma postura leal e responsável nessa mesma

dimensão. Trata-se de um cidadão que exerce um novo papel, em uma sociedade com

novos contornos, e isso implica direitos e deveres compatíveis com essa nova realidade.

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Portanto, neste novo cenário, a deflagração de um “bis in idem” perante países

diversos pode refletir um abuso do direito de ação da parte que lhe deu causa.

O fato de um litígio dispor de contornos transnacionais não pode representar um

“salvo-conduto” para que as partes envolvidas se desvencilhem de uma postura proba e

leal.

Compete aos tribunais dos diferentes países manter-se atentos a esse novo panorama,

valendo-se dos institutos processuais já existentes, como é o caso da litispendência, e

aplicando-os adequadamente também aos litígios transnacionais.

Um elogiável aceno nesse sentido foi dado pelo Superior Tribunal de Justiça. O

referido Tribunal Superior brasileiro rechaçou o comportamento da parte que, em

competência internacional concorrente, havia ajuizado ação perante tribunal estrangeiro,

vindo a transitar em julgado a sentença proferida alhures. Ao depois, a mesma parte

ajuizou ação idêntica no Brasil e ainda pleiteou liminar junto ao Superior Tribunal de

Justiça com vistas a obstar atos executivos da parte contrária com base naquela sentença

estrangeira. O STJ, em decisão lapidar, reconheceu tratar-se de comportamento

contraditório da parte, violador da boa fé objetiva, que se estende aos atos processuais36

.

36 Processo civil. Medida cautelar visando a atribuir efeito suspensivo a recurso especial. Ação proposta pela

requerente, perante justiça estrangeira. Improcedência do pedido e trânsito em julgado da decisão. Repetição

do pedido, mediante ação formulada perante a Justiça Brasileira. Extinção do processo, sem resolução do

mérito, pelo TJ/RJ, com fundamento na ausência de jurisdição brasileira para a causa.

Impossibilidade.Pedido de medida liminar para a suspensão dos atos coercitivos a serem tomados pela parte

que sagrou-se vitoriosa na ação julgada perante o Tribunal estrangeiro. Indeferimento. Comportamento contraditório da parte violador do princípio da boa-fé objetiva, extensível aos atos processuais.- É condição

para a eficácia de uma sentença estrangeira a sua homologação pelo STJ. Assim, não se pode declinar da

competência internacional para o julgamento de uma causa com fundamento na mera existência de trânsito

em julgado da mesma ação, no estrangeiro.Essa postura implicaria a aplicação dos princípios do 'formum

shopping' e 'forum non conveniens' que, apesar de sua coerente formulação em países estrangeiros, não

encontra respaldo nas regras processuais brasileiras.- A propositura, no Brasil, da mesma ação proposta

perante Tribunal estrangeiro, porém, consubstancia comportamento contraditório da parte. Do mesmo modo

que, no direito civil, o comportamento contraditório implica violação do princípio da boa-fé objetiva, é

possível também imaginar, ao menos num plano inicial de raciocínio, a violação do mesmo princípio no

processo civil. O deferimento de medida liminar tendente a suspender todos os atos para a execução da

sentença estrangeira, portanto, implicaria privilegiar o comportamento contraditório, em violação do referido princípio da boa-fé.Medida liminar indeferida e processo extinto sem resolução de mérito.(STJ. MC

15.398/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/04/2009, DJe

23/04/2009). Grifou-se.

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Entendemos que essa é a perspectiva sob a qual deve ser analisada, na

contemporaneidade, a temática objeto do presente estudo.

Sendo o jurisdicionado membro de uma sociedade globalizada, o Direito Processual

contemporâneo a ele destina direitos e deveres processuais em âmbito transnacional.

Enxergar tais e quais sob uma ótica estritamente interna e nacional consiste em visão

míope e fragmentada, apta a perpetrar injustiças e chancelar deslealdades.

6. Conclusão.

O Direito Processual contemporâneo encontra-se premido por novos influxos, devido

ao prestígio aos princípios fundamentais processuais em diferentes partes do mundo e à

nova conformação da sociedade, marcadamente globalizada.

Na atual fase da ciência processual, dita instrumentalista ou teleológica, é esperado

dos processualistas o desenvolvimento de uma visão crítica permanente a respeito dos

institutos processuais, estando atentos para que estes sempre atendam às expectativas do

jurisdicionado de nossa época e sirvam à consecução do acesso à justiça, da efetividade e

dos demais princípios norteadores da ciência processual, como a economia processual e a

boa fé.

Nesse contexto, causa certa perplexidade a manutenção da aceitação em nossos dias,

por parte da doutrina e jurisprudência majoritárias de nosso país, da vedação contida no

artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 quanto à litispendência

internacional.

Passadas quatro décadas de profundas mudanças sociais, aportando-se

reconhecidamente em uma sociedade internacionalmente interconectada e interdependente,

com inevitáveis consequências para o pensamento jurídico-processual, que caminha rumo

ao prestígio da cooperação jurídica internacional, consideramos necessário repensar a

solução prevista em nosso diploma processual.

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A vedação à litispendência internacional, demais de destoar da tradição brasileira até

então, fica relegada a um crescente e insustentável isolacionismo, se analisarmos a

legislação de outros países e, inclusive, da União Europeia.

Tende-se hoje a fomentar uma postura cooperativa e complementar por parte dos

magistrados de diferentes países chamados a atuar na solução de um mesmo litígio com

contornos transnacionais. Não mais é admitido que o magistrado de cada país mantenha

posição de forçada indiferença quanto aos desdobramentos processuais desenvolvidos

alhures.

No que tange à litispendência internacional, verifica-se a tendência no sentido de que

os magistrados a analisem sob a ótica da boa Administração da Justiça em escala global,

considerando-se o bom funcionamento do Judiciário como um todo, ou seja, dos diferentes

países envolvidos.

A análise das duas finalidades principais do instituto da litispendência, notadamente

economia processual e debelamento do risco de decisões contraditórias, recomenda a sua

aplicação também aos litígios transnacionais.

Primeiramente, porque a duplicidade de demandas perante o Judiciário de países

diversos pode ocasionar desnecessária movimentação e assoberbamento da máquina

judiciária, em tempos nos quais trava-se intensa batalha contra o grave problema do

colapso dos tribunais e da demora na duração dos processos em todo o mundo.

Em segundo lugar, porque o risco de que sejam proferidas decisões contraditórias nas

ações paralelamente em curso não deixa de existir pelo fato de que se pronunciarão

magistrados de países diversos. Lembre-se que os jurisdicionados envolvidos em ambas as

ações são os mesmos, razão pela qual eles terão uma visão global e completa da atuação

dos diferentes magistrados e, em última análise, da prestação jurisdicional que lhes será

entregue, a contento ou não. Bem saberão se os magistrados envolvidos apresentarão

atitude cooperativa e coordenada ou não. Supor que, nos dias de hoje, a visão da sociedade

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acerca da prestação jurisdicional (“da Justiça”) é hermeticamente fragmentada segundo os

limites políticos dos países consiste em entendimento, a nosso ver, equivocado.

Somente uma conduta coordenada e globalmente consciente por parte dos

magistrados poderá contornar os novos riscos que pairam sobre a efetividade do processo

nos dias atuais.

Acrescente-se que o deliberado ajuizamento de ações idênticas perante o Poder

Judiciário de países diversos, concorrentemente competentes, deve ser visto com prudência

e zelo pelos magistrados, a fim de que não configure comportamento censurável e desleal,

apto a alcançar escopos não almejados pela ciência processual, com comprometimento da

economia processual, da duração razoável dos processos, da harmonia entre os julgados e,

inclusive, com a imposição de ônus injustificados à contraparte, compelida a defender-se

em duas ações idênticas em países diversos.

O processo contencioso é um processo de partes (de jurisdicionados), em que a

atitude desleal e irresponsável de uma representa a correlata imposição de ônus

injustificados à outra.

Da mesma forma com que advogamos sejam estendidas aos jurisdicionados

envolvidos em litígios transnacionais as garantias fundamentais processuais, deles deve ser

exigida uma conduta hígida e leal nesses conflitos. Esses são os ônus e bônus de serem

membros de uma sociedade globalizada.

Essa nova conformação social fatalmente acarreta impactos para os tribunais

nacionais, fazendo eclodir litígios com novas feições e com novos desafios, mas esses

desafios devem ser analisados criticamente pelos magistrados contemporâneos, sendo-lhes

dadas novas soluções.

Não podemos fechar os olhos para esses novos desafios sem apresentar propostas de

soluções, sob pena de, com nossa inércia, testemunharmos graves reveses no Direito

Processual, com prejuízos para a economia processual, a duração razoável dos processos, a

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harmonia entre os julgados, a cooperação jurídica internacional, a boa fé e, a reboque, a

própria imagem do Judiciário como responsável pela entrega do produto final de nossa

ciência: a efetiva e adequada prestação jurisdicional.

Admitir-se a aplicação do instituto da litispendência aos litígios transnacionais nas

condições desenvolvidas ao longo do presente estudo revela-se, a nosso ver, uma medida

salutar, apta a restabelecer a higidez dos princípios processuais em um número crescente

de demandas levadas ao conhecimento do Poder Judiciário brasileiro.

Entendemos, portanto, que merece reforma o artigo 90 do Código de Processo Civil

brasileiro, a fim de que se alinhe à solução prevista atualmente na legislação de outros

países e nos tratados internacionais assinados pelo Brasil desde longa data. Lamentamos

que estejamos perdendo a valiosa oportunidade de admitir a litispendência internacional no

Projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, que se encontra em tramitação. De

acordo com a redação atual do Projeto, manteríamos a mesma criticável vedação à

litispendência internacional contida no diploma processual em vigor.

A adoção de uma postura crítica e responsável quanto à deflagração de demandas

idênticas perante tribunais de países diversos, enfrentando os seus problemas e desafios,

antes de significar gasto de tempo pelos magistrados envolvidos, acabará por representar

uma contribuição concreta e com resultados práticos em prol da boa administração da

justiça, além de fomentar e estreitar a cooperação jurídica internacional.

Lembre-se, por fim, que a cooperação jurídica internacional não consiste em um

princípio a ser apenas teoricamente decantado, mas em um exercício prático diário, a ser

desenvolvido pelos profissionais do direito a partir da aplicação renovada dos institutos

processuais aos litígios com reflexos transnacionais, como é o caso da litispendência.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE QUESTÕES DE DIREITO PROBATÓRIO (EM

MATÉRIA PENAL)

Flávio Mirza

Professor Adjunto de Direito Processual Penal da UERJ e da

UCP (graduação e pós-graduação stricto sensu). Coordenador

do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade

Católica de Petrópolis (PPGD/UCP). Doutor em Direito

(UGF). Advogado.

RESUMO: O presente visa estudar alguns aspectos do Direito Probatório, notadamente a

questão do objeto da prova, suas fontes e meios. Tais não possuem tratamento uniforme na

doutrina. Primeiramente, foram fixados alguns conceitos fundamentais à compreensão do

tema. Posteriormente, foram expostas as posições doutrinárias e, ao fim, nas conclusões,

expusemos nosso pensamento.

PALAVRAS-CHAVE: Prova – conceito – instrução – objeto – meio

ABSTRACT: The present study aims to examine some aspects of Evidentiary Law,

notably the question related to the object of proof, its sources and means. These do not

have uniform doctrinaire treatment. Firstly, some fundamental concepts to the

understanding of the theme have been set. Subsequently, doctrinal positions have been

exposed and, in the end, in conclusions, we explained our thoughts.

1) À guisa de introdução

O presente artigo visa expor algumas considerações sobre o Direito Probatório,

notadamente no que concerne ao objeto da prova, aos seus meios e fontes.

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Não custa relembrar: a prova é o cerne do processo, pois dela depende a sua sorte (e

a dos litigantes). Com efeito, é de sua análise que o julgador formulará a decisão do caso

penal.

Antes, porém, relembraremos, posto que de modo sintético, alguns conceitos

essenciais, expostos em outra sede, e faremos breve distinção entre prova e instrução.

1.1) Conceito de prova

A prova é uma categoria metajurídica, ou seja, não pertence ao “mundo do Direito”.

Foi, pois, tomada emprestada da realidade da vida, servindo a quem quer que pretenda

demonstrar a veracidade de um fato.1 E, no processo, pretende-se demonstrar a veracidade

do fato imputado.

Assim, como corolário lógico, em que pese o título do presente artigo, pensamos

inexistir diferença ontológica entre as provas penal e cível.2

1.2) Prova e instrução

Prova e instrução não se confundem.

Segundo Paulo Cunha, “(...) instrução e prova não são uma coisa só: a

instrução está para a prova assim como o instrumento está para a obra que por meio dele se

consegue.”3

Na lição de Frederico Marques, há um conceito genérico de instrução, que

tanto abrange as alegações das partes, quanto os atos probatórios.4 Tais elementos

destinam-se à formação da convicção do juiz sobre os fatos articulados.5

1 Pedimos vênia e remetemos o leitor ao nosso estudo sobre a prova pericial. Naquela sede, expusemos, de

forma minudente, nossas concepções sobre a prova. Cf. MIRZA, Flávio. Reflexões sobre a avaliação da

prova pericial. In: BASTOS, Marcelo Lessa; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior (Orgs).

Tributo a Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p. 205-223. 2 Flávio Mirza, op. cit., p. 208. 3 CUNHA apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II, Campinas:

Bookseller, 1998, p. 250.

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Nada obstante, o notável processualista paulista também cuida de um

conceito mais estrito de instrução, que é o de instrução probatória, definindo-a “(...) como

o conjunto de atos processuais que têm por objeto recolher as provas com que se deve ser

decidido o litígio.”6 É mais estrito porque a instrução se presta a permitir que as partes

apresentem argumentos ao juiz, sobre as questões de fato e de direito, oferecendo material

lógico para a construção da sentença.

Amaral Santos se refere ainda a duas categorias albergadas no conceito mais

amplo de instrução, diferenciando três significados. Em sentido amplo, a instrução é “(...) o

preparo da causa de elementos adequados a uma decisão do mérito (...)”7, compreendendo

todo o procedimento anterior ao iudicium, à sentença de mérito. Em sentido menos amplo,

significa “(...) o aparelhamento do processo dos elementos suscetíveis de convencer o juiz

sobre as controvérsias de fato e de direito que giram em torno ao thema decidendum, de

modo a proferir decisão acolhendo ou rejeitando o pedido”8

. Compreende, assim, os atos de

colheita e produção de prova, bem como a sustentação final da causa pelas partes, em

debates orais ou alegações finais por escrito. No sentido mais estrito, por sua vez, a

instrução “(...) consiste na comprovação dos fatos deduzidos pelas partes (...)”9, sendo

sinônima de instrução probatória.

Preservando coerência com os conceitos que formula (de instrução lato

sensu e instrução stricto sensu, ou probatória), Frederico Marques afirma que, no processo

penal condenatório, a instrução em sentido amplo vai do ato de apresentação de provas por

4 Op. cit., p. 249. Nas suas palavras, “(...) dá-se o nome de atos de instrução àqueles destinados a recolher os

elementos necessários para a decisão da lide.” 5 Idem: “Como a sentença, por sua construção lógica de forma silogística, contém na premissa maior a norma

legal aplicável e na premissa menor os fatos que dão contorno à situação jurídica litigiosa, o preparo da

decisão pressupõe, como explica o professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida, a instrução do juiz na

premissa maior e na premissa menor do silogismo. Todavia, entende-se, sempre, o juiz instruído quanto ao

direito aplicável: narra mihi factum, dabo tibi jus; jura novit curia”. 6 Ibid., p. 250. 7 AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol. II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985, p. 271. 8 Op. cit., p. 272. 9 Idem, p. 273.

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parte do réu até o momento procedimental das alegações finais10

, ao passo que a instrução

probatória se inicia com o interrogatório do réu e finda com o encerramento da instrução

complementar de que fala o art. 499 do Código de Processo Penal (ou, como se diz na

praxe forense, as diligências).

Nessa quadra, faz-se necessário um adendo: posto que continuem válidas as

lições de Frederico Marques, o processo penal, como regra, desde 2008, não mais possui

feição escalonada. É dizer: hodiernamente, a regra é a audiência uma (Audiência de

Instrução e Julgamento – art. 400 e SS, do Código de Processo Penal, com redação dada

pela lei 11.719/2008).

Todavia, o próprio autor excepciona seu raciocínio, lembrando que “(...)

atos instrutórios já se praticam desde a fase postulatória da instância e até mesmo nos atos

preparatórios da investigação policial ou de outra informatio delicti que tenha servido de

base à acusação.”11

Quanto aos atos instrutórios praticados no inquérito, vale lembrar que,

por força do art. 12 do Código de Processo Penal, os mesmos devem acompanhar a

denúncia ou queixa. Se é verdade que esses atos instrutórios têm a função de fundamentar

a opinio delicti, acabam, na prática, por esclarecer, reforçar ou consolidar os elementos de

convicção do juiz, colhidos ao longo do processo. Não se deve esquecer que certas provas

colhidas no inquérito são aproveitadas no processo em vista da impossibilidade de serem

repetidas. São provas de natureza cautelar.12

10 MARQUES, op. cit., p. 251: “A fase de instrução, no processo penal condenatório, não tem início com o

interrogatório do réu, e sim, com o ato de apresentação de provas por parte do réu (artigos 395 e 399) a que

se seguem os de produção desta. Ao depois, vem a fase complementar mencionada no artigo 499 e, por fim, o

momento procedimental das alegações (artigo 500) . Finda-se aí a instrução, a que se sucede a fase decisória.

A instrução probatória vai do interrogatório do réu até o encerramento da instrução complementar de que fala o artigo 499”. 11 Idem. Acrescenta (p. 258) ainda que “(...) a investigação, porém, não é de todo inócua para a elucidação

final do caso. Em primeiro lugar, as informações nela contidas orientam a produção de provas na instrução

processual; em segundo lugar, colhem-se, ali, dados preciosos para exame e pesquisas probatórias na fase

judicial de apuração do delito”. 12 GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio; MAGALHÃES GOMES FILHO,

Antonio. As nulidades no processo penal, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 144-

145: “(…) existem provas – como o exame de corpo de delito e do local do crime – que têm natureza cautelar

e visam a assegurar seu resultado antes da instauração do processo penal, exigindo-se sua antecipação ad

perpetuam rei memoriam. Para essas cautelas o contraditório fica diferido para momentos sucessivos”.

Frederico Marques (op. cit., p. 258) ainda se refere às provas em que predominam o aspecto técnico da pesquisa: “(...) embora destinada apenas à preparação da ação penal, a investigação colhe, desde logo,

elementos probatórios que podem servir posteriormente como dado instrutório definitivo para o julgamento

da pretensão punitiva. É o que sucede com as provas ali obtidas em que predomina o aspecto técnico da

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Vale repisar que a instrução probatória no processo penal condenatório

era descontínua e fragmentada, prevendo o Código a produção de provas em audiência,

a possibilidade de produção de documento a qualquer tempo13

, além da eventual

produção de prova pericial sucessiva à testemunhal ou mesmo paralelamente a ela.

Tais eram os momentos em que se realizava a instrução probatória. Todavia,

em cada um desses momentos, a colheita de prova subordinava-se a um procedimento

próprio, para que não fosse feita desordenadamente.

Posto que na atual sistemática haja uma AIJ una, o procedimento probatório

é “(...) o conjunto de todas as atividades levadas a efeito, no processo, para a prática das

provas.”14

Neste ponto, não custa reforçar a ideia de que o juiz mantém o controle

sobre a produção de prova, munido do poder de ordená-la e conduzir o processo.

Na opinião de Frederico Marques, havia falha do legislador, pois o Código

de Processo Penal não disciplinava uma fase prévia de ordenamento das provas a serem

produzidas.15

Não nos parece assistir razão ao ilustre processualista paulista.

Com efeito, não é pelo fato de o controle do juiz sobre as provas estar

disperso entre os diversos momentos em que estas são requeridas e produzidas, já que não

há uma fase própria especialmente designada para tal fim, que haverá maiores problemas à

atividade-fim.

pesquisa. Mas quando existe a participação imediata e direta da própria autoridade policial, na produção da

prova, o caráter inquisitivo, que tem a investigação, torna imprescindível a judicialização ulterior do ato

probatório para que a instrução ali contida se apresente com o valor de prova, ao ter o juiz de decidir a causa

penal.” 13 A ressalva fica a cargo do rito procedimental atinente ao Tribunal do Júri. 14 Marques, op. cit., p. 280. 15 Idem, p. 281.

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Hodiernamente, como regra, as provas produzem-se na AIJ, mas, algumas,

como, por exemplo, a pericial e/ou a documental, lhes são anteriores. Mantida, pois, nossa

posição.

2) Objeto da prova

A prova, no que pertine ao Direito, inobstante ser uma categoria

metajurídica, caracteriza-se como instrumento que carreia ao processo elementos de

convicção para o juiz.

Cabe indagar sobre a que matéria (ou matérias) tais elementos dizem

respeito, ou em outras palavras, qual é o objeto da prova.

Nas palavras de Frederico Marques “(...) o objeto da prova, ou thema

probandum, é a coisa, fato, acontecimento, ou circunstância que deva ser demonstrado no

processo.”16

Acrescenta que não só fatos e acontecimentos do mundo exterior constituem o

objeto da prova, como também aspectos internos da vida psíquica do réu ou indiciado.17

Presume-se que o juiz esteja instruído sobre o direito a aplicar, sendo objeto

da prova tão somente as questões fáticas.18

Igual entendimento colhe-se em Amaral

Santos.19

16 Ibid., p. 254. AMARAL SANTOS, op. cit., p. 335: “(...) a prova tem por finalidade convencer o juiz

quanto à existência ou inexistência dos fatos sobre que versa a lide”. 17 MARQUES, op. cit., p. 270-271: “Fatos e acontecimentos do mundo exterior, bem como fatos internos da própria vida psíquica do indiciado ou do réu, constituem o thema probandum sobre o qual devem realizar-se

as pesquisas, diligências e investigações, com os meios de provas, para ser reconstruída a situação concreta

em que vai incidir a norma penal. O fato delituoso e a pessoa do agente do crime devem ser focalizados, nos

seus aspectos relevantes, na atividade instrutória ou de investigação.” No mesmo sentido, MITTERMAIER,

C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, tradução de Herbert Wüntzel Heinrich, Campinas:

Bookseller, 1997, p. 58: “A imputabilidade moral do acusado, o estado de seu espírito no momento do crime,

a lucidez das faculdades de sua consciência, a má intenção e sua intensidade, são outros tantos objetos a que

é preciso aplicar os instrumentos da prova, porém cujo conhecimento não se obtém pelos meios

ordinariamente empregados para os fatos externos, cuja certeza só pode ser alcançada por via da indução”. 18 MARQUES, op. cit., p. 254. 19 “Assim como as partes não podem alegar a ignorância da lei para não cumpri-la, também o juiz, e por mais evidentes razões, por se tratar de um órgão do estado e um técnico em direito, não pode eximir-se de cumprir

a sua função sob o pretexto de que desconhece a lei, ou que é omissa, obscura ou indecisa”. AMARAL

SANTOS, op. cit., p. 342.

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Entretanto, consoante o disposto no artigo 337 do Código de Processo Civil,

deve-se provar o direito municipal, o estadual, o estrangeiro ou o consuetudinário. Assim,

o juiz pode determinar à parte que os alegar a prova de seu teor e vigência.20

Cuida-se de

regra aplicável ao processo penal, ainda que sem previsão expressa e equivalente no

Código de Processo Penal, porém de utilidade muito restrita.21

Diferentemente do processo civil, há, no processo penal, necessidade de se

provarem todos os fatos ainda que incontroversos.22

Claus Roxin é do mesmo entendimento:

“Mientras que en el proceso civil, dominado por el principio

dispositivo, solo necesitan ser probados los hechos discutidos, en el

proceso penal, como consecuencia de la máxima de la instrucción,

rige el principio de todos los hechos que de algún modo son

importantes para la decisión judicial deben ser probados (...).”23

Sem embargo do questionável (ou melhor, inaceitável) pressuposto de que o

processo penal debruça-se sobre uma verdade real, ao passo que o processo civil contenta-

se com uma verdade formal, um grave equívoco apontado noutra sede,24

cabe salientar que

a própria lei processual civil não se contenta com a incontrovérsia sobre os fatos em

20 Hélio Tornaghi sustenta que o Direito escrito, nacional, não precisa ser provado, pois deve ser conhecido

pelo juiz. Já o Direito estrangeiro e o consuetudinário precisam sê-lo, pois o juiz pode não os conhecer.

TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. III, São Paulo: Saraiva, 1978, p. 445-446. 21 CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. Da prova no processo penal, 5ª ed., São Paulo: Saraiva,

1999, p. 30. Exemplifica este autor, com a hipótese em que o costume exclui a antijuridicidade da conduta imputada ao réu; ou aquela em que se faz necessário provar a validade de casamento celebrado segundo as

normas de direito estrangeiro; ou ainda crimes contra a administração pública cuja prova demande o

conhecimento de direito estadual ou municipal. 22 De acordo com Frederico Marques “(...) o juiz penal não está obrigado a admitir o que as partes afirmam

inconteste, uma vez que lhe é dado indagar sobre tudo o que lhe pareça dúbio ou suspeito” (cf. MARQUES,

op. cit., p. 255). No mesmo sentido, Camargo Aranha (op. cit., p. 26) acrescenta que o interesse social no

campo penal exige a prova de fatos, ainda que não sejam negados. 23 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, tradução de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor, Buenos

Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 186. 24 Ver a respeito da verdade, ou melhor, da sua busca, meu artigo intitulado Notas sobre a questão da verdade

no direito processual. Cf. MIRZA, Flávio. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In: CALVET DA SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel; SALLES, Sérgio de Souza; MARCY ROSA, Waleska

(Orgs). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II, Petrópolis: UCP, 2009, capítulo 4, p. 101-

121.

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matéria de direito indisponível25

, ex vi do art. 320, II, CPC.26

Isso porque, evidentemente,

não é só no processo penal que se colocam questões relevantes ao interesse social.

A par disso, excluem-se da necessidade de serem provados os fatos

impertinentes27

, os irrelevantes28

, os evidentes29

e os notórios.30

Quanto ao objeto, as provas costumam ser classificadas em diretas e

indiretas.31

As provas diretas referem-se ao próprio fato probando ou consistem no próprio

fato, reproduzindo-o ou representando-o. Diversamente, as provas indiretas referem-se a

outro fato, do qual, por trabalho do raciocínio, se chega ao fato que se queira provar. São

provas indiretas as presunções e os indícios.32

Na opinião de Malatesta, o referencial é o

delito, conquanto seja objeto mediato ou imediato da prova.33

25 Sem embargo de outras hipóteses, como aquela constante do art. 320, III, CPC, em que a lei considera a

juntada de instrumento público, com a petição inicial, indispensável à prova do ato, Amaral Santos,

contrariando de certo modo a concepção de uma verdade formal no processo civil chega a afirmar que é

objeto de prova fato incontroverso, quando esta é reclamada pelo juiz, “(...) para o fim de formar com mais

segurança o seu convencimento” (op. cit., p. 337). Dinamarco, por seu turno, refere-se à necessidade de

prova de fatos incontroversos impossíveis ou improváveis, como a prova do deslocamento de coisas sólidas,

líquidas ou gasosas, pelo simples poder da mente, possível segundo a parapsicologia. Cf. DINAMARCO,

Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol III, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 63. 26 “Art. 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: (…) II - se o litígio versar sobre

direitos indisponíveis.” 27 MARQUES, op. cit., p. 254: “Fatos que não pertencem ao litígio e que relação alguma apresentam com o

objeto da acusação, consideram-se fatos sem pertinência, e que, portanto, devem ser excluídos do âmbito da

prova in concreto”. 28 Ibid., p. 255: “Inadmissíveis também são, como objeto de prova, os fatos que não influem sobre a decisão

da causa, embora a ela se refiram. Para que indagar, por exemplo, da roupa que envergava o homicida ao

praticar o crime, se dúvida não há a respeito da pessoa que cometeu o crime, sendo assim prescindível

qualquer prova ou sinal exterior para identificação do acusado?”. 29 CAMARGO ARANHA, op. cit., p. 26: “Se o objetivo da prova é formar a convicção do julgador a respeito

de um determinado fato, sua existência e realização, se o fato é evidente a convicção já está formada,

dispensando, destarte, qualquer demonstração”. 30 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 341: “Diversamente ocorre com os fatos notórios. O conhecimento destes,

do mesmo modo que as máximas de experiência, faz parte da cultura normal própria de determinada esfera

social, e o juiz, ao utilizá-lo, não funciona como testemunha que informa quanto a fatos, porque se vale de

conhecimento que não é seu apenas, ou de umas poucas pessoas, mas de uma coletividade, da qual é

intérprete, e de cuja exatidão os litigantes sempre estão em condições de fiscalizar.” CAMARGO ARANHA,

op. cit., p. 28, aduz: “A título de exemplo: numa ação penal por crime contra a honra e figurando como

vítima um chefe de Estado, não haverá necessidade, por ser notório, da prova de que aquele ofendido é o

ocupante do cargo”. 31 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 331-332: “Enquanto na prova direta a conclusão objetiva é conseqüente

da afirmação da testemunha ou da atestação da coisa ou documento, sem necessidade maior do raciocínio, na

indireta o raciocínio reclama a formulação de hipóteses, sua apreciação, exclusão de umas, aceitação de outras, enfim trabalhos indutivos maiores ou menores, para se atingir a verdade relativa ao fato probando”. 32 Seguindo as lições de Carnellutti, Marques (op. cit., p. 256) alude a provas históricas e críticas, in verbis:

“Prova histórica é ‘um fato representativo de outro fato’, tal como o conteúdo de um documento, ou o

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3) Fontes e meios de prova

Primeiramente, cabe esclarecer o que seja(m) meio(s) de prova, bem como

distingui-lo(s) da(s) fonte(s) de prova.

Na definição de Dinamarco, “(...) fontes de prova são pessoas ou coisas das

quais se possam extrair informações capazes de comprovar a veracidade de uma

alegação.”34

Essa noção muito se aproxima do conceito adotado por Amaral Santos de

sujeito da prova.35

Em função do conceito de fonte de prova, pode-se classificá-la em real e

pessoal. Ainda Amaral Santos define que a “(...) prova real de um fato consiste na

atestação inconsciente, feita por uma coisa, das modalidades que o fato probando lhe

imprimiu”. Assim, v.g., temos as trincas nas paredes ou o ferimento. Diversamente, a “(...)

prova pessoal é toda afirmação pessoal consciente, destinada a fazer fé dos fatos

afirmados. A testemunha que narra fatos que viu, o documento de confissão de dívida, a

escritura de testamento são provas pessoais.”36

Contudo, Dinamarco adota classificação heterogênea, sendo-lhe aplicáveis

às definições retro esboçadas às pessoas, enquanto fontes, mas não às coisas, que seriam

provas reais por definição.37

depoimento de uma testemunha. A prova crítica, ao revés, não tem função representativa, mas apenas

indicativa, pois que não é um equivalente sensível do fato a provar; é o que sucede, verbi gratia, com os

indícios”. 33 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal, tradução de Paolo Capitanio, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2001, p. 148: “Em conseqüência, ao examinar e classificar as provas

quanto ao conteúdo, referem-se elas, em crítica criminal, como ponto fixo, ao delito, que é a verdade

particular que se tenta verificar, instaurando o processo”. 34 DINAMARCO, op. cit., p. 86. Complementa o autor, mencionando Carnelutti, que “(...) informações são a

‘afirmação da existência ou inexistência de um fato, com a finalidade de levá-lo ao conhecimento de outrem,

especialmente do juiz ou, em geral, do órgão judiciário’”. 35 Nas palavras deste celebrado processualista, “(...) sujeito da prova é a pessoa ou coisa de quem ou de onde

dimana a prova; a pessoa ou coisa que afirma ou atesta a existência do fato probando.” AMARAL SANTOS,

op. cit., p. 332. 36 Idem. 37 DINAMARCO, op. cit., p. 86-87: “As coisas são fontes reais de prova. As pessoas são também fontes reais, quando submetidas a exames feitos por outrem (perícias médicas, etc.); mas serão fontes pessoais

quando chamadas a tomar parte na instrução probatória mediante a realização de atos seus e concurso de sua

vontade (testemunhas, partes em depoimento pessoal). As fontes pessoais são ativas e as reais inativas”.

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Próximo a tal classificação, Frederico Marques ensina que a diferença entre

as provas reais e as pessoais encontra-se na qualidade do elemento instrumental –

conforme seja ou não um ser com personalidade e consciência.38

Note-se, todavia, que este

autor não se esforça em distinguir as fontes dos meios de prova.

A respeito dessa discussão, afirma Malatesta que os requisitos para que uma

prova seja pessoal são a existência de uma afirmação consciente e que seja destinada a

fazer fé da verdade de um fato. A ausência de qualquer dos requisitos torna a prova real.39

O fato humano40

ou a afirmação41

inconsciente são chamadas de prova real-psíquica.

Outrossim, os assertos não destinados a fazer fé da verdade dos fatos afirmados são

chamados de prova real-corporal.42

Esclarece ainda, que o referencial para distinguir a

prova real da prova pessoal é a consciência do juiz. Se fosse a própria fonte, a prova seria

sempre real, de maneira que a prova pessoal para o juiz, será, p.ex., sempre real para a

testemunha.43

Os meios de prova, por seu turno, distinguem-se das próprias fontes.

38 MARQUES, op. cit., p. 256: “Provas reais são aquelas em que o elemento instrumental está constituído por

uma coisa ou bem exterior ao indivíduo; já as provas pessoais são aquelas cujo objeto instrumental está

constituído por um ser com personalidade e consciência que contribui para formar o convencimento do juiz

mediante declarações de conhecimento”. 39 MALATESTA, op. cit., p. 283: “Se as exteriorizações do espírito humano não são conscientes ou não se

considerem como destinadas a fazer fé da verdade dos fatos por ela manifestados, não se tem prova pessoal,

mas sim real”. 40 Idem: “Funcionando como prova do espírito interno, são provas reais, e não pessoais, não só a palidez, o

tremor, o desmaio do acusado, e qualquer outro fato involuntário da pessoa, mas também são provas reais todos os fatos voluntários humanos que funcionam como prova para revelar o espírito interno, todos aqueles

fatos que, embora conscientemente praticados como fatos, são inconscientemente emitidos como revelações

do espírito interno”. 41 Ibid., p. 283-284: “A própria palavra, essencialmente destinada às manifestações conscientes da alma, não

se pode considerar como prova pessoal, quando não destinada conscientemente a revelar a alma. Sempre que

é uma exteriorização inconsciente do espírito, ela só pode ser uma prova real”. 42 O autor referido exemplifica(Ibid., p. 286): “(...) a palavra injuriosa ou ameaçadora não é senão o próprio

crime, na materialidade de sua existência, que se submete ao espírito do juiz, e não já uma afirmação pessoal

consciente, destinada a convencer da verdade dos fatos afirmados. A palavra, nestes casos, é considerada a

concretização do crime e não do ponto de vista da destinação a fazer fé dos fatos por ela afirmados, essencial

para a prova pessoal”. 43 Ibid., p. 288: “(…) a distinção subjetiva das provas, em pessoais e reais, é considerada em relação à

consciência do juiz dos debates. Se assim não se fizesse, se se atendesse às provas relativamente à sua fonte

originária, teríamos somente provas reais”.

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Novamente, na lição de Dinamarco, “(...) meios de prova são técnicas

destinadas à investigação de fatos relevantes para a causa.”44

Moacyr Amaral Santos também parece adotar tal distinção de conceitos,

porém com nomenclatura diferente. Se as fontes de prova ele apelida de sujeitos da prova,

os meios são por ele chamados de formas da prova. A forma da prova “(...) é a modalidade

ou a maneira pela qual se apresenta em juízo”.45

Nada obstante, tal distinção, entre fontes e meios de prova, não costuma ser

observada pela doutrina.

Frederico Marques, por exemplo, perfilha doutrina de Pontes de Miranda,

segundo a qual “(...) meios de prova são as fontes probantes, os meios pelos quais o juiz

recebe os elementos ou motivos de prova.”46

No mesmo sentido, posiciona-se Carreira Alvim, esclarecendo serem os

motivos de prova “(...) as alegações (ou observações) que determinam, imediatamente ou

não, a convicção do juiz.”47

Crítica a essa distinção faz Mittermaier, para quem meio de prova é todo

meio de produzir a certeza.48

Vale salientar que tal autor não faz a distinção acima

mencionada.49

O aludido doutrinador renega a importância das discussões acerca do

número de meios de prova e as distinções entre estes e os motivos de prova. Nas suas

44 Remarcando a distinção, o autor ainda acrescenta que: “Diferentemente das fontes, eles são fenômenos

internos do processo e do procedimento. Atuam sobre aquelas e cada um deles é constituído por uma série ordenada de atos integrantes deste, realizados em contraditório, com a observância das formas que a lei

estabelece e dirigidos pelo juiz.” DINAMARCO, op. cit., p. 87. 45 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 332. 46 MARQUES, op. cit., p. 255. 47 CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.

270: “Assim, a ‘afirmação’ de um fato influente na causa, por uma testemunha presencial e a ‘observação’ de

um dano, pelo juiz, no local do evento, são motivos de prova. Meios de prova são as fontes de que o juiz

extrai os motivos de prova. Assim, nos exemplos anteriores, a pessoa da testemunha e o local inspecionado

são meios de prova”. 48 MITTERMAIER, op. cit., p. 112: “Se é verdade que dar a prova ou constituir a certeza é tender ao mesmo

fim, é exato que todo o meio de produzir a certeza será necessariamente um meio de prova também”. 49 Acrescenta que “(...) no sentido legal, os meios de prova, ou, em uma palavra, as provas, são para o juiz as

fontes dos motivos de convicção que a lei declara suficiente para, aplicados aos fatos da causa, determinarem

naturalmente a sentença” (Ibid., p. 115).

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palavras, “(...) a ciência pouco tem a lucrar com tais indagações, que com razão foram

qualificadas de puras sutilezas.”50

Quanto aos possíveis meios (e fontes) de prova, vale lembrar a lição de

Frederico Marques, que faz alusão a critérios vinculadores do juiz atinentes à busca da

verdade e liberdade da prova.51

Esta última ideia corresponde ao que se vem chamando de princípio da

liberdade dos meios de prova. Tal princípio foi adotado pelo Código de Processo Penal,

ainda que implicitamente, no art. 15552

e, explicitamente, no artigo 332 do Código de

Processo Civil.

Note-se que, reflexo da atual ordem constitucional, a legislação não deveria

dispor diversamente, conquanto a limitação legal aos meios de prova só poderia ser

admissível como resultado da ponderação do direito à prova com outro preceito

fundamental ou da natureza do direito.53

Comentando o art. 332, do CPC, em lição aplicável ao processo penal,

Leonardo Greco ressalta que “(...) todos os meios moralmente legítimos (...)”, aceitos pelo

legislador processual,

“(...) inicialmente percebidos como extensivos a provas

inominadas, como a prova emprestada, com a emergência do

50Exemplificando as diferenças propostas para tais conceitos, assim se manifesta: “São elas sem valor para o

juiz, e não vemos que interesse haja em reconhecer, com Gensler, na prova testemunhal por exemplo, um

meio de prova – a testemunha, um motivo positivo de prova – o depoimento da mesma, e um motivo jurídico

– o que o juiz aproveita para sua convicção como magistrado”. Ibid., p. 115. 51 “A colheita de provas pode subordinar-se ao princípio da verdade legal ou da verdade real. Pelo primeiro,

as fontes de provas estão prefixadas na lei a cujos preceitos fica o juiz vinculado de forma a não admitir a

produção de meios probatórios ali não previstos. Pelo segundo princípio, livre é a escolha e a exploração das

fontes de prova.” MARQUES, op. cit., p. 259. 52 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Teoria geral do processo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 349 e CARREIRA ALVIM, op. cit., p.

256: “No processo penal brasileiro, sempre imperou o princípio da liberdade da prova, exceto quanto ao

estado civil das pessoas (art. 155, CPP) e as restrições são estabelecidas taxativamente pela lei.” MARQUES,

op. cit., p. 270: “Em juízo, por outro lado, não há restrições na exploração das fontes e meios de prova, como

se deduz, a contrario sensu, do que preceitua o art. 155 do Código de Processo Penal”. 53 Leonardo Greco, por exemplo, sustenta que as provas legais devem ser admitidas quando o exercício do direito dependa do registro público de seu fato gerador. Cf. GRECO, Leonardo. A prova no processo civil: do

Código de 1973 ao novo Código Civil. In: ____. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes:

Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 373.

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primado dos direitos fundamentais foram associados à proibição

das provas ilícitas, ainda que nominadas.”54

Não se poderia encerrar tal tópico sem mencionar a lição de Ada Grinover,

Scarance e Gomes Filho para quem fontes de prova são “os fatos percebidos pelo juiz” e

meios de prova “são os instrumentos pelos quais os mesmo se fixam em juízo”.55

4) Conclusão

Ao fim e ao cabo, é possível inferir do singelo estudo que reinam variegados

conceitos e formas de ver as questões ora pontuadas.

Assim, nos parece adequado explicitar nossas conclusões.

Com efeito, a prova é uma categoria pertencente à realidade da vida, usada

sempre que se pretender demonstrar a veracidade de determinado fato.56

E, prova e

instrução, de fato, não se confundem.

O objeto da prova no processo penal, que não se confunde com objeto de

prova,57

deve ser visto no caso concreto e diz respeito à veracidade da imputação feita

contra o réu, com todas as suas circunstâncias. Como bem salientou Stefano Ambrogio, o

objeto da prova “(...) si riferiscono all’imputazione, alla punibilità e alla determinazione

della pena o della misura di sicurezza.”58

Por fim, fontes e meios de prova são, igualmente, coisas distintas.

54 Ibid., p. 99. 55 Cf. Ada P. Grinover e outros (op. cit.), p. 118. 56 Não custa relembrar que a maioria dos manuais jurídicos trata o conceito de prova como sendo jurídico. 57 No processo penal, objeto de prova são os fatos, controvertidos ou não, e devem ser abstratamente considerados. 58 Cf. AMBROGIO, Stefano. Compendio di Diritto Processuale penale, 4ª ed., Piacenza: Casa Editrice La

Tribuna, 2012, p. 138.

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Como bem salienta Paolo Tonini, “con l’espressione “mezzo di prova” si

vuole indicare quello strumento processuale che permette di acquisire un elemento di

prova.”59

Na mesma toada, Clariá Olmedo aduz que “medios de prueba son los actos

procesales a introducir en el proceso los elementos de convicción.”.60

As fontes de prova, por seu turno, são os “locais” de onde emana a prova,

ou seja, de onde ela surge, origina-se.

Esperamos, pois, ter contribuído, para o estudo do Direito Probatório, de

extrema importância para a Ciência Processual.

5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol.

II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985.

2) AMBROGIO, Stefano. Compendio di Diritto Processuale penale, 4ª ed.,

Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2012.

3) ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini;

DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, 17ª ed., São Paulo:

Malheiros, 2001.

4) CLARIÁ OLMEDO, Jorge A., Derecho Procesal Penal, tomo II, Buenos Aires:

Rubinzal-Culzoni Editores.

5) CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. Da prova no processo penal, 5ª ed.,

São Paulo: Saraiva, 1999.

6) CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo, 8ª ed., Rio de

Janeiro: Forense, 2002.

7) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol III,

São Paulo: Malheiros, 2001.

59 Cf. TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale, 7ª ed., Milão: Giuffrè Editore, 2006, p. 241. 60 Cf. CLARIÁ OLMEDO, Jorge A., Derecho Procesal Penal, tomo II, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni

Editores, sem ano, p. 311.

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8) GRECO, Leonardo. A prova no processo civil: do Código de 1973 ao novo Código

Civil. In: ____. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de

Direito de Campos, 2005.

9) GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio;

MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio. As nulidades no processo penal, 8ª ed., São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

10) MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal,

tradução de Paolo Capitanio, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2001.

11) MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II,

Campinas: Bookseller, 1998.

12) MIRZA, Flávio. Reflexões sobre a avaliação da prova pericial. In: BASTOS,

Marcelo Lessa; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior (Orgs). Tributo a

Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p.

205-223.

13) _____________. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In:

CALVET DA SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel; SALLES, Sérgio de Souza; MARCY

ROSA, Waleska (Orgs). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II,

Petrópolis: UCP, 2009, capítulo 4, p. 101-121.

14) MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, tradução de

Herbert Wüntzel Heinrich, Campinas: Bookseller, 1997.

15) ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, tradução de Gabriela E. Córdoba e

Daniel R. Pastor, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000.

16) TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale, 7ª ed., Milão: Giuffrè Editore,

2006.

17) TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. III, São Paulo: Saraiva,

1978.

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“DECRETO DEL FARE” E MEDIAZIONE; AVVOCATI MEDIATORI OPE

LEGIS

Giovanni Matteucci

Lauree in Giurisprudenza ed Economia & Commercio a “la

Sapienza” di Roma; “Diploma in Economics” presso

University of York (UK); Master di 1° livello in “Procedure

stragiudiziali di soluzione delle controversie” (mediazione ed

arbitrato) e “Corso di alta formazione in diritto fallimentare”

Università di Siena. [email protected]

“I dati segnalano 215.689 iscrizioni di affari di mediazione tra il 21 marzo 2011 e

il 30 giugno 2012, tempi di piena anche se prima operatività della condizione di

procedibilità introdotta dal d.lgs. n. 28 del 2010 …. con un risultato di oltre 31 mila

conflitti risolti nei circa 15 mesi iniziali di compiuta implementazione del sistema. Dal che

si può desumere la rilevanza dello strumento in proiezione pluriannuale, sia in termini di

accesso a risoluzioni meno onerose dei conflitti, sia in chiave di prevenzione di processi.

… E per comprendere la rilevanza dell’obbligatorietà per la promozione della mediazione

basta osservare che la suddivisione in categorie indica: mediazione per clausola

contrattuale 0,3%; mediazione demandata dal giudice 2,8%; mediazione volontaria 16%;

mediazione obbligatoria in quanto condizione di procedibilità 80,9%”. Così la relazione

illustrativa del Decreto Legge 21.6.2013, n.13 (in G.U. 21.6.2013, n. 144, S.O. n.50), detto

“Decreto del fare”.

Decreto con cui sono state reintrodotte, nel D.Lgs. 28/2010, molte delle norme

obliterate a seguito della sentenza delle Corte Costituzionale 272/2012, nonché introdotte

novità di non poco conto:

- reintrodotta l’obbligatorietà, ovvero la mediazione civile e commerciale torna ad essere

condizione di procedibilità in relazione a numerose controversie; è questo il punto più

rilevante, sia per i sostenitori che per gli oppositori dell’istituto (gli uni e gli altri per “vil

denaro” ?) nonché il collegamento mediazione processo tramite la proposta del

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mediatore, non condivisa dalle parti, e l’eventuale corrispondenza del suo contenuto a

quello della sentenza;

- le controversie, per le quali c’è l’obbligo della mediazione sono le stesse previste dal

D.Lgs. 28/2010 (condominio, diritti reali, divisione, successioni ereditarie, patti di

famiglia, locazione, comodato, affitto di aziende, risarcimento del danno derivante da

responsabilità medica e diffamazione a mezzo stampa o altro mezzo di pubblicità, contratti

assicurativi bancari e finanziari) eccetto quelle relative alla responsabilità per danno da

circolazione di veicoli e natanti (“captatio benevolentiae” nei confronti della classe degli

avvocati ?);

- gratuità completa per i soggetti non abbienti, quelli che nel procedimento giudiziario

avrebbero diritto al gratuito patrocinio;

- entro 30 giorni dal deposito della domanda, un primo incontro di programmazione, in

cui il mediatore verifica con le parti la possibilità di proseguire il tentativo di mediazione

(se a questo incontro si presenteranno solo gli avvocati –se non i praticanti di studio- , la

sua utilità sarà vicina allo zero); nel caso non si raggiunga l’accordo “l’importo massimo

complessivo delle indennità di mediazione per ciascuna parte, comprensivo delle spese di

avvio del procedimento, è di 80 euro, per le liti di valore sino a 1.000 euro; di 120 euro,

per le liti di valore sino a 10.000 euro; di 200 euro, per le liti di valore sino a 50.000 euro;

di 250 euro, per le liti di valore superiore” (quanti saranno i professionisti qualificati

disposti a impegnare due o tre ore del proprio tempo per remunerazioni di questo livello ?);

- contenimento dei costi della mediazione nei casi in cui questa sia condizione

obbligatoria di procedibilità o prescritta dal giudice (chi controllerà la rotazione degli

incarichi di mediazione da parte dei responsabili degli organismi ?);

- la durata del procedimento di mediazione viene ridotta da quattro a tre mesi (per

quanto superfluo, compatibilmente con le richieste di rinvio degli incontri da parte degli

avvocati in relazione a date in precedenza indicate dagli stessi !), trascorsi i quali il

processo può essere iniziato o proseguito;

- efficacia esecutiva del verbale di conciliazione solo se sottoscritto dagli avvocati che

assistono le parti , il che mi pare corretto perché il mediatore non è un tecnico del diritto;

inoltre, gli avvocati sono già quasi sempre presenti agli incontri, per cui nella pratica

cambia ben poco;

- possibilità per il magistrato di disporre l’esperimento del procedimento di

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mediazione anche nei casi in cui non è condizione obbligatoria di procedibilità,

indicando l’ organismo presso il quale effettuare il tentativo; novità assoluta, che

potrebbe essere determinante per il decollo della mediazione in Italia o per il suo

affossamento definitivo (vedi ultra);

- esclusione della mediazione obbligatoria nei procedimenti di consulenza tecnica

preventiva ai fini della composizione della lite, ex art. 696-bis c.p.c. (sarebbe interessante

sapere perché questo istituto è stato finora utilizzato pochissimo; quando l’ho chiesto ad

avvocati mi hanno risposto che i magistrati non lo gradiscono; quando mi sono rivolto a

magistrati, mi hanno detto che gli avvocati non si fidano! Una constatazione è indubbia: lì

dove c’è una possibile soluzione conciliativa della controversia, puranche nell’ambito di

una procedura giudiziale, i tecnici del diritto sono concordi nel … non utilizzarla);

- “gli avvocati iscritti all’albo sono di diritto mediatori”; e qui penso si raggiunga l’acme

del surreale: in quante università italiane viene insegnata la mediazione? quante sono le ore

dedicate a questo istituto nelle scuole di formazione forense? Insomma, gli avvocati

saranno promossi mediatori con il “18 politico”, di sessantottesca memoria.

Secondo uno dei principali esperti di mediazione in Italia, il Dr. Nicola Giudice,

“una norma sorprendente, sia per gli avvocati non mediatori, che solo ora scoprono

talenti che non pensavano di avere, sia per gli avvocati che in questi mesi hanno investito

tanto in corsi e formazione e ottenere competenze che in realtà già possedevano. A conti

fatti, la norma porterebbe ad avere in Italia circa 250.000 mediatori, probabilmente di

più. Prendendosi per mano, formerebbero un’ininterrotta catena da Torino a Lione… che

ci sia un doppio fine? Al di là della battute, mi pare una norma molto pericolosa, che

vanifica i molti sforzi per alzare la qualità della mediazione in Italia. Todos caballeros?” 1

.

Le innovazioni sopra accennate, se non modificate, entreranno in vigore dopo 30

giorni dalla conversione in legge del decreto.

Perché è stata reintrodotta l’obbligatorietà ?

1 Nicola Giudice, responsabile del servizio di conciliazione presso la CCIAA di Milano

http://blogconciliazione.com/2013/06/decreto-fare-e-mediazione-qualche-commento-dopo-la-

pubblicazione/#comments Di particolare interesse, inoltre, l’analisi della normativa di molti Paesi su questo aspetto ad opera dell’avv.

Carlo Alberto Calcagno, del foro di Genova, http://mediaresenzaconfini.org/2013/06/25/gli-avvocati-

mediatori-di-diritto/#comment-403 .

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Secondo la Relazione illustrativa del Decreto del fare, in quindici mesi, su

215.689 procedimenti iniziati oltre 31 mila sono stati risolti con la mediazione e l’80%

delle procedure era di matrice “obbligatoria”. D’accordo sulla seconda affermazione, sulla

prima ritengo opportuno fare delle precisazioni.

In base ai dati pubblicati da alcune settimane dal Ministero della Giustizia, dal 2°

trimestre 2011 al 4° trimestre 2012 i procedimenti iscritti sono stati 215.689, dei quali

26.822 risolti: il 12%. Riconducibili alla obbligatoria un 10 / 11%. Un dato non esaltante,

anche se è da considerare che l’utilizzo dell’istituto era solo agli inizi, nonché oggetto di

polemiche veementi, a volte pretestuose.

Tuttavia queste sono medie statistiche, le quali, prese di per sé, possono indurre ad

errori di una certa consistenza, come insegnano “i due polli” di Trilussa: se la media

statistica dice che due persone mangiano un pollo a testa, nella realtà uno potrebbe

mangiarne due e l’ altro nemmeno uno 2. Tra i dati pubblicati ce ne sono alcuni che non

sono commentati da alcuno: quelli sul “tasso di successo” delle mediazioni attive, quelle

cioè dove sono presenti entrambe le parti: diminuisce COSTANTEMENTE dal 59 % del

2° trimestre 2011 al 40 % del 3° trimestre 2012 (38% nel 4°). Di conseguenza,

considerando anche il tasso di comparizione dell’aderente (cioè le mediazioni cui è

presente anche la parte invitata) il tasso di definizione positiva di tutte le procedure avviate

passa dal 15 % del 2° trimestre 2011 al 9 % del 3° trimestre 2012 (8% nel 4°). Un dato

che definire poco soddisfacente è eufemistico.

Perché la diminuzione COSTANTE del tasso di successo delle mediazioni attive ?

Secondo un esperto del settore le parti, una volta individuata con l’aiuto del mediatore la

via dell’accordo, scomparivano per non pagare il “di più” dovuto al successo della

procedura. Per me anche a causa della progressiva diminuzione della qualità generale dei

mediatori; il frusciare di soldi facili (per pochi) che c’è stato nel comparto della

mediazione nel 2010-2011 ha indotto qualche personaggio non qualificato ad inventarsi

formatore (ad inizio 2012, facendo un tirocinio come discente, ho constatato che il

problema principale per il mediatore era quello di individuare quali soggetti, presenti alla

2 Trilussa (Roma, 1871-1950) : “ Sai che d'è la statistica? È na' cosa che serve pe fà un conto in

generalede la gente che nasce, che sta male,che more, che va in carcere e che spósa. “ Ma pé me la

statistica curiosa è dove c'entra la percentuale, pé via che, lì, la media è sempre eguale puro co' la persona

bisognosa. “ Me spiego: da li conti che se fanno seconno le statistiche d'adessorisurta che te tocca un pollo

all'anno: e, se nun entra nelle spese tue, t'entra ne la statistica lo stesso perch'é c'è un antro che ne magna

due”.

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procedura, dovessero firmare il verbale !); inoltre sulla mediazione si sono gettati nugoli di

cavallette, desiderose di accattare 300 – 400 euro al mese, necessarie per pagare le bollette

degli studi, la cui attività –come quasi tutte le iniziative economiche in Italia- non rendeva

più come prima.

Dalla sentenza della Corte Costituzionale 272/2012 ad oggi la congiuntura

economica è peggiorata e continuerà in questo trend. Se le norme sopra richiamate

dovessero essere convertite in legge si rischia davvero di avere oltre 240.000 mediatori.

Quelli seri (quanti?) si documenteranno. Gli altri è probabile che chiederanno l’iscrizione

“d’ufficio” presso gli Organismi di mediazione forense (che dovranno tra l’altro gestire

migliaia di mediatori). Quali saranno le conseguenze del “18 politico” sulla qualità del

servizio? Ed allora sì che ci sarà da chiedersi: “Perché i cittadini dovrebbero pagare un

ulteriore balzello ? ”.

Un aiuto consistente all’affermarsi della mediazione potrebbe venire dalla

magistratura, dalla quale (secondo i citati dati del Ministero della giustizia) è arrivato solo

il 2,9% del totale delle procedure di mediazione avviate in tutta Italia. Nonostante presso il

Tribunale di Roma – Sezione staccata di Ostia, “abbiano stimato prudenzialmente nel 10%

la riduzione delle sentenze ottenuta grazie alla mediazione” 3;

Con le norme introdotte dal Decreto del fare, nel caso di controversie su diritti

disponibili non oggetto di mediazione obbligatoria “ope legis”, il magistrato può non solo

invitare le parti ad adire la procedura stragiudiziale, ma anche obbligarle, indicando

l’organismo di mediazione cui rivolgersi. Quali organismi? Altamente probabile quelli

pubblici, con professionisti per formazione più vicina a quella degli stessi magistrati. Cioè

gli organismi pieni di mediatori divenuti tali con il “18 politico”.

Ma a quel punto, che necessità ci sarebbe di un primo incontro di

programmazione (e spese relative) ? Lo stesso tentativo, con gli avvocati, potrebbe farlo il

magistrato nella prima udienza di trattazione della causa. E per la mediazione, “De

profundis clamamus ad te …”!

L’obbligatorietà è stata un male necessario per indurre alcune migliaia di

professionisti a documentarsi sulla mediazione 4 (50 ore di corso servono ad INformarsi ,

3 http://www.mondoadr.it/cms/articoli/resoconto-del-convegno-il-ruolo-del-giudice-nella-mediazione.html 4 Il D.Lgs. 5/2003, artt. 38 39 e 40, aveva normato la conciliazione nelle controversie in materia societaria,

bancaria, finanziaria e creditizia, con la possibilità di una proposta di soluzione da parte del mediatore su

concorde richiesta delle parti e di esecutività del verbale di conciliazione previa omologa del presidente del

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non certo a formarsi per gestire una qualunque nuova attività). Ha fatto esplodere un

business, soprattutto nella formazione, dopodiché è divenuta un feticcio, denigrato dagli

avversari, idolatrato dai favorevoli (gli uni e gli altri spesso per motivi economici). Ma

l’obbligatorietà nulla ha a che vedere con la mediazione, che è un procedimento

INFORMALE e VOLONTARIO, BASATO SULLA COMUNICAZIONE.

L’ ACCORDO E’ RAGGIUNTO DALLE PARTI, la cui comunicazione è

facilitata da un terzo, il quale non deve fare una proposta: la tecnica valutativa (anche un

po’ spinta) è sufficiente. Per cui la mediazione è (e deve rimanere) SCOLLEGATA DAL

PROCESSO.

Se la si ritiene utile come mezzo deflattivo del contenzioso 5 non va snaturata, ma

incentivata con interventi economici forti in relazione a tutti i diritti disponibili ; tipo, per

cinque anni:

. esenzione dall’imposta di registro, per qualunque importo della controversia, piena se si

raggiunge l’accordo, in caso contrario si paga un terzo;

. deducibilità delle spese sostenute in mediazione piena se si raggiunge l’accordo, in caso

contrario si deduce un terzo;

. importo del contributo unificato triplo per chi si rivolge al magistrato senza aver

raggiunto un accordo in mediazione 6; per evitare che il soggetto economicamente forte si

faccia beffe del debole, obbligo per il mediatore di far presente la conseguenza alle parti

che non raggiungano l’intesa e descrizione, nel verbale, delle proposte di accordo avanzate

da ognuna; il magistrato poi valuterà la fondatezza delle une e delle altre e imputerà

l’importo complessivo (a carico di tutte le parti) al soggetto che, temerariamente, non ha

dato l’assenso all’accordo.

Fissazione di un massimo alle tariffe praticabili dai singoli organismi. Esenzione

dalle spese per i soggetti che possono beneficiare del gratuito patrocinio. Obbligo per gli

organismi di pubblicare i curriculum vitae dei singoli mediatori, con la specifica dei corsi

di formazione seguiti e delle pubblicazioni (relative alla mediazione) effettuate.

tribunale. L’utilizzo della procedura fu vicino allo zero assoluto. Quando ne chiesi il perché a degli avvocati

mi risposero: “ Perché non era obbligatoria! ”. 5 A tal fine, oltre alla mediazione, normare e agevolare economicamente la negoziazione assistita dagli

avvocati, nonché la translatio judicii ai procedimenti arbitrali (il passaggio della controversia, cioè, a

determinate condizioni, dal giudice alle camere arbitrali). 6 Cosa successe alle opposizioni alle sanzioni amministrative (leggi: multe per infrazioni al codice della

strada) davanti ai giudici di pace, da sempre esenti da spese, quando fu introdotto un modesto contributo a

carico dell’ opponente? Diminuzione del 40%.

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Aumentare i requisiti relativi alla formazione:

- iniziale della durata minima di 100 ore, di cui quaranta dedicate alle sole tecniche di

gestione della comunicazione e simulazioni di mediazioni, nonché partecipazione a 10

mediazioni “attive” (non solo in ambito civile e commerciale);

- aggiornamento biennale di 24 ore, di cui 12 dedicate alle tecniche di gestione della

comunicazione.

Da ultimo, occorre che lo strumento mediazione, ED I VANTAGGI

ECONOMICI, siano conosciuti dal grosso pubblico: il programma televisivo “Forum”, in

onda su Canale 5 e Rete 4, simula un arbitrato; elaborare un format, che simuli una

mediazione. Inoltre promuovere nelle università “gare” sulla mediazione così come

sperimentato a Milano 7.

Machiavelli diceva che gli uomini possono scordarsi di un torto inferto ai propri

famigliari, ma non un danno causato alle proprie ricchezze.

MEDIAZIONE CIVILE E COMMERCIALE IN ITALIA

elaborazioni su dati del Ministero della Giustizia

Comparizione Tasso di successo Tasso di

definizione

dell’aderente se l’aderente compare se l’aderente

compare

2011 2° trim. 26,1 % 59,3 % 15,5 %

3° “ 30,1 % 50,8 % 15,3 %

4 ° “ 36,0 % 49,4 % 17,8 %

2012 1° trim. 35,7 % 44,1 % 15,7 %

2° “ 26,2 % 42,9 % 11,2 %

3° “ 21,7 % 40,5 % 8,8 %

4° “ 21,2 % 38,0 % 8,1 %

Media 21.3.2011/31.12.2012 27,0 % 43,9 % 11,8 %

7 Università degli Studi di Milano e Camera Arbitrale presso la CCIAA di Milano, “Prima competizione

italiana di mediazione”, 27.2.2013.

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215

Iscrizioni Tasso di definizione Procedure

definite

se l’aderente compare con successo

2011 2° trim. 18.138 15,5 % 2.811

3° trim. 15.670 15,3 % 2.398

4° trim. 27.002 17,8 % 4.806

2012 1° trim. 30.880 15,7 % 4.848

2° trim. 51.634 11,2 % 5.783

3° trim. 45.040 8,8 % 3.963

4° trim. 27.325 8,1 % 2.213

Totale 215.689 26.822

Procedimenti Iscritti Definiti Pendenti

iniziali finali

21.03 / 31.12.2011 742 60.810 40.162 21.390

01.01 / 31.12.2012 21.390 154.879 152.631 23.638

---------- ----------

215.689 192.793

Dal 21 marzo 2011 al 31 dicembre 2012

Iscrizioni per materia risarcimento danni da circolaz. veicoli e natanti 20,5%

diritti reali 14,0%

locazione 11,0%

contratti bancari e finanziari 9,9%

contratti assicurativi 7,0%

risarcimento danni da responsabilità medica 6,1%

altro 31,5%

Mediazione per tipologia Sul totale Tasso di successo

di procedimento se l’aderente compare

obbligatoria per legge 83,5% 43%

volontaria 13,3% 62%

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216

demandata dal giudice 2,9% 29%

obbligatoria da contratto 0,3% n.d.

Mediazione per tipologia Comparizione Tasso di successo Tasso di

definizione

di organismo dell’aderente se l’aderente compare se l’aderente

compare

CCIAA 34,4% 48,6% 16,7%

Organismi privati 25,4% 46,4% 11,8%

Ordini profess. non avvocati 28,6% 36,3% 10,4%

Ordini avvocati 26,2% 33,6% 8,8%

Media ponderata 27,0% 43,9% 11,8%

In mediazione hanno assistenza legale proponenti 81,3%

aderenti comparsi 80,6%

Valore mediano della lite euro 10.000

Durata delle procedure tribunale 1.066 giorni

(cognizione ordinaria 2010)

mediazione, aderente comparso

accordo non raggiunto 77 giorni

accordo raggiunto 65 giorni

I dati al 31.12.2012 elaborati e forniti dal Ministero della Giustizia sono riportati in

http://webstat.giustizia.it/AreaPubblica/Analisi%20e%20ricerche/Forms/Mediazione.aspx

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217

O CABIMENTO DAS CHAMADAS DEFESAS HETEROTÓPICAS DO

EXECUTADO

Gustavo José Mizrahi

Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro. Advogado inscrito na Ordem dos Advogados

do Brasil, Seção do Rio de Janeiro.

RESUMO: Este estudo aborda tanto descritiva quanto criticamente o tema da defesa

heterotópica, principalmente no tocante ao seu cabimento. Busca-se uma reflexão do

instituto a partir das garantias constitucionais do devido processo legal, do direito de ação e

do contraditório, sem deixar de lado a importância fundamental do princípio da duração

razoável do processo.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil. Execução. Defesa do executado. Defesa

heterotópica. Cabimento.

ABSTRACT: This study addresses the theme of heterotopic defense, especially with

regard to its applicability. It reflects upon this concept from a perspective of the

constitutional guarantees of due process of law and the rights of action and defense,

without neglecting the fundamental importance of reasonable duration of proceedings.

KEYWORDS: Civil Litigation Process. Implementation of legal sentence. Legal defense.

Heterotopic defense. Applicability.

1 - Introdução

As defesas do executado tipicamente previstas no Código de Processo Civil são os

embargos do executado e a impugnação ao cumprimento de sentença, previstas nos artigos

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218

7361 e 475-J, § 1º

2, respectivamente. Além deles, o executado pode de se valer da exceção

de pré-executividade para atacar as matérias de ordem pública e que não demandem a

realização de uma ampla dilação probatória.

Contudo, as referidas tradicionais defesas do executado não são as únicas. Como

será demonstrado adiante no presente trabalho, é possível que o executado utilize uma ação

judicial autônoma de conhecimento com finalidade específica de combater a execução ou

algum ato do procedimento executivo. Trata-se, portanto, da chamada defesa heterotópica.

A doutrina nomeou o instituto de defesa heterotópica, dando ênfase à sua posição

metodologicamente distinta das demais defesas utilizadas pelo executado. Seria a junção

das palavras “hetero” e “tópico”, significando lugar diferente. Optou-se em denominar

heterotópica essa defesa, pois as disposições relativas a essas diferentes ações manejáveis

pelo executado e seus eventuais reflexos sobre a execução encontrarem-se em tópicos

próprios, não inseridos no Livro II do Código de Processo Civil que trata do processo de

execução3.

Essa ação de conhecimento autônoma de impugnação é uma forma de defesa

baseada na relação de prejudicialidade jurídica externa existente entre ela e o processo de

execução. Em outras palavras, o fundamento do instituto é a matéria a ser decida na

demanda autônoma ter o poder de prejudicar o curso da execução no caso de procedência

total ou parcial.

De maneira geral, as espécies de defesas heterotópicas podem ser sistematizadas

através de uma classificação voltada para as diversas possibilidades relacionais entre elas e

a execução, como propõe Sandro Gilbert Martins4. Segundo a lógica do autor, (a) quanto

ao momento do ajuizamento, a ação prejudicial pode ser antecedente (anterior à execução)

ou incidente (quando já estiver tramitando a execução); (b) já no que tange ao efeito,

poderá ser inibitório (obstáculo ao início da execução) ou suspensivo (impedimento do

prosseguimento da execução); e, por fim, (c) referente ao objeto, ela poderá ser formal

1 Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por

meio de embargos. 2 Art. 475-J. (...). § 1o Do auto de penhora e de avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa

de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por

mandado ou pelo correio, podendo oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias. 3 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2

ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 4 Ibid. p. 245/246.

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(combate ao título executivo propriamente dito) ou causal (ausência de direito material que

ampare o título executivo).

O executado pode utilizar-se dessa forma de defesa para debater a pretensão

executiva propriamente dita, ou até aspectos processuais relativos ao processo de

execução. Na primeira hipótese (“ataque à pretensão executiva”), pode-se cogitar da ação

em que se busca a declaração de que o crédito não existe (porque jamais foi constituído,

porque já foi pago etc.) ou se tornou inexigível (p. ex., porque já está prescrita a

pretensão). Exemplifique-se, ainda, com a ação promovida depois de já finalizada a

execução, por meio da qual o executado, sustentando que o crédito inexistia, busca não

apenas uma declaração nesse sentido, mas também reaver junto ao exequente o montante

que lhe foi expropriado (repetição de indébito). Exemplo da segunda hipótese (“ataque a

aspectos processuais”) tem-se quando ação autônoma é promovida para se apontar a

nulidade da penhora e dos consequentes atos expropriatórios, sob o fundamento de que o

bem constrito era impenhorável. Considera-se também a hipótese de ação destinada a

impugnar a validade da hasta pública ou da alienação por iniciativa privada. Pode-se ainda

exemplificar com a ação destinada a obter o reconhecimento de que o documento

apresentado pelo executado não constitui título executivo – e assim por diante5.

Tais quais as outras espécies de defesa do executado anteriormente mencionadas

neste trabalho, as ações impugnativas também podem questionar apenas parte da execução.

Isso ocorrerá quando o executado/autor questionar somente parcela do crédito pretendido,

e, por via de consequência, os reflexos do ajuizamento guardarão relevância apenas à parte

questionada, como por exemplo, não será possível atribuir efeito suspensivo à execução

como um todo, mas apenas quanto à parcela controversa.

Indo adiante, não se pode dizer de antemão o procedimento a ser seguido pela

defesa heterotópica, uma vez que ele dependerá diretamente da própria natureza do meio

empregado. Em outras palavras, o rito processual deverá ser aquele tipicamente previsto

para a respectiva ação manejada pelo executado. Observe-se que a parte pode ajuizar uma

ação anulatória ou declaratória, e, nesses casos deverá ser observado o procedimento

comum ordinário ou o comum sumário, a depender do valor da pretensão, todavia, pode,

5 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 530/531.

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220

também, impetrar um mandado de segurança ou ajuizar uma ação rescisória, quando,

nesses casos, a parte deverá seguir o rito especial respectivo.

Assim, é preciso ter em mente que a defesa heterotópica é uma forma atípica de o

executado obstar a execução (processo ou fase) ou algum ato executivo. Trata-se de um

meio autônomo de impugnação que pode seguir diversos ritos, a depender da ação

ajuizada.

2 - Prejudicialidade

A questão prejudicial é uma espécie do gênero questão prévia. O processualista

Olavo de Oliveira Neto, ao debruçar-se sobre o tema, definiu a questão prévia

identificando como elemento principal a sua antecedência lógica e necessária para o

julgamento da causa principal6. Ela é todo e qualquer fundamento de fato ou de direito,

controverso, que seja antecedente lógico ao julgamento final da causa. Não se trata apenas

de um pressuposto cronológico, mas também lógico ao julgamento da questão principal.

Passando a tratar diretamente sobre a natureza jurídica da questão prejudicial

(espécie), historicamente, discutiu-se por muitos anos sobre esse aspecto em doutrina, e

uma forte corrente substancialista acreditou que ela não passaria de um pressuposto fático

de outra relação jurídica, como identificou José Carlos Barbosa Moreira7.

A mencionada corrente substancialista, todavia, não se presta a explicar

suficientemente o fenômeno da prejudicialidade, tendo em vista que a referida teoria

agasalha apenas as hipóteses de questões de direito material, não albergando as matérias

exclusivamente processuais. Na esfera da relação de prejudicialidade, diversas são as vezes

em que estaremos falando de questão unicamente de direito processual, razão pela qual a

referida corrente não merece prosperar.

E não prosperou. A definição mais aceita entre os autores para a prejudicialidade

em sentido lato é aquela que leva em conta a subordinação lógica, mostrando-se necessário

o julgamento anterior da questão subordinante à questão subordinada. Segundo Rosalina

Pinto da Costa Rodrigues, a prejudicialidade em sentido amplo ocorre quando uma questão

deve ser lógica e necessariamente decidida antes de outra, porque sua decisão influenciará

6 OLIVEIRA NETO, Olavo de. Conexão por Prejudicialidade. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994. p. 77. 7 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967. p.

38.

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221

o próprio teor da questão vinculada. É a chamada prejudicialidade lógica, porque a relação

de prejudicialidade é antes de tudo um processo lógico que se estabelece no raciocínio do

magistrado8.

Essa definição, contudo, é bastante abrangente para explicar o fenômeno da

prejudicialidade jurídica, uma vez que está fundada exclusivamente em critérios lógicos.

Dessa maneira, as críticas quanto à aplicação prática dessa teoria que se apoia em critérios

eminentemente lógicos, fizeram surgir outra teoria, majoritária em doutrina, segundo a

qual, além da anterioridade lógica, a relação de prejudicialidade jurídica ocorrerá pela

possibilidade de a questão prejudicial ser objeto de um processo, ação ou juízo autônomo9.

Em síntese, é possível dizer que haverá prejudicialidade (a) quando existir uma

condição de subordinação lógica e jurídica entre duas questões, (b) no momento em que a

solução da questão prejudicial seja potencialmente influente na questão prejudicada e (c)

nas ocasiões em que seja possível a questão subordinada ser objeto de ação autônoma. Não

basta haver uma relação condicional lógica e jurídica entre duas questões, na qual uma é

capaz de influenciar diretamente a outra. É necessário, também, que a questão influenciada

tenha aptidão para ser objeto de juízo autônomo.

Com relação à defesa heterotópica, a prejudicialidade é o canal que liga ela à

execução. A prejudicialidade é responsável pelo fato de uma demanda de conhecimento

afetar diretamente o resultado do processo de execução. Somente por meio dela é que se

faz possível existirem as defesas heterotópicas em nosso sistema processual. Segundo

Teresa Arruda Alvim Wambier, além da independência ou autonomia no que tange ao

aspecto procedimental, o elo que liga ações à execução é o da prejudicialidade. Esta

relação lógica se traduz na necessária influência que o resultado destas ações terá sobre a

execução, desde que julgadas parcial ou inteiramente procedentes. E aqui se fala em

execução futura, execução concomitante ou execução já terminada10

.

Nesse sentido, a autora Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira reconhece a

importância fundamental da referida relação de subordinação para as defesas heterotópicas.

8 PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra

devedor solvente. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 57. 9 Ibid. p. 60 10 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se

discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724.

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222

Tanto é verdade que em seu livro sobre o tema das defesas heterotópicas11

, a sobredita

autora utiliza o termo “Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra devedor

solvente” para se denominar o instituto.

É possível concluir, portanto, que a defesa heterotópica é uma controvérsia de fato

e de direito em relação à execução. Ou seja, ela é baseada na natureza prejudicial externa, e

como tal, a sua decisão tem o atributo de subordinar o julgamento da questão prejudicada,

determinado ato da execução ou a pretensão executiva propiamente. E sendo assim, a

defesa heterotópica (a), é um antecedente lógico e jurídico ao julgamento final da

execução, (b) sendo ela potencialmente influenciadora do resultado do processo

prejudicado e (c) com autonomia suficiente para ser julgada em outro processo.

3 - Aspectos gerais sobre o cabimento das defesas heterotópicas

O cabimento da defesa heterotópica é, sem sombra de dúvidas, um ponto de suma

importância, uma vez que diversos são os debates que envolvem a matéria e, sem falar, no

constante e intenso choque de princípios que o instituto propicia. A efetividade processual

entra em rota direta de colisão com o acesso à justiça. Justamente por isso, os juristas são

ardorosos na defesa de suas posições, seja pelo cabimento amplo, seja pelo cabimento

restrito.

O Código de Processo Civil regula de maneira indireta a possibilidade de o devedor

utilizar-se de uma demanda judicial para discutir um débito representado através de título

executivo. Essa conclusão se extrai do próprio art. 585, § 1.º, do Diploma processual12

,

interpretado a contrario sensu, na redação que lhe foi imprimida pela recente reforma que

vem sofrendo o Código de Processo Civil brasileiro (Lei 8.953/94). Nesse dispositivo, o

próprio legislador faz alusão a “qualquer ação relativa ao débito constante do título

executivo”. Trata-se na verdade, de reconhecimento expresso, por parte do legislador

11 PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra devedor solvente. São Paulo: Saraiva, 2001. 12 Art.585. (...) § 1oA propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe

o credor de promover-lhe a execução.

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223

ordinário, do direito a que o devedor intente outras ações para discutir se deve ou não deve

questionar o quantum da dívida13

.

Além disso, cumpre destacar que a referida disposição legal não é a única que

confere ao executado tal possibilidade. Afinal, o artigo 686, inciso V, do Código de

Processo Civil14

, bem como o artigo 38, da Lei de Execuções Fiscais15

também seriam

fundamentos legais para o cabimento da defesa heterotópica em nosso modelo processual.

Em suma, o nosso ordenamento apresenta no mínimo três fundamentos legais que

permitem reconhecer essa forma de defesa heterotópica, a saber: o § 1.º do art. 585 e o

inciso V, do art. 686, ambos do CPC, e o art. 38 da Lei de Execução Fiscal (Lei

6.830/80)16

.

A jurisprudência de nossos tribunais também vem caminhando no sentido de

acolher a possibilidade do devedor ajuizar ações prejudiciais à execução. A interpretação

que é feita ao mencionado dispositivo da lei processual é similar à realizada pela doutrina

majoritária. O principal precedente sobre a matéria nas cortes de nosso país é o REsp

677.741/RS, julgado pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do

Ministro Teori Albino Zavascki. No caso, o relator afirmou em seu voto que não existe

obstáculo para que o devedor intente uma ação judicial com escopo de combater o título

executivo, aliás, o que restou expresso na própria ementa do julgado17

.

13 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se

discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 723. 14 Art. 686. Não requerida a adjudicação e não realizada a alienação particular do bem penhorado, será

expedido o edital de hasta pública, que conterá: V - menção da existência de ônus, recurso ou causa pendente

sobre os bens a serem arrematados. 15 Art. 38. A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma

desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do

ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente

corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos. 16 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2

ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 241 17 PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL E AÇÃO ANULATÓRIA DO DÉBITO. CONEXÃO.

SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO EXEQÜENDO SEM GARANTIA DO JUÍZO.

INVIÁVEL. 1. Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe

o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o

ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver

declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja

por outra ação declaratória ou desconstitutiva. Nada impede, outrossim, que o devedor se antecipe à execução

e promova, em caráter preventivo, pedido de nulidade do título ou a declaração de inexistência da relação

obrigacional. 2. Ações dessa espécie têm natureza idêntica à dos embargos do devedor, e quando os antecedem, podem até substituir tais embargos, já que repetir seus fundamentos e causa de pedir importaria

litispendência. 3. Para dar à ação declaratória ou anulatória anterior o tratamento que daria à ação de

embargos, no tocante ao efeito suspensivo da execução, é necessário que o juízo esteja garantido. 4.

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Existe uma preocupação por parte de alguns juristas no que diz respeito ao

cabimento das defesas por meio de ação autônoma de conhecimento, em razão de

entenderem que a efetividade do processo estaria maculada diante de mais esse

instrumento defensivo conferido ao executado. Para eles, a utilização desse expediente

violaria o princípio da celeridade, pois não passaria de mais uma forma de protelação.

Pondera, portanto, Rafael de Oliveira Rodrigues, em artigo sobre o abuso do

processo por meio da defesa heterotópica, que o legislador sabe da finalidade da defesa do

executado e que ela não pode inviabilizar o próprio processo executivo a que esta defesa

está ligada. Trata-se de um sistema, um todo orgânico, dotado de um sentido lógico. Há,

decerto, que se resguardar uma etapa do processo para se garantir o direito de defesa. Mas,

de outro lado, não se pode olvidar dos demais princípios, tais como do devido processo

legal, da efetividade do processo, da duração razoável dos feitos, a fim de levar a efeito

apenas um deles18

.

Ouso divergir, todavia, do pensamento acima elucidado. Entendo que o ponto de

vista adequado para observar o instituto da defesa heterotópica é aquele que a vê como

uma ação autônoma de conhecimento. Ou seja, antes de defesa, ela é uma ação judicial

como qualquer outra, e como tal, é corolário da garantia constitucional do acesso à justiça.

Senão vejamos.

Por ser vedada, em regra, a autotutela, quando alguém sofre dano proveniente de

ato ilícito, somente o Estado poderá exercer a defesa dos seus direitos através de uma tutela

jurisdicional, tendo em vista ser ele o detentor do monopólio da força. Para tal, a legislação

previu o direito de ação, entendido ela como a forma de provocar a jurisdição. A única

saída para proteger-se de qualquer espécie de injustiça em sociedade, em regra, é através

de uma tutela jurisdicional, que apenas será concedida quando solicitada pela parte.

Partindo da premissa acima elaborada, sempre existirá o direito de agir por parte do

autor de uma demanda judicial, salvo nas hipóteses em que a sua pretensão, em tese, não

preencher os requisitos das condições da ação. E isso é de suma importância, visto que o

Inexistindo prova da garantia, é inviável a suspensão da exigibilidade do crédito exeqüendo. 5. Recurso

especial a que se nega provimento 17. 18 RODRIGUES, Rafael de Oliveira. O Abuso do Processo por Intermédio da Defesa Heterotópica.

Disponível em < http://www.redp.com.br/arquivos/redp_8a_edicao.pdf >. Acesso em 30 outubro. 2012. p.

862.

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225

princípio do acesso à justiça é garantia inviolável do nosso Estado Democrático de

Direito19

.

Assim como é possível sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito na esfera

extraprocessual, não se pode negar que também seja possível suportá-la no âmbito do

processo. Se alguma pessoa é inscrita indevidamente nos cadastros de inadimplentes, a ela

cabe ajuizar uma ação judicial, assim como, da mesma forma caberia ao executado ou

potencial executado quando entender lesado ou ameaçado. Portanto, não seria razoável

alijar alguém do direito de ação, que é conferida a todos, indistintamente.

E esse raciocínio não é novo. Ajuizar demanda autônoma de conhecimento contra

ato judicial é bastante comum na prática forense. Quando o relator de um agravo de

instrumento determina a sua conversão em agravo retido (CPC art. 522, inciso II), por

exemplo, por não ser cabível qualquer recurso contra essa decisão, resta à parte como

remédio processual o mandado de segurança contra a decisão do desembargador, por ter

sido violado o direito da parte agravante de ver o seu recurso de agravo julgado

imediatamente e não como preliminar de apelação.

É importante destacar, ainda, que, a ação impugnativa de execução não é apenas um

exercício do contraditório e da ampla defesa. É, além disso, o exercício da garantia

constitucional do direito de agir (CF art. 5º, inciso XXXV)20

. Como se viu, a ação judicial

é meio típico em sociedade para a defesa dos direitos, motivo pelo qual, limitar a priori o

cabimento seria dizer que a parte, frente a uma injustiça, não terá instrumento hábil a se

proteger e deverá suportá-la com todo o vigor que ela tem.

No mesmo sentido, segundo o processualista Sandro Gilbert Martins, reconhecer

que é possível o executado defender-se através de outras ações autônomas e prejudiciais

que não os próprios embargos à execução, além de representar corolário da garantia

constitucional da ação e do acesso à justiça (CF, art. 5.º, XXXV), decorre, entre outras

coisas, da natureza jurídica formal de ação que esse “remédio” possui21

.

Apesar disso, o Projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS nº 166 de 2010)

previa, na sua redação original, no artigo 839, § 2º que “A ausência de embargos obsta à

19NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: Processo civil, penal e

administrativo. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 171 20 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 21 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2

ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 239.

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226

propositura de ação autônoma do devedor contra o credor para discutir o crédito.”22

Ou

seja, caso o novo Código fosse aprovado com a redação do referido dispositivo da maneira

em que foi proposta, a defesa heterotópica estaria fadada à proibição quando ultrapassado o

prazo dos embargos de executado. Ao menos, infraconstitucionalmente.

Ocorre que, por se tratar de garantia constitucional, inviolável, indisponível e

irrevogável, o acesso à justiça não poderia ser limitado por simples lei ordinária. Mesmo

que viesse a ser aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da

República, tal dispositivo não seria válido, por ser inconstitucional. O processualista

Humberto Theodoro Júnior, comentando o referido projeto, afirma que a redação do que

seria o §2º, do artigo 839 seria uma verdadeira barbaridade, que atinge as raias da

inconstitucionalidade, em virtude da violação ao direito de ação (direito de acesso à

justiça) àquele que não embargar a execução nos quinze dias da lei23

.

De maneira genérica, é possível compreender que a doutrina e a jurisprudência

entendem serem perfeitamente cabíveis as medidas heterotópicas. O receio de que o

instituto venha a ser mais um meio protelatório a obstaculizar a entrega da tutela

jurisdicional não deve servir de fundamento a impedir o acesso de outrem à proteção da

jurisdição.

A utilização de um meio processual não vedado com o objetivo de alcançar uma

finalidade legítima deve ser aceito. Dizer de antemão que a defesa heterotópica é mais um

meio de protelação é presumir a má-fé do executado, e assim, alijá-lo de um instrumento

bastante eficaz para proteção de seus direitos seria um exagero. Eventual controle deve ser

realizado a posteriori pelo magistrado, debruçando-se sobre o contexto processual,

aplicando, ao caso, as punições previstas para o abuso do direito processual.

Com as proposições elaboradas até então, não se pode dizer de antemão que a

defesa heterotópica será cabível em qualquer tempo e em face de qualquer título executivo.

Essas questões serão melhor analisadas adiante. De toda forma, a perspectiva ora

apresentada, da defesa heterotópica como uma ação de conhecimento como qualquer outra,

albergada pela garantia constitucional do acesso à justiça, será importante para realizar

uma apreciação profunda nas próximas páginas.

22 Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em

<http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em 30 outubro. 2012. 23 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Primeiras observações sobre o projeto do novo Código de Processo

Civil. Disponível em <http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20100818125042.pdf>.

Acesso em 30 outubro, 2012.

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227

4 - Cabimento quanto à modalidade do título executivo

O legislador optou por realizar uma dicotomia entre os títulos executivos, criando

duas espécies distintas, quais sejam, os títulos judiciais e os títulos extrajudiciais.

Consequentemente, previu-se, também, procedimentos executivos distintos para os

processos fundados em cada uma dessas espécies. Isso porque preferiu-se proteger

juridicamente de forma distinta essas duas espécies de títulos, de acordo com o nível de

presunção de certeza de cada um deles.

Os títulos judiciais, porque produzidos com contraditório (e.g. sentença arbitral) ou

com a aquiescência do devedor (e.g. confissão de dívida), ostentam um maior grau de

certeza do que os extrajudiciais em geral, que residem em negócios realizados entre as

partes e por isso estão sempre expostos aos vícios desses negócios (nulidades, vícios do

consentimento etc.). Em razão disso, é menor a amplitude das defesas possíveis nas

execuções fundadas em títulos judiciais e maior, quando fundadas em títulos

extrajudiciais24

.

O rito para as execuções de título judicial é bem mais doloroso ao executado que o

das execuções de título extrajudicial. Basta citar como exemplo que, no caso do primeiro, o

executado é intimado para pagar no prazo de 15 dias, sob pena de multa de 10%, e somente

poderá defender-se após lavrado o termo de penhora (CPC art. 475-J, § 1º), enquanto no

segundo, o executado é citado para pagar no prazo de 3 dias ou nomear bens a penhora

(CPC art. 652), podendo apresentar os embargos no prazo de 15 dias, independente de

garantia do juízo (CPC art. 738).

Portanto, no que diz respeito aos títulos executivos extrajudiciais, não se tem muitas

dúvidas. Existe um significativo grau de incerteza do crédito constante do título, visto que

se tratam de créditos expressos em títulos crédito, contratos assinados por testemunhas,

confissões de dívida etc., embora haja a presunção relativa de certeza conferida por lei. Em

doutrina, os autores costumam concordar com a idéia de que o meio heterotópico deve ser

aceito como uma forma de defesa do executado para as hipóteses de execução por título

executivo extrajudicial. Segundo o entendimento de Leonardo Carneiro Cunha, tratando-se

24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 4. 6ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2009. p. 220

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de execução fundada em título extrajudicial, o executado, como se viu, pode defender-se

por embargos à execução ou por exceção de pré-executividade. Além desses tipos de

defesa, pode o executado intentar ações autônomas, que não são incidentais à execução,

embora lhe sejam prejudiciais25

.

Nessa mesma trilha, a jurisprudência de nossos tribunais têm acompanhado esse

pensamento. O Superior tribunal de Justiça, por exemplo, reconheceu o cabimento de ação

revisional como forma de defesa do executado em sede de execução de título executivo

extrajudicial no julgamento do REsp nº 80385/SC, de relatoria do Ministro João Otávio de

Noronha26

.

No que diz respeito ao cabimento da defesa heterotópica com relação aos títulos

judiciais, a questão é bem disputada. Isso porque os títulos em questão, em sua maioria,

teriam sido constituídos diante do contraditório, como é caso das sentenças, dos formais de

partilha, dos acordos homologados ou tiveram a aquiescência do executado. Dessa forma, a

segurança quanto à certeza do título, na hipótese, é consideravelmente maior.

O processualista Fredie Didier Junior, na edição de 2012 de seu curso sobre a

execução, incluiu um capítulo novo para tratar da defesa do executado por meio de ações

autônomas. Sobre o assunto, o autor admite o seu cabimento apenas quanto aos títulos

extrajudiciais, levando em consideração o caráter escasso da possibilidade de se rever um

título judicial. Segundo ele, o tema adquire grande relevância na execução de títulos

extrajudiciais, já que a possibilidade de revisão de títulos judiciais é escassa27

.

Todavia, embora o título executivo judicial possa estar abraçado pela coisa julgada

ou qualquer outra forma de imutabilidade, ainda restariam inúmeras hipóteses para o

cabimento da defesa heterotópica. Observe-se, exemplificativamente, que a ação rescisória

é prevista especificamente para rescindir a sentença transitada em julgado (CPC art. 485,

caput), que a lei de arbitragem prevê o cabimento de ação anulatória contra a sentença

25 DA CUNHA, Leonardo José Carneiro. As defesas do executado. In Execução Civil: Estudos em

homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 645- 662. 26 “SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. CONCOMITÂNCIA

DE AÇÃO ORDINÁRIA REVISIONAL. DECRETO-LEI N.º 70/66.70. 1. A discussão, em ação ordinária

revisional, a respeito dos valores das prestações objeto da dívida executada torna o crédito controverso,

impedindo a execução extrajudicial. 2. O trânsito em julgado da ação ordinária interposta pela ora

Recorrente, reformando a sentença que lhe era desfavorável, demonstra a inexigibilidade do crédito e a

ilegitimidade da execução. 3. Recurso parcialmente conhecido e provido.” (STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 80385/SC, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 19/05/2003, DJ 09/06/2003). 27 DIDIER JÚNIOR, Fredie et al...Curso de Direito Processual Civil. vol. 5. 4ª ed.. Bahia: Juspodvim, 2012.

p. 401.

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arbitral (Lei Federal 9.307/96, art. 33), sem contar com outras diversas circunstâncias não

tão comuns à prática forense, como o manejo de uma ação declaratória de inexistência de

sentença viciada pelo descumprimento dos requisitos do artigo 458 do Código de Processo

Civil.

Conforme o entendimento de Eduardo Talamini e de Luiz Rodrigues Wambier, na

hipótese de se tratar de título judicial, pode haver uma significativa redução das matérias

veiculáveis em ação autônoma do (suposto) devedor. No mais das vezes, o título executivo

judicial é ato protegido pela coisa julgada (ou por autoridade equivalente à coisa julgada,

como o caso da sentença arbitral). Todas as matérias já acobertadas pela coisa julgada não

poderão ser discutidas na ação autônoma do devedor. Mas isso não afasta por completo a

possibilidade de ações do (suposto) devedor prévias à execução28

.

Frente à perspectiva da defesa heterotópica como um exercício do direito

fundamental constitucionalmente garantido de agir (CF art. 5o, inciso XXXV), a sua

utilização não pode estar adstrita apenas aos débitos constantes de títulos executivos

extrajudiciais. A lesão ou ameaça de lesão a direito, como já foi explicitado, pode ocorrer

diante de qualquer espécie de título. Não se mostra, portanto, razoável impedir, a priori, o

cabimento da ação de conhecimento impugnativa de título executivo judicial.

As defesas heterotópicas, portanto, devem ser admitidas como forma abstrata de

defesa do executado em ambas as espécies de títulos executivos. Como se pode ver acima,

as injustiças não estão restritas às execuções por título extrajudicial, havendo diversas

hipóteses da sua ocorrência quando de execução por título judicial. Do contrário, não

haveria motivo para que o legislador positivasse, por exemplo, a ação rescisória ou a ação

anulatória de arbitragem.

5 - Cabimento quanto ao momento da propositura

Diante das inúmeras divergências existentes sobre o cabimento da defesa

heterotópica quanto ao momento da sua propositura, a fim de melhor organizar o estudo, a

sua analise será divida em cabimento da ação autônoma prejudicial (a) antes de instaurada

a execução, (b) durante a execução, mas antes do prazo da defesa típica, (c) durante a

28 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 532.

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execução e após o prazo da defesa típica e, por último, (d) após a sentença que extingue a

execução.

5.a - Defesa heterotópica antes de instaurada a execução

Sobre o cabimento da medida antes do início da execução, os tribunais manifestam-

se claramente no sentido da sua aceitação, tendo em vista que a ausência de um

procedimento judicial executivo não pode impossibilitar que o potencial executado utilize

um meio defensivo. Entendem, então, os magistrados que o executado não seria obrigado a

aguardar o início da execução para defender-se, podendo fazê-lo através de uma ação

autônoma de conhecimento.

Nesse sentido, é importante destacar o precedente do Superior Tribunal de Justiça,

de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que deixa explicitada a

possibilidade de o futuro executado antecipar-se à execução com uma ação de

conhecimento para destituir o crédito constante do título29

.

O objetivo precípuo da ação de conhecimento seria modelar os ditames da

execução. Aquilo que for decidido na defesa heterotópica condicionará a execução a ser

instaurada. Teresa Wambier esclarece que quando se está diante de uma ação em que o

devedor discute se deve ou o quanto deve, proposta e terminada antes que a execução seja

instaurada, molda-se a execução em função do que tenha sido decidido na ação de

conhecimento, ou pode ainda ocorrer que a execução fique mesmo prejudicada, porque se

venha a decidir que não há débito 30

.

5.b - Defesa heterotópica ajuizada durante a execução, mas antes do prazo da defesa

típica

29 PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AJUIZAMENTO

ANTERIOR DE AÇÃO DE CONHECIMENTO RELATIVA AO MESMO TÍTULO. SUSPENSÃO DA

EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA. ARTS. 265, IV, a, 585, § 1º E 791, CPC. PRECEDENTES. RECURSO

PROVIDO. - A ação de conhecimento ajuizada para rever cláusulas de contrato não impede a propositura e o

prosseguimento da execução fundada nesse título, notadamente se a esta faltam a garantia do juízo e a

oposição de embargos de devedor. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 373742/TO, rel. Min. Sálvio de

Figueiredo Teixeira, j. 05/06/2002, DJ 12/08/2002). 30 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se

discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724/725.

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Quanto ao cabimento da defesa heterotópica depois de iniciada a execução, mas

antes do prazo para a apresentação da defesa típica, os julgados afirmam ser perfeitamente

cabível, em razão do mesmo raciocínio anteriormente utilizado. Assim como na hipótese

de defesa heterotópica antes da execução, nesse caso, o executado não está obrigado a

aguardar o prazo da defesa típica para que pudesse apresentar as suas razões.

No entanto, na hipótese, conforme posicionamento majoritário da comunidade

jurídica, a demanda autônoma de conhecimento fará as vezes de defesa típica. Ou seja, em

sede de execução de título extrajudicial, por exemplo, a ação de conhecimento será tratada

como se embargos de executado fosse. Essa é uma decorrência da interpretação analógica

que é feita da defesa heterotópica com relação aos embargos do executado pela

jurisprudência dos tribunais.

E essa lógica foi perfeitamente aplicada nos REsps 435.44331

e 486.06932

, de

relatoria dos Ministros Barros Monteiro e Aldir Passarinho Júnior, respectivamente.

Nesse sentido, Leonardo Carneiro Cunha, em artigo sobre as defesas do executado,

afirma que a ação autônoma de impugnação deverá ser recebida como embargos do

devedor, cogitando-se até a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à execução,

estando o juízo devidamente garantido33

.

Daí a dizer que tendo sido apresentada a defesa heterotópica, não mais teria a parte

o direito de embargar, tendo em vista que ela já teria manifestado a sua defesa. Os

embargos seriam, na verdade, apenas uma oportunidade emendar a petição inicial da ação

autônoma de conhecimento, incluindo, eventualmente, fundamento superveniente.

Acontece que, para receber a defesa heterotópica como embargos à execução,

importaria entender que existe litispendência entre elas. Para que se impeça a utilização de

um meio em detrimento de outro, somente poderia proceder na hipótese de serem

31 EXECUÇÃO. SUSPENSÃO. AJUIZAMENTO PELO DEVEDOR DE AÇÃO REVISIONAL DE

CONTRATO. APROVEITAMENTO COMO EMBARGOS. - A ação revisional de contrato, cumulada com

anulatória de título, segundo a jurisprudência do STJ, deve receber o tratamento de embargos à execução,

com as conseqüências daí decorrentes. Recurso especial não conhecido. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº

435443/SE, rel. Min. Barros Monteiro, j. 05/08/2002, DJ 28/10/2002). 32 PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. S.F.H. AÇÃO REVISIONAL

PROPOSTA APÓS. SUSPENSÃO DO PRIMEIRO PROCESSO APÓS A PENHORA. CABIMENTO.

CPC, ART. 585, § 1º. EXEGESE. I. Fixa-se o entendimento mais recente da 4ª Turma em atribuir à ação

revisional o efeito de embargos à execução, de sorte que, após garantido o juízo pela penhora, deve ser

suspensa a cobrança até o julgamento do mérito da primeira. II. Recurso especial não conhecido. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 486069/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 02/02/2004, DJ 08/03/2004). 33 DA CUNHA, Leonardo José Carneiro. As defesas do executado. In Execução Civil: Estudos em

homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 645- 662.

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compreendidas como ações idênticas, o que, notadamente, não posso concordar. A

litispendência somente configura-se quando duas ou mais ações são idênticas, e por

identidade, entende-se mesmas partes, causa de pedir e pedido, conforme artigo 301, § 1º,

do Código de Processo Civil. O objetivo da norma foi evitar a utilização sistemática de

ações judiciais iguais, haja vista ser desnecessário que a jurisdição diga o mesmo mais de

uma vez, correndo até o risco de existirem decisões conflitantes.

E essa também é a opinião de Teresa Arruda Wambier. Para a referida

processualista, a defesa heterotópica seria plenamente cabível, desde que não tenha havido

embargos com o mesmo objeto (ou desde que estes embargos não estejam em curso), sob

pena de haver litispendência ou coisa julgada, como pressupostos processuais negativos34

.

Portanto, para que seja possível aplicar o instituto da litispendência para as

hipóteses em que for ajuizada a ação impugnativa durante a execução e antes dos embargos

é preciso aprofundar-se no caso concreto e observar o objeto das demandas. Mostra-se

cogente uma análise casuística da similitude de partes, causa de pedir e pedido entre a ação

autônoma prejudicial à execução e os embargos do executado.

5.c - Defesa heterotópica ajuizada durante a execução e após o prazo da defesa típica

Já o terceiro foco de análise, do cabimento após o prazo da defesa típica, envolve

um embate bastante acalorado. Parte dos processualistas vê a questão como sendo

direcionada às condições da ação, já outros enxergam o debate como sendo um ponto

relativo à discussão sobre a extensão dos efeitos da preclusão.

A primeira corrente afirma que careceria o autor da defesa heterotópica do devido

interesse processual. Conforme alguns, a parte teria eleito uma via inadequada para a tutela

jurisdicional pretendida. Somente a defesa típica, que foi prevista por lei especificamente

para a realização da atividade defensiva na execução é que teria o condão impugnativo.

Luiz Fux, processualista, ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça e atual do Supremo

34 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se

discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724.

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Tribunal Federal, assim entende, conforme é possível observar a partir do julgamento REsp

n° 940314/RS35

Um dos autores mais enfáticos no tema é Paulo Hoffman, que expõe com bastante

clareza o seu entendimento no artigo intitulado “Consequências da perda do prazo para

interposição dos embargos à execução. Será o executado o único litigante diferenciado de

todos os demais?” Para o referido autor, não haveria motivo justificável para que um

devedor que é regularmente citado em um processo de execução para efetuar o pagamento

da dívida no prazo de 3 dias e que simplesmente nada faz, poder, posteriormente, ajuizar

sua “defesa” por meio de ação autônoma, quando melhor lhe convier36

.

E prossegue ele indagando se seria realmente lógico deixar um processo de

execução correr com todo o custo que esse desperdício de jurisdição representa, para que,

quando bem entender, o executado ajuíze outra ação, na qual – aí sim – se dignará a

apresentar suas alegações, mesmo que o faça anos depois e como repetição de indébito.

Segundo o referido autor, não faz sentido que um devedor que tem contra si um título já

formado escolha a melhor hora para apresentar-se em juízo, enquanto o próprio credor tem

prazo fixo e certo para fazê-lo37

.

Contudo, essa lógica remete diretamente ao velho e conservador “mito dos

embargos”, que, segundo Cândido Rangel Dinamarco foi o responsável pela resistência

dos tribunais a aceitar, além dos embargos do executado, alguma outra espécie de

iniciativa processual com a qual fosse possível questionar o direito posto em execução –

35 PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL EMBARGADA. AÇÃO

DECLARATÓRIA INCIDENTAL. INTERESSE PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA. INADEQUAÇÃO DA

VIA ELEITA. 1. A propositura de ação declaratória incidental à execução fiscal já embargada denota o

descabimento da impugnação autônoma por ausência de interesse de agir; mercê do descabimento da mesma

em processo satisfativo onde não haverá definição de direitos. (...) 4. In casu, (i) a devedora, após o manejo

de embargos à execução fiscal, ajuizou ação declaratória incidental, aduzindo a nulidade da CDA, em virtude de erro matemático na elaboração da conta e por inobservância dos requisitos previstos no artigo 202, do

CTN; e (ii) os citados embargos à execução, opostos pela executada antes de garantida a execução, pugnam

pelo seu direito à compensação de créditos e à impossibilidade de cobrança da multa, de juros pela Taxa

SELIC, da cumulação de multa com juros de mora e do encargo de 20% do Decreto-Lei 1.025/69. 5. A

inadequação do instrumento processual eleito ("ação declaratória incidental"), que pretende a anulação do

título executivo que embasa a execução fiscal, denota a falta de interesse de agir, razão pela qual se impõe a

extinção do feito sem resolução de mérito, ex vi do disposto no artigo 267, VI, do CPC, revelando-se

escorreita a sentença que indeferiu liminarmente a inicial com espeque no artigo 295, III, do Codex

Processual. 6. Recurso especial desprovido. (STJ, 1ª Turma, Recurso Especial nº 940314/RS, rel. Min. Luiz

Fux, j. 24/03/2009, DJe 27/04/2009). 36 HOFFMAN, Paulo. Consequências da perda do prazo para interposição dos embargos à execução. Será o executado o único litigante diferenciado de todos os demais? . In Execução Civil: Estudos em homenagem ao

Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 676- 688. 37 Ibid. p. 679/680.

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especialmente quando a propositura de uma demanda por esse sujeito fosse posterior ao

prazo para embargar. Predominava a idéia de que fora dos embargos não há salvação38

.

Entendo que a falha está em compreender os embargos como uma espécie de

contestação. O instituto não está adstrito ao ônus da impugnação específica dos fatos, nem

demais circunstâncias próprias da resposta do réu no módulo processual de conhecimento.

Entretanto, alguns autores querem compreender a situação pós-embargos similarmente à

circunstância pós-contestação, o que, evidentemente, está equivocado.

A falta de interesse de agir pela utilização da via inadequada da defesa heterotópica

após o prazo dos embargos não é um argumento que se coaduna com o nosso sistema

processual. Limitar esse direito significa ferir de morte a garantia constitucional do direito

de ação, uma vez que, em não se podendo utilizar desse expediente após o referido prazo,

nada mais poderá salvar a parte de qualquer lesão ou ameaça de lesão que possa sofrer ou

estar sofrendo.

Além disso, a lei processual em nenhum artigo sequer proibiu a utilização desse

meio de defesa de direitos, muito pelo contrário, permite, conforme dicção do artigo 585, §

1º, como já anteriormente mencionado neste trabalho.

Ademais, se não se pode mais utilizar os embargos e, nesses casos, a defesa

heterotópica não for o meio processual adequado, então qual será? Não se pode dizer que a

parte teria utilizado meio processual inadequado por eleição de via equivocada se o

ordenamento não confere à parte qualquer outro instrumento processual que possa albergar

a sua pretensão. Não pode o ordenamento jurídico simplesmente não prever para um

litigante algum instrumento processual que lhe proteja diante de uma lesão ou ameaça de

lesão.

Isso sim é que seria fazer do executado o único litigante diferenciado de todos os

demais. A prescrição é um instituto que recai especificamente sobre pretensão material da

parte. Não recai sobre o interesse de agir, tanto é verdade que a prescrição é hipótese de

sentença com resolução do mérito, como manda o artigo 269 do Código de Processo Civil.

Como fenômeno do direito material, a prescrição poderia ser apta a atentar contra a

pretensão material do autor da demanda heterotópica, não contra o interesse processual.

Isso, sem contar com o fato de que em lugar algum do ordenamento está dito que o prazo

38 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 4. 6ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2009. p. 718.

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235

da defesa típica representaria alguma espécie de marco prescricional ou decadencial,

motivo pelo qual não se pode interpretar dessa forma o instituto.

No que tange à equivocada maneira de entender os embargos como sendo

contestação, alguns processualistas querem que os efeitos da revelia sejam aplicados ao

caso. Para que se possa pensar dessa forma, é preciso entender que após o sobredito prazo,

todas as demais matérias não arguidas por meio dos embargos estariam envenenadas pela

preclusão.

Entendo, todavia, que não se pode concluir pela aplicação da preclusão após o

prazo da defesa típica, tendo em vista o seu efeito meramente endoprocessual. Em outras

palavras, a preclusão não gera efeitos para fora do processo, e, consequentemente, não tem

força para obstar o cabimento de qualquer ação autônoma de conhecimento. Para Eduardo

Talamini e Luiz Rodrigues Wambier, com a não oposição dos embargos ou de impugnação

ao cumprimento, haverá apenas a preclusão da faculdade de exercício dessas duas formas

de ação incidental de defesa do executado (embargos e impugnação). A preclusão é

fenômeno interno ao processo em que ela opera. Não gera efeitos externos ao processo em

que se deu. Sob esse aspecto, a preclusão é diferente da coisa julgada. E, no caso, não há

dúvidas de que cabe falar apenas em preclusão, e não de coisa julgada. Essa última sempre

recai sobre uma sentença de cognição exauriente de mérito – o que obviamente não se tem

no mero decurso do prazo para interposição de embargos ou impugnação ao cumprimento

de sentença39

.

Apesar da indecisão dos tribunais, a maioria dos julgados são contrários à

admissibilidade da defesa heterotópica após o transcurso do prazo para embargar, como foi

possível perceber diante do sobrecitado julgamento do REsp nº 940314/RS, de relatoria do

Ministro Luiz Fux. Apesar disso, há um precedente contrário no próprio Superior Tribunal

de Justiça, de relatoria do Ministro Athos Gusmão Carneiro, quando compunha a 4ª

Turma40

.

39 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 533. 40 PROCESSO DE EXECUÇÃO. PRECLUSÃO 'PRO JUDICATO'. COISA JULGADA MATERIAL

INEXISTENTE. INOCORRE PRECLUSÃO, E PORTANTO A VALIDADE E EFICACIA DO TITULO

EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL PODEM SER OBJETO DE POSTERIOR AÇÃO DE

CONHECIMENTO, QUANDO NA EXECUÇÃO NÃO FOREM OPOSTOS EMBARGOS DO DEVEDOR,

E IGUALMENTE QUANDO TAIS EMBARGOS, EMBORA OPOSTOS, NÃO FORAM RECEBIDOS OU APRECIADOS EM SEU MERITO. INEXISTENCIA DE COISA JULGADA MATERIAL, E DA

IMUTABILIDADE DELA DECORRENTE. AGRAVO REGIMENTAL REJEITADO. (STJ, 4ª Turma,

Agravo Regimental no Agravo nº 8089/SP, rel. Min. Athos Carneiro, j. 23/04/1991, DJ 20/05/1991).

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236

Cumpre esclarecer, por último, que a defesa heterotópica merece cabimento após o

prazo dos embargos exclusivamente nas hipóteses em que esses (i) não foram oferecidos

ou (ii) não foram julgados em seu mérito, (iii) sem prejuízo da demanda por fundamento

superveniente. Isso porque, do contrário, a coisa julgada da decisão dos embargos

abraçaria todos os fundamentos que a parte apresentou e os que poderia ter apresentado.

Trata-se da eficácia preclusiva da coisa julgada, consagrada no artigo 474 da lei

processual41

.

5.d - Após a sentença que extingue a execução

Sobre o cabimento da defesa heterotópica após a sentença que extingue a execução,

cumpre esclarecer que deve ser somado tudo o que foi dito até então, devido ao fato de que

para compreendermos cabível a defesa heterotópica após a sentença que extingue a

execução, é preciso entender cabível nas demais situações também. Ou seja, para que seja

cabível a ação prejudicial após a execução, é cogente concordar que não existe obstáculo

ao seu manejo nas demais hipóteses anteriormente abordadas. Trata-se de um pensamento

gradual.

Indo adiante, no que diz respeito, especificamente, ao cabimento da ação autônoma

de impugnação à execução após a sentença executiva, há uma barreira a ser enfrentada

peculiar aos demais pontos trabalhados até então. Trata-se de sabermos se a sentença que

extingue a execução faz coisa julgada ou não, e assim, se pode ser revista por meio de ação

autônoma.

A coisa julgada é uma característica das sentenças de mérito, em razão do

pressuposto da segurança jurídica. Ela representa a imutabilidade do provimento

jurisdicional definidor de direitos. A sentença é lei perante as partes, e como tal, somente

pode ser modificada em situações extraordinárias, devido ao clássico choque com o

princípio de justiça. A imutabilidade das decisões é uma característica fundamental para

estabilização processual, e conseqüentemente, diminuir as inúmeras contingências que

possam aparecer às partes em litígio. Justamente por esse fato é que a doutrina realça a

importância de se atribuir esse predicado às sentenças de mérito.

41 Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e

defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.

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A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à

segurança jurídica, assegurado em todo estado democrático de direito. Dessa forma, é

garantido ao jurisdicionado que a decisão final de mérito dada à sua demanda será

definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja

pelo próprio Poder Judiciário. A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não

assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a

definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida 42

.

Paralelamente, a execução judicial está baseada no paradigma da presunção de

certeza, liquidez e exigibilidade do título executivo. Nessa toada, o princípio do desfecho

único é o volante do módulo processual executivo, já que todo processo que terminar sem a

entrega tutela que pede o exequente será um resultado processual anômalo. Portanto, o

processo executivo não demanda do Juízo uma apreciação final meritória, solucionando

uma dúvida sobre fato e/ou direito, como é necessária no módulo processual de

conhecimento. A sentença que extingue a execução não tem o que decidir, mas apenas

determinar o fim de uma fase processual. E exatamente por isso que o provimento judicial

que termina a execução chama-se sentença, exclusivamente por dar fim a uma fase do

processo.

Diante disso, é inegável concluir que a sentença que extingue a execução não faz

coisa julgada. Em outras palavras, essa é uma decisão que não aproveita a característica de

imutabilidade. Liga-se, assim, a coisa julgada às declarações de vontade concreta da lei

formuladas pelo órgão judicial nas soluções dos litígios. É fato que só ocorre no processo

de cognição, pois só nele é que a tutela jurisdicional consiste em sentenças definidoras do

direito da parte. No processo de execução, a atividade do juiz é material, prática,

consistente em tornar efetivo um direito declarado antes do próprio processo executivo43

..

Ultrapassado isso, observa-se que majoritariamente em doutrina é aceita a defesa

heterotópica após a sentença da execução. Trata-se apenas de uma aplicação lógica do

exposto sobre o efeito exclusivamente endoprocessual da preclusão e a mutabilidade da

sentença que determina o fim da execução. Diante desses pressupostos, inexiste óbice para

que as ações autônoma de conhecimento sejam utilizadas com a finalidade de atacar a

42 DIDIER JÚNIOR, Fredie et al...Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 10ª ed.. Bahia: Juspodvim, 2008. p. 407/408. 43 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 26ª ed. São Paulo:

Livraria Universitária de Direito, 2009. p. 513.

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execução já finda. Ressalte-se que nesses casos o executado poderá ainda pedir a repetição

do indébito.

Asseveram nesse sentido os autores Eduardo Talamini e Luiz Rodrigues Wambier.

Para eles, a sentença que extingue a execução por haver sido satisfeito o crédito não faz

coisa julgada em relação à existência de tal crédito nem tampouco acerca da validade do

procedimento que está ali se encerrado. Não se trata de uma sentença cognitiva de mérito.

Bem por isso, o executado, mesmo depois de encerrada por sentença a execução, poderá

propor demanda pleiteando o reconhecimento da inexistência do crédito ou a invalidade

dos atos processuais e pedir a restituição do que foi entregue ao exequente às suas custas44

.

Sendo assim, como foi possível perceber, outra conclusão não se pode ter a não ser

a de que o manejo da defesa heterotópica após a sentença que dá fim à execução é

completamente possível em nosso modelo processual, diante da inexistência de coisa

julgada e em valorização à garantia constitucional do direito de ação.

6 – Conclusão

A garantia de um direito de defesa amplo ao executado é medida de extrema

importância para o direito processual civil brasileiro. Possibilitar que o executado tenha

ciência e manifeste-se sobre os atos processuais praticados é a melhor forma de impedir

injustiças perpetradas diante da jurisdição executiva. Somente assim o processo poderá

alcançar um resultado adequado à verdade material.

Sem sombra de dúvidas, a execução é o verdadeiro palco para a efetivação dos

direitos ou ditos direitos, sendo a coerção o principal instrumento da jurisdição. Justamente

por esse fato, uma execução infundada representa uma injustiça expropriatória, o que é

amplamente repugnado. Tanto é que, há muito tempo, a doutrina, já defende a própria

utilização de meios defensivos endoprocessuais, para que se impeça o prosseguimento de

execuções sem fundamento.

Baseado na importância da defesa do executado como um meio de bloqueio de

injustiças processuais, a prática desenvolveu um instrumento curioso, denominado de

defesa heterotópica. Estamos nos referindo a uma ação prejudicial à execução ajuizada

44 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 534.

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pelo executado, e com isso, passível de influenciar o resultado da demanda de execução. É,

portanto, mais um instrumento processual defensivo à disposição do executado.

Ocorre que, antes mesmo de ser uma defesa, ela é uma ação, e como tal, o seu

exercício é garantido constitucionalmente (Constituição Federal art. 5º, inciso XXXV). Em

outras palavras, o executado utiliza-se do direito de ação como uma forma de defender-se

de um ato injusto contra si, tal qual qualquer pessoa comum que ajuíza uma demanda em

razão de lesão ou ameaça de lesão a direito. Para que se possa dizer que o executado terá

direito a ação, bastaria estar demonstrado o preenchimento das condições da ação e nada

mais.

Visto dessa forma, e não como apenas um substitutivo dos embargos ou qualquer

outro meio de defesa tipicamente previsto, a defesa heterotópica é um direito garantido

pela própria Carta de 1988. Sendo assim, ela não pode ser retirada do ordenamento

processual por meio de uma simples mudança do Código de Processo Civil, sob pena de

reputar-se inconstitucional a disposição infraconstitucional que assim determinar.

Cumpre esclarecer, por fim, que permitir a utilização da defesa heterotópica e dar-

lhe máxima eficácia é apenas garantir um instrumento de consecução de direitos. O

executado somente logrará êxito se realmente tiver o direito alegado. Não há razões para

temor, tendo em vista que dar ao executado a oportunidade de proteção não significa, a

priori, postergar a entrega da tutela material pretendida pelo exequente.

A defesa heterotópica é, portanto, medida que só vem a engrandecer o processo

civil pátrio, já que representa um instrumento de barreira às injustiças perpetradas pela via

processual. E, afinal, não há nada pior em um modelo democrático, do que uma

intervenção estatal injusta, como, por exemplo, uma execução judicial infundada.

7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

CLASS ACTIONS AND DIFFUSE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY

Gustavo Neroni Fernandes

Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Maringá –

UEM e membro do Núcleo de Estudos Constitucionais Prof. Dr.

Zulmar Fachin (NEC-UEM).

Orientador: Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva

Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá

(1980), mestrado em Direito Negocial pela Universidade

Estadual de Londrina (2004), doutorado em Direito (Sistema

Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo

de Ensino (2011). É professor adjunto da Universidade Estadual

de Maringá - UEM e do Curso de Mestrado em Direito do

Centro Universitário de Maringá - CESUMAR, e advogado -

Advocacia Campos Silva.

RESUMO: A nova ordem de direitos, num contexto de Estado Social, pugna pela proteção

estatal dos direitos difusos e coletivos. Dita tutela, naturalmente e ainda mais considerando o

neoconstitucionalismo, compreende a atuação da jurisdição constitucional. Esta, quando se

manifesta em sua modalidade difusa, enseja uma enormidade de questões aparentemente

controversas em relação à ação civil pública. O que se pretende é enfrentar estas

problematizações. Submeter as decisões dos tribunais, notadamente o Supremo Tribunal

Federal, ao crivo da doutrina e da Teoria do Direito de modo que, em alguma medida, seja

possível compatibilizar os dois institutos, indispensáveis no contexto de sociedades de massa,

promovendo o acesso à justiça constitucional.

PALAVRAS CHAVE: ação civil pública; jurisdição constitucional; controle difuso; acesso à

justiça.

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ABSTRACT: The new order rights in the context of the welfare state, calls for the state

protection of diffuse and collective rights. This tutelage, of course, and even more so

considering the neoconstitutionalism, comprises practice of constitutional jurisdiction. This

one, when it is manifested in its diffuse form, entails a multitude of seemingly controversial

issues regarding the class actions. The aim is to address these problematizations. Submit the

decisions of the courts, especially the Supreme Court, to the test of doctrine and theory of law

so that, to some extent, it is possible to reconcile the two institutes, which are essential in the

context of mass societies and to promote access to constitutional justice .

KEYWORDS: class actions; constitutional jurisdiction; diffuse control, access to justice.

INTRODUÇÃO

Diz-se que o Brasil adota o Sistema Misto de Constitucionalidade. A rigor,

trata-se de uma incorreção, pois neste sistema o controle é exercido parte exclusivamente por

um órgão de natureza política e parte por um órgão jurisdicional. É o que ocorre, p. ex., na

Suíça, segundo José Afonso da Silva.1 Não procede, portanto, a afirmação inicial, pois, na

República Federativa do Brasil, a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou

ameaça a direito (art. 5º, XXXV da CF – Constituição Federal) ao que se tem

necessariamente admitido no por aqui o que sob o critério exposto é chamado Controle

Jurisdicional de Constitucionalidade.2

É correto dizer, por sua vez, que o ordenamento jurídico brasileiro adota o

Sistema Híbrido de Constitucionalidade. Sob outro parâmetro, significa que na jurisdição

constitucional tupiniquim se tem duas sortes de controle: perpetrado por via de exceção ou

por via de ação.3

1 O controle misto realiza-se quando a constituição submete certas categorias de leis ao controle político e

outras ao controle jurisdicional, como ocorre na Suíça, onde as leis federais ficam sob controle político da

Assembleia Nacional, e as leis locais sob o controle jurisdicional (In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 49, 2005). 2 Idem. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 325, 2004.

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O controle de constitucionalidade somente foi introduzido no direito brasileiro

com a Constituição Republicana de 1891. Esta, contudo, não iniciou as duas modalidades,

mas apenas a via de exceção.4 Anota Paulo Bonavides que este tipo de controle seria o mais

apto a prover a defesa do cidadão, pois toda demanda que suscitasse controvérsia

constitucional de direitos individuais (e aqui se vislumbra a possibilidade de acrescentar os

metaindividuais) abriria ao cidadão uma via recursal para o fim de proteger seus direitos

fundamentais.5

Sucessivamente, as constituições brasileiras, sem afastar o controle por

exceção já instituído, sedimentaram elementos que desembocariam na jurisdição

constitucional tal como a conhecemos hoje. Nesse sentido a Ação Direta de

Inconstitucionalidade – ADIn - Interventiva (CF/1934), a ADIn Genérica (CF/1946 –

instituída pela Emenda Constitucional – EC - 16/65), a ADIn por Omissão (CF/1988), a

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF (CF/1988) e a Ação

Declaratória de Constitucionalidade - ADC (CF/1988 – EC 03/93). Deste modo, pode-se

concluir com José Afonso da Silva que à vista da Constituição vigente, temos a

inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controle de constitucionalidade é o

jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo

Tribunal Federal.6

E por falar em siglas, no que tange à ACP – Ação Civil Pública, esta surgiu

num contexto social muito peculiar, impulsionada pela terceira geração de direitos

fundamentais e seguidamente à segunda onda renovatória do direito processual. Muito há que

se falar sobre estes eventos, mas cumpre aqui fazer apenas uma menção propedêutica.

Embora tenha humanizado a ideia estatal na medida em que democratizou a

Teoria do Estado Moderno, o Estado Liberal viu-se condenado à morte por tratar-se de um

Estado de uma classe – a burguesia. Fundado no liberalismo, este postulado houve de dar

espaço às novas teorias. Inspirado, dentre outros, por Rousseau, Hegel e Marx, o Estado

4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 50. Conforme preceitua Gilmar

Ferreira Mendes, uma figura prévia ao controle abstrato de constitucionalidade a ser instituído no Brasil, a partir

da CF/1934, foi a representação interventiva. V. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 193, 2004. 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 325. 6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 51.

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Social é, sob certo aspecto, decorrência do dirigismo que a tecnologia e o adiantamento das

ideias de colaboração humana e social impuseram ao século.7

Não se faz dispendioso trazer à baila o Estado Social, pois há uma ligação

necessária entre este e a terceira geração de direitos fundamentais, como categoria de Estado

que poderia coroar esses direitos. Argumenta Norberto Bobbio que esta dimensão de direitos

compreende uma categoria ainda muito heterogênea. Os direitos de liberdade demandam um

não agir do Estado, os direitos sociais uma atitude positiva por parte daquele. Nos direitos de

terceira geração, por seu turno, assim como nos de quarta, pode-se estar diante de uma

exigência tanto de um quanto de outro.8 Isto talvez porque a relação jurídica que se estabelece

não é entre indivíduo e Estado como ocorre geralmente nas duas primeiras categorias.

Aduz Bonavides que a Revolução Francesa teria preconizado a evolução dos

direitos do homem em seu lema histórico: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Corresponderia a esta última os direitos de terceira geração, que poderiam mais

adequadamente ser expressos por solidariedade. Tendem a cristalizar-se no fim do século XX

enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um

indivíduo, um grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero

humano mesmo.9 Está-se aqui a falar de direitos metaindividuais ou transidividuais, objeto da

ACP.

Esta ordem de direitos está umbilicalmente associada à Revolução Industrial.

Em verdade, argumenta a doutrina majoritária que o surgimento dos direitos transindividuais

seria mais propriamente dito uma evidenciação, posto que sempre existiram.10

Sói estranho

7 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, p. 145, 2001.

O autor se refere ao século XX. 8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 5-6, 2004. Contudo, sob outra ótica,

principalmente considerando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais – algo posterior a Bobbio, é possível

dizer que os direitos de primeira e segunda geração também podem demandar um comportamento tanto positivo quanto negativo por parte do Estado. Anota Ingo Wolfgang Sarlet: [...] também os direitos sociais (sendo ou

não, tidos como fundamentais) abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos (negativos),

partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida ao titular do direito, bem

como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os direitos de não-intervenção na liberdade

pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela Constituição) apresentam uma dimensão positiva (já que sua

efetivação reclama uma atuação positiva do Estado e da Sociedade), ao passo que os direitos a prestações

(positivos) fundamentam também posições subjetivas negativas, notadamente quando se cuida de sua proteção

contra ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, mas também por parte de organizações sociais e de

particulares (In SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: seu Conteúdo, Eficácia

e Efetividade no atual Marco Jurídico-Constitucional Brasileiro. In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo

Wolfgang (Org.s). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 218, 2009). 9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 562-569. 10 LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 32, 2003.

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então que somente na segunda metade do século XX tenham despertado o interesse dos

juristas, não por acaso contemporaneamente à sociedade de massa e todos problemas a ela

inerentes. Nessa esteira observa Mancuso: na sociedade globalizada não há lugar para o

indivíduo; ele é tragado pela roda viva dos grupos e corporações [...] indivíduos são

agrupados em grandes classes ou categorias, e como tais, normatizados.11

Do exposto no parágrafo anterior pode-se depreender a dimensão da

importância da defesa desses interesses em juízo. Historicamente, no direito brasileiro, já

existiam maneiras de, mesmo que de forma rudimentar, efetuar a sua tutela, tais como a ação

popular (presente em quase todas as Constituições que vigoraram no país).12

Mas apenas isto

seria assaz insuficiente13

para resguardar os novos direitos.14

A tutela dos direitos difusos constitui um esforço no aperfeiçoamento do

acesso à justiça. Mais especificamente, para Capelletti e Garth, a representação dos interesses

difusos perfaz a segunda solução prática para os problemas de acesso à justiça. Vencida a

questão do acesso dos pobres (não que ela pudesse ser superada amiúde) far-se-ia necessário

criar mecanismos para tutelar direitos os quais os titulares não podem comparecer em juízo

para defender.15

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a

11 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. 6ª ed. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, p. 90, 2004. 12 Nesse sentido anota José Afonso da Silva que a origem das ações populares perde-se no Direito Romano. O

nome ação popular deriva do fato de atribuir-se ao povo ou a parcela dele, legitimidade para pleitear, por

qualquer de seus membros, a tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence, ut singuli, mas à

coletividade. [...] O que lhe dá conotação essencial é a natureza impessoal do interesse defendido por meio

dela: interesse da coletividade (In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p.

462). Ainda, segundo Hely Lopes Meirelles, o beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo,

titular do direito subjetivo ao governo honesto (In MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. São

Paulo: Malheiros, p. 127, 2008). Este, contudo, para o mesmo autor, não é o caso do Mandado de Segurança

Coletivo: entendemos que somente cabe o mandado de segurança coletivo quando existe direito líquido e certo

dos associados, e no interesse dos mesmos é que a entidade, como substituto processual, poderá impetrar a

segurança, não se admitindo, pois, a utilização do mandado de segurança coletivo para defesa de interesses

difusos, que deverão ser protegidos pela ação civil pública (In MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Op. cit. p. 30). 13 Hugo Nigro Mazzilli, diferenciando os institutos da ação popular e da ACP, aduz que enquanto o objeto da

primeira é mais limitado (anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à

moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural - art. 5, LXXIII CF) maior

gama de interesses pode ser tutelada na ACP. V. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em

Juízo. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 150, 2011. 14 Expressão muito utilizada por Norberto Bobbio, para quem esses direitos se multiplicam e decorrem de três

fatores: i) o aumento de bens a serem tutelados; ii) extensão da titularidade dos direitos a entes que não o homem

e iii) a compreensão do homem não mais como ente individual e abstrato, mas na concretude de seu ser em

sociedade. V. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Op. cit. p. 63. 15 Cappelletti e Garth elencam nesse sentido: i) a ação governamental, direcionada na tutela inclusive nas vias administrativas, que tem por escopo a previsão de que um departamento ligado ao Estado viabilizaria a tutela dos

interesses difusos – seria, grosso modo, o Ministério Público; ii) a técnica do procurador-geral privado, a fim de

permitir a propositura, por indivíduos, de ações em defesa dos interesses coletivos e iii) a técnica do advogado

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proteção dos direitos difusos.16

Pode-se dizer inusitado para o juiz da época, bitolado em um

conceito hermético de partes (de que tutelam seus interesses individuais), julgar o feito sem

ouvi-las. E o que dizer da coisa julgada? Era necessário legitimar algo ou alguém para que

representasse em juízo a coletividade, sepultando, assim, a noção individualista do processo.

Neste contexto, no Brasil surgiria, após debates doutrinários e processo

legislativo com participação ampla, a festejada Lei 7.347/85.17

Em seus anos de vida e

constante gestação, a ACP alimentou a doutrina com uma infinidade de assuntos suscitados

desde a sua criação, tais como o alcance da coisa julgada, legitimação ativa, reparação das

lesões individuais... Seria inocente imaginar que em algum momento a tutela dos direitos

difusos não cruzaria com a jurisdição constitucional, pois esta deve ser levada a efeito a todo

o momento. Aliás, como foi dito linhas atrás, esta se manifesta inclusive pela via de exceção,

também chamada de controle difuso de constitucionalidade, que é aquele exercitável perante o

caso concreto.18

Porém, a decisão em sede de ACP gera efeitos erga omnes (art. 16 da Lei

7.347/85 com redação dada pela Lei 9.949/97). A controvérsia giraria em torno do fato de

que, ao atribuir esse efeito à decisão que reconhece a inconstitucionalidade de lei ou ato

normativo, estaria o juiz de primeiro grau por usurpar a competência do STF em julgar os

casos de controle concentrado de constitucionalidade.19

Seria lícito ao juízo de primeiro grau

suspender a aplicação de uma dada norma ou ato normativo federal ou estadual em face da

CF? Qual seria a eficácia desta decisão? Em sede de ACP a decisão que efetua controle

particular do interesse privado, que consistiria no reconhecimento de grupos e consequente legitimação para

atuar enquanto associação na defesa dos interesses de seus membros (V. CAPELLETTI, Mauro; GARTH,

Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 49-67). 16 Idem. 17 O desenvolvimento da defesa judicial dos interesses coletivos, no Brasil, passa, numa primeira etapa, pelo

surgimento de leis extravagantes e dispersas, que previam a possibilidade de certas entidades e organizações

ajuizarem, em nome próprio, ações para a defesa de direitos coletivos ou individuais alheios (In MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, p. 191, 2002). Sob a liderança de Ada Pellegrini Grinover, um grupo seleto de juristas elaborou um

anteprojeto de lei que foi encampado pela Câmara dos Deputados. O projeto de lei fora debatido no meio

acadêmico surgindo outro anteprojeto em que se cunhou o nome Ação Civil Pública. Na lei, a menção que se

fazia à possibilidade da tutela de qualquer outro interesse difuso ou coletivo (art. 1, IV Lei 7.347/85) foi vetada

retornando ao microssistema somente quando da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (Lei

8.078/90). Com a Lei 7.347/85, pode-se constatar, ainda, a notória expansão que, supervenientemente, a

Constituição deu à tutela coletiva além das alterações pelas quais passou a Lei de Ação Civil Pública e outros

diplomas esparsos tal como o Estatuto do Idoso, Lei Antitruste... (V. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro.

Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. Op. cit. p. 191-199). Por isso dizer que a tutela coletiva, no

Brasil, está em constante gestação, porém, não se exaure com a Lei 7.347/85. 18 Considerado por Paulo Bonavides o mais apto a promover a defesa do cidadão – vide nota n. 5 supra. 19 Viu-se também, com fulcro em José Afonso da Silva, que o controle concentrado é de competência do

Supremo – vide nota n. 6 supra.

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meramente incidental de constitucionalidade teria a eficácia limitada às partes envolvidas na

controvérsia ou, nestes casos, reveste-se de objetividade similar a de um controle

concentrado? São essas as questões que se passa a enfrentar.

1. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

– USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO

O que se pretende vedar é a utilização da ACP como sucedâneo da ADIn que

se preste a burlar o sistema constitucional, retirando da Suprema Corte a competência para o

controle abstrato de constitucionalidade. Isto, contudo, sem desprover a ação de sua finalidade

precípua que é a tutela dos direitos difusos ou retirando-lhe a eficácia.

O controle difuso de constitucionalidade tem por característica o fato de que a

sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão

somente à sua não aplicação ao caso particular objeto da demanda.20

Por isso diz-se que o

julgado não ataca a lei em tese (ou in abstracto), a coisa julgada sobre esse aspecto é relativa,

isto é, gera efeitos endoprocessuais de modo que a eficácia é intra partes. Nada obsta, pois a

que outro processo, em casos análogos, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a

mesma lei ser eventualmente aplicada.21

A ACP, por sua vez, fará coisa julgada erga omnes (art. 16 da Lei 7.347/85

com redação dada pela Lei 9.949/97), o que é característico das decisões de mérito proferidas

pelo Supremo na ADIn ou ADC (art. 102, par. 2º CF – com redação dada pela EC 45/04).22

Assim, haveria objetivação,23

prima facie, do controle difuso quando exercido em sede de

20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 302-303. 21 Idem. 22 Diferente não poderia ser. Isto porque, é de se lembrar, as decisões proferidas nesses casos são ambivalentes – art. 24 Lei 9.868/99. 23 Objetivação esta já por demais inculcada. Observa Gilmar Ferreira Mendes que a Constituição de 1988

reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso ao ampliar, de forma marcante, a

legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que,

praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal

mediante processo de controle abstrato de normas (In MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio

Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 1104,

2009). Somem-se a isso os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, ambos introduzidos pela EC

45/04. Importante destacar, contudo, com Gilberto Schafer, que a ACP não é um processo objetivo. Isto porque,

na ACP, existem partes e que não são apenas formais. No polo passivo, há um (ou vários) réu, conforme for a

relação de direito material em jogo. Há uma vasta possibilidade conforme seja a alegação das mais diversas. São réus causadores de danos, responsáveis por situações ou fatos ensejadores de uma ação danosa. Pode ser

réu qualquer pessoa física ou jurídica, a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal, inclusive as estatais,

entidades autárquicas ou paraestatais, porque tanto estas quanto aquelas podem infringir normas de direito

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ACP, pois esta lhe acrescenta o componente caracterizador do controle concentrado.

Entendendo dessa forma, decidiu o STF, num dos primeiros casos a bater às portas do

Pretório, em reclamação constitucional de relatoria do Min. Francisco Rezek:

RECLAMAÇÃO. CONTROLE CONCENTRADO. COMPETÊNCIA

DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. As ações em curso na 2ª e

3ª varas da Fazenda Pública da comarca de São Paulo – objeto da

presente reclamação – não visam o julgamento de uma relação jurídica

concreta, mas ao da validade de lei em tese, de competência exclusiva

do Supremo Tribunal (art. 102, I, a da CF). Configurada a usurpação

da competência do Supremo para o controle concentrado, declara-se a

nulidade ab initio das referidas ações, determinando o seu

arquivamento, por não possuírem as autoras legitimidade ativa para a

propositura da ação direta de inconstitucionalidade.24

No julgado, 27 empresas cinematográficas do Estado de São Paulo ajuizaram

ação ordinária distribuída à 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca paulistana, pedindo para

que fosse julgada procedente suspendendo, deste modo, a aplicação da Lei 7.844/9225

do

estado paulista regulamentada pelo Dec. 35.606/92, posto que inconstitucionais. O Sindicato

das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado de São Paulo também ingressou com

ação declaratória da mesma inconstitucionalidade cumulada com ação indenizatória

distribuída à 3ª Vara da Fazenda Pública do mesmo foro. A sentença do juiz da 3ª Vara

acolheu o pleito da inconstitucionalidade afastando o de indenização. Argumentara que não

material de proteção ao meio ambiente ou consumidor (In SCHAFER, Gilberto. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 126, 2002). 24 STF - Rcl: 434/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Francisco Rezek, Data de Julgamento: 10/12/1994, Data de

Publicação: DJ 09-12-1994. Comentando o julgado em tela, a opinião de Gilmar Ferreira Mendes: essa

orientação da Suprema Corte reforça a ideia desenvolvida de que eventual esforço dissimulatório por parte do

requerente da ação civil pública haverá de restar ainda mais evidente, porquanto, diversamente na situação

referida no precedente citado, o autor aqui pede tutela genérica do interesse público, devendo, por isso, a

decisão proferida ter eficácia erga omnes. Assim, eventual pronúncia de inconstitucionalidade da lei levada a

efeito pelo juízo monocrático terá força idêntica à da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no

controle direto de inconstitucionalidade. (In MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de

Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva,

p. 164, 2003). 25 Assegura a estudantes o direito ao pagamento de meia entrada em espetáculos esportivos, culturais e de lazer,

e dá providências correlatas.

