CE 002 526 Exploring Careers in Business and Office: A Guide for ...
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Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Volume XII.
Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636
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SUMÁRIO:
O PEDIDO DE SUSPENSÃO DE DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS À FAZENDA
PÚBLICA: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO E SUA
NECESSIDADE EM FACE DO ORDENAMENTO BRASILEIRO ATUAL
Alex Feitosa de Oliveira .............................................................................................................5
AS AÇÕES COLETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: DE ONDE
VIEMOS, ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS?
Andre Vasconcelos Roque ....................................................................................................... 36
O PROCESSO COLETIVO E O ACESSO À JUSTIÇA SOB O PARADIGMA DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Antônio Gomes de Vasconcelos
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau
Alana Lúcio de Oliveira ........................................................................................................... 66
O EFEITO DEVOLUTIVO E OUTROS EFEITOS
Clarissa Diniz Guedes .............................................................................................................. 83
A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O APARENTE CONFLITO DE LEIS
Felipe Sartório de Melo
Nevitton Vieira Souza ............................................................................................................ 114
RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA: O PODER JUDICIÁRIO E A SOCIEDADE
COMO PROTAGONISTAS DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
Fernanda Estevão Picorelli ..................................................................................................... 135
NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A LITISPENDÊNCIA INTERNACIONAL
Flávia Pereira Hill .................................................................................................................. 163
CONSIDERAÇÕES SOBRE QUESTÕES DE DIREITO PROBATÓRIO (EM MATÉRIA
PENAL)
Flávio Mirza .......................................................................................................................... 193
“DECRETO DEL FARE” E MEDIAZIONE; AVVOCATI MEDIATORI OPE LEGIS
Giovanni Matteucci ................................................................................................................ 208
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O CABIMENTO DAS CHAMADAS DEFESAS HETEROTÓPICAS DO EXECUTADO
Gustavo José Mizrahi ............................................................................................................. 217
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
Gustavo Neroni Fernandes ..................................................................................................... 242
A EVOLUÇÃO DAS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS FASES
METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA COMPREENSÃO DA
TUTELA COLETIVA
Henrique Camacho
Yvete Flávio da Costa ............................................................................................................ 264
A COOPERAÇÃO E A PRINCIPIOLOGIA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. UMA
PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Tatiana Machado Alves .......................................................................................................... 289
A GARANTIA FUNDAMENTAL DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
Humberto Santarosa de Oliveira ............................................................................................. 316
A EXTENSÃO DA COISA JULGADA NO NOVO CPC E A EXTINÇÃO DA AÇÃO
DECLARATÓRIA INCIDENTAL: UMA MEDIDA DE SEGURANÇA JURÍDICA
Laís Fernandes Almeida ......................................................................................................... 339
EXECUÇÃO CIVIL – ENTRAVES E PROPOSTAS
Leonardo Greco ..................................................................................................................... 399
L’ARBITRAGE ET L’EVOLUTION CONTEMPORAINE DES MODES DE REGLEMENT
DES CONFLITS
Loïc Cadiet ............................................................................................................................ 446
LAICIDADE OU DITADURA DO AGNOSTICISMO?
Luiz Marcelo Cabral Tavares ................................................................................................. 463
AÇÃO RESCISÓRIA COM BASE EM ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO
JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Marcelo Muratori ................................................................................................................... 497
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MAIS DO MESMO: OS VÍCIOS DE REPRESENTAÇÃO RECURSAIS, A
IMPOSSIBILIDADE DE SANEAMENTO POSTERIOR NAS INSTÂNCIAS
EXCEPCIONAIS E A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA
Márcio Carvalho Faria ........................................................................................................... 526
A EFETIVIDADE DO PROCESSO E A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA
Marco Antonio dos Santos Rodrigues ..................................................................................... 545
DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS NO PROJETO DO NOVO CPC
Marco Aurélio Scampini Siqueira Rangel
Pedro Henrique da Silva Menezes .......................................................................................... 562
O JUSTO PROCESSO ARBITRAL E O DEVER DE REVELAÇÃO (DISCLOSURE) DOS
PERITOS
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro
Leonardo Faria Schenk........................................................................................................... 581
O SISTEMA DE PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS
POSSÍVEIS REPERCUSSÕES NO DIÁLOGO DO PODER JUDICIÁRIO COM OS
DEMAIS PODERES.
Pedro Duarte Pinto ................................................................................................................. 598
TRANSAÇÃO PENAL
Pedro Gomes de Queiroz ........................................................................................................ 652
PIERO CALAMANDREI E LA TUTELA CAUTELARE
Remo Caponi ......................................................................................................................... 696
TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL: O ANTECEDENTE DO PRECEDENTE
Renê Francisco Hellman ........................................................................................................ 706
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O PEDIDO DE SUSPENSÃO DE DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS À
FAZENDA PÚBLICA: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO
E SUA NECESSIDADE EM FACE DO ORDENAMENTO BRASILEIRO ATUAL
Alex Feitosa de Oliveira
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Defensor Público Federal.
RESUMO: O trabalho objetiva realizar uma análise da atual situação do pedido de
suspensão da decisão judicial em face do ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto,
pretende-se realizar um estudo com enfoque constitucional do instituto, em especial com o
estudo da constitucionalidade do pedido face às disposições da Carta Magna. Ainda, se
deseja verificar a atual utilidade de tal instrumento processual, indagando se com outros
instrumentos processuais postos à disposição da Fazenda Pública, seria possível a obtenção
dos mesmos efeitos do pedido de suspensão. Também se verifica se o uso do instrumento
está sendo realizado de forma apropriada pelos entes públicos.
PALAVRAS-CHAVE: Suspensão. Decisão. Constitucionalidade. Utilidade.
ABSTRACT: The work aims to conduct an analysis of the current request for suspension
of judicial decision in the Brazilian law. Therefore, we intend to conduct a study of
constitutional approach of the institute, in particular the study of the constitutionality of the
application against the provisions of the Constitution. It intends to check the current utility
of such procedural instrument, analyzing if, with other procedural tools madeavailable to
the Government, it would be possible to obtain the same effects of the request for
suspension. It includes the verification of whether the use of the instrument is being
conducted appropriately by public entities.
KEYWORDS: Suspension. Decision. Constitutionality. Utility.
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a realizar uma abordagem constitucional acerca do
instituto de pedido de suspensão de decisão judicial, também denominado pedido de
suspensão de segurança1.
Em relação à nomenclatura utilizada, preferimos neste trabalho o termo
suspensão de decisão judicial2, visto que atualmente, como veremos, o pedido de
suspensão pode ser direcionado tanto a liminares, sentenças ou mesmo acórdãos em
processos não mais restritos ao mandado de segurança.
De forma resumida, tal instrumento permite ao Poder Público suspender a
executividade de decisão liminar ou mesmo sentença ou acórdão prolatado contra pessoa
jurídica de direito público3 em face do eventual cumprimento desta decisão causar grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Como se nota, é uma
ferramenta posta ao Poder Público em defesa do interesse da coletividade, suprimindo
momentaneamente e de forma provisória, até o trânsito em julgado do processo, garantia
deferida judicialmente a um particular. Nota-se de pronto a força de tal instrumento, visto
que supre, mesmo que temporariamente, a execução de garantia de cidadão que,
eventualmente já violada no mundo dos fatos, teve seu reconhecimento dentro de uma
demanda judicial.
Em virtude de contrariar outras garantias dos indivíduos particularmente
considerados, o pedido de suspensão sofre várias críticas, em especial acerca de sua
constitucionalidade. A discussão remonta à origem do instituto, porém não deixa de ser
atual, até mesmo porque a nova lei do mandado de segurança4 reafirmou as características
presentes no instituto.
Entretanto, não se tem notado a existência de muitas discussões acerca da
necessidade de tal instrumento em face do atual estado de coisas do ordenamento jurídico
brasileiro, em especial em face dos meios recursais disponíveis às partes em uma demanda
1 Conforme será disposto, várias são as disposições legislativas que preveem o instituto, não cabendo, neste
momento do trabalho, elencá-las. 2 Também utilizaremos o termo abreviado pedido de suspensão. 3 Também será tratada a possibilidade de o pedido de suspensão de segurança ser protocolado por pessoa jurídica de direito privado, em casos excepcionais, quando no exercício de atividade pública e em defesa da
coletividade. 4 Lei 12.016/09.
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judicial, mais especificamente a possibilidade de recursos com efeito suspensivo. Assim,
embora por muitos considerado constitucional e democrático, o instituto da Suspensão da
Segurança merece uma melhor reflexão acerca de alguns pontos não suficientemente
abordados, de forma que a legislação aplicável e a construção jurisprudencial não
ofereceram ainda uma conformação cientificamente adequada, quando em contraste
interesses igualmente públicos e relevantes.
Ademais, o uso indiscriminado deste instrumento também traz à tona a
discussão acerca da real necessidade do mesmo, bem como da maturidade do Estado
Brasileiro para utilizar tal instrumento somente em casos excepcionais, quando realmente
há um risco de grave lesão a bens importantes da coletividade (segurança, saúde, ordem e
economia públicas).
Assim, pretende-se neste trabalho realizar uma discussão acerca da real
necessidade do instrumento, não deixando de realizar um enfoque constitucional do
instituto, traçando as principais teses acerca da constitucionalidade ou da
inconstitucionalidade do pedido de suspensão de decisão judicial.
2 HISTÓRICO DO PEDIDO DE SUSPENSÃO
O pedido de suspensão de decisão judicial contrária à Fazenda Pública, em que
pese ter seus fundamentos atribuídos a momentos anteriores5 da história, surge no Brasil
com a lei de mandado de segurança6, no ano de 1936. Tal lei foi publicada com o objeto de
regular a disposição constitucional7 que inaugurava o instituto do mandado de segurança
no ordenamento jurídico brasileiro. Não à toa, em virtude de ter sua criação atrelada a tal
5 Marcelho Abelha dispõe que as raízes do instituto podem ser atribuídas ao direito romano, com o instituto da intercessio, que consistia no veto que um magistrado fazia à execução de um ato ordenado por outro.
Afirma em sua obra que “Ora, não há dúvidas de que a origem do pedido de suspensão de execução de
decisão encontra ao menos inspiração na intercessio do período formulário”. Mais adiante continua
discorrendo que “É justamente essa inspiração romana que talvez venha a justificar a existência desse
instituto não só no Brasil, mas também nos países que adotam medida similar à nossa”. RODRIGUES,
Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: sustação da eficácia da decisão judicial proferida contra o Poder
Público. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.64-65. 6 Lei 191, de 1936, que dispunha: “Nos casos do art. 8º, §9º e art. 10º, poderá o Presidente da Corte Suprema,
quando se tratar de decisão da justiça local, a requerimento do representante da pessoa jurídica de direito
público interna interessada, para evitar grave lesão à ordem, à saúde ou à segurança pública, manter a
execução do ato impugnado até o julgamento do feito, em primeira ou em segunda instâncias”. 7 A Constituição de 1934 foi a primeira a prever o instituto do mandado de segurança em seu texto, visto que
em fases anteriores da historia do ordenamento brasileiro, a via do habeas corpus era utilizada também para
combater atos do Poder Público em situações não penais.
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instrumento constitucional, foi inicialmente denominada de pedido de suspensão de
segurança, nomenclatura ainda atualmente utilizada na doutrina e jurisprudência pátria.
Voltando ainda à origem do instituto, verifica-se que um dos principais
motivos ensejadores de sua criação foi a falta de previsão normativa, naquele momento8,
de recurso com efeito suspensivo da decisão que deferia a liminar em sede de mandado de
segurança9.
Entretanto, como veremos ao longo deste trabalho, após seu surgimento, várias
alterações foram introduzidas no instituto aqui discutido, com mudanças legislativas em
normas processuais civis que desvirtuaram em muito a função originalmente pensada para
o pedido de suspensão, sendo necessária, portanto, que seja realizada, para melhor
compreensão das discussões a serem aqui travadas, uma abordagem histórica que disponha
sobre a evolução do instituto.
2.1 Evolução legislativa
Várias foram as alterações legislativas em relação ao pedido de suspensão de
segurança, não sendo objeto do presente trabalho tratar com exaustão todas estas
alterações, mas apenas situar as principais modificações dentro do contexto em que foram
realizadas, para que se possa ter uma visão histórica ampla, que sirva como subsídio para a
análise constitucional do instituto.
Como já dito, o pedido de suspensão foi inicialmente criado em relação aos
processos de mandado de segurança, disposição esta surgida no ordenamento brasileiro no
ano de 1936. Após tal disposição legislativa, em que pese a Constituição Federal de 1937
ter abolido o writ constitucional do mandado de segurança, durante a vigência da citada
carta Magna, foi editado o Código de Processo Civil de 193910
, que trazia dispositivos
8 De fato não havia previsão de recurso contra a decisão que deferia a liminar em mandado de segurança,
visto que o recurso de agravo de instrumento era meio inexistente naquela época. 9 Na realidade, a proposta inicial legislativa era que o pedido da entidade pública fosse no sentido de atribuir
efeito suspensivo ao recurso contra decisão que deferia liminar em mandado de segurança. Marcelo Abelha
Rodrigues assim discorre: a proposta original do anteprojeto legislativo, de autoria do senador Alcântara
Machado, dava ao pedido de suspensão a função de atribuir efeito suspensivo ao recurso devidamente
interposto no caso concreto contra a decisão no mandado de segurança, sendo que a duração da medida
cingir-se-Ia ao julgamento desse recurso. O anteprojeto acabou recebendo modificações que, essencialmente,
desvincularam o pedido de suspensão da interposição recursal e impuseram a suspensão da decisão do mandado de até seu final julgamento”. A suspensão de segurança in Direito processual público: A Fazenda
Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 147-148. 10 Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro daquele ano.
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relativos ao mandado de segurança em seu Título V, arts. 319 a 331. Em relação ao pedido
de suspensão, também tal norma trouxe dispositivos sobre o tema, nos termos do art. 328,
in verbis:
Art. 328. A requerimento do representante da pessoa jurídica de
direito público interessada e para evitar lesão grave à ordem, à
saúde ou à segurança pública poderá o presidente do Supremo
Tribunal Federal ou do Tribunal de Apelação, conforme a
competência, autorizar a execução do ato impugnado.
Apesar de algumas poucas diferenças, o instituto continuava mantido no
ordenamento brasileiro. Com o fim do Estado Novo e a promulgação da Constituição de
1946, novamente a Constituição traz disposição expressa prevendo o writ of mandamus11
.
Já no ano de 1951, editou-se a Lei nº 1.533, que revogava as disposições relativas ao
mandado de segurança do Código de Processo Civil de 1939. O art. 13, que dispunha a
respeito do pedido de suspensão, previa, em sua redação original:
Art. 13. - Quando o mandado for concedido e o presidente do
Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos ou do
Tribunal de Justiça ordenar ao juiz a suspensão da execução da
sentença, desse seu ato caberá agravo de petição para o Tribunal a
que presida.12
Celso Agrícola Barbi dispõe que, após a promulgação da Constituição de 1946,
inicia-se um período de uso em maior escala do mandado de segurança, o que provocou
reações da Administração Pública no intuito de frear consequências prejudiciais que
algumas liminares deferidas aos cidadãos provocavam ao Poder Público. Afirma o mesmo
que:
11 De fato, o art. 141, § 24 previa o mandado de segurança. Ressalte-se que nenhuma outra carta política de
nosso país aboliu novamente o instrumento. 12 Analisando a redação do art. 13 verifica-se que a mesma peca ao não arrolar os motivos que deveriam ser
levantados para a concessão da medida suspensiva, ao contrário do regulamento pretérito, ficando ao arbítrio
do presidente a eleição do motivo que justificasse o pedido de suspensão. Um outro detalhe decorrente da
equivocada técnica legislativa é que o art. 13 não contemplou expressamente a possibilidade de suspensão da decisão que concede liminarmente a segurança; no entanto, tal raciocínio poderia ser deduzido do raciocínio
silogístico – se poderia suspender a sentença, que tem caráter de definitividade, também poderia suspender a
decisão in limine.
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Nos anos de 1946 a 1955, a propósito da importação de bens,
especialmente automóveis, que as autoridades do executivo
sustentavam não obedecer às exigências fiscais e cambiais,
surgiram então os denominados mandados de segurança coletivos,
para liberação de centenas de veículos de uma só vez. Obtida a
liminar e retirados da Alfândega os carros, os impetrantes
desinteressavam-se do andamento do feito, retardavam-no
deliberadamente, ou mesmo promoviam seu extravio, em conluio
com funcionários menos escrupulosos.13
Por consequência, foi editada a Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964,
complementar à Lei nº 1.533/51, ainda restrita ao mandado de segurança. No que interessa
ao presente estudo, dispunha o art. 4º daquela Lei:
Art. 4º Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito
público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança e à economia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual
couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em
despacho fundamentado, a execução da liminar, e da sentença,
dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo no prazo de
(10) dez dias, contados da publicação do ato.
Confere-se que esse artigo traz novamente expressas as hipóteses de cabimento
do instituto, suprimindo a falha na redação do art. 13 da Lei nº 1.533/51. Em relação a tais
hipóteses, em comparação com o art. 13 da Lei nº 191/36, vê-se que, entre as justificativas
para a suspensão da liminar ou sentença concessiva da segurança, foi incluída a grave lesão
à economia pública – restando mantidas as graves lesões à ordem, à saúde e à segurança
pública.
Justificando a promulgação da lei 4.348/64, em especial dos dispositivos que
tratam da suspensão de segurança, ao comentar a afirmação do autor acima citado,
Juvêncio Vasconcelos Viana dispõe que:
13 Do mandado de segurança. 7. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1993. p. 176-177.
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11
Denegados esses mandados de segurança, era praticamente
impossível a restituição do status quo ante, fazer a recuperação dos
veículos dispersos no território nacional ou ter a devolução
completa dos valores pagos a servidores. Tais problemas trouxeram
para nossa ordem jurídica, como sabemos, normas impeditivas de
liminares para liberação de mercadorias estrangeiras e de concessão
de aumentos e vantagens para servidores, bem como, em 1964, o
perfil do pedido de suspensão de segurança que temos até hoje (Lei
n. 4.348/64).14
Assim, após essa fase de afirmação legal da suspensão de segurança15
, seguiu-
se uma série de diplomas legislativos ampliando a aplicação desse instituto. Houve
ampliação da suspensão de segurança para os processos de ação civil pública, nos termos
do art. 1216
da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, bem como para a ação ordinária, ação
popular e ação cautelar inominada conforme art. 4º17
da Lei nº 8.437, de 30 de junho de
1992, já sob a égide da Constituição de 1988. Ainda foi estendido o instituto para a
antecipação de tutela através da lei nº 9.494, de 10 de setembro de 199718
e para o habeas
data, através da Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997, em conformidade com o art.
1619
.
14 Efetividade do processo em face da Fazenda Pública. São Paulo: Dialética, 2003, p. 236. 15 Foi exatamente da experiência da lei 4.348/64 que se estendeu, através de outras normas, o pedido de
suspensão para situações que não fossem a de processo de mandado de segurança. 16 Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a
agravo. § 1º A requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o
conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da publicação do ato. 17 Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso,
suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou
seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em
caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde,
à segurança e à economia públicas. § 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo
de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em
julgado. 18 Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto
nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº
5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. 19 Art. 16. Quando o habeas data for concedido e o Presidente do Tribunal ao qual competir o conhecimento
do recurso ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, desse seu ato caberá agravo para o Tribunal
a que presida.
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Cabe ainda fazer menção ao reforço, novamente infraconstitucional, que foi
dado à suspensão de segurança, através da publicação da Lei nº 8.038, de 28 de maio de
1990, que, a pretexto de regulamentar as competências (constitucionais) jurisdicionais do
STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), incluiu no art. 25, como outros
procedimentos, o seguinte:
Art. 25 - Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria
constitucional, compete ao Presidente do Superior Tribunal de
Justiça, a requerimento do Procurador-Geral da República ou da
pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública,
suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar ou
de decisão concessiva de mandado de segurança, proferida, em
única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou
pelos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.
§ 1º - O Presidente pode ouvir o impetrante, em cinco dias, e o
Procurador-Geral quando não for o requerente, em igual prazo.
§ 2º - Do despacho que conceder a suspensão caberá agravo
regimental.
Por fim, merece menção ainda a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de
agosto de 2001, que procedeu a profundas e controvertidas alterações ao regramento da
suspensão mandamental, notadamente nas Leis 4.348/64 e 8.437/92.20
E, mais
20 Acresceu os §§ 2º e 3º ao art. 4º da Lei nº 4.348/64: § 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o
agravo a que se refere o caput, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para
conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 2º Aplicam-se à suspensão de segurança de que
trata esta Lei, as disposições dos §§ 5º a 8º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. Alterou a
redação dos §§ 2º e 3º e incluiu os §§ 4º a 9º ao art. 4º da Lei nº 8.437: § 2º O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em setenta e duas horas. § 3º Do despacho que conceder ou negar a
suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua
interposição. § 4º Se do julgamento do agravo de que trata o § 3º resultar a manutenção ou o
restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do
Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 5º É cabível também o
pedido de suspensão a que se refere o § 4º, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto
contra a liminar a que se refere este artigo. § 6º A interposição do agravo de instrumento contra liminar
concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o
julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. § 7º O Presidente do Tribunal poderá conferir
ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a
urgência na concessão da medida. § 8º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes,
mediante simples aditamento do pedido original. § 9º A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal
vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal.
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13
recentemente, a nova Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016, de 07 de agosto de
2009, consolidando praticamente toda a legislação e jurisprudência dominantes sobre o
writ e revogando as Leis nº 1.533/51 e 4.348/64, então ainda vigentes, manteve a
normatização da suspensão mandamental, no art. 15, nos verbetes seguintes:
Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito
público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o
presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo
recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da
liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito
suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a
julgamento na sessão seguinte à sua interposição.
§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se
refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao
presidente do tribunal competente para conhecer de eventual
recurso especial ou extraordinário.
§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1º
deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento
interposto contra a liminar a que se refere este artigo.
§ 3º A interposição de agravo de instrumento contra liminar
concedida nas ações movidas contra o poder público e seus agentes
não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de
suspensão a que se refere este artigo.
§ 4º O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito
suspensivo liminar se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade
do direito invocado e a urgência na concessão da medida.
§ 5º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas
em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender
os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante
simples aditamento do pedido original.
Como se nota, apesar da abordagem aqui realizada não adentrar em todos os
pormenores da legislação que envolve o pedido de suspensão, que não são poucos, pode-se
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concluir que o instituto ainda carece de uma sistematização. Percebe-se que vários foram
os dispositivos legislativos a tratar da questão, havendo um princípio de convergência
sistêmica a partir da publicação da nova lei mandado de segurança, ao menos no que
respeita ao processo deste writ. Entretanto, ainda não há uma sistematização do instituto
para os diferentes tipos de ação, havendo previsões legislativas distintas e às vezes até
contraditórias para cada tipo procedimento. Ademais, verifica-se que, em nenhuma das
constituições brasileiras houve a previsão de tal instituto, o que traz à tona a possibilidade
de se questionar a constitucionalidade de tal instrumento processual, principal foco do
presente trabalho. Seria o instituto justificado à luz da principiologia e dos fundamentos
constitucionais atuais? Em razão disso, faz-se imperioso colocar o instituto sob o crivo
constitucional, para que se observe se o mesmo está em consonância com a ordem
constitucional vigente.
3 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DISPOSITIVO
Muitas discussões já se travaram acerca da constitucionalidade do pedido de
suspensão, até mesmo por não ser o instituto um instrumento tão novo em nosso
ordenamento.
Entretanto, várias alterações surgiram na ordem jurídica nacional desde a
primeira previsão do instrumento processual aqui discutido, devendo o operador do direito
fazer uma reanálise da necessidade e mesmo da constitucionalidade do dispositivo à luz da
nova situação presente.
Como vimos, o pedido de suspensão de segurança é um mecanismo posto à
disposição do poder público, e apenas dele, visto que o particular não possui instrumento
semelhante, para suspender uma decisão liminar contrária a tal ente, desde que presentes os
requisitos legalmente dispostos, quais sejam: grave lesão à ordem, à segurança, à saúde e à
economia públicas.
Assim, é certo que muitas discussões já foram travadas em relação à
constitucionalidade do dispositivo. Por exemplo, Elton Venturi dispõe que:
A duvidosa constitucionalidade do dispositivo, aliás, há muito tem
sido objeto de especulação doutrinária, seja pela sua concepção
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originária, seja pela forma de seu processamento em juízo. Invoca-
se, invariavelmente, a violação das garantias constitucionais do
acesso à justiça e do devido processo legal21
.
Já Juvêncio Vasconcelos Viana discorre que:
Alguns afirmarão que o pedido de suspensão é inconstitucional. De
outro lado, entretanto, argumenta-se que sempre que estiver em
jogo relevante interesse público ou for manifesta a ilegalidade da
decisão concessiva liminar (v.g. hipóteses de incompetência,
ausência de fundamentação), justifica-se plenamente a aplicação da
regra questionada, não se vislumbrando nesse procedimento
qualquer eiva de inconstitucionalidade por ofensa ao direito de
ação. É que o direito de ação, constitucionalmente assegurado, deve
ser exercido regularmente, sem abusos ou espíritos de emulação, e
em perfeita harmonia com a ordem jurídica.22
Percebe-se, portanto, que a discussão envolve um tema bastante digladiador de
opiniões, devendo ser analisado com muita cautela. De fato, podem ser abordados diversos
prismas atinentes à constitucionalidade do instituto, desde o aspecto formal até o material
e, dentro deste, se questionar vários pontos existentes no ordenamento, como por exemplo,
procedimento, legitimação, competência, etc. Entretanto, o principal objeto do presente
trabalho está em discutir a constitucionalidade material do instituto, principalmente no
concerne à discussão de supremacia do interesse público sobre o privado, bem como sua
necessidade em face do momento jurídico atual.
3.1 As hipóteses de cabimento e a constitucionalidade do pedido
O foco principal desde não pretensioso discurso é atentar para os aspectos
materiais/constitucionais do pedido de suspensão. E dentro destes aspectos materiais o
21 Suspensão de Liminares e Sentenças Contrárias ao Poder Público. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 29 22 Ibidem, p. 237.
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primeiro que surge como um dos principais pontos de discussão é acerca da possibilidade
de suspensão de uma decisão jurídica correta, mas que, por afetar interesses da
Administração Pública que vão além do interesse individual, é cassada através do citado
instrumento. Ou seja, é constitucional a previsão de suspensão de segurança nos casos
dispostos legalmente, sem análise do conteúdo da decisão atacada?
De fato, este é a talvez a principal característica do instituto, pois, caso se
adentre no mérito da decisão, pelo menos considerando a atual configuração de nosso
ordenamento, tal instrumento se confundiria em muito com o recurso de agravo de
instrumento23
.
Para melhor visualizarmos a questão aqui posta, tomemos, por exemplo, a
decisão envolvendo o exame do ENEM de 2011. Foi proposta ação civil pública pelo
Ministério Público Federal do Ceará24
em que foi concedida liminar para que os candidatos
pudessem visualizar suas provas de redação e os espelhos de correção. Ora, um direito
plenamente consagrado em nosso ordenamento25
. Decisão juridicamente correta. Contudo,
23 A jurisprudência do STF, indo além do que prevê o instituto, tem admitido uma análise, ainda que
superficial dos fundamentos da decisão na via do pedido de suspensão. Juvêncio Vasconcelos Viana relata tal
ocorrência ao afirmar que “Assim, por exemplo, cuidando-se de causa a respeito da qual já esteja firmada
jurisprudência a favor do autor, não deveria a presidência suspender a execução da liminar. Faria a
presidência juízo acerca da probabilidade de reforma da decisão – ou da sentença – um exame da aparência do bom direito da entidade requerente. Ou seja, passa-se a verificar os requisitos próprios da tutela cautelar,
quais sejam, o fumus boni juris e o periculum in mora, sendo que esse último permeia-se nas diversas
espécies de grave lesão, citadas pela lei.” Ibidem, p.238. 24 Processo nº 0000014-35.2012.4.05.8100, Justiça Federal do Ceará. 25 Inclusive reconhecida em várias ações individuais propostas. Senão vejamos um desses julgados:
EMENTA PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. PRELIMINAR DE PREVENÇÃO POR
CONEXÃO A AÇÃO COLETIVA AFASTADA. ENEM 2011. DISPONIBILIZAÇÃO DO ESPELHO
DIGITALIZADO DA PROVA DE REDAÇÃO. DIREITO DO ALUNO. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º,
XXXIII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
1. Afasta-se a preliminar de prevenção por conexão da presente ação com a ação civil pública nº. 0000014-
35.2012.4.05.8100 que tramita perante o Juizo da 1ª Vara da mesma Seção Judiciária (CE) o que impunha a
reunião dos processos não merece prosperar, porquanto não se vislumbra a possibilidade de conflito entre o julgamento desta ação individual e aquela ação civil pública. 2. O CDC, cujas regras se aplicam de modo
geral à ação civil pública ( art. 117) estabelece que o julgamento da ação coletiva que verse acerca de direito
difuso ou coletivo não repercute em direitos ou interesses individuais.Todavia se a ação coletiva envolver
direitos individuais homogêneos, a coisa julgada em tais ações não afeta a açao individual a não ser para
favorecer o indivíduo e desde que este este requera a suspensão da ação individual, no prazo de 30 (trinta)
dias a contar da ciência nos autos da propositura da ação coletiva, conforme se deflui do art. 104 c/c o art. 81
do CDC, o que não ocorreu na hipótese. 3. Precedente do STJ: Segunda Seção, CC 111727, Relator: Min.
Raul Araújo, julg. 25/08/10, publ. DJ: 17/09/2010, decisão unânime. 4. A Constituição Federal assegura a
todos o direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo
ou geral, que serão prestadas no prazo legal, nos termos do art. 5º, XXXIII. Dessa forma, há de se reconhecer
ao aluno o direito de acesso ao espelho da prova de redação como forma de assegurar o direito constitucional à informação e a ampla defesa. 5. O fato do edital do ENEM nº 07, de 18 de maio de 2011, não prevê a
disponibilização da prova de redação ou dos espelhos de correção, não constitui impedimento para o
exercício do direito, tendo em conta que o edital deve estar em consonância com a constituição e a lei. O
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através de um deferimento de pedido de suspensão, o presidente do TRF da 5ª região
suspendeu os efeitos de tal decisão26
.
Tal caso paradigma serve para suscitar os questionamentos acerca da
constitucionalidade de tal dispositivo, e aqui é utilizado apenas com este objetivo. Como
dito, a decisão liminar está juridicamente correta, mas, por violar interesses da
Administração Pública, neste caso lesão à ordem pública, em consonância com as
disposições do pedido de suspensão, tal liminar teve suspensos seus efeitos27
. No caso de
mandado de segurança, cujo objetivo é resguardar um direito líquido e certo de um
cidadão, não se estaria indo de encontro a essa garantia constitucional ao se deferir o
pedido de suspensão de segurança?
Muitos defendem que sim. Acreditam alguns doutrinadores que o pedido de
suspensão de segurança viola direitos constitucionais dos cidadãos, exatamente por
suprimir a eficácia de um direito líquido e certo reconhecido judicialmente. Por exemplo,
Cassio Scarpinela Bueno, ao comparar o instituto com a garantia do mandado de segurança
afirma que:
“Se o que o mandado de segurança tem de mais caro é sua
predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis
ao impetrante, seja liminarmente ou a final, a mera possibilidade da
‘suspensão de segurança’ coloca em dúvida a constitucionalidade
do instituto. Em verdade, tudo aquilo que for criado pelo legislador
infraconstitucional para obstaculizar, dificultar ou empecer a
plenitude da eficácia do mandado de segurança agride sua previsão
edital é a lei que rege o concurso, porém suas normas só vinculam as partes se estiverem respeitando o
ordenamento jurídico pátrio. 6. Acerca do Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pela
Subprocuradoria Geral da República, pela União e pelo INEP, no qual restou estabelecido que apenas a partir
de 2012 a exibição das provas e dos espelhos seria viabilizada, já decidiu esta E. Segunda Turma que "não tem o condão de afastar a apreciação do Judiciário em situações como a presente, em que se alega lesão de
direito, em face da garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXV da CF/88, segundo o qual a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"(PROCESSO: 00029144120124050000,
AG123447/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO, Segunda Turma,
JULGAMENTO: 08/05/2012, PUBLICAÇÃO: DJE 17/05/2012 - Página 381). 7.Os honorários advocatícios
devem ser mantidos no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), porquanto foram fixados com respaldo no art.
20, parágrafo 4º, do CPC. 8. Remessa oficial e apelação improvidas. (PROCESSO:
00002508420124058100, APELREEX24941/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL
FRANCISCO BARROS DIAS, Segunda Turma, JULGAMENTO: 30/10/2012, PUBLICAÇÃO: DJE
08/11/2012 - Página 131) 26 Pedido de suspensão de segurança nº SL 4293-CE, julgado pelo Presidente do TRF da 5ª Região. 27 Não iremos neste momento aprofundar o questionamento se realmente houve, no caso concreto, uma
violação aos interesses previstos legalmente, o que, acredita-se não ocorreu, visto que a ordem pública não
sofreu grave lesão em face desta decisão.
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constitucional. Nesse sentido, não há como admitir a
constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua
natureza jurídica. É instituto que busca minimizar efeitos do
mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se de figura
inconstitucional”. 28
Assim, o deferimento do pedido de suspensão de segurança violaria direito
fundamental do cidadão. Por outro lado, há quem sustente que em nome da ordem,
economia, saúde e segurança públicas, um direito individual, mesmo reconhecido em sede
de mandado de segurança, por exemplo, pode ser sacrificado em prol dos interesses da
coletividade. Como justificativa para se defender a constitucionalidade, muitas vezes
utiliza-se do argumento de que qualquer direito previsto constitucionalmente pode ser
relativizado, inclusive aquele direito assegurado por uma decisão liminar. De fato,
conquanto os direitos e garantias fundamentais não sejam absolutos, uma exceção como a
do pedido de suspensão demanda um reforço normativo no ordenamento, que se traduziria
num mínimo de previsão constitucional, de preferência específico para o mandado de
segurança. Observa-se que quando o constituinte quis propor limites aos direitos
fundamentais, ele o fez expressamente. E esse reforço normativo muitas vezes não é bem
exposto pela doutrina pátria. Senão vejamos o que dispõe Marcelo Abelha Rodrigues:
A nosso ver, portanto, é o próprio texto constitucional que assegura
a constitucionalidade do incidente de suspensão de execução de
decisão, seja quando assegura a proteção dos direitos individuais e
coletivos, seja quando se protegem os direitos sociais do art. 6º,
quando se prevê a ampla defesa, e, principalmente, quando se
protege o direito contra ameaça de lesão, que, no caso, é o que
ocorre29
.
Data vênia o entendimento acima exposto, parece que é possível justificar a
inconstitucionalidade do dispositivo utilizando-se os mesmos argumentos. De fato,
28 Mandado de Segurança. São Paulo, Saraiva, 2002. p.179.
29 Ibidem, p 125.
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defender a constitucionalidade do instituto utilizando como base argumentativa os direitos
do cidadão é, no mínimo, contraditório.
A despeito destas falhas quando da justificação da relativização dos direitos
dos cidadãos, conforme já relatado, talvez o principal argumento em defesa da
constitucionalidade do instrumento seja aquele baseado na supremacia do interesse público
sobre o privado. Neste caso, em face do direito da coletividade, que seria afetado se a
decisão judicial fosse de pronto executada, posterga-se tal execução para momento
posterior, após o trânsito em julgado do processo, onde já restaria plenamente comprovado
o direito pleiteado. Confirmando tal abordagem, no sentido de justificar a
constitucionalidade, o Ministro Sepúlveda Pertence afirmou em antigo julgado que o
instituto da suspensão de segurança:
É compatível com a Constituição porque verdadeiramente
inconciliável com o Estado de Direito e a garantia constitucional da
jurisdição seria impedir a concessão ou permitir a cassação da
segurança concedida, com base em motivos de conveniência
política ou administrativa, ou seja, a superposição ao direito do
cidadão das razões de estado; não é o que se sucede na suspensão
de segurança, que susta apenas a execução provisória da decisão
recorrível: assim como a liminar ou a execução provisória de
decisão concessiva de mandado de segurança , quando recorrível,
são modalidades criadas por lei de tutela cautelar do direito
provável – mas ainda não definitivamente acertado – do impetrante,
a suspensão dos seus efeitos, nas hipóteses excepcionais
igualmente previstas em lei, é medida de contracautela com vistas a
salvaguardar, contra o risco de grave lesão a interesses públicos
privilegiados, o efeito útil do êxito provável do recurso da entidade
estatal30
Como se vê, no aspecto material aqui abordado, para aqueles que defendem a
constitucionalidade do pedido de suspensão, argumenta-se a defesa da supremacia do
interesse público sobre o privado. Resta saber se, neste momento histórico, o Poder Público
30 TP, AgRSS 1149/PE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 03.04.1997, p. 18.138.
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está apto a fazer tal distinção de supremacia, buscando realmente o interesse público, da
sociedade, ao invés do interesse do ente que é demandado em uma ação. Isto porque, como
se tem visto nas demandas judiciais em que há deferimento de pedido de suspensão, que
não são poucas, muitas vezes o interesse protegido não é o da sociedade, mas do ente que
utiliza tal meio. Não é à toa que uma das principais críticas ao pedido de suspensão de
segurança é o seu uso inadequado. Por exemplo, vejamos como trata a questão do uso
inadequado Lúcia Valle Figueiredo:
Acontece que inconstitucional, a meu ver, é o uso que é feito do
artigo, porque se não fora o uso mal feito desse artigo, nós teríamos
exatamente aquela colocação inicial a que me reportei, dos
temperamentos à concessão da medida. Entretanto, tem sido feito,
às escâncaras, exatamente isso: o uso abusivo desse art. 4º, que nos
induz, a todos, a afirmar sua inconstitucionalidade, porque alegado
o interesse público relevante, nem é o mesmo justificado, e a
medida é concedida, suspendendo-se até a sentença. Portanto,
suspende-se até uma sentença, que já resultou de um exame, de
uma cognição completa da lide. A meu ver, utilizado desta maneira,
tenho de afirmar ser o artigo inconstitucional. Agora, acho possível
ser aproveitado como não inconstitucional, caso se lhe desse um
direcionamento próprio”.31
O argumento acima utilizado, data vênia, também não pode ser sustentado, pois
a doutrinadora defende a constitucionalidade do instituto, salientando a
inconstitucionalidade de seu uso, o que não nos parece justificável. Isto porque uma norma
não depende de seu bom ou mau uso para ser declarada constitucional. O mau uso de uma
norma deve ser combatido por outros instrumentos diferentes do controle de
constitucionalidade.
De fato, a questão que envolve o mau uso deve se situar não no plano da
constitucionalidade, mas no plano da política, em que se possa analisar se o momento
histórico é adequado para a manutenção de um instrumento tão poderoso nas mãos do
31 A liminar no mandado de segurança in Curso de Mandado de Segurança. Coord. Celso Antônio
Bandeira de Mello. São Paulo: Ed. RT, 1986, p. 111.
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Poder Público, muitas vezes desvirtuado de seu objetivo original.
Então, posicionando-se sobre a questão em relação à constitucionalidade, em
especial quanto ao aspecto de prevalência do interesse público sobre o privado, temos que
a norma é plenamente constitucional. Ora é plenamente possível, em um caso concreto,
que o cumprimento de uma decisão judicial realmente cause grave lesão à Administração
Pública e, em ocorrendo isso, a mesma deve sim ter sua execução suspensa. Isto porque,
conforme dispõe Marcelo Abelha Rodrigues:
Isso não quer dizer que o interesse privado é inconvivível com o
interesse coletivo, até porque se digo que aquele está limitado pelas
arestas deste último, é porque, então, admito a convivência de
ambos num mesmo momento histórico e social. Aliás, reside
exatamente aí o ponto nodal da questão: ao se pretender suspender
a execução de uma decisão, não se verifica o acerto ou desacerto do
convencimento do magistrado, qual seja, a legalidade ou
ilegalidade da referida decisão, nem, muito menos, significa
sacrificar o interesse individual, apesar de esta ser a expressão
rotineiramente utilizada, mas, contrario sensu, quer-se apenas
evitar que o interesse coletivo possa ser prejudicado ou lesionado
enquanto não se tem a certeza definitiva de afirmação do direito
daquele em favor de quem foi concedida a decisão cuja eficácia
pretende ser temporariamente suspensa.32
Como se nota, caso realmente haja, no caso concreto, grave lesão à
coletividade, é plenamente justificável a utilização do pedido de suspensão. Ou seja, a
norma é constitucional. Entretanto, em virtude do mau uso e de outros fatores aqui
tratados, defende-se que a mesma não é mais necessária ao nosso ordenamento.
Isto porque a grande questão que envolve a necessidade de tal medida é saber
se o Poder Público está em condições suficientes de fazer o uso adequado do instituto,
incluindo aqui também o Poder Judiciário na análise desta abusividade, e, em caso
negativo, decidir-se pela extinção de tal instituto do nosso ordenamento, não pela via da
inconstitucionalidade, mas pela via legislativa, o que inclusive já foi objeto de proposição
32 Ibidem, p.123.
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em nosso ordenamento, conforme Projeto de Lei 6.544/2006, de autoria do Deputado
Federal Carlos Souza, que pretendia retirar do ordenamento o pedido de suspensão, cuja
motivação é transcrita abaixo:
A vigente Carta Política, no seu art. 5º, inciso LXIX, estabeleceu a
garantia fundamental do mandado de segurança, visando a proteger
direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas
data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for
autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício das
atribuições do poder público.
Estabeleceu, ainda, no inciso XXXV do mesmo artigo, a garantia
fundamental da inafastabilidade do Poder Judiciário, sempre que
houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça.
Infere-se, da leitura dos dispositivos constitucionais apontados, que
o constituinte originário pretendeu excluir do mundo jurídico
qualquer reserva legal que permitisse ao legislador
infraconstitucional condicionar ou restringir o âmbito de aplicação
tanto do mandado de segurança quanto do direito de ação.
Ora bem, o art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964, ao suspender a
execução da liminar e da sentença em sede de mandado de
segurança, a pretexto de “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança e à economia públicas”, padece de manifesto vício de
inconstitucionalidade, por vulnerar as garantias fundamentais
aludidas.
Pelas mesmas razões, apresenta flagrante eiva de
inconstitucionalidade o art. 5º do mesmo diploma legal, ao vedar a
concessão de medida liminar de mandado de segurança impetrado
com vistas à “reclassificação ou equiparação de servidores
públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens”.
É certo que as justificativas apresentadas, baseadas na inconstitucionalidade
dos dispositivos, não são os melhores fundamentos de justificação. Isto porque, conforme
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já exposto, acredita-se que os principais fundamentos da medida são a sua desnecessidade,
em face da existência de outros instrumentos processuais que dão ao Poder Público a
possibilidade de proteger o interesse público, conforme veremos adiante, ou mesmo o mau
uso do instrumento, comprovado historicamente, em face do despreparo dos agentes
públicos que comandam as instituições do país, bem como do Poder Judiciário em coibir
tais usos inadequados. Infelizmente, com o advento da Lei 12.016/09, tal projeto foi
arquivado por perda de objeto, visto que pretendia promover alterações na lei 4.348/64,
revogada pela nova lei do mandado de segurança.
3.2 Da desnecessidade do instituto em face da existência de outros meios processuais
Como mais um argumento favorável à desnecessidade do instituto, além da
questão relativa ao mau uso do mesmo, observa-se que o instituto deixa de ser necessário
dentro do ordenamento jurídico, uma vez prevista a possibilidade ampla de recurso das
decisões de urgência, tanto pela via do agravo de instrumento quanto pela via da apelação,
ambas carreadas com a possibilidade de concessão do efeito suspensivo.
A nova Lei nº 12.016/09, superando os entendimentos doutrinários em sentido
contrário, deixa clara a possibilidade de interposição de agravo de instrumento da decisão
em sede de liminar, seja a de concessão, seja a de indeferimento do pedido. Ademais, é
importante destacar que, em virtude de reforma processual, buscou-se dar maior
importância ao agravo de instrumento, retirando-lhe matérias que não tinham o caráter de
urgência (as quais passaram a ser enfrentadas por agravo retido nos autos); tornou referido
recurso, pelo menos em sua concepção, mais eficiente e apto a responder a demandas
urgentes.
Marçal Justen Filho, por exemplo, ao criticar o instituto, traz como um dos
argumentos contrários ao mesmo o princípio da unicidade dos recursos visto que
principalmente após o advento da lei 9.139/05, que permitiu ao relator do recurso a
possibilidade de concessão de efeito suspensivo recursal nos casos de danos
potencialmente reversíveis tal regra:
Importou o efeito da derrogação das normas processuais anteriores,
que dispunham sobre o mesmo tema. Por efeito da nova legislação,
a ponderação do cabimento da suspensão da eficácia da decisão
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recorrida, em virtude de risco danosos de outra ordem, foi retirada
da competência do presidente do tribunal e foi integrada na
competência do magistrado relator do recurso.33
A concepção do autor talvez seja um pouco forçada ao afirmar ser um caso de
derrogação da norma, mas condiz com o que foi exposto no tópico anterior: a necessidade
de alteração legislativa. E tal alteração legislativa seria necessária apenas para confirmar a
extirpação deste instrumento de nosso ordenamento, também por já existirem outros meios
processuais para defesa dos interesses dos entes públicos.
Nada obstante, com base numa complicada isonomia material do processo,
ainda seria possível e até mesmo aceitável a previsão em lei de uma preferência ou
preponderância na ordem de apreciação dos pedidos suspensivos dos agravos de
instrumento e das apelações pelo tribunal quando o recurso interposto pelo Poder Público
fosse fundamentado nos pressupostos da suspensão de liminar (“grave lesão à ordem, à
saúde, à segurança e à economia públicas”). Poderia se pensar até mesmo que, nestes
casos, o recurso de agravo de instrumento fosse direcionado ao presidente do tribunal que
analisaria o mérito da questão e não somente possibilidades não jurídicas como aquelas
elencadas na lei 12.016/09 e outros diplomas legislativos.
É claro que o que se está aqui a discorrer não contradiz com o entendimento
antes exposto acerca da constitucionalidade do dispositivo, quando analisado sob o prisma
da supremacia do interesse público sobre o privado, mas apenas poderia servir, por
exemplo, como uma fase de transição entre o estágio atual e a retirada total do instituto do
ordenamento, tendo em vista a sua plena desnecessidade, aqui defendida.
Porém, nada impediria a retirada do instituto do ordenamento jurídico já neste
momento, visto que, conforme já amplamente disposto, seu uso inadequado não está sendo
aceito pela coletividade, real beneficiária de tal instrumento, ao menos no plano teórico.
3.3 O princípio da isonomia
Outro questionamento atinente ao pedido de suspensão de segurança e sua
constitucionalidade diz respeito à violação ao princípio da isonomia, pois o indivíduo
33 Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.782.
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estaria com menos armas para defesa do seu direito em relação à Administração Pública.
Isto porque, conforme dito, a legislação em questão traz a possibilidade de manejo do
instituto apenas pelos entes públicos34
.
Por exemplo, Nelson Nery Junior afirma que:
Fere o princípio da isonomia, pois o Poder Público teria as
seguintes oportunidades para impugnar a decisão concessiva da
liminar, suspendendo a eficácia do ato coator: a) agravo; b) pedido
de suspensão; c) agravo contra denegação do pedido de suspensão;
d) novo pedido de suspensão no STF ou STJ; e) agravo interno
(CPC, art. 557, §1º) contra ato do presidente do STF ou STJ que
denega o segundo pedido de suspensão. O particular, a seu turno,
somente poderia impugnar a decisão denegatória de liminar com o
recurso de agravo. São cinco chances contra uma, em flagrante
ofensa à CF, art. 5º, caput, I35
.
Como se nota, há posicionamento no sentido de que o instituto em questão
violaria o princípio da isonomia. Entretanto, fazendo-se uma detalhada análise das normas
constitucionais, podemos verificar que a proteção do interesse público pode sobrepor
outros princípios no caso concreto, inclusive o princípio da isonomia.
Marcelo Abelha Rodrigues bem discorre sobre a questão:
Em se tratando de proteção da ordem, da economia, da segurança e
da saúde pública, tema do nosso trabalho, há que se admitir a
existência, ainda que abstratamente, de proteção a direitos difusos.
Neste ponto está o Estado legitimado na proteção de tais direitos,
na exata medida em que o próprio texto constitucional determinou
34 Aqui também considerados o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito privado em exercício de
função pública, conforme tem reconhecido a jurisprudência pátria. A título de exemplo veja: PROCESSUAL
CIVIL. SUSPENSÃO DE DECISÃO. LEGITIMIDADE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA.
PARALISAÇÃO DE OBRAS DO METRÔ. RISCO INVERSO DE LESÃO À ECONOMIA E À ORDEM
PÚBLICAS. 1. As pessoas jurídicas têm legitimidade para requerer suspensão de decisão quando estiverem
no desempenho de serviços públicos por delegação de competência, onde inafastável o interesse público e a
iminente lesão aos bens jurídicos tutelados pelas leis de regência 2. Já existindo recursos financeiros,
materiais, maquinário pesado e pessoal qualificado para a execução do empreendimento, o comprometimento
da parte da obra já realizada (maior parte) caracteriza a potencialidade de grave lesão à ordem e à economia públicas. 3. Agravo a que se nega provimento. (AgRg na SLS . 2/PI, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL,
CORTE ESPECIAL, julgado em 29/06/2005, DJ 19/09/2005, p. 170) 35 Código de Processo Civil comentado. 5. Ed. São Paulo: RT, 2001, p. 1.650.
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ser, nos arts. 1º ao 6º e nos próprios 170, 200, etc., de sua
incumbência direta a promoção da defesa, da proteção, da garantia
e da conservação da ordem jurídica, da saúde, da segurança e da
economia públicas.36
Assim, a justificativa daqueles que defendem a constitucionalidade se baseia
exatamente em argumentar que não se trata de um privilégio da Administração, mas sim de
uma prerrogativa, conferida exatamente para a defesa da coletividade e dos valores
previstos constitucionalmente para que o Estado a defenda. O mesmo doutrinador arremata
a questão afirmando:
Assim, retomando a questão da constitucionalidade da suspensão
de segurança, tem-se que este instituto deve ser tomado como
materialmente constitucional porque funciona como uma
prerrogativa processual do Poder Público. Por sua vez, dita
prerrogativa decorre dos reflexos da normatização dos interesses
que concernem à sociedade e que são geridos pelo Poder Público. É
que a normatização destes interesses está submetida a dois
postulados máximos (regime jurídico de direito público) que são o
princípio da legalidade e o da supremacia do interesse público.37
E se concorda com tal posicionamento, com a ressalva, já exaustivamente
disposta aqui, de que o uso deve ser o adequado e, em caso de não o ser, conforme se
visualiza em nosso ordenamento no momento atual e na história recente, a medida não
seria na verdade inconstitucional, mas desnecessária e incabível em face da situação
histórica vivida pela Administração Pública brasileira, que não amadureceu o suficiente
para utilizar tal instituto apenas de maneira excepcional38
.
36 Ibidem, p.120. 37 Ibidem, p. 121. 38 A doutrina, em sua maioria, defende uma interpretação restritiva no uso do pedido de suspensão. A
jurisprudência também tem alguns parcos julgados em que defende a interpretação restritiva das hipóteses de
utilização do instrumento. Por exemplo, PROCESSUAL CIVIL. SUSPENSÃO DE LIMINAR.
INSTRUMENTO PROCESSUAL DE EXCEÇÃO. LEGISLAÇÃO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. FEITOS DE NATUREZA PENAL. 1. Em face da ausência de previsão legal, não é possível a utilização de
Pedido de Suspensão para sobrestar os efeitos de liminar concedida em Revisão Criminal, que suspendeu o
cumprimento de condenação por prática de peculato. 2. Agravo Regimental a que se nega provimento. (AgRg
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Assim, outras medidas podem ser visualizadas para a retirada do ordenamento
jurídico brasileiro deste instituto ou mesmo uma maior cobrança da população e dos órgãos
fiscalizadores por um uso adequado do mesmo. A respeito desta cobrança, pode-se citar
uma iniciativa citada por Elton Venturi, narrando que:
Para que se tenha uma breve ideia da controvérsia atualmente
gerada pelo uso indiscriminado dos pedidos de suspensão, diversas
organizações da sociedade civil brasileira, irresignadas com a
possível arbitrariedade com a qual o TRF da 1ª Região ordenou as
suspensões de provimentos judiciais liminares que, acatando
pedido do Ministério Público Federal em ação civil pública,
suspendiam a construção da Usina de Belo Monte, no Estado do
Pará, encaminharam à “Relatoria de Independência de Juízes e
Advogados da ONU” uma solicitação formal no sentido de que a
referida entidade expeça recomendações ao Estado brasileiro, no
sentido de se superar a contradição do mecanismo dos pedidos de
suspensão de liminares e sentenças, na medida em que se verifica
flagrante acúmulo de duas funções contraditórias pelo Presidente
do Tribunal, que tem o poder de anular decisões contrárias ao
Poder Executivo ao mesmo tempo em que tem a necessidade de
negociar com este Poder o orçamento do Tribunal, confundindo
assim, a relação política com a competência para julgar o Poder
Público, conforme notícia divulgada no site www.global.org.br.39
Como se nota, um desses caminhos é pressionar o Estado brasileiro para que,
mesmo não retirando o instituto do ordenamento, pelo menos o utilize de forma adequada,
realizando uma interpretação restritiva dos casos de aplicação da norma.
4 CONSTITUCIONALIDADE DO PEDIDO DE SUSPENSÃO PER SALTUM
Além da discussão acerca da constitucionalidade do pedido de suspensão
na SLS .190/SE, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/03/2006, DJ
10/04/2006, p. 94) 39 Ibidem, p. 34.
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propriamente dito, questiona-se ainda com mais veemência, com maiores adeptos a favor
de sua inconstitucionalidade, a possibilidade de renovação do pedido de suspensão
denegado junto aos Tribunais Superiores que foi inicialmente trazida pela MP 2.180-35 e
posteriormente confirmada pela lei 12.026/09. Dispõem os §§ 1º e 2º do art. 15 da Lei nº
12.016/09:
Art. 15. [...].
§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se
refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao
presidente do tribunal competente para conhecer de eventual
recurso especial ou extraordinário.
§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1º
deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento
interposto contra a liminar a que se refere este artigo.
Esses dois dispositivos, também previstos nos §§ 3º e 4º da Lei nº 8.437/92,
preconizam, de forma sucinta, que das decisões de indeferimento dos pedidos de suspensão
perante os tribunais de 2ª instância, podem os entes públicos legitimados fazer um novo
pedido de suspensão ao STJ ou STF, requerendo a sustação dos efeitos da liminar
concedida, em face das hipóteses de grave lesão previstas.
Conforme já citado através de trecho do ilustre processualista Nelson Nery
Júnior, considerando-se as situações possíveis através da análise da norma, na concessão
de uma liminar, caberá tanto um pedido de suspensão, quanto a interposição do agravo de
instrumento; se aquele pedido for indeferido, caberá tanto um novo pedido de suspensão,
quanto o atravessamento de agravo interno; desprovido o agravo de instrumento
eventualmente interposto, caberá um novo pedido de suspensão, e, desprovido o agravo
interno do indeferimento do pedido de suspensão, caberá novo pedido de suspensão. Uma
vez não acolhidos todos aqueles pedidos de suspensão, e proferida sentença que modifique
a decisão de mérito,40
caberá mais um pedido de suspensão, e indeferido esse pedido e
interposto (e denegado) eventual agravo interno do indeferimento, caberiam novos pedidos
40 Isso porque há entendimento no sentido de que, se a suspensão de liminar que foi objeto de agravo interno foi indeferida pelo órgão pleno do Tribunal, e a sentença mantém os mesmos fundamentos e a mesma decisão
de mérito, haveria vinculação do Presidente desse Tribunal da suspensão de segurança que viesse a ser
prolatada.
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de suspensão, uma vez que, conforme a natureza do tema versado, as suspensões poderão
ser duplas, indo tanto ao STJ quanto ao STF. Numa situação extrema, mas legalmente
autorizada, o Poder Público teria nada mais que doze oportunidades de suspensão
mandamental para um mesmo processo.
Em que pese defendermos a constitucionalidade do pedido de suspensão de
segurança, achando-a, entretanto, desnecessária, o instituto da renovação do pedido de
segurança, a nosso ver, foge da razoabilidade. O pedido de suspensão de segurança já seria
o meio adequado para corrigir graves lesões ao interesse público não sendo necessária a
criação de mais um instrumento para defesa deste interesse, pois neste caso, em face da
gritante irrazoabilidade e desproporcionalidade, entendemos por inconstitucional tal
dispositivo.
Trata-se de verdadeiro e inegável abuso na utilização da via processual para se
buscar qualquer que seja o fim público almejado, com excesso de atividades burocráticas e
custosas para a Fazenda Pública, tornando ainda mais ineficiente o Poder Judiciário,
notadamente na segunda instância (mediante violação ao devido processo legal e à duração
razoável do processo).
Outro detalhe relevante no que diz respeito à pluralidade de suspensões está no
fato de que as de segundo nível (ou seja, as que decorrem de negativa de suspensão ou de
agravo interno, dirigidas ao STF ou ao STJ conforme o tema) já não possuem por
fundamento aquela decisão cautelar originalmente proferida pelo juiz natural, mas atacam
uma decisão com análise restrita aos fundamentos da suspensão negada – ordem, saúde,
segurança ou economia públicas – aliadas eventualmente a um mínimo de verificação do
fumus boni juris por parte da Administração. Dessa forma, corre-se o risco de ter uma
decisão suspensa por um Tribunal sem o conhecimento explícito de sua fundamentação,
que poderia motivar nova negativa, mas que, em virtude da restrição argumentativa da
primeira suspensão de liminar, acaba sendo obscurecida pelo teor desta.
Costuma-se apontar, ainda nessa hipótese, a questão da suspensão da não
suspensão ou suspensão “per saltum”41
, ou ainda a suspensão “por salto de instância”42
,
41 ROCHA, Caio Cesar Vieira. O pedido de suspensão de decisões proferidas contra o poder público.
Dissertação. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2006, p. 155. 42 CAVALCANTE, Mantovanni Colares. Mandado de Segurança. Dialética. São Paulo: 2002, p. 171.
Ainda segundo este autor, p. 173, “Essa fórmula de interposição de nova suspensão de segurança, dirigida
diretamente ao presidente do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, acaba formando
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reforçando a abusividade do instituto, diante da qualificação da violação da garantia do juiz
natural, por autorizar que tribunal superior decida sobre matéria ainda em discussão no
juízo monocrático, quando haveria a clara necessidade de esgotamento da instância
inferior.
Entretanto, ainda se discute em sede jurisprudencial a possibilidade de
julgamento do novo pedido de suspensão antes de esgotadas as instâncias do pedido de
suspensão anterior43
.
A despeito das questões processuais acima postas apenas a título de trazer mais
subsídios para o debate, o certo é que a medida em questão soa como desproporcional e
irrazoável, por ultrapassar os limites constitucionais permitidos para proteção do interesse
público, já protegido através da possibilidade do primeiro pedido de suspensão.
5 CONCLUSÃO
O presente trabalho, dentro das limitações existentes, procurou verificar
aspectos constitucionais relativos ao pedido de suspensão de segurança. Iniciou-se através
de uma breve análise histórica do instituto, trazendo as principais alterações legislativas
ocorridas desde seu surgimento no ordenamento jurídico brasileiro, no ano de 1936. Viu-se
que, apesar de todas as críticas formuladas por ilustres processualistas o pedido de
suspensão continua sendo amplamente utilizado, até mesmo em casos que originariamente
não estariam englobados em suas hipóteses.
Dentro do objetivo pretendido, procurou-se verificar as principais teses que
sustentam a constitucionalidade e a inconstitucionalidade do instituto. Foram trazidos os
argumentos de supremacia do interesse público sobre o privado, bem como a defesa de
uma jurisdição seletiva, ficando a cargo dos órgãos de jurisdição especial o julgamento de feitos que
competiria aos órgãos de jurisdição comum.” [grifos no original]. 43 O STJ, mudando seu posicionamento, tem vislumbrado a possibilidade de julgamento do novo pedido de
suspensão antes de esgotadas as instâncias do pedido anterior. Por exemplo: AGRAVO REGIMENTAL.
SUSPENSÃO DE LIMINAR. PLEITO INDEFERIDO PELO PRESIDENTE DO TRIBUNAL A
QUO. FORMULAÇÃO DE NOVO PEDIDO PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
AGRAVO INTERNO NA CORTE DE ORIGEM. DESNECESSIDADE. – Nos processos de incidência da
Lei n. 8.437, de 30.6.1992, o ajuizamento de novo pedido de suspensão junto ao Superior Tribunal de Justiça,
após negado o primeiro pelo Presidente do Tribunal a quo, não se condiciona à interposição ou ao julgamento
de agravo interno na origem. Precedente: AgRg na SL n. 96-AM. Agravo provido, a fim de que seja decidido
o mérito do pedido de suspensão. (CE, AgRg na SLS 370/PE, rel. Min. Barros Monteiro, j. 06.06.2007, DJ 13.08.2007). Já o STF tem sido mais restrito, não possibilitando a análise do pedido antes de esgotadas as
instâncias do pedido anterior, salvo em casos excepcionais (STF, STA 311/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, j.
12.03.2009).
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mandamentos constitucionais que garantem ao estado a utilização de meios (prerrogativas)
para proteger os interesses coletivos. Ao mesmo tempo, apresentaram-se argumentos no
sentido da inconstitucionalidade do dispositivo como violação ao princípio da isonomia, do
devido processo legal, entre outros.
Ademais, também se verificou o problema da constitucionalidade do chamado
pedido de suspensão per saltum, uma espécie de renovação de pedido de suspensão
denegado por tribunal de 2ª instância, direcionado ao STF ou STJ.
Como resultado da reflexão, entende-se que a norma que prevê o pedido de
suspensão de segurança pode sim ser justificada como norma constitucional, por ter como
fundamento a proteção do interesse da coletividade. Acontece que, conforme exposto, o
uso inadequado de tal dispositivo, aliado a outras alternativas recursais presentes
atualmente em nosso ordenamento acabam por não mais justificar, pelo menos neste
momento histórico, a manutenção do pedido de suspensão
Assim, não estando a máquina pública, aqui entendida não somente como a
gama dos três poderes, preparada para a utilização de forma restritiva e excepcional do
pedido de suspensão, urge como medida necessária e essencial a extinção de tal instituto do
nosso ordenamento, sendo a via legislativa a mais adequada para tal tarefa, visto que a
inconstitucionalidade do dispositivo, no nosso entendimento, não pode ser declarada.
De forma contrária, em relação ao pedido de suspensão de segurança per
saltum, entende-se que o mesmo viola o princípio da razoabilidade e proporcionalidade,
trazendo uma garantia que vai além do interesse da coletividade, visto que tal interesse já
pode ser verificado quando do julgamento do primeiro pedido de suspensão, sendo,
portanto, um privilégio da Administração Pública, devendo assim ser declarada
inconstitucional pela Corte Suprema.
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AS AÇÕES COLETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: DE
ONDE VIEMOS, ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS?
COLLECTIVE ACTIONS IN CONTEMPORARY BRAZILIAN LAW: WHERE WE
COME FROM, WHERE ARE WE AND WHERE WILL WE GO?
Andre Vasconcelos Roque
Doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ.
Professor de Direito Processual Civil em cursos de pós-
graduação (UFJF e UNIT). Membro do IBDP, CBAr e IAB.
Advogado.
RESUMO: O tema das ações coletivas, nas últimas décadas, vem recebendo destaque cada
vez maior na doutrina brasileira. O desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil foi
marcado por três grandes momentos: a aprovação da Lei da Ação Civil Pública em 1985, a
promulgação da Constituição da República de 1988, e o advento do Código de Defesa do
Consumidor em 1990. No entanto, embora não sejam poucos os méritos, os processos
coletivos no Brasil falharam em sua promessa de proporcionar uniformidade de decisões,
celeridade e economia processual. O presente artigo, assim, visa a investigar quais são as
perspectivas para as ações coletivas no Brasil, destacando o recente desenvolvimento de
um microssistema de processos coletivos, as tentativas de codificação sobre a matéria e o
papel que elas desempenharão no futuro, junto com outros meios de resolução coletiva de
litígios.
PALAVRAS-CHAVE: Ações coletivas – Microssistema – Reformas legislativas –
Incidente de resolução de demandas repetitivas.
ABSTRACT: The theme of collective actions, in recent decades, received growing
attention in the Brazilian doctrine. The development of collective protection in Brazil was
marked by three major episodes: the approval of the Public Civil Action Law in 1985, the
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promulgation of the Constitution of 1988 and the advent of the Code of Consumer
Protection in 1990. However, in spite of its considerable merits, collective actions in Brazil
failed in its promise to provide uniformity of decisions, speed and procedural economy.
This article therefore aims to investigate what are the prospects for collective action in
Brazil, highlighting the recent development of a microsystem of collective actions, the
attempts to approve a code on the matter and the role they will play in the future, along
with other collective dispute resolution procedures.
KEYWORDS: Collective actions – Microsystem – Legislative reforms – Incident of
repetitive dispute resolution.
SUMÁRIO: 1. De onde viemos – 2. Onde estamos – 3. Para onde vamos; 3.1 O
microssistema dos processos coletivos; 3.2 Rumo à codificação?; 3.3 As ações coletivas e
outros meios de resolução coletiva de litígios – 4. Considerações finais – 5. Referências
bibliográficas.
1. De onde viemos
O tema das ações coletivas, nas últimas décadas, vem recebendo destaque cada vez
maior na doutrina brasileira. Mesmo a partir das discussões que se desenvolvem sobre o
novo Código de Processo Civil, que concentrou sua atenção em outro instituto voltado à
resolução de litígios de massa (o “incidente de resolução de demandas repetitivas”), não se
arrefeceram os debates sobre os novos rumos da tutela coletiva no Brasil, suas perspectivas
e dificuldades. A rejeição, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados, do Projeto de Lei nº 5.139/2009, que propunha uma nova Lei da Ação Civil
Pública, foi apenas uma etapa (negativa?) no lento processo de aprimoramento da tutela
coletiva no Brasil.
Uma ação coletiva, por definição, envolve a tutela de interesses compartilhados por
outras pessoas, que não atuam formalmente no processo1. Em qualquer ação dessa
1 Segundo MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro, Ações coletivas e meios de resolução coletiva de
conflitos no direito comparado e nacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 30, a noção de
legitimidade extraordinária (que se caracteriza pela falta de coincidência entre as partes da relação jurídica
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natureza, a pretensão deduzida estará vinculada a uma coletividade, categoria, classe ou
grupo, bem como a indivíduos, não pertencendo o bem tutelado, com exclusividade, às
partes formais do processo. Diferencia-se o instituto em questão do litisconsórcio, na
medida em que tal fenômeno seria incapaz de tutelar de forma minimamente eficiente e
adequada os interesses de milhares ou até mesmo de milhões de pessoas em um único
processo, sem comprometer seu bom andamento e sua razoável duração.
Sem dúvida nenhuma, o direito brasileiro ocupa papel de destaque entre os países
da civil law no âmbito das ações coletivas. Não é a oportunidade adequada para se
apresentar um exame histórico detalhado da matéria no Brasil, mas não se poderia deixar
de destacar três diplomas que foram essenciais para a consolidação da tutela coletiva no
país: a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), a Constituição da República de 1988 e
o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Ao longo dos últimos vinte anos,
não apenas foram aprovadas estas e outras leis importantíssimas, como se despertou o
interesse de substanciosa doutrina sobre o tema. O assunto desponta, a todo momento, em
inúmeras monografias, dissertações de mestrado, teses de doutoramento e artigos
específicos2.
Em linhas gerais, as ações coletivas brasileiras se desenvolveram a partir das class
actions norte-americanas, mas por via indireta, principalmente através dos estudos da
doutrina italiana na década de setenta do século passado3. Embora já existisse no Brasil a
Lei da Ação Popular desde a década anterior (Lei nº 4.717/1965), até aquele momento, a
doutrina ainda não havia voltado as suas atenções para o estudo dos interesses coletivos e
da sua tutela em juízo4.
Os estudos da doutrina italiana sobre o tema durante os anos setenta foram aqui
recebidos por importantes processualistas. O desenvolvimento da problemática atinente à
proteção dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos foi marcado pelo
processual e as partes da relação jurídica de direito material defendida em juízo) seria essencial à definição
de uma ação coletiva. 2 V. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Defendant class action brasileira: limites propostos para o “Código
de Processos Coletivos”. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro;
WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos
Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 308/309. 3 V., GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. In: A
marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 17/23, reproduzido em GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado. 9 ed. rev. atual. e amp. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 792/797. 4 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 192.
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pioneiro estudo do mestre José Carlos Barbosa Moreira, intitulado A ação popular do
direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses
difusos” e publicado originalmente ao final da década de setenta5. Em síntese, tal estudo
estabeleceu uma tipologia dos interesses supraindividuais, refletindo na classificação legal
adotada anos mais tarde pelo art. 81 do Código de Defesa do Consumidor6.
Ainda no final da década de setenta do século XX, também se destacaram no estudo
do tema os não menos eminentes juristas Ada Pellegrini Grinover e Waldemar Mariz de
Oliveira Júnior, que publicaram importantes trabalhos, em que buscavam desbravar os
novos conceitos e questões envolvidas na tutela jurisdicional dos interesses coletivos e
difusos7. Os esforços e o ativismo da doutrina processualista, aliados à fase de
redemocratização e de fortalecimento dos novos direitos por que passava o Brasil na
década seguinte, criaram as condições ideais para o desenvolvimento da tutela coletiva8. O
Ministério Público começou também a chamar para si novas responsabilidades, como a
proteção ambiental e ao patrimônio público, indo além da tradicional persecução penal e da
defesa dos incapazes.9
5 V. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela
jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: Temas de direito processual (primeira série). 2 ed. São
Paulo: Saraiva, 1988, p. 110/123. 6 V., nesse sentido BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular... Op. Cit., especialmente p.
111/113, refletindo sobre hipóteses que caracterizam os atuais direitos difusos e coletivos stricto sensu. Por
outro lado, a noção de direitos individuais homogêneos constitui uma inovação do sistema jurídico brasileiro,
em certa medida inspirado neste aspecto nas class actions americanas de tipo (b)(3). V. WATANABE,
Kazuo. Disposições gerais (arts. 81 a 90). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 826. 7 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. In: Novas tendências do
Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990 (estudo publicado originalmente em 1979) e
OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos, Revista de
Processo, n. 33, p. 7/25, jan./mar. 1984 (trabalho publicado originalmente em 1978). 8 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit., p. 193; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes.
Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2013, v. 4, p. 30. Segundo pondera Márcio Flávio
Mafra Leal, não houve propriamente um movimento social para o desenvolvimento das ações coletivas no
Brasil, mas sim uma “revolução” de professores e profissionais do Direito, influenciados pelos estados da
doutrina italiana. V. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 184. No entanto, se não fossem as condições sociais e históricas de redemocratização do Brasil na época, é provável que os processos coletivos tivessem ficado confinados aos
círculos acadêmicos. 9 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 193.
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2. Onde estamos
Como já visto acima, o desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil foi marcado
por três grandes momentos: a aprovação da Lei da Ação Civil Pública em 1985, a
promulgação da Constituição da República de 1988, e o advento do Código de Defesa do
Consumidor em 199010
. Passados mais de vinte anos desde a aprovação da Lei de Ação
Civil Pública, o direito brasileiro consolidou-se em uma posição de vanguarda na matéria.
A experiência do Brasil influenciou outros países, sobretudo na América Latina, a
prestigiarem e consolidarem a tutela de direitos e interesses transindividuais em seus
ordenamentos jurídicos11
.
A legislação brasileira atual em termos de ações coletivas, que se encontra
estruturada basicamente na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do
Consumidor, revela extraordinários méritos. Em primeiro lugar, o art. 81 do Código
consumerista estabelece uma definição legal do que constituem os interesses e direitos
difusos e coletivos stricto sensu, evitando controvérsias que ainda não foram bem
resolvidas até hoje em outros países12
. Além disso, inovando em relação à doutrina italiana
clássica, previu uma categoria dos chamados direitos e interesses individuais homogêneos,
em certa medida inspirada nas class actions americanas de categoria (b)(3), permitindo
assim que direitos individuais de origem comum pudessem ser coletivamente tutelados em
10 Evidentemente, o presente estudo não tem por objetivo apresentar um exame histórico detalhado das ações
coletivas no Brasil. Sobre o tema, entre muitos outros, v. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit.,
p. 191/200; LEAL, Márcio Flávio Mafra. Op. Cit., p. 183/187; LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil
pública. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 150/158; DINAMARCO, Pedro da
Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 36/40; LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do
processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 52/55 e MANCUSO, Rodolfo de Camargo.
Jurisdição coletiva e coisa julgada – teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 47/55. 11 De uma forma geral, a influência foi sentida de forma indireta, passando sobretudo pelos princípios do
Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América, que incorporou a ideia brasileira da tutela
jurisdicional dos interesses difusos, com algumas modificações. Nesse sentido, relatando a influência do
Código Modelo sobre as legislações do Uruguai, Argentina, Portugal, Chile, Paraguai, Peru, Venezuela e
Colômbia, em maior ou menor extensão, v. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Modelo de Processos
Coletivos para Ibero-América – Exposição de Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.).
Tutela coletiva – 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos; 15 anos do
Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006, p. 26/27. 12 Segundo José Carlos Barbosa Moreira, os direitos difusos eram conhecidos ao final da década de setenta na
doutrina italiana como um “personagem absolutamente misterioso”. V. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular do direito brasileiro... Op. Cit., p. 113. A expressão é encontrada em VILLONE, Massimo.
La collocazione istituzionale dell’interesse diffuso. La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato.
Milano: Giuffrè, 1976, p. 73.
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um único processo, com o objetivo de promover o acesso à justiça, a economia processual
e uniformidade das decisões.
Ainda que se possa eventualmente questionar se o direito pátrio andou bem ou não
em estabelecer uma categorização apriorística de direitos que podem ser tutelados em
processos coletivos13
, não há dúvidas de que a solução prevista representou uma louvável
tentativa de superação das controvérsias doutrinárias então existentes14
.
Além de romper, ainda que em parte15
, com o dogma do processo individualista,
preocupado apenas em resolver conflitos atomizados, não molecularizados16
, a legislação
brasileira ainda revela outros méritos. Algumas disposições do CDC são muito
interessantes.
Um exemplo é o regime da coisa julgada, em que não se aderiu à sistemática pro et
contra (com a formação de coisa julgada material erga omnes independentemente do
resultado), nem à alternativa do modelo secundum eventum litis (em que somente haverá
formação de coisa julgada material em caso de vitória do grupo). O legislador brasileiro
procurou contornar os inconvenientes dos dois modelos clássicos, ao estabelecer um
regime peculiar, no qual a coisa julgada opera com eficácias diferentes nos planos coletivo
e individual. No plano coletivo, a coisa julgada se apresenta pro et contra, impedindo que
sejam repropostas ações coletivas idênticas por qualquer dos colegitimados,
independentemente do resultado da demanda17
. Entretanto, a extensão de seus efeitos à
esfera jurídica dos membros da coletividade terá eficácia secundum eventum litis, somente
para beneficiar o grupo (art. 103 do CDC). Embora talvez seja a hora de repensar o regime
13 Para uma crítica ampla sobre o tema, v. ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions – ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: Juspodivm, 2013, p. 542 e ss. 14 V. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos – Conceito e legitimação para agir. 6 ed. rev.
atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 82/86. 15 A ressalva é importante porque a legislação brasileira em matéria de ações coletivas ainda não conseguiu
romper completamente as amarras do processo individual. Nesse sentido, entre outros, v. ALMEIDA,
Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
p. 109 (entendendo que nem mesmo as recentes propostas de sistematização, analisadas a seguir,
conseguiram romper com os dogmas do processo individual regulado no CPC). 16 A expressão é utilizada por Kazuo Watanabe. V. WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os
problemas emergentes da práxis forense, Revista de Processo, n. 67, jul./set. 1992, p. 23. 17 Salvo na hipótese de improcedência por insuficiência de provas em relação às ações para defesa de direitos e interesses difusos e coletivos, hipótese em que não haverá a formação de coisa julgada material (coisa
julgada secundum eventum probationem) e uma nova ação coletiva poderá ser proposta por qualquer um dos
legitimados ativos, desde que se apresente nova prova.
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da coisa julgada nas ações coletivas brasileiras18
, não se pode deixar de reconhecer que a
solução apresentada é bem interessante.
Apesar dos méritos da legislação sobre ações coletivas no Brasil, há ainda muito a
se fazer. A experiência brasileira na matéria se amadureceu razoavelmente, mas também
revelou sérias deficiências de nosso sistema. Uma das dificuldades observadas na prática
tem sido o tempo de tramitação das ações civis públicas. Muito embora se trate de uma
questão comum a todo o processo civil, que ainda não recebeu o equacionamento devido
em muitos outros países mundo afora19
, sendo ilusão imaginar que a morosidade da justiça
seria um problema exclusivamente nacional, não se pode também ignorar que o problema
assume feições ainda mais graves e patológicas no âmbito das ações coletivas brasileiras.
Além disso, embora seja verdade que a legislação brasileira teria rompido, pelo
menos em parte, com o dogma de um processo eminentemente individualista, não se pode
deixar de considerar que nenhuma ruptura ocorre sem resistência. Inicialmente, alguns
juristas e juízes apontaram obstáculos aparentemente insuperáveis nas ações coletivas ou
consideraram que estava sendo instituído um injusto privilégio contra o réu, especialmente
em relação ao regime da coisa julgada20
. Nada obstante, o fortalecimento dos novos
direitos e o processo de redemocratização no Brasil ao final da década de oitenta do século
XX criaram um ambiente propício para que pouco a pouco fosse superada a resistência dos
mais conservadores.
Muito mais grave do que a resistência de alguns juristas e juízes foi constatar que a
legislação processual, construída sobre alicerces individualistas, precisava ser conformada
à nova realidade. Embora o Código de Defesa do Consumidor disciplinasse vários aspectos
das ações coletivas, diversos institutos permanecem regulados somente no Código de
Processo Civil. Coube à doutrina e à jurisprudência a árdua tarefa de revisitar os institutos
do processo civil individual e adaptá-los gradativamente para a realidade das ações
coletivas, nem sempre com resultados animadores. Evidência disso são os problemas
observados na prática quanto à litispendência, conexão, continência e prevenção, institutos
18 Sobre o ponto, confira-se, amplamente, ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions... Op. Cit., p. 590 e ss. 19 V. amplamente, sobre as causas da morosidade dos processos judiciais, ROQUE, Andre Vasconcelos, A
luta contra o tempo nos processos judiciais: um problema ainda à busca de uma solução. Revista Eletrônica
de Direito Processual, n. 7, p. 237-263, jan./jul. 2011, disponível em www.redp.com.br (acessado em 19 de
agosto de 2012). 20 V., por exemplo, MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Na ação do consumidor, pode ser inútil a defesa do fornecedor, Revista do Advogado, v. 33, dez. 1990, p. 80/82, reeditado em uma coletânea de obras do
autor: MESQUITA, José Ignacio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, v. 3, p. 221/225.
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ainda não disciplinados de forma satisfatória nas demandas coletivas. Não é incomum, por
exemplo, que várias ações civis públicas, concomitantes ou sucessivas, sejam processadas
em diferentes juízos, ocasionando decisões contraditórias, harmonizadas apenas nas
instâncias superiores21
.
A própria legislação sobre processos coletivos apresenta sérias deficiências em
alguns aspectos. No Brasil, em sede de direitos e interesses individuais homogêneos, a lei
se satisfaz com a publicação de um edital no Diário Oficial, convocando os interessados a
intervirem como litisconsortes na ação coletiva, se quiserem. Segundo o art. 94 do CDC,
outros meios de comunicação são possíveis, mas apenas a publicação do edital é
obrigatória. A deficiência da forma de comunicação se afigura evidente: a presunção de
conhecimento a todos pela simples publicação no Diário Oficial transmuda-se em
verdadeira ficção jurídica22
. Com exceção dos casos de repercussão na mídia, é provável
que os interessados nunca tomem ciência da ação civil pública e jamais se habilitem para
liquidar individualmente a condenação genérica, em caso de procedência do pedido (art. 97
do CDC)23
.
Pior: como o sistema de vinculação na lei brasileira não adota como referência a
ação coletiva, preferindo levar em consideração a conduta dos autores individuais em suas
ações singulares, o problema se potencializa. Ao não adotar nem o sistema de inclusão
(opt-in), nem o de exclusão (opt-out), o prazo de trinta dias previsto no art. 104 do CPC
21 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos – Exposição de
Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 1. O exemplo dos
casos envolvendo a discussão sobre as assinaturas de telefonia fixa é bastante eloquente. Segundo um estudo
empírico realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ), presidido por Kazuo
Watanabe, foram propostas vinte e seis ações coletivas de idêntico objeto contra a Telesp, tanto na Justiça
Estadual como Federal. As várias ações coletivas ajuizadas, todavia, não foram capazes de conter a sangria
de milhares de ações individuais também questionando a legalidade da assinatura telefônica, sobretudo nos
Juizados Especiais Cíveis. As dúvidas envolvendo qual seria o juízo competente, a possibilidade de reunião das ações coletivas e mesmo de suspensão dos processos individuais ensejaram o Conflito de Competência nº
48.177/SP, apreciado pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça. V. STJ, CC 48.177/SP, 1ª S, rel.
Min. Francisco Falcão, rel. p/ ac. Min. Teori Albino Zavascki, j. 14.9.2005, DJ 5.6.2006 e o estudo do
CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses metaindividuais. Ações coletivas. Brasília: Ideal, 2007, p. 62 e segs. 22 V., entre outros, VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Alguns aspectos sobre a ineficácia do procedimento
especial destinado aos interesses individuais homogêneos. In: MILARÉ, Édis (Coord.). A ação civil pública
após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 328/329. 23 A propósito, defende Paulo Cézar Pinheiro Carneiro que o direito à informação desponta, ao mesmo
tempo, como ponto de partida (no campo individual) e ponto de chegada (nas ações coletivas) rumo ao
efetivo acesso à justiça. Ponto de partida porque, sem ele, vários direitos não seriam reclamados em ações
individuais. E ponto de chegada porque eventuais direitos reclamados nas ações coletivas precisam ser conhecidos pelos interessados, para que eles possam usufruir da tutela jurisdicional. V. CARNEIRO, Paulo
Cézar Pinheiro. Acesso à justiça – Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 54/55.
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para que o autor requeira a suspensão de sua demanda individual passa a ser ilusório24
.
Ainda que se entenda que a publicação do edital no Diário Oficial bastaria para dar início
ao prazo previsto no dispositivo, provavelmente poucas pessoas terão conhecimento
efetivo da demanda coletiva e menos indivíduos ainda suspenderiam seus processos. O
resultado dessa equação é trágico: várias ações civis públicas e individuais sobre a mesma
questão tramitam ao mesmo tempo em diversos juízos, comprometendo seriamente os
objetivos da tutela coletiva.
Finalmente, não se pode desprezar a resistência do Poder Público às ações
coletivas25
. Nesse sentido, o principal recuo sofrido nos últimos anos se deu quando o art.
16 da Lei de Ação Civil Pública foi modificado, para dispor que a coisa julgada erga
omnes ficaria restrita aos limites da competência territorial do órgão prolator26
.
O dispositivo merece severas críticas. Primeiro, porque fraciona o alcance das
ações coletivas, estimulando a instauração de vários processos idênticos na hipótese de
danos de âmbito regional ou nacional27
. Em um momento em que o processo civil está
disposto a lançar mão até mesmo de súmulas vinculantes para lidar com o aumento da
litigiosidade, tal medida parece na contramão da evolução do processo civil brasileiro.
Além disso, a lei ignora que, quando o interesse for difuso ou coletivo stricto sensu, haverá
indivisibilidade ontológica do objeto, não se admitindo por isso o fracionamento da tutela
processual28
.
24 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 262. 25 Nesse sentido, aludindo aos recuos ocasionais da tutela coletiva, v. MENDES, Aluisio Gonçalves de
Castro. O anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivos: uma visão geral e pontos sensíveis. In:
GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito
Processual Coletivo... Op. Cit., p. 17. 26 Este não foi o único recuo imposto pelo legislador às ações coletivas, todavia. Outros exemplos criticáveis
de reforma legislativa podem ser encontrados no art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, acrescentado pela Medida
Provisória 2.180-35/2001, que restringe os efeitos da sentença em ações coletivas propostas por associações aos associados com domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator e no art. 1º, parágrafo
único da Lei de Ação Civil Pública, também inserido pela Medida Provisória 2.180-35/2001, que proíbe a
propositura de ações coletivas que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, FGTS e outros fundos
de natureza institucional cujos beneficiários possam ser individualmente determinados. 27 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da coisa julgada (arts. 103 e 104). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al.
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto... Op. Cit., p. 939;
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 149/157; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.
Ações coletivas... Op. Cit., p. 264/266 e MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública – Em defesa
do meio-ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 300. 28 V., DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 150; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública... Op. Cit., p. 298 e FREIRE E SILVA, Bruno. A ineficácia da tentativa de limitação territorial
dos efeitos da coisa julgada na Ação Civil Pública. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.).
Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 338/339. V., no entanto, a posição de
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Por outro lado, a partir do momento em que foi aprovado o Código de Defesa do
Consumidor, a coisa julgada nas ações coletivas passou a ser regulada pelo art. 103 do
CDC. O legislador da Lei nº 9.494/1997, além de motivado por intenções censuráveis de
enfraquecer a tutela coletiva29
, foi incompetente: esqueceu-se de inserir a alteração no
CDC30
. Além disso, esqueceu-se de alterar o art. 18 da Lei de Ação Popular, fonte de
inspiração do art. 16 original da Lei de Ação Civil Pública. Como, em certas hipóteses, a
causa de pedir na ação popular e na ação civil pública poderá ser a mesma, a distinção de
regimes jurídicos para as duas espécies de ações coletivas se mostra despropositada e
ilógica, a reforçar a falta de técnica processual do legislador31
.
Por fim, a inovação inserida pela Lei 9.494/1997 cometeu um gravíssimo equívoco,
ao confundir os conceitos de jurisdição e competência32
. Uma decisão judicial proferida
em um determinado estado pode produzir efeitos em todo o território nacional. Por
exemplo, uma decisão em São Paulo pode vincular bens e pessoas no estado do Rio de
Janeiro, desde que cumpridas as formalidades estabelecidas na legislação processual, tais
como a expedição e autuação de carta precatória. Isso porque todos os órgãos do Judiciário
possuem jurisdição nacional, atributo este decorrente da própria soberania. Ao tolher a
eficácia territorial de uma decisão judicial, o atual art. 16 da Lei 7.347/85 afronta a
jurisdição dos juízes e, em última medida, a própria soberania e independência do
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo – tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos; São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 79/80 (considerando que o dispositivo não pode operar para direitos e
interesses difusos e coletivos em virtude de sua indivisibilidade, mas sustentando que, nos individuais
homogêneos, ele pode ser interpretado como uma norma limitadora do rol dos substituídos). 29 Nesse sentido, v. ABELHA, Marcelo. Ação civil pública e meio ambiente. 2 ed. rev. amp. e atual. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 245/246. No mesmo sentido, v. LEONEL, Ricardo de Barros. Op.
Cit., p. 175/180 e 282/285 e GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública refém do autoritarismo. In: O processo – Estudos & Pareceres. São Paulo: Perfil, 2005, p. 238. 30 Segundo Aluisio Mendes, o artigo 16 da Lei 7.345/85 deveria ser considerado revogado de forma tácita
pelo art. 103 do CDC. V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 265.
Também nesse mesmo sentido, FERREIRA, Rony. Coisa julgada nas ações coletivas. Restrição do artigo 16
da Lei de Ação Civil Pública. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 139 e ARAÚJO FILHO, Luiz
Paulo da Silva. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito processual. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 185. O argumento se mostra duvidoso, porém, uma vez que o próprio artigo 103 do CDC, em seu
parágrafo 3º, se refere ao art. 16 da Lei de Ação Civil Pública. V. ABELHA, Marcelo. Ação civil pública...
Op. Cit., p. 249, nota 4. 31 V. MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 20 ed. rev. atual. e amp. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 262/263. 32 Nesse sentido, v. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública... Op. Cit., p. 298 e NERY JR.,
Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.
258.
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Judiciário33
. Os limites da coisa julgada não devem ser determinados pela competência do
órgão jurisdicional, mas sim pelo objeto do processo, que poderá ultrapassar a área de
competência territorial do juízo34
.
Durante muito tempo, apesar da posição da doutrina dominante35
contra o atual art.
16 da Lei da Ação Civil Pública, a jurisprudência se mostrou vacilante. O Supremo
Tribunal Federal, ao apreciar o pedido liminar na ADIN nº 1.576 ajuizada contra a MP nº
1.570/1997, que se transformou na Lei nº 9.494/1997, afastou a inconstitucionalidade do
dispositivo36
. Segundo o entendimento capitaneado pelo relator Min. Marco Aurélio,
mesmo na redação primitiva, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública limitava a coisa
julgada erga omnes à área de atuação do órgão jurisdicional. O voto do Min. Nélson
Jobim, proferido nesse mesmo sentido, com a devida vênia, incorreu no mesmo equívoco
cometido pelo legislador, ao asseverar que a eficácia erga omnes da coisa julgada deveria
estar restrita à competência territorial do juiz prolator porque, caso contrário, estariam
sendo invertidos os critérios da competência e da territorialidade. Como se vê, o próprio
33 Com efeito, vários autores têm defendido de forma explícita, por vários fundamentos (como a
inobservância do princípio do acesso à justiça, do direito de ação, da razoabilidade, da garantia da coisa
julgada, do devido processo legal, entre outros) a inconstitucionalidade do atual art. 16 da Lei de Ação Civil
Pública. V., entre outros, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 264/266;
LAZZARINI, Marilena. As investidas contra as ações civis públicas. In: LUCON, Paulo Henrique dos
Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 159/162; NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis comentadas... Op. Cit., p. 258, nota 1; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 5 ed.
rev. e amp. São Paulo: Atlas, 2001, p. 122 (sem fundamentar seu entendimento pela inconstitucionalidade);
LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 285 (enfatizando a possibilidade de um conflito prático de julgados
e, em última análise, a violação da garantia constitucional da coisa julgada) e LENZA, Pedro. Op. Cit., p.
288. 34 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. (arts. 103 e 104). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro
de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 942/943. 35 V., contudo, em sentido minoritário, defendendo a constitucionalidade do atual art. 16 da Lei de Ação Civil
Pública, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública – Comentários por artigo. 6 ed. rev. amp.
e atual. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007, p. 430; MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 31 ed.
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 247/250 e ARRUDA ALVIM, Eduardo. Apontamentos sobre o processo das
ações coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo civil coletivo... Op. Cit., p. 56/58 (sustentando expressamente não apenas a constitucionalidade do dispositivo, como a plena eficácia da
limitação territorial para todas as categorias de ações civis públicas). Em sentido um pouco diverso,
DINAMARCO, Pedro da Silva. Competência, conexão e prevenção nas ações coletivas. In: MILARÉ, Édis
(Coord.). A ação civil pública após 20 anos... Op. Cit., p. 507/508 (sustentando que o art. 16 da Lei de Ação
Civil Pública privilegia o critério de competência da proximidade do dano para as ações coletivas e que
somente quando, na prática, for impossível fracionar a tutela jurisdicional coletiva é que ela deverá ter
abrangência maior que a do limite da competência territorial do órgão julgador) e TALAMINI, Eduardo.
Limites territoriais da eficácia das decisões no processo coletivo. Disponível em
http://www.migalhas.com.br (acessado em 26 de julho de 2013) (asseverando o propósito censurável
escondido por trás da norma, mas rejeitando a tese de inconstitucionalidade e buscando interpretar o
dispositivo em conformidade com o art. 93 do CDC, para considerar como âmbito de competência territorial a abrangência dos danos “locais”, “regionais” e “nacionais”, não a comarca ou a seção judiciária, afastando
assim a hipótese de fracionamento de pretensões coletivas indivisíveis). 36 V. STF, ADIn-MC 1.576, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.4.1997, DJ 6.6.2003.
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Supremo Tribunal Federal confundiu os institutos da competência e dos limites subjetivos
da coisa julgada por ocasião do julgamento do pedido liminar37
. Nada obstante, o mérito
não chegou a ser apreciado, pois a Medida Provisória objeto de impugnação na ADIN
acabou convertida na Lei nº 9.494/1997 e a ação foi julgada prejudicada por falta de
aditamento à petição inicial.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sempre houve posicionamentos
distintos e conflitantes sobre a matéria ora versada38
. Embora a orientação dominante
naquele tribunal acolhesse a limitação prevista pelo atual art. 16 da Lei da Ação Civil
Pública, não havia uma posição consolidada acerca do tema.
No ano de 2011, a Corte Especial do STJ, ao apreciar os Recursos Especiais nº
1.243.887 e 1.247.150, julgados no regime do art. 543-C do CPC, reconheceu, ainda que
em obiter dictum, que não apenas o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública embaralha
institutos processuais diversos, como também que tal norma deveria ser revisitada à luz do
art. 93 do CDC. Assim, se o dano é de escala local, regional ou nacional, o juízo
competente, sob pena de ser inócuo o provimento, lançará mão de comando capaz de
recompor ou indenizar os danos local, regional ou nacionalmente, levados em
consideração, para tanto, os seus beneficiários, independentemente da limitação atinente à
competência territorial do órgão prolator39
. Consequentemente, caberia ao consumidor
escolher o juízo mais conveniente para deflagrar a fase de liquidação e de execução
individual da sentença genérica de condenação (seu domicílio, o domicílio do réu, o foro
dos bens sujeitos à eventual expropriação ou o da sentença).
O overrruling veio no ano seguinte, em precedente da Terceira Turma, relatado
pela Min. Nancy Andrighi40
. Decidiu-se expressamente no caso que “a distinção, defendida
inicialmente por Liebman, entre os conceitos de eficácia e de autoridade da sentença, torna
37 No mesmo sentido, v. BATISTA, Roberto Carlos. Coisa julgada nas ações civis públicas: direitos
humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 193. 38 Compare-se, por exemplo, a posição outrora dominante em STJ, RESP 293.407, 4ª T., rel. Min. Barros
Monteiro, rel. p/ ac. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.10.2002, DJ 7.4.2003; RESP 253.589, 4ª T., rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 16.8.2001, DJ 18.3.2002; RESP 485.842, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, j. 6.4.2004, DJ
24.5.2004; RESP 665.947, 1ª T., rel. Min. José Delgado, j. 2.12.2004, DJ 12.12.2005 e EREsp 293.407,
Corte Especial, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 7.6.2006, DJ 1.8.2006 (aceitando a limitação imposta
pelo atual art. 16) com STJ, RESP 557.646, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, j. 13.4.2004, DJ 30.6.2004; RESP
218.492, 2ª T., rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. 2.10.2001, DJ 18.2.2002; REsp 411.529, 3ª T., rel.
Min. Nancy Andrighi, j. 24.6.2008, DJe 5.8.2008 (em sentido contrário, afastando tal limitação). 39 V. STJ, RESP 1.243.887, Corte Especial, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 19.10.2011, DJe 12.12.2011 e
RESP 1.247.150, Corte Especial, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 19.10.2011, DJe 12.12.2011. 40 V. STJ, RESP 1.243.386, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 12.6.2012, DJe 26.6.2012.
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inóqua a limitação territorial dos efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LAP.
A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada
aquela, os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da
competência territorial do órgão julgador”. A jurisprudência mais recente do Superior
Tribunal de Justiça, assim, se inclina no sentido de afastar a limitação estabelecida no atual
art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, esperando-se que haja consolidação desse
entendimento pelos próximos anos41
.
Assim, entre erros e acertos, o mérito obtido pelas ações coletivas no Brasil se
revela notável, porém, limitado em certa medida. Muitos direitos e interesses de natureza
difusa e coletiva stricto sensu, que não tinham até a década de oitenta do século XX
nenhum instituto processual capaz de proporcionar uma tutela adequada, finalmente
puderam ser levados ao conhecimento do Poder Judiciário, com destaque para a proteção
do meio-ambiente. Políticas públicas de diversa natureza puderam ser discutidas através de
processos coletivos, incluindo a regulação de serviços públicos como telefonia, gás e
petróleo, energia elétrica, entre outros. Consolidou-se o regime de proteção e defesa do
consumidor. Ademais, não se pode olvidar do desenvolvimento de ampla doutrina
especializada sobre o tema. Dado o período relativamente curto em que as ações coletivas
foram consagradas de forma mais consistente na legislação nacional, os méritos não são
poucos, nem podem ser ignorados.
No entanto, embora não sejam poucos os méritos, eles são em certa medida
limitados. De forma geral, os processos coletivos no Brasil falharam em sua promessa de
proporcionar uniformidade de decisões, celeridade e economia processual. Apesar do
ajuizamento de várias ações coletivas, nenhuma foi capaz de conter a verdadeira enxurrada
de demandas individuais envolvendo as mais diversas questões. Apenas para ficar nos
exemplos mais atuais, não custa lembrar a imensa quantidade de ações envolvendo os
expurgos inflacionários nas cadernetas de poupança, os pedidos de revisão de
aposentadorias e as demandas questionando a cobrança de assinatura nas contas de
telefone42
, entre muitas outras hipóteses43
.
41 O Projeto de Lei nº 5.139/2009 e o Projeto de Lei do Senado nº 282/2012 possuem regras que, se
aprovadas, representarão a superação da limitação territorial estabelecida pelo atual art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, na medida em que determinam que a competência territorial do órgão prolator não restringirá a
coisa julgada nas ações coletivas. 42 V., nesse sentido, o estudo do CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses... Op. Cit., p. 62 e segs.
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Nem todos os vícios podem ser atribuídos a deficiências na legislação. Contudo, a
revisitação e o correto equacionamento de alguns aspectos da tutela coletiva poderia
facilitar bastante o seu aperfeiçoamento. Como se concluiu em um estudo empírico sobre
as ações coletivas, a principal causa do ajuizamento de demandas coletivas de idêntico
objeto, ao lado de outros processos individuais versando sobre a mesma questão, foi a
ausência de previsão legislativa expressa para o tratamento uniforme de questões
processuais surgidas em ações coletivas repetitivas, bem como de uma orientação
jurisprudencial mais precisa. Isto se dá especialmente em relação aos institutos da conexão,
litispendência, prevenção e, em certa medida, a competência, sobretudo após a
modificação promovida no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública em 199744
. Apenas para se
ter uma ideia, em uma das ações civis públicas em matéria de assinatura telefônica, os
autos foram remetidos de um juízo para outro nada menos que quatro vezes. Dois
processos foram remetidos três vezes e mais três casos foram enviados de um órgão
judicial para outro em pelo menos duas oportunidades. Todo esse tumulto para se decidir
uma questão de mérito relativamente simples, na medida em que a jurisprudência
dominante tem entendido pela legalidade da assinatura.
Por esses motivos, sem deixar de lado as inúmeras conquistas acumuladas, parece
que chegou a hora de repensar o modelo brasileiro de processos coletivos.
3. Para onde vamos?
3.1 O microssistema dos processos coletivos
O primeiro passo para a sistematização das ações coletivas no Brasil foi dado pela
doutrina. A publicação de numerosos estudos sobre o tema, a reestruturação de cursos de
graduação e pós-graduação, incluindo a matéria na grade curricular, bem como a realização
de inúmeros eventos sobre o tema foram condições indispensáveis para que se cogitasse,
43 V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas... Op. Cit., p. 262/263 (referindo-se a outros
exemplos, como lides que diziam respeito a tributos, tais como a CPMF, reajuste da tabela do imposto de
renda, progressividade do IPTU, taxa de lixo ou de iluminação pública, aumento de alíquotas, incidência de
contribuições sociais sobre determinadas categorias; além de incontáveis discussões pertinentes aos funcionários públicos em torno de pleitos como o direito ao reajuste anual, a contagem de tempo dos
celetistas incorporados ao regime único, a transformação de cargos e a extinção de direitos). 44 V. CEBEPEJ. Tutela judicial dos interesses... Op. Cit., p. 87.
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pouco a pouco, de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos que, embora não totalmente
independente, possui importantes peculiaridades.
A inadequação de alguns institutos e princípios do processo individual,
principalmente os que dizem respeito à litispendência, conexão e continência, fortaleceram
a ideia de que estaria surgindo no Brasil um verdadeiro Direito Processual Coletivo45
.
A premissa básica desse novo ramo consiste em reconhecer sua autonomia, na
medida em obedece a princípios e institutos próprios, distintos do direito processual
individual46
. Evidentemente, alguns princípios são comuns a todos os ramos do processo,
notadamente os de origem constitucional, como o devido processo legal e o contraditório.
Mesmo estes, porém, assumem feições peculiares no processo coletivo. O devido processo
legal nas ações coletivas, por exemplo, não exige que os titulares dos direitos tutelados
compareçam pessoalmente em juízo, mas que sejam representados de forma adequada pelo
legitimado coletivo47-48
. Da mesma forma, institutos como a conexão, continência e
litispendência devem ser revisitados. Dada a pluralidade de colegitimados para ingressar
com ação civil pública, não se pode exigir a identidade de partes formais para que haja
litispendência. Estes institutos processuais devem ser reavaliados não segundo os
parâmetros típicos do processo civil individual, mas de acordo com o bem jurídico tutelado
na esfera transindividual.
A concepção de um Direito Processual Coletivo autônomo levou a doutrina a
sustentar a existência de um microssistema legislativo de ações coletivas, estruturado
basicamente na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor. Embora
não se tenha alcançado ainda um sistema verdadeiro, as duas leis se complementam e se
inter-relacionam: a Lei 8.078/90, ao regular a defesa coletiva dos consumidores, previu em
45 Ao que parece, uma das primeiras obras a utilizar a expressão Direito Processual Coletivo foi a de
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro – Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. Outra obra importante a adotar tal perspectiva é de MANCUSO,
Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada... Op. Cit., passim. 46 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES,
Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 11. 47 O princípio é o mesmo no direito norte-americano, em que se considera respeitado o devido processo legal
nas class actions pela representatividade adequada. V. ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions... Op. Cit.,
p. 131/135. Na ausência de uma sistematização teórica das ações coletivas, a jurisprudência americana
considera excepcional a vinculação dos membros ausentes através de seu representante. Não se trata, porém,
de exceção a uma garantia constitucional. Trata-se, isto sim, da revisitação e adequação do devido processo
legal ao Direito Processual Coletivo. 48 V., nesse mesmo sentido, GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Org.). Direito Processual
Coletivo... Op. Cit., p. 12/13 (referindo-se ao princípio de participação, que no processo coletivo não pode ser
exercido de forma individual, mas sim através de um “representante adequado”).
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seu art. 117 uma autorização para que suas disposições fossem aplicadas aos direitos
tutelados na Lei 7.347/85, acrescentando-lhe um dispositivo (art. 21) nesse sentido49
. Por
outro lado, o Código de Defesa do Consumidor se abriu também para as normas contidas
na Lei de Ação Civil Pública, ao permitir, em seu art. 83, todas as espécies de ações
capazes de promover a adequada e efetiva tutela dos interesses dos consumidores, bem
como ao estabelecer, de forma expressa, a aplicação subsidiária das disposições da Lei
7.347/85 (art. 90)50
.
O microssistema das ações coletivas originado da relação de interdependência entre
o CDC e a Lei de Ação Civil Pública é complementado ainda por várias disposições
esparsas tais como os arts. 3º a 7º da Lei nº 7.853/1989; art. 3º da Lei nº 7.913/89; arts. 210
a 213, 215, 217 a 219 e 222 a 224 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/1990); art. 17 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa); art. 2º da
Lei nº 9.494/1997; arts. 80 a 83, 85 e 91 a 93 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e
arts. 21 e 22 da Lei nº 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança).
3.2 Rumo à codificação?
Em um aprofundamento da reflexão sobre a situação do microssistema de processos
coletivos, importantes processualistas chegaram à conclusão de que, passado o período
49 Nesse sentido, o veto presidencial ao art. 89 do CDC, que previa textualmente a aplicação das normas da
lei consumerista a outros direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, acabou ineficaz, porque o art.
117 da Lei 8.078/90 foi sancionado, inserindo um novo art. 21 na Lei de Ação Civil Pública praticamente no
mesmo sentido do dispositivo vetado. Além disso, também foi sancionado o art. 110 do CDC, que alterou a
Lei da Ação Civil Pública para ampliar seu cabimento para qualquer outro interesse difuso ou coletivo. A
doutrina dominante segue esse entendimento, com o qual se concorda integralmente. V., nesse sentido,
WATANABE, Kazuo. Disposições gerais (arts. 81 a 90). In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado... Op. Cit., p. 872/873; GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação civil pública. Defesa de interesses individuais homogêneos. Tutela coletiva e tutela individual. In: O
Processo – Estudos & Pareceres... Op. Cit., p. 489 e NERY JR., Nélson; NERY, Rosa Maria de Andrade.
Leis civis... Op. Cit., p. 254, nota 2. 50 A concepção de um microssistema das ações coletivas hoje se encontra consolidada na doutrina. V., entre
muitos outros, ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 582; ALMEIDA,
Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 55/61; MANCUSO, Rodolfo
de Camargo. Jurisdição coletiva... Op. Cit., p. 52/55 e DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de
direito processual civil... Op. Cit., p. 126/127. A jurisprudência também vem admitindo a existência de um
microssistema de processos coletivos, com seus próprios institutos e princípios, como se verifica em STJ,
RESP 510.150, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, j. 17.2.2004, DJ 29.3.2004 (“A lei de improbidade administrativa,
juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um
microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se
e subsidiam-se”).
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inicial de amadurecimento e consolidação das ações coletivas, era chegada a hora de
repensar o modelo e, mais que isso, de reunir as normas hoje esparsas sobre a matéria em
uma ordenação geral e sistemática51
. Isso se deu por pelo menos dois motivos
fundamentais. Primeiro, porque muitos institutos processuais ainda não haviam sido
regulados de forma satisfatória para as demandas coletivas, especialmente a conexão,
continência e litispendência. Por outro lado, a regulação da matéria em uma complexa
interação de normas autorremissivas cria um sistema inconsistente, que apresenta muitas
dificuldades práticas.
A primeira proposta de sistematização da matéria em um Código de Processo
Coletivo foi elaborada por Antonio Gidi em 2002 e publicada no início de 200452
. Em
linhas gerais, a proposta, intitulada Código de Processo Civil Coletivo. Um modelo para
países de direito escrito, reflete a inequívoca influência da experiência norte-americana das
class actions sobre seu autor. Em alguns aspectos específicos, a proposta apresenta
inovações dissonantes do entendimento da doutrina brasileira dominante, tal como se
verifica com a categorização das ações coletivas, em que se prevê apenas os direitos
difusos e individuais homogêneos (artigo 1.1)53
. Em outros pontos, a proposta revela certa
influência da experiência americana como, por exemplo, no artigo 3.1, em que se
estabelecem os critérios para aferir a adequação do representante e de seu advogado, em
sua maioria extraídos da doutrina e da jurisprudência formadas nos Estados Unidos.
Finalmente, em relação a alguns outros dispositivos, como a competência territorial (artigo
4), ela se limita a repetir a sistemática brasileira atual em linhas gerais, inovando apenas ao
promover criticável concentração de ações coletivas envolvendo danos regionais e
51 A ideia de um Código de Processos Coletivos, entretanto, não convenceu a todos os autores. Nesse sentido, VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 35/41 (sustentando que um código
em matéria de processos coletivos poderia proporcionar um engessamento ainda maior na jurisprudência e
criar a oportunidade para que o Congresso revogasse muitas conquistas já adquiridas). Em sentido um pouco
diverso, ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo... Op. Cit., p. 82/85
(afirmando ser favorável à codificação, mas demonstrando forte ceticismo com os riscos de engessamento e
de retrocessos nas ações coletivas e com as propostas apresentadas até o momento, concluindo ser necessário
antes discutir e incorporar diretrizes metodológicas e principiológicas que possam orientar uma futura
proposta). 52 Na realidade, embora a proposta de Antonio Gidi tenha sido publicada na Revista de Processo, n.º 111,
cuja data nominal corresponde a julho-dezembro de 2003, essa proposta apenas veio efetivamente a público
em 2004, na medida em que a Revista de Processo costuma ser comercializada alguns meses depois da data constante na capa. 53 Contudo, a inovação é mais aparente que substancial, porque o conceito de direitos difusos apresentado na
proposta engloba as atuais categorias de direitos e interesses difusos e coletivos stricto sensu.
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nacionais na Justiça Federal. Sua tônica geral consistiu em aperfeiçoar os instrumentos de
direito positivo nos países de civil law para a tutela coletiva.
Ainda no ano de 2002, em uma reunião promovida pelo Instituto Ibero-Americano
de Direito Processual, surgiu a ideia de um Código Modelo de Processos Coletivos para
Ibero-América, a partir de uma intervenção de Antonio Gidi54
. O principal objetivo era
apresentar não só um repositório de princípios, mas um modelo concreto, adaptável às
peculiaridades de cada um dos países envolvidos, para futuras reformas legislativas na
matéria. A proposta foi elaborada pelos eminentes professores Ada Pellegrini Grinover,
Kazuo Watanabe e Antonio Gidi e apresentada ao final de 2002. Uma comissão integrada
por vários juristas convocados pelo Instituto Ibero-Americano55
aperfeiçoou a proposta,
àquela altura já convertida em anteprojeto56
. Após debatidas as novas propostas,
finalmente o anteprojeto foi aprovado em outubro de 2004, nas Jornadas Ibero-
Americanas, em Caracas (Venezuela).
O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América apresenta algumas
disposições no mesmo sentido que a proposta de Antonio Gidi. Um exemplo se encontra
logo no art. 1º, na categorização dos interesses e direitos objeto de tutela coletiva (são
enunciadas apenas duas categorias: os difusos e os individuais homogêneos)57
. Além disso,
o Código Modelo procurou incorporar em suas normas institutos processuais que não são
específicos da tutela coletiva, mas que se revelam de extraordinária importância prática,
como a antecipação dos efeitos da tutela (art. 5º).
54 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América – Exposição
de Motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 27. 55 A comissão foi integrada pelos seguintes juristas e professores: Ada Pellegrini Grinover, Aluisio
Gonçalves de Castro Mendes, Anibal Quiroga León, Antonio Gidi, Enrique M. Falcón, José Luiz Vázquez
Sotelo, Kazuo Watanabe, Ramiro Bejarano Guzmán, Roberto Berizonce e Sergio Artavia. 56 Durante as discussões do anteprojeto do Código Modelo, antes mesmo de formar a comissão revisora,
vários juristas haviam sido convocados para manifestar sua opinião sobre o Código. A coordenação dessa
tarefa coube a Antonio Gidi (Brasil) e Eduardo Ferrer Mac-Gregor (México), que reuniram os trabalhos em
um livro: GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). La tutela de los derechos difusos,
colectivos e individuales homogéneos – Hacia un Código Modelo para Iberoamérica. 2 ed. Ciudad de
México: Porrúa, 2004. 57 Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, a primeira versão do Código Modelo previa as três
categorias conhecidas de interesses e direitos transindividuais. Na segunda versão, procurou-se o consenso
mediante uma divisão bipartida. Não houve uma ruptura total, todavia, porque os interesses e direitos
coletivos stricto sensu foram agrupados e denominados difusos. V. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.
O Código Modelo de Processos Coletivos para os países ibero-americanos. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo civil coletivo... Op. Cit., p. 732 e MENDES, Aluisio Gonçalves de
Castro. Ações coletivas nos países ibero-americanos: situação atual, Código Modelo e perspectivas, Revista
de Processo, v. 153, nov. 2007, p. 205.
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A partir do final de 2003, as discussões envolvendo o Código Modelo chegaram aos
cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil. No âmbito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP), tais debates resultaram na ideia de um Código
Brasileiro de Processos Coletivos, mais adaptado à realidade brasileira58
. As propostas em
torno de uma legislação sistematizada sobre ações coletivas, sob a coordenação de Ada
Pellegrini Grinover, foram progressivamente trabalhadas. Após transformada em
anteprojeto, a proposta foi enviada em 2005 aos membros do Instituto Brasileiro de Direito
Processual (IBDP). Posteriormente, o anteprojeto foi encaminhado ao Ministério da
Justiça. Em janeiro de 2007, foi apresentada uma nova versão do anteprojeto, incorporando
sugestões da Casa Civil, Secretaria de Assuntos Legislativos, Procuradoria da Fazenda
Nacional e dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São
Paulo.
Durante o primeiro semestre de 2005, agora no âmbito dos cursos de pós-graduação
stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade
Estácio de Sá (UNESA), desenvolveram-se debates não somente em torno do Código
Modelo, como também do anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos
elaborado em São Paulo. A ideia inicial estava voltada para a apresentação de sugestões e
propostas para a melhoria do anteprojeto. Nada obstante, as discussões acabaram
evoluindo para uma reestruturação mais ampla, sob a coordenação de Aluisio Gonçalves
de Castro Mendes, com o escopo de oferecer uma proposta alternativa comprometida com
o fortalecimento dos processos coletivos59
. O anteprojeto de Código Brasileiro de
Processos Coletivos elaborado na UERJ/UNESA foi apresentado no segundo semestre de
2005 aos membros do IBDP e, posteriormente, também encaminhado ao Ministério da
Justiça.
No ano de 2008, é constituída Comissão Especial, formada por juristas e integrantes
da magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia para analisar as
propostas encaminhadas ao Ministério da Justiça60
. Depois de inúmeras reuniões e
58 V. GRINOVER, Ada Pellegrini. Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos – Exposição de
motivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 2/3. 59 Nesse sentido, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Construindo o Código Brasileiro de Processo
Coletivos: o anteprojeto elaborado no âmbito dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA. In:
LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela coletiva... Op. Cit., p. 281. 60 A comissão foi formada pelos seguintes membros: Rogério Favreto (Secretário da Reforma do Judiciário
na ocasião), Luiz Manoel Gomes Jr., Ada Pellegrini Grinover, Alexandre Lipp João, Aluisio Gonçalves de
Castro Mendes, André da Silva Ordacgy, Anizio Pires Gavião Filho, Antonio Augusto de Aras, Antonio
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audiências públicas, recuou-se na proposta ambiciosa de um Código de Processos
Coletivos, optando-se pelo consenso possível em torno da elaboração de um Anteprojeto
de nova Lei da Ação Civil Pública, em que, ainda que abandonadas algumas ideias mais
inovadoras, como a previsão expressa de legitimação do indivíduo para as ações coletivas e
do controle judicial da representatividade adequada, seriam aperfeiçoados alguns dos
pontos mais críticos da tutela coletiva no Brasil. O anteprojeto foi concluído em fevereiro
de 2009 e remetido ao Presidente da República, sendo incorporado ao II Pacto
Republicano. Ainda em 2009, encaminhada para a Câmara dos Deputados, a proposta foi
registrada como Projeto de Lei nº 5.139/2009.
O aludido projeto de lei, entre outras importantes inovações, estabelecia uma
relação de princípios pertinentes ao processo coletivo; aprimorava de forma importante as
regras de competência para as ações coletivas; criava os Cadastros Nacionais de Processo
Coletivos e de Inquéritos Civil e Compromissos de Ajustamentos de Conduta; admitia a
flexibilização do procedimento nas ações coletivas; aprimorava as formas de comunicação
da coletividade em matéria de direitos individuais homogêneos; afastava a limitação
territorial para a coisa julgada, hoje prevista no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública;
fortalecia a coisa julgada pro et contra, desde que se tratasse de questões de direito; previa
que o ajuizamento de ações coletivas ensejava a suspensão dos processos individuais com
objeto correspondente e aprimorava as regras atinentes à liquidação e à execução, a serem
promovidas, sempre que possível, de forma coletivizada.
No âmbito da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o
Projeto de Lei nº 5.139/2009 recebeu parecer favorável quanto à constitucionalidade, sendo
rejeitado no mérito, todavia, sob os fundamentos de que, caso aprovado, ensejaria
tratamento desigual entre as partes nos processos coletivos; conferiria poderes excessivos
ao Ministério Público e à Defensoria Pública; ensejaria insegurança jurídica e estimularia o
ajuizamento de ações coletivas temerárias61
. Em razão disso, foi interposto recurso para
que o mérito venha a ser reexaminado pelo plenário da Câmara, ainda não apreciado até a
presente data.
Gidi, Athos Gusmão Carneiro, Consuelo Yatsuda Yoshida, Elton Venturi, Fernando da Fonseca Gajardoni,
Gregório Assagra de Almeida, Haman Tabosa de Moraes e Córdova, João Ricardo dos Santos Costa, José
Adonis Callou de Araújo Sá, José Augusto Garcia de Sousa, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Luiz
Rodrigues Wambier, Petrônio Calmon Filho, Ricardo de Barros Leonel, Ricardo Pippi Schimidt e Sérgio Cruz Arenhart. 61 V., nesse sentido, parecer do Dep. José Carlos Aleluia, que conduziu a decisão da maioria da Comissão de
Constituição e Justiça, disponível em www.camara.gov.br (acessado em 19 de agosto de 2012).
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O ano de 2012 trouxe outro acontecimento importante. Trata-se das propostas
destinadas à modernização do Código de Defesa do Consumidor, incluindo normas sobre
comércio eletrônico, superendividamento e processos coletivos. Os trabalhos da comissão
de juristas então nomeada62
resultaram em três anteprojetos encaminhados ao Senado
Federal, dando origem aos Projetos de Lei do Senado nº 281 (disposições gerais e
comércio eletrônico), 282 (ações coletivas) e 283 (crédito ao consumidor e
superendividamento). O Projeto nº 282/2012, que é o que mais importa para os fins do
presente estudo, encampa alguns dispositivos que já estavam previstos no Projeto de Lei nº
5.139/2009, tais como regras sobre competência nas ações coletivas, criação dos Cadastros
Nacionais de Processos Coletivos e de Inquéritos Civis e Compromissos de Ajustamento
de Conduta e a flexibilização procedimental.
Além disso, o projeto prevê algumas outras propostas interessantes, tais como
regras específicas de arbitramento de honorários de advogado e de compensação financeira
à associação autora, como forma de incentivar outros legitimados a pleitear a tutela
coletiva. Alguns dispositivos, porém, são bastante criticáveis, tal como o que permite a
condenação do réu em obrigações específicas ressarcitórias, inibitórias ou em indenizações
por danos morais e materiais independentemente de pedido do autor. Ainda que
absolutamente relevante a tutela coletiva, permitir a condenação do réu sem qualquer
pedido expresso representa perigosa fragilização de garantias fundamentais no processo,
que não se justifica, mesmo diante de interesses transindividuais.
3.3 As ações coletivas e outros meios de resolução coletiva de litígios
Sem prejuízo da recente apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 282/2012, ao
que tudo indica, em vez de aprimorar as ações coletivas, sobretudo aquelas para defesa de
direitos e interesses individuais homogêneos, a tendência nos últimos anos tem sido
concentrar as atenções sobre o projeto do novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei nº
8.046/2010), aprovado no Senado Federal ao final do ano de 2010 e atualmente em
discussão na Câmara dos Deputados.
62 Referida comissão de juristas foi presidida pelo Min. Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça,
sendo ainda composta pelos seguintes membros: Ada Pellegrini Grinover, Cláudia Lima Marques, Kazuo
Watanabe, Leonardo Roscoe Bessa e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer.
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Uma de suas inovações mais importantes do projeto do novo CPC, com efeito, está
no incidente de resolução de demandas repetitivas. Estabelece a proposta que, havendo
questão comum de direito capaz de gerar a multiplicação de processos, instaura-se o
incidente, a ser apreciado diretamente pelo tribunal, com a suspensão de todos os processos
individuais na área de competência territorial do tribunal. A tese jurídica a ser definida
pelo tribunal no julgamento do incidente vinculará todos os órgãos judiciais inferiores, que
deverão decidir em conformidade à decisão do incidente, sob pena de ajuizamento de
reclamação. O propósito desse instituto, evidentemente, consiste em não somente evitar a
multiplicação de processos idênticos, como também proporcionar isonomia e segurança
jurídica.
Tal proposta tem inspiração no direito comparado, em especial na Alemanha63
,
onde já se previa o instituto do procedimento-modelo (Musterverfahren) no âmbito da
jurisdição administrativa (desde 1991), do mercado de capitais (desde 200564
) e da
jurisdição sobre assistência e previdência social (desde 2008). O Musterverfahren alemão
funciona, guardadas as proporções, de forma semelhante ao proposto incidente no projeto
do novo CPC65
. Além disso, o novo instituto também encontra raízes no direito nacional,
mais precisamente no incidente de julgamento por amostragem dos recursos especial e
extraordinário repetitivos (arts. 543-B e 543-C do CPC atual).
Os incidentes de julgamento por amostragem já existentes hoje no Brasil e o
proposto incidente de resolução de demandas repetitivas consistem, em linhas gerais, em
um novo sistema de resolução coletiva de litígios, denominado de “casos-teste” ou de
“processos-piloto”. Seu funcionamento pode ser sintetizado da seguinte forma: em um
conjunto de causas repetitivas sobre o mesmo tema, selecionam-se alguns processos
representativos de toda a controvérsia – de preferência, aqueles cujas manifestações das
63 V., a propósito, a exposição de motivos redigida pela comissão de juristas que elaborou o anteprojeto do
novo CPC, com referência expressa ao direito alemão. 64 A vigência do Musterverfahren no âmbito do mercado de capitais foi prevista de forma temporária, mas
vem sendo prorrogada sucessivamente e pode se tornar definitiva em breve. 65 Sobre o Musterverfahren alemão, entre outros, v. CABRAL, Antonio do Passo, O novo procedimento-
modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas in DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras
complementares de processo civil. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 241/261 (embora sem se referir à existência
do instituto no direito alemão desde 1991) e, mais recentemente, adotando uma abordagem comparativa com
o projeto do novo CPC, RODRIGUES, Baltazar José Vasconcelos, Incidente de resolução de demandas
repetitivas: especificação de fundamentos teóricos e práticos e análise comparativa entre as regras previstas no projeto do novo Código de Processo Civil e o Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz do direito alemão,
Revista Eletrônica de Direito Processual, v. VIII, jul./dez. 2011, p. 93/108 (disponível em www.redp.com.br,
acessado em 19 de agosto de 2012).
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partes contenham maior variabilidade de argumentos e cujas decisões contemplem maior
número de fundamentos –, deixando os demais processos suspensos. Os casos
representativos são, em seguida, encaminhados para uma instância superior ou um
colegiado mais amplo para definição da tese aplicável. Uma vez definida a tese comum, ela
deverá ser aplicada não só aos representativos, mas também aos demais processos
suspensos, promovendo isonomia, segurança jurídica e economia processual.
Evidentemente, muitas das vantagens proporcionadas pelo modelo de casos-teste
são também perseguidas pelas ações coletivas. Assim, poderia a implementação do
incidente de resolução de demandas repetitivas preencher totalmente o espaço das ações
coletivas no ordenamento jurídico brasileiro?
Ao contrário do que se poderia imaginar, o incidente de resolução de demandas
repetitivas previsto no projeto do novo CPC, caso aprovado, não afastará a necessidade de
adequada tutela coletiva no Brasil. Isso porque os objetivos perseguidos pelas ações
coletivas são mais amplos que os almejados pela resolução de casos-piloto ou casos-teste.
Como se viu, o incidente previsto no novo CPC tem por finalidade evitar a multiplicação
de processos, proporcionando isonomia e segurança jurídica. Não está entre suas
finalidades, todavia, promover o acesso à justiça, nem assegurar a tutela de direitos
ontologicamente coletivos.
As ações coletivas, por outro lado, ao permitirem a agregação de pretensões
ínfimas, do ponto de vista individual, em um só processo, incrementam o acesso à justiça.
Se um determinado réu proporciona danos individualmente ínfimos, mas que assumem
significativa proporção global (pense-se, por exemplo, no caso em que uma fábrica
comercialize cem gramas a menos do que consta em embalagens de sabão em pó), somente
as ações coletivas funcionarão como instrumento idôneo de tutela. Além disso, muitas
vezes os titulares dos direitos em discussão não possuem informação ou incentivos
suficientes para litigar em juízo.
Assim, as ações coletivas mostram-se capazes de romper com a força inercial dos
litigantes individuais, algo que o incidente de resolução de demandas repetitivas não seria
capaz, sequer em tese, de alcançar, eis que pressupõe a existência, ou pelo menos a
potencialidade, de ações individuais que possam ser qualificadas como repetitivas. Isso
sem falar que somente o processo coletivo se destina a proporcionar a tutela de direitos
difusos e coletivos stricto sensu.
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Não é por acaso, aliás, que o fortalecimento de institutos análogos no direito
comparado se verificou sem prejuízo das ações coletivas. Na Alemanha, a adoção do
procedimento-modelo (Musterverfahren) ocorreu sem o abandono das tradicionais ações
coletivas propostas por associações (Verbandsklagen). Da mesma forma, na Inglaterra, as
decisões de litígios de grupo (group litigation order), que representam uma técnica de
julgamento de casos-piloto, foram previstas sem que fossem abolidas as ações
representativas (representative actions). Não há motivo para que se acredite que o
incidente de resolução de demandas repetitivas, caso venha a ser aprovado no Brasil, torne
desnecessário o aprimoramento das ações coletivas no direito pátrio.
4. Considerações finais
O momento atual, como se percebe, é de amadurecimento e de aprimoramento da
tutela coletiva no Brasil.
Como visto, o direito brasileiro ocupa hoje posição de vanguarda entre os países da
civil law no âmbito das ações coletivas. Seu sistema de tutela de direitos e interesses
metaindividuais se encontra razoavelmente estruturado na Lei de Ação Civil Pública e no
Código de Defesa do Consumidor. Muitos direitos e interesses de natureza difusa e
coletiva stricto sensu, que não encontravam até a década de oitenta do século passado
nenhum instituto processual capaz de proporcionar tutela adequada, finalmente puderam
ser submetidos ao Poder Judiciário. Políticas públicas diversas puderam ser discutidas
através das ações coletivas. Consolidou-se o regime de proteção e de defesa do
consumidor. Além disso, não se pode também ignorar o desenvolvimento de ampla
doutrina especializada sobre o tema dos processos coletivos.
Isso é, ao mesmo tempo, um fato animador e preocupante. Animador, porque
mostra que hoje estamos em uma situação melhor que há décadas atrás, em que muitos
direitos simplesmente não podiam ser levados diante de um magistrado, representando
efetiva denegação de justiça. Preocupante, porque em algum momento acreditamos, talvez
ingenuamente, que as ações coletivas – ou mesmo processos judiciais, de forma geral –
pudessem resolver todos os problemas que afligem a nossa sociedade.
O fenômeno da litigiosidade no Brasil deve ser estudado não apenas em sua
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dimensão estritamente jurídica, mas também por aspectos sociológicos, econômicos e
políticos. Afinal, quais são as condições sociais que estimulam o incremento no número de
demandas ajuizadas no país, sobretudo a partir da Constituição de 1988? Em que medida a
redemocratização e o desenvolvimento dos meios de comunicação facilitaram o acesso à
informação? Quais são as causas econômicas que influem na propositura de uma ação
judicial? Em que medida maiores indenizações (incluindo aí os denominados punitive
damages) contribuem para este fenômeno? Muito pouco se sabe sobre isso.
O fato é que se torna preciso buscar a valorização do ordenamento jurídico em sua
dimensão objetiva, abandonando a concepção de tutela exclusivamente de direitos
subjetivos, algo tão arraigado na cultura brasileira que, para estruturar a tutela coletiva,
criaram-se novas categorias de direitos (difusos, coletivos e individuais homogêneos).
Concessionárias, grandes empresas e litigantes habituais em geral raciocinam a
questão sob o aspecto macroeconômico. Se a perspectiva de certo comportamento ilícito
proporcionar a estimativa de um montante de condenações judiciais inferior aos custos
operacionais para a correção dessa conduta, as empresas continuarão a praticar o ilícito,
ensejando o ajuizamento de inúmeras demandas repetitivas. Tais agentes direcionam sua
conduta não sob o código lícito/ilícito, mas de acordo com o código lucrativo/não-
lucrativo. Assim é que serviços não solicitados, cobranças indevidas, mau atendimento e
falhas variadas na prestação de serviços e fornecimento de produtos se transformaram em
acontecimentos corriqueiros no Poder Judiciário brasileiro.
Em uma primeira tentativa, imaginou-se coibir tal conduta com a adoção de
institutos como o dano moral punitivo, mas tal alternativa, longe de representar qualquer
solução, pode vir a incentivar o ajuizamento de demandas temerárias. Quanto às ações
coletivas, embora devam efetivamente ser aprimoradas, também não podem resolver a
ineficiência sistemática dos órgãos públicos em geral. Processos judiciais são sempre
ferramentas complexas e onerosas, a serem manejadas preferencialmente para situações
específicas e pontuais, não para corrigir deficiências estruturais na sociedade.
Talvez uma das soluções para diminuir a alta taxa de litigiosidade brasileira esteja
em incrementar o papel das agências reguladoras, incentivando uma atuação mais enérgica
de sua parte, inclusive mediante a aplicação de severas penalidades em âmbito
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61
administrativo contra os litigantes habituais, sempre que tal medida for necessária66
.
Seria possível, ainda, cogitar a internalização de potenciais litígios travados entre
esses grandes litigantes e consumidores, talvez com a criação de instâncias de julgamento
nas próprias agências reguladoras, desde que se garantisse a imparcialidade e
independência de seus integrantes, providência que tem se revelado muito difícil no Brasil,
por variados motivos. Outra proposta interessante seria incrementar as custas processuais
cobradas dos litigantes habituais sempre que sucumbirem em uma demanda judicial – de
acordo, naturalmente, com critérios a serem previamente definidos, para evitar surpresa às
partes –, justamente porque sua atuação proporciona utilização de demasiados recursos da
máquina judiciária.
O fato é que se precisa, urgentemente, pensar na tutela do ordenamento jurídico não
só do ponto de vista dos direitos subjetivos e da lide processualizada, mas em sua
dimensão objetiva, em uma perspectiva macroeconômica, para evitar a litigiosidade em seu
nascedouro, a fim de que se possa superar a crise numérica do Poder Judiciário.
O próprio estudo das ações coletivas deve ser inserido nessa temática. Como já é
notório, algumas dificuldades têm sido verificadas quanto ao tempo de tramitação dos
litígios coletivos, sobretudo nas demandas em defesa de direitos e interesses individuais
homogêneos. Tal situação pode ser atribuída, pelo menos em parte, a deficiências no
sistema de vinculação dos integrantes do grupo e na sua notificação, bem como à ausência
de disciplina legal satisfatória para os institutos da conexão, continência e litispendência no
âmbito dos processos coletivos.
O tema da tutela coletiva no Brasil, portanto, ainda que não seja a panaceia para
todos os males, permanecerá atual e desafiador para as próximas décadas.
66 Com entusiasmo acompanhou-se, por exemplo, recente intervenção protagonizada pela ANATEL, em que
se restringiu a comercialização de novas linhas de telefone para as piores companhias de telefonia celular em
cada estado. Os lucros perdidos pelas companhias penalizadas, aliados à publicidade negativa, parecem um
fator punitivo-pedagógico muito mais eficiente que qualquer indenização por danos morais em processos individuais. Evidente que tal atuação das agências reguladoras deve ser oportunamente regulamentada e
debatida, mas a esperança é que esse seja o início de um novo paradigma para o serviço de telefonia celular e,
mais amplamente, para as relações de consumo no Brasil.
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Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636
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O PROCESSO COLETIVO E O ACESSO À JUSTIÇA SOB O PARADIGMA DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Antônio Gomes de Vasconcelos
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2007), Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2002), Especialista em Direito Público pela
FDMM (1989), Graduado em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (1987), Graduado em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1978).
Atualmente é professor adjunto da UFMG e juiz titular da 5ª
Vara do Trabalho de BH - Tribunal Regional do Trabalho 3ª
Região
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2003), Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais (1994), Professora associada da UFMG.
Vice Diretora da Divisão de Assistência Judiciária da
Faculdade de Direito da UFMG
Alana Lúcio de Oliveira
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Procuradora do Estado de Minas Gerais.
RESUMO: Em essência, o processo coletivo ostenta caráter de interesse público,
porquanto, consubstancia-se em respeitável instrumento de participação política da
sociedade na gestão pública e na construção do bem comum. Dados seus contornos,
sobrepõe-se ao processo individual, em importância, por assegurar o acesso à justiça e a
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efetividade da prestação jurisdicional, realizando direitos fundamentais na perspectiva do
Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Acesso à Justiça- Processo Coletivo- Interesse Público.
ABSTRACT: The collective process bears character of public interest because, in essence,
is consolidated in respectable instrument of political participation of society in public
administration, in building the common good, overlapping in importance, given its
contours, by ensuring access to fairness and effectiveness of adjudication, conducting
fundamental rights from the perspective of a Democratic State of Right.
KEYWORDS: Colletive process - Accsess to Justice - Public interest
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O paradigma do Estado Democrático de Direito – 3.
Processo coletivo de interesse público e o acesso à justiça no paradigma do Estado
Democrático de Direito – 4. Conclusões – 5. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea vivencia as consequências das profundas
transformações que a marcaram desde a reestruturação do modelo capitalista. O modelo
resultante da desregulamentação dos mercados financeiros possibilitou a criação de novos
produtos financeiros e multiplicou as possibilidades de lucros puramente especulativos e,
consequentemente, sem a necessidade de investimento em atividades produtivas1. Tal
reestruturação foi favorecida pela elevação, ao paroxismo, da internacionalização das ações
políticas e macroeconômicas globais inspiradas no pensamento neoliberal hegemônico que,
por sua vez, foi potencializada pela extraordinária evolução das novas tecnologias da
comunicação. O contexto decorrente de uma complexa interação de elementos
multifacetários proporcionou uma expansão sem precedentes do capitalismo coexistente
com a da situação econômica e social de um número cada vez mais crescente de pessoas.
1 BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009
p. 21
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A esse revigoramento do sistema capitalista não correspondeu um progresso na
área social. Ao contrário, um tal estado da arte fez emergir uma relação paradoxal entre as
promessas da ordem jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito e a
realidade decorrente das transformações ditadas por forças hegemônicas neutralizadoras da
função transformadora destas novas ordens jurídicas.
À concomitante ampliação normativa dos direitos sociais corresponde a
emergência dos conflitos de massa oriundos da lesão sistêmica dos direitos sociais e da
incapacidade do sistema judiciário de responder às demandas oriundas desse cenário. A
isso, soma-se a persistência de uma cultura jurisdicional individualista calcada no
paradigma do estado liberal, apesar de, uma vez mais, no plano normativo a ação coletiva
deter lugar privilegiado na nova ordem jurídica brasileira.
Sem perder de vista o amplo espectro dos elementos implicados na
configuração desse contexto de ausência de efetividade dos direitos sociais e de crise da
justiça, o alvo do presente artigo é analisar o processo coletivo, enquanto instrumento
promotor do acesso à justiça2 e de realização de direitos fundamentais, sob o paradigma do
Estado Democrático de Direito. Restringe-se, portanto, por questão metodológica, à
perspectiva técnica-processual, reservando para estudos posteriores as indispensáveis
abordagens inter e transdisciplinares para a apreensão da questão numa perspectiva mais
abrangente e complexa.
A perspectiva adotada é a da tutela processual coletiva como processo de
interesse público3, à luz da teoria da instrumentalidade do processo
4.
2 Mauro Cappelletti foi precursor do movimento de pensamento de acesso à justiça, potente reação erigida
contra uma imposição dogmática do processo. (O Acesso à Justiça e a função do Jurista em nossa época.
Revista de Processo, São Paulo, n. 61, p 144-160, jan/mar. 1991. p. 144). 3 Refere-se ao entendimento segundo o qual o processo coletivo se presta às demandas judiciais que envolvam interesses referentes à preservação da harmonia e à realização dos objetivos constitucionais da
sociedade, ou seja, defesa de interesses públicos primários, bem como o fomento aos direitos fundamentais.
(DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. Vol. 04,
5.ed., Salvador:JusPodivim, 2010. p.35).
Vale afirmar que o termo interesse público é equívoco e passível de divergências conceituais. Não obstante,
assenta-se que o único interesse público legítimo é aquele que coincide com os interesses da coletividade
delimitados pelo paradigma normativo da ordem jurídica. Nesse sentido, o interesse público a que se refere é
o interesse público primário e nunca o interesse público secundário, enquanto vontade egoística da
administração pública momentaneamente instalada. Desta feita, a primazia do interesse público atualmente,
a despeito de imperiosa, demanda a ponderação de valores e aplicação da proporcionalidade, a fim de fixar o
interesse social prevalente. (CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. JusPodivm,Belo Horizonte, 2008.p.62). 4 O instrumentalismo é tendência metodológica arquitetada sobre os pilares erguidos pelo movimento de
acesso à justiça, que conforma o processo como instrumento de realização efetiva e substancial da ordem
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A tônica do acesso à justiça envolve a compreensão dos institutos processuais
sob um espectro de democracia, de participação e de afirmação de direitos fundamentais.
Como tal, contrapõe-se a uma visão engessada, eminentemente privatista, isoladora e
técnica da ordem processual5.
A relevância do movimento de acesso à justiça está na busca pela conformação
do processo às atuais demandas sociais de celeridade e efetividade, em prol da edificação
de seu caráter instrumental e social.
Nesse contexto, em face das múltiplas formas de litigiosidade, a técnica
processual preocupa-se em erguer mecanismos aptos à proteção e afirmação de interesses
múltiplos, despontando a tutela processual coletiva.
O manto sobre o qual se realiza o processo coletivo é tecido sobre um ideal de
sensibilidade social, uma vez que as decisões proferidas em sede de ação coletiva possuem
a qualidade de imprimir reflexos a um maior número de pessoas e, assim, o potencial de
soluções mais equânimes e democráticas, dirigidas às demandas de interesse público.
Emerge a temática do caráter de interesse público do processo coletivo, sob as
premissas erigidas no Estado Democrático de Direito.
2. O PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A maioria dos autores constitucionais, conforme revelam os estudos de direito
comparado, concordam que o Estado Democrático6 de Direito corresponde a uma profunda
alteração no paradigma do estado constitucional, de tal ordem a autorizar a referência a um
estado (neo) constitucional ou mais precisamente a vários (neo) constitucionalismos7.
jurídica material. Voz de relevo que ostenta ser um dos delineadores dessa tendência é Cândido Rangel
Dinamarco. (A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1996). 5 Dinamarco não afasta a essência técnica do processo, mas defende a instrumentalidade do processo afeta
também à realidade social e política (A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Editora Malheiros,
1996). Não se desconhece pelo que vale citar, ainda que não seja opção adotada pelo estudo presente , o
entendimento contrário ao caráter instrumentalista do processo, no qual se defende o processo como um
direito e como criador e regente do próprio direito, mas nunca como instrumento de realização de direitos
(SILVA, Rosemary Cipriano da. Direito e processo: A legitimidade do Estado Democrático de Direito
através do processo. Arraes Editores , Belo Horizonte, 2012. p.97). 6 Inicialmente, imperioso destacar que Democracia é conceito nocional, não comportando delineamento
único, e altamente complexo para aqueles que se aventuram em teorizá-lo. Assim é que o discurso aqui proposto opta por um viés majoritário na doutrina jurídica que repousa a essência da democracia no conceito
participativo e inclusivo de efetivação de direitos fundamentais. 7 CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005,p. 9
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Trata-se da superação do “estado de direito legislativo”, não sendo mais
adequada a separação entre lei e justiça. Devemos, portanto, admitir que o direito
contemporâneo compõe-se de regras e de princípios, ambos eivados de idêntica natureza
normativa8. Essa perspectiva transcende a concepção positivista e individualista da
jurisdição, uma vez que alcança um sentido atrelado à normatividade dos princípios
constitucionais de justiça e à efetividade dos direitos. Nesse sentido, o processo coletivo
assume posição privilegiada na ordem jurídico-processual, compreendida em conexão com
o direito constitucional.
José Afonso da Silva9 esclarece que o Estado de Direito é a forma de Estado
em que são fixadas diretrizes normativas para organizar e limitar o exercício do poder. A
noção de democracia, então, surge como um qualificativo de conteúdo material, uma
diretriz fundamental da atuação do poder, na medida em que abre espaço para a
participação popular com ênfase nos direitos fundamentais10
.
A pós-modernidade transcende a lição da democracia formal representativa,
manifestada primordialmente no exercício do direito político constitucional do voto,
volvendo vistas a uma noção de democracia considerada sob um viés substancial. Esse
qualificativo democrático é elemento legitimador do poder, então constituído
juridicamente, no qual o cidadão se insere nos centros de decisão política e participa
ativamente dos destinos coletivos (democracia substancial). Trata-se da chamada
legitimação democrática do poder,11
o que se coaduna com a doutrina que considera a
democracia como uma dimensão indissociável do Estado de Direito, cuja eventual cisão
torna o Estado de Direito um “esqueleto de princípios e regras formais”12
.
8 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. 6. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005,p. 109 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed., rev. e atual. Editora Malheiros.
São Paulo, 2005.p.113 10 Para os fins deste artigo comunga-se do entendimento acerca do qual os direitos fundamentais variam
conforme a modalidade de Estado, a ideologia e os princípios consagrados na Constituição, sendo, pois,
reflexos dos direitos humanos em cada Estado. Neste sentido, a fundamentalidade é a expressão da
indispensabilidade daqueles direitos para a organização social, política e econômica de uma dada sociedade,
a base a ser observada nas relações intersociais (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12.
ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p.514-515). 11 SILVA, José Afonso da .Op.cit.p.113 12A despeito da cizânia entre doutrinadores e operadores do direito que vislumbram reticências entre a integração do Estado de direito e a Democracia, comunga-se da doutrina que conjuga as duas expressões
enquanto dimensões qualificadoras do Estado, por todos, cita-se Canotilho. J. J. Gomes (Estado de Direito,
Fundação Mário Soares. Gradiva: 1999.p.27-28).
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A democracia substancial pauta-se na afirmação dos direitos fundamentais,
reconhecidos pela observância de valores inerentes à pessoa, indutivos das ações e das
escolhas políticas e exigíveis de toda a sociedade e do próprio Estado. O cidadão sai da
posição inerte de espectador e de mero reivindicador de direitos e concretizações
substanciais da democracia representativa, assumindo postura decisiva nas escolhas e na
gestão públicas.
Nesse paradigma, a democracia assume um caráter ligado à efetivação de
direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos, vinculando Estado e sociedade
em prol da transformação da realidade social, compartilhando responsabilidades e esforços
para o bem comum.
A noção de democracia substancial coincide com a denominada democracia
deliberativa13
, tratada por Cláudio Pereira Souza Neto, na qual a cidadania não se restringe
ao exercício do direito político, mas clama por uma participação social ativa em todo
processo democrático de elaboração de leis, de gestão pública e de resolução de conflitos
sociais (cidadania social e participativa). Ela tem como corolário a possibilidade de
argumentação no espaço público e justificação das escolhas políticas através de um canal
de diálogo e deliberação.
O Estado Democrático de Direito é, portanto, um Estado no qual o poder -
constituído democraticamente como resultado da soberania popular- é exercido dentro de
limites juridicamente estabelecidos e que se pauta nos ditames dos direitos fundamentais,
tornando o cidadão corresponsável pelos destinos da sociedade. É o mote onde as relações
entre Estado e sociedade são redesenhadas na busca pela complementaridade entre a
realização pessoal do indivíduo e a harmonia das relações sociais.
Entremeio às premissas de participação e de cidadania ativa, de inclusão nos
centros de poder, elevando o conteúdo emancipador da democracia, incorpora-se a
essencialidade da tutela processual coletiva como instrumento de transformação da
realidade social e de consumação de direitos fundamentais.
13 Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio
democrático In A Nova Interpretação Constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org). Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 316.
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3. O PROCESSO COLETIVO DE INTERESSE PÚBLICO E O ACESSO À
JUSTIÇA NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Sob as vestes do referencial teórico elementar acaudilhado por Cappelletti14
, o
acesso à justiça é um movimento em prol da afirmação do caráter instrumental15
e
socializante do processo, bem como de análise crítica dos instrumentos oferecidos aos
indivíduos para tornar efetiva a prestação jurisdicional. A partir da constatação de
problemas concretos, o movimento de acesso à justiça permite erigir soluções favoráveis à
adequação da resposta jurisdicional ofertada.
É da essência desse movimento a concepção do processo como um instrumento
de realização efetiva dos direitos violados ou ameaçados de violação, um processo a
serviço de metas, não apenas legais e jurisdicionais, mas também sociais e políticas16
.
A temática do acesso à justiça deve ser observada tendo como esteio os
paradigmas do Estado Democrático de Direito e a valorização do processo que se mostra
um imperativo da própria estrutura democrática, porquanto, inefetivo é o reconhecimento
dos direitos fundamentais se desacompanhados de instrumentos que os imponham.
Boaventura Santos assevera que, uma vez destituídos de mecanismos que
fizessem impor o seu respeito, os direitos passariam a “meras declarações de conteúdo e
função mistificadores”17
18
.
14 CAPPELLETTI, Mauro .Op.cit. Passim 15 A instrumentalidade do processo repousa suas raízes na tese de que o processo não é um fim em si mesmo,
mas antes um instrumento de realização efetiva de direitos, não possui valor absoluto e não pode se distanciar
das normas substanciais e das exigências sociais de pacificação de conflitos (DINAMARCO, Cândido
Rangel.op.cit.p. 379). 16 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Execução - Rumos Atuais do Processo Civil em face da Busca de efetividade na prestação Jurisdicional. Revista de Processo, São Paulo, ano 24, n. 93, p. 28-44, jan./mar.
1999. p.29. 17 SANTOS, Boaventura Souza. O Acesso à Justiça in Associação dos Magistrados Brasileiros, Justiça:
Promessas e Realidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p.406. 18 Nesse sentido, Antônio Gomes de Vasconcelos reconhece o esgotamento da concepção formal do princípio
de democracia, no diz respeito aos mecanismos de positivação e de reconhecimento dos diretos: “Esse
modelo encontra-se exaurido. Defronta-se com a crise de insuficiência do modelo de racionalidade da
filosofia (epistemologia da consciência) e da ciência moderna (método cientifico) transposto para o direito
moderno – que tende a acreditar que a mera existência dos direitos no plano normativo e de instituições
encarregadas de sua operacionalização realiza a justiça, independentemente da sua efetividade”
(VASCONCELOS, Antônio Gomes de. A Jurisdição como fator de promoção dos direitos fundamentais vista sob enfoque dos princípios razão dialógica e da complexidade. Tese publicada no XIV Congresso
Nacional dos magistrados da Justiça do Trabalho (AMATRA III), Disponível em:
www.conamat.com.br/teses/jurisdicao_como.doc.)
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O direito ao acesso efetivo à justiça tem sido progressivamente reconhecido
como sendo de importância capital entre os direitos individuais e sociais. A titularidade de
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.
Esse arcabouço permite destacar a perspectiva da teoria da complexidade19
,
pela qual todo tema deve ser considerado a partir de uma análise complexa, não
particularizada. Ora, se é assim, não se pode enfrentar a crise da jurisdição20
partindo-se de
uma visão minimalista e individualizada, relativizando a técnica processual. A elevação de
mecanismos alternativos de solução de conflitos21
, com caráter desjudicializador, não pode
ser considerada como a panaceia de todos os males, uma vez que, o processo é essencial à
afirmação da democracia no Estado de Direito e, consequentemente, à implementação de
direitos fundamentais.
Defende-se a noção do processo focado no compromisso estatal,
constitucionalmente formulado, de exercer a atividade jurisdicional (ou poder de
jurisdição) com vistas à sustentação de direitos e garantias fundamentais.
O Processo deve ser acolhido como um instrumento para a realização dos fins
sociais do Estado, uma ferramenta fundamental de alcance dos objetivos essenciais da
sociedade, possuindo, pois, função social e construtiva. Dessa feita, seu estudo parte da
premissa de que a ciência jurídica é humana, normativa, aplicada e contextualizada,
associando-o aos diversos aspectos históricos, culturais, políticos e econômicos existentes
no âmbito de sua aplicação, a fim de que se justifique.
Tem-se que a função social do processo, nas palavras de José Carlos Barbosa
Moreira22
, está no estímulo à eliminação das diferenças (maior igualdade) e na primazia
dos interesses coletivos sobre os individuais.
19 A teoria mencionada propugna que os pressupostos da razão dialógica e da complexidade, norteadores do conhecimento e da ação (ação pública – jurisdição e administração), para os quais avançou a filosofia da
linguagem e a ciência contemporâneas (que aceitou o papel do sujeito, da incerteza e da desordem na busca
do conhecimento científico), são coerentes com os fundamentos e os princípios democráticos do Estado
Democrático de Direito (CF/88) e com a dinâmica da sociedade contemporânea (VASCONCELOS, Antônio
Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais para a aplicação do Princípio da
Democracia Integral e da Ética de Responsabilidade na Organização do Trabalho e na Administração da
Justiça: o Sistema Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista. Estudo de caso – a questão trabalhista
regional e os resultados da instituição matricial de Patrocínio-MG (1994–2006).907 f. Tese de Doutorado –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, defendida em dezembro/ 2007.) 20 Refere-se às mesas de debate acerca das carências da jurisdição, da cultura de damandismo e da
litigiosidade em repetição, bem como da morosidade da justiça e da necessária celeridade do processo. 21 Refere-se ás formas alternativas de solução de conflitos e fortalecimento de mecanismos de prevenção de
litígios, ao que se dá louvor. 22 Por um processo socialmente efetivo. Revista Síntese de Direito e Processo Civil, Porto Alegre, n. 11,
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Essa é a conjuntura que exalta o processo coletivo como meio de acesso à
justiça, por se prestar à participação social, na medida em que tutela direitos que espraiam
seus nortes para além do acervo jurídico do indivíduo singularmente considerado.
A ideia fundante do processo coletivo é possibilitar a cognição judicial dos
interesses metaindividuais por iniciativa de um único ente intermediário, legalmente
legitimado para a tutela de direitos da coletividade, a fim de incrementar o acesso à justiça,
o que remete à essência de interesse público do processo coletivo, e, consequentemente, de
instrumento realizador de direitos fundamentais.
Ricardo de Barros Leonel23
esclarece que o processo coletivo tem intensa
dimensão política, pois o equacionamento dos conflitos a ele relativos implica em escolhas
políticas, trazendo à sociedade a possibilidade de influir em decisões fundamentais do
Estado através do exercício da jurisdição coletiva.
A par do exposto, a função social do processo coletivo deve ser ainda
reconhecida na sua formulação enquanto meio de solução de conflitos que oportuna a
realização e a defesa de direitos sociais, na medida em que a teorização dos direitos
metaindividuais e sua definição legal24
servem como um instrumento facilitador do
reconhecimento de direitos fundamentais sociais, ampliando os meios de sua dedução em
juízo25
.
Esse é o entendimento que imprime caráter de interesse público ao processo
coletivo como um instrumento a favor do interesse público primário erigido pelos grupos
sociais e almejado pela sociedade, cujo escopo é a manutenção do Estado Democrático de
Direito.
Nesse sentido, o processo coletivo, além de se consubstanciar em instrumento
de tutela de direitos coletivos em sentido amplo, deve conter em seu conceito o elemento
de litigação de interesse público, senão pela natureza transcendente dos direitos que visa
proteger, pela potencialidade de servir à preservação da harmonia e a realização dos
objetivos constitucionais da sociedade26
.
maio-jun. 2001, p. 5-14. 23 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de Processo Coletivo. São Paulo: RT, 2002. p.31. 24 Artigo 81, do Código de Defesa do Consumidor. 25 Neste sentido , é bem de ver, o artigo 83, III, da LOMPU, encampa a tese defendida ao prescrever a ação civil pública trabalhista como instrumento hábil á defesa dos direitos coletivos dos trabalhadores em face do
desrespeito aos direitos sociais trabalhistas constitucionalmente garantidos. 26 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Op.cit.p.35
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Assim é que a tutela metaindividual sobrepõe-se em importância e efetividade,
despontando o privilégio às decisões coletivas, visto que essas são capazes de influir nos
destinos políticos da sociedade e de se projetarem para além da relação processual definida
pelas partes.
A sistematização e a edificação de um processo coletivo efetivo estão
absolutamente ligadas à noção de democracia em uma sociedade pluricêntrica, vez que
somente a manifestação de interesses coletivos é capaz de influir na perspectiva política do
Estado.
Nas lições de Boaventura Santos27
, a mobilização política e cidadã só faz
sentido se houver interesse coletivo e mecanismos erigidos para sua tutela efetiva e
eficiente, cuja manifestação é adequada aos nortes da ação coletiva.
4. CONCLUSÕES
A noção de um Estado Democrático de Direito é a noção de interação entre as
dimensões de participação social no processo de elaboração do direito e na definição e
execução dos fins do Estado, sempre e absolutamente volvidos à edificação e
concretização de direitos fundamentais das diversas gerações. Trata-se, pois, de paradigma
construído sob a premissa da participação ativa e responsável dos cidadãos na realização
do projeto social que se forjou constitucionalmente.
Sob tal paradigma, o processo dirige suas atenções à afirmação de seu caráter
instrumental e sua adequação às novas realidades sociais constatadas. Edifica-se como um
sistema arquitetado sob as estruturas da socialização, do acesso à justiça e da realização de
direitos fundamentais. O processo concorre para a consagração da cidadania e para a
interação entre a realidade social e o direito material. Impõe-se a formulação,
reformulação, reinterpretação e revisitação de práticas, institutos, regras e princípios
jurídicos em prol do alcance dessa finalidade.
O Estado Democrático de Direito é eminentemente um Estado de justiça
material social. É aquele no qual a jurisdição se faz presente. Sendo assim, o Estado
Democrático de Direito é indissociável do Processo enquanto um mecanismo
disponibilizado pelo ordenamento jurídico para a concretização de direitos. De nada vale a
27 SANTOS, Boaventura Souza. Op. Cit.p.109-111.
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positivação de direitos pela seara legislativa ou jurisprudencial quando apartada de
mecanismos democráticos com ímpeto de impor sua efetivação.
O grande serviço prestado pela moderna doutrina processualista, com lastro em
uma noção social e instrumental do processo, foi a afirmação do comprometimento da
ordem jurídica processual com valores constitucionalmente estabelecidos enquanto um
patamar mínimo de cidadania e dignidade. Assim é que o processo coletivo se mostra
absolutamente absorto pelo caráter instrumentalista do processo por ser conformado pela
participação democrática da sociedade na jurisdição. O devido processo legal coletivo
redefine os institutos processuais clássicos em favor da efetividade do processo coletivo
para afirmação de seu sentido.
O processo coletivo distingue-se do processo individual em importância, pela
marca que ostenta de interesse público, uma vez que possui o potencial de estender suas
decisões para um grande número de pessoas e de influir nos planos políticos da sociedade.
É a tutela coletiva processual que possui o potencial de descortinar as
demandas da sociedade e de transformar a realidade factual através da extensão subjetiva
da coisa julgada coletiva.
Além disso, a tutela processual coletiva possui o condão de prevenir conflitos
por intermédio da ação jurisdicional já que é capaz de determinar a conduta pública em
vistas de ameaça de lesão a direitos. Esse é o mais relevante sentido do processo coletivo
e, em síntese, o que o configura como um processo de interesse público por essência: a
possibilidade de influir nas diretrizes políticas pautadas pelos bens jurídicos tutelados por
meio das ações coletivas preventivas e reparatórias.
Os males causados pela persistência do modelo liberal-individualista como
paradigma ainda orientam a prática judiciária e o déficit de efetividade da jurisdição,
remetendo o processo coletivo a um plano secundário, destituindo-o de sua função
estratégica na realização de direitos fundamentais substanciais, na pacificação social e na
realização da justiça. Ao se reconhecer sua função estratégica na realização do projeto de
sociedade coerente com o Estado Democrático de Direito, inscrito na constituição federal,
confere-se-lhe o status de instrumento processual de elevado interesse público, pondo em
relevo seu potencial transformador da sociedade e sua aptidão para influir e inibir escolhas
políticas contrárias ao princípio de justiça fundante da sociedade brasileira.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Direito Público e Direito Privado por uma nova Summa Divisio Constitucionalizada. Belo
Horizonte, editora Del Rey, 2008.
BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material
sobre o processo. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
_____. CARMONA, Carlos Alberto. A posição do Juiz: Tendências Atuais. Revista de
Processo, São Paulo, ano 24, n. 96, p. 96-112, out./dez. 1999.
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O EFEITO DEVOLUTIVO E OUTROS EFEITOS
Clarissa Diniz Guedes
Doutora em Direito Processual pela Universidade de São
Paulo - USP, Mestre em Direito Processual pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Professora
Assistente de Direito Processual na Universidade Federal de
Juiz de Fora - UFJF.
RESUMO: Com este trabalho, busca-se analisar a utilidade de se adotar uma classificação
dos efeitos recursais que inclua, ao lado dos efeitos suspensivo e devolutivo, a categoria do
“efeito translativo”, definido como o efeito que possibilita a transferência das questões de
ordem pública para o conhecimento do juízo recursal. A partir da análise das lições de
Machado Guimarães e Angelo Bonsignori, buscar-se-á resgatar o sentido original do efeito
devolutivo, bem como alguns dos diversos significados adotados no decorrer da história.
Com base nos fundamentos históricos e de direito comparado extraídos dos textos
examinados, será respondida a indagação acerca dos princípios que regem o efeito
devolutivo. À luz desses princípios, concluir-se-á sobre a utilidade ou inutilidade, bem
como sobre as possíveis implicações de se atribuir natureza de efeito autônomo à
transferência das questões de ordem pública.
PALAVRAS-CHAVE: efeitos recursais, efeito devolutivo, efeito translativo, princípios
processuais, efeito autônomo.
ABSTRACT: This paper aims to analyze the utility of adopting a classification of the
appellation effects that includes, alongside the suspensive effect and devolutive effect, the
category of “translative” effect, defined as the effect which enables the transfer of public
order issues to the knowledge of the appellate court. From the analysis of Machado
Guimarães and Angelo Bonsignori this paper will retrieve the original sense of devolutive
effect, as well as some of the various meanings adopted throughout history. Based on
historical and comparative law fundamentals extracted from the texts examined, will be
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answered the question about the principles that govern the devolutive effect. In the light of
these principles, we will be able to conclude on the usefulness or uselessness, as well as the
possible implications of attributing the nature of autonomous effect to the transfer of public
order issues.
KEYWORDS: appellation effects, devolutive effect, translative effect, procedural
principles, autonomous effect.
1 Classificações dos efeitos recursais: os desmembramentos do efeito devolutivo
São múltiplas as classificações dos efeitos recursais. Rigorosamente,
consideram-se efeitos recursais as consequências da interposição do recurso sobre o
pronunciamento impugnado e sobre o desenvolvimento do processo.1
Araken de Assis anota, com razão, a ausência de clareza sobre a matéria no
âmbito doutrinário e na disciplina legislativa, que conduzem ao enquadramento, como
efeitos recursais, de fenômenos estranhos ao plano da eficácia, bem como outros que,
“embora efeitos no sentido próprio do termo, e discerníveis nos trâmites recursais,
mostram-se inidôneos à configuração de um tronco independente”.2 Entende este autor
que, apesar da dificuldade de se alcançar um posicionamento harmonioso sobre o tema, há
uma exigência mínima a ser observada, único aspecto que se sobrepõe à intuição e ao
arbítrio do classificador: a coerência intrínseca do arranjo proposto.
Evita-se, assim, tanto o reducionismo, quando o tautologismo –
vícios reprováveis em qualquer esquema. E, no entanto, as
classificações visam à melhor compreensão dos fenômenos
examinados. A sistematização indiferente a tal aspecto torna-se
inócua e sem relevância prática. 3
1 Concordam parcialmente com a assertiva: ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2ª ed.. São Paulo: RT,
2008, p. 216; NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, n. 26, p.
140. 2 Araken de Assis (Op. cit., pp. 216-217), menciona, entre os efeitos que não merecem ser considerados
autônomos, porque decorrem de outro, o expansivo (ou extensivo) e o translativo. Já Flávio Cheim Jorge (Teoria geral dos recursos cíveis. Forense: Rio de Janeiro, 2003, p. 245 e s.) considera que o único efeito
recursal em sentido estrito seria o devolutivo. 3 ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 218.
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Afigura-se essencial, antes de tudo, distinguir, com Renzo Provinciali, os
efeitos inerentes ao exercício de quaisquer faculdades processuais decorrentes dos direitos
de agir ou excepcionar – nas quais estão incluídos os recursos –, denominados efeitos
genéricos, daquelas consequências que se ligam direta e especificamente aos recursos,
consideradas efeitos recursais específicos.4 Somente estes últimos efeitos, por serem
consequências próprias e peculiares às impugnações de decisões judiciais que incidem
sobre o provimento recorrido,5 devem ser entendidos como efeitos dos recursos.
Sob essa perspectiva, exclui-se da classificação dos “efeitos recursais” o
chamado efeito de “prolongamento da litispendência”, por vezes denominado efeito
“obstativo”, “impeditivo”, “preventivo” ou simplesmente “efeito de adiamento” da coisa
julgada ou da “preclusão”.6 A despeito de ser mencionado por parcela considerável da
4 PROVINCIALI, Renzo. Sistema delle impugnazioni civili secondo la nuova legislazione. Parte generale.
Padova: Cedam, 1948, pp. 290-291, § 50. 5 No ordenamento brasileiro, para serem consideradas recursos, as impugnações devem ter lugar dentro do
mesmo processo em que proferida a decisão impugnada. É dizer: a natureza recursal de um remédio
direcionado à reforma ou invalidação de decisão judicial pressupõe a ausência de trânsito em julgado do
provimento impugnado. Cf. nesse sentido, a definição de José Carlos Barbosa Moreira, amplamente utilizada
pela doutrina: “pode-se conceituar recurso, no direito processual civil brasileiro, como o remédio voluntário,
idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de
decisão judicial que se impugna” (Comentários ao Código de Processo Civil. 12ª ed.. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, v.5, p. 233). 6 Sobre a questão terminológica, Cândido Rangel Dinamarco alude ao “efeito direto e imediato de prevenir a
preclusão temporal”, e explica que, antes do juízo de admissibilidade recursal, não há como saber se o
recurso obstará ou adiará a preclusão. De fato, se o recurso for conhecido, a decisão recorrida jamais
precluirá, porque será substituída pelo juízo de mérito (art. 512 do CPC); se não for, a preclusão apenas terá
sido adiada (Efeitos dos recursos. In: A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 120).
Quanto a preferir fazer referência a “preclusão”, e não necessariamente ao “trânsito em julgado”, justifica
Dinamarco ao argumento de que este ocorrerá apenas quando a decisão recorrida for uma sentença, acórdão
ou decisão monocrática que tenham julgado definitivamente a causa. Embora se concorde que o termo
“preclusão”, por ser mais abrangente, é preferível à “prevenção do trânsito em julgado”, há que se ressalvar a
assertiva de que apenas as sentenças, acórdãos ou decisões monocráticas finais dão origem ao trânsito em
julgado, pois também algumas decisões interlocutórias são suscetíveis de transitar em julgado e produzir
coisa julgada (cf., neste sentido: STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1057808/PR, j. 25.8.2009, DJe 9.9.2009).
Quanto à denominação “prolongamento da litispendência”, explica Dinamarco que este apenas ocorrerá
quando o ato recorrido for uma sentença (op. cit., pp. 122-123). Ressalte-se, porém, que, para uma corrente
doutrinário-jurisprudencial minoritária, a afirmação não se aplica à totalidade dos casos – há quem entenda
que o recurso de agravo de instrumento contra decisão interlocutória tem o condão de prolongar a
litispendência ainda que, proferida a sentença, o agravante não tenha dela recorrido, desde que subsista o
interesse recursal (cf., sobre o tema: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4ª
ed.. São Paulo: RT, 2006, n. 11.1, pp. 576 e s., em que a autora discorre sobre os argumentos utilizados pelos
defensores desta tese, nada obstante a ela se posicione contrariamente; favoravelmente ao prolongamento da
litispendência pelo agravo de instrumento, após sentença irrecorrida: ALVES, Francisco Glauber Pessoa.
Agravo de Instrumento Julgado depois de proferida sentença não tendo sido conhecida a apelação. Revista
de Processo, São Paulo, v. 95, jul./set. 1999, p. 255 e s.). Ainda assim, é possível afirmar que o
prolongamento da litispendência decorre, regra geral, dos recursos interpostos contra a decisão final da causa.
Logo, não poderia ser considerado um efeito que se aplica a todos os recursos.
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doutrina como efeito recursal, ao lado dos efeitos devolutivo e suspensivo, não se trata de
efeito que concerne especificamente aos recursos.7
Deste modo, embora a prevenção da coisa julgada ou da preclusão sejam
fatos relevantes, por exemplo, para efeitos de contagem do prazo para propositura de
ação rescisória,8 não podem ser considerados relevantes para efeitos de serem incluídos
numa classificação referente às consequências específicas dos recursos.
Há também quem acresça aos efeitos devolutivo, suspensivo e “impeditivo”, os
efeitos “expansivo” ou “extensivo” 9
e “substitutivo”.
Na ótica de Barbosa Moreira e Araken de Assis, o efeito “expansivo” não
configuraria uma categoria autônoma, por tratar-se de desmembramento do efeito
devolutivo.10
Argumenta-se que, sendo o “efeito extensivo” o “fenômeno pelo qual, em
certos casos, o recurso interposto por um litisconsorte aproveita aos restantes (...) antes que
7 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 257. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio
Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal. 3ª ed.. São Paulo: RT, 2001, p.
49. 8 Confira-se o Enunciado 401 da Súmula do STJ: “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando
não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.” O verbete é motivado pela necessidade
prática de se estabelecer o momento exato do iter procedimental a ser considerado como termo a quo do
prazo para ajuizamento de rescisória. Alguns julgados que precederam à edição da Súmula 401 fazem menção à indivisibilidade da sentença e da coisa julgada para justificar o início do prazo no momento do
trânsito em julgado do último pronunciamento judicial. Nesse sentido: “A coisa julgada material é a
qualidade conferida por lei à sentença/acórdão que resolve todas as questões suscitadas pondo fim ao
processo, extinguindo, pois, a lide. Sendo a ação una e indivisível, não há que se falar em fracionamento da
sentença/acórdão, o que afasta a possibilidade do seu trânsito em julgado parcial. Consoante o disposto no
art. 495 do CPC, o direito de propor a ação rescisória se extingue após o decurso de dois anos contados do
trânsito em julgado da última decisão proferida na causa.” (STJ, 2ª T., Rel. Francisco Peçanha Martins, REsp
404777/DF, j. 21.11.2002, DJ 9.6.2003, p. 214). Cuida-se, porém, de entendimento que contraria a orientação
dominante no Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de formação gradual da coisa julgada,
conforme decidido no julgado a seguir: “Sob pena de ofensa à garantia constitucional da coisa julgada, não
pode tribunal eleitoral, sob invocação do chamado efeito translativo do recurso, no âmbito de cognição do
que foi interposto apenas pelo prefeito, cujo diploma foi cassado, por captação ilegal de sufrágio, cassar de ofício o diploma do vice-prefeito absolvido por capítulo decisório da sentença que, não impugnado por
ninguém, transitou em julgado.” (STF, Tribunal Pleno, AC 112/RN, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 1.12.2004, DJ
4.2.2005). Em sede doutrinária, a coisa julgada parcial é frequentemente invocada para sustentar-se a
imutabilidade e indiscutibilidade da parte /capítulo de sentença independente que não tenha sido objeto de
recurso (cf., sobre o tema, as remissões feitas no item 3.3 deste trabalho). 9 A referência ao efeito extensivo ou expansivo é corrente no direito italiano. Nesse sentido, explica Barbosa
Moreira (op. cit., n. 143, p. 257, nota de rodapé 37: “O tema ocorria com maior frequência entre os
processualistas penais italianos, a propósito dos arts. 203 e 204 do Código de 1930, onde a própria rubrica
legal adotava a expressão (hoje, o art. 587 do Código de 1988 alude à estensione dell´impugnazione).”
Acresça-se que o code di procedura civile vigente dispõe, no art. 336, intitulado “Effetti della riforma o della
cassazione”: “La riforma o la cassazione parziale ha effetto anche sulle parti della sentenza dipendenti dalla parte riformata o cassata. La riforma o la cassazione estende i suoi effetti ai provvedimenti e agli atti
dipendenti dalla sentenza riformata o cassata.” 10 MOREIRA, José Carlos Barbosa. n. 143. Op. cit., p. 257; ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 218-219.
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de um efeito, per se, parece mais adequado falar de extensão subjetiva dos efeitos
propriamente ditos”.11
Mencione-se, ainda, que, além do aproveitamento do resultado pelos
litisconsortes que não recorreram (“efeito extensivo subjetivo”), a doutrina cogita do
“efeito extensivo objetivo”, que diz respeito às consequências do provimento do recurso
sobre outros atos processuais ou sobre outras partes da decisão recorrida que não tenham
sido objeto de impugnação. Neste particular, não há como afastar a explicação de que a
“expansão” das consequências da interposição do recurso a capítulos distintos – que não
tenham sido diretamente impugnados – do ato decisório recorrido, subordinados à parte
que foi objeto de impugnação, decorre, simplesmente, da extensão do efeito devolutivo.12
O “efeito substitutivo” é também consequência do efeito devolutivo, e não
propriamente dos recursos, porquanto “a substituição da decisão recorrida pela decisão do
recurso não é uma consequência natural de seu conteúdo, mas tão somente uma
repercussão indissociável do efeito devolutivo, o qual permite o reexame e,
consequentemente, a sobreposição de uma decisão sobre a outra”. 13
Voltar-se-á ao ponto, oportunamente, quando da abordagem das implicações
do efeito devolutivo.
Outra classificação inclui a referência ao “efeito diferido”. Conforme Alcides
de Mendonça Lima, este incide quando o julgamento de um recurso encontra-se
subordinado à interposição e conhecimento de outro recurso.14
É o que ocorre com o
agravo retido, previsto no art. 523, caput, do CPC vigente. Nesse caso, tanto a remessa do
agravo retido ao órgão competente para julgamento, como, também, a própria
admissibilidade, ficam sujeitos à interposição e conhecimento da apelação, que
11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. n. 143. Op. cit., p. 257. 12 Há exemplos de “efeito expansivo” (art. 336 do codice di procedura civile) no direito italiano. Hipótese peculiar de efeito expansivo diz respeito à aplicabilidade do art. 336 do Código italiano a decisões prolatadas
em procedimentos diversos, mas dependentes entre si (prejudicialidade externa). A jurisprudência italiana,
com apoio em Liebman, Andrioli e Satta-Punzi, tem decidido que nas hipóteses em que seja impugnada
apenas uma sentença não definitiva, sem que se recorra daquela definitiva, e constituindo uma delas
pressuposto lógico ou jurídico da outra, os efeitos prejudiciais determinados pela reforma ou cassação da
sentença não definitiva se produzirão sobre aquela definitiva, sem que se considere que sobre esta teria se
verificado a coisa julgada formal, pois se trata de coisa julgada apenas aparente, porquanto necessariamente
condicionada à pendência de recurso contra a sentença não definitiva que é antecedente lógico ou jurídico
(PICARDI, Nicola (a cura di). Le fonti del diritto italiano i testi fondamentali commentati con la dottrina e
annotati con la giurisprudenza. Codice di Procedura Civile. Milano: Giuffrè, 2010, p. 986, com remissões
à doutrina e jurisprudência italianas). 13 JORGE, Flávio Cheim. Op. cit., p. 252. 14 LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, n. 187, p. 288-289; Idem, Recursos cíveis:
Sistema de normas gerais. Rio de Janeiro – São Paulo: Freitas Bastos, 1963, p. 255.
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determinam a remessa dos autos para o juízo recursal. Na realidade, o que ocorre é que os
efeitos do recurso de agravo retido ficam diferidos no tempo, aguardando a oportuna
interposição da apelação. Não se trata o “efeito diferido” de um efeito autônomo, senão
que de uma exigência procedimental para que os recursos produzam seus efeitos próprios.
Resta, então, a classificação adotada majoritariamente pela doutrina, alusiva à
dicotomia dos efeitos suspensivo e devolutivo.
Quanto ao primeiro, trata-se do efeito de impedir a eficácia imediata da
decisão. Diz Barbosa Moreira que
A expressão ‘efeito suspensivo’ é, de certo modo, equívoca, porque
se presta a fazer supor que só com a interposição do recurso passem
a ficar tolhidos os efeitos da decisão, como se até esse momento
estivessem eles a manifestar-se normalmente. Na realidade, o
contrário é que se verifica: mesmo antes de interposto o recurso, a
decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz,
e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que
cessaria se não se interpusesse recurso. Cabe ressalvar que, em
determinadas hipóteses (v.g., art. 558), o óbice à eficácia da decisão
recorrida não nasce da previsão legal de recurso normalmente
dotado de efeito suspensivo, mas de ato judicial que, no caso
concreto, diante de tais ou quais circunstâncias, suspende aquela
eficácia.15
Raciocínio idêntico foi adotado por Pontes de Miranda, que se referia ao efeito
suspensivo como um efeito que decorre “mais da recorribilidade do que do recurso”.16
Essa
observação, lembrada por muitos,17
não afasta a conclusão de que a suspensividade é efeito
do recurso em sentido amplo, independentemente das subclassificações que se distinguem
15 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 143, p. 258. 16 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,
1975, tomo 7, p. 11. 17 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 959. Flávio Cheim
Jorge diz que este efeito está mais diretamente relacionado à ineficácia da decisão, decorrente de previsão legislativa (Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 249-250. Em sentido
análogo, Ovídio Baptista da Silva (Curso de processo civil. Processo de Conhecimento. 7ª ed.. Rio de
Janeiro: Forense, 2005, v. 1, p. 403.
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os efeitos da recorribilidade ou da pendência de recurso, da interposição, da remessa e do
julgamento do recurso.18
O efeito devolutivo, que é o mais característico dos efeitos recursais, pode ser
provisoriamente definido como o “efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad
quem o conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição”. Cuida-se do
conceito fornecido por José Carlos Barbosa Moreira, ao qual acresce a seguinte
observação, atinente às peculiaridades da lei processual vigente no ordenamento pátrio:
De lege lata, há devolução sempre que se transfere ao órgão ad
quem algo do que fora submetido ao órgão a quo – algo, repita-se;
não necessariamente tudo. Inexiste, portanto, recurso totalmente
desprovido de efeito devolutivo, com ressalva dos casos em que o
julgamento caiba ao mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida.
O que pode acontecer, conforme se assinalará nos momentos
oportunos, é que variem, de um para outro recurso, a extensão e a
profundidade do aludido efeito. Aquela – desde já convém observar
– nunca ultrapassará os lindes da própria impugnação: no recurso
parcial (...), a parte não impugnada pelo recorrente escapa ao
conhecimento do órgão superior, salvo se por outra razão (como
nos casos do art. 475) este se houver de pronunciar a propósito.19
Cuida-se da noção ampla de efeito devolutivo, que remonta à sua origem,
concomitante ao surgimento da apelação romana, e que, pelas razões que serão expostas,
permanecem vivas e não devem ser olvidadas.
Há quem, ao argumento de amparar-se nas disposições legais (art. 515, caput,
do CPC),20
limite o efeito devolutivo às questões que tenham sido objeto de impugnação
18 Assim, por exemplo, a doutrina portuguesa, parcialmente seguida por Araken de Assis (op. cit., pp. 219-
220) distingue os efeitos recursais conforme o estágio em que se encontre o recurso. Refere-se aos efeitos (a)
da pendência do recurso: o impedimento à formação da coisa julgada e o prolongamento da litispendência;
(b) da interposição: o devolutivo e o suspensivo, já explicados; (c) da expedição do recurso: o efeito
suspensivo da marcha do processo em primeiro grau – explica-se, dessa forma, a menção ao fato de o agravo
não obstar ‘o andamento do processo’, constante da segunda parte do art. 497 – e o efeito não suspensivo a
tal prosseguimento; e (d) do julgamento do recurso: a substituição do ato impugnado pelo pronunciamento do
tribunal, confirmando, reformando ou anulando o ato decisório proferido no órgão a quo. Cf., a propósito,
MENDES, Armindo Ribeiro. Os recursos no Código de Processo Civil revisto. Lisboa: Lex, 1998, n. 16,
pp. 56-57. 19 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., pp. 259-261. 20 Em sentido análogo, o art. 1.026 do Projeto de Novo CPC - PL 8.046/2010, na versão do substitutivo
aprovado na Câmara dos Deputados em julho de 2013.
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pelo recorrente, reservando, para as demais questões, que porventura venham a ser
enfrentadas pelo órgão ad quem, um efeito autônomo, denominado “translativo”.
(...) O efeito translativo serviria para distinguir a devolução operada
por força da impugnação do legitimado, assentada no princípio
devolutivo, e a ocorrida independentemente da impugnação,
abrangendo matérias de ordem pública, e decorrente do princípio
inquisitório.21
Aqueles que defendem a autonomia do efeito translativo invocam-na sob o
argumento de que este efeito se opõe ao devolutivo, porque amparado no princípio
inquisitivo, enquanto este encontraria respaldo no dispositivo.
Assim, Nery Jr. entende que “O poder dado pela lei ao juiz para, na instância
recursal, examinar de ofício as questões de ordem pública não arguidas pelas partes não se
insere no conceito de efeito devolutivo em sentido estrito, já que isso se dá pela atuação do
princípio inquisitório e não pela sua antítese, que é o princípio dispositivo, de que é
corolário o efeito devolutivo dos recursos”.
Para este autor, o efeito devolutivo pressupõe “ato comissivo de interposição
do recurso, não podendo ser caracterizado quando há omissão da parte ou interessado sobre
determinada questão não referida nas razões ou contrarrazões do recurso”.22
Será objeto de análise, mais adiante, a questão da necessidade ou
desnecessidade de distinguir um efeito próprio para justificar a transferência de questões
não impugnadas mediante recurso. Antes disso, proceder-se-á ao resgate conceitual do
termo “efeito devolutivo”, no sentido original e naquele adotado por alguns ordenamentos
no decorrer da história, para, na sequência, analisar em que medida merecem ser
preservadas as conceituações históricas e provenientes do direito estrangeiro.
Em seguida, serão examinadas, com o mesmo propósito, as possíveis
implicações de se atribuir natureza de efeito autônomo à transferência das questões de
ordem pública.
21 ASSIS, Araken de. Op. cit., pp. 216-217, amparado na concepção de Nelson Nery Jr. (Teoria Geral dos
Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 482), da qual diverge, por considerar “mais natural” compreender o conhecimento e o julgamento das questões de ordem pública como uma “consequência intrínseca ao efeito
devolutivo, relativa à sua profundidade”. 22 NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed.. São Paulo: RT, 2004, p. 484.