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foi declarada a inconstitucionalidade da lei estadual, mas seus efeitos é que foram atacados.

No entanto, entendeu a Corte que as ações não visavam o julgamento de uma relação jurídica

concreta, mas ao da validade de lei em tese, julgando procedente a reclamação.

Note que não se está aqui, propriamente, a tratar de ACP. Contudo, não se pode

negar o caráter coletivo da pretensão. Está-se diante de importante julgado que iluminou os

caminhos da jurisprudência nesse assunto, sendo citado em inúmeros outros casos

solucionados pelo Supremo e referentes diretamente à ACP acostada ao tema estudado. É que

a pretensão das empresas cinematográficas tanto quanto do sindicato era obter aquilo que a

CF somente conferiu aos legitimados ativos do art. 103 CF - pretender a declaração de

inconstitucionalidade de lei em tese com efeitos erga omnes, justamente o que se quer vedar à

ACP.

Acertada, pois, a decisão de vedar a utilização da ACP como simulacro da

ADIn, posto que esta é de competência originária do Supremo (art. 102, I, “a” CF) e a busca

de sua finalidade por meio de ACP, que é de competência do juízo de primeiro grau (art. 2 da

Lei 7.347/85), acabaria por consistir em grave inconstitucionalidade fundada na usurpação de

competência da Suprema Corte.

Ademais, não deve prevalecer o argumento de que, por versar sobre questão

constitucional, a ação coletiva que tramita perante o juízo de primeiro grau poderia alcançar

facilmente o STF via recurso extraordinário (art. 102, III CF). Isto porque o controle de

constitucionalidade está necessariamente associado à supremacia da Constituição,26

cuja

proteção cabe precipuamente ao STF (art. 102, caput CF), o órgão que a Carta Magna elegeu

para dar a palavra final (interpretação) neste assunto. Não obsta, deveras, que o controle por

meio de exceção seja levado a cabo por todo juiz de ofício, inclusive.27

Toda e qualquer

decisão que contrarie dispositivo constitucional (Art. 102, III, “a” CF - o que supostamente

pode ocorrer mediante a declaração incidental de inconstitucionalidade) pode ser alçada à

Suprema Corte por meio do recurso extraordinário. Se não o for, haja vista o trânsito em

julgado ou ausência de repercussão geral (art. 102, par. 3º CF/88 – parágrafo incluído pela EC

45/04),28

a decisão que fizer a coisa julgada, mesmo que inconstitucional, o fará entre as

26 O princípio da Supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e

preceitos da Constituição. In. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 46. 27 STF – RE: 117.805 PR, 1ª Turma, Rel.: Min. Sepúlveda Pertence, Data de Julgamento: 03/05. 1993, Data de Publicação: DJ 27/08/1993. Para o precedente internacional, vide caso Madison versus Marbury (1803). 28 Segundo José Miguel Garcia Medina, a repercussão geral deverá ser pressuposta em um número considerável

de ações coletivas, só pelo fato de serem coletivas (ver MEDINA, José Miguel Garcia. Variações Recentes sobre

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partes litigantes, isto é, terá efeito intra partes, o que não se poderia vislumbrar na ACP que

produz efeitos erga omnes. Conferir este efeito à sentença ou acórdão que alcançar a coisa

julgada no juízo de primeiro grau ou tribunal local, concederia a estes órgãos um poder que a

Constituição não atribuiu nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal – efeitos erga omnes em

sede de controle difuso. Vide o magistério de Gilmar Ferreira Mendes:

Em outros termos, admitida a utilização da ação civil pública como

instrumento adequando de controle de constitucionalidade, tem-se

ipso jure a outorga direta à jurisdição ordinária de primeiro grau de

poderes que a Constituição não assegura sequer ao Supremo Tribunal

Federal. É que, como visto, a decisão sobre a constitucionalidade da

lei proferida pela Corte no caso concreto tem, necessária e

inevitavelmente, eficácia inter partes, dependendo a sua extensão da

decisão do Senado Federal. [...] ainda que se desenvolvam esforços no

sentido de formular pretensão diversa, toda vez que na ação civil

evidente que a medida ou providência que se pretende questionar é a

própria lei ou ato normativo, restará inequívoco que se trata mesmo é

de uma impugnação direta de lei. [...] para que não se chegue a um

resultado que subverta todo sistema de controle de constitucionalidade

adotado pelo Brasil, tem-se de admitir a inidoneidade completa da

ação civil pública como instrumento de controle de

constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle

direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a

decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das

partes formais.29

os Recursos Extraordinário e Especial – Breves Considerações. In FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER,

Tereza Arruda Alvim (Org.s). Processo e Constituição: Estudos em Homenagem ao Professor José Carlos

Barbosa Moreira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 1058-1059, 2006). Isto deve se dar justamente

porque, embora possa não haver relevância que transcenda o caso concreto, as ações coletivas revestem-se de interesse geral – tal qual a ação popular. 29 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.)

Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 162-163.

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Nesse aspecto, por conseguinte, são consonantes a doutrina30

e a

jurisprudência31

atuais de que não se deve conferir à decisão os efeitos erga omnes típicos da

ACP na parte que, em sede de controle difuso de constitucionalidade, declarar incidenter

tantum a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo em tese.

2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

– PEDIDO E CAUSA DE PEDIR OU QUANDO A TESE SE TORNA POSSÍVEL?

Não obstante o posicionamento do Pretório Excelso no item anterior, a Corte

negou provimento à Reclamação n. 602-6/SP, de relatoria do Min. Ilmar Galvão suscitada

sobre caso que, em sede de ACP, corte local condenou instituição bancária à correção de

índices da caderneta de poupança afastando por inconstitucionalidade a incidência da norma

que previa índice menor:

Reclamação. Decisão que, em Ação Civil Pública, condenou instituição

bancária a complementar os rendimentos de caderneta de poupança de

seus correntistas, com base em índice até então vigente, após afastar a

aplicação da norma que o havia reduzido, por considerá-la incompatível

com a Constituição. Alegada usurpação da competência do Supremo

Tribunal Federal, prevista no art. 102, I, a, da CF. Improcedência da

alegação, tendo em vista tratar-se de ação ajuizada, entre partes

contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e

perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais

poderia ser alcançado pelo Reclamado em sede de controle in abstracto

de ato normativo. Quadro em que não sobra espaço para falar em

invasão, pela corte reclamada, da jurisdição concentrada privativa do

Supremo Tribunal Federal. Improcedência da Reclamação.32

30 Além do supramencionado Gilmar Ferreira Mendes: MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses

Difusos em Juízo. Op. cit. p. 143-147. Ainda: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas,

p. 748-751, 2011. 31 A Reclamação Constitucional de relatoria do Min. Celso de Mello cita inúmeros precedentes, v.: STF - Rcl:

1898/DF, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 02/02/2004, Data de Publicação: DJ 19/02/2004. 32 STF – Rcl: 602-6/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Ilmar Galvão, Data de Julgamento: 03/09/07, Data de

Publicação: DJ 14/02/03.

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Esta decisão permite verificar uma orientação em voga no Supremo Tribunal

Federal de que é possível distinguir a ACP que tenha por objeto a declaração de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo da que a questão constitucional figure como

simples questão prejudicial de mérito.33

Observa Mazzilli que, assim como ocorre em ações

populares e mandados de segurança, ou em qualquer outra ação cível, a

inconstitucionalidade de um ato normativo pode ser causa de pedir (não o próprio pedido) de

uma ação civil pública.34

Por conseguinte, também é possível a declaração incidental de

inconstitucionalidade de questão prejudicial, desde que indispensável à resolução do litígio

principal.35

O Supremo julgou no mesmo dia e no mesmo sentido a Reclamação 600-0/SP

relatada pelo Min. Néri da Silveira, vide a ementa:

RECLAMAÇÃO. 2. Ação Civil Pública contra instituição bancária,

objetivando a condenação da ré ao pagamento da “diferença entre a

inflação do mês de Março de 1990, apurada pelo IBGE, e o índice

aplicado para crédito nas cadernetas de poupança, com vencimento

entre 14 a 30 de Abril de 1990, mais juros de 0,5% ao mês, correção

sobre o saldo, devendo o valor a ser pago a cada um fixar-se em

execução de sentença.” 3. Ação julgada procedente em ambas as

instâncias, havendo sido interpostos recursos especial e extraordinário.

4. Reclamação em que se sustenta que o acórdão, ao manter a

sentença, estabeleceu uma inconstitucionalidade no plano nacional,

em relação a alguns aspectos da Lei n. 8.024/1990, que somente ao

33 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito

Constitucional. Op. cit. p. 291. 34 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. Op. cit. p. 144. 35 Idem. Demonstrando sua argúcia, o Min. Francisco Rezek constatou na Rcl 434-1/SP adotada neste trabalho

como caso paradigma, que o Sindicato das Empresas Cinematográficas do Estado de São Paulo utilizara do

pedido de indenização para mascarar o objeto da ação que é de declaração pura e simples de

inconstitucionalidade do diploma legal estadual. Em seu voto fez constar: tenho, afinal, como evidenciado que as

ações em curso não visam ao julgamento de uma relação jurídica concreta, mas ao da validade da lei em tese de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, a da Carta da República (In

STF - Rcl: 434/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Francisco Rezek, Data de Julgamento: 10/12/1994, Data de

Publicação: DJ 09-12-1994).

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Supremo Tribunal Federal caberia decretar.” 5. Não se trata de

hipótese suscetível de confronto com o precedente da Corte na

Reclamação n. 434-1/SP, onde se fazia inequívoco que o objetivo da

ação civil pública era declarar a inconstitucionalidade da Lei n.

7.844/1992, do Estado de São Paulo. 6. No caso concreto,

diferentemente, a ação objetiva relação jurídica decorrente de contrato

expressamente identificado, a qual estaria sendo alcançada por norma

legal subsequente, cuja aplicação levaria a ferir direito subjetivo dos

substituídos. 7. Na ação civil pública, ora em julgamento, dá-se

controle de constitucionalidade da lei n. 8.024/1990, por via difusa.

Mesmo admitindo que a decisão em exame afasta a incidência de Lei

que seria aplicável à hipóteses concreta, por ferir direito adquirido e

ato jurídico perfeito, certo está que o acórdão respectivo não fica

imune ao controle do Supremo Tribunal Federal, desde logo, à vista

do art. 102, III, letra b, da Lei Maior, eis que decisão definitiva de

Corte local terá reconhecido a inconstitucionalidade de lei federal, ao

dirimir determinado conflito de interesses. Manifesta-se, dessa

maneira, a convivência dos dois sistemas de controle de

constitucionalidade: a mesma lei federal ou estadual poderá ter

declarada sua invalidade, quer em abstrato, na via concentrada,

originariamente, pelo STF (CF, art. 102, I, a), quer na via difusa,

incidenter tantaum, ao ensejo do desate de controvérsia, na defesa

dos direitos subjetivos de partes interessadas, afastando-se sua

incidência no caso em concreto em julgamento. 8. Nas ações

coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade da

declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato

normativo federal ou local. 9. A eficácia erga omnes da decisão, na

ação civil pública, ut art. 16, da Lei n. 7.347/1997, não subtrai o

julgado do controle das instâncias superiores, inclusive do STF. No

caso concreto, por exemplo, já se interpôs recurso extraordinário,

relativamente ao qual, em situações graves, é viável emprestar-se,

ademais, efeito suspensivo. 10. Em reclamação, onde sustentada a

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usurpação, pela Corte local, de competência do Supremo Tribunal

Federal, não cabe, em teses, discutir em torno da eficácia da sentença

na ação civil pública (Lei n. 7.347/1985, art. 16), o que poderá,

entretanto, constituir, eventualmente, tema do recurso extraordinário.

11. Reclamação julgada improcedente, cassando-se a liminar.36

Didier Jr. e Zaneti Jr., analisando a Rcl 600-0/SP, sintetizaram quatro

requisitos para que se admita o controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil

pública e duas consequências daí decorrentes:

a) que não se identifique na controvérsia constitucional o objeto único

da demanda; b) que a questão de constitucionalidade verse e atue

como simples questão prejudicial; c) a existência nos autos de pedido

referente a relação jurídica concreta e específica; d) apresente-se como

causa de pedir e não como pedido a matéria constitucional. Daí se

podendo extrair as seguintes e importantíssimas consequências: a) a

inocorrência de coisa julgada sobre a questão prejudicial (art. 469, III

do CPC); b) a inocorrência de exclusão da norma impugnada

incidenter tantum do ordenamento de direito positivo.37

Em verdade, os requisitos e as consequências decorrentes derivam do próprio

controle concreto de constitucionalidade. Eis que nesta modalidade a controvérsia

constitucional não pode ser objeto da demanda, mas questão prejudicial que constitui causa de

pedir, esta fundada numa relação jurídica concreta – senão seria controle abstrato, pois. Como

referido alhures, com fulcro em Paulo Bonavides, a coisa julgada sobre esse aspecto é

relativa, isto é, gera efeitos endoprocessuais de modo que a eficácia é intra partes. Nada obsta,

pois a que outro processo, em casos análogos, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a

mesma lei ser eventualmente aplicada.38

Resume bem a lição de Ada Pellegrini Grinover:

36 STF – Rcl: 600-0/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Néri da Silveira, Data de Julgamento: 03/09/07, Data de

Publicação: DJ 05/12/03. 37 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. 2ª ed. Salvador: Editora

JusPodvm, p. 292, 2007. 38 V. nota 23 supra.

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Na verdade, nas ações coletivas que se fundamentam numa questão de

inconstitucionalidade, o controle é evidentemente difuso, nada

apresentando de especial em relação ao controle difuso exercido numa

ação individual. A questão da constitucionalidade, tanto numa ação

coletiva como na individual, é colocada como questão prejudicial, a

ser enfrentada pelo juiz antes do julgamento da causa, e não faz coisa

julgada, nem mesmo entre as partes. O que faz coisa julgada é

exclusivamente o julgamento da questão principal, e nenhuma

diferença faz que a sentença que passa em julgado tenha eficácia inter

partes ou erga omnes.39

Portanto, a declaração incidental, restrita às partes (que em ACP não são

meramente formais), gera apenas a ineficácia da lei para aquelas.

No tocante à exclusão da norma do ordenamento, viu-se, com espeque em

Gilmar Ferreira Mendes, que, por óbice do art. 52, X CF, isto não seria possível, em sede de

controle por exceção, nem mesmo pelo STF.40

Veja-se que, sob a perspectiva adotada nas reclamações 602-6/SP e 600-0/SP e

acatada em diversos outros julgados,41

o controle difuso de constitucionalidade em sede de

ação civil pública é uma tese possível, desde que se tenha em mente os limites estabelecidos

pela Constituição e explicitados aqui. Isto é importante, pois não inviabilizaria a ACP quando

para sua procedência o legitimado ativo dependesse da declaração de inconstitucionalidade de

determinada lei ou ato normativo. Senão, o que se teria de fazer? Suplicar ao Procurador

Geral da República ou outro legitimado do art. 103 CF? O cidadão (coletividade) não pode

ficar à mercê de alguma autoridade ou pessoa que ele nem conheça para exercer seus direitos,

ainda mais quando estiver sofrendo lesão a direitos constitucionais fundamentais! Seria negar-

lhe o acesso à justiça (art. 5, XXXV CF). Mais uma vez forçoso reconhecer que o Supremo

Tribunal Federal andou bem nessa questão.

39 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle difuso da Constitucionalidade e a Coisa Julgada Erga Omnes das

Ações Coletivas. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVI, n. 89, p. 11, dez. 2006. 40 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 162-163. 41 V. g.: STF - RE: 424993/DF, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Joaquim Barbosa, Data de Julgamento: 11/09/2007,

Data de Publicação: DJ 19-10-200.

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3. OBJEÇÕES À TESE

Como nem tudo é unânime e é bom que não o seja, existe um conjunto seleto

de juristas capazes de discordar desse posicionamento do STF e seus nomes não são de fazer

sobejar qualquer dúvida acerca da seriedade da dissidência. São eles: Gilmar Ferreira Mendes,

Hugo de Brito Machado, Arruda Alvim e Arnoldo Wald (todos citados por João Batista de

Almeida).42

Destacando a opinião de Gilmar Ferreira Mendes, este menciona o

enfrentamento que passou o Supremo na Rcl. 2.460/RJ de relatoria do Min. Marco Aurélio.

Neste caso, havia um sem número de ACP.s do Ministério Público Federal e Estadual

versando sobre o mesmo objeto, cujo mérito relacionar-se-ia com o da ADIn 2.950/RJ, à

época pendente julgamento, que impugnava o Decreto n. 25.723/1999/RJ referente à

exploração da atividade de loterias pelo Estado do Rio de Janeiro. Comentando o julgado,

observa Gilmar Ferreira Mendes:

O Tribunal entendeu que, ainda que se preservassem os atos

acautelatórios adotados pela justiça local, seria recomendável

determinar a suspensão de todas as ações civis até a decisão definitiva

em sede da ação direta, sob pena da usurpação da competência

constitucionalmente assegurada à Suprema Corte.43

Fazendo um paralelo deste caso concreto com a guinada empreendida pelo STF

no sentido de admitir o controle difuso em sede de ACP, adverte o Ministro:

As especificidades desse modelo de controle, o seu caráter

excepcional, o restrito deferimento dessa prerrogativa, no que se refere

à aferição de constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou

federal em face da Constituição Federal apenas ao Supremo, a

legitimação restrita para provocação do Supremo – somente os órgãos

42 ALMEIDA apud DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. Op. cit.

p. 291. 43 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito

Constitucional. Op. cit. p. 291-292. Vide também em MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle

de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 164.

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e entes referidos no art. 103 da Constituição estão autorizados a

instaurar o processo de controle -, a dimensão política inegável dessa

modalidade, tudo leva a se não recomendar o controle de legitimidade

de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição no

âmbito da ação civil pública.44

Críticas a este posicionamento é encontrável nas anotações de Didier Jr. e

Zaneti Jr. no sentido de que todo controle de constitucionalidade contém elementos políticos,

mormente se hoje se pretende alargar a eficácia do controle difuso (“objetivação” desse

controle) e se reconhecermos uma espécie de stare decisis mitigado em nosso sistema.45

Esta questão está mais voltada para o eixo teórico que se adota. Também não

há consenso sobre a adoção de decisões políticas pelo poder judiciário. A discussão deve

orbitar em torno do acesso à justiça. Este se pode ver obstruído quando a ACP tiver uma

questão constitucional prejudicial, restando prejudicada a tutela coletiva se não for analisada.

Há que se considerarem ainda os ditames neoconstitucionalistas,46

em que tudo se

constitucionaliza e depois judicializa, o que aumenta a probabilidade da jurisdição

constitucional ser chamada a atuar na ação civil pública.

Por isso, muito interessante a proposta de alteração da Lei 7.347/85 formulada

pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes, para quem, poder-se-ia cogitar, nesses casos, de suspensão

do processo e remessa da questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, via arguição

de descumprimento de preceito fundamental, mediante provocação do juiz ou tribunal

competente para a causa.47

Assim, elidiria decisões conflitantes, tal qual temia o STF que

44 Idem. 45 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. Op. cit. p. 292. 46 Conjunto de ideias pouco claras ou coesas, mas que guardam alguns pontos em comum. Para Daniel

Sarmento, é possível extrair os seguintes denominadores: i) reconhecimento da força normativa dos princípios

jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; ii) rejeição ao formalismo e

recurso mais frequente a métodos ou estilos mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da

argumentação, etc.; iii) constitucionalização do direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais,

sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; iv) reaproximação

entre o direito e a moral, com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos e v) judicialização

da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do legislativo e do

executivo para o poder judiciário (In SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e

Possibilidades. In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. Op. cit. p. 9-10). 47 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. Op. cit. p. 1145.

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ocorresse na Rcl. 2.460/RJ, o que não se coaduna com o princípio da segurança jurídica. Esta

proposta, entretanto, tem que ser posta à prova quanto à viabilidade, posto que o Supremo tem

uma profusão de processos para julgar e o incidente de processos repetitivos, que também

suspende as demandas na base - p. ex., tem-se tornado um calvário infindável para as partes; é

como se os autos fossem parar no limbo, sem falar na abstrativização das contendas entre os

cidadãos, como se pudessem ser solucionadas no varejo. Mas isto também é outra história que

passa por uma discussão maior que é a própria divisão de competências do Supremo e o

sistema recursal dos tribunais de cúpula.48

É de se destacar, embora notáveis opiniões em

contrário, a preocupação do Min. Gilmar para com a integridade da competência do Supremo,

entretanto, a solução legislativa proposta pode não ser viável.

Todo juiz é um juiz constitucional. A norma somente se perfaz diante da

problematização de um caso concreto.49

Ninguém melhor, pois, para analisar a

constitucionalidade, incidenter tantum, do que o juiz da causa. A remessa da questão

constitucional ao STF tem efeitos deletérios para o processo tal qual a fragmentação da causa,

como se os problemas das pessoas pudessem ser fragmentados.

Arruda Alvim, por seu turno, centra a discussão no âmbito da territorialidade

da decisão:

Como a decisão, na hipótese figurada, e nascida de caso concreto,

abrange apenas parcela da Federação, ainda que ponderável, isto

significa que os textos serão válidos e eficazes em grande parte da

Federação, outro tanto inocorrendo no âmbito das jurisdições onde

48 Tecendo críticas ao incidente de recursos repetitivos observa Lênio Streck que o processo civil transformou,

aos poucos, os juízos colegiados em juízos monocráticos; súmulas e jurisprudência dominantes passaram a servir de obstáculo até mesmo para a admissão dos recursos (inclusive de agravos), até chegarmos à recente

Lei 11.672/08, que, a par de representar uma espécie de possibilidade avocatória por parte do STJ, fez com que

o exame de recursos por amostragem passasse também para o processo penal. Isso, definitivamente, representa

o solapamento da análise de identidade do caso sob julgamento. A pergunta que se põe é: a alteração

legislativa, sob pretexto de proporcionar efetividade quantitativa e eficacialidade ao sistema jurídico, é coerente

com os princípios de acesso à justiça e ao devido processo legal? Não será direito do cidadão que seu caso seja

analisado nas suas especificidades? Não se pode olvidar que a Constituição estabelece que os recursos

especiais e extraordinários representam causas e não apenas teses jurídicas (In STRECK, Lênio Luiz. Uma

Abordagem Hermenêutica Acerca do Triângulo Dialético de Canotilho ou de como ainda é Válida a Tese da

Constituição Dirigente (Adequada a Países de Modernidade Tardia). In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo

Wolfgang. Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. Op. cit. p. 64). 49 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, p. 62, 2011.

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foram proferidas as decisões e onde venham a ser confirmadas tais

declarações de inconstitucionalidade.50

O autor funda sua objeção no entendimento de que as decisões proferidas em

ACP produziriam efeitos somente em parcela da Federação. Note que este entendimento é

facilmente rechaçado se admitir-se que a jurisdição é una.51

Contudo, prevendo este

posicionamento anota que se o juiz entender-se com “competência nacional”, a evidência de

colisão com o que possa decidir o Supremo Tribunal Federal será curialmente maior.52

Atente para o fato de que esta objeção é justamente o cerne da questão posta na Rcl. 2460/RJ

trazida à baila pelo Min. Gilmar.

Delimitando-se a lide, por assim dizer, ter-se-ia a problematização em torno da

possibilidade da decisão acerca de constitucionalidade em sede de ACP conflitar com

jurisprudência presente ou futura do Pretório, o órgão que a Constituição elegeu como seu

protetor máximo. Como, pois, resolver esta pendenga? Os pressupostos do controle difuso de

constitucionalidade, de per si, respondem. Não há conflito. A decisão que contrarie

jurisprudência da Corte poderá ser revista mediante as vias recursais disponíveis e mesmo

que, antes disso, alcance a coisa julgada, não obsta que, em outros casos o Supremo decida de

maneira diversa, pois a coisa julgada é relativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

50 ALVIM, Arruda. A Declaração Concentrada de Inconstitucionalidade pelo STF e os Limites Impostos à Ação

Civil Pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Revista de Processo, São Paulo, n. 81, p. 131, jan-mar. 1996. 51 A jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, a rigor não comporta divisões, pois falar em

diversas jurisdições num mesmo Estado significaria afirmar a existência, aí, de uma pluralidade de soberanias,

o que não faria sentido; a jurisdição é em si mesma, tão una e indivisível quanto ao próprio poder soberano (In

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo Cintra; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, p. 156, 2006). Comentando o regime geral dos limites da coisa

julgada, traçado pelo Código de Defesa do Consumidor, v. Ada Pellegrini: De início, os tribunais não

perceberam o verdadeiro alcance da coisa julgada erga omnes, limitando os efeitos da sentença e das liminares

segundo critérios de competência. Logo afirmamos que não faz sentido. [...] Ou a demanda é coletiva, ou não o

é. E se o pedido for efetivamente coletivo, haverá uma clara relação de litispendência entre as várias ações

ajuizadas nos diversos Estados da Federação (In GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle difuso da Constitucionalidade e a Coisa Julgada Erga Omnes das Ações Coletivas. Revista do Advogado. Op. cit. p. 9). 52 ALVIM, Arruda. A Declaração Concentrada de Inconstitucionalidade pelo STF e os Limites Impostos à Ação

Civil Pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Revista de Processo. Op. cit. p. 131.

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No Brasil, o controle de constitucionalidade sempre poderá ser jurisdicional.

Adota-se o Sistema Híbrido de Constitucionalidade, combinando as vias difusa ou

concentrada, a primeira de competência de todo magistrado, a segunda somente do Supremo

Tribunal Federal. Os direitos coletivos, por todo exposto, são merecedores de tutela

jurisdicional o que, em tese, compreende a uma tutela jurisdicional constitucional. Para este

escopo, a ACP tem um papel central como mecanismo de acesso à justiça e concretização de

direitos fundamentais, não se mostrando suficientemente aptas para essa finalidade as demais

ações coletivas.

Não é de nada possível que a ACP tenha o condão de atacar lei ou ato

normativo em tese, sob pena de usurpação de competência do STF. Não obstante isso, o

jurisdicionado não pode restar privado da tutela constitucional, numa forma de cerceamento

do acesso à justiça. Não obsta, pois a utilização do controle concreto adequadamente e sem

dissimulações não é capaz de exceder a competência do juiz de primeiro grau mesmo nestes

casos.

A hipótese de conflito que se possa instaurar entre a decisão em ACP e a

jurisprudência do Supremo também restou de todo refutada, pois a Corte sempre terá o

monopólio da jurisprudência constitucional, posto que nenhuma declaração incidental de

inconstitucionalidade poderá lhe submeter. Se, contudo, a relação jurídica que se pretende

fulminar em ACP guardar com ADIn/ADC/ADPF a mesma causa de pedir, ambas em trâmite,

poderá o Pretório decretar-lhe a suspensão até que seja solucionada a questão constitucional

em controle abstrato, tal qual sua própria jurisprudência tem entendido.

Não é lícito, portanto, ao juízo de primeiro grau suspender a aplicação de uma

dada norma federal ou estadual em face da CF, pois que afasta apenas incidentalmente a sua

aplicação no caso concreto. Em sede de ACP, a decisão que efetua controle meramente

incidental de constitucionalidade tem eficácia limitada às partes envolvidas na controvérsia,

não assumindo assim os efeitos erga omnes que incidem na parte dispositiva.

Deste modo, o próprio sistema veda a utilização da ACP como sucedâneo da

ADIn e a competência do Supremo encontra-se preservada, bem como a finalidade precípua

da Ação Civil Pública que é a tutela dos direitos difusos, garantindo-se, ao menos em tese, o

acesso à justiça constitucional.

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A EVOLUÇÃO DAS GERAÇÕES1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS

FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA

COMPREENSÃO DA TUTELA COLETIVA

THE EVOLUTION OF GENERATIONS OF FUNDAMENTAL LAW AND

METHODOLOGICAL PHASES OF CIVIL PROCEDURAL LAW IN

UNDERSTANDING THE CLASS ACTION

Henrique Camacho

Advogado. Mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências

Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista

- UNESP - Dr. Júlio de Mesquita Filho. Bolsista CAPES.

Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos

da Cidadania. Bacharel em Direito pela Faculdade de

Ciências Humanas e Sociais de Franca - UNESP. Membro do

Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil

Brasileiro e Comparado - NUPAD.

Yvete Flávio da Costa

Pós-Doutoramento na Universidade de Coimbra - Portugal,

sob supervisão do Professor Doutor José Manuel Aroso

Linhares. Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo. Docente Assistente

Doutor na Universidade Estadual Paulista -"Júlio de

Mesquita Filho"- Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

RESUMO: O presente artigo tem por escopo a compreensão de alguns conceitos basilares

à Tutela Coletiva no Brasil, sob a análise da evolução histórica das gerações dos direitos

humanos fundamentais e das fases metodológicas do Direito Processual Civil,

1 Optou-se por manter o termo gerações, embora parte da doutrina, com razão, disciplina a temática com o

termo dimensões, pois o termo escolhido é comumente utilizado nos meios acadêmicos em relação ao outro,

sempre com referência à polêmica conceitual.

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disciplinadas pela doutrina brasileira, para que assim construa-se uma fundamentação

lógica sobre a importância da Tutela Coletiva ao acesso à justiça e à efetivação dos direitos

fundamentais. Nada mais justo que compreender esta evolução para poder ceder a outros

debates - sobre temáticas mais específicas da Tutela Coletiva - os argumentos para

ressaltar a atual relevância da efetivação dos direitos humanos sociais fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Gerações de direitos. Fases metodológicas. Ondas renovatórias.

Direito processual coletivo. Tutela coletiva.

ABSTRACT: The scope of the present article is to perceive some of the basic concepts

concerning class action, through the analysis of historical development of human

fundamental rights generations and the methodological phases of civil procedure law,

disciplined by the brazilian doctrine, so that it's built up a logical foundation about the

importance of class action to justice access and to the fundamental rights effectiveness.

Nothing better than to understand this evolution as a way to give in to other discussions -

about more specific topics concerning class action - the arguments to highlight the current

relevance of social human fundamental rights effectuation.

KEYWORDS: Rights generations. Methodological phases. Renewal waves. Class action

law. Class action.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

2. FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL. 2.1 Sincretismo.

2.2 Autonomismo. 2.3 Instrumentalismo. 2.3.1 As ondas renovatórias de acesso à justiça.

CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO

Muito se discute na atualidade a respeito de diversos assuntos que, em um

primeiro momento, parecem compor temáticas novíssimas. Entretanto, diversos destes

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institutos têm origem e disciplina em ordenamentos jurídicos remotos, o que nos faz buscar

referência em textos das ciências jurídicas dos tempos dos impérios e reinados2.

A busca pelo desenvolvimento na maneira de compreender o Direito caminha

sempre em direção à utilização de princípios e valores que garantam, ou ao menos

procuram garantir, a linearidade com que as relações humanas deveriam ocorrer. Não

obstante o ser humano compor a sociedade (DALLARI, 2011, p. 30), não poderia manter

estas relações sociais vivas e sadias se não fosse a própria preocupação humana em

desenvolver mecanismos de controle da individualidade em prol da coletividade.

Os atuais debates no campo das ciências jurídicas nos levam a desenvolver

temática que até pouco tempo era desconsiderada pela doutrina processual civil, que em

sua origem se preocupava mais com o caráter individual das relações entre as pessoas. O

Código de Processo Civil de 1973 é um texto legal evidentemente disciplinado para

permitir ao Estado o controle dos conflitos individuais.

Todavia, com o advento da Lei de Ação Popular (LAP) (1965), posteriormente

reformada, e da Lei de Ação Civil Pública (LACP) (1985) esta feição individualista foi

alterada. Iniciou-se um processo no Direito Processual de preocupação com as relações

sociais.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF) e o Código de

Defesa do Consumidor (CDC) (1990) apenas reforçaram esta ideia e oxigenaram a

permeabilidade do Direito Processual Civil.

Apenas para reforçar o argumento, basta analisar a possibilidade, crescente ao

longo dos anos posteriores à Constituição Federal, de ocorrer o que alguns estudiosos

denominam de democracia participativa (CORREIA, 2012, p. 114), ou seja, uma maior

proximidade das pessoas com a busca da realização e efetividade de seus Direitos,

ressaltando importante aumento pelo respeito ao acesso à justiça com a edição de leis como

a do Mandado de Segurança (MS), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), Ação

Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF)3.

2 Aqui se faz referência, por exemplo, aos dez mandamentos inscritos no velho testamento bíblico, a Lei das

XII tábuas, ao Código Napoleônico, as Ordenações Filipinas e Manuelinas, etc. 3 Apenas para efeito de esclarecimento e facilitação de eventuais consultas por parte do leitor, como não será

objeto de estudo cada uma das leis citadas, elenca-se neste momento os respectivos números das leis: Lei n.

12.016, de 07 de agosto de 2009 (Lei do Mandado de Segurança); Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999

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Para acompanhar esta evolução pela qual passa o Direito Processual é necessária a

compreensão de alguns conceitos basilares à Tutela Coletiva no Brasil. Tais conceitos nos

remetem ao estudo da evolução histórica das gerações dos direitos fundamentais e das

fases metodológicas do Direito Processual Civil disciplinada pela doutrina brasileira.

A Tutela Coletiva é importante instrumento de salvaguarda do acesso à justiça e

permite a efetivação dos direitos fundamentais individuais ou coletivos. Nada mais justo

que compreender esta evolução para poder tecer outros debates - sobre temáticas mais

específicas da Tutela Coletiva – a respeito da relevância na efetivação dos direitos sociais.

O texto contará principalmente com suporte material proveniente da análise

bibliográfica da doutrina jurídica brasileira, sob enfoque analítico (ALEXY, 1993, p. 29-

34). Uma postura metodológica eminentemente dedutiva será utilizada, de modo que

premissas e assertivas gerais promovam a elaboração de conclusões particulares que

permitirão a composição de uma conclusão única ao final do texto. Este método aplicado

pode ser utilizado em consonância com a utilização de outros métodos, como o indutivo e

o dialético, sem prejudicar a estruturação textual. Será dada preferencial atenção à temática

abordada no intuito de inseri-la em contextos sociais, políticos, econômicos e históricos, a

fim de enriquecer o estudo.

1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Uma análise do papel do Estado na efetivação destes direitos nos leva ao estudo

do texto constitucional e de questões relacionadas ao Estado Democrático de Direito.

Percebe-se que a dignidade humana, para ser respeitada, necessita que o Estado garanta

alguns princípios fundamentais às relações humanas numa estrutura igualitária:

Com base nas ideias apenas aqui pontualmente lançadas e

sumariamente desenvolvidas, há que sustentar que, além da íntima

vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e

direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretização do

princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores

(Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade); Lei n. 9.882 de 03

de dezembro de 1999 (Lei da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

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da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência

e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e

Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso

direito constitucional positivo vigente. (SARLET, 2009, p. 62).

Partindo da evolução dos direitos fundamentais (BOBBIO, 1992, p. 5), é possível

elencar uma divisão de caráter didático, que implica na estruturação de gerações dos

direitos fundamentais, ou o que alguns autores entendem como dimensões dos direitos

fundamentais. Essa divisão permitirá que em linhas posteriores se faça relação com a

temática dos interesses transindividuais. Optou-se por manter o termo gerações, pois é este

o mais difundido no ambiente acadêmico.

Esclarece-se que o embate terminológico ocorre porque muitos entendem o termo

gerações com sinônimo de “não coexistência”, como se cada geração ocupasse um lugar

determinado na história da humanidade. Entretanto, a doutrina tem demonstrado que

embora exista esta classificação, nenhuma implicação há em compreender cada um dos

momentos como complementação de um momento anterior, ou seja, o conceito de

dimensões seria a melhor opção porque disciplina a ideia de que um momento está contido

no outro; predominaria a ideia de coexistência. Logo, não há separação, mas sim

complementação entre eles (CORREIA, 2012, p. 15-16).

A classificação apresentada tem início com a análise histórica do século XVII,

mas isto não significa que nada ocorreu em séculos anteriores. Ideias como “O

reconhecimento de que instituições de governo devem ser utilizadas para serviço dos

governado [...]” eram fortes já em período da cultura clássica grega, sobre o elevado valor

da democracia ateniense. Pode-se até afirmar que “No embrião dos direitos humanos,

portanto, despontou antes de tudo o valor liberdade.”, ideia esta que começou a tomar

forma já na Idade Média (séculos XIV e XV) (COMPARATO, 2003, p. 40 – 47).

Os direitos de primeira geração, ou melhor, os Direitos Civis e Políticos (século

XVII e início do século XIX) são direitos essencialmente de liberdade do indivíduo

(BUENO, 2008, v. 1, p. 58), “[...] decorrentes do jus naturalismo racional, cujo pensamento

influenciou as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, fazendo com que seu

conteúdo privilegiasse as liberdades individuais, concebidas em função do ser humano

abstrato, descontextualizado.” (WEIS, 2006, p. 38 e 41) Relacionam-se à distribuição de

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competência entre Estado e indivíduo. São direitos intimamente ligados a ideia de

predomínio da liberdade individual sobre a atuação estatal. A Revolução Francesa e o

Iluminismo muito contribuíram para o fortalecimento da ideia de enaltecimento da liberdade

individual, ou do não-agir do Estado (WEIS, 2006, p. 38).

A segunda geração surge em resposta à desumana situação da população pobre

das cidades industrializadas da Europa Ocidental durante os séculos XVIII e XIX. Esta

sociedade urbana era constituída basicamente de pessoas vindas do campo para a cidade,

em busca de trabalho nas indústrias.

Inúmeras ideias e teorias surgiram para fundamentar a necessidade de alterações

naquela estrutura social, visando o aumento da competência estatal, de modo que o Estado

deveria intervir necessariamente para reparar as condições desumanas em que se inseria a

população da época. (WEIS, 2006, p. 39).

Foi durante este período que se estruturou o denominado “Constitucionalismo

Social”: os direitos humanos passaram a ser compreendidos como referência para a

proteção dos direitos sociais. Este pensamento influenciou as Constituições francesa

(1848), mexicana (1917) e alemã (1919) (WEIS, 2006, p. 38-39).

Esta geração ficou conhecida como a geração dos “Direitos Econômicos e

Sociais”, onde surgiram os denominados “direitos sociais em sentido amplo” (BUENO,

2008, v. 1, p. 58): o Estado deveria agir para transformar a situação desumana imposta pelo

capitalismo industrial e permitir a vida digna nas cidades. Percebe-se que:

Em sentido contrário, a democracia moderna, reinventada quase que

ao mesmo tempo na América do Norte e na Franca, foi a fórmula

política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos

privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero

e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe

burguesa. (COMPARATO, 2003, p. 50)

É importante perceber que a formação dos conceitos destas gerações tem forte

relação com o processo histórico de formação e solidificação dos direitos humanos

fundamentais (WEIS, 2006, p. 41).

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A terceira geração, denominada de “Direito da Coletividade”, dos séculos XX e

XXI, corresponde aos direitos relativos a toda a humanidade, na tentativa de igualar a

situação dos Estados e dos seres humanos (WEIS, 2006, p. 40). Logo, a ideia central

informava que a busca deveria ser a fraternidade entre os povos.

Percebe-se que houve certo caminhar para um pensamento coletivo, em que se

deixou a liberdade individual sobressair-se a igualdade coletiva. Os Estados deveriam

buscar o desenvolvimento próprio, assim como auxiliar os demais Estado para que saíssem

da condição de subdesenvolvimento. As pessoas passaram a compreender a necessidade de

garantir às futuras gerações um planeta ecologicamente equilibrado. Ainda não era forte a

ideia de sustentabilidade, mas já se fazia presente o conceito de efetivação de direitos

fundamentais sociais, plurais. Tais direitos constituem direitos excessivamente

heterogêneos. Talvez o mais importante dos direitos desta geração é o de poder viver em

um ambiente saudável e despoluído (BOBBIO, 1992, p. 6).

Pode-se dizer que nesta fase a humanidade entendeu que não se sustentaria

baseada no individualismo. Alguns direitos transcendem o individualismo e para serem

efetivos mais facilmente devem ser exercitados de maneira coletiva. São os denominados

“direitos humanos globais”:

[...] dizem respeito às condições de sobrevivência de toda a

humanidade e do Planeta em si considerado, englobando a

manutenção da biodiversidade, o desenvolvimento sustentado, o

controle da temperatura global e da integridade da atmosfera, além

dos consagrados direitos à paz, à autodeterminação dos povos etc.

(WEIS, 2006, p. 42).

Ainda sobre o conteúdo desta geração é possível afirmar que foi a primeira fase de

internacionalização dos direitos humanos:

Ela teve início na segunda metade do século XIX e findou com a 2

ª Guerra Mundial, manifestando-se basicamente em três setores: o

direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos

direitos do trabalhador assalariado. (COMPARATO, 2003, p. 54).

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Há quem fale ainda numa quarta geração, decorrente de um desenvolvimento da

globalização política, quando ocorre institucionalização do Estado social. Estes direitos

estariam relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo (BONAVIDES apud

WEIS, 2006, p. 40).

Norberto Bobbio, entretanto, entende os direitos de quarta geração como sendo

“[...] referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica que permitirá

manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” (BOBBIO, 1992, p. 6).

Neste debate sobre gerações dos direitos humanos relevante é traçar alguns

apontamentos que de certo tornam a processualística atual mais plural e coletiva: os

direitos humanos percorreram um extenso caminho para que se superasse o

individualismo; passou-se de um status quo singular para outro fortemente vinculado à

ideia de sustentação das estruturas democráticas mantenedoras dos direitos humanos

fundamentais; partiu-se de uma preocupação comum quanto à conservação do meio

ambiente em seu aspecto ecológico para a criação e conservação, também relevante, de um

sistema de educação pública de qualidade, que privilegie o desenvolvimento das

sociedades; de um sistema de saúde pública condizente com os clamores sociais; enfim, de

estruturas que possibilitem a sustentação de um Estado protetor dos direitos fundamentais:

No entanto, como já dissemos alhures, não há como entender esses

direitos de forma estanque, sendo que, atualmente, aparece de forma

esparsa nas constituições dos mais diversos países. Por outro lado, na

perspectiva dos direitos humanos, como veremos em momento

oportuno, há direitos que, embora aparentemente de primeira ou

segunda dimensão, possuem uma externalização no plano dos

direitos individuais e, simultaneamente, dos direitos difusos. Veja-se,

por exemplo, a busca da liberdade de uma única pessoa, que é

mantida em condições análoga à de escrava, pode ser percebida na

perspectiva individual e também difusa. (CORREIA, 2012, p. 15-16)

No âmbito brasileiro, quando se levam em conta argumentos embasados em um

sistema de tutela coletiva fundamentado basicamente na LACP e no CDC, deve-se pensar

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o direito processual coletivo considerando a evolução das sociedades, partindo da defesa

dos direitos individuais para a compreensão da necessidade de tutela dos direitos coletivos

na atualidade, independentemente de serem eles coletivos stricto sensu, difusos ou

individuais homogêneos (art. 81, do CDC).

Percebe-se que esta é uma forma de se disciplinar e fortalecer o princípio da

igualdade como uma das bases para a democracia, permitindo a manutenção do Estado

Democrático de Direito, salvaguardando a dignidade da pessoa humana, e o

desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária (arts. 1°, III; 3°, I e 5°, caput, da

Constituição Federal).

No próximo item, em que será abordada a questão das ondas renovatórias do

processo, tornar-se-á mais clara a ideia de utilização do processo como meio para

tornar concreta a realização dos direitos humanos fundamentais (BUENO, 2008, v. 1,

p. 59).

2 FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Para melhor compreensão da importância da tutela dos direitos coletivos,

principalmente dos direitos humanos fundamentais e sociais, passar-se-á para análise das

fases metodológicas instituídas pela doutrina processual.

Estas são compreendidas como períodos nitidamente diferentes e determinados,

de maneira a indicar a relação do direito processual com o momento histórico em que se

inseria determinada fase.

É uma forma de expandir a compreensão de como se encontra o direito processual

hoje e quais os acontecimentos que influenciaram a composição deste ramo do Direito

como ramo autônomo e intensamente vigoroso para a conservação do Estado Democrático

de Direito.

Assim, podemos dizer que o direito processual inclui basicamente três fases

metodológicas fundamentais, a saber: a sincrética, a autonomista e a instrumentalista.

2.1 Sincretismo

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É a primeira fase de acordo com a doutrina. Nela o processo se insere de maneira

não autônoma ao direito material, ou seja, dependente do direito material. É uma ideia

errada do direito processual se considerarmos os preceitos atuais de autonomia processual

em relação ao direito material. Todavia, em épocas remotas, só poderia propor a ação

quem tivesse o direito material evidentemente lesado. “Não se tinha consciência da

autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza

substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo.” (CINTRA; GRINOVER;

DINAMARCO, 2009, p. 48).

É necessário entender que, naquela época, faltavam elementos mínimos para que

os estudiosos separassem as normas de direito processual civil das normas de outra

categoria, as denominadas normas substanciais (BUENO, 2008, v. 1, p. 41).

Sincretismo, em poucas palavras, poderia ser entendido como uma fase em que se

fundiram dois institutos: direito material e direito processual, que embora estivessem

unidos, mantinham traços ainda perceptíveis de suas próprias naturezas autônomas.

Este período prevaleceu até que os alemães começaram a realizar estudos sobre a

temática. Passou-se especular a natureza jurídica da ação, o que umbilicalmente está ligado

ao estudo da natureza jurídica do processo. A doutrina é unânime ao entender a obra de

Oskar von Bülow, Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias (1868),

como marco histórico da emancipação do estudo científico do direito processual civil.

(BUENO, 2008, v. 1, p. 41).

2.2 Autonomismo

Esta é uma fase evidentemente marcada pelas construções científicas do direito

processual. Foi nesta época, que durou praticamente um século, que surgiram teorias

processuais que tratavam, por exemplo, da natureza jurídica da ação e do processo, das

condições e pressupostos processuais, etc. Foi um período de alta relevância, pois garantiu

nova vida ao direito processual ao afirmar a autonomia científica do direito processual

(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 48-49).

Foi uma fase em que as características do direito processual civil permitiram

maior separação das normas de direito material, que impõem a atuação do juiz em questões

controversas (BUENO, 2008, v. 1, p. 42).

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O problema que se impõe é que durante este período, movidos pelo desejo de

separar o direito processual do material, acabou-se por criar condições para transformá-lo

em ciência extremamente difícil de ser colocada em prática. Não se pode esquecer que foi

uma evolução para o período, mas também deve se ter em mente que tinha seus aspectos

dúbios e que deixavam a sistemática do direito à ação fragilizada (BUENO, 2008, v. 1, p.

42).

Alguns entendem que faltou postura crítica no período, pois o processo era visto

como mero instrumento técnico voltado à realização jurídico material (CINTRA;

GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 49).

Não há exagero nenhum em afirmar, por isto mesmo, que a relação

entre os planos material e processual é verdadeiro conteúdo e

continente: o direito material (substancial) é veiculado pelo direito

processual civil para o Estado-juiz para que as relações por ele

redigidas sejam adequadamente compostas e realizadas. (BUENO,

2008, v. 1, p. 45, grifo do autor).

Se compararmos a primeira com a segunda fase, percebemos que não se devem

tomar como corretos os extremos, mas sim buscar uma técnica que reúna as características

positivas de ambas as correntes. O direito processual e o material devem sempre caminhar

juntos, de maneira complementar. Nesta toada é que se estruturou a fase seguinte.

2.3 Instrumentalismo

Nesta fase, que se mantém até os dias atuais, estrutura-se o caminho inverso ao que

foi delineado na fase anterior. De maneira antagônica, busca-se a aproximação entre o direito

material e processual. O direito processual, embora tenha autonomia (finalidade, natureza,

identidade e função), deve servir para a aplicação concreta do direito material: “Há uma

necessária comunicação, uma necessária interpenetração de um campo no outro, embora,

isto é importante que fique claro, o direito material não se confunda com direito processual

nem vice-versa.” (BUENO, 2008, v. 1, p. 51, grifo do autor).

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Pode-se afirmar que o processo passou a ser visto como um instrumento, não

apenas de aplicação e realização da vontade da lei, mas também para a pacificação social

(THEODORO JÚNIOR, 2008, v. 1, p. 15), de maneira que possibilita a tutela dos

interesses coletivos. Apenas num segundo plano poderia ser visto como remédio para

tutelar os interesses individuais.

Nesta fase, “[...] é preciso deslocar o ponto de vista e passar a ver o processo a

partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos.” (CINTRA;

GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 49). Para isso, a aproximação entre o direito

processual e o direito constitucional veio a fortalecer a nova fase metodológica

instrumentalista do direito processual. Passou-se ao desenvolvimento de uma teoria geral

do processo e de uma análise crítica frente aos aspectos sociais e políticos que

influenciavam as novas concepções dentro desta fase (CINTRA; GRINOVER;

DINAMARCO, 2009, p. 49). Uma destas temáticas é o acesso à justiça.

Não simplesmente um acesso à justiça, mas sim uma efetiva e eficaz forma de

fazer valer o direito inscrito no texto da Constituição Federal, ou seja, o direito de ação

(art. 5º, XXXV, CF). Este objetivo levou a elaboração de posições que se seguiram, mais

ou menos, em ordem cronológica. A doutrina desenvolveu a temática sobre a denominação

“ondas de acesso à justiça” 4.

2.3.1 As ondas renovatórias de acesso à justiça

Não é incomum a utilização de termos ou expressões provenientes de outros

ramos da ciência humana. Por exemplo, podemos citar o “case management”, expressão

advinda das ciências biológicas que indica todos os primeiros procedimentos para se

controlar e prevenir uma enfermidade. O termo que foi aproveitado pelo Direito Processual

Civil Brasileiro ao disciplinar o instituto do gerenciamento do processo (SILVA, 2010, p.

37).

Aqui se pode analisar, portanto, o termo “ondas” com fundamento em sua origem

nas ciências exatas, mais especificamente na física5. Isso facilita a compreensão de que

4 Expressão advinda da tradução da obra: CAPPELLETTI; GARTH, 1988. p. 31. 5 Para compreender estes conceitos, temos que: “Onda é uma perturbação oscilante de alguma grandeza

física no espaço e periódica no tempo.” e “No estudo dos conceitos básicos de ondas temos que ficar atentos

a uma característica, que é o transporte de energia sem o transporte de matéria. Por esse motivo é que

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uma onda pode ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço que outra onda em frequência

diferente.

É importante perceber que, diferentemente da expressão “gerações” ou

“dimensões” do Direito, o termo “ondas” permite, com maior facilidade, a aceitação de que

todos os movimentos renovatórios de acesso à justiça caminham um ao lado do outro,

sendo que o desenvolvimento de uma onda renovatória apenas foi possível porque a onda

anterior tomou formas definidas solidificadas e necessitou de complementação.

Estas ondas renovatórias passaram a integrar a temática sobre o instrumentalismo

do processo. Logo, há de se perceber que contribuíram para a concepção atual do processo

como instrumento de efetivação das garantias inscritas na Constituição Federal,

disciplinadas sob o manto dos direitos fundamentais individuais ou sociais.

A reflexão acerca do direito e seus aspectos propedêuticos desperta, naqueles que

buscam compreender não apenas o vocábulo, mas também a ciência do Direito, alguns

conceitos essenciais: o Direito é formado pelo conjunto de normas, regras e princípios que

são instituídos e regulados pelo Estado. Para que este regramento seja válido a sociedade

deve estruturar uma situação em que o indivíduo abre mão de sua liberdade individual em

prol da coletividade.

O Brasil compõe-se em Estado Democrático de Direito e para tanto deve proteger

os direitos e garantias fundamentais para que a dignidade humana seja respeitada. É norma

que “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração

do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” ou então “[...] a lei

não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (Arts. 1° e 5°,

incisos LXXV e XXXV, CF).

O instituto do acesso à justiça permeia a proteção de todo direito, não se

restringindo a mera formalidade postulatória, mas também uma prestação jurisdicional

efetiva.

Em obra importante para o debate, os autores Mauro Cappelletti e Bryant Garth

promovem estudo para fundamentar a necessidade de os processualistas modernos

mudarem a forma que entendem de solução de litígios, de modo a promover a expansão

dizemos que elas são apenas deformações que se propagam em um meio. Sendo assim, elas podem atravessar a mesma região ao mesmo tempo.” (grifo nosso). Disponível em:

<http://www.brasilescola.com/fisica/a-classificacao-das-ondas.htm> e <

http://www.brasilescola.com/fisica/ondas-estacionarias.htm>. Acesso em: 08 mar. 2013.

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dos estudos para além das paredes dos tribunais – que também é importante,

principalmente quando se estuda a estrutura do Judiciário – incluindo nas análises

científicas da doutrina jurídica outros métodos como a economia, a política, a psicologia e

a sociologia (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p.13).

De modo bem simples, a tese levantada pelos autores pode ser definida em pilares

que estruturaram os caminhos do processo civil: a. Reforma e evolução dos procedimentos

judiciais, de modo a promover melhor a solução dos conflitos sociais; b. o Judiciário não é

o único meio de solucionar litígios, a conciliação, mediação e arbitragem podem ser

utilizadas; c. Promover a celeridade processual por intermédio da estruturação e criação de

procedimentos especiais para determinados litígios; d. Promover melhoras na prestação

jurisdicional com a contratação de mais servidores e magistrados, treinando-os e

qualificando-os constantemente, inclusive com incentivos para permanecerem estimulados

a trabalhar; e. Que o legislador e o próprio Judiciário permita a simplificação de

procedimentos (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p.75-159).

A primeira onda de acesso à justiça é denominada de assistência judiciária para

os pobres. Nesta fase, buscava-se eliminar obstáculos econômicos impostos aos menos

afortunados, de maneira que o acesso à justiça fosse-lhes concedido.

Se todos são iguais perante a lei, na medida de suas igualdades, sejam os seres

humanos pobres ou ricos, deve o Estado fornecer amparo a todos para que tenham proteção

de seus direitos, inclusive contra o próprio Estado, caso não cumpra seus objetivos

inscritos no texto constitucional.

Foi nesse contexto que surgiu a defensoria pública, as leis de assistência judiciária

gratuita e outras iniciativas. Isto foi importante porque “[...] sem condições efetivas de

realização concreta dos direitos, é, até mesmo, difícil distinguir o plano do direito material

de meras listas declaratórias de direito.” (BUENO, 2008. v. 1, p. 52).

É importante ressaltar a aproximação entre o Código de Processo Civil e a

Constituição Federal de 1988. Intitulada de “Constituição Cidadã” 6, não poderia deixar de

6 Termo utilizado pelo então deputado Ulysses Guimarães em discurso durante a promulgação da

Constituição Federal de 1988. Disponível em:

<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCsQFjAA&url=http%

3A%2F%2Fwww2.camara.leg.br%2Fatividade-legislativa%2Fplenario%2Fdiscursos%2Fescrevendohistoria%2Fdestaque-de-materias%2Fconstituinte-1987-

1988%2Fpdf%2FUlysses%2520Guimaraes%2520-

%2520DISCURSO%2520%2520REVISADO.pdf&ei=4dFEUbXICoTY9ATL1oHgCg&usg=AFQjCNEK33

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abrigar em seu âmago institutos processuais relevantes como a ampla defesa e o

contraditório. Favorece a proteção aos mais desfavorecidos e vítimas das desigualdades

sociais e econômicas que ainda tomam forma no Brasil, um Estado Democrático de

Direito.

A CF 5.º XXXV prevê que nenhuma ameaça ou lesão de direito

pode ser subtraída da apreciação judicial. A garantia constitucional

do direito de ação significa que todos têm direito de obter do Poder

Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Por tutela adequada

deve-se entender a tutela que confere efetividade ao pedido sendo

causa eficiente para evitar-se a lesão (ameaça) ou causa eficiente

para reparar-se a lesão (violação). (NERY JÚNIOR; NERY, 2010,

p. 1161).

Contudo, é necessário ir além do levantamento dos aspectos positivos e buscar

compreender os limites que esta primeira onda se deparou. Para que o sistema de

assistência judiciária gratuita seja eficiente é necessária à atuação de muitos advogados.

Além disto, é necessário que estes advogados tenham disponibilidade em ajudar os menos

afortunados. Este seria um problema sério, porque os casos judiciais implicam em valores

de honorários e de custas, o que comprometeria o orçamento de considerável parcela

assalariada da população brasileira.

Deve-se também relatar que a assistência judiciária não pode, mesmo sendo

perfeita, solucionar problemas das pequenas causas individuais e que o modelo de

advogados de equipe leva a necessidade de reivindicar interesses difusos dos pobres, tais

como sobre o meio ambiente e relações de consumo (CAPPELLETTI; GARTH, 1998,

p.47-49).

Já a segunda onda renovatória foi intitulada representação dos interesses difusos,

ou da coletivização dos processos. Trata-se de momento em que se buscava oferecer tutela

aos interesses difusos e coletivos que não possuíam guarida na sistemática tradicional

mzPmw7hSUc0Sm2g--_zz_2rA&sig2=e12sm5Pv-ci4aVRU2ehTxg&bvm=bv.43828540,d.eWU>. Acesso

em: 11 nov. 2012.

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(AZEVEDO, 2003, v. 2, p. 247). É um dos temas elencados no título deste artigo e pode

vincular-se a efetivação dos direitos fundamentais.

Como é notável, esta onda renovatória relaciona-se com vertente atual em que

pesa a compreensão do direito processual sob as lentes de uma tutela de interesses

transindividuais, ou como o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC) determina,

direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos (art. 81).

O sistema processual, da forma que está estruturado, compõe-se de um

organograma individualista e formalista, que enfrenta a dificuldade de conciliar os anseios

constitucionais de celeridade e efetividade em oposição aos inúmeros processos que

surgem anualmente no Judiciário, lotando os escaninhos.

A sociedade brasileira buscou, ao promulgar a Constituição Federativa do Brasil

de 1988, conciliar o ordenamento pátrio com a realidade social, no intuito de efetivar a

construção da igualdade e da democracia, pois: “Nada mais perigoso do que fazer-se

Constituição sem o propósito de cumpri-la, ou de só cumprir nos princípios de que se

precisa, ou se entende devam ser cumpridos – o que é pior.” (MIRANDA, 1987, t. 1, p. 15-

16).

É nesta segunda onda que há o escopo de aumentar a tutela dos interesses supra

individuais ou transindividuais. São direitos que em alguns casos tem o sujeito não

determinado, como questões referentes ao meio ambiente e a moralidade administrativa.

É um momento em que se verificam as condições dessas novas tendências e se

estuda a possibilidade de adaptar as fórmulas antigas aos novos direitos. Mais

explicitamente que a primeira onda, a preocupação desta é viabilizar a representação

judicial dos menos afortunados, que em outros momentos restariam carentes de proteção

jurisdicional (BUENO, 2008. v. 1, p. 53). Nas palavras de Cappelletti e Garth (1988, p. 66-

67):

[...] esses interesses exigem uma eficiente ação de grupos

particulares, sempre que possível; mas grupos particulares nem

sempre estão disponíveis e costumam ser difíceis de organizar. A

combinação de recursos, tais como as ações coletivas, as

sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública

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e o advogado público podem auxiliar a superar este problema e

conduzir à reinvindicação eficiente dos interesses difusos.

É fato que o Código de Processo Civil, publicado em 1973, possui forte influência

de um procedimento criado para a guarda e tutela de interesses individuais (ALMEIDA,

2007, p. 48-50). Porém, com o amadurecimento da sociedade brasileira, não foi possível

ignorar, no âmbito jurídico-processual nacional, as novas formas de defesa dos direitos

fundamentais.

O Brasil hoje é referência quanto à temática dos direitos coletivos ou

transindividuais, estando o Código de Defesa do Consumidor entre as obras de grande

relevância no espaço latino americano ou mundial.

Foi durante esta onda renovatória que a defesa dos direitos sociais tomou maior

volume. A Constituição Federal de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor, aliados a

uma legislação evidentemente criada para resguardar os direitos coletivos – como exemplo

a Lei de Ação Popular e a Lei de Ação Civil Pública – somaram-se e formaram o que se

denominou “microssistema” de tutela coletiva (ALMEIDA, 2007, p. 45-47, 79-81). O

Código de Processo Civil de 1973, neste aspecto, assume papel subsidiário (BUENO,

2010, v. 2, t. 3, p. 203).

Os direitos transindividuais ou direitos coletivos lato sensu demonstram direitos

que ultrapassam os limites da individualidade e encontram amparo na proteção dos direitos

considerados pertencentes a uma classe de indivíduos, ora sendo esta classe mais restrita,

ora sendo mais abrangente. Adota-se para este trabalho a classificação que inclusive o

próprio Código de Defesa do Consumidor adota e que possui respaldo de parte da doutrina.

Entretanto, há doutrinadores que discordam desta classificação e propõem entendimento

diferente.7

Pois bem, direitos difusos são, de acordo com o Código de Defesa do

Consumidor, em seu art. 81, inciso I, os direitos “transindividuais, de natureza indivisível

7 É possível citar a doutrina de Gregório Assagra de Almeida que entende haver a seguinte divisão do direito

processual coletivo brasileiro: direito processual coletivo especial, que se destina ao controle concentrado e

abstrato de constitucionalidade e direito processual coletivo comum, que denomina como “instrumento de

efetivação concreta e de forma potencializada da Constituição e, especialmente, do Estado democrático de

Direito e dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais”, ou seja, estariam inclusas neste item a ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, entre outros (ALMEIDA, 2007. p. 59).

Também temos a obra de Cassio Scarpinella Bueno, que cita as páginas do livro de Antonio Gidi (BUENO,

2010. v. 2, t. III. p. 200).

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de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. Os

efeitos de uma decisão que envolve direitos difusos são erga omnes, ou seja, atingem

todos, indiscriminadamente, salvo se o pedido for julgado improcedente por falta de

provas, pois será caso de bens e direitos que devem ser tutelados para o benefício de toda a

humanidade, inclusive para as futuras gerações (art. 103, I, CDC).

Em sequência temos os direitos coletivos stricto sensu, conceituados no art. 81,

inciso II do Código de Defesa do Consumidor como “transindividuais de natureza

indivisível de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou a

com a parte contrária por uma relação jurídica base”.

É importante destacar o trecho final da definição legal, pois a relação jurídica base

deve existir anteriormente à pretensão de se ingressar em juízo. Uma decisão sobre esta

pretensão gera efeitos inter partes, ou seja, atingem apenas aqueles indivíduos que

pertencem ao grupo diretamente atingido pela decisão (art. 103, II, CDC).

A terceira classe de direitos transindividuais, adotada por esta corrente doutrinária

que se fundamenta no Código de Defesa do Consumidor, coloca em evidencia os

denominados direitos individuais homogêneos, ou seja, direitos que poderiam ser

protegidos individualmente, mas que por vontade do legislador, estão sendo tutelados de

maneira coletiva. De acordo com o art. 81, inciso III do Código de Defesa do Consumidor

“decorrente de origem comum”.

São “formas preconcebidas, verdadeiros modelos apriorísticos, que justificam, na

visão abstrata do legislador, a necessidade da tutela jurisdicional coletiva” (BUENO, 2010,

v. 2, t. 3, p. 201).

Os efeitos de uma decisão a respeito de direitos individuais homogêneos são erga

omnes apenas em caso de procedência do pedido, ou seja, atingirão a coletividade de

maneira ampla; todo indivíduo que se enquadrar nos parâmetros do caso concreto poderá

liquidar e executar a sentença (art. 103, III, CDC).

Aspecto relevante a ser mencionado e que se refere à temática abordada é a

questão dos legitimados para propositura de ações que visam interesses difusos, coletivos e

individuais homogêneos. “O legislador brasileiro, inclusive o constituinte, fez escolhas

muito claras sobre quem pode apresentar-se, perante o Estado-juiz, como ‘representante

adequado’ de determinados direito” (BUENO, 2010, v. 2, t. 3, p. 199).

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Por fim, a terceira onda renovatória é denominada de acesso à representação em

juízo a uma concepção mais ampla de acesso à justiça. Pode ser vista como um novo

enfoque à temática do acesso à justiça, em que predomina a busca pela efetividade do

processo. Esta nova fase concentra sua atenção no conjunto geral de instituições,

mecanismos, princípios e procedimentos utilizados para prevenir e processar disputas nas

sociedades modernas. (AZEVEDO, 2003, v. 2, p. 247)

Relaciona-se com o modo de ser do processo, simplificando e racionalizando

procedimentos, promovendo desenvolvimento de uma justiça mais acessível e menos ligada

à litigiosidade, aperfeiçoamento de técnicas de resolução de conflito, como por exemplo, a

conciliação, a mediação e a arbitragem (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p.

49). É nesta onda que se fortalece a ideia de utilização do processo por meio de

mecanismos de solução alternativa de conflito, de flexibilização da atuação da função

jurisdicional e da criação de novos procedimentos para garantir o direito material.

O processo deve ser pensado de maneira que garanta as realizações e as fruições

asseguradas no plano do direito material. É esta onda que permitiu a enorme gama de

alterações no Código de Processo Civil nos últimos treze anos e que proporcionou a

criação do projeto de lei que disciplina um Novo Código de Processo Civil8. “Poder-se-ia

dizer que a enorme demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos

forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento – o sistema judiciário.”

(CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 66 – 67).

Como foi possível perceber, são três momentos distintos que não se anulam; eles

se complementam. Um não existiria sem o outro, de modo que estas ondas renovatórias

ainda possibilitam muitos pontos em comum para serem analisados e estudados,

principalmente quando se integram as ciências jurídicas com outros ramos do

conhecimento humano, por exemplo, ciências econômicas, sociais e históricas. Fica aberta

a possibilidade de criação e de evolução para que o processo atinja seu fim instrumental e

garanta a efetividade dos direitos fundamentais.

Se a Constituição Federal institui em capítulo próprio a proteção e manutenção,

pelo Estado, de direitos fundamentais sociais, além dos individuais, deve o processo, como

8 O Projeto de Novo Código de Processo Civil iniciou-se no Senado, sob o n. 166/2010. Hoje se encontra em

tramitação na Câmara dos Deputados, por intermédio das Comissões de Constituição e Justiça (CCJ). Projeto de Lei n. 8.046 de 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490267>. Acesso em: mar.

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instrumento que é servir aos anseios do cidadão para apresentar ao Judiciário diversos

casos de flagrante desrespeito aos preceitos basilares constitucionais.

Servir de mecanismo de proteção aos direitos fundamentais é papel singular e

nobre do processo. Após longas discussões, travadas nos mais diversos momentos da

história, chega-se a concluir por diversos impasses: os direitos fundamentais que deveriam

ser efetivos não o são; quando se leva ao judiciário um caso em particular, um direito

fundamental é discutido e outros inúmeros são mitigados; não há composição coletiva de

conflitos de maneira a impor ao Estado uma saturação pressionadora para uma

transformação radical.

Acompanhar o desenvolvimento do processo imputa ao pesquisador atentar-se

para outros aspectos. A efetivação dos direitos fundamentais e a formação de uma

processualística coletiva são objetivos a serem alcançados para que a manutenção da vida

digna dos cidadãos seja respeitada. A tutela coletiva possibilita ao cidadão ser colocado em

pé de igualdade com o Estado para poder valer-se do Poder Judiciário e questionar aquilo

que não está correto.

CONCLUSÃO

É possível depreender da leitura do texto que se tentou fundir os institutos

relacionados às gerações dos direitos e às fases metodológicas do processo com o processo

coletivo.

Pode-se dizer que o objetivo foi alcançado, pois ficou clara a relação entre as

gerações dos direitos fundamentais, nesta seara compreendida como sinônimos dos direitos

humanos, e sua evolução no sentido de sair do individualismo e buscar o bem comum.

Há necessidade de se atender os interesses da coletividade, pois o que se entende

atualmente é que os direitos individuais existem e devem ser respeitados, mas possuem

como limites o bem maior que é o bem da coletividade. A liberdade do indivíduo não pode

prejudicar o desenvolvimento social e econômico, de modo a danificar a busca pela

efetivação da igualdade e realização de uma justiça social, seja por parte do Estado ou dos

próprios seres humanos.

O estudo sobre as fases metodológicas do processo permitiu entender o atual

estágio em que se encontra o direito processual civil, pois a instrumentalidade tem por

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escopo garantir a efetividade das garantias inscritas no texto legal que guardam os direitos

fundamentais, respeitando assim preceitos constitucionais como o de busca do

desenvolvimento social e promoção da justiça social, além de respeito à dignidade da

pessoa humana. É possível inclusive perceber algumas características (necessidade de

composição célere e eficaz de litígios) que a doutrina aponta na atualidade, mas que não se

tratou no texto por não compor o objetivo do estudo.

As ondas renovatórias do processo permitiram disciplinar uma didática na análise

e ensino do papel do direito processual, bem como sua evolução e relação com os

diferentes períodos históricos. Em contrapartida, despertou a curiosidade de saber se o

termo “renovatórias” seria o melhor empregado nos dias atuais, pois anos se passaram sem

que se pudesse verificar uma real efetividade dos direitos fundamentais, que por diversas

vezes são mitigados pelo Estado.

Pensar no acesso à justiça nos faz questionar a própria sistemática jurídica para

saber se o que ocorre é um desacesso. O mais certo é que a sociedade caminha e sempre

haverá a esperança de dias melhores, de direitos humanos fundamentais efetivos, em que

prevaleça a vida digna dos seres humanos.

Fica claro que a tutela coletiva proporciona fortalecimento do acesso à justiça,

promovendo lógica inclusão das pessoas menos favorecidas no universo jurisdicional.

Evidente que ainda há muito a ser concretizado, mas é de se considerar que uma longa

evolução foi vivenciada ao longo dos anos, principalmente com a possibilidade de se

incluir à discussão os direitos supra individuais, meta individuais ou coletivos e difusos.

Esta evolução é percebida ao se verificar o quão importantes são os direitos

humanos nas decisões políticas, como o grau de compreensão se eleva quando se busca

demonstrar que os direitos humanos fundamentais devem ser protegidos pelo Estado.

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A COOPERAÇÃO E A PRINCIPIOLOGIA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO.

UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO

Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Professor Associado na UERJ. Promotor de Justiça no RJ.

Tatiana Machado Alves

Graduada em Direito pela UERJ. Advogada no RJ.

RESUMO: O texto tenta dissecar as origens e as aplicações da cooperação e colaboração

no ordenamento jurídico. São examinados os Códigos de Processo vigente e projetado,

bem como são investigadas as origens do instituto no direito português e alemão. Por fim

são apresentadas algumas questões principiológicas e traçados possíveis desdobramentos

no direito brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: cooperação; novo CPC; princípios.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 2. Desdobramentos da cooperação no processo

civil brasileiro. 3. Expectativas no Novo CPC. 4. Questões Principiológicas. 5.

Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.

1. Considerações iniciais

O Direito, enquanto um fenômeno cultural, reflete, em sua estruturação e

interpretação, os valores e a própria organização estatal, podendo ser entendido, em última

instância, como um “espelho do modelo de Estado”1. Nesse contexto, podem ser

1 A definição é de Dierle José Coelho Nunes: “Tuttavia, lo studio e l’interpretazione del diritto, incluso

quello processuale, sono in gran parte strutturati come specchio dei modelli di stato esistenti” in Processo civile liberale, sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009. Seção “Diritto processuale civile”.

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identificados três modelos2 de organização social que definem a atuação do juiz e das

partes no processo, de acordo com o formalismo.

O primeiro deles é o modelo paritário, em que o juiz se encontra no mesmo nível

das partes, sendo estas as únicas responsáveis pela condução do processo. Na Grécia,

inclusive, o juiz não era obrigado a conhecer a lei e nem utilizá-la como base para sua

decisão se essa não fosse trazida e debatida pelas partes. Esse modelo é fortemente

influenciado pelo contraditório, já que as partes podem auxiliar ao juiz na descoberta do

direito, devido às suas posições isonômicas.

Neste modelo diz-se que prepondera o “princípio dispositivo”, caracterizado

justamente por essa maior atribuição de poderes às partes, não apenas no que tange a dar

início e fim ao processo, mas também à sua condução e instrução, e pela limitação do

poder de atuação do magistrado, o qual somente pode decidir com base nos fatos alegados

e provados pelas partes.

Esta concepção liberal do processo justificava-se na suposta falta de interesse que

teria o Estado na solução da controvérsia, pois “acreditava-se no livre jogo das forças

sociais, conquistando corpo a ideia de que o próprio interesse da parte litigante no direito

alegado constituiria eficaz catalisador para a mais rápida investigação da situação

jurídica”3.

No modelo hierárquico, há uma distinção entre Estado, sociedade e indivíduo,

dando origem a uma relação vertical. O juiz, portanto, como representante estatal nessa

configuração, encontra-se em posição superior às partes. O juiz figura como o vértice de

uma relação angular com as partes preenchendo os outros pontos. Assim sendo, deve o

jurista conhecer o direito para buscar a verdade – a qual se torna o objetivo maior do

magistrado, reduzindo a influência do contraditório. A igualdade aqui é meramente

material, das partes perante a lei.

Tais modelos não mais se adequam à expectativa da sociedade para o processo

civil. Isso porque se por um lado a experiência mostra que um processo totalmente

conduzido pelas partes produziria melhores e mais eficientes resultados, por outro a total

2 MITIDIERO, Daniel. Bases para a construção de um processo civil cooperativo: o direito processual civil

no marco teórico do formalismo-valorativo. 2007. 147 f. Trabalho monográfico (Pós-graduação em Direito) -

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. p. 46/47. 3 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:

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imposição de um processo inquisitivo levaria à quase que absoluta publicização do

processo civil, com potenciais efeitos colaterais, que poderiam chegar a um autoritarismo

estatal.

Hoje se almeja um sistema processual no qual o magistrado não seja um mero

espectador do conflito entre as partes, mas que, ao mesmo tempo, seja dada ampla

oportunidade à manifestação destas, contribuindo, assim, para um resultado processual

justo e tempestivo4.

Assim, no modelo cooperativo, apesar de permanecer a distinção entre Estado,

sociedade e indivíduo, a organização é bastante diversa dos outros dois modelos. Neste

tem-se “um juiz isonômico na condução do processo e assimétrico quando da decisão das

questões processuais e materiais da causa”5.

A cooperação acaba por gerar uma comunidade de trabalho6, com uma efetiva

participação das partes na condução e instrução, e se torna prioridade no processo7.

Todo o processo se dará com a observância intensa de um contraditório

redimensionado, o qual passa a ser visto não só como mera regra formal para a validade da

decisão judicial, mas como elemento que permite o seu efetivo aprimoramento8.

As mudanças na concepção de processo afetam não apenas as posições e papéis dos

sujeitos processuais na condução do mesmo, mas também a própria concepção ética acerca

da relação das partes entre si, e delas com o magistrado.

Nos dois primeiros modelos a exigência quanto à conduta dos sujeitos restringe-se

à boa-fé subjetiva9, enquanto que no modelo cooperativo todos aqueles que atuam no

4 PINHO. Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo, vol. 1, Rio de Janeiro:

Saraiva, 2012, p. 74. ______. Comentários ao novo CPC postados no blog

http://humbertodalla.blogspot.com, acesso em abril de 2012. 5 GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, Padova, 1966, p. 587. 6 SOUZA. Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, São Paulo:

Revista dos Tribunais, v. 93, n. 338, pp. 149-158, abr./ jun. 1997. 7 ANDREWS, Neil. Relações entre a corte e as partes na era do case management. Revista de Processo. São

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(Org.). Processo coletivo e outros temas de direito processual: homenagem 50 anos de docência do

professor José Maria Tesheiner, 30 anos de docência do professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 264-265. 9 É cediço que a boa-fé subjetiva traz em seu núcleo a ideia de crença, de convencimento, por parte do

indivíduo, de agir em conformidade com o direito. Tradicionalmente a boa-fé subjetiva é contraposta à má-fé, caracterizada, justamente, pela presença de um elemento volitivo representando a plena consciência

individual da ilicitude dos atos praticados. Por este motivo Judith Martins-Costa ressalta que para a aplicação

da boa-fé subjetiva “deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado

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processo, incluindo o magistrado, devem fazê-lo com lealdade, somando-se à boa-fé

subjetiva a sua vertente objetiva10

.

Em sua concepção atual o modelo cooperativo, ao ser aplicado, gera uma série de

deveres às partes, decorrentes tanto da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, como da

aplicação de um, propriamente dito, princípio da cooperação.

2. Desdobramentos da cooperação no processo civil brasileiro

No Brasil o dever da veracidade foi consagrado no CPC em alguns momentos, e

expressamente no inciso I do artigo 14, o qual estabelece o dever dos sujeitos processuais

(não apenas as partes) de “expor[em] os fatos em juízo conforme a verdade”.

Afirma Elicio de Cresci Sobrinho, que o dever de veracidade adotado no CPC é um

dever à verdade subjetiva11

, ou seja, não alterar intencionalmente a verdade dos fatos; a

parte deve declarar aquilo que entende por verdadeiro, de acordo com a sua consciência12

.

Ainda, o dever de veracidade somente se aplica aos fatos principais, que sejam referentes

aos seus direitos disponíveis.

O próprio CPC/73 traz, em seu artigo 14, um rol de deveres processuais aplicados

às partes e a todos aqueles que participam do processo. Contudo, a doutrina diverge quanto

à possibilidade de cominação de sanção para a violação dos deveres inscritos nesse

dispositivo.

Se por um lado há quem entenda que somente aqueles deveres que foram

igualmente previstos no artigo 17, o qual enumera àquelas condutas configuradoras da

litigância de má-fé13

; por outro lado, há autores que defendem que, decorrendo tais deveres

da cláusula geral da boa-fé objetiva, entendida em conjunto com o contraditório efetivo e o

psicológico ou íntima convicção” (in A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.

São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411). 10 Na acepção objetiva, a boa-fé pode ser entendida como norma ou regra de conduta, a qual denota um

standard de comportamento correspondente àquilo que possa ser razoavelmente esperado do homem médio

em suas relações sociais, dadas, logicamente, as particularidades da situação concreta. 11 CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Dever de veracidade das partes no processo civil. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris Editor, 1988 op. cit., p. 99. 12 No mesmo sentido Helio Tornaghi aponta que, tendo em vista as deformações da representação intelectual

dos fatos inerentes à natureza humana, o que o dever de veracidade impõe “é que as partes digam só o que

lhes parece ser a verdade (não mentir) e tudo quanto se lhes afigura verdadeiro (não omitir). Nem falsidade,

nem reticência; nem inverdade, nem restrição mental” (in Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribnais, 1976, v. I, p. 144). 13 BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998,

v. I.

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devido processo legal, deve ser admitida a sua aplicação prática para adequar a conduta

dos sujeitos processuais aos postulados éticos do modelo cooperativo de processo civil14

.

O processo judicial, afinal, é o instrumento capaz de, “pelo conhecimento da

verdade dos fatos, oferecer aos jurisdicionados a “justa composição da lide” pela

heterocomposição e imposição de regra de conduta”15

.

Nesse contexto, o dever geral de colaboração entre partes e magistrado é

fundamental para a concretização de um processo justo já que a realidade da reconstrução

dos fatos será diretamente proporcional à participação dos sujeitos processuais.

Tanto as partes como o juiz devem se utilizar de seus esforços máximos para obter

a tutela jurisdicional.

Assim é que Jair Pereira Coitinho defende a não preclusão da produção de prova

para todos que fazem parte do processo, ou seja, não se trata de retroceder no

procedimento e sim de aplicar a garantia do due process of law, independentemente de já

se ter ultrapassado a oportunidade das partes pleitearem a produção das provas, somente

impondo como requisito a novidade do fato ou o desconhecimento anterior do mesmo16

.

No direito processual contemporâneo a cooperação e colaboração assumem papel

de destaque na determinação de como deve se dar a atuação dos sujeitos processuais,

estabelecendo assim as bases para um verdadeiro modelo de processo cooperativo,

marcado pela ampla e ativa participação das partes na condução e instrução do processo.

Nesse ponto, enquanto alguns autores veem a cooperação como um simples dever

derivado do próprio princípio da boa-fé objetiva, em sua função de fonte criadora de

deveres acessórios17

, outros enxergam na cooperação um verdadeiro princípio autônomo, o

qual não só fornece a fundação para a construção do processo cooperativo, como também

gera deveres para partes e magistrados18

.

14 VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas, p. 98. 15 PEREIRA COITINHO, Jair. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de conduta

dos sujeitos processuais),. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Disponível em:

http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042. Acesso

em jan 2013. 16 COITINHO, Jair Pereira. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de conduta

dos sujeitos processuais). Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, XIII, n. 80, set. 2010. Disponível em:

<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042>.

Acessado em: 17 jul. 2013. 17 VINCENZI, Brunela Vieira de. Op. cit., p. 170. 18 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da

SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:

<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013.

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Ao estabelecer como finalidade o alcance de uma “comunidade de trabalho” e a

obtenção de um processo leal e cooperativo, o princípio da cooperação torna devidos

determinados comportamentos, independente da existência ou não de regras expressa

prevendo-os, uma vez que, ao estabelecer o fim a ser alcançado, ele assegura os meios

necessários para tanto.

O direito português foi o primeiro a consagrar o princípio da cooperação de forma

expressa em seu código de processo. O art. 266º, 1º, do Código antigo estabelecia que

“[n]a condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais

e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia,

a justa composição do litígio”.

Com esse dispositivo o legislador português não previu apenas regras específicas

de cooperação, como até então faziam os ordenamentos vigentes, mas uma cláusula geral

de cooperação.

Por isso Fredie Didier Jr., ao analisar esse princípio no direito processual

português, afirma que ele é dotado de eficácia normativa direta, na medida em que permite,

a partir da sua aplicação, “cogitar de situações jurídicas processuais atípicas” 19.

O novo Código de Processo Civil Português, recém-aprovado pela Lei nº 41, de 26

de junho de 2013, manteve o dispositivo que consagra o princípio da cooperação, com a

mesma redação, mas em nova localização: no título referente aos princípios fundamentais

do processo civil, no art. 7º, I.

Com relação aos magistrados, a doutrina portuguesa identifica que o princípio da

colaboração é composto por diversos outros deveres, os quais direcionam a atuação ativa e

participativa do juiz. São eles: dever de esclarecimento, dever de prevenção, dever de

consulta e dever de auxílio.

O dever de esclarecimento comporta o dever do juiz de esclarecer as suas dúvidas

junto às partes antes de proferir qualquer decisão precipitada que tome como base uma

equivocada percepção do que foi alegado nos autos. Com isso busca-se evitar decisões que

revelem não o que foi apurado no processo, mas a falta de informação do magistrado.

Segundo Laura Fernandes Parchen esse dever teria ainda a finalidade de favorecer

“a igualdade de armas no processo civil, porquanto o magistrado, diante de fatos ainda

19 DIDIER JR., Fredie. . Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito Processual Civil Português.

Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 52.

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não esclarecidos, não pode adotar o cômodo entendimento de aplicação do ônus da

prova”20

.

Destarte, apenas após ter tentado efetivamente esclarecer os fatos obscuros ou não

explicados pelas partes, é que o juiz poderá decidir aplicando a regra de julgamento do

ônus da prova para esses fatos não provados.

De forma concreta podemos identificar esse dever na regra do artigo 284 do CPC

que estabelece que o magistrado não deve indeferir a petição inicial sem antes pedir

esclarecimentos ao demandante a respeito do problema verificado. Assim o juiz, antes de

decidir de forma assimétrica, submete a sua posição sobre o material do processo à

manifestação das partes, garantindo a participação destas na formação da decisão.

Tal dispositivo, ao estabelecer que o juiz determine a emenda dos vícios

identificados na petição inicial, igualmente representa a concretização do dever de

prevenção, o qual consiste no dever do juiz de indicar as deficiência e insuficiências das

alegações e postulações das partes, garantindo a possibilidade delas serem supridas.

Dentro de uma perspectiva colaborativa, não basta que o magistrado indique de

forma genérica que há um defeito que deve ser sanada sob pena de indeferimento da

petição inicial, mas é necessário que ele aponte de forma específica qual a deficiência que

deve ser sanada21

.

Observa-se que o dever de prevenção, tal como o dever de esclarecimento, se presta

à uma promoção da igualdade material no processo civil, uma vez que, a partir dele, o juiz

pode evitar que o uso inadequado do processo – i.e., o que ocorre especialmente em casos

de parte hipossuficiente – prejudique a possibilidade de êxito de uma das partes.

Por sua vez, o dever de consulta gera para o Juiz o dever de, antes de decidir com

base em qualquer questão de fato ou de direito, ainda que cognoscível ex officio, conceder

às partes a oportunidade de manifestação sobre as mesmas, salvo, evidentemente, quando

se tratar de questão urgente, caso em que o debate será postergado.

20 PARCHEN, Laura Fernandes. Impacto do princípio da cooperação no processo civil. Academia Brasileira

de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:

<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/LAURA%20PARCHEM%20-

%20VERS%C3%83O%20FINAL.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. 21 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Amplitude do dever de colaboração processual. In: MACEDO,

Elaine Harzheim; STAFFEN, Márcio Ricardo (Coord.). Jurisdição e processo: tributo ao constitucionalismo.

Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 281.

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Não há dúvidas de que por meio desse dever o princípio da cooperação garante

também a observância do contraditório participativo, tendo como contrapartida o direito de

participação das partes22

.

Na praxis judiciária a observância desse dever tem o potencial de evitar graves

danos para as partes e, até mesmo, aumentar a garantia da prolação de decisões mais justas.

Isso porque não apenas serão evitadas as “decisões-surpresa”, como também evitar-se-á a

situação na qual o magistrado profere decisão com base em regras jurídicas diversas

daquelas ventiladas pelas partes, mas sem explicitar o artigo de lei, provocando a

inadmissibilidade de recursos extraordinários, sob o pretexto de “falta de

prequestionamento”23

.

À luz do princípio da cooperação e deste correlato dever de consulta, é possível

falar em uma interpretação conformada do brocardo iura novit curia, o qual confere ao juiz

a liberdade de, a partir do contexto fático exposto nos autos pelas partes, eleger a norma

jurídica a ser aplicada ao caso concreto, independente de tal conclusão jurídica ter sido

abordada pelas partes.

A cooperação não retira do magistrado esse “poder-dever”, mas sim estabelece que

antes de ele ser exercido, deve dada às partes a oportunidade de se manifestarem sobre as

conclusões jurídicas extraídas pelo juiz dos autos24

.

Por último, o dever de auxílio impõe ao juiz o dever de contribuir para que as

partes superem as eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou

faculdades, ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais, removendo o obstáculo

impeditivo25

.

Assim o magistrado pode determinar determinadas diligências com vistas a superar

obstáculos que tenham sido criados à instrução probatória por vontade alheia à das partes.

É o caso do disposto nos artigos 355 e 399 do Código de Processo Civil.

22 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da

SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:

<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013. 23 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7850>. Acesso em: 30 set.

2013. 24 PARCHEN, Laura Fernandes. Impacto do princípio da cooperação no processo civil. Academia Brasileira

de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:

<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/LAURA%20PARCHEM%20-%20VERS%C3%83O%20FINAL.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. 25 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública Uma

nova sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 67.

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3. Expectativas no Novo CPC

Não obstante seja possível identificar a presença da concretização do princípio da

cooperação através de diversos dispositivos esparsos no atual Código de Processo Civil

Brasileiro, há uma evidente lacuna no ordenamento jurídico pátrio quanto a uma cláusula

geral da cooperação, da qual se permita extrair a regulamentação de situações jurídicas

atípicas.

Bem se sabe que o legislador não pode prever todas as situações que podem surgir

no desenrolar do processo, especialmente na seara da ética e do comportamento dos

sujeitos processuais, de modo que a mera previsão de deveres específicos não satisfaz a

demanda de um processo civil cooperativo.

Assim, o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil trouxe a seguinte redação

para o seu artigo 5º:

Artigo 5º. As partes têm direito de participar ativamente do processo,

cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira

decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de

urgência.

Quando de seu exame pelo Senado, ao remeter à Câmara o PLS 166/10, foi

suprimida a expressão “entre si”, revelando que a essa Casa Legislativa não acredita num

processo que se desenvolva em nível de cooperação entre as partes, mas apenas entre cada

uma das partes e o juiz.

Excessivamente pessimista esta avaliação. É bem verdade que precisamos mudar a

mentalidade dos litigantes, e isso significa mexer em conceitos arraigados há muito tempo,

não apenas nas partes, mas, principalmente, nos seus advogados, os quais veem o processo

como um verdadeiro “campo de batalha”. Contudo, é necessário mudar essa mentalidade e

nada como um novo CPC para desencadear o ponto inicial dessa mudança26

.

26 Elogiável, portanto, a observação feita pelo Deputado Sérgio Barradas, então Relator da Comissão

Especial do Novo CPC na Câmara dos Deputados, em seu Relatório de Atividades sobre a exclusão da

expressão “entre si”: “Há uma má compreensão do princípio da cooperação: não se trata de uma parte

ajudar a outra; trata-se, sobretudo, de uma parte colaborar com a outra e com o órgão jurisdicional para

que o processo seja conduzido da melhor forma possível. Os deveres de cooperação surgiram no direito

obrigacional, exatamente para regular as relações entre credor e devedor, que têm, obviamente, interesses contrapostos. A sua extensão ao direito processual era inevitável – como, aliás, acabou ocorrendo em

diversos países (Alemanha, França, Portugal e Itália). Além disso, acrescenta-se o enunciado do princípio

da boa-fé processual”.

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Na Câmara dos Deputados a mentalidade quanto a esse ponto parece ser outra. O

relatório do Deputado Paulo Teixeira ao Projeto de Lei nº 8.046 de 2010 dá nova redação

aos referidos dispositivos. O artigo 5º passa a ter a seguinte redação: “[a]quele que de

qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.

Com isso o princípio da boa-fé, que já vinha previsto no atual Código de Processo

Civil, no rol dos deveres dos sujeitos processuais, é deslocado para o capítulo referente aos

princípios e garantias fundamentais do processo civil, impondo a sua observância em todo

o procedimento.

O artigo 8º, por sua vez, em sua redação anterior do Projeto, estabelecia que “[a]s

partes têm o dever de contribuir para a rápida solução da lide, colaborando com o juiz

para a identificação das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes

desnecessários e procrastinatórios”. Ou seja, enquanto que o artigo 5º previa um dever de

cooperação, o artigo 8º trazia o dever de colaboração.

Com a alteração introduzida na Câmara dos Deputados este dispositivo passou a

representar a consagração, no novo CPC, não só de um dever, mas de uma cláusula geral

expressa da cooperação, ao estabelecer que “[t]odos os sujeitos do processo devem

cooperar entre si para que se obtenha a solução do processo com efetividade e em tempo

razoável”. Parece, portanto, que o legislador infraconstitucional quis adotar

definitivamente o modelo cooperativo para o processo civil brasileiro.

4. Questões principiológicas

As cláusulas gerais assumem um papel de grande importância em um sistema

aberto como o processo civil cooperativo. Graças a seu elevado grau de indeterminação,

elas permitem ao juiz garantir a adaptabilidade do Direito às situações jurídicas atípicas, na

medida em que é através deste tipo normativo que o magistrado poderá “produzir normas

que valem para além do caso onde será promanada concretamente a decisão”27

.

Ao aplicar uma cláusula geral o magistrado deverá não só identificar o

preenchimento do suporte fático, como também determinar qual a norma jurídica que pode

ser extraída dessa cláusula geral para regular o caso concreto.

27 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 341.

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Dessa forma, além de garantirem a abertura e a mobilidade externa do sistema

jurídico, o qual, conforme já visto no tópico anterior, encontra-se em constante intercâmbio

de influências com o mundo extrajurídico, as cláusulas gerais também permitem a própria

mobilidade interna do sistema jurídico, consistente na aplicação de uma norma em atenção

para todo o sistema no qual ela se encontra inserida.

Assim, a partir de uma cláusula geral da cooperação, prevista de forma expressa,

será possível extrair um Princípio da Cooperação28

, em sua vertente de direito de

participação da parte no processo, o que se coaduna com a noção de democracia e de

contraditório participativo. Essa participação representa, ainda, a outra face do dever de

consulta do magistrado, o qual deve inquirir as parte antes de ser proferida qualquer

decisão com fundamento em questão ainda não posta no processo29

.

Aponta-se que o Princípio da Cooperação é decorrente dos Princípios da Boa-Fé,

da Lealdade e do Contraditório. Esses dois princípios que tiveram sua incidência inicial no

direito privado já tem a sua inserção nos ramos do direito público como certa, pois o que se

espera de qualquer litigante, em qualquer esfera é que atue de maneira a não frustrar a

confiança da outra parte.

O princípio da boa-fé se manifesta através de ouros dois subprincípios: a proteção

da confiança, pelo qual se protege a ideia que o sujeito possuía sobre determinada coisa, e

a prevalência da materialidade subjacente, ou seja, a regra jurídica será aplicada de acordo

com as circunstâncias que envolvam o contexto fático.

No Código de Processo Civil o princípio da boa-fé é previsto no inciso II do artigo

14, que traz o dever processual dos sujeitos “proceder com lealdade e boa-fé”. Trata-se,

portanto, da consagração expressa não só do dever de boa-fé processual, como também do

dever de lealdade.

28 Segundo Reinhard Greger, há entendimento doutrinário bem consolidado no sentido de que a Cooperação

não deve ser apontada como um dos Princípios do Processo. Discordamos deste ponto de vista, na medida em

que é justamente a cooperação que vai marcar a transição para um novo modelo de processo, que procura se

distanciar de uma visão meramente adversarial, exigindo dos sujeitos do processo um comprometimento

maior com a busca de uma solução justa. Para maiores informações sobre essa discussão, remetemos o leitor

a GREGER, Reinhard; KOCHEM. Ronaldo (Trad.). Cooperação como princípio processual. Revista de

Processo, São Paulo, v. 37, n. 206, p. 123-134, abr. 2012. 29 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da

SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:

<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013.

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Para Buzaid, os deveres de lealdade e de boa-fé estariam intimamente ligados ao

dever de veracidade, de tal forma que a sua atuação deve se dar com fundamento na lei,

apresentando os seus fundamentos de fato com amplo suporte em provas documentais30

.

Além de ser legalmente previsto, o princípio da boa-fé também decorre de uma

série de outros princípios como, por exemplo, o princípio da solidariedade31

ou até mesmo

o princípio da dignidade da pessoa humana32

.

A jurisprudência brasileira, por sua vez, adota a ideia de Joan Pico i Junoy33

de que

o devido processo legal prescinde de um processo leal e baseado na boa-fé.

Existe, sem sombra de dúvida, uma ligação forte entre boa fé e contraditório. Da

mesma forma, a releitura desses dois princípios com as lentes do neoconstitucionalismo faz

nascer um vínculo entre a cooperação e o contraditório participativo34

.

Nesse sentido, o contraditório não pode ser usado ao bel-prazer das partes para

justificar condutas antiéticas e ilegais. Conforme ressalta Fabio Milman, não é possível

extrair, a partir do direito ao contraditório e à ampla defesa, uma autorização para o

exercício ilimitado do processo, tendo em vista a inegável existência de “regras de

conduta, dentro do exercício das mencionadas prerrogativas”35

que regulam a atuação das

partes no processo.

30 A concepção quanto ao dever de lealdade varia na doutrina. Alguns identificam a lealdade como espécie de

sinônimo de legalidade, para dizer que o dever de lealdade consiste na obrigação da parte de agir de acordo

com o que está na lei (in TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1976, v. 1, p. 145, e in BUZAID, Alfredo. Processo e Verdade no Direito Brasileiro.

Revista de Processo, São Paulo, nº 47, pp. 92-99, jul./set. 1987, p. 96). Por outro lado, autores como Arruda

Alvim associam a lealdade à honestidade, de tal forma que para poder dizer que a conduta do litigante é leal

não bastaria a mera observância aos comandos legais, mas seria efetivamente necessário que ele agisse de

forma honesta, sem “utilizar-se de expedientes desonestos, desleais, para obter o ganho de causa” (in

Tratado de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1996, v. 2, p. 401-402). 31 Segundo Fredie Didier Jr., ao estabelecer, em seu art. 3º, inciso I, como objetivo fundamental da República

Federativa do Brasil a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, a Constituição da República de

1988 estaria instituindo um “dever fundamental de solidariedade, do qual decorreria o dever de não quebrar a confiança e de não agir com deslealdade” (in Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito

Processual Civil Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 86). 32 COSTA, Patricia Ayub da; GOMES, Sergio Alves. O princípio da boa-fé objetiva à luz da Constituição.

Conpedi, Salvador, 2008. Seção Anais. Disponível em:

<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/patricia_ayub_da_costa.pdf>. Acesso em: 15

jun. 2013. 33 JUNOY, Joan Pico i. El debido processo ‘leal’. Revista Peruana de Derecho Procesal. Lima: Palestra,

2006, vol. 9, p. 346 in DIDIER JUNIOR, Fredie. Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito

Processual Civil Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. P. 88. 34 Sobre o tema: Alvaro de Oliveira. Garantia do contraditório. In Garantias constitucionais do processo civil.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 140, e CÂMARA, Marcela Regina Pereira. Os Limites da Defesa Incompatível à luz da Eventualidade, Tese de Doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da UERJ,

no dia 17 de setembro de 2013, p. 25. 35 MILMAN, Fabio. Improbidade processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 84.

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Assim o contraditório atua não somente para assegurar a conduta ética dos sujeitos

processuais, como também para promover uma atuação participativa, cooperativa e

colaborativa dos mesmos. Trata-se, nesse sentido, de uma nova concepção de contraditório

participativo. Ou seja, nesta fase da ciência processual o contraditório é revalorizado para

promover a participação das partes na investigação da verdade e, por consequência, na

formação do juízo36

.

No âmbito obrigacional, o dever de cooperação surge como um dos deveres anexos

ao princípio da boa-fé e pressupõe o adimplemento leal da prestação. Tal dever nasce

independente da vontade das partes e é imputado especialmente ao credor, abstendo-se de

conduta que dificulte a prestação pelo devedor. O dever de cooperação é, ainda,

subdividido em dever de esclarecimento, tratando do direito de informação a ambas as

partes; dever de lealdade, e dever de proteção, impedindo que sob a confiança demonstrada

pelas partes surjam danos.

A colaboração das partes no processo é demonstrada através da probidade e

lealdade, pois da liberdade concedida às partes decorre também a sua responsabilidade37

.

Ainda, deve se deixar de lado o individualismo para que todos os operadores do processo

cooperem com boa-fé38

.

Somente num ambiente protegido pelas garantias constitucionais, e havendo um

permanente monitoramento da incidência dessas garantias, é que se poderá ter o chamado

processo justo39

.

Ocorre que, como elementos imprescindíveis ao bom funcionamento desse sistema,

encontramos a postura do juiz e a atitude das partes.

Quanto a estas, não podem apenas provocar a jurisdição de forma despretensiosa,

sem compromisso ou irresponsavelmente. Devem buscar de forma clara, leal e honesta a

melhor solução para aquele conflito. Devem participar de fato da solução.

36 PICARDI, Nicola. Audiatur et Altera Pars: as matrizes histórico-culturais do contraditório. Jurisdição e

Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 141. 37 PEREIRA COITINHO, Jair. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de

conduta dos sujeitos processuais),. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Disponível em:

http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042. Acesso

em jan 2013. 38 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7850>. Acesso em: 8 jan. 2013. 39 COMOGLIO, Luigi Paolo. FERRI, Conrado. TARUFFO, Michele. Lezioni Sul Processo Civile, Bologna:

Il Mulino, 1998, p. 95.

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À luz, portanto, do princípio da cooperação, partes e juiz terão o essencial poder-

dever de colaborar entre si para a adequada condução do processo, como forma de

promoção da democracia, da segurança jurídica e do contraditório, e de adequação às

finalidades do Estado Democrático de Direito.

De fato, “[c]onciliare le caratteristiche di un processo sociale e di un processo

“privatista” può provocare risultati sociali e costituzionalmente accettabili, nel senso di una

giusta legittimazione delle decisioni giudiziarie, senza ridurre la partecipazione attiva del

giudice e contributiva delle parti, cioè, la funzione del processo di assicurare e garantire il

contraddittorio”40

.

As ideias de lealdade e boa-fé processual trazem ínsita a vedação à litigância de

má-fé. Como consequência, será imposta uma multa calculada sobre o valor da causa. A

cooperação, quer nos parecer, traz uma ideia maior; ou seja, não basta não praticar o ato de

má-fé ou de improbidade processual. É preciso ter um atuar construtivo, positivo, agir no

intuito de promover um processo justo.

Dentro da perspectiva do processo civil cooperativo o papel dos sujeitos

processuais é redimensionado, com o estabelecimento de um equilíbrio entre seus deveres

e poderes para assegurar a participação ativa de todos.

Quanto ao juiz, é preciso atentar para a evolução de seu papel, ao longo das

dimensões assumidas pelo Estado, desde a fase liberal, passando pela social, até chegar ao

atual Estado Democrático de Direito.

No Estado Liberal, as partes regiam o processo diante de um Judiciário passivo,

evitando o Estado qualquer intervenção nas relações privadas. Acreditava-se que as partes

por si só conseguiram chegar a uma solução e por fim ao litígio. Ainda, o juiz não detinha

liberdade para apreciar o processo, sofrendo pressão nos momentos de decisão para que se

amoldassem às orientações políticas do governo, atuando como mero espectador de um

jogo entre particulares41

.

No Estado Social, a realização da justiça social passou a ser um dos pilares,

fazendo com que se abandonasse o individualismo liberal. Dessa maneira, o foco saiu do

40 NUNES, Dierle José Coelho. Processo civile liberale, sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009.

Seção “Diritto processuale civile”. Disponível em: < http://www.diritto.it/docs/27753-processo-civile-

liberale-sociale-e-democratico#>. Acesso em: 17 jul. 2013. 41 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: Tres modelos de Juez. In: DOXA, nº 14, 1993. pp. 169-194.

< http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/ 01360629872570728587891/index.htm>. Acesso em

14 de novembro de 2006.

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Legislativo e se dirigiu para o Executivo. O processo passou a representar a autoridade do

Estado, ao exercer uma função pública e soberana. “O processo assumia a forma de

instrumento que o Estado colocava à disposição dos privados para a atuação da lei”42

.

Com isso, o juiz, de uma atuação passiva, passou a ter mais poderes com o objetivo de

reduzir as desigualdades perante a parte mais fraca43

.

Já no Estado Democrático de Direito, a “democracia deixa de ser representativa e

passa a ser participativa”44

com o cidadão sendo reconhecido como participante e não

apenas recipiente da intervenção social conduzida pelo Estado. Esse deixa de ser um

inimigo da sociedade para ser um concretizador dos direito fundamentais45

.

Com relação ao processo, tenta se conjugar os dois modelos anteriormente

mencionados, fazendo com que “o juiz desenvolva o diálogo no mesmo nível das partes”46

.

Nesse contexto assume significativa importância o Princípio da Cooperação para

possibilitar a ampla colaboração e participação das partes e do juiz, construindo um

verdadeiro modelo colaborativo.

O Princípio da Cooperação busca estabelecer um equilíbrio na atuação dos sujeitos

processuais, de tal forma que, se por um lado irá fortalecer os poderes das partes, de forma

a garantir a elas uma participação e influência efetivas na formação do convencimento do

magistrado47

, por outro lado também o juiz deverá adotar uma postura mais ativa, embora

que com cautela para não acabar sendo arbitrário ou imparcial.

Por isso Carlos Alberto de Oliveira ensina que o princípio da cooperação “vincula-

se ao próprio respeito à dignidade humana e aos valores intrínsecos da democracia,

adquirindo sua melhor expressão e referencial, no âmbito processual, no princípio do

contraditório, compreendido de maneira renovada, e cuja efetividade não significa apenas

42 TARRUFO, Michele. Cultura e processo. Rivista Trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, v. 63, n. 1mar. 2009. p. 63-92. In RAATZ, Igor. Colaboração no Processo Civil e o Projeto do Novo Código de

Processo Civil. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. 43 HESPANHA, Antonio Manuel. O Caleidoscópio do Direito, 2a edição, Coimbra: Almedina, 2009. 44 RAATZ, Igor. Colaboração no Processo Civil e o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Rev. SJRJ,

Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. p. 28. 45 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas

sociedades contemporâneas, artigo disponível em

endereço: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm. 46 GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 21, 1966. P.

595. 47 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:

<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20-formatado.pdf>.

Acesso em: 17 jul. 2013.

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debate das questões entre as partes, mas concreto exercício do direito de defesa para fins

de formação do convencimento do juiz, atuando, assim, como anteparo à lacunosidade ou

insuficiência da sua cognição”.

Nessa dimensão, interessante ressaltar que o direito processual alemão traz a

previsão de deveres dos magistrados, decorrentes do dever geral de colaboração. O §139

da ZPO, por exemplo, incorpora o denominado dever de indicação (Hinweispflicht),

consistente no dever o órgão judicial de provocar as partes à discussão sobre as questões de

fato e de direito, de modo de deixar claras as suas argumentações48

.

Posterior reforma da ZPO tratou de reforçar ainda mais este dever. De acordo com

a nova redação do §139, “em princípio é vedado ao tribunal colocar-se, para fundamentar

sua decisão, em ponto de vista estranho ao das partes, por elas considerado irrelevante ou

por ambos valorado de maneira diferente da que parece correta ao órgão judicial, a menos

que este lhes faça a respectiva indicação e lhes dê ensejo de manifestar-se”49

.

O princípio da cooperação exige, portanto, que o juiz assuma uma posição mais

ativa na resolução da lide, mas sem se transformar no “ator principal” do processo,

relegando os litigantes às posições de meros espectadores, tal como se dava no modelo de

processo do Estado Social. Para isso estende-se ao magistrado a obrigatoriedade de

observância do princípio do contraditório, o qual exige do juiz que efetivamente garanta a

faculdade de manifestação das partes no procedimento50

.

Deve-se ter grande cautela para que a participação ativa do juiz no

desenvolvimento do procedimento jurisdicional não reste sem controle, de modo que acabe

se tornando uma atuação autoritária ao invés de democrática51

. Por esse motivo, é de

extrema importância que não só os poderes do magistrado sejam previstos de forma

48 GREGER, Reinhard. Cooperação como princípio processual. Tradução de Ronaldo Kochem, Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 206, p. 123-129, abr. 2012. 49 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Breve notícia sobre a reforma do processo civil alemão. Temas de direito

processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 201-202. 50 Nesse sentido: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução:

Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 283. LUCHI, José Pedro. A

racionalidade das decisões jurídicas segundo Habermas. In: Revista da Ajuris. Porto Alegre, ano XXXIV, nº

107, pp. 157-170, setembro de 2007. VAZ, Alexandre Mário Pessoa. Poderes e Deveres do Juiz na

Conciliação Judicial. Vol. I, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 1976, p. 514. 51 É com precisão que afirma Dierle José Coelho Neto que “diventa necessario, a questa stregua, analizzare

il ruolo del giudiziario a partire da una concezione processuale di Stato democratico di Diritto che assicuri

lo sviluppo dell’attività dialogica all’interno del processo, con l’influenza di tutti gli attori sociali (giudice, p arti e avvocati) nella formazione dei provedimenti”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo civile liberale,

sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009. Seção “Diritto processuale civile”. Disponível em: <

http://www.diritto.it/docs/27753-processo-civile-liberale-sociale-e-democratico#>. Acesso em: 17 jul. 2013.

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objetiva e clara, e não indeterminada, sob pena de excessos serem gerados, como também

que sejam previstos deveres específicos de cooperação para o juiz52

.

Nesse sentido traz-se a crítica de Igor Raatz, para quem apesar de o novo CPC

trazer o dever de colaboração, ele não apresenta especificamente os deveres como no

processo civil português (de esclarecimento, prevenção, consulta, auxílio, correção e

urbanidade), sobre os quais deve se pautar a atuação do juiz, havendo apenas uma

abordagem genérica53

. Estão, esses deveres, presentes de forma esparsa e indireta em

obrigações trazidas pelo novo CPC às partes.

Ao juiz cabe um duplo papel, isonômico quando da relação com as partes e

assimétrico ao impor suas decisões. Por isso que o modelo de colaboração é efetivado

através da criação de regras para a atuação do juiz, uma vez que as partes, estando em

polos opostos com relação ao objeto do litigio, não têm como agir em cooperação uma com

a outra.

Já a participação das partes no sistema colaborativo pode ser vislumbrada por duas

vertentes: a primeira em que as partes devem fazer o possível para auxiliar o juiz a chegar

à solução mais justa para o caso e a segunda que as partes devem colaborar com base na

boa-fé objetiva e lealdade.

Não se deve, contudo, imaginar que o princípio da cooperação implique em um

dever de uma parte ajudar a outra, fornecendo ao seu adversário elementos para a sua

derrota.

Pensar assim é entender de forma equivocada o sentido do princípio da cooperação.

Há sim um dever de as partes colaborarem uma com a outra e com o órgão jurisdicional,

mas tendo em vista a adequada gestão do processo, de acordo com os instrumentos

proporcionados pelo diploma processual, e para o alcance de uma decisão justa.

O que se busca, de fato, quando se defende que as partes devem cooperar entre si, é

uma atuação ética e correta dos indivíduos na exposição dos fatos e na defesa dos seus

direitos, colaborando com o magistrado para a solução da lide de forma justa e tempestiva,

sem o emprego de meios fraudulentos, maliciosos e ardis.

52 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de Pinho. DURCO, Karol. A Mediação e a Solução dos Conflitos no Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional, disponível

em http://www.humbertodalla.pro.br. 53 RAATZ, op. cit., p. 32.

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É possível identificar alguns deveres que concretizam esse comando de uma

atuação positiva e colaborativa das partes, quais sejam: dever de lealdade, dever de

veracidade e dever de operosidade54

.

Nota-se que os dois primeiros deveres – de lealdade e de veracidade – vêm

expressos no artigo 14 do Código de Processo Civil de 1973 como deveres das partes no

processo. Não há dúvida de que ambos possuem intrínseca relação o dever de cooperação,

na medida em que é impossível imaginar que a parte possa atuar de forma colaborativa

pautada em uma conduta antiética ou desleal.

Da mesma forma, o dever de veracidade, consubstanciado no dever de a parte, ao

expor os fatos, o fazer de forma franca, representa a concretização do princípio da

cooperação, na medida em que a exposição dos fatos tal como aconteceram auxilia o

magistrado na correta aplicação da norma jurídica ao caso concreto.

No Código de Processo Civil este dever vem concretizado no artigo 339 do CPC-

73, o qual estabelece uma espécie de dever geral de colaboração, à luz do dever de expor

os fatos de forma franca, com a finalidade de auxiliar o juízo no descobrimento da verdade.

As partes podem até omitir determinado fato, desde que essa omissão não macule a

veracidade da narrativa como um todo. Contudo, caso a parte decida trazer algum fato para

o processo, à luz do dever da veracidade, deverá fazê-lo de forma franca, sem distorcer os

acontecimentos a seu favor.

Já o dever de operosidade significa que as partes – e, em realidade, todos que

participam do processo de alguma forma – devem atuar da “forma mais produtiva e

laboriosa possível, para assegurar o efetivo acesso à justiça”55

, e assegurar que o direito

material seja realizado da melhor forma possível e com o mínimo de esforço sendo

empreendido pela máquina judiciária já saturada.

Dessa forma o princípio da cooperação, através deste dever específico, está

concretizando também o princípio da economia processual e o princípio da razoável

duração do processo, uma vez que está promovendo o não-retardamento do processo e a

consequente entrega tempestiva da prestação jurisdicional.

54 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Amplitude do dever de colaboração processual. In: MACEDO,

Elaine Harzheim; STAFFEN, Márcio Ricardo (Coord.). Jurisdição e processo: tributo ao constitucionalismo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 281. 55 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: Uma

Nova Sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 71.

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O Princípio da Cooperação também provoca reflexos necessários sobre os

procuradores das partes. De fato, não haveria sentido que essas estivessem dispostas a

colaborar de forma ampla com o juiz, e seus advogados não, uma vez que estes são os

responsáveis por se dirigir, por escrito e oralmente, ao Estado-juiz, exercem atividade

essencial para o desenvolvimento do processo.

A própria mudança na mentalidade quanto à atuação ética no processo civil será

mais bem empreendida quando iniciada pelos advogados, que constituem, nos termos da

Constituição Federal de 1988, figuras essenciais “à administração da justiça, sendo

inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

A colaboração assume portanto o papel de importante instrumento de concretização

do princípio do contraditório no processo civil. A efetiva participação das partes no

desenvolvimento do processo também contribui para a legitimação das decisões judiciais,

podendo, até mesmo, diminuir a propensão à irresignação das partes com as decisões

desfavoráveis, mas de cuja formação elas mesmas participaram. Com isso garante-se

também a segurança jurídica no processo, na medida em que as partes não serão

surpreendidas por decisões inesperadas.

Ao analisar o princípio da cooperação, Lenio Streck, em primeiro lugar, critica a

ideia do panprincipiologismo, segundo o qual os princípios – enquanto standards

interpretativos – seriam a fonte de liberdade do juiz na interpretação do direito56

. O autor

segue afirmando que princípios não são valores, pois nas sociedades complexas atuais não

há o compartilhamento de valores comuns.

Logo, fica a cargo do juiz definir o sentido das legislações a partir da “valoração

dos valores constitucionais”. Com relação à cooperação, Lenio Streck, nega seu status

principiológico, fazendo alusão ao formalismo-valorativo, ressaltando que a cooperação

visa organizar um processo justo, em tempo razoável e que leve à justiça material da

decisão, os quais seriam os principais valores para o processo57

.

Isso porque, o formalismo-valorativo, tal como proposto por Carlos Alberto Alvaro

de Oliveira, estabelece a importância das formas, as quais representam a garantia dos

indivíduos contra o arbítrio estatal na medida em que delineiam uma margem de atuação

56 STRECK, Lenio. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “colaboração

no processo civil” é um princípio? Revista de Processo. Vol. 213/2012, nov. 2012. p. 14. 57 STRECK, Lenio. Op. cit., p. 19.

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do juiz, lidas à luz de valores essenciais à sociedade em um determinado momento

histórico-cultural.

Após essa análise, o autor enfatiza que a cooperação, da forma como alegada por

Daniel Mitidero em artigo publicado na Revista de processo58

, não é um princípio per se,

uma vez que lhe falta suficiente normatividade para poder ser assim considerada. Nesse

sentido, o autor aponta as seguintes questões para a aplicação prática do princípio da

cooperação processual: “e se as partes não cooperarem? Em que condições um standard

desse quilate pode efetivamente ser aplicado? Há sanções no caso de não cooperação?

Qual será a ilegalidade ou inconstitucionalidade decorrente da sua não aplicação?”59

.

Continua Lenio Streck para dizer que, em sua concepção de princípio, “a

legitimidade de uma decisão será auferida no momento em que se demonstra que a regra

por ela concretizada é instituída por um princípio.” Assim, se a regra não possui um

princípio que a legitime não poderá ser aplicada.

Toda regra deve encontrar sua justificativa nos princípios que compõem o

ordenamento jurídico onde ela foi criada, atuando assim no direcionamento da

interpretação jurídica. O autor afirma, ainda, discordar da concepção segundo a qual o

“princípio” poderia ser utilizado para dar margem à discricionariedade do julgador.

Reinhard Greger60

, entretanto, afirma a necessidade da existência de um principio

da colaboração por alguns motivos. O primeiro deles é em virtude de os princípios

processuais traçarem orientações posteriores à elaboração das regras que delas não fazem

parte, permitindo que sejam reguladas as situações concretas que não foram previstas.

Ainda, os princípios possuem um caráter prático o que é muito válido quando se

tem apenas regras esparsas sobre a matéria, como no caso da colaboração. O autor defende

que o núcleo positivo do princípio da cooperação consiste no estabelecimento de uma

ligação entre os sujeitos processuais, de forma que todos tenham uma finalidade comum de

alcançar a resolução da lide e a tão desejada paz social. Isso só se alcança quando há

colaboração entre os envolvidos no processo.

58 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil como prêt-a-porter? Um convite ao dialogo para

Lenio Streck. Revista de Processo. Vol. 194/2011, abr. 2011. 59 STRECK, op. cit., p. 17. 60 GREGER, Reinhard. Cooperação como princípio processual. Revista dos Tribunais on line. Vol. 206/2012,

abr. 2012. P. 123.

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5. Considerações finais

Num modelo de Justiça adequado à contemporaneidade, na visão de François Ost,61

o juiz deve adotar uma postura de intermediação, facilitando a comunicação, o diálogo

entre as partes, as quais, por sua vez, devem se utilizar do processo para interagir e buscar,

todos em conjunto, uma solução justa para o conflito.

A proposta de solução do Estado Democrático de Direito é pela busca de uma

efetiva participação dos envolvidos na realização dos fins estatais. Essa proposta representa

para o sistema de pacificação dos conflitos a necessidade de interação entre as partes que

compõem a relação processual no âmbito da jurisdição, além da adoção de métodos não

jurisdicionais de solução das lides.62

Nesse sentido falamos no dever de cooperação entre as partes. Nesse modelo prega-

se a adoção de um “procedimento argumentativo da busca cooperativa da verdade”

63.Desse modo, o peso da reconstrução jurídica, que no modelo do Estado Social deve ser

suportado por um juiz Hércules, é deslocado para uma comunidade deliberante.64

Com isso supera-se ainda a medieval visão do processo como um campo de batalha

no qual as partes podem utilizar todo e qualquer artifício para serem vencedoras. Dentro da

nova perspectiva do Processo Civil Cooperativo entende-se que o objetivo primeiro do

processo é a solução do conflito posto perante o Poder Judiciário, de tal forma que se as

partes resolveram submeter a lide ao mecanismo jurisdicional, devem elas atentar para as

regras postas pelo sistema, não só regras procedimentais, como também regras

comportamentais.

De outro lado, passando de uma perspectiva de simples validade jurídica para uma

perspectiva da união entre validade e legitimidade do direito como condição de sua

eficácia e cumprimento de sua função sócio-integradora, o dever do juiz de justificar sua

decisão também se altera.

61 Ost, François. Op. cit., p. 23. No texto são apresentados os três modelos de juiz: Jupiter, Hércules e

Hermes. Ademais o autor faz a correlação entre o tipo de juiz e a mentalidade predominante em cada uma das

fases do Estado, a saber, liberal, social e democrático. 62 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de Pinho. DURCO, Karol. A Mediação e a Solução dos Conflitos no

Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional, disponível

em http://www.humbertodalla.pro.br. 63 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 283. 64 LUCHI, José Pedro. A racionalidade das decisões jurídicas segundo Habermas. In: Revista da Ajuris. Porto

Alegre, ano XXXIV, nº 107, pp. 157-170, setembro de 2007.

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Passa-se de um dever de justificação interno representado pela coerência da decisão

com o sistema de direitos para um dever que ao mesmo tempo é interno e externo, este

último considerado como a necessidade de legitimação procedimental-deliberativa das

premissas da decisão, o que no caso de um equivalente jurisdicional como a mediação já é

condição prévia para seu estabelecimento.

O direito pós-moderno de Hermes “é uma estrutura em rede que se traduz em

infinitas informações disponíveis instantaneamente e, ao mesmo tempo, dificilmente

matizáveis, tal como pode ser um banco de dados”. Esse modelo é uma dialética entre

transcendência e imanência. A proposta é de uma “teoria do direito como circulação de

sentido”, “um processo coletivo, ininterrupto e multidirecional de circulação do logos

jurídico” 65

.

Vale recordar que Hermes é o deus da comunicação, da circulação, da

intermediação; é um intérprete, um mediador, um porta-voz. A ideia é a de que o direito,

como signo linguístico que ontologicamente é, sempre necessita de interpretação e,

portanto, é inacabado; permanece continuamente se realizando (caráter hermenêutico ou

reflexivo do juízo jurídico).

Portanto, o direito em um Estado Democrático é líquido e denso ao mesmo tempo.

Convém mencionar que o correspondente latino de Hermes (grego) é Mercúrio,

representado hoje por um metal de alta densidade que, não obstante, encontra-se no estado

líquido. Essa “liquidez jurídica” se dá por meio da equidade e permite ao direito preencher

os buracos nas relações sociais.

Essa capacidade de integração social, contudo, só pode ser obtida por uma

legitimidade de duplo aspecto. Em um primeiro momento, pela obediência a um

procedimento que eleva o dissenso para promover o consenso.

A mediação procedimental, no entanto, não constitui toda a legitimidade do direito.

É preciso se estabelecer um laço necessário entre o respeito ao procedimento e os direitos

fundamentais. O que constitui, precisamente, a ideia de um formalismo valorativo que

deve abranger ao menos quatro valores fundamentais: segurança jurídica, participação,

liberdade e efetividade.

O juiz possui, também, o dever de equilibrar a relação processual. Sua atuação

constitui-se num meio termo entre a inércia de Júpiter e o egocentrismo de Hércules. O juiz

65 Ost, François. Op. cit., p. 29.

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do presente modelo é mais humano, reconhece suas limitações e busca apoio nos

interessados pelos desfechos da relação processual. A participação do juiz possui estreita

relação com a razoável duração do processo e sua função social.66

Verifica-se, pois, que a superação do princípio monológico que rege a atuação do

juiz Hércules é exatamente pelo fato de que ele afasta a ideia de cooperação como

condição para o desenvolvimento de um procedimento de bases racional, discursiva e

valorativa de determinação da Justiça no caso concreto.67

O estabelecimento do processo colaborativo e a instituição dos deveres

mencionados nesse ponto têm como consequência de sua não observância:

“inconstitucionalidade por afronta ao direito fundamental do processo justo, possibilidade

de responsabilização judicial e, especificamente no caso do dever de auxílio, possibilidade

de multa punitiva à parte que, indiretamente, frustra a possibilidade de colaboração do juiz

para com a parte contrária.” 68

E mais: se, por um lado, se poderia argumentar a impossibilidade na aplicação do

princípio da cooperação em razão da dificuldade em aplicar uma sanção à parte que “não

colaborou”, tendo em vista se tratar de conceito bastante amplo e abstrato, principalmente

para as partes, por outro lado uma solução que soa bastante adequada seria a concessão de

“prêmios” para aquele que cooperou, o que teria um efeito adicional de promover o

comportamento de cooperação.

Concluindo esse pequeno ensaio, podemos dizer que a ideia de colaboração está,

também, relacionada ao resgate da fraternidade69

no direito constitucional. Não custa

lembrar que a fraternidade é, ao lado da liberdade e igualdade, um dos três vetores

principais da Revolução Francesa. Ocorre que, com o passar do tempo, ficou em segundo

plano, já que os chamados direitos de primeira e segunda geração acabaram tendo mais

destaque70

.

66 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7850>. Acesso em: 8

jan. 2013. 67 MARINONI, Luiz Guilherme. Do processo civil clássico à noção de direito a tutela adequada ao direito

material e à realidade social. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 08 de

novembro de 2006. 68 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil como prêt-a-porter? Um convite ao dialogo para

Lenio Streck. Revista de Processo. Vol. 194/2011, abr. 2011. p. 64. 69 RESTA, Eligio (trad. Sandra Vial). O Direito Fraterno. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. 70 SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. Mediação enquanto política pública: a

teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2010. http://www.unisc.br/portal/pt/editora/e-

books/95/mediacao-enquanto-politica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html.

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Contudo, estamos em que, a fraternidade é um dos pilares que sustentam essa

noção de processo cooperativo como novo paradigma da jurisdição contemporânea71

.

A missão do processualista, nessa quadra de nossa história, é saber como resgatar a

fraternidade e encontrar seu espaço dentro de um processo que se desenvolveu baseado na

ideia de posturas adversariais.

Nesse passo, se o neoconstitucionalismo, num primeiro momento, promoveu a

releitura de normas infraconstitucionais, parece que, com parte desse estágio evolutório

levou a uma concepção mais aprofundada das próprias normas constitucionais.

Assim, antes falávamos em contraditório formal, hoje temos o contraditório

participativo. No passado pensávamos na isonomia apenas na dimensão formal, hoje

enxergamos diversos usos para a isonomia material. Também a publicidade, antes tida

como sintética, hoje passa a ser concebida como analítica.

Nessa esteira, a boa-fé tende a ser compreendida como cooperação, exigindo que as

partes e o magistrado reavaliem muitas de suas posturas no processo.

Só assim estaremos dando um passo realmente significativo para uma nova

concepção de jurisdição.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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A GARANTIA FUNDAMENTAL DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

Humberto Santarosa de Oliveira

Pós-Graduado em Direito Processual pela Universidade

Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestrando em Direito

Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro

(UERJ). Advogado e Consultor Jurídico.

RESUMO: O presente trabalho visa apresentar algumas considerações a respeito da

garantia constitucional de obrigação da motivação das decisões judiciais, abordando seus

aspectos históricos e atuais, bem como suas funções para o direito processual.

PALAVRAS CHAVE: garantia – motivação –obrigação – decisão judicial – função

ABSTRACT: The paper aims to present some considerations about the constitutional

guaranty of the obligation to reasoning the judicial decisions, analysing its historical and

current aspects, as well its functions to the procedural law.

KEY WORDS: guaranty – reasoning – obligation – judicial decision – function

SUMÁRIO: 1. AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO – 2. A GARANTIA

DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS ORIGENS – 3. A GARANTIA

DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS FUNÇÕES – 4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

1. AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO

O princípio da obrigação de motivação das decisões judiciais como garantia

fundamental do cidadão tem história recente no Direito pátrio, datando especificamente de

1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art.

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93, IX. A realidade não significa, todavia, que os juízes, antes da promulgação do texto

constitucional, detinham a escusa de apontar as razões que consubstanciavam suas

decisões; é de longo tempo que se impõe ao magistrado justificar seu posicionamento a

respeito do caso sub judice, podendo se anotar que desde o Código Filipino, vigente na

primeira quadra do séc. XIX, até o Regulamento de nº 737 de 1850, passando ainda pelos

códigos de processo estaduais e o código de processo civil de 1939, já se observava a

obrigação de fundamentar as decisões judiciais1.

O código de processo vigente não se mostrou indiferente às previsões atinentes à

motivação das decisões, logrando em seus artigos 131 e 458, respectivamente, a

necessidade do magistrado indicar as razões de seu convencimento (livre persuasão

racional) e a fundamentação das decisões como requisito de validade da sentença; a

extensão da necessidade de fundamentação às demais decisões proferidas no âmbito

jurisdicional é encontrada no art. 165, do CPC2.

Ratifica-se, todavia, que o dever de motivação das decisões jurisdicionais somente

alcança o status de garantia fundamental do cidadão com a Constituição datada do final da

década de oitenta, quando do movimento de resgate do governo do povo no Brasil. O

documento promulgado – ou melhor, a norma jurídica – simboliza o nascedouro do Estado

Democrático de Direito, em verdadeira resposta aos mazelados Estados Liberal e Social

pelos quais o país atravessou, trazendo em seu bojo a previsão das mais diversas garantias

inalienáveis dos cidadãos. Neste momento, a Constituição pátria assume força normativa e

1 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado

de Direito. Temas de Direito Processual – 2ª Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 1988, p. 85-86, que assim

destaca: “A obrigatoridade da motivação tem fundas raízes na tradição luso-brasileira. No Código Filipino,

assim estatuía a Ordenação do Livro III. Título LCVI, § 7, principio: (...). O mesmo princípio inspirou o art.

232 do Regulamento de nº 737, de 1850, verbis: ‘A sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a

contestação com os fatos e fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando

sob sua responsabilidade a lei, uso ou estilo em que se funda’. Sob redação idêntica passaria a regra ao antigo Código de Processo Civil e Comercial do Rio Grande do Sul (art. 499), e com ligeiras alterações ao

do Distrito Federal (art. 273, caput), onde já anteriormente a acolhera o Decreto de nº 9.263, de 28 de

setembro de 1911, que regulamentou a Justiça local (art. 259). Em igual sentido dispuseram, entre tantos

outros, o Código baiano (art. 308), o mineiro (art. 382), o paulista (art. 333), o pernambucano (art. 388).

Não se afastou da linha o Código nacional de 1939, conforme ressaltava dos arts. 118, parágrafo único, e

280, nº II, aquele a determinar que o juiz indicasse ‘os fatos e circunstâncias que motivaram o seu

convencimento’, este a exigir que a sentença contivesse ‘os fundamentos de fato e de direito’”. 2 Atualmente, encontra-se em tramitação o projeto de lei que visa a alteração integral do Código de Processo

Civil. Entre as várias versões apresentadas para o projeto do novo CPC (de 2010, com a apresentação do PLS

nº 166, capitaneada pelo atual Ministro do STF, Luiz Fux, até o dia 19 de setembro de 2012, com o retorno

do projeto ao Senado Federal, soma-se a apresentação de cinco textos diferentes, com alterações substanciais ao projeto originário, algumas delas necessárias e promissoras, outras nem tanto), o art. 11, no capítulo

atualmente intitulado “Das Normas Fundamentais do Processo Civil”, manteve-se incólume, e prevê a

obrigação de motivação de todos os julgamentos do órgão judiciário, sob pena de nulidade.

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é através das garantias processuais fundamentais previstas que os cidadãos reclamam

proteção aos diversos direitos tutelados pelo ordenamento (o texto constitucional é pródigo

no rol de direitos e garantias conferidos aos cidadãos, recebendo, pois, as alcunhas de

dirigente, programático e compromissário3).

O desenho constitucional contemporâneo brasileira nasce, todavia, de uma

influência quase que global de constitucionalização dos ordenamentos em geral –

precipuamente nos países de civil law –, situação verificada a partir da segunda metade do

século XX.

Em breve digressão, é mister salientar que a atribuição de força normativa às

Constituições, não se mostra como uma novidade no mundo jurídico, uma vez que nos

países de origem anglo-americana, notadamente nos Estados Unidos da América, a prática

já era desde há muito verificada – mais precisamente, desde a Constituição de 1787.

Porém, é a decisão da Suprem Court, no case Marbury vs. Madison, datado de 1803, que se

encontra a decisão paradigmática (não que seja a primeira, mas é aquela que ganhou maior

relevo) no que tange à adoção, por aquele país, da Constituição como documento jurídico,

bem como do entendimento de que incumbe ao Judiciário dar-lhe cumprimento através da

jurisdição constitucional4.

Já nos países de origem romano-germânica, é com a derrocada dos regimes

totalitários, alcançada com o fim da segunda grande guerra, que se situa o marco

institucional das previsões garantistas processuais, com especial relevância para os países

da Europa, que trouxeram para suas Constituições uma carta de direitos inalienáveis dos

cidadãos, tudo em resposta às restrições ocorridas à época da concentração excessiva de

poderes nas mãos do Estado5.

3 Por todos, STRECK, Lenio Luiz. Os dezoito anos da Constituição do Brasil e as Possibilidades de realização dos direitos fundamentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico. In: CAMARGO, M. N

(Org.). Leituras Complementares de Constitucional – Direitos Fundamentais. Salvador: JusPodivm,

2006, p. 1-24. 4 Para maior aprofundamento sobre o tema, com citações de diversas decisões da Suprema Corte norte

americada, ver BARROSO, Luís Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos:

teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. Interesse público, Belo Horizonte, v.

12, n. 59, jan. 2010. Disponível em http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/32985, último acesso em

16.06.12. 5 Da mesma forma que se apontou sobre o fato de se atribuir força normativa à Constituição, é certo afirmar

que o processo de constitucionalização verificado na Europa não se mostra como o momento pioneiro da

positivação das previsões garantistas conferidas aos cidadãos, podendo-se citar, a título elucidativo, o Bill of Rights editado por Estados Unidos e sua consagrada cláusula do due processo of law. Ocorre que, para fins

didáticos, o apontamento do movimento europeu de positivação das garantias fundamentais é o mais

contundente marco histórico sobre o assunto, principalmente pela amplitude alcançada. Neste sentido

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Pode-se dizer que as Constituições italiana e alemã foram os dois textos basilares

que influenciaram os demais Estados europeus no seu processo de constitucionalização,

sendo certo ainda afirmar que os ideais do movimento foram expandidos além-mar,

chegando à América com ampla adoção por grande parte dos países sul-americanos6.

As noções de garantias fundamentais processuais dos cidadãos tiveram sua raiz

histórica na teoria dos direitos públicos subjetivos desenvolvida pela doutrina alemã, que

vislumbrava no acesso ao tribunal um efetivo direito do cidadão frente ao Estado. Esta

nova visão se contrapôs à doutrina clássica do civil law, embasada no código civil francês

que, vinculada aos direitos subjetivos individuais e privados, eriçou o direito de

propriedade ao epicentro dos direitos previstos pelo diploma normativo; assim, todas as

demais previsões do código funcionavam como uma decorrência necessária do direito de

propriedade e sua proteção pela via judicial se mostrava como uma faculdade conferida ao

cidadão, que dentre outras possibilidades previstas, poderia ou não fazer uso da máquina

judiciária para resguardar infrações contra sua propriedade7.

A mudança de paradigma de um único direito subjetivo, do qual os demais direitos

decorreriam (seriam, pois, sub-direitos), trouxe à baila a existência de um universo de

direitos subjetivos conferidos aos cidadãos, dentre os quais se destaca aquele de acessar

TARUFFO, Michele. Las garantías fundamentaltes de la justicia civil en el mundo globalizado. Trad. de

Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 63., que

assim destaca: “Este fenómeno se remonta históricamente más a los ordenamientos de common law, dado

que algunos ven su origen incluso en la Carta Magna de 1215; y en todo caso, uno de sus seguros

precedentes es la cláusula del due process of law de la que habla la Quinta Emmienda de la Constitución

estadounidense, insertada en el Bill of Righst de 1791. (...) Sin embargo, es en particular en los

ordenamientos de civil Law donde tal fenómeno, conoce una gran e muy articulada expansión, sobre todo a

partir del fin de la Segunda Guerra Mundial.” 6 O modelo de constitucionalização que tomou parte do mundo, não fora seguido em alguns países da

Europa, destacando-se: França e Reino Unido. No Reino Unido, apesar de berço do modelo liberal, faltava-

lhe uma Constituição escrita e rígida, sendo certo que, apesar de possuir uma Constituição histórica e ainda

ter referendado a Constituição Europeia de Direitos Humanos, falta-lhe um sistema de controle de constitucionalidade e uma jurisdição constitucional; salienta-se que, no referido Estado, vigora a supremacia

do Parlamento e não da Constituição. No caso da França, apesar de sua Constituição ser datada de 1958, não

restou previsto no documento o modelo de controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário; preferiu-

se adotar um controle prévio de constitucionalidade feito pelo Conselho Constitucional, antes da entrada em

vigor da norma; esta situação evidencia a ausência de uma jurisdição constitucional. Apesar de tudo, a França

vem evoluindo no evento da constitucionalização do direito, com incorporação no debate de temas como

força normativa, interpretação de leis conforme a Constituição e irradiação de valores na ordem jurídica pela

Constituição; ainda que em processo de discussão, os assuntos têm encontrado certa resistência pela doutrina

mais tradicional. Neste sentido, BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização

do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito Administrativo, nº 240,

2005. No caso latino-americano, o exemplo mais preponderante é o brasileiro, podendo-se ainda mencionar as Constituições do Chile e da Colômbia. 7 Neste sentido, TARUFFO, Michele. La proteción judicial de los derechos en un estado constitucional. Trad.

de Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009., p. 31-38.

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aos tribunais. O direito de ação passou a ser concebido como um direito público contra o

Estado, sobre o qual se criava uma vinculação e obrigação de proteção judicial. A garantia

fundamental do acesso à justiça nascida pelas mãos da doutrina alemã é conjugada com

outras normas igualmente fundamentais dos cidadãos, sendo que a forma de proteger os

direitos materiais é através do ingresso no Judiciário. Em suma, o acesso à justiça, a partir

da doutrina dos direitos públicos subjetivos é, não somente um direito fundamental, como

também uma condição necessária à efetivação plena das demais previsões inatas do

Ordenamento.

Eis o cerne do processo de constitucionalização iniciado na Europa na metade do

século XX, que garantiu a força normativa necessária para que a Constituição possa ser o

respaldo do cidadão na defesa de seus direitos e garantias, com o Estado-Juiz intervindo

para efetivar sua concretização. As demais garantias fundamentais processuais também

previstas nas Constituições pós-bélicas, fecham o círculo de direitos básicos conferidos aos

cidadãos, que tem no Estado, o locus de salva-guarda da implementação e impedimento de

restrição dos direitos materiais, sempre através de um processo justo8.