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2 Conceito de efeito devolutivo e princípios regentes
A partir de uma observação histórico-comparativa sobre o efeito devolutivo,
José Carlos Barbosa Moreira revela serem variados os limites deste efeito em diversos
ordenamentos e épocas:
Entre nós, sob o direito anterior, não era pacífica a conceituação do
efeito devolutivo: enquanto a minoria dos escritos o reconhecia,
com maior ou menor amplitude, sempre que alguma questão, seja
qual for a sua natureza, se submete ao crivo de novo julgamento,
havia quem preferisse limitá-lo às hipóteses de reapreciação da
causa, ou, antes, do mérito, no todo ou em parte, mas sem restrição
de profundidade.
Percebe-se a afinidade entre essa segunda
concepção e a sustentada por certos autores italianos, em cujo
entendimento se deve excluir do âmbito do efeitos devolutivo
aquilo que as partes, de maneira voluntária e expressa, levam à
revisão do juízo superior, e confinar-lhe a atuação às questões que
este, automaticamente – isto é, independentemente de tal iniciativa
– , fica investido do poder de reapreciar, ao julgar o recurso. O
mecanismo do efeito devolutivo só seria necessário para explicar a
atividade cognitiva em nível mais alto com referência à matéria que
não seja objeto de suscitação especificada pelos litigantes.23
O trecho supracitado é amparado em texto clássico da doutrina italiana sobre o
efeito devolutivo24
e, particularmente quanto aos aspectos do direito processual pátrio,
remete às lições de Luiz Machado Guimarães.25
De ambos pode-se extrair a ausência de
vinculação necessária entre o efeito devolutivo e a definição do objeto do recurso pelas
partes.
Bonsignori afirma textualmente a existência de um efeito devolutivo concreto e
específico, exercício automático, pelo juízo de segundo grau, do poder-dever de examinar
os fundamentos e razões em que se baseiam a demanda e as exceções já deduzidas em
23 Op. cit., pp. 259-260. 24 BONSIGNORI, Angelo. L’effetto devolutivo dell’appello. Rivista Trimmestrale di Diritto e Procedura
Civile. Milão: Giuffrè, 1974, v. 38, pp. 1326-1370. 25 GUIMARÃES, Luiz Machado. Efeito devolutivo da apelação. In: Estudos de direito processual civil. Rio
de Janeiro/São Paulo: Editora Jurídica e Universitária LTDA., 1963.
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primeira instância, independentemente de uma expressa “repropositura” pelas partes. Esse
efeito devolutivo – que, segundo o autor, teria sido limitado pelo codice di procedura civile
de 1940 – conecta-se a dois aspectos do recurso de apelação: o beneficium commune, que
consiste na possibilidade de o recurso favorecer tanto a parte recorrente como a parte
recorrida, e a denominada apelatio generalis, possibilidade de interposição genérica e
imotivada da apelação.26
A concepção do jurista italiano é interessante porque vai na
contramão do entendimento de alguns juristas brasileiros, que excluem do efeito
devolutivo qualquer influência do princípio inquisitivo.
Ademais, as considerações de José Carlos Barbosa Moreira, reproduzidas no
início deste tópico, conduzem a questionamentos concernentes ao efeito devolutivo na
atualidade, tais como: a natureza das questões sobre as quais incide este efeito (se apenas
as questões atinentes à decisão final da causa ou se também a matéria decidida
incidentemente no processo); a amplitude da devolução, relativamente à matéria a ser
analisada pelo órgão recursal.
O primeiro questionamento afigura-se de simples solução.
A restrição do efeito devolutivo ao julgamento final da causa, que como regra
geral é alvo do recurso de apelação, remonta à própria origem romana deste efeito, num
momento em que vigia a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias.27
Diante
disso, parece correto entender que, à proporção em que os ordenamentos admitam a
interposição de recursos contra as decisões interlocutórias, há uma propensão ao
entendimento de que o efeito devolutivo abrange também as questões incidentemente
decididas no processo.
26 BONSIGNORI, Angelo. Op. cit., pp. 1326-1327. 27 A regra geral de vedação da apelação contra as interlocutiones foi estabelecida em Constituições do Baixo
Império que datam de 364 e 378 d.C. (Código Theodosiano 11.36.16; 11.36.18 e 11.36.23). O Código Theodosiano (11.36.1) registra ressalva aos casos de dano irreparável, quando também as interlocutórias
eram passíveis de impugnação pela appellatio, em Constituição do tempo de Constantino. (COSTA, Moacyr
Lobo da. A origem do agravo no direito lusitano. In: AZEVEDO, Luiz Carlos de. COSTA, Moacyr Lobo da.
Estudos de história do processo: Recursos. São Paulo: FIEO, 1996, p. 135). O direito romano clássico
estabeleceu definitivamente a irrecorribilidade das interlocutórias como regra geral. Não havia recurso
especificamente destinado à impugnação das interlocutiones de primeiro grau e o uso da apelação era
permitido apenas excepcionalmente para este fim. A inapelabilidade das interlocutórias foi categoricamente
imposta por Justiniano (Cód. Justinianeu 7.62.36), sob a justificativa de que não se poderia experimentar
dano das interlocutórias, já que ao tempo da apelação poderiam ser expostas as razões em que se fundassem a
pretensão de obter algum direito, tais como a produção de prova testemunhal e a apresentação de
documentos. A proibição era justificada ante a necessidade de se impedir o prolongamento indefinido dos pleitos. Assim, quando fosse denegado algum direito por decisão interlocutória, o juiz determinaria que se
consignasse por escrito para que a parte prejudicada pudesse suscitar a questão na apelação contra a sentença
final.
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Ademais, se em épocas remotas a preocupação dos jurisconsultos referia-se
predominantemente às questões de direito substancial, a evolução do processo acarretou o
incremento das situações em que se consideram lesivas as decisões que suprimem direitos
de cunho processual, referindo-se, apenas indiretamente, a direitos materiais. Dentre estas,
podem se citar as decisões relativas à concessão de medidas cautelares e à admissão da
produção de provas ilícitas com prejuízo a direitos fundamentais. Apesar de, regra geral,
não se referirem ao mérito, a realçada importância destas questões determina a
transferência da matéria ao órgão ad quem, pela via do agravo.
Por outro lado, há decisões interlocutórias que podem implicar violações
diretas a direitos materiais, como ocorre no processo de execução e na fase de
cumprimento de sentença.
Também as sentenças terminativas, apesar de não solucionarem o mérito da
causa, ganham especial relevo, seja pelo status constitucional do direito de ação (art. 5º,
XXXV), seja pela autonomia do processo, traduzida na doutrina das condições da ação e
dos pressupostos processuais. As antigas “decisões interlocutórias com força de
definitivas”, que não dizem respeito ao mérito, suscitam controvérsias jurídicas de
destaque.
Além disso, deve-se consignar que, no ordenamento brasileiro vigente, é
possível a prolação de decisões interlocutórias cujo conteúdo refira-se às sentenças de
mérito (assim, por exemplo, o indeferimento liminar da reconvenção, amparado na
decretação de decadência), fato que atrai a incidência do efeito devolutivo quanto ao
“mérito da causa”.
Desse modo, por mais que se concorde que, no estágio atual do processo, deva-
se diminuir a quantidade de recursos contra as interlocutórias – o que, aliás, foi objeto de
reformas recentes no Código de Processo Civil vigente28
e é alvo da proposta legislativa
referente ao Projeto de Novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado nº
28 A propósito, as modificações implementadas pela Lei 10.352/2001, que inverteram – na prática – a regra
geral até então vigente do cabimento do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias, mediante
previsão da possibilidade de o relator convertê-lo em agravo retido na quase totalidade dos casos. Na
sequência, a Lei 11.187/2005 estipulou obrigatoriedade de tal conversão em todos os casos em que a decisão
agravada não fosse suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida. Estabeleceu, também, a
irrecorribilidade da decisão do relator que convertesse em retido o agravo de instrumento (cf. a redação
atribuída ao art. 527, II e parágrafo único do CPC vigente).
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166/2010, em trâmite na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº 8.046/2010)29
– ,
não se pode negar que a necessidade de reexame do conteúdo de diversas decisões desta
natureza conduz à ilação de que também incide o efeito devolutivo sobre tais
pronunciamentos.
Sob essa ótica, a concepção do efeito devolutivo como aquele que incide
apenas sobre as sentenças de mérito merece registro somente para efeitos históricos, mas
não é de maior interesse no que concerne à fixação da natureza das questões que são
transferidas por força deste efeito.
Registre-se, porém, que a relação entre o efeito devolutivo e o mérito da causa
repercutiu, em período ainda recente do direito processual civil brasileiro, sobre o segundo
questionamento, acerca da amplitude da devolução, relativamente à matéria ser analisada
pelo órgão recursal.
Sobre este aspecto, fundamental a análise dos dispositivos contidos nos arts.
820 e 846 do CPC de 193930
por Luiz Machado Guimarães31
, referentes ao efeito
devolutivo que, para o autor, atinha-se ao reexame do mérito da causa pelo órgão julgador
do recurso. Amparado nessa premissa da imprescindibilidade de um exame do mérito em
primeiro grau de jurisdição, realçava o autor a importância do efeito devolutivo na
classificação dos recursos, por entender que, pela devolução do pleno conhecimento da
causa ao tribunal de recurso, atendia-se à exigência do duplo grau de jurisdição.
29 O texto do Projeto mantém o recurso de agravo, mas restringe-lhe o cabimento às decisões interlocutórias
expressamente previstas na lei, onde se inserem, entre outras, aquelas referentes à tutela de urgência e de
evidência; as decisões interlocutórias de mérito; as proferidas na fase de cumprimento de sentença e na
execução. 30 Dizia Machado Guimarães: “O novo Código de Processo Civil, porém, quebrando essa tradição, foi muito
mais rigoroso e preciso na conceituação do duplo grau de jurisdição, exigindo, como condição de
admissibilidade do segundo exame pleno, uma decisão sobre o mérito proferida em primeira instância. Assim
é que concede, no art. 846, o recurso de agravo ‘das decisões que impliquem a terminação do processo principal sem lhe resolverem o mérito’ (as chamadas decisões interlocutórias com força de definitivas),
tornando, portanto, necessária a volta dos autos ao juiz a quo, para a pronúncia sobre o mérito, no caso de ser
provido o agravo, em virtude de não caber a este recurso, dado seu caráter estrito, o efeito devolutivo” (Op.
cit., p. 218). Veja-se que, por ser de agravo o recurso interponível, à época, contra as sentenças terminativas
(então denominadas decisões interlocutórias com força de definitivas), e justamente por não permitir o CPC
de 1939 que se examinasse o mérito, pela primeira vez, no juízo recursal, dizia então o jurista que o efeito
devolutivo apenas se aplicava ao recurso de apelação: “Ficou o recurso de apelação reservado às sentenças
definitivas de primeira instância (art. 820), só podendo ser consideradas definitivas, à vista do preceito
contido no citado art. 846, as decisões finais que definirem o mérito do litígio e, portanto, aptas a produzirem
coisa julgada” (Op.cit., p. 219). Essa concepção de efeito devolutivo necessariamente vinculado ao duplo
grau de jurisdição (i.e., dupla apreciação do mérito da causa) acabou superada no CPC vigente com a inserção do § 3º ao art. 515, o que não constitui, em absoluto, uma novidade, pois já era prevista nas
Ordenações do Reino. 31 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit., pp. 216-226.
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Abstraídas as questões que se referem ao duplo grau de jurisdição32
como
atributo do efeito devolutivo, interessa, no particular, a compreensão – ainda atualíssima –
de Machado Guimarães do que seria o “pleno” conhecimento da causa pelo tribunal
recursal.
Sobre o ponto, explicava o autor que a devolutividade da apelação não
dependia da alegação de vícios da sentença capazes de torná-la nula; bastava que se
alegasse a injustiça da decisão e todas as questões da causa seriam transferidas ao órgão
recursal.
Na sequência, elucidava o que deveria se compreender por “efeito devolutivo
amplo”, abrangente de todas as questões da causa:
Todos os tratadistas reconhecem que esta é a função da apelação:
corrigir a injustiça da sentença recorrida. Cumpre, entretanto, bem
esclarecer o sentido desta expressão, para que se não suponha que o
magistrado investido da apelação fica adstrito à simples apreciação
da justiça da sentença recorrida em face do material de cognição
recolhido na primeira instância. Seria, por exemplo,
processualmente justa a sentença que julgasse improcedente a ação
por não haverem sido alegados determinados fatos, ou, se diria, por
não terem sido provados, – o que não impediria, porém, a sua
reforma, desde que tais fatos viessem a ser alegados e provados no
juízo de apelação.
32 Para parte da doutrina, o efeito devolutivo pressupõe que o reexame da decisão seja feito por órgão diverso
do que a prolatou e, desse modo, nem todo recurso teria efeito devolutivo (cf. MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 12ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2005, n. 143, v. 5, p. 260). Renzo Provinciali anota que se trata de distinção tradicional que tem raízes históricas no processo
romano germânico, onde o juiz de primeiro grau exercia poderes delegados pelo princeps, este que detinha
amplos poderes para rever a decisão da causa. A competência para o julgamento era, portanto, do órgão
julgador do recurso, e apenas era exercida por órgão de hierarquia em caráter delegado; a revisão da decisão
constituía, portanto, na devolução das atribuições ao juízo competente. Cf. PROVINCIALI, Renzo. Sistema
delle impugnazioni civili secondo la nuova legislazione. Parte generale. Padova: Cedam, 1948, p. 21: “L’
effetto devolutivo è tradizionale nei vari mezzi di impugnazione: ma non ne è un inseparabile attributo.”; e
pp. 51-52: “I mezzi di impugnazione devolutivo sono principalmente diretti a rilevare errori, in procedendo
o in judicando (...), del primo giudice; il che pone l’esigenza che la cognizione del conflitto sai devoluta ad
un giudice diverso e superiore. Per contro, i mezzi di impugnazione non devolutivi sono diretti alla
rimozione di un pregiudizio derivante dalla decisione impugnata principalmente sulla basse di elementi o nuovi o ignoti al giudice che ha emessa la decisione impugnata: d’onde l’inutilità dell’ intervento, di un
giudice diverso e superiore, no essendovi da sindacare alcun errore comisso dal giudice che ha pronunziata
la decisione impugnata.”
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O efeito devolutivo da apelação transfere ao tribunal superior a
cognição de toda a demanda. Faculta-se a renovação do processo e
não apenas a renovação do julgamento; visa-se corrigir, além dos
erros do magistrado a quo, os erros e deficiências da conduta
processual das partes. Deve, portanto, o tribunal de apelação
conhecer e julgar a causa como se fôra, de acôrdo com a conhecida
expressão ‘uma segunda primeira instância’.33
Vê-se, portanto, que a concepção originária de efeito devolutivo é ampla, e
dela não se extrai nenhuma limitação apriorística aos termos das razões de apelação. Fala-
se em devolução da demanda, pura e simplesmente, para julgamento no órgão recursal.
É evidente que este rejulgamento da causa, como se fosse o Tribunal uma
“segunda primeira instância” não se aplicava, invariavelmente, a todos os ordenamentos. A
incidência do efeito devolutivo em toda a sua amplitude era regra vigente, à época do texto
de Machado Guimarães, nos sistemas processuais italiano e francês, coincidentes com a
previsão do velho direito português.34
35
Tal efeito sofria restrições mais ou menos rígidas
conforme o ordenamento jurídico. Isso fica muito claro quando o autor delimita, com
respaldo em lições da doutrina italiana, as questões que poderiam ser transferidas pela
apelação em cada modelo processual:
Como expõe CARNELUTTI em sua imaginosa linguagem, não se
trata, na apelação, de reparar o edifício já construído, mas de
reconstruí-lo. A reconstrução, entretanto, pode ser efetuada de
diversas maneiras: ou se utilizam apenas os materiais que já
serviram na primeira construção, ou, então, além desses, podem ser
usados novos materiais.
No processo austríaco apelação constitui, sem dúvida, um segundo
grau de jurisdição, um novo estágio da relação processual, porque o
juiz do recurso não se limita a verificar se houve erro na sentença
recorrida, mas faz um segundo exame da causa para inquirir se a
33 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit. pp. 220-221. 34 Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 75; Ordenações Manuelinas, Livro III, Título 57; Ordenações
Filipinas, Livro III, Título 72. 35 Cf., sobre o assunto, SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Civil.
Rio de Janeiro: Perseverança, 1879, v. 2, §333; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários
ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1959, tomo 11, p. 155.
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decisão recorrida é justa. Trata-se, porém, de exame limitado, que
se realiza sobre o mesmo material recolhido em primeira instância,
dentro dos limites fixados nos motivos aduzidos pelo apelante. Não
há um conhecimento ex novo da causa, não sendo lícito às partes
invocar novas exceções, nem fatos e provas que já não tenham sido
alegados e deduzidos em primeira instância (ZPO austr. § 482).
Na apelação do tipo francês e italiano, ao contrário, não há quase
limites com referência à produção de novos meios de ataque e de
defesa (jus novorum). Há a plena equiparação entre as atividades
do primeiro e as do segundo grau, de forma que, neste último, é
facultado às partes fazerem tudo aquilo que poderiam ter feito no
primeiro (beneficium nondum deducta deducendi et nondum
probata probandi).36
Observa-se, portanto, que, à conceituação anteriormente mencionada – a qual
designava como devolutivo o efeito de transferir o julgamento da causa para o órgão
julgador da apelação, comparado por Carnelutti à reconstrução de um edifício –, somam-se
as possíveis limitações à incidência deste efeito, que não modificam o conceito fornecido.
Independentemente da abrangência das questões que poderiam ser conhecidas
pelo tribunal, haveria sempre rejulgamento da causa em sede de apelação. Na metáfora
carneluttiana, fosse utilizado material novo ou apenas aproveitado o já existente, haveria
sempre “reconstrução do edifício”.
Veja-se que, embora não se fizesse distinção entre os planos de incidência do
efeito devolutivo, está claro que a devolutividade ampla a que se refere Machado
Guimarães – então presente nos ordenamentos francês e italiano, bem como no direito
reinol português –, dizia respeito: tanto aos limites da matéria que seria objeto de
conhecimento pelo Tribunal – i.e., à abrangência da reforma ou invalidação –, como,
também, aos fundamentos fáticos e jurídicos que embasariam a decisão do tribunal.
Nesse ponto, é possível traçar um paralelo com a sistematização doutrinária
atual, que distingue o efeito devolutivo horizontal (plano referente à extensão do recurso,
ou seja, aos limites da reforma e invalidação pretendidos) e vertical (plano referente aos
fundamentos utilizados pelo órgão recursal para decidir o recurso).
36 GUIMARÃES, Luiz Machado. Op. cit., p. 221.
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Machado Guimarães escreveu logo após a promulgação do Código de Processo
Civil de 1939, o qual havia acolhido o sistema austríaco, que delimitava de forma mais
restrita a incidência do efeito devolutivo, sob a perspectiva da extensão. Entre nós, tratava-
se de uma inovação no plano da legislação federal, porquanto, ressalvadas as
particularidades dos Códigos Estaduais, o direito precedente (Ordenações e jurisprudência
sobre Regulamento 737/1850) via no recurso de apelação uma nova possibilidade de
julgamento – amplo – da causa.
No Código de Processo Civil de 1939, semelhantemente ao que ocorre com o
Código vigente, a apelação tinha como função apenas facultar uma nova apreciação dos
elementos de cognição acumulados na primeira instância:
Reabre-se a discussão sobre as alegações de fato e respectivas
provas, a respeito das quais já se pronunciou o juiz de primeiro
grau. Corrige-se o erro do juiz, sem que seja possível, porém,
reparar as deficiências da conduta processual das partes. A
reconstrução do edifício é efetuada com os mesmos materiais que
serviram para a primeira construção, sem a possibilidade, salvo
motivo de força maior, da utilização de novos materiais.
É assim que o art. 824 [do CPC de 1939] dispõe que a apelação
devolverá à superior instância o conhecimento integral das questões
suscitadas e discutidas na ação. Note-se bem: a devolução não é o
pleno conhecimento da causa, mas das mesmas questões já
suscitadas, isto é, não se permitem, no juízo de apelação, novas
questões, ainda que pertinentes à causa. 37
Instaurava-se, então, no ordenamento pátrio, a adoção de um recurso de
apelação atrelado à atuação dos tribunais recursais restrita às questões debatidas em
primeiro grau, o que acarretou a modificação dos contornos legislativos do efeito
devolutivo. Não se permitia mais que os órgãos recursais procedessem a um rejulgamento
amplo da causa; os tribunais deveriam limitar-se aos contornos da sentença apelada e às
questões debatidas na ação.
Deve-se advertir, todavia, que a mudança legislativa não alterou, em absoluto,
o conceito de efeito devolutivo: o fenômeno traduzido por este efeito continuou sendo a
37 Op. cit., p. 224-225.
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transferência do julgamento de determinada matéria para o órgão recursal. As modificações
incidiram sobre o âmbito de incidência deste efeito, determinado pela sistemática do
Código de Processo Civil então vigente.
Tanto é assim que a regulação contida no Código Processo Civil de 1939,
voltada ao recurso de apelação, não seguia os principais ordenamentos continentais da
época, para os quais o efeito devolutivo tinha contornos legislativos mais amplos.38
Tenha-se presente que, apesar da limitação mais restrita do efeito devolutivo no
Código de 1939, em que ficou suprimida a possibilidade de se “prover ao apelante como ao
apelado, por ser recurso comum a ambas as partes” (beneficium commune), considerava
Machado Guimarães que o Código havia mantido, na essência, o efeito devolutivo. Assim,
o entendimento correto sobre a matéria era o de que o efeito devolutivo autorizava o
Tribunal a embasar o julgamento da apelação nas alegações ou exceções do apelado, ainda
que diversas do fundamento da sentença ou das razões do recorrente. Nesse caso, não
haveria reformatio in pejus, mas, tão somente, aplicação do efeito devolutivo. Veja-se o
ponto em que Machado Guimarães critica a orientação contrária da jurisprudência:
Firmou-se na jurisprudência o princípio de que a sentença transita
em julgado na parte em que é desfavorável ao apelado, e este, não
recorrendo, reputa ter aquiescido à decisão no que lhe foi contrária.
Esta regra tem tido, porém, aplicação às vezes exagerada e errônea
por parte de certos tribunais de apelação. Assim é que já tem sido
julgado que a parte vencida na preliminar, mas vencedora no
mérito, não pode, no recurso interposto pela parte contrária, insistir
na preliminar, porque sobre esta não versa o recurso. Ora, é preciso
não esquecer que, tanto para propor ação como para impugnar a
sentença, é condição necessária a existência do interesse, o qual, na
hipótese de recurso, resulta do fato de ter sido o recorrente vencido,
isto é, de haver decaído da sua pretensão. A parte que não foi
prejudicada pela sentença não pode dela recorrer, por falta de
38 Essa discrepância não impediu os aplausos de Machado Guimarães, por diversas razões. A primeira delas,
já detectada pelas codificações estaduais anteriores ao Código de 1939, dizia respeito à escassez das vias de
comunicação em nosso país e do fato de serem muitas vezes as comarcas muito afastadas da sede do tribunal
de recurso, o que dificultava de produção de novas provas em apelação e acarretava um processo dispendioso e demorado. Além disso, a dedução na primeira instância, de todas alegações e exceções possíveis, mediante
a respectiva produção da provas, ao mesmo tempo em que observava o princípio da imediação, constituía
mecanismo de prevenção à má-fé e à deslealdade processuais (op. cit., p. 225-226).
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interesse, o que não a impede, todavia, quando interposta a
apelação pelo vencido, de fazer valer novamente todos os motivos
alegados em prol do seu direito, inclusive aqueles já rejeitados em
primeira instância. Não se trata nesse caso de reformatio in pejus
mas de simples aplicação da devolução plena.39
Logo, a devolução implicava – como ainda implica – o conhecimento de todas
as questões da causa debatidas em primeiro grau, ainda que não decididas ou rejeitadas
pelo órgão a quo.
Conquanto o texto sob análise, alinhado à concepção da época, se referisse
apenas à apelação, a exposição de Luiz Machado Guimarães demonstra que os diferentes
contornos do efeito devolutivo nos diversos ordenamentos períodos não desnaturam a
característica principal que lhe é atribuída, qual seja, a eficácia de transferência de
determinada matéria para o julgamento do tribunal.
Mantida esta característica, observa-se que, conforme se conceda maior ou
menor importância à atividade dos órgãos recursais, ampliam-se ou restringem-se os
limites do efeito devolutivo. A vinculação do tribunal aos limites da pretensão recursal não
é um elemento característico do devolutivo; cuida-se, antes, de matéria alusiva à regulação
deste efeito em cada ordenamento.
Malgrado não se trate de uma regra absoluta, é bem possível que em
determinadas épocas e ordenamentos se consiga estabelecer uma conexão entre a maior
abrangência do efeito devolutivo e a centralização política do Estado, mormente em
sistemas em que não se verifica uma independência efetiva entre os Poderes Judiciário e
Executivo.
Contudo, não se pode estabelecer uma relação necessária entre o autoritarismo
estatal e a ausência de restrições ao efeito devolutivo.40
A questão envolve diversos outros
fatores, com destaque para a necessidade de se equilibrar a situação dos litigantes mediante
suprimento de deficiências técnicas da atuação dos respectivos advogados; a relevância
jurídica atribuída a certas questões, consideradas de ordem pública; a busca da decisão
justa, que depende da análise da integralidade dos fundamentos e questões subjacentes ao
39 Op. cit., pp. 223-224 (negritou-se). 40 Não parece possível sequer estabelecer uma relação necessária entre Estados autoritários e incremento dos
poderes do juiz. Sobre o tema, cf. GRECO, Leonardo. Publicismo e Privatismo no processo civil. Revista de
Processo, São Paulo, v. 164, out. 2008.
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recurso e, ainda, a celeridade processual.
Nessa linha, os arts. 515, §§ 1º e 2º e 516 do vigente Código de Processo Civil
Brasileiro estabelecem a possibilidade de o tribunal apreciar: “a) as questões examináveis
de ofício, a cujo respeito o órgão a quo não se manifestou – v.g., a da nulidade do ato
jurídico que se teria originado o suposto direito do autor, e em geral as quaestiones juris;
b) as questões que, não sendo examináveis de ofício, deixaram de ser apreciadas a despeito
de haverem sido suscitadas e discutidas pelas partes.”41
Está claro que a profundidade do
efeito devolutivo relaciona-se, ora com a importância das questões de ordem pública,
reguladas por normas de natureza cogente, ora com a necessidade de se obter uma decisão
justa, mediante análise de todos os fundamentos e questões que concernem à decisão (ou à
parte da decisão) impugnada.
Por outro lado, embora o caput do art. 515 tenha estabelecido que a apelação
devolverá ao tribunal apenas a matéria impugnada (delimitação dos contornos legislativos
do efeito devolutivo), o § 3º do referido dispositivo autoriza expressamente a ampliação do
efeito devolutivo na extensão (plano da horizontalidade), ao determinar que o Tribunal
aprecie o mérito da causa ainda não julgado em primeiro grau, sempre que a causa se
encontre madura para julgamento e não haja necessidade de dilação probatória. Trata-se de
norma que amplia a atividade cognitiva do Tribunal com vistas à simplificação e agilização
do iter procedimental. Idêntico raciocínio é aplicável ao § 4º do art. 515, que contém
disposição que confere ao órgão ad quem poderes para sanar os vícios processuais
eventualmente existentes, sem que haja necessidade de remessa dos autos ao primeiro grau.
Em todas essas hipóteses, há ampliação do efeito devolutivo, relativamente à
argumentação das partes ou ao objeto impugnado.
Enfim, como já sinalizado, o texto de Machado Guimarães fornece uma
amostra da impossibilidade de se estabelecer, seja na origem, seja na aplicação do efeito
devolutivo aos diversos ordenamentos, uma relação unívoca entre efeito devolutivo e
princípio dispositivo.
A regulação dos limites do efeito devolutivo sofre influência tanto do princípio
dispositivo como do inquisitivo, em maior ou menor intensidade, a depender das
características de cada processo.42
41 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 244, p. 447. 42 Seguindo a mesma orientação, Rodrigo Reis Mazzei escreve que “o efeito devolutivo remete ao reexame,
automaticamente, além da matéria recorrida, todas as questões que o Judiciário tem o dever de ofício de
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3 Implicações da compreensão do “efeito translativo” como efeito recursal autônomo
ou como componente do efeito devolutivo
O cerne da discussão acerca da existência de um efeito autônomo, denominado
translativo, consiste em se saber se a possibilidade de cognição ex officio das matérias de
ordem pública pelos tribunais a) produziria um efeito recursal novo, autônomo e oposto ao
efeito devolutivo;43
ou, se, diversamente, b) trata-se de manifestação do efeito devolutivo,
na perspectiva vertical (profundidade).44
Discorreu-se no tópico precedente acerca da inexistência de relação unívoca e
necessária entre a impugnação do recorrente e os contornos do efeito devolutivo.
Assentada, pois, a premissa de que o efeito devolutivo é regido não apenas pelo princípio
dispositivo, mas também pelo inquisitivo, não se afigura útil ou necessária a classificação
que inclui o efeito translativo entre as consequências dos recursos. Padece a referida
classificação da “coerência intrínseca do arranjo proposto” cogitada por Araken de Assis.45
Com efeito, a compreensão do “efeito translativo” como uma consequência
autônoma dos recursos, decorrente da aplicação do princípio inquisitivo na esfera recursal,
não leva em conta a profundidade do efeito devolutivo e induz a um entendimento
equivocado deste.
Não fossem suficientes essas considerações de natureza teórica, cumpre
explicitar a repercussão, no plano prático, da aceitação ou rejeição do efeito translativo
como categoria autônoma. É que, conforme se adote um ou outro posicionamento, será
diverso o entendimento acerca: 1) da necessidade de iniciativa da parte para fins de
transferir a apreciação da matéria ao órgão ad quem e, com isso, obter a reforma da decisão
impugnada; 2) da justificativa para a não apreciação de tais matérias no âmbito dos
recursos excepcionais e 3) da “contaminação” das matérias de ordem pública sobre a parte
examinar, espelhando a prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo no julgamento do
recurso” (O efeito devolutivo e seus desdobramentos. Dos Recursos. Vitória: ICE, 2001, v. 1, pp. 135-140).
Por isso mesmo, conclui Cheim Jorge, é incorreto “vincular e associar o denominado efeito devolutivo
unicamente ao princípio dispositivo. Também aqui tem incidência o princípio inquisitório, só que a sua
manifestação ocorre de forma particular, unicamente em relação às questões que podem ser conhecidas de
ofício, tais como, por exemplo, as nulidades processuais, às quais compete ao Judiciário conhecer de ofício a
qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição” (op. cit., p. 253). 43 Assim: NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit., pp. 482-484. 44 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., n. 244, p. 447 e ss.. 45 ASSIS, Araken de. Op. cit., p. 218.
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da decisão que não foi objeto de impugnação, sem que se possa cogitar do trânsito em
julgado dos capítulos dependentes destas matérias.
É o que se passa a analisar na sequência.
3.1 O pedido de reforma é indispensável para a verificação do efeito devolutivo?
A indagação acerca da imprescindibilidade ou prescindibilidade do pedido de
reforma é importante, na medida em que parte da doutrina defende que somente haveria
efeito devolutivo nas hipóteses em que fosse possível obter nova decisão sobre o mérito
recursal. É dizer: o pedido de reforma seria essencial à verificação do efeito devolutivo, de
forma que a pretensão à simples anulação não configuraria hipótese de devolução.
Assim é que, no direito italiano, o recurso de cassação foi considerado por
Renzo Provinciali um recurso não devolutivo, justamente porque a decisão da Corte apenas
cassava a decisão recorrida, sem que houvesse nova decisão a respeito, que pudesse
substituir a recorrida.46
No caso, porém, do recurso de cassação italiano, a ausência de
substituição da decisão impugnada por outro provimento decorria de disposição de lei e
não da iniciativa do recorrente.
Para Dinamarco, em caso de simples anulação do provimento recorrido, sem a
prolação de outro que lhe substitua, opera-se apenas a devolução parcial.47
Há, portanto,
incidência do efeito devolutivo, ainda que de forma restrita. No entendimento deste
professor, até por coerência ao princípio dispositivo, a reforma da decisão depende,
necessariamente, de pedido de nova decisão. Havendo, tão somente, pretensão anulatória
da decisão recorrida, o tribunal atuaria extra petita caso concedesse mais do que foi
pedido.
Há que se indagar, contudo, se o pedido de reforma é imprescindível para que o
órgão recursal profira nova decisão, em substituição à impugnada.
Por força do princípio dispositivo, afigura-se que sim.
No caso, porém, da apelação contra sentença terminativa (art. 515, § 3º), há
quem defenda a desnecessidade de pedido de reforma para julgamento ex officio do mérito
46 Op. cit., p. 51. 47 Chegamos a essa conclusão porque o tema foi abordado justamente no trecho do texto que cuida da
devolução parcial. Cf. Os efeitos dos recursos. In: NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. São Paulo: RT, 2002, pp. 36-37.
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pelo órgão ad quem, quando a causa já estiver madura para julgamento. Nesse sentido,
Cândido Rangel Dinamarco interpreta a norma como uma autorização legal implícita para
o julgamento imediato da causa, independentemente de pedido.48
Em sentido oposto, Flávio Cheim Jorge argumenta que o § 3º deve ser
interpretado em consonância com o disposto no caput, que reflete a máxima tantum
devolutum quantum appellatum. Assim, o pedido do apelante para que o tribunal julgue o
mérito da causa seria requisito intransponível para que se aplique a regra que permite o
julgamento da causa pelo órgão recursal. Essa seria uma interpretação mais coerente com a
sistemática do Código de Processo Civil e do próprio caput do artigo. Outros argumentos
utilizados para sustentar essa interpretação seriam a impossibilidade de o Tribunal julgar
pretensão diversa da deduzida e a ocorrência de reformatio in pejus, porque a decisão
quanto ao mérito da causa poderia ser desfavorável ao apelante.49
Ainda assim, em homenagem ao princípio da efetividade e à duração razoável
do processo, a jurisprudência tem-se posicionado, na linha do que propugna Dinamarco, 50
pela possibilidade de conhecimento de ofício da causa pelo Tribunal, desde que presentes
os requisitos do § 3º, fato que, por si só, demonstra que o efeito devolutivo não está
adstrito ao princípio dispositivo. Desse modo, ainda que não haja iniciativa da parte
mediante pedido expresso de apreciação do mérito, se a causa estiver madura, deverá o
Tribunal proceder ao julgamento.
3.2 Questões de ordem pública nos recursos excepcionais: efeito devolutivo ou
translativo?
48 Op. cit., pp. 38-39. 49 JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 268. 50 “Sem embargo da deficiência técnica, havendo na apelação pedido pela improcedência total do pleito
inicial, é de considerar-se como devolvida ao tribunal toda a matéria discutida nos autos, ainda que não haja pedido específico do apelante.” (STJ, 4ª Turma, REsp 469921/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, julgado em 06/05/2003, DJ 26/05/2003, p. 366).
“Consoante a pacífica jurisprudência do STJ, extinto o processo sem julgamento de mérito, em face da
preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, o Tribunal, ao afastar a nulidade, pode de imediato julgar o
feito, ainda que inexista pedido expresso nesse sentido, máxime se a controvérsia disser respeito à questão
estritamente de direito.” (STJ, 2ª Turma, AgRg nos EDcl no Ag 1124316/RJ, Rel. Ministro Herman
Benjamin, julgado em 03/11/2009, DJe 16/12/2009).
“Extinto o processo, sem julgamento de mérito, por ilegitimidade passiva ad causam, pode o tribunal, na
apelação, afastada a causa de extinção, julgar o mérito da contenda, ainda que não haja pedido expresso nesse
sentido, máxime se, como no caso concreto, as razões de apelação estão pautadas na procedência do pedido
inicial, porque demonstrado o fato constitutivo do direito e não contraposta causa extintiva desse mesmo direito. Deficiência técnica que não tem força bastante para se opor à mens legis, fundada na celeridade,
economia e efetividade.” (STJ, 4ª Turma, REsp 836.932/RO, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, julgado em
06/11/2008, DJe 24/11/2008).
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Conforme assinalado, a compreensão do julgamento de ofício das questões de
ordem pública em sede recursal como decorrência do efeito devolutivo51
ou como um
efeito recursal autônomo, contraposto ao devolutivo, possui diferentes repercussões em
sede de recursos excepcionais.
Para os que se filiam à defesa da existência autônoma de um efeito translativo,
a proibição ou impossibilidade de conhecimento ex officio de matéria de ordem pública nos
recursos especial ou extraordinário teria como fundamento a exigência constitucional de
prequestionamento para as matérias que são objeto destes recursos.52
Este requisito
constituiria um óbice à incidência do efeito translativo.
Já quem defende posicionamento contrário – no sentido da desnecessidade do
efeito translativo como categoria autônoma – explica que “a solução encontra-se na
profundidade do efeito devolutivo dos recursos excepcionais que, distinta dos demais
recursos, exclui a incidência do princípio inquisitório em tais circunstâncias”.53
Com efeito, não há como negar que os recursos excepcionais têm o âmbito de
devolutividade restrito, o que decorre da caracterização desses meios de impugnação como
“recursos de estrito direito”. Dessa forma, a transferência aos Tribunais Superiores atém-se
às matérias eminentemente jurídicas, excluída a apreciação das questões fático-probatórias.
A vedação à aplicação do princípio inquisitório decorre do caráter de direito
estrito desses recursos, cuja admissibilidade depende da alegação expressa, nas razões
recusais, de vício que configure uma das hipóteses de cabimento previstas na Constituição
(arts. 102, III e 105, III). Inexistente tal alegação, o recurso excepcional não deve sequer
ser conhecido pelo Tribunal Superior, ainda que a decisão recorrida padeça de vício
decorrente de violação de norma de ordem pública. Isso ocorre porque os recursos
excepcionais não têm como objetivo precípuo a tutela da situação subjetiva das partes, o
que justificaria a atuação judicial oficiosa com a finalidade de fazer cumprir, nos casos
específicos, normas que veiculam matérias de ordem pública.
51 Nesse sentido, é expresso Bonsignori (op. cit., passim). 52 NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit., pp. 487-488, 53 Op. cit., p. 256, com remissão ao artigo de FLEURY, José Theophilo. Fundamento Insuficiente – Prejudicialidade do recurso especial em face do recurso extraordinário e vice-versa. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim; ALVIM NETO, José Manoel de Arruda (Org.). Aspectos polêmicos e atuais do recurso
especial e do recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1997, p. 330.
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Ressalte-se, por fim, que a vedação da aplicação do princípio inquisitório nos
recursos excepcionais incide apenas no momento da admissibilidade recursal. Uma vez
admitido o recurso especial ou extraordinário, se o Tribunal entender, no momento do
julgamento do mérito recursal, pela aplicabilidade de dispositivos legais que veiculem
normas de ordem pública, nada obsta que o pedido de reforma ou invalidação seja
analisado à luz de tais preceitos. Por força deste raciocínio, o verbete da Súmula 456 do
Supremo Tribunal Federal – aplicável, por analogia, aos recursos especiais – permite que,
uma vez conhecido o recurso com fundamento em violação a determinado dispositivo, o
tribunal julgue a causa, aplicando o direito à espécie. A escolha dos fundamentos jurídicos
– sejam ou não de ordem pública – que embasam a decisão é matéria atinente à incidência
do efeito devolutivo.
3.3 Da “contaminação” das matérias de ordem pública sobre a parte da decisão que
não foi objeto de impugnação
Aspecto interessante a ser considerado diz respeito aos reflexos do julgamento, com
base em normas que veiculam matéria de ordem pública, de recursos que impugnam
apenas parte da decisão recorrida.
Os doutrinadores que sustentam a existência do efeito translativo como tronco
autônomo propõem – na contramão da jurisprudência e doutrina majoritárias – que o
reconhecimento de nulidade processual ou da ausência de pressupostos ao julgamento de
mérito em sede de recurso de devolutividade parcial acarreta a invalidação de todo o
processo.
Dessa forma, a parte independente de uma sentença de mérito não impugnada, seria
anulada pela prolação de acórdão que reconhecesse, em sede de apelação parcial, a
ilegitimidade ad causam de uma das partes. E, nesse exemplo, o fenômeno que justificaria
a ampliação da transferência da matéria, supostamente restrita pela incidência do art. 515,
caput, do CPC, seria a translatividade dos recursos.
Em primeiro lugar, deve ser esclarecido que a impossibilidade de, com amparo em
matéria de ordem pública, proceder-se à reforma ou invalidação de uma parte autônoma
irrecorrida da decisão em sede de recurso parcial, não se explica pela limitação da extensão
do recurso pelo objeto da impugnação da parte.
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Não é o caput do art. 515 que acarreta a imutabilidade das partes não recorridas da
sentença, cujo conteúdo seja independente do capítulo impugnado. Do contrário, não seria
possível a extensão do efeito devolutivo para permitir ao Tribunal que procedesse ao
julgamento de mérito da causa pela primeira vez, por força do disposto no § 3º do citado
artigo.
As normas que permitem o conhecimento ex officio de matérias de ordem pública
pelo órgão judicial (especialmente o art. 301, § 4º), poderiam perfeitamente propiciar que
se ampliasse a extensão do efeito devolutivo, a despeito da falta de impugnação por uma
das partes, não fosse o obstáculo intransponível representado pela coisa julgada.54
Nesse sentido, antes de ser um fundamento determinante da impossibilidade de
alteração da parte não recorrida da sentença, o caput do art. 515 reflete, na dicção de
Dinamarco, “de modo muito direto e elegante a teoria dos capítulos de sentença, que
permite ver nesta tantas decisões quantos forem os preceitos emitidos”.55
Sendo os
capítulos não impugnados independentes e autônomos da parte impugnada da sentença,
incidirá sobre eles a coisa julgada material.56
Com efeito, prevalece no ordenamento brasileiro o entendimento de que a coisa
julgada relativa aos capítulos independentes da sentença de mérito forma-se de maneira
gradual.57
Por isso, ressalvadas as hipóteses de capítulos interdependentes, o recurso
54 Questão, aliás, reforçada pelo Projeto de Novo CPC - PL 8.046/2010, na versão do substitutivo aprovado
na Câmara dos Deputados em julho de 2013 (art. 1.026, § 1º: “Serão, porém, objeto de apreciação e
julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido
solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado”.) 55 DINAMARCO, Cândido Rangel. Efeitos dos recursos. In: A nova era do processo civil. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 122-123. 56 Sob o aspecto subjetivo, Cândido Rangel Dinamarco chega a afirmar que o mesmo capítulo de sentença
pode transitar em julgado em relação a uma parte e ser objeto de recurso por seu litisconsorte, no
litisconsórcio simples: “Todas as vezes que venha a ser dado provimento ao recurso interposto só por um dos
litisconsortes ou por alguns, restando alguns deles sem recorrer”, o pronunciamento do órgão ad quem “será diferente do pronunciamento já trânsito em julgado para a parte que não apelou”. Isso ocorre justamente
em decorrência do princípio do quantum devolutum quantum appellatum. (Litisconsórcio. 7ª ed.. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 152-153). 57 É esta a posição ostentada na doutrina, por exemplo, por José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao
Código de Processo Civil. 11ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 355-356; 14ª ed.., 2008, pp. 356-357),,
Cândido Rangel Dinamarco (Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 115; e 3ª ed.. 2008, item
57, p. 119); José Roberto dos Santos Bedaque (Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 2ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 48); Humberto Theodoro Júnior (Ação Rescisória e
Julgamentos Fracionados do Mérito da Causa. In: ASSIS, Araken de. et al (Coord). Direito civil e processo:
Estudos em Homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008, pp. 565-572); e Eduardo Arruda
Alvim (Direito processual civil. 2ª ed.. São Paulo: RT, 2008, p. 624). O que ocorre é que, “se dentro do prazo um dos capítulos recorríveis vier a ser efetivamente impugnado por recurso, não o sendo o outro, ou
outros, é claro que passam em julgado estes e não passa aquele” (DINAMARCO, Cândido Rangel.
Capítulos..., cit., p. 115).
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“afasta a coisa julgada” apenas “envolvendo o capítulo impugnado”, mas “o mesmo não se
pode dizer quanto aos capítulos não impugnados”.58
4 Síntese das conclusões
O efeito devolutivo, que é o mais característico dos efeitos recursais, pode ser
definido como o efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad quem o
conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição, o que inclui os
fundamentos e questões subjacentes à decisão recorrida, ainda que não analisados pelo
juízo a quo.
A incidência deste efeito é regida pelos princípios dispositivo e inquisitivo.
Logo, a vinculação do tribunal aos limites da pretensão recursal não é um elemento
característico ou conceitual do efeito devolutivo. Trata-se de matéria alusiva à regulação
dos limites da incidência deste efeito em cada ordenamento jurídico positivo.
Conforme se conceda maior ou menor importância à atividade dos órgãos
recursais, ampliam-se ou restringem-se os limites do efeito devolutivo.
A modificação legislativa dos contornos do efeito devolutivo, com a ampliação
da matéria analisada – inclusive de ofício – pelo órgão ad quem, não torna necessária ou
útil a classificação que inclui o efeito translativo entre as consequências dos recursos.
Por se tratar de categoria que corresponde, tão somente, a uma nova roupagem
de um efeito já conhecido – ou mesmo a uma “antiga roupagem”, se considerarmos a
origem deste efeito, quando a apelação era genérica e propiciava o beneficium commune – ,
afigura-se que a contraposição do efeito translativo ao efeito devolutivo possa causar
prejuízo à compreensão do fenômeno.
Além de ser equivocada a ideia de oposição entre o efeito que devolve o
conhecimento da matéria impugnada pela via recursal e o – mesmo – efeito que transfere
José Carlos Barbosa Moreira anota em publicação recente: “a) ao longo de um mesmo processo, podem
suceder-se duas ou mais resoluções de mérito, proferidas por órgãos distintos, em momentos igualmente
distintos; b) todas essas decisões transitam em julgado ao se tornarem imutáveis e são aptas a produzir coisa
julgada material, não restrita ao âmbito do feito em que emitidas” (Sentença Objetivamente Complexa,
Trânsito em Julgado e Rescindibilidade. In: NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: RT, 2007, p. 177). 58 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa Julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba:
Juruá, 2007, p. 372.
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as matérias de ordem pública pelo órgão ad quem, a introdução de uma nova categoria
pode vir a obscurecer a compreensão do efeito devolutivo e suas irradiações.
A falta desta compreensão, por sua vez, refletirá na aplicação dos institutos e
na interpretação dos princípios processuais no âmbito dos recursos.
Especificamente quanto aos recursos excepcionais, a compreensão de que o
efeito devolutivo decorre não apenas do princípio dispositivo, mas também do inquisitivo,
reflete diretamente na possibilidade de conhecimento da causa, em sua plenitude, pelos
tribunais superiores, desde que admitido o recurso especial ou extraordinário. Este
raciocínio foi adotado pelo verbete da Súmula 456 do Supremo Tribunal Federal aplicável
a todos os recursos de direito estrito.
Ainda, a concepção de um efeito devolutivo associado apenas ao princípio
dispositivo, com a criação de outro efeito - o translativo - relacionado ao princípio
inquisitivo, pode gerar certa confusão com a ideia de trânsito em julgado parcial e
progressivo dos capítulos de sentença. Ao se defender a existência de um efeito específico,
diverso do devolutivo, para justificar a ampliação da cognição dos tribunais quanto às
questões de ordem pública, corre-se o risco de se tolerar a reforma ou invalidação de uma
parte autônoma irrecorrida da decisão em sede de recurso parcial. Esta questão não se
explica, porém, pela limitação da extensão do recurso pelo objeto da impugnação da parte
ou por sua eventual ampliação em prol do efeito translativo. Não são os efeitos recursais
que acarretam a mutabilidade ou imutabilidade das partes não recorridas da sentença, cujo
conteúdo seja independente do capítulo impugnado, mas o obstáculo intransponível
representado pela coisa julgada.
Diante destas considerações, conclui-se que o panorama histórico-doutrinário sobre o
conteúdo do efeito devolutivo, ao lado da repercussão prática de suas características,
confirmam a tese de que este efeito decorre tanto do princípio dispositivo como do
princípio inquisitivo, sendo inútil a invocação do efeito translativo como consequência
autônoma dos recursos.
5 Referências bibliográficas
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A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O APARENTE CONFLITO
DE LEIS
INTERNATIONAL LEGAL COOPERATION AND THE APPARENT CONFLICT
OF LAWS
Felipe Sartório de Melo
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). Membro-fundador do Núcleo de Estudos em
Arbitragem e Processo Internacional (NEAPI).
Nevitton Vieira Souza
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). Monitor de Direito Internacional Público.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). Membro-fundador do Núcleo de
Estudos em Arbitragem e Processo Internacional (NEAPI).
RESUMO: Decorrentes da crescente circulação de pessoas, bens e serviços, as relações
jurídicas com elementos de estrangeiria tornaram-se cada vez mais constantes, requerendo
dos Estados auxílio mútuo para a efetiva prestação da tutela jurisdicional. A cooperação
jurídica entre os Estados nacionais afigura-se, nesse contexto, tema de grande
desenvolvimento, tendo, no Brasil, os tratados internacionais como sua principal fonte
normativa. Em razão de a Constituição Federal de 1988 ter-se limitado a estabelecer a
competência da Corte responsável por tramitar e julgar o processo homologatório de
decisões estrangeiras, torna-se inevitável a ocorrência de conflitos de normas, cuja análise
constitui o objeto deste trabalho.
PALAVRAS CHAVE: Relações Jurídicas. Conflito Aparente de Normas. Cooperação
Jurídica Internacional. Homologação de Sentenças Estrangeiras. Hierarquia dos Tratados
Internacionais.
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ABSTRACT: Due to the growing movement of people, goods and services, the legal
relations with foreign elements have become increasingly frequent, requiring states mutual
assistance to effective the constitutional right of adjudication. The legal cooperation
between national states becomes, in this context, subject of great development, and, in
Brazil, the international treaties are their primary source of rules. As the Federal
Constitution only established the jurisdiction of the Court responsible for transact and
judge the process of ratifying foreign judgments, it is inevitable that occur conflicts of
laws, whose analysis is the subject of this work.
KEYWORDS: Legal Relations. Apparent Conflict of Laws. International Legal
Cooperation. Recognition of Foreign Judgments. Hierarchy of International Treaties.
1. INTRODUÇÃO
No mundo contemporâneo, todos os povos estão fortemente aproximados e
vinculados uns aos outros, as informações movem-se como mercadorias e as fronteiras
estão cada vez mais tênues, propiciando a aceleração das relações econômicas
mundializadas e tornando patente a necessidade de uma tutela jurisdicional multipolar que
seja capaz de conferir segurança às relações nascidas nesse contexto. A globalização gera
uma situação em que o bem-estar de cada Estado é tocado por fatos ou decisões que estão
fora de seu alcance, de modo que todos dependem de todos, e todos sofrem as
consequências dos mesmos fenômenos.
O desenvolvimento da sociedade internacional e a intensificação das relações
entre os Estados nacionais tiveram como consequência imediata a aurora do interesse pelo
estudo da cooperação interjurisdicional, uma vez que a crescente complexidade das
relações sociais, culturais, políticas e econômicas reclama cada vez mais a prestação de
uma tutela jurisdicional plena, eficaz e sem fronteiras. Tal cenário justifica o escopo do
presente trabalho, que repousa sobre a percepção da importância dispensada à cooperação
jurídica internacional, notadamente no que tange ao reconhecimento de decisões
estrangeiras.
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Sob a ótica do intercâmbio de atos processuais entre as jurisdições de diferentes
Estados, principiaremos este estudo demonstrando a relevância da cooperação jurídica
internacional para a consecução de uma prestação jurisdicional assecuratória dos direitos
demandados. Em seguida, passando pela análise do regime convencional, evidenciaremos
a importância da uniformização das regras de cooperação interjurisdicional para a
diminuição das barreiras que estorvam o intercâmbio de medidas processuais estrangeiras.
Dentro da perspectiva do direito interno, serão examinadas, também, as normas
que estabelecem o procedimento homologatório das decisões alienígenas no Brasil,
conferindo especial deferência às mudanças advindas com a Emenda Constitucional nº
45/2004.
Ato contínuo, e por fim, iremos nos debruçar sobre a aparente concorrência entre
normas de direito internacional e normas de direito interno, identificando o posicionamento
patrocinado pela doutrina internacionalista brasileira, bem como demarcando as linhas do
entendimento jurisprudencial sobre a existência de antinomia entre as normas em matéria
de cooperação jurídica internacional. Ademais, importa destacar que foi empregado o
método dedutivo-comparativo neste trabalho.
2. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
2.1. Importância da Cooperação Jurídica Internacional
O fenômeno da globalização no mundo hodierno revela a crescente e necessária
interação entre os Estados. Esse fenômeno, essencialmente caracterizado por um processo
de aprofundamento da integração econômica, política, social e cultural, tem facilitado
sobremaneira o acesso aos meios de comunicação e de circulação de capitais e pessoas, do
que decorre a elevação do número de demandas judiciais caracterizadas por elementos de
estrangeiria. Nessa esteira, a adequada e oportuna comunicação entre jurisdições distintas –
que se denomina cooperação interjurisdicional ou cooperação jurídica internacional –,
materializada pela realização de atos processuais externos à jurisdição à qual se vincula a
autoridade judicial ou administrativa, é mister à efetiva prestação da tutela jurisdicional.
A cooperação jurídica internacional pode ser concebida, na lição do professor
Luiz Olavo Baptista, como “o intercâmbio internacional para o cumprimento
extraterritorial de medidas processuais provenientes de judicatura de um outro Estado e
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para a execução extraterritorial de sentença estrangeira”,1 mostrando-se imprescindível na
atualidade, uma vez que, “se as relações econômicas internacionais eram apenas uma
recorrência, hoje se tornaram a principal característica do planeta”,2 como afirma Adriana
Beltrame.
Nesse sentido, o Estado, na realização de sua função como pacificador social,
somente proporcionará a completa tutela jurisdicional quando dispuser de mecanismos que
tornem possível o intercâmbio de atos processuais para além de seus limites geográficos.
Doutro modo, a falta ou a incompletude da cooperação poderá significar a ineficácia do
poder jurisdicional.3
A cooperação jurídica internacional mostra-se relevante e necessária sobretudo
nos processos em que a tutela a ser prestada carece da realização de diligências não
possíveis de serem satisfeitas na jurisdição onde a tramitação ocorre. Nesses casos, a
ausência de cooperação entre as jurisdições importará no impedimento do acesso ao
hipotético direito postulado, uma vez que a prestação jurisdicional mostrou-se incompleta.
Em seus escritos sobre o Direito Processual Internacional, Irineu Strenger conclui
que a cooperação jurídica internacional traduz-se no fato de “as autoridades e tribunais de
um país auxiliarem as autoridades e tribunais de outro país, fazendo as notificações ou
praticando as diligências que se tornarem necessárias ao exercício ou à defesa dos direitos
dos indivíduos”.4
Num apanhado histórico, o intercâmbio de atos jurisdicionais deu-se em virtude
de uma “obrigação moral”, haja vista que os Estados motivavam seu agir em uma cortesia,
objetivando, com isso, o prestígio internacional.5 Uma vez que a ocorrência de pedidos de
cooperação intensificou-se, os Estados passaram a regulamentar essa matéria tanto na
ordem jurídica interna quanto na celebração de tratados internacionais, de modo que a
1 BAPTISTA, Luiz Olavo. Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995, p. 343.
2 BELTRAME, Adriana. Reconhecimento de sentenças estrangeiras. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p.
05.
3 MADRUGA, Antenor. O Brasil e a jurisprudência do STF na idade média da cooperação jurídica
internacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 54, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
mai. 2005, p. 03.
4 STRENGER, Irineu. Direito Processual Internacional. São Paulo: LTr, 2003, p. 86. Apud BELTRAME, Adriana. Reconhecimento de sentenças estrangeiras. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 16.
5 ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 3ª ed. atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 266.
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aproximação entre os sistemas jurídicos próprios de cada Estado soberano revelou-se
inerente à cooperação jurídica internacional.
2.2. Relevância do Regime Convencional
Com o propósito de conferir agilidade e eficiência ao intercâmbio dos atos
necessários à prestação jurisdicional, a cooperação jurídica internacional precisa
acompanhar o desenvolvimento e a crescente internacionalização das relações econômicas
e sociais, o que se torna possível com a elaboração de normas especiais, dotadas da
capacidade de estabelecer um procedimento cooperativo que seja concomitantemente
célere e menos oneroso. Para tanto, torna-se premente repensar os tradicionais sistemas de
soluções de controvérsias decorrentes do “comércio jurídico plurinacional”.6
A normatização unilateral dos Estados acerca dessa matéria não é bastante,
entrementes, para o êxito da cooperação jurídica internacional. A atuação particular de
cada Estado deve coexistir com a uniformização das normas relativas à cooperação, cujo
aperfeiçoamento será produto da segurança e especialização do trâmite dos atos
jurisdicionais.
Com base em alguns dos marcos estabelecidos pela Conferência de Direito
Internacional de Haia7 – cujo desiderato é a promoção da uniformização das regras de
Direito Internacional Privado –, Nádia de Araújo, ao tratar desse tema, compreende haver
uma propensão ao seguimento de um padrão de cooperação similar. Reflexo dessa
padronização é a presença, exempli gratia, das Autoridades Centrais nas mais modernas
convenções que tratam da cooperação jurídica internacional.
Por meio da centralização dos pedidos de cooperação em um órgão previamente
eleito pelo Estado-parte, a indicação de Autoridades Centrais é uma técnica que visa a
uniformizar a tramitação dos atos jurisdicionais. Dessarte, o recebimento e o
processamento dos pedidos de cooperação dirigidos a um país ficarão a cargo do órgão
indicado como Autoridade Central, a quem compete, em razão do domínio do
procedimento interno adotado para a recepção e concretização do ato requerido, e a fim de
garantir o pleno cumprimento da medida solicitada, realizar uma espécie de juízo de
admissibilidade prévio.
6 ARAÚJO, Nádia de. Medidas de cooperação interjurisdicional no Mercosul. Revista de Processo, vol.
123, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, mai. 2005, pp. 01-02.
7 ARAÚJO, 2005, op. cit., pp. 01-02.
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O processo de uniformização das regras de cooperação interjurisdicional, ressalte-
se, foi contemplado pelo Código de Bustamante e pelos Tratados de Montevidéu, tornando
patente que esse movimento há muito vem ocorrendo no continente americano e que, por
sua influência, inúmeros tratados têm sido celebrados entre os países americanos. Ademais,
a cooperação jurídica internacional também foi favorecida pela consolidação do
movimento de integração que deu origem ao Mercado Comum do Sul (Mercosul).
Os blocos econômicos regionais, reconhecendo a importância da cooperação
jurídica internacional, têm demonstrado especial interesse no estabelecimento de
instrumentos uniformizadores das normas de cooperação interjurisdicional nos Estados
membros, tanto assim que a União Europeia e o Mercosul, por exemplo, instituíram o
Regulamento (CE) nº 44/2001 e o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em
Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, respectivamente. Tal
reconhecimento se dá em função de que “somente pelo Direito há possibilidade de outorga
de segurança jurídica às novas relações criadas no novel espaço regional”, e de que
unicamente a integração jurídica “poderá permitir e propiciar o necessário à integração
econômica”, conforme assenta Maria do Carmo Puccini Caminha.8
É evidente, por conseguinte, a relevância conferida aos tratados internacionais no
contexto da uniformização das normas tocantes à cooperação jurídica internacional. Fontes
do Direito Internacional por excelência, os tratados trazem maior segurança às relações
jurídicas pactuadas entre os sujeitos dotados de capacidade jurídica internacional,
possuindo funções semelhantes às das leis no Direito interno, acorde com as lições de
Valerio de Oliveira Mazzuoli.9
Nessa esteira, o Brasil tem-se mostrado a par dos esforços da cooperação
interjurisdicional ao celebrar tratados internacionais – bilaterais e multilaterais – que
adotam procedimentos mais céleres para a tramitação dos requerimentos de cooperação
jurídica internacional.
Desse modo, como parte inafastável do estudo da cooperação jurídica
internacional, a relação existente entre as normas de Direito Internacional e as normas de
Direito interno será esquadrinhada, neste trabalho, à luz dos fundamentos da Teoria Geral
8 CAMINHA, Maria do Carmo Puccini. Os juízes do Mercosul e a extraterritorialidade dos atos
jurisdicionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, vol. 44, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jul. 2003, p. 02.
9 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 5ª ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 163.
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do Direito. Enfrentar-se-á, outrossim, a questão do conflito de normas relativas ao
reconhecimento de decisões estrangeiras, que ocorre, no sistema jurídico brasileiro, por
meio do processo homologatório, de competência do Superior Tribunal de Justiça.
2.3. Das Normas que Estabelecem o Processo Homologatório de Decisões Estrangeiras
no Brasil
As cartas rogatórias e o reconhecimento e execução de decisão estrangeira são os
instrumentos tradicionais de cooperação jurídica internacional, acorde com o entendimento
amplamente esposado pela doutrina. Além desses, como uma terceira modalidade de
cooperação, alguns autores apresentam, outrossim, o pedido de informação sobre o direito
estrangeiro. É possível, ainda, conceber o auxílio direto e as redes de cooperação como
novos instrumentos da cooperação interjurisdicional na hodiernidade.10
No ordenamento jurídico brasileiro, historicamente, o pedido de reconhecimento
de decisão estrangeira – que pode ser caracterizado como a concessão de eficácia à decisão
prolatada por autoridade constituída em jurisdição distinta da que se pretende produza o
título efeitos – se dá por meio do processo homologatório, importando registrar que é
através do reconhecimento que a decisão alienígena logra extraterritorialidade. E as normas
regentes do reconhecimento de tais decisões em nosso sistema jurídico revelam que a
competência para o procedimento homologatório está assentada constitucionalmente, ao
passo que são as leis infraconstitucionais que encerram a sua regulamentação, a saber, o
Código de Processo Civil, a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro11
e, ainda, o
Regulamento da Corte Superior competente.
Até a publicação da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, a
competência para processar e julgar originalmente os pedidos de homologação de
sentenças estrangeiras e de concessão de exequatur às cartas rogatórias repousava sobre o
Supremo Tribunal Federal. Com a vigência da referida Emenda e a nova redação dada ao
artigo 105, I, i, da Constituição Federal, essa competência foi atribuída ao Superior
Tribunal de Justiça, que fixou, por meio da Resolução nº 09/2005, o procedimento de
tramitação dos pedidos de reconhecimento de decisões estrangeiras.
10 ARAÚJO, 2005, op. cit., p. 02.
11 Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010.
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No que toca à nova redação do supracitado dispositivo da Carta Política de 1988,
corrente doutrinária nacional entende ter havido tão somente o assentamento da
competência para processar os pedidos de homologação nos casos em que este for exigido
– corrente à qual nos filiamos sem prejuízo de nossa consideração aos eminentes juristas
dos quais divergimos.12
Por certo, a dicção constitucional insculpida no artigo 105, I, i, não
estabelece a obrigatoriedade do processo homologatório ao reconhecimento de sentenças
oriundas de outros Estados, de modo que lega às leis infraconstitucionais o dever de
regular a utilização do instituto da homologação.
No mesmo sentido é o ensinamento de Oscar Tenório, proeminente jurista na
doutrina do Direito Internacional Privado no Brasil:
Limita-se a Constituição a estabelecer a competência exclusiva do Supremo
Tribunal Federal para homologar sentença estrangeira. É uma regra de
competência constitucional. Só o Supremo Tribunal e só ele. Não contém o
texto constitucional a regra de que a sentença estrangeira, seja qual for a sua
natureza, tenha de ser homologada. A homologação, mantida a competência
do Supremo Tribunal Federal, que é de natureza constitucional, depende de
legislação ordinária. A esta compete determinar a natureza das sentenças
que dependem de homologação.13
Da compreensão de que a Carta Magna não fixou a obrigatoriedade do
procedimento homologatório decorre consequência digna de nota, qual seja, o
reconhecimento da possibilidade de que lei infraconstitucional superveniente prescreva
tanto as hipóteses de exigência de homologação quanto as de dispensa, a exemplo do que
se deu com a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº
4.657/1942.
Os requisitos que a sentença estrangeira deve reunir a fim de estar apta a produzir
efeitos na ordem jurídica brasileira estão previstos no artigo 15 do Decreto-Lei nº
4.657/1942, cuja alínea e acolhe o requisito da prévia homologação pela Corte Superior
competente. O parágrafo único da referida norma, todavia, asseverava que as sentenças
12 Dentre tais doutrinadores, destacamos o professor Haroldo Valladão, para quem o texto constitucional não
só estabeleceu a competência para a homologação, mas também instituiu a obrigatoriedade de que todos os
títulos oriundos de outros países sejam homologados para que produzam efeitos no Brasil. Para mais
detalhes: VALLADÃO, Haroldo Teixeira. Carta de homologação de sentença estrangeira. In FRANÇA, R. Limongi. Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 13. São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 271-272. 13 TENÓRIO, Oscar Acioli. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
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meramente declaratórias do estado das pessoas dispensavam homologação, o que
significava dizer que, uma vez cumpridos os demais requisitos para aplicação de ato
estrangeiro, possuíam efeito imediato no Brasil.
À prolação da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, em 1942, seguiu-se a
resistência ao parágrafo único de seu artigo 15 por parte da doutrina, que, capitaneada pelo
professor Haroldo Valladão, imputou-lhe a pecha de inconstitucionalidade, conforme
evidencia Barbosa Moreira.14
Malgrado a oposição da doutrina, o entendimento jurisprudencial assentou a
constitucionalidade do dispositivo combatido, tendo sido a questão suplantada com o
advento do Código de Processo Civil de 1973, cujo artigo 483 estabelece que a sentença
proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada.
Nota-se, portanto, que o estatuto processual não diferençou o tratamento conferido às
sentenças declaratórias nem o outorgado às de qualquer outra natureza. Com isso, aquela
parte da doutrina que se opôs ao parágrafo único do artigo 15 do Decreto-Lei nº
4.657/1942 entendeu que ele fora derrogado.
Sobre a questão, Alexandre Câmara esclarece:
[...] a Emenda Constitucional nº 45 atribuiu ao STJ a competência originária
para a homologação de sentenças estrangeiras. Retorna-se, assim, ao regime
que vigorou por força das Constituições de 1934 e 1937. O direito brasileiro
vigente admite, sem qualquer impedimento, que a lei dispense de
homologação, para que produza efeitos no Brasil, alguma sentença.
Inegavelmente, a mudança de orientação do texto constitucional não é capaz
de repristinar o parágrafo único do art. 15 da Lei de Introdução ao Código
Civil, eis que não existe repristinação tácita. Nada impede, porém, que
aquele dispositivo venha a ser expressamente repristinado por lei. Do
mesmo modo, nada impede que venha a ser editada lei que dispense de
homologação qualquer outra espécie de sentença estrangeira.15
14 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: (Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973). 15ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 77. 15 CÂMARA, Alexandre Freitas. A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a homologação de sentença estrangeira: primeiras impressões, pp. 06-07. In TIBURCIO, Carmen; e BARROSO, Luís Roberto (Orgs.).
O Direito Internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
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Temos por certo, desta maneira, que a intentio legis do preceito constitucional
gravado no artigo 105, I, i, é tão somente fixar na Corte Superior de Justiça a competência
para homologação de decisões estrangeiras, nos casos em que esta for exigida. Tanto assim
que, atualmente, a obrigatoriedade do processo homologatório como requisito da
concessão de eficácia às sentenças estrangeiras no Brasil apenas encontra guarida nas
normas infraconstitucionais, aí incluídas as de ordem regimental.
Como reflexo da atual necessidade da cooperação jurídica internacional, não se
pode olvidar a possibilidade de que normas infraconstitucionais apresentem hipóteses de
dispensa de homologação de decisões adventícias. Ademais, tendo em conta a importância
do regime convencional no processo de integração interjurisdicional, deve-se reconhecer
admissível, também, em tratados internacionais celebrados pelo Brasil, a existência de
normas que visem à facilitação da tramitação processual, inclusive por meio da dispensa do
procedimento homologatório de decisão estrangeira.
Importa ressaltar que não se trata de mera hipótese, senão da realidade atualmente
vislumbrada nas mesas de negociações internacionais. Ao discorrer sobre a cooperação
interjurisdicional no Mercosul, Nádia de Araújo informa que, em lugar de se fazer revisões
nos Tratados de Montevidéu ou no Código de Bustamante, em todo o continente americano
optou-se pela realização de novas convenções em matérias diversas, convenções que
contenham não somente normas materiais, mas também normas concernentes à solução de
conflitos, a fim de que a justiça não seja interrompida nas fronteiras dos países.16
No tema da cooperação jurídica internacional, a existência de flagrante
sobreposição normativa entre os países do Mercosul – dos quais o Brasil faz parte – é
também apontada por Nádia de Araújo, restando evidente que, nessas circunstâncias, não
se pode afastar a análise do aparente conflito de normas em matéria de cooperação
interjurisdicional.
Para demonstrar a importância de adentrarmos nessa seara, evocamos a
Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, assinada no Panamá em 30 de janeiro
de 1975. Com o fito de “estabelecer procedimentos úteis e efetivos de cooperação
jurisdicional internacional para que se tornasse realidade o propósito de a justiça não ser
interrompida na fronteira de cada um dos Estados”,17
o referido instrumento foi ratificado
16 ARAÚJO, 2005, op. cit., p. 06.
17 Ibidem.
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pelo Brasil por meio do Decreto nº 1.898/1996. O artigo 7º dessa Convenção
Interamericana estatui, ipsis litteris, que “as autoridades judiciárias das zonas fronteiriças
dos Estados Partes poderão dar cumprimento, de forma direta, sem necessidade de
legalização, às cartas rogatórias previstas nesta Convenção”.
De igual maneira, o artigo 19 do Protocolo de Medidas Cautelares, firmado em
Ouro Preto pelos Estados Partes do Mercosul, estabelece que
Artigo 19 [...]
4ª § - Os Juízes ou Tribunais das zonas fronteiriças dos Estados Partes
poderão transmitir-se, de forma direta, os exhortos ou cartas rogatórias
previstos neste Protocolo, sem necessidade de legalização.
5º § - Não será aplicado no cumprimento das medidas cautelares o
procedimento homologatório das sentenças estrangeiras.
Indubitavelmente, à luz da dicção literal dos dispositivos supracitados, os
signatários do Protocolo de Medidas Cautelares tinham por objetivo a criação, nas zonas
fronteiriças, de um espaço de efetiva cooperação, com vistas a conferir maior segurança às
relações jurídicas nelas realizadas. Levando-se em conta que, no âmbito do Mercosul, os
pedidos de reconhecimento de sentença estrangeira tramitam, de forma simplificada, por
meio de Carta Rogatória – haja vista o estabelecido no Protocolo de Cooperação e
Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa,
conhecido como Protocolo de Las Leñas (Decreto nº 2.067/96) –, da leitura do artigo 19 do
Protocolo de Ouro Preto depreende-se que o processo homologatório tornou-se dispensável
naquelas regiões.
Visando a uma compreensão mais acurada das nuanças da cooperação jurídica
internacional, e no intento de dirimir esses aparentes conflitos de normas, o contato com a
Teoria Geral do Direito é imprescindível, sobretudo pelo fato de o constituinte ter-se
omitido quanto à hierarquia dos tratados internacionais – com exceção dos tratados em
matéria de Direitos Humanos – na ordem jurídica nacional. E essa preciosa tarefa – cujo
tema é objeto do tópico seguinte – restou a cargo da doutrina e da jurisprudência.18
3. QUESTÕES RELATIVAS A APARENTES CONFLITOS DE NORMAS
INTERNACIONAIS E O DIREITO INTERNO
18 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 366.
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A Constituição brasileira de 1988 não estatuiu de forma clara, em nenhum de seus
dispositivos, qual a posição hierárquica dos tratados comuns perante o ordenamento
jurídico interno, conforme assevera Mazzuoli.19
Havendo legado esse mister à opinião da
doutrina e da jurisprudência pátrias, o legislador constituinte possibilitou o travamento de
discussões acerca desse tema, cuja importância para a consecução da plena e efetiva
prestação jurisdicional no que tange à cooperação jurídica internacional é salutar,
merecendo, portanto, ser analisado de forma detida à luz dos princípios jurídico-positivos e
dos critérios para a solução de conflitos de normas previstos na ordem jurídica.
A questão do conflito normativo é, eminentemente, sistemática, de modo que
julgamos conveniente evocar a noção de sistema. No entanto, antes de enfrentarmos tal
questão como um problema teórico, é necessário observar que o impasse da concorrência
entre normas de tratados internacionais (comuns) e leis internas (infraconstitucionais) pode
ser deslindado, a priori, de duas maneiras. A uma, prevalecendo os tratados sobre o direito
interno infraconstitucional, comunicando, assim, plena vigência ao compromisso
internacional, sem embargo de leis ulteriores que o contradigam. A duas, esse problema é
resolvido garantindo-se aos tratados apenas tratamento paritário, id est, existindo conflito
entre tratado e lei interna aplica-se o critério cronológico – lex posterior derogat legi
priori.
No tocante à relação entre as normas internacionais e a ordem interna,
tradicionalmente, duas importantes correntes apresentam-se na tentativa de melhor
equacionar a questão, quais sejam, o monismo e o dualismo. Esta última corrente é
endossada, no âmbito internacional, por Triepel e Anziotti, tendo no cenário nacional
obtido apoio de Amílcar de Castro.20
Para os defensores do dualismo, a ordem
internacional e a ordem interna são ordens jurídicas distintas e autônomas que não
interagem entre si, apenas se tangenciando. Da mesma forma, possuem objetos distintos,
sendo da alçada do Direito Internacional a regulamentação estrita da relação entre os seus
sujeitos – Estados e Organizações Internacionais –, cabendo ao Direito interno reger as
relações intraestatais. Como consequência, não há que se falar em conflito normativo entre
tais ordens, uma vez que para um ato internacional produzir efeitos na órbita interna ele
19 Ibidem. 20 CASTRO, Amilcar de. Direito internacional privado. 5ª ed., aum. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
pp. 123-124.
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precisa ser transformado, passando a ser considerado ato normativo interno e não mais
internacional.21
A escola monista, por seu turno, tem como precursor Hans Kelsen,22
para quem a
ordem jurídica é una, constituindo um verdadeiro sistema, que engloba tanto as normas
internacionais como as internas, sendo necessárias normas que coordenem tais domínios
com vistas a disciplinarem ambos harmoniosamente, indicando quais teriam prevalência
em caso de conflito.23
No Brasil, a maior parte da doutrina advoga esta corrente, sendo o
posicionamento de Celso D. de Albuquerque de Mello,24
Haroldo Valladão,25
José
Francisco Rezek26
e Valerio de Oliveira Mazzuoli.27
Na esteira da análise da existência de conflito de normas como problema inerente
ao sistema jurídico, sumamente interessante é a definição de sistema nas palavras de Maria
Helena Diniz, para quem “sistema significa nexo, uma reunião de coisas ou conjunto de
elementos, e método, um instrumento de análise”, sendo o sistema jurídico a “ferramenta
metodológica que ocupa um lugar central no exame desse problema, permitindo solucioná-
lo satisfatoriamente”.28
Em sendo o direito algo dinâmico, que está em perpétuo
movimento, acompanhando as relações interpessoais, modificando-se, adaptando-se às
novas exigências e necessidades da vida, é inegável a existência de conflitos normativos.29
Ante o postulado da coerência do sistema, no enfrentamento do conflito
normativo a ciência jurídica aponta critérios aos quais o aplicador do direito deve recorrer
para escapar dessa situação atípica. Tais critérios, nos dizeres da autora supracitada, “não
são princípios lógicos, assim como o conflito normativo não é uma contradição lógica. São
critérios normativos, princípios jurídico-positivos, pressupostos implicitamente pelo
21BARROSO, Luís Roberto. Constituição e tratados internacionais: Alguns aspectos da relação entre direito
internacional e direito interno. In: TRINDADE, Antônio A. Cançado et al (Orgs.). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: Estudos em homenagem ao professor Celso D. de Albuquerque Mello.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 186-187. 22 TIBURCIO, Carmen. Fontes do Direito Internacional – Os tratados e os conflitos normativos. In:
TRINDADE, 2008, op. cit., pp. 296-299. 23 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 440-466. 24 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público, vol. 2. 15ª ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004, 135-136. 25 VALLADÃO, Haroldo. Direito internacional privado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, pp. 53
e 94. 26 REZEK, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 463. 27 MAZZUOLI, 2011, op. cit., pp. 369-379. 28 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 7-8 e 15. 29 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 5ª ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 1999, pp. 69-70.
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legislador [...]”,30
e toca-nos analisá-los neste trabalho, tendo em conta a importância de se
saber qual das duas normas antinômicas deve ser aplicada a fim de se alcançar a melhor e
mais justa decisão no caso concreto.
A doutrina apresenta critérios para a solução de antinomias no Direito interno,
para a solução de conflito entre normas de Direito Internacional privado, bem como
princípios para a resolução dos conflitos entre normas de Direito Internacional público,
mas, em razão da proposta de debruçar-nos sobre os conflitos de normas em matéria de
cooperação jurídica internacional, analisaremos os critérios solucionadores dos conflitos
entre normas de Direito Internacional e normas de Direito Interno.
Os conflitos entre norma de Direito Internacional e norma de Direito Interno
ocorrem quando uma lei interna contraria um tratado internacional e, nessa hipótese, a
jurisprudência formada pela Corte Permanente de Justiça Internacional, desde os anos
1930, tem consagrado a superioridade da norma internacional sobre a interna.31
Em que pese o posicionamento doutrinário, vigora na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (STF) o entendimento de que um tratado, uma vez formalizado, passa a
ter força de lei ordinária, podendo, por isso, revogar as disposições em contrário, ou ser
revogado (perder eficácia) diante de lei posterior. Desse modo, tratando-se de instrumentos
internacionais comuns (excluídos, portanto, os tratados de Direitos Humanos, que,
aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, ingressam na ordem jurídica com status de emenda
constitucional, conforme dispõe o § 3º do art. 5º da Constituição brasileira), a
jurisprudência do STF tem adotado a possibilidade de treaty override no Direito brasileiro,
entendendo ser possível a superação de um tratado em virtude da edição de lei posterior.32
Tal entendimento se dá em razão da conclusão alcançada pelo STF no julgamento
do Recurso Extraordinário nº 80.004/SE, decidido em 1978, que considerou haver uma
estrita relação de paridade normativa entre tratados e leis ordinárias editadas pelo Estado,
de modo que a normatividade dos tratados internacionais permite, no que toca à hierarquia
das fontes, situá-los no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam
as leis internas. Para Mazzuoli, o fato de o STF ter colocado os tratados internacionais
30 DINIZ, 2009, op. cit., p. 33. 31 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulalio do Nascimento e. Manual de direito internacional
público. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 62. 32 MAZZUOLI, 2011, op. cit., pp. 367-369.
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ratificados pelo Brasil no mesmo plano hierárquico das normas infraconstitucionais reflete
a concepção monista moderada e, dessa forma, qualquer tratado internacional passaria a
fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária federal.33
Os doutrinadores brasileiros que, posicionando-se ao lado da visão monista tida
como radical – pois advoga a prevalência das normas internacionais sobre as normas
internas –, asseguravam ser esta a posição adotada historicamente pela Suprema Corte
brasileira, receberam com perplexidade a mudança de posição expressa a partir de 1978.
Ao analisar a questão, todavia, Jacob Dolinger, citado por Luís Roberto Barroso, constatou
que, na verdade,
[...] a leitura que a maioria dos autores fazia das decisões do Supremo
Tribunal Federal era antes reflexo de sua própria crença no primado do
direito internacional do que expressão da realidade dos julgados. Ao
contrário do sugerido, a orientação da mais alta Corte é o do monismo
moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nível
hierárquico da lei ordinária, sujeitando-se ao princípio consolidado: em caso
de conflito, não se colocando a questão em termos de regra geral e regra
particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior.34
Nessa esteira, a concessão do status de lei ordinária federal aos tratados
internacionais implica, em caso de conflito entre a norma internacional e a lei interna, a
aplicação do princípio geral relativo às normas de idêntico valor, é dizer, o critério
cronológico (lex posterior derogat legi priori), que se remonta ao tempo em que as normas
começaram a ter vigência, restringindo-se somente ao conflito de normas pertencentes ao
mesmo plano. Para Kelsen, se se tratar de normas gerais estabelecidas pelo mesmo órgão
em diferentes ocasiões, a validade da norma editada em último lugar sobreleva à da norma
fixada em primeiro lugar e que a contradiz.35
Destarte, o critério lex posterior derogat legi
priori significa que de duas normas do mesmo nível ou escalão, a última prevalece sobre a
anterior.
Cumpre apresentarmos a perplexidade demonstrada por Mazzuoli sobre o
tratamento dispensado aos tratados internacionais ordinários pelo STF – perplexidade da
qual compartilhamos –, que admitiu que um acordo bilateral ou multilateral estabelecido
33 Ibidem. 34 BARROSO, 2008, op. cit., p. 190. 35 DINIZ, 2009, op. cit., p. 34.
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no âmbito internacional por sujeitos plenamente capazes possa ser unilateralmente
revogado por um dos seus Estados Partes, o que não é razoável, menos ainda jurídico.36
O
mais razoável, a nosso ver, seria dispensar às normas internacionais ordinárias o mesmo
tratamento que a legislação tributária dispensa aos tratados dessa matéria, alçando-os ao
nível de supralegalidade – acima das normas ordinárias internas e inferiores apenas à
Carta Magna.37
Impende salientar, outrossim, a possibilidade da existência de antinomia entre
normas pertencentes a planos distintos, havendo conflito entre os critérios para a sua
resolução. Tais antinomias, também denominadas antinomias de segundo grau, podem
revelar conflitos entre os critérios: a) hierárquico e cronológico; b) de especialidade e
cronológico; e c) hierárquico e de especialidade. Na primeira hipótese, sendo uma norma
anterior-superior antinômica a uma posterior-inferior, pelo critério hierárquico deve-se
optar pela primeira e pelo cronológico, pela segunda. Na segunda hipótese, se houver uma
norma anterior-especial conflitante com uma posterior-geral, seria a primeira preferida
pelo critério de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico. Por fim, na terceira
possibilidade, no caso de uma norma superior-geral ser antinômica a uma inferior-especial,
prevaleceria a primeira, aplicando-se o critério hierárquico e a segunda, utilizando-se o da
especialidade.38
No que tange às normas em matéria de cooperação jurídica internacional,
acreditamos possuírem caráter especial, haja vista terem como objetivo principal a
facilitação do intercâmbio de atos processuais além dos limites territoriais do Estado, por
meio do estabelecimento de uma sistemática própria entre os signatários, em contraposição
às normas internas que ordinariamente já estabelecem um procedimento geral e comum de
comunicação interjurisdicional. Via de consequência, normas gerais, ainda que posteriores,
não teriam o condão de revogar tais normas convencionais de índole especial, haja vista o
princípio lex specialis derogat legi generali.
Há que se falar, também, de modo particular, nos conflitos normativos que
envolvem normas materialmente constitucionais e normas formalmente constitucionais,
36 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 369. 37 O artigo 98 do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/66, estabelece a prevalência dos tratados
internacionais em matéria tributária na ordem brasileira ao asseverar: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes
sobrevenha.” 38 DINIZ, 2009, op. cit., p. 49.
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dentro do contexto da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos. Em
virtude do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, os tratados internacionais de
proteção dos Direitos Humanos têm a índole e o nível de normas materialmente
constitucionais, sendo que o quórum que o § 3º do artigo 5º estabelece atribui eficácia
formal a esses tratados no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, atribui-lhes o caráter de
formalmente constitucionais. Desse modo, tem-se que todo tratado internacional em
matéria de Direitos Humanos que ingressa no Direito interno brasileiro possui o status de
materialmente constitucional, podendo, ainda, ser formalmente constitucional, desde que
aprovado pelo quórum do § 3º do artigo 5º da Constituição.
Tal caracterização norteia a escolha da norma que será aplicada no caso de haver
conflito entre normas de nível materialmente constitucional e normas formalmente
constitucionais. Os tratados aprovados pelo quórum do § 3º do artigo 5º da Constituição
(isto é, formalmente constitucionais) prevalecerão sobre aqueles que são apenas
materialmente constitucionais, quando forem antinômicos entre si. Essa preferência se dá
em razão da aprovação dos primeiros pela maioria qualificada estabelecida no referido §
3º.39
Ademais, na hipótese de haver antinomia entre normas materialmente
constitucionais, será aplicado o princípio da primazia da norma mais favorável ao ser
humano (ou princípio internacional pro homine), expressamente consagrado pelo artigo 4º,
inciso II, da Carta de 1988, segundo o qual o Brasil deve se reger nas suas relações
internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos.40
O mesmo princípio
será aplicado quando do conflito de normas formalmente constitucionais entre si, haja vista
a primazia da norma mais benéfica ao ser humano.
Destarte, entendemos que eventuais normas de cooperação jurídica internacional
contidas em tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos ratificados pelo
Brasil, independentemente de aprovadas ou não sob o quórum previsto pelo artigo 5º, § 3º,
da Carta Magna, terão prevalência hierárquica sobre as demais leis ordinárias e
supralegais.
39 Entendimento que restou consagrado pelo voto-vista do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343-1/SP, no qual
demonstrou que os tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos que não foram aprovados com o quórum qualificado do artigo 5º, §3º, da Constituição Democrática, portanto apenas materialmente
constitucionais, gozariam do status de supralegalidade, haja vista o inegável valor especial de seu texto. 40 MAZZUOLI, 2011, op. cit., p. 836.
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4. CONCLUSÃO
A dinâmica das relações jurídico-sociais, influenciadas pelo processo de
globalização, repercutiu na ocorrência cada vez maior de elementos de estrangeiria nas
demandas submetidas ao Judiciário, reclamando do Estado posição que salvaguarde a
prestação satisfatória do provimento jurisdicional. Nesse contexto, não raras vezes será
necessário o intercâmbio de atos processuais entre as jurisdições de Estados distintos, seja
durante o andamento processual – com vistas a alcançar provas, efetuar intimações etc. –,
seja ao final – a fim de executar a decisão exarada.
A Cooperação Jurídica Internacional é apresentada como verdadeira ponte entre a
jurisdição nacional e as jurisdições alienígenas, ponte esta estabelecida especialmente
pelos tratados internacionais, bilaterais e multilaterais, principais fontes modernas do
Direito Internacional. Seguindo os exemplos da Convenção de Haia, observa-se a
tendência uniformizadora também no tocante às normas de cooperação interjurisdicional,
mediante a adoção de técnicas como o estabelecimento de Autoridades Centrais.
O Brasil não está alheio à necessidade de cooperação, tendo firmado importantes
acordos internacionais na matéria, que possibilitam um tratamento mais célere e menos
oneroso dos principais instrumentos de cooperação interjurisdicionais, quais sejam, a
concessão de exequatur às cartas rogatórias e o reconhecimento de decisões estrangeiras.
Tais procedimentos possuem competência constitucionalmente atribuída ao Superior
Tribunal de Justiça, conforme artigo 105, I, i, da Carta Magna.
Historicamente, o Brasil adota o processo homologatório como meio hábil para o
reconhecimento de decisões proferidas fora da jurisdição nacional. Restou assentado,
contudo, que o dispositivo constitucional supracitado não teve a intenção de estabelecer a
obrigatoriedade do processo homologatório para as decisões alienígenas produzirem
efeitos na órbita interna, deixando à legislação infraconstitucional a tarefa de estabelecer as
hipóteses de exigência e de dispensa de homologação. Tão-somente estabeleceu, o referido
dispositivo, que quando se fizer necessário o processo homologatório, este deverá ser
tramitado perante a Corte por ele indicada.
Observou-se que a exigência da decisão estrangeira a ser submetida à
homologação possui natureza infraconstitucional, consubstanciada, atualmente, na Lei de
Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657/42 –, artigo 15, alínea e;
no Código de Processo Civil de 1973, artigo 483; e na Resolução nº 09 do Superior
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Tribunal de Justiça, artigo 4º, caput. Por outro giro, restou constatada a existência de
hipóteses de dispensa de homologação ou de concessão de exequatur previamente à
execução de atos provenientes de jurisdições estrangeiras, plasmados, por exemplo, no
artigo 7º da Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias, ratificada por meio do
Decreto nº 1.898/96, e no artigo 19 do Protocolo de Medidas Cautelares, promulgado pelo
Decreto nº 2.626/98.
Tendo em vista o aparente conflito entre normas internacionais com normas
internas, bem como diante do silêncio do texto constitucional de 1988 quanto à posição
hierárquica dos tratados internacionais no sistema jurídico brasileiro, foram identificados
na doutrina e na jurisprudência as seguintes conclusões: a) O posicionamento conferido
pelo Supremo Tribunal Federal aos tratados internacionais comuns é o de equiparação com
a legislação ordinária, com consequente adoção dos critérios cronológico (lex posterior
derogat legi priori) e de especialidade (lex specialis derogat legi generali) para solução de
eventuais conflitos; b) Os tratados em matéria tributária possuem status supralegal
assegurado pelo artigo 98 do Código Tributário Nacional, devendo prevalecer sobre
quaisquer normas ordinárias que com eles conflitem, sejam anteriores sejam posteriores; e
c) Os tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, sejam ou não aprovados
sob o quórum especial do artigo 5º, § 3º, da Carta Magna, devido a sua matéria
constitucional, gozam de idêntica prevalência sobre as normas ordinárias e supralegais.
Destarte, concluímos que, inobstante a existência de exigência infraconstitucional
de homologação prévia de decisão estrangeira, bem como de concessão prévia do
exequatur, ambas perante a Corte constitucionalmente competente, para que a decisão
estrangeira e o ato rogado possam ser executados no Brasil, aquela deve ser compreendida
tão-somente como a regra geral ordinária, não excluindo a possibilidade de normas
internas ou internacionais, seja pela especialidade, seja pelo posicionamento que ocupem
no sistema jurídico nacional, estabelecerem hipóteses de isenção àquela regra, em atenção
à cooperação jurídica internacional.
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RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA: O PODER JUDICIÁRIO E A
SOCIEDADE COMO PROTAGONISTAS DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS
SOCIAIS
SHARED RESPONSABILITY:
THE JUDICIARY AND THE SOCIETY AS ACTORS
OF THE SOCIAL RIGHTS EFFECTIVENESS
Fernanda Estevão Picorelli
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela UNESA;
Especialista em Administração do Poder Judiciário (MBA)
pela FGV/Rio; Especialista em Direito Civil pela UNESA;
Analista Judiciário da Justiça Federal do Rio de Janeiro.
RESUMO: A acepção corrente da jurisdição, atrelada à singela aplicação da lei aos fatos
da lide, hoje está defasada, cedendo espaço à ideia de que o direito é realizado quando um
conflito é prevenido ou solucionado de modo eficaz e eficiente. Este desiderato pode ser
alcançado, conquanto haja uma política judiciária que seja fulcrada na gestão da qualidade.
Colima-se que esta resulte na abertura a outros ramos do saber, na participação de novos
atores sociais no processo de formulação das escolhas públicas, por meio da Governança, e
no contínuo fomento à cultura da adoção dos meios complementares de acesso à justiça.
PALAVRAS-CHAVE: política judiciária - gestão da qualidade - governança
ABSTRACT: The current meaning of the jurisdiction, related to the simple application of
the law to the facts of the dispute, is now outdated, giving way to the conception that the
right is to be considered as carried out when a conflict is prevented or solved in an
effective and efficient way. This goal can be reached, as long as there is a judiciary policy
that is based on quality management. It is expected that this results in the opening to other
branches of knowledge, in the participation of new social actors in the process of choosing
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public policies, by means of governance, and in the continuous promotion of the culture in
which complementary means of access to justice are adopted.
KEYWORDS: judiciary policy - quality management - governance
INTRODUÇÃO
A chamada crise do Judiciário, consubstanciada na defasagem entre as expectativas
sociais e o que efetivamente se consegue realizar em termos de prestação jurisdicional,
deflagra severas críticas e manifestações para que aquele Poder abandone o imobilismo e
hermetismo corporativo, redescubra sua missão pública e repense sua forma de atuação na
sociedade. Afinal, se o titular do poder é o povo e o Estado organizado é mero gestor da
coisa pública, a finalidade de obter o bem-estar social a que aquele ente se destina deve ser
efetivamente cumprida, sob pena de esvaziar-se a própria razão de ser do Estado.
Sob essa perspectiva, este estudo apresenta, a partir do intercâmbio com outras
ciências e da ruptura de vetustos paradigmas, um conjunto de soluções para alicerçar uma
política judiciária que venha a maximizar a efetividade dos direitos fundamentais e, ipso
facto, a legitimidade do Judiciário, saindo de cena a visão unívoca que se tem dado à
ampliação de sua estrutura e de reiteradas alterações legislativas para resolver as
dificuldades por ele enfrentadas. Não se trata de apresentar certezas, mas de operar com
outros ramos do conhecimento para que se iluminem caminhos que apontem para uma
prática administrativa mais consentânea com os compromissos finalísticos do Judiciário, a
partir da participação de novos atores sociais e da expertise necessária ao enriquecimento
do complexo processo de formulação das escolhas públicas, por meio da governança, e de
outras necessárias ações políticas continuadas e eficientes que reduzam a avassaladora
demanda que é dirigida àquele ente estatal. Como conseqüência, espera-se que a
democratização do acesso à justiça possa ser vivida como verdadeira arena de aquisição de
direitos e de animação para uma cultura cívica.
1. A Administração Pública no contexto do Estado Democrático de Direito
Na experiência brasileira, a formação do Estado foi eminentemente autoritária.
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Em Portugal e, como consequência, também no Brasil, houve grande atraso na
chegada do Estado liberal. Permaneceram, assim, indefinida e indelevelmente, os traços
do patrimonialismo, para o que contribuiu a conservação do domínio territorial do rei, da
Igreja e da nobreza. O colonialismo português que, como o espanhol, foi produto de uma
monarquia absolutista, legou-nos o ranço das relações políticas, econômicas e sociais de
base patrimonialista, que predispõe à burocracia, ao paternalismo, à corrupção e à
ineficiência.
O entrelaçamento de dois sistemas de organização - burocracia e relações pessoais -
projetaria uma distorção que marcaria profundamente o desenvolvimento de nossa cultura
jurídico-institucional e político-administrativa, caracterizada pela coexistência antagônica e
conflitante de procedimentos racionais (burocracia) com formas tradicionais
(patrimonialismo). Ambas expressões foram utilizadas em termos sociológicos por Max
Weber para configurar o desenvolvimento de certa prática de organização política pré-
moderna e, também, designar fenômenos distintos, movidos por “princípios reguladores
opostos”1. Esclareça-se: a burocracia como foi entendida por Weber, consistente no
método de administração do Estado, imparcial, eficiente e hierarquizado, deveria ter como
objetivo a reiteração da dominação racional-legal e não patrimonialista ou carismática. Ao
mesmo tempo em que foi estabelecido um encadeamento de regras normativas para
reforçar o poder pelo povo, passou a existir um sistema para manter uma classe dominante
no poder (a classe burocrática). Trata-se de contradição das formas de dominação, que fez
eclodir, de um lado, a burocracia, como dominação racional-legal; de outro, a estamentária,
como dominação tradicional patrimonialista. Apesar de epistemologicamente
contraditório, o trinômio burocracia-patrimonialismo-democracia, é uma realidade no
território brasileiro, que, contudo, vem sendo guerreada por meio de ações políticas que
objetivam anular seus indesejáveis efeitos (vg. Resolução nº 07/2005, do CNJ, por meio da
qual foi combatido o costume contra constitutionis chamado nepotismo no Poder
Judiciário).
Não resta dúvida de que o nascedouro da produção jurídica no Brasil e a forma
como os tribunais vieram a institucionalizar-se estão profundamente amarrados a um
passado econômico e sócio-político colonial. Isso permite compreender que o direito
1 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 87.
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oficial nem sempre representou o genuíno espaço de cidadania, de participação e das
garantias legais para grande parte da população. A Constituição de 1824, primeiro esforço
de institucionalização do novo país independente, pretendeu iniciar, apesar das vicissitudes
que levaram à sua outorga, um Estado de direito, quiçá um protótipo de Estado liberal. Mas
foi apenas o primeiro capítulo de uma instabilidade cíclica que marcou a experiência
republicana brasileira, jamais permitindo a consolidação do modo liberal e, tampouco, de
um Estado verdadeiramente social. De visível mesmo, a existência paralela e onipresente
de um Estado corporativo, cartorial, com total descompromisso com a justiça e a
liberdade2.
Assim, a constituição estrutural dessa cultura jurídica beneficiou, de um lado, a
prática do favor, do clientelismo, do nepotismo e da cooptação; de outro, introduziu um
padrão de legalidade e de estrutura institucional inegavelmente formalista, retórico,
eclético e ornamental. Incluindo suas características individualistas, antipopulares e não-
democráticas, o liberalismo brasileiro haveria de ser contemplado igualmente por seu
incisivo traço juridicista. Ademais, o cruzamento entre individualismo político e
formalismo legalista delineou politicamente a montagem do cenário principal de nosso
direito: o bacharelismo liberal, incapaz de situar-se criticamente diante do sistema jurídico.
A conclusão que se pode extrair dessa breve perspectiva histórica e da releitura
questionada das ideias, das experiências normativas e das instituições jurídicas é a imediata
necessidade de articular, na teoria e na prática, um projeto crítico de reconstrução
democrática no direito nacional, o que envolve a problematização e a ordenação
pedagógica de estratégias efetivas fundadas na democracia, no pluralismo e na
interdisciplinaridade, que conduzam a uma historicidade social do jurídico, capaz de
formar novos operadores e juristas orgânicos, comprometidos com a superação dos velhos
paradigmas e com as transformações das instituições (públicas e privadas) arcaicas,
elitistas e não-democráticas. Uma cultura jurídica que reflita, crítica e autocriticamente,
ideias, padrões normativos e instituições, sintonizada com anseios e aspirações dos novos
sujeitos sociais e comprometida com horizontes mais participativos e emancipadores, tudo
em conformidade com a Constituição de 1988, o mais bem-sucedido empreendimento
2 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. [II]. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 66.
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institucional da história brasileira, cujo corpo normativo orienta-nos na busca de uma
democracia substantiva.
Entretanto, sabido que a esperança é um desejo imemorial que acompanha os
homens desde sempre, é preciso que não nos deixemos iludir. Adverte-nos Norberto
Bobbio3 que o “Estado Democrático e Estado Burocrático estão historicamente muito
mais ligados um ao outro do que sua contraposição pode fazer pensar”. O Povo é
soberano e democrata quando da ocorrência das eleições; passado o período eleitoral volta
a ser aquele refém de uma camada pequena da sociedade que passa a comandá-la,
desconsiderando a sua satisfação na ação gestacional que foi confiada ao Estado. O
instrumento dessa disfunção estatal é a burocracia.
A burocracia, preconizada por Max Weber, traduz-se, com visto, em método
gerencial impessoal, que gera igualdade aos cidadãos, estável, seguro e racional. Com
esses atributos, reafirma o Estado de direito, possibilita de forma eficaz o exercício da
democracia formal e traz estabilidade ao sistema social por meio da efetividade do
princípio da segurança jurídica. Sociologicamente, também unido ao Estado de direito,
constitui-se a burocracia em estrutura de dominação racional-legal, que impede o exercício
do poder pelo cidadão e afasta a concretização da democracia substancial. Assumindo,
ainda, sua forma disfuncional, com ênfase nos meios empregados (onde o valor
instrumental converte-se em valor final), qualifica-se pelo excesso de ritualismos,
papelório, procedimentos e superconformidade às regras, caso em que se torna verdadeiro
obstáculo à ultimação de eventual estratégia assumida pelo ente estatal, que, não se pode
perder vista, deve ser sempre voltada à realização do bem comum e nunca para os seus
próprios interesses.
2. A satisfação do usuário do serviço público como elemento indissociável do conceito
de qualidade
Restaurada a democracia, a Constituição ora vigente, promulgada em 05 de outubro
de 1988, foi pródiga em estabelecer medidas para o fortalecimento do Poder Judiciário,
objetivando, também, a melhoria da prestação jurisdicional.
3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. [I]. 19. reimp. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 24.
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A Emenda Constitucional nº 45/2004, que instituiu a chamada Reforma do Poder
Judiciário, ao contrário do alardeado, não trouxe em si solução para o crônico problema da
ineficiência da máquina judiciária, inegavelmente abalada pela demanda de ações que é
dirigida ao Poder Judiciário, notadamente em razão de seu papel de servir de canal de
expressão para grupos que demandem a promoção dos objetivos comuns expressos pelos
direitos fundamentais. Aliado a esse fato, Vera Lúcia Feil Ponciano4 aponta como
determinantes no número de processos: (a) a disparidade gravíssima entre o discurso
jurídico e a planificação econômica; (b) a instabilidade normativa e a inflação jurídica
decorrente da produção legislativa desordenada e desenfreada pelo Executivo e
Legislativo, inclusive contrariando a Constituição Federal; (c) a produção legislativa
impulsionada unicamente pelo clientelismo político; (d) a omissão do Estado na
implantação das políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos garantidos pela
atual Constituição; (e) a desobediência à Constituição e às leis pelo próprio poder público e
(f) o aumento da burocracia estatal.
Assim, por força das profundas transformações econômicas e sociais que se deram
ao longo do último século, aliadas àqueles outros fatores, as estruturas, competências e
normas estatais experimentaram um crescente distanciamento da realidade social, até o
ponto de a sociedade e os operadores do sistema jurídico declararem, à unanimidade, a
existência de uma situação de crise do Judiciário.
Impende assentar que, de forma clara e precisa, deixou o legislador constitucional
consignado na Lei Maior como princípios: razoável duração do processo, celeridade (art.
5º, inciso LXXVIII) e eficiência (art. 37), outorgando aos magistrado a tarefa de dizer o
direito segundo as regras constitucionais de aplicação imediata, sem aguardar a palavra do
Legislativo, como era até então. Extrai-se desse conjunto de normas encontrar-se implícito
o princípio da boa administração – consagrado também, de forma expressa, nos artigos
VIII e X na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e no artigo 41 da Carta de
Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta de Nice) –, o qual é idôneo a deflagrar
para o jurisdicionado o direito subjetivo, de natureza fundamental, de exigir tal prática dos
administradores da res publica.
4 PONCIANO, Vera Lúcia Feil. Morosidade da Justiça: Crise do Judiciário ou crise do Estado? O Estado do
Paraná. Edição de 10/07/2008.
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Dessa contemporânea principiologia, infere-se, outrossim, que, no Estado
democrático contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e legalmente
assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do
direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. A tutela efetiva é,
portanto, não apenas uma garantia, mas, ela própria, um direito fundamental, cuja eficácia
irrestrita é preciso assegurar, em respeito à própria dignidade humana5. Como consectário
lógico, tem-se que a garantia do acesso à Justiça não se esgota no direito de provocar o
exercício da função jurisdicional, mas no fato de que a tutela pretendida seja oportunizada
de forma eficaz e eficiente.
A esse propósito, importa distinguir o conceito de eficiência e eficácia, uma vez
que a eficácia, na ciência do direito, denota a aptidão de uma lei ou ato jurídico de produzir
efeitos. Aqueles termos estão sendo empregados neste estudo na esteira da ciência da
administração e da economia, considerados básicos para o estudo da gestão das
organizações. Com efeito, a norma técnica não-compulsória NBR ISO 9000:20056, de
aplicação universal e da qual é subscritora o Brasil, fornece a seguinte definição para
aqueles vocábulos:
Eficácia: Extensão na qual as atividades planejadas são realizadas e os
resultados planejados alcançados.
Eficiência: Relação entre o resultado alcançado e os recursos usados.
5 GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo, p. 01. Disponível em:
<http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 13/05/2013.
6 A International Standard Organization - ISO (Organização Internacional de Padrões) é uma organização
com sede em Genebra - Suíça e com escritórios em praticamente todos os países do mundo, que se ocupa em desenvolver normas voluntárias (não-compulsórias), tendo como objeto a maioria dos ramos tecnológicos
(engenharia em geral, segurança, meio ambiente, responsabilidade social, qualidade etc.). A sua função é a de
promover a normatização de produtos e serviços para que a qualidade destes seja permanentemente
melhorada. O Brasil, como signatário, pode adotar as normas emitidas pela ISO, que são traduzidas para o
português pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e recebem um prefixo “NBR”,
caracterizando-as como normas brasileiras. O ano que se inclui é o da última revisão da norma. Dentre as
normas ISO, destaca-se o conjunto (ou família) 9000, voltado especificamente para o tema gestão, o qual
possui a seguinte lógica: ISO 9000:2005: fornece informações sobre a rationale da qualidade e define a
terminologia a ser utilizada na Gestão da Qualidade; ISO 9001:2008: apresenta os requisitos universais para a
gestão com qualidade; ISO 9004:2010: fornece orientação sobre aprimoramento contínuo da qualidade,
apresentando complementações aos requisitos da NBR ISO 9001:2008 (básicos ou mínimos), sofisticação ou alargamento da sua abrangência. Convém ressaltar que existem outros modelos de sistemas de gestão;
todavia, praticamente todos convergem para os mesmos elementos de gestão sustentável.
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Em geral, a eficiência está intimamente relacionada aos custos de realização do
processo (tempo, gastos, instalações etc.).
Várias são as alternativas de combinação de eficácia e de eficiência dentro de um
processo de trabalho de uma organização. Por exemplo: uma sentença proferida com
observância de todas as garantias substanciais, mas que no seu iter procedimental não foi
observado o prazo razoável, resulta em processo eficaz, porém ineficiente. Ou um
particular atendimento, cuja informação não é fornecida tendo em vista que o processo
judicial não foi localizado no cartório judiciário e, além disso, o atendimento completo é
realizado em duas horas. Nesse caso estamos diante de um processo ineficaz e ineficiente.
Maria Elisa Macieira e Mauriti Maranhão7 apresentam outra forma de abordar
eficiência e eficácia, trazendo luz à sua melhor compreensão:
Qualificação Ação descritora da condição
Eficaz Executa corretamente aquilo que é feito
(não necessariamente o que é feito é a real
necessidade do destinatário final do produto
ou serviço).
Eficiente Alcança os objetivos planejados
(considerando as necessidades dos
usuários), desenvolvendo no destinatário
final a percepção de satisfação com o
serviço prestado.
Eficaz e eficiente
Faz, sob custo compatível, o que realmente
precisa ser feito.
7 MACIEIRA, Maria Elisa; MARANHÃO Mauriti. Como implementar a gestão em unidades judiciárias. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 34.
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Para aqueles autores, que detêm ampla experiência e conhecimento em
implementação de sistemas de gestão em unidades do Judiciário fluminense, a experiência
mostra que
Em geral, algumas organizações fazem mais do que precisa ser
feito, deixam de fazer algumas coisas essenciais e as coisas que
fazem não são nem eficientes nem eficazes. É uma combinação
explosiva de insatisfação dos usuários (que se frustram por não
terem as suas necessidades atendidas) com desperdício (realização
de atividades desnecessárias, que não agregam valor).
Em resumo, combinar eficiência e eficácia dos processos de
trabalho significa atender às necessidades dos usuários dos
próximos processos, sob custo mínimo, e obter a rentabilidade
capaz de manter a instituição permanentemente reconhecida. Em
termos práticos, a adequada combinação de eficácia e eficiência
determina completamente a qualidade do processo.
Importa consignar, outrossim, que consoante o padrão técnico NBR ISO
9000:2005, sistema (ou modelo) é o conjunto de elementos que estão inter-relacionados ou
interativos e sistema de gestão são atividades coordenadas para dirigir e controlar uma
organização ou, em outras palavras, para estabelecer política e objetivos, e para atingir
estes objetivos. O termo qualidade, adicionado ao sistema de gestão, tal como preceitua
aquela norma técnica, é o conjunto de características diferenciadoras de um produto ou
serviço que estão em conformidade com os requisitos estabelecidos pelo sistema de gestão
para a satisfação do cliente.
Quanto maior a quantidade de recursos (pessoas, dinheiro, bens tangíveis e
intangíveis), mais complexo se torna o processo de gestão. A complexidade aumenta
quando se está diante de sistemas sociais considerados como não-lineares8, tal como é o
8 Os sistemas inorgânicos, pelo fato de serem regulados por leis da ciência exata, apresentam comportamento
linear, com relações de causa e efeito bem definidas (por exemplo, para aumentar a concentração de sal em determinada solução para X%, basta adicionar Y gramas de sal). Evidente que o comportamento linear torna
o tratamento dos sistemas inorgânicos mais simples e plenamente previsível. Com o surgimento dos sistemas
sociais (povoados por homens), as relações de causa e efeito passaram a ser de outra ordem, não mais
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Judiciário. Essa é uma das razões que faz com que a gestão constitua uma atividade
especializada nas organizações, a exigir, portanto, uma expertise, particularmente da alta
cúpula administrativa, que é quem efetivamente delibera, ou em outras palavras, define os
objetivos a serem alcançados e o meio hábil a cumpri-los. São os indivíduos que tomam
decisões, que afetam o destino das organizações por eles dirigidas. Aliás, conforme
salienta o guru da qualidade japonesa Kaoru Ishikawa, citado por Geraldo R. Caravantes9:
“A qualidade é uma revolução da própria filosofia administrativa, exigindo uma
mentalidade de todos os integrantes da organização, principalmente da alta cúpula”.
Há senso comum quanto à generalidade de funcionamento das organizações serem
associadas a sistemas sociais. A figura que se segue mostra um esquema da concepção
biológica dos sistemas, dotando-o de um mecanismo de retroalimentação característico de
todo ser vivo.
Esse processo, que deve ser estabelecido entre as organizações e a sociedade, será
responsável pela estratégia a ser definida - e redefinida, se for o caso - por aquelas. Essa
ideia que está alinhada com os ditos sistemas abertos contrapõe-se aos primados do
modelo burocrático, adotado pelo Judiciário brasileiro, que encerra uma autorreferência e
se concentra tão-somente no processo enquanto fim, desconsiderando a eficiência
envolvida.
A moderna concepção de gestão da Qualidade Total10
desenvolveu-se nos anos 50
a partir dos trabalhos de Armand V. Feigenbaum, Joseph M. Juran e Winston Edwards
lineares, tornando-se muito mais complexas e, por isso mesmo, maior se justifica a presença de
conhecimentos multidisciplinares para lidar com as variáveis em jogo.
9 CARAVANTES, Geraldo R.; CARAVANTES C.; BIJUR, W. Administração e Qualidade: a superação dos
desafios. São Paulo: Makron Books, 1997, p. 32. 10 O controle de qualidade é dito total por englobar todas as pessoas e ser exercido em todos os lugares da
organização, envolvendo todos os níveis e todas as unidades.
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Deming. Assim, complementarmente ao conceito adotado pela ISO, que tem como função
a normatização de produtos e serviços para que a qualidade destes seja permanentemente
melhorada, passamos a trazer o entendimento acerca do que vem a ser qualidade,
consoante a melhor doutrina.
Para Feigenbaum11
, a qualidade implica a perfeita satisfação do usuário, podendo
aquela ser conceituada como “uma maneira de se gerenciar os negócios da empresa, sendo
que o aprimoramento da qualidade só pode ser alcançado em uma empresa com a
participação de todos”.
Joseph M. Juran12
, consultor conceituado internacionalmente em gestão da
qualidade, define que qualidade é a “adequação do produto ou serviço ao uso”, ou seja, à
necessidade do cliente.
Por seu turno, Deming13
, conhecido como o guru da qualidade desde 1950, diz que:
“Em vez de estabelecer cotas numéricas, a administração para a qualidade deveria
trabalhar para melhorar o processo. O fluxograma indica um processo. O problema é saber
de que maneira melhorá-lo”.
Para Vicente Falconi Campos14
, “um produto ou serviço de qualidade é aquele que
atende perfeitamente, de forma confiável, de forma acessível, de forma segura e no tempo
certo às necessidades do cliente”.
Observa-se que, apesar do princípio da eficiência insculpido expressamente na
Carta Magna e do movimento no Brasil a favor da qualidade como parâmetro a ser
perseguido nas organizações, o Poder Judiciário, mesmo diante de sua alta complexidade
organizacional, retarda em racionalizar a sua administração. Exemplo disso é que só a
partir da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de nº 70, de 18/03/2009, o
11 FEIGENBAUM, Armand Vallin apud BUENO, Marcos. Gestão pela Qualidade Total: uma estratégia
administrativa. Um tributo ao mestre do controle da qualidade total, Kaoru Ishikawa, p. 15. Disponível em:
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12 JURAN, Joseph M.; GRYNA, Frank M. Controle da qualidade. São Paulo: Makron, McGraw-Hill, 1991,
p. 45.
13 DEMING, William Edwards apud GAZ, Ricardo; Santana, Talita Gomes de. Unidos pela qualidade. Rio
de Janeiro: COP Editora Ltda., 2004, p. 5 (Artigo publicado na Revista Tendências do Trabalho, edição nº
355).
14 CAMPOS, Vicente Falconi. TQC: Controle da Qualidade Total (no estilo japonês). Belo Horizonte, MG:
Bloch Editora, 1992, p. 02.
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Judiciário divulgou seu planejamento estratégico, uma imprescindível ferramenta de
gestão. Insta consignar que o processo de gestão estratégica constitui um esforço
disciplinado para produzir decisões e ações fundamentais sobre o que uma organização é,
aonde quer chegar, e utilizando quais meios. Portanto, pode-se dizer que uma organização
sem estratégia é uma organização sem rumo, bem como que, ao pretendermos agilizar um
processo sem ao menos um rumo estabelecido, o que se obtém é uma aceleração da
desordem muito possivelmente já existente. Sob outro prisma, de nada adianta um
planejamento estratégico sem os efetivos meios de controle acerca da qualidade do serviço
prestado, estando ínsito neste conceito, conforme demonstrado, a satisfação do destinatário
final do serviço.
O princípio da boa administração, previsto expressamente, como apontado alhures,
em importantes documentos internacionais e implícito em nosso sistema constitucional, há
de expandir suas fronteiras para compreender não só uma lógica economicista, que
restringe sua avaliação aos outputs da função. O Estado democrático de direito deve ser
instrumento eficaz e eficiente, a serviço do todo social, indiscriminadamente. Para isso, os
fundamentos e as modernas técnicas administrativas apenas se justificam se toda a
estrutura funcional tiver conhecimento e planejar seu trabalho em conformidade com as
demandas da sociedade, sob a primazia dos valores humanos e sociais, submetendo o
econômico à dinâmica e necessidades sociais15
. Como consectário dessa assertiva, tem-se
que a participação social há de ser promovida por ocasião das escolhas públicas, da
implementação das políticas de gestão correspondentes, ainda no momento da avaliação.
É essa ampliação de sentido da ideia de qualidade que tem evidenciado a
insuficiência do modelo burocrático e do argumento que firma a legitimidade da ação
estatal na operational autothority, já que desconsidera o ponto assinalado por Jocelyn
Bourgon16
, segundo o qual o próprio conceito do resultado desejável em tempos de Estado
democrático de direito abarca a exigência da presença da sociedade como agente de
15 PASOLD, Cesar Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 3ª edição. Santa Catarina: Editora
Diploma Legal, 2007, p. 35.
16 BOURGON, Jocelyn. New Governance and Public Administration: Towards a Dynamic Syntesis. Disponível em: <http://jocelynebourgon.com/documents/Governance%20Paper-
Canberra%20_Feb_16_v21%20_PMilley%20Edits_.pdf>. Acesso em 15/05/2013.
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deliberação. Afinal, democracia, na lição de Norberto Bobbio, é o “poder em público” 17
.
Assim, a eficiência como princípio posto à administração judiciária há de incorporar o
incremento da cidadania ativa como valor no processo de decisão, tanto quanto aqueles
outros outputs da atuação estatal, quantitativamente aferíveis.
José Afonso da Silva parece caminhar na direção das teorias da administração
quando afirma que o conceito de eficiência não é jurídico, mas econômico, servindo para
qualificar atividades que correspondam, numa concepção muito geral, a fazer acontecer
com racionalidade, o que implica medir os custos que a satisfação das necessidades
públicas importam em relação ao grau de utilidade alcançado, servindo, também, para
orientar a atividade administrativa, no sentido de conseguir os melhores resultados, com os
meios escassos de que dispõe e a menor custo18
.
3. O pernicioso isolamento científico e a governança como novo paradigma relacional
do Poder Judiciário
Se boa administração envolve a abertura do direito a um modelo de administração
funcional e à democratização da função administrativa, isso exigirá do Judiciário a
cunhagem de uma postura compatível com o novo desenho de ação inclusivo, num
contexto oposto àquele firmado na verticalidade das relações, tão caro ao modelo
burocrático. Nessa quadra, o emprego do conceito essencialmente democrático de
governança, mencionado pela primeira vez pelo Banco Mundial, em 1992, como atributo
desejável à administração pública, restou disseminado, podendo ser descrito como uma
estratégia de governo que, reconhecendo suas limitações, admite o envolvimento e a
necessária contribuição de outros atores sociais, cidadãos ou organizações, que integrem a
constelação de agentes qualificados ao enriquecimento do processo de decisão ou, de outro
modo, pode ser descrito como o modo pelo qual os valores subjacentes de uma Nação são
institucionalizados.
17 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. [II]. Tradução de
Daniela Beccaccia Versiani. 9. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 386.
18 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª edição. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 671.
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Apesar dessas proposições, o Judiciário, mesmo recebendo com a nova ordem
política novos poderes, maior independência, desatrelando-se do Poder Executivo,
marchou rumo ao enfrentamento dos novos direitos sem propostas novas, sem abrir mão de
suas prerrogativas, mantendo-se no seu silencioso feudalismo. Rodolfo de Camargo
Mancuso19
, a esse respeito, alerta para a prática de uma política judiciária equivocada
calcada no incessante aumento da estrutura física, focada na vertente quantitativa do
problema, isto é, no volume excessivo de processos: ao aumento da demanda (mais
processos), se intenta responder com um incessante crescimento de base física do
Judiciário (mais fóruns, mais juízes, mais equipamentos de informática, enfim, mais
custeio), sem que se dê conta de que tal “estratégia”, desacompanhada de uma gestão
eficiente, muito se aproxima do popular “enxugar gelo”, a par de agravar a situação
existente, na medida em que o aumento da oferta acaba por alimentar a demanda,
disseminando junto à população a falácia de que toda e qualquer controvérsia pode e deve
ser judicializada, quando, antes, caberia expandir a informação quanto ao acesso a outros
meios, auto e heterocompositivos, além de outras medidas calcadas em um plano nacional
de política judiciária, que considere todas as concausas que afetam o complexo sistema
Judiciário e as várias interfaces desse mesmo sistema.
Seis anos depois da Constituição de 1988, veio a Reforma do Poder Judiciário, via
Emenda Constitucional nº 45/2004, e com ela a criação do Conselho Nacional de Justiça,
chamado de controle externo do Judiciário. Objetivou o CNJ responsabilizar-se pela
sujeição do Poder Judiciário à disciplina administrativa por ele imposta, mantidas as
decisões judiciais fora do seu alcance, e democratizar o Poder, submetido a uma
verticalização administrativa incompatível com qualquer modelo de administração
moderna. Consequência direta desse quadro é a de que a gestão era realizada de forma
descontinuada, a depender do administrador de plantão, e as “estratégias” contemplavam,
na maioria das vezes, projetos pessoais daquele, sem considerar qualquer racionalidade
sistêmica nas ações empreendidas. De forma geral, eram prestigiadas ações imediatistas,
em detrimento de ações de médio ou longo prazo.
19 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no Contemporâneo
Estado de Direito (nota introdutória). Disponível em: <http://www.processoscoletivos.net/doutrina/19-
volume-1-numero-2-trimestre-01-01-2010-a-31-03-2010/93-a-resolucao-dos-conflitos-e-a-funcao-judicial-no-contemporaneo-estado-de-direito-nota-introdutoria>. Acesso em 15/05/2013.
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Diante desse quadro, uma das medidas prioritárias adotadas pelo CNJ foi a de
impor planejamento estratégico, através da já referida Resolução nº 70/2009, por meio da
qual se destacou a necessidade do estabelecimento, por todos os tribunais, de metas de
curto, médio e longo prazos, que deveriam estar associadas a indicadores de resultado e a
planos de ação previamente estabelecidos, levando o Poder Judiciário a superar a prática de
funcionar sem projetos, sem saber o que está fazendo, sem qualquer controle efetivo sobre
o resultado (ainda que meramente quantitativo) de sua administração e de suas realizações.
Sobre esse contexto caótico encontrado no Poder Judiciário, a então Corregedora do
Conselho Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, manifestou-se20
:
Dentro dos Tribunais de Justiça, vinte sete ilhas isoladas, foram
encontradas práticas administrativas absolutamente condenáveis
sob o aspecto técnico, descontinuadas e sem responsabilização dos
administradores. Tudo era feito de forma pessoal e na base do
improviso. Era imprescindível agregar, uniformizar e planejar para
assim caminhar junto, vencendo diferenças abismais entre os
Tribunais e, o que é pior, dentro do mesmo Tribunal varas ou
gabinetes inviabilizados por acúmulo de processos, falta de
equipamentos e falta de gestor, situações por vezes críticas com
direto reflexo na produção da atividade-fim.
A falta de uniformidade, assim como de transparência na prática judiciária, levou o
CNJ a adotar, como objetivo macro, vencer o silencioso proceder do Judiciário, a chamada
caixa preta, introduzindo a publicidade como norma das práticas administrativas. Criou,
assim, cadastros importantes para traçar o perfil e dimensionar o tamanho da Justiça
brasileira, tais como o Justiça em Números e o Justiça Aberta, este último a cargo da
Corregedoria Nacional, e estabeleceu metas a serem seguidas pelos tribunais. Tentou,
outrossim, democratizar a burocracia daquele Poder criando os recursos para que se abrisse
ao controle social, descuidando-se, todavia, de prever mecanismos de participação em
20 CALMON, Eliana. CNJ e democratização do Poder Judiciário. Revista Interesse Nacional, de 03/01/2012, p. 1-13. Disponível em: <http://interessenacional.uol.com.br/2012/01/cnj-e-democratizacao-do-poder-
judiciario>. Acesso em 15/05/2013, p. 5
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deliberações e de ausculta dos resultados efetivamente obtidos pelos destinatários das
ações empreendidas (feedback), os quais deveriam servir como vetores para a redefinição
da estratégia e das metas da organização. Em outras palavras, buscou-se um resultado
quantitativo, mas não há qualquer previsão de um procedimento dentro do sistema para
verificar se a instituição está, de fato, gerando o resultado qualitativo que deve ser
esperado. Imperioso anotar que não é possível fazer juízos de valor consistentes quando se
reduz o campo de observação de processos cujos níveis de complexidade são muito
elevados: há que se levar em consideração que a expectativa externa que se apresenta ao
Judiciário é a de que ele funcione como instância moral, que não se expressa apenas nas
demandas de cláusulas jurídicas, mas também na confiança reinante da população na
justiça21
. A introdução de aspectos morais e de valores a serem observados pelo Judiciário
dota este não só de um protagonismo no jogo democrático, mas também de uma igual
responsabilidade de criar mecanismos para que seja passível de críticas, de modo que seja
factível verificar se, efetivamente, está alinhado com as aspirações constitucionais. Afinal,
o Judiciário, como ente estatal, não se legitima pela sua só existência, mas pelos resultados
profícuos que traz para a sociedade. Nas palavras de Austin Gordilho22
, “um sistema
administrativo pode se afigurar a um jurista uma magnífica arquitetura de construção da
ordem, mas se a comunidade a que ele serve não tem a mesma percepção, o sistema não
tem valor, donde uma das primeiras causas possíveis de um parassistema”.
Amartya Sen23
, na obra A idéia de Justiça, referindo-se às instituições e ao processo
substancial democrático, assevera que a sociedade não pode simplesmente entregar a tarefa
da justiça a algumas das instituições e regras sociais que entende como precisamente
corretas e depois aí descansar, libertando-se de posteriores avaliações pessoais ou de
moralidade. Precisamente quanto ao papel das instituições nesse jogo democrático,
preconiza, ainda, que “a democracia tem de ser julgada não apenas pelas instituições que
existem formalmente, mas também por diferentes vozes, de diversas partes da população,
na medida em que de fato possam ser ouvidas”.
21 MAUS, Ingborg. O Judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 23.
22 GORDILHO, Austin A. La administración paralela. 3. reimp. Madrid: Cuadernos Civistas, 2001, p. 84-85. 23 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 117.
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Não é ocioso consignar, outrossim, que o ritmo incessante que conduz o objetivo de
se cumprirem metas, pontuais e fragmentadas de um todo existente, leva a essa entropia
que se observa no Poder Judiciário. Movido pelo presente e saturado pelo instantâneo,
vive o Judiciário como se o passado não tivesse nada a dizer e o futuro fosse demasiado
incerto para ser construído. Assim, dedica todos os esforços e atenção à tramitação
daqueles processos estabelecidos em metas fragmentadas, desviando a atenção para todo o
acervo existente, que, um dia, se o administrador de plantão não mudar de direção,
integrará as novas metas que vierem a ser editadas. Com isso, legitima-se a ausência de
uma política administrativa sustentável e continuada junto àquele Poder, posto que,
cumprindo os atos administrativos expedidos pelo CNJ, sente-se o Judiciário confortável e
também desestimulado a procurar encampar uma política judiciária racional e eficiente,
que o leve a sair desse círculo vicioso rumo a um conjunto de práticas de boa
administração que o conduza a um desejado círculo virtuoso.
O artigo 37 da CF, com a redação da EC nº 19/1998, vinculou a promoção de
magistrados pelo critério de merecimento à aferição de seu desempenho, segundo critérios
objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e
aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento. A capacitação é,
portanto, a tônica da política administrativa implementada a partir da Constituição, sendo
exigida deste o vitaliciamento. Nesse passo, a Escola de Magistrados, vinculada ao STF,
editou a Resolução nº 02/2007, considerando o período de vitaliciamento como etapa do
concurso de ingresso da magistratura.
Iluminado pelas novas diretrizes constitucionais, atentou o CNJ para a necessidade
de sistematização de aspectos relacionados à capacitação do magistrado. No que se refere à
seleção, formação e aperfeiçoamento dos juízes, foi editada a Resolução nº 64/2008, que
dispõe sobre o afastamento de magistrados para fins de aperfeiçoamento profissional, a que
se refere o artigo 73, I, da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 (Lei Orgânica
da Magistratura Nacional). Também fez editar a Resolução nº 75/2009, na qual
regulamentou de forma minudente o concurso público a ser realizado por cada tribunal
para seleção de magistrados, deixando a seu cargo, ainda, a preparação da fase de
formação, na qual deverão ser ministradas matérias próprias das Ciências Sociais, sem
denotar, contudo, qualquer preocupação com as ciências afetas à temática da
administração judiciária. Intenta-se, assim, dar ao futuro magistrado formação tão-
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somente humanitária, de todo necessária, olvidando-se daquelas que agregariam valor no
exercício de suas funções administrativas, enquanto gestor.
Desse conjunto de normas, do qual se depreende que foi preterida a importância da
questão da expertise necessária para administrar as complexas variáveis relacionadas à
função administrativa judiciária, destaca-se também a Resolução do CNJ de nº 49/2007.
Por meio deste ato normativo previsão para que os órgãos do Poder Judiciário relacionados
no art. 92, incisos II ao VII da Constituição Federativa do Brasil, passassem a organizar em
sua estrutura unidade administrativa competente para elaboração de estatística e plano de
gestão estratégica do Tribunal. Assevera, ainda, que a referida unidade será composta
preferencialmente (e não obrigatoriamente) por servidores com formação em direito,
economia, administração, ciência da informação, sendo indispensável servidor com
formação em estatística. Tal órgão terá a incumbência de enviar dados para o CNJ, quando
solicitado, a fim de instruir ações (decerto de forma monopolítica, vale dizer, sem qualquer
participação dos atores sociais) na política judiciária nacional. Pelo teor daquele
documento, enfim, observa-se que o objetivo da unidade de estatística e de gestão
estratégica é tão-somente munir os detentores do poder de deliberação dos resultados em
número mensurados, a fim de que se possa proceder a uma avaliação institucional quanto
ao número de processos julgados e aqueles ainda pendentes de julgamento para que, ao
final, sejam promovidas ações que visem a otimizar o julgamento do acervo exponencial
remanescente. Infere-se dessa sistemática que não há qualquer compromisso com o
resultado quantitativo obtido. Para atingir a qualidade de que se está a falar, faz-se
necessária, como mencionado, a competência gerencial, não somente para planejar e
implementar ações que visem à obtenção da qualidade do serviço, quanto para considerar
os indicadores de desempenho, durante e após a implementação, e retroalimentar o sistema
para corrigir os eventuais desvios, que sempre ocorrem, particularmente quando o que se
está em jogo é um sistema social.
Imperioso consignar que, caso não haja uma mudança de cultura que passe,
necessariamente, pela formação dos profissionais de direito, nenhuma reforma que se
pretenda será bem sucedida. Nessa esteira, seria de bom alvitre que as Escolas da
Magistratura dedicassem parte de seu conteúdo programático a essa questão.
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Rogério José B. S. Nascimento24
, ao discorrer sobre os obstáculos enfrentados para
a concretização de uma aspirada reforma do sistema de gestão do Judiciário, apontou como
uma das causas a prevalência do que ele denominou de uma “contaminação de lógica
instrumental”. In verbis:
Trata-se de pensar a prestação única e exclusivamente a partir da
perspectiva de seus agentes. Ou seja, olhando para dentro da
prestação jurisdicional, sem olhar para seu resultado em relação à
sociedade. Significa fazer uma reflexão limitada ao atendimento
das próprias estruturas corporativas envolvidas na prestação
jurisdicional, preocupada apenas com o que é bom para o melhor
funcionamento do ponto de vista do agente público, sem levar em
conta o que seja um bom funcionamento pela perspectiva da
sociedade, do participante dos processos levados ao Judiciário.
Essa visão, muito comum, costuma reduzir o debate sobre reforma
da gestão do sistema judiciário a uma discussão sobre como reduzir
a demanda por julgamento ou como agilizar o atendimento à
demanda existente, sem tocar no problema da qualidade da
prestação jurisdicional.
Apesar dessas considerações, deve-se aplaudir o fato de que o Judiciário tem
ensaiado sair do seu hermetismo corporativo ao estabelecer, por exemplo, convênios com o
objetivo de melhorar os seus serviços. Nesse sentido o convênio firmado, em 2009, com o
Banco Central do Brasil, que contou com o apoio da Federação Brasileira dos Bancos, com
o objetivo de aprimorar o sistema BACEN-JUD, revolucionando o sistema de penhoras até
então utilizado. Esse é um exemplo de que as parcerias formadas pelos diversos atores
sociais são muito bem-vindas, quando o que se está em foco é otimizar os procedimentos e
reduzir os custos empregados na sua realização para se obter um resultado organizacional
de excelência.
24 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Reforma de sistemas de gestão na área de Justiça. In Política de Gestão Pública Integrada. Bayma de Oliveira, Fátima (org). Rio de Janeiro: FGV, 2008, p. 193-
198, p. 194
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Outras ações foram adotadas pelo CNJ – das quais destaca-se o Movimento pela
Conciliação –, o qual também editou inúmeras resoluções para resolver ou minorar
problemas que muito afligem a população e que envolvem o cumprimento do art. 37 da
Constituição da República e os princípios ali elencados. Todas essas iniciativas são
louváveis, mas ainda são pontuais e esparsas, e não surtiram o efeito esperado de prestar,
de forma sustentável, duradoura e integrada ao sistema de justiça uma prestação
jurisdicional de qualidade, decorrente da melhoria contínua do sistema. As ações de
mutirões, por exemplo, apesar de importantes, não cumprem esse papel: são metas de
manutenção do próprio sistema vigente. É preciso que tal medida não seja importante de
per si, mas porque assim foi considerada dentro de um sólido e racional planejamento
estratégico, que leve em conta todas as interfaces do sistema. Sendo importantes para o
sistema judicial, aquelas ações não devem ser ocasionais, mas continuadas, até quando
consideradas benéficas ao sistema judiciário e à sociedade. O mesmo se diga à questão do
fomento dos demais meios complementares de acesso à Justiça.
Quanto ao resultado das medidas (fragmentadas) adotadas pelo CNJ, a Ministra
Eliana Calmon25
, no final do seu mandato frente à Corregedoria do CNJ, afirma, com um
certo desalento, que
As metas ainda estão sendo cumpridas, aqui e ali, com as
dificuldades de sempre, falta de recursos financeiros, falta de
pessoal, servidores despreparados e, na minha visão, em muitas
situações falta de crença na possibilidade de mudar com atitude e
determinação, ingredientes primeiros para qualquer alteração que
se queira implementar.
A cada ano o CNJ faz uma avaliação do cumprimento das metas e,
a partir daí, divulga os resultados da atuação de cada Tribunal, com
total transparência, estimulando o empenho dos Tribunais.
Entendemos lento, bem lento, o enfrentamento e cumprimento das
metas, mas o certo é que o trabalho já começou e prossegue.
25 CALMON, Eliana. CNJ e democratização do Poder Judiciário. Revista Interesse Nacional, de 03/01/2012,
p. 1-13, p. 7. Disponível em: <http://interessenacional.uol.com.br/2012/01/cnj-e-democratizacao-do-poder-
judiciario>. Acesso em 15/05/2013.
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Com a Constituição de 1988, cujo texto é abundante em normas programáticas,
marcado pela redemocratização e pelo constitucionalismo que inseriu o Judiciário no
centro da arena pública, a demanda pelo serviço público de justiça, já se anotou, aumentou
vertiginosamente. De fato, consoante o Relatório Justiça em Números 201126
, publicado
em outubro de 2012, a tramitação total da movimentação processual em todos os ramos do
Judiciário nacional (exceto no STF e Conselhos), alcançou, naquele ano, cerca de 90
milhões de processos. Desse quantitativo 71% já estavam pendentes desde o início do ano
e os processos restantes ingressaram durante o ano, valendo isso a dizer que o montante
apurado equivale à soma dos casos novos e dos casos pendentes que aguardam o
julgamento pelo Judiciário de nosso país. Esse acervo exponencial, frente a uma instituição
que pouco se modernizou – apesar da ampliação de despesas orçamentárias e do número de
servidores – causou um déficit gradativo de processos entrados e processos julgados,
resultando no conhecido congestionamento da justiça, ante a formação de um acúmulo de
processos à espera da prestação jurisdicional; esse acúmulo foi denominado pelo CNJ de
taxa de congestionamento e tem como finalidade mensurar se a Justiça consegue decidir
com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas e os casos
pendentes de períodos anteriores são finalizados ao longo do ano. O referido relatório
aponta que o índice global da taxa de congestionamento do Judiciário brasileiro é de
73,6%, percentual que aumentou em cerca de 3,6% em relação a 2010.
Diante dessa perspectiva que aponta para um demandismo avassalador, impende
ressaltar que a morosidade judicial se mostra como o principal fator de desencanto social,
posto que a justiça tarda e, considerando esse só fato, pode sim falhar. A prestação
jurisdicional a destempo corrói a própria autoridade do Poder Judiciário, afastando dos
tribunais grande parte da população.
Questão que afeta profundamente o desenvolvimento econômico e social de um
país é a capacidade do Judiciário de se apresentar como uma instância legítima na solução
de conflitos que surgem no ambiente social, empresarial e econômico. Partindo dessa
premissa, foi criado pela FGV o Índice de Confiança na Justiça no Brasil - ICJBrasil, que é
um levantamento estatístico trimestral de natureza qualitativa. Tal índice objetiva retratar o
26 CNJ, Relatório em Números 2011, publicado em outubro/2012. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-
numeros/relatorios, p. 447-448. Acesso em 11/08/2013.
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grau de “confiança” da população no Poder Judiciário, vale dizer, se o cidadão acredita que
aquela instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que
benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada
em conta no dia a dia do cidadão comum. A comunidade alvo daquela pesquisa é
constituída de habitantes, com 18 anos ou mais, de oito unidades federativas (UF):
Amazonas, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do
Sul e Distrito Federal, que juntas representam aproximadamente 55% da população do
país, segundo dados do Censo 2010 do IBGE. Pois bem, o relatório ICJ-Brasil do 4º
trimestre de 2012, disponibilizado no sítio eletrônico da FGV no 1º trimestre de 201327
,
demonstra que:
1) 50% dos entrevistados já utilizaram os serviços do Judiciário.
Referido estudo esclarece que as ações apontadas pelos entrevistados relacionam-se
aos anos anteriores a 2000 (10%), aos anos de 2000 a 2006 (21%) e 2007 a 2010 (69%);
que, relativamente à satisfação com o Poder Judiciário, segue a tendência que vem sendo
observada nos períodos anteriores no que diz respeito à má avaliação do Judiciário como
prestador de serviços públicos: para 90% dos entrevistados o Judiciário é moroso,
considerando que resolve os conflitos de forma lenta ou muito lentamente. Além disso,
79% disseram que os custos para acessar o Judiciário são altos ou muito altos e 69% dos
entrevistados acreditam que o Judiciário é difícil ou muito difícil para utilizar. Outros dois
problemas apontados pelos entrevistados são a falta de honestidade (64% dos entrevistados
consideram o Judiciário nada ou pouco honesto) e a parcialidade (62% acreditam que o
Judiciário é nada ou pouco independente). Não obstante a má percepção do Judiciário, a
maioria dos entrevistados em questão declarou que procuraria o Judiciário para resolver os
conflitos em que vierem a ser envolvidos.
2) 37% dos entrevistados declara confiar no Poder Judiciário.
27 FGV, Índice de Confiança na Justiça - ICJ- Brasil. 4º trimestre de 2012. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10754/Relatorio_ICJBrasil_4TRI_2012.pdf?seq
uence=1, p. 12-16. Acesso em 12/08/2013.
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Comparando a confiabilidade no Poder Judiciário com a confiabilidade nas outras
instituições (Partidos Políticos, Congresso Nacional, Ministério Público, Polícia, Governo
Federal, Imprensa escrita, Grandes empresas, Emissoras de TV, Igreja Católica, Forças
Armadas), depreende-se do relatório em questão que o Poder Judiciário só é mais confiável
que as Emissoras de TV, o Congresso Nacional e os Partidos Políticos, tendo ficado abaixo
do patamar da Polícia.
Para aqueles que não acionariam o Judiciário, ainda que houvesse necessidade, o
argumento mais frequente relaciona-se aos aspectos da administração da justiça,
considerando que 65% não o fariam por julgarem que a resolução do problema demoraria
muito, que seria caro ou porque não confiavam no Judiciário para a solução dos conflitos.
Alinhados com os dados estatísticos que demonstram o baixo índice de
confiabilidade da população na Justiça, Maria Teresa Sadek e Rogério Bastos Arantes28
,
avaliando o quadro de crise do Judiciário, observam que esta debilidade torna-se ainda
mais gritante quando se leva em consideração que apenas cerca de 33% das pessoas
envolvidas em algum tipo de conflito dirigem-se àquele ente estatal em busca de uma
solução para seus problemas. Tal dado é extremamente preocupante, uma vez que indica
tanto um descrédito na justiça quanto o fato de que, se a maior parte daqueles que
poderiam recorrer ao Judiciário o fizessem, o sistema estaria próximo ao colapso.
Apresentado o panorama da crise da Justiça brasileira, é preciso asseverar que: a)
elaborar políticas públicas no intento de concretizar o princípio da boa administração,
passa necessariamente pelas reformas legislativas, que têm ocorrido em larga escala, mas
não só. A razoável duração processual, por exemplo, não é uma oferta, ou melhor, um
resultado que se busca pelo fim, mas desde a gênese do processo. Partindo dessa
proposição, a tempestividade será uma realidade que se concretizará em todo o iter
processual; b) devam existir estatísticas qualitativas idôneas que avaliem o seu
desempenho e, principalmente, que seus dados sejam efetivamente considerados como
indicadores para se buscar a alta performance do seu sistema como um todo: da atividade
meio à atividade fim.
Em uma situação de crise, como a que se enfrenta no Judiciário e em outras áreas
da Administração Pública, não se pode mais admitir a ação episódica, apoiada na
28 SADEK, Maria Teresa; ARANTES, Rogério Bastos. A crise do judiciário e a visão dos juízes. Revista
USP, nº 21. São Paulo: USP, mar-abr. 1994, p. 39.
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metodologia do ensaio e erro, sendo imperioso que aquela se opere através de ações
estrategicamente planejadas com adequação aos meios e necessidades diagnosticadas na
realidade. A expertise necessária para lidar com o tema gestão tem sido olhada com muito
preconceito, o que pode ser concebido como verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento
racional da administração judiciária. Não há mais espaço para se insistir no modelo
técnico-burocrático, ou, ao menos, para se insistir naquilo que o referido modelo apresenta
de disfuncionalidade. Urge que se construa o Judiciário democrático, aberto à ampla
participação da sociedade e com magistrados, principalmente da alta cúpula, adredamente
preparados para que entendam não só entendam os novos signos das modernas técnicas de
gestão pública, mas também que compreendam a necessidade de sua aplicação na política
da administração judiciária e, uma vez internalizada essa cultura, passem a ter uma visão
sistêmica, integrada de seu funcionamento, saindo do isolamento científico, metodológico
e racionalizado, sendo considerado este último predicado, contemporaneamente, como
verdadeira patologia que conduz à simplificação do saber. De fato, a racionalização,
segundo Edgard Morin29
, encerra o real em um sistema de ideias coerentes, fato que induz
a que seja ignorada a ação dialógica da racionalidade. Com efeito, tudo aquilo que, no
mundo real, contradiz aquele sistema coerente é afastado. Assevera, ainda, aquele filósofo
que, com freqüência, a racionalização se desenvolve na própria mente dos cientistas e que
devemos lutar cem cessar contra a deificação da razão, sendo esta, entretanto, nossa única
ferramenta confiável, à condição de ser não só crítica, mas autocrítica.
Construído esse novo cenário, decerto se suavizarão, ou quiçá, desaparecerão os
contornos liberais absolutistas do Judiciário, dando lugar àqueles próprios de um Estado
democrático de direito, que conclama não ser lícito ao jurista se abrigar atrás dos muros da
técnica dogmática e formalista para isentar-se da responsabilidade, que é sua, em relação à
sociedade. Toda a sua ação e visão devem ser orientadas para esta, para o bem comum e
nunca para seu próprio interesse. Tem-se a semente de um raciocínio que, quiçá, até o final
do século XXI se desenvolverá por completo: a de que a legitimidade do agir estatal
repouse não só no fato de que sua ação se encontre coerente com o que preconiza a lei (ou
na oferta de serviço público que reverencie unicamente a quantidade), mas também na
sintonia com seus compromissos finalísticos e nos resultados qualificativos alcançados a
29 MORIN, Edgard. Introdução ao pensamento complexo. 4ª edição. Porto Alegre: Sulina, 2011., p. 70.
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partir de suas estratégias racionais e eficientes de atuação. Esperemos, pois, que o pêndulo
da história se movimente.
CONCLUSÃO
A existência de uma crise no Poder Judiciário é consenso. A questão, no entanto, é
que, diante da necessidade de se traçarem estratégias para superá-la, são muitas as vozes
que se levantam propondo caminhos diversos e muitas soluções são asseveradas. A
perquirição é complexa e não se esgota, por certo, numa ou noutra solução, considerando
que diversas são as concausas que interferem no sistema, devendo crescer a consciência de
que nenhuma ação e saber isolados são capazes de dar resposta efetiva ao problema. Se não
faltam remédios, o mesmo não se diga quanto à disposição de aglutiná-los de forma
racional, eficiente e, sobretudo, a partir da participação cívica. O estudo aponta como
resistência passiva às propostas de mudança a censura judicial desenvolvida sob forte
inspiração de aplicação de velhos paradigmas às novas realidades, mantendo os gestores do
Judiciário frente a estas uma postura conservadora, orientada pela obsoleta concepção de
ser o Estado o único detentor do conhecimento necessário para gerir as atividades que lhe
são inerentes. Tal postura funciona como bloqueio à exploração das propostas de novos
modelos relacionais, como o da governança, assim como de um modelo de gestão da
qualidade e, como resultado do emprego deste, de ações políticas permanentes, como a de
fomento aos meios complementares de acesso à justiça, que poderiam estar sendo
empregados para a obtenção de uma maior eficiência da administração judiciária. Tudo a
partir do indispensável aproveitamento da expertise de agentes qualificados ao
enriquecimento do processo de decisão e de uma alta cúpula adredemente preparada para a
elaboração de estratégias que levem em conta não só o aspecto quantitativo, mas a
qualidade do serviço prestado à sociedade.
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NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A LITISPENDÊNCIA INTERNACIONAL
Flávia Pereira Hill
Professora Adjunta de Direito Processual Civil da UERJ.
Mestre e Doutora em Direito Processual pela UERJ. Tabeliã.
RESUMO: O presente artigo propõe-se a analisar criticamente a vedação à litispendência
internacional contida no artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro à luz do direito
comparado, dos princípios fundamentais processuais e dos contornos da sociedade
globalizada contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Litispendência internacional; cooperação jurídica internacional;
Direito Processual Civil Transnacional.
ABSTRACT: The present study aims to critically examine the international “lis pendens”
prohibition described on the article 90 of the Brazilian Civil Procedure Code, taking into
consideration the comparative law, the fundamental rights and the characteristics of the
contemporary society.
KEY WORDS: International “lis pendens”; International Judicial Cooperation;
Transnational Civil Procedure.
1. Introdução.
O Direito Processual Civil vê-se atualmente premido por critérios, princípios e
influências de diferentes ordens que lhe impõem profundas marcas e despertam para a
reflexão em torno de institutos que tradicionalmente encontravam-se tranquilamente
acomodados.
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A prova da veracidade dessa afirmação encontra-se, antes de mais nada, no fato de
que estamos na chamada fase instrumentalista ou teleológica da ciência processual, a qual
rechaça uma visão exclusivamente jurídica e autocentrada dos institutos processuais,
clamando, ao contrário, por seu arejamento, de modo a que se abram as janelas para que os
princípios processuais aclarem o exame dos conceitos processuais outrora assentados1. Já
não bastam belos conceitos, se estes não se coadunarem com os escopos para os quais
foram criados e não se prestarem a atingi-los com efetividade. Imergimos em uma
atmosfera que nos impinge um forte (e permanente) espírito crítico e reflexivo a respeito
dos institutos processuais.
Encontra-se no centro da tônica o Direito Processual como garantidor do acesso à
justiça, sendo este o mínimo existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, o
mais basilar dos princípios fundamentais23
-4.
O eixo central de pensamento do Direito Processual moderno desloca-se, assim, para
o jurisdicionado, o destinatário da prestação jurisdicional.
O Direito Processual encontra o seu fundamento no atendimento dos anseios e
expectativas do jurisdicionado e dele extrai a sua renovada legitimidade ao longo dos
tempos.
E o jurisdicionado contemporâneo encontra-se, por sua vez, imerso em uma
sociedade globalizada, da qual eclode um número crescente de litígios cujos contornos
transcendem os limites políticos dos Estados.
1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. São Paulo: Malheiros.
2001. pp. 252-274. 2 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2011. pp. 243-244. 3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. Ed. São Paulo: Saraiva. 2010. pp. 336-337. 4 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível no endereço
eletrônico: www.mundojuridico.com.br. Consulta realizada em 10/02/2012.
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Essa nova realidade se impõe de forma irretorquível e exige que os institutos
processuais sejam examinados sob sua ótica, sob pena de se presenciar uma delicada crise
de legitimidade do Direito Processual, decorrente do afastamento entre os instrumentos
processuais e a sociedade que deles é destinatária e à qual devem servir.
Nesse contexto, um dos institutos processuais que, a nosso sentir, merece nova
reflexão à luz dos novos parâmetros que hoje regem a ciência processual consiste na
litispendência internacional, mais especificamente a sua vedação, prevista no artigo 90 do
Código de Processo Civil em vigor, que remonta a 1973, ou seja, exatas quatro décadas
atrás.
Vejamos, guardados os estreitos limites deste trabalho, quais os principais fatores a
serem considerados ao se empreender essa nova abordagem do tema.
2. A rejeição à litispendência internacional no artigo 90 do CPC de 1973.
O Código de Processo Civil de 1973, atualmente em vigor, rechaça a existência de
litispendência internacional em seu artigo 90. Isso importa afirmar ser perfeitamente
autorizado ao jurisdicionado deflagrar ações idênticas — segundo a teoria da tríplice
identidade (tria eadem), com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de
pedir5 — perante o Poder Judiciário de Estados diversos, caso o mérito corresponda à
competência internacional concorrente (artigo 88 do CPC de 1973)6.
O teor do artigo 90 vem sendo aceito, desde a entrada em vigor do diploma
processual, com considerável tranquilidade pelos processualistas brasileiros7-
8 e ressoa,
5 Tendo em vista que o presente trabalho não se propõe a analisar os elementos da demanda e as suas
diferentes teorias, cingimo-nos, nesta sede, a adotar a clássica referência à teoria da tríplice identidade, que
consiste no critério identificador mais amplamente utilizado. 6 Tratando-se de competência internacional exclusiva do Poder Judiciário Brasileiro, contemplada no artigo
89 do CPC/1973, não há que se falar em repetição de ações em Estados diversos, visto que será competente,
com exclusividade, o Judiciário brasileiro, afastando-se a competência dos tribunais dos demais países. 7 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 52. Ed. Rio de Janeiro:
GEN Forense. 2011. p. 172. 8 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. Op. Cit. P. 344.
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igualmente em uníssono, na jurisprudência, seja do Supremo Tribunal Federal9, seja, com o
advento da Emenda Constitucional no 45/2004, do Superior Tribunal de Justiça
10.
Justifica-se o teor do artigo 90 com a (inquietante) afirmação de que ao Brasil é
“indiferente” que penda ação idêntica (“bis in idem”) perante o Judicário de outro país.
Tratar-se-ia, portanto, de um problema “dos outros”, em nada importando ou repercutindo
para nós.
Prossegue-se a justificativa reafirmando o conceito tradicional de soberania, sob a
alegação de que ao Brasil interessaria apenas reafirmar a sua soberania mediante o
prestígio à sua jurisdição nacional, por ser esta um poder estatal.
Merece destaque o seguinte e emblemático trecho de julgado do Supremo Tribunal
Federal, citando respeitável doutrina pátria, in verbis:
“Mostra-se relevante, no contexto ora em exame, a norma
inscrita no art. 90 do CPC que consagra a prevalência da
competência internacional da autoridade judiciária brasileira
sobre processos em curso no exterior ou sobre decisões já
proferidas por tribunais estrangeiros, ainda que com trânsito
em julgado, pois, enquanto não sobrevier a homologação,
pelo Supremo Tribunal Federal, do ato sentencial alienígena,
inexistirá qualquer obstáculo a que a Justiça do Brasil
conheça da mesma causa e de todas aquelas que, com ela,
guardem relação de conexidade. Neste sentido, cabe ter
presente a observação feita por NELSON NERY JUNIOR e
por ROSA MARIA ANDRADE NERY (“Código de
Processo Civil Comentado", p. 542, 4ª ed., 1999, RT):
‘Enquanto a autoridade brasileira for competente, na forma
9 STF. SEC 5778, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12/05/2000, publicado em DJ 19/05/2000 PP-00028. 10 STJ. SEC 4933/EX, Rel. Ministra ELIANA CALMON, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/12/2011, DJe
19/12/2011.
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do CPC 88 I a III e 89 I e II, e não houver homologação da
sentença estrangeira no Brasil (CF 102 I h), remanesce para o
Estado brasileiro o poder de julgar a causa já ajuizada (não se
induz litispendência), ou já julgada (não se reconhece coisa
julgada) em outro país. (...) À justiça brasileira é indiferente
que se tenha ajuizado ação em país estrangeiro, que seja
idêntica a outra que aqui tramite. O juiz brasileiro deve
ignorá-la e permitir o regular prosseguimento da ação. (...)
Mesmo que a ação já tenha sido decidida no país estrangeiro,
com trânsito em julgado, tal circunstância deve ser ignorada
pelo juiz brasileiro. Somente depois de homologada pelo STF
(CF 102 I h; CPC 483 e 484) é que a sentença estrangeira terá
eficácia no Brasil’.” (SEC 5778, Relator(a): Min. CELSO DE
MELLO, julgado em 12/05/2000, publicado em DJ
19/05/2000 PP-00028)
Lamentamos que o disposto no artigo 90 do CPC de 1973 seja praticamente
reproduzido no artigo 24 do Projeto de novo Código de Processo Civil, em tramitação11
.
Corre-se o risco de perder uma valiosa oportunidade de se admitir a litispendência
internacional em nosso ordenamento. Chama a atenção o fato de que, logo a seguir, nos
artigos 26 e 27, o Projeto curiosamente cuida da Cooperação Internacional que, a nosso
sentir, corrobora precisamente a admissão da litispendência internacional, conforme
esclareceremos ao longo deste estudo.
Parece-nos que a aparente tranquilidade com que o tema vem sendo tratado nas
últimas quatro décadas12
, tanto pela doutrina amplamente majoritária quanto pela
jurisprudência pátrias, não reflete a miríade de fatores que sobre ele converge e que o torna
um tema complexo e digno de nova reflexão, conforme pontuaremos a seguir.
11 Toma-se, aqui, em referência o texto do Projeto de novo CPC após a Emenda Aglutinativa Global aos
Projetos de Lei no 6.025, de 2005, e no 8.046, de 2010, ambos do Senado Federal. 12 O interregno de quarto décadas, para um tema flagrantemente suscetível às influências do cenário
internacional, já não representaria, por si só, um forte indício de que este merece uma nova reflexão, se
considerarmos as profundas mudanças decorrentes do fenômeno da globalização?
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3. O crescente isolacionismo da solução trazida pelo artigo 90 do CPC de 1973.
Ao se investigar o tema, constata-se, a partir das clássicas lições de Haroldo
Valladão, que, em verdade, a solução trazida pelo artigo 90 do CPC de 1973 nem sequer
reflete a tradição brasileira a respeito da litispendência internacional, mas, ao contrário,
com ela rompe13
.
Ademais de o Código de Processo Civil de 1939 não trazer disposição semelhante,
em 1928, o Brasil já aderira ao Código Bustamante, que, em seu artigo 394, admite a
litispendência internacional14
. Entende-se majoritariamente que o referido tratado
prevalece até hoje, entre os países signatários, sobre a vedação inscrita no artigo 90 do
CPC brasileiro, sendo, pois, admissível a litispendência internacional entre tais Estados15
.
A litispendência internacional também é reconhecida pelo Brasil enquanto membro
do Mercosul. O Protocolo de Las Leñas, ratificado por nosso país, admite, em seu artigo
2216
, a litispendência internacional entre seus países signatários, notadamente Argentina,
Paraguai, Uruguai, além do Brasil.
Acrescente-se que até mesmo a norma que inspirara o artigo 90 do CPC brasileiro17
,
notadamente o artigo 3º do Código de Processo Civil Italiano de 1940, foi revogada pela
13 VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. 3. 5. Ed. 1980. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
1978. P. 143. 14 CÓDIGO BUSTAMANTE. “Artigo 394. A litispendência, por motivo de pleito em outro Estado contratante, poderá ser alegada em matéria cível, quando a sentença proferida em um deles, deva produzir no
outro os efeitos de coisa julgada.” 15 GRECO, Leonardo. “A competência internacional da justiça brasileira”. In Revista da Faculdade de
Direito de Campos. Ano VI, n. 7. Dezembro de 2005. P. 187. 16 PROTOCOLO DE LAS LEÑAS. “Artigo 22. Quando se tratar de uma sentença ou de um laudo arbitral
entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos, e que tenha o mesmo objeto de outro processo
judicial ou arbitral no Estado requerido, seu reconhecimento e sua executoriedade dependerão de que a
decisão não seja incompatível com outro pronunciamento anterior ou simultâneo proferido no Estado
requerido. Do mesmo modo não se reconhecerá nem se procederá à execução, quando se houver iniciado um
procedimento entre as mesmas partes, fundamentado nos mesmos fatos e sobre o mesmo objeto, perante
qualquer autoridade jurisdicional da Parte requerida, anteriormente à apresentação da demanda perante a autoridade jurisdicional que teria pronunciado a decisão da qual haja solicitação de reconhecimento.” 17 CELLI JUNIOR, Umberto. “Litispendência internacional no Brasil e no Mercosul”. In Revista Brasileira
de Direito Processual. Belo Horizonte: Editora Fórum. Ano 19, n. 76, outubro a dezembro de 2011. P. 220.
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Lei no 218 de 1995. Este diploma reformou o sistema italiano de Direito Internacional
Privado, passando a admitir a litispendência internacional em seu artigo 7º18
.
O isolacionismo da solução contemplada no CPC brasileiro mostra-se flagrante ao se
comparar o nosso ordenamento jurídico com aquele de países como Alemanha, Áustria,
França e Suíça, além da Itália, conforme destacado, todos a admitir a litispendência
internacional19-20
.
A litispendência internacional é tradicionalmente admitida pela União Europeia.
A Convenção de Bruxelas de 1968, em seu artigo 2121
, dispõe que o tribunal do
Estado-membro perante o qual tenha sido ajuizada ação idêntica em segundo lugar a
suspenda até que o tribunal do outro Estado-membro examine a sua própria competência.
O Regulamento (CE) no 44/2001, que trata da competência, do reconhecimento e da
execução de decisões em matéria civil e comercial, igualmente admite, no artigo 2722
, a
litispendência internacional entre os Estados-membros da União Europeia.
18 Lei Italiana no 218/1995 “Art. 7. Pendenza di un processo straniero. 1. Quando, nel corso del giudizio, sia
eccepita la previa pendenza tra le stesse parti di domanda avente il medesimo oggetto e il medesimo titolo
dinanzi a un giudice straniero, il giudice italiano, se ritiene che il provvedimento straniero possa produrre
effetto per l'ordinamento italiano, sospende il giudizio. Se il giudice straniero declina la propria giurisdizione
o se il provvedimento straniero non è riconosciuto nell'ordinamento italiano, il giudizio in Italia prosegue,
previa riassunzione ad istanza della parte interessata. 2. La pendenza della causa innanzi al giudice straniero
si determina secondo la legge dello Stato in cui il processo si svolge. 3. Nel caso di pregiudizialità di una
causa straniera, il giudice italiano può sospendere il processo se ritiene che il provvedimento straniero possa
produrre effetti per l'ordinamento italiano.” 19 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. Cit. Merece destaque a seguinte passagem, in verbis: “Essa mudança
profunda trazida pela Lei no 218/1995, que põe a Itália em sintonia com a inelutável necessidade do mundo
contemporâneo de crescente cooperação judicial entre os países, deveria servir de reflexão para o legislador brasileiro, tendo em vista o fato de que o art. 90 do CPC/73, que veda a litispendência internacional, como se
verá mais adiante, é cópia fiel das revogadas disposições do antigo Código de Processo Civil Italiano. Vale
notar também que países como a Alemanha e a Áustria também aceitam a exceção de litispendência
internacional no processo, ‘não diferenciando se uma primeira ação já é pendente no país ou no estrangeiro’.
Na Suíça, admite-se a ‘litispendência internacional tão-somente quando existam expectativas de que o juiz
alienígena profira decisão dentro de um prazo razoável’.” P. 225. 20 PASSOS, Marcos Fernandes. “Breves comentários acerca de competência e de litispendência
internacionais”. In Revista SJRJ. Rio de Janeiro, v. 31. Agosto 2011. pp. 59-73. 21 Convenção de Bruxelas. “Artigo 21. Quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e
entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados Contratantes, o
tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar.Quando estiver
estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal
declarase incompetente em favor daquele.”
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Recentemente, foi editado o Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12/12/2012, que
alterou o citado Regulamento no 44/2001 e que será aplicado a partir de 10/01/2015, o qual
dispõe, em seu artigo 33º23
, que o tribunal do Estado-membro pode suspender, inclusive de
ofício, um processo de sua competência internacional concorrente, caso seja previsível que
o tribunal do país terceiro profira decisão passível de ser reconhecida e executada
internamente em seu país e a suspensão seja necessária para a correta administração da
justiça.
A referida norma dispõe que o tribunal do Estado-membro pode dar prosseguimento
ao processo a qualquer momento se (a) o tribunal do país terceiro tiver suspendido ou
encerrado a ação perante si ajuizada; (b) se o tribunal do Estado-membro considerar
improvável que a ação em curso perante tribunal do país terceiro seja concluída em um
prazo razoável; ou (c) for necessário dar prosseguimento ao processo, internamente, para
garantir a correta administração da justiça.
Por fim, o artigo 33º autoriza que o tribunal do Estado-membro decrete a extinção da
ação ajuizada internamente, se o processo instaurado perante o tribunal do país terceiro
tiver sido concluído e resultar em uma decisão passível de reconhecimento e de execução
nesse Estado-membro.
22 Regulamento (CE) no 44/2001 “Artigo 27.1. Quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de
pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados-Membros, o
tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja
estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar. 2. Quando estiver
estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal
declara-se incompetente em favor daquele.” 23 Regulamento (UE) nº 1215/2012 “Artigo 33o. 1. Se a competência se basear nos artigos 4o ,7o, 8o ou 9o e estiver pendente uma ação num tribunal de um país terceiro no momento em que é demandado o
tribunal de um Estado-Membro numa ação com a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes que a
ação no tribunal do país terceiro, o tribunal do Estado-Membro pode suspender a instância se: a) For
previsível que o tribunal do país terceiro profira uma decisão passível de ser reconhecida e,
consoante os casos, executada no Estado-Membro em causa; e b) O tribunal do Estado-Membro
estiver convencido de que a suspensão da instância é necessária para a correta administração da
justiça. 2. O tribunal do Estado-Membro pode dar continuação ao processo a qualquer momento se: a)
A instância no tribunal do país terceiro tiver sido suspensa ou encerrada; b) O tribunal do Estado-
Membro considerar improvável que a ação no tribunal do país terceiro se conclua num prazo razoável; ou
c) For necessário dar continuação ao processo para garantir a correta administração da justiça. 3. O
tribunal do Estado-Membro encerra a instância se a ação no tribunal do país terceiro tiver sido concluída e resultar numa decisão passível de reconhecimento e, se for caso disso, de execução nesse
Estado-Membro. 4. O tribunal do Estado-Membro aplica o presente artigo a pedido de qualquer das
partes ou, caso a lei nacional o permita, oficiosamente.”
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Constata-se, assim, que a União Europeia, que se encontra na proa do moderno
pensamento jurídico-processual, atualmente admite a litispendência internacional
envolvendo países terceiros, não apenas entre os seus Estados-membros.
O Regulamento (UE) nº 1215/2012 afigura-se, de fato, mais vanguardista e elogiável
do que se poderia, à primeira vista, inferir.
Merece destaque que a norma comunitária reconhece que a noção de “correta
administração da justiça” deve envolver não apenas elementos internos de um dado país ou
bloco regional, mas sim todos os seus desdobramentos, ainda que perante países terceiros.
Ou seja, não se pode ser categórica e peremptoriamente “indiferente” à repetição de uma
mesma ação, com a movimentação estéril e não raro desleal da máquina judiciária, pelo
simples fato de que esta fora ajuizada perante o Poder Judiciário de outro país.
O mencionado Regulamento recomenda que o magistrado avalie, in casu, a
probabilidade de que seja proferida decisão pelo tribunal estrangeiro que possa vir a ser
executada internamente. Trata-se de exigir do magistrado contemporâneo uma conduta
compatível com a realidade à sua volta. Se os litígios oferecem, cada vez mais, contornos
transnacionais, é preciso que o magistrado passe a lidar e a considerar seriamente esses
fatores.
Novos desafios à correta administração da justiça são impostos pela sociedade
globalizada, dentre eles a maior probabilidade de que sejam propostas ações idênticas
perante Estados diversos. E não se mostra uma postura sadia e consciente simplesmente
ignorar essa realidade, supondo que tal postura traria menos inconvenientes ao Judiciário
nacional. Ledo engano.
Primo occuli, podemos pensar que seria mais trabalhoso ao magistrado nacional
proceder à avaliação prevista no Regulamento (UE) nº 1215/2012 do que fechar os olhos
para a questão e permitir, invariavelmente, o prosseguimento do processo.
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No entanto, essa suposição não resiste a um olhar um pouco mais detido.
Com o substancial aumento do número de litígios transnacionais, em decorrência do
incremento das relações entre empresas e cidadãos de diferentes países, forçoso convir que
o ajuizamento de ações repetidas em diferentes países tende igualmente a se avolumar.
Portanto, o que outrora poderia seria considerado uma repetição ocasional e rara, que mais
valesse a pena ser ignorada, atualmente deve ser levada a sério.
Do contrário, o Poder Judiciário de cada país tende a, cada vez mais, deixar-se
movimentar para julgar uma ação que já se encontra em curso perante o Judiciário de outro
país (concorrentemente competente sob o critério internacional). A movimentação
(desnecessária) do Poder Judiciário na atualidade é um verdadeiro luxo ao qual nenhum, ou
quase nenhum, país do mundo pode se dar, considerando-se as queixas e as inúmeras
propostas para se contornar a sobrecarga e a demora na solução dos processos judiciais em
diferentes partes do globo. Prova de que esse problema aflige inclusive países europeus
reside nas reiteradas condenações proferidas pela Corte Europeia de Direitos Humanos em
virtude da excessiva demora dos processos judiciais.
Ora, se o volume de litígios transnacionais se agiganta, fazendo surgir novos desafios
e também mazelas para os tribunais nacionais, como é o caso da repetição de ações em
diferentes países, os tribunais devem igualmente acompanhar essas mudanças, sobre elas
refletindo e reagindo. Isso implica em avaliar seriamente a litispendência internacional,
verificando se, em cada caso concreto, realmente se justifica a movimentação da máquina
judiciária de dois Estados diversos.
Age com particular acerto a União Europeia ao empreender uma visão global da
Administração da Justiça.
De fato, no mundo globalizado contemporâneo, do qual emergem litígios que podem,
em tese, ser ajuizados em diferentes países, trata-se não apenas de uma postura afinada
com os princípios processuais fundamentais, mas, mais pragmaticamente, quase de uma
questão de sobrevivência que os tribunais nacionais se enxerguem mutuamente como
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exercentes todos de uma mesma função, a função jurisdicional, e desenvolvam um espírito
colaborativo e coordenado.
No cenário internacional de nossos dias, ignorar os desdobramentos internacionais
por supor tratar-se de um problema “dos outros” poderá acarretar surpreendentes
consequências internas, como movimentação desnecessária do Judiciário local, já
assoberbado, chancelamento de condutas desleais das partes e enfraquecimento da
cooperação jurídica internacional, que funciona em um sistema de mão dupla entre os
países.
Atualmente, muito se fala sobre coooperação jurídica internacional. Pois bem, a
litispendência internacional é, essencialmente, questão de cooperação jurídica
internacional24
.
Desenvolver um espírito cooperativo não é decantar a sua beleza teórica, mas, ao
revés, adotar práticas reiteradas que o implementem e desenvolvam na prática. A
cooperação jurídica internacional exige uma mudança de postura prática na condução e na
solução dos litígios, que leve em conta, e a sério, a existência de tribunais estrangeiros
concorrentemente competentes e os veja como colaboradores para a adequada entrega da
prestação jurisdicional ao cidadão. Sublinhe-se que, em Direito Processual, a prestação
jurisdicional é referida sempre no singular, não no plural. Falar em “prestações
jurisdicionais” revela o desafino de tais palavras e descortina as suas anomalia e
excepcionalidade.
Verifica-se, assim, que o disposto no artigo 90 do Código de Processo Civil
brasileiro de 1973, ao rejeitar a litispendência internacional, já destoava, à época da edição
desse diploma, da tradição nacional, e o decorrer dessas quatro décadas apenas demonstrou
o quão isolada tal disposição passou a ser, seja se comparada com os tratados assinados
pelo Brasil, seja com os ordenamentos jurídicos de outros países.
24 Nesse sentido, PASSOS, Marcos Fernandes. Op. cit. P. 68.
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É por tais razões que Umberto Celli Junior afirma, com razão, que o artigo 90 do
CPC brasileiro, com suas “anacrônicas disposições”, “é incompatível com a atual projeção
do país em um contexto irreversível de globalização e interdependência econômica e
comercial entre os países”25
.
4. Regressando às origens: o instituto da litispendência e a sua dupla finalidade.
De novo e mais uma vez, ressaltamos nesta sede o que vimos propugnando alhures:
os litígios com feição que extrapolam os limites políticos de um Estado não podem ser
relegados aos porões do Direito Processual. Ou melhor: o edifício do Direito Processual
contemporâneo não mais admite porões. Todos os seus institutos devem ser iluminados e
arejados pelos princípios fundamentais processuais, especialmente pelo compromisso
último dessa ciência com a efetividade do processo, a exigir que todos os seus institutos
processuais estejam permanentemente comprometidos com as suas finalidades, ou seja,
que sirvam adequada e eficazmente aos propósitos para os quais foram criados.
Os institutos processuais não existem por existir, como figuras teoricamente belas e
meramente decorativas, mas com finalidades precisas a serem perquiridas, com funções
definidas que os colocam como engrenagens à serviço do concreto alcance do fim último
da ciência processual: garantir o acesso à justiça com efetividade.
E não existem “processos de segunda categoria”, pois isso significaria admitir a
existência, em pleno século XXI, de “jurisdicionados de segunda categoria”, com
inadmissível quebra de isonomia; todos os processos instaurados devem ser devidamente
considerados e inseridos como objeto de preocupação e exame da ciência processual.
Os litígios transnacionais não têm como ser relegados a um suposto “segundo
patamar” ou ser escondidos nos (inadmissíveis e, espera-se, inexistentes) porões da ciência
processual, à margem dos compromissos acima indicados. Essa postura já seria
insustentável caso tais litígios representassem um volume diminuto e, agora mais do que
25 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. cit. p. 232.
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nunca, com o grande aumento de seu volume nas últimas décadas, salta aos olhos a sua
total inviabilidade.
Diga-se diretamente: deixar de render aos litígios transnacionais as mesmas
preocupações que rendemos aos litígios essencialmente internos representa fazer injustiça a
um número cada vez maior de jurisdicionados.
Portanto, também aqui precisamos dar um passo atrás e voltar às origens do instituto
da litispendência.
As duas razões primordiais pelas quais o instituto da litispendência foi concebido
são: (a) economia processual, evitando o “desperdício de energia jurisdicional que
derivaria do trato da mesma causa por parte de vários juízes”; e (b) evitar soluções
contraditórias26
.
Pois bem. As duas finalidades acima descritas não estão infensas a vulnerações
quando se trate de litígios transnacionais.
Há sim movimentação desnecessária do Poder Judiciário brasileiro quando damos
prosseguimento a uma ação já em curso alhures, que verse sobre matéria de nossa
competência internacional concorrente e haja elementos indicativos de que a decisão
estrangeira reúna condições de ser reconhecida e executada internamente em nosso país.
Podemos até preferir — como vimos preferindo — ignorar o fato de que, rechaçando a
litispendência internacional, acabamos por contribuir para o ainda maior assoberbamento
de nosso Judiciário, mas essa é uma realidade concreta; não é por fingirmos não vê-la que
ela deixa de existir.
Opta-se, assim, por prosseguir com uma fase de conhecimento, que demanda do juiz
brasileiro o dispêndio de longos anos e de muitas energias, paralelamente a esforço
equivalente que é empreendido por magistrado de outro país, quando seria autorizado ao
26 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. Op. cit. P. 282.
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Judiciário brasileiro intervir nesse litígio apenas em sua fase final, para fins de
reconhecimento e execução da decisão estrangeira.
Entendemos que a melhor solução consiste em, adotando-se os prudentes critérios
traçados no Regulamento no 1215/2012 da União Europeia, admitir que o magistrado
brasileiro, verificando que a ação de sua competência internacional concorrente é idêntica
a outra ajuizada anteriormente perante o Judiciário de outro país, empreenda um exame
perfunctório da causa estrangeira, verificando a probabilidade de que, naquela ação, seja
proferida decisão passível de ser reconhecida e executada internamente no Brasil. Em caso
afirmativo, recomenda-se a suspensão da ação em curso no Brasil, a bem da correta
administração da justiça.
De fato, o magistrado brasileiro empreenderá uma verificação prévia acerca do
futuro juízo de delibação a ser exercido pelo Superior Tribunal de Justiça. E consideramos
não haver qualquer impedimento quanto a esse salutar expediente. Não estará o magistrado
brasileiro usurpando a competência do E. STJ e a sua avaliação, por óbvio, não será
vinculante para aquele Tribunal Superior. Esse prudente exame servirá apenas para que o
magistrado brasileiro possa exercer corretamente a sua competência internacional
concorrente, bem gerindo o processo perante si ajuizado. Tal avaliação será fundamental
para que o magistrado “a quo” decida se deve ou não suspender a ação brasileira.
Candido Rangel Dinamarco admite que o magistrado brasileiro proceda a uma
avaliação prévia acerca do futuro juízo de delibação a ser exercido pelo STJ, a fim de
suspender a ação brasileira em curso, desde que já tenha sido proferida decisão transitada
em julgado nos autos do processo estrangeiro27
. Ou seja, o mencionado processualista
admite que o magistrado de instância inferior realize tal exame prévio, com o que
concordamos inteiramente.
No entanto, divergimos de tal posicionamento em um aspecto. Entendemos que tal
avaliação pode e deve ser feita não apenas quando já haja decisão estrangeira transitada em
julgado, portanto apta a ser objeto de ação de homologação de sentença estrangeira perante
27 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. Op. Cit. P. 346.
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o STJ. Antes disso, estando pendentes duas ações idênticas, uma perante o Poder Judiciário
brasileiro e outra perante o estrangeiro, é de todo recomendável que o magistrado
brasileiro, verificando que a ação em curso em nosso país foi ajuizada posteriormente,
proceda a tal verificação.
Registremos que a posição defendida por Dinamarco já se mostra mais avançada do
que aquela sustentada pelas doutrina e jurisprudência majoritárias de nosso país, pois, para
elas, prevalece — a todo custo e ao arrepio de quaisquer outros valores ou princípios
envolvidos — a competência internacional concorrente brasileira, ao argumento antes
destacado de pura preservação da soberania, sequer se admitindo que o magistrado pátrio
cogite suspender o processo em curso no Brasil, independentemente da fase em que se
encontre o processo estrangeiro, vale dizer, ainda que haja decisão estrangeira transitada
em julgado.
Segundo o entendimento majoritário, o STJ deve, inclusive, negar homologação a
uma decisão estrangeira transitada em julgado, ainda que ela reúna todos os requisitos
legais pertinentes, caso tenha sido proferida uma decisão pelo Judiciário brasileiro, mesmo
que seja uma simples decisão acautelatória28
-29
.
Portanto, pugnamos por entendimento diverso daquele hoje prevalecente em nosso
país, pois consideramos recomendável que o Poder Judiciário brasileiro adote uma postura
cooperativa e coordenada em relação ao Poder Judiciário estrangeiro, mediante uma
28 “SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. ACORDO DE DIVÓRCIO E GUARDA DOS FILHOS
MENORES. SENTENÇA PROFERIDA PELA JUSTIÇA BRASILEIRA EM RELAÇÃO À GUARDA.
IMPOSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO NESSE PONTO. PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. 1. De acordo com o art. 35 do ECA, a guarda poderá ser revogada a qualquer tempo por meio de decisão judicial
fundamentada, ouvido o Ministério Público. 2. A existência de sentença da Justiça brasileira sobre a guarda
dos filhos menores impossibilita a homologação do provimento judicial estrangeiro que lhe contrarie, mesmo
que seja prolatada após o trânsito em julgado da decisão a qual se pretende homologar. Nesses casos, deve-se
preservar a soberania nacional. Precedentes. 3. Devidamente apresentada a documentação exigida e
inexistindo óbices na ordem jurídica interna, é possível a homologação da sentença estrangeira apenas quanto
à dissolução da sociedade conjugal. 4. Pedido de homologação de sentença estrangeira deferido em parte.”
STJ. SEC 4.830/EX, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/09/2013, DJe
03/10/2013. 29 HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA. VISITAÇÃO E HOSPEDAGEM DE FILHO
BRASILEIRO. TEMA APRECIADO PELA JUSTIÇA PÁTRIA.- Não se pode homologar sentença estrangeira envolvendo questão decidida pela Justiça brasileira. Nada importa a circunstância de essa decisão
brasileira não haver feito coisa julgada. STJ. SEC .819/FR, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE
BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 30/06/2006, DJ 14/08/2006, p. 247.
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prudente avaliação do caso concreto, a fim de que sejam bem ponderados todos os valores
e princípios envolvidos no litígio em questão.
Essa avaliação deve ser feita caso a caso, segundo as peculiaridades concretas, mas,
em tese, pode e deve ser feita, a fim de evitar um delicado e censurável “bis in idem” entre
ação ajuizada no Brasil e outra idêntica ajuizada no exterior e que possa (e deva) vir apenas
a ser executada em nosso país.
Antes que se pense que a admissão da litispendência internacional feriria de morte a
higidez dos interesses nacionais, recordem-se dois pontos. A uma, cogita-se da
litispendência internacional apenas quanto a matérias de competência internacional
concorrente do Brasil (art. 88, CPC), não havendo que se falar quanto a matérias de sua
competência internacional exclusiva (art. 89, CPC). Portanto, apenas seria possível pensar
na ocorrência de litispendência internacional quanto a ações estrangeiras que versem sobre
matéria que, segundo a própria legislação brasileira, também poderiam ser julgadas por
tribunais alienígenas.
A duas, o juízo de delibação exercido pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I,
“i”, CF/1988) tem por escopo justamente evitar que sejam executadas em nosso país
decisões estrangeiras que afrontem a ordem pública e a soberania nacional (requisitos
negativos)30
.
Portanto, antes de reconhecer a existência de litispendência internacional e suspender
ou extinguir o processo instaurado perante o nosso Poder Judiciário, o magistrado
brasileiro verificará se o tribunal estrangeiro é concorrentemente competente para o
julgamento do pedido e se eventual decisão proferida por este provavelmente poderá ser
executada em nosso país, por não violar a ordem pública e a soberania nacional. Não se
trata, pois, de um “cheque em branco”, mas de uma prudente análise do caso concreto
empreendida pelo magistrado competente para o exame da causa em nosso país.
30 A respeito dos requisitos para a homologação de decisões estrangeiras: HILL, Flávia Pereira. A
antecipação da tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Rio de Janeiro: GZ Editora.
2010. pp. 43-62.
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Em linhas gerais, a mesma lógica e os mesmos critérios que norteiam a nossa postura
com vistas a admitir a execução de uma decisão estrangeira no Brasil pautarão o
reconhecimento de litispendência no caso concreto. Se provavelmente uma dada decisão
estrangeira poderá ser executada em nosso país, então, emerge a desnecessidade de que
prossiga o curso de uma ação idêntica deflagrada perante o Judiciário brasileiro.
A afronta, em tais circunstâncias, da primeira finalidade do instituto da
litispendência, notadamente a economia processual, é flagrante. Trata-se de um extremo
luxo que claramente não pode ser suportado pelo nosso Poder Judiciário, que luta
diuturnamente contra a sua sobrecarga de trabalho e a duração excessiva dos processos,
com a implementação de reformas processuais, mecanismos de filtragem de recursos e
adoção dos precedentes, reestruturação de seus órgãos, estipulação de prazos e das
chamadas “Metas” para a solução das causas, dentre outras variadas medidas.
Nem se diga que mais vale repetir, no Brasil, o julgamento da causa instaurada
perante o Judiciário de outro país, mesmo presentes os elementos acima indicados, em pura
homenagem e reafirmação do conceito tradicional de soberania nacional.
Data venia, não vislumbramos como a repetição pura e simples do julgamento de
uma causa pelo Judiciário brasileiro, em afronta à economia processual e à boa
administração da justiça, possa significar vantagem real para nosso país. Mormente porque
afronta à soberania nacional tudo indica que a solução trazida pelo Judiciário estrangeiro
não representará, já que este consiste justamente em um dos requisitos negativos do juízo
de delibação, que cumpre ao magistrado brasileiro analisar perfunctoriamente antes de
reconhecer a litispendência internacional.
A admissão da instauração concomitante de uma mesma ação perante o Poder
Judicário de dois países concorrentemente competentes deve ser algo excepcional em
nossos dias, ancorada em fundamentos consistentes e de elevada estatura. Essa postura
voltada à livre admissão da repetição de ações, em si mesma, não se presta em absoluto a
reafirmar ou fortalecer a soberania nacional.
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Rememore-se, em brevíssimas palavras, o que tivemos a oportunidade de
desenvolver com mais vagar em outras paragens31
-32
. Atualmente, em uma sociedade
intensamente ligada no âmbito internacional, o conceito de soberania adotou novas
roupagens, passando cada país a reconhecer que não está isolado no mundo e que depende,
cada vez mais, de relações saudáveis e cooperativas com os outros Estados. Não se afirma
isso com um tom ingênuo, mas sim em reconhecimento a um “espírito de sobrevivência e
autopreservação” dos países no cenário atual. Por conseguinte, afirmar que a litispendência
internacional deva ser peremptoriamente rechaçada como pura afirmação do que
erroneamente se intitula soberania nacional consiste, a nosso sentir, em um desserviço para
as relações internacionais e para a cooperação jurídica internacional envolvendo o nosso
país.
A segunda finalidade do instituto da litispendência, qual seja, evitar decisões
contraditórias, também se mantém vulnerável quanto aos litígios transnacionais, em
decorrência da absoluta vedação à litispendência internacional.
Instaurando-se ações idênticas paralelamente perante o Poder Judiciário de países
concorrentemente competentes, há o risco concreto de que sejam proferidas decisões
judiciais contraditórias entre si. E, conforme analisado acima, em circunstâncias tais que a
decisão estrangeira reuniria condições de ser executada em nosso país.
Nem se argumente que o simples fato de uma decisão estrangeira poder vir a
solucionar diversamente um dado litígio consista em fundamento bastante para justificar
que ela deva ser simplesmente ignorada.
Valhamo-nos do raciocínio empreendido para fins de exercício do juízo de delibação.
Neste, não cabe ao Judiciário brasileiro reexaminar o mérito da decisão estrangeira, para
fins de avaliar se, caso a pretensão fosse solucionada em nosso país, a solução teria sido a
mesma dispensada alhures. Incumbe ao Judiciário de nosso país verificar apenas se o
31 HILL, Flávia Pereira. A antecipação da tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Op.
Cit. pp. 93-97. 32 HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como forma de acesso à justiça no século XXI:
os reflexos e desafios da sociedade contemporânea para o Direito Processual Civil e a concepção de um
Título Executivo Transnacional. Rio de Janeiro: GZ Editora. 2013. Especialmente itens 4.3 e 4.4, pp. 60-73.
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tribunal estrangeiro é competente, se a decisão alienígena viola a ordem pública e a
soberania nacional, além da presença de outros requisitos legais, como citação válida. Não
se imiscui o Superior Tribunal de Justiça no mérito da decisão estrangeira. Esse é
precisamente um dos pilares da cooperação jurídica internacional.
Reafirme-se que a execução de uma decisão estrangeira em nosso país não pressupõe
a avaliação do acerto da solução trazida, mas sim da observância de determinadas regras
precisas e da não violação da soberania nacional e da ordem pública.
A se admitir o rejulgamento da causa pelo Judiciário brasileiro como requisito para a
sua execução internamente, então, genuína cooperação não haverá. Restará demonstrada,
em seu lugar, a profunda desconfiança com o Judiciário estrangeiro.
A própria essência do instituto da litispendência se ancora na possibilidade de serem
proferidas decisões contraditórias em cada qual das ações ajuizadas, ou seja, é ínsita a esse
instituto a potencialidade de soluções díspares entre si. E essa possibilidade está presente
tanto em litígios internos, que envolvem a mobilização de dois órgãos jurisdicionais
integrantes do Poder Judiciário brasileiro, quanto transnacionais, deflagrando a
movimentação do Poder Judiciário de Estados diversos. O risco é essencialmente o mesmo
e, portanto, deve ser igualmente contornado em ambas as hipóteses.
O proferimento de decisões contraditórias, especialmente quando a decisão
estrangeira possa vir a ser executada no Brasil, conforme destacamos antes, fragiliza o
Poder Judiciário como um todo às vistas do jurisdicionado. Não nos iludamos ao pensar
que haveria uma visão hermética e estanque por parte da sociedade quanto aos magistrados
de tal ou qual país. A prestação jurisdicional a ser entregue é uma só; ou esse serviço é
prestado a contento, com efetividade, coerência e celeridade, ou caem por terra tais
principais escopos da ciência processual, para os quais não há carimbos em passaportes.
Conclui-se, assim, que as duas finalidades que justificam a concepção do instituto da
litispendência, quais sejam, economia processual e afastamento de possíveis decisões
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contraditórias, estão presentes também na repetição de ações perante o Poder Judiciário de
países diversos.
Mostra-se, pois, de todo recomendável aplicar este instituto também aos litígios
transnacionais, a bem das duas finalidades antes destacadas. O fato de uma das ações
idênticas ter sido deflagrada perante o Poder Judiciário de outro país não é suficiente para
afastar a perpetração dos riscos antes apontados.
Além disso, consiste em raciocínio falacioso e equivocado supor que a inadmissão da
litispendência internacional não traria consequências desfavoráveis para o Poder Judiciário
de nosso país, eis que a rejeição da litispendência internacional ocasionará a desnecessária
movimentação de nossa máquina judiciária, sobrecarregando-a ainda mais, e estará
presente o risco de serem proferidas decisões contraditórias acerca da mesma pretensão.
5. Os princípios fundamentais processuais, a boa fé e o abuso do direito de ação.
Uma das características que o Direito Processual vem apresentando nesse novo
milênio consiste na valorização dos princípios fundamentais processuais. Os mais diversos
países do mundo passam a sustentar a ciência processual sobre os mesmos princípios
fundamentais, especialmente o acesso à justiça, a efetividade, a duração razoável do
processo, o contraditório e a boa fé.
Como resultado, verifica-se que, embora haja diferenças nos procedimentos adotados
em diferentes ordenamentos nacionais, essencialmente, todos visam a traduzir e aplicar os
mesmos princípios fundamentais processuais. Essa identidade quanto à essência do Direito
Processual, ou seja, quanto aos escopos em razão dos quais os intrumentos processuais são
criados e utilizados, propicia uma aproximação entre os países e fomenta o diálogo e a
cooperação jurídica internacional entre eles. Facilita-se, assim, uma visão coordenada entre
os desdobramentos processuais perante diferentes Estados e, de igual modo, a circulação
de decisões judiciais no âmbito internacional33
.
33 Para maior aprofundamento do tema, HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como
forma de acesso à justiça no século XXI: os reflexos e desafios da sociedade contemporânea para o Direito
Processual Civil e a concepção de um Título Executivo Transnacional. Op. cit.
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Nesse contexto, a categórica rejeição do instituto da litispendência internacional,
prevista no artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro de 1973, destoa dessa nova
conformação do Direito Processual no século XXI34
.
A aproximação dos ordenamentos jurídicos em virtude de sua atração pelos
princípios fundamentais se presta a fomentar e facilitar a cooperação jurídica internacional
e legitimar uma nova visão crítica em torno dos institutos processuais.
Nesse contexto, a litispendência internacional deve ser enfocada também sob o
prisma dos princípios fundamentais, como mecanismo hábil a concretizar o acesso à
justiça, a economia, a celeridade, a efetividade e, de igual modo, a lealdade processual35
.
Não nos iludamos ao pensar que a fragilidade da cooperação jurídica internacional e
de uma visão colaborativa entre o Poder Judiciário de diferentes países não possa ser
utilizada maliciosamente pelo jurisdicionado como forma de alcançar escopos não
chancelados pelo Direito Processual.
Em outras palavras, as arestas ainda existentes na cooperação jurídica internacional
podem servir eficazmente à conduta desleal das partes.
Analisemos a hipótese mais comum, em que, tendo sido a parte ré regularmente
citada na ação estrangeira, mesmo assim, opta por instaurar ação idêntica perante o
Judiciário brasileiro — valendo-se do fato de a competência internacional, segundo nossas
regras, ser concorrente —, movimentando paralelamente a máquina judiciária de dois
países, perante os quais serão observados essencialmente os mesmos princípios
fundamentais processuais, ainda que sob as vestes de procedimentos diversos.
À luz dos princípios que regem a ciência processual na atualidade, dentre os quais a
economia processual, a cooperação jurídica internacional e o acesso à justiça, a
34 CELLI JUNIOR, Umberto. Op. Cit. p. 227. 35 Esta é uma preocupação crescente por parte de juristas que se ocupam do tema. CELLI JUNIOR, Umberto.
Op. Cit. p. 228.
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movimentação concomitante do Judiciário de dois países com vistas a obter duas decisões
judiciais acerca da mesma pretensão não pode mais ser vista com serena naturalidade. Essa
postura deliberada revela, quando menos, uma conduta descompromissada e de duvidosa
lealdade da parte interessada que, ciente da primeira ação, ajuíza outra idêntica a seguir. O
Direito Processual da atualidade, imerso em uma sociedade globalizada, deve ser visto em
sua inteireza, ou seja, abarcando todos os desdobramentos, inclusive aqueles perante países
diversos.
É preciso reconhecer que movimentar duplamente a máquina judiciária, seja de um
mesmo país, seja de países diversos, consiste em conduta que merece se analisada sob o
prisma da boa fé. Caso desvirtue as finalidades do direito de ação e acabe por representar
um fator de instabilidade e de risco à boa administração da justiça, deve ser coibida e
censurada.
Ignorar tal conduta sistematicamente irá, em última análise, fomentar a sua
proliferação, transmitindo ao jurisdicionado a errônea noção de que pode se valer da
competência internacional concorrente com vistas a impor à parte contrária defender-se em
dois processos e, ao final, ainda sujeitá-la à decisão que mais agrada ao litigante contumaz.
É preciso ter em mente que, em um processo contencioso, há partes com interesses
contrapostos. Portanto, se uma delas deflagra, deliberadamente, duas ações idênticas, à
outra será imposto defender-se em ambas e, mais grave, em países diversos, com inegáveis
ônus. Assim sendo, a conduta das partes envolvidas em litígios transnacionais deve ser
analisada com seriedade pelos magistrados envolvidos, pois o esgarçamento da boa fé
ocasionará não apenas consequências nefastas para o Poder Judiciário, mas também para a
contraparte.
Do mesmo modo que deve ser garantido ao jurisdicionado pertencente a essa
sociedade globalizada o mais amplo acesso à justiça, independentemente dos limites
políticos dos Estados, dele deve ser cobrada uma postura leal e responsável nessa mesma
dimensão. Trata-se de um cidadão que exerce um novo papel, em uma sociedade com
novos contornos, e isso implica direitos e deveres compatíveis com essa nova realidade.
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Portanto, neste novo cenário, a deflagração de um “bis in idem” perante países
diversos pode refletir um abuso do direito de ação da parte que lhe deu causa.
O fato de um litígio dispor de contornos transnacionais não pode representar um
“salvo-conduto” para que as partes envolvidas se desvencilhem de uma postura proba e
leal.
Compete aos tribunais dos diferentes países manter-se atentos a esse novo panorama,
valendo-se dos institutos processuais já existentes, como é o caso da litispendência, e
aplicando-os adequadamente também aos litígios transnacionais.
Um elogiável aceno nesse sentido foi dado pelo Superior Tribunal de Justiça. O
referido Tribunal Superior brasileiro rechaçou o comportamento da parte que, em
competência internacional concorrente, havia ajuizado ação perante tribunal estrangeiro,
vindo a transitar em julgado a sentença proferida alhures. Ao depois, a mesma parte
ajuizou ação idêntica no Brasil e ainda pleiteou liminar junto ao Superior Tribunal de
Justiça com vistas a obstar atos executivos da parte contrária com base naquela sentença
estrangeira. O STJ, em decisão lapidar, reconheceu tratar-se de comportamento
contraditório da parte, violador da boa fé objetiva, que se estende aos atos processuais36
.
36 Processo civil. Medida cautelar visando a atribuir efeito suspensivo a recurso especial. Ação proposta pela
requerente, perante justiça estrangeira. Improcedência do pedido e trânsito em julgado da decisão. Repetição
do pedido, mediante ação formulada perante a Justiça Brasileira. Extinção do processo, sem resolução do
mérito, pelo TJ/RJ, com fundamento na ausência de jurisdição brasileira para a causa.
Impossibilidade.Pedido de medida liminar para a suspensão dos atos coercitivos a serem tomados pela parte
que sagrou-se vitoriosa na ação julgada perante o Tribunal estrangeiro. Indeferimento. Comportamento contraditório da parte violador do princípio da boa-fé objetiva, extensível aos atos processuais.- É condição
para a eficácia de uma sentença estrangeira a sua homologação pelo STJ. Assim, não se pode declinar da
competência internacional para o julgamento de uma causa com fundamento na mera existência de trânsito
em julgado da mesma ação, no estrangeiro.Essa postura implicaria a aplicação dos princípios do 'formum
shopping' e 'forum non conveniens' que, apesar de sua coerente formulação em países estrangeiros, não
encontra respaldo nas regras processuais brasileiras.- A propositura, no Brasil, da mesma ação proposta
perante Tribunal estrangeiro, porém, consubstancia comportamento contraditório da parte. Do mesmo modo
que, no direito civil, o comportamento contraditório implica violação do princípio da boa-fé objetiva, é
possível também imaginar, ao menos num plano inicial de raciocínio, a violação do mesmo princípio no
processo civil. O deferimento de medida liminar tendente a suspender todos os atos para a execução da
sentença estrangeira, portanto, implicaria privilegiar o comportamento contraditório, em violação do referido princípio da boa-fé.Medida liminar indeferida e processo extinto sem resolução de mérito.(STJ. MC
15.398/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/04/2009, DJe
23/04/2009). Grifou-se.
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Entendemos que essa é a perspectiva sob a qual deve ser analisada, na
contemporaneidade, a temática objeto do presente estudo.
Sendo o jurisdicionado membro de uma sociedade globalizada, o Direito Processual
contemporâneo a ele destina direitos e deveres processuais em âmbito transnacional.
Enxergar tais e quais sob uma ótica estritamente interna e nacional consiste em visão
míope e fragmentada, apta a perpetrar injustiças e chancelar deslealdades.
6. Conclusão.
O Direito Processual contemporâneo encontra-se premido por novos influxos, devido
ao prestígio aos princípios fundamentais processuais em diferentes partes do mundo e à
nova conformação da sociedade, marcadamente globalizada.
Na atual fase da ciência processual, dita instrumentalista ou teleológica, é esperado
dos processualistas o desenvolvimento de uma visão crítica permanente a respeito dos
institutos processuais, estando atentos para que estes sempre atendam às expectativas do
jurisdicionado de nossa época e sirvam à consecução do acesso à justiça, da efetividade e
dos demais princípios norteadores da ciência processual, como a economia processual e a
boa fé.
Nesse contexto, causa certa perplexidade a manutenção da aceitação em nossos dias,
por parte da doutrina e jurisprudência majoritárias de nosso país, da vedação contida no
artigo 90 do Código de Processo Civil brasileiro de 1973 quanto à litispendência
internacional.
Passadas quatro décadas de profundas mudanças sociais, aportando-se
reconhecidamente em uma sociedade internacionalmente interconectada e interdependente,
com inevitáveis consequências para o pensamento jurídico-processual, que caminha rumo
ao prestígio da cooperação jurídica internacional, consideramos necessário repensar a
solução prevista em nosso diploma processual.
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A vedação à litispendência internacional, demais de destoar da tradição brasileira até
então, fica relegada a um crescente e insustentável isolacionismo, se analisarmos a
legislação de outros países e, inclusive, da União Europeia.
Tende-se hoje a fomentar uma postura cooperativa e complementar por parte dos
magistrados de diferentes países chamados a atuar na solução de um mesmo litígio com
contornos transnacionais. Não mais é admitido que o magistrado de cada país mantenha
posição de forçada indiferença quanto aos desdobramentos processuais desenvolvidos
alhures.
No que tange à litispendência internacional, verifica-se a tendência no sentido de que
os magistrados a analisem sob a ótica da boa Administração da Justiça em escala global,
considerando-se o bom funcionamento do Judiciário como um todo, ou seja, dos diferentes
países envolvidos.
A análise das duas finalidades principais do instituto da litispendência, notadamente
economia processual e debelamento do risco de decisões contraditórias, recomenda a sua
aplicação também aos litígios transnacionais.
Primeiramente, porque a duplicidade de demandas perante o Judiciário de países
diversos pode ocasionar desnecessária movimentação e assoberbamento da máquina
judiciária, em tempos nos quais trava-se intensa batalha contra o grave problema do
colapso dos tribunais e da demora na duração dos processos em todo o mundo.
Em segundo lugar, porque o risco de que sejam proferidas decisões contraditórias nas
ações paralelamente em curso não deixa de existir pelo fato de que se pronunciarão
magistrados de países diversos. Lembre-se que os jurisdicionados envolvidos em ambas as
ações são os mesmos, razão pela qual eles terão uma visão global e completa da atuação
dos diferentes magistrados e, em última análise, da prestação jurisdicional que lhes será
entregue, a contento ou não. Bem saberão se os magistrados envolvidos apresentarão
atitude cooperativa e coordenada ou não. Supor que, nos dias de hoje, a visão da sociedade
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acerca da prestação jurisdicional (“da Justiça”) é hermeticamente fragmentada segundo os
limites políticos dos países consiste em entendimento, a nosso ver, equivocado.
Somente uma conduta coordenada e globalmente consciente por parte dos
magistrados poderá contornar os novos riscos que pairam sobre a efetividade do processo
nos dias atuais.
Acrescente-se que o deliberado ajuizamento de ações idênticas perante o Poder
Judiciário de países diversos, concorrentemente competentes, deve ser visto com prudência
e zelo pelos magistrados, a fim de que não configure comportamento censurável e desleal,
apto a alcançar escopos não almejados pela ciência processual, com comprometimento da
economia processual, da duração razoável dos processos, da harmonia entre os julgados e,
inclusive, com a imposição de ônus injustificados à contraparte, compelida a defender-se
em duas ações idênticas em países diversos.
O processo contencioso é um processo de partes (de jurisdicionados), em que a
atitude desleal e irresponsável de uma representa a correlata imposição de ônus
injustificados à outra.
Da mesma forma com que advogamos sejam estendidas aos jurisdicionados
envolvidos em litígios transnacionais as garantias fundamentais processuais, deles deve ser
exigida uma conduta hígida e leal nesses conflitos. Esses são os ônus e bônus de serem
membros de uma sociedade globalizada.
Essa nova conformação social fatalmente acarreta impactos para os tribunais
nacionais, fazendo eclodir litígios com novas feições e com novos desafios, mas esses
desafios devem ser analisados criticamente pelos magistrados contemporâneos, sendo-lhes
dadas novas soluções.
Não podemos fechar os olhos para esses novos desafios sem apresentar propostas de
soluções, sob pena de, com nossa inércia, testemunharmos graves reveses no Direito
Processual, com prejuízos para a economia processual, a duração razoável dos processos, a
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harmonia entre os julgados, a cooperação jurídica internacional, a boa fé e, a reboque, a
própria imagem do Judiciário como responsável pela entrega do produto final de nossa
ciência: a efetiva e adequada prestação jurisdicional.
Admitir-se a aplicação do instituto da litispendência aos litígios transnacionais nas
condições desenvolvidas ao longo do presente estudo revela-se, a nosso ver, uma medida
salutar, apta a restabelecer a higidez dos princípios processuais em um número crescente
de demandas levadas ao conhecimento do Poder Judiciário brasileiro.
Entendemos, portanto, que merece reforma o artigo 90 do Código de Processo Civil
brasileiro, a fim de que se alinhe à solução prevista atualmente na legislação de outros
países e nos tratados internacionais assinados pelo Brasil desde longa data. Lamentamos
que estejamos perdendo a valiosa oportunidade de admitir a litispendência internacional no
Projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, que se encontra em tramitação. De
acordo com a redação atual do Projeto, manteríamos a mesma criticável vedação à
litispendência internacional contida no diploma processual em vigor.
A adoção de uma postura crítica e responsável quanto à deflagração de demandas
idênticas perante tribunais de países diversos, enfrentando os seus problemas e desafios,
antes de significar gasto de tempo pelos magistrados envolvidos, acabará por representar
uma contribuição concreta e com resultados práticos em prol da boa administração da
justiça, além de fomentar e estreitar a cooperação jurídica internacional.
Lembre-se, por fim, que a cooperação jurídica internacional não consiste em um
princípio a ser apenas teoricamente decantado, mas em um exercício prático diário, a ser
desenvolvido pelos profissionais do direito a partir da aplicação renovada dos institutos
processuais aos litígios com reflexos transnacionais, como é o caso da litispendência.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE QUESTÕES DE DIREITO PROBATÓRIO (EM
MATÉRIA PENAL)
Flávio Mirza
Professor Adjunto de Direito Processual Penal da UERJ e da
UCP (graduação e pós-graduação stricto sensu). Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Católica de Petrópolis (PPGD/UCP). Doutor em Direito
(UGF). Advogado.
RESUMO: O presente visa estudar alguns aspectos do Direito Probatório, notadamente a
questão do objeto da prova, suas fontes e meios. Tais não possuem tratamento uniforme na
doutrina. Primeiramente, foram fixados alguns conceitos fundamentais à compreensão do
tema. Posteriormente, foram expostas as posições doutrinárias e, ao fim, nas conclusões,
expusemos nosso pensamento.
PALAVRAS-CHAVE: Prova – conceito – instrução – objeto – meio
ABSTRACT: The present study aims to examine some aspects of Evidentiary Law,
notably the question related to the object of proof, its sources and means. These do not
have uniform doctrinaire treatment. Firstly, some fundamental concepts to the
understanding of the theme have been set. Subsequently, doctrinal positions have been
exposed and, in the end, in conclusions, we explained our thoughts.
1) À guisa de introdução
O presente artigo visa expor algumas considerações sobre o Direito Probatório,
notadamente no que concerne ao objeto da prova, aos seus meios e fontes.
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Não custa relembrar: a prova é o cerne do processo, pois dela depende a sua sorte (e
a dos litigantes). Com efeito, é de sua análise que o julgador formulará a decisão do caso
penal.
Antes, porém, relembraremos, posto que de modo sintético, alguns conceitos
essenciais, expostos em outra sede, e faremos breve distinção entre prova e instrução.
1.1) Conceito de prova
A prova é uma categoria metajurídica, ou seja, não pertence ao “mundo do Direito”.
Foi, pois, tomada emprestada da realidade da vida, servindo a quem quer que pretenda
demonstrar a veracidade de um fato.1 E, no processo, pretende-se demonstrar a veracidade
do fato imputado.
Assim, como corolário lógico, em que pese o título do presente artigo, pensamos
inexistir diferença ontológica entre as provas penal e cível.2
1.2) Prova e instrução
Prova e instrução não se confundem.
Segundo Paulo Cunha, “(...) instrução e prova não são uma coisa só: a
instrução está para a prova assim como o instrumento está para a obra que por meio dele se
consegue.”3
Na lição de Frederico Marques, há um conceito genérico de instrução, que
tanto abrange as alegações das partes, quanto os atos probatórios.4 Tais elementos
destinam-se à formação da convicção do juiz sobre os fatos articulados.5
1 Pedimos vênia e remetemos o leitor ao nosso estudo sobre a prova pericial. Naquela sede, expusemos, de
forma minudente, nossas concepções sobre a prova. Cf. MIRZA, Flávio. Reflexões sobre a avaliação da
prova pericial. In: BASTOS, Marcelo Lessa; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior (Orgs).
Tributo a Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p. 205-223. 2 Flávio Mirza, op. cit., p. 208. 3 CUNHA apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II, Campinas:
Bookseller, 1998, p. 250.
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Nada obstante, o notável processualista paulista também cuida de um
conceito mais estrito de instrução, que é o de instrução probatória, definindo-a “(...) como
o conjunto de atos processuais que têm por objeto recolher as provas com que se deve ser
decidido o litígio.”6 É mais estrito porque a instrução se presta a permitir que as partes
apresentem argumentos ao juiz, sobre as questões de fato e de direito, oferecendo material
lógico para a construção da sentença.
Amaral Santos se refere ainda a duas categorias albergadas no conceito mais
amplo de instrução, diferenciando três significados. Em sentido amplo, a instrução é “(...) o
preparo da causa de elementos adequados a uma decisão do mérito (...)”7, compreendendo
todo o procedimento anterior ao iudicium, à sentença de mérito. Em sentido menos amplo,
significa “(...) o aparelhamento do processo dos elementos suscetíveis de convencer o juiz
sobre as controvérsias de fato e de direito que giram em torno ao thema decidendum, de
modo a proferir decisão acolhendo ou rejeitando o pedido”8
. Compreende, assim, os atos de
colheita e produção de prova, bem como a sustentação final da causa pelas partes, em
debates orais ou alegações finais por escrito. No sentido mais estrito, por sua vez, a
instrução “(...) consiste na comprovação dos fatos deduzidos pelas partes (...)”9, sendo
sinônima de instrução probatória.
Preservando coerência com os conceitos que formula (de instrução lato
sensu e instrução stricto sensu, ou probatória), Frederico Marques afirma que, no processo
penal condenatório, a instrução em sentido amplo vai do ato de apresentação de provas por
4 Op. cit., p. 249. Nas suas palavras, “(...) dá-se o nome de atos de instrução àqueles destinados a recolher os
elementos necessários para a decisão da lide.” 5 Idem: “Como a sentença, por sua construção lógica de forma silogística, contém na premissa maior a norma
legal aplicável e na premissa menor os fatos que dão contorno à situação jurídica litigiosa, o preparo da
decisão pressupõe, como explica o professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida, a instrução do juiz na
premissa maior e na premissa menor do silogismo. Todavia, entende-se, sempre, o juiz instruído quanto ao
direito aplicável: narra mihi factum, dabo tibi jus; jura novit curia”. 6 Ibid., p. 250. 7 AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol. II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985, p. 271. 8 Op. cit., p. 272. 9 Idem, p. 273.
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parte do réu até o momento procedimental das alegações finais10
, ao passo que a instrução
probatória se inicia com o interrogatório do réu e finda com o encerramento da instrução
complementar de que fala o art. 499 do Código de Processo Penal (ou, como se diz na
praxe forense, as diligências).
Nessa quadra, faz-se necessário um adendo: posto que continuem válidas as
lições de Frederico Marques, o processo penal, como regra, desde 2008, não mais possui
feição escalonada. É dizer: hodiernamente, a regra é a audiência uma (Audiência de
Instrução e Julgamento – art. 400 e SS, do Código de Processo Penal, com redação dada
pela lei 11.719/2008).
Todavia, o próprio autor excepciona seu raciocínio, lembrando que “(...)
atos instrutórios já se praticam desde a fase postulatória da instância e até mesmo nos atos
preparatórios da investigação policial ou de outra informatio delicti que tenha servido de
base à acusação.”11
Quanto aos atos instrutórios praticados no inquérito, vale lembrar que,
por força do art. 12 do Código de Processo Penal, os mesmos devem acompanhar a
denúncia ou queixa. Se é verdade que esses atos instrutórios têm a função de fundamentar
a opinio delicti, acabam, na prática, por esclarecer, reforçar ou consolidar os elementos de
convicção do juiz, colhidos ao longo do processo. Não se deve esquecer que certas provas
colhidas no inquérito são aproveitadas no processo em vista da impossibilidade de serem
repetidas. São provas de natureza cautelar.12
10 MARQUES, op. cit., p. 251: “A fase de instrução, no processo penal condenatório, não tem início com o
interrogatório do réu, e sim, com o ato de apresentação de provas por parte do réu (artigos 395 e 399) a que
se seguem os de produção desta. Ao depois, vem a fase complementar mencionada no artigo 499 e, por fim, o
momento procedimental das alegações (artigo 500) . Finda-se aí a instrução, a que se sucede a fase decisória.
A instrução probatória vai do interrogatório do réu até o encerramento da instrução complementar de que fala o artigo 499”. 11 Idem. Acrescenta (p. 258) ainda que “(...) a investigação, porém, não é de todo inócua para a elucidação
final do caso. Em primeiro lugar, as informações nela contidas orientam a produção de provas na instrução
processual; em segundo lugar, colhem-se, ali, dados preciosos para exame e pesquisas probatórias na fase
judicial de apuração do delito”. 12 GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio; MAGALHÃES GOMES FILHO,
Antonio. As nulidades no processo penal, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 144-
145: “(…) existem provas – como o exame de corpo de delito e do local do crime – que têm natureza cautelar
e visam a assegurar seu resultado antes da instauração do processo penal, exigindo-se sua antecipação ad
perpetuam rei memoriam. Para essas cautelas o contraditório fica diferido para momentos sucessivos”.
Frederico Marques (op. cit., p. 258) ainda se refere às provas em que predominam o aspecto técnico da pesquisa: “(...) embora destinada apenas à preparação da ação penal, a investigação colhe, desde logo,
elementos probatórios que podem servir posteriormente como dado instrutório definitivo para o julgamento
da pretensão punitiva. É o que sucede com as provas ali obtidas em que predomina o aspecto técnico da
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Vale repisar que a instrução probatória no processo penal condenatório
era descontínua e fragmentada, prevendo o Código a produção de provas em audiência,
a possibilidade de produção de documento a qualquer tempo13
, além da eventual
produção de prova pericial sucessiva à testemunhal ou mesmo paralelamente a ela.
Tais eram os momentos em que se realizava a instrução probatória. Todavia,
em cada um desses momentos, a colheita de prova subordinava-se a um procedimento
próprio, para que não fosse feita desordenadamente.
Posto que na atual sistemática haja uma AIJ una, o procedimento probatório
é “(...) o conjunto de todas as atividades levadas a efeito, no processo, para a prática das
provas.”14
Neste ponto, não custa reforçar a ideia de que o juiz mantém o controle
sobre a produção de prova, munido do poder de ordená-la e conduzir o processo.
Na opinião de Frederico Marques, havia falha do legislador, pois o Código
de Processo Penal não disciplinava uma fase prévia de ordenamento das provas a serem
produzidas.15
Não nos parece assistir razão ao ilustre processualista paulista.
Com efeito, não é pelo fato de o controle do juiz sobre as provas estar
disperso entre os diversos momentos em que estas são requeridas e produzidas, já que não
há uma fase própria especialmente designada para tal fim, que haverá maiores problemas à
atividade-fim.
pesquisa. Mas quando existe a participação imediata e direta da própria autoridade policial, na produção da
prova, o caráter inquisitivo, que tem a investigação, torna imprescindível a judicialização ulterior do ato
probatório para que a instrução ali contida se apresente com o valor de prova, ao ter o juiz de decidir a causa
penal.” 13 A ressalva fica a cargo do rito procedimental atinente ao Tribunal do Júri. 14 Marques, op. cit., p. 280. 15 Idem, p. 281.
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Hodiernamente, como regra, as provas produzem-se na AIJ, mas, algumas,
como, por exemplo, a pericial e/ou a documental, lhes são anteriores. Mantida, pois, nossa
posição.
2) Objeto da prova
A prova, no que pertine ao Direito, inobstante ser uma categoria
metajurídica, caracteriza-se como instrumento que carreia ao processo elementos de
convicção para o juiz.
Cabe indagar sobre a que matéria (ou matérias) tais elementos dizem
respeito, ou em outras palavras, qual é o objeto da prova.
Nas palavras de Frederico Marques “(...) o objeto da prova, ou thema
probandum, é a coisa, fato, acontecimento, ou circunstância que deva ser demonstrado no
processo.”16
Acrescenta que não só fatos e acontecimentos do mundo exterior constituem o
objeto da prova, como também aspectos internos da vida psíquica do réu ou indiciado.17
Presume-se que o juiz esteja instruído sobre o direito a aplicar, sendo objeto
da prova tão somente as questões fáticas.18
Igual entendimento colhe-se em Amaral
Santos.19
16 Ibid., p. 254. AMARAL SANTOS, op. cit., p. 335: “(...) a prova tem por finalidade convencer o juiz
quanto à existência ou inexistência dos fatos sobre que versa a lide”. 17 MARQUES, op. cit., p. 270-271: “Fatos e acontecimentos do mundo exterior, bem como fatos internos da própria vida psíquica do indiciado ou do réu, constituem o thema probandum sobre o qual devem realizar-se
as pesquisas, diligências e investigações, com os meios de provas, para ser reconstruída a situação concreta
em que vai incidir a norma penal. O fato delituoso e a pessoa do agente do crime devem ser focalizados, nos
seus aspectos relevantes, na atividade instrutória ou de investigação.” No mesmo sentido, MITTERMAIER,
C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, tradução de Herbert Wüntzel Heinrich, Campinas:
Bookseller, 1997, p. 58: “A imputabilidade moral do acusado, o estado de seu espírito no momento do crime,
a lucidez das faculdades de sua consciência, a má intenção e sua intensidade, são outros tantos objetos a que
é preciso aplicar os instrumentos da prova, porém cujo conhecimento não se obtém pelos meios
ordinariamente empregados para os fatos externos, cuja certeza só pode ser alcançada por via da indução”. 18 MARQUES, op. cit., p. 254. 19 “Assim como as partes não podem alegar a ignorância da lei para não cumpri-la, também o juiz, e por mais evidentes razões, por se tratar de um órgão do estado e um técnico em direito, não pode eximir-se de cumprir
a sua função sob o pretexto de que desconhece a lei, ou que é omissa, obscura ou indecisa”. AMARAL
SANTOS, op. cit., p. 342.
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Entretanto, consoante o disposto no artigo 337 do Código de Processo Civil,
deve-se provar o direito municipal, o estadual, o estrangeiro ou o consuetudinário. Assim,
o juiz pode determinar à parte que os alegar a prova de seu teor e vigência.20
Cuida-se de
regra aplicável ao processo penal, ainda que sem previsão expressa e equivalente no
Código de Processo Penal, porém de utilidade muito restrita.21
Diferentemente do processo civil, há, no processo penal, necessidade de se
provarem todos os fatos ainda que incontroversos.22
Claus Roxin é do mesmo entendimento:
“Mientras que en el proceso civil, dominado por el principio
dispositivo, solo necesitan ser probados los hechos discutidos, en el
proceso penal, como consecuencia de la máxima de la instrucción,
rige el principio de todos los hechos que de algún modo son
importantes para la decisión judicial deben ser probados (...).”23
Sem embargo do questionável (ou melhor, inaceitável) pressuposto de que o
processo penal debruça-se sobre uma verdade real, ao passo que o processo civil contenta-
se com uma verdade formal, um grave equívoco apontado noutra sede,24
cabe salientar que
a própria lei processual civil não se contenta com a incontrovérsia sobre os fatos em
20 Hélio Tornaghi sustenta que o Direito escrito, nacional, não precisa ser provado, pois deve ser conhecido
pelo juiz. Já o Direito estrangeiro e o consuetudinário precisam sê-lo, pois o juiz pode não os conhecer.
TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. III, São Paulo: Saraiva, 1978, p. 445-446. 21 CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. Da prova no processo penal, 5ª ed., São Paulo: Saraiva,
1999, p. 30. Exemplifica este autor, com a hipótese em que o costume exclui a antijuridicidade da conduta imputada ao réu; ou aquela em que se faz necessário provar a validade de casamento celebrado segundo as
normas de direito estrangeiro; ou ainda crimes contra a administração pública cuja prova demande o
conhecimento de direito estadual ou municipal. 22 De acordo com Frederico Marques “(...) o juiz penal não está obrigado a admitir o que as partes afirmam
inconteste, uma vez que lhe é dado indagar sobre tudo o que lhe pareça dúbio ou suspeito” (cf. MARQUES,
op. cit., p. 255). No mesmo sentido, Camargo Aranha (op. cit., p. 26) acrescenta que o interesse social no
campo penal exige a prova de fatos, ainda que não sejam negados. 23 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, tradução de Gabriela E. Córdoba e Daniel R. Pastor, Buenos
Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 186. 24 Ver a respeito da verdade, ou melhor, da sua busca, meu artigo intitulado Notas sobre a questão da verdade
no direito processual. Cf. MIRZA, Flávio. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In: CALVET DA SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel; SALLES, Sérgio de Souza; MARCY ROSA, Waleska
(Orgs). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II, Petrópolis: UCP, 2009, capítulo 4, p. 101-
121.
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matéria de direito indisponível25
, ex vi do art. 320, II, CPC.26
Isso porque, evidentemente,
não é só no processo penal que se colocam questões relevantes ao interesse social.
A par disso, excluem-se da necessidade de serem provados os fatos
impertinentes27
, os irrelevantes28
, os evidentes29
e os notórios.30
Quanto ao objeto, as provas costumam ser classificadas em diretas e
indiretas.31
As provas diretas referem-se ao próprio fato probando ou consistem no próprio
fato, reproduzindo-o ou representando-o. Diversamente, as provas indiretas referem-se a
outro fato, do qual, por trabalho do raciocínio, se chega ao fato que se queira provar. São
provas indiretas as presunções e os indícios.32
Na opinião de Malatesta, o referencial é o
delito, conquanto seja objeto mediato ou imediato da prova.33
25 Sem embargo de outras hipóteses, como aquela constante do art. 320, III, CPC, em que a lei considera a
juntada de instrumento público, com a petição inicial, indispensável à prova do ato, Amaral Santos,
contrariando de certo modo a concepção de uma verdade formal no processo civil chega a afirmar que é
objeto de prova fato incontroverso, quando esta é reclamada pelo juiz, “(...) para o fim de formar com mais
segurança o seu convencimento” (op. cit., p. 337). Dinamarco, por seu turno, refere-se à necessidade de
prova de fatos incontroversos impossíveis ou improváveis, como a prova do deslocamento de coisas sólidas,
líquidas ou gasosas, pelo simples poder da mente, possível segundo a parapsicologia. Cf. DINAMARCO,
Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol III, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 63. 26 “Art. 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: (…) II - se o litígio versar sobre
direitos indisponíveis.” 27 MARQUES, op. cit., p. 254: “Fatos que não pertencem ao litígio e que relação alguma apresentam com o
objeto da acusação, consideram-se fatos sem pertinência, e que, portanto, devem ser excluídos do âmbito da
prova in concreto”. 28 Ibid., p. 255: “Inadmissíveis também são, como objeto de prova, os fatos que não influem sobre a decisão
da causa, embora a ela se refiram. Para que indagar, por exemplo, da roupa que envergava o homicida ao
praticar o crime, se dúvida não há a respeito da pessoa que cometeu o crime, sendo assim prescindível
qualquer prova ou sinal exterior para identificação do acusado?”. 29 CAMARGO ARANHA, op. cit., p. 26: “Se o objetivo da prova é formar a convicção do julgador a respeito
de um determinado fato, sua existência e realização, se o fato é evidente a convicção já está formada,
dispensando, destarte, qualquer demonstração”. 30 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 341: “Diversamente ocorre com os fatos notórios. O conhecimento destes,
do mesmo modo que as máximas de experiência, faz parte da cultura normal própria de determinada esfera
social, e o juiz, ao utilizá-lo, não funciona como testemunha que informa quanto a fatos, porque se vale de
conhecimento que não é seu apenas, ou de umas poucas pessoas, mas de uma coletividade, da qual é
intérprete, e de cuja exatidão os litigantes sempre estão em condições de fiscalizar.” CAMARGO ARANHA,
op. cit., p. 28, aduz: “A título de exemplo: numa ação penal por crime contra a honra e figurando como
vítima um chefe de Estado, não haverá necessidade, por ser notório, da prova de que aquele ofendido é o
ocupante do cargo”. 31 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 331-332: “Enquanto na prova direta a conclusão objetiva é conseqüente
da afirmação da testemunha ou da atestação da coisa ou documento, sem necessidade maior do raciocínio, na
indireta o raciocínio reclama a formulação de hipóteses, sua apreciação, exclusão de umas, aceitação de outras, enfim trabalhos indutivos maiores ou menores, para se atingir a verdade relativa ao fato probando”. 32 Seguindo as lições de Carnellutti, Marques (op. cit., p. 256) alude a provas históricas e críticas, in verbis:
“Prova histórica é ‘um fato representativo de outro fato’, tal como o conteúdo de um documento, ou o
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3) Fontes e meios de prova
Primeiramente, cabe esclarecer o que seja(m) meio(s) de prova, bem como
distingui-lo(s) da(s) fonte(s) de prova.
Na definição de Dinamarco, “(...) fontes de prova são pessoas ou coisas das
quais se possam extrair informações capazes de comprovar a veracidade de uma
alegação.”34
Essa noção muito se aproxima do conceito adotado por Amaral Santos de
sujeito da prova.35
Em função do conceito de fonte de prova, pode-se classificá-la em real e
pessoal. Ainda Amaral Santos define que a “(...) prova real de um fato consiste na
atestação inconsciente, feita por uma coisa, das modalidades que o fato probando lhe
imprimiu”. Assim, v.g., temos as trincas nas paredes ou o ferimento. Diversamente, a “(...)
prova pessoal é toda afirmação pessoal consciente, destinada a fazer fé dos fatos
afirmados. A testemunha que narra fatos que viu, o documento de confissão de dívida, a
escritura de testamento são provas pessoais.”36
Contudo, Dinamarco adota classificação heterogênea, sendo-lhe aplicáveis
às definições retro esboçadas às pessoas, enquanto fontes, mas não às coisas, que seriam
provas reais por definição.37
depoimento de uma testemunha. A prova crítica, ao revés, não tem função representativa, mas apenas
indicativa, pois que não é um equivalente sensível do fato a provar; é o que sucede, verbi gratia, com os
indícios”. 33 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal, tradução de Paolo Capitanio, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2001, p. 148: “Em conseqüência, ao examinar e classificar as provas
quanto ao conteúdo, referem-se elas, em crítica criminal, como ponto fixo, ao delito, que é a verdade
particular que se tenta verificar, instaurando o processo”. 34 DINAMARCO, op. cit., p. 86. Complementa o autor, mencionando Carnelutti, que “(...) informações são a
‘afirmação da existência ou inexistência de um fato, com a finalidade de levá-lo ao conhecimento de outrem,
especialmente do juiz ou, em geral, do órgão judiciário’”. 35 Nas palavras deste celebrado processualista, “(...) sujeito da prova é a pessoa ou coisa de quem ou de onde
dimana a prova; a pessoa ou coisa que afirma ou atesta a existência do fato probando.” AMARAL SANTOS,
op. cit., p. 332. 36 Idem. 37 DINAMARCO, op. cit., p. 86-87: “As coisas são fontes reais de prova. As pessoas são também fontes reais, quando submetidas a exames feitos por outrem (perícias médicas, etc.); mas serão fontes pessoais
quando chamadas a tomar parte na instrução probatória mediante a realização de atos seus e concurso de sua
vontade (testemunhas, partes em depoimento pessoal). As fontes pessoais são ativas e as reais inativas”.
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Próximo a tal classificação, Frederico Marques ensina que a diferença entre
as provas reais e as pessoais encontra-se na qualidade do elemento instrumental –
conforme seja ou não um ser com personalidade e consciência.38
Note-se, todavia, que este
autor não se esforça em distinguir as fontes dos meios de prova.
A respeito dessa discussão, afirma Malatesta que os requisitos para que uma
prova seja pessoal são a existência de uma afirmação consciente e que seja destinada a
fazer fé da verdade de um fato. A ausência de qualquer dos requisitos torna a prova real.39
O fato humano40
ou a afirmação41
inconsciente são chamadas de prova real-psíquica.
Outrossim, os assertos não destinados a fazer fé da verdade dos fatos afirmados são
chamados de prova real-corporal.42
Esclarece ainda, que o referencial para distinguir a
prova real da prova pessoal é a consciência do juiz. Se fosse a própria fonte, a prova seria
sempre real, de maneira que a prova pessoal para o juiz, será, p.ex., sempre real para a
testemunha.43
Os meios de prova, por seu turno, distinguem-se das próprias fontes.
38 MARQUES, op. cit., p. 256: “Provas reais são aquelas em que o elemento instrumental está constituído por
uma coisa ou bem exterior ao indivíduo; já as provas pessoais são aquelas cujo objeto instrumental está
constituído por um ser com personalidade e consciência que contribui para formar o convencimento do juiz
mediante declarações de conhecimento”. 39 MALATESTA, op. cit., p. 283: “Se as exteriorizações do espírito humano não são conscientes ou não se
considerem como destinadas a fazer fé da verdade dos fatos por ela manifestados, não se tem prova pessoal,
mas sim real”. 40 Idem: “Funcionando como prova do espírito interno, são provas reais, e não pessoais, não só a palidez, o
tremor, o desmaio do acusado, e qualquer outro fato involuntário da pessoa, mas também são provas reais todos os fatos voluntários humanos que funcionam como prova para revelar o espírito interno, todos aqueles
fatos que, embora conscientemente praticados como fatos, são inconscientemente emitidos como revelações
do espírito interno”. 41 Ibid., p. 283-284: “A própria palavra, essencialmente destinada às manifestações conscientes da alma, não
se pode considerar como prova pessoal, quando não destinada conscientemente a revelar a alma. Sempre que
é uma exteriorização inconsciente do espírito, ela só pode ser uma prova real”. 42 O autor referido exemplifica(Ibid., p. 286): “(...) a palavra injuriosa ou ameaçadora não é senão o próprio
crime, na materialidade de sua existência, que se submete ao espírito do juiz, e não já uma afirmação pessoal
consciente, destinada a convencer da verdade dos fatos afirmados. A palavra, nestes casos, é considerada a
concretização do crime e não do ponto de vista da destinação a fazer fé dos fatos por ela afirmados, essencial
para a prova pessoal”. 43 Ibid., p. 288: “(…) a distinção subjetiva das provas, em pessoais e reais, é considerada em relação à
consciência do juiz dos debates. Se assim não se fizesse, se se atendesse às provas relativamente à sua fonte
originária, teríamos somente provas reais”.
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Novamente, na lição de Dinamarco, “(...) meios de prova são técnicas
destinadas à investigação de fatos relevantes para a causa.”44
Moacyr Amaral Santos também parece adotar tal distinção de conceitos,
porém com nomenclatura diferente. Se as fontes de prova ele apelida de sujeitos da prova,
os meios são por ele chamados de formas da prova. A forma da prova “(...) é a modalidade
ou a maneira pela qual se apresenta em juízo”.45
Nada obstante, tal distinção, entre fontes e meios de prova, não costuma ser
observada pela doutrina.
Frederico Marques, por exemplo, perfilha doutrina de Pontes de Miranda,
segundo a qual “(...) meios de prova são as fontes probantes, os meios pelos quais o juiz
recebe os elementos ou motivos de prova.”46
No mesmo sentido, posiciona-se Carreira Alvim, esclarecendo serem os
motivos de prova “(...) as alegações (ou observações) que determinam, imediatamente ou
não, a convicção do juiz.”47
Crítica a essa distinção faz Mittermaier, para quem meio de prova é todo
meio de produzir a certeza.48
Vale salientar que tal autor não faz a distinção acima
mencionada.49
O aludido doutrinador renega a importância das discussões acerca do
número de meios de prova e as distinções entre estes e os motivos de prova. Nas suas
44 Remarcando a distinção, o autor ainda acrescenta que: “Diferentemente das fontes, eles são fenômenos
internos do processo e do procedimento. Atuam sobre aquelas e cada um deles é constituído por uma série ordenada de atos integrantes deste, realizados em contraditório, com a observância das formas que a lei
estabelece e dirigidos pelo juiz.” DINAMARCO, op. cit., p. 87. 45 AMARAL SANTOS, op. cit., p. 332. 46 MARQUES, op. cit., p. 255. 47 CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
270: “Assim, a ‘afirmação’ de um fato influente na causa, por uma testemunha presencial e a ‘observação’ de
um dano, pelo juiz, no local do evento, são motivos de prova. Meios de prova são as fontes de que o juiz
extrai os motivos de prova. Assim, nos exemplos anteriores, a pessoa da testemunha e o local inspecionado
são meios de prova”. 48 MITTERMAIER, op. cit., p. 112: “Se é verdade que dar a prova ou constituir a certeza é tender ao mesmo
fim, é exato que todo o meio de produzir a certeza será necessariamente um meio de prova também”. 49 Acrescenta que “(...) no sentido legal, os meios de prova, ou, em uma palavra, as provas, são para o juiz as
fontes dos motivos de convicção que a lei declara suficiente para, aplicados aos fatos da causa, determinarem
naturalmente a sentença” (Ibid., p. 115).
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palavras, “(...) a ciência pouco tem a lucrar com tais indagações, que com razão foram
qualificadas de puras sutilezas.”50
Quanto aos possíveis meios (e fontes) de prova, vale lembrar a lição de
Frederico Marques, que faz alusão a critérios vinculadores do juiz atinentes à busca da
verdade e liberdade da prova.51
Esta última ideia corresponde ao que se vem chamando de princípio da
liberdade dos meios de prova. Tal princípio foi adotado pelo Código de Processo Penal,
ainda que implicitamente, no art. 15552
e, explicitamente, no artigo 332 do Código de
Processo Civil.
Note-se que, reflexo da atual ordem constitucional, a legislação não deveria
dispor diversamente, conquanto a limitação legal aos meios de prova só poderia ser
admissível como resultado da ponderação do direito à prova com outro preceito
fundamental ou da natureza do direito.53
Comentando o art. 332, do CPC, em lição aplicável ao processo penal,
Leonardo Greco ressalta que “(...) todos os meios moralmente legítimos (...)”, aceitos pelo
legislador processual,
“(...) inicialmente percebidos como extensivos a provas
inominadas, como a prova emprestada, com a emergência do
50Exemplificando as diferenças propostas para tais conceitos, assim se manifesta: “São elas sem valor para o
juiz, e não vemos que interesse haja em reconhecer, com Gensler, na prova testemunhal por exemplo, um
meio de prova – a testemunha, um motivo positivo de prova – o depoimento da mesma, e um motivo jurídico
– o que o juiz aproveita para sua convicção como magistrado”. Ibid., p. 115. 51 “A colheita de provas pode subordinar-se ao princípio da verdade legal ou da verdade real. Pelo primeiro,
as fontes de provas estão prefixadas na lei a cujos preceitos fica o juiz vinculado de forma a não admitir a
produção de meios probatórios ali não previstos. Pelo segundo princípio, livre é a escolha e a exploração das
fontes de prova.” MARQUES, op. cit., p. 259. 52 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 349 e CARREIRA ALVIM, op. cit., p.
256: “No processo penal brasileiro, sempre imperou o princípio da liberdade da prova, exceto quanto ao
estado civil das pessoas (art. 155, CPP) e as restrições são estabelecidas taxativamente pela lei.” MARQUES,
op. cit., p. 270: “Em juízo, por outro lado, não há restrições na exploração das fontes e meios de prova, como
se deduz, a contrario sensu, do que preceitua o art. 155 do Código de Processo Penal”. 53 Leonardo Greco, por exemplo, sustenta que as provas legais devem ser admitidas quando o exercício do direito dependa do registro público de seu fato gerador. Cf. GRECO, Leonardo. A prova no processo civil: do
Código de 1973 ao novo Código Civil. In: ____. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes:
Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 373.
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primado dos direitos fundamentais foram associados à proibição
das provas ilícitas, ainda que nominadas.”54
Não se poderia encerrar tal tópico sem mencionar a lição de Ada Grinover,
Scarance e Gomes Filho para quem fontes de prova são “os fatos percebidos pelo juiz” e
meios de prova “são os instrumentos pelos quais os mesmo se fixam em juízo”.55
4) Conclusão
Ao fim e ao cabo, é possível inferir do singelo estudo que reinam variegados
conceitos e formas de ver as questões ora pontuadas.
Assim, nos parece adequado explicitar nossas conclusões.
Com efeito, a prova é uma categoria pertencente à realidade da vida, usada
sempre que se pretender demonstrar a veracidade de determinado fato.56
E, prova e
instrução, de fato, não se confundem.
O objeto da prova no processo penal, que não se confunde com objeto de
prova,57
deve ser visto no caso concreto e diz respeito à veracidade da imputação feita
contra o réu, com todas as suas circunstâncias. Como bem salientou Stefano Ambrogio, o
objeto da prova “(...) si riferiscono all’imputazione, alla punibilità e alla determinazione
della pena o della misura di sicurezza.”58
Por fim, fontes e meios de prova são, igualmente, coisas distintas.
54 Ibid., p. 99. 55 Cf. Ada P. Grinover e outros (op. cit.), p. 118. 56 Não custa relembrar que a maioria dos manuais jurídicos trata o conceito de prova como sendo jurídico. 57 No processo penal, objeto de prova são os fatos, controvertidos ou não, e devem ser abstratamente considerados. 58 Cf. AMBROGIO, Stefano. Compendio di Diritto Processuale penale, 4ª ed., Piacenza: Casa Editrice La
Tribuna, 2012, p. 138.
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Como bem salienta Paolo Tonini, “con l’espressione “mezzo di prova” si
vuole indicare quello strumento processuale che permette di acquisire un elemento di
prova.”59
Na mesma toada, Clariá Olmedo aduz que “medios de prueba son los actos
procesales a introducir en el proceso los elementos de convicción.”.60
As fontes de prova, por seu turno, são os “locais” de onde emana a prova,
ou seja, de onde ela surge, origina-se.
Esperamos, pois, ter contribuído, para o estudo do Direito Probatório, de
extrema importância para a Ciência Processual.
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil, vol.
II, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985.
2) AMBROGIO, Stefano. Compendio di Diritto Processuale penale, 4ª ed.,
Piacenza: Casa Editrice La Tribuna, 2012.
3) ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, 17ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2001.
4) CLARIÁ OLMEDO, Jorge A., Derecho Procesal Penal, tomo II, Buenos Aires:
Rubinzal-Culzoni Editores.
5) CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. Da prova no processo penal, 5ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 1999.
6) CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo, 8ª ed., Rio de
Janeiro: Forense, 2002.
7) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol III,
São Paulo: Malheiros, 2001.
59 Cf. TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale, 7ª ed., Milão: Giuffrè Editore, 2006, p. 241. 60 Cf. CLARIÁ OLMEDO, Jorge A., Derecho Procesal Penal, tomo II, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni
Editores, sem ano, p. 311.
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8) GRECO, Leonardo. A prova no processo civil: do Código de 1973 ao novo Código
Civil. In: ____. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de
Direito de Campos, 2005.
9) GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio;
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio. As nulidades no processo penal, 8ª ed., São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
10) MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal,
tradução de Paolo Capitanio, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2001.
11) MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II,
Campinas: Bookseller, 1998.
12) MIRZA, Flávio. Reflexões sobre a avaliação da prova pericial. In: BASTOS,
Marcelo Lessa; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior (Orgs). Tributo a
Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p.
205-223.
13) _____________. Notas sobre a questão da verdade no direito processual. In:
CALVET DA SILVEIRA, Carlos Frederico Gurgel; SALLES, Sérgio de Souza; MARCY
ROSA, Waleska (Orgs). Ensaios sobre Justiça, Processo e Direitos Humanos II,
Petrópolis: UCP, 2009, capítulo 4, p. 101-121.
14) MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, tradução de
Herbert Wüntzel Heinrich, Campinas: Bookseller, 1997.
15) ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, tradução de Gabriela E. Córdoba e
Daniel R. Pastor, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000.
16) TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale, 7ª ed., Milão: Giuffrè Editore,
2006.
17) TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. III, São Paulo: Saraiva,
1978.
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“DECRETO DEL FARE” E MEDIAZIONE; AVVOCATI MEDIATORI OPE
LEGIS
Giovanni Matteucci
Lauree in Giurisprudenza ed Economia & Commercio a “la
Sapienza” di Roma; “Diploma in Economics” presso
University of York (UK); Master di 1° livello in “Procedure
stragiudiziali di soluzione delle controversie” (mediazione ed
arbitrato) e “Corso di alta formazione in diritto fallimentare”
Università di Siena. [email protected]
“I dati segnalano 215.689 iscrizioni di affari di mediazione tra il 21 marzo 2011 e
il 30 giugno 2012, tempi di piena anche se prima operatività della condizione di
procedibilità introdotta dal d.lgs. n. 28 del 2010 …. con un risultato di oltre 31 mila
conflitti risolti nei circa 15 mesi iniziali di compiuta implementazione del sistema. Dal che
si può desumere la rilevanza dello strumento in proiezione pluriannuale, sia in termini di
accesso a risoluzioni meno onerose dei conflitti, sia in chiave di prevenzione di processi.
… E per comprendere la rilevanza dell’obbligatorietà per la promozione della mediazione
basta osservare che la suddivisione in categorie indica: mediazione per clausola
contrattuale 0,3%; mediazione demandata dal giudice 2,8%; mediazione volontaria 16%;
mediazione obbligatoria in quanto condizione di procedibilità 80,9%”. Così la relazione
illustrativa del Decreto Legge 21.6.2013, n.13 (in G.U. 21.6.2013, n. 144, S.O. n.50), detto
“Decreto del fare”.
Decreto con cui sono state reintrodotte, nel D.Lgs. 28/2010, molte delle norme
obliterate a seguito della sentenza delle Corte Costituzionale 272/2012, nonché introdotte
novità di non poco conto:
- reintrodotta l’obbligatorietà, ovvero la mediazione civile e commerciale torna ad essere
condizione di procedibilità in relazione a numerose controversie; è questo il punto più
rilevante, sia per i sostenitori che per gli oppositori dell’istituto (gli uni e gli altri per “vil
denaro” ?) nonché il collegamento mediazione processo tramite la proposta del
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mediatore, non condivisa dalle parti, e l’eventuale corrispondenza del suo contenuto a
quello della sentenza;
- le controversie, per le quali c’è l’obbligo della mediazione sono le stesse previste dal
D.Lgs. 28/2010 (condominio, diritti reali, divisione, successioni ereditarie, patti di
famiglia, locazione, comodato, affitto di aziende, risarcimento del danno derivante da
responsabilità medica e diffamazione a mezzo stampa o altro mezzo di pubblicità, contratti
assicurativi bancari e finanziari) eccetto quelle relative alla responsabilità per danno da
circolazione di veicoli e natanti (“captatio benevolentiae” nei confronti della classe degli
avvocati ?);
- gratuità completa per i soggetti non abbienti, quelli che nel procedimento giudiziario
avrebbero diritto al gratuito patrocinio;
- entro 30 giorni dal deposito della domanda, un primo incontro di programmazione, in
cui il mediatore verifica con le parti la possibilità di proseguire il tentativo di mediazione
(se a questo incontro si presenteranno solo gli avvocati –se non i praticanti di studio- , la
sua utilità sarà vicina allo zero); nel caso non si raggiunga l’accordo “l’importo massimo
complessivo delle indennità di mediazione per ciascuna parte, comprensivo delle spese di
avvio del procedimento, è di 80 euro, per le liti di valore sino a 1.000 euro; di 120 euro,
per le liti di valore sino a 10.000 euro; di 200 euro, per le liti di valore sino a 50.000 euro;
di 250 euro, per le liti di valore superiore” (quanti saranno i professionisti qualificati
disposti a impegnare due o tre ore del proprio tempo per remunerazioni di questo livello ?);
- contenimento dei costi della mediazione nei casi in cui questa sia condizione
obbligatoria di procedibilità o prescritta dal giudice (chi controllerà la rotazione degli
incarichi di mediazione da parte dei responsabili degli organismi ?);
- la durata del procedimento di mediazione viene ridotta da quattro a tre mesi (per
quanto superfluo, compatibilmente con le richieste di rinvio degli incontri da parte degli
avvocati in relazione a date in precedenza indicate dagli stessi !), trascorsi i quali il
processo può essere iniziato o proseguito;
- efficacia esecutiva del verbale di conciliazione solo se sottoscritto dagli avvocati che
assistono le parti , il che mi pare corretto perché il mediatore non è un tecnico del diritto;
inoltre, gli avvocati sono già quasi sempre presenti agli incontri, per cui nella pratica
cambia ben poco;
- possibilità per il magistrato di disporre l’esperimento del procedimento di
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mediazione anche nei casi in cui non è condizione obbligatoria di procedibilità,
indicando l’ organismo presso il quale effettuare il tentativo; novità assoluta, che
potrebbe essere determinante per il decollo della mediazione in Italia o per il suo
affossamento definitivo (vedi ultra);
- esclusione della mediazione obbligatoria nei procedimenti di consulenza tecnica
preventiva ai fini della composizione della lite, ex art. 696-bis c.p.c. (sarebbe interessante
sapere perché questo istituto è stato finora utilizzato pochissimo; quando l’ho chiesto ad
avvocati mi hanno risposto che i magistrati non lo gradiscono; quando mi sono rivolto a
magistrati, mi hanno detto che gli avvocati non si fidano! Una constatazione è indubbia: lì
dove c’è una possibile soluzione conciliativa della controversia, puranche nell’ambito di
una procedura giudiziale, i tecnici del diritto sono concordi nel … non utilizzarla);
- “gli avvocati iscritti all’albo sono di diritto mediatori”; e qui penso si raggiunga l’acme
del surreale: in quante università italiane viene insegnata la mediazione? quante sono le ore
dedicate a questo istituto nelle scuole di formazione forense? Insomma, gli avvocati
saranno promossi mediatori con il “18 politico”, di sessantottesca memoria.
Secondo uno dei principali esperti di mediazione in Italia, il Dr. Nicola Giudice,
“una norma sorprendente, sia per gli avvocati non mediatori, che solo ora scoprono
talenti che non pensavano di avere, sia per gli avvocati che in questi mesi hanno investito
tanto in corsi e formazione e ottenere competenze che in realtà già possedevano. A conti
fatti, la norma porterebbe ad avere in Italia circa 250.000 mediatori, probabilmente di
più. Prendendosi per mano, formerebbero un’ininterrotta catena da Torino a Lione… che
ci sia un doppio fine? Al di là della battute, mi pare una norma molto pericolosa, che
vanifica i molti sforzi per alzare la qualità della mediazione in Italia. Todos caballeros?” 1
.
Le innovazioni sopra accennate, se non modificate, entreranno in vigore dopo 30
giorni dalla conversione in legge del decreto.
Perché è stata reintrodotta l’obbligatorietà ?
1 Nicola Giudice, responsabile del servizio di conciliazione presso la CCIAA di Milano
http://blogconciliazione.com/2013/06/decreto-fare-e-mediazione-qualche-commento-dopo-la-
pubblicazione/#comments Di particolare interesse, inoltre, l’analisi della normativa di molti Paesi su questo aspetto ad opera dell’avv.
Carlo Alberto Calcagno, del foro di Genova, http://mediaresenzaconfini.org/2013/06/25/gli-avvocati-
mediatori-di-diritto/#comment-403 .
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Secondo la Relazione illustrativa del Decreto del fare, in quindici mesi, su
215.689 procedimenti iniziati oltre 31 mila sono stati risolti con la mediazione e l’80%
delle procedure era di matrice “obbligatoria”. D’accordo sulla seconda affermazione, sulla
prima ritengo opportuno fare delle precisazioni.
In base ai dati pubblicati da alcune settimane dal Ministero della Giustizia, dal 2°
trimestre 2011 al 4° trimestre 2012 i procedimenti iscritti sono stati 215.689, dei quali
26.822 risolti: il 12%. Riconducibili alla obbligatoria un 10 / 11%. Un dato non esaltante,
anche se è da considerare che l’utilizzo dell’istituto era solo agli inizi, nonché oggetto di
polemiche veementi, a volte pretestuose.
Tuttavia queste sono medie statistiche, le quali, prese di per sé, possono indurre ad
errori di una certa consistenza, come insegnano “i due polli” di Trilussa: se la media
statistica dice che due persone mangiano un pollo a testa, nella realtà uno potrebbe
mangiarne due e l’ altro nemmeno uno 2. Tra i dati pubblicati ce ne sono alcuni che non
sono commentati da alcuno: quelli sul “tasso di successo” delle mediazioni attive, quelle
cioè dove sono presenti entrambe le parti: diminuisce COSTANTEMENTE dal 59 % del
2° trimestre 2011 al 40 % del 3° trimestre 2012 (38% nel 4°). Di conseguenza,
considerando anche il tasso di comparizione dell’aderente (cioè le mediazioni cui è
presente anche la parte invitata) il tasso di definizione positiva di tutte le procedure avviate
passa dal 15 % del 2° trimestre 2011 al 9 % del 3° trimestre 2012 (8% nel 4°). Un dato
che definire poco soddisfacente è eufemistico.
Perché la diminuzione COSTANTE del tasso di successo delle mediazioni attive ?
Secondo un esperto del settore le parti, una volta individuata con l’aiuto del mediatore la
via dell’accordo, scomparivano per non pagare il “di più” dovuto al successo della
procedura. Per me anche a causa della progressiva diminuzione della qualità generale dei
mediatori; il frusciare di soldi facili (per pochi) che c’è stato nel comparto della
mediazione nel 2010-2011 ha indotto qualche personaggio non qualificato ad inventarsi
formatore (ad inizio 2012, facendo un tirocinio come discente, ho constatato che il
problema principale per il mediatore era quello di individuare quali soggetti, presenti alla
2 Trilussa (Roma, 1871-1950) : “ Sai che d'è la statistica? È na' cosa che serve pe fà un conto in
generalede la gente che nasce, che sta male,che more, che va in carcere e che spósa. “ Ma pé me la
statistica curiosa è dove c'entra la percentuale, pé via che, lì, la media è sempre eguale puro co' la persona
bisognosa. “ Me spiego: da li conti che se fanno seconno le statistiche d'adessorisurta che te tocca un pollo
all'anno: e, se nun entra nelle spese tue, t'entra ne la statistica lo stesso perch'é c'è un antro che ne magna
due”.
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procedura, dovessero firmare il verbale !); inoltre sulla mediazione si sono gettati nugoli di
cavallette, desiderose di accattare 300 – 400 euro al mese, necessarie per pagare le bollette
degli studi, la cui attività –come quasi tutte le iniziative economiche in Italia- non rendeva
più come prima.
Dalla sentenza della Corte Costituzionale 272/2012 ad oggi la congiuntura
economica è peggiorata e continuerà in questo trend. Se le norme sopra richiamate
dovessero essere convertite in legge si rischia davvero di avere oltre 240.000 mediatori.
Quelli seri (quanti?) si documenteranno. Gli altri è probabile che chiederanno l’iscrizione
“d’ufficio” presso gli Organismi di mediazione forense (che dovranno tra l’altro gestire
migliaia di mediatori). Quali saranno le conseguenze del “18 politico” sulla qualità del
servizio? Ed allora sì che ci sarà da chiedersi: “Perché i cittadini dovrebbero pagare un
ulteriore balzello ? ”.
Un aiuto consistente all’affermarsi della mediazione potrebbe venire dalla
magistratura, dalla quale (secondo i citati dati del Ministero della giustizia) è arrivato solo
il 2,9% del totale delle procedure di mediazione avviate in tutta Italia. Nonostante presso il
Tribunale di Roma – Sezione staccata di Ostia, “abbiano stimato prudenzialmente nel 10%
la riduzione delle sentenze ottenuta grazie alla mediazione” 3;
Con le norme introdotte dal Decreto del fare, nel caso di controversie su diritti
disponibili non oggetto di mediazione obbligatoria “ope legis”, il magistrato può non solo
invitare le parti ad adire la procedura stragiudiziale, ma anche obbligarle, indicando
l’organismo di mediazione cui rivolgersi. Quali organismi? Altamente probabile quelli
pubblici, con professionisti per formazione più vicina a quella degli stessi magistrati. Cioè
gli organismi pieni di mediatori divenuti tali con il “18 politico”.
Ma a quel punto, che necessità ci sarebbe di un primo incontro di
programmazione (e spese relative) ? Lo stesso tentativo, con gli avvocati, potrebbe farlo il
magistrato nella prima udienza di trattazione della causa. E per la mediazione, “De
profundis clamamus ad te …”!
L’obbligatorietà è stata un male necessario per indurre alcune migliaia di
professionisti a documentarsi sulla mediazione 4 (50 ore di corso servono ad INformarsi ,
3 http://www.mondoadr.it/cms/articoli/resoconto-del-convegno-il-ruolo-del-giudice-nella-mediazione.html 4 Il D.Lgs. 5/2003, artt. 38 39 e 40, aveva normato la conciliazione nelle controversie in materia societaria,
bancaria, finanziaria e creditizia, con la possibilità di una proposta di soluzione da parte del mediatore su
concorde richiesta delle parti e di esecutività del verbale di conciliazione previa omologa del presidente del
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non certo a formarsi per gestire una qualunque nuova attività). Ha fatto esplodere un
business, soprattutto nella formazione, dopodiché è divenuta un feticcio, denigrato dagli
avversari, idolatrato dai favorevoli (gli uni e gli altri spesso per motivi economici). Ma
l’obbligatorietà nulla ha a che vedere con la mediazione, che è un procedimento
INFORMALE e VOLONTARIO, BASATO SULLA COMUNICAZIONE.
L’ ACCORDO E’ RAGGIUNTO DALLE PARTI, la cui comunicazione è
facilitata da un terzo, il quale non deve fare una proposta: la tecnica valutativa (anche un
po’ spinta) è sufficiente. Per cui la mediazione è (e deve rimanere) SCOLLEGATA DAL
PROCESSO.
Se la si ritiene utile come mezzo deflattivo del contenzioso 5 non va snaturata, ma
incentivata con interventi economici forti in relazione a tutti i diritti disponibili ; tipo, per
cinque anni:
. esenzione dall’imposta di registro, per qualunque importo della controversia, piena se si
raggiunge l’accordo, in caso contrario si paga un terzo;
. deducibilità delle spese sostenute in mediazione piena se si raggiunge l’accordo, in caso
contrario si deduce un terzo;
. importo del contributo unificato triplo per chi si rivolge al magistrato senza aver
raggiunto un accordo in mediazione 6; per evitare che il soggetto economicamente forte si
faccia beffe del debole, obbligo per il mediatore di far presente la conseguenza alle parti
che non raggiungano l’intesa e descrizione, nel verbale, delle proposte di accordo avanzate
da ognuna; il magistrato poi valuterà la fondatezza delle une e delle altre e imputerà
l’importo complessivo (a carico di tutte le parti) al soggetto che, temerariamente, non ha
dato l’assenso all’accordo.
Fissazione di un massimo alle tariffe praticabili dai singoli organismi. Esenzione
dalle spese per i soggetti che possono beneficiare del gratuito patrocinio. Obbligo per gli
organismi di pubblicare i curriculum vitae dei singoli mediatori, con la specifica dei corsi
di formazione seguiti e delle pubblicazioni (relative alla mediazione) effettuate.
tribunale. L’utilizzo della procedura fu vicino allo zero assoluto. Quando ne chiesi il perché a degli avvocati
mi risposero: “ Perché non era obbligatoria! ”. 5 A tal fine, oltre alla mediazione, normare e agevolare economicamente la negoziazione assistita dagli
avvocati, nonché la translatio judicii ai procedimenti arbitrali (il passaggio della controversia, cioè, a
determinate condizioni, dal giudice alle camere arbitrali). 6 Cosa successe alle opposizioni alle sanzioni amministrative (leggi: multe per infrazioni al codice della
strada) davanti ai giudici di pace, da sempre esenti da spese, quando fu introdotto un modesto contributo a
carico dell’ opponente? Diminuzione del 40%.
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Aumentare i requisiti relativi alla formazione:
- iniziale della durata minima di 100 ore, di cui quaranta dedicate alle sole tecniche di
gestione della comunicazione e simulazioni di mediazioni, nonché partecipazione a 10
mediazioni “attive” (non solo in ambito civile e commerciale);
- aggiornamento biennale di 24 ore, di cui 12 dedicate alle tecniche di gestione della
comunicazione.
Da ultimo, occorre che lo strumento mediazione, ED I VANTAGGI
ECONOMICI, siano conosciuti dal grosso pubblico: il programma televisivo “Forum”, in
onda su Canale 5 e Rete 4, simula un arbitrato; elaborare un format, che simuli una
mediazione. Inoltre promuovere nelle università “gare” sulla mediazione così come
sperimentato a Milano 7.
Machiavelli diceva che gli uomini possono scordarsi di un torto inferto ai propri
famigliari, ma non un danno causato alle proprie ricchezze.
MEDIAZIONE CIVILE E COMMERCIALE IN ITALIA
elaborazioni su dati del Ministero della Giustizia
Comparizione Tasso di successo Tasso di
definizione
dell’aderente se l’aderente compare se l’aderente
compare
2011 2° trim. 26,1 % 59,3 % 15,5 %
3° “ 30,1 % 50,8 % 15,3 %
4 ° “ 36,0 % 49,4 % 17,8 %
2012 1° trim. 35,7 % 44,1 % 15,7 %
2° “ 26,2 % 42,9 % 11,2 %
3° “ 21,7 % 40,5 % 8,8 %
4° “ 21,2 % 38,0 % 8,1 %
Media 21.3.2011/31.12.2012 27,0 % 43,9 % 11,8 %
7 Università degli Studi di Milano e Camera Arbitrale presso la CCIAA di Milano, “Prima competizione
italiana di mediazione”, 27.2.2013.
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Iscrizioni Tasso di definizione Procedure
definite
se l’aderente compare con successo
2011 2° trim. 18.138 15,5 % 2.811
3° trim. 15.670 15,3 % 2.398
4° trim. 27.002 17,8 % 4.806
2012 1° trim. 30.880 15,7 % 4.848
2° trim. 51.634 11,2 % 5.783
3° trim. 45.040 8,8 % 3.963
4° trim. 27.325 8,1 % 2.213
Totale 215.689 26.822
Procedimenti Iscritti Definiti Pendenti
iniziali finali
21.03 / 31.12.2011 742 60.810 40.162 21.390
01.01 / 31.12.2012 21.390 154.879 152.631 23.638
---------- ----------
215.689 192.793
Dal 21 marzo 2011 al 31 dicembre 2012
Iscrizioni per materia risarcimento danni da circolaz. veicoli e natanti 20,5%
diritti reali 14,0%
locazione 11,0%
contratti bancari e finanziari 9,9%
contratti assicurativi 7,0%
risarcimento danni da responsabilità medica 6,1%
altro 31,5%
Mediazione per tipologia Sul totale Tasso di successo
di procedimento se l’aderente compare
obbligatoria per legge 83,5% 43%
volontaria 13,3% 62%
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demandata dal giudice 2,9% 29%
obbligatoria da contratto 0,3% n.d.
Mediazione per tipologia Comparizione Tasso di successo Tasso di
definizione
di organismo dell’aderente se l’aderente compare se l’aderente
compare
CCIAA 34,4% 48,6% 16,7%
Organismi privati 25,4% 46,4% 11,8%
Ordini profess. non avvocati 28,6% 36,3% 10,4%
Ordini avvocati 26,2% 33,6% 8,8%
Media ponderata 27,0% 43,9% 11,8%
In mediazione hanno assistenza legale proponenti 81,3%
aderenti comparsi 80,6%
Valore mediano della lite euro 10.000
Durata delle procedure tribunale 1.066 giorni
(cognizione ordinaria 2010)
mediazione, aderente comparso
accordo non raggiunto 77 giorni
accordo raggiunto 65 giorni
I dati al 31.12.2012 elaborati e forniti dal Ministero della Giustizia sono riportati in
http://webstat.giustizia.it/AreaPubblica/Analisi%20e%20ricerche/Forms/Mediazione.aspx
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217
O CABIMENTO DAS CHAMADAS DEFESAS HETEROTÓPICAS DO
EXECUTADO
Gustavo José Mizrahi
Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Advogado inscrito na Ordem dos Advogados
do Brasil, Seção do Rio de Janeiro.
RESUMO: Este estudo aborda tanto descritiva quanto criticamente o tema da defesa
heterotópica, principalmente no tocante ao seu cabimento. Busca-se uma reflexão do
instituto a partir das garantias constitucionais do devido processo legal, do direito de ação e
do contraditório, sem deixar de lado a importância fundamental do princípio da duração
razoável do processo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil. Execução. Defesa do executado. Defesa
heterotópica. Cabimento.
ABSTRACT: This study addresses the theme of heterotopic defense, especially with
regard to its applicability. It reflects upon this concept from a perspective of the
constitutional guarantees of due process of law and the rights of action and defense,
without neglecting the fundamental importance of reasonable duration of proceedings.
KEYWORDS: Civil Litigation Process. Implementation of legal sentence. Legal defense.
Heterotopic defense. Applicability.
1 - Introdução
As defesas do executado tipicamente previstas no Código de Processo Civil são os
embargos do executado e a impugnação ao cumprimento de sentença, previstas nos artigos
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7361 e 475-J, § 1º
2, respectivamente. Além deles, o executado pode de se valer da exceção
de pré-executividade para atacar as matérias de ordem pública e que não demandem a
realização de uma ampla dilação probatória.
Contudo, as referidas tradicionais defesas do executado não são as únicas. Como
será demonstrado adiante no presente trabalho, é possível que o executado utilize uma ação
judicial autônoma de conhecimento com finalidade específica de combater a execução ou
algum ato do procedimento executivo. Trata-se, portanto, da chamada defesa heterotópica.
A doutrina nomeou o instituto de defesa heterotópica, dando ênfase à sua posição
metodologicamente distinta das demais defesas utilizadas pelo executado. Seria a junção
das palavras “hetero” e “tópico”, significando lugar diferente. Optou-se em denominar
heterotópica essa defesa, pois as disposições relativas a essas diferentes ações manejáveis
pelo executado e seus eventuais reflexos sobre a execução encontrarem-se em tópicos
próprios, não inseridos no Livro II do Código de Processo Civil que trata do processo de
execução3.
Essa ação de conhecimento autônoma de impugnação é uma forma de defesa
baseada na relação de prejudicialidade jurídica externa existente entre ela e o processo de
execução. Em outras palavras, o fundamento do instituto é a matéria a ser decida na
demanda autônoma ter o poder de prejudicar o curso da execução no caso de procedência
total ou parcial.
De maneira geral, as espécies de defesas heterotópicas podem ser sistematizadas
através de uma classificação voltada para as diversas possibilidades relacionais entre elas e
a execução, como propõe Sandro Gilbert Martins4. Segundo a lógica do autor, (a) quanto
ao momento do ajuizamento, a ação prejudicial pode ser antecedente (anterior à execução)
ou incidente (quando já estiver tramitando a execução); (b) já no que tange ao efeito,
poderá ser inibitório (obstáculo ao início da execução) ou suspensivo (impedimento do
prosseguimento da execução); e, por fim, (c) referente ao objeto, ela poderá ser formal
1 Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por
meio de embargos. 2 Art. 475-J. (...). § 1o Do auto de penhora e de avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa
de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por
mandado ou pelo correio, podendo oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias. 3 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 4 Ibid. p. 245/246.
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(combate ao título executivo propriamente dito) ou causal (ausência de direito material que
ampare o título executivo).
O executado pode utilizar-se dessa forma de defesa para debater a pretensão
executiva propriamente dita, ou até aspectos processuais relativos ao processo de
execução. Na primeira hipótese (“ataque à pretensão executiva”), pode-se cogitar da ação
em que se busca a declaração de que o crédito não existe (porque jamais foi constituído,
porque já foi pago etc.) ou se tornou inexigível (p. ex., porque já está prescrita a
pretensão). Exemplifique-se, ainda, com a ação promovida depois de já finalizada a
execução, por meio da qual o executado, sustentando que o crédito inexistia, busca não
apenas uma declaração nesse sentido, mas também reaver junto ao exequente o montante
que lhe foi expropriado (repetição de indébito). Exemplo da segunda hipótese (“ataque a
aspectos processuais”) tem-se quando ação autônoma é promovida para se apontar a
nulidade da penhora e dos consequentes atos expropriatórios, sob o fundamento de que o
bem constrito era impenhorável. Considera-se também a hipótese de ação destinada a
impugnar a validade da hasta pública ou da alienação por iniciativa privada. Pode-se ainda
exemplificar com a ação destinada a obter o reconhecimento de que o documento
apresentado pelo executado não constitui título executivo – e assim por diante5.
Tais quais as outras espécies de defesa do executado anteriormente mencionadas
neste trabalho, as ações impugnativas também podem questionar apenas parte da execução.
Isso ocorrerá quando o executado/autor questionar somente parcela do crédito pretendido,
e, por via de consequência, os reflexos do ajuizamento guardarão relevância apenas à parte
questionada, como por exemplo, não será possível atribuir efeito suspensivo à execução
como um todo, mas apenas quanto à parcela controversa.
Indo adiante, não se pode dizer de antemão o procedimento a ser seguido pela
defesa heterotópica, uma vez que ele dependerá diretamente da própria natureza do meio
empregado. Em outras palavras, o rito processual deverá ser aquele tipicamente previsto
para a respectiva ação manejada pelo executado. Observe-se que a parte pode ajuizar uma
ação anulatória ou declaratória, e, nesses casos deverá ser observado o procedimento
comum ordinário ou o comum sumário, a depender do valor da pretensão, todavia, pode,
5 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 530/531.
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também, impetrar um mandado de segurança ou ajuizar uma ação rescisória, quando,
nesses casos, a parte deverá seguir o rito especial respectivo.
Assim, é preciso ter em mente que a defesa heterotópica é uma forma atípica de o
executado obstar a execução (processo ou fase) ou algum ato executivo. Trata-se de um
meio autônomo de impugnação que pode seguir diversos ritos, a depender da ação
ajuizada.
2 - Prejudicialidade
A questão prejudicial é uma espécie do gênero questão prévia. O processualista
Olavo de Oliveira Neto, ao debruçar-se sobre o tema, definiu a questão prévia
identificando como elemento principal a sua antecedência lógica e necessária para o
julgamento da causa principal6. Ela é todo e qualquer fundamento de fato ou de direito,
controverso, que seja antecedente lógico ao julgamento final da causa. Não se trata apenas
de um pressuposto cronológico, mas também lógico ao julgamento da questão principal.
Passando a tratar diretamente sobre a natureza jurídica da questão prejudicial
(espécie), historicamente, discutiu-se por muitos anos sobre esse aspecto em doutrina, e
uma forte corrente substancialista acreditou que ela não passaria de um pressuposto fático
de outra relação jurídica, como identificou José Carlos Barbosa Moreira7.
A mencionada corrente substancialista, todavia, não se presta a explicar
suficientemente o fenômeno da prejudicialidade, tendo em vista que a referida teoria
agasalha apenas as hipóteses de questões de direito material, não albergando as matérias
exclusivamente processuais. Na esfera da relação de prejudicialidade, diversas são as vezes
em que estaremos falando de questão unicamente de direito processual, razão pela qual a
referida corrente não merece prosperar.
E não prosperou. A definição mais aceita entre os autores para a prejudicialidade
em sentido lato é aquela que leva em conta a subordinação lógica, mostrando-se necessário
o julgamento anterior da questão subordinante à questão subordinada. Segundo Rosalina
Pinto da Costa Rodrigues, a prejudicialidade em sentido amplo ocorre quando uma questão
deve ser lógica e necessariamente decidida antes de outra, porque sua decisão influenciará
6 OLIVEIRA NETO, Olavo de. Conexão por Prejudicialidade. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994. p. 77. 7 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967. p.
38.
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o próprio teor da questão vinculada. É a chamada prejudicialidade lógica, porque a relação
de prejudicialidade é antes de tudo um processo lógico que se estabelece no raciocínio do
magistrado8.
Essa definição, contudo, é bastante abrangente para explicar o fenômeno da
prejudicialidade jurídica, uma vez que está fundada exclusivamente em critérios lógicos.
Dessa maneira, as críticas quanto à aplicação prática dessa teoria que se apoia em critérios
eminentemente lógicos, fizeram surgir outra teoria, majoritária em doutrina, segundo a
qual, além da anterioridade lógica, a relação de prejudicialidade jurídica ocorrerá pela
possibilidade de a questão prejudicial ser objeto de um processo, ação ou juízo autônomo9.
Em síntese, é possível dizer que haverá prejudicialidade (a) quando existir uma
condição de subordinação lógica e jurídica entre duas questões, (b) no momento em que a
solução da questão prejudicial seja potencialmente influente na questão prejudicada e (c)
nas ocasiões em que seja possível a questão subordinada ser objeto de ação autônoma. Não
basta haver uma relação condicional lógica e jurídica entre duas questões, na qual uma é
capaz de influenciar diretamente a outra. É necessário, também, que a questão influenciada
tenha aptidão para ser objeto de juízo autônomo.
Com relação à defesa heterotópica, a prejudicialidade é o canal que liga ela à
execução. A prejudicialidade é responsável pelo fato de uma demanda de conhecimento
afetar diretamente o resultado do processo de execução. Somente por meio dela é que se
faz possível existirem as defesas heterotópicas em nosso sistema processual. Segundo
Teresa Arruda Alvim Wambier, além da independência ou autonomia no que tange ao
aspecto procedimental, o elo que liga ações à execução é o da prejudicialidade. Esta
relação lógica se traduz na necessária influência que o resultado destas ações terá sobre a
execução, desde que julgadas parcial ou inteiramente procedentes. E aqui se fala em
execução futura, execução concomitante ou execução já terminada10
.
Nesse sentido, a autora Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira reconhece a
importância fundamental da referida relação de subordinação para as defesas heterotópicas.
8 PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra
devedor solvente. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 57. 9 Ibid. p. 60 10 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se
discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724.
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Tanto é verdade que em seu livro sobre o tema das defesas heterotópicas11
, a sobredita
autora utiliza o termo “Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra devedor
solvente” para se denominar o instituto.
É possível concluir, portanto, que a defesa heterotópica é uma controvérsia de fato
e de direito em relação à execução. Ou seja, ela é baseada na natureza prejudicial externa, e
como tal, a sua decisão tem o atributo de subordinar o julgamento da questão prejudicada,
determinado ato da execução ou a pretensão executiva propiamente. E sendo assim, a
defesa heterotópica (a), é um antecedente lógico e jurídico ao julgamento final da
execução, (b) sendo ela potencialmente influenciadora do resultado do processo
prejudicado e (c) com autonomia suficiente para ser julgada em outro processo.
3 - Aspectos gerais sobre o cabimento das defesas heterotópicas
O cabimento da defesa heterotópica é, sem sombra de dúvidas, um ponto de suma
importância, uma vez que diversos são os debates que envolvem a matéria e, sem falar, no
constante e intenso choque de princípios que o instituto propicia. A efetividade processual
entra em rota direta de colisão com o acesso à justiça. Justamente por isso, os juristas são
ardorosos na defesa de suas posições, seja pelo cabimento amplo, seja pelo cabimento
restrito.
O Código de Processo Civil regula de maneira indireta a possibilidade de o devedor
utilizar-se de uma demanda judicial para discutir um débito representado através de título
executivo. Essa conclusão se extrai do próprio art. 585, § 1.º, do Diploma processual12
,
interpretado a contrario sensu, na redação que lhe foi imprimida pela recente reforma que
vem sofrendo o Código de Processo Civil brasileiro (Lei 8.953/94). Nesse dispositivo, o
próprio legislador faz alusão a “qualquer ação relativa ao débito constante do título
executivo”. Trata-se na verdade, de reconhecimento expresso, por parte do legislador
11 PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Ações prejudiciais à execução por quantia certa contra devedor solvente. São Paulo: Saraiva, 2001. 12 Art.585. (...) § 1oA propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe
o credor de promover-lhe a execução.
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ordinário, do direito a que o devedor intente outras ações para discutir se deve ou não deve
questionar o quantum da dívida13
.
Além disso, cumpre destacar que a referida disposição legal não é a única que
confere ao executado tal possibilidade. Afinal, o artigo 686, inciso V, do Código de
Processo Civil14
, bem como o artigo 38, da Lei de Execuções Fiscais15
também seriam
fundamentos legais para o cabimento da defesa heterotópica em nosso modelo processual.
Em suma, o nosso ordenamento apresenta no mínimo três fundamentos legais que
permitem reconhecer essa forma de defesa heterotópica, a saber: o § 1.º do art. 585 e o
inciso V, do art. 686, ambos do CPC, e o art. 38 da Lei de Execução Fiscal (Lei
6.830/80)16
.
A jurisprudência de nossos tribunais também vem caminhando no sentido de
acolher a possibilidade do devedor ajuizar ações prejudiciais à execução. A interpretação
que é feita ao mencionado dispositivo da lei processual é similar à realizada pela doutrina
majoritária. O principal precedente sobre a matéria nas cortes de nosso país é o REsp
677.741/RS, julgado pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do
Ministro Teori Albino Zavascki. No caso, o relator afirmou em seu voto que não existe
obstáculo para que o devedor intente uma ação judicial com escopo de combater o título
executivo, aliás, o que restou expresso na própria ementa do julgado17
.
13 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se
discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 723. 14 Art. 686. Não requerida a adjudicação e não realizada a alienação particular do bem penhorado, será
expedido o edital de hasta pública, que conterá: V - menção da existência de ônus, recurso ou causa pendente
sobre os bens a serem arrematados. 15 Art. 38. A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma
desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do
ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente
corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos. 16 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 241 17 PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL E AÇÃO ANULATÓRIA DO DÉBITO. CONEXÃO.
SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO EXEQÜENDO SEM GARANTIA DO JUÍZO.
INVIÁVEL. 1. Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe
o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o
ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver
declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja
por outra ação declaratória ou desconstitutiva. Nada impede, outrossim, que o devedor se antecipe à execução
e promova, em caráter preventivo, pedido de nulidade do título ou a declaração de inexistência da relação
obrigacional. 2. Ações dessa espécie têm natureza idêntica à dos embargos do devedor, e quando os antecedem, podem até substituir tais embargos, já que repetir seus fundamentos e causa de pedir importaria
litispendência. 3. Para dar à ação declaratória ou anulatória anterior o tratamento que daria à ação de
embargos, no tocante ao efeito suspensivo da execução, é necessário que o juízo esteja garantido. 4.
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Existe uma preocupação por parte de alguns juristas no que diz respeito ao
cabimento das defesas por meio de ação autônoma de conhecimento, em razão de
entenderem que a efetividade do processo estaria maculada diante de mais esse
instrumento defensivo conferido ao executado. Para eles, a utilização desse expediente
violaria o princípio da celeridade, pois não passaria de mais uma forma de protelação.
Pondera, portanto, Rafael de Oliveira Rodrigues, em artigo sobre o abuso do
processo por meio da defesa heterotópica, que o legislador sabe da finalidade da defesa do
executado e que ela não pode inviabilizar o próprio processo executivo a que esta defesa
está ligada. Trata-se de um sistema, um todo orgânico, dotado de um sentido lógico. Há,
decerto, que se resguardar uma etapa do processo para se garantir o direito de defesa. Mas,
de outro lado, não se pode olvidar dos demais princípios, tais como do devido processo
legal, da efetividade do processo, da duração razoável dos feitos, a fim de levar a efeito
apenas um deles18
.
Ouso divergir, todavia, do pensamento acima elucidado. Entendo que o ponto de
vista adequado para observar o instituto da defesa heterotópica é aquele que a vê como
uma ação autônoma de conhecimento. Ou seja, antes de defesa, ela é uma ação judicial
como qualquer outra, e como tal, é corolário da garantia constitucional do acesso à justiça.
Senão vejamos.
Por ser vedada, em regra, a autotutela, quando alguém sofre dano proveniente de
ato ilícito, somente o Estado poderá exercer a defesa dos seus direitos através de uma tutela
jurisdicional, tendo em vista ser ele o detentor do monopólio da força. Para tal, a legislação
previu o direito de ação, entendido ela como a forma de provocar a jurisdição. A única
saída para proteger-se de qualquer espécie de injustiça em sociedade, em regra, é através
de uma tutela jurisdicional, que apenas será concedida quando solicitada pela parte.
Partindo da premissa acima elaborada, sempre existirá o direito de agir por parte do
autor de uma demanda judicial, salvo nas hipóteses em que a sua pretensão, em tese, não
preencher os requisitos das condições da ação. E isso é de suma importância, visto que o
Inexistindo prova da garantia, é inviável a suspensão da exigibilidade do crédito exeqüendo. 5. Recurso
especial a que se nega provimento 17. 18 RODRIGUES, Rafael de Oliveira. O Abuso do Processo por Intermédio da Defesa Heterotópica.
Disponível em < http://www.redp.com.br/arquivos/redp_8a_edicao.pdf >. Acesso em 30 outubro. 2012. p.
862.
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princípio do acesso à justiça é garantia inviolável do nosso Estado Democrático de
Direito19
.
Assim como é possível sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito na esfera
extraprocessual, não se pode negar que também seja possível suportá-la no âmbito do
processo. Se alguma pessoa é inscrita indevidamente nos cadastros de inadimplentes, a ela
cabe ajuizar uma ação judicial, assim como, da mesma forma caberia ao executado ou
potencial executado quando entender lesado ou ameaçado. Portanto, não seria razoável
alijar alguém do direito de ação, que é conferida a todos, indistintamente.
E esse raciocínio não é novo. Ajuizar demanda autônoma de conhecimento contra
ato judicial é bastante comum na prática forense. Quando o relator de um agravo de
instrumento determina a sua conversão em agravo retido (CPC art. 522, inciso II), por
exemplo, por não ser cabível qualquer recurso contra essa decisão, resta à parte como
remédio processual o mandado de segurança contra a decisão do desembargador, por ter
sido violado o direito da parte agravante de ver o seu recurso de agravo julgado
imediatamente e não como preliminar de apelação.
É importante destacar, ainda, que, a ação impugnativa de execução não é apenas um
exercício do contraditório e da ampla defesa. É, além disso, o exercício da garantia
constitucional do direito de agir (CF art. 5º, inciso XXXV)20
. Como se viu, a ação judicial
é meio típico em sociedade para a defesa dos direitos, motivo pelo qual, limitar a priori o
cabimento seria dizer que a parte, frente a uma injustiça, não terá instrumento hábil a se
proteger e deverá suportá-la com todo o vigor que ela tem.
No mesmo sentido, segundo o processualista Sandro Gilbert Martins, reconhecer
que é possível o executado defender-se através de outras ações autônomas e prejudiciais
que não os próprios embargos à execução, além de representar corolário da garantia
constitucional da ação e do acesso à justiça (CF, art. 5.º, XXXV), decorre, entre outras
coisas, da natureza jurídica formal de ação que esse “remédio” possui21
.
Apesar disso, o Projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS nº 166 de 2010)
previa, na sua redação original, no artigo 839, § 2º que “A ausência de embargos obsta à
19NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: Processo civil, penal e
administrativo. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 171 20 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 21 MARTINS, Sandro Gilbert. A Defesa do Executado por Meio de Ações Autônomas: Defesa Heterotópica. 2
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 239.
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propositura de ação autônoma do devedor contra o credor para discutir o crédito.”22
Ou
seja, caso o novo Código fosse aprovado com a redação do referido dispositivo da maneira
em que foi proposta, a defesa heterotópica estaria fadada à proibição quando ultrapassado o
prazo dos embargos de executado. Ao menos, infraconstitucionalmente.
Ocorre que, por se tratar de garantia constitucional, inviolável, indisponível e
irrevogável, o acesso à justiça não poderia ser limitado por simples lei ordinária. Mesmo
que viesse a ser aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da
República, tal dispositivo não seria válido, por ser inconstitucional. O processualista
Humberto Theodoro Júnior, comentando o referido projeto, afirma que a redação do que
seria o §2º, do artigo 839 seria uma verdadeira barbaridade, que atinge as raias da
inconstitucionalidade, em virtude da violação ao direito de ação (direito de acesso à
justiça) àquele que não embargar a execução nos quinze dias da lei23
.
De maneira genérica, é possível compreender que a doutrina e a jurisprudência
entendem serem perfeitamente cabíveis as medidas heterotópicas. O receio de que o
instituto venha a ser mais um meio protelatório a obstaculizar a entrega da tutela
jurisdicional não deve servir de fundamento a impedir o acesso de outrem à proteção da
jurisdição.
A utilização de um meio processual não vedado com o objetivo de alcançar uma
finalidade legítima deve ser aceito. Dizer de antemão que a defesa heterotópica é mais um
meio de protelação é presumir a má-fé do executado, e assim, alijá-lo de um instrumento
bastante eficaz para proteção de seus direitos seria um exagero. Eventual controle deve ser
realizado a posteriori pelo magistrado, debruçando-se sobre o contexto processual,
aplicando, ao caso, as punições previstas para o abuso do direito processual.
Com as proposições elaboradas até então, não se pode dizer de antemão que a
defesa heterotópica será cabível em qualquer tempo e em face de qualquer título executivo.
Essas questões serão melhor analisadas adiante. De toda forma, a perspectiva ora
apresentada, da defesa heterotópica como uma ação de conhecimento como qualquer outra,
albergada pela garantia constitucional do acesso à justiça, será importante para realizar
uma apreciação profunda nas próximas páginas.
22 Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em
<http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em 30 outubro. 2012. 23 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Primeiras observações sobre o projeto do novo Código de Processo
Civil. Disponível em <http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20100818125042.pdf>.
Acesso em 30 outubro, 2012.
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4 - Cabimento quanto à modalidade do título executivo
O legislador optou por realizar uma dicotomia entre os títulos executivos, criando
duas espécies distintas, quais sejam, os títulos judiciais e os títulos extrajudiciais.
Consequentemente, previu-se, também, procedimentos executivos distintos para os
processos fundados em cada uma dessas espécies. Isso porque preferiu-se proteger
juridicamente de forma distinta essas duas espécies de títulos, de acordo com o nível de
presunção de certeza de cada um deles.
Os títulos judiciais, porque produzidos com contraditório (e.g. sentença arbitral) ou
com a aquiescência do devedor (e.g. confissão de dívida), ostentam um maior grau de
certeza do que os extrajudiciais em geral, que residem em negócios realizados entre as
partes e por isso estão sempre expostos aos vícios desses negócios (nulidades, vícios do
consentimento etc.). Em razão disso, é menor a amplitude das defesas possíveis nas
execuções fundadas em títulos judiciais e maior, quando fundadas em títulos
extrajudiciais24
.
O rito para as execuções de título judicial é bem mais doloroso ao executado que o
das execuções de título extrajudicial. Basta citar como exemplo que, no caso do primeiro, o
executado é intimado para pagar no prazo de 15 dias, sob pena de multa de 10%, e somente
poderá defender-se após lavrado o termo de penhora (CPC art. 475-J, § 1º), enquanto no
segundo, o executado é citado para pagar no prazo de 3 dias ou nomear bens a penhora
(CPC art. 652), podendo apresentar os embargos no prazo de 15 dias, independente de
garantia do juízo (CPC art. 738).
Portanto, no que diz respeito aos títulos executivos extrajudiciais, não se tem muitas
dúvidas. Existe um significativo grau de incerteza do crédito constante do título, visto que
se tratam de créditos expressos em títulos crédito, contratos assinados por testemunhas,
confissões de dívida etc., embora haja a presunção relativa de certeza conferida por lei. Em
doutrina, os autores costumam concordar com a idéia de que o meio heterotópico deve ser
aceito como uma forma de defesa do executado para as hipóteses de execução por título
executivo extrajudicial. Segundo o entendimento de Leonardo Carneiro Cunha, tratando-se
24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 4. 6ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p. 220
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de execução fundada em título extrajudicial, o executado, como se viu, pode defender-se
por embargos à execução ou por exceção de pré-executividade. Além desses tipos de
defesa, pode o executado intentar ações autônomas, que não são incidentais à execução,
embora lhe sejam prejudiciais25
.
Nessa mesma trilha, a jurisprudência de nossos tribunais têm acompanhado esse
pensamento. O Superior tribunal de Justiça, por exemplo, reconheceu o cabimento de ação
revisional como forma de defesa do executado em sede de execução de título executivo
extrajudicial no julgamento do REsp nº 80385/SC, de relatoria do Ministro João Otávio de
Noronha26
.
No que diz respeito ao cabimento da defesa heterotópica com relação aos títulos
judiciais, a questão é bem disputada. Isso porque os títulos em questão, em sua maioria,
teriam sido constituídos diante do contraditório, como é caso das sentenças, dos formais de
partilha, dos acordos homologados ou tiveram a aquiescência do executado. Dessa forma, a
segurança quanto à certeza do título, na hipótese, é consideravelmente maior.
O processualista Fredie Didier Junior, na edição de 2012 de seu curso sobre a
execução, incluiu um capítulo novo para tratar da defesa do executado por meio de ações
autônomas. Sobre o assunto, o autor admite o seu cabimento apenas quanto aos títulos
extrajudiciais, levando em consideração o caráter escasso da possibilidade de se rever um
título judicial. Segundo ele, o tema adquire grande relevância na execução de títulos
extrajudiciais, já que a possibilidade de revisão de títulos judiciais é escassa27
.
Todavia, embora o título executivo judicial possa estar abraçado pela coisa julgada
ou qualquer outra forma de imutabilidade, ainda restariam inúmeras hipóteses para o
cabimento da defesa heterotópica. Observe-se, exemplificativamente, que a ação rescisória
é prevista especificamente para rescindir a sentença transitada em julgado (CPC art. 485,
caput), que a lei de arbitragem prevê o cabimento de ação anulatória contra a sentença
25 DA CUNHA, Leonardo José Carneiro. As defesas do executado. In Execução Civil: Estudos em
homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 645- 662. 26 “SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. CONCOMITÂNCIA
DE AÇÃO ORDINÁRIA REVISIONAL. DECRETO-LEI N.º 70/66.70. 1. A discussão, em ação ordinária
revisional, a respeito dos valores das prestações objeto da dívida executada torna o crédito controverso,
impedindo a execução extrajudicial. 2. O trânsito em julgado da ação ordinária interposta pela ora
Recorrente, reformando a sentença que lhe era desfavorável, demonstra a inexigibilidade do crédito e a
ilegitimidade da execução. 3. Recurso parcialmente conhecido e provido.” (STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 80385/SC, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 19/05/2003, DJ 09/06/2003). 27 DIDIER JÚNIOR, Fredie et al...Curso de Direito Processual Civil. vol. 5. 4ª ed.. Bahia: Juspodvim, 2012.
p. 401.
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arbitral (Lei Federal 9.307/96, art. 33), sem contar com outras diversas circunstâncias não
tão comuns à prática forense, como o manejo de uma ação declaratória de inexistência de
sentença viciada pelo descumprimento dos requisitos do artigo 458 do Código de Processo
Civil.
Conforme o entendimento de Eduardo Talamini e de Luiz Rodrigues Wambier, na
hipótese de se tratar de título judicial, pode haver uma significativa redução das matérias
veiculáveis em ação autônoma do (suposto) devedor. No mais das vezes, o título executivo
judicial é ato protegido pela coisa julgada (ou por autoridade equivalente à coisa julgada,
como o caso da sentença arbitral). Todas as matérias já acobertadas pela coisa julgada não
poderão ser discutidas na ação autônoma do devedor. Mas isso não afasta por completo a
possibilidade de ações do (suposto) devedor prévias à execução28
.
Frente à perspectiva da defesa heterotópica como um exercício do direito
fundamental constitucionalmente garantido de agir (CF art. 5o, inciso XXXV), a sua
utilização não pode estar adstrita apenas aos débitos constantes de títulos executivos
extrajudiciais. A lesão ou ameaça de lesão a direito, como já foi explicitado, pode ocorrer
diante de qualquer espécie de título. Não se mostra, portanto, razoável impedir, a priori, o
cabimento da ação de conhecimento impugnativa de título executivo judicial.
As defesas heterotópicas, portanto, devem ser admitidas como forma abstrata de
defesa do executado em ambas as espécies de títulos executivos. Como se pode ver acima,
as injustiças não estão restritas às execuções por título extrajudicial, havendo diversas
hipóteses da sua ocorrência quando de execução por título judicial. Do contrário, não
haveria motivo para que o legislador positivasse, por exemplo, a ação rescisória ou a ação
anulatória de arbitragem.
5 - Cabimento quanto ao momento da propositura
Diante das inúmeras divergências existentes sobre o cabimento da defesa
heterotópica quanto ao momento da sua propositura, a fim de melhor organizar o estudo, a
sua analise será divida em cabimento da ação autônoma prejudicial (a) antes de instaurada
a execução, (b) durante a execução, mas antes do prazo da defesa típica, (c) durante a
28 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 532.
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execução e após o prazo da defesa típica e, por último, (d) após a sentença que extingue a
execução.
5.a - Defesa heterotópica antes de instaurada a execução
Sobre o cabimento da medida antes do início da execução, os tribunais manifestam-
se claramente no sentido da sua aceitação, tendo em vista que a ausência de um
procedimento judicial executivo não pode impossibilitar que o potencial executado utilize
um meio defensivo. Entendem, então, os magistrados que o executado não seria obrigado a
aguardar o início da execução para defender-se, podendo fazê-lo através de uma ação
autônoma de conhecimento.
Nesse sentido, é importante destacar o precedente do Superior Tribunal de Justiça,
de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que deixa explicitada a
possibilidade de o futuro executado antecipar-se à execução com uma ação de
conhecimento para destituir o crédito constante do título29
.
O objetivo precípuo da ação de conhecimento seria modelar os ditames da
execução. Aquilo que for decidido na defesa heterotópica condicionará a execução a ser
instaurada. Teresa Wambier esclarece que quando se está diante de uma ação em que o
devedor discute se deve ou o quanto deve, proposta e terminada antes que a execução seja
instaurada, molda-se a execução em função do que tenha sido decidido na ação de
conhecimento, ou pode ainda ocorrer que a execução fique mesmo prejudicada, porque se
venha a decidir que não há débito 30
.
5.b - Defesa heterotópica ajuizada durante a execução, mas antes do prazo da defesa
típica
29 PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AJUIZAMENTO
ANTERIOR DE AÇÃO DE CONHECIMENTO RELATIVA AO MESMO TÍTULO. SUSPENSÃO DA
EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA. ARTS. 265, IV, a, 585, § 1º E 791, CPC. PRECEDENTES. RECURSO
PROVIDO. - A ação de conhecimento ajuizada para rever cláusulas de contrato não impede a propositura e o
prosseguimento da execução fundada nesse título, notadamente se a esta faltam a garantia do juízo e a
oposição de embargos de devedor. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 373742/TO, rel. Min. Sálvio de
Figueiredo Teixeira, j. 05/06/2002, DJ 12/08/2002). 30 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se
discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724/725.
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Quanto ao cabimento da defesa heterotópica depois de iniciada a execução, mas
antes do prazo para a apresentação da defesa típica, os julgados afirmam ser perfeitamente
cabível, em razão do mesmo raciocínio anteriormente utilizado. Assim como na hipótese
de defesa heterotópica antes da execução, nesse caso, o executado não está obrigado a
aguardar o prazo da defesa típica para que pudesse apresentar as suas razões.
No entanto, na hipótese, conforme posicionamento majoritário da comunidade
jurídica, a demanda autônoma de conhecimento fará as vezes de defesa típica. Ou seja, em
sede de execução de título extrajudicial, por exemplo, a ação de conhecimento será tratada
como se embargos de executado fosse. Essa é uma decorrência da interpretação analógica
que é feita da defesa heterotópica com relação aos embargos do executado pela
jurisprudência dos tribunais.
E essa lógica foi perfeitamente aplicada nos REsps 435.44331
e 486.06932
, de
relatoria dos Ministros Barros Monteiro e Aldir Passarinho Júnior, respectivamente.
Nesse sentido, Leonardo Carneiro Cunha, em artigo sobre as defesas do executado,
afirma que a ação autônoma de impugnação deverá ser recebida como embargos do
devedor, cogitando-se até a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à execução,
estando o juízo devidamente garantido33
.
Daí a dizer que tendo sido apresentada a defesa heterotópica, não mais teria a parte
o direito de embargar, tendo em vista que ela já teria manifestado a sua defesa. Os
embargos seriam, na verdade, apenas uma oportunidade emendar a petição inicial da ação
autônoma de conhecimento, incluindo, eventualmente, fundamento superveniente.
Acontece que, para receber a defesa heterotópica como embargos à execução,
importaria entender que existe litispendência entre elas. Para que se impeça a utilização de
um meio em detrimento de outro, somente poderia proceder na hipótese de serem
31 EXECUÇÃO. SUSPENSÃO. AJUIZAMENTO PELO DEVEDOR DE AÇÃO REVISIONAL DE
CONTRATO. APROVEITAMENTO COMO EMBARGOS. - A ação revisional de contrato, cumulada com
anulatória de título, segundo a jurisprudência do STJ, deve receber o tratamento de embargos à execução,
com as conseqüências daí decorrentes. Recurso especial não conhecido. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº
435443/SE, rel. Min. Barros Monteiro, j. 05/08/2002, DJ 28/10/2002). 32 PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA. S.F.H. AÇÃO REVISIONAL
PROPOSTA APÓS. SUSPENSÃO DO PRIMEIRO PROCESSO APÓS A PENHORA. CABIMENTO.
CPC, ART. 585, § 1º. EXEGESE. I. Fixa-se o entendimento mais recente da 4ª Turma em atribuir à ação
revisional o efeito de embargos à execução, de sorte que, após garantido o juízo pela penhora, deve ser
suspensa a cobrança até o julgamento do mérito da primeira. II. Recurso especial não conhecido. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 486069/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 02/02/2004, DJ 08/03/2004). 33 DA CUNHA, Leonardo José Carneiro. As defesas do executado. In Execução Civil: Estudos em
homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 645- 662.
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compreendidas como ações idênticas, o que, notadamente, não posso concordar. A
litispendência somente configura-se quando duas ou mais ações são idênticas, e por
identidade, entende-se mesmas partes, causa de pedir e pedido, conforme artigo 301, § 1º,
do Código de Processo Civil. O objetivo da norma foi evitar a utilização sistemática de
ações judiciais iguais, haja vista ser desnecessário que a jurisdição diga o mesmo mais de
uma vez, correndo até o risco de existirem decisões conflitantes.
E essa também é a opinião de Teresa Arruda Wambier. Para a referida
processualista, a defesa heterotópica seria plenamente cabível, desde que não tenha havido
embargos com o mesmo objeto (ou desde que estes embargos não estejam em curso), sob
pena de haver litispendência ou coisa julgada, como pressupostos processuais negativos34
.
Portanto, para que seja possível aplicar o instituto da litispendência para as
hipóteses em que for ajuizada a ação impugnativa durante a execução e antes dos embargos
é preciso aprofundar-se no caso concreto e observar o objeto das demandas. Mostra-se
cogente uma análise casuística da similitude de partes, causa de pedir e pedido entre a ação
autônoma prejudicial à execução e os embargos do executado.
5.c - Defesa heterotópica ajuizada durante a execução e após o prazo da defesa típica
Já o terceiro foco de análise, do cabimento após o prazo da defesa típica, envolve
um embate bastante acalorado. Parte dos processualistas vê a questão como sendo
direcionada às condições da ação, já outros enxergam o debate como sendo um ponto
relativo à discussão sobre a extensão dos efeitos da preclusão.
A primeira corrente afirma que careceria o autor da defesa heterotópica do devido
interesse processual. Conforme alguns, a parte teria eleito uma via inadequada para a tutela
jurisdicional pretendida. Somente a defesa típica, que foi prevista por lei especificamente
para a realização da atividade defensiva na execução é que teria o condão impugnativo.
Luiz Fux, processualista, ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça e atual do Supremo
34 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Reflexões das ações procedimentalmente autônomas (em que se
discute, direta ou indiretamente, a viabilidade da execução) na própria execução. In Processo de execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 724.
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Tribunal Federal, assim entende, conforme é possível observar a partir do julgamento REsp
n° 940314/RS35
Um dos autores mais enfáticos no tema é Paulo Hoffman, que expõe com bastante
clareza o seu entendimento no artigo intitulado “Consequências da perda do prazo para
interposição dos embargos à execução. Será o executado o único litigante diferenciado de
todos os demais?” Para o referido autor, não haveria motivo justificável para que um
devedor que é regularmente citado em um processo de execução para efetuar o pagamento
da dívida no prazo de 3 dias e que simplesmente nada faz, poder, posteriormente, ajuizar
sua “defesa” por meio de ação autônoma, quando melhor lhe convier36
.
E prossegue ele indagando se seria realmente lógico deixar um processo de
execução correr com todo o custo que esse desperdício de jurisdição representa, para que,
quando bem entender, o executado ajuíze outra ação, na qual – aí sim – se dignará a
apresentar suas alegações, mesmo que o faça anos depois e como repetição de indébito.
Segundo o referido autor, não faz sentido que um devedor que tem contra si um título já
formado escolha a melhor hora para apresentar-se em juízo, enquanto o próprio credor tem
prazo fixo e certo para fazê-lo37
.
Contudo, essa lógica remete diretamente ao velho e conservador “mito dos
embargos”, que, segundo Cândido Rangel Dinamarco foi o responsável pela resistência
dos tribunais a aceitar, além dos embargos do executado, alguma outra espécie de
iniciativa processual com a qual fosse possível questionar o direito posto em execução –
35 PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL EMBARGADA. AÇÃO
DECLARATÓRIA INCIDENTAL. INTERESSE PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA. INADEQUAÇÃO DA
VIA ELEITA. 1. A propositura de ação declaratória incidental à execução fiscal já embargada denota o
descabimento da impugnação autônoma por ausência de interesse de agir; mercê do descabimento da mesma
em processo satisfativo onde não haverá definição de direitos. (...) 4. In casu, (i) a devedora, após o manejo
de embargos à execução fiscal, ajuizou ação declaratória incidental, aduzindo a nulidade da CDA, em virtude de erro matemático na elaboração da conta e por inobservância dos requisitos previstos no artigo 202, do
CTN; e (ii) os citados embargos à execução, opostos pela executada antes de garantida a execução, pugnam
pelo seu direito à compensação de créditos e à impossibilidade de cobrança da multa, de juros pela Taxa
SELIC, da cumulação de multa com juros de mora e do encargo de 20% do Decreto-Lei 1.025/69. 5. A
inadequação do instrumento processual eleito ("ação declaratória incidental"), que pretende a anulação do
título executivo que embasa a execução fiscal, denota a falta de interesse de agir, razão pela qual se impõe a
extinção do feito sem resolução de mérito, ex vi do disposto no artigo 267, VI, do CPC, revelando-se
escorreita a sentença que indeferiu liminarmente a inicial com espeque no artigo 295, III, do Codex
Processual. 6. Recurso especial desprovido. (STJ, 1ª Turma, Recurso Especial nº 940314/RS, rel. Min. Luiz
Fux, j. 24/03/2009, DJe 27/04/2009). 36 HOFFMAN, Paulo. Consequências da perda do prazo para interposição dos embargos à execução. Será o executado o único litigante diferenciado de todos os demais? . In Execução Civil: Estudos em homenagem ao
Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo Revista dos Tribunais, 2007. p. 676- 688. 37 Ibid. p. 679/680.
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especialmente quando a propositura de uma demanda por esse sujeito fosse posterior ao
prazo para embargar. Predominava a idéia de que fora dos embargos não há salvação38
.
Entendo que a falha está em compreender os embargos como uma espécie de
contestação. O instituto não está adstrito ao ônus da impugnação específica dos fatos, nem
demais circunstâncias próprias da resposta do réu no módulo processual de conhecimento.
Entretanto, alguns autores querem compreender a situação pós-embargos similarmente à
circunstância pós-contestação, o que, evidentemente, está equivocado.
A falta de interesse de agir pela utilização da via inadequada da defesa heterotópica
após o prazo dos embargos não é um argumento que se coaduna com o nosso sistema
processual. Limitar esse direito significa ferir de morte a garantia constitucional do direito
de ação, uma vez que, em não se podendo utilizar desse expediente após o referido prazo,
nada mais poderá salvar a parte de qualquer lesão ou ameaça de lesão que possa sofrer ou
estar sofrendo.
Além disso, a lei processual em nenhum artigo sequer proibiu a utilização desse
meio de defesa de direitos, muito pelo contrário, permite, conforme dicção do artigo 585, §
1º, como já anteriormente mencionado neste trabalho.
Ademais, se não se pode mais utilizar os embargos e, nesses casos, a defesa
heterotópica não for o meio processual adequado, então qual será? Não se pode dizer que a
parte teria utilizado meio processual inadequado por eleição de via equivocada se o
ordenamento não confere à parte qualquer outro instrumento processual que possa albergar
a sua pretensão. Não pode o ordenamento jurídico simplesmente não prever para um
litigante algum instrumento processual que lhe proteja diante de uma lesão ou ameaça de
lesão.
Isso sim é que seria fazer do executado o único litigante diferenciado de todos os
demais. A prescrição é um instituto que recai especificamente sobre pretensão material da
parte. Não recai sobre o interesse de agir, tanto é verdade que a prescrição é hipótese de
sentença com resolução do mérito, como manda o artigo 269 do Código de Processo Civil.
Como fenômeno do direito material, a prescrição poderia ser apta a atentar contra a
pretensão material do autor da demanda heterotópica, não contra o interesse processual.
Isso, sem contar com o fato de que em lugar algum do ordenamento está dito que o prazo
38 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 4. 6ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p. 718.
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da defesa típica representaria alguma espécie de marco prescricional ou decadencial,
motivo pelo qual não se pode interpretar dessa forma o instituto.
No que tange à equivocada maneira de entender os embargos como sendo
contestação, alguns processualistas querem que os efeitos da revelia sejam aplicados ao
caso. Para que se possa pensar dessa forma, é preciso entender que após o sobredito prazo,
todas as demais matérias não arguidas por meio dos embargos estariam envenenadas pela
preclusão.
Entendo, todavia, que não se pode concluir pela aplicação da preclusão após o
prazo da defesa típica, tendo em vista o seu efeito meramente endoprocessual. Em outras
palavras, a preclusão não gera efeitos para fora do processo, e, consequentemente, não tem
força para obstar o cabimento de qualquer ação autônoma de conhecimento. Para Eduardo
Talamini e Luiz Rodrigues Wambier, com a não oposição dos embargos ou de impugnação
ao cumprimento, haverá apenas a preclusão da faculdade de exercício dessas duas formas
de ação incidental de defesa do executado (embargos e impugnação). A preclusão é
fenômeno interno ao processo em que ela opera. Não gera efeitos externos ao processo em
que se deu. Sob esse aspecto, a preclusão é diferente da coisa julgada. E, no caso, não há
dúvidas de que cabe falar apenas em preclusão, e não de coisa julgada. Essa última sempre
recai sobre uma sentença de cognição exauriente de mérito – o que obviamente não se tem
no mero decurso do prazo para interposição de embargos ou impugnação ao cumprimento
de sentença39
.
Apesar da indecisão dos tribunais, a maioria dos julgados são contrários à
admissibilidade da defesa heterotópica após o transcurso do prazo para embargar, como foi
possível perceber diante do sobrecitado julgamento do REsp nº 940314/RS, de relatoria do
Ministro Luiz Fux. Apesar disso, há um precedente contrário no próprio Superior Tribunal
de Justiça, de relatoria do Ministro Athos Gusmão Carneiro, quando compunha a 4ª
Turma40
.
39 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 533. 40 PROCESSO DE EXECUÇÃO. PRECLUSÃO 'PRO JUDICATO'. COISA JULGADA MATERIAL
INEXISTENTE. INOCORRE PRECLUSÃO, E PORTANTO A VALIDADE E EFICACIA DO TITULO
EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL PODEM SER OBJETO DE POSTERIOR AÇÃO DE
CONHECIMENTO, QUANDO NA EXECUÇÃO NÃO FOREM OPOSTOS EMBARGOS DO DEVEDOR,
E IGUALMENTE QUANDO TAIS EMBARGOS, EMBORA OPOSTOS, NÃO FORAM RECEBIDOS OU APRECIADOS EM SEU MERITO. INEXISTENCIA DE COISA JULGADA MATERIAL, E DA
IMUTABILIDADE DELA DECORRENTE. AGRAVO REGIMENTAL REJEITADO. (STJ, 4ª Turma,
Agravo Regimental no Agravo nº 8089/SP, rel. Min. Athos Carneiro, j. 23/04/1991, DJ 20/05/1991).
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Cumpre esclarecer, por último, que a defesa heterotópica merece cabimento após o
prazo dos embargos exclusivamente nas hipóteses em que esses (i) não foram oferecidos
ou (ii) não foram julgados em seu mérito, (iii) sem prejuízo da demanda por fundamento
superveniente. Isso porque, do contrário, a coisa julgada da decisão dos embargos
abraçaria todos os fundamentos que a parte apresentou e os que poderia ter apresentado.
Trata-se da eficácia preclusiva da coisa julgada, consagrada no artigo 474 da lei
processual41
.
5.d - Após a sentença que extingue a execução
Sobre o cabimento da defesa heterotópica após a sentença que extingue a execução,
cumpre esclarecer que deve ser somado tudo o que foi dito até então, devido ao fato de que
para compreendermos cabível a defesa heterotópica após a sentença que extingue a
execução, é preciso entender cabível nas demais situações também. Ou seja, para que seja
cabível a ação prejudicial após a execução, é cogente concordar que não existe obstáculo
ao seu manejo nas demais hipóteses anteriormente abordadas. Trata-se de um pensamento
gradual.
Indo adiante, no que diz respeito, especificamente, ao cabimento da ação autônoma
de impugnação à execução após a sentença executiva, há uma barreira a ser enfrentada
peculiar aos demais pontos trabalhados até então. Trata-se de sabermos se a sentença que
extingue a execução faz coisa julgada ou não, e assim, se pode ser revista por meio de ação
autônoma.
A coisa julgada é uma característica das sentenças de mérito, em razão do
pressuposto da segurança jurídica. Ela representa a imutabilidade do provimento
jurisdicional definidor de direitos. A sentença é lei perante as partes, e como tal, somente
pode ser modificada em situações extraordinárias, devido ao clássico choque com o
princípio de justiça. A imutabilidade das decisões é uma característica fundamental para
estabilização processual, e conseqüentemente, diminuir as inúmeras contingências que
possam aparecer às partes em litígio. Justamente por esse fato é que a doutrina realça a
importância de se atribuir esse predicado às sentenças de mérito.
41 Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e
defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.
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A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à
segurança jurídica, assegurado em todo estado democrático de direito. Dessa forma, é
garantido ao jurisdicionado que a decisão final de mérito dada à sua demanda será
definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja
pelo próprio Poder Judiciário. A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não
assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a
definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida 42
.
Paralelamente, a execução judicial está baseada no paradigma da presunção de
certeza, liquidez e exigibilidade do título executivo. Nessa toada, o princípio do desfecho
único é o volante do módulo processual executivo, já que todo processo que terminar sem a
entrega tutela que pede o exequente será um resultado processual anômalo. Portanto, o
processo executivo não demanda do Juízo uma apreciação final meritória, solucionando
uma dúvida sobre fato e/ou direito, como é necessária no módulo processual de
conhecimento. A sentença que extingue a execução não tem o que decidir, mas apenas
determinar o fim de uma fase processual. E exatamente por isso que o provimento judicial
que termina a execução chama-se sentença, exclusivamente por dar fim a uma fase do
processo.
Diante disso, é inegável concluir que a sentença que extingue a execução não faz
coisa julgada. Em outras palavras, essa é uma decisão que não aproveita a característica de
imutabilidade. Liga-se, assim, a coisa julgada às declarações de vontade concreta da lei
formuladas pelo órgão judicial nas soluções dos litígios. É fato que só ocorre no processo
de cognição, pois só nele é que a tutela jurisdicional consiste em sentenças definidoras do
direito da parte. No processo de execução, a atividade do juiz é material, prática,
consistente em tornar efetivo um direito declarado antes do próprio processo executivo43
..
Ultrapassado isso, observa-se que majoritariamente em doutrina é aceita a defesa
heterotópica após a sentença da execução. Trata-se apenas de uma aplicação lógica do
exposto sobre o efeito exclusivamente endoprocessual da preclusão e a mutabilidade da
sentença que determina o fim da execução. Diante desses pressupostos, inexiste óbice para
que as ações autônoma de conhecimento sejam utilizadas com a finalidade de atacar a
42 DIDIER JÚNIOR, Fredie et al...Curso de Direito Processual Civil. vol. 2. 10ª ed.. Bahia: Juspodvim, 2008. p. 407/408. 43 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 26ª ed. São Paulo:
Livraria Universitária de Direito, 2009. p. 513.
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execução já finda. Ressalte-se que nesses casos o executado poderá ainda pedir a repetição
do indébito.
Asseveram nesse sentido os autores Eduardo Talamini e Luiz Rodrigues Wambier.
Para eles, a sentença que extingue a execução por haver sido satisfeito o crédito não faz
coisa julgada em relação à existência de tal crédito nem tampouco acerca da validade do
procedimento que está ali se encerrado. Não se trata de uma sentença cognitiva de mérito.
Bem por isso, o executado, mesmo depois de encerrada por sentença a execução, poderá
propor demanda pleiteando o reconhecimento da inexistência do crédito ou a invalidade
dos atos processuais e pedir a restituição do que foi entregue ao exequente às suas custas44
.
Sendo assim, como foi possível perceber, outra conclusão não se pode ter a não ser
a de que o manejo da defesa heterotópica após a sentença que dá fim à execução é
completamente possível em nosso modelo processual, diante da inexistência de coisa
julgada e em valorização à garantia constitucional do direito de ação.
6 – Conclusão
A garantia de um direito de defesa amplo ao executado é medida de extrema
importância para o direito processual civil brasileiro. Possibilitar que o executado tenha
ciência e manifeste-se sobre os atos processuais praticados é a melhor forma de impedir
injustiças perpetradas diante da jurisdição executiva. Somente assim o processo poderá
alcançar um resultado adequado à verdade material.
Sem sombra de dúvidas, a execução é o verdadeiro palco para a efetivação dos
direitos ou ditos direitos, sendo a coerção o principal instrumento da jurisdição. Justamente
por esse fato, uma execução infundada representa uma injustiça expropriatória, o que é
amplamente repugnado. Tanto é que, há muito tempo, a doutrina, já defende a própria
utilização de meios defensivos endoprocessuais, para que se impeça o prosseguimento de
execuções sem fundamento.
Baseado na importância da defesa do executado como um meio de bloqueio de
injustiças processuais, a prática desenvolveu um instrumento curioso, denominado de
defesa heterotópica. Estamos nos referindo a uma ação prejudicial à execução ajuizada
44 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. vol. 2. 12ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 534.
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pelo executado, e com isso, passível de influenciar o resultado da demanda de execução. É,
portanto, mais um instrumento processual defensivo à disposição do executado.
Ocorre que, antes mesmo de ser uma defesa, ela é uma ação, e como tal, o seu
exercício é garantido constitucionalmente (Constituição Federal art. 5º, inciso XXXV). Em
outras palavras, o executado utiliza-se do direito de ação como uma forma de defender-se
de um ato injusto contra si, tal qual qualquer pessoa comum que ajuíza uma demanda em
razão de lesão ou ameaça de lesão a direito. Para que se possa dizer que o executado terá
direito a ação, bastaria estar demonstrado o preenchimento das condições da ação e nada
mais.
Visto dessa forma, e não como apenas um substitutivo dos embargos ou qualquer
outro meio de defesa tipicamente previsto, a defesa heterotópica é um direito garantido
pela própria Carta de 1988. Sendo assim, ela não pode ser retirada do ordenamento
processual por meio de uma simples mudança do Código de Processo Civil, sob pena de
reputar-se inconstitucional a disposição infraconstitucional que assim determinar.
Cumpre esclarecer, por fim, que permitir a utilização da defesa heterotópica e dar-
lhe máxima eficácia é apenas garantir um instrumento de consecução de direitos. O
executado somente logrará êxito se realmente tiver o direito alegado. Não há razões para
temor, tendo em vista que dar ao executado a oportunidade de proteção não significa, a
priori, postergar a entrega da tutela material pretendida pelo exequente.
A defesa heterotópica é, portanto, medida que só vem a engrandecer o processo
civil pátrio, já que representa um instrumento de barreira às injustiças perpetradas pela via
processual. E, afinal, não há nada pior em um modelo democrático, do que uma
intervenção estatal injusta, como, por exemplo, uma execução judicial infundada.
7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
CLASS ACTIONS AND DIFFUSE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY
Gustavo Neroni Fernandes
Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Maringá –
UEM e membro do Núcleo de Estudos Constitucionais Prof. Dr.
Zulmar Fachin (NEC-UEM).
Orientador: Prof. Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva
Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá
(1980), mestrado em Direito Negocial pela Universidade
Estadual de Londrina (2004), doutorado em Direito (Sistema
Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo
de Ensino (2011). É professor adjunto da Universidade Estadual
de Maringá - UEM e do Curso de Mestrado em Direito do
Centro Universitário de Maringá - CESUMAR, e advogado -
Advocacia Campos Silva.
RESUMO: A nova ordem de direitos, num contexto de Estado Social, pugna pela proteção
estatal dos direitos difusos e coletivos. Dita tutela, naturalmente e ainda mais considerando o
neoconstitucionalismo, compreende a atuação da jurisdição constitucional. Esta, quando se
manifesta em sua modalidade difusa, enseja uma enormidade de questões aparentemente
controversas em relação à ação civil pública. O que se pretende é enfrentar estas
problematizações. Submeter as decisões dos tribunais, notadamente o Supremo Tribunal
Federal, ao crivo da doutrina e da Teoria do Direito de modo que, em alguma medida, seja
possível compatibilizar os dois institutos, indispensáveis no contexto de sociedades de massa,
promovendo o acesso à justiça constitucional.
PALAVRAS CHAVE: ação civil pública; jurisdição constitucional; controle difuso; acesso à
justiça.
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ABSTRACT: The new order rights in the context of the welfare state, calls for the state
protection of diffuse and collective rights. This tutelage, of course, and even more so
considering the neoconstitutionalism, comprises practice of constitutional jurisdiction. This
one, when it is manifested in its diffuse form, entails a multitude of seemingly controversial
issues regarding the class actions. The aim is to address these problematizations. Submit the
decisions of the courts, especially the Supreme Court, to the test of doctrine and theory of law
so that, to some extent, it is possible to reconcile the two institutes, which are essential in the
context of mass societies and to promote access to constitutional justice .
KEYWORDS: class actions; constitutional jurisdiction; diffuse control, access to justice.
INTRODUÇÃO
Diz-se que o Brasil adota o Sistema Misto de Constitucionalidade. A rigor,
trata-se de uma incorreção, pois neste sistema o controle é exercido parte exclusivamente por
um órgão de natureza política e parte por um órgão jurisdicional. É o que ocorre, p. ex., na
Suíça, segundo José Afonso da Silva.1 Não procede, portanto, a afirmação inicial, pois, na
República Federativa do Brasil, a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou
ameaça a direito (art. 5º, XXXV da CF – Constituição Federal) ao que se tem
necessariamente admitido no por aqui o que sob o critério exposto é chamado Controle
Jurisdicional de Constitucionalidade.2
É correto dizer, por sua vez, que o ordenamento jurídico brasileiro adota o
Sistema Híbrido de Constitucionalidade. Sob outro parâmetro, significa que na jurisdição
constitucional tupiniquim se tem duas sortes de controle: perpetrado por via de exceção ou
por via de ação.3
1 O controle misto realiza-se quando a constituição submete certas categorias de leis ao controle político e
outras ao controle jurisdicional, como ocorre na Suíça, onde as leis federais ficam sob controle político da
Assembleia Nacional, e as leis locais sob o controle jurisdicional (In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 49, 2005). 2 Idem. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 325, 2004.
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O controle de constitucionalidade somente foi introduzido no direito brasileiro
com a Constituição Republicana de 1891. Esta, contudo, não iniciou as duas modalidades,
mas apenas a via de exceção.4 Anota Paulo Bonavides que este tipo de controle seria o mais
apto a prover a defesa do cidadão, pois toda demanda que suscitasse controvérsia
constitucional de direitos individuais (e aqui se vislumbra a possibilidade de acrescentar os
metaindividuais) abriria ao cidadão uma via recursal para o fim de proteger seus direitos
fundamentais.5
Sucessivamente, as constituições brasileiras, sem afastar o controle por
exceção já instituído, sedimentaram elementos que desembocariam na jurisdição
constitucional tal como a conhecemos hoje. Nesse sentido a Ação Direta de
Inconstitucionalidade – ADIn - Interventiva (CF/1934), a ADIn Genérica (CF/1946 –
instituída pela Emenda Constitucional – EC - 16/65), a ADIn por Omissão (CF/1988), a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF (CF/1988) e a Ação
Declaratória de Constitucionalidade - ADC (CF/1988 – EC 03/93). Deste modo, pode-se
concluir com José Afonso da Silva que à vista da Constituição vigente, temos a
inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controle de constitucionalidade é o
jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo
Tribunal Federal.6
E por falar em siglas, no que tange à ACP – Ação Civil Pública, esta surgiu
num contexto social muito peculiar, impulsionada pela terceira geração de direitos
fundamentais e seguidamente à segunda onda renovatória do direito processual. Muito há que
se falar sobre estes eventos, mas cumpre aqui fazer apenas uma menção propedêutica.
Embora tenha humanizado a ideia estatal na medida em que democratizou a
Teoria do Estado Moderno, o Estado Liberal viu-se condenado à morte por tratar-se de um
Estado de uma classe – a burguesia. Fundado no liberalismo, este postulado houve de dar
espaço às novas teorias. Inspirado, dentre outros, por Rousseau, Hegel e Marx, o Estado
4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 50. Conforme preceitua Gilmar
Ferreira Mendes, uma figura prévia ao controle abstrato de constitucionalidade a ser instituído no Brasil, a partir
da CF/1934, foi a representação interventiva. V. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 193, 2004. 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 325. 6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 51.
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Social é, sob certo aspecto, decorrência do dirigismo que a tecnologia e o adiantamento das
ideias de colaboração humana e social impuseram ao século.7
Não se faz dispendioso trazer à baila o Estado Social, pois há uma ligação
necessária entre este e a terceira geração de direitos fundamentais, como categoria de Estado
que poderia coroar esses direitos. Argumenta Norberto Bobbio que esta dimensão de direitos
compreende uma categoria ainda muito heterogênea. Os direitos de liberdade demandam um
não agir do Estado, os direitos sociais uma atitude positiva por parte daquele. Nos direitos de
terceira geração, por seu turno, assim como nos de quarta, pode-se estar diante de uma
exigência tanto de um quanto de outro.8 Isto talvez porque a relação jurídica que se estabelece
não é entre indivíduo e Estado como ocorre geralmente nas duas primeiras categorias.
Aduz Bonavides que a Revolução Francesa teria preconizado a evolução dos
direitos do homem em seu lema histórico: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Corresponderia a esta última os direitos de terceira geração, que poderiam mais
adequadamente ser expressos por solidariedade. Tendem a cristalizar-se no fim do século XX
enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um
indivíduo, um grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero
humano mesmo.9 Está-se aqui a falar de direitos metaindividuais ou transidividuais, objeto da
ACP.
Esta ordem de direitos está umbilicalmente associada à Revolução Industrial.
Em verdade, argumenta a doutrina majoritária que o surgimento dos direitos transindividuais
seria mais propriamente dito uma evidenciação, posto que sempre existiram.10
Sói estranho
7 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, p. 145, 2001.
O autor se refere ao século XX. 8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 5-6, 2004. Contudo, sob outra ótica,
principalmente considerando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais – algo posterior a Bobbio, é possível
dizer que os direitos de primeira e segunda geração também podem demandar um comportamento tanto positivo quanto negativo por parte do Estado. Anota Ingo Wolfgang Sarlet: [...] também os direitos sociais (sendo ou
não, tidos como fundamentais) abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos (negativos),
partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida ao titular do direito, bem
como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os direitos de não-intervenção na liberdade
pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela Constituição) apresentam uma dimensão positiva (já que sua
efetivação reclama uma atuação positiva do Estado e da Sociedade), ao passo que os direitos a prestações
(positivos) fundamentam também posições subjetivas negativas, notadamente quando se cuida de sua proteção
contra ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, mas também por parte de organizações sociais e de
particulares (In SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: seu Conteúdo, Eficácia
e Efetividade no atual Marco Jurídico-Constitucional Brasileiro. In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.s). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 218, 2009). 9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 562-569. 10 LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 32, 2003.
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então que somente na segunda metade do século XX tenham despertado o interesse dos
juristas, não por acaso contemporaneamente à sociedade de massa e todos problemas a ela
inerentes. Nessa esteira observa Mancuso: na sociedade globalizada não há lugar para o
indivíduo; ele é tragado pela roda viva dos grupos e corporações [...] indivíduos são
agrupados em grandes classes ou categorias, e como tais, normatizados.11
Do exposto no parágrafo anterior pode-se depreender a dimensão da
importância da defesa desses interesses em juízo. Historicamente, no direito brasileiro, já
existiam maneiras de, mesmo que de forma rudimentar, efetuar a sua tutela, tais como a ação
popular (presente em quase todas as Constituições que vigoraram no país).12
Mas apenas isto
seria assaz insuficiente13
para resguardar os novos direitos.14
A tutela dos direitos difusos constitui um esforço no aperfeiçoamento do
acesso à justiça. Mais especificamente, para Capelletti e Garth, a representação dos interesses
difusos perfaz a segunda solução prática para os problemas de acesso à justiça. Vencida a
questão do acesso dos pobres (não que ela pudesse ser superada amiúde) far-se-ia necessário
criar mecanismos para tutelar direitos os quais os titulares não podem comparecer em juízo
para defender.15
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a
11 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. 6ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, p. 90, 2004. 12 Nesse sentido anota José Afonso da Silva que a origem das ações populares perde-se no Direito Romano. O
nome ação popular deriva do fato de atribuir-se ao povo ou a parcela dele, legitimidade para pleitear, por
qualquer de seus membros, a tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence, ut singuli, mas à
coletividade. [...] O que lhe dá conotação essencial é a natureza impessoal do interesse defendido por meio
dela: interesse da coletividade (In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p.
462). Ainda, segundo Hely Lopes Meirelles, o beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo,
titular do direito subjetivo ao governo honesto (In MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. São
Paulo: Malheiros, p. 127, 2008). Este, contudo, para o mesmo autor, não é o caso do Mandado de Segurança
Coletivo: entendemos que somente cabe o mandado de segurança coletivo quando existe direito líquido e certo
dos associados, e no interesse dos mesmos é que a entidade, como substituto processual, poderá impetrar a
segurança, não se admitindo, pois, a utilização do mandado de segurança coletivo para defesa de interesses
difusos, que deverão ser protegidos pela ação civil pública (In MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Op. cit. p. 30). 13 Hugo Nigro Mazzilli, diferenciando os institutos da ação popular e da ACP, aduz que enquanto o objeto da
primeira é mais limitado (anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural - art. 5, LXXIII CF) maior
gama de interesses pode ser tutelada na ACP. V. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em
Juízo. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 150, 2011. 14 Expressão muito utilizada por Norberto Bobbio, para quem esses direitos se multiplicam e decorrem de três
fatores: i) o aumento de bens a serem tutelados; ii) extensão da titularidade dos direitos a entes que não o homem
e iii) a compreensão do homem não mais como ente individual e abstrato, mas na concretude de seu ser em
sociedade. V. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Op. cit. p. 63. 15 Cappelletti e Garth elencam nesse sentido: i) a ação governamental, direcionada na tutela inclusive nas vias administrativas, que tem por escopo a previsão de que um departamento ligado ao Estado viabilizaria a tutela dos
interesses difusos – seria, grosso modo, o Ministério Público; ii) a técnica do procurador-geral privado, a fim de
permitir a propositura, por indivíduos, de ações em defesa dos interesses coletivos e iii) a técnica do advogado
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proteção dos direitos difusos.16
Pode-se dizer inusitado para o juiz da época, bitolado em um
conceito hermético de partes (de que tutelam seus interesses individuais), julgar o feito sem
ouvi-las. E o que dizer da coisa julgada? Era necessário legitimar algo ou alguém para que
representasse em juízo a coletividade, sepultando, assim, a noção individualista do processo.
Neste contexto, no Brasil surgiria, após debates doutrinários e processo
legislativo com participação ampla, a festejada Lei 7.347/85.17
Em seus anos de vida e
constante gestação, a ACP alimentou a doutrina com uma infinidade de assuntos suscitados
desde a sua criação, tais como o alcance da coisa julgada, legitimação ativa, reparação das
lesões individuais... Seria inocente imaginar que em algum momento a tutela dos direitos
difusos não cruzaria com a jurisdição constitucional, pois esta deve ser levada a efeito a todo
o momento. Aliás, como foi dito linhas atrás, esta se manifesta inclusive pela via de exceção,
também chamada de controle difuso de constitucionalidade, que é aquele exercitável perante o
caso concreto.18
Porém, a decisão em sede de ACP gera efeitos erga omnes (art. 16 da Lei
7.347/85 com redação dada pela Lei 9.949/97). A controvérsia giraria em torno do fato de
que, ao atribuir esse efeito à decisão que reconhece a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, estaria o juiz de primeiro grau por usurpar a competência do STF em julgar os
casos de controle concentrado de constitucionalidade.19
Seria lícito ao juízo de primeiro grau
suspender a aplicação de uma dada norma ou ato normativo federal ou estadual em face da
CF? Qual seria a eficácia desta decisão? Em sede de ACP a decisão que efetua controle
particular do interesse privado, que consistiria no reconhecimento de grupos e consequente legitimação para
atuar enquanto associação na defesa dos interesses de seus membros (V. CAPELLETTI, Mauro; GARTH,
Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 49-67). 16 Idem. 17 O desenvolvimento da defesa judicial dos interesses coletivos, no Brasil, passa, numa primeira etapa, pelo
surgimento de leis extravagantes e dispersas, que previam a possibilidade de certas entidades e organizações
ajuizarem, em nome próprio, ações para a defesa de direitos coletivos ou individuais alheios (In MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, p. 191, 2002). Sob a liderança de Ada Pellegrini Grinover, um grupo seleto de juristas elaborou um
anteprojeto de lei que foi encampado pela Câmara dos Deputados. O projeto de lei fora debatido no meio
acadêmico surgindo outro anteprojeto em que se cunhou o nome Ação Civil Pública. Na lei, a menção que se
fazia à possibilidade da tutela de qualquer outro interesse difuso ou coletivo (art. 1, IV Lei 7.347/85) foi vetada
retornando ao microssistema somente quando da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078/90). Com a Lei 7.347/85, pode-se constatar, ainda, a notória expansão que, supervenientemente, a
Constituição deu à tutela coletiva além das alterações pelas quais passou a Lei de Ação Civil Pública e outros
diplomas esparsos tal como o Estatuto do Idoso, Lei Antitruste... (V. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro.
Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. Op. cit. p. 191-199). Por isso dizer que a tutela coletiva, no
Brasil, está em constante gestação, porém, não se exaure com a Lei 7.347/85. 18 Considerado por Paulo Bonavides o mais apto a promover a defesa do cidadão – vide nota n. 5 supra. 19 Viu-se também, com fulcro em José Afonso da Silva, que o controle concentrado é de competência do
Supremo – vide nota n. 6 supra.
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meramente incidental de constitucionalidade teria a eficácia limitada às partes envolvidas na
controvérsia ou, nestes casos, reveste-se de objetividade similar a de um controle
concentrado? São essas as questões que se passa a enfrentar.
1. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
– USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO
O que se pretende vedar é a utilização da ACP como sucedâneo da ADIn que
se preste a burlar o sistema constitucional, retirando da Suprema Corte a competência para o
controle abstrato de constitucionalidade. Isto, contudo, sem desprover a ação de sua finalidade
precípua que é a tutela dos direitos difusos ou retirando-lhe a eficácia.
O controle difuso de constitucionalidade tem por característica o fato de que a
sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão
somente à sua não aplicação ao caso particular objeto da demanda.20
Por isso diz-se que o
julgado não ataca a lei em tese (ou in abstracto), a coisa julgada sobre esse aspecto é relativa,
isto é, gera efeitos endoprocessuais de modo que a eficácia é intra partes. Nada obsta, pois a
que outro processo, em casos análogos, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a
mesma lei ser eventualmente aplicada.21
A ACP, por sua vez, fará coisa julgada erga omnes (art. 16 da Lei 7.347/85
com redação dada pela Lei 9.949/97), o que é característico das decisões de mérito proferidas
pelo Supremo na ADIn ou ADC (art. 102, par. 2º CF – com redação dada pela EC 45/04).22
Assim, haveria objetivação,23
prima facie, do controle difuso quando exercido em sede de
20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 302-303. 21 Idem. 22 Diferente não poderia ser. Isto porque, é de se lembrar, as decisões proferidas nesses casos são ambivalentes – art. 24 Lei 9.868/99. 23 Objetivação esta já por demais inculcada. Observa Gilmar Ferreira Mendes que a Constituição de 1988
reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso ao ampliar, de forma marcante, a
legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que,
praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal
mediante processo de controle abstrato de normas (In MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio
Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 1104,
2009). Somem-se a isso os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, ambos introduzidos pela EC
45/04. Importante destacar, contudo, com Gilberto Schafer, que a ACP não é um processo objetivo. Isto porque,
na ACP, existem partes e que não são apenas formais. No polo passivo, há um (ou vários) réu, conforme for a
relação de direito material em jogo. Há uma vasta possibilidade conforme seja a alegação das mais diversas. São réus causadores de danos, responsáveis por situações ou fatos ensejadores de uma ação danosa. Pode ser
réu qualquer pessoa física ou jurídica, a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal, inclusive as estatais,
entidades autárquicas ou paraestatais, porque tanto estas quanto aquelas podem infringir normas de direito
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ACP, pois esta lhe acrescenta o componente caracterizador do controle concentrado.
Entendendo dessa forma, decidiu o STF, num dos primeiros casos a bater às portas do
Pretório, em reclamação constitucional de relatoria do Min. Francisco Rezek:
RECLAMAÇÃO. CONTROLE CONCENTRADO. COMPETÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. As ações em curso na 2ª e
3ª varas da Fazenda Pública da comarca de São Paulo – objeto da
presente reclamação – não visam o julgamento de uma relação jurídica
concreta, mas ao da validade de lei em tese, de competência exclusiva
do Supremo Tribunal (art. 102, I, a da CF). Configurada a usurpação
da competência do Supremo para o controle concentrado, declara-se a
nulidade ab initio das referidas ações, determinando o seu
arquivamento, por não possuírem as autoras legitimidade ativa para a
propositura da ação direta de inconstitucionalidade.24
No julgado, 27 empresas cinematográficas do Estado de São Paulo ajuizaram
ação ordinária distribuída à 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca paulistana, pedindo para
que fosse julgada procedente suspendendo, deste modo, a aplicação da Lei 7.844/9225
do
estado paulista regulamentada pelo Dec. 35.606/92, posto que inconstitucionais. O Sindicato
das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado de São Paulo também ingressou com
ação declaratória da mesma inconstitucionalidade cumulada com ação indenizatória
distribuída à 3ª Vara da Fazenda Pública do mesmo foro. A sentença do juiz da 3ª Vara
acolheu o pleito da inconstitucionalidade afastando o de indenização. Argumentara que não
material de proteção ao meio ambiente ou consumidor (In SCHAFER, Gilberto. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 126, 2002). 24 STF - Rcl: 434/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Francisco Rezek, Data de Julgamento: 10/12/1994, Data de
Publicação: DJ 09-12-1994. Comentando o julgado em tela, a opinião de Gilmar Ferreira Mendes: essa
orientação da Suprema Corte reforça a ideia desenvolvida de que eventual esforço dissimulatório por parte do
requerente da ação civil pública haverá de restar ainda mais evidente, porquanto, diversamente na situação
referida no precedente citado, o autor aqui pede tutela genérica do interesse público, devendo, por isso, a
decisão proferida ter eficácia erga omnes. Assim, eventual pronúncia de inconstitucionalidade da lei levada a
efeito pelo juízo monocrático terá força idêntica à da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no
controle direto de inconstitucionalidade. (In MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de
Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva,
p. 164, 2003). 25 Assegura a estudantes o direito ao pagamento de meia entrada em espetáculos esportivos, culturais e de lazer,
e dá providências correlatas.
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foi declarada a inconstitucionalidade da lei estadual, mas seus efeitos é que foram atacados.
No entanto, entendeu a Corte que as ações não visavam o julgamento de uma relação jurídica
concreta, mas ao da validade de lei em tese, julgando procedente a reclamação.
Note que não se está aqui, propriamente, a tratar de ACP. Contudo, não se pode
negar o caráter coletivo da pretensão. Está-se diante de importante julgado que iluminou os
caminhos da jurisprudência nesse assunto, sendo citado em inúmeros outros casos
solucionados pelo Supremo e referentes diretamente à ACP acostada ao tema estudado. É que
a pretensão das empresas cinematográficas tanto quanto do sindicato era obter aquilo que a
CF somente conferiu aos legitimados ativos do art. 103 CF - pretender a declaração de
inconstitucionalidade de lei em tese com efeitos erga omnes, justamente o que se quer vedar à
ACP.
Acertada, pois, a decisão de vedar a utilização da ACP como simulacro da
ADIn, posto que esta é de competência originária do Supremo (art. 102, I, “a” CF) e a busca
de sua finalidade por meio de ACP, que é de competência do juízo de primeiro grau (art. 2 da
Lei 7.347/85), acabaria por consistir em grave inconstitucionalidade fundada na usurpação de
competência da Suprema Corte.
Ademais, não deve prevalecer o argumento de que, por versar sobre questão
constitucional, a ação coletiva que tramita perante o juízo de primeiro grau poderia alcançar
facilmente o STF via recurso extraordinário (art. 102, III CF). Isto porque o controle de
constitucionalidade está necessariamente associado à supremacia da Constituição,26
cuja
proteção cabe precipuamente ao STF (art. 102, caput CF), o órgão que a Carta Magna elegeu
para dar a palavra final (interpretação) neste assunto. Não obsta, deveras, que o controle por
meio de exceção seja levado a cabo por todo juiz de ofício, inclusive.27
Toda e qualquer
decisão que contrarie dispositivo constitucional (Art. 102, III, “a” CF - o que supostamente
pode ocorrer mediante a declaração incidental de inconstitucionalidade) pode ser alçada à
Suprema Corte por meio do recurso extraordinário. Se não o for, haja vista o trânsito em
julgado ou ausência de repercussão geral (art. 102, par. 3º CF/88 – parágrafo incluído pela EC
45/04),28
a decisão que fizer a coisa julgada, mesmo que inconstitucional, o fará entre as
26 O princípio da Supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e
preceitos da Constituição. In. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit. p. 46. 27 STF – RE: 117.805 PR, 1ª Turma, Rel.: Min. Sepúlveda Pertence, Data de Julgamento: 03/05. 1993, Data de Publicação: DJ 27/08/1993. Para o precedente internacional, vide caso Madison versus Marbury (1803). 28 Segundo José Miguel Garcia Medina, a repercussão geral deverá ser pressuposta em um número considerável
de ações coletivas, só pelo fato de serem coletivas (ver MEDINA, José Miguel Garcia. Variações Recentes sobre
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partes litigantes, isto é, terá efeito intra partes, o que não se poderia vislumbrar na ACP que
produz efeitos erga omnes. Conferir este efeito à sentença ou acórdão que alcançar a coisa
julgada no juízo de primeiro grau ou tribunal local, concederia a estes órgãos um poder que a
Constituição não atribuiu nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal – efeitos erga omnes em
sede de controle difuso. Vide o magistério de Gilmar Ferreira Mendes:
Em outros termos, admitida a utilização da ação civil pública como
instrumento adequando de controle de constitucionalidade, tem-se
ipso jure a outorga direta à jurisdição ordinária de primeiro grau de
poderes que a Constituição não assegura sequer ao Supremo Tribunal
Federal. É que, como visto, a decisão sobre a constitucionalidade da
lei proferida pela Corte no caso concreto tem, necessária e
inevitavelmente, eficácia inter partes, dependendo a sua extensão da
decisão do Senado Federal. [...] ainda que se desenvolvam esforços no
sentido de formular pretensão diversa, toda vez que na ação civil
evidente que a medida ou providência que se pretende questionar é a
própria lei ou ato normativo, restará inequívoco que se trata mesmo é
de uma impugnação direta de lei. [...] para que não se chegue a um
resultado que subverta todo sistema de controle de constitucionalidade
adotado pelo Brasil, tem-se de admitir a inidoneidade completa da
ação civil pública como instrumento de controle de
constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle
direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a
decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das
partes formais.29
os Recursos Extraordinário e Especial – Breves Considerações. In FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER,
Tereza Arruda Alvim (Org.s). Processo e Constituição: Estudos em Homenagem ao Professor José Carlos
Barbosa Moreira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 1058-1059, 2006). Isto deve se dar justamente
porque, embora possa não haver relevância que transcenda o caso concreto, as ações coletivas revestem-se de interesse geral – tal qual a ação popular. 29 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.)
Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 162-163.
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Nesse aspecto, por conseguinte, são consonantes a doutrina30
e a
jurisprudência31
atuais de que não se deve conferir à decisão os efeitos erga omnes típicos da
ACP na parte que, em sede de controle difuso de constitucionalidade, declarar incidenter
tantum a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo em tese.
2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
– PEDIDO E CAUSA DE PEDIR OU QUANDO A TESE SE TORNA POSSÍVEL?
Não obstante o posicionamento do Pretório Excelso no item anterior, a Corte
negou provimento à Reclamação n. 602-6/SP, de relatoria do Min. Ilmar Galvão suscitada
sobre caso que, em sede de ACP, corte local condenou instituição bancária à correção de
índices da caderneta de poupança afastando por inconstitucionalidade a incidência da norma
que previa índice menor:
Reclamação. Decisão que, em Ação Civil Pública, condenou instituição
bancária a complementar os rendimentos de caderneta de poupança de
seus correntistas, com base em índice até então vigente, após afastar a
aplicação da norma que o havia reduzido, por considerá-la incompatível
com a Constituição. Alegada usurpação da competência do Supremo
Tribunal Federal, prevista no art. 102, I, a, da CF. Improcedência da
alegação, tendo em vista tratar-se de ação ajuizada, entre partes
contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e
perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais
poderia ser alcançado pelo Reclamado em sede de controle in abstracto
de ato normativo. Quadro em que não sobra espaço para falar em
invasão, pela corte reclamada, da jurisdição concentrada privativa do
Supremo Tribunal Federal. Improcedência da Reclamação.32
30 Além do supramencionado Gilmar Ferreira Mendes: MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses
Difusos em Juízo. Op. cit. p. 143-147. Ainda: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas,
p. 748-751, 2011. 31 A Reclamação Constitucional de relatoria do Min. Celso de Mello cita inúmeros precedentes, v.: STF - Rcl:
1898/DF, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 02/02/2004, Data de Publicação: DJ 19/02/2004. 32 STF – Rcl: 602-6/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Ilmar Galvão, Data de Julgamento: 03/09/07, Data de
Publicação: DJ 14/02/03.
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Esta decisão permite verificar uma orientação em voga no Supremo Tribunal
Federal de que é possível distinguir a ACP que tenha por objeto a declaração de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo da que a questão constitucional figure como
simples questão prejudicial de mérito.33
Observa Mazzilli que, assim como ocorre em ações
populares e mandados de segurança, ou em qualquer outra ação cível, a
inconstitucionalidade de um ato normativo pode ser causa de pedir (não o próprio pedido) de
uma ação civil pública.34
Por conseguinte, também é possível a declaração incidental de
inconstitucionalidade de questão prejudicial, desde que indispensável à resolução do litígio
principal.35
O Supremo julgou no mesmo dia e no mesmo sentido a Reclamação 600-0/SP
relatada pelo Min. Néri da Silveira, vide a ementa:
RECLAMAÇÃO. 2. Ação Civil Pública contra instituição bancária,
objetivando a condenação da ré ao pagamento da “diferença entre a
inflação do mês de Março de 1990, apurada pelo IBGE, e o índice
aplicado para crédito nas cadernetas de poupança, com vencimento
entre 14 a 30 de Abril de 1990, mais juros de 0,5% ao mês, correção
sobre o saldo, devendo o valor a ser pago a cada um fixar-se em
execução de sentença.” 3. Ação julgada procedente em ambas as
instâncias, havendo sido interpostos recursos especial e extraordinário.
4. Reclamação em que se sustenta que o acórdão, ao manter a
sentença, estabeleceu uma inconstitucionalidade no plano nacional,
em relação a alguns aspectos da Lei n. 8.024/1990, que somente ao
33 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito
Constitucional. Op. cit. p. 291. 34 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. Op. cit. p. 144. 35 Idem. Demonstrando sua argúcia, o Min. Francisco Rezek constatou na Rcl 434-1/SP adotada neste trabalho
como caso paradigma, que o Sindicato das Empresas Cinematográficas do Estado de São Paulo utilizara do
pedido de indenização para mascarar o objeto da ação que é de declaração pura e simples de
inconstitucionalidade do diploma legal estadual. Em seu voto fez constar: tenho, afinal, como evidenciado que as
ações em curso não visam ao julgamento de uma relação jurídica concreta, mas ao da validade da lei em tese de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, a da Carta da República (In
STF - Rcl: 434/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Francisco Rezek, Data de Julgamento: 10/12/1994, Data de
Publicação: DJ 09-12-1994).
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Supremo Tribunal Federal caberia decretar.” 5. Não se trata de
hipótese suscetível de confronto com o precedente da Corte na
Reclamação n. 434-1/SP, onde se fazia inequívoco que o objetivo da
ação civil pública era declarar a inconstitucionalidade da Lei n.
7.844/1992, do Estado de São Paulo. 6. No caso concreto,
diferentemente, a ação objetiva relação jurídica decorrente de contrato
expressamente identificado, a qual estaria sendo alcançada por norma
legal subsequente, cuja aplicação levaria a ferir direito subjetivo dos
substituídos. 7. Na ação civil pública, ora em julgamento, dá-se
controle de constitucionalidade da lei n. 8.024/1990, por via difusa.
Mesmo admitindo que a decisão em exame afasta a incidência de Lei
que seria aplicável à hipóteses concreta, por ferir direito adquirido e
ato jurídico perfeito, certo está que o acórdão respectivo não fica
imune ao controle do Supremo Tribunal Federal, desde logo, à vista
do art. 102, III, letra b, da Lei Maior, eis que decisão definitiva de
Corte local terá reconhecido a inconstitucionalidade de lei federal, ao
dirimir determinado conflito de interesses. Manifesta-se, dessa
maneira, a convivência dos dois sistemas de controle de
constitucionalidade: a mesma lei federal ou estadual poderá ter
declarada sua invalidade, quer em abstrato, na via concentrada,
originariamente, pelo STF (CF, art. 102, I, a), quer na via difusa,
incidenter tantaum, ao ensejo do desate de controvérsia, na defesa
dos direitos subjetivos de partes interessadas, afastando-se sua
incidência no caso em concreto em julgamento. 8. Nas ações
coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade da
declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato
normativo federal ou local. 9. A eficácia erga omnes da decisão, na
ação civil pública, ut art. 16, da Lei n. 7.347/1997, não subtrai o
julgado do controle das instâncias superiores, inclusive do STF. No
caso concreto, por exemplo, já se interpôs recurso extraordinário,
relativamente ao qual, em situações graves, é viável emprestar-se,
ademais, efeito suspensivo. 10. Em reclamação, onde sustentada a
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usurpação, pela Corte local, de competência do Supremo Tribunal
Federal, não cabe, em teses, discutir em torno da eficácia da sentença
na ação civil pública (Lei n. 7.347/1985, art. 16), o que poderá,
entretanto, constituir, eventualmente, tema do recurso extraordinário.
11. Reclamação julgada improcedente, cassando-se a liminar.36
Didier Jr. e Zaneti Jr., analisando a Rcl 600-0/SP, sintetizaram quatro
requisitos para que se admita o controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil
pública e duas consequências daí decorrentes:
a) que não se identifique na controvérsia constitucional o objeto único
da demanda; b) que a questão de constitucionalidade verse e atue
como simples questão prejudicial; c) a existência nos autos de pedido
referente a relação jurídica concreta e específica; d) apresente-se como
causa de pedir e não como pedido a matéria constitucional. Daí se
podendo extrair as seguintes e importantíssimas consequências: a) a
inocorrência de coisa julgada sobre a questão prejudicial (art. 469, III
do CPC); b) a inocorrência de exclusão da norma impugnada
incidenter tantum do ordenamento de direito positivo.37
Em verdade, os requisitos e as consequências decorrentes derivam do próprio
controle concreto de constitucionalidade. Eis que nesta modalidade a controvérsia
constitucional não pode ser objeto da demanda, mas questão prejudicial que constitui causa de
pedir, esta fundada numa relação jurídica concreta – senão seria controle abstrato, pois. Como
referido alhures, com fulcro em Paulo Bonavides, a coisa julgada sobre esse aspecto é
relativa, isto é, gera efeitos endoprocessuais de modo que a eficácia é intra partes. Nada obsta,
pois a que outro processo, em casos análogos, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a
mesma lei ser eventualmente aplicada.38
Resume bem a lição de Ada Pellegrini Grinover:
36 STF – Rcl: 600-0/SP, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Néri da Silveira, Data de Julgamento: 03/09/07, Data de
Publicação: DJ 05/12/03. 37 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. 2ª ed. Salvador: Editora
JusPodvm, p. 292, 2007. 38 V. nota 23 supra.
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Na verdade, nas ações coletivas que se fundamentam numa questão de
inconstitucionalidade, o controle é evidentemente difuso, nada
apresentando de especial em relação ao controle difuso exercido numa
ação individual. A questão da constitucionalidade, tanto numa ação
coletiva como na individual, é colocada como questão prejudicial, a
ser enfrentada pelo juiz antes do julgamento da causa, e não faz coisa
julgada, nem mesmo entre as partes. O que faz coisa julgada é
exclusivamente o julgamento da questão principal, e nenhuma
diferença faz que a sentença que passa em julgado tenha eficácia inter
partes ou erga omnes.39
Portanto, a declaração incidental, restrita às partes (que em ACP não são
meramente formais), gera apenas a ineficácia da lei para aquelas.
No tocante à exclusão da norma do ordenamento, viu-se, com espeque em
Gilmar Ferreira Mendes, que, por óbice do art. 52, X CF, isto não seria possível, em sede de
controle por exceção, nem mesmo pelo STF.40
Veja-se que, sob a perspectiva adotada nas reclamações 602-6/SP e 600-0/SP e
acatada em diversos outros julgados,41
o controle difuso de constitucionalidade em sede de
ação civil pública é uma tese possível, desde que se tenha em mente os limites estabelecidos
pela Constituição e explicitados aqui. Isto é importante, pois não inviabilizaria a ACP quando
para sua procedência o legitimado ativo dependesse da declaração de inconstitucionalidade de
determinada lei ou ato normativo. Senão, o que se teria de fazer? Suplicar ao Procurador
Geral da República ou outro legitimado do art. 103 CF? O cidadão (coletividade) não pode
ficar à mercê de alguma autoridade ou pessoa que ele nem conheça para exercer seus direitos,
ainda mais quando estiver sofrendo lesão a direitos constitucionais fundamentais! Seria negar-
lhe o acesso à justiça (art. 5, XXXV CF). Mais uma vez forçoso reconhecer que o Supremo
Tribunal Federal andou bem nessa questão.
39 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle difuso da Constitucionalidade e a Coisa Julgada Erga Omnes das
Ações Coletivas. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVI, n. 89, p. 11, dez. 2006. 40 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 162-163. 41 V. g.: STF - RE: 424993/DF, Tribunal Pleno, Rel.: Min. Joaquim Barbosa, Data de Julgamento: 11/09/2007,
Data de Publicação: DJ 19-10-200.
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3. OBJEÇÕES À TESE
Como nem tudo é unânime e é bom que não o seja, existe um conjunto seleto
de juristas capazes de discordar desse posicionamento do STF e seus nomes não são de fazer
sobejar qualquer dúvida acerca da seriedade da dissidência. São eles: Gilmar Ferreira Mendes,
Hugo de Brito Machado, Arruda Alvim e Arnoldo Wald (todos citados por João Batista de
Almeida).42
Destacando a opinião de Gilmar Ferreira Mendes, este menciona o
enfrentamento que passou o Supremo na Rcl. 2.460/RJ de relatoria do Min. Marco Aurélio.
Neste caso, havia um sem número de ACP.s do Ministério Público Federal e Estadual
versando sobre o mesmo objeto, cujo mérito relacionar-se-ia com o da ADIn 2.950/RJ, à
época pendente julgamento, que impugnava o Decreto n. 25.723/1999/RJ referente à
exploração da atividade de loterias pelo Estado do Rio de Janeiro. Comentando o julgado,
observa Gilmar Ferreira Mendes:
O Tribunal entendeu que, ainda que se preservassem os atos
acautelatórios adotados pela justiça local, seria recomendável
determinar a suspensão de todas as ações civis até a decisão definitiva
em sede da ação direta, sob pena da usurpação da competência
constitucionalmente assegurada à Suprema Corte.43
Fazendo um paralelo deste caso concreto com a guinada empreendida pelo STF
no sentido de admitir o controle difuso em sede de ACP, adverte o Ministro:
As especificidades desse modelo de controle, o seu caráter
excepcional, o restrito deferimento dessa prerrogativa, no que se refere
à aferição de constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou
federal em face da Constituição Federal apenas ao Supremo, a
legitimação restrita para provocação do Supremo – somente os órgãos
42 ALMEIDA apud DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. Op. cit.
p. 291. 43 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito
Constitucional. Op. cit. p. 291-292. Vide também em MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle
de Constitucionalidade. In WALD, Arnoldo (Org.) Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. Op. cit. p. 164.
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e entes referidos no art. 103 da Constituição estão autorizados a
instaurar o processo de controle -, a dimensão política inegável dessa
modalidade, tudo leva a se não recomendar o controle de legitimidade
de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição no
âmbito da ação civil pública.44
Críticas a este posicionamento é encontrável nas anotações de Didier Jr. e
Zaneti Jr. no sentido de que todo controle de constitucionalidade contém elementos políticos,
mormente se hoje se pretende alargar a eficácia do controle difuso (“objetivação” desse
controle) e se reconhecermos uma espécie de stare decisis mitigado em nosso sistema.45
Esta questão está mais voltada para o eixo teórico que se adota. Também não
há consenso sobre a adoção de decisões políticas pelo poder judiciário. A discussão deve
orbitar em torno do acesso à justiça. Este se pode ver obstruído quando a ACP tiver uma
questão constitucional prejudicial, restando prejudicada a tutela coletiva se não for analisada.
Há que se considerarem ainda os ditames neoconstitucionalistas,46
em que tudo se
constitucionaliza e depois judicializa, o que aumenta a probabilidade da jurisdição
constitucional ser chamada a atuar na ação civil pública.
Por isso, muito interessante a proposta de alteração da Lei 7.347/85 formulada
pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes, para quem, poder-se-ia cogitar, nesses casos, de suspensão
do processo e remessa da questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, via arguição
de descumprimento de preceito fundamental, mediante provocação do juiz ou tribunal
competente para a causa.47
Assim, elidiria decisões conflitantes, tal qual temia o STF que
44 Idem. 45 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – V.4. Op. cit. p. 292. 46 Conjunto de ideias pouco claras ou coesas, mas que guardam alguns pontos em comum. Para Daniel
Sarmento, é possível extrair os seguintes denominadores: i) reconhecimento da força normativa dos princípios
jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; ii) rejeição ao formalismo e
recurso mais frequente a métodos ou estilos mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da
argumentação, etc.; iii) constitucionalização do direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais,
sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; iv) reaproximação
entre o direito e a moral, com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos e v) judicialização
da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do legislativo e do
executivo para o poder judiciário (In SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e
Possibilidades. In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. Op. cit. p. 9-10). 47 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Op. cit. p. 1145.
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ocorresse na Rcl. 2.460/RJ, o que não se coaduna com o princípio da segurança jurídica. Esta
proposta, entretanto, tem que ser posta à prova quanto à viabilidade, posto que o Supremo tem
uma profusão de processos para julgar e o incidente de processos repetitivos, que também
suspende as demandas na base - p. ex., tem-se tornado um calvário infindável para as partes; é
como se os autos fossem parar no limbo, sem falar na abstrativização das contendas entre os
cidadãos, como se pudessem ser solucionadas no varejo. Mas isto também é outra história que
passa por uma discussão maior que é a própria divisão de competências do Supremo e o
sistema recursal dos tribunais de cúpula.48
É de se destacar, embora notáveis opiniões em
contrário, a preocupação do Min. Gilmar para com a integridade da competência do Supremo,
entretanto, a solução legislativa proposta pode não ser viável.
Todo juiz é um juiz constitucional. A norma somente se perfaz diante da
problematização de um caso concreto.49
Ninguém melhor, pois, para analisar a
constitucionalidade, incidenter tantum, do que o juiz da causa. A remessa da questão
constitucional ao STF tem efeitos deletérios para o processo tal qual a fragmentação da causa,
como se os problemas das pessoas pudessem ser fragmentados.
Arruda Alvim, por seu turno, centra a discussão no âmbito da territorialidade
da decisão:
Como a decisão, na hipótese figurada, e nascida de caso concreto,
abrange apenas parcela da Federação, ainda que ponderável, isto
significa que os textos serão válidos e eficazes em grande parte da
Federação, outro tanto inocorrendo no âmbito das jurisdições onde
48 Tecendo críticas ao incidente de recursos repetitivos observa Lênio Streck que o processo civil transformou,
aos poucos, os juízos colegiados em juízos monocráticos; súmulas e jurisprudência dominantes passaram a servir de obstáculo até mesmo para a admissão dos recursos (inclusive de agravos), até chegarmos à recente
Lei 11.672/08, que, a par de representar uma espécie de possibilidade avocatória por parte do STJ, fez com que
o exame de recursos por amostragem passasse também para o processo penal. Isso, definitivamente, representa
o solapamento da análise de identidade do caso sob julgamento. A pergunta que se põe é: a alteração
legislativa, sob pretexto de proporcionar efetividade quantitativa e eficacialidade ao sistema jurídico, é coerente
com os princípios de acesso à justiça e ao devido processo legal? Não será direito do cidadão que seu caso seja
analisado nas suas especificidades? Não se pode olvidar que a Constituição estabelece que os recursos
especiais e extraordinários representam causas e não apenas teses jurídicas (In STRECK, Lênio Luiz. Uma
Abordagem Hermenêutica Acerca do Triângulo Dialético de Canotilho ou de como ainda é Válida a Tese da
Constituição Dirigente (Adequada a Países de Modernidade Tardia). In LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo
Wolfgang. Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em Homenagem a J.J. Canotilho. Op. cit. p. 64). 49 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, p. 62, 2011.
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foram proferidas as decisões e onde venham a ser confirmadas tais
declarações de inconstitucionalidade.50
O autor funda sua objeção no entendimento de que as decisões proferidas em
ACP produziriam efeitos somente em parcela da Federação. Note que este entendimento é
facilmente rechaçado se admitir-se que a jurisdição é una.51
Contudo, prevendo este
posicionamento anota que se o juiz entender-se com “competência nacional”, a evidência de
colisão com o que possa decidir o Supremo Tribunal Federal será curialmente maior.52
Atente para o fato de que esta objeção é justamente o cerne da questão posta na Rcl. 2460/RJ
trazida à baila pelo Min. Gilmar.
Delimitando-se a lide, por assim dizer, ter-se-ia a problematização em torno da
possibilidade da decisão acerca de constitucionalidade em sede de ACP conflitar com
jurisprudência presente ou futura do Pretório, o órgão que a Constituição elegeu como seu
protetor máximo. Como, pois, resolver esta pendenga? Os pressupostos do controle difuso de
constitucionalidade, de per si, respondem. Não há conflito. A decisão que contrarie
jurisprudência da Corte poderá ser revista mediante as vias recursais disponíveis e mesmo
que, antes disso, alcance a coisa julgada, não obsta que, em outros casos o Supremo decida de
maneira diversa, pois a coisa julgada é relativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
50 ALVIM, Arruda. A Declaração Concentrada de Inconstitucionalidade pelo STF e os Limites Impostos à Ação
Civil Pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Revista de Processo, São Paulo, n. 81, p. 131, jan-mar. 1996. 51 A jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, a rigor não comporta divisões, pois falar em
diversas jurisdições num mesmo Estado significaria afirmar a existência, aí, de uma pluralidade de soberanias,
o que não faria sentido; a jurisdição é em si mesma, tão una e indivisível quanto ao próprio poder soberano (In
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo Cintra; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, p. 156, 2006). Comentando o regime geral dos limites da coisa
julgada, traçado pelo Código de Defesa do Consumidor, v. Ada Pellegrini: De início, os tribunais não
perceberam o verdadeiro alcance da coisa julgada erga omnes, limitando os efeitos da sentença e das liminares
segundo critérios de competência. Logo afirmamos que não faz sentido. [...] Ou a demanda é coletiva, ou não o
é. E se o pedido for efetivamente coletivo, haverá uma clara relação de litispendência entre as várias ações
ajuizadas nos diversos Estados da Federação (In GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle difuso da Constitucionalidade e a Coisa Julgada Erga Omnes das Ações Coletivas. Revista do Advogado. Op. cit. p. 9). 52 ALVIM, Arruda. A Declaração Concentrada de Inconstitucionalidade pelo STF e os Limites Impostos à Ação
Civil Pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Revista de Processo. Op. cit. p. 131.
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No Brasil, o controle de constitucionalidade sempre poderá ser jurisdicional.
Adota-se o Sistema Híbrido de Constitucionalidade, combinando as vias difusa ou
concentrada, a primeira de competência de todo magistrado, a segunda somente do Supremo
Tribunal Federal. Os direitos coletivos, por todo exposto, são merecedores de tutela
jurisdicional o que, em tese, compreende a uma tutela jurisdicional constitucional. Para este
escopo, a ACP tem um papel central como mecanismo de acesso à justiça e concretização de
direitos fundamentais, não se mostrando suficientemente aptas para essa finalidade as demais
ações coletivas.
Não é de nada possível que a ACP tenha o condão de atacar lei ou ato
normativo em tese, sob pena de usurpação de competência do STF. Não obstante isso, o
jurisdicionado não pode restar privado da tutela constitucional, numa forma de cerceamento
do acesso à justiça. Não obsta, pois a utilização do controle concreto adequadamente e sem
dissimulações não é capaz de exceder a competência do juiz de primeiro grau mesmo nestes
casos.
A hipótese de conflito que se possa instaurar entre a decisão em ACP e a
jurisprudência do Supremo também restou de todo refutada, pois a Corte sempre terá o
monopólio da jurisprudência constitucional, posto que nenhuma declaração incidental de
inconstitucionalidade poderá lhe submeter. Se, contudo, a relação jurídica que se pretende
fulminar em ACP guardar com ADIn/ADC/ADPF a mesma causa de pedir, ambas em trâmite,
poderá o Pretório decretar-lhe a suspensão até que seja solucionada a questão constitucional
em controle abstrato, tal qual sua própria jurisprudência tem entendido.
Não é lícito, portanto, ao juízo de primeiro grau suspender a aplicação de uma
dada norma federal ou estadual em face da CF, pois que afasta apenas incidentalmente a sua
aplicação no caso concreto. Em sede de ACP, a decisão que efetua controle meramente
incidental de constitucionalidade tem eficácia limitada às partes envolvidas na controvérsia,
não assumindo assim os efeitos erga omnes que incidem na parte dispositiva.
Deste modo, o próprio sistema veda a utilização da ACP como sucedâneo da
ADIn e a competência do Supremo encontra-se preservada, bem como a finalidade precípua
da Ação Civil Pública que é a tutela dos direitos difusos, garantindo-se, ao menos em tese, o
acesso à justiça constitucional.
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A EVOLUÇÃO DAS GERAÇÕES1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS
FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA
COMPREENSÃO DA TUTELA COLETIVA
THE EVOLUTION OF GENERATIONS OF FUNDAMENTAL LAW AND
METHODOLOGICAL PHASES OF CIVIL PROCEDURAL LAW IN
UNDERSTANDING THE CLASS ACTION
Henrique Camacho
Advogado. Mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista
- UNESP - Dr. Júlio de Mesquita Filho. Bolsista CAPES.
Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos
da Cidadania. Bacharel em Direito pela Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais de Franca - UNESP. Membro do
Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil
Brasileiro e Comparado - NUPAD.
Yvete Flávio da Costa
Pós-Doutoramento na Universidade de Coimbra - Portugal,
sob supervisão do Professor Doutor José Manuel Aroso
Linhares. Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Docente Assistente
Doutor na Universidade Estadual Paulista -"Júlio de
Mesquita Filho"- Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.
RESUMO: O presente artigo tem por escopo a compreensão de alguns conceitos basilares
à Tutela Coletiva no Brasil, sob a análise da evolução histórica das gerações dos direitos
humanos fundamentais e das fases metodológicas do Direito Processual Civil,
1 Optou-se por manter o termo gerações, embora parte da doutrina, com razão, disciplina a temática com o
termo dimensões, pois o termo escolhido é comumente utilizado nos meios acadêmicos em relação ao outro,
sempre com referência à polêmica conceitual.
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disciplinadas pela doutrina brasileira, para que assim construa-se uma fundamentação
lógica sobre a importância da Tutela Coletiva ao acesso à justiça e à efetivação dos direitos
fundamentais. Nada mais justo que compreender esta evolução para poder ceder a outros
debates - sobre temáticas mais específicas da Tutela Coletiva - os argumentos para
ressaltar a atual relevância da efetivação dos direitos humanos sociais fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Gerações de direitos. Fases metodológicas. Ondas renovatórias.
Direito processual coletivo. Tutela coletiva.
ABSTRACT: The scope of the present article is to perceive some of the basic concepts
concerning class action, through the analysis of historical development of human
fundamental rights generations and the methodological phases of civil procedure law,
disciplined by the brazilian doctrine, so that it's built up a logical foundation about the
importance of class action to justice access and to the fundamental rights effectiveness.
Nothing better than to understand this evolution as a way to give in to other discussions -
about more specific topics concerning class action - the arguments to highlight the current
relevance of social human fundamental rights effectuation.