Michele Taruffo9 bem sintetiza a ideia ao discorrer a respeito, senão veja-se:

Desde el punto de la protección efectiva de los derechos, se reconoce

que la garantía constitucional no abarca sólo el acceso inicial a un tribunal

(es decir, el derecho a formular una demanda): tiene que abarcar también

todos los derechos procesales que las partes deben estar autorizadas a

ejercer, para uma efectiva satisfacción del derecho que están reclamando.

Así, por ejemplo, la disponibilidad de mecanismos preliminares efectivos

tiende a considerarse como condición de una real implementación judicial

de los derechos. Es más: la garantía de um juicio justo efectivo, que incluye

todos los derechos que las partes deben tener la posibilidad de ejercer en el

curso del proceso (...) se concibe como elemento fundamental del acceso a

la justicia. De nuevo, la posibilidad de usar mecanismos de aplicación

efectiva para todo tipo de juzgamientos, se concibe también como una parte

esencial de la protección concreto de un derecho. Este desarollo significa, en

8 Por todos, GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Estudos de

Direito Processual, Rio de Janeiro: Faculdade de Direito de Campos, 2005. Versão eletrônica deste artigo disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429. Acesso em 16 de junho

de 2012. 9 Vide Taruffo, ob. cit., p. 33.

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pocas palavras, que toda la maquinaria procesal que está dirigida a la

obtención de una completa y real reivindicación de un derecho, tiende a

considerarse como parte de una garantía procesal más amplia y abarcadora.

Sumarizando, esse processo de constitucionalização que tomou conta de boa parte

do globo, é um marco importantíssimo para o Direito, haja vista que simboliza o resgate do

discurso moral para os debates jurídicos, através da inserção de princípios no

Ordenamento, ultrapassando o modelo positivista metodológico de Hans Kelsen e outros

mais, segundo os quais, o único objeto da ciência do direito era o direito positivo.

Basicamente, o pós-positivismo, movimento que destrona o positivismo jurídico (e

que também pode ser denominado de neoconstitucionalismo), é a superação das duas teses

precípuas das teorias positivistas, quais sejam, os limites do direito e a inexistência de

conexão entre direito e moral. Neste novo modelo, a determinação do direito é suplantada

com a normatividade conferida aos princípios, que apesar de não serem definidos prima

face passam a ser jurídicos, ainda que genéricos (é a dicotomia dos easy cases com os hard

cases10

). No que tange à moral, ela passa a ingressar no discurso jurídico justamente

através da textura aberta (vagueza) dos princípios normativos recém insertos no

Ordenamento.

Como alertado, as Constituições promulgadas no limiar da primeira metade do séc.

XX vieram recheadas destes princípios normativos, sintetizados nas garantias

10 Não se adentrará na discussão a respeito da existência ou não de dualidade entre casos fáceis e casos

difíceis, o que acabaria por desembocar na árdua tarefa de apontar os fundamentos teóricos de apenas uma

resposta correta para cada caso, bem como diferenciar entre o caráter deontológico ou axiológico dos

princípios, além de outras variantes, o que definitivamente não é o propósito deste ensaio. Todavia, merece

destaque o fato de haver autores pós-positivistas, dentre os quais se destaca Ronald Dworkin, que defendem a

teoria de que o direito não seria de todo indeterminado – ou mesmo incompleto; sumamente, em sua crítica

aos positivistas (moderados, diga-se, afinal suas críticas se dirigem notadamente à Hart – este autor defendia

um espaço de discricionariedade conferido ao juiz quando defronte de casos que não teriam a resposta dada

pelas normas vigentes) o autor destaca que a indeterminação ou incompletude do direito decorreria da própria visão do positivista sob o enfoque das decisões judiciais em casos não regulados, o que permitiria a

discricionariedade judicial. Sustenta o autor uma integridade do Direito, donde para cada caso existiria uma

única resposta correta, à qual seria alcançada através de uma interpretação construtiva. Para uma análise mais

completa, cf. DOWRKIN, Ronal. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, bem como

o pós-escrito da obra de HART, Herber L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 3ª edição. No Brasil, o grande expoente que perfilha do entendimento do autor estrangeiro é

Lenio Luiz Streck, que em sua obra Verdade e Consenso, demonstra minuciosamente toda a construção

teórica para se chegar à conclusão de uma determinabilidade do Direito. Em seu livro, o autor tupiniquim,

ressalta que, além do redimensionamento da teoria das fontes (supremacia da lei cede espaço à Constituição)

e da teoria da norma (princípios com caráter normativo), como fatores que distinguiriam a teoria pós-

positivista (para ele Constitucionalismo Contemporâneo) da positivista, seria necessário o desenvolvimento de uma teoria da interpretação, através de uma hermenêutica constitucional embasada na linguagem, à qual

salvaguardaria o Direito da discricionariedade e/ou solipsismos judiciais. Para maiores incursões no tema, cf.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012.

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fundamentais dos cidadãos, processuais ou materiais, sendo as primeiras o meio para se

efetivamente proteger as segundas. Para viabilizar o uso e gozo aos direitos e garantias

prescritos, questão de império foi a adoção de força normativa à Constituição

(característica já ressaltada alhures) que tem como objetivo das azo a toda esta gama de

direitos, sejam aqueles positivados ou não (princípios implícitos). A reconstrução e

expansão da jurisdição constitucional, além do desenvolvimento de uma nova interpretação

constitucional – ultrapassando os vetustos critérios da interpretação literal, histórica,

sistemática e teleológica – são também pontos chaves deste novo momento vivido pelo

Direito11

.

Não é demais salientar que, com o fito da Constituição alcançar todas as promessas

existentes em seu texto (visando, assim, superar, o não cumprimento do amplo leque de

direitos estabelecidos pelo Estado Social), necessário se faz o deslocamento da tônica do

poder Legislativo, para o poder Judiciário. Não que isso represente uma usurpação de

competências, afinal um sistema de check and balances pressupõe não somente um

Legislativo forte, como também um Judiciário dotado dos poderes inerentes à sua

importância para o Estado Democrático de Direito12

; mas o fato é que, cabe ao Judiciário

não somente efetivar as promessas não cumpridas pela modernidade, que atualmente estão

dotadas de força normativa na Constituição, como também proteger as minorias, evitando,

assim, uma malsinada ditadura das maiorias.

O novo modelo constitucional contemporâneo, que engloba boa parte dos

elementos acima ressaltados, é bem explicado por Luis Pietro Sanchís13

, que assim aborda:

11 Defende-se que os critérios abordados no texto, quais sejam, as transformações ocorridas no pós segunda

Grande Guerra, a superação da determinação do direito e a normatividade conferida aos princípios, bem

como o conseqüente desenvolvimento de uma nova interpretação constitucional, da expansão da jurisdição

constitucional e o reconhecimento de força normativa à Constituição, representam aspectos distintos imprescindíveis para a compreensão do neconstitucionalismo ou Constitucionalismo Contemporâneo. Estas

nuances representam, respectivamente, os aspectos histórico, filosófico e teórico do novo modo de se estudar

o Constitucionalismo. Para maiores detalhes, ver CAMBI, Eduardo. Neoprocessualismo e

Neoconstitucionalismo. In: DIDIER JR. Fredie (Coord.). Leituras Complementares de Processo Civil.

Salvador: JusPodivm, 2008. p. 139-171 e ainda BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e a

constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito

Administrativo, nº 240, 2005. 12 Neste sentido, CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?.Trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.

Porto Alegre: Fabris, 1993, que citando Alessandro Pekelis, assim relata em p. 53: “uma atividade legislativa

ou administrativa eficaz de modo algum é incompatível com o controle do judiciário da própria atividade,

(...) antes a coexistência equilibrada de tal atividade e de seu controle representa a essência mesma do regime constitucional.” 13 SANCHÍS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: Neoconstitucionalismo(s).

Madrid: Trotta, 2005, p. 128.

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Que una Constitución es normativa significa que, además de regular la

organización del poder y las fuentes del Derecho – que son dos aspectos de

una misma realidad –, genera de modo directo derechos y obligaciones

inmediatamente exigibles. Los documentos jurídicos adscribibles al

neconstitucionalismo se caracterizan, efectivamente, porque están repletos

de normas que les indican a los poderes públicos, y con ciertas matizaciones

también a los particulares, qué no pueden hacer y muchas veces tanbién qué

deben hacer. Y dado que se trata de normas y más concretamente de normas

supremas, su eficacia ya no depende de la interposición de ninguna voluntad

legislativa, sino que es directa e inmediata. A su vez, el caráter garantizado

de la Constitución supone que sus preceptos puden hacer valer a través de

los procedimientos jurisdicionales existentes para la protección de los

derechos (...). Pero si la Constitución es una norma de la que nacen derechos

y obligaciones en las más diversas esferas de relación jurídica, su

conocimiento no puede quedar cercenado para la jurisdición ordinaria, por

más que la existência de un Tribunal Constitucional imponga complejas y

tensas fórmulas de armonización.”

Não há dúvidas, pois, de que a Constituição é um ambiente vasto em proliferação

de direitos; no entanto, para sua concretização, se não espontaneamente realizados pelo

Estado, merecerá amparo do Judiciário, haja vista ser o poder responsável pela garantia do

referido texto normativo, e ambiente de salvaguarda dos cidadãos contra o Estado. Nesta

esteira, as garantias processuais também são encaradas como direitos fundamentais do

povo, uma vez que, seja no que tange à intervenção, seja no tange ao restabelecimento dos

direitos materiais violados (ou ameaçados de), deve o jurisdicionado ter a ciência do

desenrolar do procedimento, bem como saber quais os seus poderes, deveres e/ou

faculdades.

Em uma democracia deliberativa, na qual aos cidadãos é propiciada a participação

no processo elaboração das leis, também deve ser conferido aos jurisdicionados as mais

amplas possibilidades de participar e influenciar a decisão do Judiciário, tudo com ordens

ao alcance da tutela justa e efetiva.

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Neste mister, a Constituição brasileira é um belo modelo das previsões formais14

que garantem ao cidadão o acesso à ordem jurídica justa, com a positivação dos mais

diversos instrumentos que proporcionam ao jurisdicionado a ampla participação e

envolvimento no caso em julgamento. A influência sofrida pelo Brasil dos países europeus

(e também norte-americana), mais experientes no debate neoconstitucional, e sua

constitucionalização tardia, já no final do séc. XX, são fatores que podem ter contribuído

para o extenso rol de garantias processuais previstos implícita e explicitamente na

Constituição Cidadã15

.

O amplo rol de garantias fundamentais processuais insertos na CFRB/88 não

poderia ser analisado neste ensaio; tampouco se analisará o direito de ação, que apesar de

diversas vezes mencionado (direta ou indiretamente), possui uma estreita ligação com

todos os demais direitos previstos na Constituição – e esta relação é auto-explicativa,

afinal, somente têm razão de ser previsões como contraditório, ampla defesa, devido

processo legal, se é conferida aos cidadãos uma ordenada e organizada possibilidade de

acesso ao judiciário. Optou-se, pois, por uma análise da garantia da motivação das decisões

judiciais, que possui implicações interessantes dentro de um contexto constitucional-

democrático.

2. A GARANTIA DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS ORIGENS

A origem da obrigação de fundamentação das decisões judiciais do processo

moderno16

pode ser datada do século XVIII, sendo mais bem visualizada na Europa,

14 Diz-se formais, pois a materialização de referidas garantias nem sempre é observada, quiçá efetivada em

completo pelos órgãos jurisdicionais pátrios. 15 Sobre a Constituição de 1988, assim destaca Michele Taruffo: “La Constitución brasileña de 1988 se

inserta, de pleno derecho, en la que se puede definir como la ‘fase madura’ de uno de los fenómenos más

importantes que han caracterizado la evolución de la justicia cvil a partir de la mitad del siglo XX, vale decir, la ‘constitucionalización’ de las garantías fundamentales del proceso”. TARUFFO, Michele. La

proteción judicial de los derechos en un estado constitucional. Trad. de Maximiliano Aramburo Calle. In:

Páginas sobre justicia civil, cit., p. 63. 16 Reverência deve ser feita para o fato de se estar tratando do processo moderno, haja vista que a

necessidade de motivação das decisões judiciais já era observada desde o processo civil romano e canônico,

destacando que o atual sistema processual é derivado, precipuamente, das disposições deste último. Assim,

em breve síntese, sabe-se que o processo civil romano era dividido em três períodos, a legis actiones, per

formulas e extraordinária cognitio; os dois primeiros caracterizam-se por serem formalistas e com uma

nítida divisão do procedimento em fases, na qual o pretor (iure) declarava o direito aplicável e o cidadão

romano (iudex) julgava o caso; por inexistir uma organização judiciária hierarquizada, os julgamentos do

iudex não eram passíveis de recurso, nem motivados (insta salientar que os períodos em espeque correspondem à fase da ordem dos juízos privados; apesar dos dois primeiros momentos históricos do

processo civil romano serem bastante similares, tendo composto ordo iudiciorum privatorum, é possível

verificar diferenças entre o período da legis actiones e o período per formulas, destacando que o mais

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notadamente nos países cujo ordenamento são de origem romano-germânica; todavia, este

fenômeno não se mostra como unitário em todos os países do referido continente; isto

porque os ideais que influenciaram o dever de expor as razões de convencimento da

decisão tiveram as suas mais variadas fontes de inspiração17

.

Na França, por exemplo, o primeiro diploma a consagrar a obrigação de motivação

das decisões é a lei de agosto de 1790, norma esta que fora posteriormente ratificada na

Constituição do ano III. Recorde-se que, à época, o país estava envolto na Revolução,

sendo certo, todavia, que este dever de motivação remonta à base ideológica dos princípios

de inspiração democrática que instauraram o movimento de insurreição, e não decorrendo,

assim, de uma elaboração jurídico-política – como se poderia pensar à primeira vista. Isto

porque, a resultante para a adoção da obrigação de se justificar as decisões embasa-se nas

críticas realizadas ao modelo de administração da justiça do antigo regime – que não previa

norma semelhante –; percebeu-se que os meios de controle do Estado por parte do cidadão

substancial deles é menor rigidez formal; poderia o magistrado, por exemplo, conceder direitos fora da jus

civile, ou seja, não se limitava às cinco ações da lei prevista no primeiro período. A mudança substancial,

porém, ocorre com a inauguração do terceiro grande período, a cognitio extra ordinem, quando a bipartição

do procedimento fora extinguida e fora criado um Tribunal Imperial; a reforma processual realizada sob o

principado augustano, que concentrou todos os poderes do processo nas mãos do magistrado (funcionário

público que também detinha a função de julgar) fez emergir a visão publicista do processo, em detrimento da

privatista do período da ordo. Todavia, o que merece grande registro nesta fase é a constatação da existência de motivação das decisões proferidas pelo magistrado, conclusão esta que decorreria, precipuamente, de três

fatores: a) as sentenças eram passíveis de recurso (a própria possibilidade de recurso parcial contra a sentença

é outro forte fator que induz à conclusão da necessidade de motivação das decisões, afinal é estranho se

pensar na possibilidade de irresignação contra parte da decisão se ela não contivesse os fundamentos); b) elas

eram escritas e lidas na presença dos envolvidos no conflito (no período privatista, o processo era

eminentemente oral); c) a maior liberdade do julgador, o que permitiria uma maior variabilidade do conteúdo

da sentença (no período da ordo iudiciorum privatorum ou o magistrado se vinculava aos termos da

controvérsia – litiscontestatio – ou deveria se ater às fórmulas redigidas). Merece nota o fato de que não

havia qualquer previsão normativa que determinasse a necessidade de fundamentação das decisões no

processo civil romano. Já o processo civil canônico, teve como fonte a cognitio extra ordinem romana,

evoluindo, todavia, em diversos aspectos; se interessa, notadamente, para o fato de prever, explicitamente,

entre os requisitos da sentença, a necessidade de se motivá-las, sob pena de nulidade sanável, o que é verificado nos cânones 1.611 e 1.622 do Código de Direito Canônico. As razões de se expor os motivos na

sentença no processo civil canônico se devem ao fato de que o julgador teria que demonstrar uma certeza

moral na decisão proferida, além de possibilitar que o interessado se irresigne contra o decidido. Para maiores

incursões sobre o tema, ver SILVA, Ana de Lourdes Coutinho. Motivação das decisões judiciais. São

Paulo: Atlas, 2012. p. 60-94. 17 Neste sentido, TARUFFO, Michelle. Il Significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In:

GRINOVER, Ada Pelegrine; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo, (Coord.).

Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988., que assim disserta: “È anzi próprio in

questo contesto complessivo che l’obbligo di motivazione si trasforma da prassi in regola giuridica, e da

regola giuridica più o meno occasionale in principio generale che contribuisce alla razionalizzazione dei

sistema di amministrazione della giustizia. (...) Non si trata tuttavia dí un fenômeno unitário, e coerente nelle sue ragioni politico-giuridiche: esso emerge infatti in situazioní storiche fortemente differenziate, sicchè,

allinterno dei fenômeno generale di razionalizzazione dei sistema che ho appena richiamato, si manifestano

concezíoni diverse, e per conseguenza diverse discipline normative, dell’obbligo di motivazione.”

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deveriam ser estendidos também ao poder jurisdicional, evitando-se o o arbítrio judicial.

Assim, o juiz boche de la loi, não deveria apenas aplicar a lei criada pelo povo, mas

também, e acima de tudo, submeter-se à autoridade do populo, o que ocorreria através da

demonstração das razões de sua decisão. O controle democrático de legalidade da atividade

jurisdicional e as exigências por uma justiça substancial são, pois, os alicerces do princípio

no direito francês, que, ratifica-se, foram inspirados nos ideais da Revolução Francesa – e

não na filosofia do Iluminismo18

.

Já na Alemanha, as origens remontam a outros fundamentos. Já se concebia, na

Prússia, a idéia da motivação secreta, destinada ao juiz da impugnação; assim, a sua

extensão para que também fossem as partes cientificadas sobre as razões da decisão é que

se constitui na novidade do sistema alemão – situação verificada em meados do século

XVIII. Todavia, conforme se anotará em linhas posteriores, os ideais que apontam para a

necessidade de motivação das decisões na Alemanha denotam apenas uma faceta interna

do princípio, ou seja, destina-se a um controle apenas por parte de autor, réu e juiz, nada

revelando sobre a controlabilidade externa – viés democrático – da motivação.

Os motivos fundantes para se exporem as razões da decisão judicial são expandidos

no final do século XVIII, episódio verificado na Prússia, quando se observou que a

justificação das decisões também se consubstanciava em fatores de racionalização do

julgamento e funcionamento ordenado da atividade decisória; todavia, prescinde-se, ainda,

da ideia do controle externo pela sociedade19

.

Ainda no que tange à Alemanha, importa ainda pontuar que, apesar das previsões

normativas prussianas – cuja origem é jurídica e política, e não ideológica como em França

–, não se verifica nos demais países de língua alemã, diretrizes legais prevendo a obrigação

de motivar as decisões judiciais; merece registro, a título exemplificativo, a situação da

Áustria, que, contemporaneamente às legislações prussianas, edita um código de processo

determinando o segredo das razões de decidir20

.

O caso italiano é ainda mais complexo de se analisar. Os diferentes sistemas

processuais encontrados nos mais diversos Estados do país denotam uma miscelânea de

razões e épocas nas quais se observa uma previsão determinando a necessidade de

18 TARUFFO, Michelle. La motivación de la sentencia civil. Trad.: Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Trotta, 2011, p. 297-298. 19 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 495-499. 20 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 499-450.

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motivação das decisões. Assim, conforme bem destaca Taruffo21

, “la situación existente a

comienzos del siglo XVIII en cuanto a la motivación de la sentencia civil es bastante

variada y compleja, y difícilmente se presta para ser reconducida a un marco coherente

(...)”.

Na contra-mão do afirmado alhures sobre o período de surgimento da obrigação das

motivações judiciais, em alguns Estados italianos, como o caso de Florença, já se

verificavam desde o século XVI previsões a respeito do dever de justificação das decisões,

prescrevendo, inclusive, uma pena de sanção para o juiz que desobedecesse à norma.

Todavia, é apenas na última quadra do século XVII que se verifica a adoção de um viés

extraprocessual da obrigação de apresentar os motivos da decisão judicial, com a inserção

do elemento de que não somente às partes seria dado conhecer das razões de decidir, mas

também ao povo como um todo.

Merece registro que, no entremeio dos períodos acima destacadas, apesar das

previsões florentinas exigirem a fundamentação das decisões – ainda que a nível apenas

endoprocessual –, a prática não se mostrava generalizada, podendo-se verificar casos em

que ela era dispensada, facultativa ou somente apresentada a requerimento das partes.

Outro Estado italiano a prever a motivação das decisões judiciais já no século XVI é

Piemonte, todavia, possuindo maiores limitações que as legislações de Florença. 22

Pois bem, ainda que se encontrem alguns casos italianos esparsos sobre uma

necessidade de justificar pronunciamentos jurisdicionais, é efetivamente a partir do século

XVIII que as legislações dos Estados italianos começam a verificar dispositivos prevendo,

genericamente, o dever do juiz em apresentar os fundamentos de seu convencimento. A

inovação, no caso, ficava por conta dos novos estados que não adotavam a medida e

aderiram ao dever de justificar as decisões; citam-se a título ilustrativo os Estados de

Módena, Trento e Nápoles23

.

No que tange especificamente à alteração legislativa do caso de Nápoles,

capitaneada por Tanucci, devem ser destacados os objetivos por ele perseguidos com a

imposição da justificativa das decisões, quais sejam, um funcionamento mais ordenado e

racional da administração da Justiça. Todavia, conforme destacada Taruffo, o verdadeiro

aspecto moderno do dever de fundamentar uma decisão somente é alcançado com as

21 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 500. 22 Para toda construção do raciocínio, ver, TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 500-501. 23 TARUFFO, Michelle. La motivación ... p. 301-302.

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ponderações de Filangieri, que ao estudar as disposições napolitanas sobre motivação,

ressaltou a necessidade de se entender a norma como uma submissão ao controle da

coletividade24

– o que representa, justamente, o viés democrático da norma.

Os exemplos apontados serviram para bem ilustrar que o surgimento de uma

obrigação de motivação das decisões judiciais, no processo moderno, é fenômeno

basicamente europeu. Corroborando o exposto, toma-se o caso norte-americano como

paradigma; neste país, apesar de sua anciã origem jurídica – com adoção desde o século

XVIII da Constituição como um documento jurídico-normativo –, observa-se que não

existia, à época, qualquer norma determinando o dever de justificação das decisões25

.

Isto não quer dizer, todavia, que todas as decisões de todos os tribunais norte-

americanos não eram motivadas; as decisões de primeira instância não têm o costume de

serem motivas, ao passo que os pronunciamentos da Suprema Corte do referido país, v.g.

têm por praxe justificar suas tomadas de posição. No caso do Tribunal de Maior hierarquia

dos EUA, a exceção fica por conta dos pronunciamentos acerca do writ of certiorari, que

representa o meio processual através do qual a parte pleiteia ao tribunal que reexamine sua

questão; as decisões do certiorari são tomadas em deliberação secreta e sem motivação26

.

Ainda no que se refere à praxe dos tribunais norte-americanos, verifica-se que os

pronunciamentos de segunda instância também têm por costume receber os fundamentos

que consubstanciam a decisão.

A questão que se verifica é, apesar da ausência de norma específica explicitando a

necessidade ou obrigação de apontar os fundamentos do decisum, por quais motivos

diversos tribunais dos Estados Unidos da América tem por prática justificar seus

pronunciamentos – a resposta ao questionamento, pode, inclusive, ser estendida para todos

os demais países que adotam o common Law. A razão para tanto é de clareza ímpar: seria

de todo ilógico pensar em um sistema de precedentes sem a apresentação de fundamentos

24 TARUFFO, Michelle. La motivación ..., p. 302, quando assim destaca: “El alcance objetivo de la reforma

fue identificado por Filangieri, quien puso en evidencia que con la obligación de motivación se sometía La

operación Del juez al control difuso de la opinión pública, por lo que se hacía responsable ante la

colectividade.”.O mesmo autos destaca em p. 303 que a inovação da legislação de Nápoles, que antes não

possuía qualquer previsão a respeito da obrigação de motivação das decisões, bem como ante as constatações

e conclusões de Filangieri sobre a referida lei, seu conteúdo acabou por ser revogado com a lei de 1791,

transformando a motivação em mera faculdade para o juiz. 25 BARBOSA MOREIRA. Temas ....p. 92-93. 26 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Suprema Corte norte-americana: um modelo para o mundo?.

Temas de Direito Processual – oitava séria. Rio de Janeiro: Saraiva, 2004, p. 242-243.

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que ancorassem o julgado, haja vista que toda a estrutura do common law é embasada nas

razões de decisão do Juízo27-28

.

Assim, fica o registro de que as origens da obrigação de motivar as decisões

judiciais no processo moderno, dever este decorrente de uma lei formal e material que a

preveja, são historicamente verificadas em Europa, notadamente nos países de civil law,

haja vista que nos Estados Unidos da América, assim como na Inglaterra, nenhuma

legislação é apontada neste sentido, apesar de existir uma prática contumaz de justificar as

decisões, mas isto em razão da estrutura do modelo jurídico adotado.

3. A GARANTIA DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS FUNÇÕES

A breve análise histórica realizada anteriormente contribuiu para um panorama que

possui interessantes apontamentos para a motivação das decisões judiciais: trata-se da

função da obrigação de motivar as decisões judiciais.

Nas linhas transatas se percebeu uma breve anotação sobre os controles endo e

extraprocessual da motivação das decisões, anotando-se que, na sua origem, o dever geral

de motivação dos pronunciamentos judiciais decorria, eminentemente, em benefício das

partes e do juiz. Todavia, verificou-se ainda que este nuance do dever de justificação não

se mostrava idôneo para abraçar uma necessidade geral de fundamentar as decisões.

Logrou-se apontar a respeito de um controle do Estado realizado pela população,

estabelecendo-se que também ao poder jurisdicional seria necessário esse aporte

hierárquico do povo. Eis o caráter democrático incidindo no processo, salientando que os

27 BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. A motivação ... Temas ... p. 84, que nestes termos destaca: “Se não

se tratou de editar regra legal genericamente impositiva da fundamentação, é que, com toda a

probabilidade, não se terá julgado necessário formular a exigência em texto escrito. Mas parece

inconcebível uma mudança de rumos na praxe judiciária: chega-se a afirmar que, se os Tribunais deixassem

de fundamentar suas decisões, todo o sistema do case law cairia por terra. Basta pensar, com efeito, na

importância das razões de decidir para a atuação do mecanismo dos precedentes.” 28 Apesar de Estados Unidos da América e Inglaterra estarem ligados à mesma família de origem jurídica,

anglo-saxônica, sendo, portanto, expoentes do common law, deve ser acertado que, em Inglaterra, mesmo

não existindo previsão normativa escrita que determinasse a obrigação de fundamentação das decisões

judiciais, é praxe no país desde o século XII, em todas as instâncias, a apresentação de justificativas do

julgamento realizado (seja aquele realizado pelo juiz, seja aquele realizado pelo jurado). Assim, é mister salientar que apenas no ordenamento norte-americano não se vislumbra uma prática processual de motivação

das decisões judiciais nos juízos de primeira instância. Para maiores detalhes sobre a questão, ver

TARUFFO, Michelle. La motivación ... p. 312-318.

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cidadãos em geral somente têm a possibilidade de controlar a atividades dos juízes se os

seus pronunciamentos forem motivados29

- eis o controle extraprocessual.

Explica Taruffo que um controle eminentemente endoprocessual, dirigido às partes

e ao juiz, possui funções bem explicitadoras e que realmente merecem suas considerações.

Assim, para este viés, a obrigação de motivar teria como meta funcionar como requisito

técnico da decisão judicial, e ainda relacionar-se diretamente com uma possível

impugnação do pronunciamento30

.

No que tange à função da motivação das decisões judiciais direcionadas às partes,

pode-se destacar um viés persuasivo da fundamentação dada pelo juiz. Neste aspecto, a

ratio decidendi teria o intuito de demonstrar, notadamente para o perdedor da contenda, a

bondade e justiça da decisão proferida, procurando evitar, assim, eventual impugnação do

pronunciamento – aqui, a persuasão deve ser entendida no sentido de convencimento,

persuadir o perdedor de que a sentença proferida está acertada com a lide em debate e em

consonância com a lei. Essas considerações referentes às partes do processo, todavia, são

de todo superficiais; basta recordar-se das decisões judiciais não passíveis de recurso, v.g.,

as decisões de última instância. Nestes casos, como não haveria qualquer irresignação a ser

apresentada, referidos pronunciamentos prescindiriam de fundamentação31

.

Ainda no que se refere às partes, a exposição dos motivos da decisão funcionaria

como um aspecto facilitador da valoração da pertinência de uma impugnação, além de

melhor auxiliar na identificação dos vícios que padecem o pronunciamento. Neste teor, a

motivação se mostra como um verdadeiro fator racionalizador da decisão, justamente ao

permitir um melhor e mais amplo controle, pelas partes, da decisão proferida. Todavia,

eventual impugnação da sentença pode não decorrer dos vícios presentes na

fundamentação da decisão, como nos casos dos vícios processuais – denominados errores

in procedendo. A crítica denota a falibilidade de se restringir o dever de motivação à esta

29 Além da motivação, é mister que as decisões jurisdicionais sejam públicas, todavia, para não desvirtuar do

tema do trabalho, fica o registro da necessária publicidade dos atos do Poder Judiciário, sem se adentrar mais

afundo sobre suas nuances. O referido princípio e expressamente previsto no rol de garantias fundamentais

do cidadão vide art. 5º, XIV, da CRFB/88 (é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo

da fonte, quando necessário ao exercício profissional). Sobre o tema cf. GRECO, Leonardo. Instituições de

Processo Civil: introdução ao direito processual civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 1. p. 556 e

ainda GRECO, Leonardo. ―Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. In Estudos de Direito

Processual, ed. Faculdade de Direito de Campos, 2005. Versão eletrônica deste artigo disponível em

http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429. Acesso em 16 de junho de 2012. 30 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia. Trad. de Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas

sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 516. 31 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil, cit. p. 336.

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função – acrescente-se, ainda, que as críticas alhures realizadas sobre as decisões não

recorríveis também se subsume para este caso32

.

Outra função da motivação relacionada com as partes do processo é aquela

decorrente da exata definição e enquadramento do direito afirmado pelo juiz, além da

extensão de seus efeitos. Assim, através da exposição das razões, é possível verificar se o

magistrado individuou corretamente o conteúdo da decisão, tudo conforme os fatos e

direitos afirmados pelos contendores. Impede-se que o magistrado possa fugir das raias do

processo e do direito, vetando-o, também, na possilibidade de que sua decisão produza

efeitos para fora dos limites do pleiteado – eis o controle de legalidade da decisão. Notório

destacar que esta função não se relaciona diretamente com a impugnação da decisão, haja

vista que tem por finalidade a determinação objetiva do julgado33

.

A motivação das decisões judiciais também se mostra necessária para os juízes da

impugnação, ou seja, os revisores da sentença pronunciada em primeiro plano. Em

substância, as funções da fundamentação relacionadas às partes do processo são todas

aplicáveis aos magistrados a quem se confia o julgamento do recurso, notadamente o papel

persuasivo, a verificação dos vícios da motivação e a análise da exata definição do direito.

Um ponto que merece respeito e se mostra exclusivo ao juiz da impugnação é a

verificação do meio impugnativo eleito pela parte para irresignar-se contra a decisão,

conferindo-se ao magistrado ad quem verificar sua adequação34

– a título exemplificativo,

no direito processual civil brasileiro, contra decisão interlocutória é cabível o recurso de

agravo retido e agravo de instrumento, cujos modo de interposição e processamento são

completamente díspares, assim, se a parte irresignada contra uma dita decisão interpõe o

agravo de instrumento, ao invés do agravo retido, cumpre ao magistrado verificar a

adequação da via eleita, podendo, assim, não receber o recurso da forma realizada, por

justamente não se amoldar aos cânones legais.

Por óbvio que a função da motivação relacionada com o juiz da impugnação

somente tem sua razão de ser quando uma decisão possa ser impugnada; desta feita,

quando diante de pronunciamentos não recorríveis – como no caso do STF no Brasil – não

se teria motivos para falar sobre este aspecto. E mais, esta razão de ser somente seria

realmente prática se a decisão fosse efetivamente impugnada; assim, acatando as partes a

32 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil, cit. p. 337 33 TARUFFO, Michele. La Motivación .... p. 339-340. 34 TARUFFO, Michele. La Motivación .... p. 341-342.

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sentença proferida, não havendo interesse em recorrer, perderia razão a existência da

função da motivação direcionada ao juiz da impugnação.

Nota-se, pois, que a exigência de uma regra geral de fundamentação das decisões é

insuficiente através desta função.

Pois bem, em se afirmando que a grande maioria dos fundamentos acima

explanados para a obrigatoriedade de motivar as decisões não se aplicaria para as Cortes

Supremas dos países em geral, questionar-se-ia: quais seriam, então, as razões para tanto

em ditos tribunais? É neste aspecto que se adentra para a necessidade de um controle

externo do dever de justificar os pronunciamentos jurisdicionais.

Antes de adentrar ao cerne da questão, mister destacar que, extraprocessualmente,

se convém motivar as decisões por três motivos. O primeiro deles é concernente à faceta

instrumental da norma, ou seja, é na fundamentação da decisão que se verifica se todos os

direitos e garantias das partes foram efetivamente respeitados. Nos termos afirmados no

primeiro tópico deste ensaio, o sistema vigente na grande maioria dos países estabelece um

amplo rol de garantias processuais fundamentais; assim, é através da ratio decidendi que se

observa se o devido processo legal fora respeitado, com a observância de todos os

princípios inerentes ao processo35

.

Ademais, é através da motivação que os juízes podem demonstrar que suas razões

de decidir são suficientemente válidas e boas no intuito de aceitá-las como coerentes com o

ordenamento vigente. Nesta perspectiva, encontra-se aquela função já mencionada a

respeito da determinação objetiva do julgado, através de uma definição exata do conteúdo

do pronunciamento. E mais, nesta nuance também se pode falar em legitimação da decisão,

pois somente apresentando as razões de decidir que se pode verificar que a sentença

“muestra que responde a critérios que guían el ordenamiento y gobiernan la actividad del

juez”36

.

Por fim, tem-se o fator de racionalização da jurisprudência. Conforme afirmado

alhures, os países de common law são destituídos de regras escritas a respeito da obrigação

de motivar as decisões judiciais, todavia, restou também afirmado que a inexistência da

previsão normativa não impunha uma ausência geral e indiscriminada de justificação das

decisões. Muito ao contrário, a apresentação das razões decisórias se mostra presente, e de

35 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 518. 36 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 518

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outra forma não se poderia pensar ou exigir, afinal, embasando-se estes países na

vinculação dos precedentes, denota-se que é a ratio decidendi quem tem este papel

vinculativo – inconteste a necessidade de se impor a justificativa da decisão. É ainda por

estes argumentos que se guiam as funções de unificação e racionalização da jurisprudência

pela motivação das decisões, isto porque, as razões de decidir utilizadas, precipuamente

pelos tribunais de impugnação e pelas Cortes Superiores, tem como fim convencer os

demais magistrados a decidir da mesma forma quando defronte a casos similares aos

julgados37

.

Não é demasiado afirmar que esta função de racionalização da jurisprudência pela

motivação garante ainda a concretização de um dos pilares de qualquer sistema, qual seja,

a segurança jurídica. Apesar desta função ser evidentemente reconhecida, no Brasil, o que

se tem notado é que, na prática, sua efetivação se mostra de difícil observação; pontua-se

como uma das razões precípuas, o elevado número de processos julgados pelas principais

Cortes Superiores pátrias, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal38

.

Inconteste que os argumentos acima destacados são idôneos para demonstrar as

razões de uma exigência geral de motivação das decisões judiciais. Porém, a pedra de

toque que sustenta toda a nuance do controle externo da obrigação de justificar o

pronunciamento jurisdicional é outra, qual seja, permitir que a sociedade, como um todo,

tenha condições de aferir a correção da tutela conferida pelo Estado.

Esta é a perspectiva do ideal democrático no processo moderno, sendo inverossímil

pensar em um Estado de Direito sem o dever geral de motivar as decisões judiciais, cuja

controlabilidade dos pronunciamentos possa ser realizada por todos os cidadãos. E a razão

para assim pensar decorre do fato que, se a prestação jurisdicional pelo Estado se mostra

equivocada em determinado caso, a crise do direito não afeta apenas as partes do processo,

mas tem potencial de afrontar o Direito para toda a população.

Sobre o assunto, assim sintetiza José Carlos Barbosa Moreira39

:

“A possibilidade de aferir a correção com que atua a tutela jurisdicional não

deve constituir um como ‘privilégio’ dos diretamente interessados, mas

37 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 519. 38 A afirmação do elevado número de processos julgados por STJ e STF foi retirada do conteúdo das

palestras proferidas pelos professores Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Pablo Cerdeira, ambas proferidas nas IX Jornadas de Direito Processual Civil, que ocorreu entre 29 e 31 de agosto de 2012 no Rio

de Janeiro. 39 BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. Temas ... p. 90.

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estender-se em geral aos membros da comunidade: é fora de duvida que, se

a garantia se revela falha, o defeito ameaça potencialmente a todos, e cada

qual, por isso mesmo, há de ter acesso aos dados indispensáveis para formar

juízo sobre o modo de funcionamento do mecanismo assecuratório. Ora, a

via adequada não pode consistir senão no conhecimento das razões que o

órgão judicial levou em conta para emitir seu pronunciamento; daí decorre a

necessidade de motivação obrigatória e pública.

O controle extraprocessual deve ser exercitável, antes de mais nada, pelos

jurisdicionados in genere, como tais. A sua viabilidade é condição essencial

para que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na tutela

jurisdicional – fator inestimável, no Estado de Direito, de coesão social e da

solidez das instituições.”

Com a mesma proficuidade, Michele Taruffo40

pondera:

“De la superación de ese principio se desprende que la motivación no

puede concebirse como un trámite de control ‘institucional’ (o sea, en los

limites y en las formas reglamentadas por el sistema de impugnaciones

vigente), pero también, especialmente, como un instrumento destinado a

permitir un control ‘generalizado’ y ‘difuso’ del modo en el que el juez

administra la justicia. En otros términos, esto implica que los

destinatarios de la motivación no son solamente las partes, sus abogados

y el juez de la impugnación, sino también la opinión pública entendida en

su conjunto, en tanto opinión de quisque de populo. La connotación

política de este desplazamiento de perspectiva es evidente: la óptica

‘privatista’ del control ejercido por las partes y la óptica ‘burocrática’ del

controle ejercido por el juez superior se integran en la óptica

‘democrática’ del control que debe poder ejercerse por el propio pueblo

en cuyo nombre la sentencia se pronuncia.

Entonces, el principio constitucional que analizamos no expresa una

exigencia genérica de controlabilidad, sino una garantia de

controlabilidad democrática sobre la administración de justicia.”

40 TARUFFO, Michele. La Motivación ... p. 361.

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Esta perspectiva democrática da motivação das decisões judiciais começa a ganhar

relevo mundial com o processo de constitucionalização verificado nos mais diversos países

do globo. O retorno ao Estado Democrático de Direito e as necessidades de conferir aos

cidadãos meios aptos a defendê-los contra os poderes estatais revelam uma nova gama de

direitos e garantias insculpidos nas Constituições pós-bélicas, tudo com vias de afastar

definitivamente o ranço dos totalitarismos de outrora.

O processo se assume como uma das armas fundamentais do novo sistema jurídico,

ferramenta a serviço do cidadão, sendo que, concomitante com essa emersão do acesso ao

Judiciário visando uma justa e efetiva tutela jurisdicional, é verificada uma série de novos

direitos e instrumentos (ou mesmo uma releitura dos já existentes) que viabilizem a

participação democrática – são as garantias processuais fundamentais, que podem ser

resumidas na cláusula do devido processo legal.

O dever de obrigação de motivação das decisões judiciais é uma destas garantias, e

como visto, sua ampla funcionalidade eriça-o, certamente, ao lugar de um dos mais

importantes direitos fundamentais do cidadão, afinal proporciona uma possibilidade de

controle interno e externo da atividade estatal jurisdicional, mostrando-se como uma

condição essencial em todo Estado que se julgue democrático.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento de uma garantia fundamental de obrigação de motivação das

decisões judiciais está essencialmente atrelado ao viés democrático do atual modelo de

Estado concebido, qual seja, o Estado de Direito. A participação da população na atividade

jurisdicional, viabilizada através do controle externo das razões que consubstanciam os

pronunciamentos judiciais adquire, assim, importância de natureza política.

Isto porque, sendo a jurisdição uma atividade essencialmente estatal, na qual tem

como atribuição precípua afirmar e interpretar/aplicar os direitos do Ordenamento, aos

cidadãos não poderia ser conferida apenas a participação no processo de elaboração das

leis, mas também, e acima de tudo, a efetiva possibilidade de controlar a sua concretização.

Assim, o que se vislumbra é não somente uma participação direta da sociedade no

processo legislativo, atuando diretamente na feitura das normas que os regem, como

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também uma atuação direcionada a controlar os pronunciamentos judiciais, que também se

caracterizam por serem normas – muitas vezes a todos aplicadas.

A controlabilidade dos atos decisórios deve ser possibilitada em todas as esferas

jurídicas, denotando que o Judiciário tem o dever inderrogável de motivar seus

pronunciamentos. Esta garantia fundamental prevista em grande parte das Constituições,

correspondente a uma obrigação geral, somente é possível caso se entendam as suas

funções da forma como exposta.

A origem da necessidade de motivação das decisões, culminando com sua

positivação nas Constituições posteriores à segunda guerra mundial – seja através de

previsão expressa, seja através de sua interpretação decorrente de outros princípios

fundamentais do cidadão – revela que a sua evolução decorre essencialmente da

necessidade de trazer o cidadão para dentro da máquina estatal, evitando os arbítrios como

aqueles cometidos em tempos de concepções burocráticas e autoritárias do poder

jurisdicional.

O controle do Estado por parte da sociedade, em todas as suas esferas de atuação, é

fator de legitimidade de qualquer governo embasado em ideais democráticos; assim, para

que a ideologia participativa se verifique dentro do âmbito da administração da justiça, é

corolário lógico que se confira aos cidadãos a garantia indelével de fundamentação das

decisões judiciais, com o correspondente dever estatal de justificá-las. E pela exposição

realizada, as razões de fato e de direito com as quais deve o juiz justificar sua tomada de

posição são o meio natural de exercício do poder soberano do povo.

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A EXTENSÃO DA COISA JULGADA NO NOVO CPC E A EXTINÇÃO DA AÇÃO

DECLARATÓRIA INCIDENTAL: UMA MEDIDA DE SEGURANÇA JURÍDICA

Laís Fernandes Almeida

Bacharela em Direito. Universidade Federal de Juiz de Fora –

Faculdade de Direito

RESUMO: O objetivo central deste artigo é a análise da alteração da disciplina da coisa

julgada através do Projeto de Lei 8046/2010, em substituição ao Código de Processo Civil de

1973. O novo texto inclui as questões prejudiciais na imutabilidade da coisa julgada,

observados certos requisitos. Muitas são as críticas, já que a discussão é polêmica e antiga. A

experiência norte-americana comprova que a ideia é consistente e de sentido irretocável, desde

que se estabeleça parâmetros precisos para sua aplicação. A extensão da coisa julgada se faz

necessária por um mandamento de segurança jurídica e legitimidade da decisão.

PALAVRAS-CHAVE: segurança jurídica; legitimidade; questão prejudicial; coisa julgada;

direito norte-americano.

ABSTRACT: The goal of this article is to analyse the new discipline of res iudicata, brought

by Law 8046/2010, which intend to replace the current Code of Civil Procedure. The new rule

consists in thinking that prejudice issues can be embraced by res iudicata, provided certain

requirements. The critics are on, mainly because the discussion endures through times. The

north-america experience proves that the idea is consistent since adequate conditions were

established. The extension of res iudicata is indispensable to ensure legal security principle and

the legitimacy of the decision.

KEYWORDS: Legal Security Principle; Legitimacy; Prejudice issue; res iudicata; American

Common Law.

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INTRODUÇÃO

O anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, que atualmente tramita como

Projeto de Lei 8046/2010 na Câmara dos Deputados, traz alterações importantes ao sistema

processual como o conhecemos hoje. O presente trabalho se propõe a abordar a extinção da

ação declaratória incidental, e consequentemente o novo cenário em que se insere a

questão prejudicial, que passa a ser também coberta pela coisa julgada, expandindo a

antiga noção de que “somente a parte dispositiva da sentença faz coisa julgada”, tão

repetida na doutrina.1

A doutrina lutou por muito tempo pelo tratamento jurídico dado à coisa julgada

presente no Código de Processo Civil de 1973, e tem suas razões para defendê-la. O

objetivo deste estudo é reanalisá-las, colocá-las sob o ponto de vista das necessidades

atuais e dos novos imperativos jurídicos para compreender as consequências da aplicação

da redação proposta no meio forense, principalmente considerados, nesta análise, o

mandamento de eficiência e coerência do sistema jurídico e das normas concretas

proferidas em sede de sentença judicial. Para tanto, no primeiro e segundo tópicos

trabalhamos o conceito de coisa julgada, bem como a conceituação de questões

prejudiciais e a legislação aplicável.

No terceiro tópico, apresentamos a segurança jurídica e a legitimidade. Cabe a

análise pois, numa visão leiga do assunto, é um mandamento lógico que a fundamentação

da sentença, ou seja, as razões de fato e de direito que levaram o magistrado a concluir pela

procedência ou pela improcedência do pedido, não possam ser rediscutidas, e decididas

novamente, até mesmo em sentido contrário, em nova demanda. Há que considerar uma

análise mais minuciosa sobre o que figura inadmissível e incoerente aos olhos do homem

comum, haja vista ser este, em última instância, o destinatário da prestação jurisdicional,

além do mais em tempos de acesso amplo à justiça.

No quarto tópico é exposta a ação declaratória incidental, seu modo de aplicação e

as incongruências práticas que levaram à proposta de sua extinção.

1 Neste sentido, veja-se: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,

Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo,14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 307, assim como CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil,vol I, 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p.

494 e LIEBMAN, Enrico. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, 4ª ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 61.

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Trataremos também do collateral estoppel, instituto do direito norte-americano, e

relacionado às bases principiológicas próprias do Common Law, em ocasião do quinto e

sexto tópicos. A reconsideração do sistema brasileiro da posição da questão prejudicial no

ordenamento revela uma aproximação de certos postulados de eficiência e uniformidade

das decisões judiciais muito caros à prática norte-americana. Pretendemos demonstrar em

que ponto a principiologia dos institutos se toca e repassar as críticas feitas ao collateral

estoppel, para melhor compreender os problemas a que estamos sujeitos com a aplicação

do novo Código de Processo Civil e quais as vantagens de um julgamento que privilegia

menos o formalismo e mais um conteúdo coerente. Haja vista tudo que já avançamos no

pensamento processual é um descompasso admitir descrédito e atraso na prestação

jurisdicional, baseando-se para tal em justificativas tão teóricas e garantias jurisdicionais

tão excessivas – que beiram à injustiça.

Como a pesquisa se propõe a responder objetivamente os problemas acerca da

extensão dos limites objetivos da coisa julgada, especialmente a respeito das questões

prejudiciais, finalmente o sétimo tópico traz os principais pontos de conflito, revistos à luz

da doutrina moderna e da desconstrução de certos postulados classicamente relacionados a

esta discussão, mas nem sempre pertinentes.

A conclusão faz um balanço geral do estudo, apontando os impactos possíveis

causados pelo novo modelo adotado e comparando com os efeitos práticos da adoção do

sistema norte-americano.

1 COISA JULGADA

O estudo sobre a coisa julgada é extenso e a bibliografia sobre a matéria é vasta. A

teorização a respeito do tema, contudo, tem afastado a doutrina do real sentido da coisa

julgada, e frequentemente perdem-se de vista os problemas práticos enfrentados pelos

limites atuais impostos, porque estamos debruçados sobre a questão de a coisa julgada

gerar irrevogabilidade, imutabilidade ou invariabilidade. O que se deve extrair da

evolução histórica do conceito são as implicações concretas a respeito de seus limites, e,

basicamente, a proibição de submeter a novo julgamento questão (no sentido vulgar do

termo) já julgada. Neste sentido:

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Como se não bastasse, a doutrina foi acumulando os conceitos de

firmeza, irrevogabilidade, invariabilidade, imutabilidade, etc.,

criando uma série de categorias sobrepostas que apenas tornou

obscura a noção inicial, que me desculpo por repetir uma vez mais:

que a coisa julgada não é mais do que uma proibição de reiteração

de juízos.(grifo nosso)2

1.1. Fundamentos e escopos da coisa julgada

Há que pontuar: toda demanda causa perturbação social, primeiramente porque o

conflito não pôde ser resolvido aquém do judiciário, e também pela incerteza gerada pelo

processo em aberto, enquanto não é resolvido. Isto nos remete ainda à necessidade de que

os conflitos se resolvam em tempo hábil a estabelecer a paz social, já que processos que se

prolongam por 20, 30 anos acabam perdendo a essência de pacificação, muitas vezes

ocasionando mais tensão que a que havia antes do ingresso no judiciário. O processamento

da lide acarreta uma alteração do status social dos indivíduos, “notando-se o

reconhecimento de uma certa ‘posição de vantagem’ para quem se situa no pólo ativo, ao

passo que ao contraditor cabe suportar o ‘ônus’ de ser chamado de ‘réu’.3 A coisa julgada,

concordem ou não as partes com o resultado, “desarma” seus espíritos belicosos, que já

não podem mais impugnar o decisum4, pondo fim à controvérsia e proclamando a

definitividade da decisão prolatada.

Ainda neste sentido, a função do juiz precisa ir além da aplicação mecânica da lei.

Há expectativa social de o provimento estatal ser justo e coerente. Como norma concreta,

de caráter individual, espera-se que contribua para a construção de um ordenamento

jurídico completo e coeso. Assim, a decisão precisa coadunar com as regras e princípios de

Direito, e também com outras decisões jurídicas – daí decorre: situações jurídicas

semelhantes devem ser decididas da mesma forma; e não se pode admitir que a relação

2 FENOLL, Jordi Nieva. “A coisa julgada: o fim de um mito”, in REPD, vol X, p. 243. Disponível em

<http://www.redp.com.br/arquivos/redp_10a_edicao.pdf> acessado dia 01/08/2013. 3 MANCUSO, Rodolfo. “Coisa julgada, collateral estoppel, e eficácia preclusiva secundum eventum litis”, in Revista de Processo n˚ 608. São Paulo: RT, Jun. 1986, p. 23. 4 No mesmo sentido, CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas – entre

continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 54.

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entre Fulano e Ciclano, considerada existente numa demanda, seja em outra considerada

inexistente, por exemplo.

(...) ao decidir uma demanda judicial, o magistrado cria,

necessariamente, duas normas jurídicas. Uma de caráter individual,

que constitui sua decisão para aquela situação específica que se lhe

põe para análise, e outra de caráter geral que é fruto da sua

interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua

conformação ao direito positivo5

Não podemos perder de vista que, nesta construção do Direito, os jurisdicionados

esperam encontrar um juiz humano, um membro da sociedade, que aplique o Direito

conformando-o ao contexto social, à verdade da causa, analisando-a com humanidade.6

Este diálogo humano, evidenciado por Greco7, significa travar a relação jurídica segundo

uma expectativa de, ao longo do processo, os sujeitos envolvidos contribuírem para a

persecução de decisão definitiva compatível com o mundo dos fatos, minimamente justa e

coerente, podendo assim tornar-se imutável e resolver definitivamente o conflito. Espera-se

5Retirado de MADEIRA, Daniela Pereira. "A força da jurisprudência", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código de processo

civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 529/530. Esta ligação intrínseca impõe que sejam compatíveis, ou

representará a criação de Direito aleatório, que não contribui para a construção do sistema jurídico – muito

pelo contrário. Claramente, a decisão deve se adaptar aos fatos trazidos em discussão, podendo até mesmo

atuar contra legem – mas dentro de um permissivo legal. As normas concretas individuais devem ser

adaptadas, mas é imperativo que sigam as linhas ditadas pelas diretrizes legais. Podemos diferenciar uma

decisão adaptada e uma decisão desconforme. 6“O jurisdicionado compreende o Poder Judiciário como uma função do Estado, desempenhada por pessoas.

Assim, tem a legítima expectativa de que sua pretensão, quando posta em juízo, seja apreciada por alguém

que tenha conhecimento técnico, sensibilidade humana e imparcialidade. O cidadão quer a chance de um

diálogo humano com a pessoa que, ao final, decidirá uma parte de sua vida. É justa essa expectativa.”

MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. "A atuação do juiz na direção do processo", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código

de processo civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 183. 7Greco trata, de um diálogo humano sob o ponto de vista do contraditório participativo: “Esse é o

contraditório participativo, que não se limita a assegurar a marcha dialética do processo e a igualdade formal

entre as partes, mas que instaura um autêntico e fecundo diálogo humano entre as partes e o juiz,

indispensável para que tal conjunto de prerrogativas possibilite às partes influir eficazmente nas decisões

judiciais, por meio da intervenção no curso de toda a atividade de aquisição do conhecimento fático e jurídico

de que se originam e da sua repercussão no entendimento do julgador.” Entendemos que Gustavo

Quintanilha, com uma precisão louvável, releu a expressão “diálogo humano” num sentido menos formalista

e mais completo do termo, expandindo para a noção de humanidade que tratamos supra. GRECO, Leonardo.

"A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa, in Revista CEJ, v. 35. Brasília: Revista CEJ, 2006, p. 20-27, apud MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. "A atuação do juiz na direção

do processo", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões

acerca do projeto do novo código de processo civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 185.

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que a decisão resolva todos os pontos da demanda e que não possa ser reaberta e desfeita,

por um mandamento de segurança jurídica.

Sob o viés político, a coisa julgada é uma afirmação do poder estatal. A decisão de

mérito, que se cristalizará em coisa julgada, pode ser vista por dois aspectos: é o resultado

de um instrumento posto à disposição dos cidadãos, já que provocam a jurisdição quando

necessitam, ou seja, é atuação estatal a que o sujeito escolhe submeter o conflito de

interesses que vive; mas é também uma afirmação do poder político do Estado, porque os

vincula às normas e aos procedimentos da demanda, submetendo-os às regras de ônus,

provas e, uma vez formada a res iudicata, seu viés coercitivo determina que se atenda à

ordem judicial. O Estado-juiz substitui a voz e a vontade das partes para decidir, e

sobrepõe sua manifestação a qualquer outro ato de poder. Consequentemente, o modo

como se desempenha a prestação jurisdicional, sua efetividade e sua “justiça” (incluindo-se

aí o sentido de que as decisões do sistema devem ser logicamente compatíveis) são reflexo

do Estado que é, governo eleito pelo povo e construído sob a égide dos valores mais caros

a seus jurisdicionados.8É uma expressão de sua força e de sua legitimidade. O provimento

deve consolidar os valores morais, e o processo deve revelar os preceitos e garantias

contidos na Constituição e projetá-los sobre a realidade social.

Ainda seguindo este raciocínio, podemos ir além e considerar que a evolução

jurisprudencial e a repetição de julgados que conduzam a mutações constitucionais e legais

não são expressão da força do Estado, agindo através do juiz, mas são imposições do

próprio sentimento nacional.9

O atraso na adaptação do sistema processual se deve, em muito, ao “preconceito

consistente em considerar o processo como mero instrumento técnico e o direito processual

como ciência neutra em face das opções axiológicas do Estado”10

. Isto porque o modo

como se desenvolveu o estudo da matéria lembrou-nos sempre da instrumentalidade

8 “O Estado projetará sobre a sociedade uma imagem positiva ou negativa, conforme seja o desempenho,

capacidade e prestígio de seu aparelho judiciário, especialmente no que tange ao acatamento e cumprimento

das determinações dos magistrados” (grifo nosso). MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada...,ob.cit, p. 24.

Ainda neste sentido, podemos acrescentar DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do

processo, 15ª ed. Brasil: Malheiros, 2013, p. 46: “assim inserido nas estruturas estatais de exercício do poder,

o juiz é legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe suas pressões destinadas a

definir e precisar o sentido dos textos”, explorando o conceito de juiz autêntico trazido por Habscheid, de tal

sorte que o juiz faz as escolhas desejadas pela população, como instrumento verdadeiro de concretização do

Direito e de realização do que o homem comum entende por Justiça – para nós, principalmente em seu aspecto mais amplo: decisões logicamente compatíveis. 9 Expressão empregada por DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 48. 10 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 39.

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formalista pura do processo, que somente com o decorrer do tempo, através de autores

como Dinamarco, pôde ser revista11

. O contexto atual de acesso ao Judiciário, a noção de

jurisdição como serviço, conduzem-nos à necessidade de revisitar o ideário de que o

processo serve somente aos profissionais do foro, e foge ao conhecimento do homem

comum. Ora, a partir do momento em que passam a perpetuar injustiças claras, em virtude

do modo de operar-se o judiciário, afronta a crença do homem comum na Justiça e na

máquina Estatal posta à sua disposição.

O aspecto jurídico da coisa julgada diz respeito a propósitos relacionados tanto aos

sujeitos da lide quanto às funções do processo.

Em relação à primeira abordagem, a coisa julgada é o comando que incorpora o

bem da vida ao status jurídico do sujeito, dissolvendo a situação de incerteza em relação à

lide e ao direito discutido, possibilitando um reclame incisivo de realização deste direito no

mundo dos fatos, haja vista sua imutabilidade – é o que transporta a decisão para a

realidade fática. Ademais, num desdobramento garantístico do instituto, “(...) quer o

Estado evitar que uma pessoa seja reconduzida ao Pretório pelo mesmo motivo

precedente”12

, para consolidar definitivamente a situação jurídica dos jurisdicionados,

comprometendo-se a não submeter o indivíduo novamente à via crucis judicial.

Ressalta Cabral que, no contexto de Estado Democrático de Direito, a coisa julgada

atua como “expectativa de resultado ou de implementação de direitos”13

, relacionando-se à

tutela jurisdicional efetiva, porque inaugura o momento a partir do qual o indivíduo pode

usufruir do direito reconhecido pelo Estado, não estando mais sujeito a argumentações e

discussões em juízo. A coisa julgada emprestaria segurança ao gozo de bens reconhecidos

judicialmente, na expressão de Chiovenda.14

Tratando-se das funções do processo, a coisa julgada atua como mecanismo apto a

evitar decisões contraditórias sobre a mesma lide, como ensina Mancuso15

, operando em

favor da coerência sistêmica e do máximo aproveitamento da atuação jurisdicional, já que

11“Se houvesse a consciência arraigada da identidade ideológica entre processo e direito substancial, sentir-

se-ia mais rapidamente e de modo mais firme a necessidade de atualização do sistema processual”.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 39. 12 Dizeres de MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 25. 13 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 56. 14 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, com anotações do Prof. Enrico Tullio

Liebman, 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 310. 15 MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 26.

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reduz os custos globais de litigância ao impedir sua reprodução em outros procedimentos,

salvaguardando “tempo e dinheiro” do Estado e dos particulares.

1.2. Coisa julgada: conceito e legislação pátria

A legislação brasileira a respeito do tema não adotou uma concepção uniforme,

ocasionando em intensa discussão doutrinária. Conceitua a LICC: “Art. 6, §3º. Chama-se

coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”

A concepção, de forte influência alemã, encabeçada por Hellwig16

, sustenta ser a

coisa julgada um efeito da decisão. A sentença não cria, somente declara direitos pré-

existentes ao processo, previstos no ordenamento jurídico. Toda sentença traria, por isso,

um conteúdo declaratório e a coisa julgada seria “eficácia da declaração”. Nada apaga o

que o juiz declarou, de modo que a coisa julgada seria uma força vinculante da declaração

da sentença, tornando-a imutável. Barbosa Moreira17

, em crítica pertinente, aponta que a

teoria deixa a desejar completude para a prática forense, já que não serve à estabilidade se

não abarcar também os conteúdos não declaratórios da sentença.

Liebman, contrariando este entendimento, considera a sentença publicada ato

jurídico perfeito, que produz naturalmente seus efeitos. Diferencia-se a eficácia natural da

sentença e imutabilidade que se adere a ela. A imutabilidade é um plus que se adere à

sentença, unindo-se aos seus efeitos (não se configurando, portanto, como um mero efeito)

para reforçá-los e qualificá-los.18

A eficácia natural da sentença, com essa nova qualidade,

fica intensificada e potencializada. Assim, a coisa julgada é uma qualidade que se adere

aos efeitos da decisão.

Liebman foi duramente criticado19

, pois não são os efeitos que se tornam imutáveis,

mas o conteúdo da decisão; é o ato judicial fixador da norma individual reguladora do caso

concreto que se torna imutável. Não é a eficácia da sentença que adquire a imutabilidade,

mas a própria sentença. Isto fica muito claro se atentarmos para o fato de que os efeitos são

16Sobre a tese de Hellwig, CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 70. 17 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 72. 18 Explica MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 25. 19 Doutrinadores nacionais como Barbosa Moreira e Antônio do Passo Cabral reconhecem o grande avanço

conceitual de Liebman ao mudar o foco sobre a coisa julgada: as teorias anteriores relacionavam a coisa

julgada ao próprio conteúdo da sentença, sua eficácia ou seus efeitos, ou seja, defendendo uma teoria conteudística. Liebman traz uma teoria adjetiva, porque relaciona a qualidade da decisão, e não seu conteúdo,

à coisa julgada. Neste sentido CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 75. Contudo, não

deixam de criticá-lo. O que não é surpresa, já que sua teoria foi elaborada em 1945.

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mutáveis e disponíveis por natureza: se condenado ao pagamento de quantia certa, com o

adimplemento da obrigação não sobrevive este efeito da sentença; uma sentença que

declare a certeza de relação jurídica pode ser surpreendida se a relação deixa de existir,

dissipando a certeza oficial, efeito da sentença declaratória. Em regra, com a satisfação do

comando decisório, exaurem-se os efeitos da sentença.

A redação do vigente CPC deixa dúvidas a respeito de qual teoria foi adotada:

“Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e

indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”

Neste viés, Didier Júnior pugna pela adoção da teoria alemã, haja vista o legislador

definir a coisa julgada como eficácia, mas muitos processualistas brasileiros entendem em

outro sentido. Mancuso, por exemplo, ressalta a adoção do conceito liebmaniano de coisa

julgada pois na redação dada pelo legislador “(a coisa julgada) vem concebida como um

quid, um plus que se adere à sentença (...)”20

. A própria exposição de motivos, lavrada por

Buzaid, contraria a defesa de Didier Júnior: “O projeto tentou solucionar esses problemas,

perfilhando o conceito de coisa julgada elaborado por Liebman e seguido por vários

autores nacionais”21

.

Uma terceira teoria, apontada por Didier Júnior,22

refere-se à coisa julgada como

situação jurídica do conteúdo da decisão. A norma jurídica concreta, a parte dispositiva da

sentença, entendida como conteúdo da decisão, fica coberta pela imutabilidade. Este

posicionamento respeita a característica mutável dos efeitos, já que não tenta engessá-los.

A situação jurídica existente anterior ao processo judicial é então revista na sentença, que

trabalhará norma jurídica concreta adequada ao caso, amoldando o comando judicial a uma

nova situação jurídica, que deve ser preservada pelo ordenamento jurídico, e assim tornada

imutável e indiscutível.

Partimos para a conceituação da coisa julgada formal e material.23

A coisa julgada

formal é um fenômeno endoprocessual, porque consiste na imutabilidade da decisão dentro

20MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 25. 21Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, publicado em 02 de Agosto de 1972, Brasília.

Disponível em <http://www.ombadvocacia.com.br/acervo/CODIGOS/CODIGOPROCESSOCIVIL.PDF>

acessado em 03/07/2013. Fazem coro à adoção da teoria Liebmaniana pelo legislador brasileiro também José

Frederico Marques e Pedro Batista Martins. 22 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual

Civil – vol II: Teoria da Prova, Direito Probatório, Ações Probatórias, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Antecipação de Tutela. 8ª ed. [S.l.]: JusPodivm, 2013, p. 472. 23 Conceitua-se a coisa julgada formal como a imutabilidade do ato processual sentença, enquanto a coisa

julgada material é a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, relativamente às

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do processo em que foi proferida, em razão da irrecorribilidade da sentença. Atua como

preclusão máxima no processo, por consistir na perda da possibilidade de impugnar a

decisão no processo em que foi proferida. A coisa julgada material, por outro lado, é

fenômeno exoprocessual, pois impede a rediscussão da decisão no processo em que foi

proferida e em qualquer outro, ressalvados os motivos ensejadores da ação rescisória. A

imutabilidade neste caso vai para além do processo. A coisa julgada formal é pressuposto

lógico para a formação da coisa julgada material, porque impossível a formação desta a

despeito daquela.24

Como nos preocupamos com a decisão a respeito da questão prejudicial em outro

processo, trataremos neste trabalho sempre da coisa julgada material, que é a que nos

interessa, exatamente por ser a coisa julgada formal uma imutabilidade somente para

dentro do processo

Dinamarco traz à lume um ponto de vista interessante: a coisa julgada formal e a

material seriam não institutos distintos, mas sim dois aspectos da imutabilidade. A

diferença residiria apenas no objeto – veja-se, a coisa julgada formal, inerente a qualquer

sentença, é a imutabilidade de um comando que extingue somente o procedimento, é um

“ponto final” nos atos daquele processo; por outro lado, a coisa julgada material

representaria a invariabilidade do próprio direito material, pois que serviria à “firmeza das

relações jurídicas”25

, tornando imutável a situação subjetiva. Este entendimento parece

coadunar com a terceira teoria, festejada por Didier Júnior, de coisa julgada como situação

jurídica do conteúdo da decisão, e auxilia na análise a que este trabalho se propõe: a

“firmeza das relações jurídicas” não exigiria, igualmente, imutabilidade das questões

prejudiciais decididas?

1.3. Limites objetivos da coisa julgada

A questão referente aos limites objetivos da coisa julgada aponta quais elementos

da demanda se tornarão imutáveis. Sua definição representa a tentativa de conciliar dois

mesmas partes. Ver CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,

Cândido Rangel. Teoria...,ob. cit, p. 306. 24 LIEBMAN, Enrico. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, traduzido por Alfredo Buzaid e Benvindo Aires, notas de Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007,

p. 60. 25 Neste sentido, CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 60.

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valores caros a todos os sistemas jurídicos – o prestígio da justiça e a estabilização das

situações jurídicas, intimamente relacionados à paz social e à efetividade da prestação

jurisdicional, impondo que o decidido não pode ser posteriormente infirmado.

Savigny incluía na proteção da coisa julgada as questões prejudiciais, excluindo da

proteção da coisa julgada somente os elementos subjetivos contidos na sentença, e seu

raciocínio foi aceito no Brasil durante muito tempo, consagrado no CPC de 1939.26

A partir do CPC de 1973, acompanhando a tendência global ditada pela doutrina

alemã, a coisa julgada foi restringida à parte dispositiva da sentença. Assim, na concepção

atual o limite objetivo se identifica com o objeto do processo, que assume o papel de

resposta imediata ao pedido do autor, formulado na inicial.27

Fica excluída da disciplina da

coisa julgada a massa lógica construída para chegar à conclusão: os fatos analisados pelo

juiz, a resolução de questões de direito, preliminares e prejudiciais, tudo fica sujeito a novo

debate e nova decisão, se os jurisdicionados assim desejarem.

O sistema proposto pelo Novo CPC altera positivamente o cenário, ao tornar

indiscutíveis também as questões prejudiciais, nos termos e requisitos que serão expostos

ao longo deste trabalho.

Art. 484. A sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem

força de lei nos limites dos pedidos e das questões prejudiciais

expressamente decididas.

Art. 485. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da

parte dispositiva da sentença;

II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da

sentença.

Fenoll, num entendimento mais abrangente que o que pretendemos adotar neste

trabalho, trata da fundamentação ideológica por trás da problemática dos limites objetivos

da coisa julgada:

26 “Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões

decididas. Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”. 27“Na acepção dominante, os limites objetivos da coisa julgada são, em última análise, os limites colocados

pelas partes no pedido.” CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 88.

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(...) a determinação dos julgamentos que requeiram estabilidade,

para não desvirtuar a sentença, será a chave para definir que partes

da sentença se revestirão dos efeitos de coisa julgada. E

simplesmente serão todas as partes que precisem manter sua

estabilidade, para que a sentença não careça de fundamento. Desse

modo, uma citação de jurisprudência realizada para maior reforço

pode ser considerada perfeitamente prescindível. No entanto, a

fixação de um fato provado ou a declaração de propriedade sobre

um bem, por exemplo, formam parte do conjunto incindível de fato

e de direito que constituirá a base e sustentação de uma sentença, e

que deve, portanto, integrar a matéria que se revestirá dos efeitos

de coisa julgada.28

(grifo nosso)

Isto porque considera o autor espanhol que a necessidade de tornar imutável parte

da fundamentação será analisada caso a caso, o que é, ao nosso ver, ampliação excessiva.

Muito ao contrário da definição atual que restringe a coisa julgada à parte dispositiva da

sentença por razões utilitaristas (é mais fácil de se verificar e exclui qualquer discussão),

também não se pode deixar a problemática à mercê de uma indeterminação indesejada, já

que as partes terão que argumentar a respeito de a questão de fato ou de direito ser ou não

incindível ao comando da sentença. Numa visão um pouco menos ambiciosa, e mais

prática, pretende-se estender a coisa julgada à questão prejudicial, que é indiscutivelmente

importante para o provimento jurisdicional, já que o resultado da questão prejudicial é que

dita como será decidida a questão principal. Exclui-se, assim, a necessidade de se perquirir

se a questão é incindível ou não.

1.4. Teoria da tria eadem e a coisa julgada

As sentenças que julgam o mérito da causa, ficando portanto protegidas pelo manto

da coisa julgada material, vedam a cognição do juiz a respeito de causa com a qual haja as

três identidades, porque adotamos a teoria do tria eadem: se a nova demanda contempla as

mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo objeto, há identidade de demandas e a

28FENOLL, Jordi Nieva. A coisa julgada..., ob.cit., p. 251.

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posterior não poderá ser apreciada, haja vista a primeira litigância ter sido solucionada,

transitada em julgada e resolvido o mérito, configurando-se verdadeira repetição. Assim,

haverá extinção do novo processo, ditame do art. 267, CPC.

O problema que se impõe e deve ser solucionado é que demandas materialmente

idênticas, mas que não se enquadram na tripla identidade, não serão extintas. Veja: se A,

buscando sentença declaratória, ingressa em juízo contra B, para que se decida a existência

ou não de crédito em seu favor; se B comprova o pagamento, A terá seu pedido rejeitado.

Após o trânsito em julgado, se A propõe uma ação condenatória, em face de B, de

pagamento do débito, os pedidos formulados serão distintos, mas a relação jurídica

deduzida é a mesma. O novo processo deverá ser extinto por aplicação da teoria da

identidade da relação jurídica, em respeito à coisa julgada formada, impedindo nova

apreciação de uma questão já resolvida. Nas palavras de Freitas Câmara:

(...) se surgir um processo em que haja uma questão prejudicial que

já tenha sido objeto de resolução por sentença transitada em

julgado, tal questão não poderá ser discutida no novo processo,

cabendo ao juiz, tão somente, tomar o conteúdo da sentença

transitada em julgado como verdade. Assim, por exemplo, numa

‘ação de despejo’ não será possível discutir a existência ou

inexistência da locação, se uma sentença anterior, transitada em

julgado, declarou existente aquela relação jurídica.

Esta teoria é uma construção doutrinária e representa a influência das prejudiciais.

Perceba que Câmara demonstra a vinculação ao julgamento se a questão prejudicial

transitou em julgado. Nos termos da legislação atual, isto só será possível se a questão que

no segundo processo figura como prejudicial era questão principal no primeiro processo,

ou por meio de ação declaratória incidental requerida num primeiro processo, deixando em

aberto um importante instrumento consolidador da segurança jurídica. Ao nosso ver, a

adoção da identidade da relação jurídica é útil ao ordenamento jurídico e deveria ser

estendida: que o juiz possa determinar, juntamente com as partes, no curso do processo,

que certa questão prejudicial fará coisa julgada, sem que para isso se tenha que compor

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uma ação declaratória incidental, o que pode ser oportunamente feito no despacho

saneador.

2 CONCEITUAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DAS QUESTÕES

Definir o objeto da cognição é antes de tudo perguntar sobre o que incide a

atividade cognitiva do juiz, que pode ser definida, nas palavras de Watanabe:

Um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e

valorar as alegações e provas produzidas pelas partes, vale dizer, as

questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e

cujo resultado é o alicerce, o fundamento do iudicium, do

julgamento do objeto litigioso do processo.29

É, pois, uma técnica para apreciar e valorar o que consta nos autos para atingir o

provimento solicitado. É exatamente a cognição que permite a “adequação do processo às

necessidades do direito material”.30

A doutrina ainda não foi capaz de definir com precisão qual o objeto da cognição,

já que autores como Chiovenda postulam ser os pressupostos processuais e as condições da

ação; a doutrina dominante, encabeçada por Buzaid, Dinamarco e Watanabe, considera

serem os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito, enquanto Neves

aponta serem estes últimos, somados aos supostos processuais31

. Independentemente da

teoria adotada, são as questões que configuram o objeto da cognição judicial. Não

analisaremos todos os tipos de questão, mas somente as essenciais ao estudo.

Questão é termo que pode ser definido como ponto controverso, de fato ou de

direito, que demande pronunciamento judicial.32

A questão será objeto de cognição do

juízo, mas não necessariamente objeto de julgamento.

29 WATANABE, Kazuo. Cognição no Processo Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67. 30 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol I. 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2011, p. 275. 31 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., p. 276. 32 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – vol I: Teoria geral do processo e processo de

conhecimento. 12ª ed. [S.l.]: Podivm, 2010, p. 305.

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Importante observar que as questões podem ser solucionadas com dois enfoques

distintos, adquirindo diferentes status para a resolução do processo. As questões resolvidas

incidenter tantum não ficam cobertas pela coisa julgada, exatamente por constituírem

passo necessário à resolução da lide, de sorte que são conhecidas, mas não decididas. O

vigente CPC enumera no art. 469 as questões que formam a fundamentação, mas não são

decididas: motivos, a verdade dos fatos e as questões prejudiciais.33

As questões decididas principaliter tantum são conhecidas e decididas, protegidas

então pela coisa julgada. A referência a que faz o art. 468 do CPC34

elucida que a decisão

abarca as questões decididas e os “limites da lide”, que correspondem aos contornos do

pedido definidos pelas partes, por força do princípio dispositivo.

Quanto à classificação das questões, primeiramente há que tratar das questões de

fato e de direito. Será questão de fato aquela relacionada aos pressupostos fáticos da

hipótese de incidência da norma, ligados às características do suporte fático concreto;

enquanto as questões de direito se relacionam a norma, fato jurídico ou efeito jurídico.35

Se há relação de subordinação entre as questões, a questão subordinante é prévia.

Questões prévias podem ser prejudiciais ou preliminares. O conceito de prejudicial e

preliminar é relativo: uma questão não é prejudicial/preliminar per se, mas

prejudicial/preliminar em relação a outra.

Há que se observar, para diferenciar prejudiciais e preliminares, a influência que

terão sobre a questão vinculada. A questão preliminar é aquela cuja solução cria ou remove

obstáculo à apreciação da outra36

, então o resultado da preliminar dirá se será apreciada a

questão vinculada, ou não. Exemplificando, na ação rescisória o pedido de rescisão é

preliminar ao pedido de rejulgamento da causa. Por outro lado, a questão prejudicial influi

no modo como a segunda questão será apreciada, direcionando a solução desta. É o

antecedente lógico e necessário da prejudicada, e que vincula a solução deste, podendo ser

33 Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. 34 Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das

questões decididas. 35 Ensina DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – vol I: Teoria geral do processo e processo

de conhecimento. 12ª ed. [S.l.]: Podivm, 2010, p. 310. Esta classificação será importante mais adiante para que se possa definir as questões prejudiciais suscetíveis de fazer coisa julgada, e a razões para que tal evento

ocorra. 36 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro, 1967, p. 75.

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objeto de demanda autônoma. A solução da questão influencia o resultado do objeto do

processo. Exemplo claro é o de ação de alimentos, em que A alega ser filho de B, e B nega

relação de parentesco. Primeiramente, o juiz deve decidir se A é filho de B (questão

prejudicial), o que determinará o julgamento do pedido.

A prejudicialidade é um fenômeno lógico evidenciado pela influência que certa

decisão exerce sobre outra. O raciocínio do juiz compõe o elemento lógico da sentença,

que se relaciona de forma incindível ao elemento imperativo da decisão, qual seja, o

provimento previsto na parte dispositiva.37

Assim relacionados os motivos e a norma

individual reguladora do caso concreto, alguns motivos são a verdadeira razão de decidir,

de tal sorte que retirando-a, a decisão já não faria qualquer sentido – porque as prejudiciais,

em verdade, compõem o conteúdo da decisão.

Nas palavras de Dinamarco: “Há prejudicialidade lógica entre duas causas,

questões ou pontos quando a coerência exige que o pronunciamento sobre um deles seja

tomado como precedente para o pronunciamento sobre o outro”.38

O problema mais evidente neste caso é que, pela redação do atual CPC, a questão

prejudicial não consiste em objeto litigioso, e o juiz não a julga, mas somente a conhece,

ficando desamparada pela imutabilidade da coisa julgada. Isto porque é conhecida

incidenter tantum, não principaliter, o que dá azo a incongruência sistêmica, já que estas

questões, como visto, podem ser objeto de demanda autônoma e não ocorre, neste caso, a

exceção de coisa julgada.

As questões de mérito, lato sensu, dividem-se em: questões de mérito strictu sensu,

que configuram fundamento da causa – são as defesas do réu, exame da questão prejudicial

e exame da causa de pedir; e a questão de mérito propriamente dita, que é a questão

principal, objeto da lide. Nas palavras de Didier Júnior, “Não podem ser confundidas uma

e outra, pois somente a decisão acerca destas (questões principais) é que pode ficar imune

pela coisa julgada.”39

Uma leitura mais profunda desta conceituação demonstra claramente

a fragilidade do sistema atual, que se obriga à análise das prejudiciais – já que não pode se

furtar a decidir a causa (princípio da inafastabilidade da jurisdição) e por ser impossível

julgar o litígio sem examiná-las e decidi-las – mas inutiliza seus próprios esforços ao

37 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade no processo civil. 2006. 257f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito do Largo São Francisco, São Paulo, 2006, p. 5. 38 DINAMARCO, Candido Rangel. Intervenção de terceiros, 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 84. 39 DIDIER JR, Fredie. Curso de direito...¸ob. cit., p. 315.

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permitir rediscuti-las em novo processo, desde que seja posta como questão prejudicial ao

mérito ou questão principal.

2.1. Questão prejudicial: caracterização e tipologia

Em minuciosa análise, o trabalho de Leite40

nos permite apontar as características

essenciais à configuração da questão prejudicial, primeiro passo para delimitarmos

propriamente a matéria.

Inicialmente, antecedência lógica. Não é simplesmente uma antecedência

cronológica, que relaciona as questões com um vínculo de mera coordenação, pois uma

solução não teria o condão de influenciar a decisão a ser dada à outra; o antecedente lógico

liga-se ao consequente por um vínculo de condicionamento. No exemplo de Barbosa

Moreira41

, não há sentido em se apreciar o recurso antes de responder, afirmativamente, à

indagação sobre a tempestividade deste.

Pergunta-se então: se vários caminhos lógicos conduzem à mesma conclusão, ainda

será prejudicial a questão que não precisou ser enfrentada pelo juiz? A doutrina aponta que

só será questão prejudicial aquela que for caminho necessário para solução da controvérsia.

Se a dependência da questão é simplesmente possível, não é uma verdadeira prejudicial.42

Contudo, a verificação desta característica não é tarefa fácil, pois, como aponta a mesma

autora, se o réu vier a apresentar duas defesas aptas a eximi-lo de certa obrigação, como a

nulidade de contrato por ilicitude do objeto e a incapacidade da parte, teremos prejudiciais

concorrentes – cada uma sozinha é apta a influenciar a decisão e elas se excluem, porque o

acolhimento de qualquer uma das duas exclui a apreciação da outra, por serem alternativas.

Não parece certo entender que nenhuma das duas seja questão prejudicial porque não

sejam necessárias, haja vista que a essência do conceito está presente. Assim, “(...) a

adoção do requisito da necessariedade para definição do fenômeno da prejudicialidade (...)

acabaria por trazer mais incerteza que precisão ao raciocínio.”43

Isto porque, nestes termos,

ter-se-ia que admitir uma série de questões, no curso da lide, que fossem possivelmente

prejudiciais, e só poderia ser verificada a prejudicialidade em ocasião da sentença,

40 LEITE, Clarisse Frechiani Lara Leite. A prejudicialidade..., ob. cit. 41 MOREIRA, Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., 76. 42 TORNAGHI, Helio. Instituições de processo penal, v. II, 1ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 365-366

apud LEITE, Clarisse Frechiani. A prejudicialidade..., ob. cit, p. 32. 43 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 35.

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momento único e final em que se analisa o mérito, de sorte que não seria possível

determinar antes dela o que seria ou não levado em consideração a título de

necessariedade. Visto isso, prejudicial é todo antecedente lógico da decisão, analisado no

momento de seu surgimento no processo, (e não no momento de sua decisão), procedendo-

se ao exame da prejudicialidade desde o aparecimento da questão no processo.

Não é também a prejudicialidade puramente uma prioridade entre juízos, mas uma

vinculação. “O pré juízo é um juízo judicial que vincula um juízo posterior. A

prejudicialidade é essa relação que se estabelece entre os juízos e que, portanto, tem sede

no processo, ainda que determinada em grande medida por normas de direito material.”44

Pode ocorrer o vínculo entre juízos eminentemente processuais, como por exemplo a

questão atinente à prevaricação do juiz, que condiciona o teor da decisão na ação

rescisória. A prejudicialidade também se liga às relações de direito material, quando

influencia a decisão de mérito. Pode-se incluir a prejudicialidade no conceito de institutos

bifrontes45

, haja vista estar profundamente arraigada nas relações de direito material, de

onde advém a vinculação entre situações e relações jurídicas, mas sendo ela mesmo uma

relação entre juízos judiciais.

Discute-se a respeito do aspecto jurídico da prejudicialidade: se aplica-se o critério

da autonomia ou o critério subsuntivo. A corrente da autonomia, representada

primeiramente por Böhmer, prega que só há questão prejudicial se esta for apta a constituir

objeto de um processo independente. O autor considera que tanto pretensões, relações

jurídicas e direitos podem ser objeto de processo autônomo. Em relação a fatos jurídicos,

só existem em função de relações jurídicas e direitos, por isso não poderiam ser objeto de

demanda autônoma.46

Por este conceito, não é prejudicial a controvérsia a respeito de

ocorrência de certo fato jurídico. Alguns autonomistas chegaram a exigir uma efetiva

decisão em separado para que se configurasse a prejudicial, o que cinde a decisão e não

serve aos propósitos deste trabalho, já que limitaria o conceito a uma questão

procedimental: o que o ordenamento jurídico determinar que precise ser autuado em

apartado, será prejudicial. Este conceito vai na contramão até da atual regulação legislativa

44 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 51. 45 Construção de Dinamarco: são influenciados por normas e princípios de direito material, mas não perdem

sua natureza processual. É o caso da ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada e responsabilidade patrimonial. 46 Clarisse Frechiani Lara Leite examina minuciosamente a discussão acerca do aspecto jurídico da

prejudicialidade em sua obra, outrora citada.

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da matéria: a declaratória incidental se desenvolve dentro do processo principal e é

decidida na mesma sentença, objetivando economizar atos processuais e unificar a

demanda. Este critério demanda que se considerem prejudiciais somente as questões que o

ordenamento jurídico exija que sejam autuados em apartado.

Menestrina, por outro lado, defende a posição de que deve ser igual a natureza dos

juízos: a atividade referente à prejudicial deve ser da mesma natureza do juízo final, ou

seja, atividade de subsunção47

. Assim, tanto as pretensões, relações jurídicas e direitos,

mas também fatos jurídicos são submetidos a uma atividade de subsunção desenvolvida

pelo julgador, de modo que todos eles serão considerados prejudiciais, apesar de fatos

jurídicos não poderem ser objeto de demanda autônoma. Assim, serão prejudiciais

jurídicas os juízos subsuntivos que influenciem na decisão final do processo.

“A caracterização jurídica da prejudicialidade, mais do que atender à necessidade

de fixação de uma base para a disciplina procedimental da suspensão do processo, serve à

identificação da extensão objetiva da coisa julgada.”48

. Barbosa Moreira adota critério

semelhante a Menestrina, expandindo o conceito para abarcar também pressupostos

processuais e condições da ação, por exemplo. Quaisquer questões advindas de atividade

subsuntiva que exerçam influência condicionante no conteúdo de outras questões serão

prejudiciais. O critério da natureza subsuntiva se traduz, para ele, na prejudicialidade de

questões relativas à valoração jurídica de fatos, excluídas então somente questões que

nunca possam dar azo a pronunciamentos acobertados pela coisa julgada material, que vem

a ser as questões unicamente fáticas e as unicamente jurídicas. Toda aquela sobre a qual

cabe pronunciamento jurisdicional apto ao trânsito em julgado deve ser entendido como

prejudicial jurídica.

A doutrina majoritária49

filia-se à corrente que aponta a autonomia, e não a

atividade de subsunção, como requisito à prejudicialidade jurídica. Ademais, a definição de

Barbosa Moreira se mostra extensa demais para ser adotada para este trabalho. No sentido

em que queremos abordar, não se configura imprescindível à justiça da decisão que sejam

cobertas pela imutabilidade as condições da ação ou as questões processuais. Isto porque

não se relacionam propriamente com o conteúdo da decisão de mérito e com a relação

47 Nos moldes tradicionais: premissa maior (norma), aplicada à premissa menor (circunstância de fato),

donde se extrai a consequência jurídica. 48 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit , p. 58. 49 Trabalhos de Ada Pellegrini Grinouver, Didier Júnior e Alexandre Freitas Câmara partem do pressuposto

de que o requisito é pacificado, de modo que nem apresentam a concepção de Barbosa Moreira.

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jurídica discutida. Sua verificação é mais objetiva e a discussão a seu respeito se aproxima

muito mais de questões de direito puras.50

Assim, passemos para a classificação de Chiovenda das questões prejudiciais51

.

Fatos jurídicos serão questões prejudiciais somente quando puderem ser objeto principal

de declaração, como por exemplo a declaração de falsidade de certo documento. Exclui-se,

dentre os fatos jurídicos, aqueles referentes aos atributos de pessoas, coisas ou atos, já que

não poderiam ser objeto de demanda autônoma (como referente à idade de certa pessoa, se

é homem ou mulher, se a coisa é divisível ou imóvel, se o ato é comercial ou civil). Por

outro lado, as questões relativas a estado jurídico, ou seja, ligado à condição jurídica do

sujeito haja vista certa relação jurídica, como o estado de cidadania, família, matrimônio,

serão prejudiciais. Deste modo, uma vez julgada a filiação, não se poderá rediscuti-la em

novo processo, pela letra do Novo CPC, por ser prejudicial relativa ao estado de família.

Será também prejudicial a questão a respeito de existência de uma relação jurídica

complexa, quando se alega direito oriundo dessa relação, como em caso de um fato

ensejador de reparação por dano moral e material. Complementamos a teoria de

Chiovenda, estendendo o postulado também para relações jurídicas simples ou não

complexas52

.Será ainda questão prejudicial a questão sobre a existência de relação jurídica

que envolva obrigações com quotas periódicas (é um tipo de relação complexa). Isto

porque cada prestação pode ser objeto de demanda e processo autônomos, e não se trata de

caso de litispendência porque o pedido é distinto. Contudo, não faz sentido que se discuta a

cada processo a relação jurídica, o que justifica a questão prejudicial fazer coisa julgada.

50 Este entendimento parece coadunar com a tratativa dispensada pelo Código de Processo Civil às questões

processuais. Veja, mesmo uma sentença final que pugne pela ilegitimidade ad causam, transitada em julgado,

estará coberta somente pela coisa julgada formal, por ser questão puramente processual. “Ora, significa então que a mesma questão pode ser levada novamente ao Judiciário, desde que em outro procedimento? A

doutrina brasileira majoritária responde afirmativamente (...)”. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa

julgada..., ob. cit., p. 260. Com mais razão serem conhecidas somente incidentalmente em caso de se

apresentarem como questão prejudicial. 51 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito..., ob. cit, vol I, p. 468. 52 Neste ponto Chiovenda distingue as relações jurídicas que se esgotam num único direito, como empréstimo

em dinheiro, ocasião em que aponta que a existência da relação jurídica consiste no próprio objeto da

obrigação, de modo que esta questão (da existência) fica protegida pela coisa julgada. Quanto a relações

jurídicas complexas, de que derivam múltiplos direitos e obrigações, a existência da relação jurídica

configura causa de pedir, de modo que será questão prejudicial, passível de ser rediscutida em processo

posterior. Chiovenda parte do princípio de que “questões prejudiciais são decididas em regra sem efeitos de coisa julgada”, daí o modo como as analisa. Não partilhamos da mesma crença de modo que incluímos a

questão sobre a existência de relação jurídica “simples”, que se esgota num único direito, no rol das questões

prejudiciais. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito..., ob. cit., vol I, p. 474.

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Questão sobre a existência de uma relação jurídica condição da principal, como

em caso de sublocação, que é relação dependente da de locação, será questão prejudicial.

Será também aquela relativa à existência de uma relação jurídica incompatível com a

principal, que é o caso em que, citado para o pagamento de um aluguel, o réu não só nega

a locação, como afirma-se como proprietário em sede de reconvenção. Entendemos que

nesta hipótese temos novo pedido, que redesenha os limites da lide, não se configurando

pois como questão prejudicial.

Visto isto, podemos dividir as prejudiciais em cinco tipos de questões: a) referentes

a fatos jurídicos, desde que não se refiram a atributos de pessoas, coisas e atos; b)

referentes a estado jurídico; c) referentes à existência de relações simples ou complexas; d)

referentes à existência de relações que ensejam obrigações com quotas periódicas;

e)existência de uma relação jurídica condição da principal.

2.2.Questão prejudicial e legislação pátria

No Brasil, o instituto foi tratado de maneira heterogênea ao longo do tempo.

Anteriormente ao CPC de 1939, grande parte da doutrina filiava-se a um conceito de coisa

julgada que abrangesse as questões prejudiciais, numa inclinação clara à adoção da teoria

de Savigny, “Teoria da Ficção da Verdade”, segundo a qual a coisa julgada seria uma

ficção criada pelo direito, ou seja, admite-se que no mundo dos fatos ocorra algo que não

corresponda à figura jurídica eleita. A crítica mais evidente é relaciona-la com a verdade,

pois o ponto de partida é equivocado: a coisa julgada não imuniza a sentença porque seu

conteúdo é a verdade dos fatos; fica blindada porque o Estado assim o determina através de

uma norma externa à própria sentença.53

A redação do Código de Processo Civil de 1939:

Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá

força de lei nos limites das questões decididas.

Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que

constituam premissa necessária da conclusão.

53 Cabral, Antonio do Passo. Coisa Julgada..., ob. cit., p. 65.

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Como a doutrina européia, por outro lado, passou a rechaçar a teoria, doutrinadores

nacionais como Barbosa Moreira e Adroaldo Furtado Fabrício buscaram sintonizar a

interpretação do dispositivo com o novo entendimento. Além disso, a discussão sobre o

que seria “premissa necessária” era infértil e a indefinição do termo, obviamente,

acarretava muitos problemas.

O Código de Processo Civil de 1973 optou explicitamente pela tese restritiva,

limitando a coisa julgada ao dispositivo da sentença, excluindo do véu da imutabilidade as

questões prejudiciais. Vigorava a fórmula carnellutiana:54

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem

força de lei nos limites da lide e das questões decididas.

Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da

parte dispositiva da sentença;

II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da

sentença;

III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente

no processo.

2.3. Questões prejudiciais e o Novo CPC

O Projeto do Novo Código de Processo Civil, por outro lado, altera a solução atual:

54 Perceba-se contudo que tanto Carnelutti quanto Savigny eram adeptos do que Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 63, chama de “Teorias Materiais da coisa julgada”, voltada para uma discussão

muito recorrente em Direito Comparado, se a coisa julgada seria um fenômeno material ou processual. As

teorias materiais ligam diretamente a coisa julgada ao direito material, de modo que com a coisa julgada

haveria uma “novação” na relação jurídica, pois as partes seriam a partir de então regidas por uma nova

norma material de comportamento. As teorias processuais, por outro lado, acreditam numa conexão apenas

indireta, há “imunização do direito por meio de um vínculo processual dos juízes de processos futuros,

proibindo-os de decidir novamente sobre o tema”. Assim, a vinculação ocasionada pela coisa julgada, para a

teoria processual, não advém da criação de uma norma que reflete uma presunção de verdade (Teoria de

Ulpiano), ou uma ficção dela (Teoria de Savigny), mas porque regras processuais de Direito vinculam os

sujeitos a um resultado obtido no processo, de sorte que a rediscussão é uma vedação processual com

implicações para o Direito material. As variantes da teoria processual são as mais aceitas até hoje, encabeçadas por Hellwig (Coisa julgada como eficácia da declaração), Liebman (coisa julgada como

qualidade da sentença), abarcando inclusive a doutrina mais aplaudida atualmente, de “coisa julgada como

situação jurídica nova”.

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Art. 20. Se no curso do processo, se tornar litigiosa relação

jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento

da lide, o juiz, assegurado o contraditório, a declarará na sentença,

com força de coisa julgada

Art. 490. A sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem

força de lei nos limites dos pedidos e das questões prejudiciais

expressamente decididas.55

Como visto, as questões prejudiciais não se restringem àquelas referentes à

existência de relação jurídica, abarcando também os fatos jurídicos¸ desde que pudessem

ser objeto de demanda autônoma, e estado jurídico. Assim, a redação do art. 20 elucida os

casos em que a relação jurídica será declarada existente ou não, imutavelmente, mas não

restringe ao campo desta espécie de questão prejudicial, pois o art. 490 se refere à todas as

prejudiciais, incluindo as que dizem respeito a fatos jurídicos e estado jurídico.

Deve-se ressaltar que o art. 470 do CPC de 1973 previa requisitos à questão

prejudicial poder ser objeto de coisa julgada – deve a parte requerer, o juiz ser competente

em razão da matéria e a questão ser pressuposto necessário à lide –,que não foram

reproduzidos no novo CPC, mas alterados, de modo que as hipóteses em que a questão

prejudicial poderão de fato fazer coisa julgada serão delineados no decorrer deste trabalho,

tanto em relação à competência, rito procedimental e definindo-se o próprio conceito de

questão prejudicial.

A redação final dos dispositivos referentes à matéria no novo CPC parecem

responder às dúvidas doutrinárias e estabelecer uma série de requisitos satisfatórios à

aplicação devida do instituto da coisa julgada. Vejamos:

Art. 513. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que

torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a

recurso.

Art. 514. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem

força de lei nos limites da questão principal expressamente

decidida.

55 Disponível em

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8DDDDA73D646B7314844F2

BD00F00031.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010> acessado em 06/08/2013

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§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução da questão

prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:

I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;

II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se

aplicando no caso de revelia;

III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa

para resolvê-la como questão principal.

§ 2ºA hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver

restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o

aprofundamento da análise da questão prejudicial.56

Primeiramente, percebe-se que a redação quanto à definição de coisa julgada foi

alterada para caracterizá-la como autoridade, numa tentativa de neutralizar as discussões a

respeito de sua natureza, adotando um conceito intermediário e destituído de

superdefinições jurídicas, privilegiando o sentido mais amplo da coisa julgada.

Adota claramente a coisa julgada a respeito das prejudiciais, mas estabelece

requisitos. O primeiro, se dela depender o julgamento do mérito, é característica ínsita ao

próprio conceito de prejudicialidade, como visto, de modo que só reforça a idéia, não

restringe dentro das prejudiciais aquelas de que dependa o mérito. Todas as prejudiciais

apontadas neste trabalho têm o condão de afetar o conteúdo da decisão de mérito. Quanto

ao contraditório, foi importante afirmar a impossibilidade de formar coisa julgada se

decidido à revelia, respeitando a imposição determinada também para a ação declaratória

incidental. Ressalta também o imperativo de ter o juiz competência absoluta para julgá-la,

e que não haja restrição à cognição, de modo que o procedimento seja sempre aquele

referente à cognição exauriente.

56 Disponível em <http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2013/07/Substitutivo-ADOTADO-

versao-FINAL.pdf> acessado dia 08/08/2013.

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3 SEGURANÇA JURÍDICA E LEGITIMIDADE

3.1. Segurança Jurídica

A segurança jurídica é consagrada como um valor na Constituição da República, no

art. 5º, caput, ladeada pela igualdade e liberdade. Foi incorporada também a dispositivos

como “art. 5º, II, CF. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de

lei.”, expressa também na garantia de devido processo legal (art. 5º, LIV) e na proteção do

direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (art. 5º, XXXVI).

Alguns a relacionam ao princípio da dignidade da pessoa humana, porque a

segurança é imprescindível à realização plena do indivíduo. No cenário atual, mesmo que

não esteja expressamente previsto, este valor é amplamente aplicado por entender-se ser

uma derivação da cláusula do Estado de Direito.57

Isto significa que os parâmetros atuais de Estado de Direito são de vínculo de

coordenação e cooperação, de incitação de condutas construtoras, socialmente úteis.

Transpondo para o Direito Processual Civil, o Estado deixa de inquirir as partes, ou de

administrar a discussão passivamente, e passa a construir, junto com elas, a verdade do

processo e uma decisão que seja útil para as partes e para os objetivos a que a máquina

estatal se presta, como os de dirimir conflitos com justiça e completude. Uma decisão

incompleta ou discutível não serve como base a um ordenamento jurídico consolidador de

direitos. “O que eterniza a litigiosidade é a descrença na justiça da decisão e a facilidade de

prolongá-la ou renová-la sem motivos consistentes e sem riscos”.58

Ensina Cabral59

que a continuidade jurídica, relacionada ao Estado de Direito,

insere o princípio da segurança jurídica na ótica de segurança-continuidade. A

continuidade atuaria como um pêndulo entre o estatismo e a alterabilidade. Isto significa

que a alteração de posições jurídicas estáveis só se justifica se houver uma ruptura das

circunstâncias. Este conceito pode ser aplicado em relação à política, à atividade

57 Esta cláusula revela estruturas estatais guiadas pelo ideário de um poder público definido e controlado

pelos valores consagrados na Constituição e pelos valores fundamentais, composto por normas que sejam

materialmente e formalmente realizadoras de segurança. Ver Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada...,

ob. cit., p. 284. 58 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil – vol I: Introdução ao Direito Processual Civil. 3ª ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 301. 59 CABRAL, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 289.

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jurisdicional, à interpretação de leis. Isto porque os doutrinadores modernos60

visualizam

que o ordenamento jurídico como um todo e sua atuação precisa ser flexível no sentido de

que os institutos jurídicos não precisem ser desconstruídos a cada momento, a cada

variação no mundo dos fatos. O direito precisa ser adaptável para acompanhar a realidade e

não destoar dela.

A continuidade jurídica pode ser dividida em previsibilidade e calculabilidade. A

continuidade, como se propõe a construir uma estabilidade equilibrada dos elementos

normativos, possibilita o “cálculo” do agir do sujeito, de modo que a conduta humana

possa ser mais coerente com os objetivos da sociedade, consolidadora das normas e dos

valores éticos e morais desejados por ela. A confiabilidade das normas permite que se faça

prognoses seguras quanto à sua aplicação prática, contribuindo para o desenvolvimento da

segurança nas relações interssubjetivas.

A confiabilidade geralmente é relacionada à produção normativa. Mas veja, se o

juízo produz norma jurídica individual, estas precisam também ser confiáveis, de tal sorte

que o sujeito possa orientar suas atitudes por uma base segura que lhe indique qual sua

situação jurídica (dada pela coisa julgada), como o ordenamento jurídico reage diante de

suas circunstâncias e o que decide a respeito da causa que lhe é posta a julgar. Daí se infere

que o sujeito precisa acreditar que, a mesma questão, posta perante um outro juiz, por um

mandamento de eficiência do sistema jurídico, coerência e lógica, seria analisada da

mesma forma. Quer dizer, que num outro juízo, amanhã, se trazidas as mesmas provas,

feitas as mesmas alegações, deve o processo atingir um mesmo resultado.

Sabemos que juízes são, antes de tudo, humanos, e que o Direito é variável e

flexível exatamente por procurar corrigir seus próprios erros e acompanhar a evolução

social. Todavia, um conteúdo mínimo precisa ser estável para os sujeitos, imodificável.

Isto porque afetar sua confiabilidade na norma jurídica individual produzida num ponto tão

60 Entendemos que o próprio neoprocessualismo demande mais manutenção das situações jurídicas e das

posições e postulados jurídicos adotados pelo sistema legal que a ruptura e a reconstrução de conceitos.

Atualmente o que se percebe é que os doutrinadores pretendem amoldar a letra da lei às necessidades sociais,

e não reescrevê-la constantemente, até porque tendemos a nos apegar ao extremo oposto. O direito processual

vivencia uma fase de aprimoramento, e não mais de reconstrução. Neste sentido, podemos transpor esta

posição para a tratativa das demandas: é perigoso analisar somente “partes estanques” de relações jurídicas

porque postas deste modo em juízo, já que uma nova demanda intimamente ligada ao pedido transitado em

julgado romperá com este primeiro pronunciamento judicial, passando por cima de sua autoridade e descontinuando a norma individual ditada pelo Estado. Certamente é importante observar o princípio da

demanda e respeitá-lo, mas é importante também que a divisão da questão ligada àquela situação jurídica

particular seja razoável, para que a atuação do Estado possa ser coerente e contínua.

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essencial à causa quanto à questão prejudicial, na verdade, desconstrói esta confiança. Não

há justificativa para permitir que parte tão importante da decisão seja contradita por outra;

teremos somente incoerência e desmoralização do Judiciário. Para assegurar que isto não

ocorra, deve o sistema jurídico se proteger e tornar irretocáveis os pontos fundantes da

decisão.

De fato, o conceito de coerência pressupõe uma coesão interna no

sistema que mostre que existe uma longa cadeia de elementos a

sustentar um ponto do ordenamento. Se utilizarmos este conceito

para um sistema jurídico de estabilidades, veremos que uma

posição jurídica será estável se diversos outros pontos do sistema

forem consonantes (i.e., não contraditórios) com aquela

estabilidade.(CABRAL, 2013, p. 292)

Exatamente reconhecendo, pois, que o Direito não é uma ciência exata, o sistema

precisa se precaver e estabelecer mecanismos que vedem incongruências. É preciso extrair

da mentalidade do homem médio que deve contar com a sorte e com os bons ventos,

porque “a justiça é uma loteria”. Nos pontos em que se puder vedar esta atuação, isto

certamente deverá ser feito. Assim, precisamos que decisões a respeito de um mesmo fato,

que por razões processuais possam ser cindidas (por ensejar dois pedidos distintos, por

exemplo), sejam coerentes, complementares, interligadas. A extensão dos limites objetivos

da coisa julgada tem papel importante a este respeito. Não se deve estendê-la demais, pois

as partes teriam que atuar em contraditório e defender-se a respeito de qualquer alegação, e

a decisão ficaria irremediavelmente imutável. Por outro lado, não se pode deixar ao arbítrio

de revisão toda e qualquer questão discutida judicialmente, ainda que não tenha sido alvo

de pedido.

Quanto à durabilidade ou permanência, outra característica da continuidade

jurídica, deve haver garantia de realização das posições jurídicas estáveis61

; ou seja, além

de as decisões serem executáveis, é preciso que as normas não possam ser facilmente

alteradas, incluídas aí, no nosso entendimento, as normas individuais criadas em sentença.

O direito produzido precisa ser constante, assim também as normas produzidas pela

61 Expressão de CABRAL, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 294.

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366

atividade jurisdicional. Assim como não se admitem leis contraditórias, porque precisam

ser compatibilizadas, este raciocínio deve ser transposto para a normativa individual criada

pela sentença.

3.2. Legitimidade

Muito se fala a respeito da legitimidade da motivação da sentença. Neste sentido, a

motivação atua como um mecanismo de controle e também de legitimação.

A controlabilidade se expressa numa exigência de modo de ser do emprego que os

órgãos estatais fazem de seu poder, e advém de uma noção mais geral de controlabilidade

que é inerente à noção moderna de Estado de direito. A ideologia democrática de

jurisdição demanda que a motivação seja uma garantia de controle externo e difuso, a

respeito da justiça e legalidade do provimento jurisdicional. Assim, o juiz demonstra que

construiu um raciocínio lógico-racional, de acordo com as normas de direito, que conduz

àquela decisão final, na parte dispositiva. As partes poderão recorrer da decisão se

verificarem que a lógica não se perfaz se há violação a norma jurídica, e nesta última

hipótese teremos um controle de legalidade.

A motivação se traduz também num controle de legitimidade. A legitimação precisa

estar contida nas razões de decidir pois os juízes não são eleitos, de tal sorte que por meio

da demonstração do raciocínio que o levou à conclusão do pleito, comprova que foi fiel aos

valores éticos e morais que se pretende assegurar através do Direito, atuando também

como mecanismo de convencimento das partes e da sociedade – precisa provar que sua

decisão é boa, justa, de acordo com o Direito, e por isto deve ser seguida. A coerção pura

nem sempre é capaz de garantir que o direito consagrado se efetive, e deve estar

acompanhada de razões lógicas, uma cadeia de premissas que conduza àquele resultado.

Uma decisão formalmente executável mas ilegítima não se sustenta porque não aplaca a

litigiosidade. Num sentido mais amplo, a produção judicial só será legítima se apesar da

divisão estanque de um mesmo fato, por razões de competência, procedimento ou

oportunidade, em vários processos distintos, a normatização criada for coesa e apontar num

sentido único, e o melhor modo de fazê-lo é proteger o núcleo da decisão, incluindo as

questões prejudiciais, que contém constatações e declarações intimamente ligadas ao

resultado da lide. Assim, a pura coercitividade não pode garantir a coexistência de decisões

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367

contraditórias, porque serão, numa visão sistemática, ilegítimas exatamente pela

contraditoriedade. A litigiosidade só poderá ser verdadeiramente aplacada se as decisões

seguirem uma lógica argumentativa coesa e “se respeitarem”. O próprio mandamento de

autoridade do ordenamento jurídico determina que o valor de justiça ultrapasse o âmbito da

decisão e seja uma medida de coerência com o sistema normativo como um todo e com as

decisões com que se relacione. Destitui-se de autoridade e do valor de legitimidade os

pronunciamentos que se permita serem excludentes.

Entendemos também que a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais atua

como medida de controle num outro viés, distinto da controlabilidade da motivação

judicial. A extensão da coisa julgada se revela como um controle de coesão e

complementariedade no sistema jurídico como um todo, porque garante que a decisão

criada, norma jurídica individual, seja compatível com outras decisões judiciais com que se

relacione diretamente. Isto porque as normas gerais e abstratas tem seu próprio modo de

excluir-se, e sua variação se justifica pela necessidade de adaptar-se à nova realidade fática

e aos novos entendimentos doutrinários, num controle de legalidade e de legitimidade,

restrito apenas por normas relativas à forma de alteração e respeito à substância trazida

pela Constituição Federal. A norma individual criada em sentença só é controlada por

acórdão de tribunal que a substitua, sentença do juiz a quo que a complemente ou em

havendo as razões para ajuizamento de ação rescisória. Estes mecanismos de revisão,

contudo, não visam excluir decisões que coexistam mas sejam contraditórias. E por uma

questão de lógica e legitimidade, não poderão coexistir. Como não se pode revogar decisão

judicial, haverá que se fazer o controle de outra maneira, qual seja: a proibição de

reanalisar as questões prejudiciais, criando um vínculo de unicidade entre as decisões

judiciais que perpassem aquele antecedente lógico.

A motivação se revela ainda por uma necessidade de justificação do ato estatal. Há

dois níveis de justificação: interna e externa. A justificação interna é aquela inferida das

próprias premissas ditas na decisão; enquanto a externa depende de critérios valorativos

indefiníveis: neste aspecto, a motivação é justificada na medida em que os valores em que

assenta são reconhecidos como próprios por quem efetua o seu controle. A primeira

verifica se é racional, a validade e a correção; a segunda avalia se as escolhas feitas pelo

juiz correspondem às expectativas e finalidades do observador. Mais importante, o próprio

conteúdo da motivação varia de acordo com quem se considera seu destinatário: as partes,

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a classe dos juristas ou a opinião pública em geral. Quanto às partes, o foco vai para a

coerência em relação ao caso concreto apresentado; quanto aos juristas, o foco é na

autoridade do decidido e seu status no plano jurídico; e quanto à opinião pública, a

motivação se liga aos valores ético políticos.62

Daí a importância que destacamos de se

adotar a sociedade como destinatário final da atividade jurisdicional, porque somente assim

as normas criadas em sentença e a atuação do magistrado poderão ser consideradas

verdadeiramente legitimadas, por se despirem do formalismo puro ditado pelo processo e

pelas construções doutrinárias e passa a se relacionar diretamente, com a realidade,

concretizando os valores que se quer preservar.

4 AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL E SISTEMA ATUAL DE COISA

JULGADA

“Trata-se de remédio legal que visa à ampliação dos limites objetivos da coisa

julgada, em atenção ao duplo interesse da economia processual e da prevenção de decisões

conflitantes.”63

A ação declaratória incidental nada mais é que uma demanda própria, conexa com a

demanda originária por um vínculo de prejudicialidade.64

O instituto está previsto no art. 5º e 325 do CPC.65

Surgindo no seio do processo

questão prejudicial que, como tal, demande análise do julgador da causa, a prejudicial será

somente conhecida pelo juiz, que se limitará a decidir o objeto litigioso.

Contudo, para que melhor se possa aproveitar a discussão acerca da questão

prejudicial, de modo a evitar demanda autônoma reabrindo-a, foi elaborada a ação

declaratória incidental. Esta ação expande os limites do pedido, e assim, pelo princípio da

correlação66

, expande também o próprio mérito da causa, imutabilizando uma “porção

62 TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam – Casa Editrice Dott. Antonio

Milani, 1975. 63 FABRICIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória incidental. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 60. 64 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 143. 65 Art. 5º Se, no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência

depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.

Art. 325. Contestando o réu o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo

de 10 (dez) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da

inexistência do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.html> acessado na data de 18/07/2013. 66 Por este princípio, o pedido é uma projeção da sentença que se pretende: ampliando o pedido, ampliam-se

as questões a serem decididas pelo juiz. “(...) decisão guarda intrínseca relação com a demanda que lhe deu

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maior” da problemática posta em juízo. O âmbito de discussão será o mesmo, mas a

extensão da coisa julgada se altera porque se expande o próprio pedido.

Se inicialmente a apreciação da questão prejudicial seria apenas fundamento da

decisão, ficando excluída da imutabilidade da coisa julgada – e deste modo, passível de

reanálise em ação posterior – , a partir da ação declaratória incidental, o exame da questão,

que seria incidenter tantum, passa a ser principaliter, integrando o objeto da lide,

transpondo-a da apreciação na fundamentação da sentença para a parte dispositiva da

mesma.

Bem se percebe que, reconhecendo o legislador o problema que este trabalho ora se

propõe a esmiuçar, de esmerar-se o julgador no mero conhecimento da questão prejudicial,

sem contudo garanti-la através da autoridade da coisa julgada, quis solucioná-lo criando tal

incidente. Apontaremos em seguida os problemas práticos causados por esta escolha e as

razões pelas quais repetidamente enfrentamos a ineficiência do dispositivo. Por hora, cabe

esclarecer que este instrumento, dirigido a uma maior economia processual, visa a evitar a

instauração de um segundo processo que desse uma decisão principaliter acerca da questão

prejudicial67

. Deste modo, a declaração incidental vem para ampliar o objeto do

processo68

, incluindo uma questão que a princípio não o integrava, decidindo sobre a

existência ou inexistência da relação jurídica prejudicial. Mas há que atentar para o fato de

que na verdade a declaração incidental não só amplia o pedido, como se constitui na

verdade em pedido novo, “nova pretensão veiculada em processo que já se encontrava em

curso”69

.

Os dispositivos presentes no CPC de 1973 ora analisados não encontram

correspondência no projeto de lei PL 8046/2010, aprovado pela Câmara dos Deputados, de

tal sorte que a ação declaratória incidental será extinta em Direito Brasileiro com a entrada

em vigor da norma.

causa. Há entre elas um nexo de referibilidade, no sentido de que a decisão deve sempre ter como parâmetro

a demanda e seus elementos.” DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria.

Curso de Direito Processual Civil – vol II: Teoria da Prova, Direito Probatório, Ações Probatórias, Decisão,

Precedente, Coisa Julgada e Antecipação de Tutela. 8ª ed. [S.l.]: JusPodivm, 2013, p. 342.

67 Sabedoria de CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., vol I, p. 350. 68 Expressão de CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., vol I, p. 350. 69 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória..., ob. cit., p. 99.

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4.1.Requisitos para ação declaratória incidental e modo de aplicação

Qualquer das partes poderá ajuizar a declaração incidente, conquanto seja o juízo

da causa também competente para decidir a questão prejudicial e seja a questão

pressuposto necessário para resolução da causa, requisitos ditados pelo art. 470, do CPC.70

A exigência em relação à competência configura-se na verdade como requisito de

admissibilidade da demanda declaratória incidental, de modo que o juiz precisa ser

competente em razão da matéria, além da competência funcional71

, por serem estas

absolutas e inderrogáveis. Competências em razão do valor ou do território são

derrogáveis, em regra geral, daí a possibilidade de estenderem-se, possibilitando

julgamento da prejudicial por parte do magistrado competente para o pedido inicial.

O requisito de ser pressuposto necessário parece redundante, já que a questão

prejudicial, por definição, é caminho lógico necessário para a questão principal.

A ação declaratória incidental tramita nos autos em que foi ajuizada, e não em autos

apartados. Esta medida pretende simplificar o procedimento, mas na prática forense gera

muitos problemas, que serão pontuados mais adiante.

É uma providência preliminar, e por isso tem o autor dez dias para demandá-la,

quando a controvérsia tiver surgido em ocasião da contestação. É tranquilo o entendimento

de que, em relação ao réu, este terá que oferecê-la no prazo em que dispõe para

contestação.

Há corrente doutrinária, encabeçada por Fabrício, Didier Júnior e Moreira que

considera a declaração incidente com caráter reconvencional, se ajuizada pelo réu. Nesta

hipótese, aplica-se o previsto no art. 299, do CPC72

, o oferecimento deve ser simultâneo à

contestação. Corrente doutrinária oposta, como de Fornaciari Júnior e Câmara, nega o

caráter reconvencional: na reconvenção o objeto da cognição é ampliado, trazendo

questões novas que não seriam analisadas; na declaratória incidental o objeto não é

ampliado, pois que aquelas questões já seriam analisadas, alterando apenas o objeto do

processo, que passa a ser maior. Mas sendo ainda resposta do réu, conclui Câmara que

70 Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5o e

325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da

lide. 71 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória..., ob. cit., p. 148/149. 72Art. 299. A contestação e a reconvenção serão oferecidas simultaneamente, em peças autônomas; a exceção

será processada em apenso aos autos principais.

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demandará, da mesma forma, interposição simultânea à contestação, posto que antes da

resposta não haverá controvérsia, e assim falta interesse de agir, e após a resposta estará

extinto o prazo para resposta do réu.73

Em sendo revel o réu, discute-se a possibilidade de o autor propor demanda

incidental. Perceba-se que na ausência de contestação, não há controvérsia sobre a

prejudicial, que é em verdade um requisito de admissibilidade da demanda de declaração

incidente. Contudo, o art. 321 expressamente prevê tal possibilidade74

, e ademais, é preciso

considerar a possibilidade de que alguma prejudicial se torne controvertida mesmo à

revelia, ou pela contestação de curador especial ou, por exemplo, em havendo pluralidade

de réus, um deles contesta suscitando a prejudicial. Nestas hipóteses será possível a

existência de declaração incidental, e o réu deverá ser citado para o oferecimento de sua

resposta.

5 DIREITO AMERICANO: A TRATATIVA DO TEMA NO SISTEMA DE

COMMON LAW

Tanto o collateral estoppel quanto a coisa julgada75

atuam como uma garantia ou

segurança para o jurisdicionado de que o que foi decidido pelo Estado passa a ser imutável

e indiscutível, propiciando a estabilidade das relações jurídicas e a crença no Judiciário. No

sistema de Common Law, a res judicata possui duas dimensões: claim preclusion e issue

preclusion ou collateral estoppel.

A claim preclusion impede a rediscussão de um pedido já julgado, tornando

imutável (preclusion) a decisão a respeito da pretensão (claim) formulada pelo autor. A

claim é justamente decidida na parte dispositiva da sentença, aproximando-se muito dos

critérios de coisa julgada no sistema romano-germânico, adotado pelo Brasil. Através desta

73 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob.cit., vol I, p. 353. 74 Art. 321. Ainda que ocorra revelia, o autor não poderá alterar o pedido, ou a causa de pedir, nem demandar

declaração incidente, salvo promovendo nova citação do réu, a quem será assegurado o direito de responder

no prazo de 15 (quinze) dias. 75 O collateral estoppel não equivale nos estados Unidos à coisa julgada em nosso ordenamento, mas se

aproximam em muitos pontos e têm o mesmo objetivo: blindar a decisão. A coisa julgada impede que se

proponha ação com pedido que já tenha sido objeto de decisão judicial, enquanto o collateral estoppel se

apresenta como uma preclusão extraprocessual de certas questões de fato, já decididas em processo anterior.

“Estoppel pode ser entendido, ainda, como preclusão, caducidade, prescrição, renúncia expressa ou tácita de direito material. Sua principal característica procedimental é o fato de ser apresentado com o intuito de

obstaculizar uma pretensão no curso do processo”. ALVIM, Arthur da Fonseca. Coisa julgada nos Estados

Unidos. Repro n. 132. São Paulo: RT, Fev. 2006, p. 80.

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dimensão, indo agora além do nosso entendimento de definitividade da coisa julgada, “o

autor da ação fica obrigado a veicular em uma só demanda todas as pretensões que tenha

contra o réu, em relação ao mesmo fato ou a um conjunto de fatos”76

.

(...) com igualdade processual e menos preclusões internas para

alegações e produção de prova, a claim preclusion aumentou sua

intensidade, acompanhando a concepção de que não apenas o que

foi efetivamente decidido, mas também o que poderia ter sido,

deveria adquirir estabilidade. Essa idéia levou a uma concentração

do debate sobre a lide em uma litigância única. Assim, por meio do

desenvolvimento de regras contra a divisão da causa de pedir (rule

against splitting the cause of action), acompanhada de pressões

sistêmicas para que o réu alegue obrigatoriamente certas questões

no mesmo processo, a res iudicata encontrou terreno fértil para se

expandir e cobrir não apenas a específica demanda proposta, mas o

conflito in natura.77

(grifo nosso)

A issue preclusion (ou collateral estoppel) vem a expandir a vinculação a outros

julgamentos de matérias discutidas e oportunamente decididas em um processo, mas que

não configuram pedido, apresentando-se como fundamentação. Estas questões são

apresentadas na causa de pedir e, como tal, compõem posteriormente a motivação da

decisão. A grosso modo, postula que não se rediscute em outro processo a mesma questão,

já controvertida e decidida em processo anterior. Então questão relevante, que seja objeto

de controvérsia e apreciada em sentença não poderá ser novamente objeto de litígio.78

Deve preencher certos requisitos, contudo, para que possa ser aplicada a issue preclusion

em ocasião de rediscussão – a questão deve ter sido essencial para o resultado do

julgamento, expressamente decidida e ter havido contraditório efetivo sobre o assunto (por

76 Ensinam GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos da coisa julgada no projeto de código de processo civil. RePro 194. São Paulo: RT, 2011. Vol I, p. 111. 77 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 182. 78 Neste sentido, Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 181.

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um imperativo de previsibilidade) e ainda ser previsível sua importância para outros

julgamentos79

.

É neste ponto, dos requisitos para alegação da issue preclusion em outro processo,

que a doutrina tende a extremismos. Entendemos que, de fato, no formato em que se

apresentam, estes requisitos conduzem a discussões infindáveis num processo que

inicialmente não seria nem tão longo, nem tão difícil, sob o ponto de vista da carga

probatória80

. Contudo, há que sopesar a importância destes valores para o direito

processual – será que a aplicação da issue preclusion realmente precisa demandar tanto

esforço? Para privilegiar o valor de decisões coerentes e logicamente compatíveis, que

contribuem em muito para o prestígio do Judiciário (aspecto este que precisa ser reforçado

no Brasil) não podemos encontrar um terceiro caminho entre os parâmetros radicais em

que se aplica o collateral estoppel, e o sistema brasileiro atual, tão engessado no temor de

tornar decisões realmente definitivas, não só em nível da dimensão processual, mas

também fática?

As semelhanças entre o instituto da coisa julgada no Brasil e a disciplina do

collateral estoppel no ordenamento norte-americano tornam imprescindível a análise

comparativa de ambos81

, de modo a resgatar o que pode ser aperfeiçoado no sistema

brasileiro à luz do imperativo social de atingir mais substancialmente o postulado de

eficiência que orienta a processualística nacional e enquadrar da melhor maneira possível

os limites objetivos de nossa coisa julgada aos propósitos concretos de realização da

segurança jurídica.

Isto porque concordamos que a exclusão de questões prejudiciais contidas na

sentença da indiscutibilidade trazida pela coisa julgada dão azo à proliferação de processos

aptos a debater e a rediscutir pontos de controvérsia já decididos em outro processo.82

79 Quanto aos requisitos, vide GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella.

Limites objetivos..., ob. cit., p. 111-112. 80 “As partes, ao proporem uma ação ou ao se defenderem, não teriam mais nenhuma certeza sobre os limites

e o alcance da lide; e seriam forçadas a preparar um esforço de ataque e de defesa efetivamente

desproporcionado à sua intenção.” CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições ..., ob. cit., vol I, p. 476. 81 “No caso da coisa julgada sobre questões prejudiciais, a experiência prática e a construção teórica do

direito norte-americano é, sem dúvida, a mais enriquecedora, em face da massiva experiência desse país com

o tema.” GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos..., ob.

cit., p. 113. 82Sobre a extensão vinculativa da coisa julgada nos Estados Unidos, cabe acrescentar: “esta construção teórica (o collateral estoppel) tem como pilar a utilização dos precedentes no sistema de common law, uma

vez que neste sistema os precedentes, desde que cumpridos certos requisitos, obtêm o poder de vincular as

decisões em outros processos. E quando se fala em vinculação de precedentes, deve-se ter em vista que a

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Demonstra a inteligência da disciplina do collateral estoppel que esta insegurança não

precisa – e não deve ser admitida por um sistema jurídico que se pretenda cada vez mais

adaptado às demandas sociais e à evolução histórica do Direito.

A análise feita pelo Relator Geral da Comissão Especial, formada para emitir

parecer sobre o Projeto de Lei n.º 8.046, de 2010 serve perfeitamente ao nosso estudo:

“(No projeto) Resgata-se, assim, a ideia que prevalecia

antes do Código de Processo Civil de 1939. A proposta de alteração

inspira-se no ideal de economia processual.

Segundo se extrai da exposição de motivos que acompanha

o projeto: ´o novo sistema permite que cada processo tenha maior

rendimento possível. Assim, e por isso, estendeu-se a autoridade da

coisa julgada às questões prejudiciais´.

Em estudo dedicado ao tema, publicado no volume 194 da

Revista de Processo, de abril de 2011, os professores Antonio Gidi,

José Maria Rosa Tesheiner e Marília Zanella Prates fazem uma

comparação entre o modelo brasileiro atual e o modelo norte-

americano. O modelo americano adota disciplina idêntica à

proposta no PL nº 8.046, de 2010, prevendo a issue preclusion, que

é justamente a extensão da coisa julgada material às questões

prejudiciais.

Em tal estudo, os referidos professores, partindo de dados

concretos, demonstram a inefetividade da issue preclusion e as

críticas feitas pela doutrina norte-americana ao instituto.

Em termos pragmáticos, a ideia causa mais demora no

andamento do processo, não alcançando a alvitrada economia

processual. Com informações extraídas da experiência norte-

americana, os mencionados doutrinadores demonstram as

dificuldades da análise, nos processos judiciais, quanto à

parte vinculante dos precedentes não se encontra na parte dispositiva da sentença, mas sim na motivação.” SOARES, Marcos. O collateral estoppel..., ob. cit., p. 121. Ou seja, não se restringe a decisão a fazer lei

entre as partes, como no Brasil, mas tem também efeito vinculante sobre as decisões subseqüentes, atuando

como fonte de direito, apta a regular o novo caso concreto.

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identificação das questões prejudiciais que tenham sido objeto de

controvérsia em processo anterior e que, por isso, tenham

efetivamente sido alcançadas pela coisa julgada.

Ademais, diante do risco de a coisa julgada alcançar todas

as questões prejudiciais, as partes, no sistema norte-americano,

estendem-se, desnecessariamente, na discussão de várias questões,

causando intoleráveis atrasos no desfecho dos processos

judiciais.”83

O voto do Deputado Paulo Teixeira se baseia no artigo publicado por Antonio Gidi,

José Maria Rosa Tesheiner e Marília Zanella Prates, ora analisado neste trabalho, para

apontar a ineficiência que a solução trazida no projeto acarretará. Por todo o dito,

entendemos que a análise do Deputado é equivocada, pois apontam os próprios autores que

o grande problema na aplicação do collateral estoppel se relaciona com a verificação dos

requisitos para sua configuração. Os requisitos adotados são difíceis de provar e geram

muita discussão, o que pode ser evitado no sistema brasileiro através da delimitação do

conceito de questão prejudicial e estabelecimento de critérios objetivos para que seja

abarcada pela coisa julgada.

5.1. Requisitos para aplicação da claim preclusion

Para que se possa alegar a claim preclusion, numa atuação semelhante à “exceção”

de coisa julgada no sistema pátrio, há que preencher certos requisitos, os quais pretendem

provar que foi dada possibilidade de debate sobre as outras pretensões, que precluíram no

primeiro processo, de modo que não possam ser alegadas numa segunda oportunidade.84

Ensina Cabral que a decisão precisa ser válida, final e de mérito.85

A validade diz

respeito ao contraditório e à competência para a causa, em relação à matéria e em relação

às pessoas. “Decisão final” deve ser entendida decisão de que não caiba alteração na

mesma instância, ou em outras palavras, seja provimento coberto pela coisa julgada formal

83Voto do relator-geral, Deputado Paulo Teixeira, p. 285, disponível em <http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf> acessado em 24/07/2013. 84 Ocorre “preclusão dos pedidos possíveis”. ALVIM, Artur. Coisa julgada..., ob. cit., p. 78. 85 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 186.

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ou material. Em relação ao mérito, é necessário que o conflito não tenha sido resolvido

baseado somente em fundamentação de natureza processual. Transpondo para o direito

brasileiro, não cumpriria o requisito a sentença sem julgamento de mérito. Este último

requisito tem sido revisitado, já que parte da jurisprudência daquele país admitiu a

vinculação preclusiva da coisa julgada se ainda que não tenha havido efetivo julgamento

do mérito, os litigantes tenham debatido as questões principais da lide.

A aplicação da claim preclusion só é afastada em dois casos, autorizados pela

jurisprudência e por certas disposições legais: se as partes acordaram pelo fracionamento

da pretensão, o que é permitido em direito norte-americano; ou se houve mudança na lei

que cause alteração normativa que altere um grande grupo de casos, ou ainda uma

mudança jurisprudencial significativa. A justificativa para esta flexibilização é movida

pelo postulado de igualdade geral, buscando resguardar a isonomia entre litigantes que

disputaram, em processos diversos, a respeito de uma mesma questão.86

5.2. Requisitos para aplicação do collateral estoppel

O instituto está intimamente relacionado à proibição de comportamento

contraditório no processo, advenha este comportamento das partes ou do órgão julgador – é

o princípio do estoppel, relacionando-se ao princípio da confiança ou da não-surpresa e

numa realização da boa-fé objetiva.87

Pode ser definido como “vedação de alegar algo que

tenha sido anteriormente negado, ou negar algo que tenha sido anteriormente afirmado em

decisão judicial”.88

Sua função é obstaculizar uma pretensão ou uma alegação, porque já

discutida e decidida em processo anterior. É um modelo de vinculatividade extraprocessual

de questões prejudiciais, compostas na motivação da sentença. Entendemos que a

motivação pode fazer coisa julgada desde que o juiz aponte isto expressamente em juízo.

O instituto da issue preclusion não proíbe a repetição integral do

litígio (como a res iudicata), mas torna preclusas apenas certas

issues resolvidas no processo anterior, sem qualquer consideração

sobre se as partes eram as mesmas ou se a causa de pedir era

86 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 188. 87 SOARES, Marcos José Porto. O collateral estoppel..., ob. cit, p. 116. 88 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 190.

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idêntica. Assim, ao contrário da res iudicata, em que o

impedimento à rediscussão verifica-se porque estamos diante da

mesma causa de pedir, o collateral estoppel observa-se quando a

decisão invocada para impedir a rediscussão foi proferida em litígio

anterior com causa de pedir diversa.89

Assim, cabe lembrar que a aplicação da coisa julgada no modelo pátrio requer a

identidade dos três elementos: pedido, partes e causa de pedir. Em sede de collateral

estoppel, a causa de pedir e o pedido podem ser diversos, de modo que havendo identidade

entre as mesmas partes ou uma das partes e um terceiro, mas causas de pedir distintas,

ainda admite-se a aplicação do instituto.90

A issue preclusion se orienta pela mesma ideia de que a causa é una e deve ser

aproveitado o julgamento de mérito na maior medida possível. Primeiro, porque não é

dado ao juiz decidir novamente o que já foi decidido; segundo, para privilegiar os

postulados de economia processual e segurança jurídica.

Observa-se que a claim preclusion é que atua naquele país como coisa julgada,

abarcando também a eficácia preclusiva da coisa julgada, e o collateral estoppel funciona

como uma preclusão estanque das questões. A jurisprudência, neste caso, coloca limites

mais fortes à sua aplicação exatamente por não ser demanda idêntica e não se submeter aos

critérios de análise da res iudicata. É neste momento, dos requisitos rígidos, que o instituto

peca em aplicabilidade: sua verificação é muito custosa e precisa ser provada em juízo,

atrasando o processo. O formato com que se apresentam as questões prejudiciais no Brasil

dispensa este tipo de verificação.

Primeiramente, há que observar se há identidade de questões, debruçando-se sobre

a consideração de similitude fática ou jurídica da questão, e ainda o nível de cognição e de

ônus da prova que pesou sobre as partes nos dois processos.

Esta verificação parece transpor os parâmetros de análise do que é essencial à

aplicação do instituto – verificando-se que o juízo tem competência para analisar a questão,

não se deve perguntar se o ônus da prova foi maior ou menor no segundo processo.

89 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 190. 90 Para autores como Shapiro e Taruffo, nem mesmo a identidade de partes precisa ser observada. “Posteriormente passou-se a admitir a aplicação da issue preclusion sobre terceiros. Posicionamento este que

foi firmado no Restatement Second § 29.” SOARES, Marcos José Porto. O collateral estoppel..., ob. cit, p.

121.

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Quanto aos requisitos, a parte que se utiliza do collateral estoppel deve demonstrar

que a questão foi devidamente discutida e decidida. A “efetiva litigância” não exige que

conste expressamente nas razões da decisão, basta que fique demonstrado que as partes

desejavam incorporar a questão ao debate. Fica claro que a abertura gerada por este critério

é excessiva, e de difícil comprovação. Ficam excluídos do efeito preclusivo os casos de

julgamento à revelia, infringência de regras de competência e causas decididas por

confissão e acordos91

. A decisão apta a ensejar o efeito preclusivo não precisa ser de

mérito, basta que uma decisão interlocutória tenha se pronunciado conclusivamente sobre a

questão.

O segundo requisito diz respeito à exigência de que a questão fosse “essencial” ao

julgamento, atuando como uma garantia para que não sejam consideradas preclusas

questões que as partes consideram satélite, e sobre as quais não desejam, de fato, litigar.

Para tanto, o juízo não pode observar as alegações e atitudes processuais das partes

isoladamente – é a dinâmica do debate em contraditório que ditará o nível de importância

da questão para a demanda.

Vige ainda o requisito de “previsibilidade do vínculo em processos futuros”, ou

seja, se as partes tiveram ciência ou efetiva oportunidade de trazer as alegações ao juízo.92

Isto porque a questão pode ter sido entendida como “de pequena importância”,

considerando que os casos de descuido da parte não poderão prejudicá-la futuramente,

perdendo a oportunidade de discutir a questão. Geralmente a técnica empregada era a de

dividir as questões de acordo com a natureza dos fatos, em questões principais e questões

secundárias, mas a dificuldade em operá-la substituiu-a pela possibilidade de a parte prever

que a questão pudesse ser invocada em outros litígios93

.

Quanto às exceções na aplicação do collateral estoppel, ele não se aplica se o

procedimento utilizado limitava as condições do debate, restringindo uma discussão e

carga probatória ampla, como no caso dos tribunais voltados a litígios menores, limited

jurisdictions, de semelhante função à dos Juizados Especiais no Brasil. Também uma

questão decidida numa corte que não seja a especializada não ficaria preclusa em razão da

especificidade da matéria. A última exceção diz respeito ao grau de convencimento do juiz

91 KOSHIYAMA, Kazuhiro. Rechtskraftwirkungen und Urteilsanerkennung nach amerikanischem

deutschem und japanischem Recht. Tubigen: mohr Siebeck, 1996, p. 42 apud CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 194. 92 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 197. 93 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 198.

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na causa, pois se o ônus de convencimento seria muito maior na segunda demanda, não

ocorre efeito preclusivo. Isto fica claro quando se analisa collateral estoppel do processo

civil para o processo penal: a carga argumentativa precisa ser muito maior para condenar o

réu em sede de juízo criminal que em juízo cível. Assim, se o réu foi absolvido em

processo penal, estava submetido a ônus de convencimento menor que para sua

responsabilização cível, de modo que não haverá preclusão de certas questões no processo

cível.

Outro problema na aplicação do collateral estoppel é o que de sua verificação não

enseja a extinção do processo, como a exceção de coisa julgada, oportunidade em que o

segundo processo é extinto mesmo antes de se instaurar ou prosseguir – ocorre uma

preclusão estanque da questão outrora decidida no primeiro processo.

Transpondo esta observação para o Direito brasileiro, primeiro pontua-se que a

questão prejudicial não preclui, mas faz coisa julgada. Se a questão, no segundo processo,

é o mérito da causa por inteiro, o reconhecimento do julgamento perfeito e eficaz no

primeiro processo fará com que o segundo seja extinto por uma aplicação de exceção de

coisa julgada, já que a questão prejudicial foi discutida em juízo competente e decidida,

impedindo um segundo processo. Se a questão prejudicial é perquirida como parte do

objeto litigioso, como no novo CPC a questão estará abarcada pela coisa julgada, sua

análise será excluída no segundo processo, e a causa será julgada como dependente do

mérito do primeiro processo, numa mera transposição da sentença. Exemplificando: A

adquiriu imóvel em construção da empresa B, e esta atrasa em dez anos a entrega do

imóvel, A ajuíza ação requerendo rescisão contratual e danos materiais; mais tarde, A

ajuíza nova ação pretendendo o recebimento de danos morais. A causa de pedir é a mesma

(o descumprimento do contrato) e mesmas as partes envolvidas, mas o pedido é diferente e

por isto as duas decisões não estariam vinculadas. Contudo, se o juiz se pronuncia em sede

de fundamentação, no primeiro processo, no sentido de que “a prova documental e o

depoimento pessoal demonstraram que houve descumprimento da obrigação por culpa do

réu”, definindo na parte dispositiva: “condeno o réu ao pagamento de X a título de danos

materiais”, o princípio de segurança jurídica demanda que a questão referente à culpa, já

resolvida no primeiro processo, seja indiscutível no segundo, ainda que os pedidos sejam

diversos. Assim, ambos os provimentos jurisdicionais precisam caminhar num mesmo

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sentido: partindo-se do pressuposto de que a) houve o descumprimento; e b) réu pode ser

responsabilizado porque houve descumprimento por culpa.