KEYWORDS: Rights generations. Methodological phases. Renewal waves. Class action
law. Class action.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
2. FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL. 2.1 Sincretismo.
2.2 Autonomismo. 2.3 Instrumentalismo. 2.3.1 As ondas renovatórias de acesso à justiça.
CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Muito se discute na atualidade a respeito de diversos assuntos que, em um
primeiro momento, parecem compor temáticas novíssimas. Entretanto, diversos destes
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institutos têm origem e disciplina em ordenamentos jurídicos remotos, o que nos faz buscar
referência em textos das ciências jurídicas dos tempos dos impérios e reinados2.
A busca pelo desenvolvimento na maneira de compreender o Direito caminha
sempre em direção à utilização de princípios e valores que garantam, ou ao menos
procuram garantir, a linearidade com que as relações humanas deveriam ocorrer. Não
obstante o ser humano compor a sociedade (DALLARI, 2011, p. 30), não poderia manter
estas relações sociais vivas e sadias se não fosse a própria preocupação humana em
desenvolver mecanismos de controle da individualidade em prol da coletividade.
Os atuais debates no campo das ciências jurídicas nos levam a desenvolver
temática que até pouco tempo era desconsiderada pela doutrina processual civil, que em
sua origem se preocupava mais com o caráter individual das relações entre as pessoas. O
Código de Processo Civil de 1973 é um texto legal evidentemente disciplinado para
permitir ao Estado o controle dos conflitos individuais.
Todavia, com o advento da Lei de Ação Popular (LAP) (1965), posteriormente
reformada, e da Lei de Ação Civil Pública (LACP) (1985) esta feição individualista foi
alterada. Iniciou-se um processo no Direito Processual de preocupação com as relações
sociais.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF) e o Código de
Defesa do Consumidor (CDC) (1990) apenas reforçaram esta ideia e oxigenaram a
permeabilidade do Direito Processual Civil.
Apenas para reforçar o argumento, basta analisar a possibilidade, crescente ao
longo dos anos posteriores à Constituição Federal, de ocorrer o que alguns estudiosos
denominam de democracia participativa (CORREIA, 2012, p. 114), ou seja, uma maior
proximidade das pessoas com a busca da realização e efetividade de seus Direitos,
ressaltando importante aumento pelo respeito ao acesso à justiça com a edição de leis como
a do Mandado de Segurança (MS), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), Ação
Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF)3.
2 Aqui se faz referência, por exemplo, aos dez mandamentos inscritos no velho testamento bíblico, a Lei das
XII tábuas, ao Código Napoleônico, as Ordenações Filipinas e Manuelinas, etc. 3 Apenas para efeito de esclarecimento e facilitação de eventuais consultas por parte do leitor, como não será
objeto de estudo cada uma das leis citadas, elenca-se neste momento os respectivos números das leis: Lei n.
12.016, de 07 de agosto de 2009 (Lei do Mandado de Segurança); Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999
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Para acompanhar esta evolução pela qual passa o Direito Processual é necessária a
compreensão de alguns conceitos basilares à Tutela Coletiva no Brasil. Tais conceitos nos
remetem ao estudo da evolução histórica das gerações dos direitos fundamentais e das
fases metodológicas do Direito Processual Civil disciplinada pela doutrina brasileira.
A Tutela Coletiva é importante instrumento de salvaguarda do acesso à justiça e
permite a efetivação dos direitos fundamentais individuais ou coletivos. Nada mais justo
que compreender esta evolução para poder tecer outros debates - sobre temáticas mais
específicas da Tutela Coletiva – a respeito da relevância na efetivação dos direitos sociais.
O texto contará principalmente com suporte material proveniente da análise
bibliográfica da doutrina jurídica brasileira, sob enfoque analítico (ALEXY, 1993, p. 29-
34). Uma postura metodológica eminentemente dedutiva será utilizada, de modo que
premissas e assertivas gerais promovam a elaboração de conclusões particulares que
permitirão a composição de uma conclusão única ao final do texto. Este método aplicado
pode ser utilizado em consonância com a utilização de outros métodos, como o indutivo e
o dialético, sem prejudicar a estruturação textual. Será dada preferencial atenção à temática
abordada no intuito de inseri-la em contextos sociais, políticos, econômicos e históricos, a
fim de enriquecer o estudo.
1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Uma análise do papel do Estado na efetivação destes direitos nos leva ao estudo
do texto constitucional e de questões relacionadas ao Estado Democrático de Direito.
Percebe-se que a dignidade humana, para ser respeitada, necessita que o Estado garanta
alguns princípios fundamentais às relações humanas numa estrutura igualitária:
Com base nas ideias apenas aqui pontualmente lançadas e
sumariamente desenvolvidas, há que sustentar que, além da íntima
vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e
direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretização do
princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores
(Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade); Lei n. 9.882 de 03
de dezembro de 1999 (Lei da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).
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da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência
e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e
Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso
direito constitucional positivo vigente. (SARLET, 2009, p. 62).
Partindo da evolução dos direitos fundamentais (BOBBIO, 1992, p. 5), é possível
elencar uma divisão de caráter didático, que implica na estruturação de gerações dos
direitos fundamentais, ou o que alguns autores entendem como dimensões dos direitos
fundamentais. Essa divisão permitirá que em linhas posteriores se faça relação com a
temática dos interesses transindividuais. Optou-se por manter o termo gerações, pois é este
o mais difundido no ambiente acadêmico.
Esclarece-se que o embate terminológico ocorre porque muitos entendem o termo
gerações com sinônimo de “não coexistência”, como se cada geração ocupasse um lugar
determinado na história da humanidade. Entretanto, a doutrina tem demonstrado que
embora exista esta classificação, nenhuma implicação há em compreender cada um dos
momentos como complementação de um momento anterior, ou seja, o conceito de
dimensões seria a melhor opção porque disciplina a ideia de que um momento está contido
no outro; predominaria a ideia de coexistência. Logo, não há separação, mas sim
complementação entre eles (CORREIA, 2012, p. 15-16).
A classificação apresentada tem início com a análise histórica do século XVII,
mas isto não significa que nada ocorreu em séculos anteriores. Ideias como “O
reconhecimento de que instituições de governo devem ser utilizadas para serviço dos
governado [...]” eram fortes já em período da cultura clássica grega, sobre o elevado valor
da democracia ateniense. Pode-se até afirmar que “No embrião dos direitos humanos,
portanto, despontou antes de tudo o valor liberdade.”, ideia esta que começou a tomar
forma já na Idade Média (séculos XIV e XV) (COMPARATO, 2003, p. 40 – 47).
Os direitos de primeira geração, ou melhor, os Direitos Civis e Políticos (século
XVII e início do século XIX) são direitos essencialmente de liberdade do indivíduo
(BUENO, 2008, v. 1, p. 58), “[...] decorrentes do jus naturalismo racional, cujo pensamento
influenciou as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, fazendo com que seu
conteúdo privilegiasse as liberdades individuais, concebidas em função do ser humano
abstrato, descontextualizado.” (WEIS, 2006, p. 38 e 41) Relacionam-se à distribuição de
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competência entre Estado e indivíduo. São direitos intimamente ligados a ideia de
predomínio da liberdade individual sobre a atuação estatal. A Revolução Francesa e o
Iluminismo muito contribuíram para o fortalecimento da ideia de enaltecimento da liberdade
individual, ou do não-agir do Estado (WEIS, 2006, p. 38).
A segunda geração surge em resposta à desumana situação da população pobre
das cidades industrializadas da Europa Ocidental durante os séculos XVIII e XIX. Esta
sociedade urbana era constituída basicamente de pessoas vindas do campo para a cidade,
em busca de trabalho nas indústrias.
Inúmeras ideias e teorias surgiram para fundamentar a necessidade de alterações
naquela estrutura social, visando o aumento da competência estatal, de modo que o Estado
deveria intervir necessariamente para reparar as condições desumanas em que se inseria a
população da época. (WEIS, 2006, p. 39).
Foi durante este período que se estruturou o denominado “Constitucionalismo
Social”: os direitos humanos passaram a ser compreendidos como referência para a
proteção dos direitos sociais. Este pensamento influenciou as Constituições francesa
(1848), mexicana (1917) e alemã (1919) (WEIS, 2006, p. 38-39).
Esta geração ficou conhecida como a geração dos “Direitos Econômicos e
Sociais”, onde surgiram os denominados “direitos sociais em sentido amplo” (BUENO,
2008, v. 1, p. 58): o Estado deveria agir para transformar a situação desumana imposta pelo
capitalismo industrial e permitir a vida digna nas cidades. Percebe-se que:
Em sentido contrário, a democracia moderna, reinventada quase que
ao mesmo tempo na América do Norte e na Franca, foi a fórmula
política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos
privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero
e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe
burguesa. (COMPARATO, 2003, p. 50)
É importante perceber que a formação dos conceitos destas gerações tem forte
relação com o processo histórico de formação e solidificação dos direitos humanos
fundamentais (WEIS, 2006, p. 41).
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A terceira geração, denominada de “Direito da Coletividade”, dos séculos XX e
XXI, corresponde aos direitos relativos a toda a humanidade, na tentativa de igualar a
situação dos Estados e dos seres humanos (WEIS, 2006, p. 40). Logo, a ideia central
informava que a busca deveria ser a fraternidade entre os povos.
Percebe-se que houve certo caminhar para um pensamento coletivo, em que se
deixou a liberdade individual sobressair-se a igualdade coletiva. Os Estados deveriam
buscar o desenvolvimento próprio, assim como auxiliar os demais Estado para que saíssem
da condição de subdesenvolvimento. As pessoas passaram a compreender a necessidade de
garantir às futuras gerações um planeta ecologicamente equilibrado. Ainda não era forte a
ideia de sustentabilidade, mas já se fazia presente o conceito de efetivação de direitos
fundamentais sociais, plurais. Tais direitos constituem direitos excessivamente
heterogêneos. Talvez o mais importante dos direitos desta geração é o de poder viver em
um ambiente saudável e despoluído (BOBBIO, 1992, p. 6).
Pode-se dizer que nesta fase a humanidade entendeu que não se sustentaria
baseada no individualismo. Alguns direitos transcendem o individualismo e para serem
efetivos mais facilmente devem ser exercitados de maneira coletiva. São os denominados
“direitos humanos globais”:
[...] dizem respeito às condições de sobrevivência de toda a
humanidade e do Planeta em si considerado, englobando a
manutenção da biodiversidade, o desenvolvimento sustentado, o
controle da temperatura global e da integridade da atmosfera, além
dos consagrados direitos à paz, à autodeterminação dos povos etc.
(WEIS, 2006, p. 42).
Ainda sobre o conteúdo desta geração é possível afirmar que foi a primeira fase de
internacionalização dos direitos humanos:
Ela teve início na segunda metade do século XIX e findou com a 2
ª Guerra Mundial, manifestando-se basicamente em três setores: o
direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos
direitos do trabalhador assalariado. (COMPARATO, 2003, p. 54).
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Há quem fale ainda numa quarta geração, decorrente de um desenvolvimento da
globalização política, quando ocorre institucionalização do Estado social. Estes direitos
estariam relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo (BONAVIDES apud
WEIS, 2006, p. 40).
Norberto Bobbio, entretanto, entende os direitos de quarta geração como sendo
“[...] referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica que permitirá
manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” (BOBBIO, 1992, p. 6).
Neste debate sobre gerações dos direitos humanos relevante é traçar alguns
apontamentos que de certo tornam a processualística atual mais plural e coletiva: os
direitos humanos percorreram um extenso caminho para que se superasse o
individualismo; passou-se de um status quo singular para outro fortemente vinculado à
ideia de sustentação das estruturas democráticas mantenedoras dos direitos humanos
fundamentais; partiu-se de uma preocupação comum quanto à conservação do meio
ambiente em seu aspecto ecológico para a criação e conservação, também relevante, de um
sistema de educação pública de qualidade, que privilegie o desenvolvimento das
sociedades; de um sistema de saúde pública condizente com os clamores sociais; enfim, de
estruturas que possibilitem a sustentação de um Estado protetor dos direitos fundamentais:
No entanto, como já dissemos alhures, não há como entender esses
direitos de forma estanque, sendo que, atualmente, aparece de forma
esparsa nas constituições dos mais diversos países. Por outro lado, na
perspectiva dos direitos humanos, como veremos em momento
oportuno, há direitos que, embora aparentemente de primeira ou
segunda dimensão, possuem uma externalização no plano dos
direitos individuais e, simultaneamente, dos direitos difusos. Veja-se,
por exemplo, a busca da liberdade de uma única pessoa, que é
mantida em condições análoga à de escrava, pode ser percebida na
perspectiva individual e também difusa. (CORREIA, 2012, p. 15-16)
No âmbito brasileiro, quando se levam em conta argumentos embasados em um
sistema de tutela coletiva fundamentado basicamente na LACP e no CDC, deve-se pensar
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o direito processual coletivo considerando a evolução das sociedades, partindo da defesa
dos direitos individuais para a compreensão da necessidade de tutela dos direitos coletivos
na atualidade, independentemente de serem eles coletivos stricto sensu, difusos ou
individuais homogêneos (art. 81, do CDC).
Percebe-se que esta é uma forma de se disciplinar e fortalecer o princípio da
igualdade como uma das bases para a democracia, permitindo a manutenção do Estado
Democrático de Direito, salvaguardando a dignidade da pessoa humana, e o
desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária (arts. 1°, III; 3°, I e 5°, caput, da
Constituição Federal).
No próximo item, em que será abordada a questão das ondas renovatórias do
processo, tornar-se-á mais clara a ideia de utilização do processo como meio para
tornar concreta a realização dos direitos humanos fundamentais (BUENO, 2008, v. 1,
p. 59).
2 FASES METODOLÓGICAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Para melhor compreensão da importância da tutela dos direitos coletivos,
principalmente dos direitos humanos fundamentais e sociais, passar-se-á para análise das
fases metodológicas instituídas pela doutrina processual.
Estas são compreendidas como períodos nitidamente diferentes e determinados,
de maneira a indicar a relação do direito processual com o momento histórico em que se
inseria determinada fase.
É uma forma de expandir a compreensão de como se encontra o direito processual
hoje e quais os acontecimentos que influenciaram a composição deste ramo do Direito
como ramo autônomo e intensamente vigoroso para a conservação do Estado Democrático
de Direito.
Assim, podemos dizer que o direito processual inclui basicamente três fases
metodológicas fundamentais, a saber: a sincrética, a autonomista e a instrumentalista.
2.1 Sincretismo
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É a primeira fase de acordo com a doutrina. Nela o processo se insere de maneira
não autônoma ao direito material, ou seja, dependente do direito material. É uma ideia
errada do direito processual se considerarmos os preceitos atuais de autonomia processual
em relação ao direito material. Todavia, em épocas remotas, só poderia propor a ação
quem tivesse o direito material evidentemente lesado. “Não se tinha consciência da
autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza
substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo.” (CINTRA; GRINOVER;
DINAMARCO, 2009, p. 48).
É necessário entender que, naquela época, faltavam elementos mínimos para que
os estudiosos separassem as normas de direito processual civil das normas de outra
categoria, as denominadas normas substanciais (BUENO, 2008, v. 1, p. 41).
Sincretismo, em poucas palavras, poderia ser entendido como uma fase em que se
fundiram dois institutos: direito material e direito processual, que embora estivessem
unidos, mantinham traços ainda perceptíveis de suas próprias naturezas autônomas.
Este período prevaleceu até que os alemães começaram a realizar estudos sobre a
temática. Passou-se especular a natureza jurídica da ação, o que umbilicalmente está ligado
ao estudo da natureza jurídica do processo. A doutrina é unânime ao entender a obra de
Oskar von Bülow, Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias (1868),
como marco histórico da emancipação do estudo científico do direito processual civil.
(BUENO, 2008, v. 1, p. 41).
2.2 Autonomismo
Esta é uma fase evidentemente marcada pelas construções científicas do direito
processual. Foi nesta época, que durou praticamente um século, que surgiram teorias
processuais que tratavam, por exemplo, da natureza jurídica da ação e do processo, das
condições e pressupostos processuais, etc. Foi um período de alta relevância, pois garantiu
nova vida ao direito processual ao afirmar a autonomia científica do direito processual
(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 48-49).
Foi uma fase em que as características do direito processual civil permitiram
maior separação das normas de direito material, que impõem a atuação do juiz em questões
controversas (BUENO, 2008, v. 1, p. 42).
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O problema que se impõe é que durante este período, movidos pelo desejo de
separar o direito processual do material, acabou-se por criar condições para transformá-lo
em ciência extremamente difícil de ser colocada em prática. Não se pode esquecer que foi
uma evolução para o período, mas também deve se ter em mente que tinha seus aspectos
dúbios e que deixavam a sistemática do direito à ação fragilizada (BUENO, 2008, v. 1, p.
42).
Alguns entendem que faltou postura crítica no período, pois o processo era visto
como mero instrumento técnico voltado à realização jurídico material (CINTRA;
GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 49).
Não há exagero nenhum em afirmar, por isto mesmo, que a relação
entre os planos material e processual é verdadeiro conteúdo e
continente: o direito material (substancial) é veiculado pelo direito
processual civil para o Estado-juiz para que as relações por ele
redigidas sejam adequadamente compostas e realizadas. (BUENO,
2008, v. 1, p. 45, grifo do autor).
Se compararmos a primeira com a segunda fase, percebemos que não se devem
tomar como corretos os extremos, mas sim buscar uma técnica que reúna as características
positivas de ambas as correntes. O direito processual e o material devem sempre caminhar
juntos, de maneira complementar. Nesta toada é que se estruturou a fase seguinte.
2.3 Instrumentalismo
Nesta fase, que se mantém até os dias atuais, estrutura-se o caminho inverso ao que
foi delineado na fase anterior. De maneira antagônica, busca-se a aproximação entre o direito
material e processual. O direito processual, embora tenha autonomia (finalidade, natureza,
identidade e função), deve servir para a aplicação concreta do direito material: “Há uma
necessária comunicação, uma necessária interpenetração de um campo no outro, embora,
isto é importante que fique claro, o direito material não se confunda com direito processual
nem vice-versa.” (BUENO, 2008, v. 1, p. 51, grifo do autor).
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Pode-se afirmar que o processo passou a ser visto como um instrumento, não
apenas de aplicação e realização da vontade da lei, mas também para a pacificação social
(THEODORO JÚNIOR, 2008, v. 1, p. 15), de maneira que possibilita a tutela dos
interesses coletivos. Apenas num segundo plano poderia ser visto como remédio para
tutelar os interesses individuais.
Nesta fase, “[...] é preciso deslocar o ponto de vista e passar a ver o processo a
partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos.” (CINTRA;
GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 49). Para isso, a aproximação entre o direito
processual e o direito constitucional veio a fortalecer a nova fase metodológica
instrumentalista do direito processual. Passou-se ao desenvolvimento de uma teoria geral
do processo e de uma análise crítica frente aos aspectos sociais e políticos que
influenciavam as novas concepções dentro desta fase (CINTRA; GRINOVER;
DINAMARCO, 2009, p. 49). Uma destas temáticas é o acesso à justiça.
Não simplesmente um acesso à justiça, mas sim uma efetiva e eficaz forma de
fazer valer o direito inscrito no texto da Constituição Federal, ou seja, o direito de ação
(art. 5º, XXXV, CF). Este objetivo levou a elaboração de posições que se seguiram, mais
ou menos, em ordem cronológica. A doutrina desenvolveu a temática sobre a denominação
“ondas de acesso à justiça” 4.
2.3.1 As ondas renovatórias de acesso à justiça
Não é incomum a utilização de termos ou expressões provenientes de outros
ramos da ciência humana. Por exemplo, podemos citar o “case management”, expressão
advinda das ciências biológicas que indica todos os primeiros procedimentos para se
controlar e prevenir uma enfermidade. O termo que foi aproveitado pelo Direito Processual
Civil Brasileiro ao disciplinar o instituto do gerenciamento do processo (SILVA, 2010, p.
37).
Aqui se pode analisar, portanto, o termo “ondas” com fundamento em sua origem
nas ciências exatas, mais especificamente na física5. Isso facilita a compreensão de que
4 Expressão advinda da tradução da obra: CAPPELLETTI; GARTH, 1988. p. 31. 5 Para compreender estes conceitos, temos que: “Onda é uma perturbação oscilante de alguma grandeza
física no espaço e periódica no tempo.” e “No estudo dos conceitos básicos de ondas temos que ficar atentos
a uma característica, que é o transporte de energia sem o transporte de matéria. Por esse motivo é que
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uma onda pode ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço que outra onda em frequência
diferente.
É importante perceber que, diferentemente da expressão “gerações” ou
“dimensões” do Direito, o termo “ondas” permite, com maior facilidade, a aceitação de que
todos os movimentos renovatórios de acesso à justiça caminham um ao lado do outro,
sendo que o desenvolvimento de uma onda renovatória apenas foi possível porque a onda
anterior tomou formas definidas solidificadas e necessitou de complementação.
Estas ondas renovatórias passaram a integrar a temática sobre o instrumentalismo
do processo. Logo, há de se perceber que contribuíram para a concepção atual do processo
como instrumento de efetivação das garantias inscritas na Constituição Federal,
disciplinadas sob o manto dos direitos fundamentais individuais ou sociais.
A reflexão acerca do direito e seus aspectos propedêuticos desperta, naqueles que
buscam compreender não apenas o vocábulo, mas também a ciência do Direito, alguns
conceitos essenciais: o Direito é formado pelo conjunto de normas, regras e princípios que
são instituídos e regulados pelo Estado. Para que este regramento seja válido a sociedade
deve estruturar uma situação em que o indivíduo abre mão de sua liberdade individual em
prol da coletividade.
O Brasil compõe-se em Estado Democrático de Direito e para tanto deve proteger
os direitos e garantias fundamentais para que a dignidade humana seja respeitada. É norma
que “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração
do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” ou então “[...] a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (Arts. 1° e 5°,
incisos LXXV e XXXV, CF).
O instituto do acesso à justiça permeia a proteção de todo direito, não se
restringindo a mera formalidade postulatória, mas também uma prestação jurisdicional
efetiva.
Em obra importante para o debate, os autores Mauro Cappelletti e Bryant Garth
promovem estudo para fundamentar a necessidade de os processualistas modernos
mudarem a forma que entendem de solução de litígios, de modo a promover a expansão
dizemos que elas são apenas deformações que se propagam em um meio. Sendo assim, elas podem atravessar a mesma região ao mesmo tempo.” (grifo nosso). Disponível em:
<http://www.brasilescola.com/fisica/a-classificacao-das-ondas.htm> e <
http://www.brasilescola.com/fisica/ondas-estacionarias.htm>. Acesso em: 08 mar. 2013.
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dos estudos para além das paredes dos tribunais – que também é importante,
principalmente quando se estuda a estrutura do Judiciário – incluindo nas análises
científicas da doutrina jurídica outros métodos como a economia, a política, a psicologia e
a sociologia (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p.13).
De modo bem simples, a tese levantada pelos autores pode ser definida em pilares
que estruturaram os caminhos do processo civil: a. Reforma e evolução dos procedimentos
judiciais, de modo a promover melhor a solução dos conflitos sociais; b. o Judiciário não é
o único meio de solucionar litígios, a conciliação, mediação e arbitragem podem ser
utilizadas; c. Promover a celeridade processual por intermédio da estruturação e criação de
procedimentos especiais para determinados litígios; d. Promover melhoras na prestação
jurisdicional com a contratação de mais servidores e magistrados, treinando-os e
qualificando-os constantemente, inclusive com incentivos para permanecerem estimulados
a trabalhar; e. Que o legislador e o próprio Judiciário permita a simplificação de
procedimentos (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p.75-159).
A primeira onda de acesso à justiça é denominada de assistência judiciária para
os pobres. Nesta fase, buscava-se eliminar obstáculos econômicos impostos aos menos
afortunados, de maneira que o acesso à justiça fosse-lhes concedido.
Se todos são iguais perante a lei, na medida de suas igualdades, sejam os seres
humanos pobres ou ricos, deve o Estado fornecer amparo a todos para que tenham proteção
de seus direitos, inclusive contra o próprio Estado, caso não cumpra seus objetivos
inscritos no texto constitucional.
Foi nesse contexto que surgiu a defensoria pública, as leis de assistência judiciária
gratuita e outras iniciativas. Isto foi importante porque “[...] sem condições efetivas de
realização concreta dos direitos, é, até mesmo, difícil distinguir o plano do direito material
de meras listas declaratórias de direito.” (BUENO, 2008. v. 1, p. 52).
É importante ressaltar a aproximação entre o Código de Processo Civil e a
Constituição Federal de 1988. Intitulada de “Constituição Cidadã” 6, não poderia deixar de
6 Termo utilizado pelo então deputado Ulysses Guimarães em discurso durante a promulgação da
Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCsQFjAA&url=http%
3A%2F%2Fwww2.camara.leg.br%2Fatividade-legislativa%2Fplenario%2Fdiscursos%2Fescrevendohistoria%2Fdestaque-de-materias%2Fconstituinte-1987-
1988%2Fpdf%2FUlysses%2520Guimaraes%2520-
%2520DISCURSO%2520%2520REVISADO.pdf&ei=4dFEUbXICoTY9ATL1oHgCg&usg=AFQjCNEK33
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abrigar em seu âmago institutos processuais relevantes como a ampla defesa e o
contraditório. Favorece a proteção aos mais desfavorecidos e vítimas das desigualdades
sociais e econômicas que ainda tomam forma no Brasil, um Estado Democrático de
Direito.
A CF 5.º XXXV prevê que nenhuma ameaça ou lesão de direito
pode ser subtraída da apreciação judicial. A garantia constitucional
do direito de ação significa que todos têm direito de obter do Poder
Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Por tutela adequada
deve-se entender a tutela que confere efetividade ao pedido sendo
causa eficiente para evitar-se a lesão (ameaça) ou causa eficiente
para reparar-se a lesão (violação). (NERY JÚNIOR; NERY, 2010,
p. 1161).
Contudo, é necessário ir além do levantamento dos aspectos positivos e buscar
compreender os limites que esta primeira onda se deparou. Para que o sistema de
assistência judiciária gratuita seja eficiente é necessária à atuação de muitos advogados.
Além disto, é necessário que estes advogados tenham disponibilidade em ajudar os menos
afortunados. Este seria um problema sério, porque os casos judiciais implicam em valores
de honorários e de custas, o que comprometeria o orçamento de considerável parcela
assalariada da população brasileira.
Deve-se também relatar que a assistência judiciária não pode, mesmo sendo
perfeita, solucionar problemas das pequenas causas individuais e que o modelo de
advogados de equipe leva a necessidade de reivindicar interesses difusos dos pobres, tais
como sobre o meio ambiente e relações de consumo (CAPPELLETTI; GARTH, 1998,
p.47-49).
Já a segunda onda renovatória foi intitulada representação dos interesses difusos,
ou da coletivização dos processos. Trata-se de momento em que se buscava oferecer tutela
aos interesses difusos e coletivos que não possuíam guarida na sistemática tradicional
mzPmw7hSUc0Sm2g--_zz_2rA&sig2=e12sm5Pv-ci4aVRU2ehTxg&bvm=bv.43828540,d.eWU>. Acesso
em: 11 nov. 2012.
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(AZEVEDO, 2003, v. 2, p. 247). É um dos temas elencados no título deste artigo e pode
vincular-se a efetivação dos direitos fundamentais.
Como é notável, esta onda renovatória relaciona-se com vertente atual em que
pesa a compreensão do direito processual sob as lentes de uma tutela de interesses
transindividuais, ou como o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC) determina,
direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos (art. 81).
O sistema processual, da forma que está estruturado, compõe-se de um
organograma individualista e formalista, que enfrenta a dificuldade de conciliar os anseios
constitucionais de celeridade e efetividade em oposição aos inúmeros processos que
surgem anualmente no Judiciário, lotando os escaninhos.
A sociedade brasileira buscou, ao promulgar a Constituição Federativa do Brasil
de 1988, conciliar o ordenamento pátrio com a realidade social, no intuito de efetivar a
construção da igualdade e da democracia, pois: “Nada mais perigoso do que fazer-se
Constituição sem o propósito de cumpri-la, ou de só cumprir nos princípios de que se
precisa, ou se entende devam ser cumpridos – o que é pior.” (MIRANDA, 1987, t. 1, p. 15-
16).
É nesta segunda onda que há o escopo de aumentar a tutela dos interesses supra
individuais ou transindividuais. São direitos que em alguns casos tem o sujeito não
determinado, como questões referentes ao meio ambiente e a moralidade administrativa.
É um momento em que se verificam as condições dessas novas tendências e se
estuda a possibilidade de adaptar as fórmulas antigas aos novos direitos. Mais
explicitamente que a primeira onda, a preocupação desta é viabilizar a representação
judicial dos menos afortunados, que em outros momentos restariam carentes de proteção
jurisdicional (BUENO, 2008. v. 1, p. 53). Nas palavras de Cappelletti e Garth (1988, p. 66-
67):
[...] esses interesses exigem uma eficiente ação de grupos
particulares, sempre que possível; mas grupos particulares nem
sempre estão disponíveis e costumam ser difíceis de organizar. A
combinação de recursos, tais como as ações coletivas, as
sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública
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e o advogado público podem auxiliar a superar este problema e
conduzir à reinvindicação eficiente dos interesses difusos.
É fato que o Código de Processo Civil, publicado em 1973, possui forte influência
de um procedimento criado para a guarda e tutela de interesses individuais (ALMEIDA,
2007, p. 48-50). Porém, com o amadurecimento da sociedade brasileira, não foi possível
ignorar, no âmbito jurídico-processual nacional, as novas formas de defesa dos direitos
fundamentais.
O Brasil hoje é referência quanto à temática dos direitos coletivos ou
transindividuais, estando o Código de Defesa do Consumidor entre as obras de grande
relevância no espaço latino americano ou mundial.
Foi durante esta onda renovatória que a defesa dos direitos sociais tomou maior
volume. A Constituição Federal de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor, aliados a
uma legislação evidentemente criada para resguardar os direitos coletivos – como exemplo
a Lei de Ação Popular e a Lei de Ação Civil Pública – somaram-se e formaram o que se
denominou “microssistema” de tutela coletiva (ALMEIDA, 2007, p. 45-47, 79-81). O
Código de Processo Civil de 1973, neste aspecto, assume papel subsidiário (BUENO,
2010, v. 2, t. 3, p. 203).
Os direitos transindividuais ou direitos coletivos lato sensu demonstram direitos
que ultrapassam os limites da individualidade e encontram amparo na proteção dos direitos
considerados pertencentes a uma classe de indivíduos, ora sendo esta classe mais restrita,
ora sendo mais abrangente. Adota-se para este trabalho a classificação que inclusive o
próprio Código de Defesa do Consumidor adota e que possui respaldo de parte da doutrina.
Entretanto, há doutrinadores que discordam desta classificação e propõem entendimento
diferente.7
Pois bem, direitos difusos são, de acordo com o Código de Defesa do
Consumidor, em seu art. 81, inciso I, os direitos “transindividuais, de natureza indivisível
7 É possível citar a doutrina de Gregório Assagra de Almeida que entende haver a seguinte divisão do direito
processual coletivo brasileiro: direito processual coletivo especial, que se destina ao controle concentrado e
abstrato de constitucionalidade e direito processual coletivo comum, que denomina como “instrumento de
efetivação concreta e de forma potencializada da Constituição e, especialmente, do Estado democrático de
Direito e dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais”, ou seja, estariam inclusas neste item a ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, entre outros (ALMEIDA, 2007. p. 59).
Também temos a obra de Cassio Scarpinella Bueno, que cita as páginas do livro de Antonio Gidi (BUENO,
2010. v. 2, t. III. p. 200).
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de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. Os
efeitos de uma decisão que envolve direitos difusos são erga omnes, ou seja, atingem
todos, indiscriminadamente, salvo se o pedido for julgado improcedente por falta de
provas, pois será caso de bens e direitos que devem ser tutelados para o benefício de toda a
humanidade, inclusive para as futuras gerações (art. 103, I, CDC).
Em sequência temos os direitos coletivos stricto sensu, conceituados no art. 81,
inciso II do Código de Defesa do Consumidor como “transindividuais de natureza
indivisível de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou a
com a parte contrária por uma relação jurídica base”.
É importante destacar o trecho final da definição legal, pois a relação jurídica base
deve existir anteriormente à pretensão de se ingressar em juízo. Uma decisão sobre esta
pretensão gera efeitos inter partes, ou seja, atingem apenas aqueles indivíduos que
pertencem ao grupo diretamente atingido pela decisão (art. 103, II, CDC).
A terceira classe de direitos transindividuais, adotada por esta corrente doutrinária
que se fundamenta no Código de Defesa do Consumidor, coloca em evidencia os
denominados direitos individuais homogêneos, ou seja, direitos que poderiam ser
protegidos individualmente, mas que por vontade do legislador, estão sendo tutelados de
maneira coletiva. De acordo com o art. 81, inciso III do Código de Defesa do Consumidor
“decorrente de origem comum”.
São “formas preconcebidas, verdadeiros modelos apriorísticos, que justificam, na
visão abstrata do legislador, a necessidade da tutela jurisdicional coletiva” (BUENO, 2010,
v. 2, t. 3, p. 201).
Os efeitos de uma decisão a respeito de direitos individuais homogêneos são erga
omnes apenas em caso de procedência do pedido, ou seja, atingirão a coletividade de
maneira ampla; todo indivíduo que se enquadrar nos parâmetros do caso concreto poderá
liquidar e executar a sentença (art. 103, III, CDC).
Aspecto relevante a ser mencionado e que se refere à temática abordada é a
questão dos legitimados para propositura de ações que visam interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos. “O legislador brasileiro, inclusive o constituinte, fez escolhas
muito claras sobre quem pode apresentar-se, perante o Estado-juiz, como ‘representante
adequado’ de determinados direito” (BUENO, 2010, v. 2, t. 3, p. 199).
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Por fim, a terceira onda renovatória é denominada de acesso à representação em
juízo a uma concepção mais ampla de acesso à justiça. Pode ser vista como um novo
enfoque à temática do acesso à justiça, em que predomina a busca pela efetividade do
processo. Esta nova fase concentra sua atenção no conjunto geral de instituições,
mecanismos, princípios e procedimentos utilizados para prevenir e processar disputas nas
sociedades modernas. (AZEVEDO, 2003, v. 2, p. 247)
Relaciona-se com o modo de ser do processo, simplificando e racionalizando
procedimentos, promovendo desenvolvimento de uma justiça mais acessível e menos ligada
à litigiosidade, aperfeiçoamento de técnicas de resolução de conflito, como por exemplo, a
conciliação, a mediação e a arbitragem (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p.
49). É nesta onda que se fortalece a ideia de utilização do processo por meio de
mecanismos de solução alternativa de conflito, de flexibilização da atuação da função
jurisdicional e da criação de novos procedimentos para garantir o direito material.
O processo deve ser pensado de maneira que garanta as realizações e as fruições
asseguradas no plano do direito material. É esta onda que permitiu a enorme gama de
alterações no Código de Processo Civil nos últimos treze anos e que proporcionou a
criação do projeto de lei que disciplina um Novo Código de Processo Civil8. “Poder-se-ia
dizer que a enorme demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos
forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento – o sistema judiciário.”
(CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 66 – 67).
Como foi possível perceber, são três momentos distintos que não se anulam; eles
se complementam. Um não existiria sem o outro, de modo que estas ondas renovatórias
ainda possibilitam muitos pontos em comum para serem analisados e estudados,
principalmente quando se integram as ciências jurídicas com outros ramos do
conhecimento humano, por exemplo, ciências econômicas, sociais e históricas. Fica aberta
a possibilidade de criação e de evolução para que o processo atinja seu fim instrumental e
garanta a efetividade dos direitos fundamentais.
Se a Constituição Federal institui em capítulo próprio a proteção e manutenção,
pelo Estado, de direitos fundamentais sociais, além dos individuais, deve o processo, como
8 O Projeto de Novo Código de Processo Civil iniciou-se no Senado, sob o n. 166/2010. Hoje se encontra em
tramitação na Câmara dos Deputados, por intermédio das Comissões de Constituição e Justiça (CCJ). Projeto de Lei n. 8.046 de 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490267>. Acesso em: mar.
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instrumento que é servir aos anseios do cidadão para apresentar ao Judiciário diversos
casos de flagrante desrespeito aos preceitos basilares constitucionais.
Servir de mecanismo de proteção aos direitos fundamentais é papel singular e
nobre do processo. Após longas discussões, travadas nos mais diversos momentos da
história, chega-se a concluir por diversos impasses: os direitos fundamentais que deveriam
ser efetivos não o são; quando se leva ao judiciário um caso em particular, um direito
fundamental é discutido e outros inúmeros são mitigados; não há composição coletiva de
conflitos de maneira a impor ao Estado uma saturação pressionadora para uma
transformação radical.
Acompanhar o desenvolvimento do processo imputa ao pesquisador atentar-se
para outros aspectos. A efetivação dos direitos fundamentais e a formação de uma
processualística coletiva são objetivos a serem alcançados para que a manutenção da vida
digna dos cidadãos seja respeitada. A tutela coletiva possibilita ao cidadão ser colocado em
pé de igualdade com o Estado para poder valer-se do Poder Judiciário e questionar aquilo
que não está correto.
CONCLUSÃO
É possível depreender da leitura do texto que se tentou fundir os institutos
relacionados às gerações dos direitos e às fases metodológicas do processo com o processo
coletivo.
Pode-se dizer que o objetivo foi alcançado, pois ficou clara a relação entre as
gerações dos direitos fundamentais, nesta seara compreendida como sinônimos dos direitos
humanos, e sua evolução no sentido de sair do individualismo e buscar o bem comum.
Há necessidade de se atender os interesses da coletividade, pois o que se entende
atualmente é que os direitos individuais existem e devem ser respeitados, mas possuem
como limites o bem maior que é o bem da coletividade. A liberdade do indivíduo não pode
prejudicar o desenvolvimento social e econômico, de modo a danificar a busca pela
efetivação da igualdade e realização de uma justiça social, seja por parte do Estado ou dos
próprios seres humanos.
O estudo sobre as fases metodológicas do processo permitiu entender o atual
estágio em que se encontra o direito processual civil, pois a instrumentalidade tem por
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escopo garantir a efetividade das garantias inscritas no texto legal que guardam os direitos
fundamentais, respeitando assim preceitos constitucionais como o de busca do
desenvolvimento social e promoção da justiça social, além de respeito à dignidade da
pessoa humana. É possível inclusive perceber algumas características (necessidade de
composição célere e eficaz de litígios) que a doutrina aponta na atualidade, mas que não se
tratou no texto por não compor o objetivo do estudo.
As ondas renovatórias do processo permitiram disciplinar uma didática na análise
e ensino do papel do direito processual, bem como sua evolução e relação com os
diferentes períodos históricos. Em contrapartida, despertou a curiosidade de saber se o
termo “renovatórias” seria o melhor empregado nos dias atuais, pois anos se passaram sem
que se pudesse verificar uma real efetividade dos direitos fundamentais, que por diversas
vezes são mitigados pelo Estado.
Pensar no acesso à justiça nos faz questionar a própria sistemática jurídica para
saber se o que ocorre é um desacesso. O mais certo é que a sociedade caminha e sempre
haverá a esperança de dias melhores, de direitos humanos fundamentais efetivos, em que
prevaleça a vida digna dos seres humanos.
Fica claro que a tutela coletiva proporciona fortalecimento do acesso à justiça,
promovendo lógica inclusão das pessoas menos favorecidas no universo jurisdicional.
Evidente que ainda há muito a ser concretizado, mas é de se considerar que uma longa
evolução foi vivenciada ao longo dos anos, principalmente com a possibilidade de se
incluir à discussão os direitos supra individuais, meta individuais ou coletivos e difusos.
Esta evolução é percebida ao se verificar o quão importantes são os direitos
humanos nas decisões políticas, como o grau de compreensão se eleva quando se busca
demonstrar que os direitos humanos fundamentais devem ser protegidos pelo Estado.
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A COOPERAÇÃO E A PRINCIPIOLOGIA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO.
UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Professor Associado na UERJ. Promotor de Justiça no RJ.
Tatiana Machado Alves
Graduada em Direito pela UERJ. Advogada no RJ.
RESUMO: O texto tenta dissecar as origens e as aplicações da cooperação e colaboração
no ordenamento jurídico. São examinados os Códigos de Processo vigente e projetado,
bem como são investigadas as origens do instituto no direito português e alemão. Por fim
são apresentadas algumas questões principiológicas e traçados possíveis desdobramentos
no direito brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: cooperação; novo CPC; princípios.
SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 2. Desdobramentos da cooperação no processo
civil brasileiro. 3. Expectativas no Novo CPC. 4. Questões Principiológicas. 5.
Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.
1. Considerações iniciais
O Direito, enquanto um fenômeno cultural, reflete, em sua estruturação e
interpretação, os valores e a própria organização estatal, podendo ser entendido, em última
instância, como um “espelho do modelo de Estado”1. Nesse contexto, podem ser
1 A definição é de Dierle José Coelho Nunes: “Tuttavia, lo studio e l’interpretazione del diritto, incluso
quello processuale, sono in gran parte strutturati come specchio dei modelli di stato esistenti” in Processo civile liberale, sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009. Seção “Diritto processuale civile”.
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identificados três modelos2 de organização social que definem a atuação do juiz e das
partes no processo, de acordo com o formalismo.
O primeiro deles é o modelo paritário, em que o juiz se encontra no mesmo nível
das partes, sendo estas as únicas responsáveis pela condução do processo. Na Grécia,
inclusive, o juiz não era obrigado a conhecer a lei e nem utilizá-la como base para sua
decisão se essa não fosse trazida e debatida pelas partes. Esse modelo é fortemente
influenciado pelo contraditório, já que as partes podem auxiliar ao juiz na descoberta do
direito, devido às suas posições isonômicas.
Neste modelo diz-se que prepondera o “princípio dispositivo”, caracterizado
justamente por essa maior atribuição de poderes às partes, não apenas no que tange a dar
início e fim ao processo, mas também à sua condução e instrução, e pela limitação do
poder de atuação do magistrado, o qual somente pode decidir com base nos fatos alegados
e provados pelas partes.
Esta concepção liberal do processo justificava-se na suposta falta de interesse que
teria o Estado na solução da controvérsia, pois “acreditava-se no livre jogo das forças
sociais, conquistando corpo a ideia de que o próprio interesse da parte litigante no direito
alegado constituiria eficaz catalisador para a mais rápida investigação da situação
jurídica”3.
No modelo hierárquico, há uma distinção entre Estado, sociedade e indivíduo,
dando origem a uma relação vertical. O juiz, portanto, como representante estatal nessa
configuração, encontra-se em posição superior às partes. O juiz figura como o vértice de
uma relação angular com as partes preenchendo os outros pontos. Assim sendo, deve o
jurista conhecer o direito para buscar a verdade – a qual se torna o objetivo maior do
magistrado, reduzindo a influência do contraditório. A igualdade aqui é meramente
material, das partes perante a lei.
Tais modelos não mais se adequam à expectativa da sociedade para o processo
civil. Isso porque se por um lado a experiência mostra que um processo totalmente
conduzido pelas partes produziria melhores e mais eficientes resultados, por outro a total
2 MITIDIERO, Daniel. Bases para a construção de um processo civil cooperativo: o direito processual civil
no marco teórico do formalismo-valorativo. 2007. 147 f. Trabalho monográfico (Pós-graduação em Direito) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. p. 46/47. 3 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20-formatado.pdf>.
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imposição de um processo inquisitivo levaria à quase que absoluta publicização do
processo civil, com potenciais efeitos colaterais, que poderiam chegar a um autoritarismo
estatal.
Hoje se almeja um sistema processual no qual o magistrado não seja um mero
espectador do conflito entre as partes, mas que, ao mesmo tempo, seja dada ampla
oportunidade à manifestação destas, contribuindo, assim, para um resultado processual
justo e tempestivo4.
Assim, no modelo cooperativo, apesar de permanecer a distinção entre Estado,
sociedade e indivíduo, a organização é bastante diversa dos outros dois modelos. Neste
tem-se “um juiz isonômico na condução do processo e assimétrico quando da decisão das
questões processuais e materiais da causa”5.
A cooperação acaba por gerar uma comunidade de trabalho6, com uma efetiva
participação das partes na condução e instrução, e se torna prioridade no processo7.
Todo o processo se dará com a observância intensa de um contraditório
redimensionado, o qual passa a ser visto não só como mera regra formal para a validade da
decisão judicial, mas como elemento que permite o seu efetivo aprimoramento8.
As mudanças na concepção de processo afetam não apenas as posições e papéis dos
sujeitos processuais na condução do mesmo, mas também a própria concepção ética acerca
da relação das partes entre si, e delas com o magistrado.
Nos dois primeiros modelos a exigência quanto à conduta dos sujeitos restringe-se
à boa-fé subjetiva9, enquanto que no modelo cooperativo todos aqueles que atuam no
4 PINHO. Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo, vol. 1, Rio de Janeiro:
Saraiva, 2012, p. 74. ______. Comentários ao novo CPC postados no blog
http://humbertodalla.blogspot.com, acesso em abril de 2012. 5 GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, Padova, 1966, p. 587. 6 SOUZA. Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 93, n. 338, pp. 149-158, abr./ jun. 1997. 7 ANDREWS, Neil. Relações entre a corte e as partes na era do case management. Revista de Processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, v. 217, p. 181-195, mar. 2013. 8 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. In: ASSIS, Araken et.al.
(Org.). Processo coletivo e outros temas de direito processual: homenagem 50 anos de docência do
professor José Maria Tesheiner, 30 anos de docência do professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 264-265. 9 É cediço que a boa-fé subjetiva traz em seu núcleo a ideia de crença, de convencimento, por parte do
indivíduo, de agir em conformidade com o direito. Tradicionalmente a boa-fé subjetiva é contraposta à má-fé, caracterizada, justamente, pela presença de um elemento volitivo representando a plena consciência
individual da ilicitude dos atos praticados. Por este motivo Judith Martins-Costa ressalta que para a aplicação
da boa-fé subjetiva “deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado
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processo, incluindo o magistrado, devem fazê-lo com lealdade, somando-se à boa-fé
subjetiva a sua vertente objetiva10
.
Em sua concepção atual o modelo cooperativo, ao ser aplicado, gera uma série de
deveres às partes, decorrentes tanto da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, como da
aplicação de um, propriamente dito, princípio da cooperação.
2. Desdobramentos da cooperação no processo civil brasileiro
No Brasil o dever da veracidade foi consagrado no CPC em alguns momentos, e
expressamente no inciso I do artigo 14, o qual estabelece o dever dos sujeitos processuais
(não apenas as partes) de “expor[em] os fatos em juízo conforme a verdade”.
Afirma Elicio de Cresci Sobrinho, que o dever de veracidade adotado no CPC é um
dever à verdade subjetiva11
, ou seja, não alterar intencionalmente a verdade dos fatos; a
parte deve declarar aquilo que entende por verdadeiro, de acordo com a sua consciência12
.
Ainda, o dever de veracidade somente se aplica aos fatos principais, que sejam referentes
aos seus direitos disponíveis.
O próprio CPC/73 traz, em seu artigo 14, um rol de deveres processuais aplicados
às partes e a todos aqueles que participam do processo. Contudo, a doutrina diverge quanto
à possibilidade de cominação de sanção para a violação dos deveres inscritos nesse
dispositivo.
Se por um lado há quem entenda que somente aqueles deveres que foram
igualmente previstos no artigo 17, o qual enumera àquelas condutas configuradoras da
litigância de má-fé13
; por outro lado, há autores que defendem que, decorrendo tais deveres
da cláusula geral da boa-fé objetiva, entendida em conjunto com o contraditório efetivo e o
psicológico ou íntima convicção” (in A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411). 10 Na acepção objetiva, a boa-fé pode ser entendida como norma ou regra de conduta, a qual denota um
standard de comportamento correspondente àquilo que possa ser razoavelmente esperado do homem médio
em suas relações sociais, dadas, logicamente, as particularidades da situação concreta. 11 CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Dever de veracidade das partes no processo civil. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1988 op. cit., p. 99. 12 No mesmo sentido Helio Tornaghi aponta que, tendo em vista as deformações da representação intelectual
dos fatos inerentes à natureza humana, o que o dever de veracidade impõe “é que as partes digam só o que
lhes parece ser a verdade (não mentir) e tudo quanto se lhes afigura verdadeiro (não omitir). Nem falsidade,
nem reticência; nem inverdade, nem restrição mental” (in Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribnais, 1976, v. I, p. 144). 13 BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998,
v. I.
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devido processo legal, deve ser admitida a sua aplicação prática para adequar a conduta
dos sujeitos processuais aos postulados éticos do modelo cooperativo de processo civil14
.
O processo judicial, afinal, é o instrumento capaz de, “pelo conhecimento da
verdade dos fatos, oferecer aos jurisdicionados a “justa composição da lide” pela
heterocomposição e imposição de regra de conduta”15
.
Nesse contexto, o dever geral de colaboração entre partes e magistrado é
fundamental para a concretização de um processo justo já que a realidade da reconstrução
dos fatos será diretamente proporcional à participação dos sujeitos processuais.
Tanto as partes como o juiz devem se utilizar de seus esforços máximos para obter
a tutela jurisdicional.
Assim é que Jair Pereira Coitinho defende a não preclusão da produção de prova
para todos que fazem parte do processo, ou seja, não se trata de retroceder no
procedimento e sim de aplicar a garantia do due process of law, independentemente de já
se ter ultrapassado a oportunidade das partes pleitearem a produção das provas, somente
impondo como requisito a novidade do fato ou o desconhecimento anterior do mesmo16
.
No direito processual contemporâneo a cooperação e colaboração assumem papel
de destaque na determinação de como deve se dar a atuação dos sujeitos processuais,
estabelecendo assim as bases para um verdadeiro modelo de processo cooperativo,
marcado pela ampla e ativa participação das partes na condução e instrução do processo.
Nesse ponto, enquanto alguns autores veem a cooperação como um simples dever
derivado do próprio princípio da boa-fé objetiva, em sua função de fonte criadora de
deveres acessórios17
, outros enxergam na cooperação um verdadeiro princípio autônomo, o
qual não só fornece a fundação para a construção do processo cooperativo, como também
gera deveres para partes e magistrados18
.
14 VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas, p. 98. 15 PEREIRA COITINHO, Jair. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de conduta
dos sujeitos processuais),. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Disponível em:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042. Acesso
em jan 2013. 16 COITINHO, Jair Pereira. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de conduta
dos sujeitos processuais). Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, XIII, n. 80, set. 2010. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042>.
Acessado em: 17 jul. 2013. 17 VINCENZI, Brunela Vieira de. Op. cit., p. 170. 18 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da
SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:
<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013.
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Ao estabelecer como finalidade o alcance de uma “comunidade de trabalho” e a
obtenção de um processo leal e cooperativo, o princípio da cooperação torna devidos
determinados comportamentos, independente da existência ou não de regras expressa
prevendo-os, uma vez que, ao estabelecer o fim a ser alcançado, ele assegura os meios
necessários para tanto.
O direito português foi o primeiro a consagrar o princípio da cooperação de forma
expressa em seu código de processo. O art. 266º, 1º, do Código antigo estabelecia que
“[n]a condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais
e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia,
a justa composição do litígio”.
Com esse dispositivo o legislador português não previu apenas regras específicas
de cooperação, como até então faziam os ordenamentos vigentes, mas uma cláusula geral
de cooperação.
Por isso Fredie Didier Jr., ao analisar esse princípio no direito processual
português, afirma que ele é dotado de eficácia normativa direta, na medida em que permite,
a partir da sua aplicação, “cogitar de situações jurídicas processuais atípicas” 19.
O novo Código de Processo Civil Português, recém-aprovado pela Lei nº 41, de 26
de junho de 2013, manteve o dispositivo que consagra o princípio da cooperação, com a
mesma redação, mas em nova localização: no título referente aos princípios fundamentais
do processo civil, no art. 7º, I.
Com relação aos magistrados, a doutrina portuguesa identifica que o princípio da
colaboração é composto por diversos outros deveres, os quais direcionam a atuação ativa e
participativa do juiz. São eles: dever de esclarecimento, dever de prevenção, dever de
consulta e dever de auxílio.
O dever de esclarecimento comporta o dever do juiz de esclarecer as suas dúvidas
junto às partes antes de proferir qualquer decisão precipitada que tome como base uma
equivocada percepção do que foi alegado nos autos. Com isso busca-se evitar decisões que
revelem não o que foi apurado no processo, mas a falta de informação do magistrado.
Segundo Laura Fernandes Parchen esse dever teria ainda a finalidade de favorecer
“a igualdade de armas no processo civil, porquanto o magistrado, diante de fatos ainda
19 DIDIER JR., Fredie. . Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito Processual Civil Português.
Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 52.
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não esclarecidos, não pode adotar o cômodo entendimento de aplicação do ônus da
prova”20
.
Destarte, apenas após ter tentado efetivamente esclarecer os fatos obscuros ou não
explicados pelas partes, é que o juiz poderá decidir aplicando a regra de julgamento do
ônus da prova para esses fatos não provados.
De forma concreta podemos identificar esse dever na regra do artigo 284 do CPC
que estabelece que o magistrado não deve indeferir a petição inicial sem antes pedir
esclarecimentos ao demandante a respeito do problema verificado. Assim o juiz, antes de
decidir de forma assimétrica, submete a sua posição sobre o material do processo à
manifestação das partes, garantindo a participação destas na formação da decisão.
Tal dispositivo, ao estabelecer que o juiz determine a emenda dos vícios
identificados na petição inicial, igualmente representa a concretização do dever de
prevenção, o qual consiste no dever do juiz de indicar as deficiência e insuficiências das
alegações e postulações das partes, garantindo a possibilidade delas serem supridas.
Dentro de uma perspectiva colaborativa, não basta que o magistrado indique de
forma genérica que há um defeito que deve ser sanada sob pena de indeferimento da
petição inicial, mas é necessário que ele aponte de forma específica qual a deficiência que
deve ser sanada21
.
Observa-se que o dever de prevenção, tal como o dever de esclarecimento, se presta
à uma promoção da igualdade material no processo civil, uma vez que, a partir dele, o juiz
pode evitar que o uso inadequado do processo – i.e., o que ocorre especialmente em casos
de parte hipossuficiente – prejudique a possibilidade de êxito de uma das partes.
Por sua vez, o dever de consulta gera para o Juiz o dever de, antes de decidir com
base em qualquer questão de fato ou de direito, ainda que cognoscível ex officio, conceder
às partes a oportunidade de manifestação sobre as mesmas, salvo, evidentemente, quando
se tratar de questão urgente, caso em que o debate será postergado.
20 PARCHEN, Laura Fernandes. Impacto do princípio da cooperação no processo civil. Academia Brasileira
de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/LAURA%20PARCHEM%20-
%20VERS%C3%83O%20FINAL.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. 21 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Amplitude do dever de colaboração processual. In: MACEDO,
Elaine Harzheim; STAFFEN, Márcio Ricardo (Coord.). Jurisdição e processo: tributo ao constitucionalismo.
Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 281.
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Não há dúvidas de que por meio desse dever o princípio da cooperação garante
também a observância do contraditório participativo, tendo como contrapartida o direito de
participação das partes22
.
Na praxis judiciária a observância desse dever tem o potencial de evitar graves
danos para as partes e, até mesmo, aumentar a garantia da prolação de decisões mais justas.
Isso porque não apenas serão evitadas as “decisões-surpresa”, como também evitar-se-á a
situação na qual o magistrado profere decisão com base em regras jurídicas diversas
daquelas ventiladas pelas partes, mas sem explicitar o artigo de lei, provocando a
inadmissibilidade de recursos extraordinários, sob o pretexto de “falta de
prequestionamento”23
.
À luz do princípio da cooperação e deste correlato dever de consulta, é possível
falar em uma interpretação conformada do brocardo iura novit curia, o qual confere ao juiz
a liberdade de, a partir do contexto fático exposto nos autos pelas partes, eleger a norma
jurídica a ser aplicada ao caso concreto, independente de tal conclusão jurídica ter sido
abordada pelas partes.
A cooperação não retira do magistrado esse “poder-dever”, mas sim estabelece que
antes de ele ser exercido, deve dada às partes a oportunidade de se manifestarem sobre as
conclusões jurídicas extraídas pelo juiz dos autos24
.
Por último, o dever de auxílio impõe ao juiz o dever de contribuir para que as
partes superem as eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou
faculdades, ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais, removendo o obstáculo
impeditivo25
.
Assim o magistrado pode determinar determinadas diligências com vistas a superar
obstáculos que tenham sido criados à instrução probatória por vontade alheia à das partes.
É o caso do disposto nos artigos 355 e 399 do Código de Processo Civil.
22 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da
SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:
<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013. 23 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7850>. Acesso em: 30 set.
2013. 24 PARCHEN, Laura Fernandes. Impacto do princípio da cooperação no processo civil. Academia Brasileira
de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/LAURA%20PARCHEM%20-%20VERS%C3%83O%20FINAL.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. 25 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública Uma
nova sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 67.
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3. Expectativas no Novo CPC
Não obstante seja possível identificar a presença da concretização do princípio da
cooperação através de diversos dispositivos esparsos no atual Código de Processo Civil
Brasileiro, há uma evidente lacuna no ordenamento jurídico pátrio quanto a uma cláusula
geral da cooperação, da qual se permita extrair a regulamentação de situações jurídicas
atípicas.
Bem se sabe que o legislador não pode prever todas as situações que podem surgir
no desenrolar do processo, especialmente na seara da ética e do comportamento dos
sujeitos processuais, de modo que a mera previsão de deveres específicos não satisfaz a
demanda de um processo civil cooperativo.
Assim, o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil trouxe a seguinte redação
para o seu artigo 5º:
Artigo 5º. As partes têm direito de participar ativamente do processo,
cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira
decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de
urgência.
Quando de seu exame pelo Senado, ao remeter à Câmara o PLS 166/10, foi
suprimida a expressão “entre si”, revelando que a essa Casa Legislativa não acredita num
processo que se desenvolva em nível de cooperação entre as partes, mas apenas entre cada
uma das partes e o juiz.
Excessivamente pessimista esta avaliação. É bem verdade que precisamos mudar a
mentalidade dos litigantes, e isso significa mexer em conceitos arraigados há muito tempo,
não apenas nas partes, mas, principalmente, nos seus advogados, os quais veem o processo
como um verdadeiro “campo de batalha”. Contudo, é necessário mudar essa mentalidade e
nada como um novo CPC para desencadear o ponto inicial dessa mudança26
.
26 Elogiável, portanto, a observação feita pelo Deputado Sérgio Barradas, então Relator da Comissão
Especial do Novo CPC na Câmara dos Deputados, em seu Relatório de Atividades sobre a exclusão da
expressão “entre si”: “Há uma má compreensão do princípio da cooperação: não se trata de uma parte
ajudar a outra; trata-se, sobretudo, de uma parte colaborar com a outra e com o órgão jurisdicional para
que o processo seja conduzido da melhor forma possível. Os deveres de cooperação surgiram no direito
obrigacional, exatamente para regular as relações entre credor e devedor, que têm, obviamente, interesses contrapostos. A sua extensão ao direito processual era inevitável – como, aliás, acabou ocorrendo em
diversos países (Alemanha, França, Portugal e Itália). Além disso, acrescenta-se o enunciado do princípio
da boa-fé processual”.
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Na Câmara dos Deputados a mentalidade quanto a esse ponto parece ser outra. O
relatório do Deputado Paulo Teixeira ao Projeto de Lei nº 8.046 de 2010 dá nova redação
aos referidos dispositivos. O artigo 5º passa a ter a seguinte redação: “[a]quele que de
qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.
Com isso o princípio da boa-fé, que já vinha previsto no atual Código de Processo
Civil, no rol dos deveres dos sujeitos processuais, é deslocado para o capítulo referente aos
princípios e garantias fundamentais do processo civil, impondo a sua observância em todo
o procedimento.
O artigo 8º, por sua vez, em sua redação anterior do Projeto, estabelecia que “[a]s
partes têm o dever de contribuir para a rápida solução da lide, colaborando com o juiz
para a identificação das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes
desnecessários e procrastinatórios”. Ou seja, enquanto que o artigo 5º previa um dever de
cooperação, o artigo 8º trazia o dever de colaboração.
Com a alteração introduzida na Câmara dos Deputados este dispositivo passou a
representar a consagração, no novo CPC, não só de um dever, mas de uma cláusula geral
expressa da cooperação, ao estabelecer que “[t]odos os sujeitos do processo devem
cooperar entre si para que se obtenha a solução do processo com efetividade e em tempo
razoável”. Parece, portanto, que o legislador infraconstitucional quis adotar
definitivamente o modelo cooperativo para o processo civil brasileiro.
4. Questões principiológicas
As cláusulas gerais assumem um papel de grande importância em um sistema
aberto como o processo civil cooperativo. Graças a seu elevado grau de indeterminação,
elas permitem ao juiz garantir a adaptabilidade do Direito às situações jurídicas atípicas, na
medida em que é através deste tipo normativo que o magistrado poderá “produzir normas
que valem para além do caso onde será promanada concretamente a decisão”27
.
Ao aplicar uma cláusula geral o magistrado deverá não só identificar o
preenchimento do suporte fático, como também determinar qual a norma jurídica que pode
ser extraída dessa cláusula geral para regular o caso concreto.
27 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 341.
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Dessa forma, além de garantirem a abertura e a mobilidade externa do sistema
jurídico, o qual, conforme já visto no tópico anterior, encontra-se em constante intercâmbio
de influências com o mundo extrajurídico, as cláusulas gerais também permitem a própria
mobilidade interna do sistema jurídico, consistente na aplicação de uma norma em atenção
para todo o sistema no qual ela se encontra inserida.
Assim, a partir de uma cláusula geral da cooperação, prevista de forma expressa,
será possível extrair um Princípio da Cooperação28
, em sua vertente de direito de
participação da parte no processo, o que se coaduna com a noção de democracia e de
contraditório participativo. Essa participação representa, ainda, a outra face do dever de
consulta do magistrado, o qual deve inquirir as parte antes de ser proferida qualquer
decisão com fundamento em questão ainda não posta no processo29
.
Aponta-se que o Princípio da Cooperação é decorrente dos Princípios da Boa-Fé,
da Lealdade e do Contraditório. Esses dois princípios que tiveram sua incidência inicial no
direito privado já tem a sua inserção nos ramos do direito público como certa, pois o que se
espera de qualquer litigante, em qualquer esfera é que atue de maneira a não frustrar a
confiança da outra parte.
O princípio da boa-fé se manifesta através de ouros dois subprincípios: a proteção
da confiança, pelo qual se protege a ideia que o sujeito possuía sobre determinada coisa, e
a prevalência da materialidade subjacente, ou seja, a regra jurídica será aplicada de acordo
com as circunstâncias que envolvam o contexto fático.
No Código de Processo Civil o princípio da boa-fé é previsto no inciso II do artigo
14, que traz o dever processual dos sujeitos “proceder com lealdade e boa-fé”. Trata-se,
portanto, da consagração expressa não só do dever de boa-fé processual, como também do
dever de lealdade.
28 Segundo Reinhard Greger, há entendimento doutrinário bem consolidado no sentido de que a Cooperação
não deve ser apontada como um dos Princípios do Processo. Discordamos deste ponto de vista, na medida em
que é justamente a cooperação que vai marcar a transição para um novo modelo de processo, que procura se
distanciar de uma visão meramente adversarial, exigindo dos sujeitos do processo um comprometimento
maior com a busca de uma solução justa. Para maiores informações sobre essa discussão, remetemos o leitor
a GREGER, Reinhard; KOCHEM. Ronaldo (Trad.). Cooperação como princípio processual. Revista de
Processo, São Paulo, v. 37, n. 206, p. 123-134, abr. 2012. 29 RAATZ, Igor. Colaboração no processo civil e o projeto do novo código de processo civil. Revista da
SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. Disponível em:
<http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/274>. Acessado em: 17 jul. 2013.
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Para Buzaid, os deveres de lealdade e de boa-fé estariam intimamente ligados ao
dever de veracidade, de tal forma que a sua atuação deve se dar com fundamento na lei,
apresentando os seus fundamentos de fato com amplo suporte em provas documentais30
.
Além de ser legalmente previsto, o princípio da boa-fé também decorre de uma
série de outros princípios como, por exemplo, o princípio da solidariedade31
ou até mesmo
o princípio da dignidade da pessoa humana32
.
A jurisprudência brasileira, por sua vez, adota a ideia de Joan Pico i Junoy33
de que
o devido processo legal prescinde de um processo leal e baseado na boa-fé.
Existe, sem sombra de dúvida, uma ligação forte entre boa fé e contraditório. Da
mesma forma, a releitura desses dois princípios com as lentes do neoconstitucionalismo faz
nascer um vínculo entre a cooperação e o contraditório participativo34
.
Nesse sentido, o contraditório não pode ser usado ao bel-prazer das partes para
justificar condutas antiéticas e ilegais. Conforme ressalta Fabio Milman, não é possível
extrair, a partir do direito ao contraditório e à ampla defesa, uma autorização para o
exercício ilimitado do processo, tendo em vista a inegável existência de “regras de
conduta, dentro do exercício das mencionadas prerrogativas”35
que regulam a atuação das
partes no processo.
30 A concepção quanto ao dever de lealdade varia na doutrina. Alguns identificam a lealdade como espécie de
sinônimo de legalidade, para dizer que o dever de lealdade consiste na obrigação da parte de agir de acordo
com o que está na lei (in TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1976, v. 1, p. 145, e in BUZAID, Alfredo. Processo e Verdade no Direito Brasileiro.
Revista de Processo, São Paulo, nº 47, pp. 92-99, jul./set. 1987, p. 96). Por outro lado, autores como Arruda
Alvim associam a lealdade à honestidade, de tal forma que para poder dizer que a conduta do litigante é leal
não bastaria a mera observância aos comandos legais, mas seria efetivamente necessário que ele agisse de
forma honesta, sem “utilizar-se de expedientes desonestos, desleais, para obter o ganho de causa” (in
Tratado de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1996, v. 2, p. 401-402). 31 Segundo Fredie Didier Jr., ao estabelecer, em seu art. 3º, inciso I, como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, a Constituição da República de
1988 estaria instituindo um “dever fundamental de solidariedade, do qual decorreria o dever de não quebrar a confiança e de não agir com deslealdade” (in Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito
Processual Civil Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 86). 32 COSTA, Patricia Ayub da; GOMES, Sergio Alves. O princípio da boa-fé objetiva à luz da Constituição.
Conpedi, Salvador, 2008. Seção Anais. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/patricia_ayub_da_costa.pdf>. Acesso em: 15
jun. 2013. 33 JUNOY, Joan Pico i. El debido processo ‘leal’. Revista Peruana de Derecho Procesal. Lima: Palestra,
2006, vol. 9, p. 346 in DIDIER JUNIOR, Fredie. Fundamentos do Principio da Cooperação no Direito
Processual Civil Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. P. 88. 34 Sobre o tema: Alvaro de Oliveira. Garantia do contraditório. In Garantias constitucionais do processo civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 140, e CÂMARA, Marcela Regina Pereira. Os Limites da Defesa Incompatível à luz da Eventualidade, Tese de Doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da UERJ,
no dia 17 de setembro de 2013, p. 25. 35 MILMAN, Fabio. Improbidade processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 84.
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Assim o contraditório atua não somente para assegurar a conduta ética dos sujeitos
processuais, como também para promover uma atuação participativa, cooperativa e
colaborativa dos mesmos. Trata-se, nesse sentido, de uma nova concepção de contraditório
participativo. Ou seja, nesta fase da ciência processual o contraditório é revalorizado para
promover a participação das partes na investigação da verdade e, por consequência, na
formação do juízo36
.
No âmbito obrigacional, o dever de cooperação surge como um dos deveres anexos
ao princípio da boa-fé e pressupõe o adimplemento leal da prestação. Tal dever nasce
independente da vontade das partes e é imputado especialmente ao credor, abstendo-se de
conduta que dificulte a prestação pelo devedor. O dever de cooperação é, ainda,
subdividido em dever de esclarecimento, tratando do direito de informação a ambas as
partes; dever de lealdade, e dever de proteção, impedindo que sob a confiança demonstrada
pelas partes surjam danos.
A colaboração das partes no processo é demonstrada através da probidade e
lealdade, pois da liberdade concedida às partes decorre também a sua responsabilidade37
.
Ainda, deve se deixar de lado o individualismo para que todos os operadores do processo
cooperem com boa-fé38
.
Somente num ambiente protegido pelas garantias constitucionais, e havendo um
permanente monitoramento da incidência dessas garantias, é que se poderá ter o chamado
processo justo39
.
Ocorre que, como elementos imprescindíveis ao bom funcionamento desse sistema,
encontramos a postura do juiz e a atitude das partes.
Quanto a estas, não podem apenas provocar a jurisdição de forma despretensiosa,
sem compromisso ou irresponsavelmente. Devem buscar de forma clara, leal e honesta a
melhor solução para aquele conflito. Devem participar de fato da solução.
36 PICARDI, Nicola. Audiatur et Altera Pars: as matrizes histórico-culturais do contraditório. Jurisdição e
Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 141. 37 PEREIRA COITINHO, Jair. Verdade e colaboração no processo civil. (ou A prova e os deveres de
conduta dos sujeitos processuais),. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Disponível em:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8042. Acesso
em jan 2013. 38 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7850>. Acesso em: 8 jan. 2013. 39 COMOGLIO, Luigi Paolo. FERRI, Conrado. TARUFFO, Michele. Lezioni Sul Processo Civile, Bologna:
Il Mulino, 1998, p. 95.
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À luz, portanto, do princípio da cooperação, partes e juiz terão o essencial poder-
dever de colaborar entre si para a adequada condução do processo, como forma de
promoção da democracia, da segurança jurídica e do contraditório, e de adequação às
finalidades do Estado Democrático de Direito.
De fato, “[c]onciliare le caratteristiche di un processo sociale e di un processo
“privatista” può provocare risultati sociali e costituzionalmente accettabili, nel senso di una
giusta legittimazione delle decisioni giudiziarie, senza ridurre la partecipazione attiva del
giudice e contributiva delle parti, cioè, la funzione del processo di assicurare e garantire il
contraddittorio”40
.
As ideias de lealdade e boa-fé processual trazem ínsita a vedação à litigância de
má-fé. Como consequência, será imposta uma multa calculada sobre o valor da causa. A
cooperação, quer nos parecer, traz uma ideia maior; ou seja, não basta não praticar o ato de
má-fé ou de improbidade processual. É preciso ter um atuar construtivo, positivo, agir no
intuito de promover um processo justo.
Dentro da perspectiva do processo civil cooperativo o papel dos sujeitos
processuais é redimensionado, com o estabelecimento de um equilíbrio entre seus deveres
e poderes para assegurar a participação ativa de todos.
Quanto ao juiz, é preciso atentar para a evolução de seu papel, ao longo das
dimensões assumidas pelo Estado, desde a fase liberal, passando pela social, até chegar ao
atual Estado Democrático de Direito.
No Estado Liberal, as partes regiam o processo diante de um Judiciário passivo,
evitando o Estado qualquer intervenção nas relações privadas. Acreditava-se que as partes
por si só conseguiram chegar a uma solução e por fim ao litígio. Ainda, o juiz não detinha
liberdade para apreciar o processo, sofrendo pressão nos momentos de decisão para que se
amoldassem às orientações políticas do governo, atuando como mero espectador de um
jogo entre particulares41
.
No Estado Social, a realização da justiça social passou a ser um dos pilares,
fazendo com que se abandonasse o individualismo liberal. Dessa maneira, o foco saiu do
40 NUNES, Dierle José Coelho. Processo civile liberale, sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009.
Seção “Diritto processuale civile”. Disponível em: < http://www.diritto.it/docs/27753-processo-civile-
liberale-sociale-e-democratico#>. Acesso em: 17 jul. 2013. 41 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: Tres modelos de Juez. In: DOXA, nº 14, 1993. pp. 169-194.
< http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/ 01360629872570728587891/index.htm>. Acesso em
14 de novembro de 2006.
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Legislativo e se dirigiu para o Executivo. O processo passou a representar a autoridade do
Estado, ao exercer uma função pública e soberana. “O processo assumia a forma de
instrumento que o Estado colocava à disposição dos privados para a atuação da lei”42
.
Com isso, o juiz, de uma atuação passiva, passou a ter mais poderes com o objetivo de
reduzir as desigualdades perante a parte mais fraca43
.
Já no Estado Democrático de Direito, a “democracia deixa de ser representativa e
passa a ser participativa”44
com o cidadão sendo reconhecido como participante e não
apenas recipiente da intervenção social conduzida pelo Estado. Esse deixa de ser um
inimigo da sociedade para ser um concretizador dos direito fundamentais45
.
Com relação ao processo, tenta se conjugar os dois modelos anteriormente
mencionados, fazendo com que “o juiz desenvolva o diálogo no mesmo nível das partes”46
.
Nesse contexto assume significativa importância o Princípio da Cooperação para
possibilitar a ampla colaboração e participação das partes e do juiz, construindo um
verdadeiro modelo colaborativo.
O Princípio da Cooperação busca estabelecer um equilíbrio na atuação dos sujeitos
processuais, de tal forma que, se por um lado irá fortalecer os poderes das partes, de forma
a garantir a elas uma participação e influência efetivas na formação do convencimento do
magistrado47
, por outro lado também o juiz deverá adotar uma postura mais ativa, embora
que com cautela para não acabar sendo arbitrário ou imparcial.
Por isso Carlos Alberto de Oliveira ensina que o princípio da cooperação “vincula-
se ao próprio respeito à dignidade humana e aos valores intrínsecos da democracia,
adquirindo sua melhor expressão e referencial, no âmbito processual, no princípio do
contraditório, compreendido de maneira renovada, e cuja efetividade não significa apenas
42 TARRUFO, Michele. Cultura e processo. Rivista Trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, v. 63, n. 1mar. 2009. p. 63-92. In RAATZ, Igor. Colaboração no Processo Civil e o Projeto do Novo Código de
Processo Civil. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. 43 HESPANHA, Antonio Manuel. O Caleidoscópio do Direito, 2a edição, Coimbra: Almedina, 2009. 44 RAATZ, Igor. Colaboração no Processo Civil e o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Rev. SJRJ,
Rio de Janeiro, v. 18, n. 31, p. 23-36, ago 2011. p. 28. 45 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas
sociedades contemporâneas, artigo disponível em
endereço: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm. 46 GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 21, 1966. P.
595. 47 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Seção Artigos. Disponível em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20-formatado.pdf>.
Acesso em: 17 jul. 2013.
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debate das questões entre as partes, mas concreto exercício do direito de defesa para fins
de formação do convencimento do juiz, atuando, assim, como anteparo à lacunosidade ou
insuficiência da sua cognição”.
Nessa dimensão, interessante ressaltar que o direito processual alemão traz a
previsão de deveres dos magistrados, decorrentes do dever geral de colaboração. O §139
da ZPO, por exemplo, incorpora o denominado dever de indicação (Hinweispflicht),
consistente no dever o órgão judicial de provocar as partes à discussão sobre as questões de
fato e de direito, de modo de deixar claras as suas argumentações48
.
Posterior reforma da ZPO tratou de reforçar ainda mais este dever. De acordo com
a nova redação do §139, “em princípio é vedado ao tribunal colocar-se, para fundamentar
sua decisão, em ponto de vista estranho ao das partes, por elas considerado irrelevante ou
por ambos valorado de maneira diferente da que parece correta ao órgão judicial, a menos
que este lhes faça a respectiva indicação e lhes dê ensejo de manifestar-se”49
.
O princípio da cooperação exige, portanto, que o juiz assuma uma posição mais
ativa na resolução da lide, mas sem se transformar no “ator principal” do processo,
relegando os litigantes às posições de meros espectadores, tal como se dava no modelo de
processo do Estado Social. Para isso estende-se ao magistrado a obrigatoriedade de
observância do princípio do contraditório, o qual exige do juiz que efetivamente garanta a
faculdade de manifestação das partes no procedimento50
.
Deve-se ter grande cautela para que a participação ativa do juiz no
desenvolvimento do procedimento jurisdicional não reste sem controle, de modo que acabe
se tornando uma atuação autoritária ao invés de democrática51
. Por esse motivo, é de
extrema importância que não só os poderes do magistrado sejam previstos de forma
48 GREGER, Reinhard. Cooperação como princípio processual. Tradução de Ronaldo Kochem, Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 206, p. 123-129, abr. 2012. 49 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Breve notícia sobre a reforma do processo civil alemão. Temas de direito
processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 201-202. 50 Nesse sentido: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução:
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 283. LUCHI, José Pedro. A
racionalidade das decisões jurídicas segundo Habermas. In: Revista da Ajuris. Porto Alegre, ano XXXIV, nº
107, pp. 157-170, setembro de 2007. VAZ, Alexandre Mário Pessoa. Poderes e Deveres do Juiz na
Conciliação Judicial. Vol. I, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 1976, p. 514. 51 É com precisão que afirma Dierle José Coelho Neto que “diventa necessario, a questa stregua, analizzare
il ruolo del giudiziario a partire da una concezione processuale di Stato democratico di Diritto che assicuri
lo sviluppo dell’attività dialogica all’interno del processo, con l’influenza di tutti gli attori sociali (giudice, p arti e avvocati) nella formazione dei provedimenti”. NUNES, Dierle José Coelho. Processo civile liberale,
sociale e democrático. Diritto & Diritti, mai. 2009. Seção “Diritto processuale civile”. Disponível em: <
http://www.diritto.it/docs/27753-processo-civile-liberale-sociale-e-democratico#>. Acesso em: 17 jul. 2013.
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objetiva e clara, e não indeterminada, sob pena de excessos serem gerados, como também
que sejam previstos deveres específicos de cooperação para o juiz52
.
Nesse sentido traz-se a crítica de Igor Raatz, para quem apesar de o novo CPC
trazer o dever de colaboração, ele não apresenta especificamente os deveres como no
processo civil português (de esclarecimento, prevenção, consulta, auxílio, correção e
urbanidade), sobre os quais deve se pautar a atuação do juiz, havendo apenas uma
abordagem genérica53
. Estão, esses deveres, presentes de forma esparsa e indireta em
obrigações trazidas pelo novo CPC às partes.
Ao juiz cabe um duplo papel, isonômico quando da relação com as partes e
assimétrico ao impor suas decisões. Por isso que o modelo de colaboração é efetivado
através da criação de regras para a atuação do juiz, uma vez que as partes, estando em
polos opostos com relação ao objeto do litigio, não têm como agir em cooperação uma com
a outra.
Já a participação das partes no sistema colaborativo pode ser vislumbrada por duas
vertentes: a primeira em que as partes devem fazer o possível para auxiliar o juiz a chegar
à solução mais justa para o caso e a segunda que as partes devem colaborar com base na
boa-fé objetiva e lealdade.
Não se deve, contudo, imaginar que o princípio da cooperação implique em um
dever de uma parte ajudar a outra, fornecendo ao seu adversário elementos para a sua
derrota.
Pensar assim é entender de forma equivocada o sentido do princípio da cooperação.
Há sim um dever de as partes colaborarem uma com a outra e com o órgão jurisdicional,
mas tendo em vista a adequada gestão do processo, de acordo com os instrumentos
proporcionados pelo diploma processual, e para o alcance de uma decisão justa.
O que se busca, de fato, quando se defende que as partes devem cooperar entre si, é
uma atuação ética e correta dos indivíduos na exposição dos fatos e na defesa dos seus
direitos, colaborando com o magistrado para a solução da lide de forma justa e tempestiva,
sem o emprego de meios fraudulentos, maliciosos e ardis.
52 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de Pinho. DURCO, Karol. A Mediação e a Solução dos Conflitos no Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional, disponível
em http://www.humbertodalla.pro.br. 53 RAATZ, op. cit., p. 32.
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É possível identificar alguns deveres que concretizam esse comando de uma
atuação positiva e colaborativa das partes, quais sejam: dever de lealdade, dever de
veracidade e dever de operosidade54
.
Nota-se que os dois primeiros deveres – de lealdade e de veracidade – vêm
expressos no artigo 14 do Código de Processo Civil de 1973 como deveres das partes no
processo. Não há dúvida de que ambos possuem intrínseca relação o dever de cooperação,
na medida em que é impossível imaginar que a parte possa atuar de forma colaborativa
pautada em uma conduta antiética ou desleal.
Da mesma forma, o dever de veracidade, consubstanciado no dever de a parte, ao
expor os fatos, o fazer de forma franca, representa a concretização do princípio da
cooperação, na medida em que a exposição dos fatos tal como aconteceram auxilia o
magistrado na correta aplicação da norma jurídica ao caso concreto.
No Código de Processo Civil este dever vem concretizado no artigo 339 do CPC-
73, o qual estabelece uma espécie de dever geral de colaboração, à luz do dever de expor
os fatos de forma franca, com a finalidade de auxiliar o juízo no descobrimento da verdade.
As partes podem até omitir determinado fato, desde que essa omissão não macule a
veracidade da narrativa como um todo. Contudo, caso a parte decida trazer algum fato para
o processo, à luz do dever da veracidade, deverá fazê-lo de forma franca, sem distorcer os
acontecimentos a seu favor.
Já o dever de operosidade significa que as partes – e, em realidade, todos que
participam do processo de alguma forma – devem atuar da “forma mais produtiva e
laboriosa possível, para assegurar o efetivo acesso à justiça”55
, e assegurar que o direito
material seja realizado da melhor forma possível e com o mínimo de esforço sendo
empreendido pela máquina judiciária já saturada.
Dessa forma o princípio da cooperação, através deste dever específico, está
concretizando também o princípio da economia processual e o princípio da razoável
duração do processo, uma vez que está promovendo o não-retardamento do processo e a
consequente entrega tempestiva da prestação jurisdicional.
54 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Amplitude do dever de colaboração processual. In: MACEDO,
Elaine Harzheim; STAFFEN, Márcio Ricardo (Coord.). Jurisdição e processo: tributo ao constitucionalismo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 281. 55 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: Uma
Nova Sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 71.
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O Princípio da Cooperação também provoca reflexos necessários sobre os
procuradores das partes. De fato, não haveria sentido que essas estivessem dispostas a
colaborar de forma ampla com o juiz, e seus advogados não, uma vez que estes são os
responsáveis por se dirigir, por escrito e oralmente, ao Estado-juiz, exercem atividade
essencial para o desenvolvimento do processo.
A própria mudança na mentalidade quanto à atuação ética no processo civil será
mais bem empreendida quando iniciada pelos advogados, que constituem, nos termos da
Constituição Federal de 1988, figuras essenciais “à administração da justiça, sendo
inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
A colaboração assume portanto o papel de importante instrumento de concretização
do princípio do contraditório no processo civil. A efetiva participação das partes no
desenvolvimento do processo também contribui para a legitimação das decisões judiciais,
podendo, até mesmo, diminuir a propensão à irresignação das partes com as decisões
desfavoráveis, mas de cuja formação elas mesmas participaram. Com isso garante-se
também a segurança jurídica no processo, na medida em que as partes não serão
surpreendidas por decisões inesperadas.
Ao analisar o princípio da cooperação, Lenio Streck, em primeiro lugar, critica a
ideia do panprincipiologismo, segundo o qual os princípios – enquanto standards
interpretativos – seriam a fonte de liberdade do juiz na interpretação do direito56
. O autor
segue afirmando que princípios não são valores, pois nas sociedades complexas atuais não
há o compartilhamento de valores comuns.
Logo, fica a cargo do juiz definir o sentido das legislações a partir da “valoração
dos valores constitucionais”. Com relação à cooperação, Lenio Streck, nega seu status
principiológico, fazendo alusão ao formalismo-valorativo, ressaltando que a cooperação
visa organizar um processo justo, em tempo razoável e que leve à justiça material da
decisão, os quais seriam os principais valores para o processo57
.
Isso porque, o formalismo-valorativo, tal como proposto por Carlos Alberto Alvaro
de Oliveira, estabelece a importância das formas, as quais representam a garantia dos
indivíduos contra o arbítrio estatal na medida em que delineiam uma margem de atuação
56 STRECK, Lenio. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “colaboração
no processo civil” é um princípio? Revista de Processo. Vol. 213/2012, nov. 2012. p. 14. 57 STRECK, Lenio. Op. cit., p. 19.
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do juiz, lidas à luz de valores essenciais à sociedade em um determinado momento
histórico-cultural.
Após essa análise, o autor enfatiza que a cooperação, da forma como alegada por
Daniel Mitidero em artigo publicado na Revista de processo58
, não é um princípio per se,
uma vez que lhe falta suficiente normatividade para poder ser assim considerada. Nesse
sentido, o autor aponta as seguintes questões para a aplicação prática do princípio da
cooperação processual: “e se as partes não cooperarem? Em que condições um standard
desse quilate pode efetivamente ser aplicado? Há sanções no caso de não cooperação?
Qual será a ilegalidade ou inconstitucionalidade decorrente da sua não aplicação?”59
.
Continua Lenio Streck para dizer que, em sua concepção de princípio, “a
legitimidade de uma decisão será auferida no momento em que se demonstra que a regra
por ela concretizada é instituída por um princípio.” Assim, se a regra não possui um
princípio que a legitime não poderá ser aplicada.
Toda regra deve encontrar sua justificativa nos princípios que compõem o
ordenamento jurídico onde ela foi criada, atuando assim no direcionamento da
interpretação jurídica. O autor afirma, ainda, discordar da concepção segundo a qual o
“princípio” poderia ser utilizado para dar margem à discricionariedade do julgador.
Reinhard Greger60
, entretanto, afirma a necessidade da existência de um principio
da colaboração por alguns motivos. O primeiro deles é em virtude de os princípios
processuais traçarem orientações posteriores à elaboração das regras que delas não fazem
parte, permitindo que sejam reguladas as situações concretas que não foram previstas.
Ainda, os princípios possuem um caráter prático o que é muito válido quando se
tem apenas regras esparsas sobre a matéria, como no caso da colaboração. O autor defende
que o núcleo positivo do princípio da cooperação consiste no estabelecimento de uma
ligação entre os sujeitos processuais, de forma que todos tenham uma finalidade comum de
alcançar a resolução da lide e a tão desejada paz social. Isso só se alcança quando há
colaboração entre os envolvidos no processo.
58 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil como prêt-a-porter? Um convite ao dialogo para
Lenio Streck. Revista de Processo. Vol. 194/2011, abr. 2011. 59 STRECK, op. cit., p. 17. 60 GREGER, Reinhard. Cooperação como princípio processual. Revista dos Tribunais on line. Vol. 206/2012,
abr. 2012. P. 123.
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5. Considerações finais
Num modelo de Justiça adequado à contemporaneidade, na visão de François Ost,61
o juiz deve adotar uma postura de intermediação, facilitando a comunicação, o diálogo
entre as partes, as quais, por sua vez, devem se utilizar do processo para interagir e buscar,
todos em conjunto, uma solução justa para o conflito.
A proposta de solução do Estado Democrático de Direito é pela busca de uma
efetiva participação dos envolvidos na realização dos fins estatais. Essa proposta representa
para o sistema de pacificação dos conflitos a necessidade de interação entre as partes que
compõem a relação processual no âmbito da jurisdição, além da adoção de métodos não
jurisdicionais de solução das lides.62
Nesse sentido falamos no dever de cooperação entre as partes. Nesse modelo prega-
se a adoção de um “procedimento argumentativo da busca cooperativa da verdade”
63.Desse modo, o peso da reconstrução jurídica, que no modelo do Estado Social deve ser
suportado por um juiz Hércules, é deslocado para uma comunidade deliberante.64
Com isso supera-se ainda a medieval visão do processo como um campo de batalha
no qual as partes podem utilizar todo e qualquer artifício para serem vencedoras. Dentro da
nova perspectiva do Processo Civil Cooperativo entende-se que o objetivo primeiro do
processo é a solução do conflito posto perante o Poder Judiciário, de tal forma que se as
partes resolveram submeter a lide ao mecanismo jurisdicional, devem elas atentar para as
regras postas pelo sistema, não só regras procedimentais, como também regras
comportamentais.
De outro lado, passando de uma perspectiva de simples validade jurídica para uma
perspectiva da união entre validade e legitimidade do direito como condição de sua
eficácia e cumprimento de sua função sócio-integradora, o dever do juiz de justificar sua
decisão também se altera.
61 Ost, François. Op. cit., p. 23. No texto são apresentados os três modelos de juiz: Jupiter, Hércules e
Hermes. Ademais o autor faz a correlação entre o tipo de juiz e a mentalidade predominante em cada uma das
fases do Estado, a saber, liberal, social e democrático. 62 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de Pinho. DURCO, Karol. A Mediação e a Solução dos Conflitos no
Estado Democrático de Direito. O “Juiz Hermes” e a Nova Dimensão da Função Jurisdicional, disponível
em http://www.humbertodalla.pro.br. 63 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 283. 64 LUCHI, José Pedro. A racionalidade das decisões jurídicas segundo Habermas. In: Revista da Ajuris. Porto
Alegre, ano XXXIV, nº 107, pp. 157-170, setembro de 2007.
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Passa-se de um dever de justificação interno representado pela coerência da decisão
com o sistema de direitos para um dever que ao mesmo tempo é interno e externo, este
último considerado como a necessidade de legitimação procedimental-deliberativa das
premissas da decisão, o que no caso de um equivalente jurisdicional como a mediação já é
condição prévia para seu estabelecimento.
O direito pós-moderno de Hermes “é uma estrutura em rede que se traduz em
infinitas informações disponíveis instantaneamente e, ao mesmo tempo, dificilmente
matizáveis, tal como pode ser um banco de dados”. Esse modelo é uma dialética entre
transcendência e imanência. A proposta é de uma “teoria do direito como circulação de
sentido”, “um processo coletivo, ininterrupto e multidirecional de circulação do logos
jurídico” 65
.
Vale recordar que Hermes é o deus da comunicação, da circulação, da
intermediação; é um intérprete, um mediador, um porta-voz. A ideia é a de que o direito,
como signo linguístico que ontologicamente é, sempre necessita de interpretação e,
portanto, é inacabado; permanece continuamente se realizando (caráter hermenêutico ou
reflexivo do juízo jurídico).
Portanto, o direito em um Estado Democrático é líquido e denso ao mesmo tempo.
Convém mencionar que o correspondente latino de Hermes (grego) é Mercúrio,
representado hoje por um metal de alta densidade que, não obstante, encontra-se no estado
líquido. Essa “liquidez jurídica” se dá por meio da equidade e permite ao direito preencher
os buracos nas relações sociais.
Essa capacidade de integração social, contudo, só pode ser obtida por uma
legitimidade de duplo aspecto. Em um primeiro momento, pela obediência a um
procedimento que eleva o dissenso para promover o consenso.
A mediação procedimental, no entanto, não constitui toda a legitimidade do direito.
É preciso se estabelecer um laço necessário entre o respeito ao procedimento e os direitos
fundamentais. O que constitui, precisamente, a ideia de um formalismo valorativo que
deve abranger ao menos quatro valores fundamentais: segurança jurídica, participação,
liberdade e efetividade.
O juiz possui, também, o dever de equilibrar a relação processual. Sua atuação
constitui-se num meio termo entre a inércia de Júpiter e o egocentrismo de Hércules. O juiz
65 Ost, François. Op. cit., p. 29.
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do presente modelo é mais humano, reconhece suas limitações e busca apoio nos
interessados pelos desfechos da relação processual. A participação do juiz possui estreita
relação com a razoável duração do processo e sua função social.66
Verifica-se, pois, que a superação do princípio monológico que rege a atuação do
juiz Hércules é exatamente pelo fato de que ele afasta a ideia de cooperação como
condição para o desenvolvimento de um procedimento de bases racional, discursiva e
valorativa de determinação da Justiça no caso concreto.67
O estabelecimento do processo colaborativo e a instituição dos deveres
mencionados nesse ponto têm como consequência de sua não observância:
“inconstitucionalidade por afronta ao direito fundamental do processo justo, possibilidade
de responsabilização judicial e, especificamente no caso do dever de auxílio, possibilidade
de multa punitiva à parte que, indiretamente, frustra a possibilidade de colaboração do juiz
para com a parte contrária.” 68
E mais: se, por um lado, se poderia argumentar a impossibilidade na aplicação do
princípio da cooperação em razão da dificuldade em aplicar uma sanção à parte que “não
colaborou”, tendo em vista se tratar de conceito bastante amplo e abstrato, principalmente
para as partes, por outro lado uma solução que soa bastante adequada seria a concessão de
“prêmios” para aquele que cooperou, o que teria um efeito adicional de promover o
comportamento de cooperação.
Concluindo esse pequeno ensaio, podemos dizer que a ideia de colaboração está,
também, relacionada ao resgate da fraternidade69
no direito constitucional. Não custa
lembrar que a fraternidade é, ao lado da liberdade e igualdade, um dos três vetores
principais da Revolução Francesa. Ocorre que, com o passar do tempo, ficou em segundo
plano, já que os chamados direitos de primeira e segunda geração acabaram tendo mais
destaque70
.
66 FREITAS, Gustavo Martins de. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Jus Navigandi,
Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7850>. Acesso em: 8
jan. 2013. 67 MARINONI, Luiz Guilherme. Do processo civil clássico à noção de direito a tutela adequada ao direito
material e à realidade social. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 08 de
novembro de 2006. 68 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil como prêt-a-porter? Um convite ao dialogo para
Lenio Streck. Revista de Processo. Vol. 194/2011, abr. 2011. p. 64. 69 RESTA, Eligio (trad. Sandra Vial). O Direito Fraterno. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. 70 SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. Mediação enquanto política pública: a
teoria, a prática e o projeto de lei. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2010. http://www.unisc.br/portal/pt/editora/e-
books/95/mediacao-enquanto-politica-publica-a-teoria-a-pratica-e-o-projeto-de-lei-.html.
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Contudo, estamos em que, a fraternidade é um dos pilares que sustentam essa
noção de processo cooperativo como novo paradigma da jurisdição contemporânea71
.
A missão do processualista, nessa quadra de nossa história, é saber como resgatar a
fraternidade e encontrar seu espaço dentro de um processo que se desenvolveu baseado na
ideia de posturas adversariais.
Nesse passo, se o neoconstitucionalismo, num primeiro momento, promoveu a
releitura de normas infraconstitucionais, parece que, com parte desse estágio evolutório
levou a uma concepção mais aprofundada das próprias normas constitucionais.
Assim, antes falávamos em contraditório formal, hoje temos o contraditório
participativo. No passado pensávamos na isonomia apenas na dimensão formal, hoje
enxergamos diversos usos para a isonomia material. Também a publicidade, antes tida
como sintética, hoje passa a ser concebida como analítica.
Nessa esteira, a boa-fé tende a ser compreendida como cooperação, exigindo que as
partes e o magistrado reavaliem muitas de suas posturas no processo.
Só assim estaremos dando um passo realmente significativo para uma nova
concepção de jurisdição.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A GARANTIA FUNDAMENTAL DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
Humberto Santarosa de Oliveira
Pós-Graduado em Direito Processual pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestrando em Direito
Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ). Advogado e Consultor Jurídico.
RESUMO: O presente trabalho visa apresentar algumas considerações a respeito da
garantia constitucional de obrigação da motivação das decisões judiciais, abordando seus
aspectos históricos e atuais, bem como suas funções para o direito processual.
PALAVRAS CHAVE: garantia – motivação –obrigação – decisão judicial – função
ABSTRACT: The paper aims to present some considerations about the constitutional
guaranty of the obligation to reasoning the judicial decisions, analysing its historical and
current aspects, as well its functions to the procedural law.
KEY WORDS: guaranty – reasoning – obligation – judicial decision – function
SUMÁRIO: 1. AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO – 2. A GARANTIA
DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS ORIGENS – 3. A GARANTIA
DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS FUNÇÕES – 4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
1. AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO
O princípio da obrigação de motivação das decisões judiciais como garantia
fundamental do cidadão tem história recente no Direito pátrio, datando especificamente de
1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art.
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93, IX. A realidade não significa, todavia, que os juízes, antes da promulgação do texto
constitucional, detinham a escusa de apontar as razões que consubstanciavam suas
decisões; é de longo tempo que se impõe ao magistrado justificar seu posicionamento a
respeito do caso sub judice, podendo se anotar que desde o Código Filipino, vigente na
primeira quadra do séc. XIX, até o Regulamento de nº 737 de 1850, passando ainda pelos
códigos de processo estaduais e o código de processo civil de 1939, já se observava a
obrigação de fundamentar as decisões judiciais1.
O código de processo vigente não se mostrou indiferente às previsões atinentes à
motivação das decisões, logrando em seus artigos 131 e 458, respectivamente, a
necessidade do magistrado indicar as razões de seu convencimento (livre persuasão
racional) e a fundamentação das decisões como requisito de validade da sentença; a
extensão da necessidade de fundamentação às demais decisões proferidas no âmbito
jurisdicional é encontrada no art. 165, do CPC2.
Ratifica-se, todavia, que o dever de motivação das decisões jurisdicionais somente
alcança o status de garantia fundamental do cidadão com a Constituição datada do final da
década de oitenta, quando do movimento de resgate do governo do povo no Brasil. O
documento promulgado – ou melhor, a norma jurídica – simboliza o nascedouro do Estado
Democrático de Direito, em verdadeira resposta aos mazelados Estados Liberal e Social
pelos quais o país atravessou, trazendo em seu bojo a previsão das mais diversas garantias
inalienáveis dos cidadãos. Neste momento, a Constituição pátria assume força normativa e
1 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado
de Direito. Temas de Direito Processual – 2ª Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 1988, p. 85-86, que assim
destaca: “A obrigatoridade da motivação tem fundas raízes na tradição luso-brasileira. No Código Filipino,
assim estatuía a Ordenação do Livro III. Título LCVI, § 7, principio: (...). O mesmo princípio inspirou o art.
232 do Regulamento de nº 737, de 1850, verbis: ‘A sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a
contestação com os fatos e fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando
sob sua responsabilidade a lei, uso ou estilo em que se funda’. Sob redação idêntica passaria a regra ao antigo Código de Processo Civil e Comercial do Rio Grande do Sul (art. 499), e com ligeiras alterações ao
do Distrito Federal (art. 273, caput), onde já anteriormente a acolhera o Decreto de nº 9.263, de 28 de
setembro de 1911, que regulamentou a Justiça local (art. 259). Em igual sentido dispuseram, entre tantos
outros, o Código baiano (art. 308), o mineiro (art. 382), o paulista (art. 333), o pernambucano (art. 388).
Não se afastou da linha o Código nacional de 1939, conforme ressaltava dos arts. 118, parágrafo único, e
280, nº II, aquele a determinar que o juiz indicasse ‘os fatos e circunstâncias que motivaram o seu
convencimento’, este a exigir que a sentença contivesse ‘os fundamentos de fato e de direito’”. 2 Atualmente, encontra-se em tramitação o projeto de lei que visa a alteração integral do Código de Processo
Civil. Entre as várias versões apresentadas para o projeto do novo CPC (de 2010, com a apresentação do PLS
nº 166, capitaneada pelo atual Ministro do STF, Luiz Fux, até o dia 19 de setembro de 2012, com o retorno
do projeto ao Senado Federal, soma-se a apresentação de cinco textos diferentes, com alterações substanciais ao projeto originário, algumas delas necessárias e promissoras, outras nem tanto), o art. 11, no capítulo
atualmente intitulado “Das Normas Fundamentais do Processo Civil”, manteve-se incólume, e prevê a
obrigação de motivação de todos os julgamentos do órgão judiciário, sob pena de nulidade.
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é através das garantias processuais fundamentais previstas que os cidadãos reclamam
proteção aos diversos direitos tutelados pelo ordenamento (o texto constitucional é pródigo
no rol de direitos e garantias conferidos aos cidadãos, recebendo, pois, as alcunhas de
dirigente, programático e compromissário3).
O desenho constitucional contemporâneo brasileira nasce, todavia, de uma
influência quase que global de constitucionalização dos ordenamentos em geral –
precipuamente nos países de civil law –, situação verificada a partir da segunda metade do
século XX.
Em breve digressão, é mister salientar que a atribuição de força normativa às
Constituições, não se mostra como uma novidade no mundo jurídico, uma vez que nos
países de origem anglo-americana, notadamente nos Estados Unidos da América, a prática
já era desde há muito verificada – mais precisamente, desde a Constituição de 1787.
Porém, é a decisão da Suprem Court, no case Marbury vs. Madison, datado de 1803, que se
encontra a decisão paradigmática (não que seja a primeira, mas é aquela que ganhou maior
relevo) no que tange à adoção, por aquele país, da Constituição como documento jurídico,
bem como do entendimento de que incumbe ao Judiciário dar-lhe cumprimento através da
jurisdição constitucional4.
Já nos países de origem romano-germânica, é com a derrocada dos regimes
totalitários, alcançada com o fim da segunda grande guerra, que se situa o marco
institucional das previsões garantistas processuais, com especial relevância para os países
da Europa, que trouxeram para suas Constituições uma carta de direitos inalienáveis dos
cidadãos, tudo em resposta às restrições ocorridas à época da concentração excessiva de
poderes nas mãos do Estado5.
3 Por todos, STRECK, Lenio Luiz. Os dezoito anos da Constituição do Brasil e as Possibilidades de realização dos direitos fundamentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico. In: CAMARGO, M. N
(Org.). Leituras Complementares de Constitucional – Direitos Fundamentais. Salvador: JusPodivm,
2006, p. 1-24. 4 Para maior aprofundamento sobre o tema, com citações de diversas decisões da Suprema Corte norte
americada, ver BARROSO, Luís Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos:
teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. Interesse público, Belo Horizonte, v.
12, n. 59, jan. 2010. Disponível em http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/32985, último acesso em
16.06.12. 5 Da mesma forma que se apontou sobre o fato de se atribuir força normativa à Constituição, é certo afirmar
que o processo de constitucionalização verificado na Europa não se mostra como o momento pioneiro da
positivação das previsões garantistas conferidas aos cidadãos, podendo-se citar, a título elucidativo, o Bill of Rights editado por Estados Unidos e sua consagrada cláusula do due processo of law. Ocorre que, para fins
didáticos, o apontamento do movimento europeu de positivação das garantias fundamentais é o mais
contundente marco histórico sobre o assunto, principalmente pela amplitude alcançada. Neste sentido
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Pode-se dizer que as Constituições italiana e alemã foram os dois textos basilares
que influenciaram os demais Estados europeus no seu processo de constitucionalização,
sendo certo ainda afirmar que os ideais do movimento foram expandidos além-mar,
chegando à América com ampla adoção por grande parte dos países sul-americanos6.
As noções de garantias fundamentais processuais dos cidadãos tiveram sua raiz
histórica na teoria dos direitos públicos subjetivos desenvolvida pela doutrina alemã, que
vislumbrava no acesso ao tribunal um efetivo direito do cidadão frente ao Estado. Esta
nova visão se contrapôs à doutrina clássica do civil law, embasada no código civil francês
que, vinculada aos direitos subjetivos individuais e privados, eriçou o direito de
propriedade ao epicentro dos direitos previstos pelo diploma normativo; assim, todas as
demais previsões do código funcionavam como uma decorrência necessária do direito de
propriedade e sua proteção pela via judicial se mostrava como uma faculdade conferida ao
cidadão, que dentre outras possibilidades previstas, poderia ou não fazer uso da máquina
judiciária para resguardar infrações contra sua propriedade7.
A mudança de paradigma de um único direito subjetivo, do qual os demais direitos
decorreriam (seriam, pois, sub-direitos), trouxe à baila a existência de um universo de
direitos subjetivos conferidos aos cidadãos, dentre os quais se destaca aquele de acessar
TARUFFO, Michele. Las garantías fundamentaltes de la justicia civil en el mundo globalizado. Trad. de
Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 63., que
assim destaca: “Este fenómeno se remonta históricamente más a los ordenamientos de common law, dado
que algunos ven su origen incluso en la Carta Magna de 1215; y en todo caso, uno de sus seguros
precedentes es la cláusula del due process of law de la que habla la Quinta Emmienda de la Constitución
estadounidense, insertada en el Bill of Righst de 1791. (...) Sin embargo, es en particular en los
ordenamientos de civil Law donde tal fenómeno, conoce una gran e muy articulada expansión, sobre todo a
partir del fin de la Segunda Guerra Mundial.” 6 O modelo de constitucionalização que tomou parte do mundo, não fora seguido em alguns países da
Europa, destacando-se: França e Reino Unido. No Reino Unido, apesar de berço do modelo liberal, faltava-
lhe uma Constituição escrita e rígida, sendo certo que, apesar de possuir uma Constituição histórica e ainda
ter referendado a Constituição Europeia de Direitos Humanos, falta-lhe um sistema de controle de constitucionalidade e uma jurisdição constitucional; salienta-se que, no referido Estado, vigora a supremacia
do Parlamento e não da Constituição. No caso da França, apesar de sua Constituição ser datada de 1958, não
restou previsto no documento o modelo de controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário; preferiu-
se adotar um controle prévio de constitucionalidade feito pelo Conselho Constitucional, antes da entrada em
vigor da norma; esta situação evidencia a ausência de uma jurisdição constitucional. Apesar de tudo, a França
vem evoluindo no evento da constitucionalização do direito, com incorporação no debate de temas como
força normativa, interpretação de leis conforme a Constituição e irradiação de valores na ordem jurídica pela
Constituição; ainda que em processo de discussão, os assuntos têm encontrado certa resistência pela doutrina
mais tradicional. Neste sentido, BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização
do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito Administrativo, nº 240,
2005. No caso latino-americano, o exemplo mais preponderante é o brasileiro, podendo-se ainda mencionar as Constituições do Chile e da Colômbia. 7 Neste sentido, TARUFFO, Michele. La proteción judicial de los derechos en un estado constitucional. Trad.
de Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009., p. 31-38.
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aos tribunais. O direito de ação passou a ser concebido como um direito público contra o
Estado, sobre o qual se criava uma vinculação e obrigação de proteção judicial. A garantia
fundamental do acesso à justiça nascida pelas mãos da doutrina alemã é conjugada com
outras normas igualmente fundamentais dos cidadãos, sendo que a forma de proteger os
direitos materiais é através do ingresso no Judiciário. Em suma, o acesso à justiça, a partir
da doutrina dos direitos públicos subjetivos é, não somente um direito fundamental, como
também uma condição necessária à efetivação plena das demais previsões inatas do
Ordenamento.
Eis o cerne do processo de constitucionalização iniciado na Europa na metade do
século XX, que garantiu a força normativa necessária para que a Constituição possa ser o
respaldo do cidadão na defesa de seus direitos e garantias, com o Estado-Juiz intervindo
para efetivar sua concretização. As demais garantias fundamentais processuais também
previstas nas Constituições pós-bélicas, fecham o círculo de direitos básicos conferidos aos
cidadãos, que tem no Estado, o locus de salva-guarda da implementação e impedimento de
restrição dos direitos materiais, sempre através de um processo justo8.
Michele Taruffo9 bem sintetiza a ideia ao discorrer a respeito, senão veja-se:
Desde el punto de la protección efectiva de los derechos, se reconoce
que la garantía constitucional no abarca sólo el acceso inicial a un tribunal
(es decir, el derecho a formular una demanda): tiene que abarcar también
todos los derechos procesales que las partes deben estar autorizadas a
ejercer, para uma efectiva satisfacción del derecho que están reclamando.
Así, por ejemplo, la disponibilidad de mecanismos preliminares efectivos
tiende a considerarse como condición de una real implementación judicial
de los derechos. Es más: la garantía de um juicio justo efectivo, que incluye
todos los derechos que las partes deben tener la posibilidad de ejercer en el
curso del proceso (...) se concibe como elemento fundamental del acceso a
la justicia. De nuevo, la posibilidad de usar mecanismos de aplicación
efectiva para todo tipo de juzgamientos, se concibe también como una parte
esencial de la protección concreto de un derecho. Este desarollo significa, en
8 Por todos, GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Estudos de
Direito Processual, Rio de Janeiro: Faculdade de Direito de Campos, 2005. Versão eletrônica deste artigo disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429. Acesso em 16 de junho
de 2012. 9 Vide Taruffo, ob. cit., p. 33.
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pocas palavras, que toda la maquinaria procesal que está dirigida a la
obtención de una completa y real reivindicación de un derecho, tiende a
considerarse como parte de una garantía procesal más amplia y abarcadora.
Sumarizando, esse processo de constitucionalização que tomou conta de boa parte
do globo, é um marco importantíssimo para o Direito, haja vista que simboliza o resgate do
discurso moral para os debates jurídicos, através da inserção de princípios no
Ordenamento, ultrapassando o modelo positivista metodológico de Hans Kelsen e outros
mais, segundo os quais, o único objeto da ciência do direito era o direito positivo.
Basicamente, o pós-positivismo, movimento que destrona o positivismo jurídico (e
que também pode ser denominado de neoconstitucionalismo), é a superação das duas teses
precípuas das teorias positivistas, quais sejam, os limites do direito e a inexistência de
conexão entre direito e moral. Neste novo modelo, a determinação do direito é suplantada
com a normatividade conferida aos princípios, que apesar de não serem definidos prima
face passam a ser jurídicos, ainda que genéricos (é a dicotomia dos easy cases com os hard
cases10
). No que tange à moral, ela passa a ingressar no discurso jurídico justamente
através da textura aberta (vagueza) dos princípios normativos recém insertos no
Ordenamento.
Como alertado, as Constituições promulgadas no limiar da primeira metade do séc.
XX vieram recheadas destes princípios normativos, sintetizados nas garantias
10 Não se adentrará na discussão a respeito da existência ou não de dualidade entre casos fáceis e casos
difíceis, o que acabaria por desembocar na árdua tarefa de apontar os fundamentos teóricos de apenas uma
resposta correta para cada caso, bem como diferenciar entre o caráter deontológico ou axiológico dos
princípios, além de outras variantes, o que definitivamente não é o propósito deste ensaio. Todavia, merece
destaque o fato de haver autores pós-positivistas, dentre os quais se destaca Ronald Dworkin, que defendem a
teoria de que o direito não seria de todo indeterminado – ou mesmo incompleto; sumamente, em sua crítica
aos positivistas (moderados, diga-se, afinal suas críticas se dirigem notadamente à Hart – este autor defendia
um espaço de discricionariedade conferido ao juiz quando defronte de casos que não teriam a resposta dada
pelas normas vigentes) o autor destaca que a indeterminação ou incompletude do direito decorreria da própria visão do positivista sob o enfoque das decisões judiciais em casos não regulados, o que permitiria a
discricionariedade judicial. Sustenta o autor uma integridade do Direito, donde para cada caso existiria uma
única resposta correta, à qual seria alcançada através de uma interpretação construtiva. Para uma análise mais
completa, cf. DOWRKIN, Ronal. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, bem como
o pós-escrito da obra de HART, Herber L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 3ª edição. No Brasil, o grande expoente que perfilha do entendimento do autor estrangeiro é
Lenio Luiz Streck, que em sua obra Verdade e Consenso, demonstra minuciosamente toda a construção
teórica para se chegar à conclusão de uma determinabilidade do Direito. Em seu livro, o autor tupiniquim,
ressalta que, além do redimensionamento da teoria das fontes (supremacia da lei cede espaço à Constituição)
e da teoria da norma (princípios com caráter normativo), como fatores que distinguiriam a teoria pós-
positivista (para ele Constitucionalismo Contemporâneo) da positivista, seria necessário o desenvolvimento de uma teoria da interpretação, através de uma hermenêutica constitucional embasada na linguagem, à qual
salvaguardaria o Direito da discricionariedade e/ou solipsismos judiciais. Para maiores incursões no tema, cf.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012.
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fundamentais dos cidadãos, processuais ou materiais, sendo as primeiras o meio para se
efetivamente proteger as segundas. Para viabilizar o uso e gozo aos direitos e garantias
prescritos, questão de império foi a adoção de força normativa à Constituição
(característica já ressaltada alhures) que tem como objetivo das azo a toda esta gama de
direitos, sejam aqueles positivados ou não (princípios implícitos). A reconstrução e
expansão da jurisdição constitucional, além do desenvolvimento de uma nova interpretação
constitucional – ultrapassando os vetustos critérios da interpretação literal, histórica,
sistemática e teleológica – são também pontos chaves deste novo momento vivido pelo
Direito11
.
Não é demais salientar que, com o fito da Constituição alcançar todas as promessas
existentes em seu texto (visando, assim, superar, o não cumprimento do amplo leque de
direitos estabelecidos pelo Estado Social), necessário se faz o deslocamento da tônica do
poder Legislativo, para o poder Judiciário. Não que isso represente uma usurpação de
competências, afinal um sistema de check and balances pressupõe não somente um
Legislativo forte, como também um Judiciário dotado dos poderes inerentes à sua
importância para o Estado Democrático de Direito12
; mas o fato é que, cabe ao Judiciário
não somente efetivar as promessas não cumpridas pela modernidade, que atualmente estão
dotadas de força normativa na Constituição, como também proteger as minorias, evitando,
assim, uma malsinada ditadura das maiorias.
O novo modelo constitucional contemporâneo, que engloba boa parte dos
elementos acima ressaltados, é bem explicado por Luis Pietro Sanchís13
, que assim aborda:
11 Defende-se que os critérios abordados no texto, quais sejam, as transformações ocorridas no pós segunda
Grande Guerra, a superação da determinação do direito e a normatividade conferida aos princípios, bem
como o conseqüente desenvolvimento de uma nova interpretação constitucional, da expansão da jurisdição
constitucional e o reconhecimento de força normativa à Constituição, representam aspectos distintos imprescindíveis para a compreensão do neconstitucionalismo ou Constitucionalismo Contemporâneo. Estas
nuances representam, respectivamente, os aspectos histórico, filosófico e teórico do novo modo de se estudar
o Constitucionalismo. Para maiores detalhes, ver CAMBI, Eduardo. Neoprocessualismo e
Neoconstitucionalismo. In: DIDIER JR. Fredie (Coord.). Leituras Complementares de Processo Civil.
Salvador: JusPodivm, 2008. p. 139-171 e ainda BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e a
constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito
Administrativo, nº 240, 2005. 12 Neste sentido, CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?.Trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Fabris, 1993, que citando Alessandro Pekelis, assim relata em p. 53: “uma atividade legislativa
ou administrativa eficaz de modo algum é incompatível com o controle do judiciário da própria atividade,
(...) antes a coexistência equilibrada de tal atividade e de seu controle representa a essência mesma do regime constitucional.” 13 SANCHÍS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: Neoconstitucionalismo(s).
Madrid: Trotta, 2005, p. 128.
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Que una Constitución es normativa significa que, además de regular la
organización del poder y las fuentes del Derecho – que son dos aspectos de
una misma realidad –, genera de modo directo derechos y obligaciones
inmediatamente exigibles. Los documentos jurídicos adscribibles al
neconstitucionalismo se caracterizan, efectivamente, porque están repletos
de normas que les indican a los poderes públicos, y con ciertas matizaciones
también a los particulares, qué no pueden hacer y muchas veces tanbién qué
deben hacer. Y dado que se trata de normas y más concretamente de normas
supremas, su eficacia ya no depende de la interposición de ninguna voluntad
legislativa, sino que es directa e inmediata. A su vez, el caráter garantizado
de la Constitución supone que sus preceptos puden hacer valer a través de
los procedimientos jurisdicionales existentes para la protección de los
derechos (...). Pero si la Constitución es una norma de la que nacen derechos
y obligaciones en las más diversas esferas de relación jurídica, su
conocimiento no puede quedar cercenado para la jurisdición ordinaria, por
más que la existência de un Tribunal Constitucional imponga complejas y
tensas fórmulas de armonización.”
Não há dúvidas, pois, de que a Constituição é um ambiente vasto em proliferação
de direitos; no entanto, para sua concretização, se não espontaneamente realizados pelo
Estado, merecerá amparo do Judiciário, haja vista ser o poder responsável pela garantia do
referido texto normativo, e ambiente de salvaguarda dos cidadãos contra o Estado. Nesta
esteira, as garantias processuais também são encaradas como direitos fundamentais do
povo, uma vez que, seja no que tange à intervenção, seja no tange ao restabelecimento dos
direitos materiais violados (ou ameaçados de), deve o jurisdicionado ter a ciência do
desenrolar do procedimento, bem como saber quais os seus poderes, deveres e/ou
faculdades.
Em uma democracia deliberativa, na qual aos cidadãos é propiciada a participação
no processo elaboração das leis, também deve ser conferido aos jurisdicionados as mais
amplas possibilidades de participar e influenciar a decisão do Judiciário, tudo com ordens
ao alcance da tutela justa e efetiva.
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Neste mister, a Constituição brasileira é um belo modelo das previsões formais14
que garantem ao cidadão o acesso à ordem jurídica justa, com a positivação dos mais
diversos instrumentos que proporcionam ao jurisdicionado a ampla participação e
envolvimento no caso em julgamento. A influência sofrida pelo Brasil dos países europeus
(e também norte-americana), mais experientes no debate neoconstitucional, e sua
constitucionalização tardia, já no final do séc. XX, são fatores que podem ter contribuído
para o extenso rol de garantias processuais previstos implícita e explicitamente na
Constituição Cidadã15
.
O amplo rol de garantias fundamentais processuais insertos na CFRB/88 não
poderia ser analisado neste ensaio; tampouco se analisará o direito de ação, que apesar de
diversas vezes mencionado (direta ou indiretamente), possui uma estreita ligação com
todos os demais direitos previstos na Constituição – e esta relação é auto-explicativa,
afinal, somente têm razão de ser previsões como contraditório, ampla defesa, devido
processo legal, se é conferida aos cidadãos uma ordenada e organizada possibilidade de
acesso ao judiciário. Optou-se, pois, por uma análise da garantia da motivação das decisões
judiciais, que possui implicações interessantes dentro de um contexto constitucional-
democrático.
2. A GARANTIA DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS ORIGENS
A origem da obrigação de fundamentação das decisões judiciais do processo
moderno16
pode ser datada do século XVIII, sendo mais bem visualizada na Europa,
14 Diz-se formais, pois a materialização de referidas garantias nem sempre é observada, quiçá efetivada em
completo pelos órgãos jurisdicionais pátrios. 15 Sobre a Constituição de 1988, assim destaca Michele Taruffo: “La Constitución brasileña de 1988 se
inserta, de pleno derecho, en la que se puede definir como la ‘fase madura’ de uno de los fenómenos más
importantes que han caracterizado la evolución de la justicia cvil a partir de la mitad del siglo XX, vale decir, la ‘constitucionalización’ de las garantías fundamentales del proceso”. TARUFFO, Michele. La
proteción judicial de los derechos en un estado constitucional. Trad. de Maximiliano Aramburo Calle. In:
Páginas sobre justicia civil, cit., p. 63. 16 Reverência deve ser feita para o fato de se estar tratando do processo moderno, haja vista que a
necessidade de motivação das decisões judiciais já era observada desde o processo civil romano e canônico,
destacando que o atual sistema processual é derivado, precipuamente, das disposições deste último. Assim,
em breve síntese, sabe-se que o processo civil romano era dividido em três períodos, a legis actiones, per
formulas e extraordinária cognitio; os dois primeiros caracterizam-se por serem formalistas e com uma
nítida divisão do procedimento em fases, na qual o pretor (iure) declarava o direito aplicável e o cidadão
romano (iudex) julgava o caso; por inexistir uma organização judiciária hierarquizada, os julgamentos do
iudex não eram passíveis de recurso, nem motivados (insta salientar que os períodos em espeque correspondem à fase da ordem dos juízos privados; apesar dos dois primeiros momentos históricos do
processo civil romano serem bastante similares, tendo composto ordo iudiciorum privatorum, é possível
verificar diferenças entre o período da legis actiones e o período per formulas, destacando que o mais
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notadamente nos países cujo ordenamento são de origem romano-germânica; todavia, este
fenômeno não se mostra como unitário em todos os países do referido continente; isto
porque os ideais que influenciaram o dever de expor as razões de convencimento da
decisão tiveram as suas mais variadas fontes de inspiração17
.
Na França, por exemplo, o primeiro diploma a consagrar a obrigação de motivação
das decisões é a lei de agosto de 1790, norma esta que fora posteriormente ratificada na
Constituição do ano III. Recorde-se que, à época, o país estava envolto na Revolução,
sendo certo, todavia, que este dever de motivação remonta à base ideológica dos princípios
de inspiração democrática que instauraram o movimento de insurreição, e não decorrendo,
assim, de uma elaboração jurídico-política – como se poderia pensar à primeira vista. Isto
porque, a resultante para a adoção da obrigação de se justificar as decisões embasa-se nas
críticas realizadas ao modelo de administração da justiça do antigo regime – que não previa
norma semelhante –; percebeu-se que os meios de controle do Estado por parte do cidadão
substancial deles é menor rigidez formal; poderia o magistrado, por exemplo, conceder direitos fora da jus
civile, ou seja, não se limitava às cinco ações da lei prevista no primeiro período. A mudança substancial,
porém, ocorre com a inauguração do terceiro grande período, a cognitio extra ordinem, quando a bipartição
do procedimento fora extinguida e fora criado um Tribunal Imperial; a reforma processual realizada sob o
principado augustano, que concentrou todos os poderes do processo nas mãos do magistrado (funcionário
público que também detinha a função de julgar) fez emergir a visão publicista do processo, em detrimento da
privatista do período da ordo. Todavia, o que merece grande registro nesta fase é a constatação da existência de motivação das decisões proferidas pelo magistrado, conclusão esta que decorreria, precipuamente, de três
fatores: a) as sentenças eram passíveis de recurso (a própria possibilidade de recurso parcial contra a sentença
é outro forte fator que induz à conclusão da necessidade de motivação das decisões, afinal é estranho se
pensar na possibilidade de irresignação contra parte da decisão se ela não contivesse os fundamentos); b) elas
eram escritas e lidas na presença dos envolvidos no conflito (no período privatista, o processo era
eminentemente oral); c) a maior liberdade do julgador, o que permitiria uma maior variabilidade do conteúdo
da sentença (no período da ordo iudiciorum privatorum ou o magistrado se vinculava aos termos da
controvérsia – litiscontestatio – ou deveria se ater às fórmulas redigidas). Merece nota o fato de que não
havia qualquer previsão normativa que determinasse a necessidade de fundamentação das decisões no
processo civil romano. Já o processo civil canônico, teve como fonte a cognitio extra ordinem romana,
evoluindo, todavia, em diversos aspectos; se interessa, notadamente, para o fato de prever, explicitamente,
entre os requisitos da sentença, a necessidade de se motivá-las, sob pena de nulidade sanável, o que é verificado nos cânones 1.611 e 1.622 do Código de Direito Canônico. As razões de se expor os motivos na
sentença no processo civil canônico se devem ao fato de que o julgador teria que demonstrar uma certeza
moral na decisão proferida, além de possibilitar que o interessado se irresigne contra o decidido. Para maiores
incursões sobre o tema, ver SILVA, Ana de Lourdes Coutinho. Motivação das decisões judiciais. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 60-94. 17 Neste sentido, TARUFFO, Michelle. Il Significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In:
GRINOVER, Ada Pelegrine; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo, (Coord.).
Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988., que assim disserta: “È anzi próprio in
questo contesto complessivo che l’obbligo di motivazione si trasforma da prassi in regola giuridica, e da
regola giuridica più o meno occasionale in principio generale che contribuisce alla razionalizzazione dei
sistema di amministrazione della giustizia. (...) Non si trata tuttavia dí un fenômeno unitário, e coerente nelle sue ragioni politico-giuridiche: esso emerge infatti in situazioní storiche fortemente differenziate, sicchè,
allinterno dei fenômeno generale di razionalizzazione dei sistema che ho appena richiamato, si manifestano
concezíoni diverse, e per conseguenza diverse discipline normative, dell’obbligo di motivazione.”
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deveriam ser estendidos também ao poder jurisdicional, evitando-se o o arbítrio judicial.
Assim, o juiz boche de la loi, não deveria apenas aplicar a lei criada pelo povo, mas
também, e acima de tudo, submeter-se à autoridade do populo, o que ocorreria através da
demonstração das razões de sua decisão. O controle democrático de legalidade da atividade
jurisdicional e as exigências por uma justiça substancial são, pois, os alicerces do princípio
no direito francês, que, ratifica-se, foram inspirados nos ideais da Revolução Francesa – e
não na filosofia do Iluminismo18
.
Já na Alemanha, as origens remontam a outros fundamentos. Já se concebia, na
Prússia, a idéia da motivação secreta, destinada ao juiz da impugnação; assim, a sua
extensão para que também fossem as partes cientificadas sobre as razões da decisão é que
se constitui na novidade do sistema alemão – situação verificada em meados do século
XVIII. Todavia, conforme se anotará em linhas posteriores, os ideais que apontam para a
necessidade de motivação das decisões na Alemanha denotam apenas uma faceta interna
do princípio, ou seja, destina-se a um controle apenas por parte de autor, réu e juiz, nada
revelando sobre a controlabilidade externa – viés democrático – da motivação.
Os motivos fundantes para se exporem as razões da decisão judicial são expandidos
no final do século XVIII, episódio verificado na Prússia, quando se observou que a
justificação das decisões também se consubstanciava em fatores de racionalização do
julgamento e funcionamento ordenado da atividade decisória; todavia, prescinde-se, ainda,
da ideia do controle externo pela sociedade19
.
Ainda no que tange à Alemanha, importa ainda pontuar que, apesar das previsões
normativas prussianas – cuja origem é jurídica e política, e não ideológica como em França
–, não se verifica nos demais países de língua alemã, diretrizes legais prevendo a obrigação
de motivar as decisões judiciais; merece registro, a título exemplificativo, a situação da
Áustria, que, contemporaneamente às legislações prussianas, edita um código de processo
determinando o segredo das razões de decidir20
.
O caso italiano é ainda mais complexo de se analisar. Os diferentes sistemas
processuais encontrados nos mais diversos Estados do país denotam uma miscelânea de
razões e épocas nas quais se observa uma previsão determinando a necessidade de
18 TARUFFO, Michelle. La motivación de la sentencia civil. Trad.: Lorenzo Córdova Vianello. Madrid: Trotta, 2011, p. 297-298. 19 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 495-499. 20 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 499-450.
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motivação das decisões. Assim, conforme bem destaca Taruffo21
, “la situación existente a
comienzos del siglo XVIII en cuanto a la motivación de la sentencia civil es bastante
variada y compleja, y difícilmente se presta para ser reconducida a un marco coherente
(...)”.
Na contra-mão do afirmado alhures sobre o período de surgimento da obrigação das
motivações judiciais, em alguns Estados italianos, como o caso de Florença, já se
verificavam desde o século XVI previsões a respeito do dever de justificação das decisões,
prescrevendo, inclusive, uma pena de sanção para o juiz que desobedecesse à norma.
Todavia, é apenas na última quadra do século XVII que se verifica a adoção de um viés
extraprocessual da obrigação de apresentar os motivos da decisão judicial, com a inserção
do elemento de que não somente às partes seria dado conhecer das razões de decidir, mas
também ao povo como um todo.
Merece registro que, no entremeio dos períodos acima destacadas, apesar das
previsões florentinas exigirem a fundamentação das decisões – ainda que a nível apenas
endoprocessual –, a prática não se mostrava generalizada, podendo-se verificar casos em
que ela era dispensada, facultativa ou somente apresentada a requerimento das partes.
Outro Estado italiano a prever a motivação das decisões judiciais já no século XVI é
Piemonte, todavia, possuindo maiores limitações que as legislações de Florença. 22
Pois bem, ainda que se encontrem alguns casos italianos esparsos sobre uma
necessidade de justificar pronunciamentos jurisdicionais, é efetivamente a partir do século
XVIII que as legislações dos Estados italianos começam a verificar dispositivos prevendo,
genericamente, o dever do juiz em apresentar os fundamentos de seu convencimento. A
inovação, no caso, ficava por conta dos novos estados que não adotavam a medida e
aderiram ao dever de justificar as decisões; citam-se a título ilustrativo os Estados de
Módena, Trento e Nápoles23
.
No que tange especificamente à alteração legislativa do caso de Nápoles,
capitaneada por Tanucci, devem ser destacados os objetivos por ele perseguidos com a
imposição da justificativa das decisões, quais sejam, um funcionamento mais ordenado e
racional da administração da Justiça. Todavia, conforme destacada Taruffo, o verdadeiro
aspecto moderno do dever de fundamentar uma decisão somente é alcançado com as
21 TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 500. 22 Para toda construção do raciocínio, ver, TARUFO, Michele. La Obligación ... In: Páginas ... p. 500-501. 23 TARUFFO, Michelle. La motivación ... p. 301-302.
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ponderações de Filangieri, que ao estudar as disposições napolitanas sobre motivação,
ressaltou a necessidade de se entender a norma como uma submissão ao controle da
coletividade24
– o que representa, justamente, o viés democrático da norma.
Os exemplos apontados serviram para bem ilustrar que o surgimento de uma
obrigação de motivação das decisões judiciais, no processo moderno, é fenômeno
basicamente europeu. Corroborando o exposto, toma-se o caso norte-americano como
paradigma; neste país, apesar de sua anciã origem jurídica – com adoção desde o século
XVIII da Constituição como um documento jurídico-normativo –, observa-se que não
existia, à época, qualquer norma determinando o dever de justificação das decisões25
.
Isto não quer dizer, todavia, que todas as decisões de todos os tribunais norte-
americanos não eram motivadas; as decisões de primeira instância não têm o costume de
serem motivas, ao passo que os pronunciamentos da Suprema Corte do referido país, v.g.
têm por praxe justificar suas tomadas de posição. No caso do Tribunal de Maior hierarquia
dos EUA, a exceção fica por conta dos pronunciamentos acerca do writ of certiorari, que
representa o meio processual através do qual a parte pleiteia ao tribunal que reexamine sua
questão; as decisões do certiorari são tomadas em deliberação secreta e sem motivação26
.
Ainda no que se refere à praxe dos tribunais norte-americanos, verifica-se que os
pronunciamentos de segunda instância também têm por costume receber os fundamentos
que consubstanciam a decisão.
A questão que se verifica é, apesar da ausência de norma específica explicitando a
necessidade ou obrigação de apontar os fundamentos do decisum, por quais motivos
diversos tribunais dos Estados Unidos da América tem por prática justificar seus
pronunciamentos – a resposta ao questionamento, pode, inclusive, ser estendida para todos
os demais países que adotam o common Law. A razão para tanto é de clareza ímpar: seria
de todo ilógico pensar em um sistema de precedentes sem a apresentação de fundamentos
24 TARUFFO, Michelle. La motivación ..., p. 302, quando assim destaca: “El alcance objetivo de la reforma
fue identificado por Filangieri, quien puso en evidencia que con la obligación de motivación se sometía La
operación Del juez al control difuso de la opinión pública, por lo que se hacía responsable ante la
colectividade.”.O mesmo autos destaca em p. 303 que a inovação da legislação de Nápoles, que antes não
possuía qualquer previsão a respeito da obrigação de motivação das decisões, bem como ante as constatações
e conclusões de Filangieri sobre a referida lei, seu conteúdo acabou por ser revogado com a lei de 1791,
transformando a motivação em mera faculdade para o juiz. 25 BARBOSA MOREIRA. Temas ....p. 92-93. 26 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Suprema Corte norte-americana: um modelo para o mundo?.
Temas de Direito Processual – oitava séria. Rio de Janeiro: Saraiva, 2004, p. 242-243.
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que ancorassem o julgado, haja vista que toda a estrutura do common law é embasada nas
razões de decisão do Juízo27-28
.
Assim, fica o registro de que as origens da obrigação de motivar as decisões
judiciais no processo moderno, dever este decorrente de uma lei formal e material que a
preveja, são historicamente verificadas em Europa, notadamente nos países de civil law,
haja vista que nos Estados Unidos da América, assim como na Inglaterra, nenhuma
legislação é apontada neste sentido, apesar de existir uma prática contumaz de justificar as
decisões, mas isto em razão da estrutura do modelo jurídico adotado.
3. A GARANTIA DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E SUAS FUNÇÕES
A breve análise histórica realizada anteriormente contribuiu para um panorama que
possui interessantes apontamentos para a motivação das decisões judiciais: trata-se da
função da obrigação de motivar as decisões judiciais.
Nas linhas transatas se percebeu uma breve anotação sobre os controles endo e
extraprocessual da motivação das decisões, anotando-se que, na sua origem, o dever geral
de motivação dos pronunciamentos judiciais decorria, eminentemente, em benefício das
partes e do juiz. Todavia, verificou-se ainda que este nuance do dever de justificação não
se mostrava idôneo para abraçar uma necessidade geral de fundamentar as decisões.
Logrou-se apontar a respeito de um controle do Estado realizado pela população,
estabelecendo-se que também ao poder jurisdicional seria necessário esse aporte
hierárquico do povo. Eis o caráter democrático incidindo no processo, salientando que os
27 BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. A motivação ... Temas ... p. 84, que nestes termos destaca: “Se não
se tratou de editar regra legal genericamente impositiva da fundamentação, é que, com toda a
probabilidade, não se terá julgado necessário formular a exigência em texto escrito. Mas parece
inconcebível uma mudança de rumos na praxe judiciária: chega-se a afirmar que, se os Tribunais deixassem
de fundamentar suas decisões, todo o sistema do case law cairia por terra. Basta pensar, com efeito, na
importância das razões de decidir para a atuação do mecanismo dos precedentes.” 28 Apesar de Estados Unidos da América e Inglaterra estarem ligados à mesma família de origem jurídica,
anglo-saxônica, sendo, portanto, expoentes do common law, deve ser acertado que, em Inglaterra, mesmo
não existindo previsão normativa escrita que determinasse a obrigação de fundamentação das decisões
judiciais, é praxe no país desde o século XII, em todas as instâncias, a apresentação de justificativas do
julgamento realizado (seja aquele realizado pelo juiz, seja aquele realizado pelo jurado). Assim, é mister salientar que apenas no ordenamento norte-americano não se vislumbra uma prática processual de motivação
das decisões judiciais nos juízos de primeira instância. Para maiores detalhes sobre a questão, ver
TARUFFO, Michelle. La motivación ... p. 312-318.
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cidadãos em geral somente têm a possibilidade de controlar a atividades dos juízes se os
seus pronunciamentos forem motivados29
- eis o controle extraprocessual.
Explica Taruffo que um controle eminentemente endoprocessual, dirigido às partes
e ao juiz, possui funções bem explicitadoras e que realmente merecem suas considerações.
Assim, para este viés, a obrigação de motivar teria como meta funcionar como requisito
técnico da decisão judicial, e ainda relacionar-se diretamente com uma possível
impugnação do pronunciamento30
.
No que tange à função da motivação das decisões judiciais direcionadas às partes,
pode-se destacar um viés persuasivo da fundamentação dada pelo juiz. Neste aspecto, a
ratio decidendi teria o intuito de demonstrar, notadamente para o perdedor da contenda, a
bondade e justiça da decisão proferida, procurando evitar, assim, eventual impugnação do
pronunciamento – aqui, a persuasão deve ser entendida no sentido de convencimento,
persuadir o perdedor de que a sentença proferida está acertada com a lide em debate e em
consonância com a lei. Essas considerações referentes às partes do processo, todavia, são
de todo superficiais; basta recordar-se das decisões judiciais não passíveis de recurso, v.g.,
as decisões de última instância. Nestes casos, como não haveria qualquer irresignação a ser
apresentada, referidos pronunciamentos prescindiriam de fundamentação31
.
Ainda no que se refere às partes, a exposição dos motivos da decisão funcionaria
como um aspecto facilitador da valoração da pertinência de uma impugnação, além de
melhor auxiliar na identificação dos vícios que padecem o pronunciamento. Neste teor, a
motivação se mostra como um verdadeiro fator racionalizador da decisão, justamente ao
permitir um melhor e mais amplo controle, pelas partes, da decisão proferida. Todavia,
eventual impugnação da sentença pode não decorrer dos vícios presentes na
fundamentação da decisão, como nos casos dos vícios processuais – denominados errores
in procedendo. A crítica denota a falibilidade de se restringir o dever de motivação à esta
29 Além da motivação, é mister que as decisões jurisdicionais sejam públicas, todavia, para não desvirtuar do
tema do trabalho, fica o registro da necessária publicidade dos atos do Poder Judiciário, sem se adentrar mais
afundo sobre suas nuances. O referido princípio e expressamente previsto no rol de garantias fundamentais
do cidadão vide art. 5º, XIV, da CRFB/88 (é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo
da fonte, quando necessário ao exercício profissional). Sobre o tema cf. GRECO, Leonardo. Instituições de
Processo Civil: introdução ao direito processual civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 1. p. 556 e
ainda GRECO, Leonardo. ―Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. In Estudos de Direito
Processual, ed. Faculdade de Direito de Campos, 2005. Versão eletrônica deste artigo disponível em
http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=429. Acesso em 16 de junho de 2012. 30 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia. Trad. de Maximiliano Aramburo Calle. In: Páginas
sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 516. 31 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil, cit. p. 336.
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função – acrescente-se, ainda, que as críticas alhures realizadas sobre as decisões não
recorríveis também se subsume para este caso32
.
Outra função da motivação relacionada com as partes do processo é aquela
decorrente da exata definição e enquadramento do direito afirmado pelo juiz, além da
extensão de seus efeitos. Assim, através da exposição das razões, é possível verificar se o
magistrado individuou corretamente o conteúdo da decisão, tudo conforme os fatos e
direitos afirmados pelos contendores. Impede-se que o magistrado possa fugir das raias do
processo e do direito, vetando-o, também, na possilibidade de que sua decisão produza
efeitos para fora dos limites do pleiteado – eis o controle de legalidade da decisão. Notório
destacar que esta função não se relaciona diretamente com a impugnação da decisão, haja
vista que tem por finalidade a determinação objetiva do julgado33
.
A motivação das decisões judiciais também se mostra necessária para os juízes da
impugnação, ou seja, os revisores da sentença pronunciada em primeiro plano. Em
substância, as funções da fundamentação relacionadas às partes do processo são todas
aplicáveis aos magistrados a quem se confia o julgamento do recurso, notadamente o papel
persuasivo, a verificação dos vícios da motivação e a análise da exata definição do direito.
Um ponto que merece respeito e se mostra exclusivo ao juiz da impugnação é a
verificação do meio impugnativo eleito pela parte para irresignar-se contra a decisão,
conferindo-se ao magistrado ad quem verificar sua adequação34
– a título exemplificativo,
no direito processual civil brasileiro, contra decisão interlocutória é cabível o recurso de
agravo retido e agravo de instrumento, cujos modo de interposição e processamento são
completamente díspares, assim, se a parte irresignada contra uma dita decisão interpõe o
agravo de instrumento, ao invés do agravo retido, cumpre ao magistrado verificar a
adequação da via eleita, podendo, assim, não receber o recurso da forma realizada, por
justamente não se amoldar aos cânones legais.
Por óbvio que a função da motivação relacionada com o juiz da impugnação
somente tem sua razão de ser quando uma decisão possa ser impugnada; desta feita,
quando diante de pronunciamentos não recorríveis – como no caso do STF no Brasil – não
se teria motivos para falar sobre este aspecto. E mais, esta razão de ser somente seria
realmente prática se a decisão fosse efetivamente impugnada; assim, acatando as partes a
32 TARUFFO, Michele. La Motivación de la Sentencia Civil, cit. p. 337 33 TARUFFO, Michele. La Motivación .... p. 339-340. 34 TARUFFO, Michele. La Motivación .... p. 341-342.
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sentença proferida, não havendo interesse em recorrer, perderia razão a existência da
função da motivação direcionada ao juiz da impugnação.
Nota-se, pois, que a exigência de uma regra geral de fundamentação das decisões é
insuficiente através desta função.
Pois bem, em se afirmando que a grande maioria dos fundamentos acima
explanados para a obrigatoriedade de motivar as decisões não se aplicaria para as Cortes
Supremas dos países em geral, questionar-se-ia: quais seriam, então, as razões para tanto
em ditos tribunais? É neste aspecto que se adentra para a necessidade de um controle
externo do dever de justificar os pronunciamentos jurisdicionais.
Antes de adentrar ao cerne da questão, mister destacar que, extraprocessualmente,
se convém motivar as decisões por três motivos. O primeiro deles é concernente à faceta
instrumental da norma, ou seja, é na fundamentação da decisão que se verifica se todos os
direitos e garantias das partes foram efetivamente respeitados. Nos termos afirmados no
primeiro tópico deste ensaio, o sistema vigente na grande maioria dos países estabelece um
amplo rol de garantias processuais fundamentais; assim, é através da ratio decidendi que se
observa se o devido processo legal fora respeitado, com a observância de todos os
princípios inerentes ao processo35
.
Ademais, é através da motivação que os juízes podem demonstrar que suas razões
de decidir são suficientemente válidas e boas no intuito de aceitá-las como coerentes com o
ordenamento vigente. Nesta perspectiva, encontra-se aquela função já mencionada a
respeito da determinação objetiva do julgado, através de uma definição exata do conteúdo
do pronunciamento. E mais, nesta nuance também se pode falar em legitimação da decisão,
pois somente apresentando as razões de decidir que se pode verificar que a sentença
“muestra que responde a critérios que guían el ordenamiento y gobiernan la actividad del
juez”36
.
Por fim, tem-se o fator de racionalização da jurisprudência. Conforme afirmado
alhures, os países de common law são destituídos de regras escritas a respeito da obrigação
de motivar as decisões judiciais, todavia, restou também afirmado que a inexistência da
previsão normativa não impunha uma ausência geral e indiscriminada de justificação das
decisões. Muito ao contrário, a apresentação das razões decisórias se mostra presente, e de
35 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 518. 36 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 518
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outra forma não se poderia pensar ou exigir, afinal, embasando-se estes países na
vinculação dos precedentes, denota-se que é a ratio decidendi quem tem este papel
vinculativo – inconteste a necessidade de se impor a justificativa da decisão. É ainda por
estes argumentos que se guiam as funções de unificação e racionalização da jurisprudência
pela motivação das decisões, isto porque, as razões de decidir utilizadas, precipuamente
pelos tribunais de impugnação e pelas Cortes Superiores, tem como fim convencer os
demais magistrados a decidir da mesma forma quando defronte a casos similares aos
julgados37
.
Não é demasiado afirmar que esta função de racionalização da jurisprudência pela
motivação garante ainda a concretização de um dos pilares de qualquer sistema, qual seja,
a segurança jurídica. Apesar desta função ser evidentemente reconhecida, no Brasil, o que
se tem notado é que, na prática, sua efetivação se mostra de difícil observação; pontua-se
como uma das razões precípuas, o elevado número de processos julgados pelas principais
Cortes Superiores pátrias, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal38
.
Inconteste que os argumentos acima destacados são idôneos para demonstrar as
razões de uma exigência geral de motivação das decisões judiciais. Porém, a pedra de
toque que sustenta toda a nuance do controle externo da obrigação de justificar o
pronunciamento jurisdicional é outra, qual seja, permitir que a sociedade, como um todo,
tenha condições de aferir a correção da tutela conferida pelo Estado.
Esta é a perspectiva do ideal democrático no processo moderno, sendo inverossímil
pensar em um Estado de Direito sem o dever geral de motivar as decisões judiciais, cuja
controlabilidade dos pronunciamentos possa ser realizada por todos os cidadãos. E a razão
para assim pensar decorre do fato que, se a prestação jurisdicional pelo Estado se mostra
equivocada em determinado caso, a crise do direito não afeta apenas as partes do processo,
mas tem potencial de afrontar o Direito para toda a população.
Sobre o assunto, assim sintetiza José Carlos Barbosa Moreira39
:
“A possibilidade de aferir a correção com que atua a tutela jurisdicional não
deve constituir um como ‘privilégio’ dos diretamente interessados, mas
37 TARUFFO, Michele. La obligación ... In: Páginas ... p. 519. 38 A afirmação do elevado número de processos julgados por STJ e STF foi retirada do conteúdo das
palestras proferidas pelos professores Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Pablo Cerdeira, ambas proferidas nas IX Jornadas de Direito Processual Civil, que ocorreu entre 29 e 31 de agosto de 2012 no Rio
de Janeiro. 39 BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. Temas ... p. 90.
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estender-se em geral aos membros da comunidade: é fora de duvida que, se
a garantia se revela falha, o defeito ameaça potencialmente a todos, e cada
qual, por isso mesmo, há de ter acesso aos dados indispensáveis para formar
juízo sobre o modo de funcionamento do mecanismo assecuratório. Ora, a
via adequada não pode consistir senão no conhecimento das razões que o
órgão judicial levou em conta para emitir seu pronunciamento; daí decorre a
necessidade de motivação obrigatória e pública.
O controle extraprocessual deve ser exercitável, antes de mais nada, pelos
jurisdicionados in genere, como tais. A sua viabilidade é condição essencial
para que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na tutela
jurisdicional – fator inestimável, no Estado de Direito, de coesão social e da
solidez das instituições.”
Com a mesma proficuidade, Michele Taruffo40
pondera:
“De la superación de ese principio se desprende que la motivación no
puede concebirse como un trámite de control ‘institucional’ (o sea, en los
limites y en las formas reglamentadas por el sistema de impugnaciones
vigente), pero también, especialmente, como un instrumento destinado a
permitir un control ‘generalizado’ y ‘difuso’ del modo en el que el juez
administra la justicia. En otros términos, esto implica que los
destinatarios de la motivación no son solamente las partes, sus abogados
y el juez de la impugnación, sino también la opinión pública entendida en
su conjunto, en tanto opinión de quisque de populo. La connotación
política de este desplazamiento de perspectiva es evidente: la óptica
‘privatista’ del control ejercido por las partes y la óptica ‘burocrática’ del
controle ejercido por el juez superior se integran en la óptica
‘democrática’ del control que debe poder ejercerse por el propio pueblo
en cuyo nombre la sentencia se pronuncia.
Entonces, el principio constitucional que analizamos no expresa una
exigencia genérica de controlabilidad, sino una garantia de
controlabilidad democrática sobre la administración de justicia.”
40 TARUFFO, Michele. La Motivación ... p. 361.
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Esta perspectiva democrática da motivação das decisões judiciais começa a ganhar
relevo mundial com o processo de constitucionalização verificado nos mais diversos países
do globo. O retorno ao Estado Democrático de Direito e as necessidades de conferir aos
cidadãos meios aptos a defendê-los contra os poderes estatais revelam uma nova gama de
direitos e garantias insculpidos nas Constituições pós-bélicas, tudo com vias de afastar
definitivamente o ranço dos totalitarismos de outrora.
O processo se assume como uma das armas fundamentais do novo sistema jurídico,
ferramenta a serviço do cidadão, sendo que, concomitante com essa emersão do acesso ao
Judiciário visando uma justa e efetiva tutela jurisdicional, é verificada uma série de novos
direitos e instrumentos (ou mesmo uma releitura dos já existentes) que viabilizem a
participação democrática – são as garantias processuais fundamentais, que podem ser
resumidas na cláusula do devido processo legal.
O dever de obrigação de motivação das decisões judiciais é uma destas garantias, e
como visto, sua ampla funcionalidade eriça-o, certamente, ao lugar de um dos mais
importantes direitos fundamentais do cidadão, afinal proporciona uma possibilidade de
controle interno e externo da atividade estatal jurisdicional, mostrando-se como uma
condição essencial em todo Estado que se julgue democrático.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O reconhecimento de uma garantia fundamental de obrigação de motivação das
decisões judiciais está essencialmente atrelado ao viés democrático do atual modelo de
Estado concebido, qual seja, o Estado de Direito. A participação da população na atividade
jurisdicional, viabilizada através do controle externo das razões que consubstanciam os
pronunciamentos judiciais adquire, assim, importância de natureza política.
Isto porque, sendo a jurisdição uma atividade essencialmente estatal, na qual tem
como atribuição precípua afirmar e interpretar/aplicar os direitos do Ordenamento, aos
cidadãos não poderia ser conferida apenas a participação no processo de elaboração das
leis, mas também, e acima de tudo, a efetiva possibilidade de controlar a sua concretização.
Assim, o que se vislumbra é não somente uma participação direta da sociedade no
processo legislativo, atuando diretamente na feitura das normas que os regem, como
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também uma atuação direcionada a controlar os pronunciamentos judiciais, que também se
caracterizam por serem normas – muitas vezes a todos aplicadas.
A controlabilidade dos atos decisórios deve ser possibilitada em todas as esferas
jurídicas, denotando que o Judiciário tem o dever inderrogável de motivar seus
pronunciamentos. Esta garantia fundamental prevista em grande parte das Constituições,
correspondente a uma obrigação geral, somente é possível caso se entendam as suas
funções da forma como exposta.
A origem da necessidade de motivação das decisões, culminando com sua
positivação nas Constituições posteriores à segunda guerra mundial – seja através de
previsão expressa, seja através de sua interpretação decorrente de outros princípios
fundamentais do cidadão – revela que a sua evolução decorre essencialmente da
necessidade de trazer o cidadão para dentro da máquina estatal, evitando os arbítrios como
aqueles cometidos em tempos de concepções burocráticas e autoritárias do poder
jurisdicional.
O controle do Estado por parte da sociedade, em todas as suas esferas de atuação, é
fator de legitimidade de qualquer governo embasado em ideais democráticos; assim, para
que a ideologia participativa se verifique dentro do âmbito da administração da justiça, é
corolário lógico que se confira aos cidadãos a garantia indelével de fundamentação das
decisões judiciais, com o correspondente dever estatal de justificá-las. E pela exposição
realizada, as razões de fato e de direito com as quais deve o juiz justificar sua tomada de
posição são o meio natural de exercício do poder soberano do povo.
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A EXTENSÃO DA COISA JULGADA NO NOVO CPC E A EXTINÇÃO DA AÇÃO
DECLARATÓRIA INCIDENTAL: UMA MEDIDA DE SEGURANÇA JURÍDICA
Laís Fernandes Almeida
Bacharela em Direito. Universidade Federal de Juiz de Fora –
Faculdade de Direito
RESUMO: O objetivo central deste artigo é a análise da alteração da disciplina da coisa
julgada através do Projeto de Lei 8046/2010, em substituição ao Código de Processo Civil de
1973. O novo texto inclui as questões prejudiciais na imutabilidade da coisa julgada,
observados certos requisitos. Muitas são as críticas, já que a discussão é polêmica e antiga. A
experiência norte-americana comprova que a ideia é consistente e de sentido irretocável, desde
que se estabeleça parâmetros precisos para sua aplicação. A extensão da coisa julgada se faz
necessária por um mandamento de segurança jurídica e legitimidade da decisão.
PALAVRAS-CHAVE: segurança jurídica; legitimidade; questão prejudicial; coisa julgada;
direito norte-americano.
ABSTRACT: The goal of this article is to analyse the new discipline of res iudicata, brought
by Law 8046/2010, which intend to replace the current Code of Civil Procedure. The new rule
consists in thinking that prejudice issues can be embraced by res iudicata, provided certain
requirements. The critics are on, mainly because the discussion endures through times. The
north-america experience proves that the idea is consistent since adequate conditions were
established. The extension of res iudicata is indispensable to ensure legal security principle and
the legitimacy of the decision.
KEYWORDS: Legal Security Principle; Legitimacy; Prejudice issue; res iudicata; American
Common Law.
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INTRODUÇÃO
O anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, que atualmente tramita como
Projeto de Lei 8046/2010 na Câmara dos Deputados, traz alterações importantes ao sistema
processual como o conhecemos hoje. O presente trabalho se propõe a abordar a extinção da
ação declaratória incidental, e consequentemente o novo cenário em que se insere a
questão prejudicial, que passa a ser também coberta pela coisa julgada, expandindo a
antiga noção de que “somente a parte dispositiva da sentença faz coisa julgada”, tão
repetida na doutrina.1
A doutrina lutou por muito tempo pelo tratamento jurídico dado à coisa julgada
presente no Código de Processo Civil de 1973, e tem suas razões para defendê-la. O
objetivo deste estudo é reanalisá-las, colocá-las sob o ponto de vista das necessidades
atuais e dos novos imperativos jurídicos para compreender as consequências da aplicação
da redação proposta no meio forense, principalmente considerados, nesta análise, o
mandamento de eficiência e coerência do sistema jurídico e das normas concretas
proferidas em sede de sentença judicial. Para tanto, no primeiro e segundo tópicos
trabalhamos o conceito de coisa julgada, bem como a conceituação de questões
prejudiciais e a legislação aplicável.
No terceiro tópico, apresentamos a segurança jurídica e a legitimidade. Cabe a
análise pois, numa visão leiga do assunto, é um mandamento lógico que a fundamentação
da sentença, ou seja, as razões de fato e de direito que levaram o magistrado a concluir pela
procedência ou pela improcedência do pedido, não possam ser rediscutidas, e decididas
novamente, até mesmo em sentido contrário, em nova demanda. Há que considerar uma
análise mais minuciosa sobre o que figura inadmissível e incoerente aos olhos do homem
comum, haja vista ser este, em última instância, o destinatário da prestação jurisdicional,
além do mais em tempos de acesso amplo à justiça.
No quarto tópico é exposta a ação declaratória incidental, seu modo de aplicação e
as incongruências práticas que levaram à proposta de sua extinção.
1 Neste sentido, veja-se: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo,14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 307, assim como CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil,vol I, 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p.
494 e LIEBMAN, Enrico. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, 4ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 61.
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Trataremos também do collateral estoppel, instituto do direito norte-americano, e
relacionado às bases principiológicas próprias do Common Law, em ocasião do quinto e
sexto tópicos. A reconsideração do sistema brasileiro da posição da questão prejudicial no
ordenamento revela uma aproximação de certos postulados de eficiência e uniformidade
das decisões judiciais muito caros à prática norte-americana. Pretendemos demonstrar em
que ponto a principiologia dos institutos se toca e repassar as críticas feitas ao collateral
estoppel, para melhor compreender os problemas a que estamos sujeitos com a aplicação
do novo Código de Processo Civil e quais as vantagens de um julgamento que privilegia
menos o formalismo e mais um conteúdo coerente. Haja vista tudo que já avançamos no
pensamento processual é um descompasso admitir descrédito e atraso na prestação
jurisdicional, baseando-se para tal em justificativas tão teóricas e garantias jurisdicionais
tão excessivas – que beiram à injustiça.
Como a pesquisa se propõe a responder objetivamente os problemas acerca da
extensão dos limites objetivos da coisa julgada, especialmente a respeito das questões
prejudiciais, finalmente o sétimo tópico traz os principais pontos de conflito, revistos à luz
da doutrina moderna e da desconstrução de certos postulados classicamente relacionados a
esta discussão, mas nem sempre pertinentes.
A conclusão faz um balanço geral do estudo, apontando os impactos possíveis
causados pelo novo modelo adotado e comparando com os efeitos práticos da adoção do
sistema norte-americano.
1 COISA JULGADA
O estudo sobre a coisa julgada é extenso e a bibliografia sobre a matéria é vasta. A
teorização a respeito do tema, contudo, tem afastado a doutrina do real sentido da coisa
julgada, e frequentemente perdem-se de vista os problemas práticos enfrentados pelos
limites atuais impostos, porque estamos debruçados sobre a questão de a coisa julgada
gerar irrevogabilidade, imutabilidade ou invariabilidade. O que se deve extrair da
evolução histórica do conceito são as implicações concretas a respeito de seus limites, e,
basicamente, a proibição de submeter a novo julgamento questão (no sentido vulgar do
termo) já julgada. Neste sentido:
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Como se não bastasse, a doutrina foi acumulando os conceitos de
firmeza, irrevogabilidade, invariabilidade, imutabilidade, etc.,
criando uma série de categorias sobrepostas que apenas tornou
obscura a noção inicial, que me desculpo por repetir uma vez mais:
que a coisa julgada não é mais do que uma proibição de reiteração
de juízos.(grifo nosso)2
1.1. Fundamentos e escopos da coisa julgada
Há que pontuar: toda demanda causa perturbação social, primeiramente porque o
conflito não pôde ser resolvido aquém do judiciário, e também pela incerteza gerada pelo
processo em aberto, enquanto não é resolvido. Isto nos remete ainda à necessidade de que
os conflitos se resolvam em tempo hábil a estabelecer a paz social, já que processos que se
prolongam por 20, 30 anos acabam perdendo a essência de pacificação, muitas vezes
ocasionando mais tensão que a que havia antes do ingresso no judiciário. O processamento
da lide acarreta uma alteração do status social dos indivíduos, “notando-se o
reconhecimento de uma certa ‘posição de vantagem’ para quem se situa no pólo ativo, ao
passo que ao contraditor cabe suportar o ‘ônus’ de ser chamado de ‘réu’.3 A coisa julgada,
concordem ou não as partes com o resultado, “desarma” seus espíritos belicosos, que já
não podem mais impugnar o decisum4, pondo fim à controvérsia e proclamando a
definitividade da decisão prolatada.
Ainda neste sentido, a função do juiz precisa ir além da aplicação mecânica da lei.
Há expectativa social de o provimento estatal ser justo e coerente. Como norma concreta,
de caráter individual, espera-se que contribua para a construção de um ordenamento
jurídico completo e coeso. Assim, a decisão precisa coadunar com as regras e princípios de
Direito, e também com outras decisões jurídicas – daí decorre: situações jurídicas
semelhantes devem ser decididas da mesma forma; e não se pode admitir que a relação
2 FENOLL, Jordi Nieva. “A coisa julgada: o fim de um mito”, in REPD, vol X, p. 243. Disponível em
<http://www.redp.com.br/arquivos/redp_10a_edicao.pdf> acessado dia 01/08/2013. 3 MANCUSO, Rodolfo. “Coisa julgada, collateral estoppel, e eficácia preclusiva secundum eventum litis”, in Revista de Processo n˚ 608. São Paulo: RT, Jun. 1986, p. 23. 4 No mesmo sentido, CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas – entre
continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 54.
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entre Fulano e Ciclano, considerada existente numa demanda, seja em outra considerada
inexistente, por exemplo.
(...) ao decidir uma demanda judicial, o magistrado cria,
necessariamente, duas normas jurídicas. Uma de caráter individual,
que constitui sua decisão para aquela situação específica que se lhe
põe para análise, e outra de caráter geral que é fruto da sua
interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua
conformação ao direito positivo5
Não podemos perder de vista que, nesta construção do Direito, os jurisdicionados
esperam encontrar um juiz humano, um membro da sociedade, que aplique o Direito
conformando-o ao contexto social, à verdade da causa, analisando-a com humanidade.6
Este diálogo humano, evidenciado por Greco7, significa travar a relação jurídica segundo
uma expectativa de, ao longo do processo, os sujeitos envolvidos contribuírem para a
persecução de decisão definitiva compatível com o mundo dos fatos, minimamente justa e
coerente, podendo assim tornar-se imutável e resolver definitivamente o conflito. Espera-se
5Retirado de MADEIRA, Daniela Pereira. "A força da jurisprudência", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código de processo
civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 529/530. Esta ligação intrínseca impõe que sejam compatíveis, ou
representará a criação de Direito aleatório, que não contribui para a construção do sistema jurídico – muito
pelo contrário. Claramente, a decisão deve se adaptar aos fatos trazidos em discussão, podendo até mesmo
atuar contra legem – mas dentro de um permissivo legal. As normas concretas individuais devem ser
adaptadas, mas é imperativo que sigam as linhas ditadas pelas diretrizes legais. Podemos diferenciar uma
decisão adaptada e uma decisão desconforme. 6“O jurisdicionado compreende o Poder Judiciário como uma função do Estado, desempenhada por pessoas.
Assim, tem a legítima expectativa de que sua pretensão, quando posta em juízo, seja apreciada por alguém
que tenha conhecimento técnico, sensibilidade humana e imparcialidade. O cidadão quer a chance de um
diálogo humano com a pessoa que, ao final, decidirá uma parte de sua vida. É justa essa expectativa.”
MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. "A atuação do juiz na direção do processo", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código
de processo civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 183. 7Greco trata, de um diálogo humano sob o ponto de vista do contraditório participativo: “Esse é o
contraditório participativo, que não se limita a assegurar a marcha dialética do processo e a igualdade formal
entre as partes, mas que instaura um autêntico e fecundo diálogo humano entre as partes e o juiz,
indispensável para que tal conjunto de prerrogativas possibilite às partes influir eficazmente nas decisões
judiciais, por meio da intervenção no curso de toda a atividade de aquisição do conhecimento fático e jurídico
de que se originam e da sua repercussão no entendimento do julgador.” Entendemos que Gustavo
Quintanilha, com uma precisão louvável, releu a expressão “diálogo humano” num sentido menos formalista
e mais completo do termo, expandindo para a noção de humanidade que tratamos supra. GRECO, Leonardo.
"A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa, in Revista CEJ, v. 35. Brasília: Revista CEJ, 2006, p. 20-27, apud MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. "A atuação do juiz na direção
do processo", in FUX, Luiz (coord). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões
acerca do projeto do novo código de processo civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 185.
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que a decisão resolva todos os pontos da demanda e que não possa ser reaberta e desfeita,
por um mandamento de segurança jurídica.
Sob o viés político, a coisa julgada é uma afirmação do poder estatal. A decisão de
mérito, que se cristalizará em coisa julgada, pode ser vista por dois aspectos: é o resultado
de um instrumento posto à disposição dos cidadãos, já que provocam a jurisdição quando
necessitam, ou seja, é atuação estatal a que o sujeito escolhe submeter o conflito de
interesses que vive; mas é também uma afirmação do poder político do Estado, porque os
vincula às normas e aos procedimentos da demanda, submetendo-os às regras de ônus,
provas e, uma vez formada a res iudicata, seu viés coercitivo determina que se atenda à
ordem judicial. O Estado-juiz substitui a voz e a vontade das partes para decidir, e
sobrepõe sua manifestação a qualquer outro ato de poder. Consequentemente, o modo
como se desempenha a prestação jurisdicional, sua efetividade e sua “justiça” (incluindo-se
aí o sentido de que as decisões do sistema devem ser logicamente compatíveis) são reflexo
do Estado que é, governo eleito pelo povo e construído sob a égide dos valores mais caros
a seus jurisdicionados.8É uma expressão de sua força e de sua legitimidade. O provimento
deve consolidar os valores morais, e o processo deve revelar os preceitos e garantias
contidos na Constituição e projetá-los sobre a realidade social.
Ainda seguindo este raciocínio, podemos ir além e considerar que a evolução
jurisprudencial e a repetição de julgados que conduzam a mutações constitucionais e legais
não são expressão da força do Estado, agindo através do juiz, mas são imposições do
próprio sentimento nacional.9
O atraso na adaptação do sistema processual se deve, em muito, ao “preconceito
consistente em considerar o processo como mero instrumento técnico e o direito processual
como ciência neutra em face das opções axiológicas do Estado”10
. Isto porque o modo
como se desenvolveu o estudo da matéria lembrou-nos sempre da instrumentalidade
8 “O Estado projetará sobre a sociedade uma imagem positiva ou negativa, conforme seja o desempenho,
capacidade e prestígio de seu aparelho judiciário, especialmente no que tange ao acatamento e cumprimento
das determinações dos magistrados” (grifo nosso). MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada...,ob.cit, p. 24.
Ainda neste sentido, podemos acrescentar DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do
processo, 15ª ed. Brasil: Malheiros, 2013, p. 46: “assim inserido nas estruturas estatais de exercício do poder,
o juiz é legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe suas pressões destinadas a
definir e precisar o sentido dos textos”, explorando o conceito de juiz autêntico trazido por Habscheid, de tal
sorte que o juiz faz as escolhas desejadas pela população, como instrumento verdadeiro de concretização do
Direito e de realização do que o homem comum entende por Justiça – para nós, principalmente em seu aspecto mais amplo: decisões logicamente compatíveis. 9 Expressão empregada por DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 48. 10 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 39.
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formalista pura do processo, que somente com o decorrer do tempo, através de autores
como Dinamarco, pôde ser revista11
. O contexto atual de acesso ao Judiciário, a noção de
jurisdição como serviço, conduzem-nos à necessidade de revisitar o ideário de que o
processo serve somente aos profissionais do foro, e foge ao conhecimento do homem
comum. Ora, a partir do momento em que passam a perpetuar injustiças claras, em virtude
do modo de operar-se o judiciário, afronta a crença do homem comum na Justiça e na
máquina Estatal posta à sua disposição.
O aspecto jurídico da coisa julgada diz respeito a propósitos relacionados tanto aos
sujeitos da lide quanto às funções do processo.
Em relação à primeira abordagem, a coisa julgada é o comando que incorpora o
bem da vida ao status jurídico do sujeito, dissolvendo a situação de incerteza em relação à
lide e ao direito discutido, possibilitando um reclame incisivo de realização deste direito no
mundo dos fatos, haja vista sua imutabilidade – é o que transporta a decisão para a
realidade fática. Ademais, num desdobramento garantístico do instituto, “(...) quer o
Estado evitar que uma pessoa seja reconduzida ao Pretório pelo mesmo motivo
precedente”12
, para consolidar definitivamente a situação jurídica dos jurisdicionados,
comprometendo-se a não submeter o indivíduo novamente à via crucis judicial.
Ressalta Cabral que, no contexto de Estado Democrático de Direito, a coisa julgada
atua como “expectativa de resultado ou de implementação de direitos”13
, relacionando-se à
tutela jurisdicional efetiva, porque inaugura o momento a partir do qual o indivíduo pode
usufruir do direito reconhecido pelo Estado, não estando mais sujeito a argumentações e
discussões em juízo. A coisa julgada emprestaria segurança ao gozo de bens reconhecidos
judicialmente, na expressão de Chiovenda.14
Tratando-se das funções do processo, a coisa julgada atua como mecanismo apto a
evitar decisões contraditórias sobre a mesma lide, como ensina Mancuso15
, operando em
favor da coerência sistêmica e do máximo aproveitamento da atuação jurisdicional, já que
11“Se houvesse a consciência arraigada da identidade ideológica entre processo e direito substancial, sentir-
se-ia mais rapidamente e de modo mais firme a necessidade de atualização do sistema processual”.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade...,ob. cit., p. 39. 12 Dizeres de MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 25. 13 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 56. 14 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, com anotações do Prof. Enrico Tullio
Liebman, 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 310. 15 MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 26.
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reduz os custos globais de litigância ao impedir sua reprodução em outros procedimentos,
salvaguardando “tempo e dinheiro” do Estado e dos particulares.
1.2. Coisa julgada: conceito e legislação pátria
A legislação brasileira a respeito do tema não adotou uma concepção uniforme,
ocasionando em intensa discussão doutrinária. Conceitua a LICC: “Art. 6, §3º. Chama-se
coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”
A concepção, de forte influência alemã, encabeçada por Hellwig16
, sustenta ser a
coisa julgada um efeito da decisão. A sentença não cria, somente declara direitos pré-
existentes ao processo, previstos no ordenamento jurídico. Toda sentença traria, por isso,
um conteúdo declaratório e a coisa julgada seria “eficácia da declaração”. Nada apaga o
que o juiz declarou, de modo que a coisa julgada seria uma força vinculante da declaração
da sentença, tornando-a imutável. Barbosa Moreira17
, em crítica pertinente, aponta que a
teoria deixa a desejar completude para a prática forense, já que não serve à estabilidade se
não abarcar também os conteúdos não declaratórios da sentença.
Liebman, contrariando este entendimento, considera a sentença publicada ato
jurídico perfeito, que produz naturalmente seus efeitos. Diferencia-se a eficácia natural da
sentença e imutabilidade que se adere a ela. A imutabilidade é um plus que se adere à
sentença, unindo-se aos seus efeitos (não se configurando, portanto, como um mero efeito)
para reforçá-los e qualificá-los.18
A eficácia natural da sentença, com essa nova qualidade,
fica intensificada e potencializada. Assim, a coisa julgada é uma qualidade que se adere
aos efeitos da decisão.
Liebman foi duramente criticado19
, pois não são os efeitos que se tornam imutáveis,
mas o conteúdo da decisão; é o ato judicial fixador da norma individual reguladora do caso
concreto que se torna imutável. Não é a eficácia da sentença que adquire a imutabilidade,
mas a própria sentença. Isto fica muito claro se atentarmos para o fato de que os efeitos são
16Sobre a tese de Hellwig, CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 70. 17 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 72. 18 Explica MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 25. 19 Doutrinadores nacionais como Barbosa Moreira e Antônio do Passo Cabral reconhecem o grande avanço
conceitual de Liebman ao mudar o foco sobre a coisa julgada: as teorias anteriores relacionavam a coisa
julgada ao próprio conteúdo da sentença, sua eficácia ou seus efeitos, ou seja, defendendo uma teoria conteudística. Liebman traz uma teoria adjetiva, porque relaciona a qualidade da decisão, e não seu conteúdo,
à coisa julgada. Neste sentido CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 75. Contudo, não
deixam de criticá-lo. O que não é surpresa, já que sua teoria foi elaborada em 1945.
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mutáveis e disponíveis por natureza: se condenado ao pagamento de quantia certa, com o
adimplemento da obrigação não sobrevive este efeito da sentença; uma sentença que
declare a certeza de relação jurídica pode ser surpreendida se a relação deixa de existir,
dissipando a certeza oficial, efeito da sentença declaratória. Em regra, com a satisfação do
comando decisório, exaurem-se os efeitos da sentença.
A redação do vigente CPC deixa dúvidas a respeito de qual teoria foi adotada:
“Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e
indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
Neste viés, Didier Júnior pugna pela adoção da teoria alemã, haja vista o legislador
definir a coisa julgada como eficácia, mas muitos processualistas brasileiros entendem em
outro sentido. Mancuso, por exemplo, ressalta a adoção do conceito liebmaniano de coisa
julgada pois na redação dada pelo legislador “(a coisa julgada) vem concebida como um
quid, um plus que se adere à sentença (...)”20
. A própria exposição de motivos, lavrada por
Buzaid, contraria a defesa de Didier Júnior: “O projeto tentou solucionar esses problemas,
perfilhando o conceito de coisa julgada elaborado por Liebman e seguido por vários
autores nacionais”21
.
Uma terceira teoria, apontada por Didier Júnior,22
refere-se à coisa julgada como
situação jurídica do conteúdo da decisão. A norma jurídica concreta, a parte dispositiva da
sentença, entendida como conteúdo da decisão, fica coberta pela imutabilidade. Este
posicionamento respeita a característica mutável dos efeitos, já que não tenta engessá-los.
A situação jurídica existente anterior ao processo judicial é então revista na sentença, que
trabalhará norma jurídica concreta adequada ao caso, amoldando o comando judicial a uma
nova situação jurídica, que deve ser preservada pelo ordenamento jurídico, e assim tornada
imutável e indiscutível.
Partimos para a conceituação da coisa julgada formal e material.23
A coisa julgada
formal é um fenômeno endoprocessual, porque consiste na imutabilidade da decisão dentro
20MANCUSO, Rodolfo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 25. 21Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, publicado em 02 de Agosto de 1972, Brasília.
Disponível em <http://www.ombadvocacia.com.br/acervo/CODIGOS/CODIGOPROCESSOCIVIL.PDF>
acessado em 03/07/2013. Fazem coro à adoção da teoria Liebmaniana pelo legislador brasileiro também José
Frederico Marques e Pedro Batista Martins. 22 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual
Civil – vol II: Teoria da Prova, Direito Probatório, Ações Probatórias, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Antecipação de Tutela. 8ª ed. [S.l.]: JusPodivm, 2013, p. 472. 23 Conceitua-se a coisa julgada formal como a imutabilidade do ato processual sentença, enquanto a coisa
julgada material é a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, relativamente às
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do processo em que foi proferida, em razão da irrecorribilidade da sentença. Atua como
preclusão máxima no processo, por consistir na perda da possibilidade de impugnar a
decisão no processo em que foi proferida. A coisa julgada material, por outro lado, é
fenômeno exoprocessual, pois impede a rediscussão da decisão no processo em que foi
proferida e em qualquer outro, ressalvados os motivos ensejadores da ação rescisória. A
imutabilidade neste caso vai para além do processo. A coisa julgada formal é pressuposto
lógico para a formação da coisa julgada material, porque impossível a formação desta a
despeito daquela.24
Como nos preocupamos com a decisão a respeito da questão prejudicial em outro
processo, trataremos neste trabalho sempre da coisa julgada material, que é a que nos
interessa, exatamente por ser a coisa julgada formal uma imutabilidade somente para
dentro do processo
Dinamarco traz à lume um ponto de vista interessante: a coisa julgada formal e a
material seriam não institutos distintos, mas sim dois aspectos da imutabilidade. A
diferença residiria apenas no objeto – veja-se, a coisa julgada formal, inerente a qualquer
sentença, é a imutabilidade de um comando que extingue somente o procedimento, é um
“ponto final” nos atos daquele processo; por outro lado, a coisa julgada material
representaria a invariabilidade do próprio direito material, pois que serviria à “firmeza das
relações jurídicas”25
, tornando imutável a situação subjetiva. Este entendimento parece
coadunar com a terceira teoria, festejada por Didier Júnior, de coisa julgada como situação
jurídica do conteúdo da decisão, e auxilia na análise a que este trabalho se propõe: a
“firmeza das relações jurídicas” não exigiria, igualmente, imutabilidade das questões
prejudiciais decididas?
1.3. Limites objetivos da coisa julgada
A questão referente aos limites objetivos da coisa julgada aponta quais elementos
da demanda se tornarão imutáveis. Sua definição representa a tentativa de conciliar dois
mesmas partes. Ver CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria...,ob. cit, p. 306. 24 LIEBMAN, Enrico. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, traduzido por Alfredo Buzaid e Benvindo Aires, notas de Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007,
p. 60. 25 Neste sentido, CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 60.
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valores caros a todos os sistemas jurídicos – o prestígio da justiça e a estabilização das
situações jurídicas, intimamente relacionados à paz social e à efetividade da prestação
jurisdicional, impondo que o decidido não pode ser posteriormente infirmado.
Savigny incluía na proteção da coisa julgada as questões prejudiciais, excluindo da
proteção da coisa julgada somente os elementos subjetivos contidos na sentença, e seu
raciocínio foi aceito no Brasil durante muito tempo, consagrado no CPC de 1939.26
A partir do CPC de 1973, acompanhando a tendência global ditada pela doutrina
alemã, a coisa julgada foi restringida à parte dispositiva da sentença. Assim, na concepção
atual o limite objetivo se identifica com o objeto do processo, que assume o papel de
resposta imediata ao pedido do autor, formulado na inicial.27
Fica excluída da disciplina da
coisa julgada a massa lógica construída para chegar à conclusão: os fatos analisados pelo
juiz, a resolução de questões de direito, preliminares e prejudiciais, tudo fica sujeito a novo
debate e nova decisão, se os jurisdicionados assim desejarem.
O sistema proposto pelo Novo CPC altera positivamente o cenário, ao tornar
indiscutíveis também as questões prejudiciais, nos termos e requisitos que serão expostos
ao longo deste trabalho.
Art. 484. A sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem
força de lei nos limites dos pedidos e das questões prejudiciais
expressamente decididas.
Art. 485. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da
parte dispositiva da sentença;
II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da
sentença.
Fenoll, num entendimento mais abrangente que o que pretendemos adotar neste
trabalho, trata da fundamentação ideológica por trás da problemática dos limites objetivos
da coisa julgada:
26 “Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões
decididas. Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”. 27“Na acepção dominante, os limites objetivos da coisa julgada são, em última análise, os limites colocados
pelas partes no pedido.” CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 88.
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(...) a determinação dos julgamentos que requeiram estabilidade,
para não desvirtuar a sentença, será a chave para definir que partes
da sentença se revestirão dos efeitos de coisa julgada. E
simplesmente serão todas as partes que precisem manter sua
estabilidade, para que a sentença não careça de fundamento. Desse
modo, uma citação de jurisprudência realizada para maior reforço
pode ser considerada perfeitamente prescindível. No entanto, a
fixação de um fato provado ou a declaração de propriedade sobre
um bem, por exemplo, formam parte do conjunto incindível de fato
e de direito que constituirá a base e sustentação de uma sentença, e
que deve, portanto, integrar a matéria que se revestirá dos efeitos
de coisa julgada.28
(grifo nosso)
Isto porque considera o autor espanhol que a necessidade de tornar imutável parte
da fundamentação será analisada caso a caso, o que é, ao nosso ver, ampliação excessiva.
Muito ao contrário da definição atual que restringe a coisa julgada à parte dispositiva da
sentença por razões utilitaristas (é mais fácil de se verificar e exclui qualquer discussão),
também não se pode deixar a problemática à mercê de uma indeterminação indesejada, já
que as partes terão que argumentar a respeito de a questão de fato ou de direito ser ou não
incindível ao comando da sentença. Numa visão um pouco menos ambiciosa, e mais
prática, pretende-se estender a coisa julgada à questão prejudicial, que é indiscutivelmente
importante para o provimento jurisdicional, já que o resultado da questão prejudicial é que
dita como será decidida a questão principal. Exclui-se, assim, a necessidade de se perquirir
se a questão é incindível ou não.
1.4. Teoria da tria eadem e a coisa julgada
As sentenças que julgam o mérito da causa, ficando portanto protegidas pelo manto
da coisa julgada material, vedam a cognição do juiz a respeito de causa com a qual haja as
três identidades, porque adotamos a teoria do tria eadem: se a nova demanda contempla as
mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo objeto, há identidade de demandas e a
28FENOLL, Jordi Nieva. A coisa julgada..., ob.cit., p. 251.
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posterior não poderá ser apreciada, haja vista a primeira litigância ter sido solucionada,
transitada em julgada e resolvido o mérito, configurando-se verdadeira repetição. Assim,
haverá extinção do novo processo, ditame do art. 267, CPC.
O problema que se impõe e deve ser solucionado é que demandas materialmente
idênticas, mas que não se enquadram na tripla identidade, não serão extintas. Veja: se A,
buscando sentença declaratória, ingressa em juízo contra B, para que se decida a existência
ou não de crédito em seu favor; se B comprova o pagamento, A terá seu pedido rejeitado.
Após o trânsito em julgado, se A propõe uma ação condenatória, em face de B, de
pagamento do débito, os pedidos formulados serão distintos, mas a relação jurídica
deduzida é a mesma. O novo processo deverá ser extinto por aplicação da teoria da
identidade da relação jurídica, em respeito à coisa julgada formada, impedindo nova
apreciação de uma questão já resolvida. Nas palavras de Freitas Câmara:
(...) se surgir um processo em que haja uma questão prejudicial que
já tenha sido objeto de resolução por sentença transitada em
julgado, tal questão não poderá ser discutida no novo processo,
cabendo ao juiz, tão somente, tomar o conteúdo da sentença
transitada em julgado como verdade. Assim, por exemplo, numa
‘ação de despejo’ não será possível discutir a existência ou
inexistência da locação, se uma sentença anterior, transitada em
julgado, declarou existente aquela relação jurídica.
Esta teoria é uma construção doutrinária e representa a influência das prejudiciais.
Perceba que Câmara demonstra a vinculação ao julgamento se a questão prejudicial
transitou em julgado. Nos termos da legislação atual, isto só será possível se a questão que
no segundo processo figura como prejudicial era questão principal no primeiro processo,
ou por meio de ação declaratória incidental requerida num primeiro processo, deixando em
aberto um importante instrumento consolidador da segurança jurídica. Ao nosso ver, a
adoção da identidade da relação jurídica é útil ao ordenamento jurídico e deveria ser
estendida: que o juiz possa determinar, juntamente com as partes, no curso do processo,
que certa questão prejudicial fará coisa julgada, sem que para isso se tenha que compor
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uma ação declaratória incidental, o que pode ser oportunamente feito no despacho
saneador.
2 CONCEITUAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DAS QUESTÕES
Definir o objeto da cognição é antes de tudo perguntar sobre o que incide a
atividade cognitiva do juiz, que pode ser definida, nas palavras de Watanabe:
Um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e
valorar as alegações e provas produzidas pelas partes, vale dizer, as
questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e
cujo resultado é o alicerce, o fundamento do iudicium, do
julgamento do objeto litigioso do processo.29
É, pois, uma técnica para apreciar e valorar o que consta nos autos para atingir o
provimento solicitado. É exatamente a cognição que permite a “adequação do processo às
necessidades do direito material”.30
A doutrina ainda não foi capaz de definir com precisão qual o objeto da cognição,
já que autores como Chiovenda postulam ser os pressupostos processuais e as condições da
ação; a doutrina dominante, encabeçada por Buzaid, Dinamarco e Watanabe, considera
serem os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito, enquanto Neves
aponta serem estes últimos, somados aos supostos processuais31
. Independentemente da
teoria adotada, são as questões que configuram o objeto da cognição judicial. Não
analisaremos todos os tipos de questão, mas somente as essenciais ao estudo.
Questão é termo que pode ser definido como ponto controverso, de fato ou de
direito, que demande pronunciamento judicial.32
A questão será objeto de cognição do
juízo, mas não necessariamente objeto de julgamento.
29 WATANABE, Kazuo. Cognição no Processo Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67. 30 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol I. 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011, p. 275. 31 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., p. 276. 32 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – vol I: Teoria geral do processo e processo de
conhecimento. 12ª ed. [S.l.]: Podivm, 2010, p. 305.
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Importante observar que as questões podem ser solucionadas com dois enfoques
distintos, adquirindo diferentes status para a resolução do processo. As questões resolvidas
incidenter tantum não ficam cobertas pela coisa julgada, exatamente por constituírem
passo necessário à resolução da lide, de sorte que são conhecidas, mas não decididas. O
vigente CPC enumera no art. 469 as questões que formam a fundamentação, mas não são
decididas: motivos, a verdade dos fatos e as questões prejudiciais.33
As questões decididas principaliter tantum são conhecidas e decididas, protegidas
então pela coisa julgada. A referência a que faz o art. 468 do CPC34
elucida que a decisão
abarca as questões decididas e os “limites da lide”, que correspondem aos contornos do
pedido definidos pelas partes, por força do princípio dispositivo.
Quanto à classificação das questões, primeiramente há que tratar das questões de
fato e de direito. Será questão de fato aquela relacionada aos pressupostos fáticos da
hipótese de incidência da norma, ligados às características do suporte fático concreto;
enquanto as questões de direito se relacionam a norma, fato jurídico ou efeito jurídico.35
Se há relação de subordinação entre as questões, a questão subordinante é prévia.
Questões prévias podem ser prejudiciais ou preliminares. O conceito de prejudicial e
preliminar é relativo: uma questão não é prejudicial/preliminar per se, mas
prejudicial/preliminar em relação a outra.
Há que se observar, para diferenciar prejudiciais e preliminares, a influência que
terão sobre a questão vinculada. A questão preliminar é aquela cuja solução cria ou remove
obstáculo à apreciação da outra36
, então o resultado da preliminar dirá se será apreciada a
questão vinculada, ou não. Exemplificando, na ação rescisória o pedido de rescisão é
preliminar ao pedido de rejulgamento da causa. Por outro lado, a questão prejudicial influi
no modo como a segunda questão será apreciada, direcionando a solução desta. É o
antecedente lógico e necessário da prejudicada, e que vincula a solução deste, podendo ser
33 Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. 34 Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das
questões decididas. 35 Ensina DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – vol I: Teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 12ª ed. [S.l.]: Podivm, 2010, p. 310. Esta classificação será importante mais adiante para que se possa definir as questões prejudiciais suscetíveis de fazer coisa julgada, e a razões para que tal evento
ocorra. 36 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro, 1967, p. 75.
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objeto de demanda autônoma. A solução da questão influencia o resultado do objeto do
processo. Exemplo claro é o de ação de alimentos, em que A alega ser filho de B, e B nega
relação de parentesco. Primeiramente, o juiz deve decidir se A é filho de B (questão
prejudicial), o que determinará o julgamento do pedido.
A prejudicialidade é um fenômeno lógico evidenciado pela influência que certa
decisão exerce sobre outra. O raciocínio do juiz compõe o elemento lógico da sentença,
que se relaciona de forma incindível ao elemento imperativo da decisão, qual seja, o
provimento previsto na parte dispositiva.37
Assim relacionados os motivos e a norma
individual reguladora do caso concreto, alguns motivos são a verdadeira razão de decidir,
de tal sorte que retirando-a, a decisão já não faria qualquer sentido – porque as prejudiciais,
em verdade, compõem o conteúdo da decisão.
Nas palavras de Dinamarco: “Há prejudicialidade lógica entre duas causas,
questões ou pontos quando a coerência exige que o pronunciamento sobre um deles seja
tomado como precedente para o pronunciamento sobre o outro”.38
O problema mais evidente neste caso é que, pela redação do atual CPC, a questão
prejudicial não consiste em objeto litigioso, e o juiz não a julga, mas somente a conhece,
ficando desamparada pela imutabilidade da coisa julgada. Isto porque é conhecida
incidenter tantum, não principaliter, o que dá azo a incongruência sistêmica, já que estas
questões, como visto, podem ser objeto de demanda autônoma e não ocorre, neste caso, a
exceção de coisa julgada.
As questões de mérito, lato sensu, dividem-se em: questões de mérito strictu sensu,
que configuram fundamento da causa – são as defesas do réu, exame da questão prejudicial
e exame da causa de pedir; e a questão de mérito propriamente dita, que é a questão
principal, objeto da lide. Nas palavras de Didier Júnior, “Não podem ser confundidas uma
e outra, pois somente a decisão acerca destas (questões principais) é que pode ficar imune
pela coisa julgada.”39
Uma leitura mais profunda desta conceituação demonstra claramente
a fragilidade do sistema atual, que se obriga à análise das prejudiciais – já que não pode se
furtar a decidir a causa (princípio da inafastabilidade da jurisdição) e por ser impossível
julgar o litígio sem examiná-las e decidi-las – mas inutiliza seus próprios esforços ao
37 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade no processo civil. 2006. 257f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito do Largo São Francisco, São Paulo, 2006, p. 5. 38 DINAMARCO, Candido Rangel. Intervenção de terceiros, 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 84. 39 DIDIER JR, Fredie. Curso de direito...¸ob. cit., p. 315.
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permitir rediscuti-las em novo processo, desde que seja posta como questão prejudicial ao
mérito ou questão principal.
2.1. Questão prejudicial: caracterização e tipologia
Em minuciosa análise, o trabalho de Leite40
nos permite apontar as características
essenciais à configuração da questão prejudicial, primeiro passo para delimitarmos
propriamente a matéria.
Inicialmente, antecedência lógica. Não é simplesmente uma antecedência
cronológica, que relaciona as questões com um vínculo de mera coordenação, pois uma
solução não teria o condão de influenciar a decisão a ser dada à outra; o antecedente lógico
liga-se ao consequente por um vínculo de condicionamento. No exemplo de Barbosa
Moreira41
, não há sentido em se apreciar o recurso antes de responder, afirmativamente, à
indagação sobre a tempestividade deste.
Pergunta-se então: se vários caminhos lógicos conduzem à mesma conclusão, ainda
será prejudicial a questão que não precisou ser enfrentada pelo juiz? A doutrina aponta que
só será questão prejudicial aquela que for caminho necessário para solução da controvérsia.
Se a dependência da questão é simplesmente possível, não é uma verdadeira prejudicial.42
Contudo, a verificação desta característica não é tarefa fácil, pois, como aponta a mesma
autora, se o réu vier a apresentar duas defesas aptas a eximi-lo de certa obrigação, como a
nulidade de contrato por ilicitude do objeto e a incapacidade da parte, teremos prejudiciais
concorrentes – cada uma sozinha é apta a influenciar a decisão e elas se excluem, porque o
acolhimento de qualquer uma das duas exclui a apreciação da outra, por serem alternativas.
Não parece certo entender que nenhuma das duas seja questão prejudicial porque não
sejam necessárias, haja vista que a essência do conceito está presente. Assim, “(...) a
adoção do requisito da necessariedade para definição do fenômeno da prejudicialidade (...)
acabaria por trazer mais incerteza que precisão ao raciocínio.”43
Isto porque, nestes termos,
ter-se-ia que admitir uma série de questões, no curso da lide, que fossem possivelmente
prejudiciais, e só poderia ser verificada a prejudicialidade em ocasião da sentença,
40 LEITE, Clarisse Frechiani Lara Leite. A prejudicialidade..., ob. cit. 41 MOREIRA, Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., 76. 42 TORNAGHI, Helio. Instituições de processo penal, v. II, 1ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 365-366
apud LEITE, Clarisse Frechiani. A prejudicialidade..., ob. cit, p. 32. 43 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 35.
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momento único e final em que se analisa o mérito, de sorte que não seria possível
determinar antes dela o que seria ou não levado em consideração a título de
necessariedade. Visto isso, prejudicial é todo antecedente lógico da decisão, analisado no
momento de seu surgimento no processo, (e não no momento de sua decisão), procedendo-
se ao exame da prejudicialidade desde o aparecimento da questão no processo.
Não é também a prejudicialidade puramente uma prioridade entre juízos, mas uma
vinculação. “O pré juízo é um juízo judicial que vincula um juízo posterior. A
prejudicialidade é essa relação que se estabelece entre os juízos e que, portanto, tem sede
no processo, ainda que determinada em grande medida por normas de direito material.”44
Pode ocorrer o vínculo entre juízos eminentemente processuais, como por exemplo a
questão atinente à prevaricação do juiz, que condiciona o teor da decisão na ação
rescisória. A prejudicialidade também se liga às relações de direito material, quando
influencia a decisão de mérito. Pode-se incluir a prejudicialidade no conceito de institutos
bifrontes45
, haja vista estar profundamente arraigada nas relações de direito material, de
onde advém a vinculação entre situações e relações jurídicas, mas sendo ela mesmo uma
relação entre juízos judiciais.
Discute-se a respeito do aspecto jurídico da prejudicialidade: se aplica-se o critério
da autonomia ou o critério subsuntivo. A corrente da autonomia, representada
primeiramente por Böhmer, prega que só há questão prejudicial se esta for apta a constituir
objeto de um processo independente. O autor considera que tanto pretensões, relações
jurídicas e direitos podem ser objeto de processo autônomo. Em relação a fatos jurídicos,
só existem em função de relações jurídicas e direitos, por isso não poderiam ser objeto de
demanda autônoma.46
Por este conceito, não é prejudicial a controvérsia a respeito de
ocorrência de certo fato jurídico. Alguns autonomistas chegaram a exigir uma efetiva
decisão em separado para que se configurasse a prejudicial, o que cinde a decisão e não
serve aos propósitos deste trabalho, já que limitaria o conceito a uma questão
procedimental: o que o ordenamento jurídico determinar que precise ser autuado em
apartado, será prejudicial. Este conceito vai na contramão até da atual regulação legislativa
44 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 51. 45 Construção de Dinamarco: são influenciados por normas e princípios de direito material, mas não perdem
sua natureza processual. É o caso da ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada e responsabilidade patrimonial. 46 Clarisse Frechiani Lara Leite examina minuciosamente a discussão acerca do aspecto jurídico da
prejudicialidade em sua obra, outrora citada.
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da matéria: a declaratória incidental se desenvolve dentro do processo principal e é
decidida na mesma sentença, objetivando economizar atos processuais e unificar a
demanda. Este critério demanda que se considerem prejudiciais somente as questões que o
ordenamento jurídico exija que sejam autuados em apartado.
Menestrina, por outro lado, defende a posição de que deve ser igual a natureza dos
juízos: a atividade referente à prejudicial deve ser da mesma natureza do juízo final, ou
seja, atividade de subsunção47
. Assim, tanto as pretensões, relações jurídicas e direitos,
mas também fatos jurídicos são submetidos a uma atividade de subsunção desenvolvida
pelo julgador, de modo que todos eles serão considerados prejudiciais, apesar de fatos
jurídicos não poderem ser objeto de demanda autônoma. Assim, serão prejudiciais
jurídicas os juízos subsuntivos que influenciem na decisão final do processo.
“A caracterização jurídica da prejudicialidade, mais do que atender à necessidade
de fixação de uma base para a disciplina procedimental da suspensão do processo, serve à
identificação da extensão objetiva da coisa julgada.”48
. Barbosa Moreira adota critério
semelhante a Menestrina, expandindo o conceito para abarcar também pressupostos
processuais e condições da ação, por exemplo. Quaisquer questões advindas de atividade
subsuntiva que exerçam influência condicionante no conteúdo de outras questões serão
prejudiciais. O critério da natureza subsuntiva se traduz, para ele, na prejudicialidade de
questões relativas à valoração jurídica de fatos, excluídas então somente questões que
nunca possam dar azo a pronunciamentos acobertados pela coisa julgada material, que vem
a ser as questões unicamente fáticas e as unicamente jurídicas. Toda aquela sobre a qual
cabe pronunciamento jurisdicional apto ao trânsito em julgado deve ser entendido como
prejudicial jurídica.
A doutrina majoritária49
filia-se à corrente que aponta a autonomia, e não a
atividade de subsunção, como requisito à prejudicialidade jurídica. Ademais, a definição de
Barbosa Moreira se mostra extensa demais para ser adotada para este trabalho. No sentido
em que queremos abordar, não se configura imprescindível à justiça da decisão que sejam
cobertas pela imutabilidade as condições da ação ou as questões processuais. Isto porque
não se relacionam propriamente com o conteúdo da decisão de mérito e com a relação
47 Nos moldes tradicionais: premissa maior (norma), aplicada à premissa menor (circunstância de fato),
donde se extrai a consequência jurídica. 48 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit , p. 58. 49 Trabalhos de Ada Pellegrini Grinouver, Didier Júnior e Alexandre Freitas Câmara partem do pressuposto
de que o requisito é pacificado, de modo que nem apresentam a concepção de Barbosa Moreira.
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jurídica discutida. Sua verificação é mais objetiva e a discussão a seu respeito se aproxima
muito mais de questões de direito puras.50
Assim, passemos para a classificação de Chiovenda das questões prejudiciais51
.
Fatos jurídicos serão questões prejudiciais somente quando puderem ser objeto principal
de declaração, como por exemplo a declaração de falsidade de certo documento. Exclui-se,
dentre os fatos jurídicos, aqueles referentes aos atributos de pessoas, coisas ou atos, já que
não poderiam ser objeto de demanda autônoma (como referente à idade de certa pessoa, se
é homem ou mulher, se a coisa é divisível ou imóvel, se o ato é comercial ou civil). Por
outro lado, as questões relativas a estado jurídico, ou seja, ligado à condição jurídica do
sujeito haja vista certa relação jurídica, como o estado de cidadania, família, matrimônio,
serão prejudiciais. Deste modo, uma vez julgada a filiação, não se poderá rediscuti-la em
novo processo, pela letra do Novo CPC, por ser prejudicial relativa ao estado de família.
Será também prejudicial a questão a respeito de existência de uma relação jurídica
complexa, quando se alega direito oriundo dessa relação, como em caso de um fato
ensejador de reparação por dano moral e material. Complementamos a teoria de
Chiovenda, estendendo o postulado também para relações jurídicas simples ou não
complexas52
.Será ainda questão prejudicial a questão sobre a existência de relação jurídica
que envolva obrigações com quotas periódicas (é um tipo de relação complexa). Isto
porque cada prestação pode ser objeto de demanda e processo autônomos, e não se trata de
caso de litispendência porque o pedido é distinto. Contudo, não faz sentido que se discuta a
cada processo a relação jurídica, o que justifica a questão prejudicial fazer coisa julgada.
50 Este entendimento parece coadunar com a tratativa dispensada pelo Código de Processo Civil às questões
processuais. Veja, mesmo uma sentença final que pugne pela ilegitimidade ad causam, transitada em julgado,
estará coberta somente pela coisa julgada formal, por ser questão puramente processual. “Ora, significa então que a mesma questão pode ser levada novamente ao Judiciário, desde que em outro procedimento? A
doutrina brasileira majoritária responde afirmativamente (...)”. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa
julgada..., ob. cit., p. 260. Com mais razão serem conhecidas somente incidentalmente em caso de se
apresentarem como questão prejudicial. 51 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito..., ob. cit, vol I, p. 468. 52 Neste ponto Chiovenda distingue as relações jurídicas que se esgotam num único direito, como empréstimo
em dinheiro, ocasião em que aponta que a existência da relação jurídica consiste no próprio objeto da
obrigação, de modo que esta questão (da existência) fica protegida pela coisa julgada. Quanto a relações
jurídicas complexas, de que derivam múltiplos direitos e obrigações, a existência da relação jurídica
configura causa de pedir, de modo que será questão prejudicial, passível de ser rediscutida em processo
posterior. Chiovenda parte do princípio de que “questões prejudiciais são decididas em regra sem efeitos de coisa julgada”, daí o modo como as analisa. Não partilhamos da mesma crença de modo que incluímos a
questão sobre a existência de relação jurídica “simples”, que se esgota num único direito, no rol das questões
prejudiciais. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito..., ob. cit., vol I, p. 474.
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Questão sobre a existência de uma relação jurídica condição da principal, como
em caso de sublocação, que é relação dependente da de locação, será questão prejudicial.
Será também aquela relativa à existência de uma relação jurídica incompatível com a
principal, que é o caso em que, citado para o pagamento de um aluguel, o réu não só nega
a locação, como afirma-se como proprietário em sede de reconvenção. Entendemos que
nesta hipótese temos novo pedido, que redesenha os limites da lide, não se configurando
pois como questão prejudicial.
Visto isto, podemos dividir as prejudiciais em cinco tipos de questões: a) referentes
a fatos jurídicos, desde que não se refiram a atributos de pessoas, coisas e atos; b)
referentes a estado jurídico; c) referentes à existência de relações simples ou complexas; d)
referentes à existência de relações que ensejam obrigações com quotas periódicas;
e)existência de uma relação jurídica condição da principal.
2.2.Questão prejudicial e legislação pátria
No Brasil, o instituto foi tratado de maneira heterogênea ao longo do tempo.
Anteriormente ao CPC de 1939, grande parte da doutrina filiava-se a um conceito de coisa
julgada que abrangesse as questões prejudiciais, numa inclinação clara à adoção da teoria
de Savigny, “Teoria da Ficção da Verdade”, segundo a qual a coisa julgada seria uma
ficção criada pelo direito, ou seja, admite-se que no mundo dos fatos ocorra algo que não
corresponda à figura jurídica eleita. A crítica mais evidente é relaciona-la com a verdade,
pois o ponto de partida é equivocado: a coisa julgada não imuniza a sentença porque seu
conteúdo é a verdade dos fatos; fica blindada porque o Estado assim o determina através de
uma norma externa à própria sentença.53
A redação do Código de Processo Civil de 1939:
Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá
força de lei nos limites das questões decididas.
Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que
constituam premissa necessária da conclusão.
53 Cabral, Antonio do Passo. Coisa Julgada..., ob. cit., p. 65.
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Como a doutrina européia, por outro lado, passou a rechaçar a teoria, doutrinadores
nacionais como Barbosa Moreira e Adroaldo Furtado Fabrício buscaram sintonizar a
interpretação do dispositivo com o novo entendimento. Além disso, a discussão sobre o
que seria “premissa necessária” era infértil e a indefinição do termo, obviamente,
acarretava muitos problemas.
O Código de Processo Civil de 1973 optou explicitamente pela tese restritiva,
limitando a coisa julgada ao dispositivo da sentença, excluindo do véu da imutabilidade as
questões prejudiciais. Vigorava a fórmula carnellutiana:54
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem
força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da
parte dispositiva da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da
sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente
no processo.
2.3. Questões prejudiciais e o Novo CPC
O Projeto do Novo Código de Processo Civil, por outro lado, altera a solução atual:
54 Perceba-se contudo que tanto Carnelutti quanto Savigny eram adeptos do que Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 63, chama de “Teorias Materiais da coisa julgada”, voltada para uma discussão
muito recorrente em Direito Comparado, se a coisa julgada seria um fenômeno material ou processual. As
teorias materiais ligam diretamente a coisa julgada ao direito material, de modo que com a coisa julgada
haveria uma “novação” na relação jurídica, pois as partes seriam a partir de então regidas por uma nova
norma material de comportamento. As teorias processuais, por outro lado, acreditam numa conexão apenas
indireta, há “imunização do direito por meio de um vínculo processual dos juízes de processos futuros,
proibindo-os de decidir novamente sobre o tema”. Assim, a vinculação ocasionada pela coisa julgada, para a
teoria processual, não advém da criação de uma norma que reflete uma presunção de verdade (Teoria de
Ulpiano), ou uma ficção dela (Teoria de Savigny), mas porque regras processuais de Direito vinculam os
sujeitos a um resultado obtido no processo, de sorte que a rediscussão é uma vedação processual com
implicações para o Direito material. As variantes da teoria processual são as mais aceitas até hoje, encabeçadas por Hellwig (Coisa julgada como eficácia da declaração), Liebman (coisa julgada como
qualidade da sentença), abarcando inclusive a doutrina mais aplaudida atualmente, de “coisa julgada como
situação jurídica nova”.
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Art. 20. Se no curso do processo, se tornar litigiosa relação
jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento
da lide, o juiz, assegurado o contraditório, a declarará na sentença,
com força de coisa julgada
Art. 490. A sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem
força de lei nos limites dos pedidos e das questões prejudiciais
expressamente decididas.55
Como visto, as questões prejudiciais não se restringem àquelas referentes à
existência de relação jurídica, abarcando também os fatos jurídicos¸ desde que pudessem
ser objeto de demanda autônoma, e estado jurídico. Assim, a redação do art. 20 elucida os
casos em que a relação jurídica será declarada existente ou não, imutavelmente, mas não
restringe ao campo desta espécie de questão prejudicial, pois o art. 490 se refere à todas as
prejudiciais, incluindo as que dizem respeito a fatos jurídicos e estado jurídico.
Deve-se ressaltar que o art. 470 do CPC de 1973 previa requisitos à questão
prejudicial poder ser objeto de coisa julgada – deve a parte requerer, o juiz ser competente
em razão da matéria e a questão ser pressuposto necessário à lide –,que não foram
reproduzidos no novo CPC, mas alterados, de modo que as hipóteses em que a questão
prejudicial poderão de fato fazer coisa julgada serão delineados no decorrer deste trabalho,
tanto em relação à competência, rito procedimental e definindo-se o próprio conceito de
questão prejudicial.
A redação final dos dispositivos referentes à matéria no novo CPC parecem
responder às dúvidas doutrinárias e estabelecer uma série de requisitos satisfatórios à
aplicação devida do instituto da coisa julgada. Vejamos:
Art. 513. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que
torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a
recurso.
Art. 514. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem
força de lei nos limites da questão principal expressamente
decidida.
55 Disponível em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8DDDDA73D646B7314844F2
BD00F00031.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010> acessado em 06/08/2013
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§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução da questão
prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se
aplicando no caso de revelia;
III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa
para resolvê-la como questão principal.
§ 2ºA hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver
restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o
aprofundamento da análise da questão prejudicial.56
Primeiramente, percebe-se que a redação quanto à definição de coisa julgada foi
alterada para caracterizá-la como autoridade, numa tentativa de neutralizar as discussões a
respeito de sua natureza, adotando um conceito intermediário e destituído de
superdefinições jurídicas, privilegiando o sentido mais amplo da coisa julgada.
Adota claramente a coisa julgada a respeito das prejudiciais, mas estabelece
requisitos. O primeiro, se dela depender o julgamento do mérito, é característica ínsita ao
próprio conceito de prejudicialidade, como visto, de modo que só reforça a idéia, não
restringe dentro das prejudiciais aquelas de que dependa o mérito. Todas as prejudiciais
apontadas neste trabalho têm o condão de afetar o conteúdo da decisão de mérito. Quanto
ao contraditório, foi importante afirmar a impossibilidade de formar coisa julgada se
decidido à revelia, respeitando a imposição determinada também para a ação declaratória
incidental. Ressalta também o imperativo de ter o juiz competência absoluta para julgá-la,
e que não haja restrição à cognição, de modo que o procedimento seja sempre aquele
referente à cognição exauriente.
56 Disponível em <http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2013/07/Substitutivo-ADOTADO-
versao-FINAL.pdf> acessado dia 08/08/2013.
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3 SEGURANÇA JURÍDICA E LEGITIMIDADE
3.1. Segurança Jurídica
A segurança jurídica é consagrada como um valor na Constituição da República, no
art. 5º, caput, ladeada pela igualdade e liberdade. Foi incorporada também a dispositivos
como “art. 5º, II, CF. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de
lei.”, expressa também na garantia de devido processo legal (art. 5º, LIV) e na proteção do
direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (art. 5º, XXXVI).
Alguns a relacionam ao princípio da dignidade da pessoa humana, porque a
segurança é imprescindível à realização plena do indivíduo. No cenário atual, mesmo que
não esteja expressamente previsto, este valor é amplamente aplicado por entender-se ser
uma derivação da cláusula do Estado de Direito.57
Isto significa que os parâmetros atuais de Estado de Direito são de vínculo de
coordenação e cooperação, de incitação de condutas construtoras, socialmente úteis.
Transpondo para o Direito Processual Civil, o Estado deixa de inquirir as partes, ou de
administrar a discussão passivamente, e passa a construir, junto com elas, a verdade do
processo e uma decisão que seja útil para as partes e para os objetivos a que a máquina
estatal se presta, como os de dirimir conflitos com justiça e completude. Uma decisão
incompleta ou discutível não serve como base a um ordenamento jurídico consolidador de
direitos. “O que eterniza a litigiosidade é a descrença na justiça da decisão e a facilidade de
prolongá-la ou renová-la sem motivos consistentes e sem riscos”.58
Ensina Cabral59
que a continuidade jurídica, relacionada ao Estado de Direito,
insere o princípio da segurança jurídica na ótica de segurança-continuidade. A
continuidade atuaria como um pêndulo entre o estatismo e a alterabilidade. Isto significa
que a alteração de posições jurídicas estáveis só se justifica se houver uma ruptura das
circunstâncias. Este conceito pode ser aplicado em relação à política, à atividade
57 Esta cláusula revela estruturas estatais guiadas pelo ideário de um poder público definido e controlado
pelos valores consagrados na Constituição e pelos valores fundamentais, composto por normas que sejam
materialmente e formalmente realizadoras de segurança. Ver Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada...,
ob. cit., p. 284. 58 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil – vol I: Introdução ao Direito Processual Civil. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 301. 59 CABRAL, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 289.
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jurisdicional, à interpretação de leis. Isto porque os doutrinadores modernos60
visualizam
que o ordenamento jurídico como um todo e sua atuação precisa ser flexível no sentido de
que os institutos jurídicos não precisem ser desconstruídos a cada momento, a cada
variação no mundo dos fatos. O direito precisa ser adaptável para acompanhar a realidade e
não destoar dela.
A continuidade jurídica pode ser dividida em previsibilidade e calculabilidade. A
continuidade, como se propõe a construir uma estabilidade equilibrada dos elementos
normativos, possibilita o “cálculo” do agir do sujeito, de modo que a conduta humana
possa ser mais coerente com os objetivos da sociedade, consolidadora das normas e dos
valores éticos e morais desejados por ela. A confiabilidade das normas permite que se faça
prognoses seguras quanto à sua aplicação prática, contribuindo para o desenvolvimento da
segurança nas relações interssubjetivas.
A confiabilidade geralmente é relacionada à produção normativa. Mas veja, se o
juízo produz norma jurídica individual, estas precisam também ser confiáveis, de tal sorte
que o sujeito possa orientar suas atitudes por uma base segura que lhe indique qual sua
situação jurídica (dada pela coisa julgada), como o ordenamento jurídico reage diante de
suas circunstâncias e o que decide a respeito da causa que lhe é posta a julgar. Daí se infere
que o sujeito precisa acreditar que, a mesma questão, posta perante um outro juiz, por um
mandamento de eficiência do sistema jurídico, coerência e lógica, seria analisada da
mesma forma. Quer dizer, que num outro juízo, amanhã, se trazidas as mesmas provas,
feitas as mesmas alegações, deve o processo atingir um mesmo resultado.
Sabemos que juízes são, antes de tudo, humanos, e que o Direito é variável e
flexível exatamente por procurar corrigir seus próprios erros e acompanhar a evolução
social. Todavia, um conteúdo mínimo precisa ser estável para os sujeitos, imodificável.
Isto porque afetar sua confiabilidade na norma jurídica individual produzida num ponto tão
60 Entendemos que o próprio neoprocessualismo demande mais manutenção das situações jurídicas e das
posições e postulados jurídicos adotados pelo sistema legal que a ruptura e a reconstrução de conceitos.
Atualmente o que se percebe é que os doutrinadores pretendem amoldar a letra da lei às necessidades sociais,
e não reescrevê-la constantemente, até porque tendemos a nos apegar ao extremo oposto. O direito processual
vivencia uma fase de aprimoramento, e não mais de reconstrução. Neste sentido, podemos transpor esta
posição para a tratativa das demandas: é perigoso analisar somente “partes estanques” de relações jurídicas
porque postas deste modo em juízo, já que uma nova demanda intimamente ligada ao pedido transitado em
julgado romperá com este primeiro pronunciamento judicial, passando por cima de sua autoridade e descontinuando a norma individual ditada pelo Estado. Certamente é importante observar o princípio da
demanda e respeitá-lo, mas é importante também que a divisão da questão ligada àquela situação jurídica
particular seja razoável, para que a atuação do Estado possa ser coerente e contínua.
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essencial à causa quanto à questão prejudicial, na verdade, desconstrói esta confiança. Não
há justificativa para permitir que parte tão importante da decisão seja contradita por outra;
teremos somente incoerência e desmoralização do Judiciário. Para assegurar que isto não
ocorra, deve o sistema jurídico se proteger e tornar irretocáveis os pontos fundantes da
decisão.
De fato, o conceito de coerência pressupõe uma coesão interna no
sistema que mostre que existe uma longa cadeia de elementos a
sustentar um ponto do ordenamento. Se utilizarmos este conceito
para um sistema jurídico de estabilidades, veremos que uma
posição jurídica será estável se diversos outros pontos do sistema
forem consonantes (i.e., não contraditórios) com aquela
estabilidade.(CABRAL, 2013, p. 292)
Exatamente reconhecendo, pois, que o Direito não é uma ciência exata, o sistema
precisa se precaver e estabelecer mecanismos que vedem incongruências. É preciso extrair
da mentalidade do homem médio que deve contar com a sorte e com os bons ventos,
porque “a justiça é uma loteria”. Nos pontos em que se puder vedar esta atuação, isto
certamente deverá ser feito. Assim, precisamos que decisões a respeito de um mesmo fato,
que por razões processuais possam ser cindidas (por ensejar dois pedidos distintos, por
exemplo), sejam coerentes, complementares, interligadas. A extensão dos limites objetivos
da coisa julgada tem papel importante a este respeito. Não se deve estendê-la demais, pois
as partes teriam que atuar em contraditório e defender-se a respeito de qualquer alegação, e
a decisão ficaria irremediavelmente imutável. Por outro lado, não se pode deixar ao arbítrio
de revisão toda e qualquer questão discutida judicialmente, ainda que não tenha sido alvo
de pedido.
Quanto à durabilidade ou permanência, outra característica da continuidade
jurídica, deve haver garantia de realização das posições jurídicas estáveis61
; ou seja, além
de as decisões serem executáveis, é preciso que as normas não possam ser facilmente
alteradas, incluídas aí, no nosso entendimento, as normas individuais criadas em sentença.
O direito produzido precisa ser constante, assim também as normas produzidas pela
61 Expressão de CABRAL, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 294.
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atividade jurisdicional. Assim como não se admitem leis contraditórias, porque precisam
ser compatibilizadas, este raciocínio deve ser transposto para a normativa individual criada
pela sentença.
3.2. Legitimidade
Muito se fala a respeito da legitimidade da motivação da sentença. Neste sentido, a
motivação atua como um mecanismo de controle e também de legitimação.
A controlabilidade se expressa numa exigência de modo de ser do emprego que os
órgãos estatais fazem de seu poder, e advém de uma noção mais geral de controlabilidade
que é inerente à noção moderna de Estado de direito. A ideologia democrática de
jurisdição demanda que a motivação seja uma garantia de controle externo e difuso, a
respeito da justiça e legalidade do provimento jurisdicional. Assim, o juiz demonstra que
construiu um raciocínio lógico-racional, de acordo com as normas de direito, que conduz
àquela decisão final, na parte dispositiva. As partes poderão recorrer da decisão se
verificarem que a lógica não se perfaz se há violação a norma jurídica, e nesta última
hipótese teremos um controle de legalidade.
A motivação se traduz também num controle de legitimidade. A legitimação precisa
estar contida nas razões de decidir pois os juízes não são eleitos, de tal sorte que por meio
da demonstração do raciocínio que o levou à conclusão do pleito, comprova que foi fiel aos
valores éticos e morais que se pretende assegurar através do Direito, atuando também
como mecanismo de convencimento das partes e da sociedade – precisa provar que sua
decisão é boa, justa, de acordo com o Direito, e por isto deve ser seguida. A coerção pura
nem sempre é capaz de garantir que o direito consagrado se efetive, e deve estar
acompanhada de razões lógicas, uma cadeia de premissas que conduza àquele resultado.
Uma decisão formalmente executável mas ilegítima não se sustenta porque não aplaca a
litigiosidade. Num sentido mais amplo, a produção judicial só será legítima se apesar da
divisão estanque de um mesmo fato, por razões de competência, procedimento ou
oportunidade, em vários processos distintos, a normatização criada for coesa e apontar num
sentido único, e o melhor modo de fazê-lo é proteger o núcleo da decisão, incluindo as
questões prejudiciais, que contém constatações e declarações intimamente ligadas ao
resultado da lide. Assim, a pura coercitividade não pode garantir a coexistência de decisões
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contraditórias, porque serão, numa visão sistemática, ilegítimas exatamente pela
contraditoriedade. A litigiosidade só poderá ser verdadeiramente aplacada se as decisões
seguirem uma lógica argumentativa coesa e “se respeitarem”. O próprio mandamento de
autoridade do ordenamento jurídico determina que o valor de justiça ultrapasse o âmbito da
decisão e seja uma medida de coerência com o sistema normativo como um todo e com as
decisões com que se relacione. Destitui-se de autoridade e do valor de legitimidade os
pronunciamentos que se permita serem excludentes.
Entendemos também que a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais atua
como medida de controle num outro viés, distinto da controlabilidade da motivação
judicial. A extensão da coisa julgada se revela como um controle de coesão e
complementariedade no sistema jurídico como um todo, porque garante que a decisão
criada, norma jurídica individual, seja compatível com outras decisões judiciais com que se
relacione diretamente. Isto porque as normas gerais e abstratas tem seu próprio modo de
excluir-se, e sua variação se justifica pela necessidade de adaptar-se à nova realidade fática
e aos novos entendimentos doutrinários, num controle de legalidade e de legitimidade,
restrito apenas por normas relativas à forma de alteração e respeito à substância trazida
pela Constituição Federal. A norma individual criada em sentença só é controlada por
acórdão de tribunal que a substitua, sentença do juiz a quo que a complemente ou em
havendo as razões para ajuizamento de ação rescisória. Estes mecanismos de revisão,
contudo, não visam excluir decisões que coexistam mas sejam contraditórias. E por uma
questão de lógica e legitimidade, não poderão coexistir. Como não se pode revogar decisão
judicial, haverá que se fazer o controle de outra maneira, qual seja: a proibição de
reanalisar as questões prejudiciais, criando um vínculo de unicidade entre as decisões
judiciais que perpassem aquele antecedente lógico.
A motivação se revela ainda por uma necessidade de justificação do ato estatal. Há
dois níveis de justificação: interna e externa. A justificação interna é aquela inferida das
próprias premissas ditas na decisão; enquanto a externa depende de critérios valorativos
indefiníveis: neste aspecto, a motivação é justificada na medida em que os valores em que
assenta são reconhecidos como próprios por quem efetua o seu controle. A primeira
verifica se é racional, a validade e a correção; a segunda avalia se as escolhas feitas pelo
juiz correspondem às expectativas e finalidades do observador. Mais importante, o próprio
conteúdo da motivação varia de acordo com quem se considera seu destinatário: as partes,
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a classe dos juristas ou a opinião pública em geral. Quanto às partes, o foco vai para a
coerência em relação ao caso concreto apresentado; quanto aos juristas, o foco é na
autoridade do decidido e seu status no plano jurídico; e quanto à opinião pública, a
motivação se liga aos valores ético políticos.62
Daí a importância que destacamos de se
adotar a sociedade como destinatário final da atividade jurisdicional, porque somente assim
as normas criadas em sentença e a atuação do magistrado poderão ser consideradas
verdadeiramente legitimadas, por se despirem do formalismo puro ditado pelo processo e
pelas construções doutrinárias e passa a se relacionar diretamente, com a realidade,
concretizando os valores que se quer preservar.
4 AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL E SISTEMA ATUAL DE COISA
JULGADA
“Trata-se de remédio legal que visa à ampliação dos limites objetivos da coisa
julgada, em atenção ao duplo interesse da economia processual e da prevenção de decisões
conflitantes.”63
A ação declaratória incidental nada mais é que uma demanda própria, conexa com a
demanda originária por um vínculo de prejudicialidade.64
O instituto está previsto no art. 5º e 325 do CPC.65
Surgindo no seio do processo
questão prejudicial que, como tal, demande análise do julgador da causa, a prejudicial será
somente conhecida pelo juiz, que se limitará a decidir o objeto litigioso.
Contudo, para que melhor se possa aproveitar a discussão acerca da questão
prejudicial, de modo a evitar demanda autônoma reabrindo-a, foi elaborada a ação
declaratória incidental. Esta ação expande os limites do pedido, e assim, pelo princípio da
correlação66
, expande também o próprio mérito da causa, imutabilizando uma “porção
62 TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam – Casa Editrice Dott. Antonio
Milani, 1975. 63 FABRICIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória incidental. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 60. 64 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 143. 65 Art. 5º Se, no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência
depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.
Art. 325. Contestando o réu o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo
de 10 (dez) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da
inexistência do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.html> acessado na data de 18/07/2013. 66 Por este princípio, o pedido é uma projeção da sentença que se pretende: ampliando o pedido, ampliam-se
as questões a serem decididas pelo juiz. “(...) decisão guarda intrínseca relação com a demanda que lhe deu
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maior” da problemática posta em juízo. O âmbito de discussão será o mesmo, mas a
extensão da coisa julgada se altera porque se expande o próprio pedido.
Se inicialmente a apreciação da questão prejudicial seria apenas fundamento da
decisão, ficando excluída da imutabilidade da coisa julgada – e deste modo, passível de
reanálise em ação posterior – , a partir da ação declaratória incidental, o exame da questão,
que seria incidenter tantum, passa a ser principaliter, integrando o objeto da lide,
transpondo-a da apreciação na fundamentação da sentença para a parte dispositiva da
mesma.
Bem se percebe que, reconhecendo o legislador o problema que este trabalho ora se
propõe a esmiuçar, de esmerar-se o julgador no mero conhecimento da questão prejudicial,
sem contudo garanti-la através da autoridade da coisa julgada, quis solucioná-lo criando tal
incidente. Apontaremos em seguida os problemas práticos causados por esta escolha e as
razões pelas quais repetidamente enfrentamos a ineficiência do dispositivo. Por hora, cabe
esclarecer que este instrumento, dirigido a uma maior economia processual, visa a evitar a
instauração de um segundo processo que desse uma decisão principaliter acerca da questão
prejudicial67
. Deste modo, a declaração incidental vem para ampliar o objeto do
processo68
, incluindo uma questão que a princípio não o integrava, decidindo sobre a
existência ou inexistência da relação jurídica prejudicial. Mas há que atentar para o fato de
que na verdade a declaração incidental não só amplia o pedido, como se constitui na
verdade em pedido novo, “nova pretensão veiculada em processo que já se encontrava em
curso”69
.
Os dispositivos presentes no CPC de 1973 ora analisados não encontram
correspondência no projeto de lei PL 8046/2010, aprovado pela Câmara dos Deputados, de
tal sorte que a ação declaratória incidental será extinta em Direito Brasileiro com a entrada
em vigor da norma.
causa. Há entre elas um nexo de referibilidade, no sentido de que a decisão deve sempre ter como parâmetro
a demanda e seus elementos.” DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria.
Curso de Direito Processual Civil – vol II: Teoria da Prova, Direito Probatório, Ações Probatórias, Decisão,
Precedente, Coisa Julgada e Antecipação de Tutela. 8ª ed. [S.l.]: JusPodivm, 2013, p. 342.
67 Sabedoria de CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., vol I, p. 350. 68 Expressão de CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob. cit., vol I, p. 350. 69 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória..., ob. cit., p. 99.
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4.1.Requisitos para ação declaratória incidental e modo de aplicação
Qualquer das partes poderá ajuizar a declaração incidente, conquanto seja o juízo
da causa também competente para decidir a questão prejudicial e seja a questão
pressuposto necessário para resolução da causa, requisitos ditados pelo art. 470, do CPC.70
A exigência em relação à competência configura-se na verdade como requisito de
admissibilidade da demanda declaratória incidental, de modo que o juiz precisa ser
competente em razão da matéria, além da competência funcional71
, por serem estas
absolutas e inderrogáveis. Competências em razão do valor ou do território são
derrogáveis, em regra geral, daí a possibilidade de estenderem-se, possibilitando
julgamento da prejudicial por parte do magistrado competente para o pedido inicial.
O requisito de ser pressuposto necessário parece redundante, já que a questão
prejudicial, por definição, é caminho lógico necessário para a questão principal.
A ação declaratória incidental tramita nos autos em que foi ajuizada, e não em autos
apartados. Esta medida pretende simplificar o procedimento, mas na prática forense gera
muitos problemas, que serão pontuados mais adiante.
É uma providência preliminar, e por isso tem o autor dez dias para demandá-la,
quando a controvérsia tiver surgido em ocasião da contestação. É tranquilo o entendimento
de que, em relação ao réu, este terá que oferecê-la no prazo em que dispõe para
contestação.
Há corrente doutrinária, encabeçada por Fabrício, Didier Júnior e Moreira que
considera a declaração incidente com caráter reconvencional, se ajuizada pelo réu. Nesta
hipótese, aplica-se o previsto no art. 299, do CPC72
, o oferecimento deve ser simultâneo à
contestação. Corrente doutrinária oposta, como de Fornaciari Júnior e Câmara, nega o
caráter reconvencional: na reconvenção o objeto da cognição é ampliado, trazendo
questões novas que não seriam analisadas; na declaratória incidental o objeto não é
ampliado, pois que aquelas questões já seriam analisadas, alterando apenas o objeto do
processo, que passa a ser maior. Mas sendo ainda resposta do réu, conclui Câmara que
70 Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5o e
325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da
lide. 71 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ação declaratória..., ob. cit., p. 148/149. 72Art. 299. A contestação e a reconvenção serão oferecidas simultaneamente, em peças autônomas; a exceção
será processada em apenso aos autos principais.
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demandará, da mesma forma, interposição simultânea à contestação, posto que antes da
resposta não haverá controvérsia, e assim falta interesse de agir, e após a resposta estará
extinto o prazo para resposta do réu.73
Em sendo revel o réu, discute-se a possibilidade de o autor propor demanda
incidental. Perceba-se que na ausência de contestação, não há controvérsia sobre a
prejudicial, que é em verdade um requisito de admissibilidade da demanda de declaração
incidente. Contudo, o art. 321 expressamente prevê tal possibilidade74
, e ademais, é preciso
considerar a possibilidade de que alguma prejudicial se torne controvertida mesmo à
revelia, ou pela contestação de curador especial ou, por exemplo, em havendo pluralidade
de réus, um deles contesta suscitando a prejudicial. Nestas hipóteses será possível a
existência de declaração incidental, e o réu deverá ser citado para o oferecimento de sua
resposta.
5 DIREITO AMERICANO: A TRATATIVA DO TEMA NO SISTEMA DE
COMMON LAW
Tanto o collateral estoppel quanto a coisa julgada75
atuam como uma garantia ou
segurança para o jurisdicionado de que o que foi decidido pelo Estado passa a ser imutável
e indiscutível, propiciando a estabilidade das relações jurídicas e a crença no Judiciário. No
sistema de Common Law, a res judicata possui duas dimensões: claim preclusion e issue
preclusion ou collateral estoppel.
A claim preclusion impede a rediscussão de um pedido já julgado, tornando
imutável (preclusion) a decisão a respeito da pretensão (claim) formulada pelo autor. A
claim é justamente decidida na parte dispositiva da sentença, aproximando-se muito dos
critérios de coisa julgada no sistema romano-germânico, adotado pelo Brasil. Através desta
73 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições..., ob.cit., vol I, p. 353. 74 Art. 321. Ainda que ocorra revelia, o autor não poderá alterar o pedido, ou a causa de pedir, nem demandar
declaração incidente, salvo promovendo nova citação do réu, a quem será assegurado o direito de responder
no prazo de 15 (quinze) dias. 75 O collateral estoppel não equivale nos estados Unidos à coisa julgada em nosso ordenamento, mas se
aproximam em muitos pontos e têm o mesmo objetivo: blindar a decisão. A coisa julgada impede que se
proponha ação com pedido que já tenha sido objeto de decisão judicial, enquanto o collateral estoppel se
apresenta como uma preclusão extraprocessual de certas questões de fato, já decididas em processo anterior.
“Estoppel pode ser entendido, ainda, como preclusão, caducidade, prescrição, renúncia expressa ou tácita de direito material. Sua principal característica procedimental é o fato de ser apresentado com o intuito de
obstaculizar uma pretensão no curso do processo”. ALVIM, Arthur da Fonseca. Coisa julgada nos Estados
Unidos. Repro n. 132. São Paulo: RT, Fev. 2006, p. 80.
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dimensão, indo agora além do nosso entendimento de definitividade da coisa julgada, “o
autor da ação fica obrigado a veicular em uma só demanda todas as pretensões que tenha
contra o réu, em relação ao mesmo fato ou a um conjunto de fatos”76
.
(...) com igualdade processual e menos preclusões internas para
alegações e produção de prova, a claim preclusion aumentou sua
intensidade, acompanhando a concepção de que não apenas o que
foi efetivamente decidido, mas também o que poderia ter sido,
deveria adquirir estabilidade. Essa idéia levou a uma concentração
do debate sobre a lide em uma litigância única. Assim, por meio do
desenvolvimento de regras contra a divisão da causa de pedir (rule
against splitting the cause of action), acompanhada de pressões
sistêmicas para que o réu alegue obrigatoriamente certas questões
no mesmo processo, a res iudicata encontrou terreno fértil para se
expandir e cobrir não apenas a específica demanda proposta, mas o
conflito in natura.77
(grifo nosso)
A issue preclusion (ou collateral estoppel) vem a expandir a vinculação a outros
julgamentos de matérias discutidas e oportunamente decididas em um processo, mas que
não configuram pedido, apresentando-se como fundamentação. Estas questões são
apresentadas na causa de pedir e, como tal, compõem posteriormente a motivação da
decisão. A grosso modo, postula que não se rediscute em outro processo a mesma questão,
já controvertida e decidida em processo anterior. Então questão relevante, que seja objeto
de controvérsia e apreciada em sentença não poderá ser novamente objeto de litígio.78
Deve preencher certos requisitos, contudo, para que possa ser aplicada a issue preclusion
em ocasião de rediscussão – a questão deve ter sido essencial para o resultado do
julgamento, expressamente decidida e ter havido contraditório efetivo sobre o assunto (por
76 Ensinam GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos da coisa julgada no projeto de código de processo civil. RePro 194. São Paulo: RT, 2011. Vol I, p. 111. 77 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit, p. 182. 78 Neste sentido, Cabral, Antonio do Passo. A coisa julgada..., ob. cit., p. 181.
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um imperativo de previsibilidade) e ainda ser previsível sua importância para outros
julgamentos79
.
É neste ponto, dos requisitos para alegação da issue preclusion em outro processo,
que a doutrina tende a extremismos. Entendemos que, de fato, no formato em que se
apresentam, estes requisitos conduzem a discussões infindáveis num processo que
inicialmente não seria nem tão longo, nem tão difícil, sob o ponto de vista da carga
probatória80
. Contudo, há que sopesar a importância destes valores para o direito
processual – será que a aplicação da issue preclusion realmente precisa demandar tanto
esforço? Para privilegiar o valor de decisões coerentes e logicamente compatíveis, que
contribuem em muito para o prestígio do Judiciário (aspecto este que precisa ser reforçado
no Brasil) não podemos encontrar um terceiro caminho entre os parâmetros radicais em
que se aplica o collateral estoppel, e o sistema brasileiro atual, tão engessado no temor de
tornar decisões realmente definitivas, não só em nível da dimensão processual, mas
também fática?
As semelhanças entre o instituto da coisa julgada no Brasil e a disciplina do
collateral estoppel no ordenamento norte-americano tornam imprescindível a análise
comparativa de ambos81
, de modo a resgatar o que pode ser aperfeiçoado no sistema
brasileiro à luz do imperativo social de atingir mais substancialmente o postulado de
eficiência que orienta a processualística nacional e enquadrar da melhor maneira possível
os limites objetivos de nossa coisa julgada aos propósitos concretos de realização da
segurança jurídica.
Isto porque concordamos que a exclusão de questões prejudiciais contidas na
sentença da indiscutibilidade trazida pela coisa julgada dão azo à proliferação de processos
aptos a debater e a rediscutir pontos de controvérsia já decididos em outro processo.82
79 Quanto aos requisitos, vide GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella.
Limites objetivos..., ob. cit., p. 111-112. 80 “As partes, ao proporem uma ação ou ao se defenderem, não teriam mais nenhuma certeza sobre os limites
e o alcance da lide; e seriam forçadas a preparar um esforço de ataque e de defesa efetivamente
desproporcionado à sua intenção.” CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições ..., ob. cit., vol I, p. 476. 81 “No caso da coisa julgada sobre questões prejudiciais, a experiência prática e a construção teórica do
direito norte-americano é, sem dúvida, a mais enriquecedora, em face da massiva experiência desse país com
o tema.” GIDI, Antônio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos..., ob.
cit., p. 113. 82Sobre a extensão vinculativa da coisa julgada nos Estados Unidos, cabe acrescentar: “esta construção teórica (o collateral estoppel) tem como pilar a utilização dos precedentes no sistema de common law, uma
vez que neste sistema os precedentes, desde que cumpridos certos requisitos, obtêm o poder de vincular as
decisões em outros processos. E quando se fala em vinculação de precedentes, deve-se ter em vista que a
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Demonstra a inteligência da disciplina do collateral estoppel que esta insegurança não
precisa – e não deve ser admitida por um sistema jurídico que se pretenda cada vez mais
adaptado às demandas sociais e à evolução histórica do Direito.
A análise feita pelo Relator Geral da Comissão Especial, formada para emitir
parecer sobre o Projeto de Lei n.º 8.046, de 2010 serve perfeitamente ao nosso estudo:
“(No projeto) Resgata-se, assim, a ideia que prevalecia
antes do Código de Processo Civil de 1939. A proposta de alteração
inspira-se no ideal de economia processual.
Segundo se extrai da exposição de motivos que acompanha
o projeto: ´o novo sistema permite que cada processo tenha maior
rendimento possível. Assim, e por isso, estendeu-se a autoridade da
coisa julgada às questões prejudiciais´.
Em estudo dedicado ao tema, publicado no volume 194 da
Revista de Processo, de abril de 2011, os professores Antonio Gidi,
José Maria Rosa Tesheiner e Marília Zanella Prates fazem uma
comparação entre o modelo brasileiro atual e o modelo norte-
americano. O modelo americano adota disciplina idêntica à
proposta no PL nº 8.046, de 2010, prevendo a issue preclusion, que
é justamente a extensão da coisa julgada material às questões
prejudiciais.
Em tal estudo, os referidos professores, partindo de dados
concretos, demonstram a inefetividade da issue preclusion e as
críticas feitas pela doutrina norte-americana ao instituto.
Em termos pragmáticos, a ideia causa mais demora no
andamento do processo, não alcançando a alvitrada economia
processual. Com informações extraídas da experiência norte-
americana, os mencionados doutrinadores demonstram as
dificuldades da análise, nos processos judiciais, quanto à
parte vinculante dos precedentes não se encontra na parte dispositiva da sentença, mas sim na motivação.” SOARES, Marcos. O collateral estoppel..., ob. cit., p. 121. Ou seja, não se restringe a decisão a fazer lei
entre as partes, como no Brasil, mas tem também efeito vinculante sobre as decisões subseqüentes, atuando
como fonte de direito, apta a regular o novo caso concreto.
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identificação das questões prejudiciais que tenham sido objeto de
controvérsia em processo anterior e que, por isso, tenham
efetivamente sido alcançadas pela coisa julgada.
Ademais, diante do risco de a coisa julgada alcançar todas
as questões prejudiciais, as partes, no sistema norte-americano,
estendem-se, desnecessariamente, na discussão de várias questões,
causando intoleráveis atrasos no desfecho dos processos
judiciais.”83
O voto do Deputado Paulo Teixeira se baseia no artigo publicado por Antonio Gidi,
José Maria Rosa Tesheiner e Marília Zanella Prates, ora analisado neste trabalho, para
apontar a ineficiência que a solução trazida no projeto acarretará. Por todo o dito,
entendemos que a análise do Deputado é equivocada, pois apontam os próprios autores que
o grande problema na aplicação do collateral estoppel se relaciona com a verificação dos
requisitos para sua configuração. Os requisitos adotados são difíceis de provar e geram
muita discussão, o que pode ser evitado no sistema brasileiro através da delimitação do
conceito de questão prejudicial e estabelecimento de critérios objetivos para que seja
abarcada pela coisa julgada.
5.1. Requisitos para aplicação da claim preclusion
Para que se possa alegar a claim preclusion, numa atuação semelhante à “exceção”
de coisa julgada no sistema pátrio, há que preencher certos requisitos, os quais pretendem
provar que foi dada possibilidade de debate sobre as outras pretensões, que precluíram no
primeiro processo, de modo que não possam ser alegadas numa segunda oportunidade.84
Ensina Cabral que a decisão precisa ser válida, final e de mérito.85
A validade diz
respeito ao contraditório e à competência para a causa, em relação à matéria e em relação
às pessoas. “Decisão final” deve ser entendida decisão de que não caiba alteração na
mesma instância, ou em outras palavras, seja provimento coberto pela coisa julgada formal
83Voto do relator-geral, Deputado Paulo Teixeira, p. 285, disponível em <http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf> acessado em 24/07/2013. 84 Ocorre “preclusão dos pedidos possíveis”. ALVIM, Artur. Coisa julgada..., ob. cit., p. 78. 85 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 186.
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ou material. Em relação ao mérito, é necessário que o conflito não tenha sido resolvido
baseado somente em fundamentação de natureza processual. Transpondo para o direito
brasileiro, não cumpriria o requisito a sentença sem julgamento de mérito. Este último
requisito tem sido revisitado, já que parte da jurisprudência daquele país admitiu a
vinculação preclusiva da coisa julgada se ainda que não tenha havido efetivo julgamento
do mérito, os litigantes tenham debatido as questões principais da lide.
A aplicação da claim preclusion só é afastada em dois casos, autorizados pela
jurisprudência e por certas disposições legais: se as partes acordaram pelo fracionamento
da pretensão, o que é permitido em direito norte-americano; ou se houve mudança na lei
que cause alteração normativa que altere um grande grupo de casos, ou ainda uma
mudança jurisprudencial significativa. A justificativa para esta flexibilização é movida
pelo postulado de igualdade geral, buscando resguardar a isonomia entre litigantes que
disputaram, em processos diversos, a respeito de uma mesma questão.86
5.2. Requisitos para aplicação do collateral estoppel
O instituto está intimamente relacionado à proibição de comportamento
contraditório no processo, advenha este comportamento das partes ou do órgão julgador – é
o princípio do estoppel, relacionando-se ao princípio da confiança ou da não-surpresa e
numa realização da boa-fé objetiva.87
Pode ser definido como “vedação de alegar algo que
tenha sido anteriormente negado, ou negar algo que tenha sido anteriormente afirmado em
decisão judicial”.88
Sua função é obstaculizar uma pretensão ou uma alegação, porque já
discutida e decidida em processo anterior. É um modelo de vinculatividade extraprocessual
de questões prejudiciais, compostas na motivação da sentença. Entendemos que a
motivação pode fazer coisa julgada desde que o juiz aponte isto expressamente em juízo.
O instituto da issue preclusion não proíbe a repetição integral do
litígio (como a res iudicata), mas torna preclusas apenas certas
issues resolvidas no processo anterior, sem qualquer consideração
sobre se as partes eram as mesmas ou se a causa de pedir era
86 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 188. 87 SOARES, Marcos José Porto. O collateral estoppel..., ob. cit, p. 116. 88 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 190.
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idêntica. Assim, ao contrário da res iudicata, em que o
impedimento à rediscussão verifica-se porque estamos diante da
mesma causa de pedir, o collateral estoppel observa-se quando a
decisão invocada para impedir a rediscussão foi proferida em litígio
anterior com causa de pedir diversa.89
Assim, cabe lembrar que a aplicação da coisa julgada no modelo pátrio requer a
identidade dos três elementos: pedido, partes e causa de pedir. Em sede de collateral
estoppel, a causa de pedir e o pedido podem ser diversos, de modo que havendo identidade
entre as mesmas partes ou uma das partes e um terceiro, mas causas de pedir distintas,
ainda admite-se a aplicação do instituto.90
A issue preclusion se orienta pela mesma ideia de que a causa é una e deve ser
aproveitado o julgamento de mérito na maior medida possível. Primeiro, porque não é
dado ao juiz decidir novamente o que já foi decidido; segundo, para privilegiar os
postulados de economia processual e segurança jurídica.
Observa-se que a claim preclusion é que atua naquele país como coisa julgada,
abarcando também a eficácia preclusiva da coisa julgada, e o collateral estoppel funciona
como uma preclusão estanque das questões. A jurisprudência, neste caso, coloca limites
mais fortes à sua aplicação exatamente por não ser demanda idêntica e não se submeter aos
critérios de análise da res iudicata. É neste momento, dos requisitos rígidos, que o instituto
peca em aplicabilidade: sua verificação é muito custosa e precisa ser provada em juízo,
atrasando o processo. O formato com que se apresentam as questões prejudiciais no Brasil
dispensa este tipo de verificação.
Primeiramente, há que observar se há identidade de questões, debruçando-se sobre
a consideração de similitude fática ou jurídica da questão, e ainda o nível de cognição e de
ônus da prova que pesou sobre as partes nos dois processos.
Esta verificação parece transpor os parâmetros de análise do que é essencial à
aplicação do instituto – verificando-se que o juízo tem competência para analisar a questão,
não se deve perguntar se o ônus da prova foi maior ou menor no segundo processo.
89 Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 190. 90 Para autores como Shapiro e Taruffo, nem mesmo a identidade de partes precisa ser observada. “Posteriormente passou-se a admitir a aplicação da issue preclusion sobre terceiros. Posicionamento este que
foi firmado no Restatement Second § 29.” SOARES, Marcos José Porto. O collateral estoppel..., ob. cit, p.
121.
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Quanto aos requisitos, a parte que se utiliza do collateral estoppel deve demonstrar
que a questão foi devidamente discutida e decidida. A “efetiva litigância” não exige que
conste expressamente nas razões da decisão, basta que fique demonstrado que as partes
desejavam incorporar a questão ao debate. Fica claro que a abertura gerada por este critério
é excessiva, e de difícil comprovação. Ficam excluídos do efeito preclusivo os casos de
julgamento à revelia, infringência de regras de competência e causas decididas por
confissão e acordos91
. A decisão apta a ensejar o efeito preclusivo não precisa ser de
mérito, basta que uma decisão interlocutória tenha se pronunciado conclusivamente sobre a
questão.
O segundo requisito diz respeito à exigência de que a questão fosse “essencial” ao
julgamento, atuando como uma garantia para que não sejam consideradas preclusas
questões que as partes consideram satélite, e sobre as quais não desejam, de fato, litigar.
Para tanto, o juízo não pode observar as alegações e atitudes processuais das partes
isoladamente – é a dinâmica do debate em contraditório que ditará o nível de importância
da questão para a demanda.
Vige ainda o requisito de “previsibilidade do vínculo em processos futuros”, ou
seja, se as partes tiveram ciência ou efetiva oportunidade de trazer as alegações ao juízo.92
Isto porque a questão pode ter sido entendida como “de pequena importância”,
considerando que os casos de descuido da parte não poderão prejudicá-la futuramente,
perdendo a oportunidade de discutir a questão. Geralmente a técnica empregada era a de
dividir as questões de acordo com a natureza dos fatos, em questões principais e questões
secundárias, mas a dificuldade em operá-la substituiu-a pela possibilidade de a parte prever
que a questão pudesse ser invocada em outros litígios93
.
Quanto às exceções na aplicação do collateral estoppel, ele não se aplica se o
procedimento utilizado limitava as condições do debate, restringindo uma discussão e
carga probatória ampla, como no caso dos tribunais voltados a litígios menores, limited
jurisdictions, de semelhante função à dos Juizados Especiais no Brasil. Também uma
questão decidida numa corte que não seja a especializada não ficaria preclusa em razão da
especificidade da matéria. A última exceção diz respeito ao grau de convencimento do juiz
91 KOSHIYAMA, Kazuhiro. Rechtskraftwirkungen und Urteilsanerkennung nach amerikanischem
deutschem und japanischem Recht. Tubigen: mohr Siebeck, 1996, p. 42 apud CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 194. 92 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 197. 93 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 198.
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na causa, pois se o ônus de convencimento seria muito maior na segunda demanda, não
ocorre efeito preclusivo. Isto fica claro quando se analisa collateral estoppel do processo
civil para o processo penal: a carga argumentativa precisa ser muito maior para condenar o
réu em sede de juízo criminal que em juízo cível. Assim, se o réu foi absolvido em
processo penal, estava submetido a ônus de convencimento menor que para sua
responsabilização cível, de modo que não haverá preclusão de certas questões no processo
cível.
Outro problema na aplicação do collateral estoppel é o que de sua verificação não
enseja a extinção do processo, como a exceção de coisa julgada, oportunidade em que o
segundo processo é extinto mesmo antes de se instaurar ou prosseguir – ocorre uma
preclusão estanque da questão outrora decidida no primeiro processo.
Transpondo esta observação para o Direito brasileiro, primeiro pontua-se que a
questão prejudicial não preclui, mas faz coisa julgada. Se a questão, no segundo processo,
é o mérito da causa por inteiro, o reconhecimento do julgamento perfeito e eficaz no
primeiro processo fará com que o segundo seja extinto por uma aplicação de exceção de
coisa julgada, já que a questão prejudicial foi discutida em juízo competente e decidida,
impedindo um segundo processo. Se a questão prejudicial é perquirida como parte do
objeto litigioso, como no novo CPC a questão estará abarcada pela coisa julgada, sua
análise será excluída no segundo processo, e a causa será julgada como dependente do
mérito do primeiro processo, numa mera transposição da sentença. Exemplificando: A
adquiriu imóvel em construção da empresa B, e esta atrasa em dez anos a entrega do
imóvel, A ajuíza ação requerendo rescisão contratual e danos materiais; mais tarde, A
ajuíza nova ação pretendendo o recebimento de danos morais. A causa de pedir é a mesma
(o descumprimento do contrato) e mesmas as partes envolvidas, mas o pedido é diferente e
por isto as duas decisões não estariam vinculadas. Contudo, se o juiz se pronuncia em sede
de fundamentação, no primeiro processo, no sentido de que “a prova documental e o
depoimento pessoal demonstraram que houve descumprimento da obrigação por culpa do
réu”, definindo na parte dispositiva: “condeno o réu ao pagamento de X a título de danos
materiais”, o princípio de segurança jurídica demanda que a questão referente à culpa, já
resolvida no primeiro processo, seja indiscutível no segundo, ainda que os pedidos sejam
diversos. Assim, ambos os provimentos jurisdicionais precisam caminhar num mesmo
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sentido: partindo-se do pressuposto de que a) houve o descumprimento; e b) réu pode ser
responsabilizado porque houve descumprimento por culpa.
Perceba que os parâmetros propostos pelo novo CPC nos furtam de verificar os
requisitos que precisam ser analisados em sede de collateral estoppel, porque já foi objeto
de análise, no primeiro processo, se o juiz era competente para decidir a questão; em sendo
esta prejudicial, também não é necessário perguntar se é essencial ao julgamento, assim
como em tendo sido decidida, se houve efetiva litigância. A definição pelo juiz no primeiro
processo de que a questão é prejudicial e fará coisa julgada nos exime das análises
subjetivas quanto se as partes tinham consciência da importância da questão para a causa
ou se debruçaram-se numa efetiva litigância.
6 APROXIMAÇÃO DO SISTEMA AMERICANO E BRASILEIRO
Pelas razões outrora apresentadas, de semelhança entre ambos os sistemas, cabe
analisar detidamente cada um dos institutos e seus pontos de contato.
6.1. Claim preclusion
Apresentados com a devida atenção os institutos de claim preclusion e collateral
estoppel, cabe esmiuçar os pontos de contatos de ambos os sistemas jurídicos.
Em relação à eficácia preclusiva da coisa julgada, no Brasil, o art. 474 do CPC
pretende atingir os mesmos objetivos da claim preclusion, imunizadas as questões
deduzidas e deduzíveis.94
Contudo, restringe-se ao núcleo do thema decidendum, ou seja,
somente ao objeto litigioso.95
A aplicação restrita do dispositivo faz com que o
94 Nas palavras de Barbosa Moreira, a eficácia preclusiva faz “considerar implicitamente decididas” todas as
questões, mesmo que não explicitamente analisadas, cuja solução pudesse alterar o conteúdo do provimento
jurisdicional. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 89. É uma ficção que põe
estas questões num limbo entre a autoridade da coisa julgada, já que poderão ser rediscutidas posteriormente
em outro processo, mas ficam abarcadas pela eficácia preclusiva da coisa julgada, o que não nos traz efeitos
práticos positivos às estabilidades processuais. Ainda neste sentido, LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A
prejudicialidade..., ob. cit., p. 128: “(os efeitos produzidos pela motivação) são imutabilizados no sentido de
não se admitir a discussão de qualquer outro motivo para alterar a decisão proferida”. 95Didier Júnior apresenta a discussão a respeito do objeto litigioso: se consiste somente no pedido ou também
na causa de pedir. Originariamente o objeto litigioso era relacionado ao pedido; doutrina mais recente, encabeçada por Rogério Cruz, Tucci e o próprio Didier Júnior têm considerado abarcada a causa de pedir.
Mas, em sede de verificação da coisa julgada, precisam ser, ao mesmo tempo, idênticos o pedido e a causa de
pedir, de tal sorte que a eficácia preclusiva da coisa julgada está adstrita a um campo muito restrito.
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ordenamento jurídico seja vítima de suas próprias previsões, já que permite o
“desligamento” da causa para pedidos distintos, mas baseados num mesmo fato, como, por
exemplo, relativamente a danos morais e materiais. Tratando-se de direito americano,
como regra geral, e em decorrência de o próprio sistema incentivar a concentração das
alegações, os juízes consideram abarcado no processo a maior “quantidade do conflito”
quanto possível, evitando que a questão seja fracionada.
Um caso importante neste contexto é Rush v. City of Maple
Heights, no qual a autora pretendia condenação por danos pessoais
do município réu depois de ter acionado e obtido condenação por
danos materiais. O juiz de primeiro grau, no Estado de Ohio,
entendeu estarem preclusas as alegações do Município porque já
tinha sido fixada sua responsabilidade no primeiro processo. (...) O
Tribunal de Ohio, apreciando o recurso, negou-lhe provimento e
superou o precedente do caso Vasu, entendendo que a demanda era
inadmissível porque já tinha sido compreendida na primeira
decisão, ou seja, a partir de novo entendimento, fixou-se a tese de
que não se pode postular dano pessoal separado do dano material.96
A tratativa global dada à questão através da obrigatoriedade da alegação das
pretensões relacionadas ao processo demonstra um inequívoco avanço frente ao sistema
brasileiro. O direito brasileiro tem sido “boicotado” por seu próprio formalismo, ao
privilegiar um modelo recheado de garantias processuais nem sempre justificáveis. O que
se percebe é que a demanda é grande, muitos os processos e as varas, e muitas as
possibilidades para ajuizar uma mesma causa. Assim, parece razoável que se restrinja a
discussão da matéria a um único processo, que será decidido por inteiro, já que as partes
precisam apresentar todas as suas alegações sobre a causa de uma só vez, de modo que não
poderá, no futuro, utilizando-se de uma permissão excessiva do ordenamento jurídico,
reingressar na causa.
Podemos exemplificar: se A ajuíza ação ordinária contra uma transportadora,
requerendo indenização por danos morais decorrentes de um atropelamento causado por
96 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada..., ob. cit., p. 199.
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culpa do motorista da empresa, obtém sentença que julga procedente o pedido, fixando a
indenização. Após o trânsito em julgado, A ajuíza nova demanda, contra a mesma
empresa, desta vez requerendo indenização por danos materiais. Neste caso, a empresa não
poderá suscitar a exceção de coisa julgada porque o pleito é considerado pedido diverso.
Mas perceba: no primeiro processo a empresa é responsabilizada, mas debruçar-se-ão as
partes sobre as provas de culpa, novamente, em ocasião de um segundo processo, de tal
sorte que neste o pedido pode ser julgado improcedente se entender o juízo que a empresa
não pode ser responsabilizada pelo ocorrido.
Isto porque a eficácia preclusiva neste caso concreto atua somente em relação a
“fatos simples ou circunstâncias que não alterem a causa de pedir”97
, fatos que pudessem
ser arguídos em defesa da tese de cada uma das partes, que figurariam como fundamento
do pedido. A eficácia preclusiva não tem o condão de abarcar a maior quantidade de
conflito possível, como a claim preclusion.
6.2. Collateral estoppel e a produção de efeitos externos a partes da motivação no
direito brasileiro
A transposição de questões decididas para outros processos é admitida em hipóteses
legais expressas em Direito brasileiro.
No art. 935, CC não se questiona sobre a existência de fato ou quanto a quem seja o
autor se isto já ficou decidido na esfera penal. A afirmação quanto à ocorrência do fato ou
se o réu é autor são feitas na motivação da sentença. Ainda tratando-se de matéria penal
transposta para o juízo cível, o art. 65, CPP, define que o reconhecimento das excludentes
de ilicitude de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal
ou exercício regular do direito, apesar de também constarem da motivação, vinculam o
juízo cível.
Já o art. 55, CPC prevê que o assistente não poderá em processo posterior, discutir a
justiça que tenha certa decisão, de modo que as afirmações feitas no fundamento da
97 GRECO, Leonardo. Instituições..., ob. cit., p. 175. Este posicionamento do direito brasileiro voltado a
preservar causas de pedir diversas fica ainda mais explícito pela análise do dispositivo correspondente no
Novo CPC: “Art. 495.Transitada em julgado a sentença de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas
todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido, ressalvada a hipótese de ação fundada em causa de pedir diversa”. Disponível em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8DDDDA73D646B7314844F2
BD00F00031.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010> acessado em 06/08/2013.
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sentença, a respeito de autor e réu, em situações de interesse do assistente, terão efeitos
sobre outros processos de que este participe, numa extensão da eficácia preclusiva da coisa
julgada.
A tese de transcendência dos motivos determinantes vem sido amplamente apoiada
em sede de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Propugna-se pelo efeito
vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos processos em que se faça
controle abstrato de normas, numa aproximação do sentido dado aos precedentes em
direito norte-americano.
Fica assim demonstrado que a idéia de que a decisão a respeito de certa questão
prejudicial possa vincular o resultado de outro processo não é conceito absolutamente
desconhecido em direito brasileiro, apesar de somente as situações de aproximação de
juízo criminal e juízo cível serem verdadeiramente hipótese de vinculação por
prejudicialidade de questões, próxima então do conceito de collateral estoppel. O caso é
que a lei tem aplicado essas possibilidades somente quando se tratam de esferas
jurisdicionais distintas. Mas não há razão para que não se estenda este efeito em relação a
processos de mesma natureza. Se encontramos modo de aplicá-los a despeito de
principiologia, regramento e modo de se desenvolver o processo em contraditório tão
distintos, com mais razão cabe aplicar para questões prejudiciais muito próximas
substancialmente à questão principal (veja, com os requisitos que propomos – ser
prejudicial, mesma competência e mesmo procedimento nos restringimos a uma classe de
prejudiciais intimamente relacionada à relação jurídica discutida) e referentes a processos
de mesma natureza.
6.3. Conclusões parciais
A claim preclusion funciona, ao mesmo tempo, como coisa julgada, essencialmente
como a conhecemos, e também como a eficácia preclusiva da coisa julgada, apresentada
supra.
O collateral estoppel, por outro lado, funciona como uma preclusão de questões
prejudiciais com efeitos exoprocessuais, ou seja, como uma verdadeira “coisa julgada”
limitada à decisão referente à questão.
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Visto isto, fica claro que os conceitos aplicados em sede de Direito norte-americano
não são muito distantes dos parâmetros de estabilidade que empregamos atualmente.
Entendemos que o legislador brasileiro através do Projeto da Lei 8046/2010 fez
escolhas que possibilitam uma aplicação devida da extensão da coisa julgada. Assim,
filtramos os benefícios advindos de um entendimento mais amplo do que deve ficar
protegido pela imutabilidade em sede processual, como visto nos institutos de direito
norte-americano, realizando em maior medida a segurança jurídica e a legitimidade das
decisões, sem contudo trabalhar requisitos excessivamente abertos – e, sob certo ponto de
vista, intransponíveis, que inviabilizam a extensão da coisa julgada. Neste viés, o
processamento das prejudiciais não se delonga na discussão de previsibilidade de sua
importância para a causa, se foi controvertida, que são questionamentos desnecessários
uma vez que se delimite bem as características das questões prejudiciais. É essencial à boa
aplicação do instituto que a verificação da prejudicial seja objetiva e concreta, e que o juiz
se esmere mais na delimitação dos pontos controvertidos à lide, de modo que o
contraditório jamais fique prejudicado e não incorramos mais na abertura excessiva de
“refutar tudo a todo momento”. Um processo bem delineado realiza melhor seus objetivos
de pacificação social, capaz assim de resolver o conflito por inteiro. Esta é uma demanda
relativamente nova e própria de uma evolução jurídica que já pode se preocupar, por seu
grande avanço, com uma sintonia fina com os propósitos últimos do processo. A
legitimação das decisões requer que se preserve a coerência externa do julgado, de modo
que este valor encontrou na extensão da coisa julgada mecanismo apto a consolidá-la.
7 CRÍTICAS À EXTENSÃO DA COISA JULGADA ÀS QUESTÕES
PREJUDICIAIS
7.1.Relativo ao princípio dispositivo
Historicamente, o principal argumento a favor da tese restritiva de coisa julgada
remetia à necessidade de nos atermos ao princípio dispositivo, ligado a um modelo
adversarial de estruturação processual, e preza pela máxima de que o processo está “a
cargo das partes”, em que o juiz assume o papel, de certa forma passivo, de simplesmente
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decidir o conflito a ele submetido, sem ser, como no modelo inquisitorial, o grande
protagonista e destinatário do processo.98
Contudo, o processo se propõe a realizar aspectos éticos, e ainda por uma questão
de justiça, não poderá ser deixado ao puro arbítrio das partes.
Com o aspecto ético do processo não se compadece o seu abandono
à sorte que as partes lhe derem, ou uma delas em detrimento da
mais fraca, pois isso desvirtuaria os resultados do exercício de uma
atividade puramente estatal e pública, que é a jurisdição.99
Neste sentido, Barbosa Moreira apontava o inconveniente de estarem sujeitas a
julgamento definitivo relações jurídicas não incluídas no âmbito do pedido. Isto porque as
partes podem estar despreparadas para produzir as provas necessárias, ou podem não
querer uma discussão exaustiva das questões prejudiciais. A extensão da coisa julgada
feriria o princípio dispositivo e a correlação necessária entre o pedido e a decisão. Assim,
quando houvesse interesse, as partes poderiam lançar mão da ação declaratória incidental.
Esta crítica recai também sobre o sistema americano de collateral estoppel, pois as
partes não poderiam estar sujeitas a “discutir toda e qualquer questão a todo momento”.
Mas a verdade é que o juiz não fixa os pontos controvertidos – na prática, todos refutam
tudo; e muitas vezes as partes, por uma questão de falta de manejo das questões jurídicas,
fazem como pedido imediato somente o provimento final que pretendem, e passam o
processo todo discutindo e provando a questão prejudicial sem se dar conta que ao final,
obterão decisão sobre o provimento, mas a questão controvertida poderá ser rediscutida a
posteriori..Se tomarmos por base o homem médio, ele lhe dirá que é absurdo rediscutir se
há relação de locação entre os sujeitos, se isto teve que ser provado em processo anterior,
para que se pudesse decidir acerca de parcelas locatícias serem devidas ou não. O que já
foi analisado a fundo, julgado deve estar.
98 Nos dizeres de Dinamarco, ao argumentar a favor do aspecto publicista do processo: “é preciso, de um
lado, reprimir a inquisitoriedade que dominou o processo penal autoritário; e, de outro, abandonar o
comportamento desinteressado do juiz civil tradicionalmente conformado com as deficiências instrutórias
deixadas pelas partes no processo”. DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15ed.
Brasil: Malheiros, 2013, p. 62. Isto se tomarmos como premissa substancial a noção de que o sistema processual precisa funcionar como instrumento do Estado, apto a realizar objetivos a serem alcançados
mediantes seu emprego, que traduzem-se nos escopos sociais, políticos e jurídicos já tratados neste trabalho. 99 DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15ed. Brasil: Malheiros, 2013, p. 63.
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Neste ponto, o mandamento de acesso à justiça deixou a desejar pois abriu espaço
para que os cidadãos pudessem, de fato, resolver seus conflitos judicialmente, mais seguros
agora por estar o seu direito calcado em provimento jurisdicional, imutável, a que não se
pode furtar de cumprir e não se pode contestar, deixa em aberto uma questão que lhes foge
da percepção: que pode ser reproposta a questão, agora numa ação principal, pois o
discutido não fez coisa julgada. Culpará a ineficiência de seu advogado e dirá que o
judiciário é falacioso e traiçoeiro. Não se pode culpá-lo. Ademais, parece um despropósito
o ordenamento jurídico dar azo a situações desmoralizantes da lei e do Direito como estas,
contando com a perícia dos advogados em propor declaratórias incidentais.100
Declaratórias incidentais estas também muito mal delineadas nos parâmetros em
que se aplicam atualmente. Os pontos controvertidos muitas vezes não são expressamente
delimitados, e as partes se esmiúçam em provas tantas quantas forem as alegações da outra
parte.
Além disso, não se pode admitir que se queira provimento A, que depende de B, e
não queira a parte que B seja julgado em definitivo. Não se pode pretender obter reparação
de danos sem o antecedente lógico de responsabilização do réu.
Não se pode deixar de perceber também o prejuízo causado por uma nova
demanda: primeiramente, e mais alarmante, a indignação da parte, que acreditava que a
questão já estava decidida no primeiro processo em que foi controvertida; além disso, a
reabertura da questão desfaz o que a coisa julgada pretendeu resolver no primeiro processo
– pacificar os ânimos. É trazida à tona toda a discussão novamente, e acirra-se a
litigiosidade entre as partes. Além disso, os custos de reingresso no Judiciário recaem tanto
para as partes quanto para a máquina estatal, e lá se vão mais alguns anos de pendência da
ação.
O argumento de que as partes se sentiriam desencorajadas a propor a demanda,
receosas de ficarem vinculadas a questões incidentais ao interesse que pretendem, pode ser
desconstruído pelo fato de que a questão, por ser prejudicial e anterior ao mérito principal
100Não estamos sozinhos nesta observação. “parte expressiva das pessoas que litigam em juízo no nosso país
não têm consciência dos riscos que lhes possam resultar das suas ações ou omissões. Nem mesmo os
advogados, muitas vezes, são capazes de antever esses riscos e os que os antevêm são frequentemente
induzidos a uma conduta pouco colaborativa, em que negam tudo, não concordam com nada, recorrem de
tudo.” O ilustre professor chama atenção para o fato de que a vontade das partes é que definirá o nível de cognição do juiz, mas nem sempre estão os sujeitos aptos a compreender as implicações de sua atuação em
juízo. GRECO, Leonardo. Cognição sumária e coisa julgada. REPD, vol. X, p. 290. Disponível em
<http://www.redp.com.br/arquivos/redp_10a_edicao.pdf> acessado em 24/07/2013.
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da causa, terá que ser provada. A extensão que se pretende dar à coisa julgada não é
excessiva o suficiente para prejudicar o interesse restrito da parte: indubitavelmente seu
interesse já perpassa a questão. Não se pode querer obter alimentos de alguém se não for
primeiramente provada a relação que dá aso à obrigação requerida.101
A concepção restritiva de coisa julgada ora apresentada é entendimento adotado
pelo CPC de 1973. Esta exaltação do princípio dispositivo traduz concepção liberal, de um
processo calcado no paradigma individualista. “O juiz depende, na instrução da causa, da
iniciativa das partes quanto às provas e alegações em que se fundamentará a decisão”102
;
este fragmento demonstra que este princípio se liga a um juízo de conveniência ou
inconveniência que faz a parte em relação ao quanto se dispõe a demonstrar em via
judicial. Contudo, uma vez que o autor deseja o provimento, que perpassa questões
prejudiciais e questões satélite, terá que aceitar a imutabilidade das questões prejudiciais,
porque intimamente ligadas à principal. Não há como haver uma sem a outra, são
dependentes, e por isso o juízo de conveniência precisa ser afastado.
Ainda que fosse considerada a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais
uma afronta ao princípio dispositivo, por entender que a parte teria que fazer prova do que
não queria, os novos tempos têm exigido enfoque no caráter publicista do processo. “A
maior sensibilidade do processo civil aos influxos privatistas, fruto da própria relação de
instrumentalidade ao direito privado, vai sendo neutralizada e a tendência, hoje, é a tomada
de consciência para os objetivos estatais a serem realizados através dele (processo).”103
O
novo Código de Processo Civil, como se sabe, pretende privilegiar a economia processual
101Chiovenda talvez não se aflija com o fato de as questões prejudiciais serem somente conhecidas, e não
decididas, por acreditar que em situações como esta a análise a respeito da existência da relação jurídica seja
objeto da demanda, e não mera prejudicial, de tal sorte que será efetivamente decidida. “Quando uma relação
jurídica se esgota num único direito (por exemplo, empréstimo em dinheiro, sem juros), não pode haver
questão propriamente prejudicial. Poderá haver, antes, uma questão sobre a existência da relação distinta da questão sobre a existência do direito (por exemplo, vencimento da obrigação de restituir o mútuo), mas será
necessariamente objeto, também, da demanda de restituição a declaração de existência da relação” (grifo
nosso). CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições..., ob. cit, vol I, p. 469. Esta questão, que Chiovenda considera
parte do pedido, no modelo de coisa julgada a que se propôs o CPC de 1973, não ficará abarcada pela
imutabilidade. 102 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOUVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral..., ob. cit., p. 64. 103DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade..., ob. cit., p. 61. Também neste sentido: “Todavia,
diante da colocação publicista do processo, não é mais possível manter o juiz como mero espectador da
batalha judicial. Afirmada a autonomia do direito processual e enquadrado como ramo do direito público, e
verificada a sua finalidade preponderantemente sócio-política, a função jurisdicional evidencia-se como um poder-dever do Estado, em torno do qual se reúnem os interesses dos particulares e do próprio Estado.”
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOUVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral..., ob. cit., p. 65.
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e a coerência através da extinção da ação declaratória incidental, realizando objetivos
estatais de estabilização de situações jurídicas e resolução de conflitos na maior medida
possível.
7.2. Violação do princípio da correlação
Seguindo ainda a ideologia de que o juiz deveria ser “sujeito inerte e passivo”, na
expressão de Didier Júnior104
, o individualismo reinante no Estado liberal demandava a
regra de correlação entre a decisão e o pedido.
“Daí se vê que a decisão guarda intrínseca relação com a
demanda que lhe deu causa. Há entre elas um nexo de
referibilidade, no sentido de que a decisão deve sempre ter como
parâmetro a demanda e seus elementos. É por isso que já se disse
que a petição inicial é um projeto da sentença que se pretende
obter.”105
Não decidir nos limites da lide significa decidir aquém deles (citra petita), fora
deles (extra petita) ou além deles (ultra petita).106
Quanto ao julgamento citra petita, revela-se na ausência de manifestação acerca do
pedido, de fundamento de fato ou de direito trazido pela parte ou de pedido formulado
contra determinado sujeito do processo. Nenhum desses casos se relaciona à pretensa
violação da coisa julgada extensiva às questões prejudiciais.
Em relação ao julgamento extra petita, a decisão tem natureza diversa ou concede
coisa diferente da que foi pedida, leva em conta fundamento de fato não trazido por
nenhuma das partes, ou atinge sujeito externo à relação jurídica processual. Também não
diz respeito ao nosso trabalho.
Tratando-se do julgamento ultra petita, a decisão considera fatos ou pedidos não
discutidos no seio do processo, ofendendo o contraditório e o devido processo legal. A
104 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,
vol. II, p. 342. 105 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeio: Forense,
1988, v. 3, p. 155 apud DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit., p. 342 106 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,
vol. II, p. 343.
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extensão da coisa julgada, pela crítica, seria enquadrada neste caso, pois “na decisão ultra
petita, o magistrado analisa o pedido da parte ou os fatos essenciais debatidos nos autos,
mas vai além deles, concedendo um provimento ou um bem da vida não pleiteado
(...)”107
(grifo nosso), ou seja, consistiria em dar “coisa que não foi pedida”.
Contudo, devemos encarar o pedido de julgamento da questão principal como um
pedido prejudicado por um pedido anterior. Isto porque, quando a parte apresenta suas
razões, e dentre elas o fundamento da prejudicial, trocando em miúdos diz-se
“considerando que eu sou filho do réu, desejo receber pensão alimentícia”. Não existe
provimento final sem a constatação da relação jurídica que enseja a obrigação. Dos
exemplos já apresentados neste trabalho, fica claro que primeiro se pede que a relação seja
considerada existente, para depois pedir o direito derivado desta relação; ou, como seja
falso certo documento, que a obrigação seja declarada inválida. Não existe um pedido sem
o outro. Ora, se a prejudicial será controvertida, comprovada, e “decidida” pelo juiz para
que possa chegar ao objeto principal, porque não deveria ser considerada julgada?
Não se pretende aqui considerar que o pedido seja implícito ou derivado, mas que
verdadeiramente, há um vínculo de prejudicialidade entre o pedido de julgamento da
questão principal e a questão prejudicial. Nem por isso poderá o juiz tornar coisa julgada a
prejudicial sem notificação das partes (apesar de o art. 514, §1º do novo CPC definir que
todas as questões prejudiciais no seio do processo ficarão protegidas pela coisa julgada,
sem discricionariedade do juiz ou das partes), pois o efetivo contraditório determina que,
mais que nunca, sejam especificamente fixados os pontos controvertidos da lide e
expressamente sejam advertidas as partes sobre a estabilidade da questão prejudicial, para
que se esmiúcem em provas tanto quanto necessário.
7.3.Os problemas de competência e adequação procedimental
Aponta também a doutrina a violação de normas relativas à competência e à
incompatibilidade dos procedimentos mais céleres com um julgamento, que fosse
considerado definitivo, em sede de análise somente incidental. Aponta Leite: “Seria
flagrantemente ilícito estender a autoridade da coisa julgada a pronunciamento emanado de
107 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito..., ob. cit.,
vol. II, p. 344.
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juiz incompetente para conhecer da questão quando veiculada principaliter ou proferido
em procedimento inadequado.”108
O juízo deverá ter competência absoluta para conhecer a questão prejudicada e a
prejudicial; em não tendo, o processo terá somente o conhecimento da questão prejudicial,
e não efetivo julgamento.109
Em relação ao procedimento, se ambas as questões puderem ser processadas no rito
ordinário, não haverá problema; assim como também não haverá se a questão prejudicial
demandar rito sumário e a prejudicada, rito ordinário. Em sendo o rito referente à questão
prejudicial especial, ou exigir a prejudicial rito especial distinto para o adotado para o
processo, entendemos que não deverá ficar coberto pela coisa julgada, sendo analisada
apenas incidenter tantum. A preocupação neste caso se refere à preservação do regime
probatório previsto em lei para discutir a questão, concordando que o prejuízo seria
irreversível.110
Não se pretende estender a autoridade da coisa julgada para questões a respeito das
quais não tenha competência o juiz, ou em não sendo o procedimento adequado. Deste
modo, restringimo-nos a uma certa classe de questões prejudiciais muito intimamente
ligada à relação jurídica discutida, o que garante que não ocorram os desvios previstos,
como o de imprevisibilidade de discussão profunda da questão e inadequação processual
para discussão da matéria. Assim como a ação declaratória incidental foi disciplinada
nestes termos, de ser compatível a competência e o procedimento, pretendemos dar-lhe um
outro enfoque haja vista a extinção da ação em si, supridos contudo seus objetivos pela
extensão da coisa julgada à questão prejudicial, nos moldes do novo art. 484. Entendemos
válida a intenção do legislador e útil o fim de um “novo pedido dentro de um mesmo
processo”: primeiramente, porque não cabe dar arbítrio à parte quanto a isto, pois não pode
querer o provimento final e denegar o julgamento que declare existente ou inexistente a
relação que deu ensejo à obrigação, por exemplo; e segundo porque a inserção do pedido
dentro do processo causa confusão quanto às provas e às alegações, pois nem as partes nem
108 LEITE, Clarisse Frechiani Lara. A prejudicialidade..., ob. cit., p. 126. 109 Como por exemplo em se tratando de ramos do direito distintos, como processo que pretenda declaração
de validade do casamento, tendo em vista suposta bigamia. O crime de bigamia só poderá ser propriamente
apurado em sede de processo penal, de modo que o juiz conhecerá desta questão somente incidentalmente
sem a formação de coisa julgada material. 110 “Não seria razoável atribuir a força de coisa julgada a pronunciamento emitido sobre tal ou qual questão,
em regime probatório diferente daquele que se reputou apropriado à discussão dela. Ter-se-ia escancarado a
porta à fraus legis.” MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 94.
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o juiz conseguem distinguir se estão peticionando/pronunciando-se a respeito da questão
principal ou da questão prejudicial. O mais adequado é a delimitação pelo magistrado da
questão prejudicial a ser julgada em definitivo, de modo que o contraditório ocorrerá
normalmente, em função de todo o campo de discussão da causa, mas estabilizado, desde o
início, que a questão ficará julgada em definitivo, apesar de apresentada na fundamentação
da sentença.
7.4. O problema da morosidade
Nossa argumentação neste sentido já foi extensamente trabalhada nos capítulos
anteriores, de sorte que a questão terá de ser debatida de qualquer maneira, melhor é que o
seja por inteiro, numa medida de cognição exauriente (já que o juízo é competente e o rito
é adequado) e fique estável para garantir segurança jurídica e legitimidade da decisão.
Cabe acrescentar que nos termos em que se apresenta a ação declaratória incidental
no CPC de 1973, o modo de progredir no processo é dificultoso e confuso, o que, na
mesma medida, atrasa o resultado. Esta ação pretendia dar completude ao provimento
jurisdicional e resolver os problemas quanto aos limites reduzidos de coisa julgada, mas só
gerou novos problemas.
Assim, acreditamos que no campo teórico, atrasaria o processo, mas na prática não
haverá prejuízo substancial neste sentido.
7.5. Contradição meramente lógica
Barbosa Moreira enxerga a problemática aqui tratada sob outro aspecto:
Ademais – e aqui se toca no nervo da questão -, o
ordenamento jurídico em regra se esforça ao máximo por evitar a
contradição prática dos julgados, mas não se inquieta no mesmo
grau com a contradição puramente lógica ou teórica. O que a lei
não quer, acima de tudo, é que uma decisão judicial negue a
determinada pessoa o “bem da vida” que outra decisão lhe atribuiu,
ou vice-versa. Em perspectiva diferente, caberia dizer que a “regra
jurídica concreta” disciplinadora de certa relação não pode ter ora
tal teor, ora teor contrário. A uniformidade, por este ângulo, é
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essencial à certeza do direito, à segurança da vida social; e garanti-
la é justamente a função precípua do instituto da coisa julgada.
Que este pronunciamento, entretanto, adote premissas lógicas
incompatíveis com as daquele outro, semelhante eventualidade não
a encara o ordenamento com igual repulsa.111
Primeiramente, o autor desconsiderou a contradição prática que terá diante de si se
a questão prejudicial conhecida num primeiro processo for contrariada por uma decisão
que se dê num segundo processo, que discuta o assunto como causa prejudicial. Também
desconsiderou o autor o desprestígio que tal situação acarreta para a atividade jurisdicional.
A respeito de a contradição ser meramente teórica, e por isso admissível: “tal explicação é
cerebrina e de difícil entendimento para o jurisdicionado”112
, ensinamento de uma clareza
que não precisa ser retocada.
Além disso, a prejudicial não é apenas uma das premissas lógicas que compõe a
motivação da decisão, mas uma premissa necessária à decisão, ligada ao mérito da causa.
Ainda, poderá ser objeto de demanda autônoma, o que significa que, ainda mais grave que
ser contrariada em sede de questão prejudicial em outro processo, poderá ser posta a
máquina judiciária em atividade num processo exclusivamente voltado para rediscuti-la.
A redação do novo CPC soluciona esta problemática satisfatoriamente: já que a
questão prejudicial será decidida com força de coisa julgada, outro processo que perpasse a
mesma questão será obrigado a considerar a premissa nos mesmo sentido que o primeiro
julgamento, e estará obstada a ação autônoma para discutir a causa prejudicial.
Segundo o entendimento de Moreira, a contradição é meramente teórica e absorvida
pelo sistema. Ora, um combate direto entre decisões judiciais que se contradizem não pode
ser classificado como uma “contradição a ser absorvida pelo sistema”. Em sede de controle
legislativo, são postos à disposição remédios legais de controle de normas conflitantes, que
poderão ser revogadas ou revistas. Neste caso, teremos duas normas individuais, criadas
por juízos distintos, que não poderão ser analisadas conjuntamente para resolução do
confronto. Nesta medida, a extensão da coisa julgada atua como uma proteção, um controle
111 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais..., ob. cit., p. 95/96. 112GIDI, Antonio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos..., ob. cit.,p.
106.
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à produção jurisdicional e assegura necessária referibilidade de uma decisão em relação à
outra.
7.6. Cognição
Argumenta-se que o nível em que se dará a cognição da questão prejudicial poderá
ser insuficiente (porque em sede de questão principal seria mais profunda), de modo que
não seria plausível a formação da coisa julgada sobre a questão.
Primeiramente, teríamos o mesmo problema em ação declaratória incidental. A
solução preconizada era a de possibilitar o pedido de extensão do objeto do processo
somente se compatível o procedimento, que relaciona-se com o tipo de cognição
empregado na lide.
Em sede de procedimento sumário, de jurisdição de conhecimento, aponta a
doutrina que há formação de coisa julgada, enquanto para procedimento de jurisdição
cautelar e voluntária não há.
O procedimento ordinário é, em abstrato, apto à cognição exaustiva de qualquer
tipo de causa, independentemente de seu grau de complexidade. Quanto ao procedimento
sumário e Juizados Especiais, a lei reserva-os para causas que não exijam atividade
cognitiva complexa.
Para a formação da coisa julgada exige-se que não tenha havido restrições às
alegações de certas matérias, ou a produção de certas provas, para que a cognição do juiz
seja suficientemente profunda, e aí sim, possa alcançar a coisa julgada. Assim, em havendo
restrições, entendemos que não pode a questão prejudicial ficar acobertada pela coisa
julgada material, pois teríamos uma estabilidade quase intransponível. Deve ser dado à
parte a oportunidade de propor ação que se esmere na cognição exauriente do ponto
controvertido.
A clássica exemplificação que “demonstra” a inviabilidade da extensão da coisa
julgada fica então rechaçada, pois uma questão prejudicial decidida no âmbito do Juizado
Especial Cível, que traz procedimento simplificado, e limitada instrução probatória, não
poderá, por óbvio, ser considerada definitivamente julgada, a ponto de não poder ser
rediscutida em sede de procedimento ordinário, porque a coisa julgada deve atuar como
garantia para as partes e não como limitação ao seu direito de prova, ou à ampla defesa e
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ao contraditório. Caberá a questão prejudicial acobertada pela coisa julgada, contudo,
quando o procedimento for de cognição exauriente, e apto o procedimento.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, entendemos que a expectativa social exige que o provimento
seja justo e coerente com princípios de Direito e outras normas individuais concretas, pois
não se pode permitir que provimentos contraditórios coexistam. Como não há meios de se
garantir que a questão, se reproposta posteriormente, em outro juízo, chegaria ao mesmo
resultado, em virtude do pressuposto de que os juízes são humanos e a aplicação do Direito
não é exata, então o sistema precisa se blindar contra incongruências através de
mecanismos objetivos, resguardando deste modo a autoridade do primeiro provimento
judicial na maior medida possível.
Por consistir o processo na construção de um diálogo humano, espera-se que a
aplicação seja mais adaptada à realidade e consentânea à situação concreta, e não uma
aplicação mecânica e isolada. Assim, a elaboração humana traz a vantagem de poder
aproximar-se mais de um provimento substancialmente bom e verdadeiramente aplicável,
de modo que podemos preservar a lógica e a coerência. Neste caso, a produção de normas
jurídicas deve ultrapassar o mandamento de coerência sistêmica aplicada às normas
abstratas e atuar na produção normativa como um todo, englobando os provimentos
judiciais. A permissão meramente formalista de poder rediscutir a questão prejudicial
revela uma lacuna própria de uma regulamentação mecânica e incompleta, que teme
aproximar-se de uma construção muito humanizada e realista e recair na máxima “o juiz
determinará de acordo com o caso concreto”, abertura excessiva e inadmissível em sede de
coisa julgada. Permitir que o arbítrio puro do juiz determine o âmbito da coisa julgada
significa ter que garantir, por outro lado, mecanismos mais fortes de controle desta atuação
judicial, o que também não resolve o problema em questão. Por outro lado, deixar a
extensão da coisa julgada somente a cargo das peculiaridades da causa, e estabelecer a
preclusão da questão prejudicial apenas em um segundo processo se alegada como defesa,
como faz o Direito norte-americano, traz mais insegurança às partes, que “provam tudo o
tempo todo”, temendo a preclusão, sem contar a dificuldade de aplicação dos requisitos já
que nada foi estabelecido na primeira demanda, a respeito do que ficaria precluso e
quando. Neste viés, o Novo CPC se revela como uma disciplina criteriosa da matéria, que
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equilibra os princípios dispositivo e o respeito aos níveis de cognição, grandes
preocupações dos doutrinadores, e a necessidade de uma atuação lógica e coerente do
judiciário.
Isto porque em tempos de considerar-se o cidadão destinatário do Judiciário e do
Direito em virtude do amplo acesso à justiça, da jurisdicionalização da política, da atuação
ativa e maciça do Judiciário na vida das pessoas, esta ciência precisa entrar em sintonia
fina com as necessidades de seu público alvo. O Direito precisa ser substancial, justo, e
atuar como um todo, em uníssono, cada vez mais completo e coerente. No estágio em que
estamos quanto à evolução do Direito Processual, não cabe mais admitir restrições
formalistas excessivas. O modo de ser da prestação jurisdicional é um reflexo da força
política do Estado, e como tal não pode ser facilmente alterada, sem razões suficientes, sob
pena de abalar sua própria autoridade. O judiciário precisa se aproximar das pessoas, e é o
que se tem procurado fazer através da celeridade, da assistência judiciária gratuita, da
conciliação, ou continuará como mera forma, mero escrito, sem contato com a realidade.
Um Direito que não sirva aos seus jurisdicionados, para quê serve?
A atuação estatal só será legítima se for coerente com normas jurídicas e decisões,
que consagram normas individuais, para que se resguarde o poder do Estado e a própria
coercitividade de sua atuação. Se o direito não se realiza ou se os provimentos são
contraditórios, fica subtraída a crença no Judiciário como expressão do Poder do Estado,
que faz cumprir o que determina e decide de acordo com o ethos da sociedade, tornando-se
apenas “o judiciário é uma loteria”. Realizar os valores sociais envolve, acima de tudo,
preservar a segurança jurídica, e através dela provimentos coerentes, que se completem, e
não que se excluam. O processo não é mero instrumento do Direito material, mas ele
próprio precisa ser reflexo da aplicação do Direito material.
Restringir excessivamente a coisa julgada, como nos moldes do CPC de 1973,
desnatura a qualidade da coisa julgada de garantir que o sujeito usufrua de seu direito,
reconhecido pelo Estado, porque abre para novas discussões em juízo e para a eternização
da litigiosidade.
Assim, os termos estabelecidos no Novo CPC respeitam estes valores e garantem
uma definição dos limites objetivos da coisa julgada harmoniosa com os princípios
constitucionais e processuais. Em se firmando um momento único para pontuar os pontos
controversos, e também as questões prejudiciais, o despacho saneador passa a ser, mais que
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nunca, momento oportuno para por ordem ao processo, torná-lo claro para as partes e apto
para a instrução e julgamento.
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399
EXECUÇÃO CIVIL – ENTRAVES E PROPOSTAS1
Leonardo Greco
Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; Professor Adjunto de Direito Processual Civil da
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Quando o tema desta palestra me foi proposto eu fiquei a pensar se os juízes devem
refletir sobre os entraves e sobre as propostas para superar os entraves da execução civil ou
somente sobre os entraves porque as propostas em grande parte dependerão de reformas
legislativas. É verdade que estamos em tempo de reforma legislativa, que é a reforma do
Código de Processo Civil, mas nesta altura parece que o projeto de novo Código de
Processo Civil está numa fase de tramitação em que se delineiam apenas duas alternativas:
ou a redação da Câmara ou a redação do Senado. E a visão que eu tenho de execução vai
muito além do que pode ter sido cogitado na Câmara, no Senado ou na Comissão de
Juristas que elaborou o anteprojeto. Não se trata de uma visão que eu hoje vou exteriorizar
pela primeira vez, movido por um sentimento mesquinho de crítica aos projetadores dessa
reforma, como se ela pudesse ser diferente, movido por uma certa dor de cotovelo porque
eu não participei diretamente da elaboração do projeto. Ao contrário, é uma visão que eu
sustento desde 1999, quando eu prestei o concurso para professor titular da Faculdade
Nacional de Direito e em seguida publiquei os dois volumes do meu Processo de
Execução. Fiz na época alguns estudos e algumas palestras sobre a crise da execução. Tudo
o que eu vou dizer aqui é aquilo que eu venho dizendo há treze ou catorze anos.
1 Texto revisto da palestra proferida em 7 de outubro de 2013 no curso de aperfeiçoamento de juízes da
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, no qual o autor retoma e atualiza ideias já manifestadas
em estudos anteriores, especialmente no artigo “A crise do processo de execução”, publicado em Temas atuais de Direito Processual Civil, coordenado por César Augusto de Castro Fiuza, Maria de Fátima Freire
de Sá e Ronaldo Brêtas C.Dias, ed. Del Rey, Belo Horizonte, pp.211-286; e no livro do próprio autor Estudos
de Direito Processual, ed. Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes – RJ, 2005, pp.7-88.
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Por outro lado, quero deixar bem claro que, ao dizer que a minha reflexão sobre a
execução vai muito além da reforma que está sendo projetada, eu não estou fazendo uma
crítica àqueles que fizeram ou estão fazendo o novo Código, porque eu entendo que há
certos temas no processo civil, como a execução, como o direito probatório, como as
medidas cautelares, sobre os quais o legislador, quando se dispõe a elaborar um Código,
não encontra uma reflexão madura. Então, ele acaba sendo refém do sistema pré-existente,
ao qual ele introduz alguns aperfeiçoamentos, aqui e ali, preferindo manter a continuidade
da disciplina legislativa anterior a enveredar pelo caminho de tentar formular uma reforma
radical. É o que nós vemos na execução. Não há no Brasil uma reflexão madura sobre a
execução, uma reflexão que leve em conta toda a reflexão que se travou e se trava no
continente europeu e mesmo no direito anglo-americano, porque a crise da execução não é
uma crise exclusivamente brasileira. A crise da execução é uma crise universal.
Quando eu escrevi o meu livro sobre a execução – terminei o primeiro volume em
1999 e o segundo em 2000 –, no primeiro volume eu procurei fazer uma pesquisa no
direito comparado para ver qual era o estado da arte sobre a execução. Se hoje eu tivesse
de reescrever aquele livro – e espero ter de reescrevê-lo porque nas minhas Instituições ele
deverá ser o quarto volume – eu terei de fazer essa pesquisa toda de novo porque de 1999
até hoje praticamente todos os países que eu pesquisei reformaram a execução. A Espanha,
a Inglaterra, a França, Portugal duas vezes – acabou de entrar em vigor um novo Código de
Processo Civil em Portugal no último dia 1º de setembro – reformaram a execução porque
estavam insatisfeitos com a execução anterior.
1. As causas da crise
A verdade é que alguns fatores são frequentemente apontados como causadores da
crise da execução que, como já disse, não é uma crise unicamente brasileira. O primeiro
fator é o excesso de processos: nos grandes centros o crescimento da máquina judiciária
não acompanhou a expansão do número de litígios. E, no caso da execução, essa expansão
teve como uma das causas primordiais a democratização do acesso ao crédito. O sistema
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financeiro se expandiu nos últimos anos de uma maneira espantosa, inclusive dando
crédito a quem não pode pagar, sabendo que não vai pagar no dia em que dá o crédito.
Quando eu entro numa loja de departamentos e vejo ali anunciado que aquela loja
dá crédito para compras a prazo a quem simplesmente apresentar uma carteira de trabalho
com emprego remunerado pelo salário mínimo, é porque ela sabe que 20, 30, 40 %
daqueles que vão comprar a crédito evidentemente não vão pagar. Mas é o giro dos
negócios. A loja tem de financiar, o dinheiro do financiamento tem de sair e depois a
inadimplência vai ser coberta pela taxa de juros dos que pagam. Os que pagam, pagam
pelos que não pagam e o Judiciário vai ser o cemitério das cobranças inviáveis. E a dívida
ativa do Estado é a mesma coisa. Eu vi um número – agora existe a justiça em números no
site do CNJ, que eu não consulto porque na estatística brasileira eu acredito pouco – ouvi
dizer que há um milhão e quatrocentas mil execuções fiscais no Estado do Rio de Janeiro
ou coisa assim, que só aqui na Capital, da Prefeitura, há 900.000 execuções fiscais E
parece que são só dois juízes da Fazenda Municipal, mas também não precisa de mais
porque os processos não andam. Eles estão lá parados, dormindo no cemitério dos cartórios
da Divida Ativa.
O segundo fator desse excesso de execuções é por certo a inadequação dos
procedimentos executórios: o juiz da execução, prisioneiro dos ritos que o distanciam das
partes e da realidade da vida, impulsiona sem qualquer apetite a execução, conduzindo-a
ao sabor dos ventos das provocações impacientes do credor e das costumeiras
procrastinações do devedor.
Outro fator é a ineficácia das coações processuais: o devedor não colabora com a
execução e os meios de pressão que a lei estabelece não são suficientes para intimidá-lo.
Ainda outro fator é um novo ambiente econômico e sociológico: o espírito
empresarial e a sociedade de consumo estimulam o endividamento das pessoas e o
inadimplemento das obrigações pelo devedor deixou de ser vexatório e reprovável. Há
muitos anos atrás, antes da minha geração, ser devedor era imoral, era reprovável, era
vergonhoso. Hoje parece que ser credor é que é vergonhoso. Todo mundo é devedor.
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Mudou o ambiente. Deixou de ser vexatório e reprovável ser devedor e, em consequência,
as ações de cobrança e execuções vão se multiplicando, transformando-se num fenômeno
natural dessa nova realidade econômica.
Um último fator relevante, que é apontado universalmente como obstáculo à
eficácia ou à eficiência da execução é a progressiva volatilização dos bens: mudou
inteiramente o perfil patrimonial das pessoas, antes concentrado em bens de raiz, e agora
tendencialmente dirigido a investimentos em títulos e valores facilmente negociáveis, o
que dificulta a sua localização pelo credor. Se a gente pensar no mundo globalizado de
hoje, transferem-se com um clique no mouse de um computador dinheiro, aplicações de
um país para outro. Ser devedor e ocultar os seus bens se tornou muito mais fácil do que
era antigamente.
2. Características da execução
Para repensar a execução, nós temos de fixar algumas premissas. A primeira é a de
que a execução tem características próprias, que não são as características do processo de
conhecimento. A atividade jurisdicional na execução é inteiramente diversa daquela que o
juiz exerce no processo de conhecimento: pouco tem de intelectual; é atividade
preponderantemente prática, que atua e modifica o mundo exterior, lidando com pessoas e
bens do mundo real, no qual os valores e interesses se apresentam em constante mutação.
No exercício dessa atividade, as decisões que o juiz deve adotar não são ditadas por
critérios de estrita legalidade. É uma falácia continuar pensando que o juiz na execução
não pratique atos discricionários. Ao contrário, o juiz pratica muitos atos discricionários. O
juiz na execução não faz simplesmente a subsunção dos fatos à lei, mas ele elabora juízos
de conveniência e oportunidade, que mais se assemelham às de um operador do mercado,
do que às de um jurista.
Também como processo, a execução difere profundamente do processo de
conhecimento, sendo inteiramente inadequado tentar aplicar-lhe a teoria geral naquele
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inspirada. Claro que há institutos comuns, como os atos processuais, as decisões, os
recursos. Mas, estruturalmente, o que o juiz faz na execução não tem nada a ver com a
lógica da cognição.
Ainda como processo, a execução não é simplesmente uma relação jurídica entre
duas partes, mas dela participam em posições subjetivas específicas muitos outros sujeitos,
titulares de interesses próprios, como o arrematante e os credores concorrentes, interesses
sobre os quais o juiz também tem de velar.
3. Escopos da modernização da execução
Portanto, quais devem ser os escopos da modernização da execução? O desafio que
a execução apresenta ao jurista é o de forçá-lo a abandonar uma atitude meramente
contemplativa e conformista de sistematização exegética do ordenamento existente, em
busca de novos paradigmas que sirvam de fundamentos para construção de um novo
sistema normativo, para que num futuro não distante a execução se torne, dentro do
possível, um instrumento efetivo e célere da mais ampla satisfação do credor, de um lado,
com a menor onerosidade para o devedor, sempre respeitadas integralmente as garantias
processuais dos direitos fundamentais, como o devido processo legal, o contraditório e a
ampla defesa.
Como eu disse há pouco, nos últimos vinte anos, vários países promoveram
reformas na sua legislação relativa à execução civil, reformas profundas, como a França, a
Itália, a Espanha, Portugal. E até o Japão fez em 1979 um Código de Execução Civil. Em
trabalho recente, o jurista japonês Masanori Kawano diz que os escopos de uma moderna
execução seriam: 1º. A definição de um procedimento rápido; 2º. A efetiva satisfação dos
credores; 3º. A garantia da posição dos adquirentes ou arrematantes; e 4º. A garantia dos
direitos fundamentais dos devedores2.
2 Rolf Stürner e Masanori Kawano (eds.), Comparative studies on enforcement and provisional measures, ed.
Mohr Siebeck, Tübingen, 2011, p.11.
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Acho que as reformas que se fizeram no Brasil com as leis 11.232/2005 e
11.382/2006 tiveram um mérito muito restrito: a redução dos exageros das intimações
pessoais e da exigência de penhora para a defesa nos títulos extrajudiciais. Resultado muito
aquém do desejado e do que foi proclamado. Como não há uma reflexão crítica, um debate
permanente e maduro sobre o nosso sistema normativo da execução, o projeto de Código,
cuja elaboração se encontra em curso, o que vai provavelmente fazer será transpor, com
pequenas modificações, o sistema que sobreveio com as Leis citadas.
4. Medidas concretas
Neste ponto da minha exposição, vou começar a tratar de entraves e propostas.
4.1. A descentralização dos atos executórios
O primeiro entrave é a excessiva centralização da execução nas mãos do juiz. O
juiz sentenciador não tem vocação para ser um executor. Afinal, a atividade prática a ser
desenvolvida na execução pouco ou nada tem em comum com o julgamento de litígios
com fundamento em conhecimentos jurídicos.
Quem me despertou para este problema foi Liebman, naquele famoso livro de 1931,
traduzido para o português com o nome de Embargos do Executado, mas que na Itália se
chama opposizione di merito, que explicava que esta execução que nós temos, conduzida
pelo juiz, vem da tradição romano-germânica da execução per officium judicis, mas os
franceses perceberam, ainda no Ancien Régime que o juiz não é um bom executor. Aliás,
executar suja as mãos do juiz e o juiz aristocrata, o juiz que participava daquela casta
senhorial não queria sujar as suas mãos com a prática de atos de invasão do patrimônio das
pessoas, apreensão e arrematação de bens etc. E então os juízes franceses começaram a
delegar essa função para auxiliares, os sergents du roi, aqueles executores, que
participavam da administração também como agentes do rei e esse sistema foi introduzido
no Código de Napoleão – conta Liebman - e quando Napoleão saiu com o Código debaixo
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do braço, montado num cavalo, pela Europa toda fazendo as suas conquistas, implantando
o Código em parte da hoje Alemanha e na Itália, todos gostaram desse sistema em que não
é o juiz que executa. É um auxiliar que executa. E, quando Napoleão foi embora, esses
países conservaram esse sistema de execução descentralizada. Não que a execução não seja
judicial, ela o é, mas o juiz é preponderantemente um supervisor da execução.
Na França, por exemplo, o credor não se dirige ao juiz para executar um crédito.
Ele se dirige ao huissier de justice, que é um oficial de justiça. Ele escolhe um oficial de
justiça como a gente escolhe um tabelião para lavrar uma escritura. “Tome lá; cobre esse
crédito”. E esse oficial de justiça ou tabelião, que é um funcionário qualificado, recebe o
título, verifica se ele se reveste dos requisitos necessários à promoção da execução e intima
o devedor a pagar. Se o devedor não paga, ele lhe penhora os bens e aí comunica ao juiz. O
juiz só toma conhecimento de que a execução foi instaurada depois da penhora. Se o
crédito foi pago, o juiz nem é acionado. Quem escolhe os bens é o oficial de justiça. Quem
apregoa, arremata, aliena os bens é o oficial de justiça. O juiz está acima, à disposição do
oficial de justiça, do credor, do devedor, do terceiro arrematante para qualquer reclamação,
para o reexame de algum ato que o oficial de justiça pratique ou queira praticar, mas o
executor direto não é o juiz.
No direito norte-americano não é diferente. É um sheriff, um executor, um
funcionário especializado nisso. Portugal, que adotava sistema igual ao brasileiro, o
sistema ibérico de origem medieval de execução pelo próprio juiz, em 2007 acaba com a
execução pelo juiz e cria os agentes de execução. No começo houve muita dificuldade, eles
aproveitaram uma categoria que já existia, de menor qualificação, os tais de solicitadores,
e os transformaram em agentes de execução. Hoje o Código português, que entrou em
vigor no último dia 1º de setembro, trata do agente de execução e reitera que quem executa
é o agente de execução, sob supervisão do juiz.
Sem dúvida essa evolução depende de reforma da lei e é preciso formar esse
profissional. O nosso oficial de justiça está preparado para ser esse agente de execução?
Claro que não. Mas a descentralização dos atos executórios é imperiosa. Enquanto nós não
adotarmos essa providência, nós vamos continuar a ter essa execução emperrada,
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estrangulada, porque qualquer questão, por menos relevante que seja, tem de ser decidida
pelo juiz. E o juiz não é necessariamente um especialista naquilo que ele tem de fazer na
execução.
Isso sem falar que hoje o juiz se transformou num burocrata, com a chamada
penhora on-line. Pobre juiz! Há meses um juiz federal me disse que perdia um dia de
trabalho por semana apertando o mouse do computador na efetivação da penhora on-line.
Ouvi há dias no Espírito Santo que lá alguns juízes gastam mais de um dia por semana. O
juiz é um funcionário caro, que percebe um dos mais altos salários do Estado. Nós estamos
empregando toda a massa cinzenta desse juiz para ficar apertando com o dedo o mouse do
computador. Parece que houve até um juiz que foi ao Supremo, arguindo a
inconstitucionalidade da prática da penhora on-line pelo juiz, revoltado por ter sido
reduzido a ser um oficial de justiça. Essa distorção é comumente justificada no sigilo e na
segurança do sistema bancário, mas por que não aparelhar a justiça de funcionários
qualificados e responsáveis para efetuar a penhora on line? Por que tem de ser o próprio
juiz, com a sua senha pessoal? O juiz hoje é um escravo da burocracia da execução, esse
mesmo juiz que vive angustiado com os processos que ele tem de instruir ou em que tem
de dar sentenças, vigiado pelo CNJ com as suas metas irracionais, e ainda absorvido em
parcela relevante do seu tempo numa tarefa puramente mecânica.
Esse problema da descentralização da execução mais cedo ou mais tarde nós vamos
ter de enfrentar e acho que, de imediato, algumas providências podem ser adotadas, como,
nesse problema da penhora on-line, em que o emprego de uma nova tecnologia, em lugar
de melhorar, piorou o sistema em que a penhora, que outrora era sempre feita pelo oficial
de justiça, agora, só porque ela atinge um bem que se encontra acobertado por um certo
sigilo, que, para mim, está em nível bastante baixo nos graus de proteção da privacidade,
passa a ser tarefa exclusiva do juiz. Como se um simples funcionário do banco, que tem
acesso às contas-correntes de todos os clientes tivesse um grau de qualificação tão elevado
quanto de um juiz. Ora, isso é fruto de uma concepção de que a justiça é apenas o próprio
juiz. Ora, não há no nosso tempo nenhuma instituição pública ou privada, racionalmente
organizada, em que toda atividade-fim, toda atividade prática, toda atividade executiva, no
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sentido não de tomar decisões mas de cumpri-las, esteja concentrada na cabeça da
instituição, em que aquele que decide é aquele que executa.
4.2. A localização dos bens do devedor
O segundo entrave da execução é a dificuldade de localização dos bens do
devedor. Esse é um problema universal. Como eu disse, o patrimônio dos devedores
progressivamente se volatilizou. Todos os sistemas processuais modernos estão tentando
enfrentar esse problema. O direito anglo-americano e o direito alemão optam por
mecanismos punitivos, como o contempt of court e a imposição de prisão. O executado,
pelo dever de colaboração, tem de informar onde estão os seus bens e se ele não informa
ou omite a informação de que dispõe, é submetido à prisão. Não é uma boa solução.
Depois de toda a evolução que teve a prisão civil entre nós, acho que não é mais possível
cogitar de prisão civil. Acho que as coações e sanções civis devem ser preponderantemente
patrimoniais.
Mas há alguns problemas que precisam ser equacionados, com os quais o Judiciário
deveria se preocupar. O principal problema é que nós não temos um cadastro nacional de
bens, nem um cadastro nacional de pessoas e, nem mesmo, um cadastro nacional de
processos judiciais. O nosso sistema de registros públicos é estadual. Cada Estado tem o
seu próprio sistema. O único cadastro nacional de pessoas é o da Receita Federal – CPF e
CNPJ. Não há um cadastro nacional de bens de raiz, pois os cartórios de registros de
imóveis não são coordenados e ainda são serviços explorados em caráter privado. O mais
unificado é o de automóveis, que também é usado hoje na penhora on-line. Não existe um
cadastro nacional de processos judiciais. Com toda a informatização que hoje vive a
Justiça, e os milhões de reais que nela são gastos, é impossível saber se um devedor ou se
um contratante é parte em processos judiciais que podem por em risco a execução ou a
eficácia do negócio. As informações atualmente constantes nos sites dos tribunais são
incompletas, enquanto isso o nosso sistema cartorário é totalmente pulverizado. Ninguém
sabe quando a informatização vai conseguir unificar todos esses registros que são
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indispensáveis para que o credor e a própria Justiça possam desvendar a cortina de fumaça
em que pode se ocultar a situação patrimonial do devedor.
Mas acho que há três providencias que poderiam ser adotadas, que dependeriam de
lei, mas que ajudariam muito a resolver esse problema. A primeira seria, como na Espanha,
a criação de juros progressivos. Tem de ficar caro para o devedor ocultar os seus bens e
procrastinar. A procrastinação tem de encarecer a dívida, tem de ser penosa para o
devedor. Nós já tivemos juros progressivos na Justiça do Trabalho até 1987. Aí o Governo
Federal acabou com os juros progressivos porque ele passou, através das suas estatais, a ser
um dos grandes devedores na Justiça do Trabalho.
Outra providência que pode minorar a dificuldade de localização dos bens do
devedor é a indisponibilidade dos bens. É a solução adotada na redação original do código
uruguaio3, denominada de penhora genérica que, aliás, a Lei Complementar n. 118
introduziu na execução fiscal por sugestão minha em palestra que fiz a procuradores da
Fazenda Nacional. Quando se elaborou a Lei Complementar 118, para adaptar o Código
Tributário Nacional á nova Lei de Falências, foi introduzida na execução fiscal a
indisponibilidade dos bens do devedor, caso, citado para a execução, não venha a indicar
bens a serem penhorados. Pelo menos quem está no mercado formal, quem tem conta em
banco, quem tem cartão de crédito, quem usa o caixa automático para sacar o dinheiro
necessário para realizar as despesas cotidianas, vai encontrar o acesso ao dinheiro ou aos
bens bloqueado e aí vai se apressar em indicar bens a serem penhorados, para livrar-se da
indisponibilidade. Essa medida não vai ser eficaz para aquele que está no mercado negro,
na informalidade, mas resolve para grande parte que se encontra no mercado formal.
Outra solução possível, que os ingleses criaram na reforma de 1999, são os pre-
action protocols. Antes de instaurado o juízo, as partes têm o dever de informar uma à
outra tudo o que for relevante para o equacionamento daquela relação jurídica
controvertida. Os pre-action protocols funcionam bem, porque quem não colabora antes
paga muito depois, é posto em situação de grande desvantagem na futura demanda judicial.
3 Art. 380.
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Enfim, é preciso encontrar caminhos. Não são caminhos que dêm a solução
milagrosa para o problema da localização dos bens. O direito português sinaliza claramente
que o juiz precisa ajudar o credor e aqui é preciso distinguir o credor do título judicial do
credor do título extrajudicial, porque o credor do título extrajudicial, se ele é um credor
previdente, quando ele dá o crédito ele já faz o cadastro do seu devedor e já faz o
levantamento dos seus bens, já apura que bens o seu devedor tem. Só não faz isso aquele
que está dando o crédito no balcão da loja de departamentos para qualquer comprador sem
exigir garantia nenhuma. Esse já sabe que provavelmente não vai receber e não pode se
queixar. Ele deu crédito de modo imprudente.
O problema é o credor do título judicial. Este, coitado, foi vítima de um acidente,
atropelado por um caminhão, propôs a ação contra o dono do caminhão. Como é que ele
vai saber, como vai descobrir que bens que tem esse dono do caminhão?
Resolver por inteiro esse problema não é fácil e, até onde eu sei, nenhum país
encontrou a solução milagrosa. Na França, por exemplo, cabe ao Ministério Público
investigar os bens do devedor. Ele devassa todo o patrimônio do devedor e todas as fontes
de informação, ainda que sigilosas e informa ao juiz os bens que são necessários à
execução, quando os localiza. Não tem funcionado bem na prática.
Roger Perrot, na França, sustenta4 que é preciso ajudar o vencedor na procura do
devedor e dos seus bens. O Estado tem o dever de oferecer ao credor todas as informações
sobre o patrimônio do devedor. Ocorre que muitas vezes o juiz, até mesmo por pressão dos
titulares de cartórios, que não querem abrir mão de receber as custas dos seus atos, acha
que o credor o sobrecarrega desnecessariamente quando, ao invés de ir diretamente buscar
as fontes de informação, ele se dirige ao juiz. Mas há fontes de informação que somente
através do juiz podem ser devassadas, como as contas bancárias, as declarações de Imposto
de :Renda etc. Por que antes do ajuizamento da execução ou logo após o juiz não pode
exercer essa função assistencial?
4Roger Perrot, “L’effetività dei provvedimenti giudiziari nel diritto civile, commerciale e del lavoro in
Francia”, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, Giuffrè, dezembro 1985, p.849.
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4.3. Desestímulo aos atos protelatórios
Outro grande entrave à execução é a facilidade com que o devedor – e também
muitas vezes o próprio credor – protela a execução. Parece que o princípio da lealdade não
vigora na execução. Há uma tolerância exagerada com a procrastinação.
Aliás, a tolerância é uma característica do juiz brasileiro, característica essa que eu
elogio porque, dos males o menor, é preferível o juiz tolerante ao juiz autoritário. Já o juiz
francês é um juiz autoritário, mas há uma razão cultural de o juiz francês ser autoritário
enquanto o juiz brasileiro é tolerante. É que na França o advogado é credenciado pelos
próprios juízes para advogar em determinado tribunal, o que cria um compromisso de
solidariedade do advogado com a eficiência da justiça. Ele é em primeiro lugar um auxiliar
da justiça e em segundo lugar o defensor dos interesses de um litigante. No Brasil não
existe esse compromisso. Os advogados não se sentem comprometidos com a justiça, como
deveriam. E acho que o patrocínio obrigatório somente sobreviverá no Brasil se os
advogados efetivamente tiverem um compromisso com a boa administração da justiça. E,
então, os juízes sabem que a maior parte dos atos protelatórios é engendrada pelos
advogados e os juízes não punem as partes por eles representadas porque isso faz parte do
jogo. Além disso, o juiz menos tolerante pune a procrastinação uma vez e o tribunal
reforma a sua decisão. Pune a segunda vez e o tribunal de novo reforma. Na terceira vez
ele não pune mais, porque não adianta. E sempre a punição vai ser explorada como uma
possível violação do direito de defesa e do contraditório, pondo em risco a validade do
próprio processo. Então, o nosso juiz é tolerante e melhor o tolerante do que o intolerante.
Mas a verdade é que nós precisávamos ter mais astreintes para coibir o descumprimento do
dever de lealdade, assim como, a meu ver, nós precisávamos ter astreintes no
descumprimento de obrigações pecuniárias, pois hoje nós somente as temos para o
descumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entrega de coisa.
Mas não é somente o devedor que procrastina. O credor também procrastina. A
Fazenda Pública que ajuíza execuções aos milhares, sabendo que não vai encontrar bens,
não se dando nem ao trabalho de procurar os bens do devedor, somente para evitar a
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prescrição, porque ela já esperou a aproximação do limite do prazo prescricional para
ajuizá-las, essa deixa lá as execuções. Os bancos, as instituições financeiras, igualmente.
Como eu já disse, o Judiciário foi transformado num cemitério de cobranças inviáveis. As
instituições financeiras ajuízam essas execuções de créditos diretos ao consumidor,
sabendo que a maioria não vai ter resultado positivo. Ajuízam apenas para, no balanço do
final do exercício, lançar esses créditos de difícil realização como prejuízo, tirando um
pequeno proveito da inadimplência, porque na verdade quem vai cobrir o prejuízo dessa
inadimplência é o outro devedor que paga e, por isso, já arca com juros muito altos. E
ficam aí milhões – não milhares – milhões de execuções paradas que as instituições e o
Fisco ajuízam para sujar o cadastro do devedor, para negativar o nome do devedor, como
se diz vulgarmente. Com a negativação dos devedores, muitos deles ou seus herdeiros, um
dia, vão procurar negociar ou quitar essas dívidas, ou obter a decretação da prescrição, por
iniciativa própria e não dos credores.
Um recente estudo do IPEA sobre as execuções fiscais federais, encomendado pelo
Conselho Nacional de Justiça, revela uma realidade muito triste. Há varas de execuções
fiscais instaladas há mais de oito anos e que não realizaram uma única arrematação. A
penhora de bens se dá em apenas 15% dos casos5. Certamente a máquina que a União
mobiliza para cobrar a sua dívida ativa é mais cara do que o montante que ela arrecada
com essa atividade.
Há uns oito anos atrás eu participei de algumas reuniões de uma comissão no
Conselho da Justiça Federal, presidida pelo Ministro Teori Zavascki, que é um ilustre
processualista, que tentava propor uma reforma da lei das execuções fiscais para resolver
esse problema do volume excessivo de execuções inúteis, que ficam ai somente para
interromper a prescrição e jazer ad aeternum nos cartórios judiciais, sobrecarregando a
máquina judiciária. Essa comissão propôs transferir a interrupção da prescrição para a fase
pré-processual da execução fiscal, na inscrição da dívida, interrupção administrativa da
prescrição, e condicionar a propositura da execução judicial à indicação pelo credor dos
bens a serem penhorados. O Fisco interromperia a prescrição administrativamente e teria
5 Alexandre dos Santos Cunha (coord.), Custo unitário do Processo de Execução Fiscal na Justiça Federal –
relatório de pesquisa, ed. IPEA/CNJ, Brasília, 2011.
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mais cinco anos para procurar os bens do devedor. Ouço dizer que o INSS já tem um
serviço de localização de bens dos seus devedores. Os credores que se aparelhem para
identificar bens dos seus devedores.
Hoje, no direito italiano e no direito português, execução que fique parada por mais
de três meses por falta de bens, se extingue6 e não precisa intimar pessoalmente as partes.
O credor já constituiu o seu advogado. A ele cabe o ônus de acompanhar o seu processo e
de fornecer elementos para que esse processo vá adiante. E se ele não tem elementos, ele
que peça o apoio do juiz para localizar os bens, mas a execução não pode ficar parada,
porque ela é uma atividade prática, coativa, que gera constrangimento para o devedor, que
se justifica apenas na medida em que está sendo movimentada para a efetiva satisfação do
direito do credor. Nem o devedor deve ficar com a espada de Dâmocles sobre a cabeça,
negativado, se ele não tem bens ou se o credor não consegue identificá-los, nem o
Judiciário deve ficar com o ônus da guarda, conservação e cadastro desse volume de
processos que não andam e que, só para tomar conta, exigem um volume imenso de
recursos materiais e humanos. Um custo brutal, pelo qual o Estado não tem de
responsabilizar-se.
Os juros progressivos também ajudariam a resolver o problema da procrastinação,
porque é mais barato não pagar o seu credor e arcar com os juros da mora e eventual
correção monetária decorrentes do retardamento da execução do que ir a um banco e tirar
um empréstimo para pagar o credor. Os juros do banco são muito mais caros. Até o
empresário que fez um negócio que não foi muito bem sucedido e que precisa sair dessa
situação de dificuldade, ele é estimulado a procrastinar a execução em lugar de ir procurar
dinheiro limpo para pagar o seu credor.
O art. 475-J foi uma tentativa de criar um estímulo para que o devedor pagasse
espontaneamente a dívida, impondo-lhe, na sua inércia, aquele acréscimo de dez por cento.
Infelizmente, na minha opinião, ele foi deturpado pela jurisprudência, aliás, porque ele não
foi bem explicado. A exposição de motivos do projeto de lei de que o novo artigo se
originou é um texto de duas páginas para justificar a introdução de mais de uma dezena de
6 Código de Processo Civil italiano, arts. 481 e 497; Código de Processo Civil português, art. 750ᵒ.
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artigos no Código de Processo Civil. A ideia do 475-J era essa, a de criar para o devedor
um estímulo de logo pagar a dívida, assim que a Justiça a definiu, introduzindo uma
vantagem nessa iniciativa, a de não sofrer um prejuízo maior.
O dispositivo acabou sendo interpretado em sentido contrário. Dizia-se que a lei
anterior era muito favorável ao devedor, que tinha 24 horas apenas para pagar ou nomear
bens à penhora e, por essa interpretação, ele passou a ter quinze dias. Aliás, veja-se a
disparidade: na execução de título judicial, em que a certeza, liquidez e exigibilidade do
crédito já foram definidas por sentença, ele ainda tem quinze dias, enquanto na de título
extrajudicial, em que nada disso está definido, ele só tem três (CPC, art. 652). Por que?
Não me perguntem. Criação jurisprudencial. A jurisprudência é assim mesmo. Os
tribunais, nos casos concretos, vão resolvendo as questões que aparecem na sua frente. Não
é a jurisprudência que tem de ter uma visão de conjunto do sistema normativo.
Em Portugal a lei estabelece multa de 5% ao mês, se o devedor, intimado a indicar
bens à penhora, se omitir ou prestar declaração falsa (art. 750ᵒ do novo Código).
4.4. Excesso de execuções inviáveis
Outro ponto de estrangulamento, outro defeito ou entrave da execução, é o excesso
de execuções inviáveis, a que eu já me referi.
O capitalismo moderno transformou o Judiciário em lata de lixo, em cemitério.
Colocou o Judiciário dentro do seu processo de gestão empresarial. A instituição financeira
dá o crédito a quem não pode pagar. Nesses programas populares de financiamento de
moradia, de motocicletas, de utensílios domésticos, pagar não tem importância. O que tem
importância é votar. O sistema financeiro hoje gira em torno dessa psicose, dessa ciranda,
em que o dinheiro tem de ser emprestado, alguém tem de tomar o dinheiro, mesmo que
depois não pague, os juros dos que pagam é que vão cobrir e depois joga para o Judiciário
todo o lixo que sobrou, contrata um escritório de advocacia especializado no contencioso
de massa, que vai empurrando os processos do jeito que pode, e deixa lá. Quando o
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devedor toma juízo ou consegue um dinheirinho e quer pagar, aí faz um acordo e paga
40% da dívida, ou até menos, segundo tem chegado aos meus ouvidos, quando o credor é
uma instituição financeira pública. Somos nós que estamos pagando pela inadimplência e
por esses acordos iníquos.
O Judiciário é o desaguadouro de tudo isso. Não há como solucionar esse problema,
a não ser criando um filtro para o ingresso em juízo. Afinal, qual é a finalidade da
execução, o que o juiz faz na execução? Pratica atos coativos para satisfação do credor. Ele
pode praticar atos coativos se nem o credor, nem o devedor, nem ele próprio juiz localizam
os seus bens? Não pode. Vai praticar atos coativos sobre que?
Os atos coativos são pessoais ou patrimoniais. Os pessoais, que incidem sobre a
vontade do devedor, são de aplicação eficaz em certos tipos de obrigações, como as
obrigações de fazer ou não fazer e de entrega de coisa, mas de pouca valia no cumprimento
de obrigações pecuniárias, porque, de um lado, não podemos aceitar a prisão, e, de outro,
se não existem fontes de acesso às informações sobre os bens, nenhuma atividade prática,
mesmo de natureza patrimonial, pode ter alguma utilidade para a satisfação do crédito do
exequente.
Por que não se estabelece, como elemento componente do interesse de agir na
execução pecuniária, a necessidade de indicação de bens e se dá ao credor a possibilidade
pré-processual e o apoio estatal para ajudá-lo a localizar esses bens, mas não venha o
credor a sobrecarregar inutilmente a justiça enquanto não encontrar os bens do devedor. É
a lógica do projeto da comissão presidida pelo Min. Teori Zavascki. Se precisa interromper
a prescrição, se precisa negativar, que o faça pelo protesto ou outro meio extrajudicial, mas
sem atravancar o Judiciário com papel inútil.
Dentro da mesma lógica, deve-se caminhar para a extinção de todas as execuções
paralisadas por falta de bens, e não simplesmente suspendê-las, como atualmente preconiza
o art. 791 do CPC, permitindo ao credor a sua re-propositura posterior, se for o caso. Nessa
hipótese, não há razão para manter no Judiciário a sobrecarga desses milhares ou milhões
de processos inviáveis, artificialmente pendentes.
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Os portugueses criaram uma outra solução para esse problema do litigante habitual,
em geral uma instituição financeira, estabelecendo que toda sociedade comercial, que
ingressar em juízo no ano anterior com mais de duzentas ações, paga custas mais
elevadas7. Quem usa mais a justiça deve pagar mais pela sua utilização. Quem sabe por
uma revisão dos regimentos de custas se pudesse pensar em tornar mais oneroso o acesso à
justiça daquele que litiga mais, porque, no caso dos títulos extrajudiciais, aquele que litiga
com mais frequência, que se tornou um executor habitual, o faz porque não foi cuidadoso
no momento de conceder o crédito. Alguém poderá retrucar que isso poderá violar o
princípio da isonomia, mas nesse sentido temos pelo menos o precedente de Portugal.
4.5. A competência
Um outro entrave grave à execução é a questão da competência nas execuções de
títulos judiciais ou cumprimentos de sentença. O art. 475-P, introduzido pela Lei
11.232/2005, tentou minorar um pouco esse problema, eliminando aquela obrigatória
vinculação do juízo da ação para a execução, e permitindo que o credor promova a
execução no domicílio do réu ou onde se encontrarem os bens do devedor. É um pequeno
avanço, mas ainda não é o avanço ideal. Em verdade, a regra de competência de foro da
execução tinha de ser a localidade onde terão de desenvolver-se os atos executórios. É ali
que deveria se processar a execução de sentença. Se eu sei que os bens do meu devedor
estão em Petrópolis, eu pego aqui o meu título e o levo a Petrópolis e ali o executo. Os
europeus adotam essa regra de longa data. Quando Chiovenda criou aquela ideia, que
depois nós importamos, da competência funcional territorial, competência territorial
absoluta a que chamou de funcional, ele estava se referindo à execução. A execução tem de
ser onde vão ser praticados os atos executórios. Essa deve ser uma regra de competência
absoluta. Eu digo que o art. 475-P não é suficiente porque, de qualquer maneira, ele
dificulta a especialização de competência para a execução. Se a execução, como regra,
7 V. o art. 530 do novo Código de Processo Civil combinado com o artigo 13 do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-lei n° 34/2008), que estabelece uma taxa de justiça agravada para as sociedades
comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais providências
cautelares, ações, procedimentos ou execuções.
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deve ser processada no juízo que proferiu a sentença, não é possível na mesma área
geográfica criar um outro juízo para promover a execução de sentença. Não é possível criar
varas de execução de sentenças na organização judiciária. Há alguns anos a Justiça do
Trabalho tentou adotar essa providência no Paraná, criando varas especializadas em
execução de sentença, mas a experiência não foi adiante, certamente porque as instâncias
superiores devem ter reputado que essa criação era ilegal.
Na Europa é muito comum a especialização de determinados juízos para processar
a execução de sentença e aí os juízes passam a ter aquela predisposição, aquela perspicácia
para enfrentar com eficiência os problemas e entraves que frequentemente a execução
apresenta. O juiz deixa de ser o sentenciador para pensar na execução. Nesse aspecto é
positiva a nossa experiência das varas de execuções federais, embora ali somente caibam
as execuções de títulos extrajudiciais, porque o juiz passa a conhecer melhor até os
próprios devedores. E quando há várias varas especializadas na mesma região, os juízos
podem se comunicar e traçar orientações comuns, porque frequentemente um credor ou um
devedor transitam por mais de uma vara ou bens de um devedor são penhorados em
execuções diversas em varas diversas.
Quantas vezes o mesmo bem é penhorado em várias execuções e os credores
pensam que estão garantidos, mas o bem não é suficiente para arcar com qualquer delas,
porque o devedor não informa e os juízes não sabem, não colaboram entre si. Eles não
estão preocupados com a execução, pois estão comprometidos com a cognição, tendo de
fazer audiências e proferir sentenças nas ações. Eles não têm tempo para se dedicar à
execução. Jamais serão juízes especializados em execução.
Portanto, a regra de competência para a execução de sentença tinha de ser
reformada. Nós melhoramos um pouco com o art. 475-P, mas não chegamos ainda ao
ideal. A mudança da regra de competência vai permitir a especialização, que hoje já é
possível, mas apenas nas execuções de títulos extrajudiciais.
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4.6. Exagero das impenhorabilidades
Outro entrave da execução é o exagero do direito brasileiro com as
impenhorabilidades. Esse é um alerta que já havia dado em relação ao Código brasileiro de
39 o grande jurista português, José Alberto dos Reis. Ele assim se pronunciou8:
“O sistema brasileiro parece-nos inaceitável. Não se compreende que
fiquem inteiramente isentos os vencimentos e soldos, por mais elevados que
sejam. Há aqui um desequilíbrio manifesto entre o interesse do credor e o do
devedor; permite-se a este que continue a manter o seu teor de vida, que não
sofra restrições algumas no seu conforto e nas suas comodidades, apesar de
não pagar aos credores as dívidas que contraiu.”
A Lei 11.382/2006 quis limitar a impenhorabilidade da remuneração do devedor.
Em vários países desenvolvidos essa remuneração é impenhorável dentro de certos limites,
para assegurar o mínimo existencial, que é aquilo de que o devedor necessita para a sua
própria sobrevivência e da sua família. Mas não tem sentido, por exemplo, no caso de um
jogador de futebol que ganha R$ 400.000,00 por mês, estabelecer que os R$ 400.000,00
sejam impenhoráveis, de modo que ele se locuplete às custas do seu credor, que estará
impossibilitado de receber o que lhe é devido pela falta de outros bens penhoráveis. O
projeto de que resultou a Lei 11.382 quis colocar um limite a essa impenhorabilidade, mas
o Presidente Lula vetou. Agora o projeto do novo Código de Processo Civil está
pretendendo restabelecer um limite de 150 salários mínimos, se não me engano. É justo,
mas acho que ainda é alto.
Outro excesso de impenhorabilidade é a dos instrumentos de trabalho. No Brasil
são impenhoráveis os instrumentos necessários e os instrumentos úteis. A minha caneta de
ouro é um instrumento útil. Por que a minha caneta de ouro não pode ser penhorada? Por
acaso eu preciso de uma caneta de ouro para escrever? Posso usar uma caneta comum. Na
Alemanha a lei até permite que o credor ofereça ao devedor um outro instrumento de
trabalho mais barato para penhorar aquele mais caro. Aqui, não. Basta que o instrumento
8Processo de Execução, Coimbra Editora, 1985, Reimpressão, vol.1, p.384.
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seja útil para impedir que sofra a incidência da penhora. É verdade que essa questão
aparece pouco na jurisprudência, mas é um evidente exagero da lei.
Mas o maior escândalo, na minha opinião, é a Lei 8.009/90, que tornou
impenhorável a moradia da família. O bem não é inalienável. Não se trata de bem de
família, instituído como bem inalienável. O devedor pode vender a moradia, pode deixar a
família na rua, se quiser. Mas o credor não pode penhorar esse imóvel. E o pior é que a
jurisprudência entende que se trata de uma nulidade absoluta, ou seja, mesmo que o
devedor silencie, deixe penhorar a moradia para, nas vésperas da arrematação, alegar que
aquele bem é impenhorável, a jurisprudência acolhe essa alegação. Ele fez a chicana, foi
desonesto. Impossibilitou o credor de indicar outro bens que, nessa altura, possivelmente
não mais existem. No mínimo essa nulidade deveria ser relativa. Se o bem não é
inalienável, não é indisponível, e o devedor não embargou ou impugnou a execução
alegando essa impenhorabilidade, por que agora vai ele ter o direito de excluir esse bem da
execução, deixando o credor a ver navios? Muitas vezes entre a penhora e a alienação
judicial houve um intervalo de meses ou até anos e então o credor não vai encontrar outros
bens.
Eu não deveria contar a história que ouvi no Norte-fluminense a respeito da origem
da Lei 8.009. Mas vale recordar que ela foi originária de uma medida provisória editada
pelo Presidente Sarney, invocando a relevância e a urgência da matéria. Ouvi contar que
ela teria sido editada para beneficiar um usineiro endividado, porque alcançou até os
utensílios domésticos, os cristais do devedor. É claro que a jurisprudência, nesse ponto,
tem espancado um pouco, tem retirado certos exageros. Assim, se o devedor tem na
moradia duas televisões, uma pode ser penhorada. Mas um dos maiores males
procedimentais que a Lei 8.009 criou foi que agora o oficial de justiça não quer fazer mais
a penhora portas adentro. Como é que ele vai fazer a penhora portas adentro se os
utensílios domésticos são impenhoráveis? Ele devolve o mandado e é o credor que vai ter
de descobrir que o devedor tem dentro de casa duas televisões ou duas geladeiras, requerer
o desentranhamento do mandado para o oficial de justiça voltar ao local e efetivar a
penhora. Continuamos protegendo demais o devedor.
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4.7. Má disciplina da fraude de execução
Um outro grande problema da execução, que eu acho que chega a fazer parte do
chamado risco Brasil, é o tratamento que a nossa lei confere à fraude de execução. Como
eu já disse, nós não temos um cadastro nacional de pessoas, um cadastro nacional de bens
de raiz e um cadastro nacional de processos judiciais. Qualquer pessoa que compre um
imóvel hoje corre o risco de amanhã ser surpreendido por uma ação anterior contra o
alienante em qualquer ponto do território nacional, que vai colocar a sua aquisição em
fraude de execução. Ele tomou todas as cautelas, tirou todas as certidões negativas do
alienante, não apareceu nada nos registros de distribuição de ações, e o bem que ele
comprou e pagou integralmente é atingido pela penhora por dívida do alienante que ele
desconhecia.
Aí a jurisprudência, posta diante de um dilema cruel, porque uma desgraça dessas
pode acontecer com qualquer um de nós, vai em busca de uma solução de equidade.
Quando credor é a Caixa Econômica Federal ou o Bradesco, o juiz se sente muito
confortável de adotar uma solução de equidade. A Caixa Econômica ou o Bradesco não
vão ficar mais pobres por não receberem esses créditos. Se o terceiro adquirente adotou
todas as cautelas na hora da aquisição, cabe ao credor exequente demonstrar que esse
terceiro tinha conhecimento da ação que pendia contra o devedor. Ora, essa prova é
diabólica. É uma prova impossível. De onde vai ele poder extrair uma ilação ou indício de
que o terceiro adquirente sabia que o alienante devedor tinha uma ação ou execução em
Xique-xique?
O resultado prático é o seguinte. A jurisprudência salva o coitadinho do terceiro
adquirente, que comprou o bem de boa fé, com as pequenas economias que com sacrifício
amealhou em toda uma vida de trabalho árduo, e de repente se viu surpreendido com a
penhora desse bem numa execução que não é contra ele, e castiga o credor, que perde a
possibilidade de receber o seu crédito legítimo. Ou, se aplicar rigorosamente a regra de
que, ajuizada qualquer ação contra o devedor que possa reduzi-lo à insolvência, torna-se
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ineficaz a alienação a terceiro de qualquer dos seus bens, irá castigar o coitadinho em
benefício do credor.
Enquanto isso, num ou noutro caso, o verdadeiro fraudador, o criminoso que foi o
devedor alienante, porque fraudar a execução é crime, que, tendo uma ação contra ele
alienou os seus bens para frustrar o pagamento do que devia ao credor, que vendeu os seus
bens ocultando que tinha essa ação, esse saiu livre, não acontece nada com ele. Eu nunca vi
alguém ser processado ou condenado por esse crime, expressamente previsto no art. 179 do
Código Penal.
Esse é um problema muito sério. O que eu devo dizer aos meus alunos? Olhem, não
comprem nada sem tomar todas as cautelas e sem saber muito bem de quem vocês estão
comprando. Procurem saber se o vendedor é uma pessoa honesta. Procurem saber se ele
tem negócios em outros lugares, em outras praças. É muito precário.
Como resolver esse problema? Tendo pelo menos um cadastro nacional de
processos judiciais. Ocorre que o Judiciário brasileiro não é uma única instituição. São 27
justiças estaduais, 24 justiças do trabalho, mais 5 regiões da justiça federal. Enquanto isso
não mudar, na fraude de execução sempre um inocente vai pagar pelo criminoso.
Criar um cadastro nacional de processos judiciais não depende de lei processual,
mas é preciso que haja um órgão nacional capaz de articular as informações de todas essas
distintas e autônomas organizações judiciárias. O CNJ não tem perfil para isso. Não tem
perfil na sua composição, que é uma composição instável, com conselheiros detentores de
mandatos temporários, e não foi criado para isso. Nós precisamos ter um órgão nacional
responsável por uma política pública nacional de administração de conflitos. Na Europa
são os Ministérios da Justiça que cuidam disso. No Brasil, não é o Ministério da Justiça
porque nós adotamos o modelo americano de auto-disciplina e auto-controle da
magistratura, de administração da justiça pelo próprio Judiciário. Se nós tivéssemos uma
única estrutura judiciária, isso se resolveria dentro do próprio Judiciário, mas nós temos
mais de cinquenta organizações judiciárias independentes. E precisa também de dinheiro e
de força coativa para impor a homogeneização da implantação dos planos de coleta e
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veiculação de dados dos processos num sistema único. Nós conhecemos o esforço e as
dificuldades que o CNJ e o STJ vêm enfrentando para a informatização do processo
judicial.
Além disso, existe um outro problema não menos sério na fraude de execução. É
que aquele terceiro que teve o seu bem penhorado e que agora vem para esta execução para
tentar salvá-lo, no Brasil ele somente pode intervir para alegar o motivo que possibilitaria a
não incidência da penhora sobre o bem, mas ele não pode discutir a dívida. Eu já sustentei
isso no meu livro sobre Execução e é assim no direito europeu, em que o terceiro que
intervém porque teve o seu bem penhorado passa a ser sujeito passivo da execução, porque
ele está tendo a sua esfera patrimonial invadida pela execução. Ele tem o direito de discutir
o crédito do exequente. De repente, o crédito do exequente está prescrito ou está pago, até
por ele mesmo, às vezes. De repente o crédito do exequente não é bom, não tem aquele
valor. De repente ele descobre outros bens do devedor que podem ser penhorados. Não,
aqui os embargos de terceiro somente podem tentar retirar o bem e aí fica, muitas vezes,
aquela duplicidade do cônjuge, que tem de oferecer embargos do devedor para impugnar a
execução e embargos de terceiro para livrar da penhora a sua meação ou os seus bens
reservados.
E o que não é cônjuge, que não tem meação, ele somente pode tentar retirar o bem,
provando que ele não foi alienado em fraude de execução. Mas o crédito do exequente é
bom? Todo aquele que tem os seus bens sujeitos à execução tem o direito de discutir se o
crédito do exequente é bom.
4.8. Excesso de títulos executivos extrajudiciais
Outro grande problema que temos na execução no Brasil – e isto porque as nossas
instituições políticas são muito reféns do sistema financeiro, que tem argumentos ad
terrorem de que precisa de segurança de recebimento dos seus créditos dos seus devedores,
sob pena de elevação dos juros – é que nós temos um rol de títulos executivos
extrajudiciais absurdamente exagerado.
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Vocês se lembram daquela jurisprudência do STJ sobre os contratos de abertura de
crédito, que até resultou numa súmula do STJ9 dizendo que o contrato de abertura de
crédito não era título executivo? Poucos dias depois de o STJ ter editado aquela súmula, o
Presidente da República da época, se não me engano era o Presidente Fernando Henrique
Cardoso, editou a medida provisória que criou a cédula de crédito bancário., que nada mais
é do que um contrato de abertura de crédito.
Num título executivo, a certeza do crédito resulta em primeiro lugar da literalidade
do título, do valor do crédito que tem de estar expresso no título. Se o valor que está
expresso no título não é aquele que o banco está cobrando, o título na se reveste da
necessária certeza da existência do crédito que o credor pretende exigir. A apuração do
valor do crédito deve ser antecedido de um procedimento cognitivo.
Outro título exagerado é a confissão de dívida assinada pelo devedor com duas
testemunhas. Vocês já viram alguma testemunha ter assistido alguma coisa numa confissão
de dívida por instrumento particular? São testemunhas de nada. Se chamar essas
testemunhas em juízo para depor, elas não viram nada e não sabem de nada. E esse papel,
que o devedor assinou e muitas vezes nem leu, é título executivo, porque o sistema
financeiro, nos seus contratos, precisa ter instrumentos bem eficazes de receber os seus
créditos, quer ter garantias sólidas na justiça, embora, como eu já disse, o sistema
financeiro dê muitos empréstimos para quem não pode pagar.
O que nós precisávamos ter, e todos os sistemas europeus seguiram esse caminho,
seriam procedimentos sumários de cobrança de créditos documentais, sumários
documentais tout court ou monitórios, se quiserem.
Nós criamos uma ação monitória inútil, ou alguém tem dúvida do que eu estou
dizendo? Eu nunca propus uma. O único beneficiado é o réu. Se pagar não vai responder
pelas despesas processuais. Mas se contestar, o processo segue o rito ordinário e a
9 Foi a Súmula nᵒ 233.
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execução vai ser igual a qualquer outra. Isso sem falar nas controvérsias doutrinárias. Se
aquele mandado é título executivo, se é judicial ou extrajudicial etc.
Fizeram uma ação monitória copiando o direito italiano que hoje – me desculpem -
não pode mais nos servir de modelo. Aliás, Calamandrei em 1926 já havia feito severa
crítica ao modelo italiano de ação monitória10
. Contrariando aquela regra de sabedoria
difundida pelo Prof. Barbosa Moreira, que criticava o achismo de se avaliar um instituto
pela opinião vulgar dos que o utilizam na prática, eu afirmo categoricamente que a nossa
ação monitória é imprestável. No início da sua instituição, foi usada para cobrar faturas de
cartão de crédito. Não sei se hoje ainda subsiste essa prática. Parece-me que caiu em
completo desuso. Suscitava muitas controvérsias e nenhum benefício para o credor.
O que proponho é uma ação sumária documental. O credor apresenta um
documento, que não é título executivo. O devedor, se não quer pagar, também pode
produzir prova documental. Se ele quiser produzir alguma outra prova que o juiz considere
relevante, este julga a causa com base apenas nos documentos apresentados pelas partes e
ressalva ao réu o direito de ir perseguir uma decisão diversa num procedimento de
cognição exaustiva subsequente. Mas o réu terá de pagar mais advogado, mais despesas do
novo processo, mais sucumbência, risco que ele assumirá somente se sentir que tem uma
boa chance de reverter a decisão tomada com base nos documentos, o que raramente
acontece.
Não se pode dizer que a sentença nesse procedimento sumário documental não faça
coisa julgada, mas que é o que os alemães chamam de uma condenação com reserva. O
devedor, que foi condenado com base em documentos, vai pensar duas vezes antes de
propor uma nova demanda, porque ela é muito custosa. Ele vai reavaliar se realmente tem
alguma chance de sair vencedor com alguma outra prova, chance de ilidir aquilo que
resultou do exame da prova documental, que nós sabemos que, no mundo em que vivemos,
é uma prova muito forte. É a prova principal. Hoje nada se faz sem documentos. O
10 Piero Calamandrei, “Il procedimento monitorio nella legislazione italiana”, in Opere Giuriche, vol. IX, ed.
Morano, Napoli, 1983, pp. 3-156.
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documento invadiu as relações humanas, até para comprar um cafezinho, porque as
relações se travam entre anônimos, e onde não há confiança esta é substituída pelo papel.
Portanto, seria preciso criar um procedimento cognitivo sumário documental e
acabar com esse entulho de títulos executivos extrajudicias, de papéis que não têm
nenhuma credibilidade e que colocam o credor logo numa posição de vantagem porque ele
de imediato penhora os bens do devedor. Isso está absolutamente errado e, a meu ver, viola
a própria garantia do devido processo legal.
4.9. Os defeitos da liquidação
Apesar das alterações legislativas ocorridas nos últimos vinte anos, nós não
conseguimos encontrar uma solução satisfatória para os problemas da liquidação. A Lei
8.898/94 acabou com a liquidação por cálculo e depois a Lei 11.232/2005 transferiu a
liquidação para o processo de conhecimento. Eu mencionaria alguns pontos de
estrangulamento na liquidação, que precisariam ser equacionados e que são entraves de
difícil solução.
O primeiro é que aquilo que nós entendemos que seja crédito que não dependa de
liquidação e que dependa de simples cálculos aritméticos, mas que, com frequência,
depende de informações e documentos que não estão facilmente acessíveis. Nesse caso, a
Lei 11.232/2005, no novo artigo 475-B, criou aquele mecanismo pelo qual o credor
provoca o devedor ou terceiro para fornecer os dados ou documentos necessários à
elaboração do cálculo. Esse problema de não ter o credor os dados para fazer cálculos é um
problema bem brasileiro por causa dos planos econômicos, para coibir com tratamentos de
choque a inflação galopante, com todas aquelas tabelas de correção monetária, expurgos
inflacionários e indexação de obrigações. Tudo isso criou uma parafernália de dados e
informações complexas. Sob esse ponto de vista, o mecanismo da lei é um mecanismo
primário, porque a lei diz que se o devedor não fornecer os dados, a execução vai se
processar pelo valor que o exequente indicou e muitas vezes o credor vai extrair esse valor
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de onde, se ele não teve os dados? Mas a penhora vai se efetuar com base no valor
reconhecido pelo contador que, normalmente, também não tem esses elementos.
O legislador quis acabar com o procedimento da liquidação por cálculo e acaba se
instaurando um contencioso informal, numa fase que lei nenhuma regula, até que o juiz
chegue a alguma conclusão razoável sobre o valor que vai servir de base à execução. Essa
dificuldade mostra que o ideal é que tivesse havido cognição sobre esse valor, cognição
efetiva, sob contraditório, e que a sentença não fosse ilíquida nesse sentido de depender de
cálculos aritméticos complexos e de dados e documentos que não foram objeto de
cognição, porque aí se instaura uma nova controvérsia sobre esses dados e documentos.
Nos juizados especiais a lei estabelece que a sentença tem de ser líquida. O juiz tem de
exercer cognição válida e exaustiva não só sobre o an debeatur, mas também sobre o
quantum debeatur. Em muitos países não existe liquidação. O juiz, numa cobrança de
crédito pecuniário, tem de chegar a uma sentença que quantifique.
Tentou-se isso na Lei 11.232/2005, exigindo, em algumas ações de indenização por
acidente de tráfego de rito sumário (art.475-A, § 3º.), que a sentença fosse líquida, mas
dizendo que o juiz fixaria de plano esse valor. Como é que o juiz vai decidir de plano
lucros cessantes e danos emergentes, por exemplo? Semelhante solução simplista deu a
reforma do Código de Processo Penal quando mandou que a sentença condenatória
criminal fixasse um valor de indenização da vítima. Aquilo é um mínimo de uma
indenização, mas quantificá-la em toda a sua extensão, é absolutamente impossível fazê-lo
de plano.
Eu venho dizendo sempre isso, que o exagero das liquidações decorre, em grande
parte, de comodismo dos advogados, que não observam o artigo 286 do Código, que exige
que o pedido seja certo e determinado, e então optam por pedidos indeterminados,
apostando no acordo. O advogado acena para um possível valor alto, apenas para assustar o
réu, não quantifica nada e se empenha em resolver a demanda por acordo. Se tiver êxito,
ótimo. Mas também é comodismo dos juízes que não policiam se o pedido está
determinado e mandam prosseguir. Por que criar um incidente logo ao despachar a petição
inicial, para o autor emendá-la? Muitas vezes o autor não se preparou e vem então com
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uma petição que continua não definindo nada e vai dar mais trabalho. É melhor seguir em
frente nesse processo de conhecimento. Se não houver acordo, ele chega a uma sentença
ilíquida e depois começa tudo de novo na liquidação, quando tudo isso deveria ter sido
objeto de uma cognição adequada e conclusiva.
Poderia criar-se o mecanismo da sentença parcial, que em muitos países existe e
alguns autores até sustentam que agora, a partir da Lei 11.232/2005, nós teríamos
contemplado, mas me parece preferível que o juiz decida primeiro o an debeatur e, tendo
feito instrução sobre o quantum debeatur, também o defina desde logo. Seria conveniente
reduzir a necessidade de instaurar um procedimento subsequente somente para quantificar
a condenação, retardando indefinidamente o desencadeamento dos atos coativos da
execução.
Mas também é preciso mudar a postura dos profissionais do direito, criando
condições para o advogado faça uma petição inicial mais bem fundamentada, mais
consistente, mais objetiva; e tornando mais vantajoso para o juiz deixar de ser um simples
despachador de papéis para tirá-los de cima da mesa ou da conclusão do processo
eletrônico, para chegar numa sentença líquida, o que é bem melhor do que deixar esse
valor indeterminado.
Eu tenho visto, na minha experiência de advogado, muitas sentenças que não
deveriam sequer receber esse nome, porque são verdadeiras sentenças condicionais, que
não geram nem a certeza do an debeatur. “Se ficar apurado na liquidação que ocorreu tal
fato, condeno”, esquecendo do parágrafo único do art. 460 que estatui que a sentença deve
ser certa, mesmo quando decida relação jurídica condicional. Hoje estamos vivendo essa
situação, em matéria de tutela coletiva com mais frequência, com a prolação da sentença
condicional. Isso é um defeito grave, mas que vem se repetindo, na verdade postergando
para a liquidação o próprio acertamento da existência da obrigação, o que se torna de mais
difícil solução. E não me perguntem como ficam os encargos da sucumbência se na
liquidação se apurar que o direito do autor não existe.
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Em resumo, eu sou favorável à obrigatoriedade da sentença líquida. Eu sei que isso
exigiria que se repensasse o próprio procedimento da jurisdição de conhecimento. Exigiria
que o autor talvez tivesse de anteceder a sua petição inicial daquele procedimento
preparatório, que os ingleses adotam, para colher dados e informações mais precisos, para
já poder quantificar o valor pecuniário da postulação, porque nós estamos retardando a
efetividade da prestação jurisdicional. O que adianta obter uma sentença que não é
exequível? E que depois, na hora de apurar o quantum debeatur ou vai ter de passar pelo
procedimento do arbitramento da liquidação por artigos ou vai ficar naquele bate-bola em
que não se sabe que valor executar. Uma execução que deveria estar aparelhada está na
verdade totalmente desaparelhada, porque já surgiram n polêmicas, antes da instauração da
execução, a respeito do quantum debeatur.
Um outro defeito da liquidação é o de o devedor nela não poder alegar defesas de
mérito. Às vezes o devedor acha que não deve, que o título tem defeitos gravíssimos, que
ele já pagou ou que prescreveu a execução do crédito ou que ocorreu superveniente
compensação, todas matérias que ele poderia vir a alegar na execução, mas que não pode
alegar em liquidação. Tem o Judiciário de continuar a apurar o quantum debeatur de uma
dívida que não existe. Por que o devedor não pode antecipar logo na liquidação a alegação
de questões prejudiciais à própria apuração do valor da dívida? Ele pode fazer essas
alegações na fase de conhecimento e na fase de execução, mas não pode fazê-lo entre uma
e outra, na liquidação.
4.10. Defeitos da avaliação e da arrematação
Outra deficiência da execução é a avaliação, a sua precariedade, que foi ainda mais
agravada com a reforma processual de 2005/2006. Há muitos países em que na execução
não existe um ato processual específico de avaliação dos bens. Na minha opinião é o juiz
ou o agente de execução que, com a sua experiência de mercado, deve fixar a base de valor
mínimo dos bens penhorados para aqueles dois conhecidos efeitos, ajustar a penhora ao
valor da dívida e servir de lanço inicial na arrematação.
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Ela foi criada entre nós no século XVIII para atender aos interesses da Coroa de
propiciar um meio de vida a alguns nobres, como era costume que fossem criadas as
serventias de justiça na monarquia portuguesa. O rei não pagava salários aos nobres. Ele
lhes dava empregos, que eram remunerados pelos súditos que faziam uso dos seus
serviços. Foi assim que nasceu a avaliação em 1774.
Hoje com a informática, qualquer um de nós, se precisar comprar ou vender um
bem, tem acesso na rede mundial de computadores a uma série de sítios que fornecem os
valores de quase todos os bens que existem no mercado. Em minutos se obtém a estimativa
de qualquer bem. Essas informações, acessíveis a qualquer cidadão, podem indicar ao juiz
com bastante precisão, o valor dos bens penhorados. A avaliação por um perito ou um
especialista em determinado mercado, e não por um oficial de justiça, deveria ficar para
grandes e complexos patrimônios e, muitas vezes, mesmo nesses casos, essas avaliações
feitas por pessoas ou instituições altamente qualificadas não chegam a valores
inquestionáveis ou que sirvam para efetivar a sua justa alienação numa hasta pública.
Mas para o dia a dia das execuções comuns não é preciso tal formalismo. O juiz ou
o executor, se existir, deveria bater o martelo, depois de ouvir as partes numa audiência,
comunicando-lhes as informações que colheu e decidindo o valor dos bens para os efeitos
previstos.
Avaliações mal feitas, como as que frequentemente encontramos, acabam sempre
colocando uma das partes em posição de vantagem sobre a outra e influindo no incentivo
ou desestímulo a terceiros para que se disponham a vir concorrer na arrematação.
A avaliação puramente arbitrária e sem qualquer fundamentação promovida pelo
oficial de justiça, que não é um conhecedor dos mercados dos diversos bens e não revela se
fez uso das modernas fontes de informação que estão hoje acessíveis, acaba viciando a
futura alienação, ainda mais se adotado o sistema, acolhido na reforma de 2006, de
adjudicação do bem pelo credor antes da arrematação. Eu sou inteiramente contrário à
adjudicação antes da arrematação. A hasta pública é um direito do devedor, que não pode
ficar sujeito a perder os seus bens pelo arbítrio do credor. Ninguém desconhece que a
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arrematação atualmente entre nós está viciada, está comprometida pelos chamados ratos de
leilão, mas vamos analisar porque isso acontece.
Em primeiro lugar, porque a avaliação não é correta. Em segundo lugar, porque
nós, cidadãos comuns, quando desejamos comprar um bem, a última coisa em que
pensamos é compra-lo numa arrematação. Suponhamos que eu queira comprar uma casa e
que me sejam oferecidas duas absolutamente iguais, uma a ser vendida num leilão judicial
e outra diretamente do proprietário, com toda a documentação e todas as certidões
negativas. Qual das duas eu vou querer comprar? Eu vou arriscar de talvez comprar mais
barato numa arrematação? Para que? Para depois haver embargos de arrematação, o bem
ficar bloqueado, eu não poder extrair a carta de arrematação e me imitir na posse do
imóvel, mesmo já tendo depositado integralmente o preço, e ainda ficar sujeito depois a
uma ação anulatória da arrematação, que pode durar anos e que pode me levar a perder o
bem?
Quando aquele autor japonês, Masanori Kawano, que eu citei no início, disse que
uma das finalidades da execução é garantir os direitos dos adquirentes ou arrematantes,
isso deve ser levado a sério. Na arrematação os interessados não são apenas o credor e o
devedor. Se o Estado quer atrair as pessoas de bem, as pessoas que na sociedade procuram
travar negócios seguros, para virem concorrer à alienação judicial, para que a hasta pública
represente, como preconizado, a venda do bem pelo preço justo de mercado, o Estado tem
de dar segurança a quem compra na arrematação. Porque se não der segurança ao cidadão
comum, somente vai concorrer à arrematação o aventureiro, que vai participar da
arrematação como se estivesse entrando num jogo, um jogo de risco, em que pode ganhar
ou perder. Mas ele não entra numa só arrematação porque ele está especificamente
interessado na aquisição daquele bem, ele entra em vinte arrematações e arremata em
quinze. Se ele teve prejuízo em cinco, o preço baixo, muito inferior ao valor de mercado,
que ele pagou nas outras dez compensou com folga o que ele deixou de ganhar nas outras
cinco. E por que ele arrematou em quase todos os leilões por preços muito abaixo do valor
de mercado? Porque aqueles que teriam interesse em adquirir esses mesmos bens com
segurança não participaram dos leilões porque não se dispõem a enfrentar os seus riscos.
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A consequência é que a arrematação é o campo onde realizam negócios arriscados,
mas bastante vantajosos, os aventureiros, os ratos de leilão. Isso é o que normalmente
acontece.
Esse mecanismo está apodrecido e precisa ser reformado, não sendo suficientes as
alterações introduzidas pela Lei 11.382/2006 no sentido de não comprometer o resultado
da arrematação caso sejam julgados procedentes os embargos do executado (art. 694, caput
e § 2ᵒ) e de permitir a desistência pelo arrematante em caso de embargos à arrematação
(art. 694, inciso IV). É preciso revalorizar a arrematação, dando ao arrematante a garantia
de que a compra do Estado é o meio mais seguro de aquisição e que não pode ser desfeita,
nesse ou em qualquer outro processo, salvo por vício muito grave do próprio procedimento
licitatório, e não da execução ou da cognição que a antecedeu. E é preciso estimular os
juízes ou executores, se houver, a fazerem um diagnóstico realista em relação a cada
espécie de bem a ser arrematado e a partir desse diagnóstico, determinarem procedimentos
mais propícios a atraírem o interesse do mercado. A flexibilização do art. 690, também
introduzida pela Lei 11.382, ainda é insuficiente, porque há muitos bens que não
comportam uma venda por preço justo com depósito inicial rígido de 30% ou que para
obterem o preço justo precisam associar a venda a um empreendimento de maior vulto, que
envolva outros sujeitos e contratos.
4.11. Oralidade
Neste ponto entra em jogo uma outra questão importante, que eu de certo modo me
sinto constrangido de comentar com juízes. É que precisava haver audiência na execução.
As duas principais decisões que o juiz toma numa execução pecuniária, que são penhorar
os bens e transformar esses bens em dinheiro, ele deveria tomar conversando, dialogando,
porque são decisões de mercado. Se eu for vender alguma coisa eu vou conversar para
saber quanto vale o objeto e quais são as condições do mercado, para saber qual é a melhor
maneira de vendê-lo. Mas o juiz para vender o que não é dele, publica um edital e em geral
nem comparece no dia da arrematação para ver o que aconteceu.
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A audiência oral é necessária, porque nem sempre o bem que se apresenta como
preferível, de acordo com as prioridades da lei, será o que vai alcançar o melhor preço na
alienação, que deve procurar satisfazer amplamente o credor, com o menor prejuízo para o
devedor. E porque nem sempre a melhor maneira de vender é a arrematação ou a
arrematação à vista.
Eu estou de acordo que a arrematação, apesar de constituir um direito do devedor,
possa em muitos casos não ser o caminho ideal, mas para chegar a essa conclusão o juiz
precisa conversar, dialogar, encontrando para cada caso a melhor maneira de transformar
os bens em dinheiro.
O executor ou o juiz especializado em execução acabaria, ele mesmo, engendrando
esses mecanismos alternativos, conheceria as pessoas a quem consultar para obter as
necessárias informações, para talvez aproximar o credor e o devedor de outros sujeitos,
como agentes financeiros, que pudessem estudar a viabilidade de empreendimentos ou de
investimentos associados à venda judicial, e não simplesmente vender os bens penhorados
na bacia das almas, como todos temos consciência de que ocorre atualmente.
Mas, reitero, por outro lado, é preciso dar ao arrematante ou investidor a necessária
segurança. Francesco Carnelutti já dizia isso em seu Processo di Esecuzione, em 193211
.
Não sei se foram bem compreendidas as inovações nesse sentido da Lei 11.382, no sentido
de que é preciso tornar a eficácia da arrematação invulnerável aos riscos do próprio
processo. Se o processo é inválido por quaisquer outros motivos, que não seja a invalidade
do próprio ato de alienação, essas invalidades de citação, de procedimento, de avaliação,
invalidade por ineficácia do título executivo, tudo isso não pode contaminar a validade da
arrematação, porque quem compra do Estado em juízo, tem o direto de comprar com a
maior segurança possível, não pode ficar sujeito aos riscos da validade da execução ou do
alguma formalidade que eventualmente não foi cumprida.
11 Francesco Carnelutti, Processo di Esecuzione, vol. 3, ed. CEDAM, Padova, 1932, p.140.
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4.12. Tutelas específicas
Outra questão que eu quero trazer à tona é o de que o legislador, no intuito da
simplificação, criou um vazio normativo inconveniente, que é o que aconteceu com o
cumprimento de sentença nas execuções de obrigações de fazer e não fazer e de entrega de
coisa.
Por meio da chamada tutela específica, os artigos 461 e 461-A desprocessualizaram
essas execuções. É verdade que as antigas execuções de obrigações de fazer, não fazer e
entrega de coisa do Livro II do Código eram extremamente burocratizadas. Imaginem o
artigo 621 que estabelecia que o devedor, na execução para entrega de coisa, seria citado
para em dez dias, entregar a coisa ou, depositando-a em juízo, oferecer embargos. Ora,
alguém vai depositar a coisa se entende que não é direito do credor exigi-la? Depositar
onde? E se a coisa for uma criança, porque, me desculpem, mas também é uma execução
de entrega de coisa a busca e apreensão de um menor. Enfim, o procedimento dessas
execuções era inadequado e então as Leis 8.952/94 e 10.444/2002 acabaram com esses
procedimentos nos títulos judiciais, não há mais um procedimento legalmente previsto, e
em substituição foram criadas as regras da tutela específica, ou seja, o juiz conduz essas
execuções como ele quiser.
Sim, o juiz conduz a execução como ele quiser, mas vamos ao bom senso. O que
faz um juiz democrático, respeitador das garantias do processo (contraditório, ampla
defesa), se ele recebe um título que impõe ao devedor que entregue uma coisa diferente de
dinheiro ou que cumpra uma prestação consistente numa atividade humana, numa obra?
Ele intima o devedor para em determinado prazo entregar a coisa ou fazer a obra. Mas isto
não está no artigo 461. Ainda no art. 461-A, há pelo menos a menção à intimação do
devedor para entregar a coisa.
E o direito de defesa do devedor nessa execução? Ele não tem direito de defesa? A
lei não prevê. Eu escrevi um artigo sobre isso12
. Essa é uma execução imediata, uma
12 Leonardo Greco, “A defesa na execução imediata”, in Revista Dialética de Direito Processual, n° 21,
dezembro de 2004, ed. Dialética, São Paulo, pp.96-105.
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execução desprocessualizada. A lei trata dos atos coativos, estabelece o procedimento da
multa, mas não diz quando o devedor exerce o direito de defesa. Indagado, como co-autor
do projeto de que se originou a tutela específica, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira
justificou que não era necessário prever a oportunidade de defesa do devedor nessa
execução, porque se o devedor não concordar com alguma ordem que o juiz lhe endereçou,
ele pode se dirigir ao juiz e pedir para revogá-la e se o juiz não a revogar ele pode interpor
um agravo de instrumento no tribunal.
Ora, o contraditório e a ampla defesa devem ser prévios, devem anteceder as
decisões judiciais e não instaurar-se a posteriori, salvo nos casos de insuperável urgência.
E o direito de defesa do devedor, então, se limita apenas a impugnar aquilo que o juiz já
decidiu? E será que o contraditório em segunda instância é suficiente para assegurar a
eficácia plena da garantia constitucional? Não, não é. A Corte Europeia de Direitos
Humanos já decidiu que o respeito pleno às garantias fundamentais do processo nas
instâncias recursais não supre a sua insuficiência nas instâncias inferiores. Contraditório
amplo é prévio. Contraditório amplo é desde a primeira instância. Ademais, a partir de que
momento deve o devedor interpor o agravo: desde o conhecimento da decisão que o
prejudica ou da decisão do pedido da sua revogação? Não está nada previsto.
A tutela específica se desprocessualizou demais, aumentou a insegurança jurídica e,
o que é pior, expandiu o espaço do arbítrio judicial, porque no artigo 461, § 5º a lei permite
que o juiz adote todas as medidas necessárias. Portanto, estamos aparentemente diante de
um poder dado ao juiz de adotar as medidas coativas que julgar adequadas, mesmo que não
previstas em lei. Ora, se estamos no plano das coações, meios de pressão indiretos para
induzir o devedor a cumprir a prestação, essas coações fazem parte do direito sancionador
e devem ter previsão legal. Se a execução é de natureza sub-rogatória, porque a obrigação
é fungível, o juiz pode sim adotar as medidas necessárias para que outrem cumpra a
obrigação, porque o conteúdo dessas medidas não difere do conteúdo do cumprimento
voluntário da obrigação pelo próprio devedor. Se a execução não é sub-rogatória, porque a
obrigação é personalíssima, infungível, a coação vai ser exercida diretamente sobre a
vontade do devedor. Qual é o limite do arbítrio do juiz em engendrar, em criar medidas de
coação sobre a vontade do devedor? Ele pode prender o devedor? Luiz Guilherme
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Marinoni13
e Marcelo Lima Guerra14
diziam que sim. Ele pode proibir o devedor de falar?
Ele pode impedir o cantor de usar o seu violão? Qual é o limite?
A multa também gera controvérsias até hoje. Qual é o seu dies a quo e qual é o seu
dies ad quem, se for multa periódica? Teoricamente a lei parece bem estruturada, porque
ela permite a ampliação e a redução da multa, da astreinte, mas na sua implementação
prática há grande insegurança. Até hoje não se sabe com exatidão qual é o termo inicial da
multa. Na minha opinião, é o decurso do prazo para o cumprimento espontâneo da
prestação, a partir do momento da intimação do devedor para esse cumprimento. Acho que
é um direito fundamental de qualquer devedor de qualquer prestação ser previamente
intimado para ter uma última oportunidade de cumprimento espontâneo. Isto é
humanitário. Mas a lei é omissa. Eu tenho visto casos em que tribunais superiores
aumentam a multa e fixam o termo inicial de fluência retroativamente. O termo inicial da
multa tem de ser o momento do decurso do prazo para o cumprimento espontâneo da
prestação, sabedor o devedor desde então do valor da multa.
Temos, portanto, uma anomia na tutela específica que precisa ser corrigida.
4.13. Iniquidade da execução contra a Fazenda Pública
Eu já estou quase chegando ao fim, mas não posso deixar de fazer uma referência à
execução contra a Fazenda Pública. Vou começar pelo mais simples. Nós ainda
entendemos, de um modo geral, que todos os bens da Fazenda Pública são impenhoráveis
porque inalienáveis. A meu ver, este é um erro jurídico a partir do advento do novo Código
Civil de 2002, que estabeleceu que são inalienáveis os bens públicos de uso comum do
povo e de uso especial, ou seja, os afetados a uma destinação pública, mas que os bens
dominicais do Estado são alienáveis na forma da lei.
13 Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória (individual e coletiva), 4ª ed., Revista dos Tribunais, São
Paulo, 2006, pp. 233-238. 14 Marcelo Lima Guerra, Execução indireta, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, pp. 242-246.