Perceba que os parâmetros propostos pelo novo CPC nos furtam de verificar os

requisitos que precisam ser analisados em sede de collateral estoppel, porque já foi objeto

de análise, no primeiro processo, se o juiz era competente para decidir a questão; em sendo

esta prejudicial, também não é necessário perguntar se é essencial ao julgamento, assim

como em tendo sido decidida, se houve efetiva litigância. A definição pelo juiz no primeiro

processo de que a questão é prejudicial e fará coisa julgada nos exime das análises

subjetivas quanto se as partes tinham consciência da importância da questão para a causa

ou se debruçaram-se numa efetiva litigância.

6 APROXIMAÇÃO DO SISTEMA AMERICANO E BRASILEIRO

Pelas razões outrora apresentadas, de semelhança entre ambos os sistemas, cabe

analisar detidamente cada um dos institutos e seus pontos de contato.

6.1. Claim preclusion

Apresentados com a devida atenção os institutos de claim preclusion e collateral

estoppel, cabe esmiuçar os pontos de contatos de ambos os sistemas jurídicos.

Em relação à eficácia preclusiva da coisa julgada, no Brasil, o art. 474 do CPC

pretende atingir os mesmos objetivos da claim preclusion, imunizadas as questões

deduzidas e deduzíveis.94

Contudo, restringe-se ao núcleo do thema decidendum, ou seja,

somente ao objeto litigioso.95

A aplicação restrita do dispositivo faz com que o

94 Nas palavras de Barbosa Moreira, a eficácia preclusiva faz “considerar implicitamente decididas” todas as

questões, mesmo que não explicitamente analisadas, cuja solução pudesse alterar o conteúdo do provimento

jurisdicional. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 89. É uma ficção que põe

estas questões num limbo entre a autoridade da coisa julgada, já que poderão ser rediscutidas posteriormente

em outro processo, mas ficam abarcadas pela eficácia preclusiva da coisa julgada, o que não nos traz efeitos

práticos positivos às estabilidades processuais. Ainda neste sentido, LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A

prejudicialidade..., ob. cit., p. 128: “(os efeitos produzidos pela motivação) são imutabilizados no sentido de

não se admitir a discussão de qualquer outro motivo para alterar a decisão proferida”. 95Didier Júnior apresenta a discussão a respeito do objeto litigioso: se consiste somente no pedido ou também

na causa de pedir. Originariamente o objeto litigioso era relacionado ao pedido; doutrina mais recente, encabeçada por Rogério Cruz, Tucci e o próprio Didier Júnior têm considerado abarcada a causa de pedir.

Mas, em sede de verificação da coisa julgada, precisam ser, ao mesmo tempo, idênticos o pedido e a causa de

pedir, de tal sorte que a eficácia preclusiva da coisa julgada está adstrita a um campo muito restrito.

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ordenamento jurídico seja vítima de suas próprias previsões, já que permite o

“desligamento” da causa para pedidos distintos, mas baseados num mesmo fato, como, por

exemplo, relativamente a danos morais e materiais. Tratando-se de direito americano,

como regra geral, e em decorrência de o próprio sistema incentivar a concentração das

alegações, os juízes consideram abarcado no processo a maior “quantidade do conflito”

quanto possível, evitando que a questão seja fracionada.

Um caso importante neste contexto é Rush v. City of Maple

Heights, no qual a autora pretendia condenação por danos pessoais

do município réu depois de ter acionado e obtido condenação por

danos materiais. O juiz de primeiro grau, no Estado de Ohio,

entendeu estarem preclusas as alegações do Município porque já

tinha sido fixada sua responsabilidade no primeiro processo. (...) O

Tribunal de Ohio, apreciando o recurso, negou-lhe provimento e

superou o precedente do caso Vasu, entendendo que a demanda era

inadmissível porque já tinha sido compreendida na primeira

decisão, ou seja, a partir de novo entendimento, fixou-se a tese de

que não se pode postular dano pessoal separado do dano material.96

A tratativa global dada à questão através da obrigatoriedade da alegação das

pretensões relacionadas ao processo demonstra um inequívoco avanço frente ao sistema

brasileiro. O direito brasileiro tem sido “boicotado” por seu próprio formalismo, ao

privilegiar um modelo recheado de garantias processuais nem sempre justificáveis. O que

se percebe é que a demanda é grande, muitos os processos e as varas, e muitas as

possibilidades para ajuizar uma mesma causa. Assim, parece razoável que se restrinja a

discussão da matéria a um único processo, que será decidido por inteiro, já que as partes

precisam apresentar todas as suas alegações sobre a causa de uma só vez, de modo que não

poderá, no futuro, utilizando-se de uma permissão excessiva do ordenamento jurídico,

reingressar na causa.

Podemos exemplificar: se A ajuíza ação ordinária contra uma transportadora,

requerendo indenização por danos morais decorrentes de um atropelamento causado por

96 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 199.

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culpa do motorista da empresa, obtém sentença que julga procedente o pedido, fixando a

indenização. Após o trânsito em julgado, A ajuíza nova demanda, contra a mesma

empresa, desta vez requerendo indenização por danos materiais. Neste caso, a empresa não

poderá suscitar a exceção de coisa julgada porque o pleito é considerado pedido diverso.

Mas perceba: no primeiro processo a empresa é responsabilizada, mas debruçar-se-ão as

partes sobre as provas de culpa, novamente, em ocasião de um segundo processo, de tal

sorte que neste o pedido pode ser julgado improcedente se entender o juízo que a empresa

não pode ser responsabilizada pelo ocorrido.

Isto porque a eficácia preclusiva neste caso concreto atua somente em relação a

“fatos simples ou circunstâncias que não alterem a causa de pedir”97

, fatos que pudessem

ser arguídos em defesa da tese de cada uma das partes, que figurariam como fundamento

do pedido. A eficácia preclusiva não tem o condão de abarcar a maior quantidade de

conflito possível, como a claim preclusion.

6.2. Collateral estoppel e a produção de efeitos externos a partes da motivação no

direito brasileiro

A transposição de questões decididas para outros processos é admitida em hipóteses

legais expressas em Direito brasileiro.

No art. 935, CC não se questiona sobre a existência de fato ou quanto a quem seja o

autor se isto já ficou decidido na esfera penal. A afirmação quanto à ocorrência do fato ou

se o réu é autor são feitas na motivação da sentença. Ainda tratando-se de matéria penal

transposta para o juízo cível, o art. 65, CPP, define que o reconhecimento das excludentes

de ilicitude de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal

ou exercício regular do direito, apesar de também constarem da motivação, vinculam o

juízo cível.

Já o art. 55, CPC prevê que o assistente não poderá em processo posterior, discutir a

justiça que tenha certa decisão, de modo que as afirmações feitas no fundamento da

97 GRECO, Leonardo. Instituições..., ob. cit., p. 175. Este posicionamento do direito brasileiro voltado a

preservar causas de pedir diversas fica ainda mais explícito pela análise do dispositivo correspondente no

Novo CPC: “Art. 495.Transitada em julgado a sentença de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas

todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido, ressalvada a hipótese de ação fundada em causa de pedir diversa”. Disponível em

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8DDDDA73D646B7314844F2

BD00F00031.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010> acessado em 06/08/2013.

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sentença, a respeito de autor e réu, em situações de interesse do assistente, terão efeitos

sobre outros processos de que este participe, numa extensão da eficácia preclusiva da coisa

julgada.

A tese de transcendência dos motivos determinantes vem sido amplamente apoiada

em sede de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Propugna-se pelo efeito

vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos processos em que se faça

controle abstrato de normas, numa aproximação do sentido dado aos precedentes em

direito norte-americano.

Fica assim demonstrado que a idéia de que a decisão a respeito de certa questão

prejudicial possa vincular o resultado de outro processo não é conceito absolutamente

desconhecido em direito brasileiro, apesar de somente as situações de aproximação de

juízo criminal e juízo cível serem verdadeiramente hipótese de vinculação por

prejudicialidade de questões, próxima então do conceito de collateral estoppel. O caso é

que a lei tem aplicado essas possibilidades somente quando se tratam de esferas

jurisdicionais distintas. Mas não há razão para que não se estenda este efeito em relação a

processos de mesma natureza. Se encontramos modo de aplicá-los a despeito de

principiologia, regramento e modo de se desenvolver o processo em contraditório tão

distintos, com mais razão cabe aplicar para questões prejudiciais muito próximas

substancialmente à questão principal (veja, com os requisitos que propomos – ser

prejudicial, mesma competência e mesmo procedimento nos restringimos a uma classe de

prejudiciais intimamente relacionada à relação jurídica discutida) e referentes a processos

de mesma natureza.

6.3. Conclusões parciais

A claim preclusion funciona, ao mesmo tempo, como coisa julgada, essencialmente

como a conhecemos, e também como a eficácia preclusiva da coisa julgada, apresentada

supra.

O collateral estoppel, por outro lado, funciona como uma preclusão de questões

prejudiciais com efeitos exoprocessuais, ou seja, como uma verdadeira “coisa julgada”

limitada à decisão referente à questão.

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Visto isto, fica claro que os conceitos aplicados em sede de Direito norte-americano

não são muito distantes dos parâmetros de estabilidade que empregamos atualmente.

Entendemos que o legislador brasileiro através do Projeto da Lei 8046/2010 fez

escolhas que possibilitam uma aplicação devida da extensão da coisa julgada. Assim,

filtramos os benefícios advindos de um entendimento mais amplo do que deve ficar

protegido pela imutabilidade em sede processual, como visto nos institutos de direito

norte-americano, realizando em maior medida a segurança jurídica e a legitimidade das

decisões, sem contudo trabalhar requisitos excessivamente abertos – e, sob certo ponto de

vista, intransponíveis, que inviabilizam a extensão da coisa julgada. Neste viés, o

processamento das prejudiciais não se delonga na discussão de previsibilidade de sua

importância para a causa, se foi controvertida, que são questionamentos desnecessários

uma vez que se delimite bem as características das questões prejudiciais. É essencial à boa

aplicação do instituto que a verificação da prejudicial seja objetiva e concreta, e que o juiz

se esmere mais na delimitação dos pontos controvertidos à lide, de modo que o

contraditório jamais fique prejudicado e não incorramos mais na abertura excessiva de

“refutar tudo a todo momento”. Um processo bem delineado realiza melhor seus objetivos

de pacificação social, capaz assim de resolver o conflito por inteiro. Esta é uma demanda

relativamente nova e própria de uma evolução jurídica que já pode se preocupar, por seu

grande avanço, com uma sintonia fina com os propósitos últimos do processo. A

legitimação das decisões requer que se preserve a coerência externa do julgado, de modo

que este valor encontrou na extensão da coisa julgada mecanismo apto a consolidá-la.

7 CRÍTICAS À EXTENSÃO DA COISA JULGADA ÀS QUESTÕES

PREJUDICIAIS

7.1.Relativo ao princípio dispositivo

Historicamente, o principal argumento a favor da tese restritiva de coisa julgada

remetia à necessidade de nos atermos ao princípio dispositivo, ligado a um modelo

adversarial de estruturação processual, e preza pela máxima de que o processo está “a

cargo das partes”, em que o juiz assume o papel, de certa forma passivo, de simplesmente

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decidir o conflito a ele submetido, sem ser, como no modelo inquisitorial, o grande

protagonista e destinatário do processo.98

Contudo, o processo se propõe a realizar aspectos éticos, e ainda por uma questão

de justiça, não poderá ser deixado ao puro arbítrio das partes.

Com o aspecto ético do processo não se compadece o seu abandono

à sorte que as partes lhe derem, ou uma delas em detrimento da

mais fraca, pois isso desvirtuaria os resultados do exercício de uma

atividade puramente estatal e pública, que é a jurisdição.99

Neste sentido, Barbosa Moreira apontava o inconveniente de estarem sujeitas a

julgamento definitivo relações jurídicas não incluídas no âmbito do pedido. Isto porque as

partes podem estar despreparadas para produzir as provas necessárias, ou podem não

querer uma discussão exaustiva das questões prejudiciais. A extensão da coisa julgada

feriria o princípio dispositivo e a correlação necessária entre o pedido e a decisão. Assim,

quando houvesse interesse, as partes poderiam lançar mão da ação declaratória incidental.

Esta crítica recai também sobre o sistema americano de collateral estoppel, pois as

partes não poderiam estar sujeitas a “discutir toda e qualquer questão a todo momento”.

Mas a verdade é que o juiz não fixa os pontos controvertidos – na prática, todos refutam

tudo; e muitas vezes as partes, por uma questão de falta de manejo das questões jurídicas,

fazem como pedido imediato somente o provimento final que pretendem, e passam o

processo todo discutindo e provando a questão prejudicial sem se dar conta que ao final,

obterão decisão sobre o provimento, mas a questão controvertida poderá ser rediscutida a

posteriori..Se tomarmos por base o homem médio, ele lhe dirá que é absurdo rediscutir se

há relação de locação entre os sujeitos, se isto teve que ser provado em processo anterior,

para que se pudesse decidir acerca de parcelas locatícias serem devidas ou não. O que já

foi analisado a fundo, julgado deve estar.

98 Nos dizeres de Dinamarco, ao argumentar a favor do aspecto publicista do processo: “é preciso, de um

lado, reprimir a inquisitoriedade que dominou o processo penal autoritário; e, de outro, abandonar o

comportamento desinteressado do juiz civil tradicionalmente conformado com as deficiências instrutórias

deixadas pelas partes no processo”. DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15ed.

Brasil: Malheiros, 2013, p. 62. Isto se tomarmos como premissa substancial a noção de que o sistema processual precisa funcionar como instrumento do Estado, apto a realizar objetivos a serem alcançados

mediantes seu emprego, que traduzem-se nos escopos sociais, políticos e jurídicos já tratados neste trabalho. 99 DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15ed. Brasil: Malheiros, 2013, p. 63.

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Neste ponto, o mandamento de acesso à justiça deixou a desejar pois abriu espaço

para que os cidadãos pudessem, de fato, resolver seus conflitos judicialmente, mais seguros

agora por estar o seu direito calcado em provimento jurisdicional, imutável, a que não se

pode furtar de cumprir e não se pode contestar, deixa em aberto uma questão que lhes foge

da percepção: que pode ser reproposta a questão, agora numa ação principal, pois o

discutido não fez coisa julgada. Culpará a ineficiência de seu advogado e dirá que o

judiciário é falacioso e traiçoeiro. Não se pode culpá-lo. Ademais, parece um despropósito

o ordenamento jurídico dar azo a situações desmoralizantes da lei e do Direito como estas,

contando com a perícia dos advogados em propor declaratórias incidentais.100

Declaratórias incidentais estas também muito mal delineadas nos parâmetros em

que se aplicam atualmente. Os pontos controvertidos muitas vezes não são expressamente

delimitados, e as partes se esmiúçam em provas tantas quantas forem as alegações da outra

parte.

Além disso, não se pode admitir que se queira provimento A, que depende de B, e

não queira a parte que B seja julgado em definitivo. Não se pode pretender obter reparação

de danos sem o antecedente lógico de responsabilização do réu.

Não se pode deixar de perceber também o prejuízo causado por uma nova

demanda: primeiramente, e mais alarmante, a indignação da parte, que acreditava que a

questão já estava decidida no primeiro processo em que foi controvertida; além disso, a

reabertura da questão desfaz o que a coisa julgada pretendeu resolver no primeiro processo

– pacificar os ânimos. É trazida à tona toda a discussão novamente, e acirra-se a

litigiosidade entre as partes. Além disso, os custos de reingresso no Judiciário recaem tanto

para as partes quanto para a máquina estatal, e lá se vão mais alguns anos de pendência da

ação.

O argumento de que as partes se sentiriam desencorajadas a propor a demanda,

receosas de ficarem vinculadas a questões incidentais ao interesse que pretendem, pode ser

desconstruído pelo fato de que a questão, por ser prejudicial e anterior ao mérito principal

100Não estamos sozinhos nesta observação. “parte expressiva das pessoas que litigam em juízo no nosso país

não têm consciência dos riscos que lhes possam resultar das suas ações ou omissões. Nem mesmo os

advogados, muitas vezes, são capazes de antever esses riscos e os que os antevêm são frequentemente

induzidos a uma conduta pouco colaborativa, em que negam tudo, não concordam com nada, recorrem de

tudo.” O ilustre professor chama atenção para o fato de que a vontade das partes é que definirá o nível de cognição do juiz, mas nem sempre estão os sujeitos aptos a compreender as implicações de sua atuação em

juízo. GRECO, Leonardo. Cognição sumária e coisa julgada. REPD, vol. X, p. 290. Disponível em

<http://www.redp.com.br/arquivos/redp_10a_edicao.pdf> acessado em 24/07/2013.

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da causa, terá que ser provada. A extensão que se pretende dar à coisa julgada não é

excessiva o suficiente para prejudicar o interesse restrito da parte: indubitavelmente seu

interesse já perpassa a questão. Não se pode querer obter alimentos de alguém se não for

primeiramente provada a relação que dá aso à obrigação requerida.101

A concepção restritiva de coisa julgada ora apresentada é entendimento adotado

pelo CPC de 1973. Esta exaltação do princípio dispositivo traduz concepção liberal, de um

processo calcado no paradigma individualista. “O juiz depende, na instrução da causa, da

iniciativa das partes quanto às provas e alegações em que se fundamentará a decisão”102

;

este fragmento demonstra que este princípio se liga a um juízo de conveniência ou

inconveniência que faz a parte em relação ao quanto se dispõe a demonstrar em via

judicial. Contudo, uma vez que o autor deseja o provimento, que perpassa questões

prejudiciais e questões satélite, terá que aceitar a imutabilidade das questões prejudiciais,

porque intimamente ligadas à principal. Não há como haver uma sem a outra, são

dependentes, e por isso o juízo de conveniência precisa ser afastado.

Ainda que fosse considerada a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais

uma afronta ao princípio dispositivo, por entender que a parte teria que fazer prova do que

não queria, os novos tempos têm exigido enfoque no caráter publicista do processo. “A

maior sensibilidade do processo civil aos influxos privatistas, fruto da própria relação de

instrumentalidade ao direito privado, vai sendo neutralizada e a tendência, hoje, é a tomada

de consciência para os objetivos estatais a serem realizados através dele (processo).”103

O

novo Código de Processo Civil, como se sabe, pretende privilegiar a economia processual

101Chiovenda talvez não se aflija com o fato de as questões prejudiciais serem somente conhecidas, e não

decididas, por acreditar que em situações como esta a análise a respeito da existência da relação jurídica seja

objeto da demanda, e não mera prejudicial, de tal sorte que será efetivamente decidida. “Quando uma relação

jurídica se esgota num único direito (por exemplo, empréstimo em dinheiro, sem juros), não pode haver

questão propriamente prejudicial. Poderá haver, antes, uma questão sobre a existência da relação distinta da questão sobre a existência do direito (por exemplo, vencimento da obrigação de restituir o mútuo), mas será

necessariamente objeto, também, da demanda de restituição a declaração de existência da relação” (grifo

nosso). CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições..., ob. cit, vol I, p. 469. Esta questão, que Chiovenda considera

parte do pedido, no modelo de coisa julgada a que se propôs o CPC de 1973, não ficará abarcada pela

imutabilidade. 102 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOUVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Teoria geral..., ob. cit., p. 64. 103DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade..., ob. cit., p. 61. Também neste sentido: “Todavia,

diante da colocação publicista do processo, não é mais possível manter o juiz como mero espectador da

batalha judicial. Afirmada a autonomia do direito processual e enquadrado como ramo do direito público, e

verificada a sua finalidade preponderantemente sócio-política, a função jurisdicional evidencia-se como um poder-dever do Estado, em torno do qual se reúnem os interesses dos particulares e do próprio Estado.”

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOUVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Teoria geral..., ob. cit., p. 65.

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e a coerência através da extinção da ação declaratória incidental, realizando objetivos

estatais de estabilização de situações jurídicas e resolução de conflitos na maior medida

possível.

7.2. Violação do princípio da correlação

Seguindo ainda a ideologia de que o juiz deveria ser “sujeito inerte e passivo”, na

expressão de Didier Júnior104

, o individualismo reinante no Estado liberal demandava a

regra de correlação entre a decisão e o pedido.

“Daí se vê que a decisão guarda intrínseca relação com a

demanda que lhe deu causa. Há entre elas um nexo de

referibilidade, no sentido de que a decisão deve sempre ter como

parâmetro a demanda e seus elementos. É por isso que já se disse

que a petição inicial é um projeto da sentença que se pretende

obter.”105

Não decidir nos limites da lide significa decidir aquém deles (citra petita), fora

deles (extra petita) ou além deles (ultra petita).106

Quanto ao julgamento citra petita, revela-se na ausência de manifestação acerca do

pedido, de fundamento de fato ou de direito trazido pela parte ou de pedido formulado

contra determinado sujeito do processo. Nenhum desses casos se relaciona à pretensa

violação da coisa julgada extensiva às questões prejudiciais.

Em relação ao julgamento extra petita, a decisão tem natureza diversa ou concede

coisa diferente da que foi pedida, leva em conta fundamento de fato não trazido por

nenhuma das partes, ou atinge sujeito externo à relação jurídica processual. Também não

diz respeito ao nosso trabalho.

Tratando-se do julgamento ultra petita, a decisão considera fatos ou pedidos não

discutidos no seio do processo, ofendendo o contraditório e o devido processo legal. A

104 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,

vol. II, p. 342. 105 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeio: Forense,

1988, v. 3, p. 155 apud DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit., p. 342 106 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,

vol. II, p. 343.

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extensão da coisa julgada, pela crítica, seria enquadrada neste caso, pois “na decisão ultra

petita, o magistrado analisa o pedido da parte ou os fatos essenciais debatidos nos autos,

mas vai além deles, concedendo um provimento ou um bem da vida não pleiteado

(...)”107

(grifo nosso), ou seja, consistiria em dar “coisa que não foi pedida”.

Contudo, devemos encarar o pedido de julgamento da questão principal como um

pedido prejudicado por um pedido anterior. Isto porque, quando a parte apresenta suas

razões, e dentre elas o fundamento da prejudicial, trocando em miúdos diz-se

“considerando que eu sou filho do réu, desejo receber pensão alimentícia”. Não existe

provimento final sem a constatação da relação jurídica que enseja a obrigação. Dos

exemplos já apresentados neste trabalho, fica claro que primeiro se pede que a relação seja

considerada existente, para depois pedir o direito derivado desta relação; ou, como seja

falso certo documento, que a obrigação seja declarada inválida. Não existe um pedido sem

o outro. Ora, se a prejudicial será controvertida, comprovada, e “decidida” pelo juiz para

que possa chegar ao objeto principal, porque não deveria ser considerada julgada?

Não se pretende aqui considerar que o pedido seja implícito ou derivado, mas que

verdadeiramente, há um vínculo de prejudicialidade entre o pedido de julgamento da

questão principal e a questão prejudicial. Nem por isso poderá o juiz tornar coisa julgada a

prejudicial sem notificação das partes (apesar de o art. 514, §1º do novo CPC definir que

todas as questões prejudiciais no seio do processo ficarão protegidas pela coisa julgada,

sem discricionariedade do juiz ou das partes), pois o efetivo contraditório determina que,

mais que nunca, sejam especificamente fixados os pontos controvertidos da lide e

expressamente sejam advertidas as partes sobre a estabilidade da questão prejudicial, para

que se esmiúcem em provas tanto quanto necessário.

7.3.Os problemas de competência e adequação procedimental

Aponta também a doutrina a violação de normas relativas à competência e à

incompatibilidade dos procedimentos mais céleres com um julgamento, que fosse

considerado definitivo, em sede de análise somente incidental. Aponta Leite: “Seria

flagrantemente ilícito estender a autoridade da coisa julgada a pronunciamento emanado de

107 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,

vol. II, p. 344.

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juiz incompetente para conhecer da questão quando veiculada principaliter ou proferido

em procedimento inadequado.”108

O juízo deverá ter competência absoluta para conhecer a questão prejudicada e a

prejudicial; em não tendo, o processo terá somente o conhecimento da questão prejudicial,

e não efetivo julgamento.109

Em relação ao procedimento, se ambas as questões puderem ser processadas no rito

ordinário, não haverá problema; assim como também não haverá se a questão prejudicial

demandar rito sumário e a prejudicada, rito ordinário. Em sendo o rito referente à questão

prejudicial especial, ou exigir a prejudicial rito especial distinto para o adotado para o

processo, entendemos que não deverá ficar coberto pela coisa julgada, sendo analisada

apenas incidenter tantum. A preocupação neste caso se refere à preservação do regime

probatório previsto em lei para discutir a questão, concordando que o prejuízo seria

irreversível.110

Não se pretende estender a autoridade da coisa julgada para questões a respeito das

quais não tenha competência o juiz, ou em não sendo o procedimento adequado. Deste

modo, restringimo-nos a uma certa classe de questões prejudiciais muito intimamente

ligada à relação jurídica discutida, o que garante que não ocorram os desvios previstos,

como o de imprevisibilidade de discussão profunda da questão e inadequação processual

para discussão da matéria. Assim como a ação declaratória incidental foi disciplinada

nestes termos, de ser compatível a competência e o procedimento, pretendemos dar-lhe um

outro enfoque haja vista a extinção da ação em si, supridos contudo seus objetivos pela

extensão da coisa julgada à questão prejudicial, nos moldes do novo art. 484. Entendemos

válida a intenção do legislador e útil o fim de um “novo pedido dentro de um mesmo

processo”: primeiramente, porque não cabe dar arbítrio à parte quanto a isto, pois não pode

querer o provimento final e denegar o julgamento que declare existente ou inexistente a

relação que deu ensejo à obrigação, por exemplo; e segundo porque a inserção do pedido

dentro do processo causa confusão quanto às provas e às alegações, pois nem as partes nem

108 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 126. 109 Como por exemplo em se tratando de ramos do direito distintos, como processo que pretenda declaração

de validade do casamento, tendo em vista suposta bigamia. O crime de bigamia só poderá ser propriamente

apurado em sede de processo penal, de modo que o juiz conhecerá desta questão somente incidentalmente

sem a formação de coisa julgada material. 110 “Não seria razoável atribuir a força de coisa julgada a pronunciamento emitido sobre tal ou qual questão,

em regime probatório diferente daquele que se reputou apropriado à discussão dela. Ter-se-ia escancarado a

porta à fraus legis.” MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 94.

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o juiz conseguem distinguir se estão peticionando/pronunciando-se a respeito da questão

principal ou da questão prejudicial. O mais adequado é a delimitação pelo magistrado da

questão prejudicial a ser julgada em definitivo, de modo que o contraditório ocorrerá

normalmente, em função de todo o campo de discussão da causa, mas estabilizado, desde o

início, que a questão ficará julgada em definitivo, apesar de apresentada na fundamentação

da sentença.

7.4. O problema da morosidade

Nossa argumentação neste sentido já foi extensamente trabalhada nos capítulos

anteriores, de sorte que a questão terá de ser debatida de qualquer maneira, melhor é que o

seja por inteiro, numa medida de cognição exauriente (já que o juízo é competente e o rito

é adequado) e fique estável para garantir segurança jurídica e legitimidade da decisão.

Cabe acrescentar que nos termos em que se apresenta a ação declaratória incidental

no CPC de 1973, o modo de progredir no processo é dificultoso e confuso, o que, na

mesma medida, atrasa o resultado. Esta ação pretendia dar completude ao provimento

jurisdicional e resolver os problemas quanto aos limites reduzidos de coisa julgada, mas só

gerou novos problemas.

Assim, acreditamos que no campo teórico, atrasaria o processo, mas na prática não

haverá prejuízo substancial neste sentido.

7.5. Contradição meramente lógica

Barbosa Moreira enxerga a problemática aqui tratada sob outro aspecto:

Ademais – e aqui se toca no nervo da questão -, o

ordenamento jurídico em regra se esforça ao máximo por evitar a

contradição prática dos julgados, mas não se inquieta no mesmo

grau com a contradição puramente lógica ou teórica. O que a lei

não quer, acima de tudo, é que uma decisão judicial negue a

determinada pessoa o “bem da vida” que outra decisão lhe atribuiu,

ou vice-versa. Em perspectiva diferente, caberia dizer que a “regra

jurídica concreta” disciplinadora de certa relação não pode ter ora

tal teor, ora teor contrário. A uniformidade, por este ângulo, é

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essencial à certeza do direito, à segurança da vida social; e garanti-

la é justamente a função precípua do instituto da coisa julgada.

Que este pronunciamento, entretanto, adote premissas lógicas

incompatíveis com as daquele outro, semelhante eventualidade não

a encara o ordenamento com igual repulsa.111

Primeiramente, o autor desconsiderou a contradição prática que terá diante de si se

a questão prejudicial conhecida num primeiro processo for contrariada por uma decisão

que se dê num segundo processo, que discuta o assunto como causa prejudicial. Também

desconsiderou o autor o desprestígio que tal situação acarreta para a atividade jurisdicional.

A respeito de a contradição ser meramente teórica, e por isso admissível: “tal explicação é

cerebrina e de difícil entendimento para o jurisdicionado”112

, ensinamento de uma clareza

que não precisa ser retocada.

Além disso, a prejudicial não é apenas uma das premissas lógicas que compõe a

motivação da decisão, mas uma premissa necessária à decisão, ligada ao mérito da causa.

Ainda, poderá ser objeto de demanda autônoma, o que significa que, ainda mais grave que

ser contrariada em sede de questão prejudicial em outro processo, poderá ser posta a

máquina judiciária em atividade num processo exclusivamente voltado para rediscuti-la.

A redação do novo CPC soluciona esta problemática satisfatoriamente: já que a

questão prejudicial será decidida com força de coisa julgada, outro processo que perpasse a

mesma questão será obrigado a considerar a premissa nos mesmo sentido que o primeiro

julgamento, e estará obstada a ação autônoma para discutir a causa prejudicial.

Segundo o entendimento de Moreira, a contradição é meramente teórica e absorvida

pelo sistema. Ora, um combate direto entre decisões judiciais que se contradizem não pode

ser classificado como uma “contradição a ser absorvida pelo sistema”. Em sede de controle

legislativo, são postos à disposição remédios legais de controle de normas conflitantes, que

poderão ser revogadas ou revistas. Neste caso, teremos duas normas individuais, criadas

por juízos distintos, que não poderão ser analisadas conjuntamente para resolução do

confronto. Nesta medida, a extensão da coisa julgada atua como uma proteção, um controle

111 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 95/96. 112GIDI, Antonio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos..., ob. cit.,p.

106.

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à produção jurisdicional e assegura necessária referibilidade de uma decisão em relação à

outra.

7.6. Cognição

Argumenta-se que o nível em que se dará a cognição da questão prejudicial poderá

ser insuficiente (porque em sede de questão principal seria mais profunda), de modo que

não seria plausível a formação da coisa julgada sobre a questão.

Primeiramente, teríamos o mesmo problema em ação declaratória incidental. A

solução preconizada era a de possibilitar o pedido de extensão do objeto do processo

somente se compatível o procedimento, que relaciona-se com o tipo de cognição

empregado na lide.

Em sede de procedimento sumário, de jurisdição de conhecimento, aponta a

doutrina que há formação de coisa julgada, enquanto para procedimento de jurisdição

cautelar e voluntária não há.

O procedimento ordinário é, em abstrato, apto à cognição exaustiva de qualquer

tipo de causa, independentemente de seu grau de complexidade. Quanto ao procedimento

sumário e Juizados Especiais, a lei reserva-os para causas que não exijam atividade

cognitiva complexa.

Para a formação da coisa julgada exige-se que não tenha havido restrições às

alegações de certas matérias, ou a produção de certas provas, para que a cognição do juiz

seja suficientemente profunda, e aí sim, possa alcançar a coisa julgada. Assim, em havendo

restrições, entendemos que não pode a questão prejudicial ficar acobertada pela coisa

julgada material, pois teríamos uma estabilidade quase intransponível. Deve ser dado à

parte a oportunidade de propor ação que se esmere na cognição exauriente do ponto

controvertido.

A clássica exemplificação que “demonstra” a inviabilidade da extensão da coisa

julgada fica então rechaçada, pois uma questão prejudicial decidida no âmbito do Juizado

Especial Cível, que traz procedimento simplificado, e limitada instrução probatória, não

poderá, por óbvio, ser considerada definitivamente julgada, a ponto de não poder ser

rediscutida em sede de procedimento ordinário, porque a coisa julgada deve atuar como

garantia para as partes e não como limitação ao seu direito de prova, ou à ampla defesa e

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ao contraditório. Caberá a questão prejudicial acobertada pela coisa julgada, contudo,

quando o procedimento for de cognição exauriente, e apto o procedimento.

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, entendemos que a expectativa social exige que o provimento

seja justo e coerente com princípios de Direito e outras normas individuais concretas, pois

não se pode permitir que provimentos contraditórios coexistam. Como não há meios de se

garantir que a questão, se reproposta posteriormente, em outro juízo, chegaria ao mesmo

resultado, em virtude do pressuposto de que os juízes são humanos e a aplicação do Direito

não é exata, então o sistema precisa se blindar contra incongruências através de

mecanismos objetivos, resguardando deste modo a autoridade do primeiro provimento

judicial na maior medida possível.

Por consistir o processo na construção de um diálogo humano, espera-se que a

aplicação seja mais adaptada à realidade e consentânea à situação concreta, e não uma

aplicação mecânica e isolada. Assim, a elaboração humana traz a vantagem de poder

aproximar-se mais de um provimento substancialmente bom e verdadeiramente aplicável,

de modo que podemos preservar a lógica e a coerência. Neste caso, a produção de normas

jurídicas deve ultrapassar o mandamento de coerência sistêmica aplicada às normas

abstratas e atuar na produção normativa como um todo, englobando os provimentos

judiciais. A permissão meramente formalista de poder rediscutir a questão prejudicial

revela uma lacuna própria de uma regulamentação mecânica e incompleta, que teme

aproximar-se de uma construção muito humanizada e realista e recair na máxima “o juiz

determinará de acordo com o caso concreto”, abertura excessiva e inadmissível em sede de

coisa julgada. Permitir que o arbítrio puro do juiz determine o âmbito da coisa julgada

significa ter que garantir, por outro lado, mecanismos mais fortes de controle desta atuação

judicial, o que também não resolve o problema em questão. Por outro lado, deixar a

extensão da coisa julgada somente a cargo das peculiaridades da causa, e estabelecer a

preclusão da questão prejudicial apenas em um segundo processo se alegada como defesa,

como faz o Direito norte-americano, traz mais insegurança às partes, que “provam tudo o

tempo todo”, temendo a preclusão, sem contar a dificuldade de aplicação dos requisitos já

que nada foi estabelecido na primeira demanda, a respeito do que ficaria precluso e

quando. Neste viés, o Novo CPC se revela como uma disciplina criteriosa da matéria, que

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equilibra os princípios dispositivo e o respeito aos níveis de cognição, grandes

preocupações dos doutrinadores, e a necessidade de uma atuação lógica e coerente do

judiciário.

Isto porque em tempos de considerar-se o cidadão destinatário do Judiciário e do

Direito em virtude do amplo acesso à justiça, da jurisdicionalização da política, da atuação

ativa e maciça do Judiciário na vida das pessoas, esta ciência precisa entrar em sintonia

fina com as necessidades de seu público alvo. O Direito precisa ser substancial, justo, e

atuar como um todo, em uníssono, cada vez mais completo e coerente. No estágio em que

estamos quanto à evolução do Direito Processual, não cabe mais admitir restrições

formalistas excessivas. O modo de ser da prestação jurisdicional é um reflexo da força

política do Estado, e como tal não pode ser facilmente alterada, sem razões suficientes, sob

pena de abalar sua própria autoridade. O judiciário precisa se aproximar das pessoas, e é o

que se tem procurado fazer através da celeridade, da assistência judiciária gratuita, da

conciliação, ou continuará como mera forma, mero escrito, sem contato com a realidade.

Um Direito que não sirva aos seus jurisdicionados, para quê serve?

A atuação estatal só será legítima se for coerente com normas jurídicas e decisões,

que consagram normas individuais, para que se resguarde o poder do Estado e a própria

coercitividade de sua atuação. Se o direito não se realiza ou se os provimentos são

contraditórios, fica subtraída a crença no Judiciário como expressão do Poder do Estado,

que faz cumprir o que determina e decide de acordo com o ethos da sociedade, tornando-se

apenas “o judiciário é uma loteria”. Realizar os valores sociais envolve, acima de tudo,

preservar a segurança jurídica, e através dela provimentos coerentes, que se completem, e

não que se excluam. O processo não é mero instrumento do Direito material, mas ele

próprio precisa ser reflexo da aplicação do Direito material.

Restringir excessivamente a coisa julgada, como nos moldes do CPC de 1973,

desnatura a qualidade da coisa julgada de garantir que o sujeito usufrua de seu direito,

reconhecido pelo Estado, porque abre para novas discussões em juízo e para a eternização

da litigiosidade.

Assim, os termos estabelecidos no Novo CPC respeitam estes valores e garantem

uma definição dos limites objetivos da coisa julgada harmoniosa com os princípios

constitucionais e processuais. Em se firmando um momento único para pontuar os pontos

controversos, e também as questões prejudiciais, o despacho saneador passa a ser, mais que

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nunca, momento oportuno para por ordem ao processo, torná-lo claro para as partes e apto

para a instrução e julgamento.

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399

EXECUÇÃO CIVIL – ENTRAVES E PROPOSTAS1

Leonardo Greco

Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade

Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de

Janeiro; Professor Adjunto de Direito Processual Civil da

Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro.

Quando o tema desta palestra me foi proposto eu fiquei a pensar se os juízes devem

refletir sobre os entraves e sobre as propostas para superar os entraves da execução civil ou

somente sobre os entraves porque as propostas em grande parte dependerão de reformas

legislativas. É verdade que estamos em tempo de reforma legislativa, que é a reforma do

Código de Processo Civil, mas nesta altura parece que o projeto de novo Código de

Processo Civil está numa fase de tramitação em que se delineiam apenas duas alternativas:

ou a redação da Câmara ou a redação do Senado. E a visão que eu tenho de execução vai

muito além do que pode ter sido cogitado na Câmara, no Senado ou na Comissão de

Juristas que elaborou o anteprojeto. Não se trata de uma visão que eu hoje vou exteriorizar

pela primeira vez, movido por um sentimento mesquinho de crítica aos projetadores dessa

reforma, como se ela pudesse ser diferente, movido por uma certa dor de cotovelo porque

eu não participei diretamente da elaboração do projeto. Ao contrário, é uma visão que eu

sustento desde 1999, quando eu prestei o concurso para professor titular da Faculdade

Nacional de Direito e em seguida publiquei os dois volumes do meu Processo de

Execução. Fiz na época alguns estudos e algumas palestras sobre a crise da execução. Tudo

o que eu vou dizer aqui é aquilo que eu venho dizendo há treze ou catorze anos.

1 Texto revisto da palestra proferida em 7 de outubro de 2013 no curso de aperfeiçoamento de juízes da

Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, no qual o autor retoma e atualiza ideias já manifestadas

em estudos anteriores, especialmente no artigo “A crise do processo de execução”, publicado em Temas atuais de Direito Processual Civil, coordenado por César Augusto de Castro Fiuza, Maria de Fátima Freire

de Sá e Ronaldo Brêtas C.Dias, ed. Del Rey, Belo Horizonte, pp.211-286; e no livro do próprio autor Estudos

de Direito Processual, ed. Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes – RJ, 2005, pp.7-88.

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Por outro lado, quero deixar bem claro que, ao dizer que a minha reflexão sobre a

execução vai muito além da reforma que está sendo projetada, eu não estou fazendo uma

crítica àqueles que fizeram ou estão fazendo o novo Código, porque eu entendo que há

certos temas no processo civil, como a execução, como o direito probatório, como as

medidas cautelares, sobre os quais o legislador, quando se dispõe a elaborar um Código,

não encontra uma reflexão madura. Então, ele acaba sendo refém do sistema pré-existente,

ao qual ele introduz alguns aperfeiçoamentos, aqui e ali, preferindo manter a continuidade

da disciplina legislativa anterior a enveredar pelo caminho de tentar formular uma reforma

radical. É o que nós vemos na execução. Não há no Brasil uma reflexão madura sobre a

execução, uma reflexão que leve em conta toda a reflexão que se travou e se trava no

continente europeu e mesmo no direito anglo-americano, porque a crise da execução não é

uma crise exclusivamente brasileira. A crise da execução é uma crise universal.

Quando eu escrevi o meu livro sobre a execução – terminei o primeiro volume em

1999 e o segundo em 2000 –, no primeiro volume eu procurei fazer uma pesquisa no

direito comparado para ver qual era o estado da arte sobre a execução. Se hoje eu tivesse

de reescrever aquele livro – e espero ter de reescrevê-lo porque nas minhas Instituições ele

deverá ser o quarto volume – eu terei de fazer essa pesquisa toda de novo porque de 1999

até hoje praticamente todos os países que eu pesquisei reformaram a execução. A Espanha,

a Inglaterra, a França, Portugal duas vezes – acabou de entrar em vigor um novo Código de

Processo Civil em Portugal no último dia 1º de setembro – reformaram a execução porque

estavam insatisfeitos com a execução anterior.

1. As causas da crise

A verdade é que alguns fatores são frequentemente apontados como causadores da

crise da execução que, como já disse, não é uma crise unicamente brasileira. O primeiro

fator é o excesso de processos: nos grandes centros o crescimento da máquina judiciária

não acompanhou a expansão do número de litígios. E, no caso da execução, essa expansão

teve como uma das causas primordiais a democratização do acesso ao crédito. O sistema

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financeiro se expandiu nos últimos anos de uma maneira espantosa, inclusive dando

crédito a quem não pode pagar, sabendo que não vai pagar no dia em que dá o crédito.

Quando eu entro numa loja de departamentos e vejo ali anunciado que aquela loja

dá crédito para compras a prazo a quem simplesmente apresentar uma carteira de trabalho

com emprego remunerado pelo salário mínimo, é porque ela sabe que 20, 30, 40 %

daqueles que vão comprar a crédito evidentemente não vão pagar. Mas é o giro dos

negócios. A loja tem de financiar, o dinheiro do financiamento tem de sair e depois a

inadimplência vai ser coberta pela taxa de juros dos que pagam. Os que pagam, pagam

pelos que não pagam e o Judiciário vai ser o cemitério das cobranças inviáveis. E a dívida

ativa do Estado é a mesma coisa. Eu vi um número – agora existe a justiça em números no

site do CNJ, que eu não consulto porque na estatística brasileira eu acredito pouco – ouvi

dizer que há um milhão e quatrocentas mil execuções fiscais no Estado do Rio de Janeiro

ou coisa assim, que só aqui na Capital, da Prefeitura, há 900.000 execuções fiscais E

parece que são só dois juízes da Fazenda Municipal, mas também não precisa de mais

porque os processos não andam. Eles estão lá parados, dormindo no cemitério dos cartórios

da Divida Ativa.

O segundo fator desse excesso de execuções é por certo a inadequação dos

procedimentos executórios: o juiz da execução, prisioneiro dos ritos que o distanciam das

partes e da realidade da vida, impulsiona sem qualquer apetite a execução, conduzindo-a

ao sabor dos ventos das provocações impacientes do credor e das costumeiras

procrastinações do devedor.

Outro fator é a ineficácia das coações processuais: o devedor não colabora com a

execução e os meios de pressão que a lei estabelece não são suficientes para intimidá-lo.

Ainda outro fator é um novo ambiente econômico e sociológico: o espírito

empresarial e a sociedade de consumo estimulam o endividamento das pessoas e o

inadimplemento das obrigações pelo devedor deixou de ser vexatório e reprovável. Há

muitos anos atrás, antes da minha geração, ser devedor era imoral, era reprovável, era

vergonhoso. Hoje parece que ser credor é que é vergonhoso. Todo mundo é devedor.

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Mudou o ambiente. Deixou de ser vexatório e reprovável ser devedor e, em consequência,

as ações de cobrança e execuções vão se multiplicando, transformando-se num fenômeno

natural dessa nova realidade econômica.

Um último fator relevante, que é apontado universalmente como obstáculo à

eficácia ou à eficiência da execução é a progressiva volatilização dos bens: mudou

inteiramente o perfil patrimonial das pessoas, antes concentrado em bens de raiz, e agora

tendencialmente dirigido a investimentos em títulos e valores facilmente negociáveis, o

que dificulta a sua localização pelo credor. Se a gente pensar no mundo globalizado de

hoje, transferem-se com um clique no mouse de um computador dinheiro, aplicações de

um país para outro. Ser devedor e ocultar os seus bens se tornou muito mais fácil do que

era antigamente.

2. Características da execução

Para repensar a execução, nós temos de fixar algumas premissas. A primeira é a de

que a execução tem características próprias, que não são as características do processo de

conhecimento. A atividade jurisdicional na execução é inteiramente diversa daquela que o

juiz exerce no processo de conhecimento: pouco tem de intelectual; é atividade

preponderantemente prática, que atua e modifica o mundo exterior, lidando com pessoas e

bens do mundo real, no qual os valores e interesses se apresentam em constante mutação.

No exercício dessa atividade, as decisões que o juiz deve adotar não são ditadas por

critérios de estrita legalidade. É uma falácia continuar pensando que o juiz na execução

não pratique atos discricionários. Ao contrário, o juiz pratica muitos atos discricionários. O

juiz na execução não faz simplesmente a subsunção dos fatos à lei, mas ele elabora juízos

de conveniência e oportunidade, que mais se assemelham às de um operador do mercado,

do que às de um jurista.

Também como processo, a execução difere profundamente do processo de

conhecimento, sendo inteiramente inadequado tentar aplicar-lhe a teoria geral naquele

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inspirada. Claro que há institutos comuns, como os atos processuais, as decisões, os

recursos. Mas, estruturalmente, o que o juiz faz na execução não tem nada a ver com a

lógica da cognição.

Ainda como processo, a execução não é simplesmente uma relação jurídica entre

duas partes, mas dela participam em posições subjetivas específicas muitos outros sujeitos,

titulares de interesses próprios, como o arrematante e os credores concorrentes, interesses

sobre os quais o juiz também tem de velar.

3. Escopos da modernização da execução

Portanto, quais devem ser os escopos da modernização da execução? O desafio que

a execução apresenta ao jurista é o de forçá-lo a abandonar uma atitude meramente

contemplativa e conformista de sistematização exegética do ordenamento existente, em

busca de novos paradigmas que sirvam de fundamentos para construção de um novo

sistema normativo, para que num futuro não distante a execução se torne, dentro do

possível, um instrumento efetivo e célere da mais ampla satisfação do credor, de um lado,

com a menor onerosidade para o devedor, sempre respeitadas integralmente as garantias

processuais dos direitos fundamentais, como o devido processo legal, o contraditório e a

ampla defesa.

Como eu disse há pouco, nos últimos vinte anos, vários países promoveram

reformas na sua legislação relativa à execução civil, reformas profundas, como a França, a

Itália, a Espanha, Portugal. E até o Japão fez em 1979 um Código de Execução Civil. Em

trabalho recente, o jurista japonês Masanori Kawano diz que os escopos de uma moderna

execução seriam: 1º. A definição de um procedimento rápido; 2º. A efetiva satisfação dos

credores; 3º. A garantia da posição dos adquirentes ou arrematantes; e 4º. A garantia dos

direitos fundamentais dos devedores2.

2 Rolf Stürner e Masanori Kawano (eds.), Comparative studies on enforcement and provisional measures, ed.

Mohr Siebeck, Tübingen, 2011, p.11.

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Acho que as reformas que se fizeram no Brasil com as leis 11.232/2005 e

11.382/2006 tiveram um mérito muito restrito: a redução dos exageros das intimações

pessoais e da exigência de penhora para a defesa nos títulos extrajudiciais. Resultado muito

aquém do desejado e do que foi proclamado. Como não há uma reflexão crítica, um debate

permanente e maduro sobre o nosso sistema normativo da execução, o projeto de Código,

cuja elaboração se encontra em curso, o que vai provavelmente fazer será transpor, com

pequenas modificações, o sistema que sobreveio com as Leis citadas.

4. Medidas concretas

Neste ponto da minha exposição, vou começar a tratar de entraves e propostas.

4.1. A descentralização dos atos executórios

O primeiro entrave é a excessiva centralização da execução nas mãos do juiz. O

juiz sentenciador não tem vocação para ser um executor. Afinal, a atividade prática a ser

desenvolvida na execução pouco ou nada tem em comum com o julgamento de litígios

com fundamento em conhecimentos jurídicos.

Quem me despertou para este problema foi Liebman, naquele famoso livro de 1931,

traduzido para o português com o nome de Embargos do Executado, mas que na Itália se

chama opposizione di merito, que explicava que esta execução que nós temos, conduzida

pelo juiz, vem da tradição romano-germânica da execução per officium judicis, mas os

franceses perceberam, ainda no Ancien Régime que o juiz não é um bom executor. Aliás,

executar suja as mãos do juiz e o juiz aristocrata, o juiz que participava daquela casta

senhorial não queria sujar as suas mãos com a prática de atos de invasão do patrimônio das

pessoas, apreensão e arrematação de bens etc. E então os juízes franceses começaram a

delegar essa função para auxiliares, os sergents du roi, aqueles executores, que

participavam da administração também como agentes do rei e esse sistema foi introduzido

no Código de Napoleão – conta Liebman - e quando Napoleão saiu com o Código debaixo

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do braço, montado num cavalo, pela Europa toda fazendo as suas conquistas, implantando

o Código em parte da hoje Alemanha e na Itália, todos gostaram desse sistema em que não

é o juiz que executa. É um auxiliar que executa. E, quando Napoleão foi embora, esses

países conservaram esse sistema de execução descentralizada. Não que a execução não seja

judicial, ela o é, mas o juiz é preponderantemente um supervisor da execução.

Na França, por exemplo, o credor não se dirige ao juiz para executar um crédito.

Ele se dirige ao huissier de justice, que é um oficial de justiça. Ele escolhe um oficial de

justiça como a gente escolhe um tabelião para lavrar uma escritura. “Tome lá; cobre esse

crédito”. E esse oficial de justiça ou tabelião, que é um funcionário qualificado, recebe o

título, verifica se ele se reveste dos requisitos necessários à promoção da execução e intima

o devedor a pagar. Se o devedor não paga, ele lhe penhora os bens e aí comunica ao juiz. O

juiz só toma conhecimento de que a execução foi instaurada depois da penhora. Se o

crédito foi pago, o juiz nem é acionado. Quem escolhe os bens é o oficial de justiça. Quem

apregoa, arremata, aliena os bens é o oficial de justiça. O juiz está acima, à disposição do

oficial de justiça, do credor, do devedor, do terceiro arrematante para qualquer reclamação,

para o reexame de algum ato que o oficial de justiça pratique ou queira praticar, mas o

executor direto não é o juiz.

No direito norte-americano não é diferente. É um sheriff, um executor, um

funcionário especializado nisso. Portugal, que adotava sistema igual ao brasileiro, o

sistema ibérico de origem medieval de execução pelo próprio juiz, em 2007 acaba com a

execução pelo juiz e cria os agentes de execução. No começo houve muita dificuldade, eles

aproveitaram uma categoria que já existia, de menor qualificação, os tais de solicitadores,

e os transformaram em agentes de execução. Hoje o Código português, que entrou em

vigor no último dia 1º de setembro, trata do agente de execução e reitera que quem executa

é o agente de execução, sob supervisão do juiz.

Sem dúvida essa evolução depende de reforma da lei e é preciso formar esse

profissional. O nosso oficial de justiça está preparado para ser esse agente de execução?

Claro que não. Mas a descentralização dos atos executórios é imperiosa. Enquanto nós não

adotarmos essa providência, nós vamos continuar a ter essa execução emperrada,

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estrangulada, porque qualquer questão, por menos relevante que seja, tem de ser decidida

pelo juiz. E o juiz não é necessariamente um especialista naquilo que ele tem de fazer na

execução.

Isso sem falar que hoje o juiz se transformou num burocrata, com a chamada

penhora on-line. Pobre juiz! Há meses um juiz federal me disse que perdia um dia de

trabalho por semana apertando o mouse do computador na efetivação da penhora on-line.

Ouvi há dias no Espírito Santo que lá alguns juízes gastam mais de um dia por semana. O

juiz é um funcionário caro, que percebe um dos mais altos salários do Estado. Nós estamos

empregando toda a massa cinzenta desse juiz para ficar apertando com o dedo o mouse do

computador. Parece que houve até um juiz que foi ao Supremo, arguindo a

inconstitucionalidade da prática da penhora on-line pelo juiz, revoltado por ter sido

reduzido a ser um oficial de justiça. Essa distorção é comumente justificada no sigilo e na

segurança do sistema bancário, mas por que não aparelhar a justiça de funcionários

qualificados e responsáveis para efetuar a penhora on line? Por que tem de ser o próprio

juiz, com a sua senha pessoal? O juiz hoje é um escravo da burocracia da execução, esse

mesmo juiz que vive angustiado com os processos que ele tem de instruir ou em que tem

de dar sentenças, vigiado pelo CNJ com as suas metas irracionais, e ainda absorvido em

parcela relevante do seu tempo numa tarefa puramente mecânica.

Esse problema da descentralização da execução mais cedo ou mais tarde nós vamos

ter de enfrentar e acho que, de imediato, algumas providências podem ser adotadas, como,

nesse problema da penhora on-line, em que o emprego de uma nova tecnologia, em lugar

de melhorar, piorou o sistema em que a penhora, que outrora era sempre feita pelo oficial

de justiça, agora, só porque ela atinge um bem que se encontra acobertado por um certo

sigilo, que, para mim, está em nível bastante baixo nos graus de proteção da privacidade,

passa a ser tarefa exclusiva do juiz. Como se um simples funcionário do banco, que tem

acesso às contas-correntes de todos os clientes tivesse um grau de qualificação tão elevado

quanto de um juiz. Ora, isso é fruto de uma concepção de que a justiça é apenas o próprio

juiz. Ora, não há no nosso tempo nenhuma instituição pública ou privada, racionalmente

organizada, em que toda atividade-fim, toda atividade prática, toda atividade executiva, no

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sentido não de tomar decisões mas de cumpri-las, esteja concentrada na cabeça da

instituição, em que aquele que decide é aquele que executa.

4.2. A localização dos bens do devedor

O segundo entrave da execução é a dificuldade de localização dos bens do

devedor. Esse é um problema universal. Como eu disse, o patrimônio dos devedores

progressivamente se volatilizou. Todos os sistemas processuais modernos estão tentando

enfrentar esse problema. O direito anglo-americano e o direito alemão optam por

mecanismos punitivos, como o contempt of court e a imposição de prisão. O executado,

pelo dever de colaboração, tem de informar onde estão os seus bens e se ele não informa

ou omite a informação de que dispõe, é submetido à prisão. Não é uma boa solução.

Depois de toda a evolução que teve a prisão civil entre nós, acho que não é mais possível

cogitar de prisão civil. Acho que as coações e sanções civis devem ser preponderantemente

patrimoniais.

Mas há alguns problemas que precisam ser equacionados, com os quais o Judiciário

deveria se preocupar. O principal problema é que nós não temos um cadastro nacional de

bens, nem um cadastro nacional de pessoas e, nem mesmo, um cadastro nacional de

processos judiciais. O nosso sistema de registros públicos é estadual. Cada Estado tem o

seu próprio sistema. O único cadastro nacional de pessoas é o da Receita Federal – CPF e

CNPJ. Não há um cadastro nacional de bens de raiz, pois os cartórios de registros de

imóveis não são coordenados e ainda são serviços explorados em caráter privado. O mais

unificado é o de automóveis, que também é usado hoje na penhora on-line. Não existe um

cadastro nacional de processos judiciais. Com toda a informatização que hoje vive a

Justiça, e os milhões de reais que nela são gastos, é impossível saber se um devedor ou se

um contratante é parte em processos judiciais que podem por em risco a execução ou a

eficácia do negócio. As informações atualmente constantes nos sites dos tribunais são

incompletas, enquanto isso o nosso sistema cartorário é totalmente pulverizado. Ninguém

sabe quando a informatização vai conseguir unificar todos esses registros que são

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indispensáveis para que o credor e a própria Justiça possam desvendar a cortina de fumaça

em que pode se ocultar a situação patrimonial do devedor.

Mas acho que há três providencias que poderiam ser adotadas, que dependeriam de

lei, mas que ajudariam muito a resolver esse problema. A primeira seria, como na Espanha,

a criação de juros progressivos. Tem de ficar caro para o devedor ocultar os seus bens e

procrastinar. A procrastinação tem de encarecer a dívida, tem de ser penosa para o

devedor. Nós já tivemos juros progressivos na Justiça do Trabalho até 1987. Aí o Governo

Federal acabou com os juros progressivos porque ele passou, através das suas estatais, a ser

um dos grandes devedores na Justiça do Trabalho.

Outra providência que pode minorar a dificuldade de localização dos bens do

devedor é a indisponibilidade dos bens. É a solução adotada na redação original do código

uruguaio3, denominada de penhora genérica que, aliás, a Lei Complementar n. 118

introduziu na execução fiscal por sugestão minha em palestra que fiz a procuradores da

Fazenda Nacional. Quando se elaborou a Lei Complementar 118, para adaptar o Código

Tributário Nacional á nova Lei de Falências, foi introduzida na execução fiscal a

indisponibilidade dos bens do devedor, caso, citado para a execução, não venha a indicar

bens a serem penhorados. Pelo menos quem está no mercado formal, quem tem conta em

banco, quem tem cartão de crédito, quem usa o caixa automático para sacar o dinheiro

necessário para realizar as despesas cotidianas, vai encontrar o acesso ao dinheiro ou aos

bens bloqueado e aí vai se apressar em indicar bens a serem penhorados, para livrar-se da

indisponibilidade. Essa medida não vai ser eficaz para aquele que está no mercado negro,

na informalidade, mas resolve para grande parte que se encontra no mercado formal.

Outra solução possível, que os ingleses criaram na reforma de 1999, são os pre-

action protocols. Antes de instaurado o juízo, as partes têm o dever de informar uma à

outra tudo o que for relevante para o equacionamento daquela relação jurídica

controvertida. Os pre-action protocols funcionam bem, porque quem não colabora antes

paga muito depois, é posto em situação de grande desvantagem na futura demanda judicial.

3 Art. 380.

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Enfim, é preciso encontrar caminhos. Não são caminhos que dêm a solução

milagrosa para o problema da localização dos bens. O direito português sinaliza claramente

que o juiz precisa ajudar o credor e aqui é preciso distinguir o credor do título judicial do

credor do título extrajudicial, porque o credor do título extrajudicial, se ele é um credor

previdente, quando ele dá o crédito ele já faz o cadastro do seu devedor e já faz o

levantamento dos seus bens, já apura que bens o seu devedor tem. Só não faz isso aquele

que está dando o crédito no balcão da loja de departamentos para qualquer comprador sem

exigir garantia nenhuma. Esse já sabe que provavelmente não vai receber e não pode se

queixar. Ele deu crédito de modo imprudente.

O problema é o credor do título judicial. Este, coitado, foi vítima de um acidente,

atropelado por um caminhão, propôs a ação contra o dono do caminhão. Como é que ele

vai saber, como vai descobrir que bens que tem esse dono do caminhão?

Resolver por inteiro esse problema não é fácil e, até onde eu sei, nenhum país

encontrou a solução milagrosa. Na França, por exemplo, cabe ao Ministério Público

investigar os bens do devedor. Ele devassa todo o patrimônio do devedor e todas as fontes

de informação, ainda que sigilosas e informa ao juiz os bens que são necessários à

execução, quando os localiza. Não tem funcionado bem na prática.

Roger Perrot, na França, sustenta4 que é preciso ajudar o vencedor na procura do

devedor e dos seus bens. O Estado tem o dever de oferecer ao credor todas as informações

sobre o patrimônio do devedor. Ocorre que muitas vezes o juiz, até mesmo por pressão dos

titulares de cartórios, que não querem abrir mão de receber as custas dos seus atos, acha

que o credor o sobrecarrega desnecessariamente quando, ao invés de ir diretamente buscar

as fontes de informação, ele se dirige ao juiz. Mas há fontes de informação que somente

através do juiz podem ser devassadas, como as contas bancárias, as declarações de Imposto

de :Renda etc. Por que antes do ajuizamento da execução ou logo após o juiz não pode

exercer essa função assistencial?

4Roger Perrot, “L’effetività dei provvedimenti giudiziari nel diritto civile, commerciale e del lavoro in

Francia”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, Giuffrè, dezembro 1985, p.849.

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4.3. Desestímulo aos atos protelatórios

Outro grande entrave à execução é a facilidade com que o devedor – e também

muitas vezes o próprio credor – protela a execução. Parece que o princípio da lealdade não

vigora na execução. Há uma tolerância exagerada com a procrastinação.

Aliás, a tolerância é uma característica do juiz brasileiro, característica essa que eu

elogio porque, dos males o menor, é preferível o juiz tolerante ao juiz autoritário. Já o juiz

francês é um juiz autoritário, mas há uma razão cultural de o juiz francês ser autoritário

enquanto o juiz brasileiro é tolerante. É que na França o advogado é credenciado pelos

próprios juízes para advogar em determinado tribunal, o que cria um compromisso de

solidariedade do advogado com a eficiência da justiça. Ele é em primeiro lugar um auxiliar

da justiça e em segundo lugar o defensor dos interesses de um litigante. No Brasil não

existe esse compromisso. Os advogados não se sentem comprometidos com a justiça, como

deveriam. E acho que o patrocínio obrigatório somente sobreviverá no Brasil se os

advogados efetivamente tiverem um compromisso com a boa administração da justiça. E,

então, os juízes sabem que a maior parte dos atos protelatórios é engendrada pelos

advogados e os juízes não punem as partes por eles representadas porque isso faz parte do

jogo. Além disso, o juiz menos tolerante pune a procrastinação uma vez e o tribunal

reforma a sua decisão. Pune a segunda vez e o tribunal de novo reforma. Na terceira vez

ele não pune mais, porque não adianta. E sempre a punição vai ser explorada como uma

possível violação do direito de defesa e do contraditório, pondo em risco a validade do

próprio processo. Então, o nosso juiz é tolerante e melhor o tolerante do que o intolerante.

Mas a verdade é que nós precisávamos ter mais astreintes para coibir o descumprimento do

dever de lealdade, assim como, a meu ver, nós precisávamos ter astreintes no

descumprimento de obrigações pecuniárias, pois hoje nós somente as temos para o

descumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entrega de coisa.

Mas não é somente o devedor que procrastina. O credor também procrastina. A

Fazenda Pública que ajuíza execuções aos milhares, sabendo que não vai encontrar bens,

não se dando nem ao trabalho de procurar os bens do devedor, somente para evitar a

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prescrição, porque ela já esperou a aproximação do limite do prazo prescricional para

ajuizá-las, essa deixa lá as execuções. Os bancos, as instituições financeiras, igualmente.

Como eu já disse, o Judiciário foi transformado num cemitério de cobranças inviáveis. As

instituições financeiras ajuízam essas execuções de créditos diretos ao consumidor,

sabendo que a maioria não vai ter resultado positivo. Ajuízam apenas para, no balanço do

final do exercício, lançar esses créditos de difícil realização como prejuízo, tirando um

pequeno proveito da inadimplência, porque na verdade quem vai cobrir o prejuízo dessa

inadimplência é o outro devedor que paga e, por isso, já arca com juros muito altos. E

ficam aí milhões – não milhares – milhões de execuções paradas que as instituições e o

Fisco ajuízam para sujar o cadastro do devedor, para negativar o nome do devedor, como

se diz vulgarmente. Com a negativação dos devedores, muitos deles ou seus herdeiros, um

dia, vão procurar negociar ou quitar essas dívidas, ou obter a decretação da prescrição, por

iniciativa própria e não dos credores.

Um recente estudo do IPEA sobre as execuções fiscais federais, encomendado pelo

Conselho Nacional de Justiça, revela uma realidade muito triste. Há varas de execuções

fiscais instaladas há mais de oito anos e que não realizaram uma única arrematação. A

penhora de bens se dá em apenas 15% dos casos5. Certamente a máquina que a União

mobiliza para cobrar a sua dívida ativa é mais cara do que o montante que ela arrecada

com essa atividade.

Há uns oito anos atrás eu participei de algumas reuniões de uma comissão no

Conselho da Justiça Federal, presidida pelo Ministro Teori Zavascki, que é um ilustre

processualista, que tentava propor uma reforma da lei das execuções fiscais para resolver

esse problema do volume excessivo de execuções inúteis, que ficam ai somente para

interromper a prescrição e jazer ad aeternum nos cartórios judiciais, sobrecarregando a

máquina judiciária. Essa comissão propôs transferir a interrupção da prescrição para a fase

pré-processual da execução fiscal, na inscrição da dívida, interrupção administrativa da

prescrição, e condicionar a propositura da execução judicial à indicação pelo credor dos

bens a serem penhorados. O Fisco interromperia a prescrição administrativamente e teria

5 Alexandre dos Santos Cunha (coord.), Custo unitário do Processo de Execução Fiscal na Justiça Federal –

relatório de pesquisa, ed. IPEA/CNJ, Brasília, 2011.

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mais cinco anos para procurar os bens do devedor. Ouço dizer que o INSS já tem um

serviço de localização de bens dos seus devedores. Os credores que se aparelhem para

identificar bens dos seus devedores.

Hoje, no direito italiano e no direito português, execução que fique parada por mais

de três meses por falta de bens, se extingue6 e não precisa intimar pessoalmente as partes.

O credor já constituiu o seu advogado. A ele cabe o ônus de acompanhar o seu processo e

de fornecer elementos para que esse processo vá adiante. E se ele não tem elementos, ele

que peça o apoio do juiz para localizar os bens, mas a execução não pode ficar parada,

porque ela é uma atividade prática, coativa, que gera constrangimento para o devedor, que

se justifica apenas na medida em que está sendo movimentada para a efetiva satisfação do

direito do credor. Nem o devedor deve ficar com a espada de Dâmocles sobre a cabeça,

negativado, se ele não tem bens ou se o credor não consegue identificá-los, nem o

Judiciário deve ficar com o ônus da guarda, conservação e cadastro desse volume de

processos que não andam e que, só para tomar conta, exigem um volume imenso de

recursos materiais e humanos. Um custo brutal, pelo qual o Estado não tem de

responsabilizar-se.

Os juros progressivos também ajudariam a resolver o problema da procrastinação,

porque é mais barato não pagar o seu credor e arcar com os juros da mora e eventual

correção monetária decorrentes do retardamento da execução do que ir a um banco e tirar

um empréstimo para pagar o credor. Os juros do banco são muito mais caros. Até o

empresário que fez um negócio que não foi muito bem sucedido e que precisa sair dessa

situação de dificuldade, ele é estimulado a procrastinar a execução em lugar de ir procurar

dinheiro limpo para pagar o seu credor.

O art. 475-J foi uma tentativa de criar um estímulo para que o devedor pagasse

espontaneamente a dívida, impondo-lhe, na sua inércia, aquele acréscimo de dez por cento.

Infelizmente, na minha opinião, ele foi deturpado pela jurisprudência, aliás, porque ele não

foi bem explicado. A exposição de motivos do projeto de lei de que o novo artigo se

originou é um texto de duas páginas para justificar a introdução de mais de uma dezena de

6 Código de Processo Civil italiano, arts. 481 e 497; Código de Processo Civil português, art. 750ᵒ.

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artigos no Código de Processo Civil. A ideia do 475-J era essa, a de criar para o devedor

um estímulo de logo pagar a dívida, assim que a Justiça a definiu, introduzindo uma

vantagem nessa iniciativa, a de não sofrer um prejuízo maior.

O dispositivo acabou sendo interpretado em sentido contrário. Dizia-se que a lei

anterior era muito favorável ao devedor, que tinha 24 horas apenas para pagar ou nomear

bens à penhora e, por essa interpretação, ele passou a ter quinze dias. Aliás, veja-se a

disparidade: na execução de título judicial, em que a certeza, liquidez e exigibilidade do

crédito já foram definidas por sentença, ele ainda tem quinze dias, enquanto na de título

extrajudicial, em que nada disso está definido, ele só tem três (CPC, art. 652). Por que?

Não me perguntem. Criação jurisprudencial. A jurisprudência é assim mesmo. Os

tribunais, nos casos concretos, vão resolvendo as questões que aparecem na sua frente. Não

é a jurisprudência que tem de ter uma visão de conjunto do sistema normativo.

Em Portugal a lei estabelece multa de 5% ao mês, se o devedor, intimado a indicar

bens à penhora, se omitir ou prestar declaração falsa (art. 750ᵒ do novo Código).

4.4. Excesso de execuções inviáveis

Outro ponto de estrangulamento, outro defeito ou entrave da execução, é o excesso

de execuções inviáveis, a que eu já me referi.

O capitalismo moderno transformou o Judiciário em lata de lixo, em cemitério.

Colocou o Judiciário dentro do seu processo de gestão empresarial. A instituição financeira

dá o crédito a quem não pode pagar. Nesses programas populares de financiamento de

moradia, de motocicletas, de utensílios domésticos, pagar não tem importância. O que tem

importância é votar. O sistema financeiro hoje gira em torno dessa psicose, dessa ciranda,

em que o dinheiro tem de ser emprestado, alguém tem de tomar o dinheiro, mesmo que

depois não pague, os juros dos que pagam é que vão cobrir e depois joga para o Judiciário

todo o lixo que sobrou, contrata um escritório de advocacia especializado no contencioso

de massa, que vai empurrando os processos do jeito que pode, e deixa lá. Quando o

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devedor toma juízo ou consegue um dinheirinho e quer pagar, aí faz um acordo e paga

40% da dívida, ou até menos, segundo tem chegado aos meus ouvidos, quando o credor é

uma instituição financeira pública. Somos nós que estamos pagando pela inadimplência e

por esses acordos iníquos.

O Judiciário é o desaguadouro de tudo isso. Não há como solucionar esse problema,

a não ser criando um filtro para o ingresso em juízo. Afinal, qual é a finalidade da

execução, o que o juiz faz na execução? Pratica atos coativos para satisfação do credor. Ele

pode praticar atos coativos se nem o credor, nem o devedor, nem ele próprio juiz localizam

os seus bens? Não pode. Vai praticar atos coativos sobre que?

Os atos coativos são pessoais ou patrimoniais. Os pessoais, que incidem sobre a

vontade do devedor, são de aplicação eficaz em certos tipos de obrigações, como as

obrigações de fazer ou não fazer e de entrega de coisa, mas de pouca valia no cumprimento

de obrigações pecuniárias, porque, de um lado, não podemos aceitar a prisão, e, de outro,

se não existem fontes de acesso às informações sobre os bens, nenhuma atividade prática,

mesmo de natureza patrimonial, pode ter alguma utilidade para a satisfação do crédito do

exequente.

Por que não se estabelece, como elemento componente do interesse de agir na

execução pecuniária, a necessidade de indicação de bens e se dá ao credor a possibilidade

pré-processual e o apoio estatal para ajudá-lo a localizar esses bens, mas não venha o

credor a sobrecarregar inutilmente a justiça enquanto não encontrar os bens do devedor. É

a lógica do projeto da comissão presidida pelo Min. Teori Zavascki. Se precisa interromper

a prescrição, se precisa negativar, que o faça pelo protesto ou outro meio extrajudicial, mas

sem atravancar o Judiciário com papel inútil.

Dentro da mesma lógica, deve-se caminhar para a extinção de todas as execuções

paralisadas por falta de bens, e não simplesmente suspendê-las, como atualmente preconiza

o art. 791 do CPC, permitindo ao credor a sua re-propositura posterior, se for o caso. Nessa

hipótese, não há razão para manter no Judiciário a sobrecarga desses milhares ou milhões

de processos inviáveis, artificialmente pendentes.

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Os portugueses criaram uma outra solução para esse problema do litigante habitual,

em geral uma instituição financeira, estabelecendo que toda sociedade comercial, que

ingressar em juízo no ano anterior com mais de duzentas ações, paga custas mais

elevadas7. Quem usa mais a justiça deve pagar mais pela sua utilização. Quem sabe por

uma revisão dos regimentos de custas se pudesse pensar em tornar mais oneroso o acesso à

justiça daquele que litiga mais, porque, no caso dos títulos extrajudiciais, aquele que litiga

com mais frequência, que se tornou um executor habitual, o faz porque não foi cuidadoso

no momento de conceder o crédito. Alguém poderá retrucar que isso poderá violar o

princípio da isonomia, mas nesse sentido temos pelo menos o precedente de Portugal.

4.5. A competência

Um outro entrave grave à execução é a questão da competência nas execuções de

títulos judiciais ou cumprimentos de sentença. O art. 475-P, introduzido pela Lei

11.232/2005, tentou minorar um pouco esse problema, eliminando aquela obrigatória

vinculação do juízo da ação para a execução, e permitindo que o credor promova a

execução no domicílio do réu ou onde se encontrarem os bens do devedor. É um pequeno

avanço, mas ainda não é o avanço ideal. Em verdade, a regra de competência de foro da

execução tinha de ser a localidade onde terão de desenvolver-se os atos executórios. É ali

que deveria se processar a execução de sentença. Se eu sei que os bens do meu devedor

estão em Petrópolis, eu pego aqui o meu título e o levo a Petrópolis e ali o executo. Os

europeus adotam essa regra de longa data. Quando Chiovenda criou aquela ideia, que

depois nós importamos, da competência funcional territorial, competência territorial

absoluta a que chamou de funcional, ele estava se referindo à execução. A execução tem de

ser onde vão ser praticados os atos executórios. Essa deve ser uma regra de competência

absoluta. Eu digo que o art. 475-P não é suficiente porque, de qualquer maneira, ele

dificulta a especialização de competência para a execução. Se a execução, como regra,

7 V. o art. 530 do novo Código de Processo Civil combinado com o artigo 13 do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-lei n° 34/2008), que estabelece uma taxa de justiça agravada para as sociedades

comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais providências

cautelares, ações, procedimentos ou execuções.

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deve ser processada no juízo que proferiu a sentença, não é possível na mesma área

geográfica criar um outro juízo para promover a execução de sentença. Não é possível criar

varas de execução de sentenças na organização judiciária. Há alguns anos a Justiça do

Trabalho tentou adotar essa providência no Paraná, criando varas especializadas em

execução de sentença, mas a experiência não foi adiante, certamente porque as instâncias

superiores devem ter reputado que essa criação era ilegal.

Na Europa é muito comum a especialização de determinados juízos para processar

a execução de sentença e aí os juízes passam a ter aquela predisposição, aquela perspicácia

para enfrentar com eficiência os problemas e entraves que frequentemente a execução

apresenta. O juiz deixa de ser o sentenciador para pensar na execução. Nesse aspecto é

positiva a nossa experiência das varas de execuções federais, embora ali somente caibam

as execuções de títulos extrajudiciais, porque o juiz passa a conhecer melhor até os

próprios devedores. E quando há várias varas especializadas na mesma região, os juízos

podem se comunicar e traçar orientações comuns, porque frequentemente um credor ou um

devedor transitam por mais de uma vara ou bens de um devedor são penhorados em

execuções diversas em varas diversas.

Quantas vezes o mesmo bem é penhorado em várias execuções e os credores

pensam que estão garantidos, mas o bem não é suficiente para arcar com qualquer delas,

porque o devedor não informa e os juízes não sabem, não colaboram entre si. Eles não

estão preocupados com a execução, pois estão comprometidos com a cognição, tendo de

fazer audiências e proferir sentenças nas ações. Eles não têm tempo para se dedicar à

execução. Jamais serão juízes especializados em execução.

Portanto, a regra de competência para a execução de sentença tinha de ser

reformada. Nós melhoramos um pouco com o art. 475-P, mas não chegamos ainda ao

ideal. A mudança da regra de competência vai permitir a especialização, que hoje já é

possível, mas apenas nas execuções de títulos extrajudiciais.

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4.6. Exagero das impenhorabilidades

Outro entrave da execução é o exagero do direito brasileiro com as

impenhorabilidades. Esse é um alerta que já havia dado em relação ao Código brasileiro de

39 o grande jurista português, José Alberto dos Reis. Ele assim se pronunciou8:

“O sistema brasileiro parece-nos inaceitável. Não se compreende que

fiquem inteiramente isentos os vencimentos e soldos, por mais elevados que

sejam. Há aqui um desequilíbrio manifesto entre o interesse do credor e o do

devedor; permite-se a este que continue a manter o seu teor de vida, que não

sofra restrições algumas no seu conforto e nas suas comodidades, apesar de

não pagar aos credores as dívidas que contraiu.”

A Lei 11.382/2006 quis limitar a impenhorabilidade da remuneração do devedor.

Em vários países desenvolvidos essa remuneração é impenhorável dentro de certos limites,

para assegurar o mínimo existencial, que é aquilo de que o devedor necessita para a sua

própria sobrevivência e da sua família. Mas não tem sentido, por exemplo, no caso de um

jogador de futebol que ganha R$ 400.000,00 por mês, estabelecer que os R$ 400.000,00

sejam impenhoráveis, de modo que ele se locuplete às custas do seu credor, que estará

impossibilitado de receber o que lhe é devido pela falta de outros bens penhoráveis. O

projeto de que resultou a Lei 11.382 quis colocar um limite a essa impenhorabilidade, mas

o Presidente Lula vetou. Agora o projeto do novo Código de Processo Civil está

pretendendo restabelecer um limite de 150 salários mínimos, se não me engano. É justo,

mas acho que ainda é alto.

Outro excesso de impenhorabilidade é a dos instrumentos de trabalho. No Brasil

são impenhoráveis os instrumentos necessários e os instrumentos úteis. A minha caneta de

ouro é um instrumento útil. Por que a minha caneta de ouro não pode ser penhorada? Por

acaso eu preciso de uma caneta de ouro para escrever? Posso usar uma caneta comum. Na

Alemanha a lei até permite que o credor ofereça ao devedor um outro instrumento de

trabalho mais barato para penhorar aquele mais caro. Aqui, não. Basta que o instrumento

8Processo de Execução, Coimbra Editora, 1985, Reimpressão, vol.1, p.384.

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seja útil para impedir que sofra a incidência da penhora. É verdade que essa questão

aparece pouco na jurisprudência, mas é um evidente exagero da lei.

Mas o maior escândalo, na minha opinião, é a Lei 8.009/90, que tornou

impenhorável a moradia da família. O bem não é inalienável. Não se trata de bem de

família, instituído como bem inalienável. O devedor pode vender a moradia, pode deixar a

família na rua, se quiser. Mas o credor não pode penhorar esse imóvel. E o pior é que a

jurisprudência entende que se trata de uma nulidade absoluta, ou seja, mesmo que o

devedor silencie, deixe penhorar a moradia para, nas vésperas da arrematação, alegar que

aquele bem é impenhorável, a jurisprudência acolhe essa alegação. Ele fez a chicana, foi

desonesto. Impossibilitou o credor de indicar outro bens que, nessa altura, possivelmente

não mais existem. No mínimo essa nulidade deveria ser relativa. Se o bem não é

inalienável, não é indisponível, e o devedor não embargou ou impugnou a execução

alegando essa impenhorabilidade, por que agora vai ele ter o direito de excluir esse bem da

execução, deixando o credor a ver navios? Muitas vezes entre a penhora e a alienação

judicial houve um intervalo de meses ou até anos e então o credor não vai encontrar outros

bens.

Eu não deveria contar a história que ouvi no Norte-fluminense a respeito da origem

da Lei 8.009. Mas vale recordar que ela foi originária de uma medida provisória editada

pelo Presidente Sarney, invocando a relevância e a urgência da matéria. Ouvi contar que

ela teria sido editada para beneficiar um usineiro endividado, porque alcançou até os

utensílios domésticos, os cristais do devedor. É claro que a jurisprudência, nesse ponto,

tem espancado um pouco, tem retirado certos exageros. Assim, se o devedor tem na

moradia duas televisões, uma pode ser penhorada. Mas um dos maiores males

procedimentais que a Lei 8.009 criou foi que agora o oficial de justiça não quer fazer mais

a penhora portas adentro. Como é que ele vai fazer a penhora portas adentro se os

utensílios domésticos são impenhoráveis? Ele devolve o mandado e é o credor que vai ter

de descobrir que o devedor tem dentro de casa duas televisões ou duas geladeiras, requerer

o desentranhamento do mandado para o oficial de justiça voltar ao local e efetivar a

penhora. Continuamos protegendo demais o devedor.

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4.7. Má disciplina da fraude de execução

Um outro grande problema da execução, que eu acho que chega a fazer parte do

chamado risco Brasil, é o tratamento que a nossa lei confere à fraude de execução. Como

eu já disse, nós não temos um cadastro nacional de pessoas, um cadastro nacional de bens

de raiz e um cadastro nacional de processos judiciais. Qualquer pessoa que compre um

imóvel hoje corre o risco de amanhã ser surpreendido por uma ação anterior contra o

alienante em qualquer ponto do território nacional, que vai colocar a sua aquisição em

fraude de execução. Ele tomou todas as cautelas, tirou todas as certidões negativas do

alienante, não apareceu nada nos registros de distribuição de ações, e o bem que ele

comprou e pagou integralmente é atingido pela penhora por dívida do alienante que ele

desconhecia.

Aí a jurisprudência, posta diante de um dilema cruel, porque uma desgraça dessas

pode acontecer com qualquer um de nós, vai em busca de uma solução de equidade.

Quando credor é a Caixa Econômica Federal ou o Bradesco, o juiz se sente muito

confortável de adotar uma solução de equidade. A Caixa Econômica ou o Bradesco não

vão ficar mais pobres por não receberem esses créditos. Se o terceiro adquirente adotou

todas as cautelas na hora da aquisição, cabe ao credor exequente demonstrar que esse

terceiro tinha conhecimento da ação que pendia contra o devedor. Ora, essa prova é

diabólica. É uma prova impossível. De onde vai ele poder extrair uma ilação ou indício de

que o terceiro adquirente sabia que o alienante devedor tinha uma ação ou execução em

Xique-xique?

O resultado prático é o seguinte. A jurisprudência salva o coitadinho do terceiro

adquirente, que comprou o bem de boa fé, com as pequenas economias que com sacrifício

amealhou em toda uma vida de trabalho árduo, e de repente se viu surpreendido com a

penhora desse bem numa execução que não é contra ele, e castiga o credor, que perde a

possibilidade de receber o seu crédito legítimo. Ou, se aplicar rigorosamente a regra de

que, ajuizada qualquer ação contra o devedor que possa reduzi-lo à insolvência, torna-se

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ineficaz a alienação a terceiro de qualquer dos seus bens, irá castigar o coitadinho em

benefício do credor.

Enquanto isso, num ou noutro caso, o verdadeiro fraudador, o criminoso que foi o

devedor alienante, porque fraudar a execução é crime, que, tendo uma ação contra ele

alienou os seus bens para frustrar o pagamento do que devia ao credor, que vendeu os seus

bens ocultando que tinha essa ação, esse saiu livre, não acontece nada com ele. Eu nunca vi

alguém ser processado ou condenado por esse crime, expressamente previsto no art. 179 do

Código Penal.

Esse é um problema muito sério. O que eu devo dizer aos meus alunos? Olhem, não

comprem nada sem tomar todas as cautelas e sem saber muito bem de quem vocês estão

comprando. Procurem saber se o vendedor é uma pessoa honesta. Procurem saber se ele

tem negócios em outros lugares, em outras praças. É muito precário.

Como resolver esse problema? Tendo pelo menos um cadastro nacional de

processos judiciais. Ocorre que o Judiciário brasileiro não é uma única instituição. São 27

justiças estaduais, 24 justiças do trabalho, mais 5 regiões da justiça federal. Enquanto isso

não mudar, na fraude de execução sempre um inocente vai pagar pelo criminoso.

Criar um cadastro nacional de processos judiciais não depende de lei processual,

mas é preciso que haja um órgão nacional capaz de articular as informações de todas essas

distintas e autônomas organizações judiciárias. O CNJ não tem perfil para isso. Não tem

perfil na sua composição, que é uma composição instável, com conselheiros detentores de

mandatos temporários, e não foi criado para isso. Nós precisamos ter um órgão nacional

responsável por uma política pública nacional de administração de conflitos. Na Europa

são os Ministérios da Justiça que cuidam disso. No Brasil, não é o Ministério da Justiça

porque nós adotamos o modelo americano de auto-disciplina e auto-controle da

magistratura, de administração da justiça pelo próprio Judiciário. Se nós tivéssemos uma

única estrutura judiciária, isso se resolveria dentro do próprio Judiciário, mas nós temos

mais de cinquenta organizações judiciárias independentes. E precisa também de dinheiro e

de força coativa para impor a homogeneização da implantação dos planos de coleta e

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veiculação de dados dos processos num sistema único. Nós conhecemos o esforço e as

dificuldades que o CNJ e o STJ vêm enfrentando para a informatização do processo

judicial.

Além disso, existe um outro problema não menos sério na fraude de execução. É

que aquele terceiro que teve o seu bem penhorado e que agora vem para esta execução para

tentar salvá-lo, no Brasil ele somente pode intervir para alegar o motivo que possibilitaria a

não incidência da penhora sobre o bem, mas ele não pode discutir a dívida. Eu já sustentei

isso no meu livro sobre Execução e é assim no direito europeu, em que o terceiro que

intervém porque teve o seu bem penhorado passa a ser sujeito passivo da execução, porque

ele está tendo a sua esfera patrimonial invadida pela execução. Ele tem o direito de discutir

o crédito do exequente. De repente, o crédito do exequente está prescrito ou está pago, até

por ele mesmo, às vezes. De repente o crédito do exequente não é bom, não tem aquele

valor. De repente ele descobre outros bens do devedor que podem ser penhorados. Não,

aqui os embargos de terceiro somente podem tentar retirar o bem e aí fica, muitas vezes,

aquela duplicidade do cônjuge, que tem de oferecer embargos do devedor para impugnar a

execução e embargos de terceiro para livrar da penhora a sua meação ou os seus bens

reservados.

E o que não é cônjuge, que não tem meação, ele somente pode tentar retirar o bem,

provando que ele não foi alienado em fraude de execução. Mas o crédito do exequente é

bom? Todo aquele que tem os seus bens sujeitos à execução tem o direito de discutir se o

crédito do exequente é bom.

4.8. Excesso de títulos executivos extrajudiciais

Outro grande problema que temos na execução no Brasil – e isto porque as nossas

instituições políticas são muito reféns do sistema financeiro, que tem argumentos ad

terrorem de que precisa de segurança de recebimento dos seus créditos dos seus devedores,

sob pena de elevação dos juros – é que nós temos um rol de títulos executivos

extrajudiciais absurdamente exagerado.

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Vocês se lembram daquela jurisprudência do STJ sobre os contratos de abertura de

crédito, que até resultou numa súmula do STJ9 dizendo que o contrato de abertura de

crédito não era título executivo? Poucos dias depois de o STJ ter editado aquela súmula, o

Presidente da República da época, se não me engano era o Presidente Fernando Henrique

Cardoso, editou a medida provisória que criou a cédula de crédito bancário., que nada mais

é do que um contrato de abertura de crédito.

Num título executivo, a certeza do crédito resulta em primeiro lugar da literalidade

do título, do valor do crédito que tem de estar expresso no título. Se o valor que está

expresso no título não é aquele que o banco está cobrando, o título na se reveste da

necessária certeza da existência do crédito que o credor pretende exigir. A apuração do

valor do crédito deve ser antecedido de um procedimento cognitivo.

Outro título exagerado é a confissão de dívida assinada pelo devedor com duas

testemunhas. Vocês já viram alguma testemunha ter assistido alguma coisa numa confissão

de dívida por instrumento particular? São testemunhas de nada. Se chamar essas

testemunhas em juízo para depor, elas não viram nada e não sabem de nada. E esse papel,

que o devedor assinou e muitas vezes nem leu, é título executivo, porque o sistema

financeiro, nos seus contratos, precisa ter instrumentos bem eficazes de receber os seus

créditos, quer ter garantias sólidas na justiça, embora, como eu já disse, o sistema

financeiro dê muitos empréstimos para quem não pode pagar.

O que nós precisávamos ter, e todos os sistemas europeus seguiram esse caminho,

seriam procedimentos sumários de cobrança de créditos documentais, sumários

documentais tout court ou monitórios, se quiserem.

Nós criamos uma ação monitória inútil, ou alguém tem dúvida do que eu estou

dizendo? Eu nunca propus uma. O único beneficiado é o réu. Se pagar não vai responder

pelas despesas processuais. Mas se contestar, o processo segue o rito ordinário e a

9 Foi a Súmula nᵒ 233.

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execução vai ser igual a qualquer outra. Isso sem falar nas controvérsias doutrinárias. Se

aquele mandado é título executivo, se é judicial ou extrajudicial etc.

Fizeram uma ação monitória copiando o direito italiano que hoje – me desculpem -

não pode mais nos servir de modelo. Aliás, Calamandrei em 1926 já havia feito severa

crítica ao modelo italiano de ação monitória10

. Contrariando aquela regra de sabedoria

difundida pelo Prof. Barbosa Moreira, que criticava o achismo de se avaliar um instituto

pela opinião vulgar dos que o utilizam na prática, eu afirmo categoricamente que a nossa

ação monitória é imprestável. No início da sua instituição, foi usada para cobrar faturas de

cartão de crédito. Não sei se hoje ainda subsiste essa prática. Parece-me que caiu em

completo desuso. Suscitava muitas controvérsias e nenhum benefício para o credor.

O que proponho é uma ação sumária documental. O credor apresenta um

documento, que não é título executivo. O devedor, se não quer pagar, também pode

produzir prova documental. Se ele quiser produzir alguma outra prova que o juiz considere

relevante, este julga a causa com base apenas nos documentos apresentados pelas partes e

ressalva ao réu o direito de ir perseguir uma decisão diversa num procedimento de

cognição exaustiva subsequente. Mas o réu terá de pagar mais advogado, mais despesas do

novo processo, mais sucumbência, risco que ele assumirá somente se sentir que tem uma

boa chance de reverter a decisão tomada com base nos documentos, o que raramente

acontece.

Não se pode dizer que a sentença nesse procedimento sumário documental não faça

coisa julgada, mas que é o que os alemães chamam de uma condenação com reserva. O

devedor, que foi condenado com base em documentos, vai pensar duas vezes antes de

propor uma nova demanda, porque ela é muito custosa. Ele vai reavaliar se realmente tem

alguma chance de sair vencedor com alguma outra prova, chance de ilidir aquilo que

resultou do exame da prova documental, que nós sabemos que, no mundo em que vivemos,

é uma prova muito forte. É a prova principal. Hoje nada se faz sem documentos. O

10 Piero Calamandrei, “Il procedimento monitorio nella legislazione italiana”, in Opere Giuriche, vol. IX, ed.

Morano, Napoli, 1983, pp. 3-156.

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documento invadiu as relações humanas, até para comprar um cafezinho, porque as

relações se travam entre anônimos, e onde não há confiança esta é substituída pelo papel.

Portanto, seria preciso criar um procedimento cognitivo sumário documental e

acabar com esse entulho de títulos executivos extrajudicias, de papéis que não têm

nenhuma credibilidade e que colocam o credor logo numa posição de vantagem porque ele

de imediato penhora os bens do devedor. Isso está absolutamente errado e, a meu ver, viola

a própria garantia do devido processo legal.

4.9. Os defeitos da liquidação

Apesar das alterações legislativas ocorridas nos últimos vinte anos, nós não

conseguimos encontrar uma solução satisfatória para os problemas da liquidação. A Lei

8.898/94 acabou com a liquidação por cálculo e depois a Lei 11.232/2005 transferiu a

liquidação para o processo de conhecimento. Eu mencionaria alguns pontos de

estrangulamento na liquidação, que precisariam ser equacionados e que são entraves de

difícil solução.

O primeiro é que aquilo que nós entendemos que seja crédito que não dependa de

liquidação e que dependa de simples cálculos aritméticos, mas que, com frequência,

depende de informações e documentos que não estão facilmente acessíveis. Nesse caso, a

Lei 11.232/2005, no novo artigo 475-B, criou aquele mecanismo pelo qual o credor

provoca o devedor ou terceiro para fornecer os dados ou documentos necessários à

elaboração do cálculo. Esse problema de não ter o credor os dados para fazer cálculos é um

problema bem brasileiro por causa dos planos econômicos, para coibir com tratamentos de

choque a inflação galopante, com todas aquelas tabelas de correção monetária, expurgos

inflacionários e indexação de obrigações. Tudo isso criou uma parafernália de dados e

informações complexas. Sob esse ponto de vista, o mecanismo da lei é um mecanismo

primário, porque a lei diz que se o devedor não fornecer os dados, a execução vai se

processar pelo valor que o exequente indicou e muitas vezes o credor vai extrair esse valor

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de onde, se ele não teve os dados? Mas a penhora vai se efetuar com base no valor

reconhecido pelo contador que, normalmente, também não tem esses elementos.

O legislador quis acabar com o procedimento da liquidação por cálculo e acaba se

instaurando um contencioso informal, numa fase que lei nenhuma regula, até que o juiz

chegue a alguma conclusão razoável sobre o valor que vai servir de base à execução. Essa

dificuldade mostra que o ideal é que tivesse havido cognição sobre esse valor, cognição

efetiva, sob contraditório, e que a sentença não fosse ilíquida nesse sentido de depender de

cálculos aritméticos complexos e de dados e documentos que não foram objeto de

cognição, porque aí se instaura uma nova controvérsia sobre esses dados e documentos.

Nos juizados especiais a lei estabelece que a sentença tem de ser líquida. O juiz tem de

exercer cognição válida e exaustiva não só sobre o an debeatur, mas também sobre o

quantum debeatur. Em muitos países não existe liquidação. O juiz, numa cobrança de

crédito pecuniário, tem de chegar a uma sentença que quantifique.

Tentou-se isso na Lei 11.232/2005, exigindo, em algumas ações de indenização por

acidente de tráfego de rito sumário (art.475-A, § 3º.), que a sentença fosse líquida, mas

dizendo que o juiz fixaria de plano esse valor. Como é que o juiz vai decidir de plano

lucros cessantes e danos emergentes, por exemplo? Semelhante solução simplista deu a

reforma do Código de Processo Penal quando mandou que a sentença condenatória

criminal fixasse um valor de indenização da vítima. Aquilo é um mínimo de uma

indenização, mas quantificá-la em toda a sua extensão, é absolutamente impossível fazê-lo

de plano.

Eu venho dizendo sempre isso, que o exagero das liquidações decorre, em grande

parte, de comodismo dos advogados, que não observam o artigo 286 do Código, que exige

que o pedido seja certo e determinado, e então optam por pedidos indeterminados,

apostando no acordo. O advogado acena para um possível valor alto, apenas para assustar o

réu, não quantifica nada e se empenha em resolver a demanda por acordo. Se tiver êxito,

ótimo. Mas também é comodismo dos juízes que não policiam se o pedido está

determinado e mandam prosseguir. Por que criar um incidente logo ao despachar a petição

inicial, para o autor emendá-la? Muitas vezes o autor não se preparou e vem então com

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uma petição que continua não definindo nada e vai dar mais trabalho. É melhor seguir em

frente nesse processo de conhecimento. Se não houver acordo, ele chega a uma sentença

ilíquida e depois começa tudo de novo na liquidação, quando tudo isso deveria ter sido

objeto de uma cognição adequada e conclusiva.

Poderia criar-se o mecanismo da sentença parcial, que em muitos países existe e

alguns autores até sustentam que agora, a partir da Lei 11.232/2005, nós teríamos

contemplado, mas me parece preferível que o juiz decida primeiro o an debeatur e, tendo

feito instrução sobre o quantum debeatur, também o defina desde logo. Seria conveniente

reduzir a necessidade de instaurar um procedimento subsequente somente para quantificar

a condenação, retardando indefinidamente o desencadeamento dos atos coativos da

execução.

Mas também é preciso mudar a postura dos profissionais do direito, criando

condições para o advogado faça uma petição inicial mais bem fundamentada, mais

consistente, mais objetiva; e tornando mais vantajoso para o juiz deixar de ser um simples

despachador de papéis para tirá-los de cima da mesa ou da conclusão do processo

eletrônico, para chegar numa sentença líquida, o que é bem melhor do que deixar esse

valor indeterminado.

Eu tenho visto, na minha experiência de advogado, muitas sentenças que não

deveriam sequer receber esse nome, porque são verdadeiras sentenças condicionais, que

não geram nem a certeza do an debeatur. “Se ficar apurado na liquidação que ocorreu tal

fato, condeno”, esquecendo do parágrafo único do art. 460 que estatui que a sentença deve

ser certa, mesmo quando decida relação jurídica condicional. Hoje estamos vivendo essa

situação, em matéria de tutela coletiva com mais frequência, com a prolação da sentença

condicional. Isso é um defeito grave, mas que vem se repetindo, na verdade postergando

para a liquidação o próprio acertamento da existência da obrigação, o que se torna de mais

difícil solução. E não me perguntem como ficam os encargos da sucumbência se na

liquidação se apurar que o direito do autor não existe.

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Em resumo, eu sou favorável à obrigatoriedade da sentença líquida. Eu sei que isso

exigiria que se repensasse o próprio procedimento da jurisdição de conhecimento. Exigiria

que o autor talvez tivesse de anteceder a sua petição inicial daquele procedimento

preparatório, que os ingleses adotam, para colher dados e informações mais precisos, para

já poder quantificar o valor pecuniário da postulação, porque nós estamos retardando a

efetividade da prestação jurisdicional. O que adianta obter uma sentença que não é

exequível? E que depois, na hora de apurar o quantum debeatur ou vai ter de passar pelo

procedimento do arbitramento da liquidação por artigos ou vai ficar naquele bate-bola em

que não se sabe que valor executar. Uma execução que deveria estar aparelhada está na

verdade totalmente desaparelhada, porque já surgiram n polêmicas, antes da instauração da

execução, a respeito do quantum debeatur.

Um outro defeito da liquidação é o de o devedor nela não poder alegar defesas de

mérito. Às vezes o devedor acha que não deve, que o título tem defeitos gravíssimos, que

ele já pagou ou que prescreveu a execução do crédito ou que ocorreu superveniente

compensação, todas matérias que ele poderia vir a alegar na execução, mas que não pode

alegar em liquidação. Tem o Judiciário de continuar a apurar o quantum debeatur de uma

dívida que não existe. Por que o devedor não pode antecipar logo na liquidação a alegação

de questões prejudiciais à própria apuração do valor da dívida? Ele pode fazer essas

alegações na fase de conhecimento e na fase de execução, mas não pode fazê-lo entre uma

e outra, na liquidação.

4.10. Defeitos da avaliação e da arrematação

Outra deficiência da execução é a avaliação, a sua precariedade, que foi ainda mais

agravada com a reforma processual de 2005/2006. Há muitos países em que na execução

não existe um ato processual específico de avaliação dos bens. Na minha opinião é o juiz

ou o agente de execução que, com a sua experiência de mercado, deve fixar a base de valor

mínimo dos bens penhorados para aqueles dois conhecidos efeitos, ajustar a penhora ao

valor da dívida e servir de lanço inicial na arrematação.

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Ela foi criada entre nós no século XVIII para atender aos interesses da Coroa de

propiciar um meio de vida a alguns nobres, como era costume que fossem criadas as

serventias de justiça na monarquia portuguesa. O rei não pagava salários aos nobres. Ele

lhes dava empregos, que eram remunerados pelos súditos que faziam uso dos seus

serviços. Foi assim que nasceu a avaliação em 1774.

Hoje com a informática, qualquer um de nós, se precisar comprar ou vender um

bem, tem acesso na rede mundial de computadores a uma série de sítios que fornecem os

valores de quase todos os bens que existem no mercado. Em minutos se obtém a estimativa

de qualquer bem. Essas informações, acessíveis a qualquer cidadão, podem indicar ao juiz

com bastante precisão, o valor dos bens penhorados. A avaliação por um perito ou um

especialista em determinado mercado, e não por um oficial de justiça, deveria ficar para

grandes e complexos patrimônios e, muitas vezes, mesmo nesses casos, essas avaliações

feitas por pessoas ou instituições altamente qualificadas não chegam a valores

inquestionáveis ou que sirvam para efetivar a sua justa alienação numa hasta pública.

Mas para o dia a dia das execuções comuns não é preciso tal formalismo. O juiz ou

o executor, se existir, deveria bater o martelo, depois de ouvir as partes numa audiência,

comunicando-lhes as informações que colheu e decidindo o valor dos bens para os efeitos

previstos.

Avaliações mal feitas, como as que frequentemente encontramos, acabam sempre

colocando uma das partes em posição de vantagem sobre a outra e influindo no incentivo

ou desestímulo a terceiros para que se disponham a vir concorrer na arrematação.

A avaliação puramente arbitrária e sem qualquer fundamentação promovida pelo

oficial de justiça, que não é um conhecedor dos mercados dos diversos bens e não revela se

fez uso das modernas fontes de informação que estão hoje acessíveis, acaba viciando a

futura alienação, ainda mais se adotado o sistema, acolhido na reforma de 2006, de

adjudicação do bem pelo credor antes da arrematação. Eu sou inteiramente contrário à

adjudicação antes da arrematação. A hasta pública é um direito do devedor, que não pode

ficar sujeito a perder os seus bens pelo arbítrio do credor. Ninguém desconhece que a

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arrematação atualmente entre nós está viciada, está comprometida pelos chamados ratos de

leilão, mas vamos analisar porque isso acontece.

Em primeiro lugar, porque a avaliação não é correta. Em segundo lugar, porque

nós, cidadãos comuns, quando desejamos comprar um bem, a última coisa em que

pensamos é compra-lo numa arrematação. Suponhamos que eu queira comprar uma casa e

que me sejam oferecidas duas absolutamente iguais, uma a ser vendida num leilão judicial

e outra diretamente do proprietário, com toda a documentação e todas as certidões

negativas. Qual das duas eu vou querer comprar? Eu vou arriscar de talvez comprar mais

barato numa arrematação? Para que? Para depois haver embargos de arrematação, o bem

ficar bloqueado, eu não poder extrair a carta de arrematação e me imitir na posse do

imóvel, mesmo já tendo depositado integralmente o preço, e ainda ficar sujeito depois a

uma ação anulatória da arrematação, que pode durar anos e que pode me levar a perder o

bem?

Quando aquele autor japonês, Masanori Kawano, que eu citei no início, disse que

uma das finalidades da execução é garantir os direitos dos adquirentes ou arrematantes,

isso deve ser levado a sério. Na arrematação os interessados não são apenas o credor e o

devedor. Se o Estado quer atrair as pessoas de bem, as pessoas que na sociedade procuram

travar negócios seguros, para virem concorrer à alienação judicial, para que a hasta pública

represente, como preconizado, a venda do bem pelo preço justo de mercado, o Estado tem

de dar segurança a quem compra na arrematação. Porque se não der segurança ao cidadão

comum, somente vai concorrer à arrematação o aventureiro, que vai participar da

arrematação como se estivesse entrando num jogo, um jogo de risco, em que pode ganhar

ou perder. Mas ele não entra numa só arrematação porque ele está especificamente

interessado na aquisição daquele bem, ele entra em vinte arrematações e arremata em

quinze. Se ele teve prejuízo em cinco, o preço baixo, muito inferior ao valor de mercado,

que ele pagou nas outras dez compensou com folga o que ele deixou de ganhar nas outras

cinco. E por que ele arrematou em quase todos os leilões por preços muito abaixo do valor

de mercado? Porque aqueles que teriam interesse em adquirir esses mesmos bens com

segurança não participaram dos leilões porque não se dispõem a enfrentar os seus riscos.

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A consequência é que a arrematação é o campo onde realizam negócios arriscados,

mas bastante vantajosos, os aventureiros, os ratos de leilão. Isso é o que normalmente

acontece.

Esse mecanismo está apodrecido e precisa ser reformado, não sendo suficientes as

alterações introduzidas pela Lei 11.382/2006 no sentido de não comprometer o resultado

da arrematação caso sejam julgados procedentes os embargos do executado (art. 694, caput

e § 2ᵒ) e de permitir a desistência pelo arrematante em caso de embargos à arrematação

(art. 694, inciso IV). É preciso revalorizar a arrematação, dando ao arrematante a garantia

de que a compra do Estado é o meio mais seguro de aquisição e que não pode ser desfeita,

nesse ou em qualquer outro processo, salvo por vício muito grave do próprio procedimento

licitatório, e não da execução ou da cognição que a antecedeu. E é preciso estimular os

juízes ou executores, se houver, a fazerem um diagnóstico realista em relação a cada

espécie de bem a ser arrematado e a partir desse diagnóstico, determinarem procedimentos

mais propícios a atraírem o interesse do mercado. A flexibilização do art. 690, também

introduzida pela Lei 11.382, ainda é insuficiente, porque há muitos bens que não

comportam uma venda por preço justo com depósito inicial rígido de 30% ou que para

obterem o preço justo precisam associar a venda a um empreendimento de maior vulto, que

envolva outros sujeitos e contratos.

4.11. Oralidade

Neste ponto entra em jogo uma outra questão importante, que eu de certo modo me

sinto constrangido de comentar com juízes. É que precisava haver audiência na execução.

As duas principais decisões que o juiz toma numa execução pecuniária, que são penhorar

os bens e transformar esses bens em dinheiro, ele deveria tomar conversando, dialogando,

porque são decisões de mercado. Se eu for vender alguma coisa eu vou conversar para

saber quanto vale o objeto e quais são as condições do mercado, para saber qual é a melhor

maneira de vendê-lo. Mas o juiz para vender o que não é dele, publica um edital e em geral

nem comparece no dia da arrematação para ver o que aconteceu.

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A audiência oral é necessária, porque nem sempre o bem que se apresenta como

preferível, de acordo com as prioridades da lei, será o que vai alcançar o melhor preço na

alienação, que deve procurar satisfazer amplamente o credor, com o menor prejuízo para o

devedor. E porque nem sempre a melhor maneira de vender é a arrematação ou a

arrematação à vista.

Eu estou de acordo que a arrematação, apesar de constituir um direito do devedor,

possa em muitos casos não ser o caminho ideal, mas para chegar a essa conclusão o juiz

precisa conversar, dialogar, encontrando para cada caso a melhor maneira de transformar

os bens em dinheiro.

O executor ou o juiz especializado em execução acabaria, ele mesmo, engendrando

esses mecanismos alternativos, conheceria as pessoas a quem consultar para obter as

necessárias informações, para talvez aproximar o credor e o devedor de outros sujeitos,

como agentes financeiros, que pudessem estudar a viabilidade de empreendimentos ou de

investimentos associados à venda judicial, e não simplesmente vender os bens penhorados

na bacia das almas, como todos temos consciência de que ocorre atualmente.

Mas, reitero, por outro lado, é preciso dar ao arrematante ou investidor a necessária

segurança. Francesco Carnelutti já dizia isso em seu Processo di Esecuzione, em 193211

.

Não sei se foram bem compreendidas as inovações nesse sentido da Lei 11.382, no sentido

de que é preciso tornar a eficácia da arrematação invulnerável aos riscos do próprio

processo. Se o processo é inválido por quaisquer outros motivos, que não seja a invalidade

do próprio ato de alienação, essas invalidades de citação, de procedimento, de avaliação,

invalidade por ineficácia do título executivo, tudo isso não pode contaminar a validade da

arrematação, porque quem compra do Estado em juízo, tem o direto de comprar com a

maior segurança possível, não pode ficar sujeito aos riscos da validade da execução ou do

alguma formalidade que eventualmente não foi cumprida.

11 Francesco Carnelutti, Processo di Esecuzione, vol. 3, ed. CEDAM, Padova, 1932, p.140.

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4.12. Tutelas específicas

Outra questão que eu quero trazer à tona é o de que o legislador, no intuito da

simplificação, criou um vazio normativo inconveniente, que é o que aconteceu com o

cumprimento de sentença nas execuções de obrigações de fazer e não fazer e de entrega de

coisa.

Por meio da chamada tutela específica, os artigos 461 e 461-A desprocessualizaram

essas execuções. É verdade que as antigas execuções de obrigações de fazer, não fazer e

entrega de coisa do Livro II do Código eram extremamente burocratizadas. Imaginem o

artigo 621 que estabelecia que o devedor, na execução para entrega de coisa, seria citado

para em dez dias, entregar a coisa ou, depositando-a em juízo, oferecer embargos. Ora,

alguém vai depositar a coisa se entende que não é direito do credor exigi-la? Depositar

onde? E se a coisa for uma criança, porque, me desculpem, mas também é uma execução

de entrega de coisa a busca e apreensão de um menor. Enfim, o procedimento dessas

execuções era inadequado e então as Leis 8.952/94 e 10.444/2002 acabaram com esses

procedimentos nos títulos judiciais, não há mais um procedimento legalmente previsto, e

em substituição foram criadas as regras da tutela específica, ou seja, o juiz conduz essas

execuções como ele quiser.

Sim, o juiz conduz a execução como ele quiser, mas vamos ao bom senso. O que

faz um juiz democrático, respeitador das garantias do processo (contraditório, ampla

defesa), se ele recebe um título que impõe ao devedor que entregue uma coisa diferente de

dinheiro ou que cumpra uma prestação consistente numa atividade humana, numa obra?

Ele intima o devedor para em determinado prazo entregar a coisa ou fazer a obra. Mas isto

não está no artigo 461. Ainda no art. 461-A, há pelo menos a menção à intimação do

devedor para entregar a coisa.

E o direito de defesa do devedor nessa execução? Ele não tem direito de defesa? A

lei não prevê. Eu escrevi um artigo sobre isso12

. Essa é uma execução imediata, uma

12 Leonardo Greco, “A defesa na execução imediata”, in Revista Dialética de Direito Processual, n° 21,

dezembro de 2004, ed. Dialética, São Paulo, pp.96-105.

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execução desprocessualizada. A lei trata dos atos coativos, estabelece o procedimento da

multa, mas não diz quando o devedor exerce o direito de defesa. Indagado, como co-autor

do projeto de que se originou a tutela específica, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira

justificou que não era necessário prever a oportunidade de defesa do devedor nessa

execução, porque se o devedor não concordar com alguma ordem que o juiz lhe endereçou,

ele pode se dirigir ao juiz e pedir para revogá-la e se o juiz não a revogar ele pode interpor

um agravo de instrumento no tribunal.

Ora, o contraditório e a ampla defesa devem ser prévios, devem anteceder as

decisões judiciais e não instaurar-se a posteriori, salvo nos casos de insuperável urgência.

E o direito de defesa do devedor, então, se limita apenas a impugnar aquilo que o juiz já

decidiu? E será que o contraditório em segunda instância é suficiente para assegurar a

eficácia plena da garantia constitucional? Não, não é. A Corte Europeia de Direitos

Humanos já decidiu que o respeito pleno às garantias fundamentais do processo nas

instâncias recursais não supre a sua insuficiência nas instâncias inferiores. Contraditório

amplo é prévio. Contraditório amplo é desde a primeira instância. Ademais, a partir de que

momento deve o devedor interpor o agravo: desde o conhecimento da decisão que o

prejudica ou da decisão do pedido da sua revogação? Não está nada previsto.

A tutela específica se desprocessualizou demais, aumentou a insegurança jurídica e,

o que é pior, expandiu o espaço do arbítrio judicial, porque no artigo 461, § 5º a lei permite

que o juiz adote todas as medidas necessárias. Portanto, estamos aparentemente diante de

um poder dado ao juiz de adotar as medidas coativas que julgar adequadas, mesmo que não

previstas em lei. Ora, se estamos no plano das coações, meios de pressão indiretos para

induzir o devedor a cumprir a prestação, essas coações fazem parte do direito sancionador

e devem ter previsão legal. Se a execução é de natureza sub-rogatória, porque a obrigação

é fungível, o juiz pode sim adotar as medidas necessárias para que outrem cumpra a

obrigação, porque o conteúdo dessas medidas não difere do conteúdo do cumprimento

voluntário da obrigação pelo próprio devedor. Se a execução não é sub-rogatória, porque a

obrigação é personalíssima, infungível, a coação vai ser exercida diretamente sobre a

vontade do devedor. Qual é o limite do arbítrio do juiz em engendrar, em criar medidas de

coação sobre a vontade do devedor? Ele pode prender o devedor? Luiz Guilherme

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Marinoni13

e Marcelo Lima Guerra14

diziam que sim. Ele pode proibir o devedor de falar?

Ele pode impedir o cantor de usar o seu violão? Qual é o limite?

A multa também gera controvérsias até hoje. Qual é o seu dies a quo e qual é o seu

dies ad quem, se for multa periódica? Teoricamente a lei parece bem estruturada, porque

ela permite a ampliação e a redução da multa, da astreinte, mas na sua implementação

prática há grande insegurança. Até hoje não se sabe com exatidão qual é o termo inicial da

multa. Na minha opinião, é o decurso do prazo para o cumprimento espontâneo da

prestação, a partir do momento da intimação do devedor para esse cumprimento. Acho que

é um direito fundamental de qualquer devedor de qualquer prestação ser previamente

intimado para ter uma última oportunidade de cumprimento espontâneo. Isto é

humanitário. Mas a lei é omissa. Eu tenho visto casos em que tribunais superiores

aumentam a multa e fixam o termo inicial de fluência retroativamente. O termo inicial da

multa tem de ser o momento do decurso do prazo para o cumprimento espontâneo da

prestação, sabedor o devedor desde então do valor da multa.

Temos, portanto, uma anomia na tutela específica que precisa ser corrigida.

4.13. Iniquidade da execução contra a Fazenda Pública

Eu já estou quase chegando ao fim, mas não posso deixar de fazer uma referência à

execução contra a Fazenda Pública. Vou começar pelo mais simples. Nós ainda

entendemos, de um modo geral, que todos os bens da Fazenda Pública são impenhoráveis

porque inalienáveis. A meu ver, este é um erro jurídico a partir do advento do novo Código

Civil de 2002, que estabeleceu que são inalienáveis os bens públicos de uso comum do

povo e de uso especial, ou seja, os afetados a uma destinação pública, mas que os bens

dominicais do Estado são alienáveis na forma da lei.

13 Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória (individual e coletiva), 4ª ed., Revista dos Tribunais, São

Paulo, 2006, pp. 233-238. 14 Marcelo Lima Guerra, Execução indireta, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, pp. 242-246.

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Parece necessário, destarte, fazer de início uma distinção. Há bens públicos

inalienáveis por natureza, que são os bens de uso de todo o povo, como as praças, as ruas,

as praias; e os bens que o Estado ocupa, utiliza no exercício das suas funções. Mas aqueles

bens que o Estado possui como qualquer cidadão comum, que não estão afetados a uma

finalidade pública, nem são de uso da população, esses são alienáveis, cabendo à lei

regular a forma da sua alienação. E a lei veio e regulou a forma da sua alienação. É a Lei

dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001), seguida da Lei dos Juizados Especiais

da Fazenda Pública (Lei 12.153/2009), prevendo que, nas condenações de pequeno valor,

os chamados RPVs, a execução não depende de precatório. Portanto, nos juizados federais,

em condenações de créditos até sessenta salários mínimos, transitadas em julgado as

sentenças, o juiz oficia à Caixa Econômica Federal e esta em sessenta dias tem de

depositar. E se não depositar a lei expressamente prevê o sequestro do valor da

condenação. O que é esse sequestro senão uma penhora do dinheiro público, seguida da

sua expropriação e entrega ao credor em pagamento do seu crédito? Nos juizados da

fazenda pública estaduais, as disposições da lei são análogas. É claro que sempre a

Fazenda Pública poderá discutir se esta ou aquela verba poderá ser sequestrada porque tem

uma destinação específica, como o pagamento dos salários dos professores, mas esse é

outro problema. O fato é que o dinheiro público não está mais absolutamente livre da sua

apreensão e expropriação para pagar credores do Estado.

Por que não se aplicam essas mesmas regras a qualquer execução contra a Fazenda

Pública, mesmo fora dos juizados especiais? Naquela comissão em que cheguei a

participar junto ao Conselho da Justiça Federal, uma das propostas era essa. Introduzir um

artigo ou um parágrafo depois do atual art. 731 do Código, estabelecendo justamente isso:

se a execução contra a Fazenda Pública for de valor não superior a sessenta salários

mínimos ou outro limite de dívida de pequeno valor, a Fazenda será intimada para em 60

dias pagar, sob pena de sequestro do dinheiro. E acho que isso é perfeitamente factível pela

aplicação analógica das regras dos juizados. Por que nos juizados até esse limite se executa

independentemente de precatório. Aliás, a previsão da dispensa de precatório nos créditos

de pequeno valor é da Constituição. Basta aplicar a redação atual – muito infeliz por sinal

– do artigo 100 da Constituição, com as regras das leis dos juizados. Acho que esse arsenal

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normativo já é suficiente para o pagamento sem precatório de quaisquer créditos de

pequeno valor.

Mas existe o resto, o que excede o limite do pequeno valor. E o resto eu costumo

dizer que é o capítulo mais triste da execução, o capítulo dos precatórios. E aqui eu quero

dizer que acho que o Judiciário é muito culpado. Porque o Judiciário não faz valer a sua

autoridade. Eu sempre me recordo de uma expressão de Pedro Lessa, que para mim foi o

maior ministro do Supremo Tribunal Federal. Pedro Lessa foi um grande ministro, que não

tinha medo do Governo, que recorria à doutrina americana e ali extraia os princípios do

moderno constitucionalismo, esclarecendo o verdadeiro significado da separação de

poderes e os limites de cada um deles. Foi ele que relatou e concedeu em 1911 aquele

famoso habeas corpus – cuja decisão o Governo não cumpriu – em favor dos intendentes

do Conselho Municipal do Distrito Federal, cujo exercício ele impôs por ordem judicial

contrária à decisão do Governo, invocando a violação da liberdade de locomoção, porque

os funcionários estavam impedidos de ter acesso ao local de exercício dos seus cargos. Não

havia mandado de segurança na época. Ele assim decidiu por habeas corpus. E o Governo

mandou uma mensagem ao Congresso Nacional comunicando que não iria cumprir a

ordem do Supremo Tribunal Federal, que seria inconstitucional, porque o provimento em

cargo público não era matéria afeta à liberdade de locomoção tutelável por habeas corpus.

E o Supremo abaixou a cabeça, menos Pedro Lessa, que divulgou no seu famoso livro

sobre o Poder Judiciário o voto que proferiu no Tribunal, citando a doutrina americana,

segundo a qual num sistema de separação de poderes de primado do Judiciário, como é o

americano, e como é o nosso que naquele se modelou, o Judiciário é o único juiz dos seus

próprios limites15

. O Judiciário tem de ir, nas suas relações com o Executivo, até onde for

necessário para dar efetividade às suas decisões, para exigir o seu cumprimento. E a

separação de poderes não é obstáculo, porque a separação de poderes serve à eficácia dos

direitos fundamentais e não se sobrepõe a ela. Entre os direitos fundamentais está o direito

de acesso à justiça, o direito à tutela jurisdicional efetiva de todos os direitos. A Corte

Europeia de Direitos Humanos, no famoso caso Hornsby, também já afirmou, em 1997,

que tutela jurisdicional efetiva não é só o poder de dar sentenças, mas é também o poder de

15 Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1915, pp.298 e ss.

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executá-las. Se o Judiciário não for capaz de executar as suas decisões, ele não cumpriu a

sua missão constitucional.

E, voltando a Pedro Lessa, o juiz é o único juiz dos limites em que ele tenha de

proceder à invasão da esfera da administração pública para dar efetividade ao cumprimento

das suas decisões.

Para esse fim, os italianos criaram a figura do commissario ad acta, que é um

preposto do juiz16

. Claro que o juiz, quando tem de cumprir uma decisão judicial,

especialmente uma condenação pecuniária, tem de dar um prazo para o Estado pagar,

porque o Estado pode não dispor de verba naquele momento ou estar com os seus recursos

comprometidos. Ele dá um prazo – trinta dias, sessenta dias – para o Estado pagar ou

explicar ao juiz porque não pode pagar. Ele, juiz da execução, é que é senhor da

procedência dos argumentos do Estado para não cumprir a decisão judicial. E ele juiz,

então, se a justificativa for legítima, concede ao Estado um prazo mais longo ou um modo

diverso de cumprimento, mas também impõe ao Estado que se esforce para cumprir o

julgado, deixando de efetuar gastos supérfluos com publicidade, com jatinho ou

helicóptero para o transporte de seus dirigentes, por exemplo. É o juiz que determina de

que modo o Estado deverá agir para cumprir a condenação. Se o juiz se convence de que o

Estado não tem motivo legítimo para deixar de pagar, ele nomeia um preposto para ocupar

o lugar do administrador e praticar o ato administrativo omitido. Até se discutiu, na Itália,

se esse preposto, que substitui o administrador, age como administrador ou como auxiliar

da justiça, o que ficou definitivamente esclarecido pelo art. 21 do Codice del processo

amministrativo de 2010, que o definiu como um auxiliar da justiça, sendo os seus atos de

responsabilidade do Judiciário. Isso acontece na Itália, que tem problemas de

descumprimento de decisões judiciais pela Administração semelhantes aos nossos.

Evidentemente, na Inglaterra, na Alemanha, na França, a Administração normalmente

cumpre as decisões judiciais, independentemente de qualquer coação. Já na Espanha, na

Itália, a realidade é análoga à nossa. Os administradores muitas vezes fogem das suas

responsabilidades.

16 V. Clarice Delle Donne, “L’esecuzione: il giudizio di ottemperanza”, in Bruno Sassani e Riccardo Villata

(a cura di), Il codice del processo amministrativo – dalla giustizia amministrativa al diritto processuale

amministrativo, ed. G. Giappichelli, Torino, 2012, pp. 1276-1283.

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Portanto, o que quero dizer é que se o Judiciário no Brasil fosse composto de

Pedros Lessa, isso já estaria resolvido há mais de cem anos. Mas infelizmente não está

resolvido até hoje. De que adiantaram os dez mil pedidos de intervenção federal no Estado

de São Paulo ou mais de mil no Rio Grande do Sul, rejeitadas pelo Supremo Tribunal

Federal a partir do conhecido voto da Ministra Ellen Gracie, fundado na reserva do

possível e na inconveniência de castigar os Governadores atuais pelas omissões dos seus

antecessores?

Sim, temos de encontrar uma solução, que concilie o interesse público em cumprir

o Estado todas as suas outras missões constitucionais como educação, saúde, segurança

etc., com o interesse público de cumprir as decisões judiciais. O Judiciário no Brasil é

culpado - e ao falar assim tão claramente não estou responsabilizando individualmente

nenhum juiz – mas afirmando que o Judiciário como um todo é culpado desde a data

daquele triste julgamento do Supremo Tribunal Federal em que este aceitou que o

Executivo, por um motivo qualquer, pudesse resolver não cumprir uma decisão judicial, ou

seja, desde a primeira vez em que o Executivo colocou um obstáculo ao cumprimento da

decisão da Justiça e o Judiciário se curvou.

A verdade é que o precatório nos âmbitos estadual e municipal, sem falar nesses

imorais parcelamentos – eu mesmo subscrevi como advogado uma petição inicial de ação

direta de inconstitucionalidade contra um deles17

– não é levado a sério, porque as

administrações públicas não têm qualquer pudor de deixar de colocar verbas no orçamento.

E o pior é que o Judiciário hoje aceita ser ator de uma pantomima que são os mutirões de

conciliação dos precatórios. Não sei se isso já existe no Estado do Rio de Janeiro, mas

existe em Minas Gerais e chegou aos meus ouvidos que também existe no Espírito Santo.

O Estado não põe no orçamento anualmente as verbas para pagamento das condenações

que chegaram à Presidência do Tribunal de Justiça até 1º de julho do ano anterior, mas ele

entrega ao Judiciário uma verbinha para que o Tribunal promova conciliações por meio de

leilões. Em Minas Gerais, cujas normas conheço18

, a Presidência do Tribunal publica um

17 Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2356 de 2000. 18 V. a Resolução Conjunta TJMG/SEF/AGE n. 1/2011, entre outras disposições que regem a matéria, in

http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/rc00012011.PDF.

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edital e convoca todos os credores que estão na fila para que aqueles que quiserem

participar indiquem o percentual do seu crédito que aceitam receber. Quem propuser 100%

não vai receber nunca. Como a verba é pequena, os mais necessitados vão propor 50, que é

o deságio mínimo permitido. E aí, a Presidência do Tribunal chama para pagamento a

partir dos credores que aceitaram o menor percentual, até se exaurir a verba dada de

esmola pelo Governo. O Judiciário se submete a isso. Quem duvidar do que eu estou

dizendo, entre no site do Tribunal de Minas Gerais. Numa palestra no Espírito Santo, há

dias atrás, fui informado de que o mesmo ocorre lá.

Então, o Governador fica bem com o Judiciário. Em vez de ser por ele pressionado

a cumprir a Constituição, confia ao Judiciário o patrocínio da própria violação da

Constituição, porque conciliação – vamos colocar os pingos nos ii – é boa entre iguais. E é

boa quando existe por trás uma justiça que, se eu não quiser participar da conciliação, ela

vai tutelar efetivamente o meu direito, se eu tiver razão. Mas, quando eu tenho certeza de

que a justiça não vai tutelar o meu direito, conciliação é entregar o cordeiro ao leão. É

entregar o mais fraco nas mãos do mais forte.

Sim, é sabido que aqui em Campos e em outros municípios que possuem a receita

dos royalties do petróleo, é comum o município chamar os credores para um acordo

administrativo propondo-lhe o pagamento mais rápido com algum deságio. O DNER

também fez isso. Quem não quiser fazer acordo, espera até o ano seguinte e recebe

integralmente o seu crédito na fila dos precatórios. Mas chamar para a conciliação com a

ameaça de não pagar? E, o que é pior, burlando a ordem de preferência que está na

Constituição. Não interessa mais a ordem cronológica dos precatórios, o que interessa é o

percentual proposto: quanto menor, maior é a chance de receber. Isto está se fazendo hoje

no Brasil, com a cumplicidade do Judiciário e os aplausos entusiásticos do CNJ, conforme

notícias veiculadas no seu portal na internet. Isso não pode acontecer.

Muito bem, se o Judiciário hoje quiser enfrentar corretamente o problema, vai

procurar o Governador e junto com ele tentar encontrar uma solução para o acúmulo de

anos de precatórios não pagos, com respeito à ordem de preferência. Não vai conseguir

resolver em um ano, então vai resolver em cinco ou em dez anos, cada ano o Estado

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colocando na verba própria um pouco mais do que manda a Constituição, mas trabalhando

para regularizar definitivamente esse problema.

Eu gostaria que vocês pensassem sobre o que eu vou dizer. Vocês já perceberam

que as condenações judiciais são as únicas despesas previsíveis que o Estado faz sem

previsão de despesa. O Estado elabora todo ano o seu orçamento para o ano seguinte. Ele

tem um número de funcionários públicos que vai trabalhar no ano de 2014. Eles ainda não

trabalharam em 2014, mas o Estado em 2013 tem de prever que no ano de 2014 vai ter de

gastar determinada quantia para pagar a remuneração desses funcionários. Ele tem de

prever que terá de executar uma obra, uma ponte em 2014. Então, em 2013 ele vai colocar

no orçamento verba, porque ele não vai poder fazer a licitação, nem adjudicar a obra, se

não tiver o dinheiro para pagá-la. A condenação judicial foge à regra. Ela é a única que

somente entra no orçamento depois do vencimento da dívida. Será que com os brilhantes

administradores financeiros que nós temos, o Estado, baseando-se na experiência dos

últimos anos, não poderia fazer uma previsão de despesa com condenações judiciais que

permitisse que no ano de 2014 fosse consignada no orçamento a verba necessária para

pagar essas condenações que vão surgir no próprio ano de 2014 ou vão transitar em

julgado em 2014. Isso é o que o Judiciário tinha de exigir. Independentemente de resolver

o passado, vamos evitar que o problema continue a existir no futuro. Quando o Estado faz

uma previsão de despesa para o ano seguinte e ela é excedida, a despesa efetiva é muito

maior do que a prevista, ele vai ao Parlamento e pede um crédito extraordinário, um

crédito especial, e faz a despesa. Aliás, alguns desses créditos, em certos limites, já estão

previstos na própria lei orçamentária elaborada no ano anterior. Isso é absolutamente

possível fazer. A constituição de um fundo público ou a inclusão de verba no orçamento

por previsão de despesa são exequíveis e, no entanto, nós estamos dando de ombros com

esse problema, tentando remediá-lo ou minorá-lo com mutirões de conciliação, que são

verdadeiros calotes, absolutamente iníquos.

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4.14. A insuficiência da defesa do devedor

O tempo já vai avançando e eu quero fazer um comentário sobre uma outra questão,

que eu tangenciei há pouco, que é a questão da defesa do devedor na execução. Vocês

conhecem melhor do que: embargos do devedor, embargos da primeira fase, embargos da

segunda fase – parece que os da segunda fase vão agora desaparecer no projeto de novo

Código -, impugnação ao cumprimento de sentença. Nós não conseguimos escapar de uma

lógica inteiramente equivocada de tratar a execução como se fosse uma ação de

conhecimento, continuando a manter a técnica, que vem da Idade Média, de que o devedor,

depois de citado, tem de defender-se em um determinado prazo. Não, na execução o

devedor não precisa ter prazo para se defender, porque a execução não é uma jurisdição de

sentença, que visa à prolação de uma decisão conclusiva sobre o direito material das partes.

Toda vez em que a lei estabelece que o devedor tem de defender-se em determinado prazo,

ela está criando uma dificuldade para o exercício da defesa fora de tal prazo. E aí vem a

exceção de pré-executividade, antes ou depois. No direito europeu, a solução mais

acertada, a meu ver, é a seguinte: o devedor pode se defender a qualquer tempo na

execução, mesmo porque na execução a defesa de mérito do devedor é uma verdadeira

ação de conhecimento incidente, porque na própria execução a atividade cognitiva é

apenas instrumental e, portanto, superficial, somente para verificar a certeza, liquidez e

exigibilidade do crédito, a legitimidade das partes e a validade dos atos executórios.

Na verdade, há dois tipos de defesa do devedor na execução. Ou ele se defende da

dívida, do direito material ou ele se defende da validade do processo de execução. Se ele

quer se defender da validade da execução, aí sim, ele deve ter prazos, mas não um só

prazo, comum, mas ele deve ter prazos contados da prática de cada ato executório, porque

de cada um poderá surgir uma impugnação, decorrente de uma nova invalidade ou

nulidade. Então, seria justo que o devedor tivesse cinco ou dez dias para impugnar

qualquer ato executório, imediatamente após a respectiva intimação. Mas para se defender

da dívida, ele não deve ter prazo nenhum, ele deve poder defender-se sempre: antes, com

uma ação anulatória da dívida; durante com uma ação incidente que pode ter qualquer

nome, como embargos, impugnação ou oposição; e depois, com uma ação de repetição do

indébito, sujeitas todas aos normais prazos prescricionais.

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Qual é a lógica perversa? Se se estabelece um prazo peremptório, fatal, comum

para as defesas processuais e de mérito, se o devedor naquele prazo se omitir, será que ele

terá de sujeitar-se a ficar sem defesa durante todo o processo de execução? E, o que é pior,

pode-se extrair do fato de ele não ter se defendido, ou deixado de usar um determinado

argumento, a conclusão perversa, mas que boa parte da doutrina adota, da preclusão pro

judicato, ou seja, de que transitou para ele em julgado a possibilidade de alegar matérias de

defesa, como no processo de conhecimento, em que, segundo opinião dominante, pelo

princípio da eventualidade, ressalvado o direito superveniente e as questões de ordem

pública, tudo o mais preclui se não for alegado na contestação?

Isso me parece de uma lógica tão simples, tão clara, mas os nossos legisladores, na

ânsia da celeridade, em todas as reformas, incidem nesse mesmo erro. Citar o devedor e

dar-lhe quinze dias para se defender. E depois? O projeto do novo Código tenta minorar o

problema, permitindo a impugnação avulsa de qualquer ato subsequente, com agravo de

instrumento contra a decisão que resolver a questão. Melhora, mas ainda fica a dúvida

sobre a preclusão pro judicato, ou seja: será que o devedor, que não se defendeu no prazo

de embargos, ou que se defendeu, mas não alegou todas as matérias que poderia, depois de

esgotada a execução, poderá ele propor ação de repetição do indébito alegando um

fundamento de direito material que foi omitido nos embargos?

Para os que defendem essa preclusão, o devedor, sem ter proposto ação nenhuma

num prazo exíguo de 10 ou 15 dias, perde nesse exíguo prazo o direito de exercer essa

pretensão em qualquer outra ação, que somente prescreveria em três, quatro ou cinco anos.

Vejam, então, que também quanto à defesa do devedor nós estamos caminhando

muito devagar e ainda vamos ter vazios defensivos que vão ter de ser preenchidos por

outros meios. A exceção de pré-executividade é esse instrumento sem nome, sem previsão

legal, para dar plenitude de defesa ao devedor, mas aí vem a jurisprudência, como sempre

mais preocupada com a quantidade do que com a qualidade, e somente a admite por

matéria de ordem pública. E eu pergunto: pagamento é matéria de ordem pública?

Pagamento não é matéria de ordem pública, mas se o devedor atravessar uma petição com

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o recibo de pagamento, o juiz não vai extinguir a execução? Claro que vai. E prescrição de

direito patrimonial, é matéria de ordem pública? Continua a não ser, apesar de hoje o juiz

poder decretá-la de ofício. E o juiz vai deixar de decretar a prescrição? A jurisprudência

acertadamente criou a válvula de escape, que é a exceção de pré-executividade, mas em

seguida, ela mesma se assusta com o alcance que ela pode ter e acaba por cerceá-la e, com

isso, cerceando a própria amplitude da defesa constitucionalmente recomendada.

E sempre vai ficar a dúvida, que demorará anos para se resolver, se ocorrerá a

chamada preclusão pro judicato, nos casos de falta de alegação no momento próprio de

defesas de direito material.

4.15. Não exaustividade da execução provisória

Feito todo esse percurso, eu quero concluir com mais um ponto, que eu não resisto

ao ímpeto de examinar, que é a questão da não exaustividade da execução provisória. Nós

insistimos em que a execução provisória não pode levar aos atos de alienação do domínio,

a não ser que o devedor preste caução, salvo em algumas restritas exceções que foram

recentemente criadas pela Lei 11.232/2005 (CPC, art. 475-O, § 2ᵒ), de alimentos e certas

indenizações por ato ilícito. Nós nos queixamos que temos excesso de processos e excesso

de recursos. Uma das grandes causas do excesso de recursos é que os recursos que têm

efeito suspensivo não têm efeito suspensivo. Ou seja, na realidade, não adianta o recurso

legalmente não ter efeito suspensivo. Se o credor instaura a execução, quando chega a hora

de transformar os bens em dinheiro, ele tem de parar. Ou então, ele, que já não recebeu o

que lhe é devido, tem de desembolsar uma quantia equivalente ao que ele não recebeu, ou

imobilizar um patrimônio de valor corrrespondente, para dar em garantia e poder levar o

bem penhorado à arrematação. Mas aí vêm os puristas e dizem: se a decisão não transitou

em julgado, não podem ser praticados atos irreversíveis. O Prof. Giuseppe Tarzia, da

Universidade Católica de Milão, recentemente falecido, em estudo publicado na nossa

Revista de Processo19

trouxe ao debate dessa questão um argumento que me parece

19 Giuseppe Tarzia, “Problemas atuais da execução forçada”, in Revista de Processo, ano 23, nº90, abril-

junho de 1998, pp. 68 e ss.

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irrespondível. Num bom sistema processual, em que o tribunal ou o relator no tribunal em

que o recurso está pendente pode sempre dar efeito suspensivo ao recurso cautelarmente,

num juízo positivo de probabilidade de que o recurso seja provido, como hoje é

perfeitamente possível no Brasil, graças ao art. 558 do CPC e a outras disposições, a

execução provisória pode e deve ser exaustiva. Ela não deve mais ficar sujeita ao bloqueio

dos atos de alienação do domínio porque o devedor, que já perdeu em todas as instâncias,

vai continuar recorrendo só para procrastinar, porque sabe que o credor, mesmo que

penhore os seus bens, não vai poder levá-los à arrematação, não vai poder concluir com

proveito a execução. Nós não precisamos mais ter execução provisória com limitação dos

atos de alienação do domínio, porque, se a qualquer momento, na véspera da arrematação,

houver alguma probabilidade de o recurso ser provido, o executado se dirige ao relator do

recurso e mostra que está prestes a perder o bem e obtém o efeito suspensivo do recurso e a

arrematação é suspensa. Esse foi um erro que nós cometemos na interpretação do Código

de 73. Havia uma súmula do Supremo Tribunal Federal, na vigência do Código de 39,

segundo a qual a execução na pendência do recurso extraordinário era definitiva. Essa

súmula caiu por força da doutrina mais qualificada20

, para a qual, tendo o Código de 73

estabelecido que a execução na pendência de recurso sem efeito suspensivo é provisória,

não é mais possível entender que na pendência de recurso extraordinário ela seja definitiva.