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Parece necessário, destarte, fazer de início uma distinção. Há bens públicos
inalienáveis por natureza, que são os bens de uso de todo o povo, como as praças, as ruas,
as praias; e os bens que o Estado ocupa, utiliza no exercício das suas funções. Mas aqueles
bens que o Estado possui como qualquer cidadão comum, que não estão afetados a uma
finalidade pública, nem são de uso da população, esses são alienáveis, cabendo à lei
regular a forma da sua alienação. E a lei veio e regulou a forma da sua alienação. É a Lei
dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001), seguida da Lei dos Juizados Especiais
da Fazenda Pública (Lei 12.153/2009), prevendo que, nas condenações de pequeno valor,
os chamados RPVs, a execução não depende de precatório. Portanto, nos juizados federais,
em condenações de créditos até sessenta salários mínimos, transitadas em julgado as
sentenças, o juiz oficia à Caixa Econômica Federal e esta em sessenta dias tem de
depositar. E se não depositar a lei expressamente prevê o sequestro do valor da
condenação. O que é esse sequestro senão uma penhora do dinheiro público, seguida da
sua expropriação e entrega ao credor em pagamento do seu crédito? Nos juizados da
fazenda pública estaduais, as disposições da lei são análogas. É claro que sempre a
Fazenda Pública poderá discutir se esta ou aquela verba poderá ser sequestrada porque tem
uma destinação específica, como o pagamento dos salários dos professores, mas esse é
outro problema. O fato é que o dinheiro público não está mais absolutamente livre da sua
apreensão e expropriação para pagar credores do Estado.
Por que não se aplicam essas mesmas regras a qualquer execução contra a Fazenda
Pública, mesmo fora dos juizados especiais? Naquela comissão em que cheguei a
participar junto ao Conselho da Justiça Federal, uma das propostas era essa. Introduzir um
artigo ou um parágrafo depois do atual art. 731 do Código, estabelecendo justamente isso:
se a execução contra a Fazenda Pública for de valor não superior a sessenta salários
mínimos ou outro limite de dívida de pequeno valor, a Fazenda será intimada para em 60
dias pagar, sob pena de sequestro do dinheiro. E acho que isso é perfeitamente factível pela
aplicação analógica das regras dos juizados. Por que nos juizados até esse limite se executa
independentemente de precatório. Aliás, a previsão da dispensa de precatório nos créditos
de pequeno valor é da Constituição. Basta aplicar a redação atual – muito infeliz por sinal
– do artigo 100 da Constituição, com as regras das leis dos juizados. Acho que esse arsenal
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normativo já é suficiente para o pagamento sem precatório de quaisquer créditos de
pequeno valor.
Mas existe o resto, o que excede o limite do pequeno valor. E o resto eu costumo
dizer que é o capítulo mais triste da execução, o capítulo dos precatórios. E aqui eu quero
dizer que acho que o Judiciário é muito culpado. Porque o Judiciário não faz valer a sua
autoridade. Eu sempre me recordo de uma expressão de Pedro Lessa, que para mim foi o
maior ministro do Supremo Tribunal Federal. Pedro Lessa foi um grande ministro, que não
tinha medo do Governo, que recorria à doutrina americana e ali extraia os princípios do
moderno constitucionalismo, esclarecendo o verdadeiro significado da separação de
poderes e os limites de cada um deles. Foi ele que relatou e concedeu em 1911 aquele
famoso habeas corpus – cuja decisão o Governo não cumpriu – em favor dos intendentes
do Conselho Municipal do Distrito Federal, cujo exercício ele impôs por ordem judicial
contrária à decisão do Governo, invocando a violação da liberdade de locomoção, porque
os funcionários estavam impedidos de ter acesso ao local de exercício dos seus cargos. Não
havia mandado de segurança na época. Ele assim decidiu por habeas corpus. E o Governo
mandou uma mensagem ao Congresso Nacional comunicando que não iria cumprir a
ordem do Supremo Tribunal Federal, que seria inconstitucional, porque o provimento em
cargo público não era matéria afeta à liberdade de locomoção tutelável por habeas corpus.
E o Supremo abaixou a cabeça, menos Pedro Lessa, que divulgou no seu famoso livro
sobre o Poder Judiciário o voto que proferiu no Tribunal, citando a doutrina americana,
segundo a qual num sistema de separação de poderes de primado do Judiciário, como é o
americano, e como é o nosso que naquele se modelou, o Judiciário é o único juiz dos seus
próprios limites15
. O Judiciário tem de ir, nas suas relações com o Executivo, até onde for
necessário para dar efetividade às suas decisões, para exigir o seu cumprimento. E a
separação de poderes não é obstáculo, porque a separação de poderes serve à eficácia dos
direitos fundamentais e não se sobrepõe a ela. Entre os direitos fundamentais está o direito
de acesso à justiça, o direito à tutela jurisdicional efetiva de todos os direitos. A Corte
Europeia de Direitos Humanos, no famoso caso Hornsby, também já afirmou, em 1997,
que tutela jurisdicional efetiva não é só o poder de dar sentenças, mas é também o poder de
15 Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1915, pp.298 e ss.
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executá-las. Se o Judiciário não for capaz de executar as suas decisões, ele não cumpriu a
sua missão constitucional.
E, voltando a Pedro Lessa, o juiz é o único juiz dos limites em que ele tenha de
proceder à invasão da esfera da administração pública para dar efetividade ao cumprimento
das suas decisões.
Para esse fim, os italianos criaram a figura do commissario ad acta, que é um
preposto do juiz16
. Claro que o juiz, quando tem de cumprir uma decisão judicial,
especialmente uma condenação pecuniária, tem de dar um prazo para o Estado pagar,
porque o Estado pode não dispor de verba naquele momento ou estar com os seus recursos
comprometidos. Ele dá um prazo – trinta dias, sessenta dias – para o Estado pagar ou
explicar ao juiz porque não pode pagar. Ele, juiz da execução, é que é senhor da
procedência dos argumentos do Estado para não cumprir a decisão judicial. E ele juiz,
então, se a justificativa for legítima, concede ao Estado um prazo mais longo ou um modo
diverso de cumprimento, mas também impõe ao Estado que se esforce para cumprir o
julgado, deixando de efetuar gastos supérfluos com publicidade, com jatinho ou
helicóptero para o transporte de seus dirigentes, por exemplo. É o juiz que determina de
que modo o Estado deverá agir para cumprir a condenação. Se o juiz se convence de que o
Estado não tem motivo legítimo para deixar de pagar, ele nomeia um preposto para ocupar
o lugar do administrador e praticar o ato administrativo omitido. Até se discutiu, na Itália,
se esse preposto, que substitui o administrador, age como administrador ou como auxiliar
da justiça, o que ficou definitivamente esclarecido pelo art. 21 do Codice del processo
amministrativo de 2010, que o definiu como um auxiliar da justiça, sendo os seus atos de
responsabilidade do Judiciário. Isso acontece na Itália, que tem problemas de
descumprimento de decisões judiciais pela Administração semelhantes aos nossos.
Evidentemente, na Inglaterra, na Alemanha, na França, a Administração normalmente
cumpre as decisões judiciais, independentemente de qualquer coação. Já na Espanha, na
Itália, a realidade é análoga à nossa. Os administradores muitas vezes fogem das suas
responsabilidades.
16 V. Clarice Delle Donne, “L’esecuzione: il giudizio di ottemperanza”, in Bruno Sassani e Riccardo Villata
(a cura di), Il codice del processo amministrativo – dalla giustizia amministrativa al diritto processuale
amministrativo, ed. G. Giappichelli, Torino, 2012, pp. 1276-1283.
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Portanto, o que quero dizer é que se o Judiciário no Brasil fosse composto de
Pedros Lessa, isso já estaria resolvido há mais de cem anos. Mas infelizmente não está
resolvido até hoje. De que adiantaram os dez mil pedidos de intervenção federal no Estado
de São Paulo ou mais de mil no Rio Grande do Sul, rejeitadas pelo Supremo Tribunal
Federal a partir do conhecido voto da Ministra Ellen Gracie, fundado na reserva do
possível e na inconveniência de castigar os Governadores atuais pelas omissões dos seus
antecessores?
Sim, temos de encontrar uma solução, que concilie o interesse público em cumprir
o Estado todas as suas outras missões constitucionais como educação, saúde, segurança
etc., com o interesse público de cumprir as decisões judiciais. O Judiciário no Brasil é
culpado - e ao falar assim tão claramente não estou responsabilizando individualmente
nenhum juiz – mas afirmando que o Judiciário como um todo é culpado desde a data
daquele triste julgamento do Supremo Tribunal Federal em que este aceitou que o
Executivo, por um motivo qualquer, pudesse resolver não cumprir uma decisão judicial, ou
seja, desde a primeira vez em que o Executivo colocou um obstáculo ao cumprimento da
decisão da Justiça e o Judiciário se curvou.
A verdade é que o precatório nos âmbitos estadual e municipal, sem falar nesses
imorais parcelamentos – eu mesmo subscrevi como advogado uma petição inicial de ação
direta de inconstitucionalidade contra um deles17
– não é levado a sério, porque as
administrações públicas não têm qualquer pudor de deixar de colocar verbas no orçamento.
E o pior é que o Judiciário hoje aceita ser ator de uma pantomima que são os mutirões de
conciliação dos precatórios. Não sei se isso já existe no Estado do Rio de Janeiro, mas
existe em Minas Gerais e chegou aos meus ouvidos que também existe no Espírito Santo.
O Estado não põe no orçamento anualmente as verbas para pagamento das condenações
que chegaram à Presidência do Tribunal de Justiça até 1º de julho do ano anterior, mas ele
entrega ao Judiciário uma verbinha para que o Tribunal promova conciliações por meio de
leilões. Em Minas Gerais, cujas normas conheço18
, a Presidência do Tribunal publica um
17 Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2356 de 2000. 18 V. a Resolução Conjunta TJMG/SEF/AGE n. 1/2011, entre outras disposições que regem a matéria, in
http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/rc00012011.PDF.
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edital e convoca todos os credores que estão na fila para que aqueles que quiserem
participar indiquem o percentual do seu crédito que aceitam receber. Quem propuser 100%
não vai receber nunca. Como a verba é pequena, os mais necessitados vão propor 50, que é
o deságio mínimo permitido. E aí, a Presidência do Tribunal chama para pagamento a
partir dos credores que aceitaram o menor percentual, até se exaurir a verba dada de
esmola pelo Governo. O Judiciário se submete a isso. Quem duvidar do que eu estou
dizendo, entre no site do Tribunal de Minas Gerais. Numa palestra no Espírito Santo, há
dias atrás, fui informado de que o mesmo ocorre lá.
Então, o Governador fica bem com o Judiciário. Em vez de ser por ele pressionado
a cumprir a Constituição, confia ao Judiciário o patrocínio da própria violação da
Constituição, porque conciliação – vamos colocar os pingos nos ii – é boa entre iguais. E é
boa quando existe por trás uma justiça que, se eu não quiser participar da conciliação, ela
vai tutelar efetivamente o meu direito, se eu tiver razão. Mas, quando eu tenho certeza de
que a justiça não vai tutelar o meu direito, conciliação é entregar o cordeiro ao leão. É
entregar o mais fraco nas mãos do mais forte.
Sim, é sabido que aqui em Campos e em outros municípios que possuem a receita
dos royalties do petróleo, é comum o município chamar os credores para um acordo
administrativo propondo-lhe o pagamento mais rápido com algum deságio. O DNER
também fez isso. Quem não quiser fazer acordo, espera até o ano seguinte e recebe
integralmente o seu crédito na fila dos precatórios. Mas chamar para a conciliação com a
ameaça de não pagar? E, o que é pior, burlando a ordem de preferência que está na
Constituição. Não interessa mais a ordem cronológica dos precatórios, o que interessa é o
percentual proposto: quanto menor, maior é a chance de receber. Isto está se fazendo hoje
no Brasil, com a cumplicidade do Judiciário e os aplausos entusiásticos do CNJ, conforme
notícias veiculadas no seu portal na internet. Isso não pode acontecer.
Muito bem, se o Judiciário hoje quiser enfrentar corretamente o problema, vai
procurar o Governador e junto com ele tentar encontrar uma solução para o acúmulo de
anos de precatórios não pagos, com respeito à ordem de preferência. Não vai conseguir
resolver em um ano, então vai resolver em cinco ou em dez anos, cada ano o Estado
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colocando na verba própria um pouco mais do que manda a Constituição, mas trabalhando
para regularizar definitivamente esse problema.
Eu gostaria que vocês pensassem sobre o que eu vou dizer. Vocês já perceberam
que as condenações judiciais são as únicas despesas previsíveis que o Estado faz sem
previsão de despesa. O Estado elabora todo ano o seu orçamento para o ano seguinte. Ele
tem um número de funcionários públicos que vai trabalhar no ano de 2014. Eles ainda não
trabalharam em 2014, mas o Estado em 2013 tem de prever que no ano de 2014 vai ter de
gastar determinada quantia para pagar a remuneração desses funcionários. Ele tem de
prever que terá de executar uma obra, uma ponte em 2014. Então, em 2013 ele vai colocar
no orçamento verba, porque ele não vai poder fazer a licitação, nem adjudicar a obra, se
não tiver o dinheiro para pagá-la. A condenação judicial foge à regra. Ela é a única que
somente entra no orçamento depois do vencimento da dívida. Será que com os brilhantes
administradores financeiros que nós temos, o Estado, baseando-se na experiência dos
últimos anos, não poderia fazer uma previsão de despesa com condenações judiciais que
permitisse que no ano de 2014 fosse consignada no orçamento a verba necessária para
pagar essas condenações que vão surgir no próprio ano de 2014 ou vão transitar em
julgado em 2014. Isso é o que o Judiciário tinha de exigir. Independentemente de resolver
o passado, vamos evitar que o problema continue a existir no futuro. Quando o Estado faz
uma previsão de despesa para o ano seguinte e ela é excedida, a despesa efetiva é muito
maior do que a prevista, ele vai ao Parlamento e pede um crédito extraordinário, um
crédito especial, e faz a despesa. Aliás, alguns desses créditos, em certos limites, já estão
previstos na própria lei orçamentária elaborada no ano anterior. Isso é absolutamente
possível fazer. A constituição de um fundo público ou a inclusão de verba no orçamento
por previsão de despesa são exequíveis e, no entanto, nós estamos dando de ombros com
esse problema, tentando remediá-lo ou minorá-lo com mutirões de conciliação, que são
verdadeiros calotes, absolutamente iníquos.
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4.14. A insuficiência da defesa do devedor
O tempo já vai avançando e eu quero fazer um comentário sobre uma outra questão,
que eu tangenciei há pouco, que é a questão da defesa do devedor na execução. Vocês
conhecem melhor do que: embargos do devedor, embargos da primeira fase, embargos da
segunda fase – parece que os da segunda fase vão agora desaparecer no projeto de novo
Código -, impugnação ao cumprimento de sentença. Nós não conseguimos escapar de uma
lógica inteiramente equivocada de tratar a execução como se fosse uma ação de
conhecimento, continuando a manter a técnica, que vem da Idade Média, de que o devedor,
depois de citado, tem de defender-se em um determinado prazo. Não, na execução o
devedor não precisa ter prazo para se defender, porque a execução não é uma jurisdição de
sentença, que visa à prolação de uma decisão conclusiva sobre o direito material das partes.
Toda vez em que a lei estabelece que o devedor tem de defender-se em determinado prazo,
ela está criando uma dificuldade para o exercício da defesa fora de tal prazo. E aí vem a
exceção de pré-executividade, antes ou depois. No direito europeu, a solução mais
acertada, a meu ver, é a seguinte: o devedor pode se defender a qualquer tempo na
execução, mesmo porque na execução a defesa de mérito do devedor é uma verdadeira
ação de conhecimento incidente, porque na própria execução a atividade cognitiva é
apenas instrumental e, portanto, superficial, somente para verificar a certeza, liquidez e
exigibilidade do crédito, a legitimidade das partes e a validade dos atos executórios.
Na verdade, há dois tipos de defesa do devedor na execução. Ou ele se defende da
dívida, do direito material ou ele se defende da validade do processo de execução. Se ele
quer se defender da validade da execução, aí sim, ele deve ter prazos, mas não um só
prazo, comum, mas ele deve ter prazos contados da prática de cada ato executório, porque
de cada um poderá surgir uma impugnação, decorrente de uma nova invalidade ou
nulidade. Então, seria justo que o devedor tivesse cinco ou dez dias para impugnar
qualquer ato executório, imediatamente após a respectiva intimação. Mas para se defender
da dívida, ele não deve ter prazo nenhum, ele deve poder defender-se sempre: antes, com
uma ação anulatória da dívida; durante com uma ação incidente que pode ter qualquer
nome, como embargos, impugnação ou oposição; e depois, com uma ação de repetição do
indébito, sujeitas todas aos normais prazos prescricionais.
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Qual é a lógica perversa? Se se estabelece um prazo peremptório, fatal, comum
para as defesas processuais e de mérito, se o devedor naquele prazo se omitir, será que ele
terá de sujeitar-se a ficar sem defesa durante todo o processo de execução? E, o que é pior,
pode-se extrair do fato de ele não ter se defendido, ou deixado de usar um determinado
argumento, a conclusão perversa, mas que boa parte da doutrina adota, da preclusão pro
judicato, ou seja, de que transitou para ele em julgado a possibilidade de alegar matérias de
defesa, como no processo de conhecimento, em que, segundo opinião dominante, pelo
princípio da eventualidade, ressalvado o direito superveniente e as questões de ordem
pública, tudo o mais preclui se não for alegado na contestação?
Isso me parece de uma lógica tão simples, tão clara, mas os nossos legisladores, na
ânsia da celeridade, em todas as reformas, incidem nesse mesmo erro. Citar o devedor e
dar-lhe quinze dias para se defender. E depois? O projeto do novo Código tenta minorar o
problema, permitindo a impugnação avulsa de qualquer ato subsequente, com agravo de
instrumento contra a decisão que resolver a questão. Melhora, mas ainda fica a dúvida
sobre a preclusão pro judicato, ou seja: será que o devedor, que não se defendeu no prazo
de embargos, ou que se defendeu, mas não alegou todas as matérias que poderia, depois de
esgotada a execução, poderá ele propor ação de repetição do indébito alegando um
fundamento de direito material que foi omitido nos embargos?
Para os que defendem essa preclusão, o devedor, sem ter proposto ação nenhuma
num prazo exíguo de 10 ou 15 dias, perde nesse exíguo prazo o direito de exercer essa
pretensão em qualquer outra ação, que somente prescreveria em três, quatro ou cinco anos.
Vejam, então, que também quanto à defesa do devedor nós estamos caminhando
muito devagar e ainda vamos ter vazios defensivos que vão ter de ser preenchidos por
outros meios. A exceção de pré-executividade é esse instrumento sem nome, sem previsão
legal, para dar plenitude de defesa ao devedor, mas aí vem a jurisprudência, como sempre
mais preocupada com a quantidade do que com a qualidade, e somente a admite por
matéria de ordem pública. E eu pergunto: pagamento é matéria de ordem pública?
Pagamento não é matéria de ordem pública, mas se o devedor atravessar uma petição com
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o recibo de pagamento, o juiz não vai extinguir a execução? Claro que vai. E prescrição de
direito patrimonial, é matéria de ordem pública? Continua a não ser, apesar de hoje o juiz
poder decretá-la de ofício. E o juiz vai deixar de decretar a prescrição? A jurisprudência
acertadamente criou a válvula de escape, que é a exceção de pré-executividade, mas em
seguida, ela mesma se assusta com o alcance que ela pode ter e acaba por cerceá-la e, com
isso, cerceando a própria amplitude da defesa constitucionalmente recomendada.
E sempre vai ficar a dúvida, que demorará anos para se resolver, se ocorrerá a
chamada preclusão pro judicato, nos casos de falta de alegação no momento próprio de
defesas de direito material.
4.15. Não exaustividade da execução provisória
Feito todo esse percurso, eu quero concluir com mais um ponto, que eu não resisto
ao ímpeto de examinar, que é a questão da não exaustividade da execução provisória. Nós
insistimos em que a execução provisória não pode levar aos atos de alienação do domínio,
a não ser que o devedor preste caução, salvo em algumas restritas exceções que foram
recentemente criadas pela Lei 11.232/2005 (CPC, art. 475-O, § 2ᵒ), de alimentos e certas
indenizações por ato ilícito. Nós nos queixamos que temos excesso de processos e excesso
de recursos. Uma das grandes causas do excesso de recursos é que os recursos que têm
efeito suspensivo não têm efeito suspensivo. Ou seja, na realidade, não adianta o recurso
legalmente não ter efeito suspensivo. Se o credor instaura a execução, quando chega a hora
de transformar os bens em dinheiro, ele tem de parar. Ou então, ele, que já não recebeu o
que lhe é devido, tem de desembolsar uma quantia equivalente ao que ele não recebeu, ou
imobilizar um patrimônio de valor corrrespondente, para dar em garantia e poder levar o
bem penhorado à arrematação. Mas aí vêm os puristas e dizem: se a decisão não transitou
em julgado, não podem ser praticados atos irreversíveis. O Prof. Giuseppe Tarzia, da
Universidade Católica de Milão, recentemente falecido, em estudo publicado na nossa
Revista de Processo19
trouxe ao debate dessa questão um argumento que me parece
19 Giuseppe Tarzia, “Problemas atuais da execução forçada”, in Revista de Processo, ano 23, nº90, abril-
junho de 1998, pp. 68 e ss.
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irrespondível. Num bom sistema processual, em que o tribunal ou o relator no tribunal em
que o recurso está pendente pode sempre dar efeito suspensivo ao recurso cautelarmente,
num juízo positivo de probabilidade de que o recurso seja provido, como hoje é
perfeitamente possível no Brasil, graças ao art. 558 do CPC e a outras disposições, a
execução provisória pode e deve ser exaustiva. Ela não deve mais ficar sujeita ao bloqueio
dos atos de alienação do domínio porque o devedor, que já perdeu em todas as instâncias,
vai continuar recorrendo só para procrastinar, porque sabe que o credor, mesmo que
penhore os seus bens, não vai poder levá-los à arrematação, não vai poder concluir com
proveito a execução. Nós não precisamos mais ter execução provisória com limitação dos
atos de alienação do domínio, porque, se a qualquer momento, na véspera da arrematação,
houver alguma probabilidade de o recurso ser provido, o executado se dirige ao relator do
recurso e mostra que está prestes a perder o bem e obtém o efeito suspensivo do recurso e a
arrematação é suspensa. Esse foi um erro que nós cometemos na interpretação do Código
de 73. Havia uma súmula do Supremo Tribunal Federal, na vigência do Código de 39,
segundo a qual a execução na pendência do recurso extraordinário era definitiva. Essa
súmula caiu por força da doutrina mais qualificada20
, para a qual, tendo o Código de 73
estabelecido que a execução na pendência de recurso sem efeito suspensivo é provisória,
não é mais possível entender que na pendência de recurso extraordinário ela seja definitiva.
Pensem na Fazenda Pública. Quem mais recorre para os tribunais superiores é a Fazenda
Pública, recorre sabendo que vai perder, só para protelar, porque a execução provisória não
é exaustiva. E a isso se soma a redação infeliz do atual artigo 100 da Constituição, que se
refere ao trânsito em julgado como pressuposto da execução contra a Fazenda, o que
muitos consideram um pressuposto inafastável a estimular essa série infindável de recursos
protelatórios.
5. Conclusão
Depois de todo esse longo e cansativo percurso, só me resta agradecer a paciência
que os senhores e especialmente o Desembargador Paulo Baldez, que me acompanhou
20 V. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 16ᵃ ed., Forense, Rio
de Janeiro, 2012, pp. 284-286.
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nesta mesa, tiveram de ouvir esta extensa exposição; agradecer também profundamente a
honrosa oportunidade que me deram de fazer esta pregação em favor da reforma da
execução e concluir lhes dizendo que, se a crise é profunda, não menor deverá ser a
reforma. Se para nada servirem estas ideias, eu me contento que elas possam vir a
despertar ou a renovar nos senhores e, quem sabe, também em outros mais doutos do que
eu, o interesse pelo tema.
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2013.
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L’ARBITRAGE ET L’EVOLUTION CONTEMPORAINE DES MODES DE
REGLEMENT DES CONFLITS1
Loïc Cadiet
Membre de l’Institut Universitaire de France. Professeur à
l’Ecole de droit de la Sorbonne (Université Panthéon-
Sorbonne Paris 1). Président de l’Association Internationale
de droit Processuel. [email protected]
De l’extérieur, l’arbitrage se présente comme un mode de règlement des conflits
parmi d’autres, mais distinct des autres. Il est, avec les autres, une pièce du système de
justice pluriel que l’Etat offre aux justiciables en vue d’assurer le règlement des conflits
qui les opposent. Il l’a toujours été et il l’est partout. Le droit comparé sera exclu de mon
propos car il mène trop loin et il y a, sur ce point, de très utiles sources disponibles, y
compris dans la littérature de langue française2. L’histoire du droit le sera également
3, car
mon propos a pour objet l’arbitrage dans l’évolution contemporaine des modes de
règlement des conflits. Ces travaux ne sont cependant pas intérêt. Les plus récents
enseignent, notamment, que l’arbitrage n’est pas une forme primitive de la justice étatique,
mais qu’il a toujours existé comme un mode concurrent de la justice publique, auquel il a
même pu servir de modèle tandis que, à l’inverse, les principes directeurs du procès
1 Cet article est issu d’une communication présentée sous le titre « L’arbitrage et l’évolution contemporaine
des modes de règlement des conflits » lors d’un colloque organisé à Nice les 9 et 10 décembre 2011 sous la
responsabilité scientifique des professeurs Yves Strickler et Jean-Baptiste Racine. 2 J.F. POUDRET et S. BESSON, Droit comparé de l'arbitrage international, Bruylant, LGDJ, Schulthess, 2002.
– Voy. aussi L. CADIET (dir.), T. CLAY et E. JEULAND, Médiation et arbitrage, Alternative Dispute
Resolution – Alternative à la justice ou justice alternative ? Perspectives comparatives, Litec, 2005. Adde L.
CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, PUF, 2ème éd. 2013, n° 46, « Droit
comparé ». 3 Voy. p. ex. D. ROEBUCK et B. DE LOYNES DE FUMICHON, Roman arbitration, Oxford, Holo Books, The
arbitration press, 2004. - C. JALLAMION, L'arbitrage en matière civile du XVIIe au XIXe siècle, thèse
Montpellier 2004. - Ch. JARROSSON (dir.), Les rapports entre arbitrage et justice étatique – Perspectives historiques, coll. Les Episodiques, Centre d'histoire judiciaire, Université de Lille II, 2007. Adde L. CADIET,
J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, PUF, 2ème éd. 2013, n° 46, « Histoire du
droit ».
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juridictionnel ont pu être étendus au procès arbitral mutatis mutandis. La tradition française
est en effet de comprendre l’arbitrage dans les modes de règlement des conflits au point de
l’inclure dans les dispositions du code de procédure civile4. Le code de 1806 lui consacrait
un livre entier, le livre III Des arbitrages, de la deuxième partie Des procédures diverses
(art. 1003 à 1018). Encore plus ambitieusement, l’actuel code, issu de la réforme des
années 1970, à son tour récemment rénovée au mois de janvier dernier5, en fait une partie
entière, avec le livre quatrième L’arbitrage (art. 1442 à 1527).
Pour autant, l’arbitrage n’est pas réductible à un simple mode de règlement
juridictionnel des conflits. Chacun sait bien qu’en raison de sa source conventionnelle,
l’arbitrage est tout entier dominé par l’accord des parties, qui lui confère un caractère
amiable (à défaut d’être toujours aimable, tant s’en faut), dont le procès judiciaire n’est pas
spontanément pourvu. Cette contractualité essentielle fait de l’arbitrage un mode alternatif
de règlement des conflits dont l’évolution contemporaine doit être également articulée à
celle des autres modes alternatifs de règlement des conflits.
L’ambivalence fondamentale de l’arbitrage nous conduira ainsi à saisir l’arbitrage
dans son rapport à l’évolution contemporaine, à la fois, des modes juridictionnels (Section
I) et des modes alternatifs (Section II) de règlement des conflits.
Section 1. – L’arbitrage et l’évolution contemporaine des modes de règlement
juridictionnel des conflits
Si sa source est conventionnelle, l’arbitrage a un objet juridictionnel : dire le droit
dans le litige soumis au tribunal arbitral. L’arbitre est un juge et la sentence est un
4 Cette tradition est d’ailleurs tellement libérale qu’elle a conduit à l’inclusion récente, au livre V du code
(art. 1528-1568), de dispositions relatives à la résolution amiable des différends (conciliation et médiation
extrajudiciaires, convention de procédure participative). 5 D. n° 2011-48, 13 janv. 2011 portant réforme de l'arbitrage, JORF 14 janv., p. 777. Voy. not. Ch.
JARROSSON et J. PELLERIN, « Le droit français de l’arbitrage après le décret du 13 janvier 2011 », Rev. arb.
2011, p. 5 et s. - Et, plus spécifiquement en ce qui concerne l’arbitrage international, S. BOLLÉE, « Le droit
français de l’arbitrage international après le décret n° 2011-48 du 13 janvier 2011 », Rev. crit. DIP 2011, p. 553 et s. Et, pour une vue générale, T. CLAY (dir.), Le nouveau droit français de l’arbitrage, Paris, Lextenso,
2011.
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jugement qui a d’ailleurs autorité de chose jugée dès son prononcé. Deux phénomènes
apparaissent au regard de l’évolution contemporaine des modes de règlement juridictionnel
des conflits : d’une part, l’extension régulière du domaine de l’arbitrage (sous-section 1),
d’autre part, son assimilation croissante à l’économie du procès judiciaire (sous-section 2),
deux tendances observées à maintes reprises.
Sous-section 1. – La progression de l’arbitrage au détriment du procès judiciaire
La progression de l’arbitrage au sein des modes de règlement juridictionnel n’est
pas nouvelle et le phénomène a souvent été observé, sauf à faire la part des faux arbitrages
(§ 1) et des vrais arbitrages (§ 2).
§ 1. - Les faux arbitrages
Le faux arbitrage est celui qui se présente comme un arbitrage alors qu’il ne trouve
pas sa source dans un accord des parties, mais dans une disposition de la loi qui le rend
obligatoire. On parle aussi d’arbitrage forcé.
L’hypothèse n’est pas nouvelle.
Peu de temps a séparé la revendication, contenue dans les cahiers de doléances,
d’une justice arbitrale conduisant les plaideurs apaisés à boire ensemble « une bouteille de
vin payée à frais commun et bue à la santé l’un de l’autre » 6 de la loi des 16-24 août 1790
sur l’organisation judiciaire. Cette loi s’ouvrait sur un titre premier Des arbitres (art. 1 à 6)
et, surtout, organisait un arbitrage obligatoire dans les affaires de famille (art. 12 à 17) 7, y
compris le divorce à partir de la loi du 20 septembre 1792 8. L’appel y était d’ailleurs
6 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, Histoire de la justice en France du
XVIIIème siècle à nos jours, Paris, PUF, 4ème éd. 2010, n° 133, p. 248. 7 Voy. spéc. art. 12 : « S’il élève quelque contestation entre mari et femme, père et fils, grand-père et petit-
fils, frères et sœurs, neveux et oncles, ou entre alliés aux degrés ci-dessus, comme aussi entre pupilles et leurs
tuteurs pour choses relatives à la tutelle, les parties seront tenues de nommer des parens, ou, à leur défaut, des
amis ou voisins pour arbitres, devant lesquels ils éclairciront leur différent, et qui, après les avoir entendues et
avoir pris les connaissances nécessaires, rendront une décision motivée » et, là-dessus, J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 140, p. 262-263 et n° 144, p. 267-270. 8 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 144, p. 267-270, et n° 172, p.
312-313.
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possible, alors qu’il ne l’était pas, en principe, dans l’arbitrage facultatif de droit commun.
On sait l’échec de ce dispositif 9.
Mais les faux arbitrages n’ont pas disparu et ils s’attirent aujourd’hui la critique de
n’être pas vraiment des arbitrages à défaut de reposer sur le consentement des parties qui y
sont soumises, qu’il s’agisse de l’arbitrage prévu au profit des journalistes professionnels
10, de l’arbitrage sportif, pour partie
11, ou de l’arbitrage du bâtonnier dans les litiges entre
avocats, dont le champ d’application initial 12
a été étendu à l’ensemble des litiges entre
avocats par une loi du 12 mai 2009 13
. Certains auteurs y ont vu un coup de force inutile et
malvenu : inutile car l’art. 2061 du Code civil laisse déjà à tous les professionnels qui le
souhaitent la possibilité d’insérer une clause compromissoire dans leurs conventions et,
surtout, malvenu car il n’y a d’arbitrage que volontaire. Ainsi que l’écrit Thomas Clay,
« Tout arbitrage forcé est un ersatz d’arbitrage qui ne doit d’ailleurs pas en porter le
nom »14
. Le propos vaut autant pour l’arbitrage interne que pour l’arbitrage international15
.
9 J.-P. ROYER, J.-P. JEAN, B. DURAND, N. DERASSE et B. DUBOIS, op. cit., n° 144, p. 267-270, et n° 204, p.
353-356. 10 Art. L. 7112-4 et s. C. trav. : « Lorsque l'ancienneté excède quinze années, une commission arbitrale est
saisie pour déterminer l'indemnité due (al. 1). Cette commission est composée paritairement d'arbitres
désignés par les organisations professionnelles d'employeurs et de salariés. Elle est présidée par un fonctionnaire ou par un magistrat en activité ou retraité (al. 2). Si les parties ou l'une d'elles ne désignent pas
d'arbitres, ceux-ci sont nommés par le président du tribunal de grande instance, dans des conditions
déterminées par voie réglementaire (al. 3). Si les arbitres désignés par les parties ne s'entendent pas pour
choisir le président de la commission arbitrale, celui-ci est désigné à la requête de la partie la plus diligente
par le président du tribunal de grande instance (al. 4). En cas de faute grave ou de fautes répétées, l'indemnité
peut être réduite dans une proportion qui est arbitrée par la commission ou même supprimée (al. 5). La
décision de la commission arbitrale est obligatoire et ne peut être frappée d'appel (al. 6). ». Voy. T. CLAY,
« L'arbitrage, justice du travail », in M. KELLER (dir.), Procès du travail, travail du procès, Paris, LGDJ,
2008, p. 107-109. Sur la constitutionnalité de cette commission, voy. Cons. const. 14 mai 2012, déc. n°
2012/243/244/245/246, Procédures 2012, n° 233, obs. BUGADA. 11 Voy. M. PELTIER, « Un arbitrage particulier : l’arbitrage de litiges sportifs », in Y. STRICKLER (Textes
réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, préc., p. 115 et s. 12 L. 31 déc. 1971, art. 7 (réd. L. n° 90-1259, 31 déc. 1990) : « Les litiges nés à l'occasion d'un contrat de
travail sont soumis à l'arbitrage du bâtonnier, à charge d'appel devant la cour d'appel siégeant en chambre du
conseil ». 13 L. n° 2009-526, 12 mai 2009 de simplification et de clarification du droit et d'allègement des
procédures (JORF 13 mai, p. 7920 ; JCP 2009, I, 369, n° 2, obs. CLAY), compl. D. n° 2009-1544, 11 déc.
2009 relatif à la composition du Conseil national des barreaux et à l’arbitrage du bâtonnier (JORF 13 déc., p.
21545 ; JCP 2010, 546, n° 4, obs. CLAY) et CNB, décision 21 oct. 2010 portant réforme du règlement
intérieur national (RIN) de la profession d’avocat (JORF 7 janv., p. 436. Voy. S. BORTOLUZZI : JCP 2011,
38, et T. CLAY : JCP 2011, 666, n° 11), parachevant le dispositif en prévoyant que le bâtonnier peut
désormais déléguer ses pouvoirs d’« arbitre » à des anciens bâtonniers, voire à d’anciens membres du conseil
de l’Ordre. « En d’autres termes, non seulement l’arbitrage est imposé, mais en outre on ne sait même plus par qui on va être jugé » : T. CLAY, obs. préc. 14 T. CLAY, JCP 2009, I, 369, n° 2. Voy. déjà T. CLAY, « L'arbitrage du bâtonnier : perseverare
diabolicum », D. 2007, p. 28 et s.
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On pourrait en discuter et peser la question de savoir si la singularité de l’arbitrage tient
plus à sa source conventionnelle, surtout lorsque la justice étatique elle-même s’ouvre à la
convention des parties, ou à la possibilité offerte aux parties de choisir leur juge et leur
procédure, notamment en mettant la procédure arbitrale à l’abri de la publicité. En tout cas,
la progression de l’arbitrage au sein des modes de règlement juridictionnel des conflits
bénéficie également au véritable arbitrage.
§ 2. - Les vrais arbitrages
Après une assez longue période d’ankylose au cours du 19ème
siècle, favorisée par
la limitation de l’arbitrage aux seuls litiges nés, l’expansion de l’arbitrage a connu
plusieurs vagues successives commençant en 1925 avec l’admission de la clause
compromissoire entre commerçants16
. Dans la période la plus contemporaine, cette
expansion s’est faite, en législation, dans deux directions principales.
D’abord, le domaine de validité du compromis, défini par l’article 2060 C. civ.,
dont étaient initialement écartées les contestations intéressant les collectivités publiques et
les établissements publics et plus généralement toutes les matières qui intéressent l’ordre
public17
, a été progressivement étendu à toute une série de litiges administratifs18
, au-delà
même des litiges mettant en cause un établissement public industriel et commercial
15 A. MEZGHANI, « Arbitrage forcé et fondement contractuel de l'arbitrage ? », Gaz. Pal. 25-26 juin 2003, 1. 16 Sur cette évolution, voy. C. JALLAMION et Th. CLAY, « Justice publique et arbitrage », in L. CADIET, S.
DAUCHY et J.-L. HALPÉRIN, Itinéraires d’histoire de la procédure civile, Paris, IRJS Editions, 2013, à
paraître. Voy. aujourd’hui, art. L. 721-3, al. 5, C. com. : « Les tribunaux de commerce connaissent : 1° Des
contestations relatives aux engagements entre commerçants, entre établissements de crédit ou entre eux ; 2° De celles relatives aux sociétés commerciales ; 3° De celles relatives aux actes de commerce entre toutes
personnes. Toutefois, les parties peuvent, au moment où elles contractent, convenir de soumettre à l'arbitrage
les contestations ci-dessus énumérées ». 17 Art. 2060 C. civ., réd. L. n° 72-626, 5 juill. 1972 instituant un juge de l’exécution et relative à la réforme
de la procédure civile., art. 13. 18 Contestations relatives à l'État, aux collectivités territoriales et aux établissements publics pour les contrats
qu'ils concluent avec des sociétés étrangères pour la réalisation d'opérations d'intérêt national (art. 9, L. n°
86-972, 19 août 1986 portant dispositions diverses relatives aux collectivités locales), marchés publics (art.
132 C. marchés publ.), contrats de partenariat public-privé, qui comportent « nécessairement des clauses
relatives : [...] l) aux modalités de prévention et de règlement des litiges et aux conditions dans lesquelles il
peut, le cas échéant, être fait recours à l'arbitrage, avec application de la loi française » (art. 1414-12 C. gén. coll. terr., réd. L. n° 2008-735, 28 juill. 2008, en application de l'Ord. n° 2004-559, 17 juin 2004 sur les
contrats de partenariat. Voy. M. AUDIT, « Le contrat de partenariat ou l'essor de l'arbitrage en matière
administrative », Rev. arb. 2004, p. 541 et s.).
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autorisé à compromettre19
, mais à l’exclusion compréhensible du contrôle de légalité20
.
Avec la bénédiction du Conseil d’Etat, il a même été proposé de desserrer encore le corset
et, si le projet formé par un rapport dit Labetoulle, du nom d’un ancien président de la
section du contentieux du Conseil d’Etat, de créer un régime spécifique d'arbitrage
administratif, qui échapperait aux dispositions du Code de procédure civile21
, n’a pas
encore abouti, le Tribunal des conflits, l’an passé, dans un arrêt INSERM abondamment
commenté, a ouvert une brèche en ce sens à propos des contrats administratifs conclus par
des personnes publiques françaises avec des contractants étrangers ; il a jugé que ces
contrats relèvent de la juridiction administrative dès lors qu’ils impliquent le contrôle de la
conformité de la sentence aux règles impératives du droit public français22
. Puis, faisant
application de cette jurisprudence, le Conseil d’Etat a jugé que le juge administratif
français est compétent pour connaître de la demande d’exequatur dans un arbitrage soumis
aux règles impératives du droit français 23
.
Surtout, le clivage traditionnel des contrats civils et des contrats commerciaux ne
correspond plus à la réalité économique qui se fonde plutôt sur la distinction, devenue le
principe dans d'autres domaines, entre professionnels et non professionnels : c'est dans ce
type de rapports que la prohibition de la clause compromissoire a vocation à s’appliquer.
La cause a fini par être entendue : à la faveur d'une loi sur les nouvelles régulations
économiques, il y a dix ans, l'article 2061 C. civ. a été modifié pour qu'y soit posé le
19 Art. 2060, al. 2, C. civ. Voy., de manière générale, Ch. JARROSSON, « L'arbitrage en droit public », AJDA
1997, p. 16 et s . – Adde A. PATRIKIOS, L'arbitrage en matière administrative, préf. Y. GAUDEMET, Paris,
LGDJ, 1997. 20 Voy. art. L. 311-6 CJA et D. FOUSSARD, « Les dispositions sur l'arbitrage de l'article L. 311-6 du Code de
justice administrative », Rev. arb. 2000, p. 537 et s. 21 Voy. D. LABETOULLE, « Personnes morales de droit public et recours à l'arbitrage », JCP 2007, act. 149 et l'entretien avec D. LABETOULLE, JCP 2007, I, 143. Conf. J.-L. DELVOLVÉ, « Une véritable révolution...
inaboutie (remarques sur le projet de réforme de l'arbitrage en matière administrative) », Rev. arb. 2007, 373 ;
S. LEMAIRE, CH. JARROSSON et L. RICHER, « Pour un projet viable de réforme de l'arbitrage en droit
administratif », AJDA 2008, 617. 22 T. confl. 17 mai 2010, n° 3754, INSERM c. Fondation Letten F. Saugstad, D. 2010, 2330, obs. BOLLÉE et
2633, note LEMAIRE ; Rev. arb. 2010, 252, note AUDIT et 275, concl. GUYOMAR. Voy. aussi M. AUDIT, « Le
nouveau régime de l’arbitrage des contrats administratifs internationaux (à la suite de l’arrêt rendu par le
Tribunal des conflits dans l’affaire INSERM) », Rev. arb. 2010, p. 253 et s. - Th. CLAY, « Les contorsions
byzantines du Tribunal des conflits en matière d'arbitrage », JCP 2010, n° 21, 552. – E. GAILLARD, « Le
Tribunal des conflits torpille le droit français de l'arbitrage », JCP 2010, n° 21, 585. Adde Avis du Comité
français de l’arbitrage dans l’affaire INSERM, Rev. arb. 2010, 401. 23 CE 19 avr. 2013, SMAC, n° 352750, JCP 2013, 543, obs. ERSTEIN, 748, note LEMAIRE et 784, n° 7, obs.
ORTSCHEIDT ; D. 2013, 1069, obs. MONTECLER et 1445, note CASSIA ; Gaz. Pal. 29-30 mai 2013, 18, note
GUYOMAR et 16-18 juin 2013, 10, obs. SEILLER.
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principe de la validité de principe des clauses compromissoires « dans les contrats conclus
à raison d'une activité professionnelle » 24
. La validité des clauses compromissoires dans
les contrats de la consommation a même été soutenue, sous la seule réserve de l’abus au
sens de l’article L. 132-1 et R. 132-1 du Code de la consommation25
. L’opinion n’est pas
admise en droit interne, mais elle l’est en matière internationale26
.
Il faut également avoir égard à l’œuvre jurisprudentielle elle-même qui, dominée
par une volonté délibérée de favoriser l’arbitrage au sein des modes de règlement des
conflits27
, n’a eu de cesse, d’une part, d’assouplir les conditions de validité des clauses
d’arbitrage en consacrant un principe d’autonomie, à la fois formelle 28
et substantielle 29
,
de la clause d’arbitrage et, d’autre part, d’en renforcer l’efficacité au-delà du cercle des
parties signataires grâce à la libéralisation de leur transmission aux parties adjointes et,
surtout, aux parties successives en cas de transmission du rapport d’obligation dont elle
24 Art. 2061 C. civ. (réd. L. n° 2001-420, 15 mai 2001) : « Sous réserve des dispositions législatives
particulières, la clause compromissoire est valable dans les contrats conclus à raison d'une activité
professionnelle ». 25 Art. R. 132-2 C. consomm. (réd. D. n°2009-302, 18 mars 2009) : « Dans les contrats conclus entre des professionnels et des non-professionnels ou des consommateurs, sont présumées abusives au sens des
dispositions du premier et du deuxième alinéas de l'article L. 132-1, sauf au professionnel à rapporter la
preuve contraire, les clauses ayant pour objet ou pour effet de : (…) 10° Supprimer ou entraver l'exercice
d'actions en justice ou des voies de recours par le consommateur, notamment en obligeant le consommateur à
saisir exclusivement une juridiction d'arbitrage non couverte par des dispositions légales ou à passer
exclusivement par un mode alternatif de règlement des litiges ». 26 Un contrat international de consommation peut être soumis à l'arbitrage, en raison du principe d'autonomie
de la clause compromissoire : Voy. Paris, 7 déc. 1994, RTD com. 1995, 402, obs. (réserv.) DUBARRY et
LOQUIN ; Justices 1996-3, 435, obs. (crit.) RIVIER ; Rev. arb. 1996, 245, note (approb.) JARROSSON (la clause
compromissoire insérée dans un acte mixte international est valable : contrat de consommation entre
l'acquéreur d'une voiture et une société anglaise), sous la seule réserve des règles d'ordre public international,
qu'il appartient à l'arbitre de mettre en œuvre, sous le contrôle du juge de l'annulation, pour vérifier sa propre compétence, spécialement en ce qui concerne l'arbitrabilité du litige : Cass. 1re civ., 21 mai 1997, Rev. arb.
1997, 537, note GAILLARD ; Rev. crit. DIP 1998, 87, note (crit.) HEUZÉ ; RGDP 1998, no 1, 156, obs.
(crit.) RIVIER. – Rappr. Cass. 1re civ., 12 mai 2010, no 09-11.872 : D. 2010, 2934, obs. CLAY (cession de
droits d’auteur). 27 Voy. déjà art. 1er L. 16-24 août 1790 préc. : « L’arbitrage étant le moyen le plus raisonnable de terminer les
contestations entre les citoyens, les législatures ne pourrons faire aucune disposition qui tendrait à diminuer,
soit la faveur, soit l’efficacité des compromis ». Adde, en dehors de la France, Ch. JARROSSON, « Résolution
du Parlement européen sur la promotion de l'arbitrage », Rev. arb. 1995, p. 355 sq. 28 Formelle, avec l’admission de la clause compromissoire par référence : voy. Cass. 1re civ., 11 oct. 1989, n°
87-15094, Bull. civ. I, n° 314 ; Cass. 1re civ., 21 nov. 2006, n° 05-21818, Bull. civ. I, n° 502 et, désormais,
art. 1443 CPC. 29 Matérielle, avec : l’indépendance des lois applicables au contrat principal et à la clause d’arbitrage, et la
survie de la clause d’arbitrage à l’annulabilité du contrat principal. Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI
MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 119, « Théorie juridique », b).
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sont l’accessoire30
. Ce concours de bonnes fées explique la progression de l’arbitrage et
cette progression se fait au détriment des procès judiciaire. La faveur est telle qu’en cas de
concours, voire de conflit entre une clause d’arbitrage et une clause de compétence, entre
une procédure arbitrale et une procédure judiciaire, la prime est plus souvent donnée à
l’arbitrage que l’inverse31
. Mais, au sein des modes juridictionnels de règlement des
conflits, la progression du domaine de l’arbitrage n’est pas la seule tendance observable. Il
faut également souligner, ce qui peut sembler paradoxal de prime abord, son assimilation
croissante à l’économie du procès judiciaire.
Sous-section 2. – L’assimilation de l’arbitrage à l’économie du procès judiciaire
Cette assimilation de l’arbitrage à l’économie du procès judiciaire emprunte des
formes variées (§ 1), mais il ne faut pas en exagérer la portée, qui n’est pas sans limites (§
2).
§ 1. - Formes
A s’en tenir à l’essentiel, l’assimilation de l’arbitrage au procès juridictionnel revêt
trois formes principales.
Une première forme, observée depuis plus d’une vingtaine d’année déjà, est celle
d’une tendance à l’institutionnalisation de l’arbitrage. Cette tendance est la rançon du
succès de l'arbitrage. Le phénomène est particulièrement notable en matière d'arbitrage
international, mais l'arbitrage interne n'y échappe pas. Il tient au développement des
arbitrages assurés dans le cadre d'organismes permanents d'arbitrage qui, en France, se
30 Voy. L. CADIET, « Liberté des conventions et clauses relatives au règlement des litiges », Les petites
affiches, 5 mai 2000, p. 30 et s., spéc. n° 4 à 20. 31 Voy. L. CADIET, art. préc., spéc. n° 22 à 28 (hypothèses de conflits tenant au concours de clauses de
compétence et de clauses compromissoires ou à la pluralité de parties, dont certaines seulement sont parties à la clause compromissoire). Adde X. LAGARDE, « Pluralité de parties à un contrat versus pluralité de parties à
un procès », in L. CADIET et D. LORIFERNE (dir.), La pluralité de parties, Paris, IRJS Editions, 2013, à
paraître.
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comptent aujourd’hui par dizaines. La Cour européenne d’arbitrage en est un exemple32
. Il
en est d’autres, très connus comme la Cour d’arbitrage de la Chambre de commerce
internationale ou le Centre de médiation et d’arbitrage de Paris de la Chambre de
commerce et d’industrie de Paris, ou moins connus, comme tous ces centres régionaux,
généralistes ou spécialisés comme, par exemple, Chambre d'arbitrage et de médiation des
litiges de l'immobilier du CNAM des Pays-de-Loire33
.
La deuxième forme est celle de la procéduralisation de l’arbitrage, qui se traduit
par la soumission de l’arbitrage à des règles de procédure comparables à celle des procès
judiciaires, parfois même plus strictes34
, qui peuvent être certes définies par l’accord des
parties, mais qui peuvent aussi l’être, le cas échéant, par le tribunal arbitral lui-même ou
par les centres d’arbitrage lorsque l’arbitrage est institutionnel35
, quand elles ne le sont pas,
ce qui est moins fréquent, par renvoi au droit commun du procès civil36
. La réforme du 13
janvier 2011 n’a pas remis en cause ce lien, même si elle l’a formulé différemment37
. Le
tribunal arbitral fait même l’objet, désormais, d’un chapitre entier du code, ce qui n’était
pas le cas antérieurement38
. Le procès arbitral, du moins dans l’ordre interne, reste une
procédure spéciale soumise à certains des principes directeurs du procès énoncés au seuil
du code de procédure civile39
, en tant qu’ils sont l’expression d’un noyau dur intangible,
qui peut apparaître comme un droit commun processuel minimum, hors d'atteinte de la
volonté des parties : l'alinéa 2 de l'article 1464 se présente bien comme une dérogation au
32 Voy. Y. STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, Paris, L’Harmattan,
2012, spéc. p. 213 et s. 33 Autant qu'on puisse le savoir à partir du contentieux sur recours dont ils sont l'objet devant les tribunaux
étatiques, les arbitrages institutionnels représentent, en moyenne, 45 % au moins des arbitrages se déroulant
en France, contre 55 % des arbitrages ad hoc, ces derniers étant à l’inverse plus nombreux du reste en
province qu'à Paris. Pour une étude remontant à quelques années, voy. S. CRÉPIN, Les sentences arbitrales devant le juge français, Paris, LGDJ, 1995, préf. Ph. Fouchard. 34 Pour lui appliquer les catégories traditionnelles du droit commun du procès civil, l’arbitrage apparaît
comme une procédure écrite, strictement encadrée par un calendrier de procédure qui engage les parties aussi
bien que les arbitres, à peine de responsabilité éventuelle de ces derniers, qui jouissent d’un pouvoir
d’administration important de la procédure. Du reste, c’est bien d’une procédure « administrée » que les
règlements de certains centres d’arbitrage parlent pour désigner l’arbitrage institutionnel. 35 Voy. p. ex. art. 19 Règlement CCI. 36 « Sans être tenues de suivre les règles établies pour les tribunaux étatiques », dispose le nouvel article
1464, al. 1 CPC, simple faculté et non pas devoir. 37 Le renvoi au droit commun du procès civil était plus clair dans la disposition antérieure de l’article 1460,
al. 1 CPC : « Les arbitres règlent la procédure arbitrale sans être tenus de suivre les règles établies pour les tribunaux, sauf si les parties en ont décidé autrement dans la convention d’arbitrage ». 38 Chapitre 2 du Titre 1er du livre IV (art. 1450 à 1461 CPC). 39 Voy. art. 1er à 24 CPC.
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principe de liberté contractuelle posé par l'alinéa 1er 40
. Ainsi que l'écrivait déjà le doyen
Cornu à propos des dispositions antérieures, il y a vingt ans, « Ils font voir, au cœur de
l'ensemble des principes directeurs, le noyau de ceux -primi inter pares- qui, étant de
l'essence de l'action de juger, s'attache à tout juge (l'arbitre en est un : principe dispositif,
principe de contradiction, liberté de la défense, audition ouverte des parties, conciliation) »
41.
La troisième forme va même jusqu’à emprunter les habits d’une certaine
judiciarisation de l’arbitrage en raison de l’association permanente du juge judiciaire au
procès arbitral, traditionnellement juge de l’exequatur et juge du recours, mais surtout, juge
d’appui de la procédure arbitrale, chargé d’en prévenir ou d’en régler les difficultés afin
d’en assurer un déroulement optimal : constitution du tribunal, maintien de l’arbitre, durée
de l’arbitrage42
. Le décret du 13 janvier 2011 a fait explicitement entrer le juge d’appui
dans le code de procédure civile43
. La compénétration de la justice arbitrale et de la justice
étatique ainsi réalisée peut paraître si étroite que la thèse pourrait être défendue, malgré les
hauts cris qu’elle provoque dans le milieu arbitragiste, que la juridiction arbitrale est une
variété particulière de juridiction d’exception, du moins pour ce qui est de l’arbitrage
interne. En effet, en ce qui concerne l’arbitrage international, la Cour de cassation est allée
jusqu’au bout de sa politique de faveur à l’égard de l’arbitrage en jugeant que l’arbitrage
international est un ordre juridique autonome qui n’est rattaché à aucun ordre juridique
étatique44
. Au bout de cette logique, c’est sans doute trop loin 45
. On touche ici la question
des limites de l’assimilation de l’arbitrage au procès judiciaire.
40 « A moins que les parties n'en soient convenues autrement, le tribunal arbitral détermine la procédure
arbitrale sans être tenu de suivre les règles établies pour les tribunaux étatiques (al. 1). Toutefois, sont
toujours applicables les principes directeurs du procès énoncés aux articles 4 à 10, au premier alinéa de l'article 11, aux deuxième et troisième alinéas de l'article 12 et aux articles 13 à 21,23 et 23-1 (al. 2) ». 41 G. CORNU, « Les principes directeurs du procès civil par eux-mêmes (fragments d’un état des questions) »,
in Mélanges Pierre Bellet, Litec, 1991, p. 83 et s., spéc. p. 87, note 7. 42 Voy. Y. STRICKLER, « Arbitres et juges internes », in Y. STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage –
Questions contemporaines, préc., p. 57 et s. Et, déjà, Ph. FOUCHARD, « La coopération du président du TGI à
l'arbitrage », Rev. arb. 1985, p. 5 et s. – D. HASCHER, « Le juge d'appui », in L. CADIET (dir.), avec
E. JEULAND et T. CLAY, Médiation et arbitrage, Alternative Dispute Resolution – Alternative à la justice ou
justice alternative ? Perspectives comparatives, préc., p. 243 et s. 43 Voy. art. 1451 à 1457, 1459, 1460, 1463, 1505 et 1506 CPC. 44 Très exactement, « la sentence internationale, qui n'est rattachée à aucun ordre juridique étatique, est une
décision de justice internationale dont la régularité est examinée au regard des règles applicables dans le pays où sa reconnaissance et son exécution sont demandées » : Cass. 1re civ., 29 juin 2007, n° 05-18.053, Bull. ass.
plén. n° 250. – Rappr. Cass. 1re civ., 12 oct. 2011, n° 11-11.058, JCP 2012, 1140, obs. SERAGLINI ; D. 2011,
2483 et 3023, obs. CLAY ; D. 2012, 2337, obs. BOLLEE ; Rev. crit. DIP 2012, 121, note MUIR WATT, jugeant
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§ 2. - Limites
Ces limites sont aussi diverses que les formes de l’assimilation.
L’assimilation de l’arbitrage au procès judiciaire est tout d’abord limitée par la
singularité de l’arbitrage parmi les modes de règlement juridictionnel des conflits. Cette
singularité tient bien sûr à la source conventionnelle, donc privée, de l’arbitrage, qui
impose l’éviction de certains principes directeurs du procès juridictionnel comme, du
reste, de certaines exigences du droit au procès équitable 46
. C’est cette contractualité de
l’arbitrage qui explique, notamment, que les principes directeurs résultant des articles 1er
à
3 du code de procédure civile ne soient pas applicables au litige, pas plus que le principe de
publicité auquel se substitue, en principe, un principe opposé de confidentialité47
. Ainsi
que l’a écrit le doyen Cornu : « Les principes écartés font place aux règles qui reflètent les
particularités de l'arbitrage» 48
. Parce que l'arbitrage a une origine conventionnelle, les
parties en ont seules la maîtrise : d'où l'éviction des articles 1er à 3, et il n'a d'effet qu'à
l'égard des parties : d'où l'impossibilité d'enjoindre aux tiers une production de pièces aux
débats. Parce que l'arbitrage met en œuvre une justice privée, l'arbitre ne dispose pas de
l'imperium : d'où l'impossibilité, pour lui, d'ordonner saisies conservatoires et sûretés
judiciaires (art. 1468, al. 1 CPC), et l'instance présente un caractère confidentiel : d'où
l'exclusion de la publicité des débats et de la sanction du manquement à l'obligation de
réserve49
.
que le tribunal arbitral étant une juridiction internationale autonome, il n’entrait pas dans les pouvoirs du juge
étatique français d’intervenir dans le déroulement d’une instance arbitrale internationale. Et, sur cette opinion, car c’en est une avant que d’être jurisprudence, J.-P. ANCEL, « L'arbitrage : une juridiction
internationale autonome », RJDA 2007, p. 883 et s. – Conf. E. GAILLARD, « L’ordre juridique arbitral :
réalité, utilité et spécificité », (2010) 55 R.D. McGill 891. - F. GRISEL, L’arbitrage international ou le droit
contre l’ordre juridique, Fondation Varenne et LGDJ, 2011, préf. L. CADIET. 45 Voy. V. HEUZE, « Arbitrage international : quelle raison à la déraison ? » D. 2011, p. 2880-2885. 46 Voy. N. FRICERO, « L’arbitrage à l’aune de la Convention européenne » in Y. STRICKLER (Textes réunis
par), L’arbitrage – Questions contemporaines, préc., p. 47 et s. Adde L. BERNHEIM VAN DE CASTEELE, Les
principes fondamentaux de l’arbitrage, Bruylant, 2012. 47 Art. 1464, al. 2 et 4 CPC. 48 G. CORNU, « Les principes directeurs par eux-mêmes... », préc., p. 84, note 7. 49 Voy., pour une vue embrassant l’ensemble des modes alternatifs de règlement des conflits, L. CADIET, « Procès équitable et modes alternatifs de règlement des conflits », in M. DELMAS-MARTY, H. MUIR-WATT
et H. RUIZ-FABRI, Variations autour d’un droit commun – Premières rencontres de l’UMR de droit comparé
de Paris, Paris, Société de législation comparée, 2002, p. 89-109.
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A l’inverse, plus subtilement, l’assimilation du procès arbitral au procès judiciaire
devant le juge étatique est compensée, sinon limitée, par l’assimilation ponctuelle du
procès judiciaire au procès arbitral qui a pu servir, sur plusieurs points, de modèle à la
justice étatique. L’illustration pourrait ici en être donnée avec la requête conjointe (art. 57
CPC), inspirée du compromis, l’amiable composition judiciaire (art. 12, al. 4 CPC),
inspirée de l’amiable composition arbitrale, l’autonomie et la transmission des clauses de
compétence, inspirée de l’autonomie et de la transmission de la clause compromissoire 50
.
L’article 2061 C. civ. est également, aujourd’hui, un puissant argument en faveur d’une
extension de la validité des clauses de compétence territoriale à l’ensemble des contrats
entre professionnels et non plus seulement entre commerçants 51
. L’influence de l’arbitrage
sur la justice étatique pourrait aussi trouver quelques éléments, sinon arguments, avec la
consécration, en matière judiciaire, du principe de concentration des moyens 52
et de la
théorie de l’estoppel 53
, même si, sur ces deux derniers points, le périmètre des solutions
n’est pas exactement le même54
.
Il faut enfin observer que, plus radicalement, c’est le face-à-face de la justice
étatique et de la justice arbitrale qui est lui-même limité par la concurrence d’autres modes
alternatifs de règlement des conflits, qui impose maintenant d’examiner l’arbitrage au
regard de l’évolution contemporaine des modes alternatifs de règlement des conflits.
50 Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 119, Théorie
juridique. Et, depuis, Cass. 1re civ., 8 juill. 2010, n° 07-17.788, JCP 2010, act., 869 ; JCP 2010, 1191, n° 7,
obs. CLAY ; D. 2010, 2333, obs. D’AVOUT ; Procédures 2010, n° 336, obs. PERROT (autonomie des clauses
de compétence). 51 Ainsi que continue de le prévoir l’article 48 CPC : « Toute clause qui, directement ou indirectement, déroge aux règles de compétence territoriale est réputée non écrite à moins qu'elle n'ait été convenue entre
des personnes ayant toutes contracté en qualité de commerçant et qu'elle n'ait été spécifiée de façon très
apparente dans l'engagement de la partie à qui elle est opposée ». 52 Cass. ass. plén., 7 juill. 2006 : Bull. civ., cass. ass. plén., no 8. Voy. L. CADIET, E. JEULAND, Droit judiciaire
privé, Paris, LexisNexis, 8ème éd. 2013, n° 739. 53 Voy. not. Cass. com., 20 sept. 2011, no 10-22.888 : JCP 2011, 1397, no 13, obs. AMRANI-MEKKI ; Rev.
huissiers 2011, 293, note PUTMAN ; RTD civ. 2011, 760, obs. FAGES et, là-dessus, D. HOUTCIEFF, « La
consécration de l'interdiction de se contredire », JCP 2011, 1250. - C. MARÉCHAL, « L'estoppel à la française
consacré par la Cour de cassation comme principe général du droit », D. 2012, 167. - Et, déjà, N. DUPONT,
« L'interdiction de se contredire au détriment d'autrui en procédure civile française », RTD civ. 2010, 459.
Adde O. BALDES, L’estoppel ou l’approche renouvelée des systèmes d’interdiction de l’auto-contradiction en procédure civile : Procédures 2013, Etude 5. 54 Voy. not. E. LOQUIN, « De l’obligation de concentrer les moyens à celle de concentrer les demandes »,
Rev. arb. 2010, p. 201 et s.
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Section 2. – L’arbitrage et l’évolution contemporaine des modes alternatifs de
règlement des conflits
Je serai beaucoup plus rapide sur ce deuxième volet. La justice arbitrale est souvent
présentée comme une justice amiable par opposition à la justice étatique, autoritaire,
hâtivement stigmatisée pour son cortège compliqué de procédures contentieuses,
formalistes, longues et couteuses. La distinction est excessive, mais il est vrai que
règlement amiable et justice arbitrale ont partie liée. Dans la conception française, si
l’arbitre est un juge et sa sentence un jugement, l'arbitrage trouve son origine dans une
convention et c'est bien là la caractéristique essentielle de l'arbitrage, source première de sa
légitimité 55
, qui conduit d'ailleurs les juristes anglo-saxons à y voir l'archétype des
Alternative Dispute Resolution, c'est à dire des modes alternatifs de règlement des conflits
56. Mais ce caractère alternatif, s’il s’observe au sein de l’arbitrage (sous-section 1), met
l’arbitrage en concurrence avec d’autres modes alternatifs et cette concurrence, de
marginale, est devenue importante (sous-section 2).
Sous-section 1. – Le caractère alternatif de l’arbitrage parmi les modes de règlement
des conflits
La notion de mode alternatif de règlement des conflits a souvent intrigué et suscité
la discussion, soit en raison de son objet : conflit ou litige ? Soit en raison de son caractère
alternatif : alternatif à quoi ? La réponse initiale était d’envisager ces modes comme
alternative à la justice étatique et, à ce titre, l’arbitrage est bien un mode alternatif de
règlement des conflits. Mais, ce sens a évolué par la suite dès lors que la recherche d’une
solution amiable, là où la solution juridictionnelle apparaît comme une solution autoritaire,
se diffuse au sein même de l’institution judiciaire. Du coup, les modes alternatifs de
règlement des conflits ont leur place aussi bien sur le terrain des solutions judiciaires que
sur le terrain des solutions extrajudiciaires et l’on sait que, depuis une vingtaine d’années,
le droit positif a largement engagé l’institution judicaire dans la voie des règlements
55 Voy. P. TERCIER, « La légitimité de l’arbitrage », Rev. arb. 2011, p. 653 et s. 56 Voy., aux Etats-Unis d’Amérique, l’ADR Act de 1998, spéc. Sections 6 et 7. Adde G. ALPA, « La circulation des modèles de résolution extrajudiciaire des conflits », RIDC 1993, p. 755 sq, ainsi que
Cl. SAMSON et J. MCBRIDE, Solutions de rechange au règlement des conflits - Alternative dispute resolution,
Québec, Les presses de l'Université Laval, 1993.
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amiables, en multipliant les passerelles entre celle-ci et ceux-là 57
. L’Etat met en place une
offre de justice plurielle58
. La récente introduction en droit français de la convention de
procédure participative est la dernière illustration de cette politique juridique 59
.
L’arbitrage est compris dans cette politique de diffusion des règlements amiables au
sein même des procédures juridictionnelles. En effet, s’il est par lui-même une alternative
au règlement judiciaire du litige, l’arbitrage propose en son sein plusieurs types de
solutions possibles du litige.
A la solution juridictionnelle pure, rendue « conformément aux règles de droit »,
ainsi qu’en dispose l’article 1478 et 1511 CPC 60
, en écho à l’article 12, al. 1 CPC 61
,
tenant compte, en matière internationale, des « usages du commerce » (art. 1511, al. 2
CPC), les parties peuvent préférer une solution plus amiable à laquelle ils peuvent aboutir
de deux façons.
La première consiste à donner à l’arbitre mission de statuer en amiable compositeur
62, c'est-à-dire en équité, en ayant pour seul souci que de trouver une solution qui soit
équilibrée pour l’ensemble des parties en présence. Cette mission peut être prévue une fois
le litige né, dans le compromis ou lors de la rédaction de l’acte de mission. Mais, à la
différence de ce que l’article 12, al. 4 CPC dispose pour l’amiable composition judiciaire,
cette mission peut être stipulée avant tout litige lors de la rédaction de la clause
compromissoire. Le caractère alternatif de l'arbitrage est d'autant plus prononcé que les
arbitres ont reçu cette mission de statuer comme amiables compositeurs, ce qui, en principe
57 Conciliation judiciaire déléguée aux conciliateurs de justice, médiation judiciaire, médiation familiale, etc.
pour n’évoquer ici que la matière civile. Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 49-51 et p. 490-548. 58 V. p. ex. L. CADIET, « La justice face aux défis du nombre et de la complexité », Les Cahiers de la Justice,
2010/1, ENM et Dalloz, pp. 13-35. 59 Art. 2062-2068, réd. L. n°2010-1609, 22 déc. 2010, spéc. art. 2062 : « La convention de procédure
participative est une convention par laquelle les parties à un différend qui n'a pas encore donné lieu à la
saisine d'un juge ou d'un arbitre s'engagent à œuvrer conjointement et de bonne foi à la résolution amiable de
leur différend ». 60 Pour l’arbitrage interne, l’article 1511 précisant, pour l’arbitrage international, « (…) conformément aux
règles de droit que les parties ont choisies ou, à défaut, conformément à celles qu'il (le tribunal arbitral)
estime appropriées ». 61 « Le juge tranche le litige conformément aux règles de droit qui lui sont applicables ». 62 Art. 1478 CPC : « (…) à moins que les parties lui aient confié la mission de statuer en amiable
composition », pour l’arbitrage interne. – Art. 1512 CPC : « Le tribunal arbitral statue en amiable
composition si les parties lui ont confié cette mission » (arbitrage international).
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et dans l'arbitrage interne, rendait leur sentence spécialement insusceptible d'appel sous
l’empire des dispositions antérieure au décret du 13 janvier 2011 63
.
La seconde manière d’aboutir à une solution amiable est, comme en matière
judiciaire, de solliciter du tribunal arbitral qu’il constate l’accord des parties sur la solution
de leur litige. On parle alors de « sentence d’accord parties ». La possibilité en est
consacrée par certains règlements d’arbitrage comme, par exemple, par celui de la CCI,
dont l’article 32 dispose : « Si les parties se mettent d’accord pour régler leur différend à
l’amiable alors que le tribunal arbitral a été saisi du dossier conformément à l’article 16, ce
règlement à l’amiable peut, à la demande des parties et avec l’accord du tribunal arbitral,
être constaté par une sentence d’accord parties ». Ce type de sentence est un avatar du
contrat judiciaire ou du jugement de donné acte 64
. La solution du litige n’est plus, ici, de
nature juridictionnelle, mais de nature conventionnelle 65
; elle est prévue et encouragée par
la plupart des règlements d’arbitrage qui font de cette possibilité de solution amiable en
cours d’arbitrage une technique de gestion efficace de la procédure de règlement du litige
66. L’arbitrage subit alors la concurrence des autres modes alternatifs de règlement des
conflits.
Sous-section 2. – L’arbitrage à l’épreuve des autres modes alternatifs de règlement
des conflits
Un mot seulement suffira sur cette concurrence qui, à certains égards, est un effet
pervers de l’institutionnalisation de la justice arbitrale, déjà observé par plusieurs auteurs
63 Voy. anc. art. 1482 CPC. Cet effet n’apparaît plus dans les nouveaux textes. Voy. art. 1489 et 1490 CPC, le
premier se contentant de prévoir que « la sentence n’est pas susceptible d’appel sauf volonté contraire des
parties ». C’est que, en vérité, le principe est désormais celui de l’absence d’appel, que la sentence soit en
droit ou en équité. 64 Voy. L. CADIET, E. JEULAND, Droit judiciaire privé, préc., n° 105. 65 Voy. Cass. 1
re civ., 14 nov. 2012, n° 11-24.238, Procédures 2013, n° 46, obs. WEILLER ; Rev. arb. 2013,
138, note BILLEMONT : la simple constatation d’un accord entre les parties dans le dispositif de la
sentence, sans aucun motif au soutien de ce dispositif, ne peut s’analyser en une sentence constitutive
d’un acte juridictionnel ayant autorité de chose jugée. 66 Voy. p. ex. l’article 3.h.i de l’appendice IV sur les techniques de gestion de la procédure du Règlement
d’arbitrage CCI, qui rappelle que le tribunal arbitral peut « informer les parties qu’elles sont libres de régler
tout ou partie de leur litige par la négociation ou par toute méthode de règlement amiable des différends ».
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au premier rang desquels figurent Philippe Fouchard et Bruno Oppetit 67
. Les institutions
d'arbitrage présentent certes l'avantage de mettre à la disposition des parties une liste
d'arbitres, un règlement d'arbitrage et des structures matérielles d'accueil et de gestion de la
procédure (locaux, secrétariat, etc.). Mais la juridictionnalisation de l'arbitrage s'en trouve
accrue par les règlements d'arbitrage, qui imposent des formes et des délais de procédure,
organisent parfois même une procédure d'examen du litige à double degré68
. Cette
institutionnalisation de l’arbitrage est susceptible d’alimenter un phénomène de « dérives
procédurales » auquel Jean-Baptiste Racine avait consacré un article il y a plus de dix ans
déjà 69
. Le propos portait sur l’arbitrage international, mais l’arbitrage interne n’y échappe
pas. L'arbitrage y perd l'avantage de sa souplesse comme celui de sa rapidité en y gagnant,
si l'on peut dire, l'inconvénient d'un coût accru car la courbe des frais de la procédure
d'arbitrage a tendance à s'élever au fur et à mesure qu'il s'institutionnalise70
. Il en résulte
que, comme l’avait écrit Bruno Oppetit, « par l'effet d'une loi de substitution si souvent
vérifiée dans la vie des institutions juridiques » 71
, on assiste au développement de modes
de règlement des litiges alternatifs à l'arbitrage lui-même et, au premier chef, de la
médiation, avec les mêmes risques de processualisation qui ont précédemment affecté
l’arbitrage 72
. Le développement est tel que la médiation a en effet tendance elle aussi à
s’institutionnaliser au point que la plupart des organismes permanents d’arbitrage sont
devenus des centres d’arbitrage et de médiation qui proposent à leurs adhérents une vaste
palette de solutions alternatives au règlement juridictionnel des litiges, depuis la médiation
jusqu’aux ORD en passant par l’avis technique amiable, l’évaluation juridique
67 Voy. spéc. Ph. FOUCHARD, « Les institutions permanentes d'arbitrage devant le juge étatique », Rev. arb. 1987, p. 225 et s. – B. OPPETIT, « Justice étatique et justice arbitrale », in Études offertes à Pierre Bellet,
Paris, Litec, 1991, p. 415 et s. 68 V. p. ex. M. RUBINO-SAMMARTANO, « Le degré arbitral d’appel dans l’arbitrage international », in Y.
STRICKLER (Textes réunis par), L’arbitrage – Questions contemporaines, Paris, L’Harmattan, 2012, p. 111 et
s. 69 J.-B. RACINE, « Les dérives procédurales de l'arbitrage », in J. CLAM et G. MARTIN (dir.), Les
transformations de la régulation juridique, Paris, LGDJ, 1998, p. 229-247. 70 V., en dernier lieu, Th. CLAY et W. BEN HAMIDA (dir.), L’argent dans l’arbitrage, Paris, Lextenso, 2013, à
paraître. 71 B. OPPETIT, « Les modes alternatifs de règlement des différends de la vie économique », Justices, n° 1,
1995, p. 53-59, spéc. p. 55. Voy. également J.-B. RACINE, op. cit., p. 244-247. 72 Voy. Ph. FOUCHARD, « Arbitrage et modes alternatifs de règlement des litiges du commerce
international », in Souveraineté étatique et marchés internationaux à la fin du XXe siècle, Mélanges en
l'honneur de Philippe Kahn, Litec, 2001, p. 95 et s.
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indépendante, les dispute boards, la décision sur dernière offre, le mini-trial, la décision
d’urgence et même des formules alternatives hybrides combinant médiation et arbitrage 73
.
On parle alors de med-arb dans lequel la médiation et l’arbitrage peuvent être
combinés soit dans le temps, soit dans l’espace 74
. Dans le med-arb ordinaire,
diachronique, un arbitrage succède à une médiation en cas d’échec de cette dernière pour
tout ou partie du litige, les deux phases du processus étant mises en œuvre devant la même
personne, qui remplit donc deux missions successives. Dans le med-arb simultané,
synchronique, que propose notamment le Centre d’arbitrage et de médiation de Paris, les
deux procédures sont mises en œuvre simultanément et indépendamment l’une de l’autre,
ce qui est supposé garantir aux parties, sans perte de temps comme dans le med-arb
ordinaire, une solution amiable ou imposée du litige. Dans ce cas, la médiation n’est plus
un préalable à l‘arbitrage. Cette deuxième formule permet d’éviter les objections que
soulève la première en termes de cumul de fonctions, donc de confidentialité et
d’impartialité du tiers saisi 75
. Mais ce gain supposé de temps se fait au prix d’un
alourdissement de la procédure de règlement qui est une autre source d’inconvénient76
.
En conclusion, le système des modes alternatifs de règlement des conflits est donc
pluriel, comme l’est le système plus général de justice dans lequel ces modes s’inscrivent
aux côtés de techniques traditionnelles de solution judiciaire des litiges. Tous ces éléments
sont globalement solidaires et l’arbitrage, plus que tout autre en raison de son ambivalence
constitutive, est un bon observatoire des mutations contemporaines de la justice.
73 Sur la décision d’urgence, voy. not. E. LOQUIN, « L’arbitre d’urgence, un objet juridique non identifié »,
IJPL / RIDP 2012, n° 2, p. 261 et s. 74 Voy. Ch. JARROSSON, « Les modes alternatifs de règlement des conflits : présentation générale », in Les
modes alternatifs de règlement des conflits : rencontres internationales de droit comparé, RIDC 1997, p. 325
et s., spéc. n° 49 à 52. – A. BURR, « Med-arb : A viable Hybrid Solution ? » in Les arbitres internationaux,
Paris, Société de législation comparée, 2005, p. 57 et s. 75 Voy. L. CADIET, J. NORMAND, S. AMRANI MEKKI, Théorie générale du procès, préc., n° 55. 76 Comp. D. PARAGUACUTO-MAHÉO, « Pour plus de médiation en arbitrage international », Gaz. Pal. 14-16
oct. 2012, 19.
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463
LAICIDADE OU DITADURA DO AGNOSTICISMO?
Luiz Marcelo Cabral Tavares
Mestre em Direito Processual pela UERJ, Procurador do
Estado de Minas Gerais, Advogado.
RESUMO: O artigo tem por objetivo fomentar o debate acerca da observância das
garantias do processo, mormente em temas relevantemente controvertidos ora
representados por duas ações específicas. No contexto, o postulado do contraditório, como
manifestação do princípio político da participação democrática haveria de servir como
ferramenta de arrefecimento do desacordo moral em torno dos assuntos que foram objeto
de referidas ações e de legitimação, além de proporcionar adequada cognição pelo Estado-
Juiz. Enfim, reconhecendo-se a aridez do tema, o escopo é abrir um canal de diálogo, seja
no âmbito acadêmico, seja pelos operadores do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Laicidade – razão pública – devido processo – contraditório.
ABSTRACT: This paper aims to improve the debate on compliance with the guarantees of
the lawsuit especially on controversial topics relevantly now represented by two specific
claims. In context, adversarial postulate as an expression of political principle of
democratic participation would serve as a tool cooling of moral disagreement around issues
that were the subject of such claims and legitimacy as well as a providing adequate
cognition by the Judge. Finally, recognizing the intricacy of the subject, the scope is to
open a gate of dialogue, whether in the academic, either by Law operators.
KEYWORDS: Secularism – public reason – due process – adversarial principle.
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464
1. INTRODUÇÃO
A ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.61001 proposta pela Procuradoria
Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo e, pouco antes, nos idos de abril de 2012, a
arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 542 trataram de temas que
provocaram e ainda provocam questionamentos. Dentro da perspectiva acadêmica do
debate, é oportuno consignar que referidos questionamentos não vieram apenas de leigos,
tendo a perplexidade surgido, por exemplo, no próprio julgamento da ADPF mencionada,
com o voto divergente do Ministro Cezar Peluso, então Presidente do Supremo Tribunal
Federal:
“Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos anencéfalos, ao arrepio
da legislação existente, além de discutível do ponto de vista científico, abriria as portas
para a interrupção de gestações de inúmeros embriões que sofrem ou viriam sofrer outras
doenças genéticas ou adquiridas que de algum modo levariam ao encurtamento de sua vida
intra ou extra-uterina”, disse.
Peluso comparou o aborto de fetos sem cérebro ao racismo e também falou em
"extermínio" de anencéfalos. Para o presidente do STF, permitir o aborto de anencéfalo é
dar autorização judicial para se cometer um crime.
"Ao feto, reduzido no fim das contas à condição de lixo ou de outra coisa
imprestável e incômoda, não é dispensada de nenhum ângulo a menor consideração ética
ou jurídica nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica que lhe vem da
incontestável ascendência e natureza humana. Essa forma de discriminação em nada difere,
a meu ver, do racismo e do sexismo e do chamado especismo", disse Peluso.
"Todos esses casos retratam a absurda defesa em absolvição da superioridade de
alguns, em regra brancos de estirpe ariana, homens e ser humanos, sobre outros, negros,
judeus, mulheres, e animais. No caso de extermínio do anencéfalo encena-se a atuação
avassaladora do ser poderoso superior que, detentor de toda força, infringe a pena de morte
1 Trata-se de demanda que ficou conhecida na mídia por tencionar retirar a expressão “Deus seja louvado”
das notas de Real. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_direitos-
do-cidadao/12-11-12-2013-prdc-quer-excluir-expressao-201cdeus-seja-louvado201d-das-cedulas-de-reais.
Acesso em: 07 jan. 2013. 2 Trata-se da questão da interrupção da gravidez dos chamados fetos anencéfalos. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226954. Acesso em: 07 jan.
2013.
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a um incapaz de prescendir à agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa", completou o
presidente do STF, que proferiu seu voto antes de proclamar o resultado do julgamento.3
Ao longo do trabalho, ter-se-á oportunidade de exame mais detalhado acerca do
voto do Ministro Peluso, a intuir necessidade de maior reflexão sobre o tema. Imperioso
ressaltar que o substancial voto fora qualificado4 de “muito bem elaborado” e “com
impressionante lógica”.
Quanto à ação civil pública citada, tinha ela por objeto5:
1. DO OBJETO DA AÇÃO
A presente ação tem por escopo a obtenção de condenação da UNIÃO e do
BACEN à obrigação de fazer consistente em promover a retirada da expressão “DEUS
SEJA LOUVADO” das cédulas de Real, a qual foi incluída em constrangimento à
liberdade religiosa e em violação aos princípios da laicidade do Estado brasileiro, da
legalidade, da igualdade e da não exclusão das minorias.
Ora, o Estado laico, sendo certo que a “laicidade do Estado é um processo” 6, tem
como primeira consequência torná-lo:
imparcial em matéria de religião, seja nos conflitos ou nas alianças entre as organizações
religiosas, seja na atuação dos não crentes. O Estado laico respeita, então, todas as crenças
religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como respeita a não
crença religiosa. Ele não apóia nem dificulta a difusão das idéias religiosas nem das idéias
contrárias à religião.
O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral coletiva, particularmente
a que é sancionada pelas leis, deixa de ter caráter sagrado, isto é, deixa de ser tutelada pela
religião, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as
leis, inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação
3 A despeito dos perceptíveis erros de ortografia e gramática, o texto, por óbvio, foi reproduzido como
encontrado no original. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-
que-aborto-de-feto-sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 08 jan. 2013. 4 As duas adjetivações que se seguiram foram veiculadas no conhecido periódico jurídico digital Migalhas.
Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI153536,21048-
STF+decide+que+nao+e+crime+interromper+a+gravidez+em+caso+de. Acesso em: 08 jan. 2013. 5 Disponível em: http://www.prsp.mpf.gov.br/prdc/sala-de-imprensa/pdfs-das-
noticias/ACP%20Deus%20seja%20louvado%2012-11-12.pdf. Acesso em: 12 jan. 2013. 6 Extraem-se noções de laicidade, por ora, do Observatório da Laicidade do Estado, que integra o Núcleo de Estudos e Políticas Públicas em Direitos Humanos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao3.html.
Acesso em: 12 jan. 2013.
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de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos. O Estado laico não pode
admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada ou
vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos valores religiosos.
Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que os religiosos de todas as
crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não
crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade.
De todo modo, vale não esquecer que a laicidade do Estado é um processo. Não existe no
mundo um Estado totalmente laico, como não existe um Estado totalmente democrático.
Como a democracia, a laicidade é um processo, uma construção social e política.7
Sendo um processo, como dito, a laicidade não pode prescindir da participação -
que se espera democrática - de todos os segmentos da sociedade, dentre eles os religiosos.
Ademais, salta aos olhos e causa perplexidade perceber que se reconhece que “não existe
no mundo um Estado totalmente laico”.
Por óbvio que em se tratando da criatura humana, a perfeição é impensável, mas
as decisões a que temos sido submetidos não têm convencido de que sejam suficientemente
próximas a “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa
mediania” 8, ao menos no que tange ao procedimento adotado para as justificações
públicas9 exigíveis num Estado Democrático de Direito.
Para além de “discutível do ponto de vista científico” 10
como destacado pelo
Ministro Peluso, sob o ponto de vista processual, notadamente da fundamentação analítica
das decisões11
, a intervenção de determinadas entidades ficou aquém do esperado.
Requerida a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil, despachou12
laconicamente Sua Excelência, o Ministro Marco Aurélio, após informações da Assessoria:
7 Igualmente retirado do Observatório da Laicidade do Estado antes citado. 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de
W. D Ross. 4.ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 9 É oportuna a leitura de “John Rawls” de Nythamar de Oliveira in Dicionário de Filosofia de Direito, obra
coletiva coordenada por Vicente de Paulo Barreto, ed. Unisinos, 2009, p. 687-690. 9 É oportuna a leitura de “John Rawls” de Nythamar de Oliveira in Dicionário de Filosofia de Direito, obra
coletiva coordenada por Vicente de Paulo Barreto, ed. Unisinos, 2009, p. 687-690. 10 Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-que-aborto-de-feto-
sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 08 jan. 2013. 11 MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. Disponível em:
http://www.academia.edu/218490/O_Precedente_na_Dimensao_da_Igualdade. Acesso em: 12 out. 2013. 12 A decisão mencionada fora divulgada em 20 de abril 2012 e publicada em 23 de abril de 2012, conforme veiculado no sítio do Supremo Tribunal Federal na rede mundial de computadores. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226954. Acesso em: 08 jan.
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DECISÃO
ADPF 54 – ANENCEFALIA – ASSOCIAÇÃO MÉDICO ESPÍRITA DO BRASIL –
TERCEIRO – PARTICIPAÇÃO – INDEFERIMENTO
1. A Associação Médico Espírita do Brasil, por meio de memorial apresentado na data de
hoje, requer a inclusão no processo na qualidade de “amigo da corte” a fim de proferir
sustentação oral na sessão plenária da próxima quarta-feira, dia 11 de abril.
2. Tal como ocorrido em outros pedidos, não vislumbro conveniência maior na
participação do requerente na relação processual.
3. Indefiro o pedido.
4. Publiquem.
A nosso sentir, a conclusão a que se chega com a decisão acima discriminada é
controversa e não imediatamente apreensível sob a perspectiva de equidade de Rawls, ou
seja, vista como “exigência de imparcialidade” 13
e, portanto, ‘baseada em sua idéia
construtiva de posição original, que é central para sua teoria da “justiça como equidade”’14
.
Tampouco os métodos do “equilíbrio reflexivo” 15
e da “ideia de razão pública” 16
dão
suporte à decisão mencionada. Ora, abstraindo e indo além da questão das doutrinas
abrangentes e do paradigma adotado da Teoria da Justiça de Rawls, é imperioso observar
não haver certeza científica, por exemplo e ao menos em alguns casos, acerca das
peculiaridades e características da anencefalia e da meroencefalia. Dessarte, incerteza
13 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 84. “A especificação de Rawls das exigências de imparcialidade é baseada
em sua ideia construtiva de posição original, que é central para sua teoria da “justiça como equidade”. A
posição original é uma situação imaginada de igualdade primordial, em que as partes envolvidas não têm
conhecimento de suas identidades pessoais, ou de seus respectivos interesses pelo próprio benefício, dentro
do grupo como um todo. Seus representantes têm de escolher sob esse véu de ignorância, ou seja, em um
estado imaginado de ignorância seletiva (especialmente, ignorância sobre os interesses pessoais característicos e concepções reais de uma vida boa – conhecendo apenas o que Rawls chama de “preferências
abrangentes”), e é nesse estado de concebida ignorância que os princípios de justiça são escolhidos por
unanimidade.” 14 Ibidem. p. 84 15 SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Disponível em:
http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/143.pdf. Acesso em: 28 jan. 2013. O equilíbrio reflexivo é um dos
métodos de justificação na teoria da justiça como equidade de Rawls que consiste, em linhas gerais, em
juízos morais convergentes da cultura pública de uma sociedade democrática, dentre eles a tolerância
religiosa. 16 Ibidem. Tal qual o equilíbrio reflexivo, é método de justificação na teoria da justiça como equidade. “(...) a
ideia de razão pública afirma que as questões constitucionais essenciais e os elementos de justiça básica são afirmados a partir de valores políticos que podem ser endossados por todos os cidadãos na forma de um
consenso sobreposto (overlapping consensus) entre doutrinas abrangentes, o que demonstra uma proximidade
com o pragmatismo.” Para aprofundamento do tema, remete-se o leitor ao original.
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assim surgida exigiria (exige) maior debate, sob pena de se configurar parcialidade e
ausência de justificação nas decisões a se concretizarem dessa forma.
Desafortunadamente, parece que o avassalador fluxo de informações e o frenético
dinamismo da sociedade têm atingido em cheio as funções estatais, notadamente a
Jurisdição, que se submete a uma rotinização e uma padronização decisória divorciada de
suas graves atribuições e incumbências. Em paralelo, questões que mereciam um debate
maior e profunda reflexão, como a destacada linhas atrás (laicidade do Estado e suas
consequências) são igualmente decididas na “velocidade da informática”. Não se tem a
ilusão de que o Judiciário, mesmo diante da abrangência do assunto e dos outros meios
para tratá-lo (o da lei, por exemplo), deixaria de enfrentar temas como esse, o que lhe é
vedado, aliás, tendo em vista os termos do artigo 126 do Código de Processo Civil17
:
O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à
analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
Com efeito, não é desejável sejam impostos dogmas a quem quer que seja, como
se deu outrora, vindo à mente os desvirtuamentos praticados por ocasião da “Santa
Inquisição”. Entretanto, não é salutar, igualmente, uma imposição velada e atécnica do
agnosticismo, do ateísmo ou coisa que o valha - até porque não é disso que trata a
laicidade18
-, mormente no âmbito da jurisdição.
Em linhas gerais, são essas as reflexões propostas. Nesse contexto, é de bom
alvitre uma rápida incursão em capítulo acerca da postura dos tribunais ao longo História
recente, até para que se compreenda o enfrentamento das controvérsias nos dias de hoje
pelo Poder Judiciário. Em paralelo, tratar-se-á do princípio do contraditório, manifestação
do princípio político da participação democrática, igualmente importante para o que se
vem expor.
17 BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 12 jan. 2013. 18 Sempre oportuna, vale a leitura do artigo do Professor Daniel Sarmento, cujo título é “O crucifixo nos
tribunais e a laicidade do Estado” publicado na Revista Eletrônica PRPE. Disponível em: http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.
Acesso em: 12 jan. 2013. Ter-se-á oportunidade de perpassar, ao longo do trabalho, por outras considerações
do Professor Daniel Sarmento, que são úteis ao tema em estudo.
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2. ESCORÇO HISTÓRICO: DA MICROLITIGAÇÃO À EXPLOSÃO DE
LITIGIOSIDADE
No Estado Liberal, período que se estende pelo Século XIX até o final da Primeira
Grande Guerra, o Poder Judiciário se apresentava neutro politicamente, quando, então,
atuava retroativamente, através da subsunção racional-formal, sem referências éticas,
praticando uma justiça retributiva. Reconstituía, assim, uma realidade normativa pré-
constituída e garantia que a lei chegasse aos seus destinatários sem distorções.
A independência do Judiciário consistia em se sujeitar ao império da lei, dirigindo
o processo decisório. Nesse contexto, aquela garantia coexistia com a dependência
administrativa e financeira em face do Legislativo e do Executivo, garantindo a proteção
da liberdade.
Com o evolver da história, as condições políticas do Estado Liberal foram se
alterando em ritmos distintos nos diversos países, até que com as vicissitudes da ocasião se
chegasse ao período do Estado Providência, cuja consolidação se deu após a 2ª Guerra
Mundial. Com o predomínio do Poder Executivo, a teoria da separação dos poderes entra
em declínio, surgindo um instrumentalismo jurídico com superprodução legislativa, ou
seja, um caos normativo, que inviabiliza a subsunção racional-formal.
A promoção do bem-estar característica desse período ladeada pelo componente
repressivo provoca a juridificação da justiça distributiva. A liberdade que era exercida
contra o Estado passa a ser por ele promovida.
O surgimento de atores coletivos traz a reboque uma proliferação de direitos.
Há, nesse período, como é intuitivo, um aumento da procura pelo Judiciário, o que
deu ensejo ao confronto com sua parcela de responsabilidade política, desaparecendo a
neutralidade do primeiro período.
Se se mantivesse neutro, o Judiciário até poderia assegurar sua independência
conforme se apresentava, mas veria seu papel diminuir de importância, com risco de se
tornar irrelevante socialmente. Por outro lado, assumindo sua responsabilidade, defrontar-
se-ia com as outras funções estatais, seria por elas pressionado. Deu-se a opção pela
segunda alternativa, quadro que recrudesceu com a luta pelos direitos civis e políticos, nos
EUA, nos anos 60, na Itália, nos anos 70 e em menor escala nos países onde houve melhor
promoção de direitos, como na Escandinávia.
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Essas modificações exigiriam e exigiram enormes burocracias, os desvios
fomentaram o paternalismo estatal e na década de 70 e 80 do século passado, entra em
declínio o Estado Providência. Esse período marcado por ditaduras, por períodos de
repressão e pelo quadro do pós-guerra, intuitivamente, funcionaria como catalisador de
mudanças.
Automação, desregulamentação e globalização da economia e proeminência das
agências financeiras internacionais são características da crise do Estado Providência,
emergindo o modelo neoliberal.
A mesma sobrejuridificação do período anterior prossegue e continua a provocar
um caos normativo, só que agora, de modo paradoxal, para promover a desregulamentação
da economia: novas normas substituem ou apenas complementam as anteriores.
Em paralelo, surge uma legislação transnacional que se soma à inflação
legislativa.
Os litígios surgidos das relações transnacionais não se submeteriam aos tribunais
nacionais, que, por sua vez, começaram a impor filtros à procura doméstica, tendo essa
última aumentado sobremaneira.
Desigualdade social e litígios complexos, que surgiram nesse período em virtude
do advento de normas programáticas, inclusive de cunho econômico, enfim, aumento da
litigiosidade, todos esses fatores fizeram surgir, em face do despreparo dos magistrados
para essa nova realidade, rotinização e o produtivismo quantitativo.
O incremento da democracia no pós-guerra, a despeito de suas incontestáveis
vantagens e irremediável advento naquele contexto, viu-se face a face com o despreparo
estatal referido e provocou inconvenientes.
A democracia se caracteriza por comportar uma classe política mais ampla e uma
menor concentração do poder, tendo os agentes políticos um contato maior com agentes
econômicos. Referida dispersão de poder dá ensejo, como se tem visto, a episódios de
corrupção.
É assim que predominam nesse terceiro período a corrupção, o crime organizado
que se liga ao tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro, fatores que vão colocar os
tribunais no centro de intrincado problema de controle social. O protagonismo judicial,
nesse terceiro período, sem abandonar a litigiosidade civil do segundo período, dar-se-á
com mais incidência na seara penal.
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Interessante notar que nesse terceiro período, a rotinização e a padronização
decisória influenciarão, igualmente, a seara criminal, com criação de estereótipos e
“especialização” em determinados tipos de delitos.
O destaque do Judiciário nesse período pode ser exemplificado pela Operação
Mãos Limpas, na Itália.
O despreparo dos tribunais do segundo período em litígios complexos se une à
falta de vontade política do terceiro período, haja vista a imbricação com outros setores do
poder e agentes econômicos.
É de se delimitar que a reconstrução antes resumida diz respeito aos países
centrais, os mais desenvolvidos no mundo.
O nível de desenvolvimento sócio-econômico interfere na litigiosidade social e
judicial. Apesar de não se poder estabelecer uma relação estável entre desenvolvimento
econômico e político, é fato que os países menos desenvolvidos passaram por períodos de
instabilidade política, o que também interfere e interferiu na função jurisdicional.
Quanto aos países menos desenvolvidos, muitos deles foram, durante o período do
Estado Liberal, colônias, sendo o Estado Providência “fenômeno político exclusivo dos
países centrais” 19
.
É conhecida a desigualdade social e a precariedade dos direitos econômicos e
sociais nos países periféricos e semiperiféricos, como o Brasil, o que coloca os tribunais e
o papel do direito à prova, fator que recebe o reforço da constitucionalização abrangente
promovida, notadamente entre nós, após 1988.
Os três períodos antes mencionados e referentes aos países centrais correspondem
a três tipos de prática democrática e atuação política, o que não coincide com a experiência
vivida pelos países periféricos e semiperiféricos.
A neutralidade política, a prática da subsunção racional-formal, a microlitigação,
o caráter reativo condicionado à procura pelos cidadãos e a dependência orçamentária e
administrativa é o que caracterizou os tribunais nos países periféricos e semiperiféricos,
algo que só recentemente vem mudando.
19 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas
sociedades contemporâneas. Disponível em
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm. Acesso em: 08 jan. 2013.
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Com o declínio, nos anos 70 e 80, dos regimes ditatoriais nos países periféricos e
semiperiféricos, a consagração constitucional de mais de um século de direitos provocou
um curto-circuito histórico20
nesses países.
Os tribunais e, como é intuitivo, o ensino jurídico receberam a influência desse
período de neutralidade. A constitucionalização do direito ordinário e os direitos que
passaram a ser vindicados provocaram um impacto na cultura desses países, que
lentamente e com dificuldade, vão assimilando e se adequando às mudanças. A
corresponsabilidade política provocou e têm provocado os problemas com os quais
passaram a viver os tribunais nos países periféricos e semiperiféricos.
Essa postura, essa configuração, para além de provocar questionamentos acerca da
independência dos tribunais, também o tem feito com o seu desempenho e sua capacidade
institucional, o que não tem passado ao largo da avaliação dos operadores e destinatários
da prestação jurisdicional.
A sociedade cresceu e se tornou complexa, o que repercutiu na capacidade do
Estado de prover os direitos básicos. Em paralelo, o Poder Legislativo, premido por um
déficit de legitimidade, não tem sido capaz de acompanhar os anseios sociais. O acesso ao
direito e à justiça21
, ainda que incipiente, desembocou, então, nos tribunais, que, diante da
retração das duas outras funções estatais, têm se confrontado com uma
corresponsabilidade, que, no entanto, tem sido exercida de modo, de certa forma,
heterodoxo e muitas vezes sem a pertinente observância das garantias do processo.
O reconhecimento da força normativa às constituições dos estados22
também
requer sejam obedecidas as regras que emanam do devido processo legal, o que nos remete
às garantias que vislumbramos terem sido inobservadas (como na hipótese da ADPF 54 em
relação à Associação Médico-Espírita do Brasil), notadamente o contraditório
participativo23
, que é “a expressão processual do princípio político da participação
democrática, que hoje rege as relações entre o Estado e os cidadãos na Democracia
20 Ibidem. 21 Sobre o tema, conferir GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010. p. 10. 22 A propósito, confira-se CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 890. 23 GRECO, Leonardo. A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa. Disponível
em: http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista09/Artigos/LeonardoGreco.pdf. Acesso em: 14 jan.
2013.
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contemporânea” 24
. A propósito, é consequência da ideia-fonte consubstanciada no devido
processo legal “proteger o indivíduo contra o arbítrio judicial e estatal” 25
, permitindo-se às
partes dialogarem com o juiz dando-lhe subsídios para o julgamento da causa, pois que “o
exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a
Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados” 26
.
Desafortunadamente, a avalanche de demandas sobre o Poder Judiciário parece
impelir os juízes a um produtivismo quantitativo reforçado pelo estabelecimento de
metas27
, sendo certo que “a luta contra o tempo não pode sacrificar as garantias processuais
asseguradas pela Constituição” 28
. Com mais razão, numa hipótese como a da ADPF 54,
onde a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil, como mencionado, fora
indeferida laconicamente e sem a necessária fundamentação analítica.
Enfim, do que se vem expor, vislumbrou-se carência de justificações públicas nas
decisões apontadas, de certa forma, como consequência dos desdobramentos históricos e
culturais apontados.
3. CONTRADITÓRIO E COGNIÇÃO ADEQUADA
Revelam-se igualmente importantes para o presente estudo algumas considerações
acerca do contraditório, mormente diante do panorama da ADPF 54 multicitada. Senão,
vejamos.
As relações intersubjetivas dirigidas a um fim necessitam diálogo para
conhecimento de todas as circunstâncias que a elas se referem, sob pena de
consubstanciarem perspectivas parciais e unilaterais. Não se ignora que é preciso
racionalizar as diversas opiniões a fim de que se chegue a um denominador comum. As
assertivas anteriores se aplicam ao microcosmo do processo, já que “el proceso es relación
jurídica, se dice, em cuanto varios sujetos investidos de poderes determinados por la ley,
24 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 539. 25 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-
valorativo. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 130. 26 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009, p. 220. 27 Disponível em:http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/. Acesso em: 05 ago. 2012. 28 ROQUE, André Vasconcelos. A luta contra o tempo nos processos judiciais: um problema ainda à busca de uma solução. In: Revista Eletrônica “Temas Atuais de Processo Civil”, v. 1, n. 4, outubro de 2011, ISSN
2236-8981. Disponível em: http://www.temaisatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/51-v1-n-4-
outubro-de-2011-. Acesso em: 05 ago. 2012.
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actúan en vista de la obtención de un fin”29
. O juiz como um dos atores da relação jurídico-
processual30
deve se inteirar, envolver-se, pois que, como veremos, “a garantia
constitucional do contraditório endereça-se também ao juiz, como imperativo de sua
função no processo e não mera faculdade (o juiz não tem faculdades no processo, senão
deveres e poderes).” 31
.
Quer-se crer que o contraditório, para além dos reclamos da ordem pública
processual, seja capaz de atender as exigências da cognição adequada, possibilitando, ao
menos em tese, viabilizar ao juiz inteirar-se das circunstâncias da causa submetida à sua
apreciação através da participação dos sujeitos envolvidos, pois que
o contraditório também pressupõe o direito das partes de apresentar alegações, propor e
produzir provas, participar da produção das provas requeridas pelo adversário ou
determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as providências que possam ter
utilidade na defesa de seus interesses, de acordo com as circunstâncias da causa e as
imposições do direito material.32
Vale ressaltar que
a audiência bilateral tem origem na Antiguidade grega, mencionada por Eurípedes,
Aristófanes e Sêneca (Picardi), chegando ao Direito comum como um princípio de Direito
Natural inerente a qualquer processo judicial, consistente no princípio segundo o qual o
juiz somente está apto a decidir o pedido do autor depois de notificá-lo ao réu e de dar a
este a oportunidade de se manifestar. Ainda em nossos dias, autores sustentam esse
fundamento jusnaturalista do contraditório (Guinchard).33
Não se ignora que possa vir a ser usado como argumento o fato de se estar diante
de processo objetivo. Entretanto, a unção democrática em processos dessa natureza se
revela, justamente, através da participação dos amici curiae, que conferem um caráter
discursivo ao processo. Aliás, “somente o caráter discursivo do processo de deliberação é
29 COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 4.ª ed. Montevideo – Buenos Aires:
Julio César Faira Editor, 2010. p. 107. 30 V. GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.
257. 31 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual, volume I. 6.ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009. p. 226. 32 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 540. 33 GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório in BARRETO, Vicente de Paulo (Coordenador).
Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p. 154.
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capaz de fundamentar a possibilidade de autocorreções reiteradas e, destarte, a perspectiva
de resultados racionalmente aceitáveis” 34
.
Sobre o contraditório, qualquer demanda que tenha sido proposta e suas
posteriores comunicações deverão ser real e tempestivamente notificadas aos interessados.
Ou seja, incluem-se todos os eventos do processo, tais como, reitere-se, as audiências
(sessões dos tribunais) com suas intercorrências e as decisões - analiticamente
fundamentadas35
- acerca de sua necessidade ou não.
O princípio do contraditório pode ser definido como aquele segundo o qual ninguém pode
ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses, sem ter tido a ampla
possibilidade de influir eficazmente na sua formação em igualdade de condições com a
parte contrária. O contraditório é a expressão processual do princípio político da
participação democrática, que hoje rege as relações entre o Estado e os cidadãos na
Democracia contemporânea.36
O processo é dialético e exige manifestação das partes antes que se tome qualquer
decisão. Um diálogo, diálogo humano, ainda que não seja um peremptório equacionador de
uma controvérsia, é capaz de arrefecer expectativas e de viabilizar a acomodação e
compreensão de opiniões conflitantes. Como exemplo, seria como o esforço “por uma
metodologia do diálogo” 37
, em episódio que veio a ser mediado pelo Arcebispo católico
de Boston e o Governador do Estado de Massachussets em decorrência de posições
conflitantes de instituições em face de tragédia provocada por John Salvi contra duas
clínicas que praticavam o aborto que levou a óbito duas funcionárias e feriu outras cinco.
Inicialmente, esse diálogo fora buscado por seis mulheres, dentre quais três posicionadas a
favor do aborto e três contra. Destaca-se do texto parte que ilustra a importância de um
diálogo humano, que pode ser concretizado, ressalte-se, através do contraditório
participativo no processo:
34 HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Trad. Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003. p. 162. Apud BORGES, Lara Parreira de Faria. Amicus curiae e o projeto do Novo Código de Processo
Civil - Instrumento de aprimoramento da democracia no que tange às decisões judiciais. Revista Eletrônica
“Temas Atuais de Processo Civil”, v. 1, n. 4, outubro de 2011, ISSN 2236-8981. Disponível em:
http://www.temaisatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/51-v1-n-4-outubro-de-2011-. Acesso em: 14
jan. 2013. 35 Sobre a mencionada fundamentação analítica, confira-se MARINONI, Luiz Guilherme, op. cit. 36 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 539 37 JUNGES, José Roque. Aborto. In: BARRETO, Vicente (coordenador). Dicionário de Filosofia do Direito.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p. 20.
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O arcebispo católico de Boston e o governador do Estado de Massachussets lançaram um
apelo ao diálogo entre os dois movimentos que incentivou essas mulheres a darem início a
um diálogo que durou vários anos. Esse esforço significou um aprendizado de
esclarecimento das próprias posições e de compreensão da posição contrária e a construção
de pressupostos e princípios para uma metodologia de diálogo respeitoso sobre o aborto.
Chegou-se à clara consciência de que as posições dos dois movimentos são
irreconciliáveis, sendo por isso necessário não acusar ou desmoralizar os membros da
posição contrária, mas tentar compreender e dialogar para o bem da convivência social.
Nessa linha houve um árduo e difícil trabalho de polimento da linguagem para não se
referir à posição contrária de uma maneira ofensiva.
Numa sociedade democrática e pluralista, a única maneira de influir na busca de soluções
para determinados problemas, sem violência, é dialogar e participar da discussão com
clareza e pertinência sobre seus próprios argumentos e com respeito pela posição contrária.
O pressuposto para o diálogo é reconhecer que as posições em discussão têm relevância
social pelo fato de serem defendidas, pois apontam para males a serem superados e para
bens a serem defendidos. 38
Reitere-se que em processos da magnitude de uma ADPF não se pode prescindir
desse espectro legitimador. Nada obstante, a rotinização, a necessidade do atingimento de
metas – ou o que seria pior: o “oportuno” desprezo por opiniões religiosas “sem
fundamento” e por isso descartáveis -, tem feito apenas desconsiderar qualquer tentativa de
colaboração entre as partes e o juízo. Como se extraiu do texto e é inerente ao
conhecimento médio, o caminho “é dialogar e participar da discussão com clareza e
pertinência”. Num caso em que a discussão é a vida e onde a ciência apreensível pelo
conhecimento humano não é capaz de aferir com certeza científica sequer se se trata de
anencefalia ou merocrania (ou meroencefalia), não parece haver clareza ou pertinência.
Não se pode esquecer que “a contribuição kantiana para a reflexão sobre o estado
democrático de direito caracteriza-se pela ênfase na necessária complementaridade entre a
moral e o direito” 39
e, a partir daí, tem-se que:
38 Idem. Ibidem. 39 BARRETO, Vicente. Notas Kantianas sobre o Direito. In: BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos
Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 31.
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O conceito moral de direito diz respeito primeiramente à intesubjetividade na
reciprocidade (diretamente sobre “reciprocidade” Kant fala no § 8), a saber: “Só concerne
à relação exterior, e na verdade prática, de uma pessoa com outra, de modo que suas ações,
como factos, possam (imediata ou mediatamente) influenciar-se entre si” (230, 9-12). 40
O arbítrio há que se compatibilizar com a responsabilidade e, sendo assim,
questões como a que tratou a ADPF 54 necessitam amplo debate, claro e pertinente, para
que se justifique, para que se lastreie em justificação pública e, portanto, não parcial,
havendo que se ter em mente que “na filosofia política contemporânea, a compreensão da
democracia ampliou-se enormemente, de modo que já não seja vista apenas com relação às
demandas por exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com
relação àquilo que John Rawls chama de “exercício da razão pública” 41
.
Vê-se no contraditório participativo no âmbito do processo e das questões
públicas, enfim, no debate, o ponto fulcral da justificação pública, notadamente diante do
famigerado “desacordo moral razoável” 42
, onde razoáveis posições se apresentam como
inconciliáveis.
A imposição de óbice para intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil
da forma como se deu no caso concreto, definitivamente, não convence, mas, pelo
contrário, revela parcialidade a investir contra tudo que se expôs até agora.
Como se disse, não se esperava que o Poder Judiciário, através da Corte Suprema,
furtasse-se de sua essencial competência. No entanto, julgamento dessa magnitude, ao
invés de ofertar a justificação que se esperava e que fosse capaz de conciliar posições
antagônicas, não arrefece o desacordo e ignora a posição de terceiros, desvirtuando a noção
40 HÖFFE, Otfried. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da “Introdução à Doutrina do
Direito”. In: Studia Kantiana, Revista da Sociedade Kant Brasileira, Volume 1 – Número I (setembro de
1988), 1998. p. 215. 41 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 358. 42 O Professor Luís Roberto Barroso no artigo “Constituição, Democracia e supremacia judicial: Direito e
política no Brasil contemporâneo” dá uma visão panorâmica da expressão. O artigo pode ser acessado em:
http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf.
Acesso em: 19 jan. 2013. E Joana Teixeira de Mello Freitas traz, no artigo intitulado “O desacordo moral
razoável na sociedade plural do Estado Democrático de Direito”, disponível em
http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article/view/882/734, acessado em 19 jan. 2013, a noção da expressão: “O desacordo moral razoável, termo cravado pela filosofia, constitui-se perante a ausência de
consenso sobre uma questão polêmica cujos argumentos antagônicos são, ambos, originados de uma
conclusão racional.
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de laicidade e se aproximando de uma posição autoritária e desarrazoada, a que,
maieuticamente, chamou-se de “ditadura do agnosticismo”.
Lado outro, recapitulando o que aduzido no capítulo anterior, não se pode ignorar
a avalanche de casos a que é submetida a Corte Suprema, o que, por consequência, faz
intuir que, talvez, as controvérsias a ela levadas não sejam analisadas com a profundidade
que se espera. Essa quantidade desmesurada, a despeito dos filtros estabelecidos (o que
provoca, igualmente, debates acalorados), talvez abra espaço para “produzir”, assinar
outras decisões, documentos, eliminar pilhas de processo, etc. Fosse o contraditório
realmente um diálogo, a intervenção da Associação Médico-Espírita do Brasil teria sido
admitida. Aliás, uma pergunta há que ser feita: teria a Associação Médico-Espírita tido seu
acesso negado por ostentar a rubrica de espírita? Se assim o foi, com efeito, de laicidade
não se está a tratar.
Vale ressaltar que o contraditório, hodiernamente, ganha, ainda que de modo
incipiente, “proteção humanitária” 43
, sendo (deveria ser), “provavelmente, o princípio
mais importante do processo” 44
.
Ele é um mega-princípio que, na verdade, abrange vários outros e, nos dias atuais, não se
satisfaz apenas com uma audiência formal das partes, que é a comunicação às partes dos
atos do processo, mas deve ser efetivamente um instrumento de participação eficaz das
partes no processo de formação intelectual das decisões. 45
Nesse diapasão, parece estreme de dúvidas que qualquer incidente, por menor que
seja, no processo (e no procedimento) não poderá ser levado a cabo sem que haja
verdadeira oportunidade de manifestação das partes em efetivo e participativo
contraditório, que, como visto, sendo um megaprincípio, abarca outros, como a ampla
defesa. O diálogo humano deve oportunizar às partes justificarem a razão de sua
intervenção e, em contrapartida, sendo o juiz um dos atores da relação processual, deve ele
declinar, fundamentando sua decisão analiticamente, as razões pelas quais defere ou
indefere determinado pleito.
43 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 540 44 Ibidem. p.540. 45 Ibidem. p. 540-541.
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Forçoso reconhecer que, muitas das vezes, senão na maioria, as partes são quem
têm melhores condições de fornecer as mais importantes peculiaridades para resolução da
causa, permitindo uma adequada cognição.
O produtivismo quantitativo, a padronização decisória e a busca irracional pela
celeridade têm minado a inafastável observância do contraditório, com pressões para
abandoná-lo ou mitigá-lo. O interesse público, que deve ser “precisamente determinado”
46, não é compatível com a postergação do princípio do contraditório enquanto expressão
da dignidade humana.
O contraditório, além de exigir a audiência dos demandantes antes de qualquer
decisão, consiste no “oferecimento a ambas as partes das mesmas oportunidades de acesso
à justiça e de exercício do direito de defesa, a chamada paridade de armas” 47
.
O diálogo pressupõe que os interlocutores manifestem as suas opiniões ainda que
hipotéticas e provisórias, numa audiência oral, porque somente o encontro, o contato
imediato entre o juiz e as partes instaura diálogo verdadeiro e humano como um exercício
leal de paciência, tolerância, humildade e respeito mútuo.
Lamentavelmente o Direito brasileiro em muitos procedimentos não prevê audiências
orais, e a quantidade de trabalho e de processos tem progressivamente afastado os juízes do
exercício fecundo do diálogo em audiências orais, o que reduz o contraditório a uma
garantia meramente formal, destituído de todo o seu vigor humanitário. 48
Bem amparados pelo contraditório, mister, agora, fazer algumas considerações
sobre o tema central.
4. LAICIDADE E AGNOSTICISMO
A despeito da densidade do tema, não é despiciendo buscar os sentidos
lexicográficos das palavras em questão para as reflexões deste capítulo. Senão, vejamos.
46 GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 15 fev. 2013. 47 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, volume I. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 545. 48 Ibidem. p. 546.
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Segundo o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa49
, laicidade significa
“doutrina ou sistema que preconiza a exclusão das Igrejas no exercício do poder político
e/ou administrativo”. Quanto ao agnosticismo, tem-se o seguinte:
substantivo masculino ( 1913) fil
doutrina que reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão
dos problemas propostos pela metafísica ou religião (a existência de Deus, o sentido da
vida e do universo etc.), na medida em que ultrapassam o método empírico de
comprovação científica
Etimologia
ing. agnosticism foi forjado em 1869 por Thomas H. Huxley (1825-1895, biólogo inglês)
nos seus Collected essays, calcado, por oposição a gnosticismo, no adjetivo gr. ágnōstos,
'ignorante, incognoscível' (com o prefixo a- 'privação, negação'), derivado do verbo gr.
agnóein 'não saber, ignorar'; segundo sua própria confissão bastante irônica, Huxley criou
o vocábulo como antítese ao gnóstico da história da Igreja, que sempre se mostrava ou
pretendia mostrar-se sabedor das coisas que ele, Huxley, ignorava; e foi como naturalista,
afeito às coisas e relações da ciência experimental, que Huxley se utilizou do termo; em
1879 Charles Darwin chamava-se a si mesmo agnóstico, em carta, já com essa
significação; o fr. agnosticisme já se documenta em 1886, rápido se divulgando as formas
correlatas nas línguas modernas de cultura; ver -gno-50
Tomando por base, agora, a ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.610051
,
surge o primeiro questionamento: a expressão “Deus seja louvado” nas notas de Real
atribui poder político ou administrativo a alguma igreja ou segmento religioso
imediatamente identificável?
49 Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss – UOL, 2012. Disponível
em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=laicidade. Acesso em: 19 jan. 2013. 50 Idem. Disponivel em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=agnosticismo. Acesso em: 19 jan. 2013. 51 Trata-se da ação que ficou conhecida na mídia por tencionar retirar a expressão “Deus seja louvado” das notas de Real. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_direitos-do-
cidadao/12-11-12-2013-prdc-quer-excluir-expressao-201cdeus-seja-louvado201d-das-cedulas-de-reais.
Acesso em: 07 jan. 2013.
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No que concerne ao sentido etimológico da palavra agnosticismo, observa-se uma
reação ao gnosticismo histórico da Igreja, revelando-se aquele primeiro, então, como
manifestação do empirismo. Ora, ocorre que o empirismo é metodologia comum e anterior
à ciência em geral, é conhecimento que provém da experiência e que se limita ao que pode
ser captado do mundo externo pelos sentidos52
. Nesse diapasão, tomam-se esses primeiros
questionamentos como emuladores do estudo. Veja-se, então.
O Texto Constitucional53
preconiza em seu artigo 19, I:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
O dispositivo acima consagra o princípio da laicidade, como destacado pelo
Professor Daniel Sarmento54
.
Sendo esclarecedor, importa trazer à colação excerto do trabalho do Professor
Daniel Sarmento:
A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais contemporâneas,
é um princípio que opera em duas direções. Por um lado, ela salvaguarda as diversas
confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões
internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados, a forma de
cultuá-los, a sua organização institucional, os seus processos de tomada de decisões, a
forma e o critério de seleção dos seus sacerdotes e membros, etc.
52 Essas noções podem ser extraídas do Dicionário Houaiss já citado no trabalho. Vale ressaltar que ao
Espiritismo também pode ser atribuído, em certa medida, o método empírico e que vem sendo objeto de
exame - como se constata ordinariamente através da mídia - pelos segmentos formais da Ciência. Fato digno
de destaque, a propósito, é a obra de Filosofia, como destacado em seu prefácio, de autoria do Professor da
Universidade de Havana, Fernando Ortiz, intitulada “A Filosofia Penal dos Espíritas: estudo de Filosofia
Jurídica”, traduzida por Carlos Imbassay, 2.ª ed, editada pela Lake, São Paulo, 1998. Como mencionado no
prefácio da obra, o autor não é espírita, não sendo a obra uma apologia ou crítica ao Espiritismo, cogitando-
se de uma análise sob a perspectiva da Criminologia. 53 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 jan. 2013. 54 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE. Disponível em:
http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.
Acesso em: 12 jan. 2013.
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Sob esta perspectiva, a laicidade opõe-se ao regalismo55
, que se caracteriza quando há
algum tipo de subordinação das confissões religiosas ao Estado no que tange a questões de
natureza não-secular.
Mas, do outro lado, a laicidade também protege o Estado de influências indevidas
provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e
democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão
religiosa, inclusive a majoritária. No presente estudo, o foco maior de atenção será a
segunda dimensão da laicidade do Estado acima apontada: aquela que protege o Estado da
religião.
A laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à
religiosidade. Na verdade, o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é também uma
crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer
outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em
relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar
partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer
crença.56
O princípio do Estado laico pode ser diretamente relacionado a dois direitos fundamentais
que gozam de máxima importância na escala dos valores constitucionais: liberdade de
religião e igualdade.57
É imperioso consignar que não se consegue identificar com a Divindade ou sua
ideia, de imediato, qualquer religião vigente, haja vista os diversos segmentos protestantes,
católico, Espiritismo como Doutrina codificada por Allan Kardec, segmentos carismáticos,
religiões africanistas, etc, que tomam Deus como paradigma máximo, a despeito de se lhe
atribuir, por vezes, nomes, o que não descaracteriza referidas religiões como monoteístas.
55 O texto original traz notas de rodapé, que serão destacadas entre aspas. Quanto ao regalismo, tem-se o
seguinte: “A Constituição brasileira de 1824, por exemplo, que definira a religião católica como o culto
oficial do país (art. 5º), incidia no regalismo, quando determinava competir ao Imperador, como chefe do
Poder Executivo, “nomear os Bispos, e prover os Benefícios Ecclesiasticos” (art. 102, inciso II) bem como
“conceder ou negar o beneplácito a actos da Santa Fé” (art. 102, inciso XIV)”. 56 Também consta do texto original, nessa parte, a seguinte referência: “J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 613.”. 57 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE. Disponível em:
http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.
Acesso em: 12 jan. 2013.
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Basta observar, a propósito, que Jeová é o nome de Deus58
, “que não pode ser tomado em
vão”, versão oriunda do hebraico, não sendo possível ilação no sentido de que a menção a
Deus seja excludente das Testemunhas de Jeová. Quanto à figura do Cristo, igualmente,
não há qualquer identidade com segmento religioso, sendo o Cristianismo gênero do qual
defluem várias espécies de doutrinas.
De outro lado, porém, vislumbra-se possível identificar com uma “não-divindade”
o agnosticismo e o ateísmo.
Vale notar que a laicidade do Estado “não significa a adoção pelo Estado de uma
perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade” 59
, o que denotaria uma crença, um dogma,
que não poderia (e não pode) ser encampado pelo Estado.
Quando se iniciou o presente trabalho, ficou demonstrado que o objetivo era
fomentar o debate acerca dos quadros que se configuraram por ocasião das duas ações
destacadas. E nesse contexto, não foi possível extrair das ações referidas (ADPF 54 e ação
civil pública 00119890-16.2012.4.03.6100), seja do desfecho da primeira, seja do
propósito da segunda, suficientemente, justificações públicas e alinhamento com os
postulados democráticos que fossem capazes, de modo cabal, de chegar aos objetivos por
elas almejados, notadamente a ADPF 54, sendo “claro o papel central da argumentação
pública para a compreensão da justiça” 60
.
Esse reconhecimento nos leva a uma ligação entre a ideia de justiça e a prática da
democracia, uma vez que na filosofia política contemporânea a ideia de que a democracia é
mais bem-vista como “governo por meio do debate” ganhou ampla aceitação.61
Com alguma antecipação no contexto do presente trabalho e a propósito da “ideia
de que a democracia é mais bem-vista”, “significado prescritivo” 62
da democracia e, além,
do uso, de certa forma, figurado da expressão “ditadura do agnosticismo”, ver-se-á, mais à
frente, um paralelo com as expressões atribuídas a Marx e Engels e que pode ser
58 Conferir no Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss – UOL, 2012.
Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=Jeov%25C3%25A1. Acesso em: 24 jan. 2013. 59 SARMENTO, Daniel. op. cit. 60 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 358. 61 Ibidem. p. 358. 62 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 139.
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substituída pelo termo “domínio” 63
, comparação também estabelecida com a noção de
“ditadura moderna” 64
, onde se compreende, outrossim, que a “extensão do poder, que não
está mais apenas circunscrito à função executiva, mas se estende à função legislativa e
inclusive à constituinte”65
.
Retornando, então, à citação de Amartya Sen, tem-se que tão significativo é o
debate, o diálogo, o contraditório participativo no âmbito do processo, que vale o destaque
de um discurso “injustamente famoso” 66
proferido por Clement Attlee, em Oxford, em
1957: “Democracia significa governo por meio do debate, mas ela só é eficaz se
conseguirmos evitar que as pessoas falem” 67
. Com efeito, sem a ironia da declaração, é
importante que todos falem, que se fale o possível, porque a “democracia ampliou-se
enormemente, de modo que já não seja vista apenas com relação às demandas por
exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo
que John Rawls chama de “exercício da razão pública”68
.
Abstraindo, para os fins do presente trabalho, dos outros dois métodos de
justificação na teoria da justiça como equidade atribuídos a Rawls (reflective equilibrium –
equilíbrio reflexivo e original position/veil of ignorance – posição original sob o véu da
ignorância) 69
, sobre a idéia de razão pública, tem-se o seguinte:
Por sua vez, a ideia de razão pública afirma que as questões constitucionais essenciais e os
elementos de justiça básica são afirmados a partir de valores políticos que podem ser
endossados por todos os cidadãos na forma de um consenso sobreposto (overlaping
consensus) entre doutrinas abrangentes, o que demonstra uma proximidade com o
pragmatismo.
Em linhas gerais, no que concerne à razão pública, as questões constitucionais
essenciais serão equacionadas pelos valores políticos, não se aplicando aquela às
deliberações e reflexões individuais sobre questões políticas. Inobstante a cientificidade da
tese, não se vislumbra possível se possa prescindir do “pluralismo razoável (reasonable
63 Ibidem. p. 162 64 Ibidem. p. 161. 65 Ibidem. p. 163. 66 Expressão destacada por SEN, op. cit., p. 358, em nota de rodapé. 67 Ibidem. p. 358. 68 SEN, Amartya. op. cit. p. 358. 69 SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Disponível em:
http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/143.pdf. Acesso em: 28 jan. 2013.
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pluralism), que é a base de uma concepção política de justiça (political conception of
justice)” 70
e que no âmbito do processo é capaz de ser atingido pela oitiva daqueles que
demonstrarem interesse, mormente diante de questões cientificamente controvertidas,
como o caso da anencefalia ou da merocrania (também chamada meroencefalia), que são
anomalias distintas. Isso, justamente para conferir maior legitimidade, afastar eventuais
controvérsias de uma “concepção abrangente de verdade” 71
, buscando, dessarte, o
“consenso sobreposto de doutrinas abrangentes e razoáveis” 72
. Parece importante e,
reitere-se, legitimador que se busque o maior espectro de opiniões, mormente diante de
desacordo de magnitude, por mais que se tenha consignado que “há apenas uma razão
pública e muitas razões não-públicas, como as razões das diversas associações: igrejas,
universidades, sociedades científicas e grupos profissionais (Rawls, 2005a, p. 220)” 73
.
Afinal, a cientificidade se caracteriza, como é consabido, por poder ser confrontada,
contraditada. Ademais, repise-se que em se tratando da criatura humana, muito longe se
está de um processo de depuração, para se falar o mínimo, o que gera perspectivas parciais
e questionamentos até mesmo acerca da razão pública:
Uma primeira dificuldade desse projeto observa que a razão pública admite mais de uma
resposta razoável em relação a uma questão específica, em função da existência da
diversidade de valores políticos (Rawls, 2005a, p. 240). (...) Uma segunda dificuldade quer
avaliar o significado de votar segundo uma opinião sincera (Rawls, 2005a, p. 241). (...) 74
Nesse sentido, através de uma “visão inclusiva” 75
, dever-se-ia permitir, pelo
menos com o benefício da dúvida, a intervenção de terceiros. E se referida intervenção, no
âmbito do processo, onde impera (deveria imperar) a razão pública, viesse a ser negada,
deveria sê-lo através de decisão analiticamente fundamentada.
Não deve um agnosticismo desarrazoado, torto, vir a ser imposto, figurando,
portanto, como uma doutrina abrangente, quiçá de forma tirânica ou como se compreende
a ditadura moderna. Nessa última, a característica distintiva é a extensão do poder, sua
70 Sobre o pluralismo razoável, Denis Coitinho Silveira, citado na nota anterior, reporta-se, na nota 4 da
página 67, a Samuel Freeman (Introduction. In: S. FREEMAN (ed.), The Cambridge companion to Rawls,
Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-61). 71 SILVEIRA, Denis Coitinho. op. cit. 72 Ibidem. 73 Ibidem. 74 Ibidem. 75 Ibidem.
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maior abrangência, que vai além da função executiva e pode se estender até a função
constituinte, substituindo, portanto e sob nossa perspectiva, o povo ou grande parte dele.76
Retornando, então, às sempre abalizadas ponderações do Professor Daniel
Sarmento, intui-se que por mais que se busque a neutralidade, afastando-se as Funções
Públicas da razão pública e dos postulados democráticos, como se vislumbrou na hipótese
vertente, sempre se identificará, a nosso sentir, em referida postura, um sentimento de
negação à religiosidade ou qualquer outra doutrina abrangente, mormente quando se passa
ao largo do debate franco, do contraditório participativo, o que parece ter ocorrido na
ADPF 54 e que vulnerou a busca do consenso sobreposto. Relembre-se que, linhas atrás,
foi retirado do texto do Observatório da Laicidade do Estado declaração no sentido de que
“não existe no mundo um Estado totalmente laico”. Falta a “sinceridade” identificada
como problema na Teoria de Rawls e antes mencionada. E essa postura, como uma
overdose do medicamento, do curativo, pode vir a se configurar, igualmente, uma doutrina
abrangente. Não se pode afastar posicionamento “A” ou “B” sob o único argumento de que
se filia à religião “C” ou “D”, já que é inafastável o exercício da razão pública pelas
Funções Estatais. Nos casos citados, especificamente, identificou-se, sem fundamento
razoável, um sentimento de negação à religiosidade, o que vulnera, em paralelo, o primeiro
aspecto da laicidade. Não podendo o Estado se furtar de enfrentar a questão, terá que
buscar por uma resposta, que se funde em razão pública. Oportuno, dessarte, pontuar
passagem do texto77
.
Sobre o caso Lynch v. Donnelly, 465, U.S., 668 (1984), relatou-se:
Também neste ponto foram esclarecedoras as palavras da Suprema Corte dos Estados
Unidos, quando afirmou, pela voz da Juíza Sandra Day O’Connor, que qualquer
comportamento do Estado que favoreça alguma religião “envia uma mensagem aos não-
aderentes de que eles são outsiders, e não plenos membros da comunidade política,
76 A tirania, em comparação com a “ditadura dos antigos”, é um desvirtuamento dessa última, diferenciando-
se dela por ser ilegítima, sem fundamento no estado de necessidade e não sendo limitada no tempo. A
ditadura moderna é divulgada através dos escritos de Marx e Engels, onde é identificada em expressões como
“ditadura do proletariado” e “ditadura da burguesia. Nesse contexto, passa a se referir não mais a uma pessoa
ou grupo de pessoas, mas a uma classe inteira, diluindo-se o significado originário, com o que poderia ser
substituída por “domínio” e, portanto, por expressão tipicamente marxiana e engelsiana, ou seja, “classe
dominante”. As noções são extraídas de Norberto Bobbio, a quem se remete e se recomenda a leitura, obra intitulada, sob tradução de Marco Aurélio Nogueira, de Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral
da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 139. 77 O texto a que se refere é o já mencionado de autoria do Professor Daniel Sarmento.
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acompanhada de outra mensagem aos aderentes, de que eles são insiders, membros
favorecidos da comunidade política”. 78
Em que pese a inclinação da Suprema Corte Americana, é inegável o simbolismo
transmitido por ocasião da posse dos Presidentes daquela nação, que fazem seu juramento
com a mão pousada sobre a Bíblia. Há algum tempo, depois de sua reeleição, o Presidente
Barack Obama ainda foi mais além, fazendo seu juramento com as bíblias que pertenceram
a Abraham Lincoln e a Martin Luther King79
, valendo ressaltar que quem o empossou, tal
qual o Vice-Presidente, foi um juiz da Suprema Corte. Ora, onde está a sinceridade
identificada como problemática por Rawls, de que lado ela está?
Voltando ao voto do Ministro Peluso na ADPF 54, disse Sua Excelência que se
estava diante do “maior julgamento realizado pelo Supremo porque o STF está decidindo o
conceito de vida” 80
. Provocando inevitáveis questionamentos quanto à imparcialidade e a
laicidade, em seu primeiro aspecto, sob a perspectiva protetiva das diversas doutrinas
religiosas e da igualdade, e quanto à “sinceridade” identificada como problemática na
teoria de Rawls, imperioso destacar o que noticiou o portal de notícias G1:
Ao final do julgamento, uma manifestante se exaltou e os ministros deixaram o plenário
enquanto ela gritava palavras de ordem. “Eu tenho vergonha. Hoje para mim foi rasgada a
Carta Magna. Se ela não protege os indefesos, que dirá a nós”, disse Maria Angélica de
Oliveira Farias, advogada e participante de uma associação de espíritas. 81
78 SARMENTO, Daniel. op. cit. 79 A notícia fora veiculada pela mídia em geral, sendo possível a consulta pelo portal de notícias G1 de 21
jan. 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/01/obama-vai-prestar-juramento-sobre-biblias-de-lincoln-e-de-luther-king.html. Acesso em: 24 jan. 2013. 80 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI153536,21048-
STF+decide+que+nao+e+crime+interromper+a+gravidez+em+caso+de. Acesso em: 06 fev. 2013.
Extraíram-se, ainda, do periódico, as seguintes falas atribuídas ao Ministro: Não é possível deferir o pedido
nem com “malabarismo hermenêutico ou ginástica de exegese”; Para ele, a vida humana não pode ser
“relativizada” segundo “escala cruel” para definir quem tem ou não direito a ela; Ministro diz que o aborto
de feto anencefálico se aproxima de modo preocupante à eutanásia; “O que se pretende é a autorização
judicial para cometer um crime”; De acordo com o Ministro, falar em “interrupção terapêutica da gravidez” é
um eufemismo; “A natureza não tortura”; Culpando o Legislativo por não enfrentar o tema, ministro termina
seu voto julgando totalmente improcedente a ação. Causa perplexidade dar-se conta de que o ser humano, em
relação ao próprio ser humano, está “estabelecendo” o início da vida, algo que nem a ciência se atreveu, por ora, a fazer. 81 Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/supremo-decide-por-8-2-que-aborto-de-feto-
sem-cerebro-nao-e-crime.html. Acesso em: 06 fev. 2013.
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Despida a decisão na ADPF 54, como dito, da inafastável fundamentação
analítica, notadamente quanto ao pleito de intervenção da Associação Médico-Espírita do
Brasil, as manifestações no sentido provocam, definitivamente, um sentimento de
“outsiders” àqueles preteridos, justamente aquilo que deveria ser evitado num Estado laico.
A modernidade, as relações, questões onde existe funda controvérsia como na
hipótese sob exame, enfim, tudo isso exige diálogo, o que não é e nem deveria ser estranho
ao Direito. A propósito,
El riesgo es grande desde el momento en que se descubre la impossibilidade de
monopolizar la interpretación, de renunciar a toda interpretación y de contentarse con
registrar una multitud de miniracionalidades en el seno de una racionalidade global
incontrolable a partir de ahora. Se trata seguramente de uno de los riesgos de la cultura
postmoderna. El problema consiste, una vez más, en abandonar la monofonía por la
polifonía sin caer necessariamente en la cacofonía – el “ruido”, como se dice en linguaje
informático, lo carente de significado.82
É preciso estabelecer uma relação virtuosa entre partes, advogados e juiz, na
sociedade em geral, abandonando-se posições arbitrárias e absolutas, como se houvesse
uma única perspectiva, intangível, ungida. Isso só é possível se as opiniões forem expostas
com clareza e se o destinatário delas no processo, o juiz, desarmar-se para não incrementar
a “cacofonia”, mas, pelo contrário, arrefecer expectativas através de postura racional.
A paridade de armas, parece ser intuitivo, óbvio e ululante, é garantia bilateral.
Todos têm direito a uma tutela efetiva, oportuna e adequada e de ver reconhecido o seu
direito, pelo menos sua perspectiva, afinal,
no Estado Democrático Contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucional e
legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela
o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo83
.
A tutela efetiva, oportuna e adequada, em um processo humanizado, é
minudenciada em “garantias fundamentais do processo, universalmente acolhidas em todos
82 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Trad. Isabel Lifante Vidal. Disponível em: http://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/10681/1/doxa14_10.pdf. Acesso em: 26 ago. 2012. 83 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível em:
http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 26 ago. 2012.
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os países que instituem a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado
Democrático de Direito” 84
.
A igualdade concreta85
consiste em dar às partes as mesmas oportunidades de
êxito na demanda diante das circunstâncias do caso concreto.
Se depois de todas essas providências uma determinada resposta se fundar em
razão pública é ela que deve ser a adotada e solver a controvérsia. A laicidade não pode se
converter em agnosticismo imposto e, dessa forma, transmudar-se em doutrina abrangente.
Não se pode olvidar que a laicidade se manifesta sob duas perspectivas, sendo uma delas,
justamente, consubstanciada na salvaguarda das diversas doutrinas filosófico-religiosas
professadas como manifestação de liberdade. As Funções Estatais devem, ao invés de se
manifestarem como expressão de domínio conforme delineado por Marx e Engels e
minudenciado por Bobbio86
, buscar legitimação e, sempre, postura inclusiva e afinada com
os propósitos do Estado Democrático de Direito e do pluralismo.
5. CONCLUSÃO
Com a consciência de que o tema é árido, o que se pretende com o presente
trabalho é fomentar o debate acerca do possível desvirtuamento da laicidade do Estado
como princípio e da eventual ausência de razão pública no julgamento pelos tribunais,
notadamente nos casos citados, o que pode ser decorrência, dentre outras razões, do
produtivismo quantitativo e da rotinização como resultado da explosão de litigiosidade que
assola os tribunais.
E, infelizmente, a advertência é válida para processos de menor repercussão, mas
não menos importantes sob a perspectiva das partes envolvidas.
Examinar os desdobramentos históricos e submetê-los à apreciação acadêmica
pode ser meio de repensar nossa estrutura jurisdicional, além de despertar o reexame por
aqueles que militam no meio, que decidem com força cogente as controvérsias.
84 Ibidem. 85 Ibidem. 86 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 162.
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Nesse contexto, pontuou-se a importância do contraditório participativo, ideia-
fonte que, aliás, como visto, tem origem na Antiguidade grega, mas que vem sendo
vulnerada hodiernamente em favor de uma celeridade a qualquer preço.
Em paralelo, a incursão no tema da laicidade, para além de sua própria gravidade,
revela a fragilização do necessário debate, do diálogo humano, que deveria permear as
relações intersubjetivas, mormente aquelas desenvolvidas no âmbito jurisdicional.
Não se tem e nem se poderia ter a ilusão de que o Judiciário, instado a se
manifestar sobre determinada questão, furtasse-se de sua atribuição constitucional e não se
manifestasse sobre a controvérsia apresentada. Nada obstante, a razão pública, mormente
em havendo desacordo moral razoável, é ferramenta obrigatória para a resolução da
controvérsia pela Função Jurisdicional.
Diante de questão em que há controvérsia científica e sendo característica da
ciência a possibilidade de refutação, somente através de um diálogo franco, aberto,
democrático, podem as expectativas ser arrefecidas e equacionadas as divergências em
favor do bem comum. De outro lado, decisões que postergam ou eliminam as
manifestações das partes interessadas devem ser analiticamente fundamentadas.
Não convenceu, sob a rubrica da razão pública, a negativa de intervenção da
Associação Médico-Espírita do Brasil na ADPF 54, tampouco qual foi a motivação do
Ministério Público Federal ao ajuizar a ação civil pública 00119890-16.2012.4.03.6100
que objetivou a retirada da expressão “Deus seja louvado” das notas de Real.
Não se pode esquecer que “o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é
também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de
qualquer outra cosmovisão” 87
e que a “democracia ampliou-se enormemente, de modo que
já não seja vista apenas com relação às demandas por exercício universal do voto secreto,
mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo que John Rawls chama de
“exercício da razão pública” 88
. É com os olhos nessas duas assertivas que se deve pensar
na resolução das questões como as que se suscitaram no presente trabalho.
A laicidade do Estado e a razão pública, quer se crer, longe da exclusão, longe da
parcialidade intransigente e longe de opiniões absolutas, têm por escopo a igualdade, o
87 SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica PRPE.
Disponível em: http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf.
Acesso em: 12 jan. 2013. 88 SEN, Amartya. op. cit. p. 358.
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debate, enfim, a democracia exercida, sem redundância, por todos, ateus, agnósticos e
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AÇÃO RESCISÓRIA COM BASE EM ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO
JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Marcelo Muratori
Bacharel e Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP.
Especialista em Direito Tributário pela USP. Advogado em
São Paulo/SP.
RESUMO: O objeto do presente artigo é analisar o cabimento da ação rescisória quando
da alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal à luz dos conceitos de Justiça
e Segurança Jurídica. Para tanto, o estudo abordará os conceitos gerais da referida medida
judicial, o histórico da jurisprudência e, ainda, realizará a análise de um caso em prático no
qual todos os conceitos estudados estiveram presentes.
PALAVRAS-CHAVE: ação rescisória; STF; justiça; segurança jurídica.
ABSTRACT: The purpose of the present article is to analyze the filing of the ‘Rescisory
Action’ due to alteration of the jurisprudence of the Supreme Court. This analysis was
done in accordance with the concepts of Justice and Legal Security. Therefore, the study
will address the general concepts of such judicial measure the jurisprudence over time, and
also a case study will be analyzed by the Supreme Court that involved all of the concepts
studied in this article.
KEY-WORDS: rescisory action; Brazilian Supreme Court; justiça; legal security.
Introdução
A propositura de ação rescisória em virtude da alteração do entendimento
jurisprudencial não é um fenômeno recente, havendo registros de discussões a esse respeito
que datam de décadas atrás. Contudo, não restam dúvidas de que os debates no âmbito dos
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Tribunais se intensificaram nos últimos tempos, o que ensejou, por via de consequência, o
ressurgimento dos trabalhos feitos pelos doutrinadores brasileiros e pela jurisprudência.
Em interessante estudo sobre o tema, Ada Pellegrini Grinover1 esclarece que
durante a década de 1990, a Fazenda Pública passou a propor Ações Rescisórias perante o
STF por conta da mudança de posicionamento jurisprudencial em virtude da manifestação
daquele tribunal em relação à constitucionalidade de tributos. A propósito, confira-se a
elucidativa passagem:
“Preocupante fenômeno tem-se revelado na prática judiciária
desses últimos tempos: inúmeros litígios entre a Fazenda Pública e
os contribuintes de diversos tributos, de duvidosa
constitucionalidade, têm agitado e sobrecarregado os tribunais do
País, com decisões divergentes. E em muitos casos, os órgãos
jurisdicionais têm afirmado a inconstitucionalidade dos referidos
tributos, exercendo o controle difuso da constitucionalidade, com
sentenças já revestidas da autoridade da coisa julgada. Tem
acontecido, porém, que posteriormente o STF, pela via do recurso
extraordinário, veio a declarar, incindenter tantum, a
constitucionalidade dos tributos, em casos concretos distintos
daqueles em que se deu a coisa julgada favorável ao contribuinte.
Isso tem ensejado, por parte da Fazenda Pública, o ajuizamento de
diversas ações rescisórias, visando a desconstituir a coisa julgada,
com base na sucessiva declaração de constitucionalidade pelo STF,
sob alegação da ‘violação literal disposição de lei’, por parte das
sentenças rescindendas (artigo 485, V, CPC, destaques nossos)”.
Com efeito, as lições perfilhadas pela acima ainda se mantém atuais, como é
possível observar da seguinte transcrição, extraída do pronunciamento formulado pelo
Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal em 08 de outubro de 2008, que
afetou o Recurso Extraordinário n.º 590.809-7/RS para reconhecer a existência de
1 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional.
São Paulo: Editora dos Tribunais, 1997, pg. 50.
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Repercussão Geral da questão constitucional suscitada, relacionada às mudanças de
posicionamento do Supremo em matéria tributária:
“Trata-se de ação rescisória ajuizada pela União federal, com o
escopo de desconstituir julgado em que reconhecido o direito do
contribuinte de creditar valor a título de Imposto sobre Produtos
Industrializados – IPI em decorrência da aquisição de insumos
isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero. O Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, evocando o que decidido pelo
Supremo no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 353.657/PR
– em que se concluiu pela inviabilidade do creditamento do IPI nas
hipóteses de insumo adquirido não tributado ou sujeito à alíquota
zero, considerada a circunstância de implicar ofensa ao alcance
constitucional do princípio da não-cumulatividade – julgou
procedente o pedido formulado na ação rescisória para
desconstituir o acórdão rescindendo. (...) A ação rescisória está
fundamentada na ofensa aos artigos 2º e 150, §6º, da Constituição
Federal e o artigo 485, V, do Código de Processo Civil, prevê a
possibilidade de rescisão do julgado nos casos em que há violação
a literal dispositivo de lei. (...) Na espécie, dois temas exigem a
manifestação do Supremo. O primeiro faz-se ligado à segurança
jurídica e, portanto, à declaração de procedência do pedido
formulado na rescisória quanto havia corrente jurisprudencial
majoritária no sentido da decisão rescindenda. (...) Admito a
repercussão geral.”
Como bem apontado por meio do exemplo acima, o fundamento invocado
pelos litigantes que desejam ingressar com ação rescisória em virtude da posterior
mudança de entendimento jurisprudencial é o artigo 485, V, do Código de Processo Civil,
ou seja, quando a sentença transita em julgado “violar literal disposição de lei”.
É exatamente sobre esse ponto que o presente estudo se voltará, de modo a
abordar, de forma específica, como tais medidas judiciais vêm sendo manejadas na esfera
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tributária, cenário recorrente de litígios complexos. Para tanto, diversos institutos serão
devidamente analisados, o que será feito ao longo dos capítulos subsequentes.
Breves considerações sobre a ação rescisória.
Especificamente no que diz respeito ao instrumento processual ora em análise,
partiremos da definição de José Carlos Barbosa Moreira2 de que se chama rescisória a ação
por meio da qual se pede a desconstituição de sentença transitada em julgado, com
eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada.
Por outras palavras, é a medida judicial destinada a remover do ordenamento
jurídico sentenças que transitaram em julgado, e por isto mesmo não comportam mais
nenhum recurso, mas albergam norma concreta absolutamente injusta, porque
incompatível com nosso ordenamento jurídico. Confira-se, neste sentido, as lições de
Pontes de Miranda3 sobre o instituto ora tratado:
“A ação rescisória vai, exatamente, contra a eficácia formal da
coisa julgada: quebrada esta muralha de eficácia formal, já está o
processado, a relação jurídica processual, que a preclusão fechara e
fizera cessar; exsurge, não se reabre; o juízo rescisório não é
reinstalação, mas volta à vida, ressureição. Não se reconstrói a
causa, que se fechara; abre-se a porta (= destrói-se a sentença) e
reocupa-se a casa.”
Vale ressaltar que a ação rescisória não é adequada para a desconstituição de
qualquer tipo de sentença, mas somente aquela cujo trânsito em julgado tenha alcançado o
mérito da demanda, tornando-a imutável à luz do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição
Federal (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada”).
2 BARBOSA MOREIRA, José Carlos de. Comentários ao Código de Processo Civil. 11a. ed., vol. V, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 124. 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ação Rescisória. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1976, p. 203.
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Como bem afirma Vicente Greco Filho4, se se trata de sentença de conteúdo
processual (extinção do processo sem julgamento de mérito), ocorre apenas a coisa julgada
formal, isto é, a impossibilidade de alteração no mesmo processo, podendo, porém, o autor
propor novamente a ação. Note, por oportuno, que a ação rescisória não deve ser
considerada recurso, mas remédio processual autônomo, pois a prestação jurisdicional já
foi entregue. Desta forma, se a sentença é de mérito (art. 269, CPC), ocorre também a coisa
julgada material.
Isso significar dizer que se está diante da imutabilidade da sentença ou de seus
efeitos, tornando proibida a reiteração da demanda, sendo essa sim passível de rescisão
mediante a medida judicial, desde que a decisão atacada possua algum dos vícios previstos
no artigo 485 do Código de Processo Civil – que será adiante tratado - e dentro do prazo de
2 (dois) anos, consoante redação do artigo 495 do mesmo Codex (“O direito de propor
ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da
decisão”).
Importante ressaltar que à obediência ao aludido prazo decadencial é essencial
para a admissão da ação rescisória. Confira-se, a título ilustrativo, o recente julgado abaixo
proferido pelo Supremo Tribunal Federal:
“A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser
desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma
de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência
do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de
referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente
julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato
sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento
posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito
de fiscalização incidental de constitucionalidade.” (RE 659803
AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,
julgado em 27/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-244
DIVULG 12-12-2012 PUBLIC 13-12-2012, destaques nossos)
4 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 2ª, Volume, São Paulo: Saraiva, 2010, 404.
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Fixados, portanto, que a ação rescisória é (i) o instrumento processual
adequado para retirar os efeitos de sentença de mérito, (ii) cujo trânsito em julgado tenha
sido operado dentro do prazo de 2 (dois) anos, devem-se verificar quais são os vícios
contidos nos provimentos jurisdicionais que autorizam ao litigante ingressar em Juízo para
obter a rescisão do julgado. Com efeito, o rol respectivo encontra-se no já mencionado
artigo 485 do Código de Processo Civil:
“I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou
corrupção do juiz;
II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte
vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar literal disposição de lei;
VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em
processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja
existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só,
de Ihe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou
transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos
da causa”
Note-se que o rol de hipóteses de cabimento acima transcrito deve ser
interpretado de forma taxativa, ou seja, o intérprete deverá propor a ação judicial tão-
somente nas situações exaustivamente contidas nos itens previstos pelo legislador no artigo
485 do Código de Processo Civil. Valendo-se novamente dos ensinamentos de Barbosa
Moreira5, chegamos à conclusão de que a ação rescisória será admissível desde que a causa
petendi se enquadre em qualquer das hipóteses taxativamente catalogadas no artigo 485.
5 Op.Cit., p. 126.
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Isso significa dizer que, para admitir-se a ação rescisória basta apurar se o
pedido formulado na petição inicial se enquadra numa das hipóteses do artigo 485 do CPC
e se foram atendidos os requisitos processuais para o legítimo exercício da ação. Como
bem conclui Humberto Theodoro Junior6 para a procedência do pedido (mérito) deverá
resultar provado que a sentença contém, de fato, um ou alguns dos vícios catalogados no
aludido rol.
Da análise das situações arroladas no artigo 485 do CPC nota-se de forma
calara que o legislador quis que fosse passível de rescisão a sentença proferida por
magistrado que cometeu crime prevaricação, concussão ou corrupção ou mesmo que era
impedido ou suspeito; que configurasse fraude à lei no caso concreto por meio de conluio
entre as partes, por exemplo; que de certa forma a conclusão do julgado não
correspondesse às provas dos fatos etc.
Caso sejam analisadas as situações por que influenciaram a redação dos incisos
constantes do artigo 485 do CPC, constatar-se-á que sempre haverá um bem maior
ofendido, cujos reflexos na esfera jurídica dos litigantes causarão a ineficiência do
provimento jurisdicional, uma vez que o torna viciado.
Essas situações protetivas do bem maior nada mais são do que a positivação de
valores eleitos pelo legislador. Tais valores, dada a sua importância, têm o poder de
desfazer situações albergadas pelo manto da coisa julgada. E não poderia ser diferente,
pois a influência destes no campo da formação da norma jurídica é algo intrínseco ao
próprio processo legislativo, uma vez que estão relacionados com a moral e a ética, como
bem aponta Renato Lopes Becho7.
O que se pode perceber, portanto, e que será melhor desenvolvido a seguir, é
que o legislador procurou formas de impedir que decisões injustas sejam perpetuadas no
tempo, deixando excepcionalmente a segurança das situações jurídicas constituídas por
meio de decisões judiciais transitadas em julgado.
Note que esse conflito aparente (segurança jurídica x justiça), inclusive, é o
motivo pelo qual levou o Superior Tribunal de Justiça a afastar o cabimento da ação
rescisória quando alterado o posicionamento jurisprudencial daquele Tribunal. Confira-se:
6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, volume I, 7ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 678. 7 BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 37.
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“(...) A mudança ou existência de entendimento no Superior
Tribunal de Justiça não pode justificar, somente por este motivo, a
impugnação por via da ação rescisória. Isso porque, após o trânsito
em julgado, a lei beneficia a segurança jurídica em lugar da justiça.
(...) (Voto do Ministro Humberto Martins - AgRg no AREsp
80414 / RS – DJE 15.05.2012, destaques nossos).
Neste cenário, deve-se delimitar o conceito que se extrai dos referidos
elementos de justiça e segurança jurídica dada a sua intimidade com o tema principal, de
modo a aplica-los ao objeto do estudo.
Ressalte-se, desde já, que não se pretende neste artigo debruçar-se a respeito da
discussão dos referidos conceitos de Justiça e Segurança, mas tão-somente extrair de
forma ampla a maneira como tais conceitos são observados no atualmente. Para tanto,
valer-nos-emos dos ensinamentos de doutrinas consagradas.
A relação justiça x segurança jurídica no contexto da ação rescisória.
Como ensina Hugo de Brito Machado8, as ideias de justiça e segurança são
certamente as mais importantes da humanidade em todos os tempos e lugares. Por isto
mesmo podemos dizer que integram a essência do direito. Ensina ainda o referido
Professor que a segurança e a justiça são na verdade valores fundamentais que ao Direito
cabe assegurar: sem normas protetoras da segurança, o ordenamento jurídico seria inútil;
não havendo normas que garantam a justiça, sequer se pode pensar em direito.
Para compreender o que se entende por justiça, Gustav Radbruch9, classificava-
a como sendo a pauta axiológica do direito, ou seja, a meta do legislador. Para o
doutrinador alemão, a justiça representaria um valor absoluto que repousa em si mesmo e
não depende de nenhum outro. Neste mesmo sentido, Miguel Reale10
discorria sobre o
mencionado valor da seguinte forma:
8 MACHADO, Hugo de Brito . Coisa Julgada e Controle de Constitucionalidade e de Legalidade em Matéria
Tributária. In: Hugo de Brito machado. (Org.). Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria
Tributária. 1ªed. São Paulo: Dialética, 2006, p.149. 9 RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. Tradução feita pelo Professor Jacy de Souza Mendonça. Disponível em http://ebookbrowse.com/filosofia-do-direito-gustav-radbruch-pdf-d351391875 10REALE, Miguel. Variações sobre justiça. Disponível em
http://www.miguelreale.com.br/artigos/varjust.htm.
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“a constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para
que cada homem possa realizar livremente seus valores potenciais
visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o
da coletividade”
Os pensamentos de Miguel Reale e Radbruch podem ser sintetizados nos
ensinamentos de Renato Lopes Becho11
, para quem a compreensão do justo é obtida depois
de perquirir a necessária busca pela identificação de quais são as melhores condutas que os
homens devem seguir e praticar, bem como aquelas que eles devem se afastar e se abster,
por danosas.
Neste espírito observa-se que o instituto da ação rescisória objetiva conceder
ao jurisdicionado que a interpretação definitiva dada pelo Poder Judiciário ao seu caso
concreto seja aquela mais próxima do conceito do justo, desde que a decisão original
possua algum vício. Constatada tal situação no plano concreto, deve esta decisão ser
expelida do ordenamento, uma vez que trará danos à sociedade, na linha do quanto
verificado acima. Por tal motivo é que se permite a modificação do julgado viciado mesmo
depois de protegido pela coisa julgada.
Neste cenário é que se faz necessário verificar até qual ponto o valor segurança
deve ser preterido para que seja alcançado o justo no âmbito de um processo judicial já
encerrado, com a respectiva decisão transitada em julgado, de modo a aparentemente
comprometer a segurança nas relações.
Isso porque, se por um lado a estrita observância da coisa julgada quando
confrontada com uma nova decisão pode ser encarada como ode ao legalismo e
desprestigio da justiça, de outro, deve-se ter cuidado ao afirmar veementemente que a coisa
julgada pode ser livremente deixada para trás quando diante de determinadas situações.
Em estudo sobre o tema, Tércio Sampaio Ferraz Junior12
relembra que a
doutrina processual brasileira enxerga na coisa julgada uma garantia do princípio de
segurança jurídica, unindo a sua importância aos princípios da irretroatividade das leis e
das cláusulas pétreas da Constituição, de modo a assegurar a estabilidade das relações
jurídicas. Esclarece ainda Sampaio Ferraz que a justiça pode ser entendida como um valor,
11 Op. Cit., p. 102. 12 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, RS, v. 1, n.3, 2005, p. 265.
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mas segurança é um direito fundamental, como o é a liberdade, a vida, a propriedade, a
igualdade. Confira-se o conclusivo trecho a seguir13
:
“Falar da justiça como um valor eminente, ao qual a segurança se
opõe como um outro valor, é entrar num jogo de contraposições de
entidades diferentes. Afinal, justiça pode ser entendida como um
valor, mas segurança é um direito fundamental, como o é a
liberdade, a vida, a propriedade, a igualdade. Nesse sentido, é um
engano supor a justiça como uma entidade absoluta, em oposição a
direitos fundamentais.
A justiça não é, nem mesmo na CF, à luz do seu Preâmbulo, uma
entidade à parte, eminente no sentido de externamente superior aos
direitos. Com efeito, falar da justiça como uma aspiração
constitucional não pode significar outra coisa que sua realização
enquanto realização dos direitos fundamentais. Realização
processual, no sentido de que a justiça ocorre na concretização dos
direitos”.
O que se pode concluir, portanto, é que alcançar a justiça em uma decisão nada
mais é do que a realização da confluência de direitos fundamentais, dentre os quais, a
segurança. Ambos os termos (segurança e justiça) devem sempre andar em conjunto, sendo
inviável que de seu confronto apenas um prevaleça.
Por tal motivo, é que se deve analisar com temperamentos o cabimento da ação
rescisória, uma vez que o desfazimento da coisa julgada deve ser realizar apenas em
situações extremas.
Neste cenário, passamos a verificar qual é a interpretação dada pelos Tribunais
a respeito da hipótese de cabimento contida no artigo 485, V do CPC, qual seja, “violar
literal disposição de lei”, especificamente quando se trata da alteração do entendimento do
Supremo Tribunal Federal, uma vez que este é o dispositivo legal invocado pelos litigantes
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quando pretendem afastar a coisa julgada, cujo conteúdo foi posteriormente alterado pelo
Supremo Tribunal Federal, conforme se demonstrou anteriormente.
Mais ainda, será ainda posto em questionamento se os acórdãos proferidos pelo
STF nesta linha conseguiram unir os conceitos de segurança e justiça ou simplesmente os
puseram em confronto, elegendo apenas um vencedor.
Antes, contudo, de entrar especificamente no universo do STF sobre o
cabimento da ação rescisória quando da alteração de seu entendimento, é importante
estabelecer determinadas premissas de cunho interpretativo a respeito do referido comando
normativo. Trata-se, pois, de dois institutos constantes do referido dispositivo processual,
quais sejam, a “lei” e a sua “violação literal”.
Artigo 485, V, do Código de Processo Civil: “violar literal disposição de lei” e a
mudança de entendimento jurisprudencial.
Para tal conceituação, valemo-nos dos ensinamentos de Teori Albino
Zavascki14
, de que o vocábulo ‘lei’, tido por literalmente violado, deve ser interpretado de
forma ampla, no sentido de norma jurídica. Logo, conclui-se que tal termo englobaria as
leis constitucionais e também as infraconstitucionais.
Ocorre que, como já adiantado, jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
impossibilita o manejo de ação rescisória contra a modificação do seu próprio
entendimento, de modo que tal medida judicial:
“(...) 5. Mas, a posterior mudança de interpretação da aplicação da
norma não autoriza a rescisória fundada no art. 485, inciso V, do
CPC, ou seja, a desconstituição da coisa julgada; entendimento este
sufragado na exegese da Súmula 343 do STF: (...) (EDcl nos EDcl
no AgRg no AREsp 80.414/RS, Rel. Ministro HUMBERTO
MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe
28/11/2012, destaques nossos)
14 ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória em matéria constitucional. Interesse público: out./dez. 2001, p.
6.
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Assim, atualmente, o cabimento da ação rescisória no caso de posterior
alteração do entendimento jurisprudencial limita-se ao plano constitucional, no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, conforme será analisado adiante. A possível ampliação do
conceito de ‘lei’ para ‘lei infraconstitucional’, contudo, foge ao objetivo principal do
presente estudo. Neste contexto, analisaremos o cabimento da ação rescisória apenas nas
questões de natureza constitucional, tendo em vista que no âmbito do Supremo Tribunal
Federal o debate a respeito da matéria encontra-se em estágio avançado.
Já em relação ao outro ponto que merece atenção é a análise do conteúdo da
terminologia empregada, qual seja, “violar literal disposição de lei”. Neste ponto, filiamo-
nos novamente à Teori Albino Zavascki15
para quem haverá violação da lei não apenas
quando o provimento jurisdicional lhe nega o comando emergente de sua “letra”, de suas
disposições explícitas, mas também quando não obedece ao seu sentido inequívoco.
Por outras palavras, a violação à interpretação literal, neste caso, não é - e nem
se recomenda que seja - a única autorizadora da propositura da ação rescisória com base no
artigo 485, V, do Código de Processo Civil, apesar de o legislador ter induzido o intérprete
a tal conclusão. Ao contrário, partimos da premissa que também deve ser prestigiada outras
formas de interpretação, como a teleológica e sistemática, por exemplo.
Consoante será demonstrado adiante, a ação rescisória ajuizada com base no
mencionado dispositivo legal objetiva incentivar à busca pela melhor interpretação da
mens legis pelo Poder Judiciário.
Isso porque, a aplicação da lei não é um processo automático e infalível, mas
exige interpretação, de modo que se chega à conclusão de que a ofensa mencionada no
aludido dispositivo legal diz respeito à violação à correta interpretação da lei, entendida
como a lei constitucional. A esse respeito, confira-se as lições de Teresa Arruda Alvim
Wambier16
sobre o assunto:
“É comum que, por exemplo, no início do período de vigência de
certo texto legal, haja certa dose de insegurança dos tribunais, que
gere indesejáveis e às vezes fundas discrepâncias entre decisões
jurisprudenciais. Depois de certo tempo, todavia, a matéria, por
assim dizer, “amadurece” e a jurisprudência começa a se firmar
15 Op.Cit. p. 6. 16 WAMBIER. Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito
e da ação rescisória. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2001, p. 295.
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num determinado sentido. Isso ocorre com bastante frequência,
mesmo quando não se trata de leis cuja interpretação possa variar
ao longo do tempo, em função de alterações no plano sociológico,
capaz de influir nos costumes. (...).
Essa Súmula (343) quer dizer que, em casos como esse, se está
permitindo que sobreviva uma decisão que afronta não só a lei, mas
a forma como o entendimento dessa lei “amadureceu” em nossos
tribunais, certamente com subsídios fornecidos pela doutrina, o que
significa algo de muito mais grave e pernicioso para a estabilidade
jurídica.” (destaques nossos)
Verifica-se, portanto, que o cerne das críticas como a acima transcritas reside
no fato de que as decisões do Poder Judiciário devem obediência ao princípio da legalidade
e da isonomia. E a plenitude de tais princípios está intimamente ligada a uma melhor
interpretação da legislação pelo Poder Judiciário. E tal interpretação quase sempre é
submetida a um longo processo de maturação, até que o Tribunal em questão defina o que
pode ser considerada como uma interpretação justa.
Desta forma, portanto, seria inadmissível inviabilizar a propositura de ação
rescisória nessas hipóteses17
. Estabelecidas tais premissas, passamos a abordar o
entendimento do referido Tribunal Superior a seguir.
Histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
O ‘fenômeno’ descrito acima no capítulo introdutório do presente estudo, qual
seja, o ajuizamento de ação rescisória para rescindir sentenças cujo trânsito em julgado se
deu pouco antes da mudança do entendimento jurisprudencial pela interpretação do
17 Outro exemplo de crítica à tal inflexibilidade pode ser extraída da seguinte passagem da obra de Eduardo
Talamini para quem a Súmula n.º 343 deve ser inaplicável tanto para decisões de cunho constitucional, como
infraconstitucional: “tal exclusão (da aplicação da Súmula n.º 343 do STF) é aplicável a qualquer caso em
que esteja envolvida a questão constitucional, inclusive quando a sentença rescindenda considerou
indevidamente uma norma como sendo inconstitucional (e isso – repita-se – independentemente de haver
manifestação do Supremo Tribunal, em via direta ou incidental, a respeito da constitucionalidade de tal
norma). Também nessa hipótese não incide a Súmula 323. O exame da compatibilidade de norma infraconstitucional com a Constituição caracteriza-se, obviamente, como matéria constitucional. É o que
basta para que não se possa aplicar a Súmula n.º 343” (destaques nossos). TALAMINI. Eduardo. Coisa
julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005, p. 616.
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Supremo Tribunal Federal, busca estabelecer uma interpretação conforme a Constituição
considerada melhor a posteriori. Para tanto, os litigantes que assim formulam os seus
pedidos, buscam afastar a aplicação da Súmula n.º 343 do Supremo Tribunal Federal,
segundo a qual:
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,
quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de
interpretação controvertida nos Tribunais.” (Sessão Plenária de
13/12/1963).
Com efeito, o posicionamento firmado pelo STF no final do ano de 1963 de
que a ‘interpretação controvertida’ não pode se confundir com ‘violação à lei’ permaneceu
vigente por muito tempo. Historicamente, o STF, em diversas oportunidades, deixou
assente que, sendo a ação rescisória remédio excepcional, e não recurso ordinário, não a
caberia em matéria de interpretação. Confira-se, cronologicamente, quatro exemplos de
acórdãos do STF que demonstram tal posicionamento:
“Ora, a violação há de ser a literal disposição de lei. Violação clara
e inequívoca do que estatui nitidamente o dispositivo. Nesse caso
dos autos não está a interpretação que se opõe a uma corrente
doutrinária ou jurisprudencial. É preciso estridente contrariedade ao
dispositivo, para usar a expressão grata as juízes, de luminosa
memoria, que honraram o STF há mais de quarenta anos” (Voto do
Ministro Aliomar Baleeiro, RTJ 73/341, destaques nossos)
“A interpretação consubstanciada no verbete 343 situa-se no exato
alcance da tranquilidade jurídico-política que deve presidir as
decisões da Justiça” (voto do Min. Djaci Falcão, AR 607/-SP -
Julgamento: 04/12/1985);
“O pedido rescisório não é meio idôneo para nova abordagem
interpretativa de prescrições legais, a cujo respeito a jurisprudência
não seja unívoca” (relator Min. Rezek, RTJ 110/487 - Julgamento:
21/09/1994);
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“Se, ao tempo em que foi prolatada a decisão rescindenda, era
controvertida a interpretação do texto legal por ela aplicado, não se
configura a violação literal de dispositivo de lei para justificar a sua
rescisão (art. 485, V, do CPC), ainda que a jurisprudência do STF
venha, posteriormente, a fixar-se em sentido contrário” (RTJ
91/312 – Moreira Alves, destaques nossos).
Entretanto, da análise do histórico da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal ao longo do tempo é possível concluir que paulatinamente o referido
posicionamento passou a ser alterado.
Conforme visto, os principais questionamentos por parte da doutrina em
relação à inflexibilidade do Pretório Excelso em aceitar a rescisão de julgados
contaminados pela mudança de interpretação eram relativos à alta frequência da mudança
do entendimento jurisprudencial. Assim, o trânsito em julgado, na realidade, encobriria
uma decisão injusta, no sentido acima explicado.
Neste contexto, e diante das constantes mudanças de composição do Supremo
Tribunal Federal, o posicionamento do Tribunal passou a se adaptar à linha defendida pela
doutrina acima transcrita, admitindo-se a propositura de ação rescisória em virtude da
mudança do entendimento jurisprudencial em matéria constitucional:
“A aplicação da Súmula n. 343 do STF em matéria constitucional
revela-se afrontosa não só à força normativa da Constituição
Federal, mas também ao princípio da máxima efetividade da norma
constitucional, assim sendo, cabível ação rescisória por ofensa à
literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda
tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à
orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal.”(Voto do
Ministro Gilmar Mendes – Agravo n.º 328.812-1 – 10.10.2002,
destaques nossos).
Importante ressaltar que até os dias atuais o Supremo Tribunal Federal tem se
mantido firme nesta novel orientação:
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“A adoção no âmbito dessa Corte de decisões contraditórias
compromete a segurança jurídica, porque provoca nos
jurisdicionados inaceitável dúvida quanto à aqueda interpretação da
matéria submetida a esta Suprema Corte. Rejeito, portanto, a
pretensão da incidência da Súmula STF n.º 343, como a impedir a
apreciação deste pedido rescisório” (Voto da Ministra Ellen Gracie,
Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC – 26.03.2009, destaques nossos )”.
Portanto, atualmente o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a
possibilidade de cabimento da ação rescisória em virtude da alteração da sua própria
jurisprudência, ou seja, quando se trata de matéria constitucional.
Neste contexto, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal tem permitido
o ajuizamento de ação rescisória para rescindir provimento jurisdicional cujo trânsito em
julgado tenha se dado antes da adoção do entendimento diverso pela Suprema Corte,
passaremos a analisar como o mencionado Tribunal encarou determinada demanda de
natureza tributária, de modo a encontrar no posicionamento pretoriano a interpretação dos
valores de justiça e segurança, nos termos desenvolvidos no presente estudo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em casos de natureza tributária.
Conforme visto ao longo do presente estudo, as discussões a respeito o
cabimento da ação rescisória em virtude da alteração do entendimento jurisprudencial do
Supremo Tribunal Federal foram impulsionadas por medidas judiciais que versavam sobre
assuntos ligados ao direito tributário.
Neste sentido, passaremos a analisar especificamente um julgado daquela Corte
em que os Ministros do Supremo Tribunal Federal se depararam com o assunto. Neste
contexto, tentar-se-á verificar se a forma como o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal
Federal julgou o caso pretérito de alguma forma influenciará a apreciação de casos futuros.
O caso que será analisado é o acórdão proferido pelo Tribunal Pleno em 26 de
março de 2009, quando do julgamento da Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC proposta pela
União Federal cujo tópico em discussão era a extensão das majorações das alíquotas da
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extinta contribuição para Fundo de Investimento Social (Finsocial) em relação a empresas
exclusivamente prestadoras de serviços.
4.1.1 Contribuição ao Finsocial pelas empresas prestadoras de serviços.
Histórico Legislativo vis-à-vis a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
A contribuição para o Finsocial foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 1.940 de 25
de maio de 1982 e destinava-se a “custear investimentos de caráter assistencial em
alimentação, habitação popular, saúde, educação, e amparo ao pequeno agricultor". Por
meio do artigo 1º da Lei n.º 7.611 de 8 de junho de 1987, a redação do caput foi alterada
para incluir o termo “justiça” à expressão “amparo ao pequeno agricultor.”
No que diz respeito aos critérios material, pessoal e quantitativo da exação, a
redação original do parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto-Lei acima mencionado previa a
incidência da contribuição à alíquota de 0,5% sobre a receita bruta das empresas públicas e
privadas que realizassem venda de mercadorias, bem como das instituições financeiras e
das sociedades seguradoras.
Também no ano de 1987, o artigo 22 do Decreto Lei nº 2.397 de 21 de
dezembro de 1987 alterou a redação do parágrafo 1º para incluir em sua redação o critério
temporal da contribuição (base mensal), bem como para dividir os sujeitos passivos e a
materialidade do tributo para a seguinte forma:
“§ 1º - A contribuição social de que trata este artigo será de 0,5% (
meio por cento) e incidirá mensalmente sobre:
a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e
serviços, de qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas
definidas como pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela
legislação do imposto de renda;
b) as rendas e receitas operacionais das instituições financeiras e
entidades a elas equiparadas, permitidas as seguintes exclusões: (...)
;
c) as receitas operacionais e patrimoniais das sociedades
seguradoras e entidades a elas equiparadas.”
Além das previsões acima demonstradas, a legislação do Finsocial
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estabelecia no parágrafo 2º também do artigo 1º que, para empresas públicas e privadas
que realizassem exclusivamente venda de serviços a contribuição seria de “5% e incidirá
sobre o valor do Imposto de Renda devido, ou como se devido fosse”.
Tratam-se, evidentemente, de duas cobranças completamente distintas do ponto
de vista da incidência, muito embora os produtos das arrecadações sejam os mesmos,
conforme definido pelo caput do artigo 1º. Com efeito, a primeira contribuição incidia à
alíquota de 0,5% sobre a receita bruta oriunda da venda de mercadorias e ainda sobre as
receitas de instituições financeiras e seguradoras; enquanto a segunda era devida sobre
‘venda de serviços’ e representava 0,5% do valor do Imposto de Renda devido ou se
devido fosse.
A partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a contribuição
incidente a alíquota de 0,5% sobre a receita bruta (‘primeira contribuição’) prevista no
parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 1.940/82 foi recepcionada como imposto de
competência residual da União, de acordo com o artigo 154, I do Texto Constitucional e
com o artigo 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, só podendo ser
alterada por intermédio de lei complementar.
Já a incidência prevista no parágrafo 2º do artigo 1º referido (‘segunda
contribuição’) foi recebida pelo ordenamento jurídico constitucional como adicional do
imposto de renda, nos termos do artigo 153, II da Constituição Federal, sendo passível de
alteração por meio de lei ordinária, portanto.
Logo após a entrada em vigor da Constituição Federal, o artigo 9º da Lei n.º
7.689, de 15 de dezembro de 1988, manteve a exigência da contribuição ao Finsocial
incidente sobre a receita bruta das empresas. Contudo, o legislador, ao editar o texto legal
da referida lei ordinária pós-constituição, deixou de desenhar a regra-matriz da incidência
na forma como exigido pelo Poder Constituinte de 1988. Ao invés disso, simplesmente
remeteu-se ao texto do Decreto-Lei n.º 1.940/82 (“Art. 9º Ficam mantidas as contribuições
previstas na legislação em vigor, incidentes sobre a folha de salários e a de que trata o
Decreto-lei nº 1.940, de 25 de maio de 1982, e alterações posteriores, incidente sobre o
faturamento das empresas, com fundamento no art. 195. , I, da Constituição Federal”).
Em virtude deste vício, o referido artigo foi julgado inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal anos depois. Confira-se, a propósito, trecho do voto proferido
pelo Ministro Marco Aurélio, que compôs o rol de votos vencedores quando da análise do
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Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, julgado em 16 de dezembro de 1992 pelo
Plenário do STF:
“Senhor Presidente, indago se podia o legislador ordinário como
que eternizar o Decreto-Lei n.º 1940? E ele o fez, ao lançar, na Lei
n.º 7.689, de 1988, a manutenção – nela está, com todas as letras, e
eu não posso atribuiu ao legislador a inserção de palavras inúteis,
de expressões inúteis em um ato normativo – do Decreto-Lei n.º
1940. A vontade do legislador constitucional e, mais ainda, o
próprio alcance do artigo 56 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias não são nesse sentido. Não se abriu
oportunidade ao legislador ordinário de tomar de empréstimo o que
se contém no Decreto-Lei n.º 1940 e perpetuar, como me referi, o
que disciplinado nesse Diploma legal.”
Ainda neste conturbado contexto legislativo, pouco depois da criação da Lei n.º
7.689/1988, foi a vez da ‘segunda contribuição’ sofrer alterações legislativas impactantes.
Em 09 de março de 1989, foi promulgada a Lei nº 7.738 que estabeleceu em seu artigo 28
que “as empresas públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços,
calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de meio por cento sobre a receita
bruta”.
Por outras palavras, o legislador unificou a ‘primeira’ e a ‘segunda’
contribuição ao alterar os critérios quantitativos do tributo devido pelas prestadoras de
serviços, de modo que todos os sujeitos passivos passarão a dever o Finsocial à alíquota de
as 0,5% sobre a receita bruta.
Tal mudança foi julgada constitucional pelo Tribunal Pleno do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão de Julgamento também realizada em 19 de novembro de
1992, quando da apreciação do Recurso Extraordinário n.º 150.755-1/PE, como pode ser
verificado do seguinte trecho extraído da respectiva ementa, em que o princípio da
isonomia foi invocado para chancelar a unificação das contribuições:
“(...) O art. 28 de L. 7.738 visou a abolir a situação anti-isonômica
de privilégio, em que a L. 7.689/88 situara ditas empresas de
serviços, quando de um lado, universalizou a incidência da
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contribuição sobre o lucro, que antes só a elas onerava, mas, de
outro, não as incluiu no raio de incidência da contribuição sobre o
faturamento, exigível de todas as demais categorias empresariais.”
A partir dessa uniformização, sucessivas alterações legislativas foram
concretizadas, não tendo demorado muito para que entrassem na pauta dos julgamentos do
Supremo Tribunal Federal. Dando continuidade à atribulada existência da contribuição,
três novas leis ordinárias ininterruptamente aumentaram as respectivas alíquotas para 1,0%
(art. 7º, da Lei nº 7.787 de 30.06.1989); 1,2% (artigo 1º da Lei nº 7.894 de 24.11.1989) e,
finalmente, 2,0% por meio do artigo 1º da Lei nº 8.147 de 28.12.1990.
Por outras palavras, num intervalo menor de dois anos, a alíquota do Finsocial
alterou-se em quatro oportunidades, tendo quadruplicado o valor nominal da alíquota
respectiva. E foram exatamente sobre essas alterações da legislação que as ações
rescisórias foram propostas.
Com efeito, tais aumentos foram julgados inconstitucionais para as empresas
que não exerciam a atividade de prestação de serviços, de acordo com o resultado do
julgamento do Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, já mencionado anteriormente, em
que a inconstitucionalidade dos dispositivos legais foi reconhecida por consequência da
declaração de incompatibilidade com o Texto Constitucional do artigo 9º da Lei n.º
7.689/88. Veja-se a seguinte passagem extraída do voto do Ministro Moreira Alves:
“Portanto, Sr. Presidente, considero que este artigo 9º é
inconstitucional. Sendo inconstitucional, as alterações que foram
feitas com relação àquela alíquota são inconstitucionais, por via de
consequência. E, também, consequentemente, o Decreto-Lei n.º
1940, por serem inconstitucionais esse artigo 9º e as alterações que
se lhe fizeram, permaneceu em vigor até o momento em que houve
a sua ab-rogação. Nesse instante, extinguiu-se do cenário jurídico
nacional aquela figura que até então se mantinha: o imposto
inominado que servia como uma das fontes de custeio do sistema
de seguridade.”
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Por outro lado, os sucessivos aumentos foram declarados constitucionais para
as empresas exclusivamente prestadoras de serviços, quando do julgamento do Recurso
Extraordinário n.º 187.436/RS, em 25 de junho de 1997, tendo sido posteriormente objeto
do enunciado da Súmula 658, aprovada na Sessão Plenária de 24 de setembro de 2003.
Confira-se:
“Sendo pacífico que o artigo 56 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias não alcançou as empresas
exclusivamente prestadoras de serviços, conforme assentado no
precedente de lavra do Ministro Sepúlveda Pertence (recurso
extraordinário n.º 150.755/PE) e que a contribuição do artigo 28 da
Lei n.º 7.738/89 mostrou-se harmônica com o que previsto no artigo
195, inciso I, da Constituição Federal, forçoso é concluir pela
legitimidade das majorações ocorridas, não se aplicando às
empresas exclusivamente prestadoras de serviço o precedente
revelado pelo recurso extraordinário n.º 150.764”
Súmula 658
“São constitucionais os arts. 7º da Lei n.º 7787/1989 e 1º da Lei n.º
7894/1989 e da Lei n.º 8147/1990, que majoraram a alíquota do
Finsocial, quando devida a contribuição por empresas dedicadas
exclusivamente à prestação de serviços.”
A controvérsia pode ser sintetizada pela seguinte passagem extraída do acórdão
proferido pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal nos autos dos Embargos de Declaração
no mencionado Recurso Extraordinário n.º 187.436-8/RS, julgado em 10 de fevereiro de
1999:
“(...) Acabou-se por consignar que, sob o ângulo de tributo único – o
FINSOCIAL – as empresas vendedoras de mercadorias estariam sujeitas
à alíquota de meio por cento, enquanto as prestadoras de serviços, ante o
disposto no artigo 28 da Lei n.º 7.738/89, com as alterações posteriores,
estariam sujeitas, tendo em vista a mesma base de incidência, à alíquota
de dois por cento. Em síntese, placitou a Corte de origem o tratamento
diferenciado e fê-lo à luz de inspiração nos precedentes desta Corte.”
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Conforme pode ser observado, desde o início dos julgamentos relativos à
matéria – que datam de 1992 – até a fixação do entendimento pelo Pleno do Supremo
Tribunal Federal – em 1999 – sete anos se passaram. Neste interregno, diversos processos
judiciais que envolviam a inconstitucionalidade ou não do aumento das alíquotas do
Finsoscial para as empresas prestadoras de serviços foram submetidos à apreciação do
Guardião da Constituição, de modo que as conclusões obtidas nem sempre foram
convergentes, principalmente entre as Turmas componentes do Tribunal. É neste cenário
em que passaremos a análise especificamente o assunto levado à discussão nos autos da
Ação Rescisória n.º 1.409/SC.
Ação Rescisória n.º 1.409/SC – Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno do STF em 26
de março de 2009: Relação justiça x segurança.
A ação rescisória acima mencionada proposta pela União Federal foi
distribuída em 18 de agosto de 1998 junto ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente sob a
relatoria do Ministro Octavio Gallotti, tendo sido os autos redistribuídos à Ministra Ellen
Gracie em 13 de junho de 2002. Em 21 de novembro de 2005, foi dado início ao
julgamento, com a elaboração do respectivo relatório pela Ministra Relatora. Neste caso,
coube ao Ministro Gilmar Mendes a revisão do julgado.
Conforme se pode depreender do relatório elaborado pela Ministra Ellen
Gracie, a ação rescisória foi ajuizada pela União Federal com o objetivo de rescindir o
acórdão prolatado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso
Extraordinário n.º 169.621-1/SC. Naquela oportunidade, o mencionado órgão julgador
determinou que a cobrança do Finsocial deveria ser feita de acordo com o Decreto-Lei n.º
1.940/82 até a edição e vigência da Lei Complementar n.º 70, de 30 de dezembro de 1991
que extinguiu definitivamente a cobrança da referida contribuição.
Como ressaltado no voto da Ministra Relatora, o cerne da ação rescisória
encontra-se na conclusão obtida pelo acórdão rescindendo de que a parte autora da medida
judicial, muito embora seja empresa prestadora de serviços, faz jus ao recolhimento do
Finsocial à alíquota de 0,5%, em virtude da declaração de inconstitucionalidade da
majoração das alíquotas promovidas pelas Leis n.ºs 7.787/89; 7.894 e 8.147/90. Com
efeito, quando do julgamento do processo originário, a Segunda Turma do Supremo
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Tribunal Federal enquadrou a situação da autora ao precedente firmado no julgamento do
Recurso Extraordinário n.º 150.764-1/PE, acima demonstrado.
Neste contexto, a União Federal propôs a ação rescisória acima mencionada
pugnando pela manutenção do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal
quando da apreciação do Recurso Extraordinário n.º 187.436, oportunidade na qual restou
decidido que as majorações das alíquotas do Finsocial não eram inconstitucionais no que
diz respeito às empresas prestadoras de serviços. A esse respeito, confira-se o seguinte
trecho do voto proferido pela Ministra Ellen Grace:
“(...) Constato que o entendimento rescindendo reproduz o teor de
diversas decisões firmadas no âmbito da 2ª Turma deste Supremo
Tribunal Federal quanto ao tema do Finsocial até aquele momento,
tomadas a partir do julgamento do RE 150.764. Somente em 28.04.1995,
a 1ª Turma apreciou a questão do Finsocial procedendo à diferenciação
entre os regimes das empresas comerciais e industriais e aquelas outras
exclusivamente prestadoras de serviços (...).
Criou-se então um dissenso entre as Turmas desta Corte. Enquanto a 1ª
Turma proclamava a constitucionalidade das majorações de alíquota do
Finsocial para as empresas exclusivamente prestadoras de serviços, em
decorrência da constitucionalidade do art. 28 da Lei 7.738/89
reconhecida no RE 150.755), a 2ª Turma entendia a hipótese albergável
pela declaração de inconstitucionalidade firmada no RE 150.764”
Firmadas as premissas processuais e de natureza material que foram
submetidas à análise do Supremo Tribunal Federal, passaremos à análise da questão de
fundo, ou seja, a possibilidade ou não de a referida Corte dar provimento às ações
rescisórias com base em alteração de sua própria jurisprudência, afastando a aplicação da
Súmula n.º 343.
Segundo Ellen Gracie, o motivo de afastamento do referido enunciado sumular
em questões constitucionais é a “própria realização da força normativa da Constituição”.
De acordo ainda com o aludido voto, cabe ao Supremo Tribunal Federal evitar que se adote
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soluções divergentes principalmente no que diz respeito às matérias debatidas em seu
Plenário.
Por outro lado, apesar de afirmar que o entendimento consolidado a posteriore
é que deveria prevalecer, sob pena de perpetuar os efeitos de decisões divergentes, a
Ministra Ellen Gracie evoca o direito fundamental segurança jurídica. Confira-se:
“A adoção no âmbito desta Corte de decisões contraditórias compromete
a segurança jurídica, porque provoca nos jurisdicionados inaceitável
dúvida quanto à adequada interpretação da matéria submetida a esta
corte”.
Da passagem acima é interessante notar que a Ministra Ellen Gracie considerou
que a manutenção de uma decisão judicial – no caso, de lavra do próprio Supremo Tribunal
Federal – amparada pelo instituto da coisa julgada cujo conteúdo veiculado posteriormente
se mostraria contrário ao quanto pacificado pelo Supremo Tribunal Federal significaria
afronta ao direito fundamental da segurança jurídica, não tendo evocado a referida
julgadora o valor justiça.
Diferentemente do quanto concluído por Ellen Gracie e Gilmar Mendes, cujo
voto acompanhou o da Ministra Relatora, bem como o Ministro Menezes Direito que se
pronunciou no sentido da maioria, o Ministro Marco Aurélio divergiu dos referidos
posicionamentos nos seguintes termos:
“Presidente, peço vênia para divergir. À época, no âmbito do próprio
Supremo, as decisões das Turmas eram no sentido das decisões
rescindendas. Somente após, o tema veio a ser elucidado, com
envergadura maior, no Plenário. Por isso, peço vênia para julgar
improcedentes os pleitos formulados, assentando não se poder falar de
violência a literalidade da lei”.
De acordo com o Ministro Marco Aurélio, uma vez que o acórdão rescindendo
refletia fielmente o posicionamento da Turma Julgadora à época, não há o que se
vislumbrar a presença de quaisquer dos vícios contidos no rol do artigo 485 do Código de
Processo Civil, sobretudo o inciso V, relativamente à “literalidade da lei”. Confira-se a
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seguinte passagem, também de autoria do Ministro Marco Aurélio, extraída dos debates
que sucederam quando do julgamento:
“O grande problema é que, no caso, não se verificou dissenso,
consideradas as decisões de tribunais, mas se teve praticamente como
pacificada a jurisprudência no próprio Supremo e deste são as decisões
rescindendas.
Encontro muita dificuldade em conferir à rescisória contornos de
incidente de uniformização da jurisprudência. No caso foi alegada
violência a literalidade da lei.”
O que se pode verificar do entendimento perfilhado pelo Ministro Marco
Aurélio, cujo posicionamento foi o único divergente naquela ocasião, é que a ação
rescisória, sobretudo ajuizada com base no artigo 485, V, do Código de Processo Civil não
se mostra o veiculo adequado para uniformizar a jurisprudência.
Apesar de não explicitamente registrado, é possível extrair passagens que
refletem o posicionamento do Ministro Marco Aurélio é que em casos como o analisado
deve haver a prevalência do valor justiça em contraposição ao direito fundamental
segurança.
Do julgado referente a não extensão da declaração de inconstitucionalidade das
majorações das alíquotas do Finsocial às empresas prestadoras de serviços, pode-se
concluir que, com exceção do Ministro Marco Aurélio, o restante da composição existente
à época do julgamento entendeu que a procedência do pedido formulado pela União
Federal nos autos da Ação Rescisória n.º 1.409-0/SC consagraria o direito fundamental da
segurança jurídica, mesmo admitindo que, para tanto, o acórdão legitimamente proferido
pela Segunda Turma do STF deveria ser rescindido.
Com efeito, entendemos que a evocação ao direito fundamental segurança
como justificativa para provimento da ação rescisória, em virtude da necessidade de
prevalência do atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal não poderia ter sido
apontado de forma isolada, como prevaleceu no voto condutor do acórdão. Necessário
seria verificar se referido direito fundamental não teria sido violado quando desfeito os
efeitos da coisa julgada, decorrente do posicionamento da 2ª Turma do STF à época
própria, consoante ressalvado pelo Ministro Marco Aurélio.
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Da passagem extraída acima, portanto, entendemos que “a adoção no âmbito
desta Corte de decisões contraditórias compromete a segurança jurídica”, mas deve ser
respeitado o instituto da coisa julgada caso a decisão pretérita não ofenda o valor justiça.
De acordo com o Ministro Marco Aurélio, à época da prolação do acórdão
rescindendo, o posicionamento adotado pela Turma Julgadora era firme, não estando
contaminado por qualquer vício, o que impediria o manejo da ação rescisória. Nada
impede, contudo, que o posicionamento da jurisprudência seja alterado e, de certa forma,
evoluído, de modo a buscar a melhor interpretação da norma.
Contudo, concordamos com o voto vencido de a mera alteração conceitual de
determinado entendimento, que à época própria era bem fundamentado, possa ser
suficiente para atropelar o instituto da coisa julgada, devidamente protegido pelo Texto
Constitucional.
Conclusão
Ao longo da elaboração do presente estudo, constatou-se que a ação rescisória
pode ser considerada como um instrumento processual indutor da justiça, valor a que se
pretende fortificar em detrimento do formalismo representado pelo trânsito em julgado. Por
outras palavras, o legislador previu hipótese em que a barreira positivista coberta pelo
trânsito em julgado pode ser modificada, sempre que existir uma ofensa à Justiça.
Disso decorre que, entre outras hipóteses, admite-se a ação rescisória quando a
sentença transitada em julgado tenha violado "literal disposição de lei", conforme dicção
art. 485, V, do Código de Processo Civil. Importante ressaltar que a “lei” deve ser
interpretada em caráter amplo, compreendida como norma jurídica.
Demostrou-se que historicamente o posicionamento do Supremo Tribunal
Federal é no sentido de cabimento da ação nos casos de mudança de entendimento de
norma constitucional. Em relação às normas infraconstitucionais, o Superior Tribunal de
Justiça interpreta como sendo como "violação literal" a que se mostrar de modo evidente,
flagrante, manifesto, não se compreendendo como tal a interpretação razoável da norma,
embora não a melhor.
Nesta linha de raciocínio, verificou-se que a ação rescisória ajuizada com
fundamento no referido dispositivo do Codex Processual, muito embora possa ser intentada
quando há mudança do entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, só
poderá ter procedência quando presentes os demais pressupostos processuais.
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Isso significa dizer que não é suficiente atribuir ‘poder de reformação’ aos
acórdãos proferidos posteriormente àqueles acobertados pela coisa julgada, casos esses
demonstrem simplesmente a alteração da interpretação teórica sobre determinada situação.
Por outras palavras, não basta simplesmente que a formação de novos
conceitos pela jurisprudência seja considerada apta a fundamenta a propositura de ação
rescisória. Deve, na realidade, verificar se o entendimento anterior que se busca a rescisão
foi firmado sob premissa equivocadas, tendo violado a ‘disposição de lei’.
Por tal motivo, entendemos que no acórdão proferido no âmbito da Ação
Rescisória n.º 1.409/SC, em que foi dado provimento ao pedido formulado pela União
Federal para rescindir acórdão que considerou inconstitucional as majorações de alíquota
do Finsocial para as empresas prestadoras de serviços, ao fundamentar a rescisão do
julgado apenas para na necessidade de atualizar o posicionamento jurisprudencial do
Supremo Tribunal Federal ao caso concreto, extrapolou os limites previstos para o
ajuizamento da ação rescisória, consoante inclusive consignado no voto vencido de lavra
do Ministro Marco Aurélio.
Neste contexto, é que se espera do Supremo Tribunal Federal, quando da
análise casuística do cabimento da ação rescisória com fundamento na alteração do
entendimento jurisprudencial, verifique se o acórdão rescindendo de alguma forma afronta
o valor Justiça, de modo a excepcionar o direito fundamental Segurança, uma vez que tal
providência apenas deve ser levada a cabo em situações extremas.
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MAIS DO MESMO: OS VÍCIOS DE REPRESENTAÇÃO RECURSAIS, A
IMPOSSIBILIDADE DE SANEAMENTO POSTERIOR NAS INSTÂNCIAS
EXCEPCIONAIS E A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA
Márcio Carvalho Faria
Doutorando e Mestre em Direito Processual – UERJ.
Professor Assistente de Direito Processual Civil – UFJF.
Bolsista da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisas
“Observatório das Reformas”, coordenado pelo prof. Dr.
Leonardo Greco. Vice-Presidente do Instituto dos Advogados
de Minas Gerais, seção Juiz de Fora (IAMG/JF).
RESUMO: O presente artigo busca demonstrar e discutir o formalismo-excessivo e a
jurisprudência defensiva adotada pelos Tribunais Superiores brasileiros, notadamente
acerca da impossibilidade de saneamento de vícios de representação processual.
PALAVRAS-CHAVE: Processo civil – Requisitos de admissibilidade recursais -
Jurisprudência defensiva – Formalismo-excessivo
ABSTRACT: This paper aims at showing and discussing the excessive formalism and the
defensive case law applied by Brazilian Superior Courts, notably about the impossibility of
correcting defects in procedural representation.
KEY-WORDS: Civil Procedure – Requirements for appeals - Defensive Case law –
Excessive formalism
SUMÁRIO: 1 - A falta de procurações e/ou substabelecimentos nas instâncias
excepcionais. 2 - A “inexistência” de recurso não assinado e a existência de efeitos
respectivos. 3 – A inaplicabilidade dos arts. 13, 515, §4º e 560, CPC, às instâncias
excepcionais: a falta de critérios sistemático-lógicos. 4 – Conclusões. 5 - Referências
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1- A falta de procurações e/ou substabelecimentos nas instâncias excepcionais
Qualquer jurisdicionado minimamente informado tem ciência da enorme
quantidade de processos em curso no Brasil. O aumento exponencial da população
brasileira, a facilitação do acesso à justiça, com o incremento de defensorias públicas
especializadas por todo o país, além da maior utilização de causas coletivas, tudo aliado ao
crescente uso das vantagens tecnológicas eletrônicas provocou, inquestionavelmente, um
boom de litigiosidade nos mais diversos órgãos do Judiciário nacional.
Ao lado disso, o país viu crescer assustadoramente o número de profissionais do
direito, com a abertura de centenas (quiçá milhares) de cursos jurídicos por todo o
território nacional. Atualmente, assim, mesmo com o indubitável funil do exame de seleção
da Ordem dos Advogados do Brasil, que lima, trimestralmente, mais de 70% dos
candidatos a ele submetidos1, a verdade é que o número de advogados no país é alarmante.
Para atender a tanta demanda e, além disso, destacar-se em um mercado cada vez
mais competitivo, o advogado tem sido submetido a rotinas estafantes de trabalho, que
duram, não raramente, bem mais que as 48 horas semanais que a Organização Mundial da
Saúde entende como máximas. Não é incomum, nesse cenário, observar profissionais que,
sozinhos ou com poucos recursos humanos, têm em sua conta milhares de processos para
cuidar, única e exclusivamente porque a competição e os parcos honorários pagos não
permitem que a divisão e/ou a diminuição de trabalho seja realidade. Ao lado disso,
principalmente em um país regrado por normas de baixíssima duração (para comprovar,
basta verificar que a CF/88, norma ápice, em menos de vinte e cinco anos de vida, já foi
reformada mais de 70 vezes), exige-se, do causídico, estudo e atualização constantes, para
que não veja surpreendido por uma novel regra tirada de uma nem sempre urgente medida
provisória...
A resposta para essa equação “pouco tempo vs. muito trabalho” é,
inquestionavelmente, até mesmo em razão da falibilidade natural dos seres humanos, a
prática de alguns lapsos que, infelizmente, têm sido taxados pela jurisprudência das Cortes
Superiores de imperdoáveis.
1 O índice de aprovação do último exame (o décimo realizado pela Fundação Getúlio Vargas) foi recorde e,
ainda assim, chegou apenas a 28,08%. É o que se vê em: http://www.oab.org.br/noticia/25911/oab-divulga-
resultado-final-do-x-exame-28-08-de-aprovacao, acesso em 23 set. 2013.
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Assim, por exemplo, não se permite que um recurso especial/extraordinário/agravo
destrancador2 seja admitido sem que a assinatura nele constante seja de um procurador
devidamente constituído nos autos, ainda que a ausência de um instrumento de mandato
nos autos seja vício facilmente sanável.
É evidente que, segundo a lex procesualis, somente podem praticar atos aqueles
procuradores que estejam devidamente constituídos nos autos. Essa é, fora de dúvida, uma
exigência razoável e pertinente, até mesmo para que o julgador possa verificar se o
jurisdicionado, realmente, conferiu poderes àquele determinado advogado para representá-
lo em juízo. O mandato judicial, assim, é imprescindível para a prática de atos processuais,
e disso não se duvida.
Ocorre, porém, que o próprio legislador, atento às realidades e urgências do
cotidiano, trouxe no art. 13, CPC, a possibilidade de que alguns atos processuais sejam
realizados sem a formalidade necessária do instrumento de mandato, a fim de que direito
mais relevante não se veja desatendido.
A ideia, assim, é muito clara: abre-se uma exceção ao rigor da forma para
privilegiar-se a tutela do direito material, a fim de evitar o seu perecimento por força da
preclusão, até mesmo porque essa formalidade pode, posteriormente, ser facilmente
cumprida.
Trata-se, indubitavelmente, de norma atenta ao espírito do processo civil
constitucional, aquele que não vê a ciência do processo como um fim em si mesmo, mas
como um meio, um instrumento a serviço do direito material. Não é à toa, inclusive, que a
doutrina chegou a dizer que a mais bela regra processual é a da instrumentalidade das
formas3...
2 Alcunha dada por nós, com fins didáticos, ao agravo interposto contra a inadmissão de recurso especial e/ou
recurso extraordinário pelo juízo a quo (art. 544, CPC). 3 “RECURSO ESPECIAL Nº 578.825 - SC (2003/0136501-4)
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PREPARO. COMPROVAÇÃO. ART. 535,
II, DO CPC. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÃO. (...)
Afinal, como ressalta Teothonio Negrão, 'a mais bela regra do direito processual brasileiro é a do art. 244
do CPC, de acordo com a qual 'quando a lei prescrever determinada fórmula, sem cominação de nulidade, o
juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade' (...)’ Tal entendimento,
orientado pelo princípio da instrumentalidade das formas, está em harmonia com a jurisprudência desta
colenda Corte de Justiça, conforme se dessume dos seguintes precedentes, dentre outros: REsp 346.283/MG,
Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 15/04/2002; REsp 493.535/SE, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 25/08/2003, este último assim ementado: (...) Posto isso, CONHEÇO do Recurso Especial EM PARTE e
nesta LHE DOU PROVIMENTO PARCIAL, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do CPC, para determinar
a remessa dos autos ao Tribunal a quo a fim de que, renovado o julgamento dos Embargos de Declaração,
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Essa beleza, todavia, não tem sido observada nas instâncias superiores. É pacífica a
orientação da jurisprudência do STF e do STJ no sentido de que é defeso conhecer-se de
recurso excepcional firmado por causídico que não esteja devidamente habilitado nos
autos4, sendo vedada a possibilidade de saneamento posterior de tal omissão. Entende-se,
desse modo, que não é possível, nas instâncias extraordinárias, a aplicação do art. 13, CPC,
muito menos do art. 515, §4º, CPC, sendo considerado, inclusive, inexistente o recurso
interposto por advogado que não tenha procuração nos autos (súmula 115/STJ).
A nosso ver, não há razões lógicas para se estabelecer tais distinções. É o que
entende, com singular propriedade, José Carlos Barbosa Moreira5:
Determina o art. 13, 1ª parte, do Código que, ‘verificando a
incapacidade processual ou a irregularidade da representação
das partes’, o juiz suspenda o processo e marque ‘prazo
razoável para ser sanado o defeito’. Deve entender-se a
disposição como abrangente de mais de uma hipótese:
incapacidade de parte, não suprida pela presença do
respectivo assistente ou representante legal, irregularidade
nesse próprio suprimento (v.g., pela não coincidência entre a
pessoa que aparece como representante e aquela que a lei
como tal indica), defeito da representação judicial (por
exemplo, falta de procuração outorgada ao advogado). O art.
13 não contém restrição alguma quanto ao momento do
processo, ou ao grau de jurisdição, em que se dá pelo defeito.
Como em tantos outros dispositivos, ‘juiz’ aí significa o
órgão judicial, de qualquer instância, perante o qual penda o
feito.
Apesar disso, também no particular se vem adotando uma
sejam sanadas as apontadas omissões. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 20 de agosto de 2004. Ministro
Paulo Medina – Relator” (Publicação 21/09/2004; destaques acrescentados). 4 Em um país de dimensões continentais e com os tribunais de cúpula isolados em Brasília, capital federal
distante da maioria dos grandes centros regionais, é bastante comum que os advogados se utilizem dos
serviços de colegas “correspondentes”, os quais exercem os serviços burocráticos de rotina como retirada e
devolução de autos, protocolos de petições, extração de cópias, etc., Eventualmente, nesse vai-e-vem de petições, não é incomum olvidar-se de algum termo de substabelecimento... 5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos, in Temas de Direito
Processual. Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 280-281.
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arbitrária distinção entre as instâncias “ordinárias”, de um
lado, e os recursos especial e extraordinário, de outro, para
restringir àquelas a incidência do art. 13. Assim é que o STJ
inseriu na Súmula da Jurisprudência Predominante este
enunciado: ‘Na instância especial é inexistente recurso
interposto por advogado sem procuração nos autos’. E o STF
reza pela mesma cartilha, no tocante ao recurso
extraordinário. Numa ou noutra ocasião, chegou-se ao
cúmulo de negar a possibilidade de sanação até em segundo
grau, limitando-a ao primeiro. Não se descobre razão na lei
para semelhantes diferenças de tratamento. A oportunidade
contemplada no art. 13 deve ser aberta em qualquer fase do
processo, e a decisão de não conhecer do recurso ficar
reservada para o caso de esgotar-se in albis o prazo fixado
para a regularização. Fora daí, estamos diante de mais uma
ilegítima restrição ao conhecimento.
Apesar disso, como se vê, discrepam STJ e STF, respectivamente6:
6 Da jurisprudência se colhem centenas de outros casos semelhantes, dentre os quais se citam, apenas ad
exemplum:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO
ESPECIAL INEXISTENTE. SÚMULA N. 115/STJ. IRREGULARIDADE NA REPRESENTAÇÃO
PROCESSUAL. JUNTADA DO SUBSTABELECIMENTO POSTERIORMENTE. IMPOSSIBILIDADE.
PRECLUSÃO CONSUMATIVA. 1. Nos termos da Súmula 115 desta Corte, reputa-se inexistente o recurso
especial interposto por advogado que não possua instrumento de procuração nos autos. 2. No caso,
constatou-se que as advogadas que subscrevem a petição do recurso especial não possuem poderes para
tanto. É que o documento de representação processual, atestando o substabelecimento de poderes para as
mesmas, só foi acostado aos autos em data posterior à interposição do apelo excepcional, o que não se mostra possível em razão da preclusão consumativa. 3. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no Ag
1125605/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 12/05/2009, DJe 29/05/2009, destaques
acrescentados).
No mesmo sentido, mutatis mutandis, o STF:
“(...) DECISÃO
1. O Superior Tribunal de Justiça não conheceu do recurso especial interposto pelo recorrente nestes autos
em acórdão assim ementado (fls. 300): (...) II - O recorrente deve estar e demonstrar estar regularmente
representado no momento da interposição do recurso especial, e não em fase processual posterior.
Precedentes do STF e do STJ: RE n. 161.650/RJ e Ag n. 87.108/SP - AgRg. (...) IV - Recurso especial não
conhecido. 2. O presente extraordinário, interposto concomitantemente com o especial, e assinado pelo
mesmo advogado, ressente-se da mesma irregularidade que viciou o especial. Como salientado pelo STJ, os recursos excepcionais (especial e extraordinário), devem ser interpostos por advogados regularmente
constituídos. E essa representação regular deve ser demonstrada no prazo legal e não depois, quando já
ultrapassado o prazo para a interposição do apelo excepcional, como ocorreu na espécie. No caso, o
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AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
MANEJADO SEM ASSINATURA DO ADVOGADO.
AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO, COM MULTA.
1. A jurisprudência desta Corte entende que o artigo 13 do
Código de Processo Civil não se aplica nas instâncias
excepcionais. 2. O recurso interposto em instância especial
maculado com o vício da falta de assinatura do procurador,
além de não ser corrigível, é considerado inexistente. 3.
Recurso infundado a ensejar a aplicação da multa prevista
no art. 557, §2º do Código de Processo Civil. 4. Agravo
regimental não provido.
(STJ, AgRg no AREsp 219.496/RS, Rel. Ministro Luis Felipe
Salomão, 4ª T., j. 11/04/2013, DJe 17/04/2013, Informativo
521/STJ; destaques acrescentados)
EMENTA DIREITO DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS. AGRAVO REGIMENTAL.
ASSINATURA ELETRÔNICA. ADVOGADO SEM
PROCURAÇÃO NOS AUTOS. ATO PROCESSUAL
INEXISTENTE. INVIABILIDADE DA CONVERSÃO EM
DILIGÊNCIA. VÍCIO INSANÁVEL. É inexistente o agravo
regimental assinado eletronicamente por advogado sem
procuração nos autos, vício que não se traduz em mera
irregularidade do ato processual praticado, de todo inviável,
na instância extraordinária, converter o feito em diligência,
nos moldes preconizados pelo art. 13 do CPC. Precedentes.
Agravo regimental não conhecido.
recurso extraordinário interposto por advogado sem procuração nos autos, tornou-se inexistente porque a
procuração somente foi juntada aos autos depois de esgotado o prazo recursal. (...) 4. Diante do exposto,
com base nos artigos 21, § 1º, do R.I.S.T.F., 38 da Lei nº 8.038, de 28.05.1990, e 557 do C.P.Civil, nego seguimento ao presente recurso extraordinário. 5. Publique-se. Intimem-se as partes. Brasília, 05 de maio de
2001. Ministro SYDNEY SANCHES – Relator (RE 228523, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 05/05/2001, DJ
25/06/2001 P – 00043; destaques acrescentados)”.
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(STF, RE 60.6324 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª T., j.
29/05/2012, acórdão eletrônico DJe-115, divulg. 13/06/2012,
public 14/06/2012; destaques acrescentados)
Ora, qual a justificativa para se permitir a juntada posterior à interposição de um
recurso de um termo de substabelecimento e/ou uma procuração, nas vias ordinárias, e não
se conceder o mesmo direito ao recorrente nas vias excepcionais?
Há alguma regra nesse sentido?
Como bem ressaltou José Carlos Barbosa Moreira, a expressão “juízo” contida no
art. 13, CPC, deve ser entendida como qualquer órgão do Judiciário, pouco importando
seja um magistrado atuante em uma longínqua comarca do interior ou um Ministro do
Pretório Excelso brasileiro.
2 - A “inexistência” de recurso não assinado e a existência de efeitos respectivos
Segundo orientação pacificada do STF e do STJ, considera-se inexistente recurso
interposto sem a assinatura do causídico que o elaborou7. Nesse diapasão, o documento
apócrifo não teria qualquer validade, ocorrendo, por consequência, a impossibilidade de
sua análise. Veja-se, respectivamente:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.
RECURSO ESPECIAL SEM A ASSINATURA DO
ADVOGADO. RECURSO INEXISTENTE.
PRECEDENTES.
1. Conforme iterativa jurisprudência do STJ, os recursos
extraordinários interpostos sem a assinatura do respectivo
causídico são considerados inexistentes. 2. O vício sanado
após a interposição do agravo de instrumento não tem o
7 Há, aliás, enunciado de súmula da jurisprudência do STJ, de número 115: “Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos” (STJ, Corte Especial, j. 27/10/1994,
DJ 07/11/1994 p. 30050).
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condão de suprir a falha, em face da preclusão consumativa,
não podendo ser aberto prazo para a regularização na
instância especial. 3. Agravo regimental não-provido.
(STJ, AgRg no Ag 911.366/SP, Rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, 2ª T., j. 16/10/2008, DJe 07/11/2008;
destaques acrescentados)
EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento.
Recurso sem assinatura. Inexistente. Precedentes. 1. Pacífica
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de
considerar inexistente o recurso sem a assinatura do
advogado. 2. Agravo regimental não-conhecido.
(STF, AI 697476 AgR, Relator(a): Min. Menezes Direito, 1ª
T., j. 03/03/2009, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC
17-04-2009 EMENT VOL-02356-23 PP-04748; destaques
acrescentados)
Não resta dúvida de que o recurso judicial, ato típico e atinente à capacidade
postulatória do advogado, deve ser subscrito, até mesmo para que aquela peça possa ser
corretamente identificada. Além disso, a assinatura do procurador confere, àquele recurso,
presunção de veracidade daquilo que ali consta, até mesmo em virtude do munus público
exercido pelos advogados e, sobretudo, por conta de sua característica de “função essencial
à dignidade da justiça”, nos termos do artigo 133, CF/88. É também a assinatura que
possibilita, por exemplo, que o advogado subscritor seja identificado nos autos, além de
permitir, outrossim, que sejam aferidos a capacidade postulatória e o mandato constante
daquele processo em discussão.
Ocorre que, em que pese tamanha relevância da assinatura do procurador em seu
recurso, dizer que um recurso é inexistente quando a firma não está ali presente é, com
todo o respeito devido, um pouco demais.
Ora, se o ato processual é inexistente, como asseveram os Tribunais Superiores, é
evidente que, dele, não podem decorrer quaisquer efeitos. Assim, no caso de inexistência,
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conforme lição de Fábio Gomes8, deve-se observar que, juridicamente, o recurso apócrifo
não pode(ria) produzir quaisquer consequências.
Sucede que, ao contrário, não é o que se verifica, uma vez que, mesmo apócrifo,
não restam dúvidas acerca do efeito obstativo decorrente desse recurso, salvo nas hipóteses
de intempestividade grosseira ou má-fé do recorrente9.
Dessa forma, ocorrendo o adiamento da formação da coisa julgada, por conta do
julgamento – ainda que inadmissão - desse recurso supostamente inexistente, é inegável
que esse ato processual trouxe consequências para o processo. Tanto o é que somente se
falará em início de prazo para ajuizamento de ação rescisória após o trânsito em julgado da
decisão final, compreendida, nesse ínterim, como aquela que rejeitou o apelo extremo
apócrifo, nos termos da súmula 401/STJ.
Se realmente fosse inexistente o recurso, por óbvio, nada poderia, dele, advir.
Certamente, dever-se-ia considerar ocorrido o trânsito em julgado antes mesmo de sua
interposição, logo após o encerramento (fictício, é verdade) do prazo recursal. Todavia,
como o recurso excepcional foi interposto (e, às vezes, até mesmo contrarrazoado e
admitido pelo juízo a quo), somente após a manifestação definitiva a respeito de sua
“inexistência” é que se poderá falar em coisa julgada (art. 467, CPC).
Mais um equívoco, a nosso sentir, decorre dessa posição: além de se inadmitir
recurso cuja irregularidade poderia ser facilmente sanável (o que privilegiaria o meritum
causae), considera-se inexistente ato que, reconhecidamente, gera consequências para o
mundo dos autos, o que é, venia concessa, manifesta contradição em termos. Nesse
diapasão, no máximo, poder-se-ia decidir pela inadmissão do recurso, com os efeitos
naturais decorrentes dessa decisão, ou seja, com eficácia ex nunc10
.
8 GOMES, Fábio. Comentários ao CPC, v. 3: do processo de conhecimento (arts. 243 a 269). São Paulo: RT, 2000, p. 26, com destaques acrescentados: “O ato processual inexistente não carece de pronunciamento
judicial: ninguém é obrigado a cumprir ou respeitar uma sentença inexistente. Já a sentença nula merece
respeito até ser reconhecido pelo juiz o vício da nulidade. O ato inexistente, para a doutrina majoritária, não
produz qualquer efeito jurídico e tampouco restará convalidado pela coisa julgada, não permitindo sequer a
constituição desta”. 9 Nesse sentido, consulte o nosso: Recurso Especial: o error in procedendo por ofensa aos arts. 128, 460 e
535, II, do CPC e o error in judicando por ofensa ao art. 485, V; 495 e 546, I, do CPC (inexistência de erro
grosseiro e as Súmulas 315 e 401 do STJ). Revista de Processo, v. 187. São Paulo: RT, 2010, p. 401-420. 10 Sobre a natureza jurídica do juízo de admissibilidade e, sobretudo, seus efeitos, consulte os nossos A
jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores e a ratificação necessária (?) de alguns recursos
excepcionais. Revista de Processo, v. 167. São Paulo: RT, 2009, p. 250-269; O efeito regressivo, as modificações do sistema recursal e a nova redação do art. 463, CPC: uma sugestão de lege ferenda. In:
NERY JÚNIOR, Nelson Nery; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Org.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos
Recursos Cíveis e Assuntos Afins. v. 12. São Paulo: RT, 2011, p. 269-298.
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3 – A inaplicabilidade dos arts. 13, 515, §4º e 560, CPC, às instâncias excepcionais: a
falta de critérios sistemático-lógicos
É cediço que a assinatura integra a regularidade formal, requisito de
admissibilidade recursal e que se afigura, nas palavras do ex-Ministro do STF, Cezar
Peluso, em “formalidade essencial de existência do recurso"”11
, sem a qual não há como se
admitir um recurso e resolvê-lo em seu mérito. Porém, a nosso ver, trata-se de medida por
demais rigorosa impedir que a mera falta de assinatura na peça recursal seja sanada,
sobretudo na situação atual de desenvolvimento da sociedade, da tecnologia e do próprio
processo. Ademais, não há qualquer justificativa legal que permita, à jurisprudência,
considerar possível a correção do vício nas instâncias ordinárias, e vedar-lhe nas
excepcionais12
.
Além disso, quando o processo está nas instâncias superiores, na maioria dos casos,
o advogado já conta com diversas petições encartadas nos autos, todas assinadas e
regularmente analisadas. Não há, dessa feita, qualquer divergência quanto ao fato de que
aquele procurador representa os interesses do interessado e, sobretudo, oficia regularmente
naquele feito13
.
11 EMENTAS: 1.RECURSO. Agravo regimental. Inadmissibilidade. Acórdão de Turma ou do Plenário.
Agravo regimental não conhecido. Precedentes. Cabe agravo regimental contra decisão do Presidente do
Tribunal, de Presidente de Turma ou do Relator. Não, porém, contra acórdão de Turma ou do Plenário. 2.
RECURSO. Agravo regimental. Inadmissibilidade. Petição assinada apenas por estagiário. Agravo
regimental não conhecido. Precedentes. Não se conhece de recurso sem a assinatura do advogado, dado que
formalidade essencial de existência do recurso. (STF, RE 463659 AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal
Pleno, j. 14/05/2008, DJe-102, divulg. 05/06/08, public. 06/06/08, ementa vol.-02322-02, pp-00251). 12 Nesse sentido, MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Restrições ilegítimas...”, op. cit., p. 278: “(...) incorre em
excesso de rigor formal o tribunal que nega conhecimento ao recurso pelo mero fato de não estarem assinadas as razões. Nem será forçosamente insuprível a falta da assinatura do advogado na própria petição
de interposição. A tal respeito, averbe-se que não encontra amparo na lei a distinção entre instâncias, que se
costuma fazer, para sustentar que o suprimento é viável até o segundo grau de jurisdição, mas deixa de o ser
no recurso especial ou no extraordinário. Nenhum texto legal consagra, em termos explícitos ou implícitos, a
diferença de tratamento”. 13 Foi exatamente por esse motivo que o STF, em acórdão infelizmente bissexto, entendeu que a
jurisprudência defensiva deveria ser abrandada, a ponto de permitir o saneamento do equívoco quanto à
representação processual: “(...) EMENTA: Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. 2. Ausência de
assinatura do advogado constituído nos autos. 3. Advogado com procuração nos autos. Inexistência de dúvida
quanto à identificação do advogado que vinha atuando no processo. Erro material. 4. Necessidade de
revisão de ‘jurisprudência defensiva’. 5. Agravo provido.(...)”. (AI 51.9125 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Relator para acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª T., j. em
12/04/2005, DJ 05/08/2005, pp.00094, ement vol. 02199-22 pp.04390 RB v. 17, n. 505, 2005, p. 45;
destaques acrescentados).
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Pode ocorrer, contudo, que por algum lapso determinado recurso excepcional (ou
agravo correspondente) seja interposto sem assinatura. Existe, assim, receio de que aquele
arrazoado não tenha sido produzido pelo procurador “x” regularmente habilitado nos autos.
De que modo deveria, então, proceder o Tribunal Superior? Bastaria que fosse feita uma
intimação para o citado advogado “x”, a fim de que ele se manifestasse se realmente
produziu aquela peça recursal, apenas se esquecendo de firmá-la, ou se, por outro lado,
alguém, ilicitamente, teria usurpado a sua competência e tentado prejudicá-lo ou a seu
cliente. Simples, fácil e seguro e totalmente em compasso com a instrumentalidade das
formas14
.
Porém, como se viu, diverso tem sido o procedimento das cortes superiores.
Singelamente, tem-se considerado inexistente aquela peça processual, sendo vedado, ao
recorrente, sanar aquele equívoco; por conseguinte, impede-se que o mérito recursal
(eventualmente importante, por exemplo, para sanar divergência jurisprudencial relevante
no seio do STJ) seja apreciado, fenecendo mais uma pretensão recursal...
Ora, porque não se aplicar, no trato dos recursos extraordinários, o que determinam
o art. 13 c/c art. 515, §4º, ambos do CPC? De se ver, inclusive, que tal procedimento, nas
instâncias ordinárias, é plenamente aceito pelas próprias Cortes de cúpula15
. A despeito
No mesmo sentido, mas todos em benefício da União Federal, cujos procuradores, como se sabe, litigam por
força de lei, as seguintes decisões monocráticas: AI 726.197, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 27/04/2011,
publicado em DJe-084, divulg. 05/05/2011, public. 06/05/2011; AI 577178, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. em
30/04/2009, DJe-087, divulg. 12/05/2009, public. 13/05/2009; AI 576924, Rel. Min. Cármen Lúcia, j.
15/04/2009, publicado em DJe-082 DIVULG 05/05/2009 PUBLIC 06/05/2009. 14 O princípio da instrumentalidade das formas, tido por “regra de ouro” por alguns julgados do STJ, não tem
servido para amenizar a falta de assinatura no recurso especial, somente servindo, como se vê, se a cópia do
mesmo, em sede de agravo destrancador, estiver sem assinatura, desde que, no original, o advogado
responsável tenha firmado: “PROCESSO CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – PEDIDO DE
RECONSIDERAÇÃO – SANATÓRIA DE IRREGULARIDADE EM SEDE DE AGRAVO DE
INSTRUMENTO NA INSTÂNCIA ESPECIAL – POSSIBILIDADE.
1. As regras processuais têm sido interpretadas com observância aos princípios da instrumentalidade das formas e do prejuízo, os quais têm sido desprezados pelo STJ no trato do agravo de instrumento para fazer
subir o recurso especial. 2. Independentemente da razão lógica que orienta esta Corte, no sentido de diminuir
o número de recursos e viabilizar a racionalização do seu funcionamento, considero desigual o tratamento
pretoriano que tem sido dado ao agravo de instrumento. 3. Irregularidade na juntada de peças em cópias sem
assinatura, diferentemente das peças originais que estão no processo principal devidamente assinadas. 4.
Aceitação da sanatória, antes do exame dos autos pelo relator. 5. Agravo regimental provido para dar
provimento ao agravo de instrumento”. (AgRg no Ag 680480/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j.
07/03/2006, DJ 05/05/2006 p. 285; destaques acrescentados) 15 PROCESSUAL CIVIL – FALTA DE ASSINATURA – IRREGULARIDADE SANÁVEL NAS
INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS – RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Pacificou-se nesta Corte
jurisprudência no sentido de que, nas instâncias ordinárias, a falta de assinatura da petição recursal constitui vício sanável, todavia, na instância excepcional o recurso sem assinatura do advogado é considerado
inexistente. (...) 3. Recurso especial provido. (STJ, REsp 991.762/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., j.
24/06/2008, DJe 18/08/2008; destaques acrescentados)
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disso, nas instâncias excepcionais, a possibilidade de saneamento de tal vício não é aceita,
por conta de suposta preclusão consumativa. Nesse sentido, já se pronunciou o STF:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO
REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO.
ASSINATURA DO ADVOGADO NA PEÇA DE
INTERPOSIÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
AUSÊNCIA. CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA.
IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO.
I - A jurisprudência da Suprema Corte orienta-se no sentido
de que não se conhece de recurso sem a assinatura do
advogado.
II - Esta Corte não admite a conversão do processo em
diligência, possibilitando à parte sanar o vício.
III - Agravo regimental improvido.
(AI 558463 AgR, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, 1ª
T., j. 16/10/2007, DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC
09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00048 EMENT VOL-02297-
05 PP-01015; destaques acrescentados)
No mesmo caminho, o STJ:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FALTA DE
ASSINATURA DO ADVOGADO NA PETIÇÃO DE
INTERPOSIÇÃO E NAS RAZÕES DO RECURSO
ESPECIAL. RECURSO INEXISTENTE.
1. Considera-se inexistente o recurso dirigido ao Superior
Tribunal de Justiça sem a assinatura do advogado, não sendo
possível a abertura de prazo para a regularização do feito.
Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.
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(AgRg no AREsp 231.229/PA, Rel. Min. Maria Isabel
Gallotti, 4ª T., j. 16/10/2012, DJe 23/10/2012, destaques
acrescentados)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.
PROCESSUAL CIVIL. REGULARIDADE FORMAL.
AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO QUE OUTORGOU
PODERES AO ADVOGADO SUBSCRITOR DO
AGRAVO INTERNO. RECURSO INEXISTENTE.
SÚMULA 115 DO STJ. IMPOSSIBILIDADE DE
REGULARIZAÇÃO POSTERIOR. NÃO
CONHECIMENTO.
1.- Na linha da jurisprudência desta Corte, a regularidade da
representação processual deve ser comprovada no ato da
interposição do recurso, considerando-se inexistente a
irresignação apresentada por advogado sem procuração
(Súmula 115/STJ). 2.- Cumpre observar que os artigos 13 e
37 do Código de Processo Civil não se aplicam às instâncias
extraordinárias. Precedentes. 3.- Agravo Regimental não
conhecido.
(AgRg no REsp 1370523/RJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3ª T.,
j. 28/05/2013, DJe 13/06/2013)
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
EM AGRAVO REGIMENTAL. INEXISTÊNCIA DE
OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE NO
JULGADO. PORTE DE REMESSA E RETORNO DOS
AUTOS. EXIGÊNCIAS CONTIDAS NAS RESOLUÇÕES
DO STJ APLICÁVEIS À ESPÉCIE. AUSÊNCIA DO
NÚMERO DO PROCESSO A QUE SE REFERE O
RECOLHIMENTO. DESERÇÃO VERIFICADA.
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OPORTUNIDADE DE REGULARIZAÇÃO NA VIA
ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. (...)
4. No que tange a alegação da ora agravada, nota-se que
nas instâncias extraordinárias, não se aplica o art. 515, § 4º,
do CPC, que impõem aos magistrados a abertura de prazo
para a parte sanar eventuais nulidades. 5. Embargos de
declaração rejeitados.
(EDcl no AgRg no REsp 1083040/MG, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, 2ª T., j. 05/08/2010, DJe 01/09/2010;
destaques acrescentados)
Que razão haveria para tal diferenciação, se o equívoco é o mesmo? Que
dificuldade há em se admitir que uma apelação possa ser assinada posteriormente à sua
interposição que não existiria em se adotar o mesmo procedimento para um recurso
especial?16
Vale dizer: de nada adiantou, nesse aspecto, o avanço tecnológico; o STJ segue
inadmitindo os recursos que, mesmo interpostos eletronicamente17
, deixaram de ser
assinados por procuradores com representação nos autos. Mais uma vez: não poderia,
também eletronicamente, o advogado que enviou a petição recursal, ser intimado para
16 No mesmo sentido, Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha, ao dissertarem acerca do art.
515, §4º, CPC: “(...) Correção de defeitos processuais no procedimento da apelação: (...) É possível pensar,
ainda, no suprimento de um defeito de representação (art. 13 do CPC); juntada da procuração ou juntada do
estatuto social da pessoa jurídica, por ex. Na verdade, os tribunais sempre puderam adotar esse expediente,
bastando que aplicassem as regras do sistema de invalidades do CPC. De todo modo, o dispositivo deixa
evidente a possibilidade de assim atuar o tribunal, revelando-se uma boa regra de racionalização de
julgamento no âmbito recursal. O dispositivo, embora faça parte do capítulo sobre apelação, aplica-se a
qualquer recurso. Segue-se a tradição de nosso direito: emprestar às regras da apelação a abrangência de
regras gerais, ressalvada regra especial em sentido contrário, que, no caso, não existe.” (DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. 9.ed. Salvador:
Juspodivm, 2011, p. 134-136; destaques acrescentados). 17 PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO POR
MEIO DE PETIÇÃO ELETRÔNICA. ASSINATURA DIGITAL DE ADVOGADO SEM PROCURAÇÃO.
PETIÇÃO TIDA POR INEXISTENTE. 1. A petição eletrônica do presente recurso foi transmitida mediante
utilização de certificado digital pertencente a advogado sem procuração nos autos. 2. "Na instância especial,
a regularidade da representação processual deve estar demonstrada no momento da interposição do recurso,
não sendo aplicável, portanto, a previsão do artigo 13 do CPC" (AgRg no AREsp 331.850/PR, Rel. Ministro
Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 02/08/2013). No mesmo sentido: AgRg no REsp 1374132/PR, Rel.
Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 05/06/2013; AgRg no REsp 1.275.642/PR, Rel. Ministra Nancy
Andrighi, Terceira Turma, DJe 15/10/2012, entre outros. 3. Incide, pois, a Súmula 115/STJ: "Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos". 4. Agravo regimental não
conhecido. (AgRg no REsp 1340288/MT, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª T., j. 27/08/2013, DJe
04/09/2013).
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regularizar o ato? Tudo isso se daria rapidamente (quiçá em minutos, dada a agilidade
natural dos meios eletrônicos de comunicação), sem qualquer prejuízo para o andamento
do processo e o seu posterior julgamento. Ao adotar tal rigorismo, o STJ fecha os olhos
para a realidade brasileira – na qual, evidentemente, incluem-se os causídicos -, em que
muitos ainda não têm acesso efetivo a equipamentos de informática de última geração, quer
por déficit econômico, quer por notória alienação tecnológica, quer pelas próprias
deficiências do sistema de protocolo virtual18
.
Por fim, mas não menos importante: ainda que se julgue inaplicável o art. 515, §4º,
CPC aos recursos excepcionais, considerando-o restrito às apelações (algo com o que só se
admite apenas ad argumentandum tantum, porquanto os arts. 511 e 519, CPC, que também
estão embutidos no capítulo II do título X, atinente à apelação, são reconhecidamente
aplicáveis a todos os recursos19
), dúvidas não há que pelo menos o art. 560, parágrafo
único, CPC, deveria aqui ser reconhecido, na medida em que se trata de norma contida no
capítulo VII do título X, o qual é denominado “Da ordem dos Processos no Tribunal”, não
havendo qualquer discrímen minimamente razoável que pudesse fazer crer o contrário.
Afinal, se o capítulo VII do título X não se aplicasse às instâncias excepcionais,
vedado estaria, por exemplo, o julgamento monocrático dos recursos, já que o dispositivo
que o regula (art. 557, CPC) está, assim como o art. 560, parágrafo único, CPC, contido no
mesmo capítulo...
Por que essa aplicação casuística das normas processuais? A resposta,
lamentavelmente, está no apego à famigerada jurisprudência defensiva.
18 Nesse prisma, interessante relato de um renomado causídico, sobre sua experiência junto ao TJSP,
divulgada no portal Migalhas, na edição de 04/08/2013: "Esse maldito processo eletrônico do TJ/SP só
produziu um fato efetivo até hoje, qual seja, gasta-se mais tempo tentando fazer 'penetrar' petições e
documentos nesse sistema refratário ao contato humano, do que em pesquisas e/ou em elaboração de peças. Essa geringonça virou a desgraça da advocacia. E, pior, ninguém faz nada. O sítio vive encalhado. Os
cartorários foram pessimamente mal treinados. Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da
minha infância querida que os anos não trazem mais! Achava o céu sempre lindo. Adormecia sorrindo e
despertava a cantar!" Alexandre Thiollier - escritório Thiollier e Advogados. (Disponível em:
http://www.migalhas.com.br/mig_leitores.aspx?cod=183807&datap=04/08/2013, acesso em 24 set 2013). 19 PROCESSO CIVIL. DESERÇÃO. PREPARO. CONCEITO GENÉRICO. CUSTAS E PORTE E
REMESSA E RETORNO. INSUFICIÊNCIA. PRAZO. POSSIBILIDADE. 1. A iterativa jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça afirma que o preparo do recurso abrange todas as despesas processuais
importantes para o prosseguimento do feito, inclusive o valor correspondente ao porte de remessa e retorno.
2. Na hipótese em que comprovado apenas o recolhimento do porte de remessa e retorno no ato da
interposição do recurso, o preparo é insuficiente, o que autoriza a concessão do prazo previsto no artigo 511, § 2º, do CPC.
3. Recurso especial provido". (REsp 889.042/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 4ª T., j. 04/02/2010,
DJe 11/02/2010)
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4 - Conclusões
Por qualquer ângulo que se analise o problema, não há motivos razoáveis a amparar
a atuação dos Tribunais Superiores: a um, pois não há regra legal/constitucional que
permita estabelecer diferenças entre as instâncias ordinárias e excepcionais acerca da
admissibilidade recursal; a dois, pois não há como se reputar inaplicável o art. 515, §4º,
CPC, aos recursos especiais/extraordinários/agravos destrancadores respectivos, por
suposta incidência exclusiva às apelações e, contraditoriamente, considerar a eles válidos
os arts. 511 e 519, CPC, dispositivos igualmente contidos no capítulo II do Título X do
Livro I do CPC; a três, pois não há como se afastar o art. 560, parágrafo único, CPC nas
instâncias excepcionais e, por outro lado, permitir que o STJ e o STF se utilizem (com
frequência absurda) do julgamento monocrático disposto no art. 557, CPC, sendo que
ambos fazem parte do mesmo capítulo VII do Título X do Livro I do CPC.
Tem-se, como descreveu Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, ao pesquisar o direito
suíço (mas que se aplica fielmente à realidade brasileira), verdadeira denegação de justiça
quando o julgador, “ansioso por facilitar o seu trabalho”, “não recebe recurso interposto
por pessoa sem procuração escrita”20
. Lá, como cá, não se afigura sequer minimamente
razoável que os tribunais de cúpula se apeguem a tais expedientes manifestamente
ilegítimos para, unicamente, fazer baixar a pilha de processos.
20 “À falta de dispositivos de garantia constitucional explícitos, a jurisprudência suíça extrai do art. 4º da
Constituição Federal, assegurador da igualdade perante a lei, certas consequências para preencher as lacunas
de proteção constitucional dos sujeitos de direito. Entende-se, também, que o princípio da tutela jurídica
compreende, em sentido amplo, a proibição do formalismo excessivo. Considerando indispensável a
observância de formas e prazos processuais para o desenvolvimento regular e em pé de igualdade do
processo, a jurisprudência sustenta, desde 1955, devam esses requisitos contribuir para garantir rápida e efetiva tutela jurídica e que o rigor formal transforma-se em denegação de justiça se o órgão judicial,
recorrendo a uma regra pertinente a prazo ou forma, sucumbe à tentação de ‘facilitar o seu trabalho’. O
formalismo excessivo é vislumbrado como denegação de justiça se não imposto para a proteção de algum
interesse quando venha a complicar, de maneira insustentável, a aplicação do direito material. Combatem-se,
dessa forma, os atos judiciais arbitrários, assim considerados aqueles não baseados em argumentos sérios e
objetivos, sem nenhum sentido ou finalidade razoável ou que realizem distinção não amparada nos fatos da
causa. Também é considerada arbitrária a violação manifesta de uma regra de direito ou de princípio de
direito claro e incontestável ou se o ato criticado contradiz de maneira violenta o sentido de justiça. (...)
Conforme a prática do Bundesgericht, denegação de justiça significa a retenção fática ou a demora na
emissão de uma decisão devida pela autoridade ou na realização do procedimento. (...) Alguns exemplos,
colhidos da jurisprudência do Tribunal Federal, em que se considerou ter ocorrido formalismo excessivo: (...) b) o não recebimento de recurso interposto por pessoa sem procuração escrita; (...).” (OLIVEIRA, Carlos
Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 4.ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 254-255; destaques acrescentados).
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É chegada a hora de progredir21
e afastar, por todo o sempre, a maléfica
jurisprudência defensiva.
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2007.
21 Louva-se, nesse aspecto, a recente decisão do STF no sentido de abandonar a ilegal e inconstitucional
orientação consolidada na súmula 418/STJ, que exige uma espécie de ratificação do recurso excepcional já
interposto, quando do julgamento de embargos de declaração interpostos pela parte contrária, ainda que esses
não viessem a modificar o teor do acórdão recorrido. Veja-se: RECURSO EXTRAORDINÁRIO –
EMBARGOS DECLARATÓRIOS – PENDÊNCIA – OPORTUNIDADE. O recurso extraordinário surge
oportuno ainda que pendentes embargos declaratórios interpostos pela parte contrária, ficando a problemática
no campo da prejudicialidade se esses últimos forem providos com modificação de objeto. (RE 680371 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Relator p/Acórdão: Min. Marco Aurélio, 1ª T., j. 11/06/2013, ac.
eletrônico DJe-181 divulg 13/09/2013 public 16/09/2013). Sobre o tema, consulte o nosso: A jurisprudência
defensiva dos Tribunais Superiores e a ratificação necessária..., ob. cit.
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A EFETIVIDADE DO PROCESSO E A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA
Marco Antonio dos Santos Rodrigues
Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito
Público e Doutor em Direito Processual pela Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Advogado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Processual.
RESUMO: O texto procura analisar a necessidade de superação das regras gerais do
Código de Processo Civil sobre ônus da prova, seja a partir da inversão do ônus da prova
prevista no Código de Defesa do Consumidor, seja com base na sua distribuição dinâmica,
como forma de busca de uma decisão justa.
PALAVRAS-CHAVE: ônus da prova; distribuição; inversão; dinâmica; acesso à Justiça.
ABSTRACT: The text aims to analyze the need of overcoming the Civil Procedure Code
general rules about burden of proof, either from the inversion of burden of proof defined in
Consumer Protection Code, or based in its dynamic distribution, as a way to look for a fair
decision.
KEYWORDS: burden of proof; distribution; inversion; dynamics; access to Justice.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo procura analisar a efetividade do processo em uma seara em que
muito se vem discutindo os limites e a legitimidade da atuação do juiz: a atividade
instrutória.
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Nos dias atuais, parece haver razoável consenso entre os estudiosos do Direito
Processual de que o processo como um todo, seja qual for a natureza do direito material em
jogo, deve buscar a verdade. Não se justifica mais a divisão da verdade em formal e
material: o que se faz imprescindível é que o julgador busque a verdade sobre as alegações
deduzidas por autor e réu. O processo civil, portanto, tal qual o processo penal, deve buscar
reconstituir a verdade sobre as alegações de fato formuladas pelas partes, para que, ao
final, ocorra uma pacificação do conflito com justiça, escopo social da jurisdição1.
O processo não pode ser tido como um fim em si mesmo, mas sim como um
instrumento para que se atinja uma finalidade fundamental, qual seja, a concessão de uma
prestação jurisdicional às partes.
Ocorre que, para o jurisdicionado, não basta qualquer prestação jurisdicional. A
decisão final do Poder Judiciário deve ser justa2, ainda que contrária àquele que veio
movimentá-lo. Na realidade, o que legitima a atuação judicial no caso concreto é o fato de
que a decisão foi proferida com respeito às garantias do processo, dando-se a melhor
solução às partes.
Nesse sentido, a última onda reformista procurou cada vez mais prestigiar o acesso
a uma prestação jurisdicional justa. As modificações no Código de Processo Civil atuaram,
sobretudo, na busca de maior efetividade através da celeridade na atuação judiciária.
Assim, por exemplo, a criação do julgamento liminar de mérito em razão de
improcedências repetitivas, pela Lei nº 11.277/2006.
Ocorre, porém, que a prestação jurisdicional justa, buscada pelas reformas do
Código de Processo Civil, e mesmo pelo projeto de um novo Código, necessita muitas
vezes não apenas de celeridade, mas de uma resposta condizente com a realidade sobre as
alegações de fato das partes.
É nesse contexto que surge o papel do juiz na busca da efetividade do processo à
luz das tendências reformistas: pode o juiz determinar que as partes produzam provas que
originalmente não eram pretendidas por elas? É o que se procura discutir.
1 Como bem lembra Cândido Rangel Dinamarco (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
Processo. São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 2002), a jurisdição, como função estatal, tem diversos escopos,
sejam políticos, jurídicos ou sociais, estes últimos exatamente capitaneados pela pacificação dos conflitos sociais com justiça. 2 Definindo critérios para a verificação da justiça de uma decisão, TARUFFO, Michele. Sui confini. Scritti
sulla giustizia civile. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 224.
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2. DISTRIBUIÇÃO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Na atividade jurisdicional, incumbe ao juiz, enquanto diretor da relação jurídica
processual, analisar as alegações das partes e as provas trazidas ao processo para que, ao
final, profira uma decisão justa e adequada à controvérsia.
Para que decida a demanda de forma justa, é preciso que o juiz possua provas
suficientes das alegações fáticas, sob pena de se valer se alguma solução que não espelhe a
realidade acerca do conflito de interesses. Além disso, vige no processo civil a regra do
artigo 126 do Código de Processo Civil3, que proíbe o non liquet: é vedado ao juízo deixar
de decidir a demanda, na ausência de provas.
Nessa esteira, surge a importância da distribuição do ônus da prova: trata-se de
regras de julgamento que serão utilizadas pelo magistrado na ausência de elementos
suficientes a comprovar as alegações fáticas.
A partir das lições sempre atuais de José Carlos Barbosa Moreira4, pode-se dizer
que o ônus da prova possui duas perspectivas: a primeira, subjetiva, relativa à necessidade
de as partes fazerem provas de suas alegações, de modo a obterem a demonstração de seu
direito ou a ausência de razão da parte ocupante do outro pólo da relação processual, sob
pena de, ausentes provas necessárias à solução da controvérsia, sofrerem um julgamento
desfavorável a seus interesses; e a segunda, objetiva, referente à distribuição dos riscos em
virtude da insuficiência das provas.
Nesse sentido, vale observar a regra desenvolvida no artigo 333 do Código de
Processo Civil:
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor.
Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira
diversa o ônus da prova quando:
3 “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Julgamento e ônus da prova”. In: Temas de Direito Processual Civil:
segunda série. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 74-75.
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I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do
direito.
Com efeito, trata-se de sistema que se baseia na autoria das alegações de fato pelas
partes na defesa de seus direitos: ao autor incumbe a prova do fato constitutivo de seu
direito, ao passo que o réu deve demonstrar o fato extintivo, modificativo ou impeditivo do
direito do autor.
Cabe ressaltar, entretanto, que a distribuição do encargo de provar com fulcro na
autoria das alegações fáticas é estática, não estando integrada às efetivas possibilidades do
caso concreto. Em outras palavras, o referido critério pode ser ineficaz, caso o autor tenha
grandes dificuldades à prova do fato constitutivo de seu direito, ou o réu não possua
condições mínimas de provar fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do
primeiro.
Diante dessa constatação, o legislador criou, no âmbito do microssistema da defesa
do consumidor, a possibilidade de inversão do ônus da prova em dois casos, de modo a
prestigiar a parte da relação jurídica que em muitas ocasiões se encontra numa situação de
inferioridade em relação à outra: o consumidor.
À luz das regras da experiência, verifica-se que o consumidor comumente não
possui adequadas condições de fazer provas de seus direitos, pela falta de conhecimento
técnico acerca do produto ou serviço que lhe é fornecido.
Daí porque o Código de Defesa do Consumidor prevê, no artigo 6º, inciso VIII, a
garantia da inversão do ônus da prova ao consumidor, de modo a facilitar a defesa do
consumidor em juízo, possibilitando-lhe uma maior igualdade de condições em relação ao
fornecedor na sua atuação judicial5.
O dispositivo em questão prevê a possibilidade de inversão como garantia à atuação
judicial do consumidor, condicionando-a a dois requisitos: a verossimilhança das alegações
do consumidor e a sua hipossuficiência. A verossimilhança significa que as alegações do
consumidor devem corresponder a uma situação plausível, com possibilidade de ocorrência
a partir das regras da experiência. Por exemplo, seria o caso de imaginar uma hipótese em
5 Também entendendo que a inversão do ônus da prova do artigo 6º, inciso VIII, prestigia a igualdade, NERY
JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 10ª ed., 2010, p. 99.
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que o consumidor ingressa em juízo, alegando que contratou o fornecimento de
determinado serviço, porém sem o receber.
De outro lado, tem-se, também, a hipossuficiência do consumidor, que significa a
existência de uma situação de desigualdade entre este e o fornecedor, em desfavor do
primeiro. O legislador, contudo, não expressou em que sentido deve haver essa
inferioridade do consumidor e, diante disso, deve-se indagar: trata-se de hipossuficiência
de cunho econômico ou técnico?
A melhor exegese do artigo 6º, inciso VIII, parece residir na hipossuficiência
técnica6, isto é, numa situação em que se encontra o consumidor em prejuízo para a análise
técnica do bem ou serviço objeto da relação jurídica material, e não na econômica, que
revela apenas um maior poder financeiro do fornecedor.
Já é notória a existência de mecanismos de eliminação dos ônus financeiros do
processo em favor daqueles que não possuem condições de arcar com a defesa judicial de
seus interesses, de modo a possibilitar-lhes uma igualdade em relação a seus adversários
processuais. É o caso da gratuidade de justiça, regulada pela Lei 1.060/50, que permite o
acesso ao Judiciário sem a necessidade de pagamento de custas; da regra da ausência de
custas processuais nos Juizados Especiais Cíveis, na forma do artigo 54 da Lei 9.099/95; e
da assistência judiciária gratuita, promovida pela Defensoria Pública.
Ademais, eventual hipossuficiência jurídica não justifica a inversão do ônus de
provar, considerando que a inferioridade de conhecimentos jurídicos pelo consumidor será
6 FRANÇA, Marly Macedônio. “Reflexos do Código do Consumidor na teoria da prova”. In: Revista do
TJRJ, vol. 50, jan/mar 2002. Na jurisprudência, a título ilustrativo do entendimento predominante, vale
destacar os seguintes julgados: “Direito Processual Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos
morais e materiais. Ocorrência de saques indevidos de numerário depositado em conta poupança. Inversão
do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade. Hipossuficiência técnica reconhecida. - O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a
inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por ele apresentada seja verossímil, ou quando
constatada a sua hipossuficiência. - Na hipótese, reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, em
ação que versa sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, mostra-se imperiosa a
inversão do ônus probatório. - Diante da necessidade de permitir ao recorrido a produção de eventuais
provas capazes de ilidir a pretensão indenizatória do consumidor, deverão ser remetidos os autos à
instância inicial, a fim de que oportunamente seja prolatada uma nova sentença. Recurso especial provido
para determinar a inversão do ônus da prova na espécie” (STJ, REsp 915599/SP, Rel. Ministra Nancy
Andrighi, 3ª T., julgado em 21/08/2008, DJe 05/09/2008); “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DO
CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CUSTEIO DE SUA PRODUÇÃO. Ação ordinária
objetivando a revisão de contrato bancário com expurgo de encargos financeiros, reputados indevidos, além de reparação por danos morais. Incidência do Código do Consumidor. Requisitos de verossimilhança e
hipossuficiência técnica presentes, segundo as regras ordinárias de experiência. (...)” (TJRJ, 17ª Câm. Cível,
rel. Des. Maria Inês Gaspar, AI 16645/2007, j. 08.08.2007).
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devidamente combatida pela presença do advogado que, salvo exceções legais7, é o titular
da capacidade postulatória. Note-se que, ainda que a parte não tenha condições de arcar
com os honorários de seu patrono, tem ela a possibilidade de se valer de defensor público,
em nome do direito fundamental à assistência judiciária gratuita, previsto no artigo 5º,
inciso LXXIV, da Constituição da República.
Dessa forma, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento processual,
bem como da análise teleológica do próprio Código de Defesa do Consumidor, chega-se à
conclusão de que a hipossuficiência tutelada pelo dispositivo em questão é a de caráter
técnico, que revela uma dificuldade de o consumidor analisar aspectos técnicos do produto
ou do serviço.
Em que pese entendimento doutrinário em sentido contrário8, urge salientar que tais
requisitos devem ser tidos como cumulativos. Isso porque a mens legis do dispositivo é
exatamente permitir que o consumidor que traga ao Judiciário uma demanda plausível, mas
que não tenha adequadas condições técnicas de defesa em juízo, possa se ver livre do ônus
de provar o fato constitutivo de seu direito, em caso de insuficiência de provas, ficando a
cargo do fornecedor demonstrar a ausência desse fato constitutivo do direito autoral.
Parece que o objetivo do legislador com a inversão não foi proteger uma pretensão do
consumidor que não seja dotada de plausibilidade, porém em que se vislumbre uma
hipossuficiência, ou uma demanda verossímil, sem qualquer inferioridade técnica do
consumidor, até porque, nesse último caso, não há razão de ser para a facilitação da prova,
tendo em vista a igualdade de condições entre as partes.
O segundo caso de modificação das regras da distribuição do ônus da prova do
Código de Processo Civil é a hipótese específica da propaganda enganosa. Consoante a
previsão do artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor, incumbe ao patrocinador da
propaganda o ônus da prova da veracidade da publicidade veiculada.
Vislumbra-se, nessa segunda previsão, um evidente caso de ponderação legislativa,
no sentido de que, tendo o patrocinador da publicidade melhores condições de prova, por
ser o conhecedor do produto ou serviço, deve ele ser o responsável pela demonstração da
ausência de direito do consumidor, caso venha a ocorrer alguma controvérsia. Pode-se
7 É o caso, por exemplo, das exceções encontradas no artigo 36 do Código de Processo Civil e no artigo 9º da
Lei n. 9.099/95. 8 Por todos, MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. “Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do
consumidor”. In: Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Guimarães. Coord.: José
Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 1999, 123-140, p. 130.
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afirmar, em última análise, que a previsão do artigo 38 não é tecnicamente uma inversão
do ônus da prova, mas sim uma redistribuição desse encargo para uma específica pretensão
decorrente da relação de direito material9.
Salvo as regras acima mencionadas, que procuram excepcionar a previsão geral da
distribuição do ônus da prova, não há uma cláusula geral expressa no ordenamento
processual civil que permita ao julgador fazer uma mitigação do artigo 333 do Código de
Processo Civil10
.
Diante disso, indaga-se: é possível extrair do sistema processual a possibilidade de
alteração judicial das regras da distribuição do ônus da prova, no caso de insuficiência de
provas? É o que se passa a discutir.
3. A DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DOS ÔNUS PROBATÓRIOS
Para cuidar da possibilidade de modificação judicial da distribuição do ônus da
prova, com uma postura ativista do juiz diante de uma regra estática do processo, é preciso,
antes de mais nada, analisar a evolução histórica do processo civil.
Como bem leciona Cândido Rangel Dinamarco11
, o processo civil passou por uma
evolução histórica em três grandes fases: a do sincretismo, a da autonomia e a da
instrumentalidade. Na primeira delas, o processo não possuía uma existência autônoma,
mas era uma faculdade inerente ao direito material discutido no processo.
Na segunda fase, temos o processo efetivamente tratado como instituto autônomo
ao direito material em jogo: tendo em vista que as relações jurídicas de direito material e
de direito processual não se confundem, é preciso dar o devido tratamento à relação
processual. Nesse sentido, o processo começa a ter seus institutos desenvolvidos, uma vez
que é preciso o direito processual ganhar sua própria estrutura, deixando de fazer parte da
estrutura de direito material.
No entanto, a desvinculação entre relação processual e direito material não pode
tornar a primeira um fim em si mesma, sob pena de padecer de inefetividade. Em meados
9 Nesse sentido, RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. São Paulo: Forense
Universitária, 2003, p. 208. 10 Registre-se, porém, que o parágrafo único do mesmo dispositivo permite a realização de convenções processuais sobre ônus da prova, sujeitando-as a limites. 11 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, volume I. São Paulo: Malheiros,
5ª. ed., 2005, p. 273 e ss.
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do século passado, passa-se, então, à análise do processo enquanto instrumento à satisfação
do direito material: é a fase instrumentalista.
Na fase instrumentalista, ganha destaque o caráter instrumental do processo, de
modo a se obter da forma mais célere e eficaz possível uma solução acerca da controvérsia
sobre o direito em jogo. A tutela jurisdicional demorada pode ser intempestiva, inútil
àquele que veio ao Poder Judiciário em busca de uma solução a uma situação de
litigiosidade.
Nesse sentido, para que o processo obtenha a maior efetividade possível, não se
pode olvidar as garantias constitucionais do processo, tendo em vista a necessidade de
leitura do ordenamento infraconstitucional a partir da normatização da Constituição.
Assim sendo, a partir da força normativa da Constituição e da filtragem
constitucional, pode-se afirmar que todas as normas infraconstitucionais, entre elas as
normas processuais, e em especial a distribuição do ônus da prova, devem ser lidas à luz
das garantias e valores constitucionais incidentes sobre o processo.
E entre as garantias constitucionais ao processo, ganha especial relevo o acesso à
Justiça, previsto como a inafastabilidade do controle jurisdicional no artigo 5º, XXXV, da
Lei Maior.
O acesso à Justiça representa não só a concessão de mecanismos para acesso ao
Poder Judiciário, mas também que o processo possa ter seu curso de forma justa e célere.
Daí porque o acesso à Justiça deve ser interpretado como o acesso a uma ordem jurídica
adequada, justa12
.
Nesse sentido, a garantia do acesso à Justiça parece permitir que as normas do
Código de Processo Civil sejam lidas à luz de uma interpretação que lhes confira a maior
efetividade à tutela jurisdicional pretendida, já que é o acesso à Justiça que deve nortear
todo o procedimento e a atuação das partes.
Diante disso, cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça, em nome do
princípio da precaução, admite a inversão do ônus da prova, para que, caso proposta ação
em defesa do meio ambiente, recaia sobre aquele que exerce a atividade potencialmente
12 Nessa esteira, confira-se o texto de Leonardo Ferres da Silva Ribeiro (Princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional. In: OLIVEIRA NETO, Olavo de. LOPES, Maria Elizabeth de Castro (org.). Princípios
Processuais Civis na Constituição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, 2ª reimpressão, 2008, p. 54): “Bem se vê,
portanto, que a Constituição Federal garante muito mais do que a mera formulação de pedido ao Poder Judiciário, mas um acesso efetivo à ordem jurídica justa, que se substancia, em última análise, na
possibilidade de obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e adequada, apta a tutelar eficaz,
pronta e integralmente todos os direitos e interesses reconhecidos no plano material”.
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poluidora o ônus de demonstrar que não está causando lesão a tal direito difuso. Portanto,
nas ações ambientais, verifica-se uma inversão do ônus da prova, em defesa do interesse da
coletividade, com base em princípio regente do direito material envolvido. Nessa linha,
destaque-se julgado daquele Tribunal Superior:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. DANOS AMBIENTAIS.
ADIANTAMENTO DE DESPESAS PERICIAIS. ART. 18
DA LEI 7.347/1985. ENCARGO DEVIDO À FAZENDA
PÚBLICA. DISPOSITIVOS DO CPC. DESCABIMENTO.
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. INVERSÃO DO
ÔNUS DA PROVA. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.
(...)
3. Em ação ambiental, impõe-se a inversão do ônus da prova,
cabendo ao empreendedor, no caso concreto o próprio
Estado, responder pelo potencial perigo que causa ao meio
ambiente, em respeito ao princípio da precaução.
Precedentes.
4. Recurso especial não provido13
.
Ademais, vem se admitindo que, caso a regra rígida da distribuição do ônus
probatório gere uma grave injustiça na análise do caso concreto, deve o juiz afastá-la, sob
pena de violação à garantia do acesso à ordem jurídica justa. Aplica-se, então, a chamada
Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas14
.
13 STJ, REsp 1237893/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª T., julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013. No
mesmo sentido, dentre outros julgados: AgRg no AREsp 206.748/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS
BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013. 14 No direito argentino, é bastante desenvolvida na doutrina a aludida teoria, que tem como grande defensor
Jorge W. Peyrano. Dentre as obras sobre o assunto naquele país, vale conferir destaque à obra coletiva
Cargas Probatorias Dinámicas (ACOSTA, Daniel F. et alli. Cargas Probatorias Dinâmicas. Santa Fe:
Rubinzal-Culzoni Editores, 2004). No Brasil, existem autores que também a defendem, podendo-se
mencionar, por todos: DALL'AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Distribuição dinâmica dos ônus probatórios.
In: Revista Jurídica: Órgão Nacional de Doutrina, Leg. e Crítica Judiciária. São Paulo, v. 48, n.280, fev. 2001, 5-20; GODINHO, Robson Renault. “A Distribuição do ônus da Prova na Perspectiva dos Direitos
Fundamentais”. In: Revista da EMERJ, v. 10, nº 38, 2007, 263-284; DIDIER JR., Fredie et alli. Curso de
Direito Processual Civil, volume 2. Salvador: Podium, 2007, p. 61-65; RODRIGUES, Marco Antonio dos
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A previsão do artigo 333 do Código de Processo Civil não é nem pode ser
interpretada como uma norma estática, sob pena de violação a outra garantia constitucional
do processo: a igualdade. Com efeito, a excepcional distribuição do ônus da prova de
acordo com as possibilidades probatórias do caso concreto promove a igualdade material,
conferindo a partes com forças distintas para atuação processual um equilíbrio em suas
oportunidades de defesa.
Nessa esteira, vale recordar o artigo 125, I, do Código de Processo Civil, que dispõe
sobre os poderes-deveres do juiz no processo, conferindo-lhe atribuição para “assegurar às
partes igualdade de tratamento”, e tal igualdade deve ser não apenas formal, isto é, nos
termos da lei, mas também material, permitindo uma igualdade de oportunidades entre os
litigantes15
.
Não se pode olvidar, ainda, que o processo há muito rompeu com o individualismo
contratualista, representando um mecanismo de exercício de um direito público subjetivo,
cabendo às partes, ainda que em pólos distintos, atuar em cooperação, guardando deveres
éticos que devem ser observados por todos os personagens do processo16
.
No Direito argentino, em que, como dito, a teoria das cargas probatórias dinâmicas
possui elevado desenvolvimento, Juan Alberto Rambaldo sustenta que esta tem por base os
princípios gerais do processo, porém em especial dois: o da moralidade processual e o do
uso regular dos direitos processuais17
.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart bem sintetizam a necessidade de
que o juiz inverta o ônus da prova em outras situações que não apenas aquelas previstas no
Código de Defesa do Consumidor. Vale transcrever trecho de sua obra:
Santos . Apontamentos sobre a distribuição do ônus da prova e a teoria das cargas probatórias dinâmicas.
Revista da Faculdade de Direito Candido Mendes, v. 12, p. 113-128, 2007. 15 Também defendendo a igualdade material no processo, importante destacar as lições de Alexandre Câmara
(CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 15ª. ed.,
2006, p. 40): “Não se pode ver, porém, neste princípio da igualdade uma garantia meramente formal. A falsa
idéia de que todos são iguais e, por isso, merecem o mesmo tratamento é contrária à adequada aplicação do
princípio da isonomia. As diversidades entre as pessoas devem ser respeitadas para que a garantia da
igualdade, mais do que meramente formal, seja uma garantia substancial. Assim é que, mais do que nunca,
deve-se obedecer aqui à regra que determina tratamento igual às pessoas iguais, e tratamento desigual às
pessoas desiguais”. 16 Sobre os deveres decorrentes da colaboração, confira-se MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 17 RAMBALDO, Juan Alberto. “Cargas Probatorias Dinámicas: um giro espistemológico. In: ACOSTA,
Daniel F. et alli. Ob. Cit. , pp. 25-34.
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Da mesma forma que a regra do ônus da prova decorre do
direito material, algumas situações específicas exigem o seu
tratamento diferenciado. Isso pela simples razão de que as
situações de direito material não são uniformes. A suposição
de que a inversão do ônus da prova deveria estar expressa na
lei está presa à idéia de que esta, ao limitar o poder do juiz,
garantiria a liberdade das partes.
Atualmente, contudo, não se deve pretender limitar o poder
do juiz, mas sim controlá-lo, e isso não pode ser feito
mediante uma previsão legal da conduta judicial, como se a
lei pudesse dizer o que o juiz deve fazer para prestar a
adequada tutela jurisdicional diante de todas as situações
concretas. Como as situações de direito material são várias,
deve-se procurar a justiça do caso concreto, o que repele as
teses de que a lei poderia controlar o poder do juiz. Esse
controle, atualmente, somente pode ser obtido mediante a
imposição de uma rígida justificativa racional das decisões,
que podem ser auxiliadas por regras, como as da
proporcionalidade e suas sub-regras18
.
Na realidade, pode-se afirmar que a distribuição dinâmica do ônus da prova procura
preservar a boa-fé processual, impedindo comportamentos imorais ou abusivos por aqueles
que possuam melhores condições de provar. Nessa esteira, também se manifesta Antônio
Janyr Dall’Agnol Junior19
, para quem o juiz deve estar atento a uma quebra do dever de
cooperação entre as partes.
Assim sendo, o acesso à Justiça, a igualdade e a boa-fé processual permitem a
adoção da distribuição dinâmica das cargas probatórias, para a excepcional definição de
quem são os responsáveis pela demonstração de cada fato.
18 MARINONI, Luiz Guilheme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2008, p. 273. 19 DALL'AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Ob. cit. Micheli defende que a quebra do dever de lealdade configura ilicitude, que o juiz pode apreciar livremente, a fim de obter elementos para a formação de sua
convicção (MICHELI, Gian Antonio. La carga de la prueba. Trad. por Santiago Sentís Melendo. Bogotá:
Temis, 2004, pp. 152-153).
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Nessa esteira, confira-se o acórdão de julgado do Superior Tribunal de Justiça, que
procura adotar as cargas dinâmicas para a produção probatória:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MEDICO. CLINICA.
CULPA. PROVA.
1. NÃO VIOLA REGRA SOBRE A PROVA O ACORDÃO
QUE, ALEM DE ACEITAR IMPLICITAMENTE O
PRINCIPIO DA CARGA DINAMICA DA PROVA,
EXAMINA O CONJUNTO PROBATORIO E CONCLUI
PELA COMPROVAÇÃO DA CULPA DOS REUS.
2. LEGITIMIDADE PASSIVA DA CLINICA,
INICIALMENTE PROCURADA PELO PACIENTE.
3. JUNTADA DE TEXTOS CIENTIFICOS
DETERMINADA DE OFICIO PELO JUIZ.
REGULARIDADE.
4. RESPONSABILIZAÇÃO DA CLINICA E DO MEDICO
QUE ATENDEU O PACIENTE SUBMETIDO A UMA
OPERAÇÃO CIRURGICA DA QUAL RESULTOU A
SECÇÃO DA MEDULA.
5. INEXISTENCIA DE OFENSA A LEI E DIVERGENCIA
NÃO DEMONSTRADA.
RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO”20
(sem
acentos no original).
Do mesmo modo, veja-se que mesmo as regras de inversão do ônus da prova
previstas no Código de Defesa do Consumidor também não podem ser interpretadas de
modo fixo. Conforme se verifica, a partir da redação do artigo 4º. do Estatuto
Consumerista, a Política Nacional das Relações de Consumo tem por escopo, dentre
outros, a harmonização dessas relações. Assim sendo, se o objetivo da inversão é a
facilitação da defesa judicial do consumidor, de modo a permitir um equilíbrio na sua
20 STJ, 4ª. Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, RESP 69309, publ. DJ 26.08.1996. Note-se, porém, que
depois desse precedente, outros julgados também adotaram a aludida teoria, como é o caso: STJ, 3ª. Turma,
REsp 1286704/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2013, DJe 28/10/2013.
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relação com o fornecedor – em última análise, é inerente a esse microssistema legislativo o
valor da igualdade.
Dessa forma, somente pode ser aplicada a regra do artigo 6º, VIII, do Código de
Defesa do Consumidor, se sua adoção não gerar um abuso do direito de atuação processual
do consumidor, ferindo o equilíbrio pretendido com o Estatuto Consumerista. Nessa
esteira, vale conferir o trabalho de Rodrigo Xavier Lourenço:
A proteção do consumidor não pode ser confundida
com cerceamento do direito de defesa do fornecedor. A
proteção do consumidor, do mesmo modo, não pode
ensejar a procedência de todas as demandas formuladas
por consumidores (pelo simples fato de os autores
ocuparem a posição jurídica de consumidores). Não foi
por outra razão que o legislador, no artigo 4º. da Lei
8.078/90, determinou como princípio da política
nacional das relações de consumo, o equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores.21
A possibilidade de distribuição do ônus da prova à luz do caso concreto não pode,
contudo, ser uma abertura à atuação arbitrária do juiz. Com efeito, cuida-se de atuação
excepcional, tendo em vista tratar-se de possibilidade implícita ao ordenamento processual,
sendo imprescindível lembrar que existe regra expressa a definir as incumbências de
provar: o artigo 333 do Código de Processo Civil.
Como bem lembra Ana Paula de Barcellos ao tratar de normas constitucionais, as
regras da Lei Maior representam um consenso mínimo acerca de condutas a serem
observadas, revelando, pois, uma segurança jurídica desejada pelos representantes do povo.
Os princípios, por sua vez, estão mais ligados ao valor justiça, representando finalidades a
serem atingidas pela sociedade. Dessa forma, num conflito constitucional entre regras e
21 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
274.
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princípios, entende a autora que devem prevalecer, ao menos a priori, as primeiras, sendo
excepcional a sua superação pelos últimos22
.
De igual maneira, pode-se aplicar o raciocínio à relação entre o mencionado artigo
333 e a teoria das cargas dinâmicas: se o legislador realizou uma ponderação prévia acerca
da distribuição do ônus da prova, criando regra própria acerca do tema, apenas em casos
em que a aplicação da regra acarretar uma manifesta subversão dos valores em jogo é que
pode o juízo afastá-la.
A aplicação excepcional da distribuição dinâmica poderia gerar alguma
controvérsia acerca de sua violação à garantia do devido processo legal. Ocorre que o
devido processo legal significa a observância não só apenas de procedimentos, mas
também de regras materialmente corretas. Daí por que, ao se melhor adequar o direito à
prova, está ocorrendo, outrossim, a promoção do devido processo legal23
.
No entanto, é preciso, de outro lado, o estabelecimento de limites à aplicação não
apriorística da divisão do encargo de provar. Num exame inicial da teoria, pode-se
vislumbrar duas limitações: o respeito ao contraditório e a ausência de impossibilidade
probatória reversa.
O contraditório, enquanto garantia legitimadora do próprio processo como um todo,
tem, como defende Cândido Dinamarco, uma dupla destinação: cabe à lei instituir meios
para a atuação das partes em contraditório, bem como ao próprio juiz promovê-lo,
permitindo às mesmas a demonstração da verdade24
.
22 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005. Confira-se trecho da obra (fl. 190): “Ao se afastar uma regra sob o fundamento de que ela se
oporia a uma conduta derivada da área não nuclear de um princípio, incorre-se em um conjunto de
distorções. Em primeiro lugar, caso se trate de uma regra infraconstitucional, o intérprete estará conferindo
à sua concepção pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio maior importância do que à concepção majoritária, apurada pelos órgãos legitimados para tanto. A situação é ainda mais grave se a
regra envolvida consta da Constituição. Nesse caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma regra
elaborada pelo poder constituinte originário e que, como padrão, veicula consensos básicos do Estado
organizado pela Constituição. Por fim, como a solução do caso baseou-se na percepção individual do
intérprete, muito freqüentemente ela não se repetirá em circunstâncias idênticas, ensejando violações à
isonomia”. 23 Na mesma linha, GODINHO, Robson Renault. Ob cit., pp. 278-279. 24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições..., ob. cit., p. 234: “A garantia do contraditório, imposta pela
Constituição com relação a todo e qualquer processo – jurisdicional ou não (art. 5º., LV) – significa em
primeiro lugar que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve
franquear-lhes esses meios. Significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório. A garantia deste resolve-se portanto em um
direito das partes e uma série de deveres do juiz. É do passado a afirmação do contraditório exclusivamente
como abertura para as partes, desconsiderada a participação do juiz”.
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Assim sendo, se houver uma redistribuição do ônus da prova no caso concreto, é
preciso franquear àquele sobre quem incidiu o encargo de provar, em primeiro lugar, a
possibilidade de defesa em face daquele provimento jurisdicional. Além disso, é essencial
que tal readequação dos ônus probatórios ocorra em momento processual hábil para que a
parte ainda possa trazer provas, sob pena de violação à garantia do contraditório. Dessa
forma, não parece possível a redistribuição quando da prolação da sentença, uma vez que
aquele que receber o encargo não poderá, em tal momento, demonstrar as alegações que
lhe incumbem.
Na realidade, não apenas em nome do contraditório, mas também da própria boa-fé
processual, não é possível que a readequação dos ônus probatórios seja realizada sem que
ainda seja possível que o onerado traga ao feito demonstrações de suas alegações.
Finalmente, tendo em vista que a redistribuição do ônus da prova acarretará a
criação de um ônus para alguém que não o teria originariamente, verifica-se um requisito
inerente à tal redistribuição: a ausência de impossibilidade probatória reversa.
A partir do caso concreto, portanto, é preciso que o juízo verifique se a providência
de readequação do encargo de provar pode gerar um prejuízo à comprovação das alegações
daquele que será onerado, sob pena de violação à garantia da ampla defesa. Se a
redistribuição do ônus da prova, como dito anteriormente, realiza uma ponderação acerca
de prévia escolha legislativa, somente será legítima tal ponderação, se não causar um ônus
excessivo à outra parte, sob pena de causar um desequilíbrio a um dos pólos da relação
processual, desvirtuando-se, pois, do próprio objetivo da dinamização.
4. CONCLUSÕES
À luz de todas as considerações realizadas no presente texto, pode-se concluir que,
de modo a produzir decisões justas às demandas que lhe são submetidas, o juiz deve
procurar reconstituir a verdade sobre as alegações de fato das partes da relação processual,
evitando que a insuficiência de provas leve a uma decisão injusta. Quando não for possível
realizar tal reconstituição de forma total, deve o juiz se valer das regras de distribuição do
ônus da prova.
O artigo 333 do Código de Processo Civil, que prevê regra geral acerca da
distribuição do encargo de provar, pode ser modificado, à luz do caso concreto, sob o risco
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de gerar uma situação de injustiça. Daí porque, em nome da efetividade da tutela
jurisdicional, da igualdade e da solidariedade processual, pode o juiz redefinir, em casos
excepcionais, as regras de distribuição do ônus da prova.
A definição da distribuição do ônus da prova pelo juiz de forma diferenciada em
relação à disposição geral do artigo 333 do Código de Processo Civil é, porém,
excepcional, isto é, deve se dar apenas nos casos em que a atuação das partes não foi capaz
de levar a um conjunto probatório seguro, bem como há indícios de que outras provas se
fazem necessárias à resolução da controvérsia.
Dois limites desde logo despontam à dinamização do encargo probatório: o respeito
ao contraditório e a ausência de uma impossibilidade probatória reversa. Ainda assim,
porém, verifica-se que a excepcional redistribuição dos ônus é medida que gera uma maior
efetividade da própria jurisdição, garantindo que o Poder Judiciário possa esperar das
partes as provas que efetivamente possam trazer a juízo.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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10ª. ed., 2002.
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DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS NO PROJETO DO NOVO CPC
Marco Aurélio Scampini Siqueira Rangel
Mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade
Federal do Espírito Santo. Graduado em Direito pela
Universidade Federal do Espírito Santo. Advogado.
Pedro Henrique da Silva Menezes
Mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade
Federal do Espírito Santo. Graduado em Direito pela
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Advogado.
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o tratamento dado ao
procedimento de produção antecipada de prova no projeto do novo CPC. Para tanto será
feita uma breve abordagem sobre o sistema atual, para fins de comparação. Após, serão
apreciadas individualmente as disposições do PL 8.046/2010 que tratam da produção
antecipada de prova, sob a ótica dos princípios processuais e pela sistemática pelo projeto
de lei em questão, buscando identificar os acertos e os equívocos da proposta a fim de
fomentar a discussão sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Provas; Procedimento; Produção antecipada de provas; Novo
CPC; PL 8.046/2010.
ABSTRACT: The present article aims to discuss the treatment given to the procedure of
early production of evidence in the Project of the new civil procedural code. For this will
be made a short review about the actual system for comparison. Then the clauses of the PL
8.046/2010 about the early production of evidence will be analyzed by the view of the
procedural principles and the systematic of the bill, trying to identify the propriety and the
errors of the proposal to encourage the discussion about the topic.
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KEYWORDS: Evidence; Procedure; Early Production of Evidence; New Civil Procedural
Code; PL 8.046/2010.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A produção antecipada de prova no sistema processual
brasileiro atual; 3. A produção antecipada de prova sem o requisito da urgência; 4. O
Projeto do Novo CPC; 4.1. Hipóteses de cabimento do procedimento de produção
antecipada de prova; 4.2. Do arrolamento de bens; 4.3. Da Justificação; 4.4. Competência e
prevenção; 4.5. Dos requisitos da inicial; 4.6. O Art. 389 e a ofensa ao contraditório; 5.
Conclusão.
1. Introdução
Entre as diversas mudanças que o PL 8.046/2010 irá promover no processo civil brasileiro,
caso aprovado com sua redação atual1, está a criação de um procedimento de produção
antecipada de provas que se difere, em vários aspectos, do atual procedimento cautelar de
produção antecipada de provas. Entre as principais mudanças a que mais chama atenção é
a autorização da antecipação da prova sem o requisito da urgência, tema abordado de
maneira inaugural no Brasil pelo Prof. Flávio Yarshell – o que será objeto de análise mais
aprofundada no decorrer do artigo.
A proposta aprovada pela Comissão especial da Câmara dos Deputados possui virtudes e
defeitos, como qualquer texto legislativo, e o que se pretende no decorrer do presente
artigo é fazer a análise pontual dos dispositivos de maior relevância para tentar esclarecer
alguns pontos que podem ensejar questionamentos, bem como fazer críticas construtivas
que auxiliem o desenvolvimento do novo CPC, ao menos nesse ponto – tendo em vista que
o PL 8.046/2010 ainda não foi promulgado –.
Inicialmente, faremos uma análise superficial do sistema atual de produção antecipada de
provas. Em seguida, iremos analisar com mais atenção a teoria que embasa a antecipação
da prova sem o requisito da urgência. Para finalmente chegarmos a uma análise crítica do
texto aprovado pela Comissão especial da Câmara dos Deputados.
2. A produção antecipada de prova no sistema processual brasileiro atual
1 Texto do PL 8.046/10 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, disponível em: <
http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf>, acesso em 30/10/2013.
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564
O procedimento de produção antecipada de provas está inserido no Livro III (Do Processo
Cautelar), mais especificamente no Capítulo II (Dos Procedimentos Cautelares
Específicos) entre os artigos 846 e 851 do CPC. Da sua colocação topológica decorre uma
conclusão lógica, mas que precisa ser pontuada para fins de construção do raciocínio: trata-
se de um procedimento de natureza cautelar.
A consequência dessa afirmação, repito, óbvia é que o referido procedimento se subordina
à regulamentação do Livro III do CPC – referente ao processo cautelar. Importante frisar
que não é criação do legislador de 1973 a atribuição do caráter cautelar ao procedimento de
produção antecipada de provas. Cassio Scarpinela Bueno2 faz referência à obra
Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari de Piero Calamandrei,
obra datada de 1936, para demonstrar que há muito tempo é reconhecido o caráter cautelar
do procedimento em questão.
O procedimento do art. 846 do CPC tem como escopo a conservação3 da prova que está
sujeita ao perecimento pelo decurso do tempo. Exige-se da parte que pretender a
antecipação da prova a demonstração da necessidade da antecipação e que indique com
precisão os fatos sobre os quais há de recair a prova (art. 848, caput, CPC), que poderá
consistir em interrogatório da parte, inquirição da testemunha e exame pericial. Quanto a
este último, o código deixa expresso no art. 849 que somente será admissível quando
houver “fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação
de certos fatos na pendência da ação”, o que se aplica aos demais tipos de prova em
decorrência das disposições gerais do Capítulo I.
No tocante ao juízo competente para apreciação do pedido cautelar, o CPC dispõe no art.
800 que “as medidas cautelares serão requeridas ao juiz da causa; e, quando
preparatórias, ao juiz competente para conhecer da ação principal” e quando já houver
sido interposto recurso “a medida cautelar será requerida diretamente ao tribunal”.
Contudo, tem-se admitido na doutrina4 e na jurisprudência
5 a possibilidade de,
2 BUENO, Cassio Scarpinela. Curso sistematizado de direito processual civil, 4: tutela antecipada, tutela
cautelar, procedimentos cautelares específicos. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 308. 3 Importante destacar que tal posicionamento não é uniforme na doutrina, para alguns autores, por todos
Flávio Luiz Yarshell, trata-se de verdadeira produção da prova, e não simples conservação, uma vez que não
é possível estabelecer diferenciação entre produção e conservação da prova. (YARSHELL, Flávio Luiz.
Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35/36). 4 É possível citar como doutrinadores que defendem essa possibilidade: “BUENO, Cassio Scarpinela. Curso
sistematizado de direito processual civil, 4: tutela antecipada, tutela cautelar, procedimentos cautelares
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excepcionalmente, o procedimento ser ajuizado no local onde a prova será produzida de
maneira mais adequada, uma vez que a burocracia para a sua efetivação quando ajuizada
em comarca diversa daquela em que deve ser produzida pode acarretar seu perecimento.
Outro ponto que merece destaque é a possibilidade da antecipação da tutela cautelar
naqueles casos em que a urgência impede que seja oportunizado o contraditório à parte
requerida, o que decorre do disposto no art. 804 do CPC. Da mesma forma que ocorre no
processo de conhecimento ou no processo de execução, embora eventualmente com
amplitude diversa, o contraditório somente pode ser postecipado excepcionalmente, visto
que se trata de garantia constitucional que deve ser observada no exercício da atividade
jurisdicional.
Feito esse breve apanhado dos pontos referentes ao procedimento do art. 846, é importante
salientar que esta não é a única forma de produção antecipada de provas existente no
sistema processual civil brasileiro. Conforme destaca Flávio Yarshell, também são
consideradas “vias” processuais para a produção antecipada de prova a justificação (art.
860 e ss. do CPC), a ação de exibição de documentos e o arrolamento de bens6. Destaco
que, estas “vias” serão abordadas oportunamente quando tratarmos dos dispositivos do PL
8.046/10, motivo pelo qual deixamos de analisá-las por ora.
3. A produção antecipada de prova sem o requisito da urgência
Como mencionado alhures, um dos grandes destaques do procedimento de produção
antecipada de prova previsto no projeto do novo CPC é a previsão da antecipação da prova
específicos. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 312” e “CÂMARA, Alexandre Freitas.
Lições de Direito Processual Civil. Vol. III. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 59”. 5 “AGRAVO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL.
COMPETÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. REPARAÇÃO
DE DANO. PESSOA JURÍDICA. FORO DO LOCAL DO FATO. ORDEM PRÁTICA E PROCESSUAL.
REDEFINIÇÃO DO FORO COMPETENTE PARA JULGAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL. REVISÃO
DA COMPETÊNCIA TAMBÉM NO PROCESSO CAUTELAR. NECESSIDADE. A ação de reparação de dano tem por foro o lugar onde ocorreu o ato ou o fato, nos termos do art. 100, v, 'a', do CPC, ainda que a ré
seja pessoa jurídica com sede em outra localidade. Precedentes. A competência deve prevalecer também por
questões de ordem prática e processual, na medida em que a realização de perícia ou inspeção judicial no
Juízo será facilitada, porquanto lá já se encontra o produto objeto da divergência entre as partes; o que,
sem dúvida, contribui para a celeridade da prestação jurisdicional. Havendo a redefinição do foro
competente para julgamento do processo principal, deve ser igualmente revista a decisão oriunda do processo
cautelar vinculado àquele, a teor do que estabelece o art. 800 do CPC. Negado provimento ao agravo interno.
(AgRg nos EDcl no AgRg no Ag 727699/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 07/12/2006, DJ 18/12/2006, p. 372)”. 6 Nesse sentido, o Prof. Flávio Yarshell aduz: “Outra via processual da qual se pode cogitar para o exercício
do direito autônomo à prova consiste no arrolamento de bens. Sobre isso não parece haver dúvida, em primeiro lugar, de que referida medida se presta à função de documentar fatos, e, portanto, à tarefa de pré-
constituir prova”. (YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito
autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 436).
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sem o requisito da urgência, uma vez que, como visto, o procedimento do art. 846 possui
natureza cautelar, estando nele, ao menos a princípio, ínsito o requisito da urgência.
O Prof. Flávio Luiz Yarshell, em trabalho elaborado como tese de titulação no
Departamento de direito processual da Universidade de São Paulo publicado em 20097,
desenvolveu uma teoria a respeito da desnecessidade do requisito da urgência para a
produção antecipada da prova baseada na premissa da existência de um direito autônomo à
prova.8
O ilustre jurista do Largo São Francisco desenvolve ao longo de sua obra a tese de que é
possível extrair do direito de ação um autêntico direito à prova, que consistiria,
basicamente, em um “direito autônomo à produção da prova, de forma não diretamente
vinculada ao pleito de declaração do direito material e ao processo instaurado para esta
finalidade”.9 Semelhante posicionamento é defendido por Fredie Didier – jurista membro
da comissão da Câmara dos Deputados responsável pela elaboração do novo CPC – em
recentíssimo artigo.10
Importante destacar que, embora se fale em um direito autônomo à prova11
(sem
vinculação de instrumentalidade com um processo principal) o exercício não pode ser
ilimitado, sob pena de violação de outros direitos, dentre os quais o da privacidade
desponta como potencial objeto das mais graves violações, tendo em vista que, mesmo que
não consista em medida de caráter constritivo, a produção antecipada da prova implica
“alguma forma de invasão da esfera individual – inclusive, eventualmente, de
‘terceiros’.”.12
Ainda, em reforço à tese ventilada, Eduardo Cambi afirma que “o direito à prova é,
conforme visto, um desdobramento da garantia constitucional do devido processo legal ou
7 YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova.
São Paulo: Malheiros, 2009. 8 Neste momento é importante esclarecer que a abordagem mais detida da obra do Prof. Yarshell se dá pelo
fato de que o projeto do novo CPC claramente se abeberou dos ensinamentos constantes da obra do referido
jurista, embora não haja qualquer referência a este fato nas razões constantes do relatório da Câmara ou do
Senado. 9 Ob. cit. p. 310. 10 Sobre o tema assim se manifestou: “A visão que parece mais apropriada, entretanto, é no sentido de que
ambas as medidas – produção antecipada de provas e justificação – não são propriamente cautelares e não
pressupõem, necessariamente, a demonstração do perigo da demora (urgência) para serem admissíveis. São,
pois, satisfativas do chamado direito autônomo à prova, direito este que se realiza com a coleta da prova em
típico procedimento de jurisdição voluntária”. (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; Ações
probatórias autônomas: produção antecipada de prova e justificação. Revista de Processo, São Paulo; Vol. 218, p. 13, Abr. 2013). 11 Ob. cit. 12 Ob. cit. p. 333
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um aspecto fundamental das garantias processuais da ação, da defesa e do contraditório”.13
O referido autor dá um caráter constitucional ao direito em comento, o que demonstra a
necessidade de o legislador criar meios para o seu exercício.
Seguindo essa linha de raciocínio, Yarshell demonstra que a existência de um direito à
prova desvincula o mesmo da ideia de um instrumento a serviço do magistrado,
tradicionalmente visto como destinatário – quase que único – da prova produzida. Esta
visão claramente estreitaria a amplitude do direito à prova nos termos desenvolvidos pelo
Prof. Yarshell, o que de forma alguma infirma a existência de forte vínculo da prova com o
magistrado, mas tão somente não limita a prova a este aspecto.
Demonstra, na sequência, que a utilidade da produção antecipada da prova não se limita à
sua preservação – termo que, como citado alhures, não apresenta diferença substancial para
a “produção” em si –. A produção da prova em momento anterior ao início do processo
principal serve também para possibilitar às partes uma melhor apreciação das chances e
dos riscos decorrentes do ajuizamento de uma ação, ou do oferecimento de peça de
resistência.14
Importante frisar que no mesmo sentido do pensamento desenvolvido pelo referido jurista,
Luigi Paolo Comoglio destaca que há tendência no processo civil italiano de se admitir a
utilização do procedimenti di istruzione preventiva sem o fundamento da urgência,
conforme é possível identificar a partir do projeto elaborado pela Comissione Ministeriale
em 2002, que identifica, assim como faz o Prof. Yarshell, outras razões para a produção
antecipada da prova, entre elas a possibilidade de fazer um estudo adequado das estratégias
processuais a serem adotadas.15
No entanto, o Codice di procedura Civile no Art. 692 e ss.
mantém a vinculação do procedimenti di istruzione preventiva ao requisito da urgência.
13 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. Coleção temas atuais de processo civil, vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 166. 14 “Contudo, em coerência com as conclusões expostas anteriormente, a prova – incluindo-se aí as regras
sobre distribuição dos respectivos ônus – não desempenha no sistema apenas a função de esclarecimento do
órgão julgador na missão de declarar o direito no caso concreto. Mais que isso, a prova pode e deve ser vista
como elemento pelo qual os interessados avaliam suas chances, riscos e encargos em processo futuro, e pelo
qual norteiam sua conduta, inclusive de sorte a evitar uma decisão imperativa”. (YARSHELL, Flávio Luiz.
Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009.
p. 137) 15 “Si profilano comunque, de jure condendo, alcune interessanti novità nelle linee direttive di una prossima
riforma organica del processo. Nel progetto redatto ed elaborato dalla Comissione ministeriale presieduta da
Vaccarella nel 2002, la direttiva n. 52 prevede <<la possibilità di utilizzare i procedimenti di instruzione preventiva anche in assenza di periculum in mora>>, noché <<la possibilità di generalizzare la consulenza
tecnica ante causam>>. Fermo restando il chiaro intento di svincolare i presupposti di tale istruzione dalle
consuete condizioni di ammissibilità della tutela cautelare in genere, si va rafforzando il parallelismo fre le
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Em sede de conclusão, Flávio Yarshell faz proposições de reformas ao CPC/73 para que
seja adequadamente tutelado o direito à prova, dentre as quais se pode destacar: a)
“acrescer um inciso ao art. 847 do CPC, para nele constar que as providências de instrução
ali mencionadas podem ter lugar sempre que houver ‘motivo legítimo ou que isso seja útil
para impedir ou por fim a controvérsia ou litígio’;”;16
b) “deixar expresso que a
antecipação não se limita necessariamente ao interrogatório ou à inquirição de
testemunhas, podendo abranger toda e qualquer outra providência de instrução que seja
‘moralmente legítima’,”.17
Dentre outras sugestões para a preservação da harmonia e
unidade do código.
O que se pode concluir a partir das colocações expostas neste tópico é que a existência de
um direito autônomo à prova impõe a necessidade de um procedimento através do qual as
partes possam garantir o exercício desse direito. O que se daria através de um processo
interpretativo da legislação vigente, para ampliar a sua abrangência e relativizar os
requisitos dos arts. 846 e ss., ou por meio de uma reforma na legislação, o que está sendo
feito no PL 8.046/10, que será analisado nos tópicos seguintes.
4. O Projeto do Novo CPC
Dentre as diversas alterações que são objetivadas pelo legislador reformador está, como
dito alhures, a previsão de um procedimento de produção antecipada de provas sem o
requisito da urgência. Arruda Alvim afirma, na esteira de outros posicionamentos
demonstrados acima, que houve uma mudança de paradigma no instituto da prova, pois se
passou a reconhecer a função da prova na formação do convencimento das partes na
avaliação de suas chances em uma eventual demanda. Afirma, ainda, que “este novo
propósito da atividade probatória, que, de certa forma, situa também as partes como
destinatárias da prova, tem como objetivo prevenir a propositura de ações infundadas ou
fadadas ao insucesso, porque desprovidas de respaldo fático”.18
più recenti innovazioni legislative, in materia di indagini <<private>> e <<preventive>> dei difensori nel
processo penale, e le chances di tutela anticipata, che – grazie, pure, al potenziamento dei mezzi instrutori
assumibili dai diffensori <<anche prima dell’inizio del giudizio>>, configurato dalla direttiva n. 22 (cfr.
supra) – muniscono anche i difensori nel processo civile di idonee prossibilità di <<precostituzione>> di
fonti e di mezzi probatori, in funzioni de un giudizio ancor da promuoversi, nonché in vista di un più
adeguato studio delle strategie defensive adottabili”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Le prove civili. 2. ed.
Torino: UTET, 2004. p. 142). 16 Ob. cit. p. 444. 17 Ob. cit. 18 ALVIM, Arruda. Notas sobre o projeto de novo código de processo civil. Revista de Processo, São Paulo;
Vol. 191, p. 299, Jan. 2011.
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O PL 8.046/10 inovou com a criação de uma Parte Geral, na qual foram insculpidas
normas que devem reger a atividade dos atores do processo, dentre os quais merece
destaque o princípio da cooperação. Além disso, a todo o tempo se buscou a simplificação
dos procedimentos e do próprio código – embora não nem sempre este objetivo tenha sido
alcançado – para garantir uma duração razoável do processo. Nesse contexto é que essa
alteração – antecipação da prova sem o requisito da urgência – aparece como um dos
meios de redução da litigiosidade e de tentativa de tornar célere a prestação jurisdicional.
Bem como, tem que ser analisada sob o escopo da simplificação do procedimento e da
garantia dos direitos constitucionalmente previstos. Será esse, portanto, o enfoque dado
doravante, para que seja possível analisar o procedimento em questão.
4.1. Hipóteses de cabimento do procedimento de produção antecipada de prova
Dispõe o art. 388 do projeto do novo CPC ser admitida a produção antecipada de provas
nos casos em que: a) haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito
difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; b) a prova a ser produzida seja
suscetível de viabilizar tentativa de conciliação ou de outro meio adequado de solução do
conflito; e c) o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de
ação.
A primeira situação somente reitera hipótese de cabimento já consagrada no CPC/73,
consistente na produção da prova para evitar seu perecimento. Sendo, portanto,
desnecessário tecer quaisquer comentários sobre o tema, uma vez que já foi analisado
alhures.
Quanto à segunda hipótese (“viabilizar tentativa de conciliação ou de outro meio adequado
de solução do conflito”) temos realmente uma inovação que merece nossa atenção.
Na hipótese ora analisada o legislador admite expressamente que, conforme citado acima, a
prova não se destina exclusivamente ao juiz. A prova se presta também à formação do
convencimento das partes quanto às suas chances em uma eventual demanda – note,
“eventual demanda” –. Importante perceber que não há mais disposição no sentido de
estipular prazo para o ajuizamento da ação principal. Isso porque, a hipótese de cabimento
em tela não está vinculada a um processo principal, é reconhecido o direito autônomo ao
ajuizamento de uma demanda para fins de produção de prova como meio de facilitar a
autocomposição.
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Assim sendo, é possível que, ocorrendo um acidente de carro entre “A” e “B”, qualquer um
dos interessados vá a juízo para que se produza a prova pericial a fim de identificar quem
foi o causador do acidente. Digamos que a perícia conclua que a responsabilidade pelo
acidente é de “A”. Neste caso, “A” e “B” teriam a perfeita noção de suas chances em uma
eventual demanda judicial, hipótese que pode levar “A” a formular uma proposta de acordo
extrajudicial para que sobre ele não recaiam os ônus decorrentes de uma demanda judicial.
A terceira hipótese de cabimento se aproxima sobremaneira da que acabamos de abordar,
pois também está ligada à concepção de que as partes interessadas também são
destinatárias da prova. Porém, neste caso o legislador busca autorizar a produção
antecipada da prova para evitar que as partes ingressem em juízo com demandas
temerárias, ou o contrário, que as partes tenham elementos para ingressar em juízo com
mais chances de êxito.
Essa hipótese de cabimento vai ao encontro da sistemática adotada pelo projeto do novo
CPC, o que se pode depreender da leitura do art. 77, II do projeto, que elenca entre os
deveres das partes “deixar de formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de
que são destituídas de fundamento”. E para que as partes possam adequar as suas atitudes –
dentro e fora do processo – é preciso que lhes sejam disponibilizados meios para
conhecerem suas verdadeiras chances e avaliar a validade dos fundamentos que pretendem
expor.
4.2. Do arrolamento de bens
O §1º do art. 388 do projeto do novo CPC dispõe que “o arrolamento de bens observará o
disposto nesta seção quando tiver por finalidade apenas a realização de documentação e
não a prática de atos de apreensão”. Tal previsão consagra expressamente a possibilidade
de utilização do arrolamento de bens sem fins constritivos.
O CPC de 1939 previa em seu art. 676, IX o arrolamento de bens para fins de descrição
dos bens do casal, de forma que pudesse ser utilizado como base para um futuro processo
de inventário. Assim, não havia àquela época o caráter constritivo. Este somente foi
inserido no sistema com o advento do CPC atual, que, inspirado no modelo português,
atribuiu caráter constritivo à medida (art. 855 e ss. do CPC/73).
A despeito dessa característica, diversas vozes se levantaram a favor da possibilidade de
utilização do arrolamento de bens sem o seu caráter constritivo. Por todos, Ernane Fidélis
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dos Santos, que afirma ser possível o pedido de arrolamento sem a medida constritiva,
visando, única e exclusivamente o conhecimento dos bens.19
Esse viés meramente probatório do arrolamento é o que foi resgatado pelo projeto do novo
CPC. Para tanto, o legislador dispôs que na hipótese de o arrolamento não possuir caráter
constritivo ele será regido pela “Seção II – Da produção antecipada da prova”.
Curioso mencionar que não há a previsão da medida típica de arrolamento com caráter
constritivo ao longo do projeto. Isso porque, não há mais o Livro dedicado exclusivamente
às cautelares, bem como foi extinto o rol de cautelares típicas, passando o tratamento das
cautelares, em caráter antecedente, a ser feito pelos arts. 307 a 312. Contudo, a inexistência
da previsão expressa não implica no seu desaparecimento do sistema, uma vez que o
magistrado poderá conceder tal medida cautelar por força do disposto no art. 29820
do
projeto.
Nesse sentido, portanto, o arrolamento de bens não estará vinculado à existência da
urgência, bastando para o seu cabimento que esteja presente alguma das hipóteses previstas
nos incisos do art. 388 do projeto.
De grande importância didática é o exemplo dado por Flávio Yarshell que se reporta à
hipótese de um credor de dada quantia que, sem saber da solvabilidade de seu devedor,
pretende o arrolamento de bens para que, sabendo da real condição patrimonial evite
instaurar processo em face deste que ao final restaria frustrado, dada a inexistência de bens
passíveis de expropriação21
. Importante mencionar que tal medida se mostra tanto efetiva,
sob a ótica do credor, quanto menos gravosa, sob a ótica do devedor, alcançando o escopo
pretendido pelo projeto.
4.3. Da Justificação
O §5º do art. 388 do projeto dispõe que também se aplica o disposto na Seção II à
justificação22
. A justificação desde o código atual já é vista como procedimento que se
diferenciava das demais medidas propriamente cautelares, pois era reconhecida a
desnecessidade do requisito do periculum in mora, já que o art. 861 do CPC admitia o seu
19 DOS SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. Vol. II. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 341. 20 “Art. 298. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela
antecipada. Parágrafo único. A efetivação da tutela antecipada observará as normas referentes ao
cumprimento provisório da sentença, no que couber”. 21 Ob. cit. p. 439. 22 “Art. 388 – § 5º Aplica-se o disposto nesta Seção àquele que pretender justificar a existência de algum fato
ou relação jurídica, para simples documento e sem caráter contencioso, que exporá, em petição
circunstanciada, a sua intenção”.
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ajuizamento para fins de mera documentação23
. Tal característica é destacada por
Humberto Theodoro Júnior ao afirmar que a justificação consiste na “colheita avulsa de
prova testemunhal, que tanto pode ser utilizada em processo futuro, como em outras
finalidades não contenciosas”.24
Corroborando o exposto, no relatório do Deputado Paulo
Teixeira ficou consignado que foi unificado “o regime da justificação com o da produção
antecipada de prova, exatamente em razão da desnecessidade de demonstração da urgência
para sua produção”.25
Da mesma forma que o arrolamento de bens, a justificação não encontra previsão em outro
ponto do projeto de novo CPC, tendo o legislador limitado seu tratamento ao §5º do art.
388. Tal fato não prejudica de forma alguma a sua utilização, até mesmo porque havia
doutrinadores que levantavam a dificuldade de diferenciá-la do procedimento de produção
antecipada de provas, dados os inúmeros pontos de contato26
.
4.4. Competência e Prevenção
Ponto que talvez seja um dos mais delicados do procedimento de produção antecipada de
provas no projeto do novo CPC é o referente à competência e à prevenção. Sobre o tema o
projeto prevê o seguinte nos §§ 2º a 4º do art. 388: “§ 2º A produção antecipada da prova é
da competência do juízo do foro onde esta deva ser produzida ou do foro de domicílio do
réu. § 3º A produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação
que venha a ser proposta.§ 4º O juiz estadual tem competência para produção antecipada
de prova requerida em face da União, entidade autárquica ou empresa pública federal se,
na localidade, não houver vara federal”.
Inicialmente, o §2º estipula regra de competência específica para o procedimento da
produção antecipada da prova, dispondo que o foro competente será aquele no qual a prova
deve ser produzida. Trata-se de disposição que busca solucionar problema que há muito
fomenta discussões na doutrina: a dificuldade de produzir a prova quando o objeto se
encontra em comarca distante do foro competente para o ajuizamento da ação principal.
23 “Art. 861. Quem pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples
documento e sem caráter contencioso, seja para servir de prova em processo regular, exporá, em petição
circunstanciada, a sua intenção”. 24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. II. 40. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. p. 513. 25 Texto do PL 8.046/10 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, disponível em: <
http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_paulo_teixeira_08maio2013.pdf>, acesso em 30/10/2013. 26 Ob. cit. p. 422/423.
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Atualmente, o CPC prevê no art. 800 que o juízo competente para a ação principal será o
competente para as medidas cautelares preparatórias. Contudo, o CPC atual parte de uma
premissa que foi afastada pelo projeto, a de que a produção antecipada de prova consiste
necessariamente em medida cautelar preparatória. Esta mudança de paradigma, como
referido alhures, traz inúmeras consequências para o sistema e uma delas é a solução da
questão referente ao juízo competente. Explico.
Se considerarmos, como demonstrado no tópico “3”, que existe um direito autônomo à
produção da prova e que a produção antecipada da prova não se destina unicamente à
preservação da prova – portanto, não está necessariamente vinculada a um processo
principal – não persiste razão para atribuirmos competência ao juízo onde tramitaria a
demanda principal, já que essa não existirá obrigatoriamente.
Dito isso, deve-se buscar qual o critério mais adequado para a fixação da competência. A
conclusão que se chega não pode ser outra senão o local onde a prova deve ser produzida.
Contudo, a redação do projeto prevê ainda que, alternativamente, a prova poderá ser
produzida no domicílio do réu. Quanto a esta disposição parece que o legislador deveria ter
sido mais claro quanto à sua intenção. Isso porque, se o escopo da norma é facilitar a
produção da prova não parece razoável admitir que, v.g., um fazendeiro que pretenda fazer
prova quanto a um rebanho de gados negociado, que se encontra em uma fazenda no Mato
Grosso, possa ajuizar a demanda no Estado de São Paulo onde é domiciliado o Réu.
Admitir tal situação seria ir contra toda a ideia de duração razoável do processo e
simplificação do procedimento preconizada pelos idealizadores do projeto.
Assim, solução que parece mais razoável seria a de que o juízo competente é o do local
onde deve ser produzida a prova. Contudo, em situações nas quais não seja possível
identificar um local para a produção da prova – por exemplo, caso de prova pericial em um
caminhão que não possui pouso determinado, mudando de localização constantemente – ou
se trate de prova que possa ser produzida em qualquer lugar – caso de uma perícia em um
sistema de proteção de um determinado site de comércio virtual –, será competente a
comarca de domicílio do réu.
O §3º por sua vez trata da prevenção, dispondo que a produção antecipada da prova não
torna prevento o juízo para o ajuizamento da demanda principal. Novamente é importante
se atentar para a mudança de paradigma que o projeto propõe. A ação de produção
antecipada de prova é o meio processual para o exercício de um direito autônomo à prova.
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Nesse procedimento não há juízo de valor quanto ao conteúdo da prova, mas tão somente
se verifica se os requisitos legais estão preenchidos para a produção da prova, que poderá
ou não ser utilizada em uma futura demanda judicial.
Assim sendo, não há qualquer razão para que tal juízo se torne prevento. Previsão nesse
sentido somente serviria para dificultar o exercício do direito de ação da demanda em que
se pretenderia utilizar a prova.
É curial notar que a prevenção, especificamente em relação à projeção expansiva dos seus
efeitos, consiste “no surgimento de um dever de atribuição de todas as demandas conexas
(i.e., todas que pertencem a um mesmo conjunto de conexas) ao juízo prevento”.27
Nesse
sentido, é importante tentar identificar se haveria conexão entre a demanda de produção
antecipada de provas e uma eventual ação principal. Vejamos.
Bruno Silveira fixa como critério para identificação da conexidade – para utilizar o termo
adotado pelo referido doutrinador – entre demandas “saber se, julgadas em separado duas
ou mais demandas, poderia advir algum tipo de incompatibilidade lógica ou prática entre
os respectivos julgados”.28
Utilizando este critério é forçoso admitir que não haveria
conexidade entre a ação probatória autônoma e uma eventual ação a ser ajuizada para
tutela do direito material relativo à prova. Isso porque, não havendo juízo de valor quanto
ao conteúdo da prova, não seria possível se falar em incompatibilidade entre os julgados.
Bem como, independentemente da prova produzida por meio do procedimento do art. 388
do projeto, tanto as partes podem deixar de utilizá-la quanto o juiz pode determinar que
seja produzida nova prova.
Desta forma, agiu bem o legislador projetista ao dispor expressamente que não há
prevenção.
Por fim, o §4º que dispõe quanto à competência do juiz estadual para produção antecipada
de prova requerida em face da União, em comarca onde não houver Vara Federal em nada
altera a regulamentação atual, uma vez que o art. 15 da Lei 5.010/196629
possui previsão
idêntica, havendo pequena diferença na redação dos artigos, o que não afeta na norma que
se pode extrair a partir do texto legal.
27 OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Conexidade e efetividade processual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 200. 28 Idem. p. 135. 29 “Art. 15. Nas Comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal (artigo 12), os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar: (...) II - as vistorias e justificações destinadas a fazer prova
perante a administração federal, centralizada ou autárquica, quando o requerente fôr domiciliado na
Comarca;”
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4.5. Dos requisitos da inicial
Prevê o art. 389, caput, do projeto que “na petição, o requerente apresentará as razões que
justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre
os quais a prova há de recair”, devendo ainda ser observados os requisitos previstos nos
arts. 320 e 321 do projeto do novo CPC.
A exigência prevista no caput do art. 389 deve ser vista à luz das premissas aqui fixadas.
Ou seja, não é possível entender como “necessidade de antecipação da prova” a
possibilidade de seu perecimento ou a dificuldade da sua produção no bojo de uma
eventual demanda judicial. Isso seria limitar a produção antecipada de prova às hipóteses
de urgência. Como vimos ao longo do presente artigo, o projeto do novo CPC não admite
tal limitação.
Assim sendo, sob a ótica do projeto devemos entender por “necessidade de antecipação da
prova” a presença de alguma das situações dos incisos do art. 388 do CPC. O que força a
conclusão de que a referida exigência pode vir a se tornar inócua, uma vez que é difícil
imaginar uma situação em que não seja possível vislumbrar a prova como meio de
viabilizar um acordo extrajudicial, evitar que a parte ingresse em juízo ou justificar o
ajuizamento de uma futura ação.
Pior que isso é a possibilidade de essa exigência se tornar uma forma de os juízes – em
busca de cumprir as “metas do CNJ” – indeferirem as iniciais de produção antecipada de
prova pelo não preenchimento da citada exigência. O que iria de encontro a tudo que foi
exposto até o presente momento. Assim, melhor seria que o legislador deixasse a cargo do
art. 320 do projeto a previsão dos elementos que devem constar da petição inicial, uma vez
que a “necessidade de antecipação da prova” já estaria abarcada pelo art. 320, III do
projeto e evitaria a situação vislumbrada acima.
Quanto aos “fatos sobre os quais a prova há de recair”, também estaria abarcado pelo art.
320, IV do projeto, o que tornaria mera repetição a sua previsão no art. 389.
4.6. O Art. 389 e a ofensa ao contraditório
De todas as disposições pertinentes ao tratamento da produção antecipada de provas,
aquelas que mais causam preocupação são as inseridas nos §§ 1º e 4º do art. 389. Dada a
sua peculiaridade faço transcrevê-las integralmente: “§ 1º O juiz determinará, de ofício ou
a requerimento da parte, a citação de interessados na produção da prova ou no fato a ser
provado, salvo se inexistente caráter contencioso; (...) § 4º Neste procedimento, não se
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admitirá defesa ou recurso, salvo contra a decisão que indeferir, total ou parcialmente, a
produção da prova pleiteada pelo requerente originário”.
Os parágrafos acima colacionados destoam sobremaneira de tudo o que se busca com o
projeto do novo CPC. Primeiramente, o legislador projetista estipula que as partes
interessadas serão citadas a requerimento da parte ou de ofício pelo magistrado. Até este
ponto andou bem. Contudo, na sequência prevê exceção para aqueles casos em que
inexistir o caráter contencioso. Como assim? De que forma o magistrado poderá saber se a
produção de determinada prova pode ou não gerar interferência na esfera individual de
outra pessoa, que ficando alheia ao processo não teria como exercer o contraditório? A
norma é de patente inconstitucionalidade, ferindo de morte o princípio do contraditório e
da ampla defesa ao criar a possibilidade de intervenção na intimidade de outrem sem o
respeito ao devido processo legal e ao contraditório.
Não bastasse a existência de tal previsão, o legislador vai além, veda a defesa ou o recurso
no procedimento de produção antecipada de prova. Repito, o legislador criou uma hipótese
de processo judicial em que o réu não poderá apresentar defesa ou recurso. Sendo assim, o
que faz o réu no referido procedimento? Mero expectador?
Ao que parece o legislador deixou de considerar, o que já foi ponderado acima, que a
produção antecipada de provas, embora não tenha caráter constritivo, pode gerar
interferência na esfera privada – e normalmente essa interferência está presente – de
terceiros, que deverão ser citados para participarem do referido procedimento e poder
interferirem na decisão judicial que irá lhes imputar limitações ao direito de privacidade
por meio do exercício do contraditório.
Curioso notar que o próprio legislador só admite a participação do réu quando houver o
aspecto contencioso, mas impede que este ofereça defesa ou recursos. A incongruência
entre normas inseridas no mesmo artigo é gritante.
Quanto à vedação ao recurso, está já nasce eivada de grave inconstitucionalidade, uma vez
que fecha totalmente as portas do réu à via recursal, e conforme aduzido pelo Prof. Bruno
Silveira, com a clareza que é característica, é “inconstitucional uma lei que revogasse por
completo os recursos que propiciam o duplo grau de jurisdição: porque há outros meios –
igualmente capazes de fomentar a celeridade processual – que, todavia, não afrontam o
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conteúdo de direitos fundamentais, como o direito ao amplo acesso à justiça (art. 5º,
XXXV, CF/88)”.30
Além de limitar totalmente os recursos para o réu, restam também limitadas as hipóteses de
recurso do autor para aqueles casos em que tenha havido o indeferimento total ou parcial,
aparentemente eliminando a possibilidade até mesmo de embargos de declaração.
Quanto às aberrantes limitações ora tratadas o único caminho para evitar que sejam
futuramente declaradas inconstitucionais é retirá-las do código, passando a reputar
obrigatória a participação daquele sobre quem pode recair eventuais ônus da produção da
prova, ao invés de deixar a cargo do arbítrio do magistrado verificar a existência ou não do
caráter contencioso.
Da mesma forma, quanto ao §4º seria admissível – caso o legislador repute indispensável –
limitações parciais à recorribilidade, mas nunca o total cerceamento ao recurso. Tal medida
além de limitar, como dito, o amplo acesso à justiça vai no caminho contrário do escopo do
procedimento ora estudado, que é o de evitar que uma futura demanda seja ajuizada, ou
que demandas temerárias sejam ajuizadas sem elementos robustos, o que só irá abarrotar
ainda mais as prateleiras dos cartórios judiciais.
Por fim, é importante ter em mente que não é a vedação do recurso ou do contraditório
nessa esfera que irá tornar mais célere a prestação jurisdicional, uma vez que eventuais
questionamentos reprimidos irão refletir em uma futura demanda judicial ainda mais
conturbada, na qual todos esses pontos – que caso resolvidos poderiam, inclusive, evitar o
seu ajuizamento – serão levantados.
5. Conclusão
À guisa de conclusão, é de se notar que o procedimento, na forma que lhe foi atribuída
pelo projeto, põe fim a algumas discussões que somente se prestavam a tumultuar a
prestação jurisdicional. Além disso, adota a premissa da existência do direito autônomo à
prova, o que a nosso ver parece acertado.
Importante destacar que o próprio projeto passou a prever hipóteses em que o
procedimento será meio de alcançar vias mais céleres da prestação jurisdicional, como se
pode vislumbrar na previsão do art. 715, §2º do projeto que admite como prova
30 OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Duplo grau de jurisdição: princípio constitucional? Revista de Processo,
São Paulo; Vol. 162, Ago. 2008. p. 378.
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documental, para instruir a Ação Monitória, a prova oral colhida em procedimento de
produção antecipada de prova.
Ademais, a unificação das diversas “vias” de produção antecipada de prova seguiu a linha
adotada pelo projeto ao buscar a simplificação do procedimento. Contudo, agiu mal ao
prever hipóteses de limitação do contraditório e da ampla defesa, o que não se prestará a
garantir uma tutela mais célere, consistindo tão somente uma limitação inconstitucional
que deve ser extirpada do projeto.
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O JUSTO PROCESSO ARBITRAL E O DEVER DE REVELAÇÃO
(DISCLOSURE) DOS PERITOS
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro
Professor Titular de Teoria Geral do Processo da Faculdade
de Direito da UERJ. Procurador de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro aposentado. Advogado.
Leonardo Faria Schenk
Professor Doutor de Direito Processual Civil do Centro
Universitário La Salle do Rio de Janeiro
(UNILASALLE/RJ). Advogado.
RESUMO: O presente estudo examina e conclui, à luz princípios fundamentais do
processo justo, pela necessária aplicação do dever de revelação (disclosure) aos peritos
nomeados no curso da arbitragem, ainda que não exista regra legal ou convencional
expressa, bem como pelo direito de recusa das partes sempre que exista dúvida razoável e
justificada quanto à independência e imparcialidade do expert, sob pena de se
comprometer as conclusões da prova pericial e a própria sentença arbitral que dela venha a
retirar fundamento.
PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Processo justo. Princípios. Dever de revelação
(disclosure). Peritos.
ABSTRACT: This article examines and concludes, in light of the fundamental principles
of fair trial, that it is necessary to apply the duty of disclosure on the experts appointed
during the course of arbitration proceedings, even if there is no express legal or contractual
rule on this matter, and of the right of the parties to challenge the independence and
impartiality of experts, any time there is reasonable doubt in this respect, under pain of
undermining the conclusions of the experts and the arbitral award itself, which relies on
expert findings.
KEYWORDS: Arbitration. Fair trial. Principles. Duty of disclosure. Experts.
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Parte 1. Princípios fundamentais do processo que regem a arbitragem
O primeiro de todos os princípios que regem a arbitragem é o princípio da
confiança. A opção pela arbitragem em detrimento da justiça estatal, estabelecida de forma
cogente, decorre necessariamente da confiança que as partes têm nos árbitros, nos seus
auxiliares e na própria justiça arbitral, por elas mesmas escolhida e constituída.
A confiança é de tal ordem na arbitragem que as partes renunciam a uma série de
oportunidades que a justiça comum lhes concede, a exemplo dos recursos diversos e das
ações próprias para desconstituir a coisa julgada, estas com um grande elenco de
fundamentos, para sujeitarem-se, em regra, a uma única decisão sem a possibilidade de
apelo.
Por essa razão, a confiança deve existir não apenas no momento da instituição da
arbitragem e na escolha dos árbitros, mas necessariamente deve ser alimentada pelo
tribunal arbitral durante todo o procedimento, seja pela realização das chamadas pre-
hearing conferences, seja pela busca de alternativas instrutórias que se aproximem, o mais
possível, das expectativas das partes, instaurando desse modo uma atmosfera cooperativa
para que a arbitragem se desenvolva num clima de absoluta confiança na justiça do meio e,
consequentemente, do seu resultado.1
A adesão à convenção de arbitragem implica em compromisso pelas partes de
respeito a esse princípio, não apenas no momento da constituição do Tribunal Arbitral, mas
durante todo o desenrolar do seu procedimento.
Como corolário do princípio da confiança há outros igualmente importantes no
campo arbitral, como é o caso da consensualidade e, também, da plena autonomia da
vontade das partes. Não à toa que podem as partes escolher o tribunal arbitral de sua
preferência, estabelecer a lei material que será aplicável ao caso, convencionar sobre as
regras do procedimento e sobre o idioma a ser usado, indicar o local de realização da
arbitragem, escolher os árbitros e, até mesmo, autorizar o julgamento por equidade.
Na lição de Francesco Luiso, a consensualidade, mesmo das normas processuais,
constitui o princípio básico da arbitragem, devendo prevalecer durante todo o curso do
1 Tobias Zuberbühler et alii. IBA Rules of Evidence - Commentary on the IBA Rules on the taking of evidence
in International Arbitration. Zurich: Ed. Schulthess, 2012. p.14.
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procedimento arbitral e não apenas em um ato antecedente ao início do processo.2
A escolha pela solução arbitral é fruto da livre manifestação de vontade das partes
e essa liberdade também rege todo o processo arbitral. Como decorrência do princípio da
autonomia da vontade ou do dispositivo, as partes livremente adotam um determinado
procedimento ou aderem ao procedimento de uma determinada instituição arbitral e, nos
vazios dessas regras, elas devem, sempre de comum acordo, continuar senhoras do
processo arbitral, adotando todas as providências que contribuam para a confiança no
julgamento final.3
Tais premissas indicam a necessidade e a importância, em especial na arbitragem,
do princípio da boa-fé.4
Não é ocioso recordar que a boa-fé é um princípio geral de direito, aplicável a
todas as relações jurídicas5. Há quem a associe à própria dignidade humana
6, sendo
relevante a sua importância, ao lado da segurança jurídica, como fiadora do princípio da
confiança legítima7. A doutrina atualmente divide a boa-fé em subjetiva e objetiva. A
primeira é uma “qualidade reportada ao sujeito”8; é a crença do sujeito de que seu
comportamento está em conformidade com o direito e que de nenhum modo ofende aos
direitos de outrem9. Jäggi, citado por Menezes Cordeiro, a define como a “não-consciência
do injusto, apesar de uma falha no direito”10
.
2 Francesco P. Luiso. Diritto Processuale Civile. La resoluzione non giurisdizionale delle controversie. v. V.
6ª ed. Milano: Giuffrè, 2011, p. 164. 3 Discorrendo sobre a arbitragem na Espanha, após as reformas de 2003 e 2011, Enrique César Pérez-Luño
Robledo leciona: "La voluntad de las partes es el principio que inspira todo el procedimiento arbitral. No sólo
como elemento originador del arbitraje, sino que hace prevalecer la autonomía de la voluntad de las partes
incidiendo en cuestiones como: el procedimiento para la designación o recusación de los árbitros, las reglas
de procedimiento que rigen su actuación (...), en general la autonomia de la voluntad de las partes preside
cualquier cuestión procedimental, el limite lo imponen los principios de igualdad, audiencia y contradicción."
Enrique César Pérez-Luño Robledo. La reforma del arbitraje de 2011 - Presupuestos, antecedentes y
alcance. Valencia: Ed. Tirant lo Blanch, 2013. p. 49 4 Sobre as dificuldades para a conceituação da boa-fé processual, cf., por todos: Joan Picó i Junoy. El
principio de la buena fe procesal. Barcelona: Bosch Editor, 2003. p. 66-72. 5 António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Da boa fé no Direito Civil. 3ª reimpressão. Coimbra: Ed.
Almedina, 2007. p. 371 e ss.; e Antônio Junqueira de Azevedo. Responsabilidade Pré-Contratual no Código
de Defesa do Consumidor; Estudo Comparativo com a Responsabilidade Pré-Contratual no Direito Comum.
In: Cadernos de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UERJ, n° 2, abr. 1996. 6 Teresa Negreiros. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de
Janeiro: Ed. Renovar, 1998. p. 282. 7 Sylvia Calmes. Du príncipe de protection de la confiance legitime en droits allemand, communautaire et
français. Paris: Ed. Dalloz, 2001. p. 231 e ss. 8 Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 407. 9 Eduardo Ribeiro de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. v II. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008. p.
251-252. 10 Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 411.
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Entretanto, não é a esse aspecto a que se refere a doutrina quando exalta o
princípio jurídico da boa-fé, mas ao da chamada boa-fé objetiva em que, evitando o risco
do subjetivismo e a impenetrabilidade da consciência humana, a sua aferição decorre do
exame da observância das regras de conduta que são normalmente esperadas dos sujeitos
de determinada relação jurídica.
Eduardo Ribeiro de Oliveira leciona11
:
Trata-se, aqui, de algo externo ao agente. Não se leva em conta o que é
percebido e apreendido por sua mente, mas se consideram determinados
parâmetros ligados à convivência social. Vincula-se ao dever de lealdade
que se pode razoavelmente esperar de quem participa do comércio jurídico.
Diz com um comportamento informado por padrões de correção, de
probidade, tendo em vista o que, em dado momento histórico, seja reputado
eticamente recomendável.
A origem dessa noção, consagrada no art. 113 do Código Civil de 2002, é o § 242
do Código Civil alemão, segundo o qual “o devedor é obrigado a cumprir a prestação com
observância da boa fé, tomando em consideração os usos do tráfego jurídico”12
.
É hoje indiscutível a extensão desses conceitos ao direito processual civil.
Conforme lição de Luigi Paolo Comoglio, está inteiramente superada a perspectiva
processual da primeira metade do século XX, simbolizada na expressão de James
Goldschmidt de que no Processo, como na Guerra e na Política, a Moral não entra13
. A
constitucionalização do direito processual, o seu enraizamento na teoria dos direitos
fundamentais, a emergência da noção de processo justo, caracterizado pelo primado das
garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, como exigências do
respeito à pessoa e aos seus direitos essenciais14
, exaltam a obrigatoriedade do respeito ao
princípio da boa-fé.15
11 Eduardo Ribeiro de Oliveira. Obra citada, p. 252. 12 Cf.: § 242. "Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit
Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern”.
Menezes Cordeiro ensina que, se “as regras de conduta foram cumpridas: há boa fé; não o foram, surge a má
fé". Menezes Cordeiro. Obra citada, p. 524. 13 James Goldschmidt, Der Prozess als Rechtslage, Berlin: Ed. Julius Springer, 1925, p. 292. 14 Luigi Paolo Comoglio. Etica e tecnica del giusto processo. Torino: Ed. G. Giappichelli, 2004. p. 3-8.
A partir desse quadro, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro desenvolve a noção de solidariedade entre as partes.
Cf.: Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. A ética e os personagens do processo. Revista Forense, Rio de Janeiro, separata, v. 358. p. 347-353. 15 Joan Picó i Junoy, na Espanha, aponta o surgimento do princípio da boa-fé na Alemanha, a partir da
exegese do § 138 da ZPO, citando a lição de Lent, que a ele se referiu como um dos princípios “cardinais de
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É evidente que na arbitragem esse princípio tem uma importância abissal,
especialmente na instrução probatória, como, aliás, destaca o parágrafo 3° do preâmbulo
das Regras sobre Prova da International Bar Association, segundo o qual “the taking of
evidence shall be conducted on the principles that each Party shall act in good faith”.16
E
na medida em que a opção pela consensualidade deve ter, necessariamente, como
contrapartida indispensável um comportamento ético, leal e solidário entre as partes,
nenhuma delas poderá valer-se de um artifício formal para colocar-se em situação de
vantagem ou mesmo de simples preponderância em relação à outra.
Da boa-fé e da confiança legítima dela resultante decorre, para alguns, a proibição
de comportamentos contraditórios pelas partes (nemo potest venire contra factum
proprium). De acordo com Enrique Vallines Garcia, sua configuração exigiria uma
conduta de um sujeito e a sua intrínseca incompatibilidade com o posterior exercício de um
poder processual17
.
Ora, numa relação jurídica dinâmica, como é o processo judicial ou arbitral, não é
razoável admitir que seja previsível que, ao praticar de boa-fé um ato do processo que o
tribunal determinou que fosse concorrentemente praticado pelo seu adversário, uma das
partes tenha de antemão renunciado ao direito de impugnar o ato praticado pela outra, cujo
conteúdo de antemão ignora, com evidente má-fé. Cada uma das partes na relação
processual ou arbitral e os próprios julgadores têm o direito de exigir que ambas as partes
se comportem com probidade e boa-fé, o que torna imperiosa a possibilidade de que a parte
prejudicada impugne as condutas maliciosas da parte adversa e a necessidade de que o
tribunal coíba com energia essas condutas.
O critério cardeal para a proibição do venire contra factum proprium está,
portanto, na imputação ao sujeito de conduta contraditória em relação ao que expressa e
conscientemente tenha anteriormente afirmado.18
Por outro lado, a aplicação do venire exige a prática de um comportamento
anterior gerador da expectativa legítima do adversário de que o comportamento posterior
não ocorrerá, gerando no adversário o direito de pautar a sua conduta em função da
referida expectativa, de modo que a prática do comportamento posterior imprevisto
todo sistema processual”. Joan Picó I Junoy. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: Ed. J.M.Bosch,
2003, p. 51. 16 Tobias Zuberbühler et alii. Obra citada, p. 1-6. 17 Enrique Vallines García. La preclusión en el proceso civil. Madrid: Thomson Civitas, 2004. p. 249. 18 Menezes Cordeiro. Obra citada, p.756.
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provoque uma iniquidade não remediável.19
Outro princípio fundamental da arbitragem, implicitamente exigido pelo art. 21, §
2°, da Lei de Arbitragem brasileira, ao se referir aos seus componentes (contraditório,
igualdade e imparcialidade), é o princípio do devido processo legal.20
Também o contraditório, com as suas diversas manifestações – a audiência
bilateral, a igualdade das partes e a paridade de tratamento, a imparcialidade dos árbitros,
seu dever de fundamentação e livre convencimento – são pedras de toque do procedimento
arbitral, universalmente reconhecidos.
Mais do que isto, essas manifestações assumem um destaque e uma sensibilidade
muito mais intensos do que no procedimento judicial comum, na medida em que, em regra,
são sustentáculos da confiança na qualidade e aceitabilidade da decisão final, que deve ser
o resultado de um rito que reduza ao máximo as possibilidades de erro, não só porque
livremente adotado e conduzido pelas partes, mas também porque o seu respeito é que
justificará o caráter irrecorrível da decisão final, restando aos envolvidos, tão somente, o
difícil e penoso caminho da ação anulatória, já com o fato consumado. Por isso, devem ser
asseguradas pelo tribunal arbitral em todas as fases do procedimento e observados em
todas as suas decisões.21
Como ensina Sergio La China, as nulidades em que é possível incorrer a
arbitragem por violação da garantia do contraditório não são predeterminadas e taxativas,
mas podem ocorrer em hipóteses várias, que normalmente se exteriorizam no desequilíbrio
entre as prerrogativas das partes e no desrespeito à paridade de armas, que está nas
entranhas do processo arbitral.22
19 Menezes Cordeiro. Obra citada. p.758. 20 Pedro Batista Martins leciona que, “em hipótese alguma poderá ser violado o devido processo legal. Tanto
o processual quanto o substantivo. É um bem jurídico de titularidade de toda e qualquer pessoa. É uma garantia de direito natural." Pedro A. Batista Martins. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de
Janeiro: Ed. Forense, 2008. p. 236 21 Cf.: o art. 17 das Regras de Arbitragem da UNCITRAL e o art. 22.4 do Regulamento de Arbitragem da
Câmara de Comércio Internacional – CCI. 22 Sergio La China. Le nullità nel procedimento arbitrale. In Rivista di Diritto Processuale. Padova:
CEDAM, 1986. p. 313-314.
A respeito da aplicação da Lei de Arbitragem espanhola, Lorca Navarrete afirma: "El irreductible núcleo
procesal con el que opera la Ley de Arbitraje es absolutamente esencial e imperativo por lo que no es posible
derogarlo. En la Ley de Arbitraje poseen ese carácter los principios esenciales de audiencia, contradicción e
igualdad entre las partes a los que, en todo caso, han de justarse las actuaciones arbitrales (art. 24 LA) ya que,
según el artículo 24.1 LA, “deberá tratarse a las partes con igualdad y darse a cada una de ellas suficiente oportunidad de hacer valer sus derechos”. El carácter esencial de tales principios justifica la posibilidad de
pedir la anulación del laudo arbitral pronunciado infringiéndolos". Antonio Maria Lorca Navarrete. La
anulacion del laudo arbitral. San Sebastian: Ed. Instituto Vasco de Derecho Procesal, 2008. p. 40.
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O contraditório, como princípio de observância obrigatória na arbitragem, além de
incluir necessariamente a audiência bilateral, estratifica-se na ideia de direito de influência,
ou seja, de que nenhuma decisão seja adotada pelos julgadores sem que tenha sido
assegurada a ambas partes a mais ampla possibilidade de influir eficazmente no seu
conteúdo.23
É a garantia dessa participação que confere legitimidade democrática ao poder
que a lei confere aos juízes e que as partes conferem aos árbitros e que justifica o respeito
que os litigantes devem prestar às suas decisões.
Não é despiciendo recordar que, além da sua expressa previsão na atual Lei de
Arbitragem (art. 21, §2°), o contraditório constitui cláusula pétrea no rol dos direitos
humanos fundamentais (Constituição, art. 5°, LV) e se manifesta e concretiza no direito de
apresentar alegações, propor e produzir provas, participar da produção das provas
requeridas pelo adversário ou determinadas de ofício pelo juiz e exigir a adoção de todas as
providências que possam ter utilidade na defesa dos seus interesses, de acordo com as
circunstâncias da causa e as imposições do direito material.24
A busca da verdade, como meio de acesso ao direito, porque dos fatos é que se
originam os direitos, passa a integrar o próprio direito de defesa, um dos componentes do
contraditório, o direito de defender-se provando,25
como resultado da necessidade de se
garantir às partes a adequada participação no processo, sendo o seu objetivo, não a defesa
em sentido negativo, mas a efetiva influência na decisão (Einwirkungsmöglichkeit).26
Outra projeção do princípio do contraditório é a garantia denominada de
igualdade concreta, que nada mais é do que a aplicação ao processo judicial e também ao
arbitral do direito fundamental à igualdade, inscrito no caput do artigo 5° da nossa Carta
Magna. As partes devem ser tratadas com igualdade, de tal modo que desfrutem
concretamente das mesmas oportunidades de sucesso final, em face das circunstâncias da
23 Sobre o tema, cf.: Leonardo Greco. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In: Revista
Jurídica, ano 51, mar. 2003, n. 305, São Paulo: Ed. Notadez. p. 61-99; Leonardo Greco. O princípio do
contraditório. In: Revista Dialética de Direito Processual, n. 24, mar. 2005, São Paulo: Ed. Dialética, p. 71-
79. 24 Leonardo Greco. Garantias Fundamentais do Processo... p. 61-99. 25 Leonardo Greco. A prova no Processo Civil: do Código de 1973 até o novo Código Civil. In: Revista
Forense, v. 374, 2004, Rio de Janeiro: Ed. Forense, p.183-199. 26 Nicolò Trocker. Processo Civile e Costituzione. Milano: Ed. Giuffrè, 1974. p. 370. No mesmo sentido:
Luiz Guilherme Marinoni. Novas linhas do processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993.
p.167.
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causa.27
O contraditório do nosso tempo nada mais é do que a projeção no processo, seja
ele judicial ou arbitral, do primado da dignidade humana, que exige que o poder de influir
nas decisões seja assegurado de fato, na prática, em concreto, e não apenas formalmente, a
todos os interessados.28
Esse poder se projeta na instrução probatória,29
assegurando aos interessados a
participação direta e pessoal, por seus assistentes ou por quaisquer outras pessoas de sua
confiança, nos atos e diligências que se destinam a esclarecer a verdade, para que a
colheita de provas seja a mais proveitosa possível e, assim, possa fornecer ao julgador os
elementos de convicção mais propícios a possibilitar um julgamento justo.
Em suma, para que se alcance um justo processo arbitral, nem o juiz, nem o
árbitro, nem o perito designado pelo juiz ou pelos árbitros, valendo-se de argumentos
formalistas, nem as partes, uma em relação à outra, podem restringir o alcance desses
princípios, em especial do direito de participação e influência, sob pena de nulidade das
decisões.
Parte 2. A aplicação do dever de revelação (disclosure) aos peritos nomeados no curso
da arbitragem
No artigo 13 da lei 9.307/1996, o legislador estabeleceu que o árbitro deve ser
pessoa capaz e "que tenha a plena confiança das partes". Normalmente os árbitros são
escolhidos de comum acordo pelas partes. Em regra, cada parte indica um árbitro e, em
seguida, os indicados escolhem o terceiro árbitro, considerado, por alguns doutrinadores de
peso, como árbitro neutro.
Justamente pela circunstância de que o princípio da confiança é regente do
procedimento arbitral foi que o legislador brasileiro, assim como a generalidade das
legislações e regras de instituições ou de órgãos especializados em arbitragens, exige do
árbitro o dever "de revelar antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida
justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (Lei 9.307/1996, artigo 14, § 1°).
Aqui, diferentemente da justiça comum, a essência da arbitragem exige que não
27 Carmine Punzi leciona que a regra da paridade de armas se considera violada, de acordo com a
jurisprudência da Corte de Cassação italiana, “quando le parti non hanno potuto esercitare su un piano di
uguaglianza le facoltà processuali concesse dagli arbitri”. Carmine Punzi. Disegno sistematico
dell’arbitrato. v. II, 2ª ed. Padova: CEDAM, 2012, p. 560. 28 Cf.: Leonardo Greco. O princípio do contraditório... p. 71-79. 29 Sobre a importância do contraditório na arbitragem, especialmente pela garantia do direito à prova, cf.
Alexandre Freitas Câmara. Arbitragem – Lei n° 9.307/96. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.84-86.
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exista nenhuma, ou melhor, a menor dúvida sobre a independência e a imparcialidade do
árbitro.
Em razão da indispensável confiança, a independência e a imparcialidade do
árbitro devem ser avaliadas objetivamente, não só a partir de fatos concretos, mas também
de aparências, independentemente das suas intenções. Como corretamente leciona Guy
Keutgen, professor da Universidade de Louvain e presidente do Centro Belga de
Arbitragem e Mediação (CEPANI), tratando da matéria no direito belga, em tradução
livre:30
A apreciação objetiva deve ser privilegiada pois somente ela permite
excluir qualquer suspeita ou interrogação concernente ao árbitro e
salvaguardar a necessária confiança que ele deve inspirar nas partes. Isto
leva a rejeitar um árbitro desde que uma circunstância ou um vínculo
determinado seja de natureza a alterar o seu julgamento. Isto corresponde
a dizer, na linha da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos
Humanos, que sublinha “a importância atribuída às aparências e à
sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça”, que a
aparência de independência do árbitro é essencial, independentemente de
suas verdadeiras intenções.
Existem inúmeras regras éticas espalhadas em regulamentos diversos que
enumeram uma série de situações que podem denotar a imparcialidade ou a falta de
independência do árbitro, como, por exemplo, o fato de o árbitro ter tido, ainda que no
passado, qualquer relação comercial com uma das partes ou com empresas integrantes do
grupo e mesmo com pessoas a eles vinculadas, inclusive de natureza pessoal, para
justificar a recusa da indicação desse árbitro.
Assim, por exemplo, a International Bar Association, em 2004, após longos
estudos de comissão de especialistas das mais diversas partes do mundo, editou as suas
Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration, nas quais, seguindo
exemplo de legislações de alguns Estados americanos como a Califórnia e o Texas, dividiu
em três listas (vermelha, laranja e verde) os fatos que devem ser revelados pelos árbitros e
que justificam a sua recusa por qualquer das partes.
30 Guy Keutgen. L’indépendance et l’impartialité de l’arbitre en droit belge. In: Jacques van Compernolle e
Giuseppe Tarzia, L’impartialité du juge et de l’arbitre. Bruxelles: Ed. Bruylant, 2006. p. 282.
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Dessas longas listas, podem ser destacadas duas elucidativas situações, a saber,
também em tradução livre:31
2.3.8 O árbitro tem uma relação familiar íntima com uma das partes ou
com um gerente, diretor ou membro do conselho superior ou com
qualquer outra pessoa que tenha uma posição decisória similar em uma
da partes, em uma de suas afiliadas ou no escritório de advocacia que
representa uma parte.
...
3.4.3 Existe uma íntima amizade pessoal entre o árbitro e um gerente,
diretor ou membro do conselho superior ou qualquer outra pessoa que
tenha uma posição decisória similar em uma das partes, em uma de suas
afiliadas, bem como uma testemunha ou perito, evidenciada pelo fato de
que o árbitro e essa outra pessoa convivem juntos durante tempo
considerável fora das suas atividades profissionais ou das atividades de
associações profissionais ou de organizações sociais.
Com efeito, o princípio da confiança é absolutamente incompatível com a
existência de uma dúvida justificável sobre a independência e imparcialidade do árbitro
que irá julgar a causa. Aqui, diferentemente da justiça comum, apesar de a ela também ser
aplicável, o legislador exige muito mais para a permanência do árbitro.
Seria absolutamente ilógico, a brigar com o bom senso, afirmar que os casos para
a recusa do árbitro seriam somente aqueles enumerados no Código de Processo Civil
(artigos 134 e 135), como impedimentos e motivos de suspeição. Não haveria, nesta
hipótese, qualquer razão para a existência do dever de revelação de fato que possa indicar
dúvida justificada quanto à independência e imparcialidade do árbitro.
A regra, universalmente aceita, é no sentido de que se existe esta dúvida razoável
e que deve ser indicada pelo próprio árbitro, qualquer das partes pode recusá-lo ou não. Do
mesmo modo, caso o árbitro não revele fato que possa ser tido como dúvida razoável ou
justificável sobre a sua independência ou imparcialidade, compete à parte pedir a sua
31 Cf.: IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Disponível em:
www.ibanet.org/Document. Consultado em 20 maio 2013. Ver, ainda: Thomas Clay, L’indépendance et
l’impartialité de l’arbitre et les règles du procès équitable. In: Jacques van Compernolle e Giuseppe Tarzia, L’impartialité du juge et de l’arbitre. Bruxelles: Ed. Bruylant, 2006. p.222-223; Stefan Rützel, Gerhard
Wegen e Stephan Wilske. Commercial dispute resolution in Germany - litigation, arbitration, mediation.
München: Verlag C.H. Beck, 2005. p.123.
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manifestação, para, se for o caso, promover o incidente próprio de suspeição ou de
impedimento.
A preocupação com a confiança levou legislações de países diversos e de
institutos especializados a estabelecer que o árbitro neutro não deve ter a mesma
nacionalidade das partes em disputa. Aqui, tem-se um exemplo eloquente de que no
procedimento arbitral não se pode correr nenhum tipo de risco sobre a existência de um
fato que possa representar uma dúvida razoável sobre a independência e a imparcialidade
do árbitro.
Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, em sua clássica obra sobre a Arbitragem
Comercial Internacional, já apontavam diversas legislações e regulamentos arbitrais que,
uniformemente tratando do tema, estabelecem que os árbitros podem ser recusados se
existem circunstâncias que originam uma dúvida justificável sobre a sua imparcialidade.32
Por outro lado, a escolha dos árbitros deve preservar a paridade de armas. Assim,
se as partes porventura tiverem concordado que essa escolha recaia sobre árbitro indicado
por apenas uma das partes, tal decisão não escapará da censura judicial, porque violaria o
princípio da igualdade que uma das partes desfrutasse de uma posição de preponderância
em relação à outra33
.
Ressalte-se que também a conduta do árbitro no curso da arbitragem pode
comprometer a sua imparcialidade. Assim, a justiça inglesa removeu árbitro que acusou
uma das partes de conduta deliberadamente procrastinatória, não deu ouvidos às suas
alegações e insistiu em agendar a audiência para data em que as partes não estavam em
condições de defender-se adequadamente, porque a finalidade da arbitragem, de acordo
com o artigo 1(a) da Lei de Arbitragem do Reino Unido, é obter uma resolução justa da
32 Cf.: Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio. Direito Internacional Privado (Parte Especial) – Arbitragem Comercial Internacional. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, que reproduz o Código Judicial da Bélgica, art.
1690 (p. 665); o Código de Processo Civil Alemão, art. 1036 (p. 646); o Código de Arbitragem Comercial do
Canadá, art. 12 (p. 699); a Lei de Arbitragem de Israel, art. 11 (p. 746); o Código de Processo Civil dos
Países Baixos, art. 1.033 (p. 765); a Lei de Arbitragem do Reino Unido, seção 24.1 (p. 803); a Lei Modelo da
UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law) sobre Arbitragem Comercial
Internacional, art. 12 (p. 868); o Regulamento de Arbitragem da Corte de Arbitragem da Câmara de
Comércio Internacional (CCI), arts. 7° e 11 (p. 941 e 943); as Regras de Arbitragem da World Intellectual
Property Organization (WIPO), art. 24 (p. 964); as Regras de Arbitragem Internacional da American
Arbitration Association, arts. 7° e 8° (p. 995 e 996); as Regras de Arbitragem da London Court of
International Arbitration, art. 10.3 (p. 983); as Regras de Processo da Inter-American Commercial Arbitration
Commission (IACAC), art. 6° (p. 1007); e o Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), art. 6.1 (p. 1044). 33 V. Stefan Rützel. Gerhard Wegen e Stephan Wilske, Commercial dispute resolution in Germany -
litigation, arbitration, mediation. München: Verlag C.H. Beck, 2005. p. 119.
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controvérsia por um tribunal imparcial. Não é necessária a prova da parcialidade. Basta a
dúvida ou o perigo concreto de que a conduta dos árbitros tenha tratado uma das partes de
modo menos favorável do que a outra.34
Todas as regras e princípios estabelecidos, e expostos na primeira parte deste
estudo, aplicam-se, também, aos peritos indicados pelas partes ou pelos árbitros, pouco
importando a existência ou não de dispositivo legal ou convencional expresso.
Como é notório, o juiz ou o árbitro se valem de um perito para a prova de fatos
relevantes que dependem de conhecimentos altamente especializados de natureza técnica
ou científica, os quais excedem a capacidade cognitiva do juiz. Exercem os peritos uma
função auxiliar da própria atividade judicial.35
Como tem acentuado a Corte de Cassação francesa em diversas arestos, seguindo
a influência da Corte Europeia de Direitos Humanos, a função do perito cada vez mais se
aproxima da função de julgar e, assim, a ele devem ser aplicados os mesmos requisitos de
independência e imparcialidade exigidos do juiz.36
O trabalho do perito e o seu laudo, especialmente naquelas hipóteses em que se
exigem conhecimentos técnicos e científicos que poucos profissionais possuem, como é o
caso de ramos especializados da engenharia, são fundamentais para o desfecho da causa,
até mesmo para determinar a procedência ou improcedência de um pedido, estabelecer ou
não nexo de causalidade ou a fixação de valores vultosos que deverão caber às partes.
Pode-se afirmar que, nestas hipóteses, a elucidação direta do fato probando cabe
ao perito, cabendo ao juiz e ao árbitro aceitá-lo ou designar outro perito para dirimir
eventuais dúvidas, em razão da falta completa de conhecimentos técnicos para formular
conclusão diversa. O julgador não tem conhecimentos técnicos para contrariar a convicção
formada pelo perito. Daí porque a independência e a imparcialidade do perito indicado
pelo juízo ou pelo tribunal arbitral é inafastável e tão importante quanto a do próprio juiz
ou árbitro.
Aliás, sempre ressalvando a autonomia da vontade das partes, os regulamentos
arbitrais, de um modo geral, estabelecem que os peritos estão sujeitos às mesmas regras
34 Karen Tweeddale & Andrew Tweeddale, A practical approach to arbitration law. London: Blackstone
Press Limited, 1999. p. 109-110. 35 Moacyr Amaral Santos. Prova Judiciária no Civel e Comercial. v. V. São Paulo: Ed. Max Limonad, s/d, p. 34. 36 Olivier Leclerc. Le juge et l’expert – contribution à l’étude des rapports entre le droit et la science. Paris:
Ed. LGDJ, 2005. p.265.
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que disciplinam a verificação da independência e da imparcialidade dos árbitros. E nem
poderia ser diferente, porque dispensar o perito da observância dessas regras poria por terra
toda a principiologia da arbitragem, imposta pela necessidade de assegurar em todo o
processo a preservação da confiança das partes.
Por isso, os mesmos fatos que objetivamente comprometem a independência ou a
imparcialidade dos árbitros, afetam a independência ou imparcialidade do perito, devendo
ser por ele revelados e podendo levar à sua recusa por qualquer das partes, tenham ocorrido
anteriormente ao processo arbitral ou no seu curso.
Esses motivos não são apenas os que resultam de vedações expressas da lei
processual civil, que se aplica subsidiariamente e à falta de regras próprias no
compromisso arbitral ou no regulamento da instituição arbitral, mas quaisquer outras
circunstâncias que possam pôr em dúvida a imparcialidade do expert, como as relações
pessoais ou profissionais anteriores mantidas com as partes ou com os seus agentes.
A recusa do tribunal arbitral em reconhecer esse risco, e até mesmo em justificá-
la, constitui flagrante violação do princípio do devido processo legal.
O processualista italiano Sergio La China leciona que o perito (consulente tecnico
d’ufficio), tanto nos processos judiciais quanto nos arbitrais, é um verdadeiro e próprio
istruttore delegato, que, não só fornece, com a sua específica preparação técnica, resposta
aos quesitos que lhe são propostos, mas antes e em grande escala pesquisa e adquire
informações, dados, documentação sobre todos os aspectos da controvérsia, com muito
mais profundidade do que o próprio juiz ou do que os próprios árbitros. Por isso, como
estes, o perito tem a obrigação de abstenção nas situações que poderiam provocar a sua
recusa.37
Nesse sentido, por exemplo, é expresso o Código de Processo Civil alemão, no
§1049(3), ao determinar que o perito designado pelo tribunal arbitral preencha os mesmos
requisitos de imparcialidade e independência exigidos do próprio árbitro, aplicando-se-lhe
as mesmas regras de disclosure e os motivos de recusa do árbitro, inscritos nos §§1036 e
37 Sergio La China. L’arbitrato - il sistema e l’esperienza. 3ª ed. Milano: Giuffrè, 2007. p.179-180.
Quanto ao perito na arbitragem, é sábia a citação que Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto faz à opinião
respeitável de Emmanuel Gaillard, em obra de fôlego sobre a Arbitragem Comercial Internacional: " Like the
arbitrators, the expert must observe the principles of due process and equal treatment of the parties."
Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, Haia, 1999, p. 705, citado por Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto. As provas e a sua produção no procedimento arbitral sob o enfoque da
prática. In: Ana Luiza Baccarat da Motta Pinto e Karin Hlavnicka Skitnevsky. Arbitragem nacional e
internacional. Rio de Janeiro: Ed. Campus Elsevier, 2012. p.75
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1037(1) e (2).38
Também o Regulamento de Perícias da Câmara de Comércio Internacional, que é
a mais especializada e reputada instituição europeia de arbitragem, com sede em Paris,
submete os peritos aos mesmos deveres de revelação de quaisquer fatos ou vínculos que
possam gerar nas partes a mínima suspeita da sua parcialidade.
Por fim, entre nós, confirmando a tendência, o Regulamento de Arbitragem da
Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB) passou por reforma em 2010 para
explicitar formalmente a regra (item 8.8), antes decorrente da principiologia exposta no
presente estudo, de exigir dos peritos o mesmo rigor na demonstração da sua
independência e imparcialidade que é exigido dos árbitros, não bastando que estejam
afastadas as causas de impedimentos e os motivos de suspeição arrolados no Código de
Processo Civil.39
Conclusão
De tudo o quanto foi exposto, tem-se por aplicável ao expert nomeado no
processo arbitral o dever de revelação (disclosure) imposto aos árbitros, cabendo a todos
eles informar quaisquer circunstâncias que possam pôr em dúvida a sua independência e
imparcialidade, ainda que não exista regra legal ou convencional explícita nesse sentido,
sob pena de se comprometer, de modo irremediável, as conclusões da prova pericial e a
própria sentença arbitral que nela diretamente tenha se fundamentado.
Como decorrência do dever de revelação, as partes e o Tribunal Arbitral poderão
recusar o perito sempre que se confrontarem com fatos que indiquem a existência de
dúvida razoável e justificada quanto à sua independência e imparcialidade, não sendo
necessário, à luz dos princípios fundamentais do processo expostos ao longo do estudo,
38 Código de Processo Civil alemão (ZPO), em tradução livre: § 1049(3): “Ao perito designado pelo tribunal arbitral se aplicam os §§ 1036 e 1037(1) e (2)”. § 1036: “(1) Uma pessoa à qual se propõe a função de árbitro
tem de revelar todas as circunstâncias que possam gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade ou
independência. Um árbitro também é obrigado, desde a sua designação até o final do procedimento arbitral a
revelar tais circunstâncias às partes de forma imediata, se delas não tivera conhecimento anteriormente. (2)
Um árbitro somente pode ser recusado se ocorrem circunstâncias que dão lugar a dúvidas justificadas sobre a
sua imparcialidade ou independência, ou se não cumpre os requisitos exigidos de comum acordo pelas partes.
Uma parte pode recusar um árbitro por ela designado ou em cuja designação interveio somente pelos motivos
dos quais tomou conhecimento depois da designação”. § 1037 “(1) Ressalvado o disposto no item (3) abaixo,
as partes podem acordar um procedimento para a recusa de um árbitro. (2) Se não existe tal acordo, a parte
que quer recusar um árbitro tem de expor por escrito ao tribunal arbitral os motivos da recusa no prazo de
duas semanas depois do conhecimento da composição do tribunal ou de uma das circunstâncias referidas no § 1036(2). Se o árbitro recusado não se demite do cargo ou a outra parte não concorda com a recusa, então o
tribunal arbitral decide sobre a recusa”. 39 Disponível em: www.camarb.com.br. Consultado em: 15 maio 2013.
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que a causa da recusa esteja arrolada nas hipóteses numerus clausus dos artigos 134 e 135
do Código de Processo Civil.
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O SISTEMA DE PRECEDENTES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E
SUAS POSSÍVEIS REPERCUSSÕES NO DIÁLOGO DO PODER JUDICIÁRIO
COM OS DEMAIS PODERES.
Pedro Duarte Pinto
Mestrando em Direito Público pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ. Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Advogado.
RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o
sistema de precedentes a ser edificado no Novo Código de Processo Civil, utilizando como
parâmetros aqueles construídos pelo texto original do Projeto de Lei do Senado n.
166/2010 e a última versão da Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Paulo
Teixeira. Realizada esta exposição, buscar-se-á indagar sobre os possíveis reflexos que os
novos e reformulados institutos sobre precedentes vão gerar na dinâmica das relações entre
o Poder Judiciário e os demais.
PALAVRAS-CHAVES: Precedentes. Jurisprudência. Novo Código de Processo Civil.
Diálogos Institucionais. Poder Judiciário.
ABSTRACT: The following paper aims to conduct a brief analysis of the precedents
system to be built in the New Code of Civil Procedure, using as parameters those present
in the original text of Senate’s Draft Law no. 166/2010 and in the latest version of the
Chamber of Deputies, of the rapporteur of Rep. Paulo Teixeira. Held that, the article will
seek to inquire about the possible impacts that the new and reworked precedent institutes
will generate over the dynamics of the relationship between the Judiciary Power and the
others.
KEYWORDS: Precedents. Jurisprudence. New Civil Procedure Code. Institutional
Dialogues. Judiciary Power.
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SUMÁRIO: Considerações Iniciais. 1. Precedente, Jurisprudência e o sistema jurídico
brasileiro. 2. Precedentes nos Projetos do Novo Código de Processo Civil. 2.1. As normas
gerais sobre precedentes e jurisprudência no novo Código de Processo Civil. 2.2. Incidente
de resolução de demandas repetitivas. 2.3. Recurso extraordinário e a repercussão geral.
2.4. Julgamento liminar do mérito. 2.5. Tutela de evidência. 2.6. Remessa necessária e a
sua dispensa. 2.7. Dispensa da caução para as execuções provisórias de sentença. 2.8.
Atuação monocrática do relator. 2.9. Amicus curiae. 3. Possíveis Repercussões do Sistema
de Precedentes no Diálogo Institucional. 3.1. Repercussões para com o Poder Legislativo e
Executivo. 3.2. Repercussões na Relação entre o Poder Judiciário e as Agências
Reguladoras. Conclusões. Referências Bibliográficas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A preocupação com o aumento do número de demandas, com o fornecimento de
maior celeridade nos julgamentos, com a isonomia nas decisões que envolvem a mesma
questão de direito, ou ainda a própria efetividade dos tribunais em fornecer respostas aos
casos concretos são questões constantes no Direito Processual no Brasil.
Durante a evolução do sistema jurídico brasileiro, inúmeros institutos foram
concebidos na ânsia de solucionar tais problemas. Um deles foi a concessão de efeitos
vinculantes, impeditivos e persuasivos a decisões judiciais já tomadas, as quais orientariam
novos processos decisórios. Essa noção advém de uma gradual superação da distinção
entre o common law e o civil law1.
Embora mantenham uma origem comum, os sistemas do common law e do civil
law diferenciaram-se durante o passar dos séculos X, XI e XII.2. Nesse contexto, o civil law
vai surgir da sistematização de costumes e da jurisprudência, com uma matriz muito
assemelhada ao common law. No entanto, é com o advento da modernidade e ascensão do
direito positivo em contraposição com o direito natural que o civil law consolida-se em
uma posição afastada dos precedentes. 1 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral
del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 2 RAATZ, Igor. Considerações históricas sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para
o debate sobre a adoção de precedentes no direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de
2011
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Compreendendo seus problemas e vantagens, entretanto, sistemas originalmente
guiados pelas ideias de common law e civil law estão modificando suas premissas, como
forma de fornecer respostas aos problemas concretos que despontam nessas sociedades.
Nesse diapasão, enquanto no common law passa-se a fazer uso da codificação e de leis
escritas para a regulamentação de diversas áreas do Direito, o civil law adota a referência à
jurisprudência como um elemento normativo3.
Nesse contexto, nos sistemas de origem germânica a aproximação com o common
law foi motivada pelo crescimento da importância do Judiciário como instituição
republicana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, ocasionado pelo movimento
constitucionalista. Ao mesmo tempo, foram desenvolvidas teorias hermenêuticas que
atribuíram uma maior racionalidade às decisões judiciais, tornando-as estáveis e
confiáveis.
No Brasil, a aproximação para com o common law se origina na adoção de um
modelo de controle de constitucionalidade de inspiração americana, a partir da
Constituição de 1891, com um sistema difuso de judicial review4. É, contudo, com o
Código de Processo Civil (CPC) de 1973 e, especialmente, com a Constituição de 1988
que esse processo se acentua. Cria-se o controle de constitucionalidade com decisões
vinculantes a todo o Poder Público e instrumentos como a repercussão geral e os recursos
repetitivos que vinculam os Tribunais inferiores no processo de decisão.
Observa-se, assim, que no sistema brasileiro já não é certo que o civil law é um
direito de lei escrita, geral e abstrata, mas que avança sobre a discussão e uso de
precedentes pelos magistrados. E o sistema de precedentes vinculantes que o novo Código
de Processo Civil pretende edificar encaixa-se exatamente nesse contexto. Propõe, por
logo, um retorno às origens jurisprudenciais do civil law, com a decisão dos tribunais
influenciando a elaboração de normas pelo Legislativo.
3 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. p. 140. 4 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do direito no constitucionalismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 54-55.
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Frente a isso, conclui Michele Taruffo que “a contraposição da lei escrita com o
precedente já não existe e, sobretudo, já não serve para dividir o mundo em dois, as coisas
tornaram-se mais complexas”5.
Seguindo, portanto, a tendência de incorporação de decisões judiciais com força
normativa sobre outras, o sistema jurídico brasileiro passou a gozar das decisões
declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, das súmulas, súmulas
vinculantes, decisões monocráticas em tribunais, repercussão geral, recursos repetitivos,
entre outros. Essas evoluções foram desenvolvidas pelo Código de Processo Civil de 1973,
por leis ordinárias posteriores, ou ainda pela própria Constituição Federal de 1988.
Entretanto, esses institutos mostraram-se ineficientes – ou melhor, incompletos –
para lidar com a complexidade jurisdicional brasileira atual. Há um acúmulo de processos
nos tribunais, muitos dos quais pendem sobre a mesma questão jurídica6, mas que acabam
por receber decisões díspares, infringindo princípios sistêmicos como o da segurança
jurídica e isonomia7.
Surge, nesse quadro, o projeto de um novo Código de Processo Civil com
pretensões de realizar alterações no tratamento de precedentes já existente no Direito
brasileiro. Essas mudanças, todavia, não visam ao rompimento abrupto no sistema já
existente8, mas sim o aproveitamento de institutos vigentes, aperfeiçoando-os quando
5 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral
del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 6 Antônio Pereira Gaio Junior bem assevera que: “É cediço o volume de demandas que transbordam nas
secretarias das numerosas comarcas que compõem a estrutura do Poder Judiciário pátrio. Notadamente, boa
parte de ditas demandas relacionam-se com conflitos que possuem, em seu particular âmago, similitude na
causa de pedir, gerando, inegavelmente, lides envoltas em questões ora denominadas repetitivas”. GAIO
JUNIOR, Antônio Pereira. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo CPC:
Breves Apontamentos. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. pp. 248. No mesmo sentido afirma Ada Pellegrini: “a grande massa de processo que aflige aos tribunais, elevando sobremaneira o
número de demandas e atravancando a administração da justiça, é constituída em grande parte por causa em
que se discutem e se reavivam questões de direito repetitivas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. O tratamento
dos processos repetitivos. In: FARIA, Juliana Cordeiro de; JAYME, Fernando Gonzaga; LAUAR, Maira
Terra (coords.) Processo Civil: novas tendências. Estudos em homenagem ao Prof. Humberto Theodoro
Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. P. 1. 7 A violação a esses princípios possui repercussões sobre a própria estrutura institucional do Estado, veja-se:
“Não há Estado Constitucional e não há mesmo Direito no momento em que casos idênticos recebem
diferentes decisões do Poder Judiciário. Insulta o bom senso que decisões judiciais possam tratar de forma
desigual pessoas que se encontram na mesma situação.” MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010, p. 17-18. 8 As pretensões do projeto do novo Código de Processo Civil são bem destacadas por Arruda Alvim: “A
filosofia do PLS 166/2010, nas suas linhas mais gerais, é a seguinte: não se pretendeu fazer uma mudança
radical ou brusca, até porque mudanças radicais não se justificam e, se feitas, não geram resultados.
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necessário, bem como criando novos modelos para a resolução dessas demandas repetitivas
ou similares.
Os projetos do novo Código de Processo Civil, dessa forma, demonstram uma
intenção de resguardar a isonomia, a segurança jurídica, a celeridade e a resolução de
demandas de massa como princípios para orientar a prolação de decisões judiciais.
A exposição de motivos do Projeto de Lei do Senado n. 116/2010, resultado da
comissão de juristas convocada para a construção do Novo Código de Processo Civil,
assevera essas finalidades ao relatar que:
“Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo
mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto
de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito,
por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos
considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que
concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder
Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos
poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em
cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos
mortos” (= períodos em que nada acontece no processo). [...]
Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos
diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma
norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em
situações idênticas, tenham de submeter- se a regras de conduta
diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais
diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera
intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na
sociedade. [...]
Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo
ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula
Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de
julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários
repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar
estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que
Procurou-se manter o que seria aproveitável do Código vigente e incorporar novidades tendo em vista uma resposta mais atual aos problemas que afligem os operadores do Direito”. ALVIM, Arruda. Notas sobre o
Projeto de Novo Código de Processo Civil. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 191. jan. 2011. pp.
299-300.
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venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se
estabilize”. 9
No mesmo sentido escreve a exposição de motivos da versão do projeto do novo
CPC da Câmara dos Deputados, de relatoria do Deputado Paulo Teixeira, de maio de 2013,
ao afirmar que “afigura-se necessário criar uma disciplina jurídica minuciosa para a
interpretação, aplicação e estabilização dos precedentes judiciais, estabelecendo regras que
auxiliem na identificação, na interpretação e na superação de um precedente.” E continua:
“77ª) fica positivada a orientação para que os Tribunais velem pela uniformização e
estabilidade da jurisprudência, de modo a assegurar o tratamento isonômico para questões
iguais (art. 882, caput, I, II, III, IV)” 10
.
A construção de um sistema mais coerente de precedentes judiciais, assim,
apresenta-se, no plano processual, como uma melhor saída para a garantia da isonomia,
eficiência, legitimidade e segurança jurídica11
. Aliás, como já afirmado, são esses
princípios que se colocam como justificativas para o uso vinculativo de precedentes.
As decisões judiciais devem, assim, ser proferidas observando aquelas emanadas
anteriormente, garantindo uma continuidade e estabilidade para o próprio sistema jurídico.
Ao mesmo tempo, o juiz quando da prolação da decisão, deve fazê-lo com respeito a uma
pretensão de universalidade daquele conteúdo, observando a possibilidade de sua extensão
9 BRASIL. Senado Federal. Exposição de Motivos do PLS 166/2010. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias
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<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod _mate=97249>. Acesso em: 08 junho
2013. 10 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 11 Arruda Alvim, no contexto do Novo Código de Processo Civil, assevera que: “Outro ponto importante a
ser frisado é a estrema cautela do Projeto quanto à manutenção da segurança jurídica e da estabilidade da
jurisprudência. Procurou-se, como se verá mais adiante, incentivar a uniformidade da jurisprudência e sua estabilidade e, ao mesmo tempo, conferir maior rendimento (i.e. efetividade) a cada processo,
individualmente considerado”. ALVIM, Arruda. Notas sobre o Projeto de Novo Código de Processo Civil.
In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 191. jan. 2011. pp. 299-300.
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a casos similares. Com isso, respeita-se um ideal de tratamento isonômico a todos aqueles
que se encontrem na mesma situação12
.
Os projetos do novo Código de Processo Civil estão a surgir como resposta a
esses valores. Buscaram estruturar um sistema mais coerente de institutos envolvendo
precedentes, com novas concepções ou ainda com a reformulação de pontos já existentes.
Explora as funções persuasiva, obstativa e vinculante das decisões judiciais e delega a
todos os Tribunais – não apenas à Corte Suprema – o poder de proferir decisões
vinculativas de outras instâncias. É sobre esse novo fenômeno que se dedicaram as breves
linhas desse estudo.
Transpassadas essas questões introdutórias, há de se observar que no Brasil
prospera uma diversidade de textos doutrinários voltados à análise dos nossos precedentes
vinculantes, os quais, no entanto, focam nas decisões de controle de constitucionalidade e
negligenciam os precedentes firmados pelos demais Tribunais Superiores e até pelos
Tribunais estaduais. Com a iminência da aprovação do Novo Código de Processo Civil,
outro problema surge: como lidar com o reforço ao sistema de precedentes dado por esse
Código? Como as novas decisões vinculantes vão interferir nas relações entre o Poder
Judiciário e os demais? É sobre isso que tenta se refletir no presente artigo.
Buscar-se-á, assim, traçar uma análise sobre o sistema de precedentes judiciais
construído pelo projeto do novo CPC, a partir de um comparativo entre a versão original,
contida no Projeto de Lei do Senado n. 166/2010, e o último relatório da Câmara dos
Deputados, de maio de 2013, de relatoria do Deputado Paulo Teixeira, expondo as
diferenças e as tentativas de evolução entre os dois projetos com relação a essa matéria. E,
ao final, recair-se-á sobre o estudo da possibilidade de repercussão e interação com os
poderes Executivo e Legislativo quando da tomada de decisão vinculante por parte do
Judiciário.
12 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do direito no constitucionalismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 69-70.
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1. PRECEDENTE, JURISPRUDÊNCIA E O SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
Antes de se ingressar na análise dos sistemas construídos pelas versões dos projetos
do novo Código de Processo Civil, algumas noções básicas são de necessário tratamento,
haja vista as peculiaridades da cultura jurídica brasileira. Faz-se mister, aqui, traçar breves
linhas sobre o próprio conceito de precedente, sua diferenciação com a noção de
jurisprudência, bem como a enunciação de suas funções.
Há em nossa tradição jurídica, com ressalvas para o ambiente acadêmico, uma
tendência à confusão entre os conceitos de precedente e jurisprudência. Embora
usualmente identificados como sinônimos, algumas distinções qualitativas e quantitativas
devem ser feitas entre eles.