Pensem na Fazenda Pública. Quem mais recorre para os tribunais superiores é a Fazenda

Pública, recorre sabendo que vai perder, só para protelar, porque a execução provisória não

é exaustiva. E a isso se soma a redação infeliz do atual artigo 100 da Constituição, que se

refere ao trânsito em julgado como pressuposto da execução contra a Fazenda, o que

muitos consideram um pressuposto inafastável a estimular essa série infindável de recursos

protelatórios.

5. Conclusão

Depois de todo esse longo e cansativo percurso, só me resta agradecer a paciência

que os senhores e especialmente o Desembargador Paulo Baldez, que me acompanhou

20 V. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 16ᵃ ed., Forense, Rio

de Janeiro, 2012, pp. 284-286.

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nesta mesa, tiveram de ouvir esta extensa exposição; agradecer também profundamente a

honrosa oportunidade que me deram de fazer esta pregação em favor da reforma da

execução e concluir lhes dizendo que, se a crise é profunda, não menor deverá ser a

reforma. Se para nada servirem estas ideias, eu me contento que elas possam vir a

despertar ou a renovar nos senhores e, quem sabe, também em outros mais doutos do que

eu, o interesse pelo tema.

Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2013.

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L’ARBITRAGE ET L’EVOLUTION CONTEMPORAINE DES MODES DE

REGLEMENT DES CONFLITS1

Loïc Cadiet

Membre de l’Institut Universitaire de France. Professeur à

l’Ecole de droit de la Sorbonne (Université Panthéon-

Sorbonne Paris 1). Président de l’Association Internationale

de droit Processuel. [email protected]

De l’extérieur, l’arbitrage se présente comme un mode de règlement des conflits

parmi d’autres, mais distinct des autres. Il est, avec les autres, une pièce du système de

justice pluriel que l’Etat offre aux justiciables en vue d’assurer le règlement des conflits

qui les opposent. Il l’a toujours été et il l’est partout. Le droit comparé sera exclu de mon

propos car il mène trop loin et il y a, sur ce point, de très utiles sources disponibles, y

compris dans la littérature de langue française2. L’histoire du droit le sera également

3, car

mon propos a pour objet l’arbitrage dans l’évolution contemporaine des modes de

règlement des conflits. Ces travaux ne sont cependant pas intérêt. Les plus récents

enseignent, notamment, que l’arbitrage n’est pas une forme primitive de la justice étatique,

mais qu’il a toujours existé comme un mode concurrent de la justice publique, auquel il a

même pu servir de modèle tandis que, à l’inverse, les principes directeurs du procès

1 Cet article est issu d’une communication présentée sous le titre « L’arbitrage et l’évolution contemporaine

des modes de règlement des conflits » lors d’un colloque organisé à Nice les 9 et 10 décembre 2011 sous la

responsabilité scientifique des professeurs Yves Strickler et Jean-Baptiste Racine. 2 J.F. POUDRET et S. BESSON, Droit comparé de l'arbitrage international, Bruylant, LGDJ, Schulthess, 2002.

– Voy. aussi L. CADIET (dir.), T. CLAY et E. JEULAND, Médiation et arbitrage, Alternative Dispute

Resolution – Alternative à la justice ou justice alternative ? Perspectives comparatives, Litec, 2005. Adde L.

CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, PUF, 2ème éd. 2013, n° 46, « Droit

comparé ». 3 Voy. p. ex. D. ROEBUCK et B. DE LOYNES DE FUMICHON, Roman arbitration, Oxford, Holo Books, The

arbitration press, 2004. - C. JALLAMION, L'arbitrage en matière civile du XVIIe au XIXe siècle, thèse

Montpellier 2004. - Ch. JARROSSON (dir.), Les rapports entre arbitrage et justice étatique – Perspectives historiques, coll. Les Episodiques, Centre d'histoire judiciaire, Université de Lille II, 2007. Adde L. CADIET,

J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, PUF, 2ème éd. 2013, n° 46, « Histoire du

droit ».

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juridictionnel ont pu être étendus au procès arbitral mutatis mutandis. La tradition française

est en effet de comprendre l’arbitrage dans les modes de règlement des conflits au point de

l’inclure dans les dispositions du code de procédure civile4. Le code de 1806 lui consacrait

un livre entier, le livre III Des arbitrages, de la deuxième partie Des procédures diverses

(art. 1003 à 1018). Encore plus ambitieusement, l’actuel code, issu de la réforme des

années 1970, à son tour récemment rénovée au mois de janvier dernier5, en fait une partie

entière, avec le livre quatrième L’arbitrage (art. 1442 à 1527).

Pour autant, l’arbitrage n’est pas réductible à un simple mode de règlement

juridictionnel des conflits. Chacun sait bien qu’en raison de sa source conventionnelle,

l’arbitrage est tout entier dominé par l’accord des parties, qui lui confère un caractère

amiable (à défaut d’être toujours aimable, tant s’en faut), dont le procès judiciaire n’est pas

spontanément pourvu. Cette contractualité essentielle fait de l’arbitrage un mode alternatif

de règlement des conflits dont l’évolution contemporaine doit être également articulée à

celle des autres modes alternatifs de règlement des conflits.

L’ambivalence fondamentale de l’arbitrage nous conduira ainsi à saisir l’arbitrage

dans son rapport à l’évolution contemporaine, à la fois, des modes juridictionnels (Section

I) et des modes alternatifs (Section II) de règlement des conflits.

Section 1. – L’arbitrage et l’évolution contemporaine des modes de règlement

juridictionnel des conflits

Si sa source est conventionnelle, l’arbitrage a un objet juridictionnel : dire le droit

dans le litige soumis au tribunal arbitral. L’arbitre est un juge et la sentence est un

4 Cette tradition est d’ailleurs tellement libérale qu’elle a conduit à l’inclusion récente, au livre V du code

(art. 1528-1568), de dispositions relatives à la résolution amiable des différends (conciliation et médiation

extrajudiciaires, convention de procédure participative). 5 D. n° 2011-48, 13 janv. 2011 portant réforme de l'arbitrage, JORF 14 janv., p. 777. Voy. not. Ch.

JARROSSON et J. PELLERIN, « Le droit français de l’arbitrage après le décret du 13 janvier 2011 », Rev. arb.

2011, p. 5 et s. - Et, plus spécifiquement en ce qui concerne l’arbitrage international, S. BOLLÉE, « Le droit

français de l’arbitrage international après le décret n° 2011-48 du 13 janvier 2011 », Rev. crit. DIP 2011, p. 553 et s. Et, pour une vue générale, T. CLAY (dir.), Le nouveau droit français de l’arbitrage, Paris, Lextenso,

2011.

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jugement qui a d’ailleurs autorité de chose jugée dès son prononcé. Deux phénomènes

apparaissent au regard de l’évolution contemporaine des modes de règlement juridictionnel

des conflits : d’une part, l’extension régulière du domaine de l’arbitrage (sous-section 1),

d’autre part, son assimilation croissante à l’économie du procès judiciaire (sous-section 2),

deux tendances observées à maintes reprises.

Sous-section 1. – La progression de l’arbitrage au détriment du procès judiciaire

La progression de l’arbitrage au sein des modes de règlement juridictionnel n’est

pas nouvelle et le phénomène a souvent été observé, sauf à faire la part des faux arbitrages

(§ 1) et des vrais arbitrages (§ 2).

§ 1. - Les faux arbitrages

Le faux arbitrage est celui qui se présente comme un arbitrage alors qu’il ne trouve

pas sa source dans un accord des parties, mais dans une disposition de la loi qui le rend

obligatoire. On parle aussi d’arbitrage forcé.

L’hypothèse n’est pas nouvelle.

Peu de temps a séparé la revendication, contenue dans les cahiers de doléances,

d’une justice arbitrale conduisant les plaideurs apaisés à boire ensemble « une bouteille de

vin payée à frais commun et bue à la santé l’un de l’autre » 6 de la loi des 16-24 août 1790

sur l’organisation judiciaire. Cette loi s’ouvrait sur un titre premier Des arbitres (art. 1 à 6)

et, surtout, organisait un arbitrage obligatoire dans les affaires de famille (art. 12 à 17) 7, y

compris le divorce à partir de la loi du 20 septembre 1792 8. L’appel y était d’ailleurs

6 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, Histoire de la justice en France du

XVIIIème siècle à nos jours, Paris, PUF, 4ème éd. 2010, n° 133, p. 248. 7 Voy. spéc. art. 12 : « S’il élève quelque contestation entre mari et femme, père et fils, grand-père et petit-

fils, frères et sœurs, neveux et oncles, ou entre alliés aux degrés ci-dessus, comme aussi entre pupilles et leurs

tuteurs pour choses relatives à la tutelle, les parties seront tenues de nommer des parens, ou, à leur défaut, des

amis ou voisins pour arbitres, devant lesquels ils éclairciront leur différent, et qui, après les avoir entendues et

avoir pris les connaissances nécessaires, rendront une décision motivée » et, là-dessus, J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 140, p. 262-263 et n° 144, p. 267-270. 8 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 144, p. 267-270, et n° 172, p.

312-313.

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possible, alors qu’il ne l’était pas, en principe, dans l’arbitrage facultatif de droit commun.

On sait l’échec de ce dispositif 9.

Mais les faux arbitrages n’ont pas disparu et ils s’attirent aujourd’hui la critique de

n’être pas vraiment des arbitrages à défaut de reposer sur le consentement des parties qui y

sont soumises, qu’il s’agisse de l’arbitrage prévu au profit des journalistes professionnels

10, de l’arbitrage sportif, pour partie

11, ou de l’arbitrage du bâtonnier dans les litiges entre

avocats, dont le champ d’application initial 12

a été étendu à l’ensemble des litiges entre

avocats par une loi du 12 mai 2009 13

. Certains auteurs y ont vu un coup de force inutile et

malvenu : inutile car l’art. 2061 du Code civil laisse déjà à tous les professionnels qui le

souhaitent la possibilité d’insérer une clause compromissoire dans leurs conventions et,

surtout, malvenu car il n’y a d’arbitrage que volontaire. Ainsi que l’écrit Thomas Clay,

« Tout arbitrage forcé est un ersatz d’arbitrage qui ne doit d’ailleurs pas en porter le

nom »14

. Le propos vaut autant pour l’arbitrage interne que pour l’arbitrage international15

.

9 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 144, p. 267-270, et n° 204, p.

353-356. 10 Art. L. 7112-4 et s. C. trav. : « Lorsque l'ancienneté excède quinze années, une commission arbitrale est

saisie pour déterminer l'indemnité due (al. 1). Cette commission est composée paritairement d'arbitres

désignés par les organisations professionnelles d'employeurs et de salariés. Elle est présidée par un fonctionnaire ou par un magistrat en activité ou retraité (al. 2). Si les parties ou l'une d'elles ne désignent pas

d'arbitres, ceux-ci sont nommés par le président du tribunal de grande instance, dans des conditions

déterminées par voie réglementaire (al. 3). Si les arbitres désignés par les parties ne s'entendent pas pour

choisir le président de la commission arbitrale, celui-ci est désigné à la requête de la partie la plus diligente

par le président du tribunal de grande instance (al. 4). En cas de faute grave ou de fautes répétées, l'indemnité

peut être réduite dans une proportion qui est arbitrée par la commission ou même supprimée (al. 5). La

décision de la commission arbitrale est obligatoire et ne peut être frappée d'appel (al. 6). ». Voy. T. CLAY,

« L'arbitrage, justice du travail », in M. KELLER (dir.), Procès du travail, travail du procès, Paris, LGDJ,

2008, p. 107-109. Sur la constitutionnalité de cette commission, voy. Cons. const. 14 mai 2012, déc. n°

2012/243/244/245/246, Procédures 2012, n° 233, obs. BUGADA. 11 Voy. M. PELTIER, « Un arbitrage particulier : l’arbitrage de litiges sportifs », in Y. STRICKLER (Textes

réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, préc., p. 115 et s. 12 L. 31 déc. 1971, art. 7 (réd. L. n° 90-1259, 31 déc. 1990) : « Les litiges nés à l'occasion d'un contrat de

travail sont soumis à l'arbitrage du bâtonnier, à charge d'appel devant la cour d'appel siégeant en chambre du

conseil ». 13 L. n° 2009-526, 12 mai 2009 de simplification et de clarification du droit et d'allègement des

procédures (JORF 13 mai, p. 7920 ; JCP 2009, I, 369, n° 2, obs. CLAY), compl. D. n° 2009-1544, 11 déc.

2009 relatif à la composition du Conseil national des barreaux et à l’arbitrage du bâtonnier (JORF 13 déc., p.

21545 ; JCP 2010, 546, n° 4, obs. CLAY) et CNB, décision 21 oct. 2010 portant réforme du règlement

intérieur national (RIN) de la profession d’avocat (JORF 7 janv., p. 436. Voy. S. BORTOLUZZI : JCP 2011,

38, et T. CLAY : JCP 2011, 666, n° 11), parachevant le dispositif en prévoyant que le bâtonnier peut

désormais déléguer ses pouvoirs d’« arbitre » à des anciens bâtonniers, voire à d’anciens membres du conseil

de l’Ordre. « En d’autres termes, non seulement l’arbitrage est imposé, mais en outre on ne sait même plus par qui on va être jugé » : T. CLAY, obs. préc. 14 T. CLAY, JCP 2009, I, 369, n° 2. Voy. déjà T. CLAY, « L'arbitrage du bâtonnier : perseverare

diabolicum », D. 2007, p. 28 et s.

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On pourrait en discuter et peser la question de savoir si la singularité de l’arbitrage tient

plus à sa source conventionnelle, surtout lorsque la justice étatique elle-même s’ouvre à la

convention des parties, ou à la possibilité offerte aux parties de choisir leur juge et leur

procédure, notamment en mettant la procédure arbitrale à l’abri de la publicité. En tout cas,

la progression de l’arbitrage au sein des modes de règlement juridictionnel des conflits

bénéficie également au véritable arbitrage.

§ 2. - Les vrais arbitrages

Après une assez longue période d’ankylose au cours du 19ème

siècle, favorisée par

la limitation de l’arbitrage aux seuls litiges nés, l’expansion de l’arbitrage a connu

plusieurs vagues successives commençant en 1925 avec l’admission de la clause

compromissoire entre commerçants16

. Dans la période la plus contemporaine, cette

expansion s’est faite, en législation, dans deux directions principales.

D’abord, le domaine de validité du compromis, défini par l’article 2060 C. civ.,

dont étaient initialement écartées les contestations intéressant les collectivités publiques et

les établissements publics et plus généralement toutes les matières qui intéressent l’ordre

public17

, a été progressivement étendu à toute une série de litiges administratifs18

, au-delà

même des litiges mettant en cause un établissement public industriel et commercial

15 A. MEZGHANI, « Arbitrage forcé et fondement contractuel de l'arbitrage ? », Gaz. Pal. 25-26 juin 2003, 1. 16 Sur cette évolution, voy. C. JALLAMION et Th. CLAY, « Justice publique et arbitrage », in L. CADIET, S.

DAUCHY et J.-L. HALPÉRIN, Itinéraires d’histoire de la procédure civile, Paris, IRJS Editions, 2013, à

paraître. Voy. aujourd’hui, art. L. 721-3, al. 5, C. com. : « Les tribunaux de commerce connaissent : 1° Des

contestations relatives aux engagements entre commerçants, entre établissements de crédit ou entre eux ; 2° De celles relatives aux sociétés commerciales ; 3° De celles relatives aux actes de commerce entre toutes

personnes. Toutefois, les parties peuvent, au moment où elles contractent, convenir de soumettre à l'arbitrage

les contestations ci-dessus énumérées ». 17 Art. 2060 C. civ., réd. L. n° 72-626, 5 juill. 1972 instituant un juge de l’exécution et relative à la réforme

de la procédure civile., art. 13. 18 Contestations relatives à l'État, aux collectivités territoriales et aux établissements publics pour les contrats

qu'ils concluent avec des sociétés étrangères pour la réalisation d'opérations d'intérêt national (art. 9, L. n°

86-972, 19 août 1986 portant dispositions diverses relatives aux collectivités locales), marchés publics (art.

132 C. marchés publ.), contrats de partenariat public-privé, qui comportent « nécessairement des clauses

relatives : [...] l) aux modalités de prévention et de règlement des litiges et aux conditions dans lesquelles il

peut, le cas échéant, être fait recours à l'arbitrage, avec application de la loi française » (art. 1414-12 C. gén. coll. terr., réd. L. n° 2008-735, 28 juill. 2008, en application de l'Ord. n° 2004-559, 17 juin 2004 sur les

contrats de partenariat. Voy. M. AUDIT, « Le contrat de partenariat ou l'essor de l'arbitrage en matière

administrative », Rev. arb. 2004, p. 541 et s.).

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autorisé à compromettre19

, mais à l’exclusion compréhensible du contrôle de légalité20

.

Avec la bénédiction du Conseil d’Etat, il a même été proposé de desserrer encore le corset

et, si le projet formé par un rapport dit Labetoulle, du nom d’un ancien président de la

section du contentieux du Conseil d’Etat, de créer un régime spécifique d'arbitrage

administratif, qui échapperait aux dispositions du Code de procédure civile21

, n’a pas

encore abouti, le Tribunal des conflits, l’an passé, dans un arrêt INSERM abondamment

commenté, a ouvert une brèche en ce sens à propos des contrats administratifs conclus par

des personnes publiques françaises avec des contractants étrangers ; il a jugé que ces

contrats relèvent de la juridiction administrative dès lors qu’ils impliquent le contrôle de la

conformité de la sentence aux règles impératives du droit public français22

. Puis, faisant

application de cette jurisprudence, le Conseil d’Etat a jugé que le juge administratif

français est compétent pour connaître de la demande d’exequatur dans un arbitrage soumis

aux règles impératives du droit français 23

.

Surtout, le clivage traditionnel des contrats civils et des contrats commerciaux ne

correspond plus à la réalité économique qui se fonde plutôt sur la distinction, devenue le

principe dans d'autres domaines, entre professionnels et non professionnels : c'est dans ce

type de rapports que la prohibition de la clause compromissoire a vocation à s’appliquer.

La cause a fini par être entendue : à la faveur d'une loi sur les nouvelles régulations

économiques, il y a dix ans, l'article 2061 C. civ. a été modifié pour qu'y soit posé le

19 Art. 2060, al. 2, C. civ. Voy., de manière générale, Ch. JARROSSON, « L'arbitrage en droit public », AJDA

1997, p. 16 et s . – Adde A. PATRIKIOS, L'arbitrage en matière administrative, préf. Y. GAUDEMET, Paris,

LGDJ, 1997. 20 Voy. art. L. 311-6 CJA et D. FOUSSARD, « Les dispositions sur l'arbitrage de l'article L. 311-6 du Code de

justice administrative », Rev. arb. 2000, p. 537 et s. 21 Voy. D. LABETOULLE, « Personnes morales de droit public et recours à l'arbitrage », JCP 2007, act. 149 et l'entretien avec D. LABETOULLE, JCP 2007, I, 143. Conf. J.-L. DELVOLVÉ, « Une véritable révolution...

inaboutie (remarques sur le projet de réforme de l'arbitrage en matière administrative) », Rev. arb. 2007, 373 ;

S. LEMAIRE, CH. JARROSSON et L. RICHER, « Pour un projet viable de réforme de l'arbitrage en droit

administratif », AJDA 2008, 617. 22 T. confl. 17 mai 2010, n° 3754, INSERM c. Fondation Letten F. Saugstad, D. 2010, 2330, obs. BOLLÉE et

2633, note LEMAIRE ; Rev. arb. 2010, 252, note AUDIT et 275, concl. GUYOMAR. Voy. aussi M. AUDIT, « Le

nouveau régime de l’arbitrage des contrats administratifs internationaux (à la suite de l’arrêt rendu par le

Tribunal des conflits dans l’affaire INSERM) », Rev. arb. 2010, p. 253 et s. - Th. CLAY, « Les contorsions

byzantines du Tribunal des conflits en matière d'arbitrage », JCP 2010, n° 21, 552. – E. GAILLARD, « Le

Tribunal des conflits torpille le droit français de l'arbitrage », JCP 2010, n° 21, 585. Adde Avis du Comité

français de l’arbitrage dans l’affaire INSERM, Rev. arb. 2010, 401. 23 CE 19 avr. 2013, SMAC, n° 352750, JCP 2013, 543, obs. ERSTEIN, 748, note LEMAIRE et 784, n° 7, obs.

ORTSCHEIDT ; D. 2013, 1069, obs. MONTECLER et 1445, note CASSIA ; Gaz. Pal. 29-30 mai 2013, 18, note

GUYOMAR et 16-18 juin 2013, 10, obs. SEILLER.

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principe de la validité de principe des clauses compromissoires « dans les contrats conclus

à raison d'une activité professionnelle » 24

. La validité des clauses compromissoires dans

les contrats de la consommation a même été soutenue, sous la seule réserve de l’abus au

sens de l’article L. 132-1 et R. 132-1 du Code de la consommation25

. L’opinion n’est pas

admise en droit interne, mais elle l’est en matière internationale26

.

Il faut également avoir égard à l’œuvre jurisprudentielle elle-même qui, dominée

par une volonté délibérée de favoriser l’arbitrage au sein des modes de règlement des

conflits27

, n’a eu de cesse, d’une part, d’assouplir les conditions de validité des clauses

d’arbitrage en consacrant un principe d’autonomie, à la fois formelle 28

et substantielle 29

,

de la clause d’arbitrage et, d’autre part, d’en renforcer l’efficacité au-delà du cercle des

parties signataires grâce à la libéralisation de leur transmission aux parties adjointes et,

surtout, aux parties successives en cas de transmission du rapport d’obligation dont elle

24 Art. 2061 C. civ. (réd. L. n° 2001-420, 15 mai 2001) : « Sous réserve des dispositions législatives

particulières, la clause compromissoire est valable dans les contrats conclus à raison d'une activité

professionnelle ». 25 Art. R. 132-2 C. consomm. (réd. D. n°2009-302, 18 mars 2009) : « Dans les contrats conclus entre des professionnels et des non-professionnels ou des consommateurs, sont présumées abusives au sens des

dispositions du premier et du deuxième alinéas de l'article L. 132-1, sauf au professionnel à rapporter la

preuve contraire, les clauses ayant pour objet ou pour effet de : (…) 10° Supprimer ou entraver l'exercice

d'actions en justice ou des voies de recours par le consommateur, notamment en obligeant le consommateur à

saisir exclusivement une juridiction d'arbitrage non couverte par des dispositions légales ou à passer

exclusivement par un mode alternatif de règlement des litiges ». 26 Un contrat international de consommation peut être soumis à l'arbitrage, en raison du principe d'autonomie

de la clause compromissoire : Voy. Paris, 7 déc. 1994, RTD com. 1995, 402, obs. (réserv.) DUBARRY et

LOQUIN ; Justices 1996-3, 435, obs. (crit.) RIVIER ; Rev. arb. 1996, 245, note (approb.) JARROSSON (la clause

compromissoire insérée dans un acte mixte international est valable : contrat de consommation entre

l'acquéreur d'une voiture et une société anglaise), sous la seule réserve des règles d'ordre public international,

qu'il appartient à l'arbitre de mettre en œuvre, sous le contrôle du juge de l'annulation, pour vérifier sa propre compétence, spécialement en ce qui concerne l'arbitrabilité du litige : Cass. 1re civ., 21 mai 1997, Rev. arb.

1997, 537, note GAILLARD ; Rev. crit. DIP 1998, 87, note (crit.) HEUZÉ ; RGDP 1998, no 1, 156, obs.

(crit.) RIVIER. – Rappr. Cass. 1re civ., 12 mai 2010, no 09-11.872 : D. 2010, 2934, obs. CLAY (cession de

droits d’auteur). 27 Voy. déjà art. 1er L. 16-24 août 1790 préc. : « L’arbitrage étant le moyen le plus raisonnable de terminer les

contestations entre les citoyens, les législatures ne pourrons faire aucune disposition qui tendrait à diminuer,

soit la faveur, soit l’efficacité des compromis ». Adde, en dehors de la France, Ch. JARROSSON, « Résolution

du Parlement européen sur la promotion de l'arbitrage », Rev. arb. 1995, p. 355 sq. 28 Formelle, avec l’admission de la clause compromissoire par référence : voy. Cass. 1re civ., 11 oct. 1989, n°

87-15094, Bull. civ. I, n° 314 ; Cass. 1re civ., 21 nov. 2006, n° 05-21818, Bull. civ. I, n° 502 et, désormais,

art. 1443 CPC. 29 Matérielle, avec : l’indépendance des lois applicables au contrat principal et à la clause d’arbitrage, et la

survie de la clause d’arbitrage à l’annulabilité du contrat principal. Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI

MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 119, « Théorie juridique », b).

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sont l’accessoire30

. Ce concours de bonnes fées explique la progression de l’arbitrage et

cette progression se fait au détriment des procès judiciaire. La faveur est telle qu’en cas de

concours, voire de conflit entre une clause d’arbitrage et une clause de compétence, entre

une procédure arbitrale et une procédure judiciaire, la prime est plus souvent donnée à

l’arbitrage que l’inverse31

. Mais, au sein des modes juridictionnels de règlement des

conflits, la progression du domaine de l’arbitrage n’est pas la seule tendance observable. Il

faut également souligner, ce qui peut sembler paradoxal de prime abord, son assimilation

croissante à l’économie du procès judiciaire.

Sous-section 2. – L’assimilation de l’arbitrage à l’économie du procès judiciaire

Cette assimilation de l’arbitrage à l’économie du procès judiciaire emprunte des

formes variées (§ 1), mais il ne faut pas en exagérer la portée, qui n’est pas sans limites (§

2).

§ 1. - Formes

A s’en tenir à l’essentiel, l’assimilation de l’arbitrage au procès juridictionnel revêt

trois formes principales.

Une première forme, observée depuis plus d’une vingtaine d’année déjà, est celle

d’une tendance à l’institutionnalisation de l’arbitrage. Cette tendance est la rançon du

succès de l'arbitrage. Le phénomène est particulièrement notable en matière d'arbitrage

international, mais l'arbitrage interne n'y échappe pas. Il tient au développement des

arbitrages assurés dans le cadre d'organismes permanents d'arbitrage qui, en France, se

30 Voy. L. CADIET, « Liberté des conventions et clauses relatives au règlement des litiges », Les petites

affiches, 5 mai 2000, p. 30 et s., spéc. n° 4 à 20. 31 Voy. L. CADIET, art. préc., spéc. n° 22 à 28 (hypothèses de conflits tenant au concours de clauses de

compétence et de clauses compromissoires ou à la pluralité de parties, dont certaines seulement sont parties à la clause compromissoire). Adde X. LAGARDE, « Pluralité de parties à un contrat versus pluralité de parties à

un procès », in L. CADIET et D. LORIFERNE (dir.), La pluralité de parties, Paris, IRJS Editions, 2013, à

paraître.

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comptent aujourd’hui par dizaines. La Cour européenne d’arbitrage en est un exemple32

. Il

en est d’autres, très connus comme la Cour d’arbitrage de la Chambre de commerce

internationale ou le Centre de médiation et d’arbitrage de Paris de la Chambre de

commerce et d’industrie de Paris, ou moins connus, comme tous ces centres régionaux,

généralistes ou spécialisés comme, par exemple, Chambre d'arbitrage et de médiation des

litiges de l'immobilier du CNAM des Pays-de-Loire33

.

La deuxième forme est celle de la procéduralisation de l’arbitrage, qui se traduit

par la soumission de l’arbitrage à des règles de procédure comparables à celle des procès

judiciaires, parfois même plus strictes34

, qui peuvent être certes définies par l’accord des

parties, mais qui peuvent aussi l’être, le cas échéant, par le tribunal arbitral lui-même ou

par les centres d’arbitrage lorsque l’arbitrage est institutionnel35

, quand elles ne le sont pas,

ce qui est moins fréquent, par renvoi au droit commun du procès civil36

. La réforme du 13

janvier 2011 n’a pas remis en cause ce lien, même si elle l’a formulé différemment37

. Le

tribunal arbitral fait même l’objet, désormais, d’un chapitre entier du code, ce qui n’était

pas le cas antérieurement38

. Le procès arbitral, du moins dans l’ordre interne, reste une

procédure spéciale soumise à certains des principes directeurs du procès énoncés au seuil

du code de procédure civile39

, en tant qu’ils sont l’expression d’un noyau dur intangible,

qui peut apparaître comme un droit commun processuel minimum, hors d'atteinte de la

volonté des parties : l'alinéa 2 de l'article 1464 se présente bien comme une dérogation au

32 Voy. Y. STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, Paris, L’Harmattan,

2012, spéc. p. 213 et s. 33 Autant qu'on puisse le savoir à partir du contentieux sur recours dont ils sont l'objet devant les tribunaux

étatiques, les arbitrages institutionnels représentent, en moyenne, 45 % au moins des arbitrages se déroulant

en France, contre 55 % des arbitrages ad hoc, ces derniers étant à l’inverse plus nombreux du reste en

province qu'à Paris. Pour une étude remontant à quelques années, voy. S. CRÉPIN, Les sentences arbitrales devant le juge français, Paris, LGDJ, 1995, préf. Ph. Fouchard. 34 Pour lui appliquer les catégories traditionnelles du droit commun du procès civil, l’arbitrage apparaît

comme une procédure écrite, strictement encadrée par un calendrier de procédure qui engage les parties aussi

bien que les arbitres, à peine de responsabilité éventuelle de ces derniers, qui jouissent d’un pouvoir

d’administration important de la procédure. Du reste, c’est bien d’une procédure « administrée » que les

règlements de certains centres d’arbitrage parlent pour désigner l’arbitrage institutionnel. 35 Voy. p. ex. art. 19 Règlement CCI. 36 « Sans être tenues de suivre les règles établies pour les tribunaux étatiques », dispose le nouvel article

1464, al. 1 CPC, simple faculté et non pas devoir. 37 Le renvoi au droit commun du procès civil était plus clair dans la disposition antérieure de l’article 1460,

al. 1 CPC : « Les arbitres règlent la procédure arbitrale sans être tenus de suivre les règles établies pour les tribunaux, sauf si les parties en ont décidé autrement dans la convention d’arbitrage ». 38 Chapitre 2 du Titre 1er du livre IV (art. 1450 à 1461 CPC). 39 Voy. art. 1er à 24 CPC.

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principe de liberté contractuelle posé par l'alinéa 1er 40

. Ainsi que l'écrivait déjà le doyen

Cornu à propos des dispositions antérieures, il y a vingt ans, « Ils font voir, au cœur de

l'ensemble des principes directeurs, le noyau de ceux -primi inter pares- qui, étant de

l'essence de l'action de juger, s'attache à tout juge (l'arbitre en est un : principe dispositif,

principe de contradiction, liberté de la défense, audition ouverte des parties, conciliation)  »

41.

La troisième forme va même jusqu’à emprunter les habits d’une certaine

judiciarisation de l’arbitrage en raison de l’association permanente du juge judiciaire au

procès arbitral, traditionnellement juge de l’exequatur et juge du recours, mais surtout, juge

d’appui de la procédure arbitrale, chargé d’en prévenir ou d’en régler les difficultés afin

d’en assurer un déroulement optimal : constitution du tribunal, maintien de l’arbitre, durée

de l’arbitrage42

. Le décret du 13 janvier 2011 a fait explicitement entrer le juge d’appui

dans le code de procédure civile43

. La compénétration de la justice arbitrale et de la justice

étatique ainsi réalisée peut paraître si étroite que la thèse pourrait être défendue, malgré les

hauts cris qu’elle provoque dans le milieu arbitragiste, que la juridiction arbitrale est une

variété particulière de juridiction d’exception, du moins pour ce qui est de l’arbitrage

interne. En effet, en ce qui concerne l’arbitrage international, la Cour de cassation est allée

jusqu’au bout de sa politique de faveur à l’égard de l’arbitrage en jugeant que l’arbitrage

international est un ordre juridique autonome qui n’est rattaché à aucun ordre juridique

étatique44

. Au bout de cette logique, c’est sans doute trop loin 45

. On touche ici la question

des limites de l’assimilation de l’arbitrage au procès judiciaire.

40 « A moins que les parties n'en soient convenues autrement, le tribunal arbitral détermine la procédure

arbitrale sans être tenu de suivre les règles établies pour les tribunaux étatiques (al. 1). Toutefois, sont

toujours applicables les principes directeurs du procès énoncés aux articles 4 à 10, au premier alinéa de l'article 11, aux deuxième et troisième alinéas de l'article 12 et aux articles 13 à 21,23 et 23-1 (al. 2) ». 41 G. CORNU, « Les principes directeurs du procès civil par eux-mêmes (fragments d’un état des questions) »,

in Mélanges Pierre Bellet, Litec, 1991, p. 83 et s., spéc. p. 87, note 7. 42 Voy. Y. STRICKLER, « Arbitres et juges internes », in Y. STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage –

Questions contemporaines, préc., p. 57 et s. Et, déjà, Ph. FOUCHARD, « La coopération du président du TGI à

l'arbitrage », Rev. arb. 1985, p. 5 et s. – D. HASCHER, « Le juge d'appui », in L. CADIET (dir.), avec

E. JEULAND et T. CLAY, Médiation et arbitrage, Alternative Dispute Resolution – Alternative à la justice ou

justice alternative ? Perspectives comparatives, préc., p. 243 et s. 43 Voy. art. 1451 à 1457, 1459, 1460, 1463, 1505 et 1506 CPC. 44 Très exactement, « la sentence internationale, qui n'est rattachée à aucun ordre juridique étatique, est une

décision de justice internationale dont la régularité est examinée au regard des règles applicables dans le pays où sa reconnaissance et son exécution sont demandées » : Cass. 1re civ., 29 juin 2007, n° 05-18.053, Bull. ass.

plén. n° 250. – Rappr. Cass. 1re civ., 12 oct. 2011, n° 11-11.058, JCP 2012, 1140, obs. SERAGLINI ; D. 2011,

2483 et 3023, obs. CLAY ; D. 2012, 2337, obs. BOLLEE ; Rev. crit. DIP 2012, 121, note MUIR WATT, jugeant

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456

§ 2. - Limites

Ces limites sont aussi diverses que les formes de l’assimilation.

L’assimilation de l’arbitrage au procès judiciaire est tout d’abord limitée par la

singularité de l’arbitrage parmi les modes de règlement juridictionnel des conflits. Cette

singularité tient bien sûr à la source conventionnelle, donc privée, de l’arbitrage, qui

impose l’éviction de certains principes directeurs du procès juridictionnel comme, du

reste, de certaines exigences du droit au procès équitable 46

. C’est cette contractualité de

l’arbitrage qui explique, notamment, que les principes directeurs résultant des articles 1er

à

3 du code de procédure civile ne soient pas applicables au litige, pas plus que le principe de

publicité auquel se substitue, en principe, un principe opposé de confidentialité47

. Ainsi

que l’a écrit le doyen Cornu : « Les principes écartés font place aux règles qui reflètent les

particularités de l'arbitrage» 48

. Parce que l'arbitrage a une origine conventionnelle, les

parties en ont seules la maîtrise : d'où l'éviction des articles 1er à 3, et il n'a d'effet qu'à

l'égard des parties : d'où l'impossibilité d'enjoindre aux tiers une production de pièces aux

débats. Parce que l'arbitrage met en œuvre une justice privée, l'arbitre ne dispose pas de

l'imperium : d'où l'impossibilité, pour lui, d'ordonner saisies conservatoires et sûretés

judiciaires (art. 1468, al. 1 CPC), et l'instance présente un caractère confidentiel : d'où

l'exclusion de la publicité des débats et de la sanction du manquement à l'obligation de

réserve49

.

que le tribunal arbitral étant une juridiction internationale autonome, il n’entrait pas dans les pouvoirs du juge

étatique français d’intervenir dans le déroulement d’une instance arbitrale internationale. Et, sur cette opinion, car c’en est une avant que d’être jurisprudence, J.-P. ANCEL, « L'arbitrage : une juridiction

internationale autonome », RJDA 2007, p. 883 et s. – Conf. E. GAILLARD, « L’ordre juridique arbitral :

réalité, utilité et spécificité », (2010) 55 R.D. McGill 891. - F. GRISEL, L’arbitrage international ou le droit

contre l’ordre juridique, Fondation Varenne et LGDJ, 2011, préf. L. CADIET. 45 Voy. V. HEUZE, « Arbitrage international : quelle raison à la déraison ? » D. 2011, p. 2880-2885. 46 Voy. N. FRICERO, « L’arbitrage à l’aune de la Convention européenne » in Y. STRICKLER (Textes réunis

par), L’arbitrage – Questions contemporaines, préc., p. 47 et s. Adde L. BERNHEIM VAN DE CASTEELE, Les

principes fondamentaux de l’arbitrage, Bruylant, 2012. 47 Art. 1464, al. 2 et 4 CPC. 48 G. CORNU, « Les principes directeurs par eux-mêmes... », préc., p. 84, note 7. 49 Voy., pour une vue embrassant l’ensemble des modes alternatifs de règlement des conflits, L. CADIET, « Procès équitable et modes alternatifs de règlement des conflits », in M. DELMAS-MARTY, H. MUIR-WATT

et H. RUIZ-FABRI, Variations autour d’un droit commun – Premières rencontres de l’UMR de droit comparé

de Paris, Paris, Société de législation comparée, 2002, p. 89-109.

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A l’inverse, plus subtilement, l’assimilation du procès arbitral au procès judiciaire

devant le juge étatique est compensée, sinon limitée, par l’assimilation ponctuelle du

procès judiciaire au procès arbitral qui a pu servir, sur plusieurs points, de modèle à la

justice étatique. L’illustration pourrait ici en être donnée avec la requête conjointe (art. 57

CPC), inspirée du compromis, l’amiable composition judiciaire (art. 12, al. 4 CPC),

inspirée de l’amiable composition arbitrale, l’autonomie et la transmission des clauses de

compétence, inspirée de l’autonomie et de la transmission de la clause compromissoire 50

.

L’article 2061 C. civ. est également, aujourd’hui, un puissant argument en faveur d’une

extension de la validité des clauses de compétence territoriale à l’ensemble des contrats

entre professionnels et non plus seulement entre commerçants 51

. L’influence de l’arbitrage

sur la justice étatique pourrait aussi trouver quelques éléments, sinon arguments, avec la

consécration, en matière judiciaire, du principe de concentration des moyens 52

et de la

théorie de l’estoppel 53

, même si, sur ces deux derniers points, le périmètre des solutions

n’est pas exactement le même54

.

Il faut enfin observer que, plus radicalement, c’est le face-à-face de la justice

étatique et de la justice arbitrale qui est lui-même limité par la concurrence d’autres modes

alternatifs de règlement des conflits, qui impose maintenant d’examiner l’arbitrage au

regard de l’évolution contemporaine des modes alternatifs de règlement des conflits.

50 Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 119, Théorie

juridique. Et, depuis, Cass. 1re civ., 8 juill. 2010, n° 07-17.788, JCP 2010, act., 869 ; JCP 2010, 1191, n° 7,

obs. CLAY ; D. 2010, 2333, obs. D’AVOUT ; Procédures 2010, n° 336, obs. PERROT (autonomie des clauses

de compétence). 51 Ainsi que continue de le prévoir l’article 48 CPC : « Toute clause qui, directement ou indirectement, déroge aux règles de compétence territoriale est réputée non écrite à moins qu'elle n'ait été convenue entre

des personnes ayant toutes contracté en qualité de commerçant et qu'elle n'ait été spécifiée de façon très

apparente dans l'engagement de la partie à qui elle est opposée ». 52 Cass. ass. plén., 7 juill. 2006 : Bull. civ., cass. ass. plén., no 8. Voy. L. CADIET, E. JEULAND, Droit judiciaire

privé, Paris, LexisNexis, 8ème éd. 2013, n° 739. 53 Voy. not. Cass. com., 20 sept. 2011, no 10-22.888 : JCP 2011, 1397, no 13, obs. AMRANI-MEKKI ; Rev.

huissiers 2011, 293, note PUTMAN ; RTD civ. 2011, 760, obs. FAGES et, là-dessus, D. HOUTCIEFF, « La

consécration de l'interdiction de se contredire », JCP 2011, 1250. - C. MARÉCHAL, « L'estoppel à la française

consacré par la Cour de cassation comme principe général du droit », D. 2012, 167. - Et, déjà, N. DUPONT,

« L'interdiction de se contredire au détriment d'autrui en procédure civile française », RTD civ. 2010, 459.

Adde O. BALDES, L’estoppel ou l’approche renouvelée des systèmes d’interdiction de l’auto-contradiction en procédure civile : Procédures 2013, Etude 5. 54 Voy. not. E. LOQUIN, « De l’obligation de concentrer les moyens à celle de concentrer les demandes »,

Rev. arb. 2010, p. 201 et s.

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Section 2. – L’arbitrage et l’évolution contemporaine des modes alternatifs de

règlement des conflits

Je serai beaucoup plus rapide sur ce deuxième volet. La justice arbitrale est souvent

présentée comme une justice amiable par opposition à la justice étatique, autoritaire,

hâtivement stigmatisée pour son cortège compliqué de procédures contentieuses,

formalistes, longues et couteuses. La distinction est excessive, mais il est vrai que

règlement amiable et justice arbitrale ont partie liée. Dans la conception française, si

l’arbitre est un juge et sa sentence un jugement, l'arbitrage trouve son origine dans une

convention et c'est bien là la caractéristique essentielle de l'arbitrage, source première de sa

légitimité 55

, qui conduit d'ailleurs les juristes anglo-saxons à y voir l'archétype des

Alternative Dispute Resolution, c'est à dire des modes alternatifs de règlement des conflits

56. Mais ce caractère alternatif, s’il s’observe au sein de l’arbitrage (sous-section 1), met

l’arbitrage en concurrence avec d’autres modes alternatifs et cette concurrence, de

marginale, est devenue importante (sous-section 2).

Sous-section 1. – Le caractère alternatif de l’arbitrage parmi les modes de règlement

des conflits

La notion de mode alternatif de règlement des conflits a souvent intrigué et suscité

la discussion, soit en raison de son objet : conflit ou litige ? Soit en raison de son caractère

alternatif : alternatif à quoi ? La réponse initiale était d’envisager ces modes comme

alternative à la justice étatique et, à ce titre, l’arbitrage est bien un mode alternatif de

règlement des conflits. Mais, ce sens a évolué par la suite dès lors que la recherche d’une

solution amiable, là où la solution juridictionnelle apparaît comme une solution autoritaire,

se diffuse au sein même de l’institution judiciaire. Du coup, les modes alternatifs de

règlement des conflits ont leur place aussi bien sur le terrain des solutions judiciaires que

sur le terrain des solutions extrajudiciaires et l’on sait que, depuis une vingtaine d’années,

le droit positif a largement engagé l’institution judicaire dans la voie des règlements

55 Voy. P. TERCIER, « La légitimité de l’arbitrage », Rev. arb. 2011, p. 653 et s. 56 Voy., aux Etats-Unis d’Amérique, l’ADR Act de 1998, spéc. Sections 6 et 7. Adde G. ALPA, « La circulation des modèles de résolution extrajudiciaire des conflits », RIDC 1993, p. 755 sq, ainsi que

Cl. SAMSON et J. MCBRIDE, Solutions de rechange au règlement des conflits - Alternative dispute resolution,

Québec, Les presses de l'Université Laval, 1993.

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amiables, en multipliant les passerelles entre celle-ci et ceux-là 57

. L’Etat met en place une

offre de justice plurielle58

. La récente introduction en droit français de la convention de

procédure participative est la dernière illustration de cette politique juridique 59

.

L’arbitrage est compris dans cette politique de diffusion des règlements amiables au

sein même des procédures juridictionnelles. En effet, s’il est par lui-même une alternative

au règlement judiciaire du litige, l’arbitrage propose en son sein plusieurs types de

solutions possibles du litige.

A la solution juridictionnelle pure, rendue « conformément aux règles de droit »,

ainsi qu’en dispose l’article 1478 et 1511 CPC 60

, en écho à l’article 12, al. 1 CPC 61

,

tenant compte, en matière internationale, des « usages du commerce » (art. 1511, al. 2

CPC), les parties peuvent préférer une solution plus amiable à laquelle ils peuvent aboutir

de deux façons.

La première consiste à donner à l’arbitre mission de statuer en amiable compositeur

62, c'est-à-dire en équité, en ayant pour seul souci que de trouver une solution qui soit

équilibrée pour l’ensemble des parties en présence. Cette mission peut être prévue une fois

le litige né, dans le compromis ou lors de la rédaction de l’acte de mission. Mais, à la

différence de ce que l’article 12, al. 4 CPC dispose pour l’amiable composition judiciaire,

cette mission peut être stipulée avant tout litige lors de la rédaction de la clause

compromissoire. Le caractère alternatif de l'arbitrage est d'autant plus prononcé que les

arbitres ont reçu cette mission de statuer comme amiables compositeurs, ce qui, en principe

57 Conciliation judiciaire déléguée aux conciliateurs de justice, médiation judiciaire, médiation familiale, etc.

pour n’évoquer ici que la matière civile. Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 49-51 et p. 490-548. 58 V. p. ex. L. CADIET, « La justice face aux défis du nombre et de la complexité », Les Cahiers de la Justice,

2010/1, ENM et Dalloz, pp. 13-35. 59 Art. 2062-2068, réd. L. n°2010-1609, 22 déc. 2010, spéc. art. 2062 : « La convention de procédure

participative est une convention par laquelle les parties à un différend qui n'a pas encore donné lieu à la

saisine d'un juge ou d'un arbitre s'engagent à œuvrer conjointement et de bonne foi à la résolution amiable de

leur différend ». 60 Pour l’arbitrage interne, l’article 1511 précisant, pour l’arbitrage international, « (…) conformément aux

règles de droit que les parties ont choisies ou, à défaut, conformément à celles qu'il (le tribunal arbitral)

estime appropriées ». 61 « Le juge tranche le litige conformément aux règles de droit qui lui sont applicables ». 62 Art. 1478 CPC : « (…) à moins que les parties lui aient confié la mission de statuer en amiable

composition », pour l’arbitrage interne. – Art. 1512 CPC : « Le tribunal arbitral statue en amiable

composition si les parties lui ont confié cette mission » (arbitrage international).

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et dans l'arbitrage interne, rendait leur sentence spécialement insusceptible d'appel sous

l’empire des dispositions antérieure au décret du 13 janvier 2011 63

.

La seconde manière d’aboutir à une solution amiable est, comme en matière

judiciaire, de solliciter du tribunal arbitral qu’il constate l’accord des parties sur la solution

de leur litige. On parle alors de « sentence d’accord parties ». La possibilité en est

consacrée par certains règlements d’arbitrage comme, par exemple, par celui de la CCI,

dont l’article 32 dispose : « Si les parties se mettent d’accord pour régler leur différend à

l’amiable alors que le tribunal arbitral a été saisi du dossier conformément à l’article 16, ce

règlement à l’amiable peut, à la demande des parties et avec l’accord du tribunal arbitral,

être constaté par une sentence d’accord parties ». Ce type de sentence est un avatar du

contrat judiciaire ou du jugement de donné acte 64

. La solution du litige n’est plus, ici, de

nature juridictionnelle, mais de nature conventionnelle 65

; elle est prévue et encouragée par

la plupart des règlements d’arbitrage qui font de cette possibilité de solution amiable en

cours d’arbitrage une technique de gestion efficace de la procédure de règlement du litige

66. L’arbitrage subit alors la concurrence des autres modes alternatifs de règlement des

conflits.

Sous-section 2. – L’arbitrage à l’épreuve des autres modes alternatifs de règlement

des conflits

Un mot seulement suffira sur cette concurrence qui, à certains égards, est un effet

pervers de l’institutionnalisation de la justice arbitrale, déjà observé par plusieurs auteurs

63 Voy. anc. art. 1482 CPC. Cet effet n’apparaît plus dans les nouveaux textes. Voy. art. 1489 et 1490 CPC, le

premier se contentant de prévoir que « la sentence n’est pas susceptible d’appel sauf volonté contraire des

parties ». C’est que, en vérité, le principe est désormais celui de l’absence d’appel, que la sentence soit en

droit ou en équité. 64 Voy. L. CADIET, E. JEULAND, Droit judiciaire privé, préc., n° 105. 65 Voy. Cass. 1

re civ., 14 nov. 2012, n° 11-24.238, Procédures 2013, n° 46, obs. WEILLER ; Rev. arb. 2013,

138, note BILLEMONT : la simple constatation d’un accord entre les parties dans le dispositif de la

sentence, sans aucun motif au soutien de ce dispositif, ne peut s’analyser en une sentence constitutive

d’un acte juridictionnel ayant autorité de chose jugée. 66 Voy. p. ex. l’article 3.h.i de l’appendice IV sur les techniques de gestion de la procédure du Règlement

d’arbitrage CCI, qui rappelle que le tribunal arbitral peut « informer les parties qu’elles sont libres de régler

tout ou partie de leur litige par la négociation ou par toute méthode de règlement amiable des différends ».

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461

au premier rang desquels figurent Philippe Fouchard et Bruno Oppetit 67

. Les institutions

d'arbitrage présentent certes l'avantage de mettre à la disposition des parties une liste

d'arbitres, un règlement d'arbitrage et des structures matérielles d'accueil et de gestion de la

procédure (locaux, secrétariat, etc.). Mais la juridictionnalisation de l'arbitrage s'en trouve

accrue par les règlements d'arbitrage, qui imposent des formes et des délais de procédure,

organisent parfois même une procédure d'examen du litige à double degré68

. Cette

institutionnalisation de l’arbitrage est susceptible d’alimenter un phénomène de « dérives

procédurales » auquel Jean-Baptiste Racine avait consacré un article il y a plus de dix ans

déjà 69

. Le propos portait sur l’arbitrage international, mais l’arbitrage interne n’y échappe

pas. L'arbitrage y perd l'avantage de sa souplesse comme celui de sa rapidité en y gagnant,

si l'on peut dire, l'inconvénient d'un coût accru car la courbe des frais de la procédure

d'arbitrage a tendance à s'élever au fur et à mesure qu'il s'institutionnalise70

. Il en résulte

que, comme l’avait écrit Bruno Oppetit, « par l'effet d'une loi de substitution si souvent

vérifiée dans la vie des institutions juridiques » 71

, on assiste au développement de modes

de règlement des litiges alternatifs à l'arbitrage lui-même et, au premier chef, de la

médiation, avec les mêmes risques de processualisation qui ont précédemment affecté

l’arbitrage 72

. Le développement est tel que la médiation a en effet tendance elle aussi à

s’institutionnaliser au point que la plupart des organismes permanents d’arbitrage sont

devenus des centres d’arbitrage et de médiation qui proposent à leurs adhérents une vaste

palette de solutions alternatives au règlement juridictionnel des litiges, depuis la médiation

jusqu’aux ORD en passant par l’avis technique amiable, l’évaluation juridique

67 Voy. spéc. Ph. FOUCHARD, « Les institutions permanentes d'arbitrage devant le juge étatique », Rev. arb. 1987, p. 225 et s. – B. OPPETIT, « Justice étatique et justice arbitrale », in Études offertes à Pierre Bellet,

Paris, Litec, 1991, p. 415 et s. 68 V. p. ex. M. RUBINO-SAMMARTANO, « Le degré arbitral d’appel dans l’arbitrage international », in Y.

STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, Paris, L’Harmattan, 2012, p. 111 et

s. 69 J.-B. RACINE, « Les dérives procédurales de l'arbitrage », in J. CLAM et G. MARTIN (dir.), Les

transformations de la régulation juridique, Paris, LGDJ, 1998, p. 229-247. 70 V., en dernier lieu, Th. CLAY et W. BEN HAMIDA (dir.), L’argent dans l’arbitrage, Paris, Lextenso, 2013, à

paraître. 71 B. OPPETIT, « Les modes alternatifs de règlement des différends de la vie économique », Justices, n° 1,

1995, p. 53-59, spéc. p. 55. Voy. également J.-B. RACINE, op. cit., p. 244-247. 72 Voy. Ph. FOUCHARD, « Arbitrage et modes alternatifs de règlement des litiges du commerce

international », in Souveraineté étatique et marchés internationaux à la fin du XXe siècle, Mélanges en

l'honneur de Philippe Kahn, Litec, 2001, p. 95 et s.

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indépendante, les dispute boards, la décision sur dernière offre, le mini-trial, la décision

d’urgence et même des formules alternatives hybrides combinant médiation et arbitrage 73

.

On parle alors de med-arb dans lequel la médiation et l’arbitrage peuvent être

combinés soit dans le temps, soit dans l’espace 74

. Dans le med-arb ordinaire,

diachronique, un arbitrage succède à une médiation en cas d’échec de cette dernière pour

tout ou partie du litige, les deux phases du processus étant mises en œuvre devant la même

personne, qui remplit donc deux missions successives. Dans le med-arb simultané,

synchronique, que propose notamment le Centre d’arbitrage et de médiation de Paris, les

deux procédures sont mises en œuvre simultanément et indépendamment l’une de l’autre,

ce qui est supposé garantir aux parties, sans perte de temps comme dans le med-arb

ordinaire, une solution amiable ou imposée du litige. Dans ce cas, la médiation n’est plus

un préalable à l‘arbitrage. Cette deuxième formule permet d’éviter les objections que

soulève la première en termes de cumul de fonctions, donc de confidentialité et

d’impartialité du tiers saisi 75

. Mais ce gain supposé de temps se fait au prix d’un

alourdissement de la procédure de règlement qui est une autre source d’inconvénient76

.

En conclusion, le système des modes alternatifs de règlement des conflits est donc

pluriel, comme l’est le système plus général de justice dans lequel ces modes s’inscrivent

aux côtés de techniques traditionnelles de solution judiciaire des litiges. Tous ces éléments

sont globalement solidaires et l’arbitrage, plus que tout autre en raison de son ambivalence

constitutive, est un bon observatoire des mutations contemporaines de la justice.

73 Sur la décision d’urgence, voy. not. E. LOQUIN, « L’arbitre d’urgence, un objet juridique non identifié »,

IJPL / RIDP 2012, n° 2, p. 261 et s. 74 Voy. Ch. JARROSSON, « Les modes alternatifs de règlement des conflits : présentation générale », in Les

modes alternatifs de règlement des conflits : rencontres internationales de droit comparé, RIDC 1997, p. 325

et s., spéc. n° 49 à 52. – A. BURR, « Med-arb : A viable Hybrid Solution ? » in Les arbitres internationaux,

Paris, Société de législation comparée, 2005, p. 57 et s. 75 Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 55. 76 Comp. D. PARAGUACUTO-MAHÉO, « Pour plus de médiation en arbitrage international », Gaz. Pal. 14-16

oct. 2012, 19.

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463

LAICIDADE OU DITADURA DO AGNOSTICISMO?

Luiz Marcelo Cabral Tavares

Mestre em Direito Processual pela UERJ, Procurador do

Estado de Minas Gerais, Advogado.

RESUMO: O artigo tem por objetivo fomentar o debate acerca da observância das

garantias do processo, mormente em temas relevantemente controvertidos ora

representados por duas ações específicas. No contexto, o postulado do contraditório, como

manifestação do princípio político da participação democrática haveria de servir como

ferramenta de arrefecimento do desacordo moral em torno dos assuntos que foram objeto

de referidas ações e de legitimação, além de proporcionar adequada cognição pelo Estado-

Juiz. Enfim, reconhecendo-se a aridez do tema, o escopo é abrir um canal de diálogo, seja

no âmbito acadêmico, seja pelos operadores do Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Laicidade – razão pública – devido processo – contraditório.

ABSTRACT: This paper aims to improve the debate on compliance with the guarantees of

the lawsuit especially on controversial topics relevantly now represented by two specific

claims. In context, adversarial postulate as an expression of political principle of

democratic participation would serve as a tool cooling of moral disagreement around issues

that were the subject of such claims and legitimacy as well as a providing adequate

cognition by the Judge. Finally, recognizing the intricacy of the subject, the scope is to

open a gate of dialogue, whether in the academic, either by Law operators.

KEYWORDS: Secularism – public reason – due process – adversarial principle.

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464

1. INTRODUÇÃO

A ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.61001 proposta pela Procuradoria

Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo e, pouco antes, nos idos de abril de 2012, a

arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 542 trataram de temas que

provocaram e ainda provocam questionamentos. Dentro da perspectiva acadêmica do

debate, é oportuno consignar que referidos questionamentos não vieram apenas de leigos,

tendo a perplexidade surgido, por exemplo, no próprio julgamento da ADPF mencionada,

com o voto divergente do Ministro Cezar Peluso, então Presidente do Supremo Tribunal

Federal:

“Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos anencéfalos, ao arrepio

da legislação existente, além de discutível do ponto de vista científico, abriria as portas

para a interrupção de gestações de inúmeros embriões que sofrem ou viriam sofrer outras

doenças genéticas ou adquiridas que de algum modo levariam ao encurtamento de sua vida

intra ou extra-uterina”, disse.

Peluso comparou o aborto de fetos sem cérebro ao racismo e também falou em

"extermínio" de anencéfalos. Para o presidente do STF, permitir o aborto de anencéfalo é

dar autorização judicial para se cometer um crime.

"Ao feto, reduzido no fim das contas à condição de lixo ou de outra coisa

imprestável e incômoda, não é dispensada de nenhum ângulo a menor consideração ética

ou jurídica nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica que lhe vem da

incontestável ascendência e natureza humana. Essa forma de discriminação em nada difere,

a meu ver, do racismo e do sexismo e do chamado especismo", disse Peluso.

"Todos esses casos retratam a absurda defesa em absolvição da superioridade de

alguns, em regra brancos de estirpe ariana, homens e ser humanos, sobre outros, negros,

judeus, mulheres, e animais. No caso de extermínio do anencéfalo encena-se a atuação

avassaladora do ser poderoso superior que, detentor de toda força, infringe a pena de morte

1 Trata-se de demanda que ficou conhecida na mídia por tencionar retirar a expressão “Deus seja louvado”

das notas de Real. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_direitos-

do-cidadao/12-11-12-2013-prdc-quer-excluir-expressao-201cdeus-seja-louvado201d-das-cedulas-de-reais.

Acesso em: 07 jan. 2013. 2 Trata-se da questão da interrupção da gravidez dos chamados fetos anencéfalos. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226954. Acesso em: 07 jan.

2013.

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a um incapaz de prescendir à agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa", completou o

presidente do STF, que proferiu seu voto antes de proclamar o resultado do julgamento.3

Ao longo do trabalho, ter-se-á oportunidade de exame mais detalhado acerca do

voto do Ministro Peluso, a intuir necessidade de maior reflexão sobre o tema. Imperioso

ressaltar que o substancial voto fora qualificado4 de “muito bem elaborado” e “com

impressionante lógica”.

Quanto à ação civil pública citada, tinha ela por objeto5:

1. DO OBJETO DA AÇÃO

A presente ação tem por escopo a obtenção de condenação da UNIÃO e do

BACEN à obrigação de fazer consistente em promover a retirada da expressão “DEUS

SEJA LOUVADO” das cédulas de Real, a qual foi incluída em constrangimento à

liberdade religiosa e em violação aos princípios da laicidade do Estado brasileiro, da

legalidade, da igualdade e da não exclusão das minorias.

Ora, o Estado laico, sendo certo que a “laicidade do Estado é um processo” 6, tem

como primeira consequência torná-lo:

imparcial em matéria de religião, seja nos conflitos ou nas alianças entre as organizações

religiosas, seja na atuação dos não crentes. O Estado laico respeita, então, todas as crenças

religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como respeita a não

crença religiosa. Ele não apóia nem dificulta a difusão das idéias religiosas nem das idéias

contrárias à religião.

O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral coletiva, particularmente

a que é sancionada pelas leis, deixa de ter caráter sagrado, isto é, deixa de ser tutelada pela

religião, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as

leis, inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação

3 A despeito dos perceptíveis erros de ortografia e gramática, o texto, por óbvio, foi reproduzido como

encontrado no original. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-

que-aborto-de-feto-sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 08 jan. 2013. 4 As duas adjetivações que se seguiram foram veiculadas no conhecido periódico jurídico digital Migalhas.

Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI153536,21048-

STF+decide+que+nao+e+crime+interromper+a+gravidez+em+caso+de. Acesso em: 08 jan. 2013. 5 Disponível em: http://www.prsp.mpf.gov.br/prdc/sala-de-imprensa/pdfs-das-

noticias/ACP%20Deus%20seja%20louvado%2012-11-12.pdf. Acesso em: 12 jan. 2013. 6 Extraem-se noções de laicidade, por ora, do Observatório da Laicidade do Estado, que integra o Núcleo de Estudos e Políticas Públicas em Direitos Humanos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao3.html.

Acesso em: 12 jan. 2013.

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de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos. O Estado laico não pode

admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada ou

vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos valores religiosos.

Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que os religiosos de todas as

crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não

crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade.

De todo modo, vale não esquecer que a laicidade do Estado é um processo. Não existe no

mundo um Estado totalmente laico, como não existe um Estado totalmente democrático.

Como a democracia, a laicidade é um processo, uma construção social e política.7

Sendo um processo, como dito, a laicidade não pode prescindir da participação -

que se espera democrática - de todos os segmentos da sociedade, dentre eles os religiosos.

Ademais, salta aos olhos e causa perplexidade perceber que se reconhece que “não existe

no mundo um Estado totalmente laico”.

Por óbvio que em se tratando da criatura humana, a perfeição é impensável, mas

as decisões a que temos sido submetidos não têm convencido de que sejam suficientemente

próximas a “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa

mediania” 8, ao menos no que tange ao procedimento adotado para as justificações

públicas9 exigíveis num Estado Democrático de Direito.

Para além de “discutível do ponto de vista científico” 10

como destacado pelo

Ministro Peluso, sob o ponto de vista processual, notadamente da fundamentação analítica

das decisões11

, a intervenção de determinadas entidades ficou aquém do esperado.

Requerida a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil, despachou12

laconicamente Sua Excelência, o Ministro Marco Aurélio, após informações da Assessoria:

7 Igualmente retirado do Observatório da Laicidade do Estado antes citado. 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de

W. D Ross. 4.ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 9 É oportuna a leitura de “John Rawls” de Nythamar de Oliveira in Dicionário de Filosofia de Direito, obra

coletiva coordenada por Vicente de Paulo Barreto, ed. Unisinos, 2009, p. 687-690. 9 É oportuna a leitura de “John Rawls” de Nythamar de Oliveira in Dicionário de Filosofia de Direito, obra

coletiva coordenada por Vicente de Paulo Barreto, ed. Unisinos, 2009, p. 687-690. 10 Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-que-aborto-de-feto-

sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 08 jan. 2013. 11 MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. Disponível em:

http://www.academia.edu/218490/O_Precedente_na_Dimensao_da_Igualdade. Acesso em: 12 out. 2013. 12 A decisão mencionada fora divulgada em 20 de abril 2012 e publicada em 23 de abril de 2012, conforme veiculado no sítio do Supremo Tribunal Federal na rede mundial de computadores. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226954. Acesso em: 08 jan.

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DECISÃO

ADPF 54 – ANENCEFALIA – ASSOCIAÇÃO MÉDICO ESPÍRITA DO BRASIL –

TERCEIRO – PARTICIPAÇÃO – INDEFERIMENTO

1. A Associação Médico Espírita do Brasil, por meio de memorial apresentado na data de

hoje, requer a inclusão no processo na qualidade de “amigo da corte” a fim de proferir

sustentação oral na sessão plenária da próxima quarta-feira, dia 11 de abril.

2. Tal como ocorrido em outros pedidos, não vislumbro conveniência maior na

participação do requerente na relação processual.

3. Indefiro o pedido.

4. Publiquem.

A nosso sentir, a conclusão a que se chega com a decisão acima discriminada é

controversa e não imediatamente apreensível sob a perspectiva de equidade de Rawls, ou

seja, vista como “exigência de imparcialidade” 13

e, portanto, ‘baseada em sua idéia

construtiva de posição original, que é central para sua teoria da “justiça como equidade”’14

.

Tampouco os métodos do “equilíbrio reflexivo” 15

e da “ideia de razão pública” 16

dão

suporte à decisão mencionada. Ora, abstraindo e indo além da questão das doutrinas

abrangentes e do paradigma adotado da Teoria da Justiça de Rawls, é imperioso observar

não haver certeza científica, por exemplo e ao menos em alguns casos, acerca das

peculiaridades e características da anencefalia e da meroencefalia. Dessarte, incerteza

13 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011. p. 84. “A especificação de Rawls das exigências de imparcialidade é baseada

em sua ideia construtiva de posição original, que é central para sua teoria da “justiça como equidade”. A

posição original é uma situação imaginada de igualdade primordial, em que as partes envolvidas não têm

conhecimento de suas identidades pessoais, ou de seus respectivos interesses pelo próprio benefício, dentro

do grupo como um todo. Seus representantes têm de escolher sob esse véu de ignorância, ou seja, em um

estado imaginado de ignorância seletiva (especialmente, ignorância sobre os interesses pessoais característicos e concepções reais de uma vida boa – conhecendo apenas o que Rawls chama de “preferências

abrangentes”), e é nesse estado de concebida ignorância que os princípios de justiça são escolhidos por

unanimidade.” 14 Ibidem. p. 84 15 SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Disponível em:

http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/143.pdf. Acesso em: 28 jan. 2013. O equilíbrio reflexivo é um dos

métodos de justificação na teoria da justiça como equidade de Rawls que consiste, em linhas gerais, em

juízos morais convergentes da cultura pública de uma sociedade democrática, dentre eles a tolerância

religiosa. 16 Ibidem. Tal qual o equilíbrio reflexivo, é método de justificação na teoria da justiça como equidade. “(...) a

ideia de razão pública afirma que as questões constitucionais essenciais e os elementos de justiça básica são afirmados a partir de valores políticos que podem ser endossados por todos os cidadãos na forma de um

consenso sobreposto (overlapping consensus) entre doutrinas abrangentes, o que demonstra uma proximidade

com o pragmatismo.” Para aprofundamento do tema, remete-se o leitor ao original.

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assim surgida exigiria (exige) maior debate, sob pena de se configurar parcialidade e

ausência de justificação nas decisões a se concretizarem dessa forma.

Desafortunadamente, parece que o avassalador fluxo de informações e o frenético

dinamismo da sociedade têm atingido em cheio as funções estatais, notadamente a

Jurisdição, que se submete a uma rotinização e uma padronização decisória divorciada de

suas graves atribuições e incumbências. Em paralelo, questões que mereciam um debate

maior e profunda reflexão, como a destacada linhas atrás (laicidade do Estado e suas

consequências) são igualmente decididas na “velocidade da informática”. Não se tem a

ilusão de que o Judiciário, mesmo diante da abrangência do assunto e dos outros meios

para tratá-lo (o da lei, por exemplo), deixaria de enfrentar temas como esse, o que lhe é

vedado, aliás, tendo em vista os termos do artigo 126 do Código de Processo Civil17

:

O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No

julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à

analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

Com efeito, não é desejável sejam impostos dogmas a quem quer que seja, como

se deu outrora, vindo à mente os desvirtuamentos praticados por ocasião da “Santa

Inquisição”. Entretanto, não é salutar, igualmente, uma imposição velada e atécnica do

agnosticismo, do ateísmo ou coisa que o valha - até porque não é disso que trata a

laicidade18

-, mormente no âmbito da jurisdição.

Em linhas gerais, são essas as reflexões propostas. Nesse contexto, é de bom

alvitre uma rápida incursão em capítulo acerca da postura dos tribunais ao longo História

recente, até para que se compreenda o enfrentamento das controvérsias nos dias de hoje

pelo Poder Judiciário. Em paralelo, tratar-se-á do princípio do contraditório, manifestação

do princípio político da participação democrática, igualmente importante para o que se

vem expor.

17 BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 12 jan. 2013. 18 Sempre oportuna, vale a leitura do artigo do Professor Daniel Sarmento, cujo título é “O crucifixo nos

tribunais e a laicidade do Estado” publicado na Revista Eletrônica PRPE. Disponível em: http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.

Acesso em: 12 jan. 2013. Ter-se-á oportunidade de perpassar, ao longo do trabalho, por outras considerações

do Professor Daniel Sarmento, que são úteis ao tema em estudo.

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2. ESCORÇO HISTÓRICO: DA MICROLITIGAÇÃO À EXPLOSÃO DE

LITIGIOSIDADE

No Estado Liberal, período que se estende pelo Século XIX até o final da Primeira

Grande Guerra, o Poder Judiciário se apresentava neutro politicamente, quando, então,

atuava retroativamente, através da subsunção racional-formal, sem referências éticas,

praticando uma justiça retributiva. Reconstituía, assim, uma realidade normativa pré-

constituída e garantia que a lei chegasse aos seus destinatários sem distorções.

A independência do Judiciário consistia em se sujeitar ao império da lei, dirigindo

o processo decisório. Nesse contexto, aquela garantia coexistia com a dependência

administrativa e financeira em face do Legislativo e do Executivo, garantindo a proteção

da liberdade.

Com o evolver da história, as condições políticas do Estado Liberal foram se

alterando em ritmos distintos nos diversos países, até que com as vicissitudes da ocasião se

chegasse ao período do Estado Providência, cuja consolidação se deu após a 2ª Guerra

Mundial. Com o predomínio do Poder Executivo, a teoria da separação dos poderes entra

em declínio, surgindo um instrumentalismo jurídico com superprodução legislativa, ou

seja, um caos normativo, que inviabiliza a subsunção racional-formal.

A promoção do bem-estar característica desse período ladeada pelo componente

repressivo provoca a juridificação da justiça distributiva. A liberdade que era exercida

contra o Estado passa a ser por ele promovida.

O surgimento de atores coletivos traz a reboque uma proliferação de direitos.

Há, nesse período, como é intuitivo, um aumento da procura pelo Judiciário, o que

deu ensejo ao confronto com sua parcela de responsabilidade política, desaparecendo a

neutralidade do primeiro período.

Se se mantivesse neutro, o Judiciário até poderia assegurar sua independência

conforme se apresentava, mas veria seu papel diminuir de importância, com risco de se

tornar irrelevante socialmente. Por outro lado, assumindo sua responsabilidade, defrontar-

se-ia com as outras funções estatais, seria por elas pressionado. Deu-se a opção pela

segunda alternativa, quadro que recrudesceu com a luta pelos direitos civis e políticos, nos

EUA, nos anos 60, na Itália, nos anos 70 e em menor escala nos países onde houve melhor

promoção de direitos, como na Escandinávia.

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Essas modificações exigiriam e exigiram enormes burocracias, os desvios

fomentaram o paternalismo estatal e na década de 70 e 80 do século passado, entra em

declínio o Estado Providência. Esse período marcado por ditaduras, por períodos de

repressão e pelo quadro do pós-guerra, intuitivamente, funcionaria como catalisador de

mudanças.

Automação, desregulamentação e globalização da economia e proeminência das

agências financeiras internacionais são características da crise do Estado Providência,

emergindo o modelo neoliberal.

A mesma sobrejuridificação do período anterior prossegue e continua a provocar

um caos normativo, só que agora, de modo paradoxal, para promover a desregulamentação

da economia: novas normas substituem ou apenas complementam as anteriores.

Em paralelo, surge uma legislação transnacional que se soma à inflação

legislativa.

Os litígios surgidos das relações transnacionais não se submeteriam aos tribunais

nacionais, que, por sua vez, começaram a impor filtros à procura doméstica, tendo essa

última aumentado sobremaneira.

Desigualdade social e litígios complexos, que surgiram nesse período em virtude

do advento de normas programáticas, inclusive de cunho econômico, enfim, aumento da

litigiosidade, todos esses fatores fizeram surgir, em face do despreparo dos magistrados

para essa nova realidade, rotinização e o produtivismo quantitativo.

O incremento da democracia no pós-guerra, a despeito de suas incontestáveis

vantagens e irremediável advento naquele contexto, viu-se face a face com o despreparo

estatal referido e provocou inconvenientes.

A democracia se caracteriza por comportar uma classe política mais ampla e uma

menor concentração do poder, tendo os agentes políticos um contato maior com agentes

econômicos. Referida dispersão de poder dá ensejo, como se tem visto, a episódios de

corrupção.

É assim que predominam nesse terceiro período a corrupção, o crime organizado

que se liga ao tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro, fatores que vão colocar os

tribunais no centro de intrincado problema de controle social. O protagonismo judicial,

nesse terceiro período, sem abandonar a litigiosidade civil do segundo período, dar-se-á

com mais incidência na seara penal.

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Interessante notar que nesse terceiro período, a rotinização e a padronização

decisória influenciarão, igualmente, a seara criminal, com criação de estereótipos e

“especialização” em determinados tipos de delitos.

O destaque do Judiciário nesse período pode ser exemplificado pela Operação

Mãos Limpas, na Itália.

O despreparo dos tribunais do segundo período em litígios complexos se une à

falta de vontade política do terceiro período, haja vista a imbricação com outros setores do

poder e agentes econômicos.

É de se delimitar que a reconstrução antes resumida diz respeito aos países

centrais, os mais desenvolvidos no mundo.

O nível de desenvolvimento sócio-econômico interfere na litigiosidade social e

judicial. Apesar de não se poder estabelecer uma relação estável entre desenvolvimento

econômico e político, é fato que os países menos desenvolvidos passaram por períodos de

instabilidade política, o que também interfere e interferiu na função jurisdicional.

Quanto aos países menos desenvolvidos, muitos deles foram, durante o período do

Estado Liberal, colônias, sendo o Estado Providência “fenômeno político exclusivo dos

países centrais” 19

.

É conhecida a desigualdade social e a precariedade dos direitos econômicos e

sociais nos países periféricos e semiperiféricos, como o Brasil, o que coloca os tribunais e

o papel do direito à prova, fator que recebe o reforço da constitucionalização abrangente

promovida, notadamente entre nós, após 1988.

Os três períodos antes mencionados e referentes aos países centrais correspondem

a três tipos de prática democrática e atuação política, o que não coincide com a experiência

vivida pelos países periféricos e semiperiféricos.

A neutralidade política, a prática da subsunção racional-formal, a microlitigação,

o caráter reativo condicionado à procura pelos cidadãos e a dependência orçamentária e

administrativa é o que caracterizou os tribunais nos países periféricos e semiperiféricos,

algo que só recentemente vem mudando.

19 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas

sociedades contemporâneas. Disponível em

http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm. Acesso em: 08 jan. 2013.

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Com o declínio, nos anos 70 e 80, dos regimes ditatoriais nos países periféricos e

semiperiféricos, a consagração constitucional de mais de um século de direitos provocou

um curto-circuito histórico20

nesses países.

Os tribunais e, como é intuitivo, o ensino jurídico receberam a influência desse

período de neutralidade. A constitucionalização do direito ordinário e os direitos que

passaram a ser vindicados provocaram um impacto na cultura desses países, que

lentamente e com dificuldade, vão assimilando e se adequando às mudanças. A

corresponsabilidade política provocou e têm provocado os problemas com os quais

passaram a viver os tribunais nos países periféricos e semiperiféricos.

Essa postura, essa configuração, para além de provocar questionamentos acerca da

independência dos tribunais, também o tem feito com o seu desempenho e sua capacidade

institucional, o que não tem passado ao largo da avaliação dos operadores e destinatários

da prestação jurisdicional.

A sociedade cresceu e se tornou complexa, o que repercutiu na capacidade do

Estado de prover os direitos básicos. Em paralelo, o Poder Legislativo, premido por um

déficit de legitimidade, não tem sido capaz de acompanhar os anseios sociais. O acesso ao

direito e à justiça21

, ainda que incipiente, desembocou, então, nos tribunais, que, diante da

retração das duas outras funções estatais, têm se confrontado com uma

corresponsabilidade, que, no entanto, tem sido exercida de modo, de certa forma,

heterodoxo e muitas vezes sem a pertinente observância das garantias do processo.

O reconhecimento da força normativa às constituições dos estados22

também

requer sejam obedecidas as regras que emanam do devido processo legal, o que nos remete

às garantias que vislumbramos terem sido inobservadas (como na hipótese da ADPF 54 em

relação à Associação Médico-Espírita do Brasil), notadamente o contraditório

participativo23

, que é “a expressão processual do princípio político da participação

democrática, que hoje rege as relações entre o Estado e os cidadãos na Democracia

20 Ibidem. 21 Sobre o tema, conferir GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2010. p. 10. 22 A propósito, confira-se CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da

Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 890. 23 GRECO, Leonardo. A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa. Disponível

em: http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista09/Artigos/LeonardoGreco.pdf. Acesso em: 14 jan.

2013.

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contemporânea” 24

. A propósito, é consequência da ideia-fonte consubstanciada no devido

processo legal “proteger o indivíduo contra o arbítrio judicial e estatal” 25

, permitindo-se às

partes dialogarem com o juiz dando-lhe subsídios para o julgamento da causa, pois que “o

exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a

Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados” 26

.

Desafortunadamente, a avalanche de demandas sobre o Poder Judiciário parece

impelir os juízes a um produtivismo quantitativo reforçado pelo estabelecimento de

metas27

, sendo certo que “a luta contra o tempo não pode sacrificar as garantias processuais

asseguradas pela Constituição” 28

. Com mais razão, numa hipótese como a da ADPF 54,

onde a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil, como mencionado, fora

indeferida laconicamente e sem a necessária fundamentação analítica.

Enfim, do que se vem expor, vislumbrou-se carência de justificações públicas nas

decisões apontadas, de certa forma, como consequência dos desdobramentos históricos e

culturais apontados.

3. CONTRADITÓRIO E COGNIÇÃO ADEQUADA

Revelam-se igualmente importantes para o presente estudo algumas considerações

acerca do contraditório, mormente diante do panorama da ADPF 54 multicitada. Senão,

vejamos.

As relações intersubjetivas dirigidas a um fim necessitam diálogo para

conhecimento de todas as circunstâncias que a elas se referem, sob pena de

consubstanciarem perspectivas parciais e unilaterais. Não se ignora que é preciso

racionalizar as diversas opiniões a fim de que se chegue a um denominador comum. As

assertivas anteriores se aplicam ao microcosmo do processo, já que “el proceso es relación

jurídica, se dice, em cuanto varios sujetos investidos de poderes determinados por la ley,

24 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 539. 25 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-

valorativo. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 130. 26 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, volume I. 6.ª ed. São Paulo:

Malheiros Editores, 2009, p. 220. 27 Disponível em:http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/. Acesso em: 05 ago. 2012. 28 ROQUE, André Vasconcelos. A luta contra o tempo nos processos judiciais: um problema ainda à busca de uma solução. In: Revista Eletrônica “Temas Atuais de Processo Civil”, v. 1, n. 4, outubro de 2011, ISSN

2236-8981. Disponível em: http://www.temaisatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/51-v1-n-4-

outubro-de-2011-. Acesso em: 05 ago. 2012.

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actúan en vista de la obtención de un fin”29

. O juiz como um dos atores da relação jurídico-

processual30

deve se inteirar, envolver-se, pois que, como veremos, “a garantia

constitucional do contraditório endereça-se também ao juiz, como imperativo de sua

função no processo e não mera faculdade (o juiz não tem faculdades no processo, senão

deveres e poderes).” 31

.

Quer-se crer que o contraditório, para além dos reclamos da ordem pública

processual, seja capaz de atender as exigências da cognição adequada, possibilitando, ao

menos em tese, viabilizar ao juiz inteirar-se das circunstâncias da causa submetida à sua

apreciação através da participação dos sujeitos envolvidos, pois que

o contraditório também pressupõe o direito das partes de apresentar alegações, propor e

produzir provas, participar da produção das provas requeridas pelo adversário ou

determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as providências que possam ter

utilidade na defesa de seus interesses, de acordo com as circunstâncias da causa e as

imposições do direito material.32

Vale ressaltar que

a audiência bilateral tem origem na Antiguidade grega, mencionada por Eurípedes,

Aristófanes e Sêneca (Picardi), chegando ao Direito comum como um princípio de Direito

Natural inerente a qualquer processo judicial, consistente no princípio segundo o qual o

juiz somente está apto a decidir o pedido do autor depois de notificá-lo ao réu e de dar a

este a oportunidade de se manifestar. Ainda em nossos dias, autores sustentam esse

fundamento jusnaturalista do contraditório (Guinchard).33

Não se ignora que possa vir a ser usado como argumento o fato de se estar diante

de processo objetivo. Entretanto, a unção democrática em processos dessa natureza se

revela, justamente, através da participação dos amici curiae, que conferem um caráter

discursivo ao processo. Aliás, “somente o caráter discursivo do processo de deliberação é

29 COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 4.ª ed. Montevideo – Buenos Aires:

Julio César Faira Editor, 2010. p. 107. 30 V. GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.

257. 31 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual, volume I. 6.ª ed. São Paulo:

Malheiros Editores, 2009. p. 226. 32 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 540. 33 GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório in BARRETO, Vicente de Paulo (Coordenador).

Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p. 154.

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capaz de fundamentar a possibilidade de autocorreções reiteradas e, destarte, a perspectiva

de resultados racionalmente aceitáveis” 34

.

Sobre o contraditório, qualquer demanda que tenha sido proposta e suas

posteriores comunicações deverão ser real e tempestivamente notificadas aos interessados.

Ou seja, incluem-se todos os eventos do processo, tais como, reitere-se, as audiências

(sessões dos tribunais) com suas intercorrências e as decisões - analiticamente

fundamentadas35

- acerca de sua necessidade ou não.

O princípio do contraditório pode ser definido como aquele segundo o qual ninguém pode

ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses, sem ter tido a ampla

possibilidade de influir eficazmente na sua formação em igualdade de condições com a

parte contrária. O contraditório é a expressão processual do princípio político da

participação democrática, que hoje rege as relações entre o Estado e os cidadãos na

Democracia contemporânea.36

O processo é dialético e exige manifestação das partes antes que se tome qualquer

decisão. Um diálogo, diálogo humano, ainda que não seja um peremptório equacionador de

uma controvérsia, é capaz de arrefecer expectativas e de viabilizar a acomodação e

compreensão de opiniões conflitantes. Como exemplo, seria como o esforço “por uma

metodologia do diálogo” 37

, em episódio que veio a ser mediado pelo Arcebispo católico

de Boston e o Governador do Estado de Massachussets em decorrência de posições

conflitantes de instituições em face de tragédia provocada por John Salvi contra duas

clínicas que praticavam o aborto que levou a óbito duas funcionárias e feriu outras cinco.

Inicialmente, esse diálogo fora buscado por seis mulheres, dentre quais três posicionadas a

favor do aborto e três contra. Destaca-se do texto parte que ilustra a importância de um

diálogo humano, que pode ser concretizado, ressalte-se, através do contraditório

participativo no processo:

34 HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Trad. Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2003. p. 162. Apud BORGES, Lara Parreira de Faria. Amicus curiae e o projeto do Novo Código de Processo

Civil - Instrumento de aprimoramento da democracia no que tange às decisões judiciais. Revista Eletrônica

“Temas Atuais de Processo Civil”, v. 1, n. 4, outubro de 2011, ISSN 2236-8981. Disponível em:

http://www.temaisatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/51-v1-n-4-outubro-de-2011-. Acesso em: 14

jan. 2013. 35 Sobre a mencionada fundamentação analítica, confira-se MARINONI, Luiz Guilherme, op. cit. 36 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 539 37 JUNGES, José Roque. Aborto. In: BARRETO, Vicente (coordenador). Dicionário de Filosofia do Direito.

São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p. 20.

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O arcebispo católico de Boston e o governador do Estado de Massachussets lançaram um

apelo ao diálogo entre os dois movimentos que incentivou essas mulheres a darem início a

um diálogo que durou vários anos. Esse esforço significou um aprendizado de

esclarecimento das próprias posições e de compreensão da posição contrária e a construção

de pressupostos e princípios para uma metodologia de diálogo respeitoso sobre o aborto.

Chegou-se à clara consciência de que as posições dos dois movimentos são

irreconciliáveis, sendo por isso necessário não acusar ou desmoralizar os membros da

posição contrária, mas tentar compreender e dialogar para o bem da convivência social.

Nessa linha houve um árduo e difícil trabalho de polimento da linguagem para não se

referir à posição contrária de uma maneira ofensiva.

Numa sociedade democrática e pluralista, a única maneira de influir na busca de soluções

para determinados problemas, sem violência, é dialogar e participar da discussão com

clareza e pertinência sobre seus próprios argumentos e com respeito pela posição contrária.

O pressuposto para o diálogo é reconhecer que as posições em discussão têm relevância

social pelo fato de serem defendidas, pois apontam para males a serem superados e para

bens a serem defendidos. 38

Reitere-se que em processos da magnitude de uma ADPF não se pode prescindir

desse espectro legitimador. Nada obstante, a rotinização, a necessidade do atingimento de

metas – ou o que seria pior: o “oportuno” desprezo por opiniões religiosas “sem

fundamento” e por isso descartáveis -, tem feito apenas desconsiderar qualquer tentativa de

colaboração entre as partes e o juízo. Como se extraiu do texto e é inerente ao

conhecimento médio, o caminho “é dialogar e participar da discussão com clareza e

pertinência”. Num caso em que a discussão é a vida e onde a ciência apreensível pelo

conhecimento humano não é capaz de aferir com certeza científica sequer se se trata de

anencefalia ou merocrania (ou meroencefalia), não parece haver clareza ou pertinência.

Não se pode esquecer que “a contribuição kantiana para a reflexão sobre o estado

democrático de direito caracteriza-se pela ênfase na necessária complementaridade entre a

moral e o direito” 39

e, a partir daí, tem-se que:

38 Idem. Ibidem. 39 BARRETO, Vicente. Notas Kantianas sobre o Direito. In: BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos

Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 31.

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O conceito moral de direito diz respeito primeiramente à intesubjetividade na

reciprocidade (diretamente sobre “reciprocidade” Kant fala no § 8), a saber: “Só concerne

à relação exterior, e na verdade prática, de uma pessoa com outra, de modo que suas ações,

como factos, possam (imediata ou mediatamente) influenciar-se entre si” (230, 9-12). 40

O arbítrio há que se compatibilizar com a responsabilidade e, sendo assim,

questões como a que tratou a ADPF 54 necessitam amplo debate, claro e pertinente, para

que se justifique, para que se lastreie em justificação pública e, portanto, não parcial,

havendo que se ter em mente que “na filosofia política contemporânea, a compreensão da

democracia ampliou-se enormemente, de modo que já não seja vista apenas com relação às

demandas por exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com

relação àquilo que John Rawls chama de “exercício da razão pública” 41

.

Vê-se no contraditório participativo no âmbito do processo e das questões

públicas, enfim, no debate, o ponto fulcral da justificação pública, notadamente diante do

famigerado “desacordo moral razoável” 42

, onde razoáveis posições se apresentam como

inconciliáveis.

A imposição de óbice para intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil

da forma como se deu no caso concreto, definitivamente, não convence, mas, pelo

contrário, revela parcialidade a investir contra tudo que se expôs até agora.

Como se disse, não se esperava que o Poder Judiciário, através da Corte Suprema,

furtasse-se de sua essencial competência. No entanto, julgamento dessa magnitude, ao

invés de ofertar a justificação que se esperava e que fosse capaz de conciliar posições

antagônicas, não arrefece o desacordo e ignora a posição de terceiros, desvirtuando a noção

40 HÖFFE, Otfried. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da “Introdução à Doutrina do

Direito”. In: Studia Kantiana, Revista da Sociedade Kant Brasileira, Volume 1 – Número I (setembro de

1988), 1998. p. 215. 41 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011. p. 358. 42 O Professor Luís Roberto Barroso no artigo “Constituição, Democracia e supremacia judicial: Direito e

política no Brasil contemporâneo” dá uma visão panorâmica da expressão. O artigo pode ser acessado em:

http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf.

Acesso em: 19 jan. 2013. E Joana Teixeira de Mello Freitas traz, no artigo intitulado “O desacordo moral

razoável na sociedade plural do Estado Democrático de Direito”, disponível em

http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article/view/882/734, acessado em 19 jan. 2013, a noção da expressão: “O desacordo moral razoável, termo cravado pela filosofia, constitui-se perante a ausência de

consenso sobre uma questão polêmica cujos argumentos antagônicos são, ambos, originados de uma

conclusão racional.

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de laicidade e se aproximando de uma posição autoritária e desarrazoada, a que,

maieuticamente, chamou-se de “ditadura do agnosticismo”.

Lado outro, recapitulando o que aduzido no capítulo anterior, não se pode ignorar

a avalanche de casos a que é submetida a Corte Suprema, o que, por consequência, faz

intuir que, talvez, as controvérsias a ela levadas não sejam analisadas com a profundidade

que se espera. Essa quantidade desmesurada, a despeito dos filtros estabelecidos (o que

provoca, igualmente, debates acalorados), talvez abra espaço para “produzir”, assinar

outras decisões, documentos, eliminar pilhas de processo, etc. Fosse o contraditório

realmente um diálogo, a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil teria sido

admitida. Aliás, uma pergunta há que ser feita: teria a Associação Médico-Espírita tido seu

acesso negado por ostentar a rubrica de espírita? Se assim o foi, com efeito, de laicidade

não se está a tratar.

Vale ressaltar que o contraditório, hodiernamente, ganha, ainda que de modo

incipiente, “proteção humanitária” 43

, sendo (deveria ser), “provavelmente, o princípio

mais importante do processo” 44

.

Ele é um mega-princípio que, na verdade, abrange vários outros e, nos dias atuais, não se

satisfaz apenas com uma audiência formal das partes, que é a comunicação às partes dos

atos do processo, mas deve ser efetivamente um instrumento de participação eficaz das

partes no processo de formação intelectual das decisões. 45

Nesse diapasão, parece estreme de dúvidas que qualquer incidente, por menor que

seja, no processo (e no procedimento) não poderá ser levado a cabo sem que haja

verdadeira oportunidade de manifestação das partes em efetivo e participativo

contraditório, que, como visto, sendo um megaprincípio, abarca outros, como a ampla

defesa. O diálogo humano deve oportunizar às partes justificarem a razão de sua

intervenção e, em contrapartida, sendo o juiz um dos atores da relação processual, deve ele

declinar, fundamentando sua decisão analiticamente, as razões pelas quais defere ou

indefere determinado pleito.

43 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 540 44 Ibidem. p.540. 45 Ibidem. p. 540-541.

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Forçoso reconhecer que, muitas das vezes, senão na maioria, as partes são quem

têm melhores condições de fornecer as mais importantes peculiaridades para resolução da

causa, permitindo uma adequada cognição.

O produtivismo quantitativo, a padronização decisória e a busca irracional pela

celeridade têm minado a inafastável observância do contraditório, com pressões para

abandoná-lo ou mitigá-lo. O interesse público, que deve ser “precisamente determinado”

46, não é compatível com a postergação do princípio do contraditório enquanto expressão

da dignidade humana.

O contraditório, além de exigir a audiência dos demandantes antes de qualquer

decisão, consiste no “oferecimento a ambas as partes das mesmas oportunidades de acesso

à justiça e de exercício do direito de defesa, a chamada paridade de armas” 47

.

O diálogo pressupõe que os interlocutores manifestem as suas opiniões ainda que

hipotéticas e provisórias, numa audiência oral, porque somente o encontro, o contato

imediato entre o juiz e as partes instaura diálogo verdadeiro e humano como um exercício

leal de paciência, tolerância, humildade e respeito mútuo.

Lamentavelmente o Direito brasileiro em muitos procedimentos não prevê audiências

orais, e a quantidade de trabalho e de processos tem progressivamente afastado os juízes do

exercício fecundo do diálogo em audiências orais, o que reduz o contraditório a uma

garantia meramente formal, destituído de todo o seu vigor humanitário. 48

Bem amparados pelo contraditório, mister, agora, fazer algumas considerações

sobre o tema central.

4. LAICIDADE E AGNOSTICISMO

A despeito da densidade do tema, não é despiciendo buscar os sentidos

lexicográficos das palavras em questão para as reflexões deste capítulo. Senão, vejamos.

46 GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 15 fev. 2013. 47 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 545. 48 Ibidem. p. 546.

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Segundo o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa49

, laicidade significa

“doutrina ou sistema que preconiza a exclusão das Igrejas no exercício do poder político

e/ou administrativo”. Quanto ao agnosticismo, tem-se o seguinte:

substantivo masculino ( 1913) fil

doutrina que reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão

dos problemas propostos pela metafísica ou religião (a existência de Deus, o sentido da

vida e do universo etc.), na medida em que ultrapassam o método empírico de

comprovação científica

Etimologia

ing. agnosticism foi forjado em 1869 por Thomas H. Huxley (1825-1895, biólogo inglês)

nos seus Collected essays, calcado, por oposição a gnosticismo, no adjetivo gr. ágnōstos,

'ignorante, incognoscível' (com o prefixo a- 'privação, negação'), derivado do verbo gr.

agnóein 'não saber, ignorar'; segundo sua própria confissão bastante irônica, Huxley criou

o vocábulo como antítese ao gnóstico da história da Igreja, que sempre se mostrava ou

pretendia mostrar-se sabedor das coisas que ele, Huxley, ignorava; e foi como naturalista,

afeito às coisas e relações da ciência experimental, que Huxley se utilizou do termo; em

1879 Charles Darwin chamava-se a si mesmo agnóstico, em carta, já com essa

significação; o fr. agnosticisme já se documenta em 1886, rápido se divulgando as formas

correlatas nas línguas modernas de cultura; ver -gno-50

Tomando por base, agora, a ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.610051

,

surge o primeiro questionamento: a expressão “Deus seja louvado” nas notas de Real

atribui poder político ou administrativo a alguma igreja ou segmento religioso

imediatamente identificável?

49 Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss – UOL, 2012. Disponível

em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=laicidade. Acesso em: 19 jan. 2013. 50 Idem. Disponivel em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=agnosticismo. Acesso em: 19 jan. 2013. 51 Trata-se da ação que ficou conhecida na mídia por tencionar retirar a expressão “Deus seja louvado” das notas de Real. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_direitos-do-

cidadao/12-11-12-2013-prdc-quer-excluir-expressao-201cdeus-seja-louvado201d-das-cedulas-de-reais.

Acesso em: 07 jan. 2013.

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No que concerne ao sentido etimológico da palavra agnosticismo, observa-se uma

reação ao gnosticismo histórico da Igreja, revelando-se aquele primeiro, então, como

manifestação do empirismo. Ora, ocorre que o empirismo é metodologia comum e anterior

à ciência em geral, é conhecimento que provém da experiência e que se limita ao que pode

ser captado do mundo externo pelos sentidos52

. Nesse diapasão, tomam-se esses primeiros

questionamentos como emuladores do estudo. Veja-se, então.

O Texto Constitucional53

preconiza em seu artigo 19, I:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou

aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

O dispositivo acima consagra o princípio da laicidade, como destacado pelo

Professor Daniel Sarmento54

.

Sendo esclarecedor, importa trazer à colação excerto do trabalho do Professor

Daniel Sarmento:

A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais contemporâneas,

é um princípio que opera em duas direções. Por um lado, ela salvaguarda as diversas

confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões

internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados, a forma de

cultuá-los, a sua organização institucional, os seus processos de tomada de decisões, a

forma e o critério de seleção dos seus sacerdotes e membros, etc.

52 Essas noções podem ser extraídas do Dicionário Houaiss já citado no trabalho. Vale ressaltar que ao

Espiritismo também pode ser atribuído, em certa medida, o método empírico e que vem sendo objeto de

exame - como se constata ordinariamente através da mídia - pelos segmentos formais da Ciência. Fato digno

de destaque, a propósito, é a obra de Filosofia, como destacado em seu prefácio, de autoria do Professor da

Universidade de Havana, Fernando Ortiz, intitulada “A Filosofia Penal dos Espíritas: estudo de Filosofia

Jurídica”, traduzida por Carlos Imbassay, 2.ª ed, editada pela Lake, São Paulo, 1998. Como mencionado no

prefácio da obra, o autor não é espírita, não sendo a obra uma apologia ou crítica ao Espiritismo, cogitando-

se de uma análise sob a perspectiva da Criminologia. 53 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 jan. 2013. 54 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE. Disponível em:

http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.

Acesso em: 12 jan. 2013.

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Sob esta perspectiva, a laicidade opõe-se ao regalismo55

, que se caracteriza quando há

algum tipo de subordinação das confissões religiosas ao Estado no que tange a questões de

natureza não-secular.

Mas, do outro lado, a laicidade também protege o Estado de influências indevidas

provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e

democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão

religiosa, inclusive a majoritária. No presente estudo, o foco maior de atenção será a

segunda dimensão da laicidade do Estado acima apontada: aquela que protege o Estado da

religião.

A laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à

religiosidade. Na verdade, o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é também uma

crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer

outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em

relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar

partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer

crença.56

O princípio do Estado laico pode ser diretamente relacionado a dois direitos fundamentais

que gozam de máxima importância na escala dos valores constitucionais: liberdade de

religião e igualdade.57

É imperioso consignar que não se consegue identificar com a Divindade ou sua

ideia, de imediato, qualquer religião vigente, haja vista os diversos segmentos protestantes,

católico, Espiritismo como Doutrina codificada por Allan Kardec, segmentos carismáticos,

religiões africanistas, etc, que tomam Deus como paradigma máximo, a despeito de se lhe

atribuir, por vezes, nomes, o que não descaracteriza referidas religiões como monoteístas.

55 O texto original traz notas de rodapé, que serão destacadas entre aspas. Quanto ao regalismo, tem-se o

seguinte: “A Constituição brasileira de 1824, por exemplo, que definira a religião católica como o culto

oficial do país (art. 5º), incidia no regalismo, quando determinava competir ao Imperador, como chefe do

Poder Executivo, “nomear os Bispos, e prover os Benefícios Ecclesiasticos” (art. 102, inciso II) bem como

“conceder ou negar o beneplácito a actos da Santa Fé” (art. 102, inciso XIV)”. 56 Também consta do texto original, nessa parte, a seguinte referência: “J. J. Gomes Canotilho e Vital

Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 613.”. 57 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE. Disponível em:

http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.

Acesso em: 12 jan. 2013.

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Basta observar, a propósito, que Jeová é o nome de Deus58

, “que não pode ser tomado em

vão”, versão oriunda do hebraico, não sendo possível ilação no sentido de que a menção a

Deus seja excludente das Testemunhas de Jeová. Quanto à figura do Cristo, igualmente,

não há qualquer identidade com segmento religioso, sendo o Cristianismo gênero do qual

defluem várias espécies de doutrinas.

De outro lado, porém, vislumbra-se possível identificar com uma “não-divindade”

o agnosticismo e o ateísmo.

Vale notar que a laicidade do Estado “não significa a adoção pelo Estado de uma

perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade” 59

, o que denotaria uma crença, um dogma,

que não poderia (e não pode) ser encampado pelo Estado.

Quando se iniciou o presente trabalho, ficou demonstrado que o objetivo era

fomentar o debate acerca dos quadros que se configuraram por ocasião das duas ações

destacadas. E nesse contexto, não foi possível extrair das ações referidas (ADPF 54 e ação

civil pública 00119890-16.2012.4.03.6100), seja do desfecho da primeira, seja do

propósito da segunda, suficientemente, justificações públicas e alinhamento com os

postulados democráticos que fossem capazes, de modo cabal, de chegar aos objetivos por

elas almejados, notadamente a ADPF 54, sendo “claro o papel central da argumentação

pública para a compreensão da justiça” 60

.

Esse reconhecimento nos leva a uma ligação entre a ideia de justiça e a prática da

democracia, uma vez que na filosofia política contemporânea a ideia de que a democracia é

mais bem-vista como “governo por meio do debate” ganhou ampla aceitação.61

Com alguma antecipação no contexto do presente trabalho e a propósito da “ideia

de que a democracia é mais bem-vista”, “significado prescritivo” 62

da democracia e, além,

do uso, de certa forma, figurado da expressão “ditadura do agnosticismo”, ver-se-á, mais à

frente, um paralelo com as expressões atribuídas a Marx e Engels e que pode ser

58 Conferir no Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss – UOL, 2012.

Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=Jeov%25C3%25A1. Acesso em: 24 jan. 2013. 59 SARMENTO, Daniel. op. cit. 60 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011. p. 358. 61 Ibidem. p. 358. 62 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco

Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 139.

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substituída pelo termo “domínio” 63

, comparação também estabelecida com a noção de

“ditadura moderna” 64

, onde se compreende, outrossim, que a “extensão do poder, que não

está mais apenas circunscrito à função executiva, mas se estende à função legislativa e

inclusive à constituinte”65

.

Retornando, então, à citação de Amartya Sen, tem-se que tão significativo é o

debate, o diálogo, o contraditório participativo no âmbito do processo, que vale o destaque

de um discurso “injustamente famoso” 66

proferido por Clement Attlee, em Oxford, em

1957: “Democracia significa governo por meio do debate, mas ela só é eficaz se

conseguirmos evitar que as pessoas falem” 67

. Com efeito, sem a ironia da declaração, é

importante que todos falem, que se fale o possível, porque a “democracia ampliou-se

enormemente, de modo que já não seja vista apenas com relação às demandas por

exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo

que John Rawls chama de “exercício da razão pública”68

.

Abstraindo, para os fins do presente trabalho, dos outros dois métodos de

justificação na teoria da justiça como equidade atribuídos a Rawls (reflective equilibrium –

equilíbrio reflexivo e original position/veil of ignorance – posição original sob o véu da

ignorância) 69

, sobre a idéia de razão pública, tem-se o seguinte:

Por sua vez, a ideia de razão pública afirma que as questões constitucionais essenciais e os

elementos de justiça básica são afirmados a partir de valores políticos que podem ser

endossados por todos os cidadãos na forma de um consenso sobreposto (overlaping

consensus) entre doutrinas abrangentes, o que demonstra uma proximidade com o

pragmatismo.

Em linhas gerais, no que concerne à razão pública, as questões constitucionais

essenciais serão equacionadas pelos valores políticos, não se aplicando aquela às

deliberações e reflexões individuais sobre questões políticas. Inobstante a cientificidade da

tese, não se vislumbra possível se possa prescindir do “pluralismo razoável (reasonable

63 Ibidem. p. 162 64 Ibidem. p. 161. 65 Ibidem. p. 163. 66 Expressão destacada por SEN, op. cit., p. 358, em nota de rodapé. 67 Ibidem. p. 358. 68 SEN, Amartya. op. cit. p. 358. 69 SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Disponível em:

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pluralism), que é a base de uma concepção política de justiça (political conception of

justice)” 70

e que no âmbito do processo é capaz de ser atingido pela oitiva daqueles que

demonstrarem interesse, mormente diante de questões cientificamente controvertidas,

como o caso da anencefalia ou da merocrania (também chamada meroencefalia), que são

anomalias distintas. Isso, justamente para conferir maior legitimidade, afastar eventuais

controvérsias de uma “concepção abrangente de verdade” 71

, buscando, dessarte, o

“consenso sobreposto de doutrinas abrangentes e razoáveis” 72

. Parece importante e,

reitere-se, legitimador que se busque o maior espectro de opiniões, mormente diante de

desacordo de magnitude, por mais que se tenha consignado que “há apenas uma razão

pública e muitas razões não-públicas, como as razões das diversas associações: igrejas,

universidades, sociedades científicas e grupos profissionais (Rawls, 2005a, p. 220)” 73

.

Afinal, a cientificidade se caracteriza, como é consabido, por poder ser confrontada,

contraditada. Ademais, repise-se que em se tratando da criatura humana, muito longe se

está de um processo de depuração, para se falar o mínimo, o que gera perspectivas parciais

e questionamentos até mesmo acerca da razão pública:

Uma primeira dificuldade desse projeto observa que a razão pública admite mais de uma

resposta razoável em relação a uma questão específica, em função da existência da

diversidade de valores políticos (Rawls, 2005a, p. 240). (...) Uma segunda dificuldade quer

avaliar o significado de votar segundo uma opinião sincera (Rawls, 2005a, p. 241). (...) 74

Nesse sentido, através de uma “visão inclusiva” 75

, dever-se-ia permitir, pelo

menos com o benefício da dúvida, a intervenção de terceiros. E se referida intervenção, no

âmbito do processo, onde impera (deveria imperar) a razão pública, viesse a ser negada,

deveria sê-lo através de decisão analiticamente fundamentada.

Não deve um agnosticismo desarrazoado, torto, vir a ser imposto, figurando,

portanto, como uma doutrina abrangente, quiçá de forma tirânica ou como se compreende

a ditadura moderna. Nessa última, a característica distintiva é a extensão do poder, sua

70 Sobre o pluralismo razoável, Denis Coitinho Silveira, citado na nota anterior, reporta-se, na nota 4 da

página 67, a Samuel Freeman (Introduction. In: S. FREEMAN (ed.), The Cambridge companion to Rawls,

Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-61). 71 SILVEIRA, Denis Coitinho. op. cit. 72 Ibidem. 73 Ibidem. 74 Ibidem. 75 Ibidem.

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maior abrangência, que vai além da função executiva e pode se estender até a função

constituinte, substituindo, portanto e sob nossa perspectiva, o povo ou grande parte dele.76

Retornando, então, às sempre abalizadas ponderações do Professor Daniel

Sarmento, intui-se que por mais que se busque a neutralidade, afastando-se as Funções

Públicas da razão pública e dos postulados democráticos, como se vislumbrou na hipótese

vertente, sempre se identificará, a nosso sentir, em referida postura, um sentimento de

negação à religiosidade ou qualquer outra doutrina abrangente, mormente quando se passa

ao largo do debate franco, do contraditório participativo, o que parece ter ocorrido na

ADPF 54 e que vulnerou a busca do consenso sobreposto. Relembre-se que, linhas atrás,

foi retirado do texto do Observatório da Laicidade do Estado declaração no sentido de que

“não existe no mundo um Estado totalmente laico”. Falta a “sinceridade” identificada

como problema na Teoria de Rawls e antes mencionada. E essa postura, como uma

overdose do medicamento, do curativo, pode vir a se configurar, igualmente, uma doutrina

abrangente. Não se pode afastar posicionamento “A” ou “B” sob o único argumento de que

se filia à religião “C” ou “D”, já que é inafastável o exercício da razão pública pelas

Funções Estatais. Nos casos citados, especificamente, identificou-se, sem fundamento

razoável, um sentimento de negação à religiosidade, o que vulnera, em paralelo, o primeiro

aspecto da laicidade. Não podendo o Estado se furtar de enfrentar a questão, terá que

buscar por uma resposta, que se funde em razão pública. Oportuno, dessarte, pontuar

passagem do texto77

.

Sobre o caso Lynch v. Donnelly, 465, U.S., 668 (1984), relatou-se:

Também neste ponto foram esclarecedoras as palavras da Suprema Corte dos Estados

Unidos, quando afirmou, pela voz da Juíza Sandra Day O’Connor, que qualquer

comportamento do Estado que favoreça alguma religião “envia uma mensagem aos não-

aderentes de que eles são outsiders, e não plenos membros da comunidade política,

76 A tirania, em comparação com a “ditadura dos antigos”, é um desvirtuamento dessa última, diferenciando-

se dela por ser ilegítima, sem fundamento no estado de necessidade e não sendo limitada no tempo. A

ditadura moderna é divulgada através dos escritos de Marx e Engels, onde é identificada em expressões como

“ditadura do proletariado” e “ditadura da burguesia. Nesse contexto, passa a se referir não mais a uma pessoa

ou grupo de pessoas, mas a uma classe inteira, diluindo-se o significado originário, com o que poderia ser

substituída por “domínio” e, portanto, por expressão tipicamente marxiana e engelsiana, ou seja, “classe

dominante”. As noções são extraídas de Norberto Bobbio, a quem se remete e se recomenda a leitura, obra intitulada, sob tradução de Marco Aurélio Nogueira, de Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral

da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 139. 77 O texto a que se refere é o já mencionado de autoria do Professor Daniel Sarmento.

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acompanhada de outra mensagem aos aderentes, de que eles são insiders, membros

favorecidos da comunidade política”. 78

Em que pese a inclinação da Suprema Corte Americana, é inegável o simbolismo

transmitido por ocasião da posse dos Presidentes daquela nação, que fazem seu juramento

com a mão pousada sobre a Bíblia. Há algum tempo, depois de sua reeleição, o Presidente

Barack Obama ainda foi mais além, fazendo seu juramento com as bíblias que pertenceram

a Abraham Lincoln e a Martin Luther King79

, valendo ressaltar que quem o empossou, tal

qual o Vice-Presidente, foi um juiz da Suprema Corte. Ora, onde está a sinceridade

identificada como problemática por Rawls, de que lado ela está?

Voltando ao voto do Ministro Peluso na ADPF 54, disse Sua Excelência que se

estava diante do “maior julgamento realizado pelo Supremo porque o STF está decidindo o

conceito de vida” 80

. Provocando inevitáveis questionamentos quanto à imparcialidade e a

laicidade, em seu primeiro aspecto, sob a perspectiva protetiva das diversas doutrinas

religiosas e da igualdade, e quanto à “sinceridade” identificada como problemática na

teoria de Rawls, imperioso destacar o que noticiou o portal de notícias G1:

Ao final do julgamento, uma manifestante se exaltou e os ministros deixaram o plenário

enquanto ela gritava palavras de ordem. “Eu tenho vergonha. Hoje para mim foi rasgada a

Carta Magna. Se ela não protege os indefesos, que dirá a nós”, disse Maria Angélica de

Oliveira Farias, advogada e participante de uma associação de espíritas. 81

78 SARMENTO, Daniel. op. cit. 79 A notícia fora veiculada pela mídia em geral, sendo possível a consulta pelo portal de notícias G1 de 21

jan. 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/01/obama-vai-prestar-juramento-sobre-biblias-de-lincoln-e-de-luther-king.html. Acesso em: 24 jan. 2013. 80 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI153536,21048-

STF+decide+que+nao+e+crime+interromper+a+gravidez+em+caso+de. Acesso em: 06 fev. 2013.

Extraíram-se, ainda, do periódico, as seguintes falas atribuídas ao Ministro: Não é possível deferir o pedido

nem com “malabarismo hermenêutico ou ginástica de exegese”; Para ele, a vida humana não pode ser

“relativizada” segundo “escala cruel” para definir quem tem ou não direito a ela; Ministro diz que o aborto

de feto anencefálico se aproxima de modo preocupante à eutanásia; “O que se pretende é a autorização

judicial para cometer um crime”; De acordo com o Ministro, falar em “interrupção terapêutica da gravidez” é

um eufemismo; “A natureza não tortura”; Culpando o Legislativo por não enfrentar o tema, ministro termina

seu voto julgando totalmente improcedente a ação. Causa perplexidade dar-se conta de que o ser humano, em

relação ao próprio ser humano, está “estabelecendo” o início da vida, algo que nem a ciência se atreveu, por ora, a fazer. 81 Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-que-aborto-de-feto-

sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 06 fev. 2013.

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Despida a decisão na ADPF 54, como dito, da inafastável fundamentação

analítica, notadamente quanto ao pleito de intervenção da Associação Médico-Espírita do

Brasil, as manifestações no sentido provocam, definitivamente, um sentimento de

“outsiders” àqueles preteridos, justamente aquilo que deveria ser evitado num Estado laico.

A modernidade, as relações, questões onde existe funda controvérsia como na

hipótese sob exame, enfim, tudo isso exige diálogo, o que não é e nem deveria ser estranho

ao Direito. A propósito,

El riesgo es grande desde el momento en que se descubre la impossibilidade de

monopolizar la interpretación, de renunciar a toda interpretación y de contentarse con

registrar una multitud de miniracionalidades en el seno de una racionalidade global

incontrolable a partir de ahora. Se trata seguramente de uno de los riesgos de la cultura

postmoderna. El problema consiste, una vez más, en abandonar la monofonía por la

polifonía sin caer necessariamente en la cacofonía – el “ruido”, como se dice en linguaje

informático, lo carente de significado.82

É preciso estabelecer uma relação virtuosa entre partes, advogados e juiz, na

sociedade em geral, abandonando-se posições arbitrárias e absolutas, como se houvesse

uma única perspectiva, intangível, ungida. Isso só é possível se as opiniões forem expostas

com clareza e se o destinatário delas no processo, o juiz, desarmar-se para não incrementar

a “cacofonia”, mas, pelo contrário, arrefecer expectativas através de postura racional.

A paridade de armas, parece ser intuitivo, óbvio e ululante, é garantia bilateral.

Todos têm direito a uma tutela efetiva, oportuna e adequada e de ver reconhecido o seu

direito, pelo menos sua perspectiva, afinal,

no Estado Democrático Contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e

legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela

o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo83

.

A tutela efetiva, oportuna e adequada, em um processo humanizado, é

minudenciada em “garantias fundamentais do processo, universalmente acolhidas em todos

82 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Trad. Isabel Lifante Vidal. Disponível em: http://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/10681/1/doxa14_10.pdf. Acesso em: 26 ago. 2012. 83 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível em:

http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 26 ago. 2012.

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os países que instituem a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado

Democrático de Direito” 84

.

A igualdade concreta85

consiste em dar às partes as mesmas oportunidades de

êxito na demanda diante das circunstâncias do caso concreto.

Se depois de todas essas providências uma determinada resposta se fundar em

razão pública é ela que deve ser a adotada e solver a controvérsia. A laicidade não pode se

converter em agnosticismo imposto e, dessa forma, transmudar-se em doutrina abrangente.

Não se pode olvidar que a laicidade se manifesta sob duas perspectivas, sendo uma delas,

justamente, consubstanciada na salvaguarda das diversas doutrinas filosófico-religiosas

professadas como manifestação de liberdade. As Funções Estatais devem, ao invés de se

manifestarem como expressão de domínio conforme delineado por Marx e Engels e

minudenciado por Bobbio86

, buscar legitimação e, sempre, postura inclusiva e afinada com

os propósitos do Estado Democrático de Direito e do pluralismo.

5. CONCLUSÃO

Com a consciência de que o tema é árido, o que se pretende com o presente

trabalho é fomentar o debate acerca do possível desvirtuamento da laicidade do Estado

como princípio e da eventual ausência de razão pública no julgamento pelos tribunais,

notadamente nos casos citados, o que pode ser decorrência, dentre outras razões, do

produtivismo quantitativo e da rotinização como resultado da explosão de litigiosidade que

assola os tribunais.

E, infelizmente, a advertência é válida para processos de menor repercussão, mas

não menos importantes sob a perspectiva das partes envolvidas.

Examinar os desdobramentos históricos e submetê-los à apreciação acadêmica

pode ser meio de repensar nossa estrutura jurisdicional, além de despertar o reexame por

aqueles que militam no meio, que decidem com força cogente as controvérsias.

84 Ibidem. 85 Ibidem. 86 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco

Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 162.

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Nesse contexto, pontuou-se a importância do contraditório participativo, ideia-

fonte que, aliás, como visto, tem origem na Antiguidade grega, mas que vem sendo

vulnerada hodiernamente em favor de uma celeridade a qualquer preço.

Em paralelo, a incursão no tema da laicidade, para além de sua própria gravidade,

revela a fragilização do necessário debate, do diálogo humano, que deveria permear as

relações intersubjetivas, mormente aquelas desenvolvidas no âmbito jurisdicional.

Não se tem e nem se poderia ter a ilusão de que o Judiciário, instado a se

manifestar sobre determinada questão, furtasse-se de sua atribuição constitucional e não se

manifestasse sobre a controvérsia apresentada. Nada obstante, a razão pública, mormente

em havendo desacordo moral razoável, é ferramenta obrigatória para a resolução da

controvérsia pela Função Jurisdicional.

Diante de questão em que há controvérsia científica e sendo característica da

ciência a possibilidade de refutação, somente através de um diálogo franco, aberto,

democrático, podem as expectativas ser arrefecidas e equacionadas as divergências em

favor do bem comum. De outro lado, decisões que postergam ou eliminam as

manifestações das partes interessadas devem ser analiticamente fundamentadas.

Não convenceu, sob a rubrica da razão pública, a negativa de intervenção da

Associação Médico-Espírita do Brasil na ADPF 54, tampouco qual foi a motivação do

Ministério Público Federal ao ajuizar a ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.6100

que objetivou a retirada da expressão “Deus seja louvado” das notas de Real.

Não se pode esquecer que “o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é

também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de

qualquer outra cosmovisão” 87

e que a “democracia ampliou-se enormemente, de modo que

já não seja vista apenas com relação às demandas por exercício universal do voto secreto,

mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo que John Rawls chama de

“exercício da razão pública” 88

. É com os olhos nessas duas assertivas que se deve pensar

na resolução das questões como as que se suscitaram no presente trabalho.

A laicidade do Estado e a razão pública, quer se crer, longe da exclusão, longe da

parcialidade intransigente e longe de opiniões absolutas, têm por escopo a igualdade, o

87 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE.

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Acesso em: 12 jan. 2013. 88 SEN, Amartya. op. cit. p. 358.

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debate, enfim, a democracia exercida, sem redundância, por todos, ateus, agnósticos e

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AÇÃO RESCISÓRIA COM BASE EM ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO

JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Marcelo Muratori

Bacharel e Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP.

Especialista em Direito Tributário pela USP. Advogado em

São Paulo/SP.

RESUMO: O objeto do presente artigo é analisar o cabimento da ação rescisória quando

da alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal à luz dos conceitos de Justiça

e Segurança Jurídica. Para tanto, o estudo abordará os conceitos gerais da referida medida

judicial, o histórico da jurisprudência e, ainda, realizará a análise de um caso em prático no

qual todos os conceitos estudados estiveram presentes.

PALAVRAS-CHAVE: ação rescisória; STF; justiça; segurança jurídica.

ABSTRACT: The purpose of the present article is to analyze the filing of the ‘Rescisory

Action’ due to alteration of the jurisprudence of the Supreme Court. This analysis was

done in accordance with the concepts of Justice and Legal Security. Therefore, the study

will address the general concepts of such judicial measure the jurisprudence over time, and

also a case study will be analyzed by the Supreme Court that involved all of the concepts

studied in this article.

KEY-WORDS: rescisory action; Brazilian Supreme Court; justiça; legal security.

Introdução

A propositura de ação rescisória em virtude da alteração do entendimento

jurisprudencial não é um fenômeno recente, havendo registros de discussões a esse respeito

que datam de décadas atrás. Contudo, não restam dúvidas de que os debates no âmbito dos

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Tribunais se intensificaram nos últimos tempos, o que ensejou, por via de consequência, o

ressurgimento dos trabalhos feitos pelos doutrinadores brasileiros e pela jurisprudência.

Em interessante estudo sobre o tema, Ada Pellegrini Grinover1 esclarece que

durante a década de 1990, a Fazenda Pública passou a propor Ações Rescisórias perante o

STF por conta da mudança de posicionamento jurisprudencial em virtude da manifestação

daquele tribunal em relação à constitucionalidade de tributos. A propósito, confira-se a

elucidativa passagem:

“Preocupante fenômeno tem-se revelado na prática judiciária

desses últimos tempos: inúmeros litígios entre a Fazenda Pública e

os contribuintes de diversos tributos, de duvidosa

constitucionalidade, têm agitado e sobrecarregado os tribunais do

País, com decisões divergentes. E em muitos casos, os órgãos

jurisdicionais têm afirmado a inconstitucionalidade dos referidos

tributos, exercendo o controle difuso da constitucionalidade, com

sentenças já revestidas da autoridade da coisa julgada. Tem

acontecido, porém, que posteriormente o STF, pela via do recurso

extraordinário, veio a declarar, incindenter tantum, a

constitucionalidade dos tributos, em casos concretos distintos

daqueles em que se deu a coisa julgada favorável ao contribuinte.

Isso tem ensejado, por parte da Fazenda Pública, o ajuizamento de

diversas ações rescisórias, visando a desconstituir a coisa julgada,

com base na sucessiva declaração de constitucionalidade pelo STF,

sob alegação da ‘violação literal disposição de lei’, por parte das

sentenças rescindendas (artigo 485, V, CPC, destaques nossos)”.

Com efeito, as lições perfilhadas pela acima ainda se mantém atuais, como é

possível observar da seguinte transcrição, extraída do pronunciamento formulado pelo

Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal em 08 de outubro de 2008, que

afetou o Recurso Extraordinário n.º 590.809-7/RS para reconhecer a existência de

1 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional.

São Paulo: Editora dos Tribunais, 1997, pg. 50.

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Repercussão Geral da questão constitucional suscitada, relacionada às mudanças de

posicionamento do Supremo em matéria tributária:

“Trata-se de ação rescisória ajuizada pela União federal, com o

escopo de desconstituir julgado em que reconhecido o direito do

contribuinte de creditar valor a título de Imposto sobre Produtos

Industrializados – IPI em decorrência da aquisição de insumos

isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero. O Tribunal

Regional Federal da 4ª Região, evocando o que decidido pelo

Supremo no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 353.657/PR

– em que se concluiu pela inviabilidade do creditamento do IPI nas

hipóteses de insumo adquirido não tributado ou sujeito à alíquota

zero, considerada a circunstância de implicar ofensa ao alcance

constitucional do princípio da não-cumulatividade – julgou

procedente o pedido formulado na ação rescisória para

desconstituir o acórdão rescindendo. (...) A ação rescisória está

fundamentada na ofensa aos artigos 2º e 150, §6º, da Constituição

Federal e o artigo 485, V, do Código de Processo Civil, prevê a

possibilidade de rescisão do julgado nos casos em que há violação

a literal dispositivo de lei. (...) Na espécie, dois temas exigem a

manifestação do Supremo. O primeiro faz-se ligado à segurança

jurídica e, portanto, à declaração de procedência do pedido

formulado na rescisória quanto havia corrente jurisprudencial

majoritária no sentido da decisão rescindenda. (...) Admito a

repercussão geral.”

Como bem apontado por meio do exemplo acima, o fundamento invocado

pelos litigantes que desejam ingressar com ação rescisória em virtude da posterior

mudança de entendimento jurisprudencial é o artigo 485, V, do Código de Processo Civil,

ou seja, quando a sentença transita em julgado “violar literal disposição de lei”.

É exatamente sobre esse ponto que o presente estudo se voltará, de modo a

abordar, de forma específica, como tais medidas judiciais vêm sendo manejadas na esfera

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tributária, cenário recorrente de litígios complexos. Para tanto, diversos institutos serão

devidamente analisados, o que será feito ao longo dos capítulos subsequentes.

Breves considerações sobre a ação rescisória.

Especificamente no que diz respeito ao instrumento processual ora em análise,

partiremos da definição de José Carlos Barbosa Moreira2 de que se chama rescisória a ação

por meio da qual se pede a desconstituição de sentença transitada em julgado, com

eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada.

Por outras palavras, é a medida judicial destinada a remover do ordenamento

jurídico sentenças que transitaram em julgado, e por isto mesmo não comportam mais

nenhum recurso, mas albergam norma concreta absolutamente injusta, porque

incompatível com nosso ordenamento jurídico. Confira-se, neste sentido, as lições de

Pontes de Miranda3 sobre o instituto ora tratado:

“A ação rescisória vai, exatamente, contra a eficácia formal da

coisa julgada: quebrada esta muralha de eficácia formal, já está o

processado, a relação jurídica processual, que a preclusão fechara e

fizera cessar; exsurge, não se reabre; o juízo rescisório não é

reinstalação, mas volta à vida, ressureição. Não se reconstrói a

causa, que se fechara; abre-se a porta (= destrói-se a sentença) e

reocupa-se a casa.”

Vale ressaltar que a ação rescisória não é adequada para a desconstituição de

qualquer tipo de sentença, mas somente aquela cujo trânsito em julgado tenha alcançado o

mérito da demanda, tornando-a imutável à luz do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição

Federal (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa

julgada”).

2 BARBOSA MOREIRA, José Carlos de. Comentários ao Código de Processo Civil. 11a. ed., vol. V, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 124. 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ação Rescisória. 5. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1976, p. 203.

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Como bem afirma Vicente Greco Filho4, se se trata de sentença de conteúdo

processual (extinção do processo sem julgamento de mérito), ocorre apenas a coisa julgada

formal, isto é, a impossibilidade de alteração no mesmo processo, podendo, porém, o autor

propor novamente a ação. Note, por oportuno, que a ação rescisória não deve ser

considerada recurso, mas remédio processual autônomo, pois a prestação jurisdicional já

foi entregue. Desta forma, se a sentença é de mérito (art. 269, CPC), ocorre também a coisa

julgada material.

Isso significar dizer que se está diante da imutabilidade da sentença ou de seus

efeitos, tornando proibida a reiteração da demanda, sendo essa sim passível de rescisão

mediante a medida judicial, desde que a decisão atacada possua algum dos vícios previstos

no artigo 485 do Código de Processo Civil – que será adiante tratado - e dentro do prazo de

2 (dois) anos, consoante redação do artigo 495 do mesmo Codex (“O direito de propor

ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da

decisão”).

Importante ressaltar que à obediência ao aludido prazo decadencial é essencial

para a admissão da ação rescisória. Confira-se, a título ilustrativo, o recente julgado abaixo

proferido pelo Supremo Tribunal Federal:

“A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser

desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma

de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência

do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de

referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente

julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato

sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento

posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo

Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito

de fiscalização incidental de constitucionalidade.” (RE 659803

AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,

julgado em 27/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244

DIVULG 12-12-2012 PUBLIC 13-12-2012, destaques nossos)

4 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 2ª, Volume, São Paulo: Saraiva, 2010, 404.

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Fixados, portanto, que a ação rescisória é (i) o instrumento processual

adequado para retirar os efeitos de sentença de mérito, (ii) cujo trânsito em julgado tenha

sido operado dentro do prazo de 2 (dois) anos, devem-se verificar quais são os vícios

contidos nos provimentos jurisdicionais que autorizam ao litigante ingressar em Juízo para

obter a rescisão do julgado. Com efeito, o rol respectivo encontra-se no já mencionado

artigo 485 do Código de Processo Civil:

“I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou

corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte

vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em

processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja

existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só,

de Ihe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou

transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos

da causa”

Note-se que o rol de hipóteses de cabimento acima transcrito deve ser

interpretado de forma taxativa, ou seja, o intérprete deverá propor a ação judicial tão-

somente nas situações exaustivamente contidas nos itens previstos pelo legislador no artigo

485 do Código de Processo Civil. Valendo-se novamente dos ensinamentos de Barbosa

Moreira5, chegamos à conclusão de que a ação rescisória será admissível desde que a causa

petendi se enquadre em qualquer das hipóteses taxativamente catalogadas no artigo 485.

5 Op.Cit., p. 126.

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Isso significa dizer que, para admitir-se a ação rescisória basta apurar se o

pedido formulado na petição inicial se enquadra numa das hipóteses do artigo 485 do CPC

e se foram atendidos os requisitos processuais para o legítimo exercício da ação. Como

bem conclui Humberto Theodoro Junior6 para a procedência do pedido (mérito) deverá

resultar provado que a sentença contém, de fato, um ou alguns dos vícios catalogados no

aludido rol.

Da análise das situações arroladas no artigo 485 do CPC nota-se de forma

calara que o legislador quis que fosse passível de rescisão a sentença proferida por

magistrado que cometeu crime prevaricação, concussão ou corrupção ou mesmo que era

impedido ou suspeito; que configurasse fraude à lei no caso concreto por meio de conluio

entre as partes, por exemplo; que de certa forma a conclusão do julgado não

correspondesse às provas dos fatos etc.

Caso sejam analisadas as situações por que influenciaram a redação dos incisos

constantes do artigo 485 do CPC, constatar-se-á que sempre haverá um bem maior

ofendido, cujos reflexos na esfera jurídica dos litigantes causarão a ineficiência do

provimento jurisdicional, uma vez que o torna viciado.

Essas situações protetivas do bem maior nada mais são do que a positivação de

valores eleitos pelo legislador. Tais valores, dada a sua importância, têm o poder de

desfazer situações albergadas pelo manto da coisa julgada. E não poderia ser diferente,

pois a influência destes no campo da formação da norma jurídica é algo intrínseco ao

próprio processo legislativo, uma vez que estão relacionados com a moral e a ética, como

bem aponta Renato Lopes Becho7.

O que se pode perceber, portanto, e que será melhor desenvolvido a seguir, é

que o legislador procurou formas de impedir que decisões injustas sejam perpetuadas no

tempo, deixando excepcionalmente a segurança das situações jurídicas constituídas por

meio de decisões judiciais transitadas em julgado.

Note que esse conflito aparente (segurança jurídica x justiça), inclusive, é o

motivo pelo qual levou o Superior Tribunal de Justiça a afastar o cabimento da ação

rescisória quando alterado o posicionamento jurisprudencial daquele Tribunal. Confira-se:

6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, volume I, 7ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 678. 7 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 37.

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“(...) A mudança ou existência de entendimento no Superior

Tribunal de Justiça não pode justificar, somente por este motivo, a

impugnação por via da ação rescisória. Isso porque, após o trânsito

em julgado, a lei beneficia a segurança jurídica em lugar da justiça.

(...) (Voto do Ministro Humberto Martins - AgRg no AREsp

80414 / RS – DJE 15.05.2012, destaques nossos).

Neste cenário, deve-se delimitar o conceito que se extrai dos referidos

elementos de justiça e segurança jurídica dada a sua intimidade com o tema principal, de

modo a aplica-los ao objeto do estudo.

Ressalte-se, desde já, que não se pretende neste artigo debruçar-se a respeito da

discussão dos referidos conceitos de Justiça e Segurança, mas tão-somente extrair de

forma ampla a maneira como tais conceitos são observados no atualmente. Para tanto,

valer-nos-emos dos ensinamentos de doutrinas consagradas.

A relação justiça x segurança jurídica no contexto da ação rescisória.

Como ensina Hugo de Brito Machado8, as ideias de justiça e segurança são

certamente as mais importantes da humanidade em todos os tempos e lugares. Por isto

mesmo podemos dizer que integram a essência do direito. Ensina ainda o referido

Professor que a segurança e a justiça são na verdade valores fundamentais que ao Direito

cabe assegurar: sem normas protetoras da segurança, o ordenamento jurídico seria inútil;

não havendo normas que garantam a justiça, sequer se pode pensar em direito.

Para compreender o que se entende por justiça, Gustav Radbruch9, classificava-

a como sendo a pauta axiológica do direito, ou seja, a meta do legislador. Para o

doutrinador alemão, a justiça representaria um valor absoluto que repousa em si mesmo e

não depende de nenhum outro. Neste mesmo sentido, Miguel Reale10

discorria sobre o

mencionado valor da seguinte forma:

8 MACHADO, Hugo de Brito . Coisa Julgada e Controle de Constitucionalidade e de Legalidade em Matéria

Tributária. In: Hugo de Brito machado. (Org.). Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria

Tributária. 1ªed. São Paulo: Dialética, 2006, p.149. 9 RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. Tradução feita pelo Professor Jacy de Souza Mendonça. Disponível em http://ebookbrowse.com/filosofia-do-direito-gustav-radbruch-pdf-d351391875 10REALE, Miguel. Variações sobre justiça. Disponível em

http://www.miguelreale.com.br/artigos/varjust.htm.

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“a constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para

que cada homem possa realizar livremente seus valores potenciais

visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o

da coletividade”

Os pensamentos de Miguel Reale e Radbruch podem ser sintetizados nos

ensinamentos de Renato Lopes Becho11

, para quem a compreensão do justo é obtida depois

de perquirir a necessária busca pela identificação de quais são as melhores condutas que os

homens devem seguir e praticar, bem como aquelas que eles devem se afastar e se abster,

por danosas.

Neste espírito observa-se que o instituto da ação rescisória objetiva conceder

ao jurisdicionado que a interpretação definitiva dada pelo Poder Judiciário ao seu caso

concreto seja aquela mais próxima do conceito do justo, desde que a decisão original

possua algum vício. Constatada tal situação no plano concreto, deve esta decisão ser

expelida do ordenamento, uma vez que trará danos à sociedade, na linha do quanto

verificado acima. Por tal motivo é que se permite a modificação do julgado viciado mesmo

depois de protegido pela coisa julgada.

Neste cenário é que se faz necessário verificar até qual ponto o valor segurança

deve ser preterido para que seja alcançado o justo no âmbito de um processo judicial já

encerrado, com a respectiva decisão transitada em julgado, de modo a aparentemente

comprometer a segurança nas relações.

Isso porque, se por um lado a estrita observância da coisa julgada quando

confrontada com uma nova decisão pode ser encarada como ode ao legalismo e

desprestigio da justiça, de outro, deve-se ter cuidado ao afirmar veementemente que a coisa

julgada pode ser livremente deixada para trás quando diante de determinadas situações.

Em estudo sobre o tema, Tércio Sampaio Ferraz Junior12

relembra que a

doutrina processual brasileira enxerga na coisa julgada uma garantia do princípio de

segurança jurídica, unindo a sua importância aos princípios da irretroatividade das leis e

das cláusulas pétreas da Constituição, de modo a assegurar a estabilidade das relações

jurídicas. Esclarece ainda Sampaio Ferraz que a justiça pode ser entendida como um valor,

11 Op. Cit., p. 102. 12 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. Revista do Instituto de

Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, RS, v. 1, n.3, 2005, p. 265.

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mas segurança é um direito fundamental, como o é a liberdade, a vida, a propriedade, a

igualdade. Confira-se o conclusivo trecho a seguir13

:

“Falar da justiça como um valor eminente, ao qual a segurança se

opõe como um outro valor, é entrar num jogo de contraposições de

entidades diferentes. Afinal, justiça pode ser entendida como um

valor, mas segurança é um direito fundamental, como o é a

liberdade, a vida, a propriedade, a igualdade. Nesse sentido, é um

engano supor a justiça como uma entidade absoluta, em oposição a

direitos fundamentais.

A justiça não é, nem mesmo na CF, à luz do seu Preâmbulo, uma

entidade à parte, eminente no sentido de externamente superior aos

direitos. Com efeito, falar da justiça como uma aspiração

constitucional não pode significar outra coisa que sua realização

enquanto realização dos direitos fundamentais. Realização

processual, no sentido de que a justiça ocorre na concretização dos

direitos”.

O que se pode concluir, portanto, é que alcançar a justiça em uma decisão nada

mais é do que a realização da confluência de direitos fundamentais, dentre os quais, a

segurança. Ambos os termos (segurança e justiça) devem sempre andar em conjunto, sendo

inviável que de seu confronto apenas um prevaleça.

Por tal motivo, é que se deve analisar com temperamentos o cabimento da ação

rescisória, uma vez que o desfazimento da coisa julgada deve ser realizar apenas em

situações extremas.

Neste cenário, passamos a verificar qual é a interpretação dada pelos Tribunais

a respeito da hipótese de cabimento contida no artigo 485, V do CPC, qual seja, “violar

literal disposição de lei”, especificamente quando se trata da alteração do entendimento do

Supremo Tribunal Federal, uma vez que este é o dispositivo legal invocado pelos litigantes

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quando pretendem afastar a coisa julgada, cujo conteúdo foi posteriormente alterado pelo

Supremo Tribunal Federal, conforme se demonstrou anteriormente.

Mais ainda, será ainda posto em questionamento se os acórdãos proferidos pelo

STF nesta linha conseguiram unir os conceitos de segurança e justiça ou simplesmente os

puseram em confronto, elegendo apenas um vencedor.

Antes, contudo, de entrar especificamente no universo do STF sobre o

cabimento da ação rescisória quando da alteração de seu entendimento, é importante

estabelecer determinadas premissas de cunho interpretativo a respeito do referido comando

normativo. Trata-se, pois, de dois institutos constantes do referido dispositivo processual,

quais sejam, a “lei” e a sua “violação literal”.

Artigo 485, V, do Código de Processo Civil: “violar literal disposição de lei” e a

mudança de entendimento jurisprudencial.

Para tal conceituação, valemo-nos dos ensinamentos de Teori Albino

Zavascki14

, de que o vocábulo ‘lei’, tido por literalmente violado, deve ser interpretado de

forma ampla, no sentido de norma jurídica. Logo, conclui-se que tal termo englobaria as

leis constitucionais e também as infraconstitucionais.

Ocorre que, como já adiantado, jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

impossibilita o manejo de ação rescisória contra a modificação do seu próprio

entendimento, de modo que tal medida judicial:

“(...) 5. Mas, a posterior mudança de interpretação da aplicação da

norma não autoriza a rescisória fundada no art. 485, inciso V, do

CPC, ou seja, a desconstituição da coisa julgada; entendimento este

sufragado na exegese da Súmula 343 do STF: (...) (EDcl nos EDcl

no AgRg no AREsp 80.414/RS, Rel. Ministro HUMBERTO

MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe

28/11/2012, destaques nossos)

14 ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória em matéria constitucional. Interesse público: out./dez. 2001, p.