Quantitativamente, o precedente designa uma única decisão proferida em um caso
particular. Refere-se àquela que assumiu o caráter de precedente pela aplicação em casos
posteriores. A jurisprudência, por outro lado, vai remeter a uma pluralidade de decisões
tomadas à luz de diferentes casos concretos, o que dificulta a identificação daquela
relevante ao caso concreto, ou ainda, que permite que existam entendimentos
contraditórios dentro do mesmo conjunto de decisões13
.
Pelo viés qualitativo, por sua vez, o precedente é responsável por fornecer uma
regra “(universalizável, como foi dito) que pode ser aplicada como critério de decisão no
caso sucessivo em função da identificação ou – como acontece em regra – da analogia
entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso”14
. É o juiz do caso posterior o
responsável pela criação do precedente, uma vez que ao apreciar os fatos de seu caso
observará se a ratio decidendi daquele anterior poderá ser aplicada ao sucessivo. Se for,
estará fundado o precedente.
13 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.
2011. pp.142-143. [No mesmo sentido: MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX,
Luiz (Org.). O novo processo civil brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo
Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011. e TARUFFO, Michele. Cinco lecciones
mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41.] 14 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.
2011. pp.142-143.
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A jurisprudência, ao representar um conjunto de decisões distintas e independentes,
é um fenômeno estranho ao common law, visto que o precedente contrário seguinte cancela
o anterior, sendo típico, sim, aos sistemas do civil law. Ela não permite a identificação
daquela decisão que estabelece uma regra universalizável, bem como não pressupõe a
análise dos fatos do caso sucessivo. No mesmo quadro, dificulta a identificação de uma
orientação preponderante, haja vista sua capacidade para comportar inúmeros
posicionamentos, cabendo ao intérprete escolher aquela que entende como dominante e
sustentar sua aplicação.
Ademais, é importante notar que alguns sistemas jurídicos adotam instrumentos de
sistematização da jurisprudência que entende como dominante, a exemplo dos enunciados
sumulares brasileiros e da Corte de Cassação Italiana15
.
Na esteira dessas definições Fredie Didier Jr. arremata definindo o precedente
como “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial deve
servir como diretriz para o julgamento posterior em casos análogos” 16
. Ele representa,
então, uma decisão única tomada em caso anterior e vai servir para fornecer a
interpretação, a forma de aplicação da norma em todos aqueles casos futuros que
possuírem uma identidade fática. Os casos sucessivos apenas se somam para reforçar o
peso do precedente já estabelecido, passando a exigir um maior esforço hermenêutico para
a superação do precedente.
A jurisprudência, por outro lado, designa “um conjunto de decisões, ou melhor: por
um conjunto de subconjuntos ou de grupos de sentenças, cada um dos quais pode incluir
uma elevada quantidade de decisões”17
. Ao mesmo tempo em que pode indicar a reiteração
de um mesmo precedente, pode conter um conjunto de manifestações e interpretações
diferentes. Isso cria, desse modo, uma dificuldade em se identificar qual a regra a ser
aplicada. Aliás, a regra não se extrai da jurisprudência, devendo ao juiz buscar e produzir
uma fundamentação justificando a escolha de uma das aplicações possíveis, na tentativa de
15 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 16
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.
Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.
17 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.
2011. pp.142-143.
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se alinhar com o entendimento que considera dominante. A jurisprudência possui uma
mera função persuasiva, auxiliando o juiz a reduzir seu encargo hermenêutico. 18
E nesse passo já é possível traçar uma primeira crítica ao sistema de precedentes do
novo Código de Processo Civil. Uma vez que a pretensão deste trabalho é delinear o
sistema de precedentes construído a partir de duas versões dos projetos do novo CPC, é
importante, também, traçar pontos comparativos entre eles, formulando críticas a partir
desse confronto.
A versão apresentada pela Comissão de Juristas, representada pelo PLS n.
166/2010, padece da existência de uma improcedência terminológica quando do uso do
termo “jurisprudência”. Esse primeiro texto do novo Código de Processo Civil emprega em
seus artigos, como também na exposição de motivos ao enunciar seus fundamentos e
finalidades, o termo jurisprudência quando o uso correto seria precedente. Essa crítica é
compartilhada por Haroldo Lourenço que afirma que “tudo no Novo CPC é jurisprudência,
sem distinguir de precedente, jurisprudência dominante, súmula, decisão judicial,
tampouco, sobre as técnicas de superação e confronto dos precedentes, como overruling,
overriding, distinguishing.”19
Esta incorreção, outrossim, parece ter sido corrigida no projeto contido no
Relatório do Dep. Paulo Teixeira de maio/2013, ao trazer o assunto sob tópico denominado
“Precedente Judicial” a partir do Livro I da Parte Especial, inserindo-o no Capítulo XV do
Título I, e a regulamentando a partir do artigo 520, embora persista com o emprego do
verbete jurisprudência em alguns artigos do projeto.
Outro ponto introdutório de necessário destaque é o relativo às funções que podem
ser desempenhadas pelos precedentes. A força das decisões judiciais pode ser
diversificada, o que depende de diferentes vetores, sendo capaz de alcançar não só uma
demanda específica, mas também de a extrapolar. Nesse contexto, os precedentes possuem
18 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal
electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. 19 LOURENÇO, Haroldo. Precedente Judicial como Fonte do Direito: algumas considerações sob a ótica do
novo CPC. In: Revista Temas Atuais de Processo Civil, v.01, n. 6, dez. 2011. Disponível em:
<http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/53-v1-n-6-dezembro-de-2011-> . Acesso
em: 03 de junho de 2013.
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essa pretensão erga omnes, buscam repercutir em casos sucessivos, e o fazem de diferentes
formas.
A eficácia do precedente pode ser, em primeiro lugar, vinculante. Típica dos
ordenamentos de common law, remete ao precedente que “tiver eficácia vinculativa em
relação aos julgados que, em situações análogas, lhe forem supervenientes”20
. Possuem,
assim, uma eficácia normativa, pois contêm uma norma para orientar a aplicação nos casos
posteriores. Essa regra de direito, ademais, é denominada pela teoria dos precedentes de
ratio decidendi21
e se opõe à obter dicta22
, que aduz ao universo argumentativo existente
na decisão.
São exemplos de precedentes vinculantes no atual sistema brasileiro as súmulas
vinculantes produzidas pelo Supremo Tribunal Federal segundo o artigo 103-A da
Constituição de 1988; o entendimento consolidado em súmula do tribunal como vinculante
do próprio tribunal; ou ainda as decisões de controle concentrado de constitucionalidade
proferidas pela Corte Suprema.
A segunda modalidade de eficácia é a persuasiva. Predominante, a seu turno, nos
sistemas de civil law, constitui elemento argumentativo para o julgador do caso
subsequente. Serve para convencê-lo de determinada posição jurídica defendida, como
também para diminuir o seu ônus hermenêutico quando da prolação de uma decisão. O
efeito persuasivo é, pois, a eficácia mínima que pode ter um precedente.
20 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.
Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.
21 Pode ser conceituada como: “A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a
decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso
concreto.” (DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito
Processual Civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e
antecipação dos efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 381.) Ou ainda: “A
ratio decidendi [...] constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)”
(TUCCI, José Rogério Cruz e, Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004. p. 175). 22 Por sua vez pode ser definida como: “argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da
decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro
elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o deslinde da
controvérsia”). Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra de Direito que não compuser a ratio decidendi.” (DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael.
Curso de Direito Processual Civil. Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial,
coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 383.)
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O efeito persuasivo, no entanto, pode ter sua importância reconhecida a nível
legislativo. Além de servir, através de sua repetição, para a formação da jurisprudência
dominante, o atual Código de Processo Civil reconhece ao precedente persuasivo o poder
de possibilitar ao magistrado que julgue liminarmente improcedente as demandas
repetitivas cuja matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido
proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos; ou ainda quando
“admite a interposição de recursos que têm o objetivo uniformizar a jurisprudência com
base em precedentes judiciais, tais como embargos de divergência e o recurso especial
fundado em divergência” 23
.
Fredie Didier Jr. identifica, ainda, uma modalidade derivativa de eficácia, o efeito
impeditivo ou obstativo da revisão das decisões. Visto como desdobramento da eficácia
vinculante, é possível identificar precedentes que têm o poder de obstar a remessa
necessária ou o conhecimento de algum recurso. O autor, nesse quadro, argui que as
prescrições dos artigos 544, §§ 3º e 4º, 557, 475, §3º, e 518, §1º do Código de Processo
Civil, determinam precedentes que, vinculando a atuação do magistrado incumbido da
apreciação, impedem sua discussão recursal24
.
Não obstante essa reconhecida classificação, Michele Taruffo defende que a
distinção absoluta entre os precedentes de eficácia vinculante e persuasiva não mais
existiria. Para o autor, não há mais, e talvez nunca houve, precedentes vinculantes. Os
precedentes ditos vinculantes não passam de escolhas hermenêuticas do juiz aplicador do
Direito. Caso este esteja inclinado para o direcionamento contido na ratio decidendi do
precedente, ele o aplicará, inclusive reduzindo seu ônus argumentativo à mera adequação
ao caso anterior. Por outro lado, caso não, o juiz fará uso de algum dos mecanismos de
superação, ou ainda de qualquer outro critério de decisão25
.
23 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.
Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 390-391.
24 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarna; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.
Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. v. 02. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. P. 390.
25 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal
electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. E o autor
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Todos os precedentes possuiriam, assim, uma função persuasiva, enquadrando-os
como elementos argumentativos do discurso jurídico racional e cabendo ao juiz do caso,
sempre que decidir por aplicá-lo, vinculando-se a ele, ou não, demonstrar as razões que o
motivaram a tanto26
.
Estabelecidas, desse modo, essas categorias e definições, forma-se um substrato
teórico básico suficiente para que se passe à análise dos sistemas de precedentes propostos
pelos projetos do novo Código de Processo Civil.
2. PRECEDENTES NOS PROJETOS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Ingressando no primeiro dos objetivos específicos desse trabalho, observa-se que
para o cumprimento com os princípios da isonomia27
, segurança jurídica, duração razoável
do processo (leia-se celeridade) e da eficiência dos atos jurisdicionais, que ele mesmo
enuncia como seus fundamentos, o novo Código de Processo Civil vai criar e reavaliar os
institutos processuais que versam sobre a aplicação do precedente judicial. Visando,
assim escreve: “É uma distinção que se alguma vez foi real, já não é mais, já que não existem estes termos.
Primeiro: o juiz americano nunca se considerou verdadeiramente vinculado ao precedente, sempre disseram
que eles utilizavam o precedente por comodidade, quando consideravam que a decisão, a regra de decisão era
a correta. Se não gostavam, não utilizavam o precedente e inventavam outro critério de decisão”. No mesmo
sentido: “De um lado ão é apropriado dizer que o precedente de common law é vinculante, no sentido que
dele derive uma verdadeira e própria obrigação do segundo juiz de se ater ao precedente. [...] os juízes usam
numerosas e sofisticadas técnicas argumentativas, dentre as quais o distinguishing e o overrruling, a fim de
não se considerarem vinculados ao precedente que não pretendem seguir. [...] os juízes americanos aplicam
os precedentes com grande discricionariedade, ou seja – por assim dizer – quando não encontram razões
suficientes para não o fazer”. (TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo,
São Paulo: RT, n. 199. set. 2011. pp.146-147) 26 TARUFFO, Michele. Cinco lecciones mexicanas: memoria del taller de derecho procesal. Tribunal
electoral del poder judicial de la Federación, Escuela judicial electoral, México, 2003, p. 29-41. O autor
prossegue escrevendo: “Esta forma segue sendo uma maneira para reafirmar o precedente, havendo um peso
de demonstração mais para o juiz, ao decidir seguir o precedente; é um vínculo não absoluto, mas ainda é um
vínculo. Se eu tenho que demonstrar algo, quero dizer que “tenho que fazê-lo”, “que estou obrigado a fazê-
lo”. Então, aqui se pode notar que muitos problemas derivam da dimensão vertical ou horizontal do
precedente.”. 27 Nesse sentido escreve Alfredo Buzaid: “Na verdade, não repugna ao jurista que os tribunais, num louvável
esforço de adaptação, sujeitem a mesma regra a entendimento diverso, desde que se alterem as condições
econômicas, políticas e sociais; mas repugna-lhe que sobre a mesma regra jurídica dêem os tribunais
interpretação diversa e até contraditória, quando as condições em que ela foi editada continuam as mesmas. O dissídio resultante de tal exegese debilita a autoridade do Poder Judiciário, ao mesmo passo que causa
profunda decepção às partes que postulam perante os tribunais” (BUZAID, Alfredo. Uniformização de
Jurisprudência. In: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 34/139, jul. 1985).
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portanto, a “atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a
qualidade da prestação jurisdicional”28
, os projetos do novo Código de Processo Civil vão
produzir um sistema que se encaminha para a indução à uniformidade e estabilidade da
jurisprudência.
Como a pretensão de análise desses sistemas por esse trabalho desenvolve-se por
uma perspectiva comparativa, faz-se necessário, inicialmente, traçar algumas diferenças
entre os projetos.
A localização espacial do tratamento dos precedentes no texto dos códigos, nesse
ponto, é um primeiro aspecto destacável. O projeto original do novo Código de Processo
Civil, o Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 166/2010, em sua primeira redação, trazia o
tratamento da matéria no Livro IV, intitulado de “Dos Processos Nos Tribunais E Dos
Meios De Impugnação Das Decisões Judiciais”, o Capítulo I do Título I voltado às
disposições gerais em torno da regulamentação da à jurisprudência e precedente, o qual se
lê:
“Art. 847. Os tribunais velarão pela uniformização e pela
estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte:
I – sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas
no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes
à súmula da jurisprudência dominante;
II – os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do
órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais
estiverem vinculados, nesta ordem;
III – a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar
as decisões de todos os órgãos a ele vinculados;
IV – a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos
tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais
e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os
princípios da legalidade e da isonomia;
28 BRASIL. Senado Federal. Exposição de Motivos do PLS 166/2010. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias
Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_
cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.
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V – na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do
Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela
oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver
modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da
segurança jurídica.
§ 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a
necessidade de fundamentação adequada e específica,
considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas.
§ 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da
jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se
inclusive a realização de audiências públicas e a participação de
pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a
elucidação da matéria.
Art. 848. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de
casos repetitivos:
I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas;
II – o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.” 29
A versão do projeto manifestada através do Relatório Final do Deputado Paulo
Teixeira de maio de 2013, por sua vez, transferiu a matéria dos precedentes judiciais para o
Livro I da Parte Especial, inserindo-a no Capítulo XV do Título I, e a regulamentado a
partir do artigo 520:
“DO PRECEDENTE JUDICIAL
Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e
mantê-la estável.
Parágrafo único. Na forma e segundo as condições fixadas no
regimento interno, os tribunais devem editar enunciados
correspondentes à súmula da jurisprudência dominante.
Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos
princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração
29 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.
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razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as
disposições seguintes devem ser observadas:
I - os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula
vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência
ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de
recursos extraordinário e especial repetitivos;
II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das súmulas
do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do
Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e dos
tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem;
III – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência
dominante, os juízes e os tribunais seguirão os precedentes:
a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em matéria
constitucional;
b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de
Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;
IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do
Superior Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do
Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os
precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta
ordem;
V – os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça
seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário
ou do órgão especial respectivo, nesta ordem.
§ 1º Na hipótese de alteração da sua jurisprudência dominante,
sumulada ou não, ou de seu precedente, os tribunais podem
modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior,
limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos
prospectivos.
§ 2º A mudança de entendimento sedimentado, que tenha ou não
sido sumulado, observará a necessidade de fundamentação
adequada e específica, considerando os princípios da segurança
jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 3º Nas hipóteses dos incisos II a V do caput deste artigo, a
mudança de entendimento sedimentado poderá realizar-se
incidentalmente, no processo de julgamento de recurso ou de
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causa de competência originária do tribunal, observado, sempre, o
disposto no §1º deste artigo.
§4º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos
fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros
do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.
§ 5º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste
artigo:
I - os fundamentos, ainda que presentes no acórdão, que não
forem imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em
seu dispositivo;
II - os fundamentos, ainda que relevantes e contidos no acórdão,
que não tiverem sido adotados ou referendados pela maioria dos
membros do órgão julgador.
§6º O precedente ou a jurisprudência dotado do efeito previsto
nos incisos do caput deste artigo pode não ser seguido, quando o
órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento,
demonstrando, mediante argumentação racional e justificativa
convincente, tratar-se de caso particularizado por situação fática
distinta ou questão jurídica não examinada, a impor outra solução
jurídica.
§ 7.º Os tribunais deverão dar publicidade aos seus precedentes,
organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os
preferencialmente por meio da rede mundial de computadores.
Art. 522. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de
casos repetitivos:
I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas;
II – o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.” 30
Para além da localização dos artigos que regulam a matéria, é importante observar
que os artigos acima enunciados representam inovação trazida pelos projetos do novo
Código de Processo Civil. Eles constroem, diferente do existente na legislação atual em
30 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.
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que o tratamento sobre precedentes e jurisprudência é realizado através de institutos
específicos, um conjunto de normas gerais acerca da jurisprudência e dos precedentes, as
quais irão se refletir em todos os processos, ao condicionarem a produção de decisões
pelos magistrados. Sua aplicação, pois, posta-se como obrigatória à racionalidade da
decisão proferida, para fins de resguardar a legalidade, segurança jurídica e isonomia
dessas.
2.1. As normas gerais sobre precedentes e jurisprudência no novo Código de Processo
Civil
Os projetos do novo Código de Processo Civil inauguram suas normas gerais sobre
jurisprudência e precedentes enunciando, no artigo 520 da versão da Câmara e no artigo
847 caput e inciso I do PLS 166/10 original, o apreço pela uniformização e estabilidade da
jurisprudência, vistos como princípios orientadores dessa capítulos do CPC, ao mesmo
tempo em que impõem o dever de edição de súmulas para consolidação do precedente.
Vistos como formulações verbais sob estrutura normativa jurídica por parte de um
tribunal, com pretensão universalizável aos casos posteriores, expressando uma
interpretação específica acerca de determinada norma, os enunciados sumulares vão
manter, no novo CPC, a sua importância como sintetizadores do entendimento
predominante em um tribunal sobre determinada matéria. A súmulas, assim, passam a ser
de obrigatória formulação quando presentes os elementos que as aconselharem na forma de
cada regimento interno dos tribunais.
O dever de sua edição por parte dos tribunais consiste, portanto, em um
instrumento de reforço do novo papel que a elas está sendo atribuído. Ressalvados os casos
de súmulas concernentes à admissibilidade recursal, os demais enunciados sumulares são
utilizados na práxis jurídica como elementos meramente argumentativos, persuasivos do
magistrado. Não obstante expressem um entendimento já consolidado, sua utilização se dá
de forma arbitrária, sem a necessária análise dos fatos e casos que motivaram, bem como
sem o devido respeito e enfrentamento a elas quando da não utilização. No novo Código de
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Processo Civil, por outro lado, sua eficácia altera-se, passando a despontar como
vinculante dos demais tribunais, como se tratará a seguir, de modo que a não submissão à
vinculação exigirá esforços argumentativos para superar o entendimento anterior.
Apoiando-se nos princípios da isonomia, legalidade, duração razoável, segurança
jurídica e proteção da confiança, os projetos do novo Código de Processo Civil vão
prescrever um dever de aplicação pelos magistrados no processo de tomada de decisão dos
precedentes do Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores e dos próprios tribunais.
Todos os precedentes, assim, ganham um reforço em sua eficácia vinculativa.
No entanto, enquanto esse dever é enunciado de forma genérica pelo artigo 847,
incisos III e IV do PLS n. 166/2010, a versão de maio de 2013 da Câmara dos Deputados
estabeleceu, nos incisos do artigo 521, uma ordem legal na qual os precedentes devem ser
observados e analisados pelos magistrados, como forma de garantir um alinhamento e, por
logo, a estabilidade da jurisprudência. Essa versão do projeto do novo CPC vem, portanto,
buscar a positivação de uma determinação metodológica de argumentação a ser obedecida
pelo magistrado, sob pena de se considerar sua decisão carente de fundamentação31
.
O projeto de maio de 2013 vem, em primeiro lugar, reconhece como estritamente
vinculantes os efeitos dos enunciados de súmula vinculante, dos acórdãos em incidente de
assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, tal como daqueles em
julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Coloca-os como as primeiras
fontes normativas a serem observadas pelos magistrados quando da prolação de sua
decisão. Ou seja, existindo alguma dessas formas de precedente, sua aplicação será
obrigatória pelo magistrado, independente de sua interpretação da própria norma legal.
31 Cria, assim, uma obrigação de respeito ao método de fundamentação judicial das sentenças que edifica, de
forma que caso o magistrado não venha a aderir aos entendimentos definidos nos precedentes, ou afaste essa
aplicação por meio de uma argumentação racional, haverá a incidência do disposto no artigo 499, §1º, inciso
VI do substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio, que estabelece que se considerará não fundamentada a
decisão judicial que “VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela
parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”
(BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.).
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Em segundo, o projeto estabelece que os enunciados das súmulas do Supremo
Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional e dos tribunais aos quais estejam atrelados juízes e desembargadores,
são também de aplicação obrigatória aos casos posteriores. Assim, as súmulas, como dito,
vão ter sua função vinculativa reforçada. Transcendem as preocupações como elementos
meramente persuasivos e passam a gozar de elevada posição hierárquica na escala
argumentativa edificada pelo novo Código de Processo Civil. Sua observância será
obrigatória a todos os magistrados sujeitos à jurisdição do Tribunal que a editou.
Não havendo súmula, os acórdãos e decisões do tribunais também se revestirão da
natureza de precedente, gerando efeitos vinculantes. Nesses termos, os magistrados
inferiores deverão observar, sempre, os acórdãos do plenário do Supremo Tribunal Federal,
em matéria constitucional; da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de
Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional; do plenário ou do órgão especial
respectivo dos Tribunais de Justiça ou dos Tribunais Regional Federal; ou, em matéria de
Direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo do Tribunal de
Justiça.
A última versão de maio de 2013, ainda, busca superar a crítica de que o atual
sistema de precedentes não faria a diferenciação entre a ratio decidendi e a obter dicta de
uma decisão. Estabelece, nesse quadro, que os efeitos vinculantes que se cogitam para as
súmulas e acórdãos somente ocorrem com relação aos fundamentos determinantes
adotados pela maioria dos membros do colegiado, ao passo de que os fundamentos
dissidentes, ainda que relevantes e contidos no acórdão, mas que não tenham sido adotados
ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador; ou que não forem
imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em seu dispositivo, não possuem a
mesma eficácia.
É de se destacar, ainda, que o sistema construído pelos projetos do novo CPC dá
determinada ênfase nos autoprecedentes, que remete aos “precedentes emitidos da mesma
corte que decide o caso sucessivo”32
. Os projetos do novo Código expressaram uma
preocupação com o respeito da corte emissora com seus próprios julgados. Há uma
32 TARUFFO, Michele. Precedente e Jurisprudência. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set.
2011. pp.149.
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valorização, assim, da coerência e da isonomia na atuação dos tribunais. Nesse contexto, o
artigo 847 do PLS n. 166/2010 e o artigo 521 do substitutivo de maio do Dep. Paulo
Teixeira prescrevem repetitivamente o dever interno dos tribunais, de seus membros e
órgãos fracionários de aplicação dos precedentes fixados por órgãos superiores, prezando
para que casos iguais venham a ser decididos da mesma forma pelo mesmo tribunal.
O sistema hermenêutico e de aplicação dos precedentes construído pelo projeto de
maio de 2013, outrossim, não se reveste de um caráter rígido e insuperável. Ele preza, ao
contrário, pela racionalidade da decisão proferida, bem como pelo respeito aos princípios
processuais da isonomia, segurança jurídica e duração razoável. E, nesse contexto, traz
previsões sobre a forma de superação dos precedentes já existentes.
A exposição de motivos e o artigo 847, §1º do Projeto de Lei do Senado n.
166/2010, desse modo, estabelecem o maior encargo argumentativo quando da superação
do precedente. Vem a prescrever, assim, que “a mudança de entendimento sedimentado
observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o
imperativo de estabilidade das relações jurídicas”33
.
Essa disposição vem igualmente reproduzida pelo substitutivo da Câmara dos
Deputados de maio de 2013 que, todavia, o complementa com a criação da possibilidade
de, incidentalmente, haver a mudança do entendimento sedimentado no processo de
julgamento de recurso em que o precedente houver sido aplicado, ou em causa de
competência originária do tribunal. O Código define, assim, o poder do Tribunal de alterar
seu próprio entendimento, de superá-lo, desde que o faça de forma fundamentada.
O §6º do artigo 521 dessa versão do projeto traz, ainda, a positivação do
distinguishing (ou distinção) como técnica de confronto do precedente. Visto como o
método “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado
análogo ao paradigma”34
, de forma que, caso conclua pela peculiaridade do caso concreto,
poderá julgá-lo sem vinculação ao precedente. O distinguishing apresenta-se, então, como
a fundamentação racional de que aquele determinado precedente não é aplicável ao caso
33 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 34 TUCCI, José Rogério Cruz e, Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004. p. 174.
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em tela, uma vez que o quadro fático entre eles é diverso. Pressupõe que o magistrado que
não irá aplicar o precedente sustente, racionalmente, o porquê da diferenciação entre casos,
comparando-os e definindo qual a nova interpretação que deve ser fornecida. Caso não o
faça, sua decisão ter-se-á como carente de fundamentação e passível de ser impugnada.
Nos casos de alteração de precedente, os projetos do novo CPC preveem a
possibilidade da modulação de efeitos da decisão que os reverte, com o objetivo de
prestigiar a segurança jurídica. Nesse contexto, o artigo 847, V do PLS n. 166/2010
original e na última versão no §1º do artigo 521, prescrevem o princípio da modulação dos
efeitos da alteração de precedente, com a seguinte redação: “na hipótese de alteração da
jurisprudência dominante do STF e dos Tribunais superiores, ou oriunda de julgamentos de
casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da
segurança jurídica” 35
.
Busca o novo Código de Processo Civil, assim, proteger a uniformidade do
precedente e a segurança jurídica, exigindo uma fundamentação específica e carregada
para a alteração de posicionamento anterior, possibilitando, ainda, que tais argumentos
possam ser dirigidos a uma definição dos efeitos a serem gerados.
Havendo discorrido sobre a sistemática geral dos precedentes no novo Código de
Processo Civil, é importante, também, que se disserte sobre as formas pela qual eles se
manifestam nos novos textos legais. Diversos dos institutos espalhados por todo o Código
podem ser identificados como precedentes, ou fazem uso deles para a obtenção de
determinado efeito, transitando ainda, em alguns momentos, entre a eficácia vinculante e a
persuasiva.
2.2. Incidente de resolução de demandas repetitivas
Transcorrendo-se, inicialmente, sobre os instrumentos que podem ser
caracterizados como precedentes reconhecidos e organizados pelo novo Código de
35 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.
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Processo Civil, tem-se os acórdãos proferidos em incidente de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Falar-se-á do
primeiro.
Observando a necessidade de fornecer uma resposta para as demandas de massa
não somente através dos tribunais superiores, mas também dos locais, o novo CPC criou,
com inspiração na doutrina alemã, o incidente de resolução de demandas repetitivas, um
dos mais comentados institutos do novo Código.
Regulamentado pelo projeto original a partir do artigo 895 e pelo substitutivo do
Dep. Paulo Teixeira do artigo 988 em diante, o incidente poderá ser suscitado perante os
Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais quando houver efetiva ou potencial
repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito
material ou processual.
É legítimo para suscitar o incidente, quando a causa tramite dentro da competência
daquele tribunal: o relator ou o órgão colegiado, de ofício, bem como as partes, o
Ministério Público, a Defensoria Pública, as pessoas jurídicas de direito público e as
associações civis, por petição direcionada ao presidente do tribunal.
Recebido o recurso, em virtude de seu potencial vinculante para todas as demandas
que versem sobre a mesma questão de direito, o relator deverá suspender os processos
pendentes que tramitam no Estado ou na região; ao mesmo tempo em que se suspenderá a
prescrição das pretensões nos casos em que se repete a questão de direito.
O novo Código ressalva a possibilidade das partes de desconstituírem a suspensão
determinada, através de requerimento dirigido ao juízo onde tramita o processo suspenso,
de seus casos em particular desde que sejam capazes de fundamentar racionalmente a
distinção entre o seu e aquele em que foi provocado o incidente. Ou seja, o Código
possibilita que as partes venham a exercer o distinguishing de forma preventiva, não
precisando aguardar o deslinde do incidente para sustentarem as distinções existentes entre
a as teses dos casos apresentados.
A participação no incidente, nesse contexto, é franqueada às partes, ao Ministério
Público, que será intimado caso não tenha sido ele o quem provocou o incidente, e aos
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demais interessados, que se revestirão na figura do amicus curiae, atuando como
mecanismos de controle preventivo na formação de um precedente vinculante.
Quanto à competência para julgar o incidente, o artigo 898 do PLS n.166/2010 em
sua redação original previa que esta seria do plenário do tribunal ou, onde houver, do órgão
especial. Objeto de inúmeras impugnações por juristas36
por tolher a autonomia dos
tribunais em regulamentar a questão por meio de seus regulamentos internos, o artigo 991
do substitutivo da Câmara de maio de 2013 traz diferente determinação, atribuindo a
competência para o órgão ao qual esse regimento determinar.
Feitas essas considerações introdutórias sobre o novo instituto, há de se observar,
agora, como se dá sua eficácia. Junto ao já discorrido efeito suspensivo das demais
demandas que versem sobre a mesma questão de direito, o incidente de resolução de
demandas repetitivas forma precedente vinculante para todos os processos com os quais se
mantenha identidade e que estejam sujeitos à jurisdição do Tribunal prolator. É assim que
prescreve o artigo 995 do substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de 2013: “Art. 995.
Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem sobre
idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”37
.
Essa eficácia vinculante, outrossim, alcança não só os processos em curso ou já
suspensos pela decisão do tribunal, mas também os casos futuros que versem sobre a
questão de direito e que tramitem na competência do tribunal prolator. Ademais, prescreve
o §2º do artigo 995 da versão de maio de 2013 que:
“se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de
serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do
julgamento será comunicado ao órgão ou à agência reguladora
36 A controvérsia é reconhecida pela própria exposição de motivos do substitutivo da Câmara de maio de
2013. Veja-se: “outro ponto importantíssimo diz respeito à competência para o julgamento do incidente. De
um lado, é preciso garantir que essa competência seja determinada pelo regimento interno do Tribunal; de
outro, é preciso indicar que tal competência deve observar a natureza da questão que se busca resolver.”
(BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.) 37 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.
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competente para fiscalização do efetivo cumprimento da decisão
por parte dos entes sujeitos a regulação”38
.
O Código, portanto, alça as agências reguladoras como entes fiscalizadores do
cumprimento de suas decisões em matéria regulatória, vinculando-as nesse dever mesmo
que não tenham feito parte da relação processual. Tal dever possui sérias repercussões na
relação do Judiciário com as agências, como se vislumbrará no tópico apropriado.
Outrossim, o incidente de resolução de demandas repetitivas, não obstante
concebido como instrumento para demandas de massas locais ou regionais, pode ter sua
eficácia estendida a todo o território nacional. Nesses termos, interposto recurso especial
ou recurso extraordinário da decisão do incidente, o efeito suspensivo poderá ser
concedido a todos os processos que tramitem no território nacional e se considera
presumida a repercussão geral, de questão constitucional eventualmente discutida. Julgado
pelo STJ ou STF, a tese jurídica firmada será aplicada a todos os processos que versem
sobre idêntica questão de direito e que tramitem perante os demais tribunais, fornecendo,
com isso, igual tratamento jurídico às questões de massa em idêntico tempo.
Através desse incidente, o novo Código de Processo Civil busca um novo
instrumento para formação de precedentes com força vinculante nos tribunais, desta vez
naqueles de segunda instância, e voltada para as causas de primeiro grau, visando a que as
questões com idêntica matéria de direito possam ser uniformizadas, desafogando o Poder
Judiciário e minimizando o número de julgados divergentes.39
2.3. Recurso extraordinário e a repercussão geral
A produção de outras formas de precedentes vinculantes também é regulada pelo
novo Código de Processo Civil. São eles os já existentes recursos especiais repetitivos e a
repercussão geral no recurso extraordinário. Como instrumentos com uma já definida
38 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 39 Cf. GAIO JUNIOR, Antônio Pereira. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto do Novo
CPC: Breves Apontamentos. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 199. set. 2011.
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tradição no sistema brasileiro, dispensam maiores introduções como as feitas no tópico
anterior. Dessa forma, focar-se-á nas inovações trazidas pelos projetos do novo CPC.
Criada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentada pela Lei n.
11.418/06, a repercussão geral apresentou-se com “o intuito de ultrapassar os interesses
subjetivos para atribuir um caráter objetivo a uma demanda anteriormente subjetiva”40
.
Buscava-se, assim, impedir que a Corte Suprema tornasse-se uma quarta instância revisora,
permitindo a diminuição de sua carga de trabalho e que focasse em questões de especial
relevância constitucional.
Os projetos do novo código mantiveram as inovações trazidas pela repercussão
geral à admissibilidade de recursos no STF. Nesse sentido, assentou a natureza de
precedente vinculante da decisão que nega a repercussão geral, conforme artigo 950, §4º
do PLS n. 166/10 original e §4º do artigo 1.48 do substitutivo de maio de 2013 da Câmara
dos Deputados, os quais se leem: “§4º Negada a repercussão geral, a decisão valerá para
todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão
da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.”41
Outrossim, sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em
idêntica questão de direito, os recursos extraordinário e especial repetitivos assumem um
potencial de vinculação para as demais demandas com que guardem identidade. Nesse
sentido, os projetos do novo CPC disciplinaram a formação de um precedente vinculante
quando do julgamento desses, regulamentação essa a ser dada na mesma sessão, com a
mesma procedimentalização, ressalvados os regimentos internos. Dessa forma,
determinou-se que:
“Art. 954. Caberá ao presidente do tribunal de origem selecionar
um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais
serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior
Tribunal de Justiça independentemente de juízo de
40 MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil
brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de
Janeiro: Forense, 2011. p. 571. 41 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.
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admissibilidade, ficando suspensos os demais recursos até o
pronunciamento definitivo do tribunal superior
§ 1º Não adotada a providência descrita no caput, o relator, no
tribunal superior, ao identificar que sobre a questão de direito já
existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao
colegiado, poderá determinar a suspensão dos recursos nos quais
a controvérsia esteja estabelecida.
§ 2º Os processos em que se discute idêntica controvérsia de
direito e que estiverem em primeiro grau de jurisdição ficam
suspensos por período não superior a doze meses, salvo decisão
fundamentada do relator.
§ 3º Ficam também suspensos, no tribunal superior e nos de
segundo grau de jurisdição, os recursos que versem sobre idêntica
controvérsia, até a decisão do recurso representativo da
controvérsia.” 42
.
Nos mesmos termos do incidente de resolução de demandas repetitivas,
reconhecido o potencial vinculante da decisão que julga os recursos extraordinários e
especiais repetitivos, haverá a suspensão de todas as causas que versem sobre a mesma
questão de direito. Assim, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça,
independentemente de juízo de admissibilidade, determinará a suspensão do
processamento dos demais recursos até o pronunciamento definitivo do tribunal superior,
sendo resguardado às partes, segundo o substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de
2013, o direito de apresentar “agravo interno dirigido ao órgão colegiado a que estiver
vinculado o relator, na hipótese em que a controvérsia discutida nos autos não seja idêntica
à do recurso paradigma” 43
.
No entanto, para os processos em primeiro grau de jurisdição, a suspensão está
limitada a período não superior a doze meses, salvo decisão fundamentada do relator,
devendo as partes, nos termos do projeto substitutivo da Câmara de maio de 2013, serem
42 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 43 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.
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“intimadas da decisão que, em primeiro grau de jurisdição, suspende o curso do processo,
contra a qual caberá agravo de instrumento, na hipótese em que a controvérsia discutida
nos autos não seja idêntica à do recurso paradigma”44
, ou seja, resguarda-se a possibilidade
das partes demonstrarem preventivamente o distinguishing de seu caso concreto.
Outrossim, os recursos representativos da controvérsia, selecionados pelos
presidentes dos tribunais de origem, serão encaminhados para o Supremo Tribunal Federal
ou ao Superior Tribunal de Justiça, que realizará seu processamento, podendo solicitar
informações àqueles.
Julgado o recurso representativo da controvérsia, a decisão irá vincular os demais
os órgãos colegiados inferiores, que declararão prejudicados os recursos versando sobre a
mesma controvérsia ou serão decididos com a aplicação da tese formada. Desse modo,
com relação aos recursos extraordinários ou especiais repetitivos já apresentados, caso o
acórdão recorrido venha a coincidir com a orientação da instância superior, tais recursos
não terão seguimento.
Entretanto, estabelece-se um dever de análise individual do acórdão recorrido que
divergir da orientação da instância superior no recurso extraordinário ou especial
repetitivo, de forma que caberá ao Tribunal de origem avaliar o seu julgado, podendo
exercer um poder de retratação, ou ainda, manter o entendimento divergente, desde que
argumentando racionalmente pela existência de uma distinção (distinguishing) para com o
julgado vinculante.
3.4. Julgamento liminar do mérito
Discorridos sobre os precedentes que são reconhecidos pelos projetos do novo
Código de Processo Civil, faz-se necessário passar, agora, para a análise dos instrumentos
que privilegiam a força do precedente, atribuindo-os determinados efeitos.
44 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013.
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Um desses é a possibilidade de julgamento liminar pela improcedência do mérito
da ação, mesmo antes da citação do Réu, conforme preceitua o artigo 333 da versão da
Câmara de maio de 2013 e o artigo 317 do PLS n. 166/2010 original.
“Art. 333. Independentemente da citação do réu, nas causas que
dispensem a fase instrutória o juiz julgará liminarmente
improcedente o pedido que:
I – contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal ou do
Superior Tribunal de Justiça;
II – contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos
repetitivos;
III – contrariar entendimento firmado em incidente de resolução
de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV – for manifestamente improcedente, desde que a decisão
proferida não contrarie entendimento do Supremo Tribunal
Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, sumulado ou adotado
em julgamento de casos repetitivos;
V – contrariar enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre
direito local.
§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o
pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de
prescrição.
§ 2.º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em
julgado da sentença, nos termos do art. 241.
§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em cinco dias.
§4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do
processo, com a citação do réu para apresentar resposta; se não
houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar
contrarrazões, no prazo de quinze dias.
§ 5º Na aplicação deste artigo, o juiz observará o disposto no art.
521”45
.
45 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
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Este instituto, correspondendo a uma evolução daquele já previsto no artigo 285-A
do atual CPC, remete a uma importante técnica de aceleração dos processos, de aplicação
em demandas massificadas46
. E, nesse sentido, atribui um importante efeito para os
precedentes estabelecidos pelos tribunais nacionais, não só os superiores, ao estabelecer
que a contrariedade a súmula ou acórdão firmado em julgamento de demandas repetitivas
impõe a extinção antecipada do processo.
O novo Código de Processo Civil cria, portanto, a consonância com os precedentes
pátrios como condição de processamento da inicial, permitindo a rejeição liminar desta
quando a tese apresentada os contrarie.
2.5. Tutela de evidência
Outro dispositivo que privilegia a força dos precedentes, bem como representa uma
novidade nos projetos do novo código, é a tutela de evidência.
A antecipação da tutela no novo CPC, nesse contexto, ganha uma nova espécie, a
tutela de evidência. Diferentemente da tutela de urgência, em que é necessária a
demonstração do perigo da demora jurisdicional, naquela os próprios argumentos
levantados pela parte revelam-se de juridicidade ostensiva, justificando a concessão da
antecipação do provimento final.
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 46 Algumas críticas a ele podem ser encontradas na doutrina. Veja-se: “Com efeito, torna-se praticamente
impossível exercer o contraditório e voltar-se contra o entendimento já sedimentado pelo STJ sobre
determinada matéria – ainda que tal entendimento seja, por exemplo, inconstitucional – na medida em que a
parte esbarrará, de pronto, na previsão do art. 285-A do CPC, que também limita, nesse sentido, o próprio
juiz de primeiro grau, já que o dispositivo não pressupõe o entendimento daquele juízo ou do Tribunal local
em que está inserido, mas, sim, o posicionamento do próprio STJ.” (RAATZ, Igor. Considerações históricas
sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para o debate sobre a adoção de precedentes no
direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de 2011). Essa crítica, na verdade, pode ser
aplicada à maioria dos institutos aqui referido, pois, caso mal aplicados pelos julgadores podem levar a
situações de perpetuação indefinida de um entendimento. O novo Código de Processo Civil, nesse contexto, não preza por tais situações, de forma que, desde que com consonância com os princípios fundamentadores
dos precedentes, é facultado às partes e ao magistrado o uso de técnicas de superação do precedente, como o
overruling e o distinguishing.
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Dentre as hipóteses que justificam sua concessão47
, aquela prevista nos artigos 285,
IV do PLS 166/2010 original e 306, III da versão da Câmara de maio de 2013 possuem
grande relevância para o presente trabalho. Elas consagram o precedente como elemento
de paradigma que aconselha o deferimento da antecipação da tutela mesmo diante da
inexistência de perigo da demora.
Os precedentes firmados pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Supremo Tribunal
Federal e pelos tribunais locais passam a autorizar, assim, que os magistrados concedam o
bem da vida pleiteado antes do processamento do pleito, já que não há razão de esperá-lo,
pois, como é possível constatar, exceto se o réu demonstrar uma distinção entre o caso
concreto e o precedente, haverá a vinculação de seu resultado.
2.6. Remessa necessária e a sua dispensa
Imperiosa, também, para esse trabalho é a menção da dispensa para a remessa
obrigatória quando a sentença proferida encontrar-se alinhada com os precedentes tido
47 “Art. 306. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo da demora
da prestação da tutela jurisdicional, quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o
manifesto propósito protelatório do réu; II – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente
dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha outra prova capaz de gerar dúvida
razoável; III – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese
firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; IV - se tratar de pedido
reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada
a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa. Parágrafo único. A decisão baseada nos
incisos III e IV deste artigo pode ser proferida liminarmente.” (BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de
Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do
Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In: Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08
junho 2013.) e: “Art. 285. Será dispensada a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil
reparação quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório
do requerido; II – um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que
a solução será definitiva; III – a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo
autor a que o réu não oponha prova inequívoca; ou IV – a matéria for unicamente de direito e houver
jurisprudência firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante. Parágrafo único.
Independerá igualmente de prévia comprovação de risco de dano a ordem liminar, sob cominação de multa
diária, de entrega do objeto custodiado, sempre que o autor fundar seu pedido reipersecutório em prova
documental adequada do depósito legal ou convencional.” (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do
Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho
2013).
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como vinculantes. Os projetos do novo Código de Processo Civil, nesse sentido, previram,
nos artigos 507, §3º da versão da Câmara de maio de 2013 e no artigo 478, §3º do
anteprojeto do Senado, in verbis:
“Art. 507. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não
produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a
sentença: [...]
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a
sentença estiver fundada em:
I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal
de Justiça;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo
Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos;
III – entendimento firmado em incidente de resolução de
demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada
no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em
manifestação, parecer ou súmula administrativa.” 48
“Art. 478. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não
produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a
sentença: [...]
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a
sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do
Supremo Tribunal Federal, em súmula desse Tribunal ou de
tribunal superior competente, bem como em orientação adotada
em recurso representativo da controvérsia ou incidente de
resolução de demandas repetitivas.” 49
48 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 49 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
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Os precedentes sumulares, acórdãos de recursos extraordinário e especial
repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas passam a ser prestigiados
como balizas à atuação dos órgãos públicos perante os tribunais, evitando que a Fazenda
Pública apenas prolongue as causas manejadas contra si, agilizando o desfecho do processo
e evitando novos julgamentos. O novo CPC, assim, ao limitar o reexame necessário,
demonstra “o papel cada vez mais diferenciado da jurisprudência no sentido de ser um
mecanismo útil à segurança jurídica e efetividade das decisões, prestigiando as decisões
dos tribunais superiores” 50
.
2.7. Dispensa da caução para as execuções provisórias de sentença
A execução de sentença objeto de recurso ao qual não foi concedido efeito
suspensivo, conhecida como execução provisória, depende de caução suficiente e idônea,
arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos para a prática de certos atos,
como por exemplo o levantamento de depósito em dinheiro e a realização de atos que
importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao réu.
Os projetos do novo Código de Processo Civil, entretanto, em seus artigos 535 do
substitutivo do Dep. Paulo Teixeira de maio de 2013 e o 491, §2º, IV do PLS n. 166/2010
original, estabelecem exceção à regra acima como forma de privilegiar a eficácia dos
precedentes. Prescrevem, pois, que a caução referida será dispensada se “III - a sentença
for proferida com base em súmula vinculante ou estiver em conformidade com julgamento
de casos repetitivos”51
. Ampliando esses casos, a versão de maio de 2013 incluiu, ainda, as
sentenças que estiverem em consonância com as súmulas do Supremo Tribunal Federal ou
do Superior Tribunal de Justiça, não restringindo-as às vinculantes.
50 MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil
brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de
Janeiro: Forense, 2011. p. 571. 51 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
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2.8. Atuação monocrática do relator
Outro instrumento que consolida a importância dada aos precedentes no novo CPC
é a possibilidade de atuação monocrática do relator nos tribunais. Seguindo o que já fazia o
Código de Processo Civil de 1973, os projetos da nova lei instituíram poderes aos relatores
recursais para atuarem ao invés do Colegiado, fornecendo uma maior celeridade nos
julgamentos.
Pelos projetos, a atuação unipessoal do relator ficou restrita a hipóteses objetivas,
as quais remetem aos acórdãos e julgados dos tribunais que se postem como precedentes
dotados de eficácia vinculante. Assim, somente poderá ocorrer a atuação monocrática do
relator quando a decisão se apoiar em súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior
Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; ou em acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; ou, ainda,
em entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou, por fim,
em incidente de assunção de competência. Os dois últimos casos, outrossim, não constam
no artigo 853 do PLS n. 166/2010 original, mas foram acrescentados ao artigo 945 do
substitutivo Paulo Teixeira de maio/2013, in verbis:
“Art. 945. Incumbe ao relator:
I – dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à
produção de prova;
II – apreciar o pedido de tutela antecipada nos recursos e nos
processos de competência originária do tribunal;
III – negar seguimento a recurso inadmissível, prejudicado ou que
não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão
recorrida;
IV – negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de
Justiça ou do próprio tribunal;
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b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo
Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos
repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas
repetitivas ou de assunção de competência.
V – depois de facultada, quando for o caso, a apresentação de
contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida
for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de
Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo
Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos
repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas
repetitivas ou de assunção de competência.
VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade
jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o
tribunal;
VII – determinar a intimação do Ministério Público, quando for o
caso;
VIII – exercer outras atribuições estabelecidas no regimento
interno do tribunal.” 52
Esse instituto, embora não imune a críticas53
, cumpre importante papel na redução
da espera pelo julgamento final da demanda, assim como alivia as pautas dos órgãos dos
52 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 8.046, de 2010, oriundo do Senado Federal (Projeto de
Lei do Senado n. 166, de 2010). Reforma do Código de Processo Civil. Parecer da Comissão Especial. In:
Atividade Legislativa. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp>. Acesso em: 08 junho 2013. 53 Algumas críticas a ele podem ser encontradas na doutrina. Veja-se: “Por sinal, caminha na mesma linha a
previsão do artigo 888, IV e V, do Projeto do Novo Código de Processo Civil, que autoria o julgamento
monocrático sempre que o recurso ou a decisão recorrida, conforme for caso de provimento ou
desprovimento, contrariarem (a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do
próprio tribunal, (b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça
em julgamento de casos repetitivos (c) ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. A escolha empregada pelo Projeto do novo Código, no sentido de
modificar os requisitos para o julgamento monocrático pelo relator não é sem propósito. Na verdade,
caminha na direção de uma centralização da produção jurídica nos Tribunais Superiores, tendência do
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tribunais, permitindo que se aplique a regra jurídica concebida através dos seus
precedentes vistos como dotados de certa eficácia vinculante.
2.9. Amicus curiae
Uma última figura relacionada ao precedente no novo Código de Processo Civil é o
amicus curiae.
Criado pelo novo CPC, embora já admitida pela jurisprudência do STF como
terceiro interessado em demandas de controle de constitucionalidade, essa forma de
intervenção processual passa a ser regulamentada pela nova legislação processual e adquire
primordial importância para a matéria dos precedentes.
Conforme prescreve o artigo 847, §2º do anteprojeto apresentado ao Senado, bem como
previsto para o processamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos e do
incidente de resolução de demandas repetitivas por ambos os projetos aqui estudados, é
facultada a participação do amicus curiae nos recursos representativos da controvérsia,
ou ainda no processo de revisão de entendimento já firmado. Veja-se:
Artigo 847. [...] § 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência
em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas
e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação
da matéria54
.
Essa inclusão do amicus curiae como legitimado para atuação nesses processos,
além de servir como instrumento capaz de fornecer ao magistrado melhores condições e
informações para a decisão do caso concreto, constrói um certo respeito ao princípio do
contraditório quando da construção da norma jurídica geral do precedente. Ele faculta uma
sistema recursal brasileiro. Em suma, a ideia de superação dos precedentes chamados obrigatórios, na forma
como o sistema recursal vem se(ndo) construído é uma verdadeira falácia, na medida em que se vincula
diretamente à vontade do órgão julgador que criou o próprio precedente.” (RAATZ, Igor. Considerações
históricas sobre as diferenças entre common law e civil law : Reflexões para o debate sobre a adoção de
precedentes no direito brasileiro. Revista de processo. v. 36. n. 199, Setembro de 2011). 54 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013.
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forma de participação social no processo de construção do precedente, com vistas a uma
“decisão mais próxima às reais necessidades das partes e mais rente à realidade do país” 55
,
atuando como importante instrumento para o seu controle preventivo.
3. POSSÍVEIS REPERCUSSÕES DO NOVO SISTEMA DE PRECEDENTES NO
DIÁLOGO INSTITUCIONAL
Como já é possível concluir, os projetos do novo Código de Processo Civil trazem
um sistema fortalecido de precedentes para o Brasil. Estabelecem normas gerais sobre
precedentes e jurisprudência, reforçam institutos que já demonstraram boa aceitação e
efetividade, ao mesmo tempo em que criam novas ferramentas para garantir a resolução de
demandas de massa e valores como segurança jurídica e isonomia. Mas esse sistema não é
isolado. Definir novos poderes e capacidades para o Judiciário possui sérias repercussões
para com outros entes institucionais. Reflete em quem tem razão, em qual interpretação ou
norma deve prevalecer e quem seria seu prolator.
Essas concepções permeiam importante debate: a dicotomia entre a supremacia do
Judiciário e a supremacia do Parlamento. Nenhuma dessas concepções, todavia, deve
prevalecer. Há hoje, pelo contrário, uma valorização de teorias que focam no diálogo entre
instituições. Segundo estas, os Poderes do Estado são concebidos com um desenho
institucional pelo qual nenhum deles atua unilateralmente, mas sim possuem mecanismos
de reação, contribuindo com sua própria capacidade institucional para a construção da
decisão56
.
E, nesse contexto, há, na doutrina brasileira, uma crescente preocupação quanto às
relações dialógicas dos demais poderes com o Judiciário, em especial com o Legislativo,
55 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, Nº 166 de 2010. Reforma do Código de Processo
Civil. In: ATIVIDADE LEGISLATIVA. Projetos e Matérias Legislativas. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>. Acesso em: 08 junho 2013. 56 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 287-289.
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quando aquele exercita o controle de constitucionalidade de leis e atos de conteúdo
normativo57
, e, por consequência, emite uma decisão vinculativa à toda esfera pública.
Ocorre que, como visto, decisões com pretensões vinculantes também são
emitidas pelo Poder Judiciário em outros momentos, em processos comuns, em matérias
diversas, mas que igualmente afetam o exercício das competências dos demais poderes. É
necessário aqui, portanto, que se tracem algumas considerações sobre essas relações que,
não tão claras ou evidentes como o controle de constitucionalidade, são por vezes
negligenciadas.
3.1. Repercussões para com o Poder Legislativo e Executivo
Consagrado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o
princípio da separação dos poderes aduz à existência de uma distribuição do poder político
e funções estatais entre diversos órgãos e atores para evitar o arbítrio entre seus titulares.
Com isso, evita a concentração do poder, possibilitando o desenvolvimento do Estado
democrático e de seu autogoverno58
.
Esse princípio estimula, ainda, uma racionalização da execução das atividades
públicas. Com a distribuição de competências, os órgãos incumbidos de realizá-las tornam-
se especializados tecnicamente nessas funções. Assim, algumas instituições dentro do
Estado passam a ter uma maior capacidade na tomada de decisões do que outras, como
decorrência dessa mesma especialização.
57 Nesse sentido: BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a
última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. e BARROSO, Luís
Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. In:
Revista de Direito do Estado: Rio de Janeio, v. 16, n. 3, 2009. 58 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.
64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso
em: 07 de jun de 2013.
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À separação de poderes, por influência do direito americano, foi incorporada a
noção de freios e contrapesos, que permite que haja uma interpenetração entre os poderes
quando de sua atuação. Reconhece-se que variadas funções podem ser desenvolvidas por
um único poder e se estruturam mecanismos que possibilitam esse exercício. A
interpretação de textos jurídicos e aplicação do Direito, nesse sentido, estão entre essas
funções que podem ser desenvolvida por diversos entes estatais, tais quais o Judiciário,
Legislativo, Executivo, Agências Reguladoras, Ministério Público, entre outros.
No panorama brasileiro, por sua vez, as questões de separação de poderes e
capacidades institucionais aprofundam-se com o advento da Constituição de 1988. Há um
novo desenho institucional, um modelo que colocou o texto constitucional acima de – e
ligado a – todas as normas e instituições estatais. Dentro deste, o Poder Judiciário cresceu,
adquiriu importância e estabilidade, passando a ampliar seu campo de atuação,
promovendo ingerências sobre a política e questões técnicas especializadas. É assim que
lembra Felipe de Melo Fontes:
“Ora, nada impede que o discurso jurídico avance sobre temas legislativos e
administrativos, mas a existência de normas constitucionais instituindo direitos
tradicionalmente tratados de maneira coletiva, marcadas por sua baixa densidade
normativa, serviu como um convite a que a barreira institucional fosse atravessada em
termos incontornáveis.” 59
Nesse quadro, o novo Código de Processo Civil propõe, com vistas aos já
mencionados princípios da isonomia, segurança jurídica e celeridade, um sistema de
produção de decisões vinculantes centrada nos tribunais superiores (STF e STJ), com
poderes, ainda, para os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais60
em matérias
de sua competência e quando não haja orientação superior.
Ao proferirem essas decisões vinculantes, ou ao consolidarem o entendimento que
possuem como dominante em enunciados sumulares, os juízes desses tribunais estão a
produzir uma norma jurídica com pretensões gerais e abstratas, que visam conformar todas
as condutas que se adequem àquela moldura fática. Estão a desempenhar, portanto, um
59 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a
Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.
64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso
em: 07 de jun de 2013. 60 É nesse sentido que vem inovar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
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papel tradicionalmente conferido ao Legislativo. Mas não só, algumas decisões, a exemplo
daquelas tomadas em matérias de políticas públicas, repercutem igualmente no Poder
Executivo e em seu processo de tomada de decisões.
É, portanto, no âmbito dessas decisões que surgem importantes considerações
sobre as capacidades institucionais, tanto do Judiciário, quanto das demais instituições,
para a tomada destas. As considerações institucionais devem, pois, ser debatidas e
apreciadas quando os juízes atuam, há um dever nesse sentido, o que não se restringe a
decisões de controle de constitucionalidade ou àquelas das Cortes Supremas, mas deve
atingir toda forma de precedente.
Esse dever dos tribunais comuns de atentar para as considerações institucionais é
reconhecido, inclusive, por Cass Sunstein e Adrian Vermeule, leia-se:
“Geralmente, todavia, considerações institucionais são deixadas para segundo plano e a
interpretação de precedentes é realizada de forma indiferente a elas. [...] Nossa ênfase tem
sido que a interpretação dos textos, tomados como formas de normas encontrados nas
constituições, leis e regulamentações. Mas precedente são, claro, textos também, e na
decisão do que o precedente significa, um tribunal de common law deveria dar bastante
atenção para considerações institucionais. [...] Quando juízes do common law, diferente
dos doutrinadores do common law, decidem por caracterizar um precedente de forma
ampla ou restrita, questões como falibilidade judicial e a dinâmica dos efeitos das decisões
são centrais”61
.
Os autores ainda levantam, junto à falibilidade humana e judicial, a dificuldade
técnica e de conhecimento dos magistrados, em especial os de Cortes locais e regionais e
aqueles de primeira instância, uma vez que as mais altas tendem a remediar esse problema
através de assessoria especializada; bem como sua incapacidade de efetuar juízos
61 Tradução livre. No original: “Too often, however, the institutional considerations are placed in the
background, and the interpretation of precedents is undertaken in a way that is indifferent to them. [...] Our
emphasis has been on the interpretation of texts, taken as the sorts of commands found in constitutions,
statutes, and regulations. But precedents are of course texts too, and in deciding what a precedent means, a
common law court should pay close attention to institutional considerations. [...] When common law judges,
as opposed to theorists of the common law, decide whether to characterize precedents narrowly or broadly,
the questions of judicial fallibility and of dynamic effects are central.” (SUNSTEIN, Cass; VERMEULE,
Adrian. Interpretation and Institutions. In: Michigan Law Review. V. 101, n. 04, 2003. p. 45-6.)
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sistêmicos e prognósticos para a prolação da decisão, como questões que devem ser
ponderadas quando da formação de um precedente judicial62
.
Tais exposições apontam, assim, que o Judiciário nem sempre é a melhor
instância para a decisão. Pode não ter o conhecimento necessário para proferir decisões
especializadas, ou não levar em consideração os efeitos sistêmicos de suas decisões, o que
o Código de Processo Civil busca contornar com a convocação de peritos e, agora, com a
figura do amicus curiae. Decisões judiciais, em especial as vinculantes como as propostas
pelo novo CPC, possuem sérias consequências posteriores e não restritas ao processo, ao
passo que os tribunais brasileiros não possuem aptidão ou tempo de decisão suficiente para
antecipá-las.
Concebidos já para reverter o quadro de abarrotamento dos Tribunais, os
precedentes são negativamente afetados por ele. As Cortes e juízes pátrios possuem
acervos infindáveis de processos, para os quais o Conselho Nacional de Justiça – CNJ tem
editado metas de resolução e sentenças, o que afeta a qualidade da prestação jurisdicional.
O juiz não tem tempo ou condições de avaliar o processo e, muito menos, os efeitos
sistêmicos e externos de sua decisão. E esse quadro não se reverte com o sistema de
precedentes vinculantes trazidos pelo novo Código de Processo Civil.
Embora sujeitas a um processo diferenciado de prolação, que pressupõe, a
depender do caso, a repetição daquele entendimento até sua consolidação, ou uma ampla
participação das partes e interessados, os precedentes do novo CPC ainda são decididos
dentro daquelas condições do Judiciário. O juiz ou Tribunal ainda tem que fornecer uma
resposta de maneira rápida e voltada ao caso concreto. Mesmo que exista, como faz o novo
código, o dever de abstrair as considerações casuísticas ou de analisar o vários recursos
representativos da controvérsia repetitiva, ainda prevalece um modelo casuístico de
adjudicação, o qual só pode ser revertido com o tempo.
Prolatar, portanto, decisões vinculantes que falham em analisar os efeitos
sistêmicos que a norma geral e abstrata vai produzir vai ferir os próprios princípios que os
62 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. In: Michigan Law Review. V.
101, n. 04, 2003. p. 45-6.
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precedentes visam a proteger, quais sejam os de segurança jurídica e estabilidade social.
Surge, então, a questão: quem estaria melhor habilitado para a tomada dessas decisões?
O Legislativo, como originalmente concebido, é um poder legitimado pela
população através do voto. É formado por representantes eleitos para a tomada de decisões
de cunho propriamente político, criando e modificando o Direito, em um sistema que
assegura a igualdade de participação nesse processo63
.
Mas ele também apresenta suas próprias dificuldades. “O processo político
encontra-se em franco descrédito frente à opinião pública, e mesmo no campo dos estudos
jurídicos jamais teve a mesma atenção devotada à magistratura”64
. Aliás, a criação de
precedentes vinculantes no sistema brasileiro é um reflexo dessa crise de legitimidade e
técnica que marca o Legislativo.
A legislação ordinária padece de alguns vícios na sociedade atual. Enquanto vige
uma proliferação descontrolada de normas legais, estas são incapazes de fornecer respostas
apropriadas para as situações que permeiam as demandas denominadas repetitivas. Há,
então, uma multiplicidade insatisfatória de textos legais.
O processo legislativo, por sua vez, é incapaz de fornecer as respostas em tempo
apropriado. Principalmente no campo das demandas repetitivas, alguns interesses não
jurídicos são capazes de interferir no processo legislativo, obstando o andamento de
votações. Cumpre destacar que esse não é um quadro que se está aqui diagnosticando. Há
muito foi identificado, cabendo nesse estudo, apenas, apontar essas falhas como
fundamento das considerações traçadas.
63 Assim escreve Felipe de Melo Fonte: “Como se percebe, a composição plural das questões sociais depende
da participação dos setores envolvidos. Neste sentido, cabe sustentar que o processo político tem duas
vantagens gerais essenciais do ponto de vista institucional, a saber: (i) permite o direito à participação no
processo político em igualdade de condições; (ii) garante, via de regra, o direito à igualdade de tratamento no
acesso aos bens e serviços providos pelos poderes públicos, estabelecendo critérios gerais de fruição.
(FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a
Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.
64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso
em: 07 de jun de 2013). 64 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.
64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso
em: 07 de jun de 2013.
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Nesse cenário de falência legislativa, os precedentes surgem como uma alternativa
razoável à insegurança jurídica. A necessidade de resposta é mais urgente do que o
aguardo por um legislador responsável. A situação de acúmulo processual nos tribunais é
insuportável e paralisante65
.
Legislativo e Judiciário, dessa forma, possuem suas capacidades, limitações e
despreparos, como brevemente exposto aqui. Não é, contudo, pretensão do presente
trabalho exaurí-los ou tecer maiores considerações sobre eles. Visa-se apenas fornecer uma
noção deles. Ademais, mesmo diante desses problemas, a tomada de decisões e criação de
normas deve ser realizada. O sistema foi construído e será aplicado pelos Tribunais.
O Judiciário, como uma instância racional de debates, sujeito e provocado pela
argumentação jurídica, mesmo que exercida individualmente, enquanto os outros órgãos
políticos dependem de diferentes formas de estímulo, vem pelo sistema de precedentes do
novo CPC buscar fornecer as respostas por segurança jurídica às situações que, embora
recorrentes na sociedade, não possuem uma resposta legislativa adequada. Esse é, por logo,
um papel que deve ser reconhecido ao sistema de precedentes vinculantes. Cumprirá uma
função de solução imediata àquelas situações sociais conflituosas, ao mesmo tempo em
que aumentará a atenção do legislador para a matéria controversa, agilizando o processo de
decisão política e de elaboração normativa.
É possível, todavia, que a adoção de precedentes vinculantes à nível de Tribunais
e Tribunais superiores causem uma maior ingerência sobre as competências legislativas do
que as decisões vinculantes do tradicional controle de constitucionalidade. Não haverá
restrição de matéria que possa ser tratada pelos tribunais na formulação de regras gerais.
Algumas dessas matérias, outrossim, já podem estar ativas no debate legislativo,
percorrendo seu trâmites para aprovação, com uma norma jurídica já definida, ou perto de
sua definição.
Para contornar esses perigos, dessa forma, é aconselhável que o juiz, sempre que
decidir com pretensões vinculantes, investigue o posicionamento do Parlamento sobre a
matéria, os debates legislativos e se poste a adotar uma decisão semelhante àquela para
65 Veja-se: WALDRON, JEREMY. The core case against judicial review. In: The Yale Law Journal,
apr./2006.
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qual se encaminha o discurso político, ou ainda que se coloque em atitude de deferência, e
aguarde a solução legal.
O Poder Judiciário deve sempre sopesar as capacidades dos demais entes estatais
quando de sua decisão. Deverá, sempre, contemplar que “o processo político tem
exatamente a capacidade de operacionalizar o acesso dos grupos políticos e dos indivíduos
às decisões públicas” e que “em contrapartida, o processo judicial jamais poderá alcançar a
mesma dimensão do processo político na implementação específica do direito à
participação popular”66
.
A possibilidade de participação pública das discussões e decisões políticas, como
elemento do processo democrático, cria, desse modo, uma legitimidade e prioridade para
as suas escolhas, principalmente nas matérias que envolvam decisões coletivas, legislações
infraconstitucionais, ou ainda de menor relevância, tais como as que serão objeto do novo
sistema de precedentes. Nesses casos, o Judiciário deverá guardar uma maior deferência ao
processo democrático, abstendo-se de formar o precedente, ou formulando-o de maneira
apta a ser revisto pelo Legislativo.
Em matérias como direitos fundamentais, por outro lado, em que é reconhecida a
capacidade do Judiciário de salvaguardar a eles e a minorias, este poder possuirá uma
maior liberdade prima facie na tomada de decisão vinculante e na formação da norma
jurídica geral e abstrata.
Tomada a decisão, ademais, como poderá se dar o sistema de reações
institucionais aos precedentes vinculantes?
Atentando, inclusive, para a origem do civil law, há de se perceber que a adoção
dos precedentes vinculantes pelo novo CPC possui como possível efeito prático a
possibilidade de orientar a produção normativa pelo Legislativo67
.
66 FONTE, Felipe de Melo. Desenho Institucional e Políticas Públicas: Alguns Parâmetros Gerais para a
Atuação Judicial. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.
64. Abr. 2011. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeConteudo?article-id=395671>. Acesso
em: 07 de jun de 2013. 67 Conforme já discorrido na parte introdutória deste trabalho. E complementa Patricia Perrone: “O próprio
legislador, não raro, busca inspiração a jurisprudencia para regular certos assuntos, ou para aprimorar e
atualizar as normas já existentes”. (MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento do
direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 69-70.)
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Diferentemente das decisões de controle de constitucionalidade, onde os
mecanismos de reação possuem diferentes contornos e dependem de um maior custo
político para serem exercidos, no caso dos precedentes vinculantes de tribunais superiores
e tribunais estaduais, os custos de normatização, superação e modificação são menores. O
instrumento típico de reação pelo Legislativo, nesse contexto, será a edição de lei
ordinária.
Não deixando de conceber, é claro, o papel de reação que pode ser exercido pelo
Poder Executivo, motivado e influenciado por pressões legislativas, através da edição de
Decretos, capazes de modificar os efeitos normativos, e a consequente decisão vinculante
proferida, ao mesmo tempo em que possui um procedimento facilitado de edição.
Os mecanismos de controle de precedentes surgem, também, como formas mais
simples de reação e interação com os precedentes, contribuindo, então, para um melhor
resultado final. Métodos preventivos de controle podem ser exercidos ainda no curso do
processo de decisão judicial. A Administração, através de seus órgãos especializados; a
população, organizada em grupos ou não; e os partidos políticos podem habilitar-se como
interessados, como amicus curiae nos processos de formação do precedente, trazendo suas
informações e considerações institucionais ao Judiciário e participando do processo
decisório.
É possível, ainda, que quando da aplicação da norma geral contida no precedente,
principalmente por autoridades administrativas, estas, no exercício de sua competência
interpretativa do Direito, venham a negar aplicação aos precedentes vinculantes emitidos
pelo Judiciário “que, apesar de à primeira vista se adequarem ao seu pressuposto fático,
apresentam distinção relevante que lhes justifique tratamento díspar (distinguish)” 68
.
Assim, portanto, como facultado às instâncias inferiores, poderão as autoridades
administrativas e demais entes institucionais valerem-se do distinguishing como meio de
reação ao precedente, bastando uma racional fundamentação das distinções para com o
caso anterior vinculante.
68 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 283-284.
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Outros mecanismos de reação também são aplicáveis, como o controle
orçamentário e salarial do Legislativo sobre o Judiciário, ou ainda a não implementação
das decisões judiciais. No entanto, eles pressupõem um maior custo e mobilização política
que não é comum às matérias decididas em sede de precedentes de demandas repetitivas,
de forma que seu uso será de pouca probabilidade.
Alguns repercussões pontuais da adoção do sistema de precedentes vinculantes
devem ser notados e discorridos.
Primeiramente, a nova importância atribuída aos enunciados sumulares faz surgir
um problema normativo. Aquelas editadas anteriormente à edição do novo CPC não foram
produzidas concebendo uma eficácia vinculativa dos demais tribunais. Não era esse o
propósito dos enunciados sumulares. Seus editores visaram apenas uniformizar
determinado entendimento. Entretanto, a mudança para o novo Código de Processo Civil
irá refletir nesses enunciados. Adquirirão eficácia normativa e vinculante, equiparada às
normas legais, inclusive às leis e disposições editadas posteriormente a elas, motivada,
talvez, pela superação de tais posicionamentos judiciais.
É possível haver, assim, um quadro de conflito normativo entre as súmulas alçadas
a regras gerais universalizáveis e outros dispositivos normativos editados pelo Legislativo
e Executivo posteriormente à criação das súmulas. Nesse contexto, para evitar o
surgimento deste impasse, será necessário, com fundamento no inciso V, §§1º e 2º do
artigo 847 do PLS original e §§1º, 2º e 3º do artigo 521 do substitutivo da Câmara de maio
de 2013, que se realize uma revisão dos enunciados sumulares já editados, para que se
possa promover a integridade do próprio sistema jurídico.
Outra questão aparece no controle de políticas públicas. O Judiciário, a partir da
previsão de normas programáticas pela Constituição, passou a emitir decisões políticas que
envolvem políticas públicas. Torná-las vinculantes, evitando ponderações no caso
concreto, pode ter consequências devastantes. O tão alongado debate sobre a possibilidade
de judicialização de direitos sociais pode adquirir novas perspectivas frente ao novo
sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil69
.
69 O Supremo Tribunal Federal, ademais, já proferiu decisão com efeitos erga omnes em matéria de políticas
públicas, tal qual aquela proferida no RE n. 566.471.
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O estabelecimento de regra de aplicação para todos os casos sucessivos e
presentes nos tribunais inferiores poderá gerar repercussões financeiras para os poderes
encarregados da elaboração orçamentária, ao impor o atendimento de todas as demandas
posteriores.
E, nesse ponto, será sempre necessário que o Judiciário, antes de prolatar suas
decisões, ouçam, mesmo que não venham espontaneamente aos autos, necessitando de
intimação, os poderes e órgãos envolvidos. Os aspectos técnicos, científicos e financeiros
são importantes elementos que deverão ser observados pelo magistrado, como também os
efeitos sistêmicos, a “massa sem rosto e sem identidade conhecida, mas que são atingidos
pela transferência alocativa” 70
, de recursos deve estar presente na construção da decisão.
Decisões vinculantes em matérias de políticas públicas, portanto, não são
aconselháveis, principalmente quando baseadas em uma demanda individual. Transformar
em precedente decisão oriunda de causa individual encontra limites nas dificuldades de
abstração da adjudicação casuística e de compreensão sistêmica dos Tribunais. As
demandas coletivas ganham importância nesse debate. A tomada de decisões vinculantes,
ou que atinjam uma coletividade, deve ocorrer de preferência no curso destas.
No mesmo sentido, caso as cortes, ou o magistrado, não se considerem capazes de
proferir tais decisões, um dever de deferência para com a política estará sempre presente e
o precedente poderá ser construído dessa maneira. Cumprirá com seu dever de decidir e
passará a decisão para aquele que se apresenta em melhor condição de tomá-la.
3.2. Repercussões na Relação entre o Poder Judiciário e as Agências Reguladoras
É importante considerar, embora não seja o escopo desse artigo aprofundar a
matéria, que as decisões tomadas sob os parâmetros dos precedentes vinculantes do novo
Código de Processo Civil são capazes de influenciar não só os atores tradicionais, tais
70 AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da práxis
judiciária. In: NOBRE, Milton; SILVA, Ricardo Augusto Dias da. O CNJ e os desafios do direito à saúde.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. pp. 81-115. p. 111-2.
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quais o Executivo, o Legislativo e o próprio Judiciário, mas também outros atores
institucionais de atual importância e influência, a exemplo do Ministério Público, Agências
Reguladoras e o Tribunal de Contas da União. Passíveis de serem visualizados como novos
poderes da república, na visão de Bruce Ackerman71
, as decisões tomadas em sede de
precedentes vinculantes podem interferir no desempenho de funções institucionais por
esses entes.
Não ingressando em considerações sobre a capacidade de análise de questões
regulatórias pelo Poder Judiciário, faz-se mister apenas ressaltar que são notórias as
objeções e dificuldades de análise de aspectos econômicos e sistêmicos pelos juízes.
Escapa, pois, ao Judiciário uma plena capacidade para tomada de decisão em matéria
regulatória, recaindo a ele um dever de deferência às decisões dos entes reguladores em
alguns casos72
.
Dessa forma, a tomada de decisões com conteúdo vinculante em matéria
regulatória pode corresponder a uma violação desse dever de deferência. Principalmente
nesses casos, há um obrigação maior da decisão ser adequada ao caso concreto. O juiz
deve estar em posse de todas as informações, juízos de prognose e demais elementos para
que tenha capacidade de fornecer uma decisão na matéria. E mais, esses elementos advém
do próprio ente regulatório numa relação de diálogo entre poderes73
.
Decisões vinculantes nesses campos, portanto, enrijeceriam esse processo
dialógico e causariam sérias repercussões econômicas aos sujeitos àquela ordem
regulatória. O Judiciário não só estaria se substituindo ao ente regulador, como também
proferiria uma decisão que transcenderia o caso concreto, afetando situações em que o
juízo individual não foi realizado, em que as informações e capacidades não foram
71 Ver: ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. In: Harvard Law Review, v. 113, v. 03, jan.
2000, pp. 691-699. 72 Nesse sentido defende a doutrina estrangeira: SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and
Institutions. In: Michigan Law Review. V. 101, n. 04, 2003. A nível nacional têm-se: CYRINO, André
Rodrigues. Direito Constitucional regulatório – elementos para uma interpretação institucionalmente
adequada da Constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.;.RAGAZZO, Carlos
Emmanuel Joppert. Regulação jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico. Rio de Janeiro:
Renovar, 2011. 73 CYRINO, André Rodrigues. Direito Constitucional regulatório – elementos para uma interpretação
institucionalmente adequada da Constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. P. 272-
275.
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devidamente analisadas, podendo não coincidir com aquelas que motivaram a decisão
original, ou ainda acarretando numa desnecessária e incabível intervenção econômica.
A norma contida no §2º do artigo 995 da versão de maio de 2013 do projeto do
novo Código de Processo Civil fornece um bom exemplo do ora defendido. Não obstante
estabeleça o dever de comunicação do resultado do julgamento que formou um precedente
vinculante em matéria regulatória às agências reguladoras competentes, tal ordem é
somente posterior a essa formação e visa, apenas, ao controle dos efeitos da decisão, sem
considerar a potencial participação da agência no processo. O novo Código, nesse
contexto, deveria, da mesma forma que sujeitou os entes reguladores à condição de
fiscalizador, ter estabelecido a intimação e oitiva obrigatória desses para obter, assim, os
elementos necessários à tomada de decisão.
Observa-se, portanto, que a adoção de um mais amplo sistema de precedentes,
como faz o novo Código de Processo Civil, traz um novo elemento para o debate do
controle de atos regulatórios pelo Poder Judiciário. A possibilidade de multiplicação de
uma decisão vinculante em matéria que envolva agências reguladoras torna-se um novo
ponto de análise obrigatória para Ministros e Desembargadores no momento da tomada da
decisão vinculante. Eles devem estar cientes da potencial repercussão econômica de sua
decisão e dos efeitos sistêmicos que poderão causar.
CONCLUSÕES
Há uma tendência, quase irreversível, na incorporação dos precedentes nos
sistemas jurídicos de origem germânica. E o novo Código de Processo Civil vem promover
esse movimento no direito brasileiro. No entanto, há um debate que precisa ser enfrentado.
É o embate entre conceder a todos os tribunais pátrios o poder de proferir decisões
vinculantes, potencializando os riscos de um Judiciário por demais poderoso, tal como
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destacam as críticas direcionadas para a judicial review por diversos autores74
; ou permitir
que continue a proliferação de demandas repetitivas e o engessamento do Judiciário ante à
incapacidade de fornecer a resposta apropriada para elas. Não é este artigo o local para
respondê-las, mas para provocar o debate. Aqui se buscou avaliar as possíveis repercussões
decorrentes dessa dicotomia.
Os resultados desse artigo, ademais, possuem intuito meramente especulativo,
uma vez que, até o fechamento desta versão, o projeto do novo CPC não havia sido
aprovado, nem uma versão definitiva posta em votação. Ao mesmo tempo, a interação com
os demais poderes, em especial com o Legislativo só poderá ser melhor analisada a partir
de dados empíricos referentes ao uso dos novos instrumentos de vinculação ao precedente.
Utilizou-se como base, dessa forma, os já existentes institutos e considerações doutrinárias
sobre a matéria.
Entretanto, já é possível precisar, nesse campo, a necessidade de uma maior
consciência do papel que os tribunais estão exercendo. A tomada de decisões em sede de
precedentes vinculantes, como um novo papel a ser conferido a tribunais superiores e aos
estaduais, diferentemente daquele já consolidado no Supremo, deve vir acompanhada de
uma conscientização desses tribunais da função que estão exercendo. Devem levar em
conta suas limitações institucionais, como também o jogo de poderes e reações com os
demais entes estatais. E mais, um novo ingrediente é acrescentado neste cotejo
institucional, as relações internas do próprio Poder Judiciário. Quando tomada pelo STJ,
Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais, é importante que a corte tenha em
mente as repercussões e possibilidade de modificação de seu precedente vinculante pelas
suas instâncias revisoras. Mais uma consideração, portanto, ingressa nas preocupações
institucionais dos Tribunais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
74 Em especial: WALDRON, JEREMY. The core case against judicial review. In: The Yale Law Journal,
apr./2006.
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652
TRANSAÇÃO PENAL
Pedro Gomes de Queiroz
Mestrando em Direito Processual na UERJ. Pós-Graduando
Lato Sensu em Direito Processual Civil na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Advogado no Rio de Janeiro.
RESUMO: Este artigo tem por fim analisar questões controversas acerca do instituto da
transação penal, previsto pelo art. 98, I, da Constituição da República Federativa do Brasil
e regulamentado pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/1995.
PALAVRAS-CHAVE: transação penal, juizados especiais criminais, poder-dever, direito
subjetivo, recurso.
ABSTRACT: This paper aims to analyze controversial questions towards the institute of
plea bargaining, foreseen by the art. 98, I, of the Constitution of the Federative Republic of
Brazil and regulated by the articles 76 and 79 of the Law 9.099/1995.
KEY WORDS: plea bargaining, special criminal courts, duty, right, appeal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Tentativa de transação penal na ação penal pública
incondicionada e na condicionada à representação. Pode haver transação penal na ação
penal privada? 3. Arquivamento do termo circunstanciado e transação penal. 4.
Apresentação da proposta de transação penal pelo autuado e seu advogado 5. O
oferecimento da transação penal é uma faculdade ou um poder-dever do Ministério
Público? O juiz pode apresentar proposta de transação penal quando o Ministério Público
injustificadamente deixar de fazê-lo? 6. Proposta de aplicação imediata de pena restritiva
de direitos ou multa. 7. Especificação da pena proposta. 8. Redução até a metade da pena
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de multa pelo juiz. 9. Da inadmissibilidade da proposta: causas impeditivas da proposta e
da homologação. 10. Comprovação das causas impeditivas. 11. Primeira causa impeditiva:
anterior condenação, transitada em julgado, à pena privativa de liberdade, pela prática de
crime. 12. Segunda causa impeditiva: anterior benefício, no prazo de cinco anos. 13.
Terceira causa impeditiva: os antecedentes, a conduta social, a personalidade do autuado,
os motivos e circunstâncias indicando não ser necessária e suficiente a transação penal. 14.
Suficiência de uma das causas impeditivas para obstar a proposta. 15. O dever do
Ministério Público de fundamentar a decisão de não formular a proposta de transação
penal. 16. Aceitação da proposta pelo suposto autor do fato e por seu defensor. Conflito de
vontades. Natureza jurídica da aceitação. 17. Pode o ofendido interferir na transação penal?
18. Pluralidade de envolvidos e de fatos. 19. Controle jurisdicional e seu resultado:
acolhimento ou rejeição da proposta aceita pelo autuado. 20. Aplicação da sanção penal.
Natureza da sentença. 21. A sentença homologatória da transação penal é apelável, mas
não o é a decisão que indefere a homologação. 22. Descumprimento do acordo. 23.
Conclusão.
1. Introdução
O instituto da transação penal foi previsto pelo art. 98, I, da Constituição Federal1 e
regulamentado pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/19952.
No Brasil, o Ministério Público está sujeito ao princípio da legalidade ou da
obrigatoriedade. Presentes os pressupostos que permitem a propositura da ação, ele não
tem escolha: é obrigado a oferecer a denúncia, a dar início à ação penal. Na ação penal de
iniciativa privada, ao contrário, o ofendido tem a faculdade de propor ou não a ação penal,
em razão do princípio da oportunidade3.
A Lei 9.099/1995 não derrogou o princípio da obrigatoriedade, ou seja, não adotou,
nos crimes de ação penal pública, o princípio da disponibilidade. Apesar disso, essa lei deu
um importante passo à frente ao permitir que, nos ilícitos abrangidos por ela, possa haver
1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 out. 2013. 2 BRASIL. Lei 9.099/1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em 14 out. 2013. 3 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do
processo penal: a Lei n.º 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 318.
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transação, ou seja, possa o órgão do Ministério Público, na audiência preliminar, em vez de
denunciar o suposto autor do fato pelo ilícito praticado, propor-lhe a aplicação de uma
pena não privativa de liberdade4.
Transação implica cada uma das partes interessadas ceder alguma coisa. No caso, o
Ministério Público abre mão do direito de propor a ação e pleitear a condenação do suposto
autor do fato a uma pena de prisão. Já o suposto autor do fato, dispõe sobre seu direito ao
processo5.
Só aparentemente, no entanto, os dois perdem. Na realidade, ambos ganham: o
Ministério Público, porque consegue impor uma pena justa ao suposto autor do fato; este
último porque recebe a pena menos severa possível na espécie, sem ser condenado e,
portanto, sem que o fato praticado gere reincidência e, até mesmo, sem que possa ser
comunicado a qualquer juiz que não seja do juizado especial6.
Quando autorizada pela lei, a transação penal deve ser proposta na audiência
preliminar, logo após a tentativa de composição dos danos civis. Se não houver sido
proposta naquela audiência, deverá sê-lo ao início da audiência de instrução e julgamento,
nos termos do art. 79 da Lei 9.099/19957.
Nos crimes de ação penal pública incondicionada à representação do ofendido, a
transação penal independe da composição dos danos civis. Já nos crimes de ação penal
pública condicionada à representação do ofendido e nos crimes de ação penal privada, a
conciliação quanto aos danos civis impede a transação penal, pois implica a renúncia
quanto ao direito de representação ou queixa8.
O uso dos termos “autor da infração” e “agente” pelo art. 76 da Lei 9.099/1995 é
inadequado, tendo em vista que o suposto autor da infração ainda é um simples autuado
com relação ao fato que deu margem à audiência de conciliação. Como ainda não existe
sentença penal transitada em julgado que condene o autuado pelo referido fato, este não
4 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 5 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 6 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 319. 7 “Art. 79. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase preliminar não
tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos arts. 72, 73, 74 e 75 desta Lei.”. BRASIL. Lei 9.099/1995. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. 8 Cf. art. 74, Lei 9.099/1995.
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pode ser considerado culpado9. Assim, a lei deveria ter usado a expressão “autuado” ou a
expressão “suposto autor do fato” 10
.
2. Tentativa de transação penal na ação penal pública incondicionada e na
condicionada à representação. Pode haver transação penal na ação penal privada?
A lei só cuida da proposta de aplicação da pena com relação à ação penal pública,
condicionada ou não. Segundo Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho,
Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, a visão tradicional de que a vítima só
tem interesse na reparação civil do dano provocado pelo crime, mas não na aplicação da
pena, levou o legislador a não prever a transação para os crimes de ação penal privada. No
entanto, Ada Pellegrini Grinover et al. destacam que a evolução dos estudos sobre a vítima
demonstram que esta tem interesse, ainda, na punição penal e que não existem razões
ponderáveis para deixar à vítima somente duas alternativas: buscar a punição plena ou a ela
renunciar11
.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a vítima que viu frustrado o acordo civil do
art. 74 da Lei 9.099/1995, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra
alternativa lhe for oferecida. Mas se pode o mais, porque não poderia o menos?12
Talvez
sua satisfação no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de
direitos ou multa. A transação penal decorre de norma prevalentemente penal e mais
benéfica para o autuado. Dentro desta postura, deve-se aplicar, por analogia, aos crimes de
ação penal privada, a transação penal, prevista pelos artigos 76 e 79 da Lei 9.099/199513
.
Ada Pellegrini Grinover et al. entendem que somente o ofendido pode oferecer a
proposta de transação penal relativa a crimes de ação penal privada, já que somente ele tem
legitimidade para ajuizar este tipo de ação, devendo o Ministério Público, nesse caso,
9 Cf. art. 5º, LVII, da Constituição Federal. 10 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance;
GOMES; Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 5. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 148-173. 11 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p.150. 12 André Luiz Nicolitt adota o mesmo entendimento e faz a mesma pergunta. NICOLITT, André Luiz.
Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 24-25. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 150.
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limitar-se a opinar sobre o cabimento da transação14
. Guilherme de Souza Nucci15
e André
Luiz Nicolitt16
se filiam a esta corrente.
André Luiz Nicolitt aponta como fundamentos da transação penal na ação penal de
iniciativa privada o princípio constitucional da isonomia17
e o princípio da
consensualidade, que informa os juizados especiais. Segundo este autor, não seria justo e,
tampouco, constitucional que a iniciativa da ação permitisse que crimes de menor potencial
ofensivo tivessem tratamentos diversos18
.
André Luiz Nicolitt aduz que o Ministério Público não tem legitimidade para
promover a ação penal de iniciativa privada, seja na forma de denúncia, seja na forma de
transação prevista no art. 76 da Lei n.º 9.099/1995. Todavia, uma vez oferecida a queixa, o
promotor pode oferecer a transação na hipótese do art. 79 da Lei n.º 9.099/1995. Segundo
o autor, a oferta da transação após o oferecimento da queixa, funda-se na aplicação
analógica do art. 45 do CPP. Presentes os requisitos para a transação, esta passa a ser a
única forma adequada de oferecer a ação penal; se o ofendido iniciou de forma inadequada,
o Ministério Público – que pode aditar a queixa – poderá fazer uma espécie de aditamento
(emenda – correção) para adequar a ação aos termos do que a lei determina, ou seja, a ação
penal na forma de queixa transmudará para a forma de transação, por meio da intervenção
do Parquet. Antes da queixa, não pode o Ministério Público oferecer a transação, pois
vigora o princípio da oportunidade, não tendo o Parquet legitimidade para a ação de
iniciativa privada. Todavia, uma vez oferecida a ação, o Ministério Público deve intervir
até porque o direito de punir é do Estado e cabe a ele velar pela adequada aplicação do
ordenamento jurídico19
.
Nereu José Giacomolli entende que a transação penal é cabível tanto na ação penal
de iniciativa pública, quanto na de iniciativa privada. Segundo este autor, a proposta de
transação criminal poderá ser feita pelo magistrado, requerida pelo querelado ou até
proposta pelo querelante, já que inexiste vedação legal20
.
14 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 150. 15 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 685-686. 16 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 24-25. 17 Cf. art. 5º, caput, CF. 18 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 24-25. 19 NICOLITT, André Luiz, Op. cit., p. 25-26. 20 GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados especiais criminais: Lei n. 9.099/1995. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997, p. 96.
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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é favorável à transação
penal nos crimes de ação penal privada e sustenta que a legitimidade para formular a
proposta, neste caso, é do ofendido. Entretanto, consigna que o querelante não tem o dever
de oferecer a proposta de transação penal, ainda que preenchidos os requisitos legais:
[...] 1. Embora admitida a possibilidade de transação penal em ação
penal privada, este não é um direito subjetivo do querelado,
competindo ao querelante a sua propositura. [...] 21
.
[...] II - A jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a
aplicação da transação penal às ações penais privadas. Nesse caso,
a legitimidade para formular a proposta é do ofendido, e o silêncio
do querelante não constitui óbice ao prosseguimento da ação penal.
III - Isso porque, a transação penal, quando aplicada nas ações
penais privadas, assenta-se nos princípios da disponibilidade e da
oportunidade, o que significa que o seu implemento requer o mútuo
consentimento das partes. [...] 22
.
O Enunciado Criminal n.º 112 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais
(FONAJE) adotou entendimento no sentido do cabimento de transação penal nos crimes de
ação penal privada, mas dispôs que, neste caso, a proposta deve ser feita pelo Ministério
Público: “Na ação penal de iniciativa privada, cabem transação penal e a suspensão
condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público” 23
.
3. Arquivamento do termo circunstanciado e transação penal
Ada Pellegrini Grinover et al. sustentam que o Ministério Público só deve formular
sua proposta de aplicação imediata da pena não privativa de liberdade quando, em um
21 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1356229/PR da Sexta Turma, Rel. Ministra
Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ/PE), j. 19/03/2013, DJe 26/03/2013.
Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 21 set. 2013. 22 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn .634/RJ da Corte Especial , Rel. Ministro Felix Fischer, j. 21/03/2012, DJe 03/04/2012. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 21 set. 2013. 23 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 112. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.
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juízo prévio ao oferecimento da denúncia, estiver convencido da necessidade de
instauração do processo penal.
Isso só indica, no entanto, a necessidade de um exame prima facie do que resulta do
termo circunstanciado: assim, se houver falta de tipicidade, ocorrência de prescrição ou
inimputabilidade, o Ministério Público deverá pedir o arquivamento. Mas a análise da justa
causa, por exemplo, que envolve a existência de elementos probatórios não poderá ser
averiguada nesse momento24
.
4. Apresentação da proposta de transação penal pelo autuado e seu advogado
Ada Pellegrini Grinover et al. observam que, embora a lei só se refira ao Ministério
Público como proponente da imediata aplicação de pena não privativa de liberdade, a
proposta pode ser apresentada pelo próprio autuado, assistido por seu advogado, tendo em
vista o princípio constitucional da isonomia e a informalidade da audiência de conciliação.
Segundo estes doutrinadores, não importa de quem é a iniciativa da proposta, o que
interessa é que seja discutida entre os protagonistas da audiência de conciliação, sob a
orientação do juiz25
.
Importa salientar que somente haverá transação penal caso o Ministério Público
aceite a proposta apresentada pelo autuado e pelo advogado deste, já que se trata de uma
proposta de acordo e não de um pedido dirigido ao juiz.
5. O oferecimento da transação penal é uma faculdade ou um poder-dever do
Ministério Público? O juiz pode apresentar proposta de transação penal quando o
Ministério Público injustificadamente deixar de fazê-lo?
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., permitir ao Ministério Público (ou ao
acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação penal, na hipóteses de
presença dos requisitos do §2º do art. 76, da Lei 9.099/1995, poderia redundar em odiosa
discriminação, a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação do acusador que
assim se pautasse ao princípio da oportunidade pura, que não foi acolhido pela lei. Assim,
24 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 151-152. 25 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 152.
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o termo “poderá” contido no art. 76, caput, da Lei 9.099/1995 não indica mera faculdade,
mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que estejam
presentes as condições do art. 76, §2º, Lei 9.099/199526
.
Ada Pellegrini Grinover et al. entendem que o juiz não pode fazer a proposta de
transação penal antes do oferecimento da denúncia, nos termos do art. 76, Lei 9.099/1995,
pois isso configuraria atribuir ao juiz poderes equivalentes aos da movimentação ex officio
da jurisdição, hoje proibida em nível constitucional para a ação penal pública (art. 129, I,
CF) e banida pela própria Lei 9.099/1995, que revogou expressamente a Lei 4.611/1965.
Com efeito, a sentença homologatória da transação penal é resposta jurisdicional e, nesse
caso, teríamos exercício de jurisdição sem ação27
.
Quanto à transação posterior ao oferecimento da denúncia, Ada Pellegrini Grinover
et al. aduzem que permitir que o juiz homologue uma transação, que elimina ou suspende o
processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o exercício do
direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos constitucionais. Mesmo porque o
direito de ação não se esgota no impulso inicial, mas compreende o exercício de todos os
direitos, poderes, faculdades e ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo28
.
Ada Pellegrini Grinover et al. defendem que, caso o juiz considere improcedentes
as razões invocadas pelo representante do Ministério Público para deixar de propor a
transação29
, deve, por aplicação analógica do art. 28 do CPP, remeter as peças de
informação ao Procurador Geral, e este poderá oferecer a proposta, designar outro órgão do
Ministério Público para oferecê-la, ou insistir em não formulá-la30
.
Insistindo o procurador Geral em não formular a proposta nada mais resta a fazer
do que designar a audiência prevista na lei para o rito sumaríssimo, o que também ocorrerá
caso o querelante, na ação penal privada, não queira oferecer proposta de transação penal31
.
No mesmo sentido, o Enunciado Criminal n.º 86 do FONAJE estabelece que: “Em
caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do
processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP” 32
.
26 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 153. 27 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 154. 28 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 154. 29 O Ministério Público tem o dever de manifestar as razões pelas quais deixará de apresentar proposta de
transação penal, em respeito ao princípio constitucional da motivação do ato administrativo, implícito no art. 37, CF. Aplicando-se, ainda ao Ministério Público 30 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 155. 31 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 155.
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O mesmo entendimento foi consagrado pela jurisprudência do STJ:
[...] 2. O oferecimento da proposta de transação é ato privativo do
Ministério Público. Havendo recusa por parte do representante do
Parquet, cabe ao Magistrado, entendendo ser caso de aplicação do
benefício, remeter os autos ao Procurador-Geral, a teor do que
estabelece o art. 28 do Código de Processo Penal. [...] 33
.
André Luiz Nicolitt observa que a única conclusão sustentável para quem entende
que a transação penal é um direito subjetivo público de liberdade, seria a de que o juiz
poderá formular a proposta de transação, podendo-se questionar, tão somente, se o juiz
poderia agir ex officio ou mediante requerimento do autuado. Se há direito subjetivo, este
deve ser tutelado pelo Judiciário, tendo em vista o disposto no art. 5º, XXXV, CF34
. A
crítica, entretanto, não se sustenta, pois a transação penal constituiu exceção à regra do art.
5º, XXXV, CF, prevista pela própria Constituição em seu art. 98, I, CF. Além disso, o art.
76, §2º, III, Lei 9.099/1995 traz requisito subjetivo que só pode ser avaliado pelo
Ministério Público.
Fernando da Costa Tourinho Filho entende que a proposta de transação penal é um
poder-dever do Ministério Público, ao qual corresponde um direito subjetivo de liberdade
do réu:
Muito embora o caput do art. 76 diga que o Ministério
Público “poderá” formular a proposta, evidente que não se trata de
mera faculdade. Não vigora, entre nós, o princípio da oportunidade.
Uma vez satisfeitas as condições objetivas e subjetivas para que se
faça a transação, aquele “poderá” converter-se-á em “deverá”,
surgindo para o suposto autor do fato um direito a ser
necessariamente satisfeito.
32 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 86. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013. 33 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 59.776/SP da Sexta Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, j. 17/03/2009, DJe 03/08/2009. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 22 set. 2013. 34 NICOLITT, André Luiz. Juizados Especiais Criminais – Temas Controvertidos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 5-6.
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Não havendo apresentação da proposta, por mera obstinação
do Ministério Público, parece-nos, poderá fazê-la o próprio
Magistrado, porquanto o suposto autor do fato tem um direito
subjetivo de natureza processual no sentido de que se formule a
proposta, cabendo ao juiz o dever de atendê-lo, por ser indeclinável
o exercício da atividade jurisdicional35
.
Maurício Antônio Ribeiro Lopes adere ao mesmo entendimento:
Não temos dúvidas de que esteja o juiz autorizado a proceder
ex officio. Tem-se sugerido, a esse propósito, que ao poder-dever
da acusação corresponderia um verdadeiro direito subjetivo público
do autuado à apresentação da proposta de transação, uma vez não
enquadrado o caso nas hipóteses do §2º do art. 76. E, para esse
caso, a solução estaria então na formulação da proposta pelo juiz
que, havendo aceitação da proposta do autuado e de seu advogado,
desde logo a homologaria, nos termos do §4º do dispositivo36
.
No mesmo sentido, Nereu José Giacomolli aduz que: “O magistrado formulará a
proposta de aplicação de medida alternativa quando houver inércia do Ministério Público,
seu não comparecimento ou na recusa imotivada deste. Com isso se garante o direito
público subjetivo do acusado e o princípio conciliador” 37
.
Segundo André Luiz Nicolitt, quando se sustenta que a transação é uma faculdade
do Ministério Público, um poder discricionário, nada se poderia fazer diante da negativa do
promotor em formular a proposta de transação no que tange ao mérito. O único controle
jurisdicional seria o de legalidade, ressaltando-se a possibilidade de controle pela própria
Administração, nos termos do art. 28, CPP38
.
35 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 92. 36 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Crimes de trânsito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 74. 37 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 99. 38 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 6.
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André Luiz Nicolitt aponta a limitação à lei como característica do poder
discricionário e aduz que não se pode confundir discricionariedade com arbítrio. No caso
da transação, se um promotor deixa de oferecê-la ao argumento de que, embora ausentes os
impedimentos legais, entende por bem não propor em razão do comportamento do autuado
durante a audiência preliminar ou em função de sua religião, estaríamos diante de
verdadeiro arbítrio. Assim, atendidas as exigências legais, o Ministério Público está
obrigado a oferecer a transação penal, não podendo agir arbitrariamente39
.
André Luiz Nicolitt sustenta que existe discricionariedade na avaliação da causa
impeditiva da transação penal prevista no inciso III do §2º do art. 76 da Lei 9.099/1995,
por tratar-se de requisito subjetivo, embora não exista qualquer discricionariedade na
avaliação dos incisos I e II do mesmo parágrafo, já que estes seriam requisitos objetivos40
.
André Luiz Nicolitt defende que a proposta de transação penal tem natureza de
ação, embora seja informal, consensual e sumária, e argumenta que: “sem entendermos que
a proposta tem natureza de ação, não temos outra saída senão reconhecer que a norma fere
os princípios do devido processo legal e, consequentemente, o contraditório e a ampla
defesa, possibilitando a aplicação da pena sem processo.”. Assim, o mencionado autor
conclui que o juiz não pode propor a transação penal de ofício em razão do princípio da
inércia da jurisdição. Também recusa a aplicação analógica do art. 28, CPP, pois este é
aplicável na hipótese de o Promotor, ao invés de oferecer a demanda, requerer o
arquivamento. No caso da recusa do Ministério Público em oferecer a transação há, ao
contrário, oferecimento da denúncia, não cabendo analogia, pois as situações não são
semelhantes41
.
André Luiz Nicolitt aduz, ainda, que a aplicação do art. 28 do CPP se afasta do
princípio da celeridade consagrado na Lei n.º 9.099/1995, já que a remessa ao Procurador-
Geral retiraria do procedimento a celeridade essencial e indispensável aos Juizados42
.
Segundo o mencionado autor, diante da ausência de impedimento legal, o
Ministério Público deverá oferecer a transação penal; se não o faz, cabe ao Juiz rejeitar a
denúncia por falta de interesse de agir:
39 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 9. 40 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 9-10. 41 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 15-18. 42 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 18.
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Frise-se que tanto a transação quanto a denúncia oral devem
obedecer às mesmas regras quanto à prescrição ao arquivamento,
bem como às chamadas “condições da ação”. Quando ocorrer
prescrição ou caso de arquivamento, não poderá ser formulada
proposta, tampouco denúncia.
Da mesma forma, deve se observar as condições para o
exercício regular do exercício do direito de ação. Em matéria penal,
são elas: a legitimidade, o interesse de agir, a possibilidade jurídica
da demanda, a justa causa e a originalidade.
Na hipótese de oferecimento da denúncia, quando cabível a
proposta de transação, carece a demanda de interesse de agir nas
modalidades necessidade e adequação. [...]
Perceba que esta solução permite ao Promotor oferecer a
transação ou apelar da decisão, sujeitando-a ao controle de outro
órgão (Turma Recursal), tendo em vista que o provimento que
rejeita a denúncia a toda evidência tem natureza de sentença
terminativa sem exame de mérito e, ainda, ex vi art. 82 da Lei n.º
9.099/1995, há previsão expressa do recurso de apelação.
Desta forma, não haveria lesão ao sistema acusatório, pois o
juiz não se investiria nas funções do Ministério Público e o exame
da questão seria amplo já que passaria pela análise do promotor –
quando do oferecimento da denúncia – e do juiz – quando da
rejeição fundamentada da denúncia. Haveria, ainda, uma revisão
pelo promotor à luz da decisão fundamentada do juiz, oportunidade
em que poderia se convencer de que a transação seria cabível,
consequentemente ofertando-a. Por último, não se convencendo da
possibilidade de transação, o promotor recorreria e haveria então
reexame da decisão do Juiz por uma Turma de Juízes, o que sem
dúvida atende aos princípios constitucionais e ao espírito
democrático que deve nortear as atividades públicas.
Por derradeiro, cabe dizer que a possibilidade de transação na
forma do art. 79 se ajusta perfeitamente à sistemática. Percebe-se
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que às vezes não é possível ao Parquet desde logo oferecer a
proposta por não ter acesso à informações fundamentais à análise
dos requisitos da transação, ou ainda, por qualquer outro motivo,
não foi possível a formulação anterior. Assim, é oferecida a
denúncia e, na oportunidade indicada no art. 79, é oferecida a
transação.
Trata-se de uma espécie de emenda. O Ministério Público na
verdade estará adequando a forma de propositura da ação,
substituindo a denúncia pela proposta. Esta adequação é
perfeitamente possível, mormente diante do fato de que a denúncia
oferecida nem mesmo foi recebida nesta fase, não havendo
disponibilidade já que a transação é uma forma de ação.
Diante destas reflexões, entendemos que o sistema acusatório
encontra-se imaculado, preservadas ainda as funções do Ministério
Público, o direito à defesa, ao contraditório e ao devido processo
legal43
.
Luiz Fux e Weber Martins Batista entendem que o juiz somente pode apresentar a
proposta de transação penal quando o Ministério Público houver oferecido a denúncia, mas
não quando o Parquet houver requerido o arquivamento do termo circunstanciado:
Oferecida a denúncia, o juiz tem, normalmente, dois
caminhos a tomar: ou a recebe e dá seguimento ao processo, ou a
rejeita e põe fim ao mesmo. No caso em exame, resta-lhe um
terceiro caminho: em vez de receber a denúncia, e por entender que
o suposto autor do fato tem direito à transação, ele próprio toma a
iniciativa de oferecê-la.
Se o juiz pode fazer o mais, que é condenar o acusado, com
todas as desvantagens daí decorrentes, pode fazer o menos, que é
impor-lhe uma pena mais branda, por ele aceita, em decisão que
não lhe trará qualquer outra consequência danosa, como fato
43 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 19-21.
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jurídico. Só uma coisa o juiz não poderia fazer e, no caso, não fez:
tomar a iniciativa do procedimento, usurpar função exclusiva do
Ministério Público44
.
6. Proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa
Ada Pellegrini Grinover et al. observam que a lei não admite que a proposta de
transação penal verse sobre a aplicação da pena privativa de liberdade, ainda que reduzida
e mesmo que esta seja a única prevista em abstrato, já que o instituto da transação penal
objetiva a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de
liberdade. Além disso, a proposta de transação penal pode ser feita em uma fase
administrativa em que não há sequer acusação, o processo jurisdicional não se iniciou, não
se sabe se o acusado, neste, seria absolvido ou condenado. Ainda nos situamos fora do
âmbito do direito penal punitivo, de seus esquemas e critérios45
.
A pena restritiva de direitos proposta pelo Ministério Público deve estar contida no
rol das alíneas “b” a “e”, do art. 5º, XLVI, CF, com as especificações dos artigos 43 a 48
do Código Penal46
.
Segundo Guilherme de Souza Nucci, a denominada prestação de outra natureza,
prevista no art. 45, §2º, do Código Penal, depende da aceitação do benefício e somente
deve ser aplicada quando for impossível ao acusado, em processos comuns, suportar o
pagamento em pecúnia estabelecido pelo magistrado. Assim, entende ser inadequada a
fixação da obrigação de doar cestas básicas a determinada entidade, pois não haveria
previsão legal para essa pena47
. O autor defende que a proposta do Ministério Público
deveria concentrar-se na prestação pecuniária, que é o pagamento de quantia em dinheiro à
vítima (se já não obteve reparação) ou a entidades assistenciais, já que:
Acordar que o suposto autor do fato entregue cestas básicas a quem
quer que seja deveria pressupor a aceitação do beneficiário. Essa
44 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do
processo penal: a Lei n.º 9.099/95 e sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 322. 45 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 46 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 47 No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. Análise
comparativa das Leis 9.099/1995 e 10.259/2001. São Paulo: Saraiva, 2003, p.48-49.
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aceitação não pode ser presumida e, pelo que se sabe, não há
representante algum de orfanato, creche ou qualquer entidade
presente na audiência48
.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a Lei 9.714/1998 deixou superada a
questão relativa à possibilidade de ser objeto da transação penal a chamada prestação
social alternativa (como, por exemplo, a entrega de cestas básicas, vestuário ou remédios à
coletividade carente ou a instituições assistenciais), ao incluir entre as penas restritivas de
direitos a prestação pecuniária. A proposta, a aceitação e a homologação pelo juiz podem
perfeitamente dizer respeito à prestação de tal natureza (art. 43, I, c/c art. 45, §§ 1º e 2º, CP
na redação da citada lei) 49
.
Segundo Luiz Fux e Weber Martins Batista, a pena de interdição temporária de
direitos50
é indicada naquelas hipóteses em que o evento decorreu do exercício do direito
que se interdita, ou quando a ação praticada pelo suposto autor do fato aconselha a
proibição de exercício de cargo, função, atividade ou mandato eletivo51
. Os autores
consideram que a pena de prestação de serviços à comunidade52
é a mais adequada à
maioria dos casos:
A prestação de serviços à comunidade é, talvez, a solução
mais feliz do legislador penal, em matéria de aplicação de pena.
Sem o risco decorrente do convívio com outros presos, sem
despesas para o Estado, ao contrário, prestando serviços em favor
de instituições como hospitais, escolas públicas, etc., o condenado
vence o período de cumprimento da pena de maneira positiva, com
dignidade, trabalhando em favor da coletividade. Por isso mesmo,
parece-me que o Ministério Público só deve recorrer à limitação de
fim de semana em último caso, como exceção, quando for
48 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 687. 49 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 50 Cf. art. 5º, XLVI, “e”, da CF, e artigos 43, V, e 47, do Código Penal. 51 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. No mesmo sentido, Nereu José Giacomolli aduz
que: “A medida restritiva de direitos guarda relação com a espécie fática, e com a as condições particulares do envolvido. Assim, a suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo é apropriada aos fatos
ocorridos no trânsito.”. GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104. 52 Cf. art. 5º, XLVI, “d”, da CF, e artigos 43, IV, e 46, do Código Penal.
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absolutamente impossível a imposição de uma daquelas outras
penas mencionadas53
.
7. Especificação da pena proposta
Ada Pelegrini Grinover et al. aduzem que a proposta da acusação deve ser clara e
precisa, para dar ao autuado e a seu defensor pleno conhecimento da pena proposta, com a
medida de suas consequências práticas. Os mencionados autores defendem que a proposta
deve se referir ao fato narrado no termo circunstanciado, mas não deve trazer qualquer
tipificação legal, já que a aplicação da sanção não indica reconhecimento da
culpabilidade54
.
Em sentido contrário, o Enunciado Criminal n.º 72 do FONAJE estabelece que: “A
proposta de transação penal e a sentença homologatória devem conter obrigatoriamente o
tipo infracional imputado ao suposto autor do fato, independentemente da capitulação
ofertada no termo circunstanciado” 55
. Entendemos ser este o melhor entendimento, já que
o suposto autor do fato somente poderá exercer o contraditório e a ampla defesa na fase da
transação penal, se souber qual infração penal lhe é imputada pelo Ministério Público, até
porque esta não é necessariamente a mesma que consta do termo circunstanciado. Da
mesma forma, o acusado e seu defensor somente poderão controlar a proporcionalidade da
pena oferecida pelo Ministério Público caso saibam a qual delito o Parquet atribui a
referida pena.
8. Redução até a metade da pena de multa pelo juiz
O art. 76, §1º, Lei 9.099/1995 permite ao juiz reduzir a pena de multa estabelecida
pela transação penal até a metade, quando a lei somente cominar esse tipo de pena para a
53 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. Nereu José Giacomolli compartilha a mesma
opinião quanto à pena de limitação de fim de semana: “A limitação de final de semana implica restrição da
liberdade, embora momentânea, justamente o que a Lei 9.099/95 quer evitar. A escassez de albergues e a
convivência com vários comportamentos considerados desviantes tornam inaconselhável a sua aplicação.”.
GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104. 54 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 55 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 72. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.
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infração penal imputada ao autuado. O juiz poderá reduzir a multa ainda que o acordo
celebrado entre a acusação e o autuado não viole a ordem jurídica.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., trata-se de poder discricionário do juiz:
bastará para sua utilização que o acusador tenha proposto a aplicação de pena de multa e o
autuado e seu advogado a tenham aceito56
.
Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz não pode reduzir a pena de multa
caso o acordo a tenha fixado no mínimo legal57
. Em sentido contrário, Luiz Fux e Weber
Martins Batista aduzem que:
Na hipótese de ser a pena de multa a única aplicável –
algumas contravenções penais – o juiz poderá reduzi-la até a
metade – está no §1º do art. 76. A regra, hoje, significa que o juiz
poderá impor ao suposto autor do fato, que consumou a
contravenção penal a ele imputada, a pena de cinco dias-multa. É
que o órgão do Ministério Público, neste caso, poderá propor pena
menor de 10 dias, que é a mínima prevista para todas as
contravenções penais apenadas com multa58
.
O Enunciado n.º 91 do FONAJE dispõe que: “É possível a redução da medida
proposta, autorizada no art. 76, § 1º da Lei nº 9099/1995, pelo juiz deprecado.” 59
.
9. Da inadmissibilidade da proposta: causas impeditivas da proposta e da
homologação
A elaboração da proposta e a homologação da transação penal submetem-se a
condições, especificadas nos três incisos do §2º do art. 76. Não se trata de condições da
ação, pois nesse momento ainda não há ação nem processo. Cuida-se simplesmente de
requisitos em cuja ausência a proposta de transação não poderá ser formulada, e muito
menos o acordo homologado por sentença: ou seja, de causas impeditivas da proposta e de
56 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 158. 57 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 58 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 332. 59 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado n.º 91. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013.
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sua homologação. Assim, o impedimento da lei dirige-se, em primeiro lugar, ao Ministério
Público ou ao querelante, que não poderá formular a proposta, tendo, ainda, o dever de
motivar em um dos incisos em questão as razões de sua recusa em transacionar. A recusa
não pode ser fundada em outras razões, como, v. g., em “política criminal” 60
.
Em segundo lugar, a ordem é voltada ao juiz, que fica impedido de homologar o
acordo penal se verificar a presença de qualquer das causas impeditivas enumeradas pela
lei.
As condições do art. 76, §2º, da Lei 9.099/1976 demonstram que a transação penal
é orientada por uma discricionariedade regrada61
. Embora a avaliação da condição inscrita
no art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 envolva elevado grau de subjetividade, uma vez
preenchidas todas as condições legais, o autuado tem direito público subjetivo à transação
penal.
10. Comprovação das causas impeditivas
Ada Pellegrini Grinover et al. aduzem que o art. 76, §2º, Lei 9.099/1995 atribui ao
Ministério Público o ônus de provar que qualquer das causas impeditivas da transação
penal está presente no caso concreto, seja porque a prova dos fatos negativos seria mais
difícil, mas sobretudo porque é o Ministério Público, como agente estatal, que tem maiores
possibilidades de comprovar a existência das causas impeditivas da proposta e de sua
homologação. O suposto autor do fato, entretanto, não está impedido de provar a
inexistência das causas impeditivas62
.
Caso o Ministério Público não consiga se desincumbir do referido ônus, terá o
dever de oferecer a proposta de transação penal63
.
11. Primeira causa impeditiva: anterior condenação, transitada em julgado, a pena
privativa de liberdade, pela prática de crime
60 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159. 61 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 62 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 63 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160.
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A condenação pela prática de contravenção penal, bem como à pena restritiva de
direitos ou multa não constituem causas impeditivas do benefício, mas, tão somente,
aquela pela prática de crime e à pena privativa de liberdade64
. Assim, ainda que o suposto
autor do fato tenha sido condenado, anteriormente, pela prática de crime, à pena privativa
de liberdade, caso esta tenha sido convertida em pena restritiva de direitos, nos termos do
art. 44 do Código Penal, não haverá impedimento à concessão da transação penal.
A expressão “sentença definitiva” contida no art. 76, §2.º, I, Lei 9.099/1995 deve
ser interpretada como “sentença transitada em julgado”, tendo em vista o princípio da não
culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, CF65
.
Não apenas os recursos ordinários impedem o trânsito em julgado, mas também os
extraordinários, ainda que tenham efeito meramente devolutivo66
.
Ada Pellegrini et al. defendem que pode haver transação penal caso a sentença
penal condenatória tenha transitado em julgado há mais de cinco anos, devendo-se aplicar
analogicamente e a contrario sensu o art. 76, §2º, II, Lei 9.099/1995, desde que o autuado
não incorra na vedação do inciso III67
. Importa salientar, entretanto, que o Superior
Tribunal de Justiça considera que a simples existência de maus antecedentes impede a
transação penal, ainda que o autuado não seja reincidente:
[...] O oferecimento da proposta de transação penal é obstado na
hipótese de o paciente ter sido condenado à pena privativa de
liberdade, por sentença transitada em julgado.
Evidenciado que o art. 76, § 2º, inciso I, da Lei n.º 9.099/95 não faz
referência alguma à reincidência, torna-se inaplicável à espécie, o
disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal.
Apesar de não estar configurada a reincidência, a existência de
condenação anterior, com trânsito em julgado, pode caracterizar a
presença de maus antecedentes do réu, impedindo o oferecimento
64 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 160. 65 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161. 66 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161. 67 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 161.
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da proposta de transação penal, bem como de suspensão
condicional do processo. [...]68
.
12. Segunda causa impeditiva: anterior benefício, no prazo de cinco anos
A lei procurou beneficiar o autor de infrações de menor potencial ofensivo, sem,
contudo, incentivar a sua impunidade. Por isso, o suposto autor do fato que já tiver se
beneficiado da aplicação consensual da pena não privativa de liberdade, nos termos da Lei
9.099/1995, não poderá gozar de novo benefício pelo prazo de cinco anos69
.
Para verificar a ocorrência da causa impeditiva consistente na anterior concessão do
mesmo benefício, o §4º do art. 76 dispõe expressamente que a transação penal seja
registrada exclusivamente para impedir o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
O Enunciado 115 do FONAJE dispõe que: “A restrição de nova transação do art.
76, § 4º, da Lei nº 9.099/1995, não se aplica ao crime do art. 28 da Lei nº 11.343/2006.” 70
.
Assim, de acordo com este enunciado, a transação penal decorrente do crime de adquirir,
guardar, ter em depósito, transportar, ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, não impede a
concessão de nova transação penal, em razão de outro crime, no período de cinco anos.
O Enunciado n.º 124 do FONAJE estabelece que: “A reincidência decorrente de
sentença condenatória e a existência de transação penal anterior, ainda que por crime de
outra natureza ou contravenção, não impedem a aplicação das medidas despenalizadoras
do artigo 28 da Lei 11.343/06 em sede de transação penal”71
.
13. Terceira causa impeditiva: os antecedentes, a conduta social, a personalidade do
autuado, os motivos e circunstâncias indicando não ser necessária e suficiente a
transação penal.
68 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 44.327/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, j.
16/02/2006, DJ 13/03/2006, p. 340. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 27 set. 2013. 69 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 70 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 10 out. 2013. 71 Idem.
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O art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 traz a única causa impeditiva de natureza
subjetiva que poderá autorizar maior discricionariedade do Ministério Público na negativa
de proposta de transação penal72
.
O art. 76, §2º, III, Lei 9.099/1995 toma como modelo o art. 77, II, do Código Penal,
atinente aos requisitos para a concessão da suspensão condicional da pena, exceção feita à
menção à “culpabilidade” que não pode, evidentemente, ser considerada com relação ao
autuado, que não foi sequer denunciado73
.
Ada Pellegrini Grinover et al. observam que a lei preferiu substituir a expressão
final do dispositivo penal “autorizem a concessão do benefício” pela fórmula da
necessidade e suficiência da adoção da medida, mas que isso não traz nenhuma diferença
substancial com relação ao texto do art. 77, II, CP74
.
A medida deve ser adequada ao caso concreto, sendo necessária, na medida em que
não estimula a impunidade e suficiente no sentido de bastante75
.
14. Suficiência de uma das causas impeditivas para obstar a proposta
A ocorrência de apenas uma das causas arroladas pelo art. 76, §2º, Lei 9.099/1995 é
suficiente para impedir a realização da transação penal76
.
15. O dever do Ministério Público de fundamentar a decisão de não formular a
proposta de transação penal.
O Ministério Público tem obrigação de fundamentar sua decisão de não formular a
proposta de transação penal77
. Caso decida oferecer denúncia contra o autuado, deve
apontar ao menos uma das causas arroladas no art. 76, §2º, Lei 9.099/1995. Caso decida
pelo arquivamento do termo circunstanciado, deve fundamentar sua decisão na atipicidade
da conduta praticada pelo autuado, ou na falta de qualquer das condições da ação.
72 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 73 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 74 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 162. 75 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 76 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 77 Nesse sentido, Nereu José Giacomolli aduz que: “Em nosso sistema, o presentante do parquet haverá de
justificar as razões pelas quais não formula a proposta de transação criminal [...].”. GIACOMOLLI, Nereu
José. Op. cit., p. 102.
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As decisões tomadas pelo Ministério Público tem natureza administrativa, devendo
ser motivadas como quaisquer decisões administrativas.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto classifica a motivação como princípio geral do
Direito Público e aduz ser este instrumental e consequente do devido processo da lei (art.
5º, LIV, CF), tendo necessária aplicação às decisões administrativas e às decisões
judiciárias, embora se encontre também implícito no devido processo de elaboração das
normas legais, no sentido amplo (cf. arts. 59 a 69 da Constituição Federal e regimentos das
casas legislativas) 78
.
Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a obrigatoriedade de motivar decisões,
tradicional no Direito Processual, expressa quanto aos atos jurisdicionais decisórios típicos
do Poder Judiciário, estendeu-se, com a Carta de 1988, a seus próprios atos administrativos
com características decisórias (art. 93, X). Por via de consequência, o princípio da
motivação abrange as decisões administrativas tomadas por quaisquer dos demais Poderes,
corolário inafastável do princípio do devido processo da lei. Com efeito, se o Poder
Judiciário, a quem caberá sempre o controle final da legalidade de qualquer decisão, está
obrigado à motivação de suas decisões administrativas, com mais razão, a ela estarão, os
Poderes Legislativo e Executivo, ao proferirem suas respectivas decisões administrativas,
pois só assim ficará garantida a efetividade do controle79
.
A Prof.ª Flávia Moreira Guimarães Pessoa defende que, embora não expressamente
formulado na Constituição Federal, o princípio da motivação dos atos administrativos
encontra arrimo implícito no art. 1º, caput, inciso II e no parágrafo único do mesmo
dispositivo, bem como nos artigos 5º, incisos XXXV e LIV e 93, inciso X, todos da
Constituição Federal e aduz que:
O dever de motivar os atos administrativos é corolário e garantia do
Estado Democrático de Direito, tendo em vista ser a motivação
instrumento eficaz para a viabilização da participação e controle
78 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro, 2006,
p. 92. 79 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 92.
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popular, podendo desta forma ser exercida a soberania popular,
elemento deste Estado Democrático de Direito80
.
A motivação da decisão do órgão do Ministério Público de primeiro grau de não
formular a proposta de transação penal é essencial para que haja o controle de sua
juridicidade pelo juiz. Caso o magistrado decida remeter o processo ao Procurador-Geral,
com base no art. 28, CPP, a fundamentação da decisão do órgão do Ministério Público de
primeira instância será fundamental para o controle de juridicidade exercido pelo chefe do
Ministério Público.
16. Aceitação da proposta pelo suposto autor do fato e por seu defensor. Conflito de
vontades. Natureza jurídica da aceitação.
O advogado do autuado deve estar presente na audiência de conciliação, onde é
feita a proposta de transação penal para que seja assegurada a defesa técnica, parte
fundamental da ampla defesa81-82
.
De acordo com o art. 76, §3º, Lei 9.099/1995, a proposta de transação penal deve
ser aceita tanto pelo suposto autor do fato, como por seu defensor. Entretanto, pode haver
discordância entre o suposto agente e seu advogado quanto à aceitação da proposta. Nesse
caso, Nereu José Giacomolli83
e Ada Pellegrini Grinover84
et al. defendem que o juiz deve
procurar solver a controvérsia, mas, persistindo esta, deve prevalecer a vontade do
envolvido, desde que devidamente esclarecido pela defesa técnica, pelo Ministério Público
e pelo juiz acerca das consequências da aceitação. Guilherme de Souza Nucci adere a este
entendimento e aduz que “se o advogado é contratado e divergir de seu cliente, pode este
desconstituí-lo, optando pelos préstimos de outro profissional, tudo para que se beneficie
da transação.” 85
. Entendemos, entretanto, que o autuado não precisa desconstituir seu
advogado e constituir outro para que possa se beneficiar da transação penal. Tendo em
80 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Da exigência de motivação dos atos administrativos
discricionários. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/da-exig%C3%AAncia-de-
motiva%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-administrativos-discricion%C3%A1rios>. Acesso em: 05 out. 2013. 81 Cf. art. 5º, LV, CF. 82 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 83 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 95. 84 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 163. 85 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 691.
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vista o direito à autodefesa86
, a concordância do autuado basta para que o acordo penal se
aperfeiçoe.
Ada Pellegrini Grinover et. al. defendem que a natureza jurídica da aceitação da
proposta é de submissão voluntária à sanção penal, mas não significa reconhecimento da
culpabilidade penal, nem de responsabilidade civil87
.
Quanto à inexistência do reconhecimento da culpabilidade, Ada Pellegrini Grinover
et al.88
observam que:
a) a sanção é aplicada antes mesmo do oferecimento da denúncia, na audiência prévia de
conciliação;
b) a aplicação da sanção não importa em reincidência89
;
c) a imposição da sanção não constará de registros criminais, salvo para o efeito de impedir
nova transação penal no prazo de cinco anos, nem de certidão de antecedentes90
.
O não reconhecimento da responsabilidade civil vem consagrado no art. 76, §6º,
Lei 9.099/1995, quando afirma que a imposição da sanção penal não terá efeitos civis,
cabendo aos interessados propor ação de conhecimento no juízo cível91-92
.
86 Gustavo Badaró assevera que: “O direito de defesa apresenta-se bipartido em: (1) direito à autodefesa; e
(2) direito à defesa técnica. O direito à autodefesa é exercido pessoalmente pelo acusado, que poderá
diretamente influenciar o convencimento do juiz. Por sua vez, o direito à defesa técnica é exercido por
profissional habilitado, com capacidade postulatória e conhecimentos técnicos, assegurando assim a paridade de armas entre a acusação e a defesa.
O direito à autodefesa se divide em: (1) direito de presença; (2) direito de audiência; (3) direito de
postular pessoalmente.
O direito de presença é exercido com o comparecimento em audiências pelo acusado. A sua
presença permitirá uma integração entre a autodefesa e a defesa técnica na produção da prova. Muitos fatos e
pormenores mencionados por testemunhas são do conhecimento pessoal do acusado, que, por estar
diretamente ligado aos fatos, poderá auxiliar o defensor na formulação de perguntas e na demonstração de
incongruências ou incompatibilidades do depoimento. Assim, a restrição da participação do acusado na
audiência de oitiva de testemunhas pode implicar séria violação do direito de defesa como um todo.
O direito de audiência, isto é, o direito de ser ouvido pela autoridade judiciária, é exercido, por
excelência, no interrogatório. Trata-se, porém, de mera faculdade do acusado que, se desejar, poderá
renunciar a tal direito, permanecendo calado (CR, art. 5º, LXIII). O direito de postular está presente na possibilidade de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577, caput),
de interpor habeas corpus ou revisão criminal (CPP, art. 623). Tais manifestações não violam o art. 133 da
CR, que prevê a advocacia como função essencial à administração da justiça. No processo penal, a exigência
de que o acusado tenha uma defesa técnica visa assegurar a paridade de armas entre o acusador e o acusado.
Assim, as manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defesa, apenas
criando uma possibilidade a mais de seu exercício. Que prejuízo haverá para a defesa, se o advogado não
apelar, mas o acusado o fizer pessoalmente?”. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 1.
ed. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 21-22. 87 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164. 88 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164. 89 Cf. art. 76, §4º, Lei 9.099/1995. 90 Cf. art. 76, §§ 4º e 6º, Lei 9.099/1995. 91 Cf. art. 64 do Código de Processo Penal. 92 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 164-165.
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Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt aduz que: “no momento em que o
autor do fato aceita a aplicação imediata de pena alternativa, está assumindo a culpa, o que
é natural em razão do princípio nulla poena sine culpa. Não mais poderá discuti-la,
ressalvada a possibilidade de revisão criminal.” 93
.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a aceitação da proposta de transação penal,
livre e tecnicamente orientada, não importa em vulneração a qualquer garantia
constitucional. Ao prever a transação penal sem fixar-lhe limites, a Constituição permitiu
ao legislador essa opção, mais consentânea com os interesses do suposto autor do fato.
Assim, faz-se necessária a revisão de princípios tradicionais do direito processual, como o
nulla pena sine iudicio, já que, nos esquemas penais clássicos, não havia instituto que
levasse à imposição de sanção, sem discussão ou admissão sobre a culpa94
.
17. Pode o ofendido interferir na transação penal?
Segundo Ada Pellegrini Grinover, o ofendido não tem qualquer interferência na
tentativa de transação penal. A lei é expressa ao considerar apenas a vontade do Ministério
Público e do autuado, no art. 76, §§ 4º e 5º, Lei 9.099/1995. E ainda que se adote a linha
moderna, que entende ter o ofendido interesse à repressão penal, não se pode chegar a
ponto de fazer prevalecer sua vontade sobre a do Ministério Público, único titular da ação
penal pública, do qual a vítima pode ser apenas assistente simples.
Ada Pellegrini Grinover et al. aduzem que mesmo que a tentativa de conciliação
civil tenha ficado frustrada, o acordo sobre a aplicação imediata da pena não privativa de
liberdade não poderá sofrer qualquer oposição por parte da vítima95
. Com a devida vênia,
discordamos deste entendimento. A vítima tem interesse na condenação do suposto autor
do fato, pois somente a condenação tornará certa a obrigação de indenizar decorrente da
prática da infração penal. Assim, a vítima poderá peticionar, alegando a existência de
alguma causa impeditiva da transação penal96
e pedindo ao juiz que não a homologue.
Caso o juiz venha a homologar o acordo penal, o ofendido poderá apelar da sentença que o
homologa, nos termos do art. 76, §5º, Lei 9.099/1995. Se a turma recursal verificar a
93 BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais e alternativas à pena de prisão. 3. ed.
Porto Alegre: Livraria do advogado, 1997, p. 103. 94 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 95 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 96 Cf. art. 76, §2º, Lei 9.099/1995
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presença de alguma causa impeditiva da transação penal, não poderá condenar o suposto
autor do fato de imediato, pois não foi oferecida denúncia. Assim, deve remeter o processo
ao Procurador Geral, aplicando, por analogia, o art. 28, CPP. Caberá ao chefe do
Ministério Público referendar a proposta de acordo feita pelo órgão de primeira instância
do Parquet ou pedir a condenação do suposto autor do fato.
18. Pluralidade de envolvidos e de fatos
É possível que, havendo pluralidade de autores do fato, a transação seja proposta e
homologada só com relação a um deles, caso em que o processo será instaurado com
relação a quem não se enquadrar nos requisitos legais97
.
Havendo mais de um envolvido no fato, é possível a homologação da transação
criminal em relação ao aceitante, com prosseguimento do feito contra o que não a aceitar,
diante do caráter personalíssimo do acordo98-99
.
Havendo cumulação de ações penais, o envolvido pode aceitar a transação penal
somente com referência a determinada infração a ele imputada. Nesta hipótese, é de ser
cindido o feito, com prosseguimento em relação às demais100
.
19. Controle jurisdicional e seu resultado: acolhimento ou rejeição da proposta aceita
pelo autuado
A proposta, devidamente aceita, é então submetida ao controle jurisdicional.
Segundo Ada Pelegrini Grinover et al., o juiz deve verificar a legalidade da medida
proposta e analisar sua conveniência, levando em conta a vontade dos partícipes e a
filosofia da transação penal, que não é sujeita a critérios de legalidade estrita e visa
principalmente à pacificação social101
. Nereu José Giacomolli adere a este entendimento,
aduzindo que “a duração da restritiva de direitos não pode seguir a regra do Código Penal,
pois não é aplicada em substituição.” 102
. Em sentido contrário, Luiz Fux e Weber Martins
97 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159-160. 98 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 99 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 159-160. 100 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 101 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 165. 102 GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 104.
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Batista entendem que o juiz deve deixar de homologar a transação penal que houver
estabelecido a pena fora dos limites legais103
.
O Enunciado n.º 73 do FONAJE estabelece que: “O juiz pode deixar de homologar
transação penal em razão de atipicidade, ocorrência de prescrição ou falta de justa causa
para a ação penal, equivalendo tal decisão à rejeição da denúncia ou queixa.” 104
.
Entendemos que o juiz deve deixar de homologar a transação penal sempre que não
estiver presente qualquer condição da ação, qualquer pressuposto processual ou se verificar
qualquer causa de extinção da punibilidade. Da mesma forma, o juiz deve deixar de
homologar a transação penal sempre que esteja presente alguma causa impeditiva arrolada
pelo art. 76, §2º, da Lei 9.099/1995.
Se, em decorrência do controle jurisdicional, o juiz acolher a proposta de transação,
devidamente aceita pelo autuado e por seu defensor, proferirá sentença homologatória da
transação penal105
.
A rejeição da proposta pelo juiz importa em imediata designação da audiência de
instrução e julgamento106
.
Cumpre ainda saber se o juiz, na homologação, pode alterar a proposta formulada
pelo Ministério Público e aceita pelo autuado. Luiz Fux, Weber Martins Batista107
e Ada
Pellegrini Grinover et al108
. entendem que a atuação do juiz deve ocorrer antes da aceitação
da proposta, alertando o autuado e seu defensor quanto ao rigor excessivo da oferta do
Ministério Público e tentando persuadir o representante do órgão sobre a conveniência de
sua mitigação. Poderá o juiz até recorrer ao controle do art. 28, CPP, mas deverá, em
último caso, observar a vontade dos partícipes. Isso porque a sentença, por meio da qual o
juiz exerce o controle da legalidade da transação e pacifica o conflito de acordo com a
103 “A rejeição do acordo, portanto, não se limita às hipóteses mencionadas, do §2º do art. 76. O juiz não pode igualmente acolher transação que importe em descumprimento de norma de Direito Penal. É o que
acontece se, do acordo, resultar a aplicação de pena incabível na espécie, em qualidade ou quantidade.
Se ao suposto autor do fato se atribui – por exemplo – a prática de lesão corporal leve, crime punido
com pena de três meses a um ano de detenção, não pode o Ministério Público propor a aplicação de pena
restritiva de direito em quantidade menor de três meses, pois essa proposta contraria a norma do art. 55 do
Código Penal. Se, apesar disso, o Ministério Público o fizer, deverá o juiz rejeitar a proposta, pois não lhe
cabe modificá-la para, por exemplo, aumentar a pena até o limite mínimo mencionado.”. 103 FUX, Luiz;
BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 328. 104 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 73. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013. 105 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 166. 106 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 166. 107 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 328. 108 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167.
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vontade dos envolvidos tem natureza homologatória e porque a transação é ato consensual
e necessariamente bilateral.
Importa salientar que o juiz deve alertar o autuado, o advogado deste e o órgão do
Ministério Público acerca de qualquer ilegalidade que entenda haver na transação, dando a
estes a oportunidade de corrigi-la, antes de proferir decisão rejeitando a homologação, em
atenção ao seu dever de advertência, inerente ao Princípio da Cooperação109
e ao Princípio
do Contraditório Participativo110
.
20. Aplicação da sanção penal. Natureza da sentença.
Ada Pellegrini Grinover et. al. aduzem que a pena não privativa de liberdade
imposta pelo juiz, por consentimento dos partícipes, tem natureza jurídica de sanção penal,
mas nem por isso apresenta qualquer inconstitucionalidade111
.
Ada Pellegrini et. al entendem que a sentença que homologa a transação penal não
tem natureza absolutória, já que aplica uma sanção de natureza penal. Mas, tampouco pode
ser considerada condenatória, uma vez que não houve acusação e a aceitação da imposição
da pena não tem consequências no campo criminal, salvo o impedimento de novo benefício
no prazo de cinco anos. Além disso, não há qualquer juízo condenatório na sentença que
aplica a medida alternativa, por faltar o exame dos elementos da infração, da prova, da
ilicitude ou da culpabilidade. Da mesma forma, a sentença homologatória deixa de lado
pretensão e resistência e pacifica a controvérsia de acordo com a vontade das partes, e não
consoante a lei material que compõe os litígios de modo geral e abstrato. Também a
possibilidade de o juiz reduzir a pena de multa à metade112
demonstra que, na aplicação da
pena, ele não precisa levar em conta as prescrições do direito material113
. Em sentido
contrário, Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz não pode reduzir a multa à metade
quando esta foi fixada pela transação penal no mínimo abstratamente cominado pela lei
para a infração penal imputada ao autuado114
.
109 SOUZA. Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 93, n. 338, pp. 149-158, abr./ jun. 1997. 110 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 450. 111 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167. 112 Cf. Art. 76, §1º, Lei 9.099/1995. 113 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 167-168. 114 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689.
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Ada Pellegrini et. al defendem que a sentença que aplica a pena, em face do
consenso dos interessados, não é absolutória, nem condenatória. Trata-se simplesmente de
sentença homologatória de transação, que não indica acolhimento nem desacolhimento do
pedido do autor, que sequer foi formulado, mas que compõe a controvérsia de acordo com
a vontade dos partícipes, constituindo título executivo judicial. São os próprios envolvidos
no conflito a ditar a solução para sua pendência, observados os parâmetros da lei115
.
É exatamente o fenômeno que ocorre no campo processual civil: a sentença
homologatória da transação – que ninguém classifica de condenatória ou declaratória
negativa – constitui título executivo judicial116-117
.
Em sentido contrário, se orientou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
[...] I - A sentença homologatória da transação penal, prevista no
art. 76 da Lei nº 9.099/95, tem natureza condenatória e gera
eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração
de ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo
homologado. [...]118
.
Como a sentença homologatória não tem natureza condenatória, ela não gera outras
consequências penais além da imposição da pena119
.
Se não houver cumprimento da obrigação assumida pelo suposto autor do fato,
nada se poderá fazer, a não ser executá-la nos expressos termos da lei120
.
21. A sentença homologatória da transação penal é apelável, mas não o é a decisão
que indefere a homologação
A sentença que homologa a transação penal é recorrível por meio de apelação121
.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., é possível que a transação penal tenha sido
115 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 168. 116 Cf. art. 475-N, III, CPC. 117 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169. 118 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 176.181/MG da Quinta Turma, rel. Ministro Gilson Dipp, j.
04/08/2011, DJe 17/08/2011; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 72.671/RJ da Sexta Turma, Rel.
Ministro Hamilton Carvalhido, j. 30/08/2007, DJe 04/08/2008. Disponíveis em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 30 set. 2013. 119 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169. 120 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 169.
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inquinada por vícios de vontade, ou que não tenham sido observados os requisitos legais,
de modo que a correção poderá vir por força de apelação122
. Guilherme de Souza Nucci
defende que o suposto autor do fato somente terá interesse recursal quando a sentença
inovar em relação ao acordo, ou quando houver vício do consentimento123
. Luiz Fux e
Weber Martins Batista entendem que a apelação “será possível se o juiz, ao acolher a
proposta de transação aceita pelo autor do fato, cometer algum engano que importe em
modificação do que foi acordado. E, assim mesmo, desde que não caracterize mero erro
material, corrigível pelo próprio juiz” 124
.
Segundo Ada Pellegrini Grinover et al., a recusa de homologação configura decisão
em que o juiz dá resposta a requerimento dos titulares dos interesses em conflito, vedando
sua autocomposição. Não se trata de mera decisão administrativa125
.
Não cabe apelação da decisão interlocutória de indeferimento da homologação da
transação penal, pois a lei não a prevê expressamente e não se trata de decisão definitiva ou
com força de definitiva, nos termos do art. 593, II, do Código de Processo Penal126
.
Mas, embora interlocutória, a decisão de indeferimento da homologação da
transação penal não é atacável pela via do recurso em sentido estrito, cabível somente nas
hipóteses taxativamente previstas no art. 581, CPP127
.
A referida decisão é impugnável por mandado de segurança contra ato jurisdicional,
que poderá ser impetrado pelo Ministério Público e também pelo autuado, ou, ainda, por
habeas corpus, pelo autuado ou pelo promotor em seu favor, na hipótese de o
desenvolvimento do processo poder culminar na aplicação de uma pena privativa de
liberdade128
. O mandado de segurança e o habeas corpus devem ser dirigidos à Turma
Recursal, que terá competência para julgá-los, nos termos do Enunciado Cível n.º 62 do
FONAJE129
.
121 Cf. art. 76, §5º, Lei 9.099/1995. 122 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 123 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 692. 124 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 333. 125 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 126 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 127 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172. 128 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 172-173. 129 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 62: “Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus
impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais.”. Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013.
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No Estado do Rio de Janeiro, a decisão que indefere a homologação da transação
penal pode ser impugnada por meio da reclamação disciplinada pelos artigos 219 a 225 do
Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro (CODJERJ).
Luiz Fux e Weber Martins Batista entendem que a decisão que rejeita a
homologação da transação penal não é uma decisão interlocutória, mas sim uma sentença,
já que põe fim ao procedimento prévio. Assim, esta decisão deveria ser impugnada por
apelação130
.
22. Descumprimento do acordo
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, no RHC n.º 8.198/GO, ser possível a
conversão da pena restritiva de direitos aceita pelo autuado, na transação penal, em pena
privativa de liberdade, ante o descumprimento do acordo por parte deste131
. O tribunal
manteve o mesmo entendimento no HC 14.666/SP132
.
O STJ decidiu, no HC 9.853/SP, não ser possível a conversão da pena de multa
aplicada por meio da transação penal em pena restritiva de direitos ou em pena privativa de
liberdade, ante o descumprimento do acordo por parte do autuado, tendo em vista que a
130 FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Op. cit., p. 333. 131 “CRIMINAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. TRANSAÇÃO. PENA ALTERNATIVA.
DESCUMPRIMENTO. CONVERSÃO EM PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE. LEGITIMIDADE.
1. A transação penal prevista no art. 76, da Lei nº 9.099/95, distingue-se da suspensão do processo (art. 89),
porquanto, na primeira hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto à pena alternativa a ser fixada e,
na segunda, há apenas uma proposta do Parquet no sentido de o acusado submeter-se não a uma pena, mas
ao cumprimento de algumas condições. Deste modo, a sentença homologatória da transação tem, também,
caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra
superveniente infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode - legitimamente - desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem maltrato ao princípio do devido processo legal. É
que o acusado, ao transacionar, renuncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e
consciente, aceitou a proposta e, ipso facto, a culpa.
2. Recurso de Habeas Corpus improvido.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 8198/GO da Sexta
Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 08/06/1999, DJ 01/07/1999, p. 211. Disponível em:
<www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 132 “PENAL. TRANSAÇÃO. LEI Nº 9.099/95, ART. 76. IMPOSIÇÃO DE PENA RESTRITIVA DE
DIREITOS. DESCUMPRIMENTO. CONVERSÃO EM PRIVATIVA DE LIBERDADE.
POSSIBILIDADE.
1 - Não fere o devido processo legal a conversão de pena restritiva de direitos, imposta no bojo de transação
penal (art. 76, da Lei nº 9.099/95), por privativa de liberdade. Precedente desta Corte. 2 - Ordem denegada.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 14.666/SP da Sexta Turma, Rel. Ministro
Fernando Gonçalves, j. 13/03/2001, DJ 02/04/2001, p. 341. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07
out. 2013.
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sentença que homologa a transação penal faz coisa julgada formal e material133
. Importa
salientar que não há razão para tratar de forma distinta a transação penal que aplica pena
restritiva de direitos, já que a sentença que a homologa também faz coisa julgada formal e
material. Assim, adotando este raciocínio, não há como defender a conversão da pena
restritiva de direitos em privativa de liberdade em caso de descumprimento da transação
penal.
Guilherme de Souza Nucci entende não ser possível a conversão da pena de multa
aceita pelo autuado na transação penal em pena privativa de liberdade, em razão do
descumprimento do acordo por parte deste, tendo em vista que a Lei 9.268/1996 atribuiu
nova redação ao art. 51 do Código Penal, vedando a mencionada conversão. Caso o
autuado venha a descumprir o acordo, o juiz deverá proceder à execução da pena de multa
nos termos dos artigos 164 e seguintes da Lei 7.210/1984 134
. Neste sentido, decidiu o STJ:
CRIMINAL. RESP. LEI 9.099/95. DESCUMPRIMENTO DE
ACORDO FIRMADO E HOMOLOGADO EM TRANSAÇÃO
PENAL. DESCUMPRIMENTO DA PENA DE MULTA.
INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. EXECUÇÃO. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO.
I. No caso de descumprimento da pena de multa, conjuga-se o art.
85 da Lei nº 9.099/95 e o art. 51 do CP, com a nova redação dada
pela Lei nº 9.286/96, com a inscrição da pena não paga em dívida
ativa da União para ser executada.
133 “PENAL. PROCESSUAL. TRANSAÇÃO PENAL. PENA DE MULTA. NÃO CUMPRIMENTO.
CONVERSÃO EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. LEI 9268/96. “HABEAS
CORPUS”.
1. A sentença que homologa a transação penal gera eficácia de coisa julgada, formal e material. Vedada,
portanto, a conversão da pena pecuniária em restritiva de direitos ou privativa de liberdade.
2. Controvérsia que se soluciona com a inscrição do valor na dívida ativa da União, onde sua execução
obedecerá aos critérios próprios (Lei 9099/95, Art. 85, c/c o CP, Art. 51, com a nova redação dada pela Lei
9268/96). Precedente deste STJ.
3. Habeas Corpus conhecido; pedido deferido.”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 9.853/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Edson Vidigal, j. 17/08/1999, DJ 20/09/1999, p. 73. Disponível em:
<www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 134 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 688-689.
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II. Recurso conhecido e provido para, cassando o acórdão
recorrido, restabelecer a decisão de 1º grau135
.
André Luiz Nicolitt entende que converter a pena restritiva de direito ou de multa
em pena privativa de liberdade viola o devido processo legal, pois, na transação penal, o
indicado autor do fato abre mão de um processo mais amplo, onde as garantias do
contraditório e da ampla defesa são plenas. Admite de forma sumária uma restrição
configurada em uma pena alternativa; por outro lado, o Ministério Público abre mão da
pena privativa de liberdade136
.
Segundo André Luiz Nicolitt, o juiz homologa o acordo através de sentença que é o
título judicial. Assim, sendo impossível executar sem título, a conversão da pena restritiva
de direitos ou de multa em privativa de liberdade em sede de Juizado traduz-se em
flagrante excesso de execução, pois a pena fixada na sentença não é a privativa de
liberdade137
.
A hipótese do art. 44 do Código Penal (CP) é diferente. O descumprimento da pena
alternativa possibilita a conversão desta em pena privativa de liberdade, pois a sentença
fixa a pena e o regime e, em seguida, a substitui na forma do art. 44 e seguintes do CP.
Com efeito, se o condenado não cumpre a pena alternativa, a conversão é possível, pois há
um título judicial que autoriza a execução da pena privativa de liberdade138
.
Em sede de Juizado o mesmo não se verifica, pois jamais foi fixada pena privativa
de liberdade, tampouco o regime de cumprimento. Ressalva-se ainda que, se a ação foi
exercida na forma de transação, o contraditório e a defesa se desenvolveram tendo por
referência a imputação e o pedido de pena não privativa de liberdade, haveria, assim,
violação a esses princípios139
. Nesse sentido, o seguinte julgado do Supremo Tribunal
Federal:
EMENTA: CRIMINAL. CONDENAÇÃO À PENA RESTRITIVA
DE DIREITO COMO RESULTADO DA TRANSAÇÃO
135 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 180.403/SP da Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, j.
08/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 159. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out. 2013. 136 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 137 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 138 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22. 139 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 22-23.
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PREVISTA NO ART. 76 DA LEI Nº 9.099/95. CONVERSÃO EM
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. DESCABIMENTO. A
conversão da pena restritiva de direito (art. 43 do Código Penal) em
privativa de liberdade, sem o devido processo legal e sem defesa,
caracteriza situação não permitida em nosso ordenamento
constitucional, que assegura a qualquer cidadão a defesa em juízo,
ou de não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a
garantia da tramitação de um processo, segundo a forma
estabelecida em lei. Recurso não conhecido140
.
Guilherme de Souza Nucci entende que, caso o suposto autor do fato deixe de
cumprir o acordo assumido em virtude da transação penal, não é possível o oferecimento
de denúncia ou queixa e o prosseguimento do processo, pois o trânsito em julgado da
sentença que homologa a transação faz coisa julgada material141
. Nesse sentido, já decidiu
o STJ:
HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. DELITO
DE TRÂNSITO. CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO.
TRANSAÇÃO PENAL. ACEITAÇÃO. APLICAÇÃO DE PENA
DE MULTA. INADIMPLEMENTO. OCORRÊNCIA.
OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. INCABIMENTO. ORDEM
CONCEDIDA.
1. É firme a jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal e
a deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de afirmar o
incabimento de propositura de ação penal, na hipótese de
descumprimento da transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95).
2. Ressalva de entendimento contrário do Relator.
3. Ordem concedida142
.
140 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 268319 da Primeira Turma, Relator: Min. Ilmar Galvão, j.
13/06/2000, DJ 27-10-2000, p.87. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em: 08 out. 2013. 141 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 688-689. 142 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 60.941/MG da Sexta Turma, Rel. Ministro Hamilton
Carvalhido, j. 21/09/2006, DJ 09/04/2007, p. 276. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 07 out.
2013.
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André Luiz Nicolitt defende que a denúncia oferecida em razão de ter o autuado
descumprido a transação penal deve ser rejeitada por ausência de condição da ação, no
caso, a originalidade, uma vez que, tendo a transação penal natureza de ação, o Ministério
Público ou o querelante não poderiam ajuizar nova ação, pois isto importaria em ofensa à
coisa julgada formada pela sentença homologatória transitada em julgado, ou importaria
em litispendência, caso a transação penal não houvesse ainda sido homologada143
.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, entretanto, decidiu no RE 602072 QO-
RG / RS, submetido ao procedimento dos recursos repetitivos do art. 543-B, do Código de
Processo Civil, que “[...] Não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal
em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal.”. O
relator deste recurso, Min. Cezar Peluso, consignou, em seu voto que:
[...] a homologação da transação penal não faz coisa julgada
material e, descumpridas suas cláusulas, retorna-se ao status quo
ante, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da
persecução penal (situação diversa daquela em que se pretende a
conversão automática deste descumprimento em pena privativa de
liberdade). [...] 144
.
Por esta razão, o STJ passou a decidir no mesmo sentido:
PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS
CORPUS. ESTELIONATO.
TRANSAÇÃO PENAL. HOMOLOGAÇÃO.
DESCUMPRIMENTO DO ACORDO. RETOMADA DA
PERSECUÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. RECURSO NÃO
PROVIDO.
1. A Suprema Corte reconheceu a repercussão geral do tema, por
ocasião da análise do RE 602.072/RS (DJe de 26/2/2010), tendo o
143 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 23. 144 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 602072 QO-RG do Plenário, Relator: Min. CEZAR PELUSO, j.
19/11/2009, DJe-035 de 26-02-2010. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013.
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Pleno decidido que "não fere os preceitos constitucionais a
propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das
condições estabelecidas em transação penal". Tal julgamento,
ensejou a mudança de entendimento dessa Turma, a partir do
desate do HC 217.659/MS.
2. Recurso ordinário em habeas corpus improvido145
.
Guilherme de Souza Nucci146
defende que o juiz não pode condicionar a
homologação da transação penal ao cumprimento do acordo pelo suposto autor do fato, de
modo a permitir o oferecimento da denúncia ou da queixa em caso de descumprimento147
,
já que sem homologação não há título algum a exigir o cumprimento da penalidade. Assim,
a prática seria abuso sanável por habeas corpus. André Luiz Nicolitt entende que tal prática
não é lícita, pois possibilita pena sem processo. O autor, contudo, não descarta a atividade
psicoterapêutica antes da homologação até como medida para verificação da aptidão do
suposto autor do fato às penas alternativas148
.
Em sentido contrário, o Enunciado n.º 79 do FONAJE dispõe que a proposta de
transação penal pode condicionar sua homologação ao prévio cumprimento do acordo por
parte do autuado, o que possibilita o oferecimento de denúncia em caso de
descumprimento. O mesmo enunciado diz ser cabível o oferecimento da denúncia após a
sentença homologatória da transação penal, desde que a decisão judicial tenha cláusula
resolutiva expressa149
.
23. Conclusão
145 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 34.580/SP da Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de
Assis Moura, j. 12/03/2013, DJe 19/03/2013. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em 07 out. 2013. 146 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 147 No mesmo sentido, GIACOMOLLI, Nereu José. Op. cit., p. 110. 148 NICOLITT, André Luiz. Op. cit., p. 23. 149 “É incabível o oferecimento de denúncia após sentença homologatória de transação penal em que não haja
cláusula resolutiva expressa, podendo constar da proposta que a sua homologação fica condicionada ao
prévio cumprimento do avençado. O descumprimento, no caso de não homologação, poderá ensejar o prosseguimento do feito.”. BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado n.º 79.
Disponível em: <http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 08 out.
2013.
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É possível a transação penal quanto aos crimes de menor potencial ofensivo de ação
penal privada, a despeito da falta de previsão legal.
Somente o ofendido pode oferecer a proposta de transação penal relativa a crimes
de ação penal privada, já que somente ele tem legitimidade para ajuizar este tipo de ação,
devendo o Ministério Público, nesse caso, limitar-se a opinar sobre o cabimento da
transação.
O Ministério Público não deve oferecer a transação penal quando estiver
convencido de que o termo circunstanciado deve ser arquivado.
A proposta de transação penal pode ser feita pelo autuado, orientado por seu
advogado, apesar de o art. 76, Lei 9.099/1995 prever que a proposta será feita pelo
Ministério Público.
O oferecimento da transação penal é poder-dever do Ministério Público, ao qual
corresponde um direito subjetivo do autuado. Assim, preenchidos os requisitos legais, o
Ministério Público deve oferecer a transação penal. Entretanto, somente ao Parquet cabe
avaliar a presença dos mencionados requistos. O juiz não pode apresentar a proposta de
transação penal quando o Ministério Público deixar de fazê-lo. Caso o juiz, discordando do
órgão do Ministério Público, entenda que não estão presentes os requisitos legais, deverá
aplicar analogicamente o art. 28 do CPP, remetendo o processo ao Procurador-Geral, a
quem caberá decidir, em definitivo, acerca do cabimento da transação penal.
A proposta de transação penal não pode se referir à aplicação imediata de pena
privativa de liberdade, mas, somente, à pena restritiva de direitos ou multas, tendo em vista
o disposto no art. 76, caput, da lei 9.099/1995.
A pena restritiva de direitos estabelecida pela transação penal pode consistir na
entrega de cestas básicas ou de outros produtos a entidade pública ou privada com
destinação social, tendo em vista o disposto nos artigos 43, I, e 45, §§ 1º e 2º, da Lei
9.099/1995.
A proposta de transação penal e a sentença homologatória devem conter
obrigatoriamente o tipo penal imputado ao suposto autor do fato, independentemente da
capitulação ofertada no termo circunstanciado, para que seja garantido ao autuado o direito
ao contraditório quanto à proporcionalidade da pena150
.
150 Cf. Enunciado Criminal n.º 72 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Disponível em:
<http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 05 out. 2013.
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O art. 76, §1º, Lei 9.099/1995 permite ao juiz reduzir a pena de multa estabelecida
pela transação penal até a metade, quando a lei somente cominar esse tipo de pena para a
infração penal imputada ao autuado. O juiz pode reduzir a multa ainda que o acordo
celebrado entre a acusação e o autuado não viole a ordem jurídica, entretanto, não pode
reduzir a referida pena caso o acordo a tenha fixado no mínimo legal151
.
O juízo deprecado pode reduzir a pena de multa, quando esta for a única aplicável,
com base no art. 76, §1º, Lei 9.099/1995, tendo em vista que a celeridade é princípio
informador do processo nos Juizados Especiais Criminais152
.
Presente qualquer das causas impeditivas arroladas pelo art. 76, §2º, da Lei
9.099/1995, o Ministério Público ou o querelante não poderá propor a transação penal.
Caso esta venha a ser indevidamente ofertada, cabe ao juiz recusar sua homologação.
O Ministério Público tem o ônus de provar a presença da causa impeditiva da
transação penal que alegou.
A anterior condenação, transitada em julgado, à pena privativa de liberdade, pela
prática de contravenção penal não impede a transação penal, tendo em vista que o art. 76,
§2º, I, Lei 9.099/1995, utiliza a palavra “crime”. Da mesma forma, a anterior condenação,
transitada em julgado, à pena restritiva de direitos ou multa não inviabiliza o benefício,
haja vista que o art. 76, §2º, I, Lei 9.099/1995 restringiu a causa impeditiva à pena
privativa de liberdade. Assim, caso a pena privativa de liberdade a que foi anteriormente
condenado o autuado, por sentença transitada em julgado, venha a ser convertida em pena
restritiva de direitos, não haverá óbice à transação penal.
A simples existência de maus antecedentes impede a transação penal, ainda que o
autuado não seja reincidente.
Haja vista o disposto no art. 76, §2º, II, §4º e §6º, da Lei 9.099/1995, a transação
penal não importa em reincidência ou maus antecedentes, sendo registrada, tão somente,
para evitar nova concessão do benefício no prazo de cinco anos.
O Ministério Público tem o dever de fundamentar sua decisão de não formular a
proposta de transação penal, já que o princípio da motivação dos atos administrativos foi
implicitamente consagrado pela Constituição Federal em seu art. 1º, caput, inciso II e
151 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 689. 152 Cf. art. 2º da Lei 9.099/1995 e Enunciado 91 do FONAJE.
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parágrafo único; em seu art. 5º, incisos XXXV e LIV; e em seu art. 93, inciso X 153
. Caso
decida oferecer denúncia contra o autuado, o Ministério Público deve apontar ao menos
uma das causas arroladas no art. 76, §2º, Lei 9.099/1995, não podendo fundamentar sua
decisão em razões de “política criminal”.
Caso haja discordância entre o suposto autor do fato e seu advogado quanto à
aceitação da proposta de transação penal, deve prevalecer a vontade do primeiro, desde que
devidamente esclarecido pela defesa técnica, pelo Ministério Público e pelo juiz das
consequências da aceitação.
A sentença que homologa a transação penal não tem natureza absolutória e,
tampouco, condenatória, mas meramente homologatória.
O ofendido não pode interferir na transação penal que é realizada entre o autuado e
o Ministério Público, pois não é parte no acordo, entretanto, pode pedir ao juiz que não
homologue a transação penal, alegando que esta não preenche os requisitos legais. Da
mesma forma, pode apelar da sentença que homologa a transação penal, quando entender
que esta desrespeita a lei. A vítima tem interesse em impugnar a transação penal porque
esta não importa em condenação e, desta forma, não torna certa a obrigação do suposto
autor do fato de indenizar os danos decorrentes da infração penal. Da mesma maneira, a
vítima tem interesse na correta aplicação da lei penal e processual penal.
Havendo pluralidade de autores do fato, a transação pode ser proposta e
homologada só com relação a um deles, caso em que o processo será instaurado com
relação a quem não se enquadrar nos requisitos legais.
Havendo mais de um envolvido no fato, é possível a homologação da transação
criminal em relação ao aceitante, com prosseguimento do feito contra o que não a aceitar,
diante do caráter personalíssimo do acordo.
Havendo cumulação de ações penais, o envolvido pode aceitar a transação penal
somente com referência a determinada infração a ele imputada. Nesta hipótese, é de ser
cindido o feito, com prosseguimento em relação às demais.
A sentença homologatória da transação penal é apelável, tendo em vista o disposto
no art. 76, §5º, Lei 9.099/1995, mas não o é a decisão interlocutória que indefere a
homologação.
153 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Da exigência de motivação dos atos administrativos
discricionários. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/da-exig%C3%AAncia-de-
motiva%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-administrativos-discricion%C3%A1rios>. Acesso em: 05 out. 2013.
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A decisão que indefere a homologação da transação penal não pode ser impugnada
pelo recurso em sentido estrito, pois esta decisão não consta do rol fechado contido no art.
581, CPP.
A decisão que indefere a homologação da transação penal pode ser atacada por
mandado de segurança, por habeas corpus e, no Estado do Rio de Janeiro, pela reclamação
prevista nos artigos 219 a 225 do CODJERJ. O mandado de segurança e o habeas corpus
devem ser dirigidos à Turma Recursal, órgão competente para julgá-los, nos termos do
Enunciado Cível n.º 62 do FONAJE154
.
A pena de multa aplicada por meio da transação penal não pode ser convertida em
pena restritiva de direitos e, tampouco, em pena privativa de liberdade em caso de
descumprimento do acordo por parte do autuado, haja vista que a sentença que homologa a
transação penal faz coisa julgada formal e material, tornando-se, portanto, imutável. Além
disso, a Lei 9.268/1996 alterou a redação do art. 51 do Código Penal, tornando inviável a
conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade. Caso o autuado descumpra o
acordo, deixando de pagar a pena de multa, esta deverá ser executada na forma dos artigos
164 a 170 da Lei de Execução Penal155
.
A pena restritiva de direitos aplicada por meio da transação penal não pode ser
convertida em pena privativa de liberdade em caso de descumprimento do acordo por parte
do autuado, haja vista que a sentença que homologa a transação penal faz coisa julgada
formal e material, tornando-se, portanto, imutável.
A proposta de transação penal pode condicionar sua homologação, por sentença, ao
integral cumprimento do acordo, de modo a possibilitar o oferecimento da denúncia ou da
queixa em caso de descumprimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
154 BRASIL. Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE). Enunciado Criminal n.º 62: “Cabe
exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o mandado de segurança e o habeas corpus
impetrados em face de atos judiciais oriundos dos Juizados Especiais.”. Disponível em: <http://www.fonaje.org.br/2012/?secao=exibe_secao&id_secao=6>. Acesso em: 07 out. 2013. 155 BRASIL. Lei 7.210/1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso
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PIERO CALAMANDREI E LA TUTELA CAUTELARE1
Remo Caponi
Professore Ordinario dell’Università di Firenze, Italia.
Sommario: 1. Un classico. – 2. Un colpo d’ala prodigioso. – 3. Il pericolo da tardività. – 4. Il
pensiero di Calamandrei in Europa. – Il pensiero di Calamandrei e la dimensione collettiva, sociale
della giustizia civile. – 6. La tutela cautelare dinanzi alla Corte costituzionale. – 7. Piero
Calamandrei e Alessandro Pekelis.
1. – Ho tra le mani un’edizione originale della Introduzione allo studio
sistematico dei provvedimenti cautelari di Piero Calamandrei2. I l libro mi
aveva affascinato mentre studiavo per la tesi di laurea. Nel 1986 decisi di
invest ire la prima rata della borsa di dottorato in acquisti di libri. In cima alla lista dei
desideri c’era la raccolta delle Opere giuridiche di Piero Calamandrei, curata dal
1965 al 1984 da Mauro Cappelletti presso l’editore Morano di Napoli. La
trovai. Ma ebbi anche la fortuna di trovare, presso la libreria ant iquaria
Gozzini di Firenze, una copia del libro del 1936.
Normalmente ci vogliono anni affinché un’opera giuridica possa essere qualificata
come classica, potendosi apprezzare la sua capacità di influenzare gli studi successivi e
di segnare così un punto di svolta nella trattazione di un tema solo in un lungo
arco temporale. Poche opere nascono classiche, sono classiche nel mo mento
stesso in cui escono dalla tipografia, perché quella svolta si percepisce d’un colpo, con
un solo rapido confronto tra il loro contenuto e la letteratura anteriore. L’
Introduzione rientra tra queste. Quando Piero Calamandrei la scrive è al colmo
della carriera. Appena l’anno prima aveva pubblicato Elogio dei giudici scritto
1 Artigo publicado originalmente na Rivista di Diritto Processuale. Pádua: CEDAM. ano LXVII (Seconda
Serie), N. 5, Setembro-outubro 2012, pp. 1250-1257. 2 P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari , Pado-va 1936.
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da un avvocato3: un’altra opera dest inata a dargli larga fama, con il trascorrere
del tempo e delle traduzioni in lingue straniere. Soprattutto, sedici anni prima egli aveva
pubblicato La cassazione civile . Quest’opera monumentale, che rimane una delle migliori
della letteratura italiana di diritto processuale civile, gli aveva procurato vasta notorietà e
notevoli apprezzamenti anche in Germania4.
2. – Nella Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari vi è
innanzitutto una lezione di metodo. Come scrive Calamandrei nell’avvertenza
iniziale, il volume cont iene la parte introduttiva «di un corso sui
provvediment i cautelari, tenuto (...) agli studenti del secondo biennio» della Facoltà
giuridica fiorentina5. Già in questa concretizzazione del modello humboldtiano di
Università, c he co n iu ga a l l i ve l lo p iù alto la ricerca e l’insegnamento, si può
cogliere oggi qualcosa di raro.
Vi è anche una lezione di sintesi. Compresi gli indici, 162 pagine. Capacità di
cogliere l’essenziale senza dilungarsi in de ttagli inut ili.Un’altra qualità che
oggi scarseggia.
I l co nt r ibu t o d i P ie r o Ca la ma ndr e i no n v ie ne a l la lu ce ne l l ’o r a
zer o de l la r i f l e s s i o n e s u l l a t u t e l a c a u t e l a r e . V i e r a s t a t o i l
s a g g i o d i A g o s t i n o D i a n a d e l 190 96. V i e r a no s t a t e , impo r t a nt i, l e
pag ine c he C h io ve nd a a ve va d ed ic a t o a l t e ma , p r ima ne i Pri nc ip i d i
3 P. Calamandrei, Elogio dei giudici scritto da un avvocato , Firenze 1935. 4 C f r . E . S c h wi n g e , Grundlagen des Revisionsrechts. Rechtsdogmatisch rechtsvergleichend
rechtspolitisch, Bonn 1935. 5 Piero Calamandrei ricorderà poi che «nel decennio tra il 1924 e il 1934, la Facoltà giuridica fiorentina,
valendosi di quella certa elasticità di ordinamenti didattici che era allora consen tita alle Unniversità dalla
riforma Gentile, aveva distinto il quadriennio degli studi di giurisprudenza in due bienni,
r ispettivamente dedicati il primo all’insegnamento generale di tutte le materie fondamentali,
impartito in forma di corsi istituzionali a carattere informativo; il secondo all’insegnamento approfondito di
singoli capitoli delle stesse materie, o di discipline speciali in esse comprese, impartito in forma di corsi
monografici integrati da esercitazioni, a carattere prevalentemente formativo [.. .]. Da uno di questi
corsi monografici, creati giorno per giorno nella scuola attra verso le discussioni coi migliori
studenti, è derivato, ad esempio, il mio volume sulla Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari»: così, P. Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile secondo il nuovo codice,
avvertenza alla prima edizione, Padova 1941. 6 A . D i a n a , Le misure conservative interinali, in Studi Senesi, Torino 1909, 210 ss.
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d i r i t t o pro ce s sua l e c i v i l e7 e p o i n e l l e Istituzioni d i d i r i t t o
pro ce ss ua l e c i v i l e8, co l leg a ndo le mis u r e c au t e la r i a l p r inc ip io c he «il
processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto
que l lo e p r o pr io qu e l lo c h ’e g l i ha d ir i t t o d i co nseg u ir e » e g iu nge ndo
ad a mmet t e r e « l’ a z io ne a s s ic u r a t iva » co me f igu r a ge ner a le , p u r in u n
s is t e ma c he no n co nosceva una disposizione di contenuto analogo all’attuale
art. 700 c.p.c. Con ciò i l pe ns ie r o d i C h io ve nd a r ive la va – s e co s ì si può
dire – il suo principale «difetto», cioè che «la dinamicità del suo sistema
richiedeva da parte degli operatori pratici e teorici una capacità di comprensione forse
inesigibile nei primi decenni d e l s e c o l o »9.
L’«assillo della legalità»10
, che è implicitamente un elogio borghese della legge,
impedirà a Calamandrei di seguire Chiovenda nelle costruzioni più ardite di
quest’ult imo, come appunto l’azione assicurat iva generale come ist ituto di
diritto vigente (nonché, fuori dal campo della tutela cautelare, l’azione
«nascente da contratto preliminare»). Certo è però che il libro del giurista fiorentino si
solleva con un colpo d’ala prodigioso dalle costrizioni di un’analisi incentrata sulle singole
misure cautelari, per attingere ad una visione di teoria generale che, come tutte
le concezioni autentiche e meditate di questa natura, è insieme sistemazione del presente,
individuazione degli sviluppi futuri, nonché inizio di concret izzazione di
queste linee di tendenza. Basta leggere le ult ime due pagine del libro, che
costituiscono una specie di programma legislat ivo, poi effett ivamente
realizzato nei suoi aspetti essenziali, come l’introduzione di un «potere cautelare
generale», nonché di un «t ipo uniforme di procedimento sommario cautelare»11
.
3. – I l respiro sistemat ico del pensiero di Calamandrei orienta anche al
giornod’oggi, nell’interpretazione della maggiore novità legislativa degli ultimi venti anni
in materia di tutela cautelare: quella introdotta dalla l. n. 80/2005 che, raccogliendo
7 G. Chiovenda, Principi di diritto processuale civile, ristampa anastatica della terza edi-zione, con
prefazione di V. Andrioli, Napoli 1980. 8 G. Chiovenda, Istituzioni di diritto processuale civile, Napoli 1933. 9 C os ì , A. Proto Pisani, Chiovenda e la tutela cautelare , in Riv. dir proc.1988, 16 ss., spec. 34. 10 C os ì , P. Grossi, Stile fiorentino, Milano 1986, 142 ss., spec. 150. 11 Cfr . P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 147.
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proposte da tempo avanzate in dottrina ed anticipate nel processo societario, ha reciso il
nesso strutturale tra provvedimento cautelare e causa di merito in relazione al
rilascio di uno dei provvediment i cautelari elencat i dall’art. 669-octies, comma
6º, c.p.c. (in breve: provvedimenti cautelari «anticipatori»), lasciando intatto questo nesso
in relazione al rilascio di misure cautelari di contenuto puramente
«conservativo».
Aiuta infatti a risolvere il problema di dist inguere tra di loro le due
categorie di misure una rilettura, filtrata attraverso uno sguardo all’esperienza
europea, delle pagine di Piero Calamandrei, che hanno contribuito in modo determinante
in Italia alla elaborazione della distinzione tra provvedimenti cautelari conservativi ed
anticipatori12
.
Infatti, quanto ai t ipi di contenuto dei provvediment i provvisori, oltre ai
provvediment i di istruzione prevent iva, l’esperienza europea ne esprime
fondamentalmente tre: i provvediment i che conservano la situazion e di fatto e
di diritto al fine di assicurare la futura esecuzione forzata; i provvediment i di
regolamentazione di una situazione provvisoria; i provvediment i che
ant icipano il contenuto del provvedimento definitivo e soddisfano immediatamente, in
modo parziale o totale, l’interesse protetto dal diritto dedotto in giudizio13
.
Calamandrei distingue provvedimenti istruttori anticipati, provvedimenti volti ad
assicurare la esecuzione forzata, provvediment i volt i ad ant icipare i
provvediment i decisori, cauzioni processuali14
. A parte le cauzioni processuali,
che sono una species dei provvediment i volt i ad assicurare l’esecuzione forzata
(della condanna al risarcimento dei danni prodotti dall’esecuzione di un
provvedimento cautelare rivelatosi infondato), ed i provvedimenti di istruzione
preventiva, fondamentale è la bipartizione tra provvedimenti conservativi (della fruttuosità pratica
12 Per un discorso piu`ampio sul punto, v. R. Caponi, La nuova disciplina dei procedi-menti
cautelari in generale (l. n. 80 del 2005) , in Foro it. 2 0 0 6 , V , c . 6 9 . 13 C f r . R . S t ü rner, Einstweiliger Rechtsschutz, General Bericht presentato al colloquiotenutosi a
Bruxelles nei giorni 26 e 27 ottobre 2001 per iniziativa dell’Associazione internazionaledi diritto processuale e del Centro interuniversitario belga di diritto processuale, ora in M. Storme(a cura di), Procedural Laws
in Europe – Towards Harmonisation, Antwerpen/Apeldoorn 2003,143 ss. 14 Cfr . P. Calamandrei , Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 31 ss.
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dell’esecuzione forzata) e provvediment i ant icipatori (di provvediment i
decisori).
Nel pensiero di Calamandrei, la categoria dei provvedimenti anticipatori riunisce in
sé i provvedimenti provvisori appartenenti al secondo ed al terzo tipo dell’attuale
esperienza europea (cioè i provvediment i di disciplina di una situazione
provvisoria ed i provvedimenti anticipatori del contenuto del provvedimento definit ivo).
Questa impostazione si spiega agevolmente se si riflette che, al tempo in cui il
giurista fiorent ino scrive il suo libro sulla tutela cautelare, i provvediment i del
terzo tipo non avevano ancora ricevuto una marcata elaborazio ne concettuale,
ma rientravano nella categoria dei provvediment i di disciplina di una
situazione provvisoria, particolarmente nel profilo che questi ultimi conoscono
nell’ordinamento tedesco attraverso il § 940 Zpo.
Scrive Calamandrei: «rientrano in questo [..] gruppo quei provvediment i
con cui si decide interinalmente, in attesa che attraverso il processo ordinario
si perfezioni la decisione definit iva, un rapporto controverso, dalla indecisione
del quale, se questa perdurasse fino all’emanazione del provvedimento definitivo,
potrebbero derivare a una delle part i irreparabili danni»15
. Fra i casi t ipici di
questa categoria egli comprende le denunzie di nuova opera e di danno temuto,
i provvediment i temporanei ed urgent i nell’interesse dei coniugi e della p role
nel processo di separazione personale, l’assegno provvisionale di aliment i, il
sequestro delle cose che un debitore offre per la sua liberazione. In questo
gruppo «il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione
ant icipata e provvisoria del merito, dest inata a durare fino a che a questo
regolamento provvisorio del rapporto controverso non si sovrapporrà il
regolamento stabilmente conseguibile attraverso il più lento processo ordinario»16
.
Calamandrei individua un tratto funzionale comune ai provvedimenti compresi in
questo gruppo, cioè il fatto che essi sono diretti a neutralizzare un pericolo di tardività
15 Così, P. Calamandrei,Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit. , 38. 16 Così, P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, c i t . , 3 8 s .
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della sentenza definit iva17
, dist into ma pariment i meritevole di essere
neutralizzato rispetto al pericolo di infruttuosità pratica (commisurato piuttosto
all’esecuzione forzata). Così egli promuove un notevole avanzamento della teoria dei
provvedimenti cautelari nell’esperienza italiana rispetto all’esperienza tedesca, allora
ancora prigioniera di una visione della tutela cautelare come
essenzialmentestrumentale alla fruttuosità pratica dell’esecuzione forzata18
. Quel passo
in avant i consiste nel liberarsi dall’idea che il contenuto anticipatorio del
provvedimentosia un tratto eccezionale della tutela cautelare: un’acquisizione
fat icosa per la dottrina tedesca, che ad essa si dischiude solo verso la fine
degli anni sessanta del secolo XX, a cominciare dagli studi, pur diversamente
orientat i, di Fritz Baur19
e di Dieter Leipold20
.
Così il pensiero di Calamandrei consente efficacemente di soste nere la
conclusione che, a parte i sequestri, tutti gli altri provvedimenti cautelari ricadono nella
categoria dei provvediment i ant icipatori, e così nella regola della strumentalità
attenuata.
4 . – I l pe ns ie r o d i P ie r o Ca la ma nd r e i s i fa la r go a nc he in
E ur o pa in u n c aso risolto dalla Corte di Giust izia tra i più spettacolari «per i
protagonist i coinvolt i e per l’istituto messo in discussione: l’allora massimo organo
giudiziario inglese, la House of Lords, si interroga se il principio, profondamente
radicato nel diritto co-stituzionale, prima ancora che nel diritto processuale
britannico, per cui al giudicenon è consentito di indirizzare interlocutory injunctions
con finalità cautelare nei co nfr o nt i de l go ver no »21
( a r igo r e , ne i co nfr o nt i de l la
Co r o na : t h e Kin g can do no wrong), possa resistere al diritto comunitario. La
Corte statuisce che «la pie-na efficacia del diritto comunitario sarebbe ridotta se una
norma di diritto nazionale potesse impedire al giudice, chiamato a dirimere una
17 Così, P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, c i t . , 5 6 s . 18 Ricordiamo che nell’ordinamento tedesco la disciplina dei provvedimenti cautelari è tuttora contenuta
nella quinta sezione dell’ottavo libro della Zivilprozeßordnung, dedicato all’e-secuzione forzata. 19 F. Baur, Studien zum einstweiligen Rechtsschutz Tübingen 1967. 20 D. Leipold, Grundlagen des einstweiligen Rechtsschutzes im zivil-, verfassungs- und verwaltungsgerichtlichen Verfahren, München 1971. 21 N. Trocker, Il diritto processuale europeo e le «tecniche» della sua formazione: l’opera della Corte di
giustizia, in Europa e diritto privato 2010, 361 ss., spec. 388 s.
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controversia disciplinata dal dir itto comunitario, di concedere provvediment i
provvisori allo scopo di garant ire la piena efficacia della pronuncia
giurisdizionale sull’esistenza dei diritt i invocati in forza del diritto comunitario».
«In una situazione del genere, il giudice è tenuto a disapplicare la norma di diritto
nazionale che sola ost i alla concessione di provvedimenti provvisori»22
. Questa
prospettiva è dischiusa dalle conclusioni, affidate all’Avvocato Generale, Giuseppe
Tesauro, che illustrano in modo esemplare ilnesso tra effettività della tutela giurisdizionale
e misure cautelari con un richiamoalla dottrina classica italiana, al paragrafo 12
delle Istituzioni di diritto processualecivile di Giuseppe Chiovenda ed alla Introduzione di
Piero Calamandrei. Ma ancora prima l’Avvocato Generale – questo è un piccolo aneddoto
– va in «avanscoper-ta»: porta dall’Italia il volume di Piero Calamandrei e ne
affida la traduzione in in-glese di ampi tratti al servizio di traduzione e interpretariato
della Corte di Giustizia e ne fa distr ibuire la traduzione tra i giudici23
. L’«arte
magica della scrittura» di Piero Calamandrei, messa in luce da Franco
Cipriani24
(ma si tratta di una dote comune ai due) è riuscita così a proiettare il suo
pensiero in Europa.
5. – In una pagina impegnat iva Piero Calamandrei sost iene che i
provvediment i cautelari sono diretti, «più c he a d i fe nd er e i d i r it t i
so gge t t iv i, a ga r a nt i r e la efficacia e per così d ir e la serietà della funzione
giurisdizionale [...]. Le misure cautelari sono predisposte, più che nell’interesse dei
singoli, nell’interesse dell’amministrazione della giust izia, di cui garant iscono il
buon funzionamento ed anche, si potrebbe dire, il buon nome. Se la
espressione ‘polizia giudiziaria’ non avesse già nel nostro ordinamento un preciso
significato, essa potrebbe apparire singolarmente adatta per designar la tutela
cautelare»25
. La pagina non è sfuggita alla crit ica di Franco Cipriani26
. Non si
può evitare di ricordare questa pagina, se non altro per ascriverla
eventualmente ad una stagione ormai superata, quella di un esasperato
22 Cfr . C. Giust. CE 19 giugno 1990, C-213/89, Factortame. 23 Debbo il racconto di questo episodio alla cortesia del prof. Giuseppe Tesauro. 24 Cfr . F. Cipriani, Piero Calamandrei e la procedura civile 2 a ed. r iveduta e ampliata, Napoli 2009,
11. 25 P. Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit.,143 s. 26 F. Cipriani in nota alla ripubblicazione della recensione di V. Andrioli, Sull’«Introduzione
allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari» di Piero Calamandrei, in Foro it. 2009,V, 205.
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orientamento pubblicistico della scienza del processo. Sarebbe però l’interpretazione più
semplice.
Questo passo illustra che il pensiero di Calamandrei è sempre pronto a cogliere la
dimensione collett iva, sociale dei problemi della giust izia civile, anche nella
trattazione di ist ituti più tecnici. Sotto questo profilo, l’approccio di
Calamandrei non è affatto superato, bensì è all’avanguardia, poiché è atto a percepire
l’opportunità di conformare la disciplina del processo civile in funzione di
important i obiettivi di polit ica pubblica, ulteriori rispetto alla tutela
giurisdizionale dei diritt i individuali dedotti in giudizio. Altriment i non si
potrebbero comprendere gli sviluppi del diritto dell’Unione europea, da
quando la disciplina del processo civile è stata esplicitamente collegata alla
realizzazione del mercato interno27
, nonché, più recentemente (con il Trattato di
Amsterdam del 1997), alla creazione graduale di uno «spazio di libertà, sicurezza e
giustizia». Altrimenti non si potrebberocapire gli orientament i che, se si mette da
parte la storia della giust