6.

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Assim, atualmente, o cabimento da ação rescisória no caso de posterior

alteração do entendimento jurisprudencial limita-se ao plano constitucional, no âmbito do

Supremo Tribunal Federal, conforme será analisado adiante. A possível ampliação do

conceito de ‘lei’ para ‘lei infraconstitucional’, contudo, foge ao objetivo principal do

presente estudo. Neste contexto, analisaremos o cabimento da ação rescisória apenas nas

questões de natureza constitucional, tendo em vista que no âmbito do Supremo Tribunal

Federal o debate a respeito da matéria encontra-se em estágio avançado.

Já em relação ao outro ponto que merece atenção é a análise do conteúdo da

terminologia empregada, qual seja, “violar literal disposição de lei”. Neste ponto, filiamo-

nos novamente à Teori Albino Zavascki15

para quem haverá violação da lei não apenas

quando o provimento jurisdicional lhe nega o comando emergente de sua “letra”, de suas

disposições explícitas, mas também quando não obedece ao seu sentido inequívoco.

Por outras palavras, a violação à interpretação literal, neste caso, não é - e nem

se recomenda que seja - a única autorizadora da propositura da ação rescisória com base no

artigo 485, V, do Código de Processo Civil, apesar de o legislador ter induzido o intérprete

a tal conclusão. Ao contrário, partimos da premissa que também deve ser prestigiada outras

formas de interpretação, como a teleológica e sistemática, por exemplo.

Consoante será demonstrado adiante, a ação rescisória ajuizada com base no

mencionado dispositivo legal objetiva incentivar à busca pela melhor interpretação da

mens legis pelo Poder Judiciário.

Isso porque, a aplicação da lei não é um processo automático e infalível, mas

exige interpretação, de modo que se chega à conclusão de que a ofensa mencionada no

aludido dispositivo legal diz respeito à violação à correta interpretação da lei, entendida

como a lei constitucional. A esse respeito, confira-se as lições de Teresa Arruda Alvim

Wambier16

sobre o assunto:

“É comum que, por exemplo, no início do período de vigência de

certo texto legal, haja certa dose de insegurança dos tribunais, que

gere indesejáveis e às vezes fundas discrepâncias entre decisões

jurisprudenciais. Depois de certo tempo, todavia, a matéria, por

assim dizer, “amadurece” e a jurisprudência começa a se firmar

15 Op.Cit. p. 6. 16 WAMBIER. Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito

e da ação rescisória. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2001, p. 295.

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num determinado sentido. Isso ocorre com bastante frequência,

mesmo quando não se trata de leis cuja interpretação possa variar

ao longo do tempo, em função de alterações no plano sociológico,

capaz de influir nos costumes. (...).

Essa Súmula (343) quer dizer que, em casos como esse, se está

permitindo que sobreviva uma decisão que afronta não só a lei, mas

a forma como o entendimento dessa lei “amadureceu” em nossos

tribunais, certamente com subsídios fornecidos pela doutrina, o que

significa algo de muito mais grave e pernicioso para a estabilidade

jurídica.” (destaques nossos)

Verifica-se, portanto, que o cerne das críticas como a acima transcritas reside

no fato de que as decisões do Poder Judiciário devem obediência ao princípio da legalidade

e da isonomia. E a plenitude de tais princípios está intimamente ligada a uma melhor

interpretação da legislação pelo Poder Judiciário. E tal interpretação quase sempre é

submetida a um longo processo de maturação, até que o Tribunal em questão defina o que

pode ser considerada como uma interpretação justa.

Desta forma, portanto, seria inadmissível inviabilizar a propositura de ação

rescisória nessas hipóteses17

. Estabelecidas tais premissas, passamos a abordar o

entendimento do referido Tribunal Superior a seguir.

Histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

O ‘fenômeno’ descrito acima no capítulo introdutório do presente estudo, qual

seja, o ajuizamento de ação rescisória para rescindir sentenças cujo trânsito em julgado se

deu pouco antes da mudança do entendimento jurisprudencial pela interpretação do

17 Outro exemplo de crítica à tal inflexibilidade pode ser extraída da seguinte passagem da obra de Eduardo

Talamini para quem a Súmula n.º 343 deve ser inaplicável tanto para decisões de cunho constitucional, como

infraconstitucional: “tal exclusão (da aplicação da Súmula n.º 343 do STF) é aplicável a qualquer caso em

que esteja envolvida a questão constitucional, inclusive quando a sentença rescindenda considerou

indevidamente uma norma como sendo inconstitucional (e isso – repita-se – independentemente de haver

manifestação do Supremo Tribunal, em via direta ou incidental, a respeito da constitucionalidade de tal

norma). Também nessa hipótese não incide a Súmula 323. O exame da compatibilidade de norma infraconstitucional com a Constituição caracteriza-se, obviamente, como matéria constitucional. É o que

basta para que não se possa aplicar a Súmula n.º 343” (destaques nossos). TALAMINI. Eduardo. Coisa

julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005, p. 616.

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Supremo Tribunal Federal, busca estabelecer uma interpretação conforme a Constituição

considerada melhor a posteriori. Para tanto, os litigantes que assim formulam os seus

pedidos, buscam afastar a aplicação da Súmula n.º 343 do Supremo Tribunal Federal,

segundo a qual:

“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,

quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de

interpretação controvertida nos Tribunais.” (Sessão Plenária de

13/12/1963).

Com efeito, o posicionamento firmado pelo STF no final do ano de 1963 de

que a ‘interpretação controvertida’ não pode se confundir com ‘violação à lei’ permaneceu

vigente por muito tempo. Historicamente, o STF, em diversas oportunidades, deixou

assente que, sendo a ação rescisória remédio excepcional, e não recurso ordinário, não a

caberia em matéria de interpretação. Confira-se, cronologicamente, quatro exemplos de

acórdãos do STF que demonstram tal posicionamento:

“Ora, a violação há de ser a literal disposição de lei. Violação clara

e inequívoca do que estatui nitidamente o dispositivo. Nesse caso

dos autos não está a interpretação que se opõe a uma corrente

doutrinária ou jurisprudencial. É preciso estridente contrariedade ao

dispositivo, para usar a expressão grata as juízes, de luminosa

memoria, que honraram o STF há mais de quarenta anos” (Voto do

Ministro Aliomar Baleeiro, RTJ 73/341, destaques nossos)

“A interpretação consubstanciada no verbete 343 situa-se no exato

alcance da tranquilidade jurídico-política que deve presidir as

decisões da Justiça” (voto do Min. Djaci Falcão, AR 607/-SP -

Julgamento: 04/12/1985);

“O pedido rescisório não é meio idôneo para nova abordagem

interpretativa de prescrições legais, a cujo respeito a jurisprudência

não seja unívoca” (relator Min. Rezek, RTJ 110/487 - Julgamento:

21/09/1994);

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“Se, ao tempo em que foi prolatada a decisão rescindenda, era

controvertida a interpretação do texto legal por ela aplicado, não se

configura a violação literal de dispositivo de lei para justificar a sua

rescisão (art. 485, V, do CPC), ainda que a jurisprudência do STF

venha, posteriormente, a fixar-se em sentido contrário” (RTJ

91/312 – Moreira Alves, destaques nossos).

Entretanto, da análise do histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal ao longo do tempo é possível concluir que paulatinamente o referido

posicionamento passou a ser alterado.

Conforme visto, os principais questionamentos por parte da doutrina em

relação à inflexibilidade do Pretório Excelso em aceitar a rescisão de julgados

contaminados pela mudança de interpretação eram relativos à alta frequência da mudança

do entendimento jurisprudencial. Assim, o trânsito em julgado, na realidade, encobriria

uma decisão injusta, no sentido acima explicado.

Neste contexto, e diante das constantes mudanças de composição do Supremo

Tribunal Federal, o posicionamento do Tribunal passou a se adaptar à linha defendida pela

doutrina acima transcrita, admitindo-se a propositura de ação rescisória em virtude da

mudança do entendimento jurisprudencial em matéria constitucional:

“A aplicação da Súmula n. 343 do STF em matéria constitucional

revela-se afrontosa não só à força normativa da Constituição

Federal, mas também ao princípio da máxima efetividade da norma

constitucional, assim sendo, cabível ação rescisória por ofensa à

literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda

tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à

orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal.”(Voto do

Ministro Gilmar Mendes – Agravo n.º 328.812-1 – 10.10.2002,

destaques nossos).

Importante ressaltar que até os dias atuais o Supremo Tribunal Federal tem se

mantido firme nesta novel orientação:

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“A adoção no âmbito dessa Corte de decisões contraditórias

compromete a segurança jurídica, porque provoca nos

jurisdicionados inaceitável dúvida quanto à aqueda interpretação da

matéria submetida a esta Suprema Corte. Rejeito, portanto, a

pretensão da incidência da Súmula STF n.º 343, como a impedir a

apreciação deste pedido rescisório” (Voto da Ministra Ellen Gracie,

Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC – 26.03.2009, destaques nossos )”.

Portanto, atualmente o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a

possibilidade de cabimento da ação rescisória em virtude da alteração da sua própria

jurisprudência, ou seja, quando se trata de matéria constitucional.

Neste contexto, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal tem permitido

o ajuizamento de ação rescisória para rescindir provimento jurisdicional cujo trânsito em

julgado tenha se dado antes da adoção do entendimento diverso pela Suprema Corte,

passaremos a analisar como o mencionado Tribunal encarou determinada demanda de

natureza tributária, de modo a encontrar no posicionamento pretoriano a interpretação dos

valores de justiça e segurança, nos termos desenvolvidos no presente estudo.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em casos de natureza tributária.

Conforme visto ao longo do presente estudo, as discussões a respeito o

cabimento da ação rescisória em virtude da alteração do entendimento jurisprudencial do

Supremo Tribunal Federal foram impulsionadas por medidas judiciais que versavam sobre

assuntos ligados ao direito tributário.

Neste sentido, passaremos a analisar especificamente um julgado daquela Corte

em que os Ministros do Supremo Tribunal Federal se depararam com o assunto. Neste

contexto, tentar-se-á verificar se a forma como o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal

Federal julgou o caso pretérito de alguma forma influenciará a apreciação de casos futuros.

O caso que será analisado é o acórdão proferido pelo Tribunal Pleno em 26 de

março de 2009, quando do julgamento da Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC proposta pela

União Federal cujo tópico em discussão era a extensão das majorações das alíquotas da

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extinta contribuição para Fundo de Investimento Social (Finsocial) em relação a empresas

exclusivamente prestadoras de serviços.

4.1.1 Contribuição ao Finsocial pelas empresas prestadoras de serviços.

Histórico Legislativo vis-à-vis a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

A contribuição para o Finsocial foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 1.940 de 25

de maio de 1982 e destinava-se a “custear investimentos de caráter assistencial em

alimentação, habitação popular, saúde, educação, e amparo ao pequeno agricultor". Por

meio do artigo 1º da Lei n.º 7.611 de 8 de junho de 1987, a redação do caput foi alterada

para incluir o termo “justiça” à expressão “amparo ao pequeno agricultor.”

No que diz respeito aos critérios material, pessoal e quantitativo da exação, a

redação original do parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto-Lei acima mencionado previa a

incidência da contribuição à alíquota de 0,5% sobre a receita bruta das empresas públicas e

privadas que realizassem venda de mercadorias, bem como das instituições financeiras e

das sociedades seguradoras.

Também no ano de 1987, o artigo 22 do Decreto Lei nº 2.397 de 21 de

dezembro de 1987 alterou a redação do parágrafo 1º para incluir em sua redação o critério

temporal da contribuição (base mensal), bem como para dividir os sujeitos passivos e a

materialidade do tributo para a seguinte forma:

“§ 1º - A contribuição social de que trata este artigo será de 0,5% (

meio por cento) e incidirá mensalmente sobre:

a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e

serviços, de qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas

definidas como pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela

legislação do imposto de renda;

b) as rendas e receitas operacionais das instituições financeiras e

entidades a elas equiparadas, permitidas as seguintes exclusões: (...)

;

c) as receitas operacionais e patrimoniais das sociedades

seguradoras e entidades a elas equiparadas.”

Além das previsões acima demonstradas, a legislação do Finsocial

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estabelecia no parágrafo 2º também do artigo 1º que, para empresas públicas e privadas

que realizassem exclusivamente venda de serviços a contribuição seria de “5% e incidirá

sobre o valor do Imposto de Renda devido, ou como se devido fosse”.

Tratam-se, evidentemente, de duas cobranças completamente distintas do ponto

de vista da incidência, muito embora os produtos das arrecadações sejam os mesmos,

conforme definido pelo caput do artigo 1º. Com efeito, a primeira contribuição incidia à

alíquota de 0,5% sobre a receita bruta oriunda da venda de mercadorias e ainda sobre as

receitas de instituições financeiras e seguradoras; enquanto a segunda era devida sobre

‘venda de serviços’ e representava 0,5% do valor do Imposto de Renda devido ou se

devido fosse.

A partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a contribuição

incidente a alíquota de 0,5% sobre a receita bruta (‘primeira contribuição’) prevista no

parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 1.940/82 foi recepcionada como imposto de

competência residual da União, de acordo com o artigo 154, I do Texto Constitucional e

com o artigo 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, só podendo ser

alterada por intermédio de lei complementar.

Já a incidência prevista no parágrafo 2º do artigo 1º referido (‘segunda

contribuição’) foi recebida pelo ordenamento jurídico constitucional como adicional do

imposto de renda, nos termos do artigo 153, II da Constituição Federal, sendo passível de

alteração por meio de lei ordinária, portanto.

Logo após a entrada em vigor da Constituição Federal, o artigo 9º da Lei n.º

7.689, de 15 de dezembro de 1988, manteve a exigência da contribuição ao Finsocial

incidente sobre a receita bruta das empresas. Contudo, o legislador, ao editar o texto legal

da referida lei ordinária pós-constituição, deixou de desenhar a regra-matriz da incidência

na forma como exigido pelo Poder Constituinte de 1988. Ao invés disso, simplesmente

remeteu-se ao texto do Decreto-Lei n.º 1.940/82 (“Art. 9º Ficam mantidas as contribuições

previstas na legislação em vigor, incidentes sobre a folha de salários e a de que trata o

Decreto-lei nº 1.940, de 25 de maio de 1982, e alterações posteriores, incidente sobre o

faturamento das empresas, com fundamento no art. 195. , I, da Constituição Federal”).

Em virtude deste vício, o referido artigo foi julgado inconstitucional pelo

Supremo Tribunal Federal anos depois. Confira-se, a propósito, trecho do voto proferido

pelo Ministro Marco Aurélio, que compôs o rol de votos vencedores quando da análise do

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Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, julgado em 16 de dezembro de 1992 pelo

Plenário do STF:

“Senhor Presidente, indago se podia o legislador ordinário como

que eternizar o Decreto-Lei n.º 1940? E ele o fez, ao lançar, na Lei

n.º 7.689, de 1988, a manutenção – nela está, com todas as letras, e

eu não posso atribuiu ao legislador a inserção de palavras inúteis,

de expressões inúteis em um ato normativo – do Decreto-Lei n.º

1940. A vontade do legislador constitucional e, mais ainda, o

próprio alcance do artigo 56 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias não são nesse sentido. Não se abriu

oportunidade ao legislador ordinário de tomar de empréstimo o que

se contém no Decreto-Lei n.º 1940 e perpetuar, como me referi, o

que disciplinado nesse Diploma legal.”

Ainda neste conturbado contexto legislativo, pouco depois da criação da Lei n.º

7.689/1988, foi a vez da ‘segunda contribuição’ sofrer alterações legislativas impactantes.

Em 09 de março de 1989, foi promulgada a Lei nº 7.738 que estabeleceu em seu artigo 28

que “as empresas públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços,

calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de meio por cento sobre a receita

bruta”.

Por outras palavras, o legislador unificou a ‘primeira’ e a ‘segunda’

contribuição ao alterar os critérios quantitativos do tributo devido pelas prestadoras de

serviços, de modo que todos os sujeitos passivos passarão a dever o Finsocial à alíquota de

as 0,5% sobre a receita bruta.

Tal mudança foi julgada constitucional pelo Tribunal Pleno do Supremo

Tribunal Federal, em Sessão de Julgamento também realizada em 19 de novembro de

1992, quando da apreciação do Recurso Extraordinário n.º 150.755-1/PE, como pode ser

verificado do seguinte trecho extraído da respectiva ementa, em que o princípio da

isonomia foi invocado para chancelar a unificação das contribuições:

“(...) O art. 28 de L. 7.738 visou a abolir a situação anti-isonômica

de privilégio, em que a L. 7.689/88 situara ditas empresas de

serviços, quando de um lado, universalizou a incidência da

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contribuição sobre o lucro, que antes só a elas onerava, mas, de

outro, não as incluiu no raio de incidência da contribuição sobre o

faturamento, exigível de todas as demais categorias empresariais.”

A partir dessa uniformização, sucessivas alterações legislativas foram

concretizadas, não tendo demorado muito para que entrassem na pauta dos julgamentos do

Supremo Tribunal Federal. Dando continuidade à atribulada existência da contribuição,

três novas leis ordinárias ininterruptamente aumentaram as respectivas alíquotas para 1,0%

(art. 7º, da Lei nº 7.787 de 30.06.1989); 1,2% (artigo 1º da Lei nº 7.894 de 24.11.1989) e,

finalmente, 2,0% por meio do artigo 1º da Lei nº 8.147 de 28.12.1990.

Por outras palavras, num intervalo menor de dois anos, a alíquota do Finsocial

alterou-se em quatro oportunidades, tendo quadruplicado o valor nominal da alíquota

respectiva. E foram exatamente sobre essas alterações da legislação que as ações

rescisórias foram propostas.

Com efeito, tais aumentos foram julgados inconstitucionais para as empresas

que não exerciam a atividade de prestação de serviços, de acordo com o resultado do

julgamento do Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, já mencionado anteriormente, em

que a inconstitucionalidade dos dispositivos legais foi reconhecida por consequência da

declaração de incompatibilidade com o Texto Constitucional do artigo 9º da Lei n.º

7.689/88. Veja-se a seguinte passagem extraída do voto do Ministro Moreira Alves:

“Portanto, Sr. Presidente, considero que este artigo 9º é

inconstitucional. Sendo inconstitucional, as alterações que foram

feitas com relação àquela alíquota são inconstitucionais, por via de

consequência. E, também, consequentemente, o Decreto-Lei n.º

1940, por serem inconstitucionais esse artigo 9º e as alterações que

se lhe fizeram, permaneceu em vigor até o momento em que houve

a sua ab-rogação. Nesse instante, extinguiu-se do cenário jurídico

nacional aquela figura que até então se mantinha: o imposto

inominado que servia como uma das fontes de custeio do sistema

de seguridade.”

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Por outro lado, os sucessivos aumentos foram declarados constitucionais para

as empresas exclusivamente prestadoras de serviços, quando do julgamento do Recurso

Extraordinário n.º 187.436/RS, em 25 de junho de 1997, tendo sido posteriormente objeto

do enunciado da Súmula 658, aprovada na Sessão Plenária de 24 de setembro de 2003.

Confira-se:

“Sendo pacífico que o artigo 56 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias não alcançou as empresas

exclusivamente prestadoras de serviços, conforme assentado no

precedente de lavra do Ministro Sepúlveda Pertence (recurso

extraordinário n.º 150.755/PE) e que a contribuição do artigo 28 da

Lei n.º 7.738/89 mostrou-se harmônica com o que previsto no artigo

195, inciso I, da Constituição Federal, forçoso é concluir pela

legitimidade das majorações ocorridas, não se aplicando às

empresas exclusivamente prestadoras de serviço o precedente

revelado pelo recurso extraordinário n.º 150.764”

Súmula 658

“São constitucionais os arts. 7º da Lei n.º 7787/1989 e 1º da Lei n.º

7894/1989 e da Lei n.º 8147/1990, que majoraram a alíquota do

Finsocial, quando devida a contribuição por empresas dedicadas

exclusivamente à prestação de serviços.”

A controvérsia pode ser sintetizada pela seguinte passagem extraída do acórdão

proferido pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal nos autos dos Embargos de Declaração

no mencionado Recurso Extraordinário n.º 187.436-8/RS, julgado em 10 de fevereiro de

1999:

“(...) Acabou-se por consignar que, sob o ângulo de tributo único – o

FINSOCIAL – as empresas vendedoras de mercadorias estariam sujeitas

à alíquota de meio por cento, enquanto as prestadoras de serviços, ante o

disposto no artigo 28 da Lei n.º 7.738/89, com as alterações posteriores,

estariam sujeitas, tendo em vista a mesma base de incidência, à alíquota

de dois por cento. Em síntese, placitou a Corte de origem o tratamento

diferenciado e fê-lo à luz de inspiração nos precedentes desta Corte.”

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Conforme pode ser observado, desde o início dos julgamentos relativos à

matéria – que datam de 1992 – até a fixação do entendimento pelo Pleno do Supremo

Tribunal Federal – em 1999 – sete anos se passaram. Neste interregno, diversos processos

judiciais que envolviam a inconstitucionalidade ou não do aumento das alíquotas do

Finsoscial para as empresas prestadoras de serviços foram submetidos à apreciação do

Guardião da Constituição, de modo que as conclusões obtidas nem sempre foram

convergentes, principalmente entre as Turmas componentes do Tribunal. É neste cenário

em que passaremos a análise especificamente o assunto levado à discussão nos autos da

Ação Rescisória n.º 1.409/SC.

Ação Rescisória n.º 1.409/SC – Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno do STF em 26

de março de 2009: Relação justiça x segurança.

A ação rescisória acima mencionada proposta pela União Federal foi

distribuída em 18 de agosto de 1998 junto ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente sob a

relatoria do Ministro Octavio Gallotti, tendo sido os autos redistribuídos à Ministra Ellen

Gracie em 13 de junho de 2002. Em 21 de novembro de 2005, foi dado início ao

julgamento, com a elaboração do respectivo relatório pela Ministra Relatora. Neste caso,

coube ao Ministro Gilmar Mendes a revisão do julgado.

Conforme se pode depreender do relatório elaborado pela Ministra Ellen

Gracie, a ação rescisória foi ajuizada pela União Federal com o objetivo de rescindir o

acórdão prolatado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso

Extraordinário n.º 169.621-1/SC. Naquela oportunidade, o mencionado órgão julgador

determinou que a cobrança do Finsocial deveria ser feita de acordo com o Decreto-Lei n.º

1.940/82 até a edição e vigência da Lei Complementar n.º 70, de 30 de dezembro de 1991

que extinguiu definitivamente a cobrança da referida contribuição.

Como ressaltado no voto da Ministra Relatora, o cerne da ação rescisória

encontra-se na conclusão obtida pelo acórdão rescindendo de que a parte autora da medida

judicial, muito embora seja empresa prestadora de serviços, faz jus ao recolhimento do

Finsocial à alíquota de 0,5%, em virtude da declaração de inconstitucionalidade da

majoração das alíquotas promovidas pelas Leis n.ºs 7.787/89; 7.894 e 8.147/90. Com

efeito, quando do julgamento do processo originário, a Segunda Turma do Supremo

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Tribunal Federal enquadrou a situação da autora ao precedente firmado no julgamento do

Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, acima demonstrado.

Neste contexto, a União Federal propôs a ação rescisória acima mencionada

pugnando pela manutenção do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal

quando da apreciação do Recurso Extraordinário n.º 187.436, oportunidade na qual restou

decidido que as majorações das alíquotas do Finsocial não eram inconstitucionais no que

diz respeito às empresas prestadoras de serviços. A esse respeito, confira-se o seguinte

trecho do voto proferido pela Ministra Ellen Grace:

“(...) Constato que o entendimento rescindendo reproduz o teor de

diversas decisões firmadas no âmbito da 2ª Turma deste Supremo

Tribunal Federal quanto ao tema do Finsocial até aquele momento,

tomadas a partir do julgamento do RE 150.764. Somente em 28.04.1995,

a 1ª Turma apreciou a questão do Finsocial procedendo à diferenciação

entre os regimes das empresas comerciais e industriais e aquelas outras

exclusivamente prestadoras de serviços (...).

Criou-se então um dissenso entre as Turmas desta Corte. Enquanto a 1ª

Turma proclamava a constitucionalidade das majorações de alíquota do

Finsocial para as empresas exclusivamente prestadoras de serviços, em

decorrência da constitucionalidade do art. 28 da Lei 7.738/89

reconhecida no RE 150.755), a 2ª Turma entendia a hipótese albergável

pela declaração de inconstitucionalidade firmada no RE 150.764”

Firmadas as premissas processuais e de natureza material que foram

submetidas à análise do Supremo Tribunal Federal, passaremos à análise da questão de

fundo, ou seja, a possibilidade ou não de a referida Corte dar provimento às ações

rescisórias com base em alteração de sua própria jurisprudência, afastando a aplicação da

Súmula n.º 343.

Segundo Ellen Gracie, o motivo de afastamento do referido enunciado sumular

em questões constitucionais é a “própria realização da força normativa da Constituição”.

De acordo ainda com o aludido voto, cabe ao Supremo Tribunal Federal evitar que se adote

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soluções divergentes principalmente no que diz respeito às matérias debatidas em seu

Plenário.

Por outro lado, apesar de afirmar que o entendimento consolidado a posteriore

é que deveria prevalecer, sob pena de perpetuar os efeitos de decisões divergentes, a

Ministra Ellen Gracie evoca o direito fundamental segurança jurídica. Confira-se:

“A adoção no âmbito desta Corte de decisões contraditórias compromete

a segurança jurídica, porque provoca nos jurisdicionados inaceitável

dúvida quanto à adequada interpretação da matéria submetida a esta

corte”.

Da passagem acima é interessante notar que a Ministra Ellen Gracie considerou

que a manutenção de uma decisão judicial – no caso, de lavra do próprio Supremo Tribunal

Federal – amparada pelo instituto da coisa julgada cujo conteúdo veiculado posteriormente

se mostraria contrário ao quanto pacificado pelo Supremo Tribunal Federal significaria

afronta ao direito fundamental da segurança jurídica, não tendo evocado a referida

julgadora o valor justiça.

Diferentemente do quanto concluído por Ellen Gracie e Gilmar Mendes, cujo

voto acompanhou o da Ministra Relatora, bem como o Ministro Menezes Direito que se

pronunciou no sentido da maioria, o Ministro Marco Aurélio divergiu dos referidos

posicionamentos nos seguintes termos:

“Presidente, peço vênia para divergir. À época, no âmbito do próprio

Supremo, as decisões das Turmas eram no sentido das decisões

rescindendas. Somente após, o tema veio a ser elucidado, com

envergadura maior, no Plenário. Por isso, peço vênia para julgar

improcedentes os pleitos formulados, assentando não se poder falar de

violência a literalidade da lei”.

De acordo com o Ministro Marco Aurélio, uma vez que o acórdão rescindendo

refletia fielmente o posicionamento da Turma Julgadora à época, não há o que se

vislumbrar a presença de quaisquer dos vícios contidos no rol do artigo 485 do Código de

Processo Civil, sobretudo o inciso V, relativamente à “literalidade da lei”. Confira-se a

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seguinte passagem, também de autoria do Ministro Marco Aurélio, extraída dos debates

que sucederam quando do julgamento:

“O grande problema é que, no caso, não se verificou dissenso,

consideradas as decisões de tribunais, mas se teve praticamente como

pacificada a jurisprudência no próprio Supremo e deste são as decisões

rescindendas.

Encontro muita dificuldade em conferir à rescisória contornos de

incidente de uniformização da jurisprudência. No caso foi alegada

violência a literalidade da lei.”

O que se pode verificar do entendimento perfilhado pelo Ministro Marco

Aurélio, cujo posicionamento foi o único divergente naquela ocasião, é que a ação

rescisória, sobretudo ajuizada com base no artigo 485, V, do Código de Processo Civil não

se mostra o veiculo adequado para uniformizar a jurisprudência.

Apesar de não explicitamente registrado, é possível extrair passagens que

refletem o posicionamento do Ministro Marco Aurélio é que em casos como o analisado

deve haver a prevalência do valor justiça em contraposição ao direito fundamental

segurança.

Do julgado referente a não extensão da declaração de inconstitucionalidade das

majorações das alíquotas do Finsocial às empresas prestadoras de serviços, pode-se

concluir que, com exceção do Ministro Marco Aurélio, o restante da composição existente

à época do julgamento entendeu que a procedência do pedido formulado pela União

Federal nos autos da Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC consagraria o direito fundamental da

segurança jurídica, mesmo admitindo que, para tanto, o acórdão legitimamente proferido

pela Segunda Turma do STF deveria ser rescindido.

Com efeito, entendemos que a evocação ao direito fundamental segurança

como justificativa para provimento da ação rescisória, em virtude da necessidade de

prevalência do atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal não poderia ter sido

apontado de forma isolada, como prevaleceu no voto condutor do acórdão. Necessário

seria verificar se referido direito fundamental não teria sido violado quando desfeito os

efeitos da coisa julgada, decorrente do posicionamento da 2ª Turma do STF à época

própria, consoante ressalvado pelo Ministro Marco Aurélio.

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Da passagem extraída acima, portanto, entendemos que “a adoção no âmbito

desta Corte de decisões contraditórias compromete a segurança jurídica”, mas deve ser

respeitado o instituto da coisa julgada caso a decisão pretérita não ofenda o valor justiça.

De acordo com o Ministro Marco Aurélio, à época da prolação do acórdão

rescindendo, o posicionamento adotado pela Turma Julgadora era firme, não estando

contaminado por qualquer vício, o que impediria o manejo da ação rescisória. Nada

impede, contudo, que o posicionamento da jurisprudência seja alterado e, de certa forma,

evoluído, de modo a buscar a melhor interpretação da norma.

Contudo, concordamos com o voto vencido de a mera alteração conceitual de

determinado entendimento, que à época própria era bem fundamentado, possa ser

suficiente para atropelar o instituto da coisa julgada, devidamente protegido pelo Texto

Constitucional.

Conclusão

Ao longo da elaboração do presente estudo, constatou-se que a ação rescisória

pode ser considerada como um instrumento processual indutor da justiça, valor a que se

pretende fortificar em detrimento do formalismo representado pelo trânsito em julgado. Por

outras palavras, o legislador previu hipótese em que a barreira positivista coberta pelo

trânsito em julgado pode ser modificada, sempre que existir uma ofensa à Justiça.

Disso decorre que, entre outras hipóteses, admite-se a ação rescisória quando a

sentença transitada em julgado tenha violado "literal disposição de lei", conforme dicção

art. 485, V, do Código de Processo Civil. Importante ressaltar que a “lei” deve ser

interpretada em caráter amplo, compreendida como norma jurídica.

Demostrou-se que historicamente o posicionamento do Supremo Tribunal

Federal é no sentido de cabimento da ação nos casos de mudança de entendimento de

norma constitucional. Em relação às normas infraconstitucionais, o Superior Tribunal de

Justiça interpreta como sendo como "violação literal" a que se mostrar de modo evidente,

flagrante, manifesto, não se compreendendo como tal a interpretação razoável da norma,

embora não a melhor.

Nesta linha de raciocínio, verificou-se que a ação rescisória ajuizada com

fundamento no referido dispositivo do Codex Processual, muito embora possa ser intentada

quando há mudança do entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, só

poderá ter procedência quando presentes os demais pressupostos processuais.

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Isso significa dizer que não é suficiente atribuir ‘poder de reformação’ aos

acórdãos proferidos posteriormente àqueles acobertados pela coisa julgada, casos esses

demonstrem simplesmente a alteração da interpretação teórica sobre determinada situação.

Por outras palavras, não basta simplesmente que a formação de novos

conceitos pela jurisprudência seja considerada apta a fundamenta a propositura de ação

rescisória. Deve, na realidade, verificar se o entendimento anterior que se busca a rescisão

foi firmado sob premissa equivocadas, tendo violado a ‘disposição de lei’.

Por tal motivo, entendemos que no acórdão proferido no âmbito da Ação

Rescisória n.º 1.409/SC, em que foi dado provimento ao pedido formulado pela União

Federal para rescindir acórdão que considerou inconstitucional as majorações de alíquota

do Finsocial para as empresas prestadoras de serviços, ao fundamentar a rescisão do

julgado apenas para na necessidade de atualizar o posicionamento jurisprudencial do

Supremo Tribunal Federal ao caso concreto, extrapolou os limites previstos para o

ajuizamento da ação rescisória, consoante inclusive consignado no voto vencido de lavra

do Ministro Marco Aurélio.

Neste contexto, é que se espera do Supremo Tribunal Federal, quando da

análise casuística do cabimento da ação rescisória com fundamento na alteração do

entendimento jurisprudencial, verifique se o acórdão rescindendo de alguma forma afronta

o valor Justiça, de modo a excepcionar o direito fundamental Segurança, uma vez que tal

providência apenas deve ser levada a cabo em situações extremas.

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MAIS DO MESMO: OS VÍCIOS DE REPRESENTAÇÃO RECURSAIS, A

IMPOSSIBILIDADE DE SANEAMENTO POSTERIOR NAS INSTÂNCIAS

EXCEPCIONAIS E A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA

Márcio Carvalho Faria

Doutorando e Mestre em Direito Processual – UERJ.

Professor Assistente de Direito Processual Civil – UFJF.

Bolsista da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisas

“Observatório das Reformas”, coordenado pelo prof. Dr.

Leonardo Greco. Vice-Presidente do Instituto dos Advogados

de Minas Gerais, seção Juiz de Fora (IAMG/JF).

RESUMO: O presente artigo busca demonstrar e discutir o formalismo-excessivo e a

jurisprudência defensiva adotada pelos Tribunais Superiores brasileiros, notadamente

acerca da impossibilidade de saneamento de vícios de representação processual.

PALAVRAS-CHAVE: Processo civil – Requisitos de admissibilidade recursais -

Jurisprudência defensiva – Formalismo-excessivo

ABSTRACT: This paper aims at showing and discussing the excessive formalism and the

defensive case law applied by Brazilian Superior Courts, notably about the impossibility of

correcting defects in procedural representation.

KEY-WORDS: Civil Procedure – Requirements for appeals - Defensive Case law –

Excessive formalism

SUMÁRIO: 1 - A falta de procurações e/ou substabelecimentos nas instâncias

excepcionais. 2 - A “inexistência” de recurso não assinado e a existência de efeitos

respectivos. 3 – A inaplicabilidade dos arts. 13, 515, §4º e 560, CPC, às instâncias

excepcionais: a falta de critérios sistemático-lógicos. 4 – Conclusões. 5 - Referências

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1- A falta de procurações e/ou substabelecimentos nas instâncias excepcionais

Qualquer jurisdicionado minimamente informado tem ciência da enorme

quantidade de processos em curso no Brasil. O aumento exponencial da população

brasileira, a facilitação do acesso à justiça, com o incremento de defensorias públicas

especializadas por todo o país, além da maior utilização de causas coletivas, tudo aliado ao

crescente uso das vantagens tecnológicas eletrônicas provocou, inquestionavelmente, um

boom de litigiosidade nos mais diversos órgãos do Judiciário nacional.

Ao lado disso, o país viu crescer assustadoramente o número de profissionais do

direito, com a abertura de centenas (quiçá milhares) de cursos jurídicos por todo o

território nacional. Atualmente, assim, mesmo com o indubitável funil do exame de seleção

da Ordem dos Advogados do Brasil, que lima, trimestralmente, mais de 70% dos

candidatos a ele submetidos1, a verdade é que o número de advogados no país é alarmante.

Para atender a tanta demanda e, além disso, destacar-se em um mercado cada vez

mais competitivo, o advogado tem sido submetido a rotinas estafantes de trabalho, que

duram, não raramente, bem mais que as 48 horas semanais que a Organização Mundial da

Saúde entende como máximas. Não é incomum, nesse cenário, observar profissionais que,

sozinhos ou com poucos recursos humanos, têm em sua conta milhares de processos para

cuidar, única e exclusivamente porque a competição e os parcos honorários pagos não

permitem que a divisão e/ou a diminuição de trabalho seja realidade. Ao lado disso,

principalmente em um país regrado por normas de baixíssima duração (para comprovar,

basta verificar que a CF/88, norma ápice, em menos de vinte e cinco anos de vida, já foi

reformada mais de 70 vezes), exige-se, do causídico, estudo e atualização constantes, para

que não veja surpreendido por uma novel regra tirada de uma nem sempre urgente medida

provisória...

A resposta para essa equação “pouco tempo vs. muito trabalho” é,

inquestionavelmente, até mesmo em razão da falibilidade natural dos seres humanos, a

prática de alguns lapsos que, infelizmente, têm sido taxados pela jurisprudência das Cortes

Superiores de imperdoáveis.

1 O índice de aprovação do último exame (o décimo realizado pela Fundação Getúlio Vargas) foi recorde e,

ainda assim, chegou apenas a 28,08%. É o que se vê em: http://www.oab.org.br/noticia/25911/oab-divulga-

resultado-final-do-x-exame-28-08-de-aprovacao, acesso em 23 set. 2013.

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Assim, por exemplo, não se permite que um recurso especial/extraordinário/agravo

destrancador2 seja admitido sem que a assinatura nele constante seja de um procurador

devidamente constituído nos autos, ainda que a ausência de um instrumento de mandato

nos autos seja vício facilmente sanável.

É evidente que, segundo a lex procesualis, somente podem praticar atos aqueles

procuradores que estejam devidamente constituídos nos autos. Essa é, fora de dúvida, uma

exigência razoável e pertinente, até mesmo para que o julgador possa verificar se o

jurisdicionado, realmente, conferiu poderes àquele determinado advogado para representá-

lo em juízo. O mandato judicial, assim, é imprescindível para a prática de atos processuais,

e disso não se duvida.

Ocorre, porém, que o próprio legislador, atento às realidades e urgências do

cotidiano, trouxe no art. 13, CPC, a possibilidade de que alguns atos processuais sejam

realizados sem a formalidade necessária do instrumento de mandato, a fim de que direito

mais relevante não se veja desatendido.

A ideia, assim, é muito clara: abre-se uma exceção ao rigor da forma para

privilegiar-se a tutela do direito material, a fim de evitar o seu perecimento por força da

preclusão, até mesmo porque essa formalidade pode, posteriormente, ser facilmente

cumprida.

Trata-se, indubitavelmente, de norma atenta ao espírito do processo civil

constitucional, aquele que não vê a ciência do processo como um fim em si mesmo, mas

como um meio, um instrumento a serviço do direito material. Não é à toa, inclusive, que a

doutrina chegou a dizer que a mais bela regra processual é a da instrumentalidade das

formas3...

2 Alcunha dada por nós, com fins didáticos, ao agravo interposto contra a inadmissão de recurso especial e/ou

recurso extraordinário pelo juízo a quo (art. 544, CPC). 3 “RECURSO ESPECIAL Nº 578.825 - SC (2003/0136501-4)

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PREPARO. COMPROVAÇÃO. ART. 535,

II, DO CPC. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÃO. (...)

Afinal, como ressalta Teothonio Negrão, 'a mais bela regra do direito processual brasileiro é a do art. 244

do CPC, de acordo com a qual 'quando a lei prescrever determinada fórmula, sem cominação de nulidade, o

juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade' (...)’ Tal entendimento,

orientado pelo princípio da instrumentalidade das formas, está em harmonia com a jurisprudência desta

colenda Corte de Justiça, conforme se dessume dos seguintes precedentes, dentre outros: REsp 346.283/MG,

Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 15/04/2002; REsp 493.535/SE, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 25/08/2003, este último assim ementado: (...) Posto isso, CONHEÇO do Recurso Especial EM PARTE e

nesta LHE DOU PROVIMENTO PARCIAL, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do CPC, para determinar

a remessa dos autos ao Tribunal a quo a fim de que, renovado o julgamento dos Embargos de Declaração,

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Essa beleza, todavia, não tem sido observada nas instâncias superiores. É pacífica a

orientação da jurisprudência do STF e do STJ no sentido de que é defeso conhecer-se de

recurso excepcional firmado por causídico que não esteja devidamente habilitado nos

autos4, sendo vedada a possibilidade de saneamento posterior de tal omissão. Entende-se,

desse modo, que não é possível, nas instâncias extraordinárias, a aplicação do art. 13, CPC,

muito menos do art. 515, §4º, CPC, sendo considerado, inclusive, inexistente o recurso

interposto por advogado que não tenha procuração nos autos (súmula 115/STJ).

A nosso ver, não há razões lógicas para se estabelecer tais distinções. É o que

entende, com singular propriedade, José Carlos Barbosa Moreira5:

Determina o art. 13, 1ª parte, do Código que, ‘verificando a

incapacidade processual ou a irregularidade da representação

das partes’, o juiz suspenda o processo e marque ‘prazo

razoável para ser sanado o defeito’. Deve entender-se a

disposição como abrangente de mais de uma hipótese:

incapacidade de parte, não suprida pela presença do

respectivo assistente ou representante legal, irregularidade

nesse próprio suprimento (v.g., pela não coincidência entre a

pessoa que aparece como representante e aquela que a lei

como tal indica), defeito da representação judicial (por

exemplo, falta de procuração outorgada ao advogado). O art.

13 não contém restrição alguma quanto ao momento do

processo, ou ao grau de jurisdição, em que se dá pelo defeito.

Como em tantos outros dispositivos, ‘juiz’ aí significa o

órgão judicial, de qualquer instância, perante o qual penda o

feito.

Apesar disso, também no particular se vem adotando uma

sejam sanadas as apontadas omissões. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 20 de agosto de 2004. Ministro

Paulo Medina – Relator” (Publicação 21/09/2004; destaques acrescentados). 4 Em um país de dimensões continentais e com os tribunais de cúpula isolados em Brasília, capital federal

distante da maioria dos grandes centros regionais, é bastante comum que os advogados se utilizem dos

serviços de colegas “correspondentes”, os quais exercem os serviços burocráticos de rotina como retirada e

devolução de autos, protocolos de petições, extração de cópias, etc., Eventualmente, nesse vai-e-vem de petições, não é incomum olvidar-se de algum termo de substabelecimento... 5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos, in Temas de Direito

Processual. Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 280-281.

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arbitrária distinção entre as instâncias “ordinárias”, de um

lado, e os recursos especial e extraordinário, de outro, para

restringir àquelas a incidência do art. 13. Assim é que o STJ

inseriu na Súmula da Jurisprudência Predominante este

enunciado: ‘Na instância especial é inexistente recurso

interposto por advogado sem procuração nos autos’. E o STF

reza pela mesma cartilha, no tocante ao recurso

extraordinário. Numa ou noutra ocasião, chegou-se ao

cúmulo de negar a possibilidade de sanação até em segundo

grau, limitando-a ao primeiro. Não se descobre razão na lei

para semelhantes diferenças de tratamento. A oportunidade

contemplada no art. 13 deve ser aberta em qualquer fase do

processo, e a decisão de não conhecer do recurso ficar

reservada para o caso de esgotar-se in albis o prazo fixado

para a regularização. Fora daí, estamos diante de mais uma

ilegítima restrição ao conhecimento.

Apesar disso, como se vê, discrepam STJ e STF, respectivamente6:

6 Da jurisprudência se colhem centenas de outros casos semelhantes, dentre os quais se citam, apenas ad

exemplum:

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO

ESPECIAL INEXISTENTE. SÚMULA N. 115/STJ. IRREGULARIDADE NA REPRESENTAÇÃO

PROCESSUAL. JUNTADA DO SUBSTABELECIMENTO POSTERIORMENTE. IMPOSSIBILIDADE.

PRECLUSÃO CONSUMATIVA. 1. Nos termos da Súmula 115 desta Corte, reputa-se inexistente o recurso

especial interposto por advogado que não possua instrumento de procuração nos autos. 2. No caso,

constatou-se que as advogadas que subscrevem a petição do recurso especial não possuem poderes para

tanto. É que o documento de representação processual, atestando o substabelecimento de poderes para as

mesmas, só foi acostado aos autos em data posterior à interposição do apelo excepcional, o que não se mostra possível em razão da preclusão consumativa. 3. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no Ag

1125605/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 12/05/2009, DJe 29/05/2009, destaques

acrescentados).

No mesmo sentido, mutatis mutandis, o STF:

“(...) DECISÃO

1. O Superior Tribunal de Justiça não conheceu do recurso especial interposto pelo recorrente nestes autos

em acórdão assim ementado (fls. 300): (...) II - O recorrente deve estar e demonstrar estar regularmente

representado no momento da interposição do recurso especial, e não em fase processual posterior.

Precedentes do STF e do STJ: RE n. 161.650/RJ e Ag n. 87.108/SP - AgRg. (...) IV - Recurso especial não

conhecido. 2. O presente extraordinário, interposto concomitantemente com o especial, e assinado pelo

mesmo advogado, ressente-se da mesma irregularidade que viciou o especial. Como salientado pelo STJ, os recursos excepcionais (especial e extraordinário), devem ser interpostos por advogados regularmente

constituídos. E essa representação regular deve ser demonstrada no prazo legal e não depois, quando já

ultrapassado o prazo para a interposição do apelo excepcional, como ocorreu na espécie. No caso, o

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AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO

ESPECIAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL

MANEJADO SEM ASSINATURA DO ADVOGADO.

AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO, COM MULTA.

1. A jurisprudência desta Corte entende que o artigo 13 do

Código de Processo Civil não se aplica nas instâncias

excepcionais. 2. O recurso interposto em instância especial

maculado com o vício da falta de assinatura do procurador,

além de não ser corrigível, é considerado inexistente. 3.

Recurso infundado a ensejar a aplicação da multa prevista

no art. 557, §2º do Código de Processo Civil. 4. Agravo

regimental não provido.

(STJ, AgRg no AREsp 219.496/RS, Rel. Ministro Luis Felipe

Salomão, 4ª T., j. 11/04/2013, DJe 17/04/2013, Informativo

521/STJ; destaques acrescentados)

EMENTA DIREITO DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO

POR DANOS MORAIS. AGRAVO REGIMENTAL.

ASSINATURA ELETRÔNICA. ADVOGADO SEM

PROCURAÇÃO NOS AUTOS. ATO PROCESSUAL

INEXISTENTE. INVIABILIDADE DA CONVERSÃO EM

DILIGÊNCIA. VÍCIO INSANÁVEL. É inexistente o agravo

regimental assinado eletronicamente por advogado sem

procuração nos autos, vício que não se traduz em mera

irregularidade do ato processual praticado, de todo inviável,

na instância extraordinária, converter o feito em diligência,

nos moldes preconizados pelo art. 13 do CPC. Precedentes.

Agravo regimental não conhecido.

recurso extraordinário interposto por advogado sem procuração nos autos, tornou-se inexistente porque a

procuração somente foi juntada aos autos depois de esgotado o prazo recursal. (...) 4. Diante do exposto,

com base nos artigos 21, § 1º, do R.I.S.T.F., 38 da Lei nº 8.038, de 28.05.1990, e 557 do C.P.Civil, nego seguimento ao presente recurso extraordinário. 5. Publique-se. Intimem-se as partes. Brasília, 05 de maio de

2001. Ministro SYDNEY SANCHES – Relator (RE 228523, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 05/05/2001, DJ

25/06/2001 P – 00043; destaques acrescentados)”.

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(STF, RE 60.6324 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª T., j.

29/05/2012, acórdão eletrônico DJe-115, divulg. 13/06/2012,

public 14/06/2012; destaques acrescentados)

Ora, qual a justificativa para se permitir a juntada posterior à interposição de um

recurso de um termo de substabelecimento e/ou uma procuração, nas vias ordinárias, e não

se conceder o mesmo direito ao recorrente nas vias excepcionais?

Há alguma regra nesse sentido?

Como bem ressaltou José Carlos Barbosa Moreira, a expressão “juízo” contida no

art. 13, CPC, deve ser entendida como qualquer órgão do Judiciário, pouco importando

seja um magistrado atuante em uma longínqua comarca do interior ou um Ministro do

Pretório Excelso brasileiro.

2 - A “inexistência” de recurso não assinado e a existência de efeitos respectivos

Segundo orientação pacificada do STF e do STJ, considera-se inexistente recurso

interposto sem a assinatura do causídico que o elaborou7. Nesse diapasão, o documento

apócrifo não teria qualquer validade, ocorrendo, por consequência, a impossibilidade de

sua análise. Veja-se, respectivamente:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.

RECURSO ESPECIAL SEM A ASSINATURA DO

ADVOGADO. RECURSO INEXISTENTE.

PRECEDENTES.

1. Conforme iterativa jurisprudência do STJ, os recursos

extraordinários interpostos sem a assinatura do respectivo

causídico são considerados inexistentes. 2. O vício sanado

após a interposição do agravo de instrumento não tem o

7 Há, aliás, enunciado de súmula da jurisprudência do STJ, de número 115: “Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos” (STJ, Corte Especial, j. 27/10/1994,

DJ 07/11/1994 p. 30050).

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condão de suprir a falha, em face da preclusão consumativa,

não podendo ser aberto prazo para a regularização na

instância especial. 3. Agravo regimental não-provido.

(STJ, AgRg no Ag 911.366/SP, Rel. Ministro Mauro

Campbell Marques, 2ª T., j. 16/10/2008, DJe 07/11/2008;

destaques acrescentados)

EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento.

Recurso sem assinatura. Inexistente. Precedentes. 1. Pacífica

a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de

considerar inexistente o recurso sem a assinatura do

advogado. 2. Agravo regimental não-conhecido.

(STF, AI 697476 AgR, Relator(a): Min. Menezes Direito, 1ª

T., j. 03/03/2009, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC

17-04-2009 EMENT VOL-02356-23 PP-04748; destaques

acrescentados)

Não resta dúvida de que o recurso judicial, ato típico e atinente à capacidade

postulatória do advogado, deve ser subscrito, até mesmo para que aquela peça possa ser

corretamente identificada. Além disso, a assinatura do procurador confere, àquele recurso,

presunção de veracidade daquilo que ali consta, até mesmo em virtude do munus público

exercido pelos advogados e, sobretudo, por conta de sua característica de “função essencial

à dignidade da justiça”, nos termos do artigo 133, CF/88. É também a assinatura que

possibilita, por exemplo, que o advogado subscritor seja identificado nos autos, além de

permitir, outrossim, que sejam aferidos a capacidade postulatória e o mandato constante

daquele processo em discussão.

Ocorre que, em que pese tamanha relevância da assinatura do procurador em seu

recurso, dizer que um recurso é inexistente quando a firma não está ali presente é, com

todo o respeito devido, um pouco demais.

Ora, se o ato processual é inexistente, como asseveram os Tribunais Superiores, é

evidente que, dele, não podem decorrer quaisquer efeitos. Assim, no caso de inexistência,

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conforme lição de Fábio Gomes8, deve-se observar que, juridicamente, o recurso apócrifo

não pode(ria) produzir quaisquer consequências.

Sucede que, ao contrário, não é o que se verifica, uma vez que, mesmo apócrifo,

não restam dúvidas acerca do efeito obstativo decorrente desse recurso, salvo nas hipóteses

de intempestividade grosseira ou má-fé do recorrente9.

Dessa forma, ocorrendo o adiamento da formação da coisa julgada, por conta do

julgamento – ainda que inadmissão - desse recurso supostamente inexistente, é inegável

que esse ato processual trouxe consequências para o processo. Tanto o é que somente se

falará em início de prazo para ajuizamento de ação rescisória após o trânsito em julgado da

decisão final, compreendida, nesse ínterim, como aquela que rejeitou o apelo extremo

apócrifo, nos termos da súmula 401/STJ.

Se realmente fosse inexistente o recurso, por óbvio, nada poderia, dele, advir.

Certamente, dever-se-ia considerar ocorrido o trânsito em julgado antes mesmo de sua

interposição, logo após o encerramento (fictício, é verdade) do prazo recursal. Todavia,

como o recurso excepcional foi interposto (e, às vezes, até mesmo contrarrazoado e

admitido pelo juízo a quo), somente após a manifestação definitiva a respeito de sua

“inexistência” é que se poderá falar em coisa julgada (art. 467, CPC).

Mais um equívoco, a nosso sentir, decorre dessa posição: além de se inadmitir

recurso cuja irregularidade poderia ser facilmente sanável (o que privilegiaria o meritum

causae), considera-se inexistente ato que, reconhecidamente, gera consequências para o

mundo dos autos, o que é, venia concessa, manifesta contradição em termos. Nesse

diapasão, no máximo, poder-se-ia decidir pela inadmissão do recurso, com os efeitos

naturais decorrentes dessa decisão, ou seja, com eficácia ex nunc10

.

8 GOMES, Fábio. Comentários ao CPC, v. 3: do processo de conhecimento (arts. 243 a 269). São Paulo: RT, 2000, p. 26, com destaques acrescentados: “O ato processual inexistente não carece de pronunciamento

judicial: ninguém é obrigado a cumprir ou respeitar uma sentença inexistente. Já a sentença nula merece

respeito até ser reconhecido pelo juiz o vício da nulidade. O ato inexistente, para a doutrina majoritária, não

produz qualquer efeito jurídico e tampouco restará convalidado pela coisa julgada, não permitindo sequer a

constituição desta”. 9 Nesse sentido, consulte o nosso: Recurso Especial: o error in procedendo por ofensa aos arts. 128, 460 e

535, II, do CPC e o error in judicando por ofensa ao art. 485, V; 495 e 546, I, do CPC (inexistência de erro

grosseiro e as Súmulas 315 e 401 do STJ). Revista de Processo, v. 187. São Paulo: RT, 2010, p. 401-420. 10 Sobre a natureza jurídica do juízo de admissibilidade e, sobretudo, seus efeitos, consulte os nossos A

jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores e a ratificação necessária (?) de alguns recursos

excepcionais. Revista de Processo, v. 167. São Paulo: RT, 2009, p. 250-269; O efeito regressivo, as modificações do sistema recursal e a nova redação do art. 463, CPC: uma sugestão de lege ferenda. In:

NERY JÚNIOR, Nelson Nery; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos

Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 12. São Paulo: RT, 2011, p. 269-298.

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3 – A inaplicabilidade dos arts. 13, 515, §4º e 560, CPC, às instâncias excepcionais: a

falta de critérios sistemático-lógicos

É cediço que a assinatura integra a regularidade formal, requisito de

admissibilidade recursal e que se afigura, nas palavras do ex-Ministro do STF, Cezar

Peluso, em “formalidade essencial de existência do recurso"”11

, sem a qual não há como se

admitir um recurso e resolvê-lo em seu mérito. Porém, a nosso ver, trata-se de medida por

demais rigorosa impedir que a mera falta de assinatura na peça recursal seja sanada,

sobretudo na situação atual de desenvolvimento da sociedade, da tecnologia e do próprio

processo. Ademais, não há qualquer justificativa legal que permita, à jurisprudência,

considerar possível a correção do vício nas instâncias ordinárias, e vedar-lhe nas

excepcionais12

.

Além disso, quando o processo está nas instâncias superiores, na maioria dos casos,

o advogado já conta com diversas petições encartadas nos autos, todas assinadas e

regularmente analisadas. Não há, dessa feita, qualquer divergência quanto ao fato de que

aquele procurador representa os interesses do interessado e, sobretudo, oficia regularmente

naquele feito13

.

11 EMENTAS: 1.RECURSO. Agravo regimental. Inadmissibilidade. Acórdão de Turma ou do Plenário.

Agravo regimental não conhecido. Precedentes. Cabe agravo regimental contra decisão do Presidente do

Tribunal, de Presidente de Turma ou do Relator. Não, porém, contra acórdão de Turma ou do Plenário. 2.

RECURSO. Agravo regimental. Inadmissibilidade. Petição assinada apenas por estagiário. Agravo

regimental não conhecido. Precedentes. Não se conhece de recurso sem a assinatura do advogado, dado que

formalidade essencial de existência do recurso. (STF, RE 463659 AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal

Pleno, j. 14/05/2008, DJe-102, divulg. 05/06/08, public. 06/06/08, ementa vol.-02322-02, pp-00251). 12 Nesse sentido, MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Restrições ilegítimas...”, op. cit., p. 278: “(...) incorre em

excesso de rigor formal o tribunal que nega conhecimento ao recurso pelo mero fato de não estarem assinadas as razões. Nem será forçosamente insuprível a falta da assinatura do advogado na própria petição

de interposição. A tal respeito, averbe-se que não encontra amparo na lei a distinção entre instâncias, que se

costuma fazer, para sustentar que o suprimento é viável até o segundo grau de jurisdição, mas deixa de o ser

no recurso especial ou no extraordinário. Nenhum texto legal consagra, em termos explícitos ou implícitos, a

diferença de tratamento”. 13 Foi exatamente por esse motivo que o STF, em acórdão infelizmente bissexto, entendeu que a

jurisprudência defensiva deveria ser abrandada, a ponto de permitir o saneamento do equívoco quanto à

representação processual: “(...) EMENTA: Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. 2. Ausência de

assinatura do advogado constituído nos autos. 3. Advogado com procuração nos autos. Inexistência de dúvida

quanto à identificação do advogado que vinha atuando no processo. Erro material. 4. Necessidade de

revisão de ‘jurisprudência defensiva’. 5. Agravo provido.(...)”. (AI 51.9125 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Relator para acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª T., j. em

12/04/2005, DJ 05/08/2005, pp.00094, ement vol. 02199-22 pp.04390 RB v. 17, n. 505, 2005, p. 45;

destaques acrescentados).

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Pode ocorrer, contudo, que por algum lapso determinado recurso excepcional (ou

agravo correspondente) seja interposto sem assinatura. Existe, assim, receio de que aquele

arrazoado não tenha sido produzido pelo procurador “x” regularmente habilitado nos autos.

De que modo deveria, então, proceder o Tribunal Superior? Bastaria que fosse feita uma

intimação para o citado advogado “x”, a fim de que ele se manifestasse se realmente

produziu aquela peça recursal, apenas se esquecendo de firmá-la, ou se, por outro lado,

alguém, ilicitamente, teria usurpado a sua competência e tentado prejudicá-lo ou a seu

cliente. Simples, fácil e seguro e totalmente em compasso com a instrumentalidade das

formas14

.

Porém, como se viu, diverso tem sido o procedimento das cortes superiores.

Singelamente, tem-se considerado inexistente aquela peça processual, sendo vedado, ao

recorrente, sanar aquele equívoco; por conseguinte, impede-se que o mérito recursal

(eventualmente importante, por exemplo, para sanar divergência jurisprudencial relevante

no seio do STJ) seja apreciado, fenecendo mais uma pretensão recursal...

Ora, porque não se aplicar, no trato dos recursos extraordinários, o que determinam

o art. 13 c/c art. 515, §4º, ambos do CPC? De se ver, inclusive, que tal procedimento, nas

instâncias ordinárias, é plenamente aceito pelas próprias Cortes de cúpula15

. A despeito

No mesmo sentido, mas todos em benefício da União Federal, cujos procuradores, como se sabe, litigam por

força de lei, as seguintes decisões monocráticas: AI 726.197, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 27/04/2011,

publicado em DJe-084, divulg. 05/05/2011, public. 06/05/2011; AI 577178, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. em

30/04/2009, DJe-087, divulg. 12/05/2009, public. 13/05/2009; AI 576924, Rel. Min. Cármen Lúcia, j.

15/04/2009, publicado em DJe-082 DIVULG 05/05/2009 PUBLIC 06/05/2009. 14 O princípio da instrumentalidade das formas, tido por “regra de ouro” por alguns julgados do STJ, não tem

servido para amenizar a falta de assinatura no recurso especial, somente servindo, como se vê, se a cópia do

mesmo, em sede de agravo destrancador, estiver sem assinatura, desde que, no original, o advogado

responsável tenha firmado: “PROCESSO CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – PEDIDO DE

RECONSIDERAÇÃO – SANATÓRIA DE IRREGULARIDADE EM SEDE DE AGRAVO DE

INSTRUMENTO NA INSTÂNCIA ESPECIAL – POSSIBILIDADE.

1. As regras processuais têm sido interpretadas com observância aos princípios da instrumentalidade das formas e do prejuízo, os quais têm sido desprezados pelo STJ no trato do agravo de instrumento para fazer

subir o recurso especial. 2. Independentemente da razão lógica que orienta esta Corte, no sentido de diminuir

o número de recursos e viabilizar a racionalização do seu funcionamento, considero desigual o tratamento

pretoriano que tem sido dado ao agravo de instrumento. 3. Irregularidade na juntada de peças em cópias sem

assinatura, diferentemente das peças originais que estão no processo principal devidamente assinadas. 4.

Aceitação da sanatória, antes do exame dos autos pelo relator. 5. Agravo regimental provido para dar

provimento ao agravo de instrumento”. (AgRg no Ag 680480/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j.

07/03/2006, DJ 05/05/2006 p. 285; destaques acrescentados) 15 PROCESSUAL CIVIL – FALTA DE ASSINATURA – IRREGULARIDADE SANÁVEL NAS

INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS – RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Pacificou-se nesta Corte

jurisprudência no sentido de que, nas instâncias ordinárias, a falta de assinatura da petição recursal constitui vício sanável, todavia, na instância excepcional o recurso sem assinatura do advogado é considerado

inexistente. (...) 3. Recurso especial provido. (STJ, REsp 991.762/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., j.

24/06/2008, DJe 18/08/2008; destaques acrescentados)

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disso, nas instâncias excepcionais, a possibilidade de saneamento de tal vício não é aceita,

por conta de suposta preclusão consumativa. Nesse sentido, já se pronunciou o STF:

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO

REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO.

ASSINATURA DO ADVOGADO NA PEÇA DE

INTERPOSIÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

AUSÊNCIA. CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA.

IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO.

I - A jurisprudência da Suprema Corte orienta-se no sentido

de que não se conhece de recurso sem a assinatura do

advogado.

II - Esta Corte não admite a conversão do processo em

diligência, possibilitando à parte sanar o vício.

III - Agravo regimental improvido.

(AI 558463 AgR, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, 1ª

T., j. 16/10/2007, DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC

09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00048 EMENT VOL-02297-

05 PP-01015; destaques acrescentados)

No mesmo caminho, o STJ:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FALTA DE

ASSINATURA DO ADVOGADO NA PETIÇÃO DE

INTERPOSIÇÃO E NAS RAZÕES DO RECURSO

ESPECIAL. RECURSO INEXISTENTE.

1. Considera-se inexistente o recurso dirigido ao Superior

Tribunal de Justiça sem a assinatura do advogado, não sendo

possível a abertura de prazo para a regularização do feito.

Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.

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(AgRg no AREsp 231.229/PA, Rel. Min. Maria Isabel

Gallotti, 4ª T., j. 16/10/2012, DJe 23/10/2012, destaques

acrescentados)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.

PROCESSUAL CIVIL. REGULARIDADE FORMAL.

AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO QUE OUTORGOU

PODERES AO ADVOGADO SUBSCRITOR DO

AGRAVO INTERNO. RECURSO INEXISTENTE.

SÚMULA 115 DO STJ. IMPOSSIBILIDADE DE

REGULARIZAÇÃO POSTERIOR. NÃO

CONHECIMENTO.

1.- Na linha da jurisprudência desta Corte, a regularidade da

representação processual deve ser comprovada no ato da

interposição do recurso, considerando-se inexistente a

irresignação apresentada por advogado sem procuração

(Súmula 115/STJ). 2.- Cumpre observar que os artigos 13 e

37 do Código de Processo Civil não se aplicam às instâncias

extraordinárias. Precedentes. 3.- Agravo Regimental não

conhecido.

(AgRg no REsp 1370523/RJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3ª T.,

j. 28/05/2013, DJe 13/06/2013)

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

EM AGRAVO REGIMENTAL. INEXISTÊNCIA DE

OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE NO

JULGADO. PORTE DE REMESSA E RETORNO DOS

AUTOS. EXIGÊNCIAS CONTIDAS NAS RESOLUÇÕES

DO STJ APLICÁVEIS À ESPÉCIE. AUSÊNCIA DO

NÚMERO DO PROCESSO A QUE SE REFERE O

RECOLHIMENTO. DESERÇÃO VERIFICADA.

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OPORTUNIDADE DE REGULARIZAÇÃO NA VIA

ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. (...)

4. No que tange a alegação da ora agravada, nota-se que

nas instâncias extraordinárias, não se aplica o art. 515, § 4º,

do CPC, que impõem aos magistrados a abertura de prazo

para a parte sanar eventuais nulidades. 5. Embargos de

declaração rejeitados.

(EDcl no AgRg no REsp 1083040/MG, Rel. Min. Mauro

Campbell Marques, 2ª T., j. 05/08/2010, DJe 01/09/2010;

destaques acrescentados)

Que razão haveria para tal diferenciação, se o equívoco é o mesmo? Que

dificuldade há em se admitir que uma apelação possa ser assinada posteriormente à sua

interposição que não existiria em se adotar o mesmo procedimento para um recurso

especial?16

Vale dizer: de nada adiantou, nesse aspecto, o avanço tecnológico; o STJ segue

inadmitindo os recursos que, mesmo interpostos eletronicamente17

, deixaram de ser

assinados por procuradores com representação nos autos. Mais uma vez: não poderia,

também eletronicamente, o advogado que enviou a petição recursal, ser intimado para

16 No mesmo sentido, Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha, ao dissertarem acerca do art.

515, §4º, CPC: “(...) Correção de defeitos processuais no procedimento da apelação: (...) É possível pensar,

ainda, no suprimento de um defeito de representação (art. 13 do CPC); juntada da procuração ou juntada do

estatuto social da pessoa jurídica, por ex. Na verdade, os tribunais sempre puderam adotar esse expediente,

bastando que aplicassem as regras do sistema de invalidades do CPC. De todo modo, o dispositivo deixa

evidente a possibilidade de assim atuar o tribunal, revelando-se uma boa regra de racionalização de

julgamento no âmbito recursal. O dispositivo, embora faça parte do capítulo sobre apelação, aplica-se a

qualquer recurso. Segue-se a tradição de nosso direito: emprestar às regras da apelação a abrangência de

regras gerais, ressalvada regra especial em sentido contrário, que, no caso, não existe.” (DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. 9.ed. Salvador:

Juspodivm, 2011, p. 134-136; destaques acrescentados). 17 PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO POR

MEIO DE PETIÇÃO ELETRÔNICA. ASSINATURA DIGITAL DE ADVOGADO SEM PROCURAÇÃO.

PETIÇÃO TIDA POR INEXISTENTE. 1. A petição eletrônica do presente recurso foi transmitida mediante

utilização de certificado digital pertencente a advogado sem procuração nos autos. 2. "Na instância especial,

a regularidade da representação processual deve estar demonstrada no momento da interposição do recurso,

não sendo aplicável, portanto, a previsão do artigo 13 do CPC" (AgRg no AREsp 331.850/PR, Rel. Ministro

Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 02/08/2013). No mesmo sentido: AgRg no REsp 1374132/PR, Rel.

Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 05/06/2013; AgRg no REsp 1.275.642/PR, Rel. Ministra Nancy

Andrighi, Terceira Turma, DJe 15/10/2012, entre outros. 3. Incide, pois, a Súmula 115/STJ: "Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos". 4. Agravo regimental não

conhecido. (AgRg no REsp 1340288/MT, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª T., j. 27/08/2013, DJe

04/09/2013).

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regularizar o ato? Tudo isso se daria rapidamente (quiçá em minutos, dada a agilidade

natural dos meios eletrônicos de comunicação), sem qualquer prejuízo para o andamento

do processo e o seu posterior julgamento. Ao adotar tal rigorismo, o STJ fecha os olhos

para a realidade brasileira – na qual, evidentemente, incluem-se os causídicos -, em que

muitos ainda não têm acesso efetivo a equipamentos de informática de última geração, quer

por déficit econômico, quer por notória alienação tecnológica, quer pelas próprias

deficiências do sistema de protocolo virtual18

.

Por fim, mas não menos importante: ainda que se julgue inaplicável o art. 515, §4º,

CPC aos recursos excepcionais, considerando-o restrito às apelações (algo com o que só se

admite apenas ad argumentandum tantum, porquanto os arts. 511 e 519, CPC, que também

estão embutidos no capítulo II do título X, atinente à apelação, são reconhecidamente

aplicáveis a todos os recursos19

), dúvidas não há que pelo menos o art. 560, parágrafo

único, CPC, deveria aqui ser reconhecido, na medida em que se trata de norma contida no

capítulo VII do título X, o qual é denominado “Da ordem dos Processos no Tribunal”, não

havendo qualquer discrímen minimamente razoável que pudesse fazer crer o contrário.

Afinal, se o capítulo VII do título X não se aplicasse às instâncias excepcionais,

vedado estaria, por exemplo, o julgamento monocrático dos recursos, já que o dispositivo

que o regula (art. 557, CPC) está, assim como o art. 560, parágrafo único, CPC, contido no

mesmo capítulo...

Por que essa aplicação casuística das normas processuais? A resposta,

lamentavelmente, está no apego à famigerada jurisprudência defensiva.

18 Nesse prisma, interessante relato de um renomado causídico, sobre sua experiência junto ao TJSP,

divulgada no portal Migalhas, na edição de 04/08/2013: "Esse maldito processo eletrônico do TJ/SP só

produziu um fato efetivo até hoje, qual seja, gasta-se mais tempo tentando fazer 'penetrar' petições e

documentos nesse sistema refratário ao contato humano, do que em pesquisas e/ou em elaboração de peças. Essa geringonça virou a desgraça da advocacia. E, pior, ninguém faz nada. O sítio vive encalhado. Os

cartorários foram pessimamente mal treinados. Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da

minha infância querida que os anos não trazem mais! Achava o céu sempre lindo. Adormecia sorrindo e

despertava a cantar!" Alexandre Thiollier - escritório Thiollier e Advogados. (Disponível em:

http://www.migalhas.com.br/mig_leitores.aspx?cod=183807&datap=04/08/2013, acesso em 24 set 2013). 19 PROCESSO CIVIL. DESERÇÃO. PREPARO. CONCEITO GENÉRICO. CUSTAS E PORTE E

REMESSA E RETORNO. INSUFICIÊNCIA. PRAZO. POSSIBILIDADE. 1. A iterativa jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça afirma que o preparo do recurso abrange todas as despesas processuais

importantes para o prosseguimento do feito, inclusive o valor correspondente ao porte de remessa e retorno.

2. Na hipótese em que comprovado apenas o recolhimento do porte de remessa e retorno no ato da

interposição do recurso, o preparo é insuficiente, o que autoriza a concessão do prazo previsto no artigo 511, § 2º, do CPC.

3. Recurso especial provido". (REsp 889.042/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 4ª T., j. 04/02/2010,

DJe 11/02/2010)

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4 - Conclusões

Por qualquer ângulo que se analise o problema, não há motivos razoáveis a amparar

a atuação dos Tribunais Superiores: a um, pois não há regra legal/constitucional que

permita estabelecer diferenças entre as instâncias ordinárias e excepcionais acerca da

admissibilidade recursal; a dois, pois não há como se reputar inaplicável o art. 515, §4º,

CPC, aos recursos especiais/extraordinários/agravos destrancadores respectivos, por

suposta incidência exclusiva às apelações e, contraditoriamente, considerar a eles válidos

os arts. 511 e 519, CPC, dispositivos igualmente contidos no capítulo II do Título X do

Livro I do CPC; a três, pois não há como se afastar o art. 560, parágrafo único, CPC nas

instâncias excepcionais e, por outro lado, permitir que o STJ e o STF se utilizem (com

frequência absurda) do julgamento monocrático disposto no art. 557, CPC, sendo que

ambos fazem parte do mesmo capítulo VII do Título X do Livro I do CPC.

Tem-se, como descreveu Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, ao pesquisar o direito

suíço (mas que se aplica fielmente à realidade brasileira), verdadeira denegação de justiça

quando o julgador, “ansioso por facilitar o seu trabalho”, “não recebe recurso interposto

por pessoa sem procuração escrita”20

. Lá, como cá, não se afigura sequer minimamente

razoável que os tribunais de cúpula se apeguem a tais expedientes manifestamente

ilegítimos para, unicamente, fazer baixar a pilha de processos.

20 “À falta de dispositivos de garantia constitucional explícitos, a jurisprudência suíça extrai do art. 4º da

Constituição Federal, assegurador da igualdade perante a lei, certas consequências para preencher as lacunas

de proteção constitucional dos sujeitos de direito. Entende-se, também, que o princípio da tutela jurídica

compreende, em sentido amplo, a proibição do formalismo excessivo. Considerando indispensável a

observância de formas e prazos processuais para o desenvolvimento regular e em pé de igualdade do

processo, a jurisprudência sustenta, desde 1955, devam esses requisitos contribuir para garantir rápida e efetiva tutela jurídica e que o rigor formal transforma-se em denegação de justiça se o órgão judicial,

recorrendo a uma regra pertinente a prazo ou forma, sucumbe à tentação de ‘facilitar o seu trabalho’. O

formalismo excessivo é vislumbrado como denegação de justiça se não imposto para a proteção de algum

interesse quando venha a complicar, de maneira insustentável, a aplicação do direito material. Combatem-se,

dessa forma, os atos judiciais arbitrários, assim considerados aqueles não baseados em argumentos sérios e

objetivos, sem nenhum sentido ou finalidade razoável ou que realizem distinção não amparada nos fatos da

causa. Também é considerada arbitrária a violação manifesta de uma regra de direito ou de princípio de

direito claro e incontestável ou se o ato criticado contradiz de maneira violenta o sentido de justiça. (...)

Conforme a prática do Bundesgericht, denegação de justiça significa a retenção fática ou a demora na

emissão de uma decisão devida pela autoridade ou na realização do procedimento. (...) Alguns exemplos,

colhidos da jurisprudência do Tribunal Federal, em que se considerou ter ocorrido formalismo excessivo: (...) b) o não recebimento de recurso interposto por pessoa sem procuração escrita; (...).” (OLIVEIRA, Carlos

Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4.ed. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 254-255; destaques acrescentados).

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542

É chegada a hora de progredir21

e afastar, por todo o sempre, a maléfica

jurisprudência defensiva.

5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil

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2007.

21 Louva-se, nesse aspecto, a recente decisão do STF no sentido de abandonar a ilegal e inconstitucional

orientação consolidada na súmula 418/STJ, que exige uma espécie de ratificação do recurso excepcional já

interposto, quando do julgamento de embargos de declaração interpostos pela parte contrária, ainda que esses

não viessem a modificar o teor do acórdão recorrido. Veja-se: RECURSO EXTRAORDINÁRIO –

EMBARGOS DECLARATÓRIOS – PENDÊNCIA – OPORTUNIDADE. O recurso extraordinário surge

oportuno ainda que pendentes embargos declaratórios interpostos pela parte contrária, ficando a problemática

no campo da prejudicialidade se esses últimos forem providos com modificação de objeto. (RE 680371 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Relator p/Acórdão: Min. Marco Aurélio, 1ª T., j. 11/06/2013, ac.

eletrônico DJe-181 divulg 13/09/2013 public 16/09/2013). Sobre o tema, consulte o nosso: A jurisprudência

defensiva dos Tribunais Superiores e a ratificação necessária..., ob. cit.

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A EFETIVIDADE DO PROCESSO E A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Marco Antonio dos Santos Rodrigues

Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade

de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito

Público e Doutor em Direito Processual pela Faculdade de

Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Advogado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito

Processual.

RESUMO: O texto procura analisar a necessidade de superação das regras gerais do

Código de Processo Civil sobre ônus da prova, seja a partir da inversão do ônus da prova

prevista no Código de Defesa do Consumidor, seja com base na sua distribuição dinâmica,

como forma de busca de uma decisão justa.

PALAVRAS-CHAVE: ônus da prova; distribuição; inversão; dinâmica; acesso à Justiça.

ABSTRACT: The text aims to analyze the need of overcoming the Civil Procedure Code

general rules about burden of proof, either from the inversion of burden of proof defined in

Consumer Protection Code, or based in its dynamic distribution, as a way to look for a fair

decision.

KEYWORDS: burden of proof; distribution; inversion; dynamics; access to Justice.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo procura analisar a efetividade do processo em uma seara em que

muito se vem discutindo os limites e a legitimidade da atuação do juiz: a atividade

instrutória.

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Nos dias atuais, parece haver razoável consenso entre os estudiosos do Direito

Processual de que o processo como um todo, seja qual for a natureza do direito material em

jogo, deve buscar a verdade. Não se justifica mais a divisão da verdade em formal e

material: o que se faz imprescindível é que o julgador busque a verdade sobre as alegações

deduzidas por autor e réu. O processo civil, portanto, tal qual o processo penal, deve buscar

reconstituir a verdade sobre as alegações de fato formuladas pelas partes, para que, ao

final, ocorra uma pacificação do conflito com justiça, escopo social da jurisdição1.

O processo não pode ser tido como um fim em si mesmo, mas sim como um

instrumento para que se atinja uma finalidade fundamental, qual seja, a concessão de uma

prestação jurisdicional às partes.

Ocorre que, para o jurisdicionado, não basta qualquer prestação jurisdicional. A

decisão final do Poder Judiciário deve ser justa2, ainda que contrária àquele que veio

movimentá-lo. Na realidade, o que legitima a atuação judicial no caso concreto é o fato de

que a decisão foi proferida com respeito às garantias do processo, dando-se a melhor

solução às partes.

Nesse sentido, a última onda reformista procurou cada vez mais prestigiar o acesso

a uma prestação jurisdicional justa. As modificações no Código de Processo Civil atuaram,

sobretudo, na busca de maior efetividade através da celeridade na atuação judiciária.

Assim, por exemplo, a criação do julgamento liminar de mérito em razão de

improcedências repetitivas, pela Lei nº 11.277/2006.

Ocorre, porém, que a prestação jurisdicional justa, buscada pelas reformas do

Código de Processo Civil, e mesmo pelo projeto de um novo Código, necessita muitas

vezes não apenas de celeridade, mas de uma resposta condizente com a realidade sobre as

alegações de fato das partes.

É nesse contexto que surge o papel do juiz na busca da efetividade do processo à

luz das tendências reformistas: pode o juiz determinar que as partes produzam provas que

originalmente não eram pretendidas por elas? É o que se procura discutir.

1 Como bem lembra Cândido Rangel Dinamarco (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do

Processo. São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 2002), a jurisdição, como função estatal, tem diversos escopos,

sejam políticos, jurídicos ou sociais, estes últimos exatamente capitaneados pela pacificação dos conflitos sociais com justiça. 2 Definindo critérios para a verificação da justiça de uma decisão, TARUFFO, Michele. Sui confini. Scritti

sulla giustizia civile. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 224.

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2. DISTRIBUIÇÃO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

Na atividade jurisdicional, incumbe ao juiz, enquanto diretor da relação jurídica

processual, analisar as alegações das partes e as provas trazidas ao processo para que, ao

final, profira uma decisão justa e adequada à controvérsia.

Para que decida a demanda de forma justa, é preciso que o juiz possua provas

suficientes das alegações fáticas, sob pena de se valer se alguma solução que não espelhe a

realidade acerca do conflito de interesses. Além disso, vige no processo civil a regra do

artigo 126 do Código de Processo Civil3, que proíbe o non liquet: é vedado ao juízo deixar

de decidir a demanda, na ausência de provas.

Nessa esteira, surge a importância da distribuição do ônus da prova: trata-se de

regras de julgamento que serão utilizadas pelo magistrado na ausência de elementos

suficientes a comprovar as alegações fáticas.

A partir das lições sempre atuais de José Carlos Barbosa Moreira4, pode-se dizer

que o ônus da prova possui duas perspectivas: a primeira, subjetiva, relativa à necessidade

de as partes fazerem provas de suas alegações, de modo a obterem a demonstração de seu

direito ou a ausência de razão da parte ocupante do outro pólo da relação processual, sob

pena de, ausentes provas necessárias à solução da controvérsia, sofrerem um julgamento

desfavorável a seus interesses; e a segunda, objetiva, referente à distribuição dos riscos em

virtude da insuficiência das provas.

Nesse sentido, vale observar a regra desenvolvida no artigo 333 do Código de

Processo Civil:

Art. 333. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,

modificativo ou extintivo do direito do autor.

Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira

diversa o ônus da prova quando:

3 “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No

julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Julgamento e ônus da prova”. In: Temas de Direito Processual Civil:

segunda série. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 74-75.

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I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do

direito.

Com efeito, trata-se de sistema que se baseia na autoria das alegações de fato pelas

partes na defesa de seus direitos: ao autor incumbe a prova do fato constitutivo de seu

direito, ao passo que o réu deve demonstrar o fato extintivo, modificativo ou impeditivo do

direito do autor.

Cabe ressaltar, entretanto, que a distribuição do encargo de provar com fulcro na

autoria das alegações fáticas é estática, não estando integrada às efetivas possibilidades do

caso concreto. Em outras palavras, o referido critério pode ser ineficaz, caso o autor tenha

grandes dificuldades à prova do fato constitutivo de seu direito, ou o réu não possua

condições mínimas de provar fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do

primeiro.

Diante dessa constatação, o legislador criou, no âmbito do microssistema da defesa

do consumidor, a possibilidade de inversão do ônus da prova em dois casos, de modo a

prestigiar a parte da relação jurídica que em muitas ocasiões se encontra numa situação de

inferioridade em relação à outra: o consumidor.

À luz das regras da experiência, verifica-se que o consumidor comumente não

possui adequadas condições de fazer provas de seus direitos, pela falta de conhecimento

técnico acerca do produto ou serviço que lhe é fornecido.

Daí porque o Código de Defesa do Consumidor prevê, no artigo 6º, inciso VIII, a

garantia da inversão do ônus da prova ao consumidor, de modo a facilitar a defesa do

consumidor em juízo, possibilitando-lhe uma maior igualdade de condições em relação ao

fornecedor na sua atuação judicial5.

O dispositivo em questão prevê a possibilidade de inversão como garantia à atuação

judicial do consumidor, condicionando-a a dois requisitos: a verossimilhança das alegações

do consumidor e a sua hipossuficiência. A verossimilhança significa que as alegações do

consumidor devem corresponder a uma situação plausível, com possibilidade de ocorrência

a partir das regras da experiência. Por exemplo, seria o caso de imaginar uma hipótese em

5 Também entendendo que a inversão do ônus da prova do artigo 6º, inciso VIII, prestigia a igualdade, NERY

JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 10ª ed., 2010, p. 99.

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que o consumidor ingressa em juízo, alegando que contratou o fornecimento de

determinado serviço, porém sem o receber.

De outro lado, tem-se, também, a hipossuficiência do consumidor, que significa a

existência de uma situação de desigualdade entre este e o fornecedor, em desfavor do

primeiro. O legislador, contudo, não expressou em que sentido deve haver essa

inferioridade do consumidor e, diante disso, deve-se indagar: trata-se de hipossuficiência

de cunho econômico ou técnico?

A melhor exegese do artigo 6º, inciso VIII, parece residir na hipossuficiência

técnica6, isto é, numa situação em que se encontra o consumidor em prejuízo para a análise

técnica do bem ou serviço objeto da relação jurídica material, e não na econômica, que

revela apenas um maior poder financeiro do fornecedor.

Já é notória a existência de mecanismos de eliminação dos ônus financeiros do

processo em favor daqueles que não possuem condições de arcar com a defesa judicial de

seus interesses, de modo a possibilitar-lhes uma igualdade em relação a seus adversários

processuais. É o caso da gratuidade de justiça, regulada pela Lei 1.060/50, que permite o

acesso ao Judiciário sem a necessidade de pagamento de custas; da regra da ausência de

custas processuais nos Juizados Especiais Cíveis, na forma do artigo 54 da Lei 9.099/95; e

da assistência judiciária gratuita, promovida pela Defensoria Pública.

Ademais, eventual hipossuficiência jurídica não justifica a inversão do ônus de

provar, considerando que a inferioridade de conhecimentos jurídicos pelo consumidor será

6 FRANÇA, Marly Macedônio. “Reflexos do Código do Consumidor na teoria da prova”. In: Revista do

TJRJ, vol. 50, jan/mar 2002. Na jurisprudência, a título ilustrativo do entendimento predominante, vale

destacar os seguintes julgados: “Direito Processual Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos

morais e materiais. Ocorrência de saques indevidos de numerário depositado em conta poupança. Inversão

do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade. Hipossuficiência técnica reconhecida. - O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a

inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por ele apresentada seja verossímil, ou quando

constatada a sua hipossuficiência. - Na hipótese, reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, em

ação que versa sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, mostra-se imperiosa a

inversão do ônus probatório. - Diante da necessidade de permitir ao recorrido a produção de eventuais

provas capazes de ilidir a pretensão indenizatória do consumidor, deverão ser remetidos os autos à

instância inicial, a fim de que oportunamente seja prolatada uma nova sentença. Recurso especial provido

para determinar a inversão do ônus da prova na espécie” (STJ, REsp 915599/SP, Rel. Ministra Nancy

Andrighi, 3ª T., julgado em 21/08/2008, DJe 05/09/2008); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DO

CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CUSTEIO DE SUA PRODUÇÃO. Ação ordinária

objetivando a revisão de contrato bancário com expurgo de encargos financeiros, reputados indevidos, além de reparação por danos morais. Incidência do Código do Consumidor. Requisitos de verossimilhança e

hipossuficiência técnica presentes, segundo as regras ordinárias de experiência. (...)” (TJRJ, 17ª Câm. Cível,

rel. Des. Maria Inês Gaspar, AI 16645/2007, j. 08.08.2007).

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devidamente combatida pela presença do advogado que, salvo exceções legais7, é o titular

da capacidade postulatória. Note-se que, ainda que a parte não tenha condições de arcar

com os honorários de seu patrono, tem ela a possibilidade de se valer de defensor público,

em nome do direito fundamental à assistência judiciária gratuita, previsto no artigo 5º,

inciso LXXIV, da Constituição da República.

Dessa forma, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento processual,

bem como da análise teleológica do próprio Código de Defesa do Consumidor, chega-se à

conclusão de que a hipossuficiência tutelada pelo dispositivo em questão é a de caráter

técnico, que revela uma dificuldade de o consumidor analisar aspectos técnicos do produto

ou do serviço.

Em que pese entendimento doutrinário em sentido contrário8, urge salientar que tais

requisitos devem ser tidos como cumulativos. Isso porque a mens legis do dispositivo é

exatamente permitir que o consumidor que traga ao Judiciário uma demanda plausível, mas

que não tenha adequadas condições técnicas de defesa em juízo, possa se ver livre do ônus

de provar o fato constitutivo de seu direito, em caso de insuficiência de provas, ficando a

cargo do fornecedor demonstrar a ausência desse fato constitutivo do direito autoral.

Parece que o objetivo do legislador com a inversão não foi proteger uma pretensão do

consumidor que não seja dotada de plausibilidade, porém em que se vislumbre uma

hipossuficiência, ou uma demanda verossímil, sem qualquer inferioridade técnica do

consumidor, até porque, nesse último caso, não há razão de ser para a facilitação da prova,

tendo em vista a igualdade de condições entre as partes.

O segundo caso de modificação das regras da distribuição do ônus da prova do

Código de Processo Civil é a hipótese específica da propaganda enganosa. Consoante a

previsão do artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor, incumbe ao patrocinador da

propaganda o ônus da prova da veracidade da publicidade veiculada.

Vislumbra-se, nessa segunda previsão, um evidente caso de ponderação legislativa,

no sentido de que, tendo o patrocinador da publicidade melhores condições de prova, por

ser o conhecedor do produto ou serviço, deve ele ser o responsável pela demonstração da

ausência de direito do consumidor, caso venha a ocorrer alguma controvérsia. Pode-se

7 É o caso, por exemplo, das exceções encontradas no artigo 36 do Código de Processo Civil e no artigo 9º da

Lei n. 9.099/95. 8 Por todos, MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. “Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do

consumidor”. In: Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Guimarães. Coord.: José

Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 1999, 123-140, p. 130.

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afirmar, em última análise, que a previsão do artigo 38 não é tecnicamente uma inversão

do ônus da prova, mas sim uma redistribuição desse encargo para uma específica pretensão

decorrente da relação de direito material9.

Salvo as regras acima mencionadas, que procuram excepcionar a previsão geral da

distribuição do ônus da prova, não há uma cláusula geral expressa no ordenamento

processual civil que permita ao julgador fazer uma mitigação do artigo 333 do Código de

Processo Civil10

.

Diante disso, indaga-se: é possível extrair do sistema processual a possibilidade de

alteração judicial das regras da distribuição do ônus da prova, no caso de insuficiência de

provas? É o que se passa a discutir.

3. A DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DOS ÔNUS PROBATÓRIOS

Para cuidar da possibilidade de modificação judicial da distribuição do ônus da

prova, com uma postura ativista do juiz diante de uma regra estática do processo, é preciso,

antes de mais nada, analisar a evolução histórica do processo civil.

Como bem leciona Cândido Rangel Dinamarco11

, o processo civil passou por uma

evolução histórica em três grandes fases: a do sincretismo, a da autonomia e a da

instrumentalidade. Na primeira delas, o processo não possuía uma existência autônoma,

mas era uma faculdade inerente ao direito material discutido no processo.

Na segunda fase, temos o processo efetivamente tratado como instituto autônomo

ao direito material em jogo: tendo em vista que as relações jurídicas de direito material e

de direito processual não se confundem, é preciso dar o devido tratamento à relação

processual. Nesse sentido, o processo começa a ter seus institutos desenvolvidos, uma vez

que é preciso o direito processual ganhar sua própria estrutura, deixando de fazer parte da

estrutura de direito material.

No entanto, a desvinculação entre relação processual e direito material não pode

tornar a primeira um fim em si mesma, sob pena de padecer de inefetividade. Em meados

9 Nesse sentido, RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. São Paulo: Forense

Universitária, 2003, p. 208. 10 Registre-se, porém, que o parágrafo único do mesmo dispositivo permite a realização de convenções processuais sobre ônus da prova, sujeitando-as a limites. 11 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, volume I. São Paulo: Malheiros,

5ª. ed., 2005, p. 273 e ss.

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do século passado, passa-se, então, à análise do processo enquanto instrumento à satisfação

do direito material: é a fase instrumentalista.

Na fase instrumentalista, ganha destaque o caráter instrumental do processo, de

modo a se obter da forma mais célere e eficaz possível uma solução acerca da controvérsia

sobre o direito em jogo. A tutela jurisdicional demorada pode ser intempestiva, inútil

àquele que veio ao Poder Judiciário em busca de uma solução a uma situação de

litigiosidade.

Nesse sentido, para que o processo obtenha a maior efetividade possível, não se

pode olvidar as garantias constitucionais do processo, tendo em vista a necessidade de

leitura do ordenamento infraconstitucional a partir da normatização da Constituição.

Assim sendo, a partir da força normativa da Constituição e da filtragem

constitucional, pode-se afirmar que todas as normas infraconstitucionais, entre elas as

normas processuais, e em especial a distribuição do ônus da prova, devem ser lidas à luz

das garantias e valores constitucionais incidentes sobre o processo.

E entre as garantias constitucionais ao processo, ganha especial relevo o acesso à

Justiça, previsto como a inafastabilidade do controle jurisdicional no artigo 5º, XXXV, da

Lei Maior.

O acesso à Justiça representa não só a concessão de mecanismos para acesso ao

Poder Judiciário, mas também que o processo possa ter seu curso de forma justa e célere.

Daí porque o acesso à Justiça deve ser interpretado como o acesso a uma ordem jurídica

adequada, justa12

.

Nesse sentido, a garantia do acesso à Justiça parece permitir que as normas do

Código de Processo Civil sejam lidas à luz de uma interpretação que lhes confira a maior

efetividade à tutela jurisdicional pretendida, já que é o acesso à Justiça que deve nortear

todo o procedimento e a atuação das partes.

Diante disso, cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça, em nome do

princípio da precaução, admite a inversão do ônus da prova, para que, caso proposta ação

em defesa do meio ambiente, recaia sobre aquele que exerce a atividade potencialmente

12 Nessa esteira, confira-se o texto de Leonardo Ferres da Silva Ribeiro (Princípio da inafastabilidade do

controle jurisdicional. In: OLIVEIRA NETO, Olavo de. LOPES, Maria Elizabeth de Castro (org.). Princípios

Processuais Civis na Constituição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, 2ª reimpressão, 2008, p. 54): “Bem se vê,

portanto, que a Constituição Federal garante muito mais do que a mera formulação de pedido ao Poder Judiciário, mas um acesso efetivo à ordem jurídica justa, que se substancia, em última análise, na

possibilidade de obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e adequada, apta a tutelar eficaz,

pronta e integralmente todos os direitos e interesses reconhecidos no plano material”.

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poluidora o ônus de demonstrar que não está causando lesão a tal direito difuso. Portanto,

nas ações ambientais, verifica-se uma inversão do ônus da prova, em defesa do interesse da

coletividade, com base em princípio regente do direito material envolvido. Nessa linha,

destaque-se julgado daquele Tribunal Superior:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO

CIVIL PÚBLICA. DANOS AMBIENTAIS.

ADIANTAMENTO DE DESPESAS PERICIAIS. ART. 18

DA LEI 7.347/1985. ENCARGO DEVIDO À FAZENDA

PÚBLICA. DISPOSITIVOS DO CPC. DESCABIMENTO.

PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. INVERSÃO DO

ÔNUS DA PROVA. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.

(...)

3. Em ação ambiental, impõe-se a inversão do ônus da prova,

cabendo ao empreendedor, no caso concreto o próprio

Estado, responder pelo potencial perigo que causa ao meio

ambiente, em respeito ao princípio da precaução.

Precedentes.

4. Recurso especial não provido13

.

Ademais, vem se admitindo que, caso a regra rígida da distribuição do ônus

probatório gere uma grave injustiça na análise do caso concreto, deve o juiz afastá-la, sob

pena de violação à garantia do acesso à ordem jurídica justa. Aplica-se, então, a chamada

Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas14

.

13 STJ, REsp 1237893/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013. No

mesmo sentido, dentre outros julgados: AgRg no AREsp 206.748/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS

BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013. 14 No direito argentino, é bastante desenvolvida na doutrina a aludida teoria, que tem como grande defensor

Jorge W. Peyrano. Dentre as obras sobre o assunto naquele país, vale conferir destaque à obra coletiva

Cargas Probatorias Dinámicas (ACOSTA, Daniel F. et alli. Cargas Probatorias Dinâmicas. Santa Fe:

Rubinzal-Culzoni Editores, 2004). No Brasil, existem autores que também a defendem, podendo-se

mencionar, por todos: DALL'AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Distribuição dinâmica dos ônus probatórios.

In: Revista Jurídica: Órgão Nacional de Doutrina, Leg. e Crítica Judiciária. São Paulo, v. 48, n.280, fev. 2001, 5-20; GODINHO, Robson Renault. “A Distribuição do ônus da Prova na Perspectiva dos Direitos

Fundamentais”. In: Revista da EMERJ, v. 10, nº 38, 2007, 263-284; DIDIER JR., Fredie et alli. Curso de

Direito Processual Civil, volume 2. Salvador: Podium, 2007, p. 61-65; RODRIGUES, Marco Antonio dos

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A previsão do artigo 333 do Código de Processo Civil não é nem pode ser

interpretada como uma norma estática, sob pena de violação a outra garantia constitucional

do processo: a igualdade. Com efeito, a excepcional distribuição do ônus da prova de

acordo com as possibilidades probatórias do caso concreto promove a igualdade material,

conferindo a partes com forças distintas para atuação processual um equilíbrio em suas

oportunidades de defesa.

Nessa esteira, vale recordar o artigo 125, I, do Código de Processo Civil, que dispõe

sobre os poderes-deveres do juiz no processo, conferindo-lhe atribuição para “assegurar às

partes igualdade de tratamento”, e tal igualdade deve ser não apenas formal, isto é, nos

termos da lei, mas também material, permitindo uma igualdade de oportunidades entre os

litigantes15

.

Não se pode olvidar, ainda, que o processo há muito rompeu com o individualismo

contratualista, representando um mecanismo de exercício de um direito público subjetivo,

cabendo às partes, ainda que em pólos distintos, atuar em cooperação, guardando deveres

éticos que devem ser observados por todos os personagens do processo16

.

No Direito argentino, em que, como dito, a teoria das cargas probatórias dinâmicas

possui elevado desenvolvimento, Juan Alberto Rambaldo sustenta que esta tem por base os

princípios gerais do processo, porém em especial dois: o da moralidade processual e o do

uso regular dos direitos processuais17

.

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart bem sintetizam a necessidade de

que o juiz inverta o ônus da prova em outras situações que não apenas aquelas previstas no

Código de Defesa do Consumidor. Vale transcrever trecho de sua obra:

Santos . Apontamentos sobre a distribuição do ônus da prova e a teoria das cargas probatórias dinâmicas.

Revista da Faculdade de Direito Candido Mendes, v. 12, p. 113-128, 2007. 15 Também defendendo a igualdade material no processo, importante destacar as lições de Alexandre Câmara

(CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 15ª. ed.,

2006, p. 40): “Não se pode ver, porém, neste princípio da igualdade uma garantia meramente formal. A falsa

idéia de que todos são iguais e, por isso, merecem o mesmo tratamento é contrária à adequada aplicação do

princípio da isonomia. As diversidades entre as pessoas devem ser respeitadas para que a garantia da

igualdade, mais do que meramente formal, seja uma garantia substancial. Assim é que, mais do que nunca,

deve-se obedecer aqui à regra que determina tratamento igual às pessoas iguais, e tratamento desigual às

pessoas desiguais”. 16 Sobre os deveres decorrentes da colaboração, confira-se MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 17 RAMBALDO, Juan Alberto. “Cargas Probatorias Dinámicas: um giro espistemológico. In: ACOSTA,

Daniel F. et alli. Ob. Cit. , pp. 25-34.

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Da mesma forma que a regra do ônus da prova decorre do

direito material, algumas situações específicas exigem o seu

tratamento diferenciado. Isso pela simples razão de que as

situações de direito material não são uniformes. A suposição

de que a inversão do ônus da prova deveria estar expressa na

lei está presa à idéia de que esta, ao limitar o poder do juiz,

garantiria a liberdade das partes.

Atualmente, contudo, não se deve pretender limitar o poder

do juiz, mas sim controlá-lo, e isso não pode ser feito

mediante uma previsão legal da conduta judicial, como se a

lei pudesse dizer o que o juiz deve fazer para prestar a

adequada tutela jurisdicional diante de todas as situações

concretas. Como as situações de direito material são várias,

deve-se procurar a justiça do caso concreto, o que repele as

teses de que a lei poderia controlar o poder do juiz. Esse

controle, atualmente, somente pode ser obtido mediante a

imposição de uma rígida justificativa racional das decisões,

que podem ser auxiliadas por regras, como as da

proporcionalidade e suas sub-regras18

.

Na realidade, pode-se afirmar que a distribuição dinâmica do ônus da prova procura

preservar a boa-fé processual, impedindo comportamentos imorais ou abusivos por aqueles

que possuam melhores condições de provar. Nessa esteira, também se manifesta Antônio

Janyr Dall’Agnol Junior19

, para quem o juiz deve estar atento a uma quebra do dever de

cooperação entre as partes.

Assim sendo, o acesso à Justiça, a igualdade e a boa-fé processual permitem a

adoção da distribuição dinâmica das cargas probatórias, para a excepcional definição de

quem são os responsáveis pela demonstração de cada fato.

18 MARINONI, Luiz Guilheme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2008, p. 273. 19 DALL'AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Ob. cit. Micheli defende que a quebra do dever de lealdade configura ilicitude, que o juiz pode apreciar livremente, a fim de obter elementos para a formação de sua

convicção (MICHELI, Gian Antonio. La carga de la prueba. Trad. por Santiago Sentís Melendo. Bogotá:

Temis, 2004, pp. 152-153).

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Nessa esteira, confira-se o acórdão de julgado do Superior Tribunal de Justiça, que

procura adotar as cargas dinâmicas para a produção probatória:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. MEDICO. CLINICA.

CULPA. PROVA.

1. NÃO VIOLA REGRA SOBRE A PROVA O ACORDÃO

QUE, ALEM DE ACEITAR IMPLICITAMENTE O

PRINCIPIO DA CARGA DINAMICA DA PROVA,

EXAMINA O CONJUNTO PROBATORIO E CONCLUI

PELA COMPROVAÇÃO DA CULPA DOS REUS.

2. LEGITIMIDADE PASSIVA DA CLINICA,

INICIALMENTE PROCURADA PELO PACIENTE.

3. JUNTADA DE TEXTOS CIENTIFICOS

DETERMINADA DE OFICIO PELO JUIZ.

REGULARIDADE.

4. RESPONSABILIZAÇÃO DA CLINICA E DO MEDICO

QUE ATENDEU O PACIENTE SUBMETIDO A UMA

OPERAÇÃO CIRURGICA DA QUAL RESULTOU A

SECÇÃO DA MEDULA.

5. INEXISTENCIA DE OFENSA A LEI E DIVERGENCIA

NÃO DEMONSTRADA.

RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO”20

(sem

acentos no original).

Do mesmo modo, veja-se que mesmo as regras de inversão do ônus da prova

previstas no Código de Defesa do Consumidor também não podem ser interpretadas de

modo fixo. Conforme se verifica, a partir da redação do artigo 4º. do Estatuto

Consumerista, a Política Nacional das Relações de Consumo tem por escopo, dentre

outros, a harmonização dessas relações. Assim sendo, se o objetivo da inversão é a

facilitação da defesa judicial do consumidor, de modo a permitir um equilíbrio na sua

20 STJ, 4ª. Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, RESP 69309, publ. DJ 26.08.1996. Note-se, porém, que

depois desse precedente, outros julgados também adotaram a aludida teoria, como é o caso: STJ, 3ª. Turma,

REsp 1286704/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2013, DJe 28/10/2013.

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relação com o fornecedor – em última análise, é inerente a esse microssistema legislativo o

valor da igualdade.

Dessa forma, somente pode ser aplicada a regra do artigo 6º, VIII, do Código de

Defesa do Consumidor, se sua adoção não gerar um abuso do direito de atuação processual

do consumidor, ferindo o equilíbrio pretendido com o Estatuto Consumerista. Nessa

esteira, vale conferir o trabalho de Rodrigo Xavier Lourenço:

A proteção do consumidor não pode ser confundida

com cerceamento do direito de defesa do fornecedor. A

proteção do consumidor, do mesmo modo, não pode

ensejar a procedência de todas as demandas formuladas

por consumidores (pelo simples fato de os autores

ocuparem a posição jurídica de consumidores). Não foi

por outra razão que o legislador, no artigo 4º. da Lei

8.078/90, determinou como princípio da política

nacional das relações de consumo, o equilíbrio nas

relações entre consumidores e fornecedores.21

A possibilidade de distribuição do ônus da prova à luz do caso concreto não pode,

contudo, ser uma abertura à atuação arbitrária do juiz. Com efeito, cuida-se de atuação

excepcional, tendo em vista tratar-se de possibilidade implícita ao ordenamento processual,

sendo imprescindível lembrar que existe regra expressa a definir as incumbências de

provar: o artigo 333 do Código de Processo Civil.

Como bem lembra Ana Paula de Barcellos ao tratar de normas constitucionais, as

regras da Lei Maior representam um consenso mínimo acerca de condutas a serem

observadas, revelando, pois, uma segurança jurídica desejada pelos representantes do povo.

Os princípios, por sua vez, estão mais ligados ao valor justiça, representando finalidades a

serem atingidas pela sociedade. Dessa forma, num conflito constitucional entre regras e

21 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.

274.

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princípios, entende a autora que devem prevalecer, ao menos a priori, as primeiras, sendo

excepcional a sua superação pelos últimos22

.

De igual maneira, pode-se aplicar o raciocínio à relação entre o mencionado artigo

333 e a teoria das cargas dinâmicas: se o legislador realizou uma ponderação prévia acerca

da distribuição do ônus da prova, criando regra própria acerca do tema, apenas em casos

em que a aplicação da regra acarretar uma manifesta subversão dos valores em jogo é que

pode o juízo afastá-la.

A aplicação excepcional da distribuição dinâmica poderia gerar alguma

controvérsia acerca de sua violação à garantia do devido processo legal. Ocorre que o

devido processo legal significa a observância não só apenas de procedimentos, mas

também de regras materialmente corretas. Daí por que, ao se melhor adequar o direito à

prova, está ocorrendo, outrossim, a promoção do devido processo legal23

.

No entanto, é preciso, de outro lado, o estabelecimento de limites à aplicação não

apriorística da divisão do encargo de provar. Num exame inicial da teoria, pode-se

vislumbrar duas limitações: o respeito ao contraditório e a ausência de impossibilidade

probatória reversa.

O contraditório, enquanto garantia legitimadora do próprio processo como um todo,

tem, como defende Cândido Dinamarco, uma dupla destinação: cabe à lei instituir meios

para a atuação das partes em contraditório, bem como ao próprio juiz promovê-lo,

permitindo às mesmas a demonstração da verdade24

.

22 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:

Renovar, 2005. Confira-se trecho da obra (fl. 190): “Ao se afastar uma regra sob o fundamento de que ela se

oporia a uma conduta derivada da área não nuclear de um princípio, incorre-se em um conjunto de

distorções. Em primeiro lugar, caso se trate de uma regra infraconstitucional, o intérprete estará conferindo

à sua concepção pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio maior importância do que à concepção majoritária, apurada pelos órgãos legitimados para tanto. A situação é ainda mais grave se a

regra envolvida consta da Constituição. Nesse caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma regra

elaborada pelo poder constituinte originário e que, como padrão, veicula consensos básicos do Estado

organizado pela Constituição. Por fim, como a solução do caso baseou-se na percepção individual do

intérprete, muito freqüentemente ela não se repetirá em circunstâncias idênticas, ensejando violações à

isonomia”. 23 Na mesma linha, GODINHO, Robson Renault. Ob cit., pp. 278-279. 24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições..., ob. cit., p. 234: “A garantia do contraditório, imposta pela

Constituição com relação a todo e qualquer processo – jurisdicional ou não (art. 5º., LV) – significa em

primeiro lugar que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve

franquear-lhes esses meios. Significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório. A garantia deste resolve-se portanto em um

direito das partes e uma série de deveres do juiz. É do passado a afirmação do contraditório exclusivamente

como abertura para as partes, desconsiderada a participação do juiz”.

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Assim sendo, se houver uma redistribuição do ônus da prova no caso concreto, é

preciso franquear àquele sobre quem incidiu o encargo de provar, em primeiro lugar, a

possibilidade de defesa em face daquele provimento jurisdicional. Além disso, é essencial

que tal readequação dos ônus probatórios ocorra em momento processual hábil para que a

parte ainda possa trazer provas, sob pena de violação à garantia do contraditório. Dessa

forma, não parece possível a redistribuição quando da prolação da sentença, uma vez que

aquele que receber o encargo não poderá, em tal momento, demonstrar as alegações que

lhe incumbem.

Na realidade, não apenas em nome do contraditório, mas também da própria boa-fé

processual, não é possível que a readequação dos ônus probatórios seja realizada sem que

ainda seja possível que o onerado traga ao feito demonstrações de suas alegações.

Finalmente, tendo em vista que a redistribuição do ônus da prova acarretará a

criação de um ônus para alguém que não o teria originariamente, verifica-se um requisito

inerente à tal redistribuição: a ausência de impossibilidade probatória reversa.

A partir do caso concreto, portanto, é preciso que o juízo verifique se a providência

de readequação do encargo de provar pode gerar um prejuízo à comprovação das alegações

daquele que será onerado, sob pena de violação à garantia da ampla defesa. Se a

redistribuição do ônus da prova, como dito anteriormente, realiza uma ponderação acerca

de prévia escolha legislativa, somente será legítima tal ponderação, se não causar um ônus

excessivo à outra parte, sob pena de causar um desequilíbrio a um dos pólos da relação

processual, desvirtuando-se, pois, do próprio objetivo da dinamização.

4. CONCLUSÕES

À luz de todas as considerações realizadas no presente texto, pode-se concluir que,

de modo a produzir decisões justas às demandas que lhe são submetidas, o juiz deve

procurar reconstituir a verdade sobre as alegações de fato das partes da relação processual,

evitando que a insuficiência de provas leve a uma decisão injusta. Quando não for possível

realizar tal reconstituição de forma total, deve o juiz se valer das regras de distribuição do

ônus da prova.

O artigo 333 do Código de Processo Civil, que prevê regra geral acerca da

distribuição do encargo de provar, pode ser modificado, à luz do caso concreto, sob o risco

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de gerar uma situação de injustiça. Daí porque, em nome da efetividade da tutela

jurisdicional, da igualdade e da solidariedade processual, pode o juiz redefinir, em casos

excepcionais, as regras de distribuição do ônus da prova.

A definição da distribuição do ônus da prova pelo juiz de forma diferenciada em

relação à disposição geral do artigo 333 do Código de Processo Civil é, porém,

excepcional, isto é, deve se dar apenas nos casos em que a atuação das partes não foi capaz

de levar a um conjunto probatório seguro, bem como há indícios de que outras provas se

fazem necessárias à resolução da controvérsia.

Dois limites desde logo despontam à dinamização do encargo probatório: o respeito

ao contraditório e a ausência de uma impossibilidade probatória reversa. Ainda assim,

porém, verifica-se que a excepcional redistribuição dos ônus é medida que gera uma maior

efetividade da própria jurisdição, garantindo que o Poder Judiciário possa esperar das

partes as provas que efetivamente possam trazer a juízo.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Editores, 2004.

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DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS NO PROJETO DO NOVO CPC

Marco Aurélio Scampini Siqueira Rangel

Mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade

Federal do Espírito Santo. Graduado em Direito pela

Universidade Federal do Espírito Santo. Advogado.

Pedro Henrique da Silva Menezes

Mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade

Federal do Espírito Santo. Graduado em Direito pela

Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Advogado.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o tratamento dado ao

procedimento de produção antecipada de prova no projeto do novo CPC. Para tanto será

feita uma breve abordagem sobre o sistema atual, para fins de comparação. Após, serão

apreciadas individualmente as disposições do PL 8.046/2010 que tratam da produção

antecipada de prova, sob a ótica dos princípios processuais e pela sistemática pelo projeto

de lei em questão, buscando identificar os acertos e os equívocos da proposta a fim de

fomentar a discussão sobre o tema.

PALAVRAS-CHAVE: Provas; Procedimento; Produção antecipada de provas; Novo

CPC; PL 8.046/2010.

ABSTRACT: The present article aims to discuss the treatment given to the procedure of

early production of evidence in the Project of the new civil procedural code. For this will

be made a short review about the actual system for comparison. Then the clauses of the PL

8.046/2010 about the early production of evidence will be analyzed by the view of the

procedural principles and the systematic of the bill, trying to identify the propriety and the

errors of the proposal to encourage the discussion about the topic.

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KEYWORDS: Evidence; Procedure; Early Production of Evidence; New Civil Procedural

Code; PL 8.046/2010.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A produção antecipada de prova no sistema processual

brasileiro atual; 3. A produção antecipada de prova sem o requisito da urgência; 4. O

Projeto do Novo CPC; 4.1. Hipóteses de cabimento do procedimento de produção

antecipada de prova; 4.2. Do arrolamento de bens; 4.3. Da Justificação; 4.4. Competência e

prevenção; 4.5. Dos requisitos da inicial; 4.6. O Art. 389 e a ofensa ao contraditório; 5.

Conclusão.

1. Introdução

Entre as diversas mudanças que o PL 8.046/2010 irá promover no processo civil brasileiro,

caso aprovado com sua redação atual1, está a criação de um procedimento de produção

antecipada de provas que se difere, em vários aspectos, do atual procedimento cautelar de

produção antecipada de provas. Entre as principais mudanças a que mais chama atenção é

a autorização da antecipação da prova sem o requisito da urgência, tema abordado de

maneira inaugural no Brasil pelo Prof. Flávio Yarshell – o que será objeto de análise mais

aprofundada no decorrer do artigo.

A proposta aprovada pela Comissão especial da Câmara dos Deputados possui virtudes e

defeitos, como qualquer texto legislativo, e o que se pretende no decorrer do presente

artigo é fazer a análise pontual dos dispositivos de maior relevância para tentar esclarecer

alguns pontos que podem ensejar questionamentos, bem como fazer críticas construtivas

que auxiliem o desenvolvimento do novo CPC, ao menos nesse ponto – tendo em vista que

o PL 8.046/2010 ainda não foi promulgado –.

Inicialmente, faremos uma análise superficial do sistema atual de produção antecipada de

provas. Em seguida, iremos analisar com mais atenção a teoria que embasa a antecipação

da prova sem o requisito da urgência. Para finalmente chegarmos a uma análise crítica do

texto aprovado pela Comissão especial da Câmara dos Deputados.

2. A produção antecipada de prova no sistema processual brasileiro atual

1 Texto do PL 8.046/10 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, disponível em: <

http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf>, acesso em 30/10/2013.

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564

O procedimento de produção antecipada de provas está inserido no Livro III (Do Processo

Cautelar), mais especificamente no Capítulo II (Dos Procedimentos Cautelares

Específicos) entre os artigos 846 e 851 do CPC. Da sua colocação topológica decorre uma

conclusão lógica, mas que precisa ser pontuada para fins de construção do raciocínio: trata-

se de um procedimento de natureza cautelar.

A consequência dessa afirmação, repito, óbvia é que o referido procedimento se subordina

à regulamentação do Livro III do CPC – referente ao processo cautelar. Importante frisar

que não é criação do legislador de 1973 a atribuição do caráter cautelar ao procedimento de

produção antecipada de provas. Cassio Scarpinela Bueno2 faz referência à obra

Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari de Piero Calamandrei,

obra datada de 1936, para demonstrar que há muito tempo é reconhecido o caráter cautelar

do procedimento em questão.

O procedimento do art. 846 do CPC tem como escopo a conservação3 da prova que está

sujeita ao perecimento pelo decurso do tempo. Exige-se da parte que pretender a

antecipação da prova a demonstração da necessidade da antecipação e que indique com

precisão os fatos sobre os quais há de recair a prova (art. 848, caput, CPC), que poderá

consistir em interrogatório da parte, inquirição da testemunha e exame pericial. Quanto a

este último, o código deixa expresso no art. 849 que somente será admissível quando

houver “fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação

de certos fatos na pendência da ação”, o que se aplica aos demais tipos de prova em

decorrência das disposições gerais do Capítulo I.

No tocante ao juízo competente para apreciação do pedido cautelar, o CPC dispõe no art.

800 que “as medidas cautelares serão requeridas ao juiz da causa; e, quando

preparatórias, ao juiz competente para conhecer da ação principal” e quando já houver

sido interposto recurso “a medida cautelar será requerida diretamente ao tribunal”.

Contudo, tem-se admitido na doutrina4 e na jurisprudência

5 a possibilidade de,

2 BUENO, Cassio Scarpinela. Curso sistematizado de direito processual civil, 4: tutela antecipada, tutela

cautelar, procedimentos cautelares específicos. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 308. 3 Importante destacar que tal posicionamento não é uniforme na doutrina, para alguns autores, por todos

Flávio Luiz Yarshell, trata-se de verdadeira produção da prova, e não simples conservação, uma vez que não

é possível estabelecer diferenciação entre produção e conservação da prova. (YARSHELL, Flávio Luiz.

Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35/36). 4 É possível citar como doutrinadores que defendem essa possibilidade: “BUENO, Cassio Scarpinela. Curso

sistematizado de direito processual civil, 4: tutela antecipada, tutela cautelar, procedimentos cautelares

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excepcionalmente, o procedimento ser ajuizado no local onde a prova será produzida de

maneira mais adequada, uma vez que a burocracia para a sua efetivação quando ajuizada

em comarca diversa daquela em que deve ser produzida pode acarretar seu perecimento.

Outro ponto que merece destaque é a possibilidade da antecipação da tutela cautelar

naqueles casos em que a urgência impede que seja oportunizado o contraditório à parte

requerida, o que decorre do disposto no art. 804 do CPC. Da mesma forma que ocorre no

processo de conhecimento ou no processo de execução, embora eventualmente com

amplitude diversa, o contraditório somente pode ser postecipado excepcionalmente, visto

que se trata de garantia constitucional que deve ser observada no exercício da atividade

jurisdicional.

Feito esse breve apanhado dos pontos referentes ao procedimento do art. 846, é importante

salientar que esta não é a única forma de produção antecipada de provas existente no

sistema processual civil brasileiro. Conforme destaca Flávio Yarshell, também são

consideradas “vias” processuais para a produção antecipada de prova a justificação (art.

860 e ss. do CPC), a ação de exibição de documentos e o arrolamento de bens6. Destaco

que, estas “vias” serão abordadas oportunamente quando tratarmos dos dispositivos do PL

8.046/10, motivo pelo qual deixamos de analisá-las por ora.

3. A produção antecipada de prova sem o requisito da urgência

Como mencionado alhures, um dos grandes destaques do procedimento de produção

antecipada de prova previsto no projeto do novo CPC é a previsão da antecipação da prova

específicos. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 312” e “CÂMARA, Alexandre Freitas.

Lições de Direito Processual Civil. Vol. III. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 59”. 5 “AGRAVO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL.

COMPETÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. REPARAÇÃO

DE DANO. PESSOA JURÍDICA. FORO DO LOCAL DO FATO. ORDEM PRÁTICA E PROCESSUAL.

REDEFINIÇÃO DO FORO COMPETENTE PARA JULGAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL. REVISÃO

DA COMPETÊNCIA TAMBÉM NO PROCESSO CAUTELAR. NECESSIDADE. A ação de reparação de dano tem por foro o lugar onde ocorreu o ato ou o fato, nos termos do art. 100, v, 'a', do CPC, ainda que a ré

seja pessoa jurídica com sede em outra localidade. Precedentes. A competência deve prevalecer também por

questões de ordem prática e processual, na medida em que a realização de perícia ou inspeção judicial no

Juízo será facilitada, porquanto lá já se encontra o produto objeto da divergência entre as partes; o que,

sem dúvida, contribui para a celeridade da prestação jurisdicional. Havendo a redefinição do foro

competente para julgamento do processo principal, deve ser igualmente revista a decisão oriunda do processo

cautelar vinculado àquele, a teor do que estabelece o art. 800 do CPC. Negado provimento ao agravo interno.

(AgRg nos EDcl no AgRg no Ag 727699/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,

julgado em 07/12/2006, DJ 18/12/2006, p. 372)”. 6 Nesse sentido, o Prof. Flávio Yarshell aduz: “Outra via processual da qual se pode cogitar para o exercício

do direito autônomo à prova consiste no arrolamento de bens. Sobre isso não parece haver dúvida, em primeiro lugar, de que referida medida se presta à função de documentar fatos, e, portanto, à tarefa de pré-

constituir prova”. (YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito

autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 436).

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sem o requisito da urgência, uma vez que, como visto, o procedimento do art. 846 possui

natureza cautelar, estando nele, ao menos a princípio, ínsito o requisito da urgência.

O Prof. Flávio Luiz Yarshell, em trabalho elaborado como tese de titulação no

Departamento de direito processual da Universidade de São Paulo publicado em 20097,

desenvolveu uma teoria a respeito da desnecessidade do requisito da urgência para a

produção antecipada da prova baseada na premissa da existência de um direito autônomo à

prova.8

O ilustre jurista do Largo São Francisco desenvolve ao longo de sua obra a tese de que é

possível extrair do direito de ação um autêntico direito à prova, que consistiria,

basicamente, em um “direito autônomo à produção da prova, de forma não diretamente

vinculada ao pleito de declaração do direito material e ao processo instaurado para esta

finalidade”.9 Semelhante posicionamento é defendido por Fredie Didier – jurista membro

da comissão da Câmara dos Deputados responsável pela elaboração do novo CPC – em

recentíssimo artigo.10

Importante destacar que, embora se fale em um direito autônomo à prova11

(sem

vinculação de instrumentalidade com um processo principal) o exercício não pode ser

ilimitado, sob pena de violação de outros direitos, dentre os quais o da privacidade

desponta como potencial objeto das mais graves violações, tendo em vista que, mesmo que

não consista em medida de caráter constritivo, a produção antecipada da prova implica

“alguma forma de invasão da esfera individual – inclusive, eventualmente, de

‘terceiros’.”.12

Ainda, em reforço à tese ventilada, Eduardo Cambi afirma que “o direito à prova é,

conforme visto, um desdobramento da garantia constitucional do devido processo legal ou

7 YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova.

São Paulo: Malheiros, 2009. 8 Neste momento é importante esclarecer que a abordagem mais detida da obra do Prof. Yarshell se dá pelo

fato de que o projeto do novo CPC claramente se abeberou dos ensinamentos constantes da obra do referido

jurista, embora não haja qualquer referência a este fato nas razões constantes do relatório da Câmara ou do

Senado. 9 Ob. cit. p. 310. 10 Sobre o tema assim se manifestou: “A visão que parece mais apropriada, entretanto, é no sentido de que

ambas as medidas – produção antecipada de provas e justificação – não são propriamente cautelares e não

pressupõem, necessariamente, a demonstração do perigo da demora (urgência) para serem admissíveis. São,

pois, satisfativas do chamado direito autônomo à prova, direito este que se realiza com a coleta da prova em

típico procedimento de jurisdição voluntária”. (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; Ações

probatórias autônomas: produção antecipada de prova e justificação. Revista de Processo, São Paulo; Vol. 218, p. 13, Abr. 2013). 11 Ob. cit. 12 Ob. cit. p. 333

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um aspecto fundamental das garantias processuais da ação, da defesa e do contraditório”.13

O referido autor dá um caráter constitucional ao direito em comento, o que demonstra a

necessidade de o legislador criar meios para o seu exercício.

Seguindo essa linha de raciocínio, Yarshell demonstra que a existência de um direito à

prova desvincula o mesmo da ideia de um instrumento a serviço do magistrado,

tradicionalmente visto como destinatário – quase que único – da prova produzida. Esta

visão claramente estreitaria a amplitude do direito à prova nos termos desenvolvidos pelo

Prof. Yarshell, o que de forma alguma infirma a existência de forte vínculo da prova com o

magistrado, mas tão somente não limita a prova a este aspecto.

Demonstra, na sequência, que a utilidade da produção antecipada da prova não se limita à

sua preservação – termo que, como citado alhures, não apresenta diferença substancial para

a “produção” em si –. A produção da prova em momento anterior ao início do processo

principal serve também para possibilitar às partes uma melhor apreciação das chances e

dos riscos decorrentes do ajuizamento de uma ação, ou do oferecimento de peça de

resistência.14

Importante frisar que no mesmo sentido do pensamento desenvolvido pelo referido jurista,

Luigi Paolo Comoglio destaca que há tendência no processo civil italiano de se admitir a

utilização do procedimenti di istruzione preventiva sem o fundamento da urgência,

conforme é possível identificar a partir do projeto elaborado pela Comissione Ministeriale

em 2002, que identifica, assim como faz o Prof. Yarshell, outras razões para a produção

antecipada da prova, entre elas a possibilidade de fazer um estudo adequado das estratégias

processuais a serem adotadas.15

No entanto, o Codice di procedura Civile no Art. 692 e ss.

mantém a vinculação do procedimenti di istruzione preventiva ao requisito da urgência.

13 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. Coleção temas atuais de processo civil, vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 166. 14 “Contudo, em coerência com as conclusões expostas anteriormente, a prova – incluindo-se aí as regras

sobre distribuição dos respectivos ônus – não desempenha no sistema apenas a função de esclarecimento do

órgão julgador na missão de declarar o direito no caso concreto. Mais que isso, a prova pode e deve ser vista

como elemento pelo qual os interessados avaliam suas chances, riscos e encargos em processo futuro, e pelo

qual norteiam sua conduta, inclusive de sorte a evitar uma decisão imperativa”. (YARSHELL, Flávio Luiz.

Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009.

p. 137) 15 “Si profilano comunque, de jure condendo, alcune interessanti novità nelle linee direttive di una prossima

riforma organica del processo. Nel progetto redatto ed elaborato dalla Comissione ministeriale presieduta da

Vaccarella nel 2002, la direttiva n. 52 prevede <<la possibilità di utilizzare i procedimenti di instruzione preventiva anche in assenza di periculum in mora>>, noché <<la possibilità di generalizzare la consulenza

tecnica ante causam>>. Fermo restando il chiaro intento di svincolare i presupposti di tale istruzione dalle

consuete condizioni di ammissibilità della tutela cautelare in genere, si va rafforzando il parallelismo fre le

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Em sede de conclusão, Flávio Yarshell faz proposições de reformas ao CPC/73 para que

seja adequadamente tutelado o direito à prova, dentre as quais se pode destacar: a)

“acrescer um inciso ao art. 847 do CPC, para nele constar que as providências de instrução

ali mencionadas podem ter lugar sempre que houver ‘motivo legítimo ou que isso seja útil

para impedir ou por fim a controvérsia ou litígio’;”;16

b) “deixar expresso que a

antecipação não se limita necessariamente ao interrogatório ou à inquirição de

testemunhas, podendo abranger toda e qualquer outra providência de instrução que seja

‘moralmente legítima’,”.17

Dentre outras sugestões para a preservação da harmonia e

unidade do código.

O que se pode concluir a partir das colocações expostas neste tópico é que a existência de

um direito autônomo à prova impõe a necessidade de um procedimento através do qual as

partes possam garantir o exercício desse direito. O que se daria através de um processo

interpretativo da legislação vigente, para ampliar a sua abrangência e relativizar os

requisitos dos arts. 846 e ss., ou por meio de uma reforma na legislação, o que está sendo

feito no PL 8.046/10, que será analisado nos tópicos seguintes.

4. O Projeto do Novo CPC

Dentre as diversas alterações que são objetivadas pelo legislador reformador está, como

dito alhures, a previsão de um procedimento de produção antecipada de provas sem o

requisito da urgência. Arruda Alvim afirma, na esteira de outros posicionamentos

demonstrados acima, que houve uma mudança de paradigma no instituto da prova, pois se

passou a reconhecer a função da prova na formação do convencimento das partes na

avaliação de suas chances em uma eventual demanda. Afirma, ainda, que “este novo

propósito da atividade probatória, que, de certa forma, situa também as partes como

destinatárias da prova, tem como objetivo prevenir a propositura de ações infundadas ou

fadadas ao insucesso, porque desprovidas de respaldo fático”.18

più recenti innovazioni legislative, in materia di indagini <<private>> e <<preventive>> dei difensori nel

processo penale, e le chances di tutela anticipata, che – grazie, pure, al potenziamento dei mezzi instrutori

assumibili dai diffensori <<anche prima dell’inizio del giudizio>>, configurato dalla direttiva n. 22 (cfr.

supra) – muniscono anche i difensori nel processo civile di idonee prossibilità di <<precostituzione>> di

fonti e di mezzi probatori, in funzioni de un giudizio ancor da promuoversi, nonché in vista di un più

adeguato studio delle strategie defensive adottabili”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Le prove civili. 2. ed.

Torino: UTET, 2004. p. 142). 16 Ob. cit. p. 444. 17 Ob. cit. 18 ALVIM, Arruda. Notas sobre o projeto de novo código de processo civil. Revista de Processo, São Paulo;

Vol. 191, p. 299, Jan. 2011.

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O PL 8.046/10 inovou com a criação de uma Parte Geral, na qual foram insculpidas

normas que devem reger a atividade dos atores do processo, dentre os quais merece

destaque o princípio da cooperação. Além disso, a todo o tempo se buscou a simplificação

dos procedimentos e do próprio código – embora não nem sempre este objetivo tenha sido

alcançado – para garantir uma duração razoável do processo. Nesse contexto é que essa

alteração – antecipação da prova sem o requisito da urgência – aparece como um dos

meios de redução da litigiosidade e de tentativa de tornar célere a prestação jurisdicional.

Bem como, tem que ser analisada sob o escopo da simplificação do procedimento e da

garantia dos direitos constitucionalmente previstos. Será esse, portanto, o enfoque dado

doravante, para que seja possível analisar o procedimento em questão.

4.1. Hipóteses de cabimento do procedimento de produção antecipada de prova

Dispõe o art. 388 do projeto do novo CPC ser admitida a produção antecipada de provas

nos casos em que: a) haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito

difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; b) a prova a ser produzida seja

suscetível de viabilizar tentativa de conciliação ou de outro meio adequado de solução do

conflito; e c) o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de

ação.

A primeira situação somente reitera hipótese de cabimento já consagrada no CPC/73,

consistente na produção da prova para evitar seu perecimento. Sendo, portanto,

desnecessário tecer quaisquer comentários sobre o tema, uma vez que já foi analisado

alhures.

Quanto à segunda hipótese (“viabilizar tentativa de conciliação ou de outro meio adequado

de solução do conflito”) temos realmente uma inovação que merece nossa atenção.

Na hipótese ora analisada o legislador admite expressamente que, conforme citado acima, a

prova não se destina exclusivamente ao juiz. A prova se presta também à formação do

convencimento das partes quanto às suas chances em uma eventual demanda – note,

“eventual demanda” –. Importante perceber que não há mais disposição no sentido de

estipular prazo para o ajuizamento da ação principal. Isso porque, a hipótese de cabimento

em tela não está vinculada a um processo principal, é reconhecido o direito autônomo ao

ajuizamento de uma demanda para fins de produção de prova como meio de facilitar a

autocomposição.

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Assim sendo, é possível que, ocorrendo um acidente de carro entre “A” e “B”, qualquer um

dos interessados vá a juízo para que se produza a prova pericial a fim de identificar quem

foi o causador do acidente. Digamos que a perícia conclua que a responsabilidade pelo

acidente é de “A”. Neste caso, “A” e “B” teriam a perfeita noção de suas chances em uma

eventual demanda judicial, hipótese que pode levar “A” a formular uma proposta de acordo

extrajudicial para que sobre ele não recaiam os ônus decorrentes de uma demanda judicial.

A terceira hipótese de cabimento se aproxima sobremaneira da que acabamos de abordar,

pois também está ligada à concepção de que as partes interessadas também são

destinatárias da prova. Porém, neste caso o legislador busca autorizar a produção

antecipada da prova para evitar que as partes ingressem em juízo com demandas

temerárias, ou o contrário, que as partes tenham elementos para ingressar em juízo com

mais chances de êxito.

Essa hipótese de cabimento vai ao encontro da sistemática adotada pelo projeto do novo

CPC, o que se pode depreender da leitura do art. 77, II do projeto, que elenca entre os

deveres das partes “deixar de formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de

que são destituídas de fundamento”. E para que as partes possam adequar as suas atitudes –

dentro e fora do processo – é preciso que lhes sejam disponibilizados meios para

conhecerem suas verdadeiras chances e avaliar a validade dos fundamentos que pretendem

expor.

4.2. Do arrolamento de bens

O §1º do art. 388 do projeto do novo CPC dispõe que “o arrolamento de bens observará o

disposto nesta seção quando tiver por finalidade apenas a realização de documentação e

não a prática de atos de apreensão”. Tal previsão consagra expressamente a possibilidade

de utilização do arrolamento de bens sem fins constritivos.

O CPC de 1939 previa em seu art. 676, IX o arrolamento de bens para fins de descrição

dos bens do casal, de forma que pudesse ser utilizado como base para um futuro processo

de inventário. Assim, não havia àquela época o caráter constritivo. Este somente foi

inserido no sistema com o advento do CPC atual, que, inspirado no modelo português,

atribuiu caráter constritivo à medida (art. 855 e ss. do CPC/73).

A despeito dessa característica, diversas vozes se levantaram a favor da possibilidade de

utilização do arrolamento de bens sem o seu caráter constritivo. Por todos, Ernane Fidélis

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dos Santos, que afirma ser possível o pedido de arrolamento sem a medida constritiva,

visando, única e exclusivamente o conhecimento dos bens.19

Esse viés meramente probatório do arrolamento é o que foi resgatado pelo projeto do novo

CPC. Para tanto, o legislador dispôs que na hipótese de o arrolamento não possuir caráter

constritivo ele será regido pela “Seção II – Da produção antecipada da prova”.

Curioso mencionar que não há a previsão da medida típica de arrolamento com caráter

constritivo ao longo do projeto. Isso porque, não há mais o Livro dedicado exclusivamente

às cautelares, bem como foi extinto o rol de cautelares típicas, passando o tratamento das

cautelares, em caráter antecedente, a ser feito pelos arts. 307 a 312. Contudo, a inexistência

da previsão expressa não implica no seu desaparecimento do sistema, uma vez que o

magistrado poderá conceder tal medida cautelar por força do disposto no art. 29820

do

projeto.

Nesse sentido, portanto, o arrolamento de bens não estará vinculado à existência da

urgência, bastando para o seu cabimento que esteja presente alguma das hipóteses previstas

nos incisos do art. 388 do projeto.

De grande importância didática é o exemplo dado por Flávio Yarshell que se reporta à

hipótese de um credor de dada quantia que, sem saber da solvabilidade de seu devedor,

pretende o arrolamento de bens para que, sabendo da real condição patrimonial evite

instaurar processo em face deste que ao final restaria frustrado, dada a inexistência de bens

passíveis de expropriação21

. Importante mencionar que tal medida se mostra tanto efetiva,

sob a ótica do credor, quanto menos gravosa, sob a ótica do devedor, alcançando o escopo

pretendido pelo projeto.

4.3. Da Justificação

O §5º do art. 388 do projeto dispõe que também se aplica o disposto na Seção II à

justificação22

. A justificação desde o código atual já é vista como procedimento que se

diferenciava das demais medidas propriamente cautelares, pois era reconhecida a

desnecessidade do requisito do periculum in mora, já que o art. 861 do CPC admitia o seu

19 DOS SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. Vol. II. 10. ed. São Paulo: Saraiva,

2006. p. 341. 20 “Art. 298. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela

antecipada. Parágrafo único. A efetivação da tutela antecipada observará as normas referentes ao

cumprimento provisório da sentença, no que couber”. 21 Ob. cit. p. 439. 22 “Art. 388 – § 5º Aplica-se o disposto nesta Seção àquele que pretender justificar a existência de algum fato

ou relação jurídica, para simples documento e sem caráter contencioso, que exporá, em petição

circunstanciada, a sua intenção”.

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ajuizamento para fins de mera documentação23

. Tal característica é destacada por

Humberto Theodoro Júnior ao afirmar que a justificação consiste na “colheita avulsa de

prova testemunhal, que tanto pode ser utilizada em processo futuro, como em outras

finalidades não contenciosas”.24

Corroborando o exposto, no relatório do Deputado Paulo

Teixeira ficou consignado que foi unificado “o regime da justificação com o da produção

antecipada de prova, exatamente em razão da desnecessidade de demonstração da urgência

para sua produção”.25

Da mesma forma que o arrolamento de bens, a justificação não encontra previsão em outro

ponto do projeto de novo CPC, tendo o legislador limitado seu tratamento ao §5º do art.

388. Tal fato não prejudica de forma alguma a sua utilização, até mesmo porque havia

doutrinadores que levantavam a dificuldade de diferenciá-la do procedimento de produção

antecipada de provas, dados os inúmeros pontos de contato26

.

4.4. Competência e Prevenção

Ponto que talvez seja um dos mais delicados do procedimento de produção antecipada de

provas no projeto do novo CPC é o referente à competência e à prevenção. Sobre o tema o

projeto prevê o seguinte nos §§ 2º a 4º do art. 388: “§ 2º A produção antecipada da prova é

da competência do juízo do foro onde esta deva ser produzida ou do foro de domicílio do

réu. § 3º A produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação

que venha a ser proposta.§ 4º O juiz estadual tem competência para produção antecipada

de prova requerida em face da União, entidade autárquica ou empresa pública federal se,

na localidade, não houver vara federal”.

Inicialmente, o §2º estipula regra de competência específica para o procedimento da

produção antecipada da prova, dispondo que o foro competente será aquele no qual a prova

deve ser produzida. Trata-se de disposição que busca solucionar problema que há muito

fomenta discussões na doutrina: a dificuldade de produzir a prova quando o objeto se

encontra em comarca distante do foro competente para o ajuizamento da ação principal.

23 “Art. 861. Quem pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples

documento e sem caráter contencioso, seja para servir de prova em processo regular, exporá, em petição

circunstanciada, a sua intenção”. 24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. II. 40. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2006. p. 513. 25 Texto do PL 8.046/10 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, disponível em: <

http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf>, acesso em 30/10/2013. 26 Ob. cit. p. 422/423.

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Atualmente, o CPC prevê no art. 800 que o juízo competente para a ação principal será o

competente para as medidas cautelares preparatórias. Contudo, o CPC atual parte de uma

premissa que foi afastada pelo projeto, a de que a produção antecipada de prova consiste

necessariamente em medida cautelar preparatória. Esta mudança de paradigma, como

referido alhures, traz inúmeras consequências para o sistema e uma delas é a solução da

questão referente ao juízo competente. Explico.

Se considerarmos, como demonstrado no tópico “3”, que existe um direito autônomo à

produção da prova e que a produção antecipada da prova não se destina unicamente à

preservação da prova – portanto, não está necessariamente vinculada a um processo

principal – não persiste razão para atribuirmos competência ao juízo onde tramitaria a

demanda principal, já que essa não existirá obrigatoriamente.

Dito isso, deve-se buscar qual o critério mais adequado para a fixação da competência. A

conclusão que se chega não pode ser outra senão o local onde a prova deve ser produzida.

Contudo, a redação do projeto prevê ainda que, alternativamente, a prova poderá ser

produzida no domicílio do réu. Quanto a esta disposição parece que o legislador deveria ter

sido mais claro quanto à sua intenção. Isso porque, se o escopo da norma é facilitar a

produção da prova não parece razoável admitir que, v.g., um fazendeiro que pretenda fazer

prova quanto a um rebanho de gados negociado, que se encontra em uma fazenda no Mato

Grosso, possa ajuizar a demanda no Estado de São Paulo onde é domiciliado o Réu.

Admitir tal situação seria ir contra toda a ideia de duração razoável do processo e

simplificação do procedimento preconizada pelos idealizadores do projeto.

Assim, solução que parece mais razoável seria a de que o juízo competente é o do local

onde deve ser produzida a prova. Contudo, em situações nas quais não seja possível

identificar um local para a produção da prova – por exemplo, caso de prova pericial em um

caminhão que não possui pouso determinado, mudando de localização constantemente – ou

se trate de prova que possa ser produzida em qualquer lugar – caso de uma perícia em um

sistema de proteção de um determinado site de comércio virtual –, será competente a

comarca de domicílio do réu.

O §3º por sua vez trata da prevenção, dispondo que a produção antecipada da prova não

torna prevento o juízo para o ajuizamento da demanda principal. Novamente é importante

se atentar para a mudança de paradigma que o projeto propõe. A ação de produção

antecipada de prova é o meio processual para o exercício de um direito autônomo à prova.

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Nesse procedimento não há juízo de valor quanto ao conteúdo da prova, mas tão somente

se verifica se os requisitos legais estão preenchidos para a produção da prova, que poderá

ou não ser utilizada em uma futura demanda judicial.

Assim sendo, não há qualquer razão para que tal juízo se torne prevento. Previsão nesse

sentido somente serviria para dificultar o exercício do direito de ação da demanda em que

se pretenderia utilizar a prova.

É curial notar que a prevenção, especificamente em relação à projeção expansiva dos seus

efeitos, consiste “no surgimento de um dever de atribuição de todas as demandas conexas

(i.e., todas que pertencem a um mesmo conjunto de conexas) ao juízo prevento”.27

Nesse

sentido, é importante tentar identificar se haveria conexão entre a demanda de produção

antecipada de provas e uma eventual ação principal. Vejamos.

Bruno Silveira fixa como critério para identificação da conexidade – para utilizar o termo

adotado pelo referido doutrinador – entre demandas “saber se, julgadas em separado duas

ou mais demandas, poderia advir algum tipo de incompatibilidade lógica ou prática entre

os respectivos julgados”.28

Utilizando este critério é forçoso admitir que não haveria

conexidade entre a ação probatória autônoma e uma eventual ação a ser ajuizada para

tutela do direito material relativo à prova. Isso porque, não havendo juízo de valor quanto

ao conteúdo da prova, não seria possível se falar em incompatibilidade entre os julgados.

Bem como, independentemente da prova produzida por meio do procedimento do art. 388

do projeto, tanto as partes podem deixar de utilizá-la quanto o juiz pode determinar que

seja produzida nova prova.

Desta forma, agiu bem o legislador projetista ao dispor expressamente que não há

prevenção.

Por fim, o §4º que dispõe quanto à competência do juiz estadual para produção antecipada

de prova requerida em face da União, em comarca onde não houver Vara Federal em nada

altera a regulamentação atual, uma vez que o art. 15 da Lei 5.010/196629

possui previsão

idêntica, havendo pequena diferença na redação dos artigos, o que não afeta na norma que

se pode extrair a partir do texto legal.

27 OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Conexidade e efetividade processual. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2007. p. 200. 28 Idem. p. 135. 29 “Art. 15. Nas Comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal (artigo 12), os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar: (...) II - as vistorias e justificações destinadas a fazer prova

perante a administração federal, centralizada ou autárquica, quando o requerente fôr domiciliado na

Comarca;”

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4.5. Dos requisitos da inicial

Prevê o art. 389, caput, do projeto que “na petição, o requerente apresentará as razões que

justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre

os quais a prova há de recair”, devendo ainda ser observados os requisitos previstos nos

arts. 320 e 321 do projeto do novo CPC.

A exigência prevista no caput do art. 389 deve ser vista à luz das premissas aqui fixadas.

Ou seja, não é possível entender como “necessidade de antecipação da prova” a

possibilidade de seu perecimento ou a dificuldade da sua produção no bojo de uma

eventual demanda judicial. Isso seria limitar a produção antecipada de prova às hipóteses

de urgência. Como vimos ao longo do presente artigo, o projeto do novo CPC não admite

tal limitação.

Assim sendo, sob a ótica do projeto devemos entender por “necessidade de antecipação da

prova” a presença de alguma das situações dos incisos do art. 388 do CPC. O que força a

conclusão de que a referida exigência pode vir a se tornar inócua, uma vez que é difícil

imaginar uma situação em que não seja possível vislumbrar a prova como meio de

viabilizar um acordo extrajudicial, evitar que a parte ingresse em juízo ou justificar o

ajuizamento de uma futura ação.

Pior que isso é a possibilidade de essa exigência se tornar uma forma de os juízes – em

busca de cumprir as “metas do CNJ” – indeferirem as iniciais de produção antecipada de

prova pelo não preenchimento da citada exigência. O que iria de encontro a tudo que foi

exposto até o presente momento. Assim, melhor seria que o legislador deixasse a cargo do

art. 320 do projeto a previsão dos elementos que devem constar da petição inicial, uma vez

que a “necessidade de antecipação da prova” já estaria abarcada pelo art. 320, III do

projeto e evitaria a situação vislumbrada acima.

Quanto aos “fatos sobre os quais a prova há de recair”, também estaria abarcado pelo art.

320, IV do projeto, o que tornaria mera repetição a sua previsão no art. 389.

4.6. O Art. 389 e a ofensa ao contraditório

De todas as disposições pertinentes ao tratamento da produção antecipada de provas,

aquelas que mais causam preocupação são as inseridas nos §§ 1º e 4º do art. 389. Dada a

sua peculiaridade faço transcrevê-las integralmente: “§ 1º O juiz determinará, de ofício ou

a requerimento da parte, a citação de interessados na produção da prova ou no fato a ser

provado, salvo se inexistente caráter contencioso; (...) § 4º Neste procedimento, não se

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admitirá defesa ou recurso, salvo contra a decisão que indeferir, total ou parcialmente, a

produção da prova pleiteada pelo requerente originário”.

Os parágrafos acima colacionados destoam sobremaneira de tudo o que se busca com o

projeto do novo CPC. Primeiramente, o legislador projetista estipula que as partes

interessadas serão citadas a requerimento da parte ou de ofício pelo magistrado. Até este

ponto andou bem. Contudo, na sequência prevê exceção para aqueles casos em que

inexistir o caráter contencioso. Como assim? De que forma o magistrado poderá saber se a

produção de determinada prova pode ou não gerar interferência na esfera individual de

outra pessoa, que ficando alheia ao processo não teria como exercer o contraditório? A

norma é de patente inconstitucionalidade, ferindo de morte o princípio do contraditório e

da ampla defesa ao criar a possibilidade de intervenção na intimidade de outrem sem o

respeito ao devido processo legal e ao contraditório.

Não bastasse a existência de tal previsão, o legislador vai além, veda a defesa ou o recurso

no procedimento de produção antecipada de prova. Repito, o legislador criou uma hipótese

de processo judicial em que o réu não poderá apresentar defesa ou recurso. Sendo assim, o

que faz o réu no referido procedimento? Mero expectador?

Ao que parece o legislador deixou de considerar, o que já foi ponderado acima, que a

produção antecipada de provas, embora não tenha caráter constritivo, pode gerar

interferência na esfera privada – e normalmente essa interferência está presente – de

terceiros, que deverão ser citados para participarem do referido procedimento e poder

interferirem na decisão judicial que irá lhes imputar limitações ao direito de privacidade

por meio do exercício do contraditório.

Curioso notar que o próprio legislador só admite a participação do réu quando houver o

aspecto contencioso, mas impede que este ofereça defesa ou recursos. A incongruência

entre normas inseridas no mesmo artigo é gritante.

Quanto à vedação ao recurso, está já nasce eivada de grave inconstitucionalidade, uma vez

que fecha totalmente as portas do réu à via recursal, e conforme aduzido pelo Prof. Bruno

Silveira, com a clareza que é característica, é “inconstitucional uma lei que revogasse por

completo os recursos que propiciam o duplo grau de jurisdição: porque há outros meios –

igualmente capazes de fomentar a celeridade processual – que, todavia, não afrontam o

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conteúdo de direitos fundamentais, como o direito ao amplo acesso à justiça (art. 5º,

XXXV, CF/88)”.30

Além de limitar totalmente os recursos para o réu, restam também limitadas as hipóteses de

recurso do autor para aqueles casos em que tenha havido o indeferimento total ou parcial,

aparentemente eliminando a possibilidade até mesmo de embargos de declaração.

Quanto às aberrantes limitações ora tratadas o único caminho para evitar que sejam

futuramente declaradas inconstitucionais é retirá-las do código, passando a reputar

obrigatória a participação daquele sobre quem pode recair eventuais ônus da produção da

prova, ao invés de deixar a cargo do arbítrio do magistrado verificar a existência ou não do

caráter contencioso.

Da mesma forma, quanto ao §4º seria admissível – caso o legislador repute indispensável –

limitações parciais à recorribilidade, mas nunca o total cerceamento ao recurso. Tal medida

além de limitar, como dito, o amplo acesso à justiça vai no caminho contrário do escopo do

procedimento ora estudado, que é o de evitar que uma futura demanda seja ajuizada, ou

que demandas temerárias sejam ajuizadas sem elementos robustos, o que só irá abarrotar

ainda mais as prateleiras dos cartórios judiciais.

Por fim, é importante ter em mente que não é a vedação do recurso ou do contraditório

nessa esfera que irá tornar mais célere a prestação jurisdicional, uma vez que eventuais

questionamentos reprimidos irão refletir em uma futura demanda judicial ainda mais

conturbada, na qual todos esses pontos – que caso resolvidos poderiam, inclusive, evitar o

seu ajuizamento – serão levantados.

5. Conclusão

À guisa de conclusão, é de se notar que o procedimento, na forma que lhe foi atribuída

pelo projeto, põe fim a algumas discussões que somente se prestavam a tumultuar a

prestação jurisdicional. Além disso, adota a premissa da existência do direito autônomo à

prova, o que a nosso ver parece acertado.

Importante destacar que o próprio projeto passou a prever hipóteses em que o

procedimento será meio de alcançar vias mais céleres da prestação jurisdicional, como se

pode vislumbrar na previsão do art. 715, §2º do projeto que admite como prova

30 OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Duplo grau de jurisdição: princípio constitucional? Revista de Processo,

São Paulo; Vol. 162, Ago. 2008. p. 378.

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documental, para instruir a Ação Monitória, a prova oral colhida em procedimento de

produção antecipada de prova.

Ademais, a unificação das diversas “vias” de produção antecipada de prova seguiu a linha

adotada pelo projeto ao buscar a simplificação do procedimento. Contudo, agiu mal ao

prever hipóteses de limitação do contraditório e da ampla defesa, o que não se prestará a

garantir uma tutela mais célere, consistindo tão somente uma limitação inconstitucional

que deve ser extirpada do projeto.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O JUSTO PROCESSO ARBITRAL E O DEVER DE REVELAÇÃO

(DISCLOSURE) DOS PERITOS

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro

Professor Titular de Teoria Geral do Processo da Faculdade

de Direito da UERJ. Procurador de Justiça do Estado do Rio

de Janeiro aposentado. Advogado.

Leonardo Faria Schenk

Professor Doutor de Direito Processual Civil do Centro

Universitário La Salle do Rio de Janeiro

(UNILASALLE/RJ). Advogado.

RESUMO: O presente estudo examina e conclui, à luz princípios fundamentais do

processo justo, pela necessária aplicação do dever de revelação (disclosure) aos peritos

nomeados no curso da arbitragem, ainda que não exista regra legal ou convencional

expressa, bem como pelo direito de recusa das partes sempre que exista dúvida razoável e

justificada quanto à independência e imparcialidade do expert, sob pena de se

comprometer as conclusões da prova pericial e a própria sentença arbitral que dela venha a

retirar fundamento.

PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Processo justo. Princípios. Dever de revelação

(disclosure). Peritos.

ABSTRACT: This article examines and concludes, in light of the fundamental principles

of fair trial, that it is necessary to apply the duty of disclosure on the experts appointed

during the course of arbitration proceedings, even if there is no express legal or contractual

rule on this matter, and of the right of the parties to challenge the independence and

impartiality of experts, any time there is reasonable doubt in this respect, under pain of

undermining the conclusions of the experts and the arbitral award itself, which relies on

expert findings.

KEYWORDS: Arbitration. Fair trial. Principles. Duty of disclosure. Experts.

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Parte 1. Princípios fundamentais do processo que regem a arbitragem

O primeiro de todos os princípios que regem a arbitragem é o princípio da

confiança. A opção pela arbitragem em detrimento da justiça estatal, estabelecida de forma

cogente, decorre necessariamente da confiança que as partes têm nos árbitros, nos seus

auxiliares e na própria justiça arbitral, por elas mesmas escolhida e constituída.

A confiança é de tal ordem na arbitragem que as partes renunciam a uma série de

oportunidades que a justiça comum lhes concede, a exemplo dos recursos diversos e das

ações próprias para desconstituir a coisa julgada, estas com um grande elenco de

fundamentos, para sujeitarem-se, em regra, a uma única decisão sem a possibilidade de

apelo.

Por essa razão, a confiança deve existir não apenas no momento da instituição da

arbitragem e na escolha dos árbitros, mas necessariamente deve ser alimentada pelo

tribunal arbitral durante todo o procedimento, seja pela realização das chamadas pre-

hearing conferences, seja pela busca de alternativas instrutórias que se aproximem, o mais

possível, das expectativas das partes, instaurando desse modo uma atmosfera cooperativa

para que a arbitragem se desenvolva num clima de absoluta confiança na justiça do meio e,

consequentemente, do seu resultado.1

A adesão à convenção de arbitragem implica em compromisso pelas partes de

respeito a esse princípio, não apenas no momento da constituição do Tribunal Arbitral, mas

durante todo o desenrolar do seu procedimento.

Como corolário do princípio da confiança há outros igualmente importantes no

campo arbitral, como é o caso da consensualidade e, também, da plena autonomia da

vontade das partes. Não à toa que podem as partes escolher o tribunal arbitral de sua

preferência, estabelecer a lei material que será aplicável ao caso, convencionar sobre as

regras do procedimento e sobre o idioma a ser usado, indicar o local de realização da

arbitragem, escolher os árbitros e, até mesmo, autorizar o julgamento por equidade.

Na lição de Francesco Luiso, a consensualidade, mesmo das normas processuais,

constitui o princípio básico da arbitragem, devendo prevalecer durante todo o curso do

1 Tobias Zuberbühler et alii. IBA Rules of Evidence - Commentary on the IBA Rules on the taking of evidence

in International Arbitration. Zurich: Ed. Schulthess, 2012. p.14.

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procedimento arbitral e não apenas em um ato antecedente ao início do processo.2

A escolha pela solução arbitral é fruto da livre manifestação de vontade das partes

e essa liberdade também rege todo o processo arbitral. Como decorrência do princípio da

autonomia da vontade ou do dispositivo, as partes livremente adotam um determinado

procedimento ou aderem ao procedimento de uma determinada instituição arbitral e, nos

vazios dessas regras, elas devem, sempre de comum acordo, continuar senhoras do

processo arbitral, adotando todas as providências que contribuam para a confiança no

julgamento final.3

Tais premissas indicam a necessidade e a importância, em especial na arbitragem,

do princípio da boa-fé.4

Não é ocioso recordar que a boa-fé é um princípio geral de direito, aplicável a

todas as relações jurídicas5. Há quem a associe à própria dignidade humana

6, sendo

relevante a sua importância, ao lado da segurança jurídica, como fiadora do princípio da

confiança legítima7. A doutrina atualmente divide a boa-fé em subjetiva e objetiva. A

primeira é uma “qualidade reportada ao sujeito”8; é a crença do sujeito de que seu

comportamento está em conformidade com o direito e que de nenhum modo ofende aos

direitos de outrem9. Jäggi, citado por Menezes Cordeiro, a define como a “não-consciência

do injusto, apesar de uma falha no direito”10

.

2 Francesco P. Luiso. Diritto Processuale Civile. La resoluzione non giurisdizionale delle controversie. v. V.

6ª ed. Milano: Giuffrè, 2011, p. 164. 3 Discorrendo sobre a arbitragem na Espanha, após as reformas de 2003 e 2011, Enrique César Pérez-Luño

Robledo leciona: "La voluntad de las partes es el principio que inspira todo el procedimiento arbitral. No sólo

como elemento originador del arbitraje, sino que hace prevalecer la autonomía de la voluntad de las partes

incidiendo en cuestiones como: el procedimiento para la designación o recusación de los árbitros, las reglas

de procedimiento que rigen su actuación (...), en general la autonomia de la voluntad de las partes preside

cualquier cuestión procedimental, el limite lo imponen los principios de igualdad, audiencia y contradicción."

Enrique César Pérez-Luño Robledo. La reforma del arbitraje de 2011 - Presupuestos, antecedentes y

alcance. Valencia: Ed. Tirant lo Blanch, 2013. p. 49 4 Sobre as dificuldades para a conceituação da boa-fé processual, cf., por todos: Joan Picó i Junoy. El

principio de la buena fe procesal. Barcelona: Bosch Editor, 2003. p. 66-72. 5 António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Da boa fé no Direito Civil. 3ª reimpressão. Coimbra: Ed.

Almedina, 2007. p. 371 e ss.; e Antônio Junqueira de Azevedo. Responsabilidade Pré-Contratual no Código

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Janeiro: Ed. Renovar, 1998. p. 282. 7 Sylvia Calmes. Du príncipe de protection de la confiance legitime en droits allemand, communautaire et

français. Paris: Ed. Dalloz, 2001. p. 231 e ss. 8 Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 407. 9 Eduardo Ribeiro de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. v II. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008. p.

251-252. 10 Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 411.

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Entretanto, não é a esse aspecto a que se refere a doutrina quando exalta o

princípio jurídico da boa-fé, mas ao da chamada boa-fé objetiva em que, evitando o risco

do subjetivismo e a impenetrabilidade da consciência humana, a sua aferição decorre do

exame da observância das regras de conduta que são normalmente esperadas dos sujeitos

de determinada relação jurídica.

Eduardo Ribeiro de Oliveira leciona11

:

Trata-se, aqui, de algo externo ao agente. Não se leva em conta o que é

percebido e apreendido por sua mente, mas se consideram determinados

parâmetros ligados à convivência social. Vincula-se ao dever de lealdade

que se pode razoavelmente esperar de quem participa do comércio jurídico.

Diz com um comportamento informado por padrões de correção, de

probidade, tendo em vista o que, em dado momento histórico, seja reputado

eticamente recomendável.

A origem dessa noção, consagrada no art. 113 do Código Civil de 2002, é o § 242

do Código Civil alemão, segundo o qual “o devedor é obrigado a cumprir a prestação com

observância da boa fé, tomando em consideração os usos do tráfego jurídico”12

.

É hoje indiscutível a extensão desses conceitos ao direito processual civil.

Conforme lição de Luigi Paolo Comoglio, está inteiramente superada a perspectiva

processual da primeira metade do século XX, simbolizada na expressão de James

Goldschmidt de que no Processo, como na Guerra e na Política, a Moral não entra13

. A

constitucionalização do direito processual, o seu enraizamento na teoria dos direitos

fundamentais, a emergência da noção de processo justo, caracterizado pelo primado das

garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, como exigências do

respeito à pessoa e aos seus direitos essenciais14

, exaltam a obrigatoriedade do respeito ao

princípio da boa-fé.15

11 Eduardo Ribeiro de Oliveira. Obra citada, p. 252. 12 Cf.: § 242. "Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit

Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern”.

Menezes Cordeiro ensina que, se “as regras de conduta foram cumpridas: há boa fé; não o foram, surge a má

fé". Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 524. 13 James Goldschmidt, Der Prozess als Rechtslage, Berlin: Ed. Julius Springer, 1925, p. 292. 14 Luigi Paolo Comoglio. Etica e tecnica del giusto processo. Torino: Ed. G. Giappichelli, 2004. p. 3-8.

A partir desse quadro, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro desenvolve a noção de solidariedade entre as partes.

Cf.: Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. A ética e os personagens do processo. Revista Forense, Rio de Janeiro, separata, v. 358. p. 347-353. 15 Joan Picó i Junoy, na Espanha, aponta o surgimento do princípio da boa-fé na Alemanha, a partir da

exegese do § 138 da ZPO, citando a lição de Lent, que a ele se referiu como um dos princípios “cardinais de

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É evidente que na arbitragem esse princípio tem uma importância abissal,

especialmente na instrução probatória, como, aliás, destaca o parágrafo 3° do preâmbulo

das Regras sobre Prova da International Bar Association, segundo o qual “the taking of

evidence shall be conducted on the principles that each Party shall act in good faith”.16

E

na medida em que a opção pela consensualidade deve ter, necessariamente, como

contrapartida indispensável um comportamento ético, leal e solidário entre as partes,

nenhuma delas poderá valer-se de um artifício formal para colocar-se em situação de

vantagem ou mesmo de simples preponderância em relação à outra.

Da boa-fé e da confiança legítima dela resultante decorre, para alguns, a proibição

de comportamentos contraditórios pelas partes (nemo potest venire contra factum

proprium). De acordo com Enrique Vallines Garcia, sua configuração exigiria uma

conduta de um sujeito e a sua intrínseca incompatibilidade com o posterior exercício de um

poder processual17

.

Ora, numa relação jurídica dinâmica, como é o processo judicial ou arbitral, não é

razoável admitir que seja previsível que, ao praticar de boa-fé um ato do processo que o

tribunal determinou que fosse concorrentemente praticado pelo seu adversário, uma das

partes tenha de antemão renunciado ao direito de impugnar o ato praticado pela outra, cujo

conteúdo de antemão ignora, com evidente má-fé. Cada uma das partes na relação

processual ou arbitral e os próprios julgadores têm o direito de exigir que ambas as partes

se comportem com probidade e boa-fé, o que torna imperiosa a possibilidade de que a parte

prejudicada impugne as condutas maliciosas da parte adversa e a necessidade de que o

tribunal coíba com energia essas condutas.

O critério cardeal para a proibição do venire contra factum proprium está,

portanto, na imputação ao sujeito de conduta contraditória em relação ao que expressa e

conscientemente tenha anteriormente afirmado.18

Por outro lado, a aplicação do venire exige a prática de um comportamento

anterior gerador da expectativa legítima do adversário de que o comportamento posterior

não ocorrerá, gerando no adversário o direito de pautar a sua conduta em função da

referida expectativa, de modo que a prática do comportamento posterior imprevisto

todo sistema processual”. Joan Picó I Junoy. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: Ed. J.M.Bosch,

2003, p. 51. 16 Tobias Zuberbühler et alii. Obra citada, p. 1-6. 17 Enrique Vallines García. La preclusión en el proceso civil. Madrid: Thomson Civitas, 2004. p. 249. 18 Menezes Cordeiro. Obra citada, p.756.

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provoque uma iniquidade não remediável.19

Outro princípio fundamental da arbitragem, implicitamente exigido pelo art. 21, §

2°, da Lei de Arbitragem brasileira, ao se referir aos seus componentes (contraditório,

igualdade e imparcialidade), é o princípio do devido processo legal.20

Também o contraditório, com as suas diversas manifestações – a audiência

bilateral, a igualdade das partes e a paridade de tratamento, a imparcialidade dos árbitros,

seu dever de fundamentação e livre convencimento – são pedras de toque do procedimento

arbitral, universalmente reconhecidos.

Mais do que isto, essas manifestações assumem um destaque e uma sensibilidade

muito mais intensos do que no procedimento judicial comum, na medida em que, em regra,

são sustentáculos da confiança na qualidade e aceitabilidade da decisão final, que deve ser

o resultado de um rito que reduza ao máximo as possibilidades de erro, não só porque

livremente adotado e conduzido pelas partes, mas também porque o seu respeito é que

justificará o caráter irrecorrível da decisão final, restando aos envolvidos, tão somente, o

difícil e penoso caminho da ação anulatória, já com o fato consumado. Por isso, devem ser

asseguradas pelo tribunal arbitral em todas as fases do procedimento e observados em

todas as suas decisões.21

Como ensina Sergio La China, as nulidades em que é possível incorrer a

arbitragem por violação da garantia do contraditório não são predeterminadas e taxativas,

mas podem ocorrer em hipóteses várias, que normalmente se exteriorizam no desequilíbrio

entre as prerrogativas das partes e no desrespeito à paridade de armas, que está nas

entranhas do processo arbitral.22

19 Menezes Cordeiro. Obra citada. p.758. 20 Pedro Batista Martins leciona que, “em hipótese alguma poderá ser violado o devido processo legal. Tanto

o processual quanto o substantivo. É um bem jurídico de titularidade de toda e qualquer pessoa. É uma garantia de direito natural." Pedro A. Batista Martins. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de

Janeiro: Ed. Forense, 2008. p. 236 21 Cf.: o art. 17 das Regras de Arbitragem da UNCITRAL e o art. 22.4 do Regulamento de Arbitragem da

Câmara de Comércio Internacional – CCI. 22 Sergio La China. Le nullità nel procedimento arbitrale. In Rivista di Diritto Processuale. Padova:

CEDAM, 1986. p. 313-314.

A respeito da aplicação da Lei de Arbitragem espanhola, Lorca Navarrete afirma: "El irreductible núcleo

procesal con el que opera la Ley de Arbitraje es absolutamente esencial e imperativo por lo que no es posible

derogarlo. En la Ley de Arbitraje poseen ese carácter los principios esenciales de audiencia, contradicción e

igualdad entre las partes a los que, en todo caso, han de justarse las actuaciones arbitrales (art. 24 LA) ya que,

según el artículo 24.1 LA, “deberá tratarse a las partes con igualdad y darse a cada una de ellas suficiente oportunidad de hacer valer sus derechos”. El carácter esencial de tales principios justifica la posibilidad de

pedir la anulación del laudo arbitral pronunciado infringiéndolos". Antonio Maria Lorca Navarrete. La

anulacion del laudo arbitral. San Sebastian: Ed. Instituto Vasco de Derecho Procesal, 2008. p. 40.

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O contraditório, como princípio de observância obrigatória na arbitragem, além de

incluir necessariamente a audiência bilateral, estratifica-se na ideia de direito de influência,

ou seja, de que nenhuma decisão seja adotada pelos julgadores sem que tenha sido

assegurada a ambas partes a mais ampla possibilidade de influir eficazmente no seu

conteúdo.23

É a garantia dessa participação que confere legitimidade democrática ao poder

que a lei confere aos juízes e que as partes conferem aos árbitros e que justifica o respeito

que os litigantes devem prestar às suas decisões.

Não é despiciendo recordar que, além da sua expressa previsão na atual Lei de

Arbitragem (art. 21, §2°), o contraditório constitui cláusula pétrea no rol dos direitos

humanos fundamentais (Constituição, art. 5°, LV) e se manifesta e concretiza no direito de

apresentar alegações, propor e produzir provas, participar da produção das provas

requeridas pelo adversário ou determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as

providências que possam ter utilidade na defesa dos seus interesses, de acordo com as

circunstâncias da causa e as imposições do direito material.24

A busca da verdade, como meio de acesso ao direito, porque dos fatos é que se

originam os direitos, passa a integrar o próprio direito de defesa, um dos componentes do

contraditório, o direito de defender-se provando,25

como resultado da necessidade de se

garantir às partes a adequada participação no processo, sendo o seu objetivo, não a defesa

em sentido negativo, mas a efetiva influência na decisão (Einwirkungsmöglichkeit).26

Outra projeção do princípio do contraditório é a garantia denominada de

igualdade concreta, que nada mais é do que a aplicação ao processo judicial e também ao

arbitral do direito fundamental à igualdade, inscrito no caput do artigo 5° da nossa Carta

Magna. As partes devem ser tratadas com igualdade, de tal modo que desfrutem

concretamente das mesmas oportunidades de sucesso final, em face das circunstâncias da

23 Sobre o tema, cf.: Leonardo Greco. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In: Revista

Jurídica, ano 51, mar. 2003, n. 305, São Paulo: Ed. Notadez. p. 61-99; Leonardo Greco. O princípio do

contraditório. In: Revista Dialética de Direito Processual, n. 24, mar. 2005, São Paulo: Ed. Dialética, p. 71-

79. 24 Leonardo Greco. Garantias Fundamentais do Processo... p. 61-99. 25 Leonardo Greco. A prova no Processo Civil: do Código de 1973 até o novo Código Civil. In: Revista

Forense, v. 374, 2004, Rio de Janeiro: Ed. Forense, p.183-199. 26 Nicolò Trocker. Processo Civile e Costituzione. Milano: Ed. Giuffrè, 1974. p. 370. No mesmo sentido:

Luiz Guilherme Marinoni. Novas linhas do processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993.

p.167.

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causa.27

O contraditório do nosso tempo nada mais é do que a projeção no processo, seja

ele judicial ou arbitral, do primado da dignidade humana, que exige que o poder de influir

nas decisões seja assegurado de fato, na prática, em concreto, e não apenas formalmente, a

todos os interessados.28

Esse poder se projeta na instrução probatória,29

assegurando aos interessados a

participação direta e pessoal, por seus assistentes ou por quaisquer outras pessoas de sua

confiança, nos atos e diligências que se destinam a esclarecer a verdade, para que a

colheita de provas seja a mais proveitosa possível e, assim, possa fornecer ao julgador os

elementos de convicção mais propícios a possibilitar um julgamento justo.

Em suma, para que se alcance um justo processo arbitral, nem o juiz, nem o

árbitro, nem o perito designado pelo juiz ou pelos árbitros, valendo-se de argumentos

formalistas, nem as partes, uma em relação à outra, podem restringir o alcance desses

princípios, em especial do direito de participação e influência, sob pena de nulidade das

decisões.

Parte 2. A aplicação do dever de revelação (disclosure) aos peritos nomeados no curso

da arbitragem

No artigo 13 da lei 9.307/1996, o legislador estabeleceu que o árbitro deve ser

pessoa capaz e "que tenha a plena confiança das partes". Normalmente os árbitros são

escolhidos de comum acordo pelas partes. Em regra, cada parte indica um árbitro e, em

seguida, os indicados escolhem o terceiro árbitro, considerado, por alguns doutrinadores de

peso, como árbitro neutro.

Justamente pela circunstância de que o princípio da confiança é regente do

procedimento arbitral foi que o legislador brasileiro, assim como a generalidade das

legislações e regras de instituições ou de órgãos especializados em arbitragens, exige do

árbitro o dever "de revelar antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida

justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (Lei 9.307/1996, artigo 14, § 1°).

Aqui, diferentemente da justiça comum, a essência da arbitragem exige que não

27 Carmine Punzi leciona que a regra da paridade de armas se considera violada, de acordo com a

jurisprudência da Corte de Cassação italiana, “quando le parti non hanno potuto esercitare su un piano di

uguaglianza le facoltà processuali concesse dagli arbitri”. Carmine Punzi. Disegno sistematico

dell’arbitrato. v. II, 2ª ed. Padova: CEDAM, 2012, p. 560. 28 Cf.: Leonardo Greco. O princípio do contraditório... p. 71-79. 29 Sobre a importância do contraditório na arbitragem, especialmente pela garantia do direito à prova, cf.

Alexandre Freitas Câmara. Arbitragem – Lei n° 9.307/96. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.84-86.

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exista nenhuma, ou melhor, a menor dúvida sobre a independência e a imparcialidade do

árbitro.

Em razão da indispensável confiança, a independência e a imparcialidade do

árbitro devem ser avaliadas objetivamente, não só a partir de fatos concretos, mas também

de aparências, independentemente das suas intenções. Como corretamente leciona Guy

Keutgen, professor da Universidade de Louvain e presidente do Centro Belga de

Arbitragem e Mediação (CEPANI), tratando da matéria no direito belga, em tradução

livre:30

A apreciação objetiva deve ser privilegiada pois somente ela permite

excluir qualquer suspeita ou interrogação concernente ao árbitro e

salvaguardar a necessária confiança que ele deve inspirar nas partes. Isto

leva a rejeitar um árbitro desde que uma circunstância ou um vínculo

determinado seja de natureza a alterar o seu julgamento. Isto corresponde

a dizer, na linha da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos

Humanos, que sublinha “a importância atribuída às aparências e à

sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça”, que a

aparência de independência do árbitro é essencial, independentemente de

suas verdadeiras intenções.

Existem inúmeras regras éticas espalhadas em regulamentos diversos que

enumeram uma série de situações que podem denotar a imparcialidade ou a falta de

independência do árbitro, como, por exemplo, o fato de o árbitro ter tido, ainda que no

passado, qualquer relação comercial com uma das partes ou com empresas integrantes do

grupo e mesmo com pessoas a eles vinculadas, inclusive de natureza pessoal, para

justificar a recusa da indicação desse árbitro.

Assim, por exemplo, a International Bar Association, em 2004, após longos

estudos de comissão de especialistas das mais diversas partes do mundo, editou as suas

Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration, nas quais, seguindo

exemplo de legislações de alguns Estados americanos como a Califórnia e o Texas, dividiu

em três listas (vermelha, laranja e verde) os fatos que devem ser revelados pelos árbitros e

que justificam a sua recusa por qualquer das partes.

30 Guy Keutgen. L’indépendance et l’impartialité de l’arbitre en droit belge. In: Jacques van Compernolle e

Giuseppe Tarzia, L’impartialité du juge et de l’arbitre. Bruxelles: Ed. Bruylant, 2006. p. 282.

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Dessas longas listas, podem ser destacadas duas elucidativas situações, a saber,

também em tradução livre:31

2.3.8 O árbitro tem uma relação familiar íntima com uma das partes ou

com um gerente, diretor ou membro do conselho superior ou com

qualquer outra pessoa que tenha uma posição decisória similar em uma

da partes, em uma de suas afiliadas ou no escritório de advocacia que

representa uma parte.

...

3.4.3 Existe uma íntima amizade pessoal entre o árbitro e um gerente,

diretor ou membro do conselho superior ou qualquer outra pessoa que

tenha uma posição decisória similar em uma das partes, em uma de suas

afiliadas, bem como uma testemunha ou perito, evidenciada pelo fato de

que o árbitro e essa outra pessoa convivem juntos durante tempo

considerável fora das suas atividades profissionais ou das atividades de

associações profissionais ou de organizações sociais.

Com efeito, o princípio da confiança é absolutamente incompatível com a

existência de uma dúvida justificável sobre a independência e imparcialidade do árbitro

que irá julgar a causa. Aqui, diferentemente da justiça comum, apesar de a ela também ser

aplicável, o legislador exige muito mais para a permanência do árbitro.

Seria absolutamente ilógico, a brigar com o bom senso, afirmar que os casos para

a recusa do árbitro seriam somente aqueles enumerados no Código de Processo Civil

(artigos 134 e 135), como impedimentos e motivos de suspeição. Não haveria, nesta

hipótese, qualquer razão para a existência do dever de revelação de fato que possa indicar

dúvida justificada quanto à independência e imparcialidade do árbitro.

A regra, universalmente aceita, é no sentido de que se existe esta dúvida razoável

e que deve ser indicada pelo próprio árbitro, qualquer das partes pode recusá-lo ou não. Do

mesmo modo, caso o árbitro não revele fato que possa ser tido como dúvida razoável ou

justificável sobre a sua independência ou imparcialidade, compete à parte pedir a sua

31 Cf.: IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Disponível em:

www.ibanet.org/Document. Consultado em 20 maio 2013. Ver, ainda: Thomas Clay, L’indépendance et

l’impartialité de l’arbitre et les règles du procès équitable. In: Jacques van Compernolle e Giuseppe Tarzia, L’impartialité du juge et de l’arbitre. Bruxelles: Ed. Bruylant, 2006. p.222-223; Stefan Rützel, Gerhard

Wegen e Stephan Wilske. Commercial dispute resolution in Germany - litigation, arbitration, mediation.

München: Verlag C.H. Beck, 2005. p.123.

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manifestação, para, se for o caso, promover o incidente próprio de suspeição ou de

impedimento.

A preocupação com a confiança levou legislações de países diversos e de

institutos especializados a estabelecer que o árbitro neutro não deve ter a mesma

nacionalidade das partes em disputa. Aqui, tem-se um exemplo eloquente de que no

procedimento arbitral não se pode correr nenhum tipo de risco sobre a existência de um

fato que possa representar uma dúvida razoável sobre a independência e a imparcialidade

do árbitro.

Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, em sua clássica obra sobre a Arbitragem

Comercial Internacional, já apontavam diversas legislações e regulamentos arbitrais que,

uniformemente tratando do tema, estabelecem que os árbitros podem ser recusados se

existem circunstâncias que originam uma dúvida justificável sobre a sua imparcialidade.32

Por outro lado, a escolha dos árbitros deve preservar a paridade de armas. Assim,

se as partes porventura tiverem concordado que essa escolha recaia sobre árbitro indicado

por apenas uma das partes, tal decisão não escapará da censura judicial, porque violaria o

princípio da igualdade que uma das partes desfrutasse de uma posição de preponderância

em relação à outra33

.

Ressalte-se que também a conduta do árbitro no curso da arbitragem pode

comprometer a sua imparcialidade. Assim, a justiça inglesa removeu árbitro que acusou

uma das partes de conduta deliberadamente procrastinatória, não deu ouvidos às suas

alegações e insistiu em agendar a audiência para data em que as partes não estavam em

condições de defender-se adequadamente, porque a finalidade da arbitragem, de acordo

com o artigo 1(a) da Lei de Arbitragem do Reino Unido, é obter uma resolução justa da

32 Cf.: Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio. Direito Internacional Privado (Parte Especial) – Arbitragem Comercial Internacional. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, que reproduz o Código Judicial da Bélgica, art.

1690 (p. 665); o Código de Processo Civil Alemão, art. 1036 (p. 646); o Código de Arbitragem Comercial do

Canadá, art. 12 (p. 699); a Lei de Arbitragem de Israel, art. 11 (p. 746); o Código de Processo Civil dos

Países Baixos, art. 1.033 (p. 765); a Lei de Arbitragem do Reino Unido, seção 24.1 (p. 803); a Lei Modelo da

UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law) sobre Arbitragem Comercial

Internacional, art. 12 (p. 868); o Regulamento de Arbitragem da Corte de Arbitragem da Câmara de

Comércio Internacional (CCI), arts. 7° e 11 (p. 941 e 943); as Regras de Arbitragem da World Intellectual

Property Organization (WIPO), art. 24 (p. 964); as Regras de Arbitragem Internacional da American

Arbitration Association, arts. 7° e 8° (p. 995 e 996); as Regras de Arbitragem da London Court of

International Arbitration, art. 10.3 (p. 983); as Regras de Processo da Inter-American Commercial Arbitration

Commission (IACAC), art. 6° (p. 1007); e o Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), art. 6.1 (p. 1044). 33 V. Stefan Rützel. Gerhard Wegen e Stephan Wilske, Commercial dispute resolution in Germany -

litigation, arbitration, mediation. München: Verlag C.H. Beck, 2005. p. 119.

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controvérsia por um tribunal imparcial. Não é necessária a prova da parcialidade. Basta a

dúvida ou o perigo concreto de que a conduta dos árbitros tenha tratado uma das partes de

modo menos favorável do que a outra.34

Todas as regras e princípios estabelecidos, e expostos na primeira parte deste

estudo, aplicam-se, também, aos peritos indicados pelas partes ou pelos árbitros, pouco

importando a existência ou não de dispositivo legal ou convencional expresso.

Como é notório, o juiz ou o árbitro se valem de um perito para a prova de fatos

relevantes que dependem de conhecimentos altamente especializados de natureza técnica

ou científica, os quais excedem a capacidade cognitiva do juiz. Exercem os peritos uma

função auxiliar da própria atividade judicial.35

Como tem acentuado a Corte de Cassação francesa em diversas arestos, seguindo

a influência da Corte Europeia de Direitos Humanos, a função do perito cada vez mais se

aproxima da função de julgar e, assim, a ele devem ser aplicados os mesmos requisitos de

independência e imparcialidade exigidos do juiz.36

O trabalho do perito e o seu laudo, especialmente naquelas hipóteses em que se

exigem conhecimentos técnicos e científicos que poucos profissionais possuem, como é o

caso de ramos especializados da engenharia, são fundamentais para o desfecho da causa,

até mesmo para determinar a procedência ou improcedência de um pedido, estabelecer ou

não nexo de causalidade ou a fixação de valores vultosos que deverão caber às partes.

Pode-se afirmar que, nestas hipóteses, a elucidação direta do fato probando cabe

ao perito, cabendo ao juiz e ao árbitro aceitá-lo ou designar outro perito para dirimir

eventuais dúvidas, em razão da falta completa de conhecimentos técnicos para formular

conclusão diversa. O julgador não tem conhecimentos técnicos para contrariar a convicção

formada pelo perito. Daí porque a independência e a imparcialidade do perito indicado

pelo juízo ou pelo tribunal arbitral é inafastável e tão importante quanto a do próprio juiz

ou árbitro.

Aliás, sempre ressalvando a autonomia da vontade das partes, os regulamentos

arbitrais, de um modo geral, estabelecem que os peritos estão sujeitos às mesmas regras

34 Karen Tweeddale & Andrew Tweeddale, A practical approach to arbitration law. London: Blackstone

Press Limited, 1999. p. 109-110. 35 Moacyr Amaral Santos. Prova Judiciária no Civel e Comercial. v. V. São Paulo: Ed. Max Limonad, s/d, p. 34. 36 Olivier Leclerc. Le juge et l’expert – contribution à l’étude des rapports entre le droit et la science. Paris:

Ed. LGDJ, 2005. p.265.

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que disciplinam a verificação da independência e da imparcialidade dos árbitros. E nem

poderia ser diferente, porque dispensar o perito da observância dessas regras poria por terra

toda a principiologia da arbitragem, imposta pela necessidade de assegurar em todo o

processo a preservação da confiança das partes.

Por isso, os mesmos fatos que objetivamente comprometem a independência ou a

imparcialidade dos árbitros, afetam a independência ou imparcialidade do perito, devendo

ser por ele revelados e podendo levar à sua recusa por qualquer das partes, tenham ocorrido

anteriormente ao processo arbitral ou no seu curso.

Esses motivos não são apenas os que resultam de vedações expressas da lei

processual civil, que se aplica subsidiariamente e à falta de regras próprias no

compromisso arbitral ou no regulamento da instituição arbitral, mas quaisquer outras

circunstâncias que possam pôr em dúvida a imparcialidade do expert, como as relações

pessoais ou profissionais anteriores mantidas com as partes ou com os seus agentes.

A recusa do tribunal arbitral em reconhecer esse risco, e até mesmo em justificá-

la, constitui flagrante violação do princípio do devido processo legal.

O processualista italiano Sergio La China leciona que o perito (consulente tecnico

d’ufficio), tanto nos processos judiciais quanto nos arbitrais, é um verdadeiro e próprio

istruttore delegato, que, não só fornece, com a sua específica preparação técnica, resposta

aos quesitos que lhe são propostos, mas antes e em grande escala pesquisa e adquire

informações, dados, documentação sobre todos os aspectos da controvérsia, com muito

mais profundidade do que o próprio juiz ou do que os próprios árbitros. Por isso, como

estes, o perito tem a obrigação de abstenção nas situações que poderiam provocar a sua

recusa.37

Nesse sentido, por exemplo, é expresso o Código de Processo Civil alemão, no

§1049(3), ao determinar que o perito designado pelo tribunal arbitral preencha os mesmos

requisitos de imparcialidade e independência exigidos do próprio árbitro, aplicando-se-lhe

as mesmas regras de disclosure e os motivos de recusa do árbitro, inscritos nos §§1036 e

37 Sergio La China. L’arbitrato - il sistema e l’esperienza. 3ª ed. Milano: Giuffrè, 2007. p.179-180.

Quanto ao perito na arbitragem, é sábia a citação que Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto faz à opinião

respeitável de Emmanuel Gaillard, em obra de fôlego sobre a Arbitragem Comercial Internacional: " Like the

arbitrators, the expert must observe the principles of due process and equal treatment of the parties."

Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, Haia, 1999, p. 705, citado por Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto. As provas e a sua produção no procedimento arbitral sob o enfoque da

prática. In: Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto e Karin Hlavnicka Skitnevsky. Arbitragem nacional e

internacional. Rio de Janeiro: Ed. Campus Elsevier, 2012. p.75

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1037(1) e (2).38

Também o Regulamento de Perícias da Câmara de Comércio Internacional, que é

a mais especializada e reputada instituição europeia de arbitragem, com sede em Paris,

submete os peritos aos mesmos deveres de revelação de quaisquer fatos ou vínculos que

possam gerar nas partes a mínima suspeita da sua parcialidade.

Por fim, entre nós, confirmando a tendência, o Regulamento de Arbitragem da

Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB) passou por reforma em 2010 para

explicitar formalmente a regra (item 8.8), antes decorrente da principiologia exposta no

presente estudo, de exigir dos peritos o mesmo rigor na demonstração da sua

independência e imparcialidade que é exigido dos árbitros, não bastando que estejam

afastadas as causas de impedimentos e os motivos de suspeição arrolados no Código de

Processo Civil.39

Conclusão

De tudo o quanto foi exposto, tem-se por aplicável ao expert nomeado no

processo arbitral o dever de revelação (disclosure) imposto aos árbitros, cabendo a todos

eles informar quaisquer circunstâncias que possam pôr em dúvida a sua independência e

imparcialidade, ainda que não exista regra legal ou convencional explícita nesse sentido,

sob pena de se comprometer, de modo irremediável, as conclusões da prova pericial e a

própria sentença arbitral que nela diretamente tenha se fundamentado.

Como decorrência do dever de revelação, as partes e o Tribunal Arbitral poderão

recusar o perito sempre que se confrontarem com fatos que indiquem a existência de

dúvida razoável e justificada quanto à sua independência e imparcialidade, não sendo

necessário, à luz dos princípios fundamentais do processo expostos ao longo do estudo,

38 Código de Processo Civil alemão (ZPO), em tradução livre: § 1049(3): “Ao perito designado pelo tribunal arbitral se aplicam os §§ 1036 e 1037(1) e (2)”. § 1036: “(1) Uma pessoa à qual se propõe a função de árbitro

tem de revelar todas as circunstâncias que possam gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade ou

independência. Um árbitro também é obrigado, desde a sua designação até o final do procedimento arbitral a

revelar tais circunstâncias às partes de forma imediata, se delas não tivera conhecimento anteriormente. (2)

Um árbitro somente pode ser recusado se ocorrem circunstâncias que dão lugar a dúvidas justificadas sobre a

sua imparcialidade ou independência, ou se não cumpre os requisitos exigidos de comum acordo pelas partes.

Uma parte pode recusar um árbitro por ela designado ou em cuja designação interveio somente pelos motivos

dos quais tomou conhecimento depois da designação”. § 1037 “(1) Ressalvado o disposto no item (3) abaixo,

as partes podem acordar um procedimento para a recusa de um árbitro. (2) Se não existe tal acordo, a parte

que quer recusar um árbitro tem de expor por escrito ao tribunal arbitral os motivos da recusa no prazo de

duas semanas depois do conhecimento da composição do tribunal ou de uma das circunstâncias referidas no § 1036(2). Se o árbitro recusado não se demite do cargo ou a outra parte não concorda com a recusa, então o

tribunal arbitral decide sobre a recusa”. 39 Disponível em: www.camarb.com.br. Consultado em: 15 maio 2013.

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que a causa da recusa esteja arrolada nas hipóteses numerus clausus dos artigos 134 e 135

do Código de Processo Civil.

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O SISTEMA DE PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E

SUAS POSSÍVEIS REPERCUSSÕES NO DIÁLOGO DO PODER JUDICIÁRIO

COM OS DEMAIS PODERES.

Pedro Duarte Pinto

Mestrando em Direito Público pela Universidade do Estado

do Rio de Janeiro – UERJ. Bacharel em Direito pela

Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Advogado.

RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o

sistema de precedentes a ser edificado no Novo Código de Processo Civil, utilizando como

parâmetros aqueles construídos pelo texto original do Projeto de Lei do Senado n.

166/2010 e a última versão da Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Paulo

Teixeira. Realizada esta exposição, buscar-se-á indagar sobre os possíveis reflexos que os

novos e reformulados institutos sobre precedentes vão gerar na dinâmica das relações entre

o Poder Judiciário e os demais.

PALAVRAS-CHAVES: Precedentes. Jurisprudência. Novo Código de Processo Civil.

Diálogos Institucionais. Poder Judiciário.

ABSTRACT: The following paper aims to conduct a brief analysis of the precedents

system to be built in the New Code of Civil Procedure, using as parameters those present

in the original text of Senate’s Draft Law no. 166/2010 and in the latest version of the

Chamber of Deputies, of the rapporteur of Rep. Paulo Teixeira. Held that, the article will

seek to inquire about the possible impacts that the new and reworked precedent institutes

will generate over the dynamics of the relationship between the Judiciary Power and the

others.

KEYWORDS: Precedents. Jurisprudence. New Civil Procedure Code. Institutional

Dialogues. Judiciary Power.

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SUMÁRIO: Considerações Iniciais. 1. Precedente, Jurisprudência e o sistema jurídico

brasileiro. 2. Precedentes nos Projetos do Novo Código de Processo Civil. 2.1. As normas

gerais sobre precedentes e jurisprudência no novo Código de Processo Civil. 2.2. Incidente

de resolução de demandas repetitivas. 2.3. Recurso extraordinário e a repercussão geral.

2.4. Julgamento liminar do mérito. 2.5. Tutela de evidência. 2.6. Remessa necessária e a

sua dispensa. 2.7. Dispensa da caução para as execuções provisórias de sentença. 2.8.

Atuação monocrática do relator. 2.9. Amicus curiae. 3. Possíveis Repercussões do Sistema

de Precedentes no Diálogo Institucional. 3.1. Repercussões para com o Poder Legislativo e

Executivo. 3.2. Repercussões na Relação entre o Poder Judiciário e as Agências

Reguladoras. Conclusões. Referências Bibliográficas.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A preocupação com o aumento do número de demandas, com o fornecimento de

maior celeridade nos julgamentos, com a isonomia nas decisões que envolvem a mesma

questão de direito, ou ainda a própria efetividade dos tribunais em fornecer respostas aos

casos concretos são questões constantes no Direito Processual no Brasil.

Durante a evolução do sistema jurídico brasileiro, inúmeros institutos foram

concebidos na ânsia de solucionar tais problemas. Um deles foi a concessão de efeitos

vinculantes, impeditivos e persuasivos a decisões judiciais já tomadas, as quais orientariam

novos processos decisórios. Essa noção advém de uma gradual superação da distinção

entre o common law e o civil law1.

Embora mantenham uma origem comum, os sistemas do common law e do civil

law diferenciaram-se durante o passar dos séculos X, XI e XII.2. Nesse contexto, o civil law

vai surgir da sistematização de costumes e da jurisprudência, com uma matriz muito

assemelhada ao common law. No entanto, é com o advento da modernidade e ascensão do

direito positivo em contraposição com o direito natural que o civil law consolida-se em

uma posição afastada dos precedentes. 1 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral

del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 2 RAATZ, Igor. Considerações históricas sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para

o debate sobre a adoção de precedentes no direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de

2011

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Compreendendo seus problemas e vantagens, entretanto, sistemas originalmente

guiados pelas ideias de common law e civil law estão modificando suas premissas, como

forma de fornecer respostas aos problemas concretos que despontam nessas sociedades.

Nesse diapasão, enquanto no common law passa-se a fazer uso da codificação e de leis

escritas para a regulamentação de diversas áreas do Direito, o civil law adota a referência à

jurisprudência como um elemento normativo3.

Nesse contexto, nos sistemas de origem germânica a aproximação com o common

law foi motivada pelo crescimento da importância do Judiciário como instituição

republicana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, ocasionado pelo movimento

constitucionalista. Ao mesmo tempo, foram desenvolvidas teorias hermenêuticas que

atribuíram uma maior racionalidade às decisões judiciais, tornando-as estáveis e

confiáveis.

No Brasil, a aproximação para com o common law se origina na adoção de um

modelo de controle de constitucionalidade de inspiração americana, a partir da

Constituição de 1891, com um sistema difuso de judicial review4. É, contudo, com o

Código de Processo Civil (CPC) de 1973 e, especialmente, com a Constituição de 1988

que esse processo se acentua. Cria-se o controle de constitucionalidade com decisões

vinculantes a todo o Poder Público e instrumentos como a repercussão geral e os recursos

repetitivos que vinculam os Tribunais inferiores no processo de decisão.

Observa-se, assim, que no sistema brasileiro já não é certo que o civil law é um

direito de lei escrita, geral e abstrata, mas que avança sobre a discussão e uso de

precedentes pelos magistrados. E o sistema de precedentes vinculantes que o novo Código

de Processo Civil pretende edificar encaixa-se exatamente nesse contexto. Propõe, por

logo, um retorno às origens jurisprudenciais do civil law, com a decisão dos tribunais

influenciando a elaboração de normas pelo Legislativo.

3 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. p. 140. 4 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do direito no constitucionalismo

contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 54-55.

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Frente a isso, conclui Michele Taruffo que “a contraposição da lei escrita com o

precedente já não existe e, sobretudo, já não serve para dividir o mundo em dois, as coisas

tornaram-se mais complexas”5.

Seguindo, portanto, a tendência de incorporação de decisões judiciais com força

normativa sobre outras, o sistema jurídico brasileiro passou a gozar das decisões

declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, das súmulas, súmulas

vinculantes, decisões monocráticas em tribunais, repercussão geral, recursos repetitivos,

entre outros. Essas evoluções foram desenvolvidas pelo Código de Processo Civil de 1973,

por leis ordinárias posteriores, ou ainda pela própria Constituição Federal de 1988.

Entretanto, esses institutos mostraram-se ineficientes – ou melhor, incompletos –

para lidar com a complexidade jurisdicional brasileira atual. Há um acúmulo de processos

nos tribunais, muitos dos quais pendem sobre a mesma questão jurídica6, mas que acabam

por receber decisões díspares, infringindo princípios sistêmicos como o da segurança

jurídica e isonomia7.

Surge, nesse quadro, o projeto de um novo Código de Processo Civil com

pretensões de realizar alterações no tratamento de precedentes já existente no Direito

brasileiro. Essas mudanças, todavia, não visam ao rompimento abrupto no sistema já

existente8, mas sim o aproveitamento de institutos vigentes, aperfeiçoando-os quando

5 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral

del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 6 Antônio Pereira Gaio Junior bem assevera que: “É cediço o volume de demandas que transbordam nas

secretarias das numerosas comarcas que compõem a estrutura do Poder Judiciário pátrio. Notadamente, boa

parte de ditas demandas relacionam-se com conflitos que possuem, em seu particular âmago, similitude na

causa de pedir, gerando, inegavelmente, lides envoltas em questões ora denominadas repetitivas”. GAIO

JUNIOR, Antônio Pereira. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo CPC:

Breves Apontamentos. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. pp. 248. No mesmo sentido afirma Ada Pellegrini: “a grande massa de processo que aflige aos tribunais, elevando sobremaneira o

número de demandas e atravancando a administração da justiça, é constituída em grande parte por causa em

que se discutem e se reavivam questões de direito repetitivas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. O tratamento

dos processos repetitivos. In: FARIA, Juliana Cordeiro de; JAYME, Fernando Gonzaga; LAUAR, Maira

Terra (coords.) Processo Civil: novas tendências. Estudos em homenagem ao Prof. Humberto Theodoro

Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. P. 1. 7 A violação a esses princípios possui repercussões sobre a própria estrutura institucional do Estado, veja-se:

“Não há Estado Constitucional e não há mesmo Direito no momento em que casos idênticos recebem

diferentes decisões do Poder Judiciário. Insulta o bom senso que decisões judiciais possam tratar de forma

desigual pessoas que se encontram na mesma situação.” MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.

O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010, p. 17-18. 8 As pretensões do projeto do novo Código de Processo Civil são bem destacadas por Arruda Alvim: “A

filosofia do PLS 166/2010, nas suas linhas mais gerais, é a seguinte: não se pretendeu fazer uma mudança

radical ou brusca, até porque mudanças radicais não se justificam e, se feitas, não geram resultados.

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necessário, bem como criando novos modelos para a resolução dessas demandas repetitivas

ou similares.

Os projetos do novo Código de Processo Civil, dessa forma, demonstram uma

intenção de resguardar a isonomia, a segurança jurídica, a celeridade e a resolução de

demandas de massa como princípios para orientar a prolação de decisões judiciais.

A exposição de motivos do Projeto de Lei do Senado n. 116/2010, resultado da

comissão de juristas convocada para a construção do Novo Código de Processo Civil,

assevera essas finalidades ao relatar que:

“Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo

mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto

de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito,

por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos

considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que

concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder

Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos

poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em

cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos

mortos” (= períodos em que nada acontece no processo). [...]

Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos

diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma

norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em

situações idênticas, tenham de submeter- se a regras de conduta

diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais

diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera

intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na

sociedade. [...]

Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo

ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula

Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de

julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários

repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar

estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que

Procurou-se manter o que seria aproveitável do Código vigente e incorporar novidades tendo em vista uma resposta mais atual aos problemas que afligem os operadores do Direito”. ALVIM, Arruda. Notas sobre o

Projeto de Novo Código de Processo Civil. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 191. jan. 2011. pp.

299-300.

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venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se

estabilize”. 9

No mesmo sentido escreve a exposição de motivos da versão do projeto do novo

CPC da Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Paulo Teixeira, de maio de 2013,

ao afirmar que “afigura-se necessário criar uma disciplina jurídica minuciosa para a

interpretação, aplicação e estabilização dos precedentes judiciais, estabelecendo regras que

auxiliem na identificação, na interpretação e na superação de um precedente.” E continua:

“77ª) fica positivada a orientação para que os Tribunais velem pela uniformização e

estabilidade da jurisprudência, de modo a assegurar o tratamento isonômico para questões

iguais (art. 882, caput, I, II, III, IV)” 10

.

A construção de um sistema mais coerente de precedentes judiciais, assim,

apresenta-se, no plano processual, como uma melhor saída para a garantia da isonomia,

eficiência, legitimidade e segurança jurídica11

. Aliás, como já afirmado, são esses

princípios que se colocam como justificativas para o uso vinculativo de precedentes.

As decisões judiciais devem, assim, ser proferidas observando aquelas emanadas

anteriormente, garantindo uma continuidade e estabilidade para o próprio sistema jurídico.

Ao mesmo tempo, o juiz quando da prolação da decisão, deve fazê-lo com respeito a uma

pretensão de universalidade daquele conteúdo, observando a possibilidade de sua extensão

9 BRASIL. Senado Federal. Exposição de Motivos do PLS 166/2010. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias

Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod _mate=97249>. Acesso em: 08 junho

2013. 10 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 11 Arruda Alvim, no contexto do Novo Código de Processo Civil, assevera que: “Outro ponto importante a

ser frisado é a estrema cautela do Projeto quanto à manutenção da segurança jurídica e da estabilidade da

jurisprudência. Procurou-se, como se verá mais adiante, incentivar a uniformidade da jurisprudência e sua estabilidade e, ao mesmo tempo, conferir maior rendimento (i.e. efetividade) a cada processo,

individualmente considerado”. ALVIM, Arruda. Notas sobre o Projeto de Novo Código de Processo Civil.

In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 191. jan. 2011. pp. 299-300.

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a casos similares. Com isso, respeita-se um ideal de tratamento isonômico a todos aqueles

que se encontrem na mesma situação12

.

Os projetos do novo Código de Processo Civil estão a surgir como resposta a

esses valores. Buscaram estruturar um sistema mais coerente de institutos envolvendo

precedentes, com novas concepções ou ainda com a reformulação de pontos já existentes.

Explora as funções persuasiva, obstativa e vinculante das decisões judiciais e delega a

todos os Tribunais – não apenas à Corte Suprema – o poder de proferir decisões

vinculativas de outras instâncias. É sobre esse novo fenômeno que se dedicaram as breves

linhas desse estudo.

Transpassadas essas questões introdutórias, há de se observar que no Brasil

prospera uma diversidade de textos doutrinários voltados à análise dos nossos precedentes

vinculantes, os quais, no entanto, focam nas decisões de controle de constitucionalidade e

negligenciam os precedentes firmados pelos demais Tribunais Superiores e até pelos

Tribunais estaduais. Com a iminência da aprovação do Novo Código de Processo Civil,

outro problema surge: como lidar com o reforço ao sistema de precedentes dado por esse

Código? Como as novas decisões vinculantes vão interferir nas relações entre o Poder

Judiciário e os demais? É sobre isso que tenta se refletir no presente artigo.

Buscar-se-á, assim, traçar uma análise sobre o sistema de precedentes judiciais

construído pelo projeto do novo CPC, a partir de um comparativo entre a versão original,

contida no Projeto de Lei do Senado n. 166/2010, e o último relatório da Câmara dos

Deputados, de maio de 2013, de relatoria do Deputado Paulo Teixeira, expondo as

diferenças e as tentativas de evolução entre os dois projetos com relação a essa matéria. E,

ao final, recair-se-á sobre o estudo da possibilidade de repercussão e interação com os

poderes Executivo e Legislativo quando da tomada de decisão vinculante por parte do

Judiciário.

12 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do direito no constitucionalismo

contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 69-70.

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1. PRECEDENTE, JURISPRUDÊNCIA E O SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

Antes de se ingressar na análise dos sistemas construídos pelas versões dos projetos

do novo Código de Processo Civil, algumas noções básicas são de necessário tratamento,

haja vista as peculiaridades da cultura jurídica brasileira. Faz-se mister, aqui, traçar breves

linhas sobre o próprio conceito de precedente, sua diferenciação com a noção de

jurisprudência, bem como a enunciação de suas funções.

Há em nossa tradição jurídica, com ressalvas para o ambiente acadêmico, uma

tendência à confusão entre os conceitos de precedente e jurisprudência. Embora

usualmente identificados como sinônimos, algumas distinções qualitativas e quantitativas

devem ser feitas entre eles.

Quantitativamente, o precedente designa uma única decisão proferida em um caso

particular. Refere-se àquela que assumiu o caráter de precedente pela aplicação em casos

posteriores. A jurisprudência, por outro lado, vai remeter a uma pluralidade de decisões

tomadas à luz de diferentes casos concretos, o que dificulta a identificação daquela

relevante ao caso concreto, ou ainda, que permite que existam entendimentos

contraditórios dentro do mesmo conjunto de decisões13

.

Pelo viés qualitativo, por sua vez, o precedente é responsável por fornecer uma

regra “(universalizável, como foi dito) que pode ser aplicada como critério de decisão no

caso sucessivo em função da identificação ou – como acontece em regra – da analogia

entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso”14

. É o juiz do caso posterior o

responsável pela criação do precedente, uma vez que ao apreciar os fatos de seu caso

observará se a ratio decidendi daquele anterior poderá ser aplicada ao sucessivo. Se for,

estará fundado o precedente.

13 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.

2011. pp.142-143. [No mesmo sentido: MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX,

Luiz (Org.). O novo processo civil brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo

Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011. e TARUFFO, Michele. Cinco lecciones

mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41.] 14 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.

2011. pp.142-143.

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A jurisprudência, ao representar um conjunto de decisões distintas e independentes,

é um fenômeno estranho ao common law, visto que o precedente contrário seguinte cancela

o anterior, sendo típico, sim, aos sistemas do civil law. Ela não permite a identificação

daquela decisão que estabelece uma regra universalizável, bem como não pressupõe a

análise dos fatos do caso sucessivo. No mesmo quadro, dificulta a identificação de uma

orientação preponderante, haja vista sua capacidade para comportar inúmeros

posicionamentos, cabendo ao intérprete escolher aquela que entende como dominante e

sustentar sua aplicação.

Ademais, é importante notar que alguns sistemas jurídicos adotam instrumentos de

sistematização da jurisprudência que entende como dominante, a exemplo dos enunciados

sumulares brasileiros e da Corte de Cassação Italiana15

.

Na esteira dessas definições Fredie Didier Jr. arremata definindo o precedente

como “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial deve

servir como diretriz para o julgamento posterior em casos análogos” 16

. Ele representa,

então, uma decisão única tomada em caso anterior e vai servir para fornecer a

interpretação, a forma de aplicação da norma em todos aqueles casos futuros que

possuírem uma identidade fática. Os casos sucessivos apenas se somam para reforçar o

peso do precedente já estabelecido, passando a exigir um maior esforço hermenêutico para

a superação do precedente.

A jurisprudência, por outro lado, designa “um conjunto de decisões, ou melhor: por

um conjunto de subconjuntos ou de grupos de sentenças, cada um dos quais pode incluir

uma elevada quantidade de decisões”17

. Ao mesmo tempo em que pode indicar a reiteração

de um mesmo precedente, pode conter um conjunto de manifestações e interpretações

diferentes. Isso cria, desse modo, uma dificuldade em se identificar qual a regra a ser

aplicada. Aliás, a regra não se extrai da jurisprudência, devendo ao juiz buscar e produzir

uma fundamentação justificando a escolha de uma das aplicações possíveis, na tentativa de

15 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 16

DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos

efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.

17 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.

2011. pp.142-143.

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se alinhar com o entendimento que considera dominante. A jurisprudência possui uma

mera função persuasiva, auxiliando o juiz a reduzir seu encargo hermenêutico. 18

E nesse passo já é possível traçar uma primeira crítica ao sistema de precedentes do

novo Código de Processo Civil. Uma vez que a pretensão deste trabalho é delinear o

sistema de precedentes construído a partir de duas versões dos projetos do novo CPC, é

importante, também, traçar pontos comparativos entre eles, formulando críticas a partir

desse confronto.

A versão apresentada pela Comissão de Juristas, representada pelo PLS n.

166/2010, padece da existência de uma improcedência terminológica quando do uso do

termo “jurisprudência”. Esse primeiro texto do novo Código de Processo Civil emprega em

seus artigos, como também na exposição de motivos ao enunciar seus fundamentos e

finalidades, o termo jurisprudência quando o uso correto seria precedente. Essa crítica é

compartilhada por Haroldo Lourenço que afirma que “tudo no Novo CPC é jurisprudência,

sem distinguir de precedente, jurisprudência dominante, súmula, decisão judicial,

tampouco, sobre as técnicas de superação e confronto dos precedentes, como overruling,

overriding, distinguishing.”19

Esta incorreção, outrossim, parece ter sido corrigida no projeto contido no

Relatório do Dep. Paulo Teixeira de maio/2013, ao trazer o assunto sob tópico denominado

“Precedente Judicial” a partir do Livro I da Parte Especial, inserindo-o no Capítulo XV do

Título I, e a regulamentando a partir do artigo 520, embora persista com o emprego do

verbete jurisprudência em alguns artigos do projeto.

Outro ponto introdutório de necessário destaque é o relativo às funções que podem

ser desempenhadas pelos precedentes. A força das decisões judiciais pode ser

diversificada, o que depende de diferentes vetores, sendo capaz de alcançar não só uma

demanda específica, mas também de a extrapolar. Nesse contexto, os precedentes possuem

18 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal

electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 19 LOURENÇO, Haroldo. Precedente Judicial como Fonte do Direito: algumas considerações sob a ótica do

novo CPC. In: Revista Temas Atuais de Processo Civil, v.01, n. 6, dez. 2011. Disponível em:

<http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/53-v1-n-6-dezembro-de-2011-> . Acesso

em: 03 de junho de 2013.

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essa pretensão erga omnes, buscam repercutir em casos sucessivos, e o fazem de diferentes

formas.

A eficácia do precedente pode ser, em primeiro lugar, vinculante. Típica dos

ordenamentos de common law, remete ao precedente que “tiver eficácia vinculativa em

relação aos julgados que, em situações análogas, lhe forem supervenientes”20

. Possuem,

assim, uma eficácia normativa, pois contêm uma norma para orientar a aplicação nos casos

posteriores. Essa regra de direito, ademais, é denominada pela teoria dos precedentes de

ratio decidendi21

e se opõe à obter dicta22

, que aduz ao universo argumentativo existente

na decisão.

São exemplos de precedentes vinculantes no atual sistema brasileiro as súmulas

vinculantes produzidas pelo Supremo Tribunal Federal segundo o artigo 103-A da

Constituição de 1988; o entendimento consolidado em súmula do tribunal como vinculante

do próprio tribunal; ou ainda as decisões de controle concentrado de constitucionalidade

proferidas pela Corte Suprema.

A segunda modalidade de eficácia é a persuasiva. Predominante, a seu turno, nos

sistemas de civil law, constitui elemento argumentativo para o julgador do caso

subsequente. Serve para convencê-lo de determinada posição jurídica defendida, como

também para diminuir o seu ônus hermenêutico quando da prolação de uma decisão. O

efeito persuasivo é, pois, a eficácia mínima que pode ter um precedente.

20 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos

efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.

21 Pode ser conceituada como: “A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a

decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso

concreto.” (DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito

Processual Civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e

antecipação dos efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.) Ou ainda: “A

ratio decidendi [...] constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)”

(TUCCI, José Rogério Cruz e, Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004. p. 175). 22 Por sua vez pode ser definida como: “argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da

decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro

elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o deslinde da

controvérsia”). Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra de Direito que não compuser a ratio decidendi.” (DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael.

Curso de Direito Processual Civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial,

coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 383.)

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O efeito persuasivo, no entanto, pode ter sua importância reconhecida a nível

legislativo. Além de servir, através de sua repetição, para a formação da jurisprudência

dominante, o atual Código de Processo Civil reconhece ao precedente persuasivo o poder

de possibilitar ao magistrado que julgue liminarmente improcedente as demandas

repetitivas cuja matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido

proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos; ou ainda quando

“admite a interposição de recursos que têm o objetivo uniformizar a jurisprudência com

base em precedentes judiciais, tais como embargos de divergência e o recurso especial

fundado em divergência” 23

.

Fredie Didier Jr. identifica, ainda, uma modalidade derivativa de eficácia, o efeito

impeditivo ou obstativo da revisão das decisões. Visto como desdobramento da eficácia

vinculante, é possível identificar precedentes que têm o poder de obstar a remessa

necessária ou o conhecimento de algum recurso. O autor, nesse quadro, argui que as

prescrições dos artigos 544, §§ 3º e 4º, 557, 475, §3º, e 518, §1º do Código de Processo

Civil, determinam precedentes que, vinculando a atuação do magistrado incumbido da

apreciação, impedem sua discussão recursal24

.

Não obstante essa reconhecida classificação, Michele Taruffo defende que a

distinção absoluta entre os precedentes de eficácia vinculante e persuasiva não mais

existiria. Para o autor, não há mais, e talvez nunca houve, precedentes vinculantes. Os

precedentes ditos vinculantes não passam de escolhas hermenêuticas do juiz aplicador do

Direito. Caso este esteja inclinado para o direcionamento contido na ratio decidendi do

precedente, ele o aplicará, inclusive reduzindo seu ônus argumentativo à mera adequação

ao caso anterior. Por outro lado, caso não, o juiz fará uso de algum dos mecanismos de

superação, ou ainda de qualquer outro critério de decisão25

.

23 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos

efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 390-391.

24 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos

efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 390.

25 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal

electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. E o autor

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Todos os precedentes possuiriam, assim, uma função persuasiva, enquadrando-os

como elementos argumentativos do discurso jurídico racional e cabendo ao juiz do caso,

sempre que decidir por aplicá-lo, vinculando-se a ele, ou não, demonstrar as razões que o

motivaram a tanto26

.

Estabelecidas, desse modo, essas categorias e definições, forma-se um substrato

teórico básico suficiente para que se passe à análise dos sistemas de precedentes propostos

pelos projetos do novo Código de Processo Civil.

2. PRECEDENTES NOS PROJETOS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Ingressando no primeiro dos objetivos específicos desse trabalho, observa-se que

para o cumprimento com os princípios da isonomia27

, segurança jurídica, duração razoável

do processo (leia-se celeridade) e da eficiência dos atos jurisdicionais, que ele mesmo

enuncia como seus fundamentos, o novo Código de Processo Civil vai criar e reavaliar os

institutos processuais que versam sobre a aplicação do precedente judicial. Visando,

assim escreve: “É uma distinção que se alguma vez foi real, já não é mais, já que não existem estes termos.

Primeiro: o juiz americano nunca se considerou verdadeiramente vinculado ao precedente, sempre disseram

que eles utilizavam o precedente por comodidade, quando consideravam que a decisão, a regra de decisão era

a correta. Se não gostavam, não utilizavam o precedente e inventavam outro critério de decisão”. No mesmo

sentido: “De um lado ão é apropriado dizer que o precedente de common law é vinculante, no sentido que

dele derive uma verdadeira e própria obrigação do segundo juiz de se ater ao precedente. [...] os juízes usam

numerosas e sofisticadas técnicas argumentativas, dentre as quais o distinguishing e o overrruling, a fim de

não se considerarem vinculados ao precedente que não pretendem seguir. [...] os juízes americanos aplicam

os precedentes com grande discricionariedade, ou seja – por assim dizer – quando não encontram razões

suficientes para não o fazer”. (TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo,

São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. pp.146-147) 26 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal

electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. O autor

prossegue escrevendo: “Esta forma segue sendo uma maneira para reafirmar o precedente, havendo um peso

de demonstração mais para o juiz, ao decidir seguir o precedente; é um vínculo não absoluto, mas ainda é um

vínculo. Se eu tenho que demonstrar algo, quero dizer que “tenho que fazê-lo”, “que estou obrigado a fazê-

lo”. Então, aqui se pode notar que muitos problemas derivam da dimensão vertical ou horizontal do

precedente.”. 27 Nesse sentido escreve Alfredo Buzaid: “Na verdade, não repugna ao jurista que os tribunais, num louvável

esforço de adaptação, sujeitem a mesma regra a entendimento diverso, desde que se alterem as condições

econômicas, políticas e sociais; mas repugna-lhe que sobre a mesma regra jurídica dêem os tribunais

interpretação diversa e até contraditória, quando as condições em que ela foi editada continuam as mesmas. O dissídio resultante de tal exegese debilita a autoridade do Poder Judiciário, ao mesmo passo que causa

profunda decepção às partes que postulam perante os tribunais” (BUZAID, Alfredo. Uniformização de

Jurisprudência. In: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 34/139, jul. 1985).

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portanto, a “atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a

qualidade da prestação jurisdicional”28

, os projetos do novo Código de Processo Civil vão

produzir um sistema que se encaminha para a indução à uniformidade e estabilidade da

jurisprudência.

Como a pretensão de análise desses sistemas por esse trabalho desenvolve-se por

uma perspectiva comparativa, faz-se necessário, inicialmente, traçar algumas diferenças

entre os projetos.

A localização espacial do tratamento dos precedentes no texto dos códigos, nesse

ponto, é um primeiro aspecto destacável. O projeto original do novo Código de Processo

Civil, o Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 166/2010, em sua primeira redação, trazia o

tratamento da matéria no Livro IV, intitulado de “Dos Processos Nos Tribunais E Dos

Meios De Impugnação Das Decisões Judiciais”, o Capítulo I do Título I voltado às

disposições gerais em torno da regulamentação da à jurisprudência e precedente, o qual se

lê:

“Art. 847. Os tribunais velarão pela uniformização e pela

estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte:

I – sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas

no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes

à súmula da jurisprudência dominante;

II – os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do

órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais

estiverem vinculados, nesta ordem;

III – a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar

as decisões de todos os órgãos a ele vinculados;

IV – a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos

tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais

e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os

princípios da legalidade e da isonomia;

28 BRASIL. Senado Federal. Exposição de Motivos do PLS 166/2010. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias

Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_

cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.

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V – na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do

Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela

oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver

modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da

segurança jurídica.

§ 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a

necessidade de fundamentação adequada e específica,

considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas.

§ 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da

jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se

inclusive a realização de audiências públicas e a participação de

pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a

elucidação da matéria.

Art. 848. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de

casos repetitivos:

I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas;

II – o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.” 29

A versão do projeto manifestada através do Relatório Final do Deputado Paulo

Teixeira de maio de 2013, por sua vez, transferiu a matéria dos precedentes judiciais para o

Livro I da Parte Especial, inserindo-a no Capítulo XV do Título I, e a regulamentado a

partir do artigo 520:

“DO PRECEDENTE JUDICIAL

Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e

mantê-la estável.

Parágrafo único. Na forma e segundo as condições fixadas no

regimento interno, os tribunais devem editar enunciados

correspondentes à súmula da jurisprudência dominante.

Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos

princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração

29 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.

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razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as

disposições seguintes devem ser observadas:

I - os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula

vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência

ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de

recursos extraordinário e especial repetitivos;

II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das súmulas

do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do

Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e dos

tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem;

III – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência

dominante, os juízes e os tribunais seguirão os precedentes:

a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em matéria

constitucional;

b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de

Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;

IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do

Superior Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do

Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os

precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta

ordem;

V – os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça

seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário

ou do órgão especial respectivo, nesta ordem.

§ 1º Na hipótese de alteração da sua jurisprudência dominante,

sumulada ou não, ou de seu precedente, os tribunais podem

modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior,

limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos

prospectivos.

§ 2º A mudança de entendimento sedimentado, que tenha ou não

sido sumulado, observará a necessidade de fundamentação

adequada e específica, considerando os princípios da segurança

jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

§ 3º Nas hipóteses dos incisos II a V do caput deste artigo, a

mudança de entendimento sedimentado poderá realizar-se

incidentalmente, no processo de julgamento de recurso ou de

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causa de competência originária do tribunal, observado, sempre, o

disposto no §1º deste artigo.

§4º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos

fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros

do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.

§ 5º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste

artigo:

I - os fundamentos, ainda que presentes no acórdão, que não

forem imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em

seu dispositivo;

II - os fundamentos, ainda que relevantes e contidos no acórdão,

que não tiverem sido adotados ou referendados pela maioria dos

membros do órgão julgador.

§6º O precedente ou a jurisprudência dotado do efeito previsto

nos incisos do caput deste artigo pode não ser seguido, quando o

órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento,

demonstrando, mediante argumentação racional e justificativa

convincente, tratar-se de caso particularizado por situação fática

distinta ou questão jurídica não examinada, a impor outra solução

jurídica.

§ 7.º Os tribunais deverão dar publicidade aos seus precedentes,

organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os

preferencialmente por meio da rede mundial de computadores.

Art. 522. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de

casos repetitivos:

I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas;

II – o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.” 30

Para além da localização dos artigos que regulam a matéria, é importante observar

que os artigos acima enunciados representam inovação trazida pelos projetos do novo

Código de Processo Civil. Eles constroem, diferente do existente na legislação atual em

30 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.

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que o tratamento sobre precedentes e jurisprudência é realizado através de institutos

específicos, um conjunto de normas gerais acerca da jurisprudência e dos precedentes, as

quais irão se refletir em todos os processos, ao condicionarem a produção de decisões

pelos magistrados. Sua aplicação, pois, posta-se como obrigatória à racionalidade da

decisão proferida, para fins de resguardar a legalidade, segurança jurídica e isonomia

dessas.

2.1. As normas gerais sobre precedentes e jurisprudência no novo Código de Processo

Civil

Os projetos do novo Código de Processo Civil inauguram suas normas gerais sobre

jurisprudência e precedentes enunciando, no artigo 520 da versão da Câmara e no artigo

847 caput e inciso I do PLS 166/10 original, o apreço pela uniformização e estabilidade da

jurisprudência, vistos como princípios orientadores dessa capítulos do CPC, ao mesmo

tempo em que impõem o dever de edição de súmulas para consolidação do precedente.

Vistos como formulações verbais sob estrutura normativa jurídica por parte de um

tribunal, com pretensão universalizável aos casos posteriores, expressando uma

interpretação específica acerca de determinada norma, os enunciados sumulares vão

manter, no novo CPC, a sua importância como sintetizadores do entendimento

predominante em um tribunal sobre determinada matéria. A súmulas, assim, passam a ser

de obrigatória formulação quando presentes os elementos que as aconselharem na forma de

cada regimento interno dos tribunais.

O dever de sua edição por parte dos tribunais consiste, portanto, em um

instrumento de reforço do novo papel que a elas está sendo atribuído. Ressalvados os casos

de súmulas concernentes à admissibilidade recursal, os demais enunciados sumulares são

utilizados na práxis jurídica como elementos meramente argumentativos, persuasivos do

magistrado. Não obstante expressem um entendimento já consolidado, sua utilização se dá

de forma arbitrária, sem a necessária análise dos fatos e casos que motivaram, bem como

sem o devido respeito e enfrentamento a elas quando da não utilização. No novo Código de

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Processo Civil, por outro lado, sua eficácia altera-se, passando a despontar como

vinculante dos demais tribunais, como se tratará a seguir, de modo que a não submissão à

vinculação exigirá esforços argumentativos para superar o entendimento anterior.

Apoiando-se nos princípios da isonomia, legalidade, duração razoável, segurança

jurídica e proteção da confiança, os projetos do novo Código de Processo Civil vão

prescrever um dever de aplicação pelos magistrados no processo de tomada de decisão dos

precedentes do Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores e dos próprios tribunais.

Todos os precedentes, assim, ganham um reforço em sua eficácia vinculativa.

No entanto, enquanto esse dever é enunciado de forma genérica pelo artigo 847,

incisos III e IV do PLS n. 166/2010, a versão de maio de 2013 da Câmara dos Deputados

estabeleceu, nos incisos do artigo 521, uma ordem legal na qual os precedentes devem ser

observados e analisados pelos magistrados, como forma de garantir um alinhamento e, por

logo, a estabilidade da jurisprudência. Essa versão do projeto do novo CPC vem, portanto,

buscar a positivação de uma determinação metodológica de argumentação a ser obedecida

pelo magistrado, sob pena de se considerar sua decisão carente de fundamentação31

.

O projeto de maio de 2013 vem, em primeiro lugar, reconhece como estritamente

vinculantes os efeitos dos enunciados de súmula vinculante, dos acórdãos em incidente de

assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, tal como daqueles em

julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Coloca-os como as primeiras

fontes normativas a serem observadas pelos magistrados quando da prolação de sua

decisão. Ou seja, existindo alguma dessas formas de precedente, sua aplicação será

obrigatória pelo magistrado, independente de sua interpretação da própria norma legal.

31 Cria, assim, uma obrigação de respeito ao método de fundamentação judicial das sentenças que edifica, de

forma que caso o magistrado não venha a aderir aos entendimentos definidos nos precedentes, ou afaste essa

aplicação por meio de uma argumentação racional, haverá a incidência do disposto no artigo 499, §1º, inciso

VI do substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio, que estabelece que se considerará não fundamentada a

decisão judicial que “VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela

parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”

(BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.).

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Em segundo, o projeto estabelece que os enunciados das súmulas do Supremo

Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal de Justiça em matéria

infraconstitucional e dos tribunais aos quais estejam atrelados juízes e desembargadores,

são também de aplicação obrigatória aos casos posteriores. Assim, as súmulas, como dito,

vão ter sua função vinculativa reforçada. Transcendem as preocupações como elementos

meramente persuasivos e passam a gozar de elevada posição hierárquica na escala

argumentativa edificada pelo novo Código de Processo Civil. Sua observância será

obrigatória a todos os magistrados sujeitos à jurisdição do Tribunal que a editou.

Não havendo súmula, os acórdãos e decisões do tribunais também se revestirão da

natureza de precedente, gerando efeitos vinculantes. Nesses termos, os magistrados

inferiores deverão observar, sempre, os acórdãos do plenário do Supremo Tribunal Federal,

em matéria constitucional; da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de

Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional; do plenário ou do órgão especial

respectivo dos Tribunais de Justiça ou dos Tribunais Regional Federal; ou, em matéria de

Direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo do Tribunal de

Justiça.

A última versão de maio de 2013, ainda, busca superar a crítica de que o atual

sistema de precedentes não faria a diferenciação entre a ratio decidendi e a obter dicta de

uma decisão. Estabelece, nesse quadro, que os efeitos vinculantes que se cogitam para as

súmulas e acórdãos somente ocorrem com relação aos fundamentos determinantes

adotados pela maioria dos membros do colegiado, ao passo de que os fundamentos

dissidentes, ainda que relevantes e contidos no acórdão, mas que não tenham sido adotados

ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador; ou que não forem

imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em seu dispositivo, não possuem a

mesma eficácia.

É de se destacar, ainda, que o sistema construído pelos projetos do novo CPC dá

determinada ênfase nos autoprecedentes, que remete aos “precedentes emitidos da mesma

corte que decide o caso sucessivo”32

. Os projetos do novo Código expressaram uma

preocupação com o respeito da corte emissora com seus próprios julgados. Há uma

32 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.

2011. pp.149.

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valorização, assim, da coerência e da isonomia na atuação dos tribunais. Nesse contexto, o

artigo 847 do PLS n. 166/2010 e o artigo 521 do substitutivo de maio do Dep. Paulo

Teixeira prescrevem repetitivamente o dever interno dos tribunais, de seus membros e

órgãos fracionários de aplicação dos precedentes fixados por órgãos superiores, prezando

para que casos iguais venham a ser decididos da mesma forma pelo mesmo tribunal.

O sistema hermenêutico e de aplicação dos precedentes construído pelo projeto de

maio de 2013, outrossim, não se reveste de um caráter rígido e insuperável. Ele preza, ao

contrário, pela racionalidade da decisão proferida, bem como pelo respeito aos princípios

processuais da isonomia, segurança jurídica e duração razoável. E, nesse contexto, traz

previsões sobre a forma de superação dos precedentes já existentes.

A exposição de motivos e o artigo 847, §1º do Projeto de Lei do Senado n.

166/2010, desse modo, estabelecem o maior encargo argumentativo quando da superação

do precedente. Vem a prescrever, assim, que “a mudança de entendimento sedimentado

observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o

imperativo de estabilidade das relações jurídicas”33

.

Essa disposição vem igualmente reproduzida pelo substitutivo da Câmara dos

Deputados de maio de 2013 que, todavia, o complementa com a criação da possibilidade

de, incidentalmente, haver a mudança do entendimento sedimentado no processo de

julgamento de recurso em que o precedente houver sido aplicado, ou em causa de

competência originária do tribunal. O Código define, assim, o poder do Tribunal de alterar

seu próprio entendimento, de superá-lo, desde que o faça de forma fundamentada.

O §6º do artigo 521 dessa versão do projeto traz, ainda, a positivação do

distinguishing (ou distinção) como técnica de confronto do precedente. Visto como o

método “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado

análogo ao paradigma”34

, de forma que, caso conclua pela peculiaridade do caso concreto,

poderá julgá-lo sem vinculação ao precedente. O distinguishing apresenta-se, então, como

a fundamentação racional de que aquele determinado precedente não é aplicável ao caso

33 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 34 TUCCI, José Rogério Cruz e, Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004. p. 174.

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em tela, uma vez que o quadro fático entre eles é diverso. Pressupõe que o magistrado que

não irá aplicar o precedente sustente, racionalmente, o porquê da diferenciação entre casos,

comparando-os e definindo qual a nova interpretação que deve ser fornecida. Caso não o

faça, sua decisão ter-se-á como carente de fundamentação e passível de ser impugnada.

Nos casos de alteração de precedente, os projetos do novo CPC preveem a

possibilidade da modulação de efeitos da decisão que os reverte, com o objetivo de

prestigiar a segurança jurídica. Nesse contexto, o artigo 847, V do PLS n. 166/2010

original e na última versão no §1º do artigo 521, prescrevem o princípio da modulação dos

efeitos da alteração de precedente, com a seguinte redação: “na hipótese de alteração da

jurisprudência dominante do STF e dos Tribunais superiores, ou oriunda de julgamentos de

casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da

segurança jurídica” 35

.

Busca o novo Código de Processo Civil, assim, proteger a uniformidade do

precedente e a segurança jurídica, exigindo uma fundamentação específica e carregada

para a alteração de posicionamento anterior, possibilitando, ainda, que tais argumentos

possam ser dirigidos a uma definição dos efeitos a serem gerados.

Havendo discorrido sobre a sistemática geral dos precedentes no novo Código de

Processo Civil, é importante, também, que se disserte sobre as formas pela qual eles se

manifestam nos novos textos legais. Diversos dos institutos espalhados por todo o Código

podem ser identificados como precedentes, ou fazem uso deles para a obtenção de

determinado efeito, transitando ainda, em alguns momentos, entre a eficácia vinculante e a

persuasiva.

2.2. Incidente de resolução de demandas repetitivas

Transcorrendo-se, inicialmente, sobre os instrumentos que podem ser

caracterizados como precedentes reconhecidos e organizados pelo novo Código de

35 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.

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Processo Civil, tem-se os acórdãos proferidos em incidente de resolução de demandas

repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Falar-se-á do

primeiro.

Observando a necessidade de fornecer uma resposta para as demandas de massa

não somente através dos tribunais superiores, mas também dos locais, o novo CPC criou,

com inspiração na doutrina alemã, o incidente de resolução de demandas repetitivas, um

dos mais comentados institutos do novo Código.

Regulamentado pelo projeto original a partir do artigo 895 e pelo substitutivo do

Dep. Paulo Teixeira do artigo 988 em diante, o incidente poderá ser suscitado perante os

Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais quando houver efetiva ou potencial

repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito

material ou processual.

É legítimo para suscitar o incidente, quando a causa tramite dentro da competência

daquele tribunal: o relator ou o órgão colegiado, de ofício, bem como as partes, o

Ministério Público, a Defensoria Pública, as pessoas jurídicas de direito público e as

associações civis, por petição direcionada ao presidente do tribunal.

Recebido o recurso, em virtude de seu potencial vinculante para todas as demandas

que versem sobre a mesma questão de direito, o relator deverá suspender os processos

pendentes que tramitam no Estado ou na região; ao mesmo tempo em que se suspenderá a

prescrição das pretensões nos casos em que se repete a questão de direito.

O novo Código ressalva a possibilidade das partes de desconstituírem a suspensão

determinada, através de requerimento dirigido ao juízo onde tramita o processo suspenso,

de seus casos em particular desde que sejam capazes de fundamentar racionalmente a

distinção entre o seu e aquele em que foi provocado o incidente. Ou seja, o Código

possibilita que as partes venham a exercer o distinguishing de forma preventiva, não

precisando aguardar o deslinde do incidente para sustentarem as distinções existentes entre

a as teses dos casos apresentados.

A participação no incidente, nesse contexto, é franqueada às partes, ao Ministério

Público, que será intimado caso não tenha sido ele o quem provocou o incidente, e aos

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demais interessados, que se revestirão na figura do amicus curiae, atuando como

mecanismos de controle preventivo na formação de um precedente vinculante.

Quanto à competência para julgar o incidente, o artigo 898 do PLS n.166/2010 em

sua redação original previa que esta seria do plenário do tribunal ou, onde houver, do órgão

especial. Objeto de inúmeras impugnações por juristas36

por tolher a autonomia dos

tribunais em regulamentar a questão por meio de seus regulamentos internos, o artigo 991

do substitutivo da Câmara de maio de 2013 traz diferente determinação, atribuindo a

competência para o órgão ao qual esse regimento determinar.

Feitas essas considerações introdutórias sobre o novo instituto, há de se observar,

agora, como se dá sua eficácia. Junto ao já discorrido efeito suspensivo das demais

demandas que versem sobre a mesma questão de direito, o incidente de resolução de

demandas repetitivas forma precedente vinculante para todos os processos com os quais se

mantenha identidade e que estejam sujeitos à jurisdição do Tribunal prolator. É assim que

prescreve o artigo 995 do substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de 2013: “Art. 995.

Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem sobre

idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”37

.

Essa eficácia vinculante, outrossim, alcança não só os processos em curso ou já

suspensos pela decisão do tribunal, mas também os casos futuros que versem sobre a

questão de direito e que tramitem na competência do tribunal prolator. Ademais, prescreve

o §2º do artigo 995 da versão de maio de 2013 que:

“se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de

serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do

julgamento será comunicado ao órgão ou à agência reguladora

36 A controvérsia é reconhecida pela própria exposição de motivos do substitutivo da Câmara de maio de

2013. Veja-se: “outro ponto importantíssimo diz respeito à competência para o julgamento do incidente. De

um lado, é preciso garantir que essa competência seja determinada pelo regimento interno do Tribunal; de

outro, é preciso indicar que tal competência deve observar a natureza da questão que se busca resolver.”

(BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.) 37 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.

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competente para fiscalização do efetivo cumprimento da decisão

por parte dos entes sujeitos a regulação”38

.

O Código, portanto, alça as agências reguladoras como entes fiscalizadores do

cumprimento de suas decisões em matéria regulatória, vinculando-as nesse dever mesmo

que não tenham feito parte da relação processual. Tal dever possui sérias repercussões na

relação do Judiciário com as agências, como se vislumbrará no tópico apropriado.

Outrossim, o incidente de resolução de demandas repetitivas, não obstante

concebido como instrumento para demandas de massas locais ou regionais, pode ter sua

eficácia estendida a todo o território nacional. Nesses termos, interposto recurso especial

ou recurso extraordinário da decisão do incidente, o efeito suspensivo poderá ser

concedido a todos os processos que tramitem no território nacional e se considera

presumida a repercussão geral, de questão constitucional eventualmente discutida. Julgado

pelo STJ ou STF, a tese jurídica firmada será aplicada a todos os processos que versem

sobre idêntica questão de direito e que tramitem perante os demais tribunais, fornecendo,

com isso, igual tratamento jurídico às questões de massa em idêntico tempo.

Através desse incidente, o novo Código de Processo Civil busca um novo

instrumento para formação de precedentes com força vinculante nos tribunais, desta vez

naqueles de segunda instância, e voltada para as causas de primeiro grau, visando a que as

questões com idêntica matéria de direito possam ser uniformizadas, desafogando o Poder

Judiciário e minimizando o número de julgados divergentes.39

2.3. Recurso extraordinário e a repercussão geral

A produção de outras formas de precedentes vinculantes também é regulada pelo

novo Código de Processo Civil. São eles os já existentes recursos especiais repetitivos e a

repercussão geral no recurso extraordinário. Como instrumentos com uma já definida

38 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 39 Cf. GAIO JUNIOR, Antônio Pereira. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo

CPC: Breves Apontamentos. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011.

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tradição no sistema brasileiro, dispensam maiores introduções como as feitas no tópico

anterior. Dessa forma, focar-se-á nas inovações trazidas pelos projetos do novo CPC.

Criada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentada pela Lei n.

11.418/06, a repercussão geral apresentou-se com “o intuito de ultrapassar os interesses

subjetivos para atribuir um caráter objetivo a uma demanda anteriormente subjetiva”40

.

Buscava-se, assim, impedir que a Corte Suprema tornasse-se uma quarta instância revisora,

permitindo a diminuição de sua carga de trabalho e que focasse em questões de especial

relevância constitucional.

Os projetos do novo código mantiveram as inovações trazidas pela repercussão

geral à admissibilidade de recursos no STF. Nesse sentido, assentou a natureza de

precedente vinculante da decisão que nega a repercussão geral, conforme artigo 950, §4º

do PLS n. 166/10 original e §4º do artigo 1.48 do substitutivo de maio de 2013 da Câmara

dos Deputados, os quais se leem: “§4º Negada a repercussão geral, a decisão valerá para

todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão

da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.”41

Outrossim, sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em

idêntica questão de direito, os recursos extraordinário e especial repetitivos assumem um

potencial de vinculação para as demais demandas com que guardem identidade. Nesse

sentido, os projetos do novo CPC disciplinaram a formação de um precedente vinculante

quando do julgamento desses, regulamentação essa a ser dada na mesma sessão, com a

mesma procedimentalização, ressalvados os regimentos internos. Dessa forma,

determinou-se que:

“Art. 954. Caberá ao presidente do tribunal de origem selecionar

um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais

serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior

Tribunal de Justiça independentemente de juízo de

40 MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil

brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de

Janeiro: Forense, 2011. p. 571. 41 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.

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admissibilidade, ficando suspensos os demais recursos até o

pronunciamento definitivo do tribunal superior

§ 1º Não adotada a providência descrita no caput, o relator, no

tribunal superior, ao identificar que sobre a questão de direito já

existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao

colegiado, poderá determinar a suspensão dos recursos nos quais

a controvérsia esteja estabelecida.

§ 2º Os processos em que se discute idêntica controvérsia de

direito e que estiverem em primeiro grau de jurisdição ficam

suspensos por período não superior a doze meses, salvo decisão

fundamentada do relator.

§ 3º Ficam também suspensos, no tribunal superior e nos de

segundo grau de jurisdição, os recursos que versem sobre idêntica

controvérsia, até a decisão do recurso representativo da

controvérsia.” 42

.

Nos mesmos termos do incidente de resolução de demandas repetitivas,

reconhecido o potencial vinculante da decisão que julga os recursos extraordinários e

especiais repetitivos, haverá a suspensão de todas as causas que versem sobre a mesma

questão de direito. Assim, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça,

independentemente de juízo de admissibilidade, determinará a suspensão do

processamento dos demais recursos até o pronunciamento definitivo do tribunal superior,

sendo resguardado às partes, segundo o substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de

2013, o direito de apresentar “agravo interno dirigido ao órgão colegiado a que estiver

vinculado o relator, na hipótese em que a controvérsia discutida nos autos não seja idêntica

à do recurso paradigma” 43

.

No entanto, para os processos em primeiro grau de jurisdição, a suspensão está

limitada a período não superior a doze meses, salvo decisão fundamentada do relator,

devendo as partes, nos termos do projeto substitutivo da Câmara de maio de 2013, serem

42 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 43 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.

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“intimadas da decisão que, em primeiro grau de jurisdição, suspende o curso do processo,

contra a qual caberá agravo de instrumento, na hipótese em que a controvérsia discutida

nos autos não seja idêntica à do recurso paradigma”44

, ou seja, resguarda-se a possibilidade

das partes demonstrarem preventivamente o distinguishing de seu caso concreto.

Outrossim, os recursos representativos da controvérsia, selecionados pelos

presidentes dos tribunais de origem, serão encaminhados para o Supremo Tribunal Federal

ou ao Superior Tribunal de Justiça, que realizará seu processamento, podendo solicitar

informações àqueles.

Julgado o recurso representativo da controvérsia, a decisão irá vincular os demais

os órgãos colegiados inferiores, que declararão prejudicados os recursos versando sobre a

mesma controvérsia ou serão decididos com a aplicação da tese formada. Desse modo,

com relação aos recursos extraordinários ou especiais repetitivos já apresentados, caso o

acórdão recorrido venha a coincidir com a orientação da instância superior, tais recursos

não terão seguimento.

Entretanto, estabelece-se um dever de análise individual do acórdão recorrido que

divergir da orientação da instância superior no recurso extraordinário ou especial

repetitivo, de forma que caberá ao Tribunal de origem avaliar o seu julgado, podendo

exercer um poder de retratação, ou ainda, manter o entendimento divergente, desde que

argumentando racionalmente pela existência de uma distinção (distinguishing) para com o

julgado vinculante.

3.4. Julgamento liminar do mérito

Discorridos sobre os precedentes que são reconhecidos pelos projetos do novo

Código de Processo Civil, faz-se necessário passar, agora, para a análise dos instrumentos

que privilegiam a força do precedente, atribuindo-os determinados efeitos.

44 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.

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Um desses é a possibilidade de julgamento liminar pela improcedência do mérito

da ação, mesmo antes da citação do Réu, conforme preceitua o artigo 333 da versão da

Câmara de maio de 2013 e o artigo 317 do PLS n. 166/2010 original.

“Art. 333. Independentemente da citação do réu, nas causas que

dispensem a fase instrutória o juiz julgará liminarmente

improcedente o pedido que:

I – contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal ou do

Superior Tribunal de Justiça;

II – contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal

ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos

repetitivos;

III – contrariar entendimento firmado em incidente de resolução

de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – for manifestamente improcedente, desde que a decisão

proferida não contrarie entendimento do Supremo Tribunal

Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, sumulado ou adotado

em julgamento de casos repetitivos;

V – contrariar enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre

direito local.

§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o

pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de

prescrição.

§ 2.º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em

julgado da sentença, nos termos do art. 241.

§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em cinco dias.

§4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do

processo, com a citação do réu para apresentar resposta; se não

houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar

contrarrazões, no prazo de quinze dias.

§ 5º Na aplicação deste artigo, o juiz observará o disposto no art.

521”45

.

45 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

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Este instituto, correspondendo a uma evolução daquele já previsto no artigo 285-A

do atual CPC, remete a uma importante técnica de aceleração dos processos, de aplicação

em demandas massificadas46

. E, nesse sentido, atribui um importante efeito para os

precedentes estabelecidos pelos tribunais nacionais, não só os superiores, ao estabelecer

que a contrariedade a súmula ou acórdão firmado em julgamento de demandas repetitivas

impõe a extinção antecipada do processo.

O novo Código de Processo Civil cria, portanto, a consonância com os precedentes

pátrios como condição de processamento da inicial, permitindo a rejeição liminar desta

quando a tese apresentada os contrarie.

2.5. Tutela de evidência

Outro dispositivo que privilegia a força dos precedentes, bem como representa uma

novidade nos projetos do novo código, é a tutela de evidência.

A antecipação da tutela no novo CPC, nesse contexto, ganha uma nova espécie, a

tutela de evidência. Diferentemente da tutela de urgência, em que é necessária a

demonstração do perigo da demora jurisdicional, naquela os próprios argumentos

levantados pela parte revelam-se de juridicidade ostensiva, justificando a concessão da

antecipação do provimento final.

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 46 Algumas críticas a ele podem ser encontradas na doutrina. Veja-se: “Com efeito, torna-se praticamente

impossível exercer o contraditório e voltar-se contra o entendimento já sedimentado pelo STJ sobre

determinada matéria – ainda que tal entendimento seja, por exemplo, inconstitucional – na medida em que a

parte esbarrará, de pronto, na previsão do art. 285-A do CPC, que também limita, nesse sentido, o próprio

juiz de primeiro grau, já que o dispositivo não pressupõe o entendimento daquele juízo ou do Tribunal local

em que está inserido, mas, sim, o posicionamento do próprio STJ.” (RAATZ, Igor. Considerações históricas

sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para o debate sobre a adoção de precedentes no

direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de 2011). Essa crítica, na verdade, pode ser

aplicada à maioria dos institutos aqui referido, pois, caso mal aplicados pelos julgadores podem levar a

situações de perpetuação indefinida de um entendimento. O novo Código de Processo Civil, nesse contexto, não preza por tais situações, de forma que, desde que com consonância com os princípios fundamentadores

dos precedentes, é facultado às partes e ao magistrado o uso de técnicas de superação do precedente, como o

overruling e o distinguishing.

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628

Dentre as hipóteses que justificam sua concessão47

, aquela prevista nos artigos 285,

IV do PLS 166/2010 original e 306, III da versão da Câmara de maio de 2013 possuem

grande relevância para o presente trabalho. Elas consagram o precedente como elemento

de paradigma que aconselha o deferimento da antecipação da tutela mesmo diante da

inexistência de perigo da demora.

Os precedentes firmados pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Supremo Tribunal

Federal e pelos tribunais locais passam a autorizar, assim, que os magistrados concedam o

bem da vida pleiteado antes do processamento do pleito, já que não há razão de esperá-lo,

pois, como é possível constatar, exceto se o réu demonstrar uma distinção entre o caso

concreto e o precedente, haverá a vinculação de seu resultado.

2.6. Remessa necessária e a sua dispensa

Imperiosa, também, para esse trabalho é a menção da dispensa para a remessa

obrigatória quando a sentença proferida encontrar-se alinhada com os precedentes tido

47 “Art. 306. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo da demora

da prestação da tutela jurisdicional, quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o

manifesto propósito protelatório do réu; II – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente

dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha outra prova capaz de gerar dúvida

razoável; III – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese

firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; IV - se tratar de pedido

reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada

a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa. Parágrafo único. A decisão baseada nos

incisos III e IV deste artigo pode ser proferida liminarmente.” (BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de

Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do

Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In: Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08

junho 2013.) e: “Art. 285. Será dispensada a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil

reparação quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório

do requerido; II – um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que

a solução será definitiva; III – a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo

autor a que o réu não oponha prova inequívoca; ou IV – a matéria for unicamente de direito e houver

jurisprudência firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante. Parágrafo único.

Independerá igualmente de prévia comprovação de risco de dano a ordem liminar, sob cominação de multa

diária, de entrega do objeto custodiado, sempre que o autor fundar seu pedido reipersecutório em prova

documental adequada do depósito legal ou convencional.” (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do

Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho

2013).

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como vinculantes. Os projetos do novo Código de Processo Civil, nesse sentido, previram,

nos artigos 507, §3º da versão da Câmara de maio de 2013 e no artigo 478, §3º do

anteprojeto do Senado, in verbis:

“Art. 507. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não

produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a

sentença: [...]

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a

sentença estiver fundada em:

I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal

de Justiça;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de

demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada

no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em

manifestação, parecer ou súmula administrativa.” 48

“Art. 478. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não

produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a

sentença: [...]

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a

sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do

Supremo Tribunal Federal, em súmula desse Tribunal ou de

tribunal superior competente, bem como em orientação adotada

em recurso representativo da controvérsia ou incidente de

resolução de demandas repetitivas.” 49

48 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 49 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.

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Os precedentes sumulares, acórdãos de recursos extraordinário e especial

repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas passam a ser prestigiados

como balizas à atuação dos órgãos públicos perante os tribunais, evitando que a Fazenda

Pública apenas prolongue as causas manejadas contra si, agilizando o desfecho do processo

e evitando novos julgamentos. O novo CPC, assim, ao limitar o reexame necessário,

demonstra “o papel cada vez mais diferenciado da jurisprudência no sentido de ser um

mecanismo útil à segurança jurídica e efetividade das decisões, prestigiando as decisões

dos tribunais superiores” 50

.

2.7. Dispensa da caução para as execuções provisórias de sentença

A execução de sentença objeto de recurso ao qual não foi concedido efeito

suspensivo, conhecida como execução provisória, depende de caução suficiente e idônea,

arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos para a prática de certos atos,

como por exemplo o levantamento de depósito em dinheiro e a realização de atos que

importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao réu.

Os projetos do novo Código de Processo Civil, entretanto, em seus artigos 535 do

substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de 2013 e o 491, §2º, IV do PLS n. 166/2010

original, estabelecem exceção à regra acima como forma de privilegiar a eficácia dos

precedentes. Prescrevem, pois, que a caução referida será dispensada se “III - a sentença

for proferida com base em súmula vinculante ou estiver em conformidade com julgamento

de casos repetitivos”51

. Ampliando esses casos, a versão de maio de 2013 incluiu, ainda, as

sentenças que estiverem em consonância com as súmulas do Supremo Tribunal Federal ou

do Superior Tribunal de Justiça, não restringindo-as às vinculantes.

50 MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil

brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de

Janeiro: Forense, 2011. p. 571. 51 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

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2.8. Atuação monocrática do relator

Outro instrumento que consolida a importância dada aos precedentes no novo CPC

é a possibilidade de atuação monocrática do relator nos tribunais. Seguindo o que já fazia o

Código de Processo Civil de 1973, os projetos da nova lei instituíram poderes aos relatores

recursais para atuarem ao invés do Colegiado, fornecendo uma maior celeridade nos

julgamentos.

Pelos projetos, a atuação unipessoal do relator ficou restrita a hipóteses objetivas,

as quais remetem aos acórdãos e julgados dos tribunais que se postem como precedentes

dotados de eficácia vinculante. Assim, somente poderá ocorrer a atuação monocrática do

relator quando a decisão se apoiar em súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior

Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; ou em acórdão proferido pelo Supremo Tribunal

Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; ou, ainda,

em entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou, por fim,

em incidente de assunção de competência. Os dois últimos casos, outrossim, não constam

no artigo 853 do PLS n. 166/2010 original, mas foram acrescentados ao artigo 945 do

substitutivo Paulo Teixeira de maio/2013, in verbis:

“Art. 945. Incumbe ao relator:

I – dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à

produção de prova;

II – apreciar o pedido de tutela antecipada nos recursos e nos

processos de competência originária do tribunal;

III – negar seguimento a recurso inadmissível, prejudicado ou que

não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão

recorrida;

IV – negar provimento a recurso que for contrário a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de

Justiça ou do próprio tribunal;

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b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos

repetitivos;

c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas

repetitivas ou de assunção de competência.

V – depois de facultada, quando for o caso, a apresentação de

contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida

for contrária a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de

Justiça ou do próprio tribunal;

b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos

repetitivos;

c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas

repetitivas ou de assunção de competência.

VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade

jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o

tribunal;

VII – determinar a intimação do Ministério Público, quando for o

caso;

VIII – exercer outras atribuições estabelecidas no regimento

interno do tribunal.” 52

Esse instituto, embora não imune a críticas53

, cumpre importante papel na redução

da espera pelo julgamento final da demanda, assim como alivia as pautas dos órgãos dos

52 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de

Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:

Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 53 Algumas críticas a ele podem ser encontradas na doutrina. Veja-se: “Por sinal, caminha na mesma linha a

previsão do artigo 888, IV e V, do Projeto do Novo Código de Processo Civil, que autoria o julgamento

monocrático sempre que o recurso ou a decisão recorrida, conforme for caso de provimento ou

desprovimento, contrariarem (a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do

próprio tribunal, (b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça

em julgamento de casos repetitivos (c) ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. A escolha empregada pelo Projeto do novo Código, no sentido de

modificar os requisitos para o julgamento monocrático pelo relator não é sem propósito. Na verdade,

caminha na direção de uma centralização da produção jurídica nos Tribunais Superiores, tendência do

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tribunais, permitindo que se aplique a regra jurídica concebida através dos seus

precedentes vistos como dotados de certa eficácia vinculante.

2.9. Amicus curiae

Uma última figura relacionada ao precedente no novo Código de Processo Civil é o

amicus curiae.

Criado pelo novo CPC, embora já admitida pela jurisprudência do STF como

terceiro interessado em demandas de controle de constitucionalidade, essa forma de

intervenção processual passa a ser regulamentada pela nova legislação processual e adquire

primordial importância para a matéria dos precedentes.

Conforme prescreve o artigo 847, §2º do anteprojeto apresentado ao Senado, bem como

previsto para o processamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos e do

incidente de resolução de demandas repetitivas por ambos os projetos aqui estudados, é

facultada a participação do amicus curiae nos recursos representativos da controvérsia,

ou ainda no processo de revisão de entendimento já firmado. Veja-se:

Artigo 847. [...] § 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência

em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas

e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação

da matéria54

.

Essa inclusão do amicus curiae como legitimado para atuação nesses processos,

além de servir como instrumento capaz de fornecer ao magistrado melhores condições e

informações para a decisão do caso concreto, constrói um certo respeito ao princípio do

contraditório quando da construção da norma jurídica geral do precedente. Ele faculta uma

sistema recursal brasileiro. Em suma, a ideia de superação dos precedentes chamados obrigatórios, na forma

como o sistema recursal vem se(ndo) construído é uma verdadeira falácia, na medida em que se vincula

diretamente à vontade do órgão julgador que criou o próprio precedente.” (RAATZ, Igor. Considerações

históricas sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para o debate sobre a adoção de

precedentes no direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de 2011). 54 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.

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forma de participação social no processo de construção do precedente, com vistas a uma

“decisão mais próxima às reais necessidades das partes e mais rente à realidade do país” 55

,

atuando como importante instrumento para o seu controle preventivo.

3. POSSÍVEIS REPERCUSSÕES DO NOVO SISTEMA DE PRECEDENTES NO

DIÁLOGO INSTITUCIONAL

Como já é possível concluir, os projetos do novo Código de Processo Civil trazem

um sistema fortalecido de precedentes para o Brasil. Estabelecem normas gerais sobre

precedentes e jurisprudência, reforçam institutos que já demonstraram boa aceitação e

efetividade, ao mesmo tempo em que criam novas ferramentas para garantir a resolução de

demandas de massa e valores como segurança jurídica e isonomia. Mas esse sistema não é

isolado. Definir novos poderes e capacidades para o Judiciário possui sérias repercussões

para com outros entes institucionais. Reflete em quem tem razão, em qual interpretação ou

norma deve prevalecer e quem seria seu prolator.

Essas concepções permeiam importante debate: a dicotomia entre a supremacia do

Judiciário e a supremacia do Parlamento. Nenhuma dessas concepções, todavia, deve

prevalecer. Há hoje, pelo contrário, uma valorização de teorias que focam no diálogo entre

instituições. Segundo estas, os Poderes do Estado são concebidos com um desenho

institucional pelo qual nenhum deles atua unilateralmente, mas sim possuem mecanismos

de reação, contribuindo com sua própria capacidade institucional para a construção da

decisão56

.

E, nesse contexto, há, na doutrina brasileira, uma crescente preocupação quanto às

relações dialógicas dos demais poderes com o Judiciário, em especial com o Legislativo,

55 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo

Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 56 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra

sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 287-289.

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quando aquele exercita o controle de constitucionalidade de leis e atos de conteúdo

normativo57

, e, por consequência, emite uma decisão vinculativa à toda esfera pública.

Ocorre que, como visto, decisões com pretensões vinculantes também são

emitidas pelo Poder Judiciário em outros momentos, em processos comuns, em matérias

diversas, mas que igualmente afetam o exercício das competências dos demais poderes. É

necessário aqui, portanto, que se tracem algumas considerações sobre essas relações que,

não tão claras ou evidentes como o controle de constitucionalidade, são por vezes

negligenciadas.

3.1. Repercussões para com o Poder Legislativo e Executivo

Consagrado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o

princípio da separação dos poderes aduz à existência de uma distribuição do poder político

e funções estatais entre diversos órgãos e atores para evitar o arbítrio entre seus titulares.

Com isso, evita a concentração do poder, possibilitando o desenvolvimento do Estado

democrático e de seu autogoverno58

.

Esse princípio estimula, ainda, uma racionalização da execução das atividades

públicas. Com a distribuição de competências, os órgãos incumbidos de realizá-las tornam-

se especializados tecnicamente nessas funções. Assim, algumas instituições dentro do

Estado passam a ter uma maior capacidade na tomada de decisões do que outras, como

decorrência dessa mesma especialização.

57 Nesse sentido: BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a

última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. e BARROSO, Luís

Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. In:

Revista de Direito do Estado: Rio de Janeio, v. 16, n. 3, 2009. 58 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.

64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso

em: 07 de jun de 2013.

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À separação de poderes, por influência do direito americano, foi incorporada a

noção de freios e contrapesos, que permite que haja uma interpenetração entre os poderes

quando de sua atuação. Reconhece-se que variadas funções podem ser desenvolvidas por

um único poder e se estruturam mecanismos que possibilitam esse exercício. A

interpretação de textos jurídicos e aplicação do Direito, nesse sentido, estão entre essas

funções que podem ser desenvolvida por diversos entes estatais, tais quais o Judiciário,

Legislativo, Executivo, Agências Reguladoras, Ministério Público, entre outros.

No panorama brasileiro, por sua vez, as questões de separação de poderes e

capacidades institucionais aprofundam-se com o advento da Constituição de 1988. Há um

novo desenho institucional, um modelo que colocou o texto constitucional acima de – e

ligado a – todas as normas e instituições estatais. Dentro deste, o Poder Judiciário cresceu,

adquiriu importância e estabilidade, passando a ampliar seu campo de atuação,

promovendo ingerências sobre a política e questões técnicas especializadas. É assim que

lembra Felipe de Melo Fontes:

“Ora, nada impede que o discurso jurídico avance sobre temas legislativos e

administrativos, mas a existência de normas constitucionais instituindo direitos

tradicionalmente tratados de maneira coletiva, marcadas por sua baixa densidade

normativa, serviu como um convite a que a barreira institucional fosse atravessada em

termos incontornáveis.” 59

Nesse quadro, o novo Código de Processo Civil propõe, com vistas aos já

mencionados princípios da isonomia, segurança jurídica e celeridade, um sistema de

produção de decisões vinculantes centrada nos tribunais superiores (STF e STJ), com

poderes, ainda, para os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais60

em matérias

de sua competência e quando não haja orientação superior.

Ao proferirem essas decisões vinculantes, ou ao consolidarem o entendimento que

possuem como dominante em enunciados sumulares, os juízes desses tribunais estão a

produzir uma norma jurídica com pretensões gerais e abstratas, que visam conformar todas

as condutas que se adequem àquela moldura fática. Estão a desempenhar, portanto, um

59 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a

Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.

64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso

em: 07 de jun de 2013. 60 É nesse sentido que vem inovar o incidente de resolução de demandas repetitivas.

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papel tradicionalmente conferido ao Legislativo. Mas não só, algumas decisões, a exemplo

daquelas tomadas em matérias de políticas públicas, repercutem igualmente no Poder

Executivo e em seu processo de tomada de decisões.

É, portanto, no âmbito dessas decisões que surgem importantes considerações

sobre as capacidades institucionais, tanto do Judiciário, quanto das demais instituições,

para a tomada destas. As considerações institucionais devem, pois, ser debatidas e

apreciadas quando os juízes atuam, há um dever nesse sentido, o que não se restringe a

decisões de controle de constitucionalidade ou àquelas das Cortes Supremas, mas deve

atingir toda forma de precedente.

Esse dever dos tribunais comuns de atentar para as considerações institucionais é

reconhecido, inclusive, por Cass Sunstein e Adrian Vermeule, leia-se:

“Geralmente, todavia, considerações institucionais são deixadas para segundo plano e a

interpretação de precedentes é realizada de forma indiferente a elas. [...] Nossa ênfase tem

sido que a interpretação dos textos, tomados como formas de normas encontrados nas

constituições, leis e regulamentações. Mas precedente são, claro, textos também, e na

decisão do que o precedente significa, um tribunal de common law deveria dar bastante

atenção para considerações institucionais. [...] Quando juízes do common law, diferente

dos doutrinadores do common law, decidem por caracterizar um precedente de forma

ampla ou restrita, questões como falibilidade judicial e a dinâmica dos efeitos das decisões

são centrais”61

.

Os autores ainda levantam, junto à falibilidade humana e judicial, a dificuldade

técnica e de conhecimento dos magistrados, em especial os de Cortes locais e regionais e

aqueles de primeira instância, uma vez que as mais altas tendem a remediar esse problema

através de assessoria especializada; bem como sua incapacidade de efetuar juízos

61 Tradução livre. No original: “Too often, however, the institutional considerations are placed in the

background, and the interpretation of precedents is undertaken in a way that is indifferent to them. [...] Our

emphasis has been on the interpretation of texts, taken as the sorts of commands found in constitutions,

statutes, and regulations. But precedents are of course texts too, and in deciding what a precedent means, a

common law court should pay close attention to institutional considerations. [...] When common law judges,

as opposed to theorists of the common law, decide whether to characterize precedents narrowly or broadly,

the questions of judicial fallibility and of dynamic effects are central.” (SUNSTEIN, Cass; VERMEULE,

Adrian. Interpretation and Institutions. In: Michigan Law Review. V. 101, n. 04, 2003. p. 45-6.)

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sistêmicos e prognósticos para a prolação da decisão, como questões que devem ser

ponderadas quando da formação de um precedente judicial62

.

Tais exposições apontam, assim, que o Judiciário nem sempre é a melhor

instância para a decisão. Pode não ter o conhecimento necessário para proferir decisões

especializadas, ou não levar em consideração os efeitos sistêmicos de suas decisões, o que

o Código de Processo Civil busca contornar com a convocação de peritos e, agora, com a

figura do amicus curiae. Decisões judiciais, em especial as vinculantes como as propostas

pelo novo CPC, possuem sérias consequências posteriores e não restritas ao processo, ao

passo que os tribunais brasileiros não possuem aptidão ou tempo de decisão suficiente para

antecipá-las.

Concebidos já para reverter o quadro de abarrotamento dos Tribunais, os

precedentes são negativamente afetados por ele. As Cortes e juízes pátrios possuem

acervos infindáveis de processos, para os quais o Conselho Nacional de Justiça – CNJ tem

editado metas de resolução e sentenças, o que afeta a qualidade da prestação jurisdicional.

O juiz não tem tempo ou condições de avaliar o processo e, muito menos, os efeitos

sistêmicos e externos de sua decisão. E esse quadro não se reverte com o sistema de

precedentes vinculantes trazidos pelo novo Código de Processo Civil.

Embora sujeitas a um processo diferenciado de prolação, que pressupõe, a

depender do caso, a repetição daquele entendimento até sua consolidação, ou uma ampla

participação das partes e interessados, os precedentes do novo CPC ainda são decididos

dentro daquelas condições do Judiciário. O juiz ou Tribunal ainda tem que fornecer uma

resposta de maneira rápida e voltada ao caso concreto. Mesmo que exista, como faz o novo

código, o dever de abstrair as considerações casuísticas ou de analisar o vários recursos

representativos da controvérsia repetitiva, ainda prevalece um modelo casuístico de

adjudicação, o qual só pode ser revertido com o tempo.

Prolatar, portanto, decisões vinculantes que falham em analisar os efeitos

sistêmicos que a norma geral e abstrata vai produzir vai ferir os próprios princípios que os

62 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. In: Michigan Law Review. V.

101, n. 04, 2003. p. 45-6.

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precedentes visam a proteger, quais sejam os de segurança jurídica e estabilidade social.

Surge, então, a questão: quem estaria melhor habilitado para a tomada dessas decisões?

O Legislativo, como originalmente concebido, é um poder legitimado pela

população através do voto. É formado por representantes eleitos para a tomada de decisões

de cunho propriamente político, criando e modificando o Direito, em um sistema que

assegura a igualdade de participação nesse processo63

.

Mas ele também apresenta suas próprias dificuldades. “O processo político

encontra-se em franco descrédito frente à opinião pública, e mesmo no campo dos estudos

jurídicos jamais teve a mesma atenção devotada à magistratura”64

. Aliás, a criação de

precedentes vinculantes no sistema brasileiro é um reflexo dessa crise de legitimidade e

técnica que marca o Legislativo.

A legislação ordinária padece de alguns vícios na sociedade atual. Enquanto vige

uma proliferação descontrolada de normas legais, estas são incapazes de fornecer respostas

apropriadas para as situações que permeiam as demandas denominadas repetitivas. Há,

então, uma multiplicidade insatisfatória de textos legais.

O processo legislativo, por sua vez, é incapaz de fornecer as respostas em tempo

apropriado. Principalmente no campo das demandas repetitivas, alguns interesses não

jurídicos são capazes de interferir no processo legislativo, obstando o andamento de

votações. Cumpre destacar que esse não é um quadro que se está aqui diagnosticando. Há

muito foi identificado, cabendo nesse estudo, apenas, apontar essas falhas como

fundamento das considerações traçadas.

63 Assim escreve Felipe de Melo Fonte: “Como se percebe, a composição plural das questões sociais depende

da participação dos setores envolvidos. Neste sentido, cabe sustentar que o processo político tem duas

vantagens gerais essenciais do ponto de vista institucional, a saber: (i) permite o direito à participação no

processo político em igualdade de condições; (ii) garante, via de regra, o direito à igualdade de tratamento no

acesso aos bens e serviços providos pelos poderes públicos, estabelecendo critérios gerais de fruição.

(FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a

Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.

64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso

em: 07 de jun de 2013). 64 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.

64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso

em: 07 de jun de 2013.

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Nesse cenário de falência legislativa, os precedentes surgem como uma alternativa

razoável à insegurança jurídica. A necessidade de resposta é mais urgente do que o

aguardo por um legislador responsável. A situação de acúmulo processual nos tribunais é

insuportável e paralisante65

.

Legislativo e Judiciário, dessa forma, possuem suas capacidades, limitações e

despreparos, como brevemente exposto aqui. Não é, contudo, pretensão do presente

trabalho exaurí-los ou tecer maiores considerações sobre eles. Visa-se apenas fornecer uma

noção deles. Ademais, mesmo diante desses problemas, a tomada de decisões e criação de

normas deve ser realizada. O sistema foi construído e será aplicado pelos Tribunais.

O Judiciário, como uma instância racional de debates, sujeito e provocado pela

argumentação jurídica, mesmo que exercida individualmente, enquanto os outros órgãos

políticos dependem de diferentes formas de estímulo, vem pelo sistema de precedentes do

novo CPC buscar fornecer as respostas por segurança jurídica às situações que, embora

recorrentes na sociedade, não possuem uma resposta legislativa adequada. Esse é, por logo,

um papel que deve ser reconhecido ao sistema de precedentes vinculantes. Cumprirá uma

função de solução imediata àquelas situações sociais conflituosas, ao mesmo tempo em

que aumentará a atenção do legislador para a matéria controversa, agilizando o processo de

decisão política e de elaboração normativa.

É possível, todavia, que a adoção de precedentes vinculantes à nível de Tribunais

e Tribunais superiores causem uma maior ingerência sobre as competências legislativas do

que as decisões vinculantes do tradicional controle de constitucionalidade. Não haverá

restrição de matéria que possa ser tratada pelos tribunais na formulação de regras gerais.

Algumas dessas matérias, outrossim, já podem estar ativas no debate legislativo,

percorrendo seu trâmites para aprovação, com uma norma jurídica já definida, ou perto de

sua definição.

Para contornar esses perigos, dessa forma, é aconselhável que o juiz, sempre que

decidir com pretensões vinculantes, investigue o posicionamento do Parlamento sobre a

matéria, os debates legislativos e se poste a adotar uma decisão semelhante àquela para

65 Veja-se: WALDRON, JEREMY. The core case against judicial review. In: The Yale Law Journal,

apr./2006.

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qual se encaminha o discurso político, ou ainda que se coloque em atitude de deferência, e

aguarde a solução legal.

O Poder Judiciário deve sempre sopesar as capacidades dos demais entes estatais

quando de sua decisão. Deverá, sempre, contemplar que “o processo político tem

exatamente a capacidade de operacionalizar o acesso dos grupos políticos e dos indivíduos

às decisões públicas” e que “em contrapartida, o processo judicial jamais poderá alcançar a

mesma dimensão do processo político na implementação específica do direito à

participação popular”66

.

A possibilidade de participação pública das discussões e decisões políticas, como

elemento do processo democrático, cria, desse modo, uma legitimidade e prioridade para

as suas escolhas, principalmente nas matérias que envolvam decisões coletivas, legislações

infraconstitucionais, ou ainda de menor relevância, tais como as que serão objeto do novo

sistema de precedentes. Nesses casos, o Judiciário deverá guardar uma maior deferência ao

processo democrático, abstendo-se de formar o precedente, ou formulando-o de maneira

apta a ser revisto pelo Legislativo.

Em matérias como direitos fundamentais, por outro lado, em que é reconhecida a

capacidade do Judiciário de salvaguardar a eles e a minorias, este poder possuirá uma

maior liberdade prima facie na tomada de decisão vinculante e na formação da norma

jurídica geral e abstrata.

Tomada a decisão, ademais, como poderá se dar o sistema de reações

institucionais aos precedentes vinculantes?

Atentando, inclusive, para a origem do civil law, há de se perceber que a adoção

dos precedentes vinculantes pelo novo CPC possui como possível efeito prático a

possibilidade de orientar a produção normativa pelo Legislativo67

.

66 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a

Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.

64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso

em: 07 de jun de 2013. 67 Conforme já discorrido na parte introdutória deste trabalho. E complementa Patricia Perrone: “O próprio

legislador, não raro, busca inspiração a jurisprudencia para regular certos assuntos, ou para aprimorar e

atualizar as normas já existentes”. (MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do

direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 69-70.)

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Diferentemente das decisões de controle de constitucionalidade, onde os

mecanismos de reação possuem diferentes contornos e dependem de um maior custo

político para serem exercidos, no caso dos precedentes vinculantes de tribunais superiores

e tribunais estaduais, os custos de normatização, superação e modificação são menores. O

instrumento típico de reação pelo Legislativo, nesse contexto, será a edição de lei

ordinária.

Não deixando de conceber, é claro, o papel de reação que pode ser exercido pelo

Poder Executivo, motivado e influenciado por pressões legislativas, através da edição de

Decretos, capazes de modificar os efeitos normativos, e a consequente decisão vinculante

proferida, ao mesmo tempo em que possui um procedimento facilitado de edição.

Os mecanismos de controle de precedentes surgem, também, como formas mais

simples de reação e interação com os precedentes, contribuindo, então, para um melhor

resultado final. Métodos preventivos de controle podem ser exercidos ainda no curso do

processo de decisão judicial. A Administração, através de seus órgãos especializados; a

população, organizada em grupos ou não; e os partidos políticos podem habilitar-se como

interessados, como amicus curiae nos processos de formação do precedente, trazendo suas

informações e considerações institucionais ao Judiciário e participando do processo

decisório.

É possível, ainda, que quando da aplicação da norma geral contida no precedente,

principalmente por autoridades administrativas, estas, no exercício de sua competência

interpretativa do Direito, venham a negar aplicação aos precedentes vinculantes emitidos

pelo Judiciário “que, apesar de à primeira vista se adequarem ao seu pressuposto fático,

apresentam distinção relevante que lhes justifique tratamento díspar (distinguish)” 68

.

Assim, portanto, como facultado às instâncias inferiores, poderão as autoridades

administrativas e demais entes institucionais valerem-se do distinguishing como meio de

reação ao precedente, bastando uma racional fundamentação das distinções para com o

caso anterior vinculante.

68 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra

sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 283-284.

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Outros mecanismos de reação também são aplicáveis, como o controle

orçamentário e salarial do Legislativo sobre o Judiciário, ou ainda a não implementação

das decisões judiciais. No entanto, eles pressupõem um maior custo e mobilização política

que não é comum às matérias decididas em sede de precedentes de demandas repetitivas,

de forma que seu uso será de pouca probabilidade.

Alguns repercussões pontuais da adoção do sistema de precedentes vinculantes

devem ser notados e discorridos.

Primeiramente, a nova importância atribuída aos enunciados sumulares faz surgir

um problema normativo. Aquelas editadas anteriormente à edição do novo CPC não foram

produzidas concebendo uma eficácia vinculativa dos demais tribunais. Não era esse o

propósito dos enunciados sumulares. Seus editores visaram apenas uniformizar

determinado entendimento. Entretanto, a mudança para o novo Código de Processo Civil

irá refletir nesses enunciados. Adquirirão eficácia normativa e vinculante, equiparada às

normas legais, inclusive às leis e disposições editadas posteriormente a elas, motivada,

talvez, pela superação de tais posicionamentos judiciais.

É possível haver, assim, um quadro de conflito normativo entre as súmulas alçadas

a regras gerais universalizáveis e outros dispositivos normativos editados pelo Legislativo

e Executivo posteriormente à criação das súmulas. Nesse contexto, para evitar o

surgimento deste impasse, será necessário, com fundamento no inciso V, §§1º e 2º do

artigo 847 do PLS original e §§1º, 2º e 3º do artigo 521 do substitutivo da Câmara de maio

de 2013, que se realize uma revisão dos enunciados sumulares já editados, para que se

possa promover a integridade do próprio sistema jurídico.

Outra questão aparece no controle de políticas públicas. O Judiciário, a partir da

previsão de normas programáticas pela Constituição, passou a emitir decisões políticas que

envolvem políticas públicas. Torná-las vinculantes, evitando ponderações no caso

concreto, pode ter consequências devastantes. O tão alongado debate sobre a possibilidade

de judicialização de direitos sociais pode adquirir novas perspectivas frente ao novo

sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil69

.

69 O Supremo Tribunal Federal, ademais, já proferiu decisão com efeitos erga omnes em matéria de políticas

públicas, tal qual aquela proferida no RE n. 566.471.

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O estabelecimento de regra de aplicação para todos os casos sucessivos e

presentes nos tribunais inferiores poderá gerar repercussões financeiras para os poderes

encarregados da elaboração orçamentária, ao impor o atendimento de todas as demandas

posteriores.

E, nesse ponto, será sempre necessário que o Judiciário, antes de prolatar suas

decisões, ouçam, mesmo que não venham espontaneamente aos autos, necessitando de

intimação, os poderes e órgãos envolvidos. Os aspectos técnicos, científicos e financeiros

são importantes elementos que deverão ser observados pelo magistrado, como também os

efeitos sistêmicos, a “massa sem rosto e sem identidade conhecida, mas que são atingidos

pela transferência alocativa” 70

, de recursos deve estar presente na construção da decisão.

Decisões vinculantes em matérias de políticas públicas, portanto, não são

aconselháveis, principalmente quando baseadas em uma demanda individual. Transformar

em precedente decisão oriunda de causa individual encontra limites nas dificuldades de

abstração da adjudicação casuística e de compreensão sistêmica dos Tribunais. As

demandas coletivas ganham importância nesse debate. A tomada de decisões vinculantes,

ou que atinjam uma coletividade, deve ocorrer de preferência no curso destas.

No mesmo sentido, caso as cortes, ou o magistrado, não se considerem capazes de

proferir tais decisões, um dever de deferência para com a política estará sempre presente e

o precedente poderá ser construído dessa maneira. Cumprirá com seu dever de decidir e

passará a decisão para aquele que se apresenta em melhor condição de tomá-la.

3.2. Repercussões na Relação entre o Poder Judiciário e as Agências Reguladoras

É importante considerar, embora não seja o escopo desse artigo aprofundar a

matéria, que as decisões tomadas sob os parâmetros dos precedentes vinculantes do novo

Código de Processo Civil são capazes de influenciar não só os atores tradicionais, tais

70 AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da práxis

judiciária. In: NOBRE, Milton; SILVA, Ricardo Augusto Dias da. O CNJ e os desafios do direito à saúde.

Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. pp. 81-115. p. 111-2.

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quais o Executivo, o Legislativo e o próprio Judiciário, mas também outros atores

institucionais de atual importância e influência, a exemplo do Ministério Público, Agências

Reguladoras e o Tribunal de Contas da União. Passíveis de serem visualizados como novos

poderes da república, na visão de Bruce Ackerman71

, as decisões tomadas em sede de

precedentes vinculantes podem interferir no desempenho de funções institucionais por

esses entes.

Não ingressando em considerações sobre a capacidade de análise de questões

regulatórias pelo Poder Judiciário, faz-se mister apenas ressaltar que são notórias as

objeções e dificuldades de análise de aspectos econômicos e sistêmicos pelos juízes.

Escapa, pois, ao Judiciário uma plena capacidade para tomada de decisão em matéria

regulatória, recaindo a ele um dever de deferência às decisões dos entes reguladores em

alguns casos72

.

Dessa forma, a tomada de decisões com conteúdo vinculante em matéria

regulatória pode corresponder a uma violação desse dever de deferência. Principalmente

nesses casos, há um obrigação maior da decisão ser adequada ao caso concreto. O juiz

deve estar em posse de todas as informações, juízos de prognose e demais elementos para

que tenha capacidade de fornecer uma decisão na matéria. E mais, esses elementos advém

do próprio ente regulatório numa relação de diálogo entre poderes73

.

Decisões vinculantes nesses campos, portanto, enrijeceriam esse processo

dialógico e causariam sérias repercussões econômicas aos sujeitos àquela ordem

regulatória. O Judiciário não só estaria se substituindo ao ente regulador, como também

proferiria uma decisão que transcenderia o caso concreto, afetando situações em que o

juízo individual não foi realizado, em que as informações e capacidades não foram

71 Ver: ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. In: Harvard Law Review, v. 113, v. 03, jan.

2000, pp. 691-699. 72 Nesse sentido defende a doutrina estrangeira: SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and

Institutions. In: Michigan Law Review. V. 101, n. 04, 2003. A nível nacional têm-se: CYRINO, André

Rodrigues. Direito Constitucional regulatório – elementos para uma interpretação institucionalmente

adequada da Constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.;.RAGAZZO, Carlos

Emmanuel Joppert. Regulação jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico. Rio de Janeiro:

Renovar, 2011. 73 CYRINO, André Rodrigues. Direito Constitucional regulatório – elementos para uma interpretação

institucionalmente adequada da Constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. P. 272-

275.

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devidamente analisadas, podendo não coincidir com aquelas que motivaram a decisão

original, ou ainda acarretando numa desnecessária e incabível intervenção econômica.

A norma contida no §2º do artigo 995 da versão de maio de 2013 do projeto do

novo Código de Processo Civil fornece um bom exemplo do ora defendido. Não obstante

estabeleça o dever de comunicação do resultado do julgamento que formou um precedente

vinculante em matéria regulatória às agências reguladoras competentes, tal ordem é

somente posterior a essa formação e visa, apenas, ao controle dos efeitos da decisão, sem

considerar a potencial participação da agência no processo. O novo Código, nesse

contexto, deveria, da mesma forma que sujeitou os entes reguladores à condição de

fiscalizador, ter estabelecido a intimação e oitiva obrigatória desses para obter, assim, os

elementos necessários à tomada de decisão.

Observa-se, portanto, que a adoção de um mais amplo sistema de precedentes,

como faz o novo Código de Processo Civil, traz um novo elemento para o debate do

controle de atos regulatórios pelo Poder Judiciário. A possibilidade de multiplicação de

uma decisão vinculante em matéria que envolva agências reguladoras torna-se um novo

ponto de análise obrigatória para Ministros e Desembargadores no momento da tomada da

decisão vinculante. Eles devem estar cientes da potencial repercussão econômica de sua

decisão e dos efeitos sistêmicos que poderão causar.

CONCLUSÕES

Há uma tendência, quase irreversível, na incorporação dos precedentes nos

sistemas jurídicos de origem germânica. E o novo Código de Processo Civil vem promover

esse movimento no direito brasileiro. No entanto, há um debate que precisa ser enfrentado.

É o embate entre conceder a todos os tribunais pátrios o poder de proferir decisões

vinculantes, potencializando os riscos de um Judiciário por demais poderoso, tal como

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destacam as críticas direcionadas para a judicial review por diversos autores74

; ou permitir

que continue a proliferação de demandas repetitivas e o engessamento do Judiciário ante à

incapacidade de fornecer a resposta apropriada para elas. Não é este artigo o local para

respondê-las, mas para provocar o debate. Aqui se buscou avaliar as possíveis repercussões

decorrentes dessa dicotomia.

Os resultados desse artigo, ademais, possuem intuito meramente especulativo,

uma vez que, até o fechamento desta versão, o projeto do novo CPC não havia sido

aprovado, nem uma versão definitiva posta em votação. Ao mesmo tempo, a interação com

os demais poderes, em especial com o Legislativo só poderá ser melhor analisada a partir

de dados empíricos referentes ao uso dos novos instrumentos de vinculação ao precedente.

Utilizou-se como base, dessa forma, os já existentes institutos e considerações doutrinárias

sobre a matéria.

Entretanto, já é possível precisar, nesse campo, a necessidade de uma maior

consciência do papel que os tribunais estão exercendo. A tomada de decisões em sede de

precedentes vinculantes, como um novo papel a ser conferido a tribunais superiores e aos

estaduais, diferentemente daquele já consolidado no Supremo, deve vir acompanhada de

uma conscientização desses tribunais da função que estão exercendo. Devem levar em

conta suas limitações institucionais, como também o jogo de poderes e reações com os

demais entes estatais. E mais, um novo ingrediente é acrescentado neste cotejo

institucional, as relações internas do próprio Poder Judiciário. Quando tomada pelo STJ,

Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais, é importante que a corte tenha em

mente as repercussões e possibilidade de modificação de seu precedente vinculante pelas

suas instâncias revisoras. Mais uma consideração, portanto, ingressa nas preocupações

institucionais dos Tribunais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

74 Em especial: WALDRON, JEREMY. The core case against judicial review. In: The Yale Law Journal,

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652

TRANSAÇÃO PENAL

Pedro Gomes de Queiroz

Mestrando em Direito Processual na UERJ. Pós-Graduando

Lato Sensu em Direito Processual Civil na Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito

pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Advogado no Rio de Janeiro.

RESUMO: Este artigo tem por fim analisar questões controversas acerca do instituto da

transação penal, previsto pelo art. 98, I, da Constituição da República Federativa do Brasil

e regulamentado pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/1995.

PALAVRAS-CHAVE: transação penal, juizados especiais criminais, poder-dever, direito

subjetivo, recurso.

ABSTRACT: This paper aims to analyze controversial questions towards the institute of

plea bargaining, foreseen by the art. 98, I, of the Constitution of the Federative Republic of

Brazil and regulated by the articles 76 and 79 of the Law 9.099/1995.

KEY WORDS: plea bargaining, special criminal courts, duty, right, appeal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Tentativa de transação penal na ação penal pública

incondicionada e na condicionada à representação. Pode haver transação penal na ação

penal privada? 3. Arquivamento do termo circunstanciado e transação penal. 4.

Apresentação da proposta de transação penal pelo autuado e seu advogado 5. O

oferecimento da transação penal é uma faculdade ou um poder-dever do Ministério

Público? O juiz pode apresentar proposta de transação penal quando o Ministério Público

injustificadamente deixar de fazê-lo? 6. Proposta de aplicação imediata de pena restritiva

de direitos ou multa. 7. Especificação da pena proposta. 8. Redução até a metade da pena

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de multa pelo juiz. 9. Da inadmissibilidade da proposta: causas impeditivas da proposta e

da homologação. 10. Comprovação das causas impeditivas. 11. Primeira causa impeditiva:

anterior condenação, transitada em julgado, à pena privativa de liberdade, pela prática de

crime. 12. Segunda causa impeditiva: anterior benefício, no prazo de cinco anos. 13.

Terceira causa impeditiva: os antecedentes, a conduta social, a personalidade do autuado,

os motivos e circunstâncias indicando não ser necessária e suficiente a transação penal. 14.

Suficiência de uma das causas impeditivas para obstar a proposta. 15. O dever do

Ministério Público de fundamentar a decisão de não formular a proposta de transação

penal. 16. Aceitação da proposta pelo suposto autor do fato e por seu defensor. Conflito de

vontades. Natureza jurídica da aceitação. 17. Pode o ofendido interferir na transação penal?

18. Pluralidade de envolvidos e de fatos. 19. Controle jurisdicional e seu resultado:

acolhimento ou rejeição da proposta aceita pelo autuado. 20. Aplicação da sanção penal.

Natureza da sentença. 21. A sentença homologatória da transação penal é apelável, mas

não o é a decisão que indefere a homologação. 22. Descumprimento do acordo. 23.

Conclusão.

1. Introdução

O instituto da transação penal foi previsto pelo art. 98, I, da Constituição Federal1 e

regulamentado pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/19952.

No Brasil, o Ministério Público está sujeito ao princípio da legalidade ou da

obrigatoriedade. Presentes os pressupostos que permitem a propositura da ação, ele não

tem escolha: é obrigado a oferecer a denúncia, a dar início à ação penal. Na ação penal de

iniciativa privada, ao contrário, o ofendido tem a faculdade de propor ou não a ação penal,

em razão do princípio da oportunidade3.

A Lei 9.099/1995 não derrogou o princípio da obrigatoriedade, ou seja, não adotou,

nos crimes de ação penal pública, o princípio da disponibilidade. Apesar disso, essa lei deu

um importante passo à frente ao permitir que, nos ilícitos abrangidos por ela, possa haver

1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 out. 2013. 2 BRASIL. Lei 9.099/1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em 14 out. 2013. 3 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do

processo penal: a Lei n.º 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 318.

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transação, ou seja, possa o órgão do Ministério Público, na audiência preliminar, em vez de

denunciar o suposto autor do fato pelo ilícito praticado, propor-lhe a aplicação de uma

pena não privativa de liberdade4.

Transação implica cada uma das partes interessadas ceder alguma coisa. No caso, o

Ministério Público abre mão do direito de propor a ação e pleitear a condenação do suposto

autor do fato a uma pena de prisão. Já o suposto autor do fato, dispõe sobre seu direito ao

processo5.

Só aparentemente, no entanto, os dois perdem. Na realidade, ambos ganham: o

Ministério Público, porque consegue impor uma pena justa ao suposto autor do fato; este

último porque recebe a pena menos severa possível na espécie, sem ser condenado e,

portanto, sem que o fato praticado gere reincidência e, até mesmo, sem que possa ser

comunicado a qualquer juiz que não seja do juizado especial6.

Quando autorizada pela lei, a transação penal deve ser proposta na audiência

preliminar, logo após a tentativa de composição dos danos civis. Se não houver sido

proposta naquela audiência, deverá sê-lo ao início da audiência de instrução e julgamento,

nos termos do art. 79 da Lei 9.099/19957.

Nos crimes de ação penal pública incondicionada à representação do ofendido, a

transação penal independe da composição dos danos civis. Já nos crimes de ação penal

pública condicionada à representação do ofendido e nos crimes de ação penal privada, a

conciliação quanto aos danos civis impede a transação penal, pois implica a renúncia

quanto ao direito de representação ou queixa8.

O uso dos termos “autor da infração” e “agente” pelo art. 76 da Lei 9.099/1995 é

inadequado, tendo em vista que o suposto autor da infração ainda é um simples autuado

com relação ao fato que deu margem à audiência de conciliação. Como ainda não existe

sentença penal transitada em julgado que condene o autuado pelo referido fato, este não

4 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 5 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 6 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 7 “Art. 79. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase preliminar não

tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos arts. 72, 73, 74 e 75 desta Lei.”. BRASIL. Lei 9.099/1995. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. 8 Cf. art. 74, Lei 9.099/1995.

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pode ser considerado culpado9. Assim, a lei deveria ter usado a expressão “autuado” ou a

expressão “suposto autor do fato” 10

.

2. Tentativa de transação penal na ação penal pública incondicionada e na

condicionada à representação. Pode haver transação penal na ação penal privada?

A lei só cuida da proposta de aplicação da pena com relação à ação penal pública,

condicionada ou não. Segundo Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho,

Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, a visão tradicional de que a vítima só

tem interesse na reparação civil do dano provocado pelo crime, mas não na aplicação da

pena, levou o legislador a não prever a transação para os crimes de ação penal privada. No

entanto, Ada Pellegrini Grinover et al. destacam que a evolução dos estudos sobre a vítima

demonstram que esta tem interesse, ainda, na punição penal e que não existem razões

ponderáveis para deixar à vítima somente duas alternativas: buscar a punição plena ou a ela

renunciar11

.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a vítima que viu frustrado o acordo civil do

art. 74 da Lei 9.099/1995, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra

alternativa lhe for oferecida. Mas se pode o mais, porque não poderia o menos?12

Talvez

sua satisfação no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de

direitos ou multa. A transação penal decorre de norma prevalentemente penal e mais

benéfica para o autuado. Dentro desta postura, deve-se aplicar, por analogia, aos crimes de

ação penal privada, a transação penal, prevista pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/199513

.

Ada Pellegrini Grinover et al. entendem que somente o ofendido pode oferecer a

proposta de transação penal relativa a crimes de ação penal privada, já que somente ele tem

legitimidade para ajuizar este tipo de ação, devendo o Ministério Público, nesse caso,

9 Cf. art. 5º, LVII, da Constituição Federal. 10 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance;

GOMES; Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 5. ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 148-173. 11 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p.150. 12 André Luiz Nicolitt adota o mesmo entendimento e faz a mesma pergunta. NICOLITT, André Luiz.

Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 24-25. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 150.

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limitar-se a opinar sobre o cabimento da transação14

. Guilherme de Souza Nucci15

e André

Luiz Nicolitt16

se filiam a esta corrente.

André Luiz Nicolitt aponta como fundamentos da transação penal na ação penal de

iniciativa privada o princípio constitucional da isonomia17

e o princípio da

consensualidade, que informa os juizados especiais. Segundo este autor, não seria justo e,

tampouco, constitucional que a iniciativa da ação permitisse que crimes de menor potencial

ofensivo tivessem tratamentos diversos18

.

André Luiz Nicolitt aduz que o Ministério Público não tem legitimidade para

promover a ação penal de iniciativa privada, seja na forma de denúncia, seja na forma de

transação prevista no art. 76 da Lei n.º 9.099/1995. Todavia, uma vez oferecida a queixa, o

promotor pode oferecer a transação na hipótese do art. 79 da Lei n.º 9.099/1995. Segundo

o autor, a oferta da transação após o oferecimento da queixa, funda-se na aplicação

analógica do art. 45 do CPP. Presentes os requisitos para a transação, esta passa a ser a

única forma adequada de oferecer a ação penal; se o ofendido iniciou de forma inadequada,

o Ministério Público – que pode aditar a queixa – poderá fazer uma espécie de aditamento

(emenda – correção) para adequar a ação aos termos do que a lei determina, ou seja, a ação

penal na forma de queixa transmudará para a forma de transação, por meio da intervenção

do Parquet. Antes da queixa, não pode o Ministério Público oferecer a transação, pois

vigora o princípio da oportunidade, não tendo o Parquet legitimidade para a ação de

iniciativa privada. Todavia, uma vez oferecida a ação, o Ministério Público deve intervir

até porque o direito de punir é do Estado e cabe a ele velar pela adequada aplicação do

ordenamento jurídico19

.

Nereu José Giacomolli entende que a transação penal é cabível tanto na ação penal

de iniciativa pública, quanto na de iniciativa privada. Segundo este autor, a proposta de

transação criminal poderá ser feita pelo magistrado, requerida pelo querelado ou até

proposta pelo querelante, já que inexiste vedação legal20

.

14 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 150. 15 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2007, p. 685-686. 16 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 24-25. 17 Cf. art. 5º, caput, CF. 18 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 24-25. 19 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 25-26. 20 GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados especiais criminais: Lei n. 9.099/1995. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 1997, p. 96.

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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é favorável à transação

penal nos crimes de ação penal privada e sustenta que a legitimidade para formular a

proposta, neste caso, é do ofendido. Entretanto, consigna que o querelante não tem o dever

de oferecer a proposta de transação penal, ainda que preenchidos os requisitos legais:

[...] 1. Embora admitida a possibilidade de transação penal em ação

penal privada, este não é um direito subjetivo do querelado,

competindo ao querelante a sua propositura. [...] 21

.

[...] II - A jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a

aplicação da transação penal às ações penais privadas. Nesse caso,

a legitimidade para formular a proposta é do ofendido, e o silêncio

do querelante não constitui óbice ao prosseguimento da ação penal.

III - Isso porque, a transação penal, quando aplicada nas ações

penais privadas, assenta-se nos princípios da disponibilidade e da

oportunidade, o que significa que o seu implemento requer o mútuo

consentimento das partes. [...] 22

.

O Enunciado Criminal n.º 112 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais

(FONAJE) adotou entendimento no sentido do cabimento de transação penal nos crimes de

ação penal privada, mas dispôs que, neste caso, a proposta deve ser feita pelo Ministério

Público: “Na ação penal de iniciativa privada, cabem transação penal e a suspensão

condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público” 23

.

3. Arquivamento do termo circunstanciado e transação penal

Ada Pellegrini Grinover et al. sustentam que o Ministério Público só deve formular

sua proposta de aplicação imediata da pena não privativa de liberdade quando, em um

21 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1356229/PR da Sexta Turma, Rel. Ministra

Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ/PE), j. 19/03/2013, DJe 26/03/2013.

Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 21 set. 2013. 22 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn .634/RJ da Corte Especial , Rel. Ministro Felix Fischer, j. 21/03/2012, DJe 03/04/2012. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 21 set. 2013. 23 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 112. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.

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juízo prévio ao oferecimento da denúncia, estiver convencido da necessidade de

instauração do processo penal.

Isso só indica, no entanto, a necessidade de um exame prima facie do que resulta do

termo circunstanciado: assim, se houver falta de tipicidade, ocorrência de prescrição ou

inimputabilidade, o Ministério Público deverá pedir o arquivamento. Mas a análise da justa

causa, por exemplo, que envolve a existência de elementos probatórios não poderá ser

averiguada nesse momento24

.

4. Apresentação da proposta de transação penal pelo autuado e seu advogado

Ada Pellegrini Grinover et al. observam que, embora a lei só se refira ao Ministério

Público como proponente da imediata aplicação de pena não privativa de liberdade, a

proposta pode ser apresentada pelo próprio autuado, assistido por seu advogado, tendo em

vista o princípio constitucional da isonomia e a informalidade da audiência de conciliação.

Segundo estes doutrinadores, não importa de quem é a iniciativa da proposta, o que

interessa é que seja discutida entre os protagonistas da audiência de conciliação, sob a

orientação do juiz25

.

Importa salientar que somente haverá transação penal caso o Ministério Público

aceite a proposta apresentada pelo autuado e pelo advogado deste, já que se trata de uma

proposta de acordo e não de um pedido dirigido ao juiz.

5. O oferecimento da transação penal é uma faculdade ou um poder-dever do

Ministério Público? O juiz pode apresentar proposta de transação penal quando o

Ministério Público injustificadamente deixar de fazê-lo?

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., permitir ao Ministério Público (ou ao

acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação penal, na hipóteses de

presença dos requisitos do §2º do art. 76, da Lei 9.099/1995, poderia redundar em odiosa

discriminação, a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação do acusador que

assim se pautasse ao princípio da oportunidade pura, que não foi acolhido pela lei. Assim,

24 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 151-152. 25 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 152.

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o termo “poderá” contido no art. 76, caput, da Lei 9.099/1995 não indica mera faculdade,

mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que estejam

presentes as condições do art. 76, §2º, Lei 9.099/199526

.

Ada Pellegrini Grinover et al. entendem que o juiz não pode fazer a proposta de

transação penal antes do oferecimento da denúncia, nos termos do art. 76, Lei 9.099/1995,

pois isso configuraria atribuir ao juiz poderes equivalentes aos da movimentação ex officio

da jurisdição, hoje proibida em nível constitucional para a ação penal pública (art. 129, I,

CF) e banida pela própria Lei 9.099/1995, que revogou expressamente a Lei 4.611/1965.

Com efeito, a sentença homologatória da transação penal é resposta jurisdicional e, nesse

caso, teríamos exercício de jurisdição sem ação27

.

Quanto à transação posterior ao oferecimento da denúncia, Ada Pellegrini Grinover

et al. aduzem que permitir que o juiz homologue uma transação, que elimina ou suspende o

processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o exercício do

direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos constitucionais. Mesmo porque o

direito de ação não se esgota no impulso inicial, mas compreende o exercício de todos os

direitos, poderes, faculdades e ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo28

.

Ada Pellegrini Grinover et al. defendem que, caso o juiz considere improcedentes

as razões invocadas pelo representante do Ministério Público para deixar de propor a

transação29

, deve, por aplicação analógica do art. 28 do CPP, remeter as peças de

informação ao Procurador Geral, e este poderá oferecer a proposta, designar outro órgão do

Ministério Público para oferecê-la, ou insistir em não formulá-la30

.

Insistindo o procurador Geral em não formular a proposta nada mais resta a fazer

do que designar a audiência prevista na lei para o rito sumaríssimo, o que também ocorrerá

caso o querelante, na ação penal privada, não queira oferecer proposta de transação penal31

.

No mesmo sentido, o Enunciado Criminal n.º 86 do FONAJE estabelece que: “Em

caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do

processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP” 32

.

26 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 153. 27 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 154. 28 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 154. 29 O Ministério Público tem o dever de manifestar as razões pelas quais deixará de apresentar proposta de

transação penal, em respeito ao princípio constitucional da motivação do ato administrativo, implícito no art. 37, CF. Aplicando-se, ainda ao Ministério Público 30 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 155. 31 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 155.

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O mesmo entendimento foi consagrado pela jurisprudência do STJ:

[...] 2. O oferecimento da proposta de transação é ato privativo do

Ministério Público. Havendo recusa por parte do representante do

Parquet, cabe ao Magistrado, entendendo ser caso de aplicação do

benefício, remeter os autos ao Procurador-Geral, a teor do que

estabelece o art. 28 do Código de Processo Penal. [...] 33

.

André Luiz Nicolitt observa que a única conclusão sustentável para quem entende

que a transação penal é um direito subjetivo público de liberdade, seria a de que o juiz

poderá formular a proposta de transação, podendo-se questionar, tão somente, se o juiz

poderia agir ex officio ou mediante requerimento do autuado. Se há direito subjetivo, este

deve ser tutelado pelo Judiciário, tendo em vista o disposto no art. 5º, XXXV, CF34

. A

crítica, entretanto, não se sustenta, pois a transação penal constituiu exceção à regra do art.

5º, XXXV, CF, prevista pela própria Constituição em seu art. 98, I, CF. Além disso, o art.

76, §2º, III, Lei 9.099/1995 traz requisito subjetivo que só pode ser avaliado pelo

Ministério Público.

Fernando da Costa Tourinho Filho entende que a proposta de transação penal é um

poder-dever do Ministério Público, ao qual corresponde um direito subjetivo de liberdade

do réu:

Muito embora o caput do art. 76 diga que o Ministério

Público “poderá” formular a proposta, evidente que não se trata de

mera faculdade. Não vigora, entre nós, o princípio da oportunidade.

Uma vez satisfeitas as condições objetivas e subjetivas para que se

faça a transação, aquele “poderá” converter-se-á em “deverá”,

surgindo para o suposto autor do fato um direito a ser

necessariamente satisfeito.

32 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 86. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013. 33 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 59.776/SP da Sexta Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, j. 17/03/2009, DJe 03/08/2009. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 22 set. 2013. 34 NICOLITT, André Luiz. Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos. 2. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2004, p. 5-6.

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Não havendo apresentação da proposta, por mera obstinação

do Ministério Público, parece-nos, poderá fazê-la o próprio

Magistrado, porquanto o suposto autor do fato tem um direito

subjetivo de natureza processual no sentido de que se formule a

proposta, cabendo ao juiz o dever de atendê-lo, por ser indeclinável

o exercício da atividade jurisdicional35

.

Maurício Antônio Ribeiro Lopes adere ao mesmo entendimento:

Não temos dúvidas de que esteja o juiz autorizado a proceder

ex officio. Tem-se sugerido, a esse propósito, que ao poder-dever

da acusação corresponderia um verdadeiro direito subjetivo público

do autuado à apresentação da proposta de transação, uma vez não

enquadrado o caso nas hipóteses do §2º do art. 76. E, para esse

caso, a solução estaria então na formulação da proposta pelo juiz

que, havendo aceitação da proposta do autuado e de seu advogado,

desde logo a homologaria, nos termos do §4º do dispositivo36

.

No mesmo sentido, Nereu José Giacomolli aduz que: “O magistrado formulará a

proposta de aplicação de medida alternativa quando houver inércia do Ministério Público,

seu não comparecimento ou na recusa imotivada deste. Com isso se garante o direito

público subjetivo do acusado e o princípio conciliador” 37

.

Segundo André Luiz Nicolitt, quando se sustenta que a transação é uma faculdade

do Ministério Público, um poder discricionário, nada se poderia fazer diante da negativa do

promotor em formular a proposta de transação no que tange ao mérito. O único controle

jurisdicional seria o de legalidade, ressaltando-se a possibilidade de controle pela própria

Administração, nos termos do art. 28, CPP38

.

35 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São

Paulo: Saraiva, 2000, p. 92. 36 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Crimes de trânsito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 74. 37 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 99. 38 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 6.

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André Luiz Nicolitt aponta a limitação à lei como característica do poder

discricionário e aduz que não se pode confundir discricionariedade com arbítrio. No caso

da transação, se um promotor deixa de oferecê-la ao argumento de que, embora ausentes os

impedimentos legais, entende por bem não propor em razão do comportamento do autuado

durante a audiência preliminar ou em função de sua religião, estaríamos diante de

verdadeiro arbítrio. Assim, atendidas as exigências legais, o Ministério Público está

obrigado a oferecer a transação penal, não podendo agir arbitrariamente39

.

André Luiz Nicolitt sustenta que existe discricionariedade na avaliação da causa

impeditiva da transação penal prevista no inciso III do §2º do art. 76 da Lei 9.099/1995,

por tratar-se de requisito subjetivo, embora não exista qualquer discricionariedade na

avaliação dos incisos I e II do mesmo parágrafo, já que estes seriam requisitos objetivos40

.

André Luiz Nicolitt defende que a proposta de transação penal tem natureza de

ação, embora seja informal, consensual e sumária, e argumenta que: “sem entendermos que

a proposta tem natureza de ação, não temos outra saída senão reconhecer que a norma fere

os princípios do devido processo legal e, consequentemente, o contraditório e a ampla

defesa, possibilitando a aplicação da pena sem processo.”. Assim, o mencionado autor

conclui que o juiz não pode propor a transação penal de ofício em razão do princípio da

inércia da jurisdição. Também recusa a aplicação analógica do art. 28, CPP, pois este é

aplicável na hipótese de o Promotor, ao invés de oferecer a demanda, requerer o

arquivamento. No caso da recusa do Ministério Público em oferecer a transação há, ao

contrário, oferecimento da denúncia, não cabendo analogia, pois as situações não são

semelhantes41

.

André Luiz Nicolitt aduz, ainda, que a aplicação do art. 28 do CPP se afasta do

princípio da celeridade consagrado na Lei n.º 9.099/1995, já que a remessa ao Procurador-

Geral retiraria do procedimento a celeridade essencial e indispensável aos Juizados42

.

Segundo o mencionado autor, diante da ausência de impedimento legal, o

Ministério Público deverá oferecer a transação penal; se não o faz, cabe ao Juiz rejeitar a

denúncia por falta de interesse de agir:

39 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 9. 40 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 9-10. 41 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 15-18. 42 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 18.

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Frise-se que tanto a transação quanto a denúncia oral devem

obedecer às mesmas regras quanto à prescrição ao arquivamento,

bem como às chamadas “condições da ação”. Quando ocorrer

prescrição ou caso de arquivamento, não poderá ser formulada

proposta, tampouco denúncia.

Da mesma forma, deve se observar as condições para o

exercício regular do exercício do direito de ação. Em matéria penal,

são elas: a legitimidade, o interesse de agir, a possibilidade jurídica

da demanda, a justa causa e a originalidade.

Na hipótese de oferecimento da denúncia, quando cabível a

proposta de transação, carece a demanda de interesse de agir nas

modalidades necessidade e adequação. [...]

Perceba que esta solução permite ao Promotor oferecer a

transação ou apelar da decisão, sujeitando-a ao controle de outro

órgão (Turma Recursal), tendo em vista que o provimento que

rejeita a denúncia a toda evidência tem natureza de sentença

terminativa sem exame de mérito e, ainda, ex vi art. 82 da Lei n.º

9.099/1995, há previsão expressa do recurso de apelação.

Desta forma, não haveria lesão ao sistema acusatório, pois o

juiz não se investiria nas funções do Ministério Público e o exame

da questão seria amplo já que passaria pela análise do promotor –

quando do oferecimento da denúncia – e do juiz – quando da

rejeição fundamentada da denúncia. Haveria, ainda, uma revisão

pelo promotor à luz da decisão fundamentada do juiz, oportunidade

em que poderia se convencer de que a transação seria cabível,

consequentemente ofertando-a. Por último, não se convencendo da

possibilidade de transação, o promotor recorreria e haveria então

reexame da decisão do Juiz por uma Turma de Juízes, o que sem

dúvida atende aos princípios constitucionais e ao espírito

democrático que deve nortear as atividades públicas.

Por derradeiro, cabe dizer que a possibilidade de transação na

forma do art. 79 se ajusta perfeitamente à sistemática. Percebe-se

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que às vezes não é possível ao Parquet desde logo oferecer a

proposta por não ter acesso à informações fundamentais à análise

dos requisitos da transação, ou ainda, por qualquer outro motivo,

não foi possível a formulação anterior. Assim, é oferecida a

denúncia e, na oportunidade indicada no art. 79, é oferecida a

transação.

Trata-se de uma espécie de emenda. O Ministério Público na

verdade estará adequando a forma de propositura da ação,

substituindo a denúncia pela proposta. Esta adequação é

perfeitamente possível, mormente diante do fato de que a denúncia

oferecida nem mesmo foi recebida nesta fase, não havendo

disponibilidade já que a transação é uma forma de ação.

Diante destas reflexões, entendemos que o sistema acusatório

encontra-se imaculado, preservadas ainda as funções do Ministério

Público, o direito à defesa, ao contraditório e ao devido processo

legal43

.

Luiz Fux e Weber Martins Batista entendem que o juiz somente pode apresentar a

proposta de transação penal quando o Ministério Público houver oferecido a denúncia, mas

não quando o Parquet houver requerido o arquivamento do termo circunstanciado:

Oferecida a denúncia, o juiz tem, normalmente, dois

caminhos a tomar: ou a recebe e dá seguimento ao processo, ou a

rejeita e põe fim ao mesmo. No caso em exame, resta-lhe um

terceiro caminho: em vez de receber a denúncia, e por entender que

o suposto autor do fato tem direito à transação, ele próprio toma a

iniciativa de oferecê-la.

Se o juiz pode fazer o mais, que é condenar o acusado, com

todas as desvantagens daí decorrentes, pode fazer o menos, que é

impor-lhe uma pena mais branda, por ele aceita, em decisão que

não lhe trará qualquer outra consequência danosa, como fato

43 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 19-21.

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jurídico. Só uma coisa o juiz não poderia fazer e, no caso, não fez:

tomar a iniciativa do procedimento, usurpar função exclusiva do

Ministério Público44

.

6. Proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa

Ada Pellegrini Grinover et al. observam que a lei não admite que a proposta de

transação penal verse sobre a aplicação da pena privativa de liberdade, ainda que reduzida

e mesmo que esta seja a única prevista em abstrato, já que o instituto da transação penal

objetiva a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de

liberdade. Além disso, a proposta de transação penal pode ser feita em uma fase

administrativa em que não há sequer acusação, o processo jurisdicional não se iniciou, não

se sabe se o acusado, neste, seria absolvido ou condenado. Ainda nos situamos fora do

âmbito do direito penal punitivo, de seus esquemas e critérios45

.

A pena restritiva de direitos proposta pelo Ministério Público deve estar contida no

rol das alíneas “b” a “e”, do art. 5º, XLVI, CF, com as especificações dos artigos 43 a 48

do Código Penal46

.

Segundo Guilherme de Souza Nucci, a denominada prestação de outra natureza,

prevista no art. 45, §2º, do Código Penal, depende da aceitação do benefício e somente

deve ser aplicada quando for impossível ao acusado, em processos comuns, suportar o

pagamento em pecúnia estabelecido pelo magistrado. Assim, entende ser inadequada a

fixação da obrigação de doar cestas básicas a determinada entidade, pois não haveria

previsão legal para essa pena47

. O autor defende que a proposta do Ministério Público

deveria concentrar-se na prestação pecuniária, que é o pagamento de quantia em dinheiro à

vítima (se já não obteve reparação) ou a entidades assistenciais, já que:

Acordar que o suposto autor do fato entregue cestas básicas a quem

quer que seja deveria pressupor a aceitação do beneficiário. Essa

44 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do

processo penal: a Lei n.º 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 322. 45 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 46 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 47 No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. Análise

comparativa das Leis 9.099/1995 e 10.259/2001. São Paulo: Saraiva, 2003, p.48-49.

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aceitação não pode ser presumida e, pelo que se sabe, não há

representante algum de orfanato, creche ou qualquer entidade

presente na audiência48

.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a Lei 9.714/1998 deixou superada a

questão relativa à possibilidade de ser objeto da transação penal a chamada prestação

social alternativa (como, por exemplo, a entrega de cestas básicas, vestuário ou remédios à

coletividade carente ou a instituições assistenciais), ao incluir entre as penas restritivas de

direitos a prestação pecuniária. A proposta, a aceitação e a homologação pelo juiz podem

perfeitamente dizer respeito à prestação de tal natureza (art. 43, I, c/c art. 45, §§ 1º e 2º, CP

na redação da citada lei) 49

.

Segundo Luiz Fux e Weber Martins Batista, a pena de interdição temporária de

direitos50

é indicada naquelas hipóteses em que o evento decorreu do exercício do direito

que se interdita, ou quando a ação praticada pelo suposto autor do fato aconselha a

proibição de exercício de cargo, função, atividade ou mandato eletivo51

. Os autores

consideram que a pena de prestação de serviços à comunidade52

é a mais adequada à

maioria dos casos:

A prestação de serviços à comunidade é, talvez, a solução

mais feliz do legislador penal, em matéria de aplicação de pena.

Sem o risco decorrente do convívio com outros presos, sem

despesas para o Estado, ao contrário, prestando serviços em favor

de instituições como hospitais, escolas públicas, etc., o condenado

vence o período de cumprimento da pena de maneira positiva, com

dignidade, trabalhando em favor da coletividade. Por isso mesmo,

parece-me que o Ministério Público só deve recorrer à limitação de

fim de semana em último caso, como exceção, quando for

48 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 687. 49 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 50 Cf. art. 5º, XLVI, “e”, da CF, e artigos 43, V, e 47, do Código Penal. 51 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. No mesmo sentido, Nereu José Giacomolli aduz

que: “A medida restritiva de direitos guarda relação com a espécie fática, e com a as condições particulares do envolvido. Assim, a suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo é apropriada aos fatos

ocorridos no trânsito.”. GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104. 52 Cf. art. 5º, XLVI, “d”, da CF, e artigos 43, IV, e 46, do Código Penal.

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absolutamente impossível a imposição de uma daquelas outras

penas mencionadas53

.

7. Especificação da pena proposta

Ada Pelegrini Grinover et al. aduzem que a proposta da acusação deve ser clara e

precisa, para dar ao autuado e a seu defensor pleno conhecimento da pena proposta, com a

medida de suas consequências práticas. Os mencionados autores defendem que a proposta

deve se referir ao fato narrado no termo circunstanciado, mas não deve trazer qualquer

tipificação legal, já que a aplicação da sanção não indica reconhecimento da

culpabilidade54

.

Em sentido contrário, o Enunciado Criminal n.º 72 do FONAJE estabelece que: “A

proposta de transação penal e a sentença homologatória devem conter obrigatoriamente o

tipo infracional imputado ao suposto autor do fato, independentemente da capitulação

ofertada no termo circunstanciado” 55

. Entendemos ser este o melhor entendimento, já que

o suposto autor do fato somente poderá exercer o contraditório e a ampla defesa na fase da

transação penal, se souber qual infração penal lhe é imputada pelo Ministério Público, até

porque esta não é necessariamente a mesma que consta do termo circunstanciado. Da

mesma forma, o acusado e seu defensor somente poderão controlar a proporcionalidade da

pena oferecida pelo Ministério Público caso saibam a qual delito o Parquet atribui a

referida pena.

8. Redução até a metade da pena de multa pelo juiz

O art. 76, §1º, Lei 9.099/1995 permite ao juiz reduzir a pena de multa estabelecida

pela transação penal até a metade, quando a lei somente cominar esse tipo de pena para a

53 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. Nereu José Giacomolli compartilha a mesma

opinião quanto à pena de limitação de fim de semana: “A limitação de final de semana implica restrição da

liberdade, embora momentânea, justamente o que a Lei 9.099/95 quer evitar. A escassez de albergues e a

convivência com vários comportamentos considerados desviantes tornam inaconselhável a sua aplicação.”.

GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104. 54 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 55 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 72. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.

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infração penal imputada ao autuado. O juiz poderá reduzir a multa ainda que o acordo

celebrado entre a acusação e o autuado não viole a ordem jurídica.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., trata-se de poder discricionário do juiz:

bastará para sua utilização que o acusador tenha proposto a aplicação de pena de multa e o

autuado e seu advogado a tenham aceito56

.

Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz não pode reduzir a pena de multa

caso o acordo a tenha fixado no mínimo legal57

. Em sentido contrário, Luiz Fux e Weber

Martins Batista aduzem que:

Na hipótese de ser a pena de multa a única aplicável –

algumas contravenções penais – o juiz poderá reduzi-la até a

metade – está no §1º do art. 76. A regra, hoje, significa que o juiz

poderá impor ao suposto autor do fato, que consumou a

contravenção penal a ele imputada, a pena de cinco dias-multa. É

que o órgão do Ministério Público, neste caso, poderá propor pena

menor de 10 dias, que é a mínima prevista para todas as

contravenções penais apenadas com multa58

.

O Enunciado n.º 91 do FONAJE dispõe que: “É possível a redução da medida

proposta, autorizada no art. 76, § 1º da Lei nº 9099/1995, pelo juiz deprecado.” 59

.

9. Da inadmissibilidade da proposta: causas impeditivas da proposta e da

homologação

A elaboração da proposta e a homologação da transação penal submetem-se a

condições, especificadas nos três incisos do §2º do art. 76. Não se trata de condições da

ação, pois nesse momento ainda não há ação nem processo. Cuida-se simplesmente de

requisitos em cuja ausência a proposta de transação não poderá ser formulada, e muito

menos o acordo homologado por sentença: ou seja, de causas impeditivas da proposta e de

56 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 57 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 58 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. 59 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado n.º 91. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013.

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sua homologação. Assim, o impedimento da lei dirige-se, em primeiro lugar, ao Ministério

Público ou ao querelante, que não poderá formular a proposta, tendo, ainda, o dever de

motivar em um dos incisos em questão as razões de sua recusa em transacionar. A recusa

não pode ser fundada em outras razões, como, v. g., em “política criminal” 60

.

Em segundo lugar, a ordem é voltada ao juiz, que fica impedido de homologar o

acordo penal se verificar a presença de qualquer das causas impeditivas enumeradas pela

lei.

As condições do art. 76, §2º, da Lei 9.099/1976 demonstram que a transação penal

é orientada por uma discricionariedade regrada61

. Embora a avaliação da condição inscrita

no art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 envolva elevado grau de subjetividade, uma vez

preenchidas todas as condições legais, o autuado tem direito público subjetivo à transação

penal.

10. Comprovação das causas impeditivas

Ada Pellegrini Grinover et al. aduzem que o art. 76, §2º, Lei 9.099/1995 atribui ao

Ministério Público o ônus de provar que qualquer das causas impeditivas da transação

penal está presente no caso concreto, seja porque a prova dos fatos negativos seria mais

difícil, mas sobretudo porque é o Ministério Público, como agente estatal, que tem maiores

possibilidades de comprovar a existência das causas impeditivas da proposta e de sua

homologação. O suposto autor do fato, entretanto, não está impedido de provar a

inexistência das causas impeditivas62

.

Caso o Ministério Público não consiga se desincumbir do referido ônus, terá o

dever de oferecer a proposta de transação penal63

.

11. Primeira causa impeditiva: anterior condenação, transitada em julgado, a pena

privativa de liberdade, pela prática de crime

60 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159. 61 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 62 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 63 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160.

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A condenação pela prática de contravenção penal, bem como à pena restritiva de

direitos ou multa não constituem causas impeditivas do benefício, mas, tão somente,

aquela pela prática de crime e à pena privativa de liberdade64

. Assim, ainda que o suposto

autor do fato tenha sido condenado, anteriormente, pela prática de crime, à pena privativa

de liberdade, caso esta tenha sido convertida em pena restritiva de direitos, nos termos do

art. 44 do Código Penal, não haverá impedimento à concessão da transação penal.

A expressão “sentença definitiva” contida no art. 76, §2.º, I, Lei 9.099/1995 deve

ser interpretada como “sentença transitada em julgado”, tendo em vista o princípio da não

culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, CF65

.

Não apenas os recursos ordinários impedem o trânsito em julgado, mas também os

extraordinários, ainda que tenham efeito meramente devolutivo66

.

Ada Pellegrini et al. defendem que pode haver transação penal caso a sentença

penal condenatória tenha transitado em julgado há mais de cinco anos, devendo-se aplicar

analogicamente e a contrario sensu o art. 76, §2º, II, Lei 9.099/1995, desde que o autuado

não incorra na vedação do inciso III67

. Importa salientar, entretanto, que o Superior

Tribunal de Justiça considera que a simples existência de maus antecedentes impede a

transação penal, ainda que o autuado não seja reincidente:

[...] O oferecimento da proposta de transação penal é obstado na

hipótese de o paciente ter sido condenado à pena privativa de

liberdade, por sentença transitada em julgado.

Evidenciado que o art. 76, § 2º, inciso I, da Lei n.º 9.099/95 não faz

referência alguma à reincidência, torna-se inaplicável à espécie, o

disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal.

Apesar de não estar configurada a reincidência, a existência de

condenação anterior, com trânsito em julgado, pode caracterizar a

presença de maus antecedentes do réu, impedindo o oferecimento

64 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 65 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161. 66 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161. 67 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161.

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da proposta de transação penal, bem como de suspensão

condicional do processo. [...]68

.

12. Segunda causa impeditiva: anterior benefício, no prazo de cinco anos

A lei procurou beneficiar o autor de infrações de menor potencial ofensivo, sem,

contudo, incentivar a sua impunidade. Por isso, o suposto autor do fato que já tiver se

beneficiado da aplicação consensual da pena não privativa de liberdade, nos termos da Lei

9.099/1995, não poderá gozar de novo benefício pelo prazo de cinco anos69

.

Para verificar a ocorrência da causa impeditiva consistente na anterior concessão do

mesmo benefício, o §4º do art. 76 dispõe expressamente que a transação penal seja

registrada exclusivamente para impedir o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

O Enunciado 115 do FONAJE dispõe que: “A restrição de nova transação do art.

76, § 4º, da Lei nº 9.099/1995, não se aplica ao crime do art. 28 da Lei nº 11.343/2006.” 70

.

Assim, de acordo com este enunciado, a transação penal decorrente do crime de adquirir,

guardar, ter em depósito, transportar, ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, não impede a

concessão de nova transação penal, em razão de outro crime, no período de cinco anos.

O Enunciado n.º 124 do FONAJE estabelece que: “A reincidência decorrente de

sentença condenatória e a existência de transação penal anterior, ainda que por crime de

outra natureza ou contravenção, não impedem a aplicação das medidas despenalizadoras

do artigo 28 da Lei 11.343/06 em sede de transação penal”71

.

13. Terceira causa impeditiva: os antecedentes, a conduta social, a personalidade do

autuado, os motivos e circunstâncias indicando não ser necessária e suficiente a

transação penal.

68 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 44.327/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, j.

16/02/2006, DJ 13/03/2006, p. 340. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 27 set. 2013. 69 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 70 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 10 out. 2013. 71 Idem.

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O art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 traz a única causa impeditiva de natureza

subjetiva que poderá autorizar maior discricionariedade do Ministério Público na negativa

de proposta de transação penal72

.

O art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 toma como modelo o art. 77, II, do Código Penal,

atinente aos requisitos para a concessão da suspensão condicional da pena, exceção feita à

menção à “culpabilidade” que não pode, evidentemente, ser considerada com relação ao

autuado, que não foi sequer denunciado73

.

Ada Pellegrini Grinover et al. observam que a lei preferiu substituir a expressão

final do dispositivo penal “autorizem a concessão do benefício” pela fórmula da

necessidade e suficiência da adoção da medida, mas que isso não traz nenhuma diferença

substancial com relação ao texto do art. 77, II, CP74

.

A medida deve ser adequada ao caso concreto, sendo necessária, na medida em que

não estimula a impunidade e suficiente no sentido de bastante75

.

14. Suficiência de uma das causas impeditivas para obstar a proposta

A ocorrência de apenas uma das causas arroladas pelo art. 76, §2º, Lei 9.099/1995 é

suficiente para impedir a realização da transação penal76

.

15. O dever do Ministério Público de fundamentar a decisão de não formular a

proposta de transação penal.

O Ministério Público tem obrigação de fundamentar sua decisão de não formular a

proposta de transação penal77

. Caso decida oferecer denúncia contra o autuado, deve

apontar ao menos uma das causas arroladas no art. 76, §2º, Lei 9.099/1995. Caso decida

pelo arquivamento do termo circunstanciado, deve fundamentar sua decisão na atipicidade

da conduta praticada pelo autuado, ou na falta de qualquer das condições da ação.

72 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 73 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 74 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 75 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 76 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 77 Nesse sentido, Nereu José Giacomolli aduz que: “Em nosso sistema, o presentante do parquet haverá de

justificar as razões pelas quais não formula a proposta de transação criminal [...].”. GIACOMOLLI, Nereu

José. Op. cit., p. 102.

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As decisões tomadas pelo Ministério Público tem natureza administrativa, devendo

ser motivadas como quaisquer decisões administrativas.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto classifica a motivação como princípio geral do

Direito Público e aduz ser este instrumental e consequente do devido processo da lei (art.

5º, LIV, CF), tendo necessária aplicação às decisões administrativas e às decisões

judiciárias, embora se encontre também implícito no devido processo de elaboração das

normas legais, no sentido amplo (cf. arts. 59 a 69 da Constituição Federal e regimentos das

casas legislativas) 78

.

Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a obrigatoriedade de motivar decisões,

tradicional no Direito Processual, expressa quanto aos atos jurisdicionais decisórios típicos

do Poder Judiciário, estendeu-se, com a Carta de 1988, a seus próprios atos administrativos

com características decisórias (art. 93, X). Por via de consequência, o princípio da

motivação abrange as decisões administrativas tomadas por quaisquer dos demais Poderes,

corolário inafastável do princípio do devido processo da lei. Com efeito, se o Poder

Judiciário, a quem caberá sempre o controle final da legalidade de qualquer decisão, está

obrigado à motivação de suas decisões administrativas, com mais razão, a ela estarão, os

Poderes Legislativo e Executivo, ao proferirem suas respectivas decisões administrativas,

pois só assim ficará garantida a efetividade do controle79

.

A Prof.ª Flávia Moreira Guimarães Pessoa defende que, embora não expressamente

formulado na Constituição Federal, o princípio da motivação dos atos administrativos

encontra arrimo implícito no art. 1º, caput, inciso II e no parágrafo único do mesmo

dispositivo, bem como nos artigos 5º, incisos XXXV e LIV e 93, inciso X, todos da

Constituição Federal e aduz que:

O dever de motivar os atos administrativos é corolário e garantia do

Estado Democrático de Direito, tendo em vista ser a motivação

instrumento eficaz para a viabilização da participação e controle

78 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro, 2006,

p. 92. 79 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 92.

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popular, podendo desta forma ser exercida a soberania popular,

elemento deste Estado Democrático de Direito80

.

A motivação da decisão do órgão do Ministério Público de primeiro grau de não

formular a proposta de transação penal é essencial para que haja o controle de sua

juridicidade pelo juiz. Caso o magistrado decida remeter o processo ao Procurador-Geral,

com base no art. 28, CPP, a fundamentação da decisão do órgão do Ministério Público de

primeira instância será fundamental para o controle de juridicidade exercido pelo chefe do

Ministério Público.

16. Aceitação da proposta pelo suposto autor do fato e por seu defensor. Conflito de

vontades. Natureza jurídica da aceitação.

O advogado do autuado deve estar presente na audiência de conciliação, onde é

feita a proposta de transação penal para que seja assegurada a defesa técnica, parte

fundamental da ampla defesa81-82

.

De acordo com o art. 76, §3º, Lei 9.099/1995, a proposta de transação penal deve

ser aceita tanto pelo suposto autor do fato, como por seu defensor. Entretanto, pode haver

discordância entre o suposto agente e seu advogado quanto à aceitação da proposta. Nesse

caso, Nereu José Giacomolli83

e Ada Pellegrini Grinover84

et al. defendem que o juiz deve

procurar solver a controvérsia, mas, persistindo esta, deve prevalecer a vontade do

envolvido, desde que devidamente esclarecido pela defesa técnica, pelo Ministério Público

e pelo juiz acerca das consequências da aceitação. Guilherme de Souza Nucci adere a este

entendimento e aduz que “se o advogado é contratado e divergir de seu cliente, pode este

desconstituí-lo, optando pelos préstimos de outro profissional, tudo para que se beneficie

da transação.” 85

. Entendemos, entretanto, que o autuado não precisa desconstituir seu

advogado e constituir outro para que possa se beneficiar da transação penal. Tendo em

80 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Da exigência de motivação dos atos administrativos

discricionários. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/da-exig%C3%AAncia-de-

motiva%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-administrativos-discricion%C3%A1rios>. Acesso em: 05 out. 2013. 81 Cf. art. 5º, LV, CF. 82 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 83 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 95. 84 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 85 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 691.

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vista o direito à autodefesa86

, a concordância do autuado basta para que o acordo penal se

aperfeiçoe.

Ada Pellegrini Grinover et. al. defendem que a natureza jurídica da aceitação da

proposta é de submissão voluntária à sanção penal, mas não significa reconhecimento da

culpabilidade penal, nem de responsabilidade civil87

.

Quanto à inexistência do reconhecimento da culpabilidade, Ada Pellegrini Grinover

et al.88

observam que:

a) a sanção é aplicada antes mesmo do oferecimento da denúncia, na audiência prévia de

conciliação;

b) a aplicação da sanção não importa em reincidência89

;

c) a imposição da sanção não constará de registros criminais, salvo para o efeito de impedir

nova transação penal no prazo de cinco anos, nem de certidão de antecedentes90

.

O não reconhecimento da responsabilidade civil vem consagrado no art. 76, §6º,

Lei 9.099/1995, quando afirma que a imposição da sanção penal não terá efeitos civis,

cabendo aos interessados propor ação de conhecimento no juízo cível91-92

.

86 Gustavo Badaró assevera que: “O direito de defesa apresenta-se bipartido em: (1) direito à autodefesa; e

(2) direito à defesa técnica. O direito à autodefesa é exercido pessoalmente pelo acusado, que poderá

diretamente influenciar o convencimento do juiz. Por sua vez, o direito à defesa técnica é exercido por

profissional habilitado, com capacidade postulatória e conhecimentos técnicos, assegurando assim a paridade de armas entre a acusação e a defesa.

O direito à autodefesa se divide em: (1) direito de presença; (2) direito de audiência; (3) direito de

postular pessoalmente.

O direito de presença é exercido com o comparecimento em audiências pelo acusado. A sua

presença permitirá uma integração entre a autodefesa e a defesa técnica na produção da prova. Muitos fatos e

pormenores mencionados por testemunhas são do conhecimento pessoal do acusado, que, por estar

diretamente ligado aos fatos, poderá auxiliar o defensor na formulação de perguntas e na demonstração de

incongruências ou incompatibilidades do depoimento. Assim, a restrição da participação do acusado na

audiência de oitiva de testemunhas pode implicar séria violação do direito de defesa como um todo.

O direito de audiência, isto é, o direito de ser ouvido pela autoridade judiciária, é exercido, por

excelência, no interrogatório. Trata-se, porém, de mera faculdade do acusado que, se desejar, poderá

renunciar a tal direito, permanecendo calado (CR, art. 5º, LXIII). O direito de postular está presente na possibilidade de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577, caput),

de interpor habeas corpus ou revisão criminal (CPP, art. 623). Tais manifestações não violam o art. 133 da

CR, que prevê a advocacia como função essencial à administração da justiça. No processo penal, a exigência

de que o acusado tenha uma defesa técnica visa assegurar a paridade de armas entre o acusador e o acusado.

Assim, as manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defesa, apenas

criando uma possibilidade a mais de seu exercício. Que prejuízo haverá para a defesa, se o advogado não

apelar, mas o acusado o fizer pessoalmente?”. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 1.

ed. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 21-22. 87 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164. 88 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164. 89 Cf. art. 76, §4º, Lei 9.099/1995. 90 Cf. art. 76, §§ 4º e 6º, Lei 9.099/1995. 91 Cf. art. 64 do Código de Processo Penal. 92 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164-165.

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Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt aduz que: “no momento em que o

autor do fato aceita a aplicação imediata de pena alternativa, está assumindo a culpa, o que

é natural em razão do princípio nulla poena sine culpa. Não mais poderá discuti-la,

ressalvada a possibilidade de revisão criminal.” 93

.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a aceitação da proposta de transação penal,

livre e tecnicamente orientada, não importa em vulneração a qualquer garantia

constitucional. Ao prever a transação penal sem fixar-lhe limites, a Constituição permitiu

ao legislador essa opção, mais consentânea com os interesses do suposto autor do fato.

Assim, faz-se necessária a revisão de princípios tradicionais do direito processual, como o

nulla pena sine iudicio, já que, nos esquemas penais clássicos, não havia instituto que

levasse à imposição de sanção, sem discussão ou admissão sobre a culpa94

.

17. Pode o ofendido interferir na transação penal?

Segundo Ada Pellegrini Grinover, o ofendido não tem qualquer interferência na

tentativa de transação penal. A lei é expressa ao considerar apenas a vontade do Ministério

Público e do autuado, no art. 76, §§ 4º e 5º, Lei 9.099/1995. E ainda que se adote a linha

moderna, que entende ter o ofendido interesse à repressão penal, não se pode chegar a

ponto de fazer prevalecer sua vontade sobre a do Ministério Público, único titular da ação

penal pública, do qual a vítima pode ser apenas assistente simples.

Ada Pellegrini Grinover et al. aduzem que mesmo que a tentativa de conciliação

civil tenha ficado frustrada, o acordo sobre a aplicação imediata da pena não privativa de

liberdade não poderá sofrer qualquer oposição por parte da vítima95

. Com a devida vênia,

discordamos deste entendimento. A vítima tem interesse na condenação do suposto autor

do fato, pois somente a condenação tornará certa a obrigação de indenizar decorrente da

prática da infração penal. Assim, a vítima poderá peticionar, alegando a existência de

alguma causa impeditiva da transação penal96

e pedindo ao juiz que não a homologue.

Caso o juiz venha a homologar o acordo penal, o ofendido poderá apelar da sentença que o

homologa, nos termos do art. 76, §5º, Lei 9.099/1995. Se a turma recursal verificar a

93 BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais e alternativas à pena de prisão. 3. ed.

Porto Alegre: Livraria do advogado, 1997, p. 103. 94 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 95 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 96 Cf. art. 76, §2º, Lei 9.099/1995

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presença de alguma causa impeditiva da transação penal, não poderá condenar o suposto

autor do fato de imediato, pois não foi oferecida denúncia. Assim, deve remeter o processo

ao Procurador Geral, aplicando, por analogia, o art. 28, CPP. Caberá ao chefe do

Ministério Público referendar a proposta de acordo feita pelo órgão de primeira instância

do Parquet ou pedir a condenação do suposto autor do fato.

18. Pluralidade de envolvidos e de fatos

É possível que, havendo pluralidade de autores do fato, a transação seja proposta e

homologada só com relação a um deles, caso em que o processo será instaurado com

relação a quem não se enquadrar nos requisitos legais97

.

Havendo mais de um envolvido no fato, é possível a homologação da transação

criminal em relação ao aceitante, com prosseguimento do feito contra o que não a aceitar,

diante do caráter personalíssimo do acordo98-99

.

Havendo cumulação de ações penais, o envolvido pode aceitar a transação penal

somente com referência a determinada infração a ele imputada. Nesta hipótese, é de ser

cindido o feito, com prosseguimento em relação às demais100

.

19. Controle jurisdicional e seu resultado: acolhimento ou rejeição da proposta aceita

pelo autuado

A proposta, devidamente aceita, é então submetida ao controle jurisdicional.

Segundo Ada Pelegrini Grinover et al., o juiz deve verificar a legalidade da medida

proposta e analisar sua conveniência, levando em conta a vontade dos partícipes e a

filosofia da transação penal, que não é sujeita a critérios de legalidade estrita e visa

principalmente à pacificação social101

. Nereu José Giacomolli adere a este entendimento,

aduzindo que “a duração da restritiva de direitos não pode seguir a regra do Código Penal,

pois não é aplicada em substituição.” 102

. Em sentido contrário, Luiz Fux e Weber Martins

97 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159-160. 98 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 99 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159-160. 100 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 101 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 102 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104.

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Batista entendem que o juiz deve deixar de homologar a transação penal que houver

estabelecido a pena fora dos limites legais103

.

O Enunciado n.º 73 do FONAJE estabelece que: “O juiz pode deixar de homologar

transação penal em razão de atipicidade, ocorrência de prescrição ou falta de justa causa

para a ação penal, equivalendo tal decisão à rejeição da denúncia ou queixa.” 104

.

Entendemos que o juiz deve deixar de homologar a transação penal sempre que não

estiver presente qualquer condição da ação, qualquer pressuposto processual ou se verificar

qualquer causa de extinção da punibilidade. Da mesma forma, o juiz deve deixar de

homologar a transação penal sempre que esteja presente alguma causa impeditiva arrolada

pelo art. 76, §2º, da Lei 9.099/1995.

Se, em decorrência do controle jurisdicional, o juiz acolher a proposta de transação,

devidamente aceita pelo autuado e por seu defensor, proferirá sentença homologatória da

transação penal105

.

A rejeição da proposta pelo juiz importa em imediata designação da audiência de

instrução e julgamento106

.

Cumpre ainda saber se o juiz, na homologação, pode alterar a proposta formulada

pelo Ministério Público e aceita pelo autuado. Luiz Fux, Weber Martins Batista107

e Ada

Pellegrini Grinover et al108

. entendem que a atuação do juiz deve ocorrer antes da aceitação

da proposta, alertando o autuado e seu defensor quanto ao rigor excessivo da oferta do

Ministério Público e tentando persuadir o representante do órgão sobre a conveniência de

sua mitigação. Poderá o juiz até recorrer ao controle do art. 28, CPP, mas deverá, em

último caso, observar a vontade dos partícipes. Isso porque a sentença, por meio da qual o

juiz exerce o controle da legalidade da transação e pacifica o conflito de acordo com a

103 “A rejeição do acordo, portanto, não se limita às hipóteses mencionadas, do §2º do art. 76. O juiz não pode igualmente acolher transação que importe em descumprimento de norma de Direito Penal. É o que

acontece se, do acordo, resultar a aplicação de pena incabível na espécie, em qualidade ou quantidade.

Se ao suposto autor do fato se atribui – por exemplo – a prática de lesão corporal leve, crime punido

com pena de três meses a um ano de detenção, não pode o Ministério Público propor a aplicação de pena

restritiva de direito em quantidade menor de três meses, pois essa proposta contraria a norma do art. 55 do

Código Penal. Se, apesar disso, o Ministério Público o fizer, deverá o juiz rejeitar a proposta, pois não lhe

cabe modificá-la para, por exemplo, aumentar a pena até o limite mínimo mencionado.”. 103 FUX, Luiz;

BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 328. 104 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 73. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013. 105 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 166. 106 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 166. 107 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 328. 108 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167.

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vontade dos envolvidos tem natureza homologatória e porque a transação é ato consensual

e necessariamente bilateral.

Importa salientar que o juiz deve alertar o autuado, o advogado deste e o órgão do

Ministério Público acerca de qualquer ilegalidade que entenda haver na transação, dando a

estes a oportunidade de corrigi-la, antes de proferir decisão rejeitando a homologação, em

atenção ao seu dever de advertência, inerente ao Princípio da Cooperação109

e ao Princípio

do Contraditório Participativo110

.

20. Aplicação da sanção penal. Natureza da sentença.

Ada Pellegrini Grinover et. al. aduzem que a pena não privativa de liberdade

imposta pelo juiz, por consentimento dos partícipes, tem natureza jurídica de sanção penal,

mas nem por isso apresenta qualquer inconstitucionalidade111

.

Ada Pellegrini et. al entendem que a sentença que homologa a transação penal não

tem natureza absolutória, já que aplica uma sanção de natureza penal. Mas, tampouco pode

ser considerada condenatória, uma vez que não houve acusação e a aceitação da imposição

da pena não tem consequências no campo criminal, salvo o impedimento de novo benefício

no prazo de cinco anos. Além disso, não há qualquer juízo condenatório na sentença que

aplica a medida alternativa, por faltar o exame dos elementos da infração, da prova, da

ilicitude ou da culpabilidade. Da mesma forma, a sentença homologatória deixa de lado

pretensão e resistência e pacifica a controvérsia de acordo com a vontade das partes, e não

consoante a lei material que compõe os litígios de modo geral e abstrato. Também a

possibilidade de o juiz reduzir a pena de multa à metade112

demonstra que, na aplicação da

pena, ele não precisa levar em conta as prescrições do direito material113

. Em sentido

contrário, Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz não pode reduzir a multa à metade

quando esta foi fixada pela transação penal no mínimo abstratamente cominado pela lei

para a infração penal imputada ao autuado114

.

109 SOUZA. Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, São Paulo:

Revista dos Tribunais, v. 93, n. 338, pp. 149-158, abr./ jun. 1997. 110 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 450. 111 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167. 112 Cf. Art. 76, §1º, Lei 9.099/1995. 113 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167-168. 114 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689.

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Ada Pellegrini et. al defendem que a sentença que aplica a pena, em face do

consenso dos interessados, não é absolutória, nem condenatória. Trata-se simplesmente de

sentença homologatória de transação, que não indica acolhimento nem desacolhimento do

pedido do autor, que sequer foi formulado, mas que compõe a controvérsia de acordo com

a vontade dos partícipes, constituindo título executivo judicial. São os próprios envolvidos

no conflito a ditar a solução para sua pendência, observados os parâmetros da lei115

.

É exatamente o fenômeno que ocorre no campo processual civil: a sentença

homologatória da transação – que ninguém classifica de condenatória ou declaratória

negativa – constitui título executivo judicial116-117

.

Em sentido contrário, se orientou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

[...] I - A sentença homologatória da transação penal, prevista no

art. 76 da Lei nº 9.099/95, tem natureza condenatória e gera

eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração

de ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo

homologado. [...]118

.

Como a sentença homologatória não tem natureza condenatória, ela não gera outras

consequências penais além da imposição da pena119

.

Se não houver cumprimento da obrigação assumida pelo suposto autor do fato,

nada se poderá fazer, a não ser executá-la nos expressos termos da lei120

.

21. A sentença homologatória da transação penal é apelável, mas não o é a decisão

que indefere a homologação

A sentença que homologa a transação penal é recorrível por meio de apelação121

.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., é possível que a transação penal tenha sido

115 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 168. 116 Cf. art. 475-N, III, CPC. 117 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169. 118 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 176.181/MG da Quinta Turma, rel. Ministro Gilson Dipp, j.

04/08/2011, DJe 17/08/2011; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 72.671/RJ da Sexta Turma, Rel.

Ministro Hamilton Carvalhido, j. 30/08/2007, DJe 04/08/2008. Disponíveis em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 30 set. 2013. 119 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169. 120 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169.

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inquinada por vícios de vontade, ou que não tenham sido observados os requisitos legais,

de modo que a correção poderá vir por força de apelação122

. Guilherme de Souza Nucci

defende que o suposto autor do fato somente terá interesse recursal quando a sentença

inovar em relação ao acordo, ou quando houver vício do consentimento123

. Luiz Fux e

Weber Martins Batista entendem que a apelação “será possível se o juiz, ao acolher a

proposta de transação aceita pelo autor do fato, cometer algum engano que importe em

modificação do que foi acordado. E, assim mesmo, desde que não caracterize mero erro

material, corrigível pelo próprio juiz” 124

.

Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a recusa de homologação configura decisão

em que o juiz dá resposta a requerimento dos titulares dos interesses em conflito, vedando

sua autocomposição. Não se trata de mera decisão administrativa125

.

Não cabe apelação da decisão interlocutória de indeferimento da homologação da

transação penal, pois a lei não a prevê expressamente e não se trata de decisão definitiva ou

com força de definitiva, nos termos do art. 593, II, do Código de Processo Penal126

.

Mas, embora interlocutória, a decisão de indeferimento da homologação da

transação penal não é atacável pela via do recurso em sentido estrito, cabível somente nas

hipóteses taxativamente previstas no art. 581, CPP127

.

A referida decisão é impugnável por mandado de segurança contra ato jurisdicional,

que poderá ser impetrado pelo Ministério Público e também pelo autuado, ou, ainda, por

habeas corpus, pelo autuado ou pelo promotor em seu favor, na hipótese de o

desenvolvimento do processo poder culminar na aplicação de uma pena privativa de

liberdade128

. O mandado de segurança e o habeas corpus devem ser dirigidos à Turma

Recursal, que terá competência para julgá-los, nos termos do Enunciado Cível n.º 62 do

FONAJE129

.

121 Cf. art. 76, §5º, Lei 9.099/1995. 122 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 123 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 692. 124 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 333. 125 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 126 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 127 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 128 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172-173. 129 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 62: “Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus

impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais.”. Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013.

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No Estado do Rio de Janeiro, a decisão que indefere a homologação da transação

penal pode ser impugnada por meio da reclamação disciplinada pelos artigos 219 a 225 do

Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro (CODJERJ).

Luiz Fux e Weber Martins Batista entendem que a decisão que rejeita a

homologação da transação penal não é uma decisão interlocutória, mas sim uma sentença,

já que põe fim ao procedimento prévio. Assim, esta decisão deveria ser impugnada por

apelação130

.

22. Descumprimento do acordo

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, no RHC n.º 8.198/GO, ser possível a

conversão da pena restritiva de direitos aceita pelo autuado, na transação penal, em pena

privativa de liberdade, ante o descumprimento do acordo por parte deste131

. O tribunal

manteve o mesmo entendimento no HC 14.666/SP132

.

O STJ decidiu, no HC 9.853/SP, não ser possível a conversão da pena de multa

aplicada por meio da transação penal em pena restritiva de direitos ou em pena privativa de

liberdade, ante o descumprimento do acordo por parte do autuado, tendo em vista que a

130 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 333. 131 “CRIMINAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. TRANSAÇÃO. PENA ALTERNATIVA.

DESCUMPRIMENTO. CONVERSÃO EM PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE. LEGITIMIDADE.

1. A transação penal prevista no art. 76, da Lei nº 9.099/95, distingue-se da suspensão do processo (art. 89),

porquanto, na primeira hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto à pena alternativa a ser fixada e,

na segunda, há apenas uma proposta do Parquet no sentido de o acusado submeter-se não a uma pena, mas

ao cumprimento de algumas condições. Deste modo, a sentença homologatória da transação tem, também,

caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra

superveniente infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode - legitimamente - desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem maltrato ao princípio do devido processo legal. É

que o acusado, ao transacionar, renuncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e

consciente, aceitou a proposta e, ipso facto, a culpa.

2. Recurso de Habeas Corpus improvido.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 8198/GO da Sexta

Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 08/06/1999, DJ 01/07/1999, p. 211. Disponível em:

<www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 132 “PENAL. TRANSAÇÃO. LEI Nº 9.099/95, ART. 76. IMPOSIÇÃO DE PENA RESTRITIVA DE

DIREITOS. DESCUMPRIMENTO. CONVERSÃO EM PRIVATIVA DE LIBERDADE.

POSSIBILIDADE.

1 - Não fere o devido processo legal a conversão de pena restritiva de direitos, imposta no bojo de transação

penal (art. 76, da Lei nº 9.099/95), por privativa de liberdade. Precedente desta Corte. 2 - Ordem denegada.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 14.666/SP da Sexta Turma, Rel. Ministro

Fernando Gonçalves, j. 13/03/2001, DJ 02/04/2001, p. 341. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07

out. 2013.

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sentença que homologa a transação penal faz coisa julgada formal e material133

. Importa

salientar que não há razão para tratar de forma distinta a transação penal que aplica pena

restritiva de direitos, já que a sentença que a homologa também faz coisa julgada formal e

material. Assim, adotando este raciocínio, não há como defender a conversão da pena

restritiva de direitos em privativa de liberdade em caso de descumprimento da transação

penal.

Guilherme de Souza Nucci entende não ser possível a conversão da pena de multa

aceita pelo autuado na transação penal em pena privativa de liberdade, em razão do

descumprimento do acordo por parte deste, tendo em vista que a Lei 9.268/1996 atribuiu

nova redação ao art. 51 do Código Penal, vedando a mencionada conversão. Caso o

autuado venha a descumprir o acordo, o juiz deverá proceder à execução da pena de multa

nos termos dos artigos 164 e seguintes da Lei 7.210/1984 134

. Neste sentido, decidiu o STJ:

CRIMINAL. RESP. LEI 9.099/95. DESCUMPRIMENTO DE

ACORDO FIRMADO E HOMOLOGADO EM TRANSAÇÃO

PENAL. DESCUMPRIMENTO DA PENA DE MULTA.

INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. EXECUÇÃO. RECURSO

CONHECIDO E PROVIDO.

I. No caso de descumprimento da pena de multa, conjuga-se o art.

85 da Lei nº 9.099/95 e o art. 51 do CP, com a nova redação dada

pela Lei nº 9.286/96, com a inscrição da pena não paga em dívida

ativa da União para ser executada.

133 “PENAL. PROCESSUAL. TRANSAÇÃO PENAL. PENA DE MULTA. NÃO CUMPRIMENTO.

CONVERSÃO EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. LEI 9268/96. “HABEAS

CORPUS”.

1. A sentença que homologa a transação penal gera eficácia de coisa julgada, formal e material. Vedada,

portanto, a conversão da pena pecuniária em restritiva de direitos ou privativa de liberdade.

2. Controvérsia que se soluciona com a inscrição do valor na dívida ativa da União, onde sua execução

obedecerá aos critérios próprios (Lei 9099/95, Art. 85, c/c o CP, Art. 51, com a nova redação dada pela Lei

9268/96). Precedente deste STJ.

3. Habeas Corpus conhecido; pedido deferido.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 9.853/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Edson Vidigal, j. 17/08/1999, DJ 20/09/1999, p. 73. Disponível em:

<www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 134 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 688-689.

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II. Recurso conhecido e provido para, cassando o acórdão

recorrido, restabelecer a decisão de 1º grau135

.

André Luiz Nicolitt entende que converter a pena restritiva de direito ou de multa

em pena privativa de liberdade viola o devido processo legal, pois, na transação penal, o

indicado autor do fato abre mão de um processo mais amplo, onde as garantias do

contraditório e da ampla defesa são plenas. Admite de forma sumária uma restrição

configurada em uma pena alternativa; por outro lado, o Ministério Público abre mão da

pena privativa de liberdade136

.

Segundo André Luiz Nicolitt, o juiz homologa o acordo através de sentença que é o

título judicial. Assim, sendo impossível executar sem título, a conversão da pena restritiva

de direitos ou de multa em privativa de liberdade em sede de Juizado traduz-se em

flagrante excesso de execução, pois a pena fixada na sentença não é a privativa de

liberdade137

.

A hipótese do art. 44 do Código Penal (CP) é diferente. O descumprimento da pena

alternativa possibilita a conversão desta em pena privativa de liberdade, pois a sentença

fixa a pena e o regime e, em seguida, a substitui na forma do art. 44 e seguintes do CP.

Com efeito, se o condenado não cumpre a pena alternativa, a conversão é possível, pois há

um título judicial que autoriza a execução da pena privativa de liberdade138

.

Em sede de Juizado o mesmo não se verifica, pois jamais foi fixada pena privativa

de liberdade, tampouco o regime de cumprimento. Ressalva-se ainda que, se a ação foi

exercida na forma de transação, o contraditório e a defesa se desenvolveram tendo por

referência a imputação e o pedido de pena não privativa de liberdade, haveria, assim,

violação a esses princípios139

. Nesse sentido, o seguinte julgado do Supremo Tribunal

Federal:

EMENTA: CRIMINAL. CONDENAÇÃO À PENA RESTRITIVA

DE DIREITO COMO RESULTADO DA TRANSAÇÃO

135 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 180.403/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, j.

08/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 159. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 136 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 137 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 138 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 139 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22-23.

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PREVISTA NO ART. 76 DA LEI Nº 9.099/95. CONVERSÃO EM

PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. DESCABIMENTO. A

conversão da pena restritiva de direito (art. 43 do Código Penal) em

privativa de liberdade, sem o devido processo legal e sem defesa,

caracteriza situação não permitida em nosso ordenamento

constitucional, que assegura a qualquer cidadão a defesa em juízo,

ou de não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a

garantia da tramitação de um processo, segundo a forma

estabelecida em lei. Recurso não conhecido140

.

Guilherme de Souza Nucci entende que, caso o suposto autor do fato deixe de

cumprir o acordo assumido em virtude da transação penal, não é possível o oferecimento

de denúncia ou queixa e o prosseguimento do processo, pois o trânsito em julgado da

sentença que homologa a transação faz coisa julgada material141

. Nesse sentido, já decidiu

o STJ:

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. DELITO

DE TRÂNSITO. CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO.

TRANSAÇÃO PENAL. ACEITAÇÃO. APLICAÇÃO DE PENA

DE MULTA. INADIMPLEMENTO. OCORRÊNCIA.

OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. INCABIMENTO. ORDEM

CONCEDIDA.

1. É firme a jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal e

a deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de afirmar o

incabimento de propositura de ação penal, na hipótese de

descumprimento da transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95).

2. Ressalva de entendimento contrário do Relator.

3. Ordem concedida142

.

140 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 268319 da Primeira Turma, Relator: Min. Ilmar Galvão, j.

13/06/2000, DJ 27-10-2000, p.87. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em: 08 out. 2013. 141 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 688-689. 142 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 60.941/MG da Sexta Turma, Rel. Ministro Hamilton

Carvalhido, j. 21/09/2006, DJ 09/04/2007, p. 276. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out.

2013.

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André Luiz Nicolitt defende que a denúncia oferecida em razão de ter o autuado

descumprido a transação penal deve ser rejeitada por ausência de condição da ação, no

caso, a originalidade, uma vez que, tendo a transação penal natureza de ação, o Ministério

Público ou o querelante não poderiam ajuizar nova ação, pois isto importaria em ofensa à

coisa julgada formada pela sentença homologatória transitada em julgado, ou importaria

em litispendência, caso a transação penal não houvesse ainda sido homologada143

.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, entretanto, decidiu no RE 602072 QO-

RG / RS, submetido ao procedimento dos recursos repetitivos do art. 543-B, do Código de

Processo Civil, que “[...] Não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal

em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal.”. O

relator deste recurso, Min. Cezar Peluso, consignou, em seu voto que:

[...] a homologação da transação penal não faz coisa julgada

material e, descumpridas suas cláusulas, retorna-se ao status quo

ante, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da

persecução penal (situação diversa daquela em que se pretende a

conversão automática deste descumprimento em pena privativa de

liberdade). [...] 144

.

Por esta razão, o STJ passou a decidir no mesmo sentido:

PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS

CORPUS. ESTELIONATO.

TRANSAÇÃO PENAL. HOMOLOGAÇÃO.

DESCUMPRIMENTO DO ACORDO. RETOMADA DA

PERSECUÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. RECURSO NÃO

PROVIDO.

1. A Suprema Corte reconheceu a repercussão geral do tema, por

ocasião da análise do RE 602.072/RS (DJe de 26/2/2010), tendo o

143 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 23. 144 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 602072 QO-RG do Plenário, Relator: Min. CEZAR PELUSO, j.

19/11/2009, DJe-035 de 26-02-2010. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013.

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Pleno decidido que "não fere os preceitos constitucionais a

propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das

condições estabelecidas em transação penal". Tal julgamento,

ensejou a mudança de entendimento dessa Turma, a partir do

desate do HC 217.659/MS.

2. Recurso ordinário em habeas corpus improvido145

.

Guilherme de Souza Nucci146

defende que o juiz não pode condicionar a

homologação da transação penal ao cumprimento do acordo pelo suposto autor do fato, de

modo a permitir o oferecimento da denúncia ou da queixa em caso de descumprimento147

,

já que sem homologação não há título algum a exigir o cumprimento da penalidade. Assim,

a prática seria abuso sanável por habeas corpus. André Luiz Nicolitt entende que tal prática

não é lícita, pois possibilita pena sem processo. O autor, contudo, não descarta a atividade

psicoterapêutica antes da homologação até como medida para verificação da aptidão do

suposto autor do fato às penas alternativas148

.

Em sentido contrário, o Enunciado n.º 79 do FONAJE dispõe que a proposta de

transação penal pode condicionar sua homologação ao prévio cumprimento do acordo por

parte do autuado, o que possibilita o oferecimento de denúncia em caso de

descumprimento. O mesmo enunciado diz ser cabível o oferecimento da denúncia após a

sentença homologatória da transação penal, desde que a decisão judicial tenha cláusula

resolutiva expressa149

.

23. Conclusão

145 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 34.580/SP da Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de

Assis Moura, j. 12/03/2013, DJe 19/03/2013. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013. 146 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 147 No mesmo sentido, GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 148 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 23. 149 “É incabível o oferecimento de denúncia após sentença homologatória de transação penal em que não haja

cláusula resolutiva expressa, podendo constar da proposta que a sua homologação fica condicionada ao

prévio cumprimento do avençado. O descumprimento, no caso de não homologação, poderá ensejar o prosseguimento do feito.”. BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado n.º 79.

Disponível em: <http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 08 out.

2013.

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É possível a transação penal quanto aos crimes de menor potencial ofensivo de ação

penal privada, a despeito da falta de previsão legal.

Somente o ofendido pode oferecer a proposta de transação penal relativa a crimes

de ação penal privada, já que somente ele tem legitimidade para ajuizar este tipo de ação,

devendo o Ministério Público, nesse caso, limitar-se a opinar sobre o cabimento da

transação.

O Ministério Público não deve oferecer a transação penal quando estiver

convencido de que o termo circunstanciado deve ser arquivado.

A proposta de transação penal pode ser feita pelo autuado, orientado por seu

advogado, apesar de o art. 76, Lei 9.099/1995 prever que a proposta será feita pelo

Ministério Público.

O oferecimento da transação penal é poder-dever do Ministério Público, ao qual

corresponde um direito subjetivo do autuado. Assim, preenchidos os requisitos legais, o

Ministério Público deve oferecer a transação penal. Entretanto, somente ao Parquet cabe

avaliar a presença dos mencionados requistos. O juiz não pode apresentar a proposta de

transação penal quando o Ministério Público deixar de fazê-lo. Caso o juiz, discordando do

órgão do Ministério Público, entenda que não estão presentes os requisitos legais, deverá

aplicar analogicamente o art. 28 do CPP, remetendo o processo ao Procurador-Geral, a

quem caberá decidir, em definitivo, acerca do cabimento da transação penal.

A proposta de transação penal não pode se referir à aplicação imediata de pena

privativa de liberdade, mas, somente, à pena restritiva de direitos ou multas, tendo em vista

o disposto no art. 76, caput, da lei 9.099/1995.

A pena restritiva de direitos estabelecida pela transação penal pode consistir na

entrega de cestas básicas ou de outros produtos a entidade pública ou privada com

destinação social, tendo em vista o disposto nos artigos 43, I, e 45, §§ 1º e 2º, da Lei

9.099/1995.

A proposta de transação penal e a sentença homologatória devem conter

obrigatoriamente o tipo penal imputado ao suposto autor do fato, independentemente da

capitulação ofertada no termo circunstanciado, para que seja garantido ao autuado o direito

ao contraditório quanto à proporcionalidade da pena150

.

150 Cf. Enunciado Criminal n.º 72 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Disponível em:

<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.

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O art. 76, §1º, Lei 9.099/1995 permite ao juiz reduzir a pena de multa estabelecida

pela transação penal até a metade, quando a lei somente cominar esse tipo de pena para a

infração penal imputada ao autuado. O juiz pode reduzir a multa ainda que o acordo

celebrado entre a acusação e o autuado não viole a ordem jurídica, entretanto, não pode

reduzir a referida pena caso o acordo a tenha fixado no mínimo legal151

.

O juízo deprecado pode reduzir a pena de multa, quando esta for a única aplicável,

com base no art. 76, §1º, Lei 9.099/1995, tendo em vista que a celeridade é princípio

informador do processo nos Juizados Especiais Criminais152

.

Presente qualquer das causas impeditivas arroladas pelo art. 76, §2º, da Lei

9.099/1995, o Ministério Público ou o querelante não poderá propor a transação penal.

Caso esta venha a ser indevidamente ofertada, cabe ao juiz recusar sua homologação.

O Ministério Público tem o ônus de provar a presença da causa impeditiva da

transação penal que alegou.

A anterior condenação, transitada em julgado, à pena privativa de liberdade, pela

prática de contravenção penal não impede a transação penal, tendo em vista que o art. 76,

§2º, I, Lei 9.099/1995, utiliza a palavra “crime”. Da mesma forma, a anterior condenação,

transitada em julgado, à pena restritiva de direitos ou multa não inviabiliza o benefício,

haja vista que o art. 76, §2º, I, Lei 9.099/1995 restringiu a causa impeditiva à pena

privativa de liberdade. Assim, caso a pena privativa de liberdade a que foi anteriormente

condenado o autuado, por sentença transitada em julgado, venha a ser convertida em pena

restritiva de direitos, não haverá óbice à transação penal.

A simples existência de maus antecedentes impede a transação penal, ainda que o

autuado não seja reincidente.

Haja vista o disposto no art. 76, §2º, II, §4º e §6º, da Lei 9.099/1995, a transação

penal não importa em reincidência ou maus antecedentes, sendo registrada, tão somente,

para evitar nova concessão do benefício no prazo de cinco anos.

O Ministério Público tem o dever de fundamentar sua decisão de não formular a

proposta de transação penal, já que o princípio da motivação dos atos administrativos foi

implicitamente consagrado pela Constituição Federal em seu art. 1º, caput, inciso II e

151 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 152 Cf. art. 2º da Lei 9.099/1995 e Enunciado 91 do FONAJE.

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parágrafo único; em seu art. 5º, incisos XXXV e LIV; e em seu art. 93, inciso X 153

. Caso

decida oferecer denúncia contra o autuado, o Ministério Público deve apontar ao menos

uma das causas arroladas no art. 76, §2º, Lei 9.099/1995, não podendo fundamentar sua

decisão em razões de “política criminal”.

Caso haja discordância entre o suposto autor do fato e seu advogado quanto à

aceitação da proposta de transação penal, deve prevalecer a vontade do primeiro, desde que

devidamente esclarecido pela defesa técnica, pelo Ministério Público e pelo juiz das

consequências da aceitação.

A sentença que homologa a transação penal não tem natureza absolutória e,

tampouco, condenatória, mas meramente homologatória.

O ofendido não pode interferir na transação penal que é realizada entre o autuado e

o Ministério Público, pois não é parte no acordo, entretanto, pode pedir ao juiz que não

homologue a transação penal, alegando que esta não preenche os requisitos legais. Da

mesma forma, pode apelar da sentença que homologa a transação penal, quando entender

que esta desrespeita a lei. A vítima tem interesse em impugnar a transação penal porque

esta não importa em condenação e, desta forma, não torna certa a obrigação do suposto

autor do fato de indenizar os danos decorrentes da infração penal. Da mesma maneira, a

vítima tem interesse na correta aplicação da lei penal e processual penal.

Havendo pluralidade de autores do fato, a transação pode ser proposta e

homologada só com relação a um deles, caso em que o processo será instaurado com

relação a quem não se enquadrar nos requisitos legais.

Havendo mais de um envolvido no fato, é possível a homologação da transação

criminal em relação ao aceitante, com prosseguimento do feito contra o que não a aceitar,

diante do caráter personalíssimo do acordo.

Havendo cumulação de ações penais, o envolvido pode aceitar a transação penal

somente com referência a determinada infração a ele imputada. Nesta hipótese, é de ser

cindido o feito, com prosseguimento em relação às demais.

A sentença homologatória da transação penal é apelável, tendo em vista o disposto

no art. 76, §5º, Lei 9.099/1995, mas não o é a decisão interlocutória que indefere a

homologação.

153 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Da exigência de motivação dos atos administrativos

discricionários. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/da-exig%C3%AAncia-de-

motiva%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-administrativos-discricion%C3%A1rios>. Acesso em: 05 out. 2013.

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A decisão que indefere a homologação da transação penal não pode ser impugnada

pelo recurso em sentido estrito, pois esta decisão não consta do rol fechado contido no art.

581, CPP.

A decisão que indefere a homologação da transação penal pode ser atacada por

mandado de segurança, por habeas corpus e, no Estado do Rio de Janeiro, pela reclamação

prevista nos artigos 219 a 225 do CODJERJ. O mandado de segurança e o habeas corpus

devem ser dirigidos à Turma Recursal, órgão competente para julgá-los, nos termos do

Enunciado Cível n.º 62 do FONAJE154

.

A pena de multa aplicada por meio da transação penal não pode ser convertida em

pena restritiva de direitos e, tampouco, em pena privativa de liberdade em caso de

descumprimento do acordo por parte do autuado, haja vista que a sentença que homologa a

transação penal faz coisa julgada formal e material, tornando-se, portanto, imutável. Além

disso, a Lei 9.268/1996 alterou a redação do art. 51 do Código Penal, tornando inviável a

conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade. Caso o autuado descumpra o

acordo, deixando de pagar a pena de multa, esta deverá ser executada na forma dos artigos

164 a 170 da Lei de Execução Penal155

.

A pena restritiva de direitos aplicada por meio da transação penal não pode ser

convertida em pena privativa de liberdade em caso de descumprimento do acordo por parte

do autuado, haja vista que a sentença que homologa a transação penal faz coisa julgada

formal e material, tornando-se, portanto, imutável.

A proposta de transação penal pode condicionar sua homologação, por sentença, ao

integral cumprimento do acordo, de modo a possibilitar o oferecimento da denúncia ou da

queixa em caso de descumprimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

154 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 62: “Cabe

exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus

impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais.”. Disponível em: <http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013. 155 BRASIL. Lei 7.210/1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso

em: 07 out. 2013.

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PIERO CALAMANDREI E LA TUTELA CAUTELARE1

Remo Caponi

Professore Ordinario dell’Università di Firenze, Italia.

Sommario: 1. Un classico. – 2. Un colpo d’ala prodigioso. – 3. Il pericolo da tardività. – 4. Il

pensiero di Calamandrei in Europa. – Il pensiero di Calamandrei e la dimensione collettiva, sociale

della giustizia civile. – 6. La tutela cautelare dinanzi alla Corte costituzionale. – 7. Piero

Calamandrei e Alessandro Pekelis.

1. – Ho tra le mani un’edizione originale della Introduzione allo studio

sistematico dei provvedimenti cautelari di Piero Calamandrei2. I l libro mi

aveva affascinato mentre studiavo per la tesi di laurea. Nel 1986 decisi di

invest ire la prima rata della borsa di dottorato in acquisti di libri. In cima alla lista dei

desideri c’era la raccolta delle Opere giuridiche di Piero Calamandrei, curata dal

1965 al 1984 da Mauro Cappelletti presso l’editore Morano di Napoli. La

trovai. Ma ebbi anche la fortuna di trovare, presso la libreria ant iquaria

Gozzini di Firenze, una copia del libro del 1936.

Normalmente ci vogliono anni affinché un’opera giuridica possa essere qualificata

come classica, potendosi apprezzare la sua capacità di influenzare gli studi successivi e

di segnare così un punto di svolta nella trattazione di un tema solo in un lungo

arco temporale. Poche opere nascono classiche, sono classiche nel mo mento

stesso in cui escono dalla tipografia, perché quella svolta si percepisce d’un colpo, con

un solo rapido confronto tra il loro contenuto e la letteratura anteriore. L’

Introduzione rientra tra queste. Quando Piero Calamandrei la scrive è al colmo

della carriera. Appena l’anno prima aveva pubblicato Elogio dei giudici scritto

1 Artigo publicado originalmente na Rivista di Diritto Processuale. Pádua: CEDAM. ano LXVII (Seconda

Serie), N. 5, Setembro-outubro 2012, pp. 1250-1257. 2 P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari , Pado-va 1936.

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da un avvocato3: un’altra opera dest inata a dargli larga fama, con il trascorrere

del tempo e delle traduzioni in lingue straniere. Soprattutto, sedici anni prima egli aveva

pubblicato La cassazione civile . Quest’opera monumentale, che rimane una delle migliori

della letteratura italiana di diritto processuale civile, gli aveva procurato vasta notorietà e

notevoli apprezzamenti anche in Germania4.

2. – Nella Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari vi è

innanzitutto una lezione di metodo. Come scrive Calamandrei nell’avvertenza

iniziale, il volume cont iene la parte introduttiva «di un corso sui

provvediment i cautelari, tenuto (...) agli studenti del secondo biennio» della Facoltà

giuridica fiorentina5. Già in questa concretizzazione del modello humboldtiano di

Università, c he co n iu ga a l l i ve l lo p iù alto la ricerca e l’insegnamento, si può

cogliere oggi qualcosa di raro.

Vi è anche una lezione di sintesi. Compresi gli indici, 162 pagine. Capacità di

cogliere l’essenziale senza dilungarsi in de ttagli inut ili.Un’altra qualità che

oggi scarseggia.

I l co nt r ibu t o d i P ie r o Ca la ma ndr e i no n v ie ne a l la lu ce ne l l ’o r a

zer o de l la r i f l e s s i o n e s u l l a t u t e l a c a u t e l a r e . V i e r a s t a t o i l

s a g g i o d i A g o s t i n o D i a n a d e l 190 96. V i e r a no s t a t e , impo r t a nt i, l e

pag ine c he C h io ve nd a a ve va d ed ic a t o a l t e ma , p r ima ne i Pri nc ip i d i

3 P. Calamandrei, Elogio dei giudici scritto da un avvocato , Firenze 1935. 4 C f r . E . S c h wi n g e , Grundlagen des Revisionsrechts. Rechtsdogmatisch rechtsvergleichend

rechtspolitisch, Bonn 1935. 5 Piero Calamandrei ricorderà poi che «nel decennio tra il 1924 e il 1934, la Facoltà giuridica fiorentina,

valendosi di quella certa elasticità di ordinamenti didattici che era allora consen tita alle Unniversità dalla

riforma Gentile, aveva distinto il quadriennio degli studi di giurisprudenza in due bienni,

r ispettivamente dedicati il primo all’insegnamento generale di tutte le materie fondamentali,

impartito in forma di corsi istituzionali a carattere informativo; il secondo all’insegnamento approfondito di

singoli capitoli delle stesse materie, o di discipline speciali in esse comprese, impartito in forma di corsi

monografici integrati da esercitazioni, a carattere prevalentemente formativo [.. .]. Da uno di questi

corsi monografici, creati giorno per giorno nella scuola attra verso le discussioni coi migliori

studenti, è derivato, ad esempio, il mio volume sulla Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari»: così, P. Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile secondo il nuovo codice,

avvertenza alla prima edizione, Padova 1941. 6 A . D i a n a , Le misure conservative interinali, in Studi Senesi, Torino 1909, 210 ss.

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d i r i t t o pro ce s sua l e c i v i l e7 e p o i n e l l e Istituzioni d i d i r i t t o

pro ce ss ua l e c i v i l e8, co l leg a ndo le mis u r e c au t e la r i a l p r inc ip io c he «il

processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto

que l lo e p r o pr io qu e l lo c h ’e g l i ha d ir i t t o d i co nseg u ir e » e g iu nge ndo

ad a mmet t e r e « l’ a z io ne a s s ic u r a t iva » co me f igu r a ge ner a le , p u r in u n

s is t e ma c he no n co nosceva una disposizione di contenuto analogo all’attuale

art. 700 c.p.c. Con ciò i l pe ns ie r o d i C h io ve nd a r ive la va – s e co s ì si può

dire – il suo principale «difetto», cioè che «la dinamicità del suo sistema

richiedeva da parte degli operatori pratici e teorici una capacità di comprensione forse

inesigibile nei primi decenni d e l s e c o l o »9.

L’«assillo della legalità»10

, che è implicitamente un elogio borghese della legge,

impedirà a Calamandrei di seguire Chiovenda nelle costruzioni più ardite di

quest’ult imo, come appunto l’azione assicurat iva generale come ist ituto di

diritto vigente (nonché, fuori dal campo della tutela cautelare, l’azione

«nascente da contratto preliminare»). Certo è però che il libro del giurista fiorentino si

solleva con un colpo d’ala prodigioso dalle costrizioni di un’analisi incentrata sulle singole

misure cautelari, per attingere ad una visione di teoria generale che, come tutte

le concezioni autentiche e meditate di questa natura, è insieme sistemazione del presente,

individuazione degli sviluppi futuri, nonché inizio di concret izzazione di

queste linee di tendenza. Basta leggere le ult ime due pagine del libro, che

costituiscono una specie di programma legislat ivo, poi effett ivamente

realizzato nei suoi aspetti essenziali, come l’introduzione di un «potere cautelare

generale», nonché di un «t ipo uniforme di procedimento sommario cautelare»11

.

3. – I l respiro sistemat ico del pensiero di Calamandrei orienta anche al

giornod’oggi, nell’interpretazione della maggiore novità legislativa degli ultimi venti anni

in materia di tutela cautelare: quella introdotta dalla l. n. 80/2005 che, raccogliendo

7 G. Chiovenda, Principi di diritto processuale civile, ristampa anastatica della terza edi-zione, con

prefazione di V. Andrioli, Napoli 1980. 8 G. Chiovenda, Istituzioni di diritto processuale civile, Napoli 1933. 9 C os ì , A. Proto Pisani, Chiovenda e la tutela cautelare , in Riv. dir proc.1988, 16 ss., spec. 34. 10 C os ì , P. Grossi, Stile fiorentino, Milano 1986, 142 ss., spec. 150. 11 Cfr . P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 147.

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proposte da tempo avanzate in dottrina ed anticipate nel processo societario, ha reciso il

nesso strutturale tra provvedimento cautelare e causa di merito in relazione al

rilascio di uno dei provvediment i cautelari elencat i dall’art. 669-octies, comma

6º, c.p.c. (in breve: provvedimenti cautelari «anticipatori»), lasciando intatto questo nesso

in relazione al rilascio di misure cautelari di contenuto puramente

«conservativo».

Aiuta infatti a risolvere il problema di dist inguere tra di loro le due

categorie di misure una rilettura, filtrata attraverso uno sguardo all’esperienza

europea, delle pagine di Piero Calamandrei, che hanno contribuito in modo determinante

in Italia alla elaborazione della distinzione tra provvedimenti cautelari conservativi ed

anticipatori12

.

Infatti, quanto ai t ipi di contenuto dei provvediment i provvisori, oltre ai

provvediment i di istruzione prevent iva, l’esperienza europea ne esprime

fondamentalmente tre: i provvediment i che conservano la situazion e di fatto e

di diritto al fine di assicurare la futura esecuzione forzata; i provvediment i di

regolamentazione di una situazione provvisoria; i provvediment i che

ant icipano il contenuto del provvedimento definitivo e soddisfano immediatamente, in

modo parziale o totale, l’interesse protetto dal diritto dedotto in giudizio13

.

Calamandrei distingue provvedimenti istruttori anticipati, provvedimenti volti ad

assicurare la esecuzione forzata, provvediment i volt i ad ant icipare i

provvediment i decisori, cauzioni processuali14

. A parte le cauzioni processuali,

che sono una species dei provvediment i volt i ad assicurare l’esecuzione forzata

(della condanna al risarcimento dei danni prodotti dall’esecuzione di un

provvedimento cautelare rivelatosi infondato), ed i provvedimenti di istruzione

preventiva, fondamentale è la bipartizione tra provvedimenti conservativi (della fruttuosità pratica

12 Per un discorso piu`ampio sul punto, v. R. Caponi, La nuova disciplina dei procedi-menti

cautelari in generale (l. n. 80 del 2005) , in Foro it. 2 0 0 6 , V , c . 6 9 . 13 C f r . R . S t ü rner, Einstweiliger Rechtsschutz, General Bericht presentato al colloquiotenutosi a

Bruxelles nei giorni 26 e 27 ottobre 2001 per iniziativa dell’Associazione internazionaledi diritto processuale e del Centro interuniversitario belga di diritto processuale, ora in M. Storme(a cura di), Procedural Laws

in Europe – Towards Harmonisation, Antwerpen/Apeldoorn 2003,143 ss. 14 Cfr . P. Calamandrei , Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 31 ss.

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dell’esecuzione forzata) e provvediment i ant icipatori (di provvediment i

decisori).

Nel pensiero di Calamandrei, la categoria dei provvedimenti anticipatori riunisce in

sé i provvedimenti provvisori appartenenti al secondo ed al terzo tipo dell’attuale

esperienza europea (cioè i provvediment i di disciplina di una situazione

provvisoria ed i provvedimenti anticipatori del contenuto del provvedimento definit ivo).

Questa impostazione si spiega agevolmente se si riflette che, al tempo in cui il

giurista fiorent ino scrive il suo libro sulla tutela cautelare, i provvediment i del

terzo tipo non avevano ancora ricevuto una marcata elaborazio ne concettuale,

ma rientravano nella categoria dei provvediment i di disciplina di una

situazione provvisoria, particolarmente nel profilo che questi ultimi conoscono

nell’ordinamento tedesco attraverso il § 940 Zpo.

Scrive Calamandrei: «rientrano in questo [..] gruppo quei provvediment i

con cui si decide interinalmente, in attesa che attraverso il processo ordinario

si perfezioni la decisione definit iva, un rapporto controverso, dalla indecisione

del quale, se questa perdurasse fino all’emanazione del provvedimento definitivo,

potrebbero derivare a una delle part i irreparabili danni»15

. Fra i casi t ipici di

questa categoria egli comprende le denunzie di nuova opera e di danno temuto,

i provvediment i temporanei ed urgent i nell’interesse dei coniugi e della p role

nel processo di separazione personale, l’assegno provvisionale di aliment i, il

sequestro delle cose che un debitore offre per la sua liberazione. In questo

gruppo «il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione

ant icipata e provvisoria del merito, dest inata a durare fino a che a questo

regolamento provvisorio del rapporto controverso non si sovrapporrà il

regolamento stabilmente conseguibile attraverso il più lento processo ordinario»16

.

Calamandrei individua un tratto funzionale comune ai provvedimenti compresi in

questo gruppo, cioè il fatto che essi sono diretti a neutralizzare un pericolo di tardività

15 Così, P. Calamandrei,Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 38. 16 Così, P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, c i t . , 3 8 s .

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della sentenza definit iva17

, dist into ma pariment i meritevole di essere

neutralizzato rispetto al pericolo di infruttuosità pratica (commisurato piuttosto

all’esecuzione forzata). Così egli promuove un notevole avanzamento della teoria dei

provvedimenti cautelari nell’esperienza italiana rispetto all’esperienza tedesca, allora

ancora prigioniera di una visione della tutela cautelare come

essenzialmentestrumentale alla fruttuosità pratica dell’esecuzione forzata18

. Quel passo

in avant i consiste nel liberarsi dall’idea che il contenuto anticipatorio del

provvedimentosia un tratto eccezionale della tutela cautelare: un’acquisizione

fat icosa per la dottrina tedesca, che ad essa si dischiude solo verso la fine

degli anni sessanta del secolo XX, a cominciare dagli studi, pur diversamente

orientat i, di Fritz Baur19

e di Dieter Leipold20

.

Così il pensiero di Calamandrei consente efficacemente di soste nere la

conclusione che, a parte i sequestri, tutti gli altri provvedimenti cautelari ricadono nella

categoria dei provvediment i ant icipatori, e così nella regola della strumentalità

attenuata.

4 . – I l pe ns ie r o d i P ie r o Ca la ma nd r e i s i fa la r go a nc he in

E ur o pa in u n c aso risolto dalla Corte di Giust izia tra i più spettacolari «per i

protagonist i coinvolt i e per l’istituto messo in discussione: l’allora massimo organo

giudiziario inglese, la House of Lords, si interroga se il principio, profondamente

radicato nel diritto co-stituzionale, prima ancora che nel diritto processuale

britannico, per cui al giudicenon è consentito di indirizzare interlocutory injunctions

con finalità cautelare nei co nfr o nt i de l go ver no »21

( a r igo r e , ne i co nfr o nt i de l la

Co r o na : t h e Kin g can do no wrong), possa resistere al diritto comunitario. La

Corte statuisce che «la pie-na efficacia del diritto comunitario sarebbe ridotta se una

norma di diritto nazionale potesse impedire al giudice, chiamato a dirimere una

17 Così, P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, c i t . , 5 6 s . 18 Ricordiamo che nell’ordinamento tedesco la disciplina dei provvedimenti cautelari è tuttora contenuta

nella quinta sezione dell’ottavo libro della Zivilprozeßordnung, dedicato all’e-secuzione forzata. 19 F. Baur, Studien zum einstweiligen Rechtsschutz Tübingen 1967. 20 D. Leipold, Grundlagen des einstweiligen Rechtsschutzes im zivil-, verfassungs- und verwaltungsgerichtlichen Verfahren, München 1971. 21 N. Trocker, Il diritto processuale europeo e le «tecniche» della sua formazione: l’opera della Corte di

giustizia, in Europa e diritto privato 2010, 361 ss., spec. 388 s.

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controversia disciplinata dal dir itto comunitario, di concedere provvediment i

provvisori allo scopo di garant ire la piena efficacia della pronuncia

giurisdizionale sull’esistenza dei diritt i invocati in forza del diritto comunitario».

«In una situazione del genere, il giudice è tenuto a disapplicare la norma di diritto

nazionale che sola ost i alla concessione di provvedimenti provvisori»22

. Questa

prospettiva è dischiusa dalle conclusioni, affidate all’Avvocato Generale, Giuseppe

Tesauro, che illustrano in modo esemplare ilnesso tra effettività della tutela giurisdizionale

e misure cautelari con un richiamoalla dottrina classica italiana, al paragrafo 12

delle Istituzioni di diritto processualecivile di Giuseppe Chiovenda ed alla Introduzione di

Piero Calamandrei. Ma ancora prima l’Avvocato Generale – questo è un piccolo aneddoto

– va in «avanscoper-ta»: porta dall’Italia il volume di Piero Calamandrei e ne

affida la traduzione in in-glese di ampi tratti al servizio di traduzione e interpretariato

della Corte di Giustizia e ne fa distr ibuire la traduzione tra i giudici23

. L’«arte

magica della scrittura» di Piero Calamandrei, messa in luce da Franco

Cipriani24

(ma si tratta di una dote comune ai due) è riuscita così a proiettare il suo

pensiero in Europa.

5. – In una pagina impegnat iva Piero Calamandrei sost iene che i

provvediment i cautelari sono diretti, «più c he a d i fe nd er e i d i r it t i

so gge t t iv i, a ga r a nt i r e la efficacia e per così d ir e la serietà della funzione

giurisdizionale [...]. Le misure cautelari sono predisposte, più che nell’interesse dei

singoli, nell’interesse dell’amministrazione della giust izia, di cui garant iscono il

buon funzionamento ed anche, si potrebbe dire, il buon nome. Se la

espressione ‘polizia giudiziaria’ non avesse già nel nostro ordinamento un preciso

significato, essa potrebbe apparire singolarmente adatta per designar la tutela

cautelare»25

. La pagina non è sfuggita alla crit ica di Franco Cipriani26

. Non si

può evitare di ricordare questa pagina, se non altro per ascriverla

eventualmente ad una stagione ormai superata, quella di un esasperato

22 Cfr . C. Giust. CE 19 giugno 1990, C-213/89, Factortame. 23 Debbo il racconto di questo episodio alla cortesia del prof. Giuseppe Tesauro. 24 Cfr . F. Cipriani, Piero Calamandrei e la procedura civile 2 a ed. r iveduta e ampliata, Napoli 2009,

11. 25 P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit.,143 s. 26 F. Cipriani in nota alla ripubblicazione della recensione di V. Andrioli, Sull’«Introduzione

allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari» di Piero Calamandrei, in Foro it. 2009,V, 205.

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orientamento pubblicistico della scienza del processo. Sarebbe però l’interpretazione più

semplice.

Questo passo illustra che il pensiero di Calamandrei è sempre pronto a cogliere la

dimensione collett iva, sociale dei problemi della giust izia civile, anche nella

trattazione di ist ituti più tecnici. Sotto questo profilo, l’approccio di

Calamandrei non è affatto superato, bensì è all’avanguardia, poiché è atto a percepire

l’opportunità di conformare la disciplina del processo civile in funzione di

important i obiettivi di polit ica pubblica, ulteriori rispetto alla tutela

giurisdizionale dei diritt i individuali dedotti in giudizio. Altriment i non si

potrebbero comprendere gli sviluppi del diritto dell’Unione europea, da

quando la disciplina del processo civile è stata esplicitamente collegata alla

realizzazione del mercato interno27

, nonché, più recentemente (con il Trattato di

Amsterdam del 1997), alla creazione graduale di uno «spazio di libertà, sicurezza e

giustizia». Altrimenti non si potrebberocapire gli orientament i che, se si mette da

parte la storia della giust izia del lavoro, emergo no co n e v id e nz a

ne l l ’o r d ina me nt o it a l ia no so pr a t t u t to a pa r t ir e d a l la l. n . 80 / 2005,

inserendo le riforme della giust izia civile nei piani di azione per lo sviluppo

economico, sociale e territoriale del paese.

6 . – È superfluo accennare alle tappe del percorso di successo che

la tutela cautelare, sulla scorta dello studio di Piero Calamandrei, ha

conosciuto nell’ordinamento italiano. Conviene rico rdare piuttosto la front iera

che attende ancora diessere varcata: l’emissione di misure cautelari da parte

della Corte Costituzionale. Nell’ordinamento tedesco alcuni fra i più important i

procediment i dinanzi al Bundesverfassungsgericht hanno conosciuto una

pronuncia su un’istanza cautelare, in particolare di sospensione della legge della cui

costituzionalità si dubita. Riconoscere che l’accoglimento dell’istanza è eccezionale, come

accade nell’ordinamento tedesco, è un conto. Negare che ciò sia compatibile con il ruolo

della Corte Costituzionale nel sistema, come si tende a sostenere nell’ordinamento italiano,

27 L’impulso fondamentale verso questo storico collegamento deriva dalla giurisprudenza della Corte di

Giustizia, in particolare da C. Giust. CE 10 febbraio 1994, C -398/92, Mund & Feste.

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è un altro conto. Ciò maschera la scarsa dimestichezza con questo strumento ed è frutto di

in s u f f ic ie nt e fo r z a a r go me nt a t iva28

. Spec ia lme nt e o ve s i t r a t t i d i leg g i

c he r ichiedono notevoli invest iment i o sforzi organizzat ivi, è inevitabile che

il peso dei fatti compiuti che si verificano prima della pronuncia della Corte e non

possono essere rimossi (ovvero possono essere rimossi con molta difficoltà) entri nel

bilanciamento costituzionale e giochi in favore di argomenti per salvare la

legge della cui costituzionalità si dubita. O si accetta questa situazione inaccettabile o si

valuta seriamente l’alternativa della sospensione erga omnes in via cautelare dell’efficacia

della legge. Tertium non datur. Si pensi per esempio al giudizio di costituzionalità della

recente legge che ha introdotto il tentativo obbligatorio di mediazione per una serie

notevole di controversie (d.lgs. n. 28/2010).

7. – Prima di chiudere il testo di questo intervento, la mia attenzione è caduta sulle

ult ime righe della avvertenza iniziale della Introduzione: «[..] che questa mia

speranza non andrà delusa, sarà dimostrato in questa stessa Collezione dal volume, già annunciato,

sulla teoria dei provvedimenti cautelari, dovuto al vivace ingegno di Alessandro

Pekelis»29

. Quel libro non è stato mai scritto: di lì a d ue a nn i sa ranno

approvate in Italia le infami leggi razziali e Alessandro Pekelis, ebre o russo di

Odessa approdato in Italia all’inizio degli anni venti, sarà costretto a riparare negli Stat i

Unit i con la sua famiglia. Mi sono messo sulle tracce documentali, come

avrebbe fatto forse Franco Cipriani, alla ricerca di ulteriori contatti tra Piero

Calamandrei e Alessandro Pekelis in questo periodo travagliato. La mia ricerca è stata

premiata. In una pagina del libro di memorie di Carla Pekelis(29), moglie di Alessandro,

si racconta che sul finire del 1941 la famiglia Pekelis si trova a Lisbona, in

attesa di ottenere i visti per emigrare negli Stati Uniti. Le autorità statunitensi sono

titubanti: attendono una prova della identità politica di Alessandro Pekelis e questa prova

arriva attraverso l’aiuto di Piero Calamandrei: «quando telegrafammo a Piero Calamandrei,

professore di Legge all’Università di Firenze e amico assai stimato, chiedendogli un

ritaglio dell’art icolo» (di un giornale fascista con cui si attaccava sul piano

28 In tema, v. A. Gragnani, La cognizione cautelare nel processo costituzionale: l’esperienza del tribunale costituzionale federale tedesco, in Riv. dir. cost . 2005, 157 ss. 29 P. Calamandrei , Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit.,VIII.(29) C.

Pekelis, La mia versione dei fatti , Palermo 1996, 167 s.

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personale Alessandro Pekelis) «lo facemmo con una certa perples -sità. La

richiesta poteva procurargli dei guai? (...). Il ritaglio dell’articolo arrivà a giro di posta

(...). Dio ti benedica, Calamandrei! L’articolo servì a l lo s co po . I l 2 0

novembre, dopo una cerimonia che durò cinque ore, ci furono concessi

ufficialmente i vist i americani».

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TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL: O ANTECEDENTE DO PRECEDENTE

Renê Francisco Hellman

Mestrando em Ciência Jurídica pela UENP – Universidade

Estadual do Norte do Paraná, Especialista em Modernas

Tendências da Criminologia, do Direito Penal e do Processo

pela pelo IBE/SECAL (PR), Especialista em Educação a

Distância pela FATEB – Faculdade de Telêmaco Borba (PR),

Bacharel em Direito pela UEPG – Universidade Estadual de

Ponta Grossa (PR). Professor de Direito Processual Civil e

Coordenador Geral da FATEB – Faculdade de Telêmaco

Borba (PR). Advogado.

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a forma como vêm sendo

aplicados os precedentes no direito processual civil brasileiro, a partir da importação de

conceitos e institutos de países que adotam o sistema do common law, com a finalidade de

demonstrar o quão frágil é a aplicação de precedentes sem que se pense uma forma de bem

estruturar a decisão judicial, com a criação de uma teoria sólida, para que os julgadores

possam nela basearem-se e darem a resposta mais adequada ao jurisdicionado, aliando

devido processo legal com segurança jurídica.

PALAVRAS-CHAVE: precedentes judiciais; decisão judicial; common law; civil law.

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ABSTRACT: This study aims to examine how precedents are being applied in Brazilian

civil procedural law, as imports of concepts and institutions of countries that adopt the

common law system, with the purpose of showing how fragile is the application no

precedents to think a way to structure the ruling and, with the creation of a solid theory, so

that the judges can draw on it up and give the most appropriate response to citizen,

aligning due process of law with legal security.

KEY-WORDS: judicial precedents; court decision; common law; civil law.

INTRODUÇÃO

O direito brasileiro, como é cediço, tem natureza de civil law, o que não impede,

entretanto, que em tempos de globalização, sofra consideráveis influências do common

law, fato natural e nem sempre prejudicial. Importante destacar que, ainda que se tratem de

dois sistemas jurídicos com diferenças consideráveis, a história já observou similitudes e

convergências entre eles1, fato este que tem forte influência neste fenômeno que se observa

hodiernamente.

O direito processual civil enfrenta atualmente uma crise estrutural no que tange à

decisão judicial, que deve ser considerada e avaliada, de modo que se tenha uma discussão

aprofundada dos caminhos que se pretendem seguir e das bases teóricas das quais se está

lançando mão para justificá-los.

Um dos reflexos dessa interferência manifesta-se com grande destaque no direito

processual, a partir da utilização dos precedentes judiciais como fatores determinantes no

momento da prolação da decisão judicial.

O movimento de elaboração de um Novo Código de Processo Civil, o grande

dissenso doutrinário a respeito da sua real necessidade e a chamada “jurisprudência

defensiva” dos tribunais superiores demonstram que urge o debate a respeito das bases

formadoras da teoria da decisão judicial.

1 “Com efeito, o que a primeira vista pode parecer uma realidade completamente distante, com um olhar mais centrado no nosso próprio ordenamento jurídico, pode-se afirmar, com segurança, que há circulação de

soluções e propostas entre a família romano-germânica, da qual faz parte o direito brasileiro, e a família da

common law.” (PORTO, 2010).

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É comum que se encontrem estudos doutrinários sobre a aplicação do precedente

judicial, entretanto, pouco se fala a respeito do elo necessário entre a necessidade de uma

construção adequada da decisão judicial e a correta aplicação do precedente no direito

brasileiro.

Importar institutos de outros ordenamentos é louvável quando se tem por

finalidade o aperfeiçoamento do sistema, entretanto, há que se fazer uma reflexão a

respeito de como os juízes têm decidido e quais os efeitos da utilização dos precedentes no

direito pátrio.

Dessa problemática é que partiu o presente trabalho, com o intuito de se analisar

de que forma essas influências podem ser proveitosas ou se podem ser desastrosas na

aplicação do direito brasileiro.

Assim, utilizando-se do método dedutivo, será feita uma análise a respeito da

importação de conceitos e institutos próprios do Common Law para o sistema processual

civil brasileiro e a forma como a doutrina tem encarado esse fenômeno.

Na sequência, será abordada a necessidade de que se pense a decisão judicial à

luz de uma teoria que a justifique e a fundamente, de modo a orientar os operadores do

direito a dar respostas adequadas às questões que são levadas à apreciação do Poder

Judiciário, à luz dos princípios da motivação e do contraditório, corolários do devido

processo legal.

1. A incorporação do sistema do Common Law no direito processual civil brasileiro

O sistema processual civil brasileiro já vem experimentando há alguns anos a

incorporação de conceitos do common law no seu bojo. É recorrente que se utilizem termos

próprios do sistema anglo-saxão para designar institutos processuais que a prática

incorporou na lide processual.

Em decorrência de ser este um fenômeno ainda incipiente, a doutrina brasileira

não conseguiu estabelecer o que se tenta chamar de teoria do precedente judicial.

Importam-se conceitos utilizados no common law e nem sempre de forma adequada. Na

mesma senda, os tribunais sofrem do que se pode denominar de uma crise de identidade,

uma vez que ora seguem os “precedentes”, ora agem a partir das chamadas “viradas

jurisprudenciais”, criando um clima de extrema insegurança ao jurisdicionado.

Essa insegurança é reforçada, ainda, pela precariedade do entendimento de grande

parte dos aplicadores do direito a respeito do chamado pós-positivismo, que trouxe o ganho

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de normatização dos princípios, alçados ao patamar de normas jurídicas, mas que, pela sua

própria natureza de maior abstração, acabam sendo tomados, em muitos dos casos, como

formas de solução universais, sobrepondo-se a regras indistintamente, num desmesurado

intento interpretativo, que acaba gerando efeitos negativos na própria formação da decisão

judicial.

E uma decisão judicial adequadamente construída é de extrema relevância para

que se possa, a partir dela, conhecer o que a doutrina denomina de ratio decidendi, que

seria uma abstração daquele comando, de regra, individual, contido na decisão proferida

em um determinado processo.

Não se pode olvidar também o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, que

trouxe o instituto da súmula vinculante, numa declarada aplicação de um comando judicial

com força vinculativa em relação às funções jurisdicionais e administrativas do Estado

brasileiro.

O advento da súmula vinculante, apesar de não ser este um instituto criado no

Common Law, indica de forma muito clara que se está a buscar soluções para a crise de

gestão do Poder Judiciário a partir da mudança de normas processuais, para que haja a

institucionalização de um sistema de precedentes.

Na análise do sistema norte-americano, Sergio Gilberto Porto (2010) indica que lá

se tem a “idéia de encorajar os juízes a serem mais cuidadosos e diligentes na formação das

decisões precursoras”, além de se pretender induzir os julgadores a se afastarem de seus

pré-conceitos, tornando os julgamentos mais impessoais, o que contribuiria, por fim, “para

demover os litigantes de retornar ao Judiciário na ilusão de obter uma resposta diferente

para o seu caso”.

Já o mesmo não se pode dizer do Brasil, uma vez que por ser o precedente um

instituto típico do common law, ainda não existem ferramentas devidamente formuladas

para a realização do intento de segurança jurídica a partir das decisões judiciais.

Já desde a formação básica em processo civil é comum que se encontrem

ensinamentos e referências doutrinárias a institutos novos, importados. É o que se vê, por

exemplo, na obra intitulada “Curso de Direito Processual Civil”, encabeçada pelo

festejado processualista Fredie Didier Junior (2009), quando, em seu volume 2, faz

referência ao que denomina de “Teoria do Precedente Judicial”.

Nesta obra, o precedente é apresentado como um dado do sistema brasileiro,

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fazendo-se um estudo, no estilo do que permite a fórmula de elaboração de manuais para o

público de graduandos em direito, a respeito dos conceitos de ratio decidendi, holding,

obter dictum, distinguishing, overriding, overruling etc.

Essa valorosa tentativa de sistematização da teoria do precedente no direito

brasileiro, com a adoção de institutos próprios do common law é sintomática da busca que

se faz de saídas para os problemas que afligem os operadores do direito no momento da

sua aplicação no processo, notadamente no que toca à efetividade e segurança jurídica.

Sergio Gilberto Porto (2010) sinaliza a ocorrência do que denomina de

commonlawlização do direito brasileiro, identificando uma clara tendência de valorização

da jurisprudência criativa como fonte de direito, a partir da atribuição de efeitos

vinculantes ou erga omnes a determinadas decisões jurisdicionais. Para ele:

Cumpre lembrar, - em face da afirmativa de que o crescente valor

atribuído à jurisprudência na civil law brasileira representa, de

certa forma, a influência da common law no sistema nacional, em

face da globalização – e que a fonte primeira do direito da

common law é a jurisprudência, eis que este sistema é

absolutamente pragmático, formando-se o direito através das

decisões jurisdicionais. Há nele, pois, um compromisso prévio de

prestigiamento do caso antecedente da decisão futura –

circunstância operada através do distinguishing efetivado pelo

magistrado posterior. São cotejados os grupos de casos

semelhantes para ao fim decidir qual precedente mais se afeiçoa ao

caso concreto. Assim, nos países em que vige o sistema da

common law, acima da legislação e acima de qualquer outra fonte

do direito está o caso julgado pelas cortes e que, portanto, criam

precedentes e, por decorrência, verdadeiramente, fazem nascer o

direito com base na experiência. Nesse sentido, as decisões

jurisdicionais em tais países, como se vê, desempenham um papel

que transcende o caso posto ao crivo judicial (PORTO, 2010, p.

7).

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E não se pode deixar de acreditar que esse movimento é absolutamente natural,

conquanto se viva numa sociedade globalizada, em que a transmissão de informações e de

conhecimentos é feita de modo muito mais facilitado.

Se as próprias culturas, se as sociedades acabam interligando-se e trocando

“experiências”, nada mais aceitável do que também o direito observe essa inter-relação.

Com isso, tem-se a influência clara do sistema common law no direito brasileiro,

até mesmo por conta do fato de que o civil law nem sempre soube dar as respostas corretas

para os problemas experimentados no ordenamento jurídico brasileiro. E esse fenômeno,

embora tenha adquirido uma visibilidade maior nos tempos atuais, remonta à época das

origens desses dois grandes sistemas jurídicos, que sofreram influências recíprocas desde

sempre, nos termos das lições de Mauro Cappelletti (apud PORTO, 2010).

A evolução histórica dos dois principais sistemas jurídicos do planeta desagua

atualmente numa cautelosa, mas acentuada, aproximação, do que decorre o ganho de

importância do direito legislado para o common law e dos precedentes para o civil law,

conforme leciona Miguel Reale, para quem:

Se alardearmos as vantagens da certeza legal, podem os adeptos do

common law invocar a maior fidelidade dos usos e costumes às

aspirações imediatas do povo. Na realidade, são expressões

culturais diversas que, nos últimos anos, têm sido objeto de

influências recíprocas, pois enquanto as normas legais ganham

cada vez mais importância no regime do common law, por sua vez,

os precedentes judiciais desempenham papel sempre mais

relevante no direito de tradição romanística (REALE, 1995, p.

142).

No sistema brasileiro, o legislador deixou de ser o protagonista da ordem

jurídica, “sendo substituído por um trabalho conjunto entre legisladores, administradores e

julgadores” (ROSSI, 2012, p. 209).

Fernando de Brito Alves (2012, p. 270) sinaliza a existência, no mundo moderno,

de uma função de concordância prática, pela jurisprudência, de valores e princípios que

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podem ser contraditórios teoricamente, mas que são desejáveis do ponto de vista prático.

Com isso, “os juízes ocupam, no Estado constitucional contemporâneo, uma especial e

difícil posição de intermediação entre o Estado e a sociedade”.

O trabalho em conjunto entre julgadores, administradores e legisladores pode ser

identificado na prática argumentativa que caracteriza o direito, levando o intérprete a uma

posição de destaque no cenário jurídico, já que é ele quem atribui sentido à norma

(DWORKIN, 2007), num claro abandono do paradigma positivista.

Essa mudança paradigmática é a pedra de toque do pós-positivismo, fenômeno

filosófico com claras influências no direito, a partir da incorporação de valores pelo

ordenamento.

Com isso, viu-se nascer o que se denominou de neoconstitucionalismo, a fim de

que a Constituição, que já era considerada o centro do ordenamento jurídico, passasse a,

também, ter os seus comandos efetivados.

Daí a importância do intérprete, na medida em que todas as decisões fossem

legitimadas na passagem pelo filtro constitucional. Vale dizer, o aplicador do direito,

mesmo diante de uma regra dita clara, deve buscar também embasamento na norma

constitucional (MAUÉS, FONSECA, RÊGO, 2006), de modo que todo juiz exerça uma

parcela da jurisdição constitucional (FACCINI NETO, 2011), atendendo ao que Dworkin

denominou de princípio da integridade, a saber:

Temos de insistir num verdadeiro princípio de poder, uma ideia

contida no próprio conceito de direito: a ideia de que, quaisquer

que sejam as suas convicções acerca da justiça e da

imparcialidade, os juízes têm também de aceitar um princípio

superior e independente – o princípio da integridade (DWORKIN,

2006, p.133).

Faccini Neto (2011), nessa esteira, entende ser o juiz “um romancista em cadeia”,

que deve considerar a construção dos juízes no passado, para desvendar o que foi decidido

e, a partir disso, concluir na solução do novo caso que se lhe pôs para exame,

desenvolvendo este “romance”, respeitando o já construído, sem que lhe seja autorizada

uma ruptura com o encadeamento da obra.

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A adoção de um sistema de precedentes é de suma importância para que se

confira ao ordenamento jurídico a segurança e a efetividade necessárias. Hans Kelsen

(2000, p. 389) já sinalizava a necessária função legislativa do Judiciário, a partir da

criação de um precedente que poderia servir de base para decisões de casos similares,

ocasião em que o tribunal, a partir desta decisão, criaria “uma norma geral que se encontra

no mesmo nível dos estatutos criados pelo chamado órgão legislativo”.

Entretanto, o que se vê na práxis forense não se coaduna com as intenções

teóricas acima referidas. A problemática da “commonlawlização” reside no fato de que,

muito embora os precedentes sejam, teoricamente, instrumentos de garantia de segurança

jurídica e até mesmo de efetividade, no Brasil ainda enfrenta-se um problema antecedente

a ele, que é relativo à construção da decisão judicial.

Não há uma teoria sólida nesse sentido e a situação agrava-se ainda mais quando

se está diante da era pós-positivista, com o império dos conceitos abertos e da

interpretação, aliado ao ativismo e ao protagonismo judiciais.

2. A necessidade de uma construção adequada da decisão judicial para a correta

aplicação do precedente

O que se vê na prática forense é a má construção do diálogo processual e,

consequentemente, da decisão judicial, decorrente da utilização de saídas pouco

defensáveis, tais como chamar decisão judicial de jurisprudência dominante e posição

isolada de doutrina pacificada, numa frágil tentativa de convencer as partes a respeito do

entendimento a que chegou o juiz, em muitos casos, antes mesmo de analisar o caso

concreto.

Daniel Mitidiero alerta para o impacto do que denomina de tripla mudança no

campo da fundamentação das decisões judiciais. Segundo ele:

A passagem do Estado Legislativo para o Estado Constitucional

impõe fundamentação analítica para aplicação de princípios e

regras mediante postulados normativos e para a concretização de

termos indeterminados, com eventual construção de consequências

jurídicas a serem imputadas aos destinatários das normas.

(MITIDIERO, 2012, p. 67)

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Isso significa a atribuição de uma função diferenciada ao julgador, que atuará na

reconstrução do sentido normativo das proposições jurídicas. Vale dizer: as normas

decorrem de uma outorga de sentido dos textos, que, por seu turno, são dados pelo

legislador (GRAU, 2005).

Tal situação gera uma abertura para o julgador, que poderá considerar-se livre

para atribuir o sentido que bem lhe aprouver para o texto, gerando, por conseguinte,

insegurança jurídica. É o que se vem observando no Brasil atualmente. A proliferação de

princípios jurídicos acaba conferindo ao julgador a oportunidade de manejá-los muito

livremente. A chamada colisão entre princípios – num ordenamento em que os princípios

se acotovelam – ocorre seguidamente e as saídas para isso nem sempre resistem a uma

apurada análise.

O tema que se quer desenvolver baseia-se na doutrina que defende a necessidade

de se pensar a construção de uma sólida teoria da decisão judicial e demonstra a fraqueza

do sistema de precedentes utilizado no Brasil.

É na obra de Streck, notadamente, que se encontra a base para a presente

pesquisa. Ele já vem denunciando a equivocada importação da teoria da interpretação

proposta por Robert Alexy, afirmando que os pensadores tupiniquins transformaram a

“razoabilidade” em princípio jurídico, utilizando-a como “um instrumento para o exercício

da mais ampla discricionariedade (para dizer o menos) e o livre cometimento de

ativismos”. Segundo o professor gaúcho, o uso da ponderação, em Alexy, não significa

uma operação em que se escolhe um dos princípios que estejam em colisão e, sim, “um

procedimento que serve para resolver uma colisão em abstrato de princípios

constitucionais”, do que resultaria uma regra que resolveria o conflito (STRECK, 2013).

A motivação da decisão judicial é princípio de natureza constitucional (art. 93,

IX/CF), revelando-se um “banco de prova do direito ao contraditório” (MOREIRA, 1988,

p. 83) atribuído às partes. Conclui-se, com isso, que a ausência de motivação retira da

decisão o seu caráter jurisdicional (MARINONI, 2006). Importante destacar, entretanto,

que quando se fala em existência de motivação, até mesmo pela sua vinculação ao

princípio do contraditório, quer-se dizer que há a exigência de que a fundamentação da

decisão seja construída de forma sólida e não a partir de artifícios.

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Ou seja, para que uma decisão seja considerada jurisdicional, deve estar

devidamente motivada, construída sobre bases firmes de argumentação, o que permitirá,

então, a extração do precedente judicial. Sem isso, gera-se um círculo vicioso. Os

“precedentes” são gerados a partir de decisões judiciais mal construídas, que, por seu

turno, adotam os “precedentes” como parâmetros para novos julgamentos.

Daniel Mitidiero (2012) sugere que a adoção de um sistema de precedentes no

ordenamento jurídico brasileiro deva ser pensada criticamente a partir da tradição do

common law. Para ele, muito embora haja correspondência entre as razões para seguir os

precedentes no civil law e no common law, é na tradição deste último “que se deve buscar

os meios pelos quais os precedentes podem ser corretamente identificados e aplicados em

juízo”.

Justificando esse posicionamento, o referido processualista indica obras de autores

brasileiros, em sua maioria processualistas, que bebem na fonte do sistema do common law

e tentam abrasileirar a aplicação dos precedentes judiciais.

Não obstante isso e até mesmo por conta disso, há outros autores brasileiros,

ligados mais diretamente à teoria do direito, que analisam de forma crítica a adoção dos

precedentes, sejam eles vinculantes ou não, ou entendidos como fontes do direito,

defendendo uma análise mais aprofundada da teoria da decisão judicial, com caráter

antecedente à aplicação de um sistema de precedentes no direito processual brasileiro.

Os defensores da utilização do sistema do precedente judicial no Brasil ancoram-

se na necessidade de que haja segurança jurídica a partir das decisões judiciais, o que

contribuiria para a solução da crise por que vem passando o Poder Judiciário, a partir do

aumento considerável da litigiosidade.

Referenciando Ronald Dworkin, Alexandre Bahia (2012) critica essa visão,

mencionando a série de reformas pelas quais vem passando o processo civil brasileiro, que,

a despeito delas, e do que chama de aperfeiçoamento do sistema de Súmulas, “a crise do

Judiciário não foi resolvida, pois que nosso problema não é de texto – como poderia

parecer a uma comunidade de regras”.

Júlio César Rossi (2012) ressalta certo descuido que se vem observando na mescla

das características dos sistemas do civil law e do common law. Para ele, não se “pode

desprezar a produção judicial do direito”, entretanto, há que se “evocar o precedente” e

“motivar a sua aplicabilidade”. Do contrário, estar-se-ia legitimando discricionariedades,

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capazes de conferir ao precedente “qualidade de fundamentar, por si só, uma decisão

judicial, na maioria das vezes descontextualizada dos efetivos elementos constantes no

caso concreto”.

E é isso que se vê em muitos casos na práxis forense. Decisões que vêm sendo

motivadas a partir da menção a outras decisões e mais nada, como se o caso em exame não

comportasse qualquer análise diferenciada.

É evidente que há lides repetitivas, entretanto, toda situação fática requer uma

análise individualizada e é isso que justifica a existência do Poder Judiciário, pois, a

seguir-se por esse caminho, fatalmente chegar-se-á a um momento em que o padrão

estabelecido em decisões anteriores subjugará o julgador, tornando-o um repetidor, que

aderiu ao que Alexandre Morais da Rosa (2011) denominou de Franchising Judicial.

Atualmente, o sistema processual brasileiro atravessa uma fase de profundas

indagações. Vive-se a consequência da abertura democrática, da ampliação dos direitos e

da tentativa de efetivação de acesso à justiça.

Nesse mundo pós-moderno em que as informações são disponíveis a grande parte

da população em tempo real e onde as relações entre as pessoas são firmadas em grande

número e pelas mais variadas razões, é natural que surjam conflitos diferentes, conflitos

semelhantes e conflitos idênticos e, dada a falência da autorregulação da sociedade e o

desrespeito em massa dos direitos, fatalmente tais conflitos serão levados ao Poder

Judiciário.

Com isso, o Poder Judiciário vem enfrentando uma séria crise de administração, o

que acaba afetando, logicamente, o estudo sobre o processo.

Muitas tentativas já foram feitas, algumas com sucesso, outras não, para reverter

esse quadro de crise que assola o poder jurisdicional. Mudanças legislativas pontuais e até

mesmo a elaboração de um projeto de novo Código de Processo Civil já foram

empreendidas. Além disso, a doutrina brasileira debruça-se rotineiramente sobre teses para

encontrar soluções aptas a tornar a prestação jurisdicional mais célere, efetiva e justa.

E numa dessas tentativas, tem-se a iniciativa de aplicação, no direito brasileiro, do

sistema de precedentes judiciais. Entretanto, observa-se que, apesar dos grandes esforços

empreendidos pela doutrina, a prática forense demonstra a fragilidade do sistema, que é

carente de uma fundamentação adequada. Fala-se em fundamentação aqui no sentido de

base teórica justificante.

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Há que se pensar na importação de conceitos e institutos a partir de um

fortalecimento prático do princípio do contraditório, corolário do princípio da

fundamentação.

O contraditório atualmente não é mais pensado sob aquele ponto de vista

mecanicista de possibilitar que as partes formulem suas teses e antíteses. Contraditório

atualmente é significado de informação e possibilidade de manifestação, cuja consequência

é a formação da decisão judicial.

Devem ser abandonadas essas terríveis práticas antidemocráticas de decisão

“conforme a consciência” do julgador, de baixa fundamentação em decisões que não

analisam todos os pontos levantados pelas partes no decorrer do processo.

É comum que se vejam decisões judiciais “fundamentadas” em ementas de

julgados colhidas aleatoriamente nas ferramentas de pesquisa que a internet possibilita sem

que sequer se tenha feito uma análise deste “precedente”, a fim de verificar se, de fato,

aquela decisão anterior poderia influenciar no julgamento deste novo caso.

Aprisiona-se a justiça em ementas que nada mais são do que uma reunião de

palavras para resumir um determinado julgamento. O contraditório é espezinhado

recorrentemente, pois no momento do julgamento olvidam-se as considerações formuladas

pelas partes e autoriza-se o magistrado a analisar apenas as questões que ele entender

pertinentes para a solução da lide.

E, infelizmente, esse posicionamento, ao que parece, é o majoritário, até mesmo

nos tribunais superiores, que entendem no sentido de que o juiz não está obrigado a

analisar todos os argumentos levantados pelas partes, bastando que decida a questão posta

em litígio dentro de seu livre convencimento, senão veja-se:

Como é de sabença geral, o julgador não está obrigado a discorrer

sobre todos os regramentos legais ou todos os argumentos

alavancados pelas partes. As proposições poderão ou não ser

explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado

a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando o

seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado

nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice e com a legislação

que entender aplicável ao caso concreto (STJ. RECURSO

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ESPECIAL Nº 792.497 - RJ 2005/0172468-8. RELATOR:

MINISTRO FRANCISCO FALCÃO).

Não ocorre violação do art. 535, do CPC, quando o acórdão

recorrido não denota qualquer omissão, contradição ou obscuridade

no referente à tutela prestada, uma vez que o julgador não se obriga

a examinar todas e quaisquer argumentações trazidas pelos

litigantes a juízo, senão aquelas necessárias e suficientes ao

deslinde da controvérsia (STJ. REsp nº 394.768/DF, Relator

Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 01/07/2002, pág. 00247).

O magistrado não está obrigado a refutar, um a um, os argumentos

deduzidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham

sido suficientes para embasar a decisão (STF - EMB.DECL. NO

AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM

AGRAVO: ARE 689418 RS. Rel. Min. Luiz Fux).

Ora, fazer menção ao livre convencimento como saída de justificação para

decisões que deixam de analisar todos os pontos levantados pelas partes é uma conduta,

deveras, discutível. O sistema processual civil brasileiro não adotou em nenhum momento

o princípio do livre convencimento do juiz. O que se tem aqui é a adoção do princípio do

livre convencimento motivado, da persuasão racional.

Deve-se destacar que o livre convencimento, por si só, atribui ao juiz extremos

poderes e joga por terra todo o edifício normativo construído sobre o princípio do devido

processo legal. A exigência de motivação que adjetiva o livre convencimento é justamente

para garantia da democracia nas decisões do Poder Judiciário.

Não se pode cogitar da hipótese de que, em um Estado Democrático de Direito, o

Judiciário possa decidir como bem quiser, sem a necessidade de fundamentação. Embora a

legislação não estabeleça gradações legais sobre o peso deste ou daquele argumento, isso

não significa que o juiz é livre para decidir como quiser.

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Há necessidade de apreciação de todos os pontos levantados pelas partes e essa

necessidade decorre não só do princípio constitucional da motivação das decisões judiciais,

mas também do próprio contraditório, norma de caráter principiológico, também

considerado um direito fundamental.

Por essa nova visão que se tem do contraditório, é forçoso que se conclua que o

juiz está, sim, obrigado a responder a todos os argumentos levantados pelas partes e não

apenas àqueles que entenda suficientes para justificar sua decisão.

A decisão do juiz não se dirige a ele, mas, sim, às partes. Então, se as partes

levantaram a questão, é do juiz o dever de respondê-la, pois, muito embora o

convencimento seja livre de gradações legais, a justificação é necessária, imperativa e

garantia de democracia.

Ao fundamentar adequadamente a sua decisão, o juiz revela às partes todos os

motivos pelos quais entendeu desta ou daquela maneira e há que se lutar por essa

motivação completa, pois as partes têm o direito de saber as razões pelas quais os seus

argumentos não foram acatados pelo julgador, ainda que este os tenha reputado

desprovidos de fundamento.

Ignorar argumentos não é democrático, pois se o julgador os considera

impertinentes, que diga a razão de entender dessa forma, já que a própria função

jurisdicional é justificada na necessidade de se responder ao jurisdicionado, na tentativa de

convencê-lo do acerto da decisão judicial, a fim de que se torne realidade a finalidade do

processo: de pacificação social.

Não se pacifica sem que o sucumbente esteja convencido de que não possui razão.

E não há convencimento se o juiz deixa de apreciar as questões levantadas pelas partes.

Frise-se, está-se tratando do convencimento das partes e não do juiz. Este é pressuposto

daquele, é um meio. Aquele é o fim a ser perseguido e como tal deve ser encarado.

3. Considerações Finais

O sistema de precedentes que se pretende implantar a partir das experiências

vivenciadas no sistema do common law encontra a barreira da falta de uma sólida teoria da

decisão judicial no Brasil. O fato é que as decisões judiciais vêm sendo construídas de

forma deficiente, sem atenção ao básico e constitucional princípio da motivação.

E a decisão judicial bem construída é a base sobre a qual poderá se apoiar a

aplicação do precedente. Sem ela, ou sendo ela deficiente, o precedente ruirá, pois, de

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consequência, não será bem construído e apresentará fragilidades que somente contribuirão

para o aumento da insegurança jurídica, ocorrendo o inverso daquilo que se pretende com

ele.

Dessa maneira, impende que se discuta o precedente judicial à luz de uma sólida

teoria da decisão, como antecedente necessário, de modo a que se investigue a formação da

decisão judicial e os seus efeitos na construção do sistema de precedentes, abolindo-se as

indefensáveis práticas de julgamento por decisões standards, que encaram os litígios como

problemas a serem classificados neste ou naquele entendimento jurisprudencial, sem que se

faça uma análise apurada do caso concreto.

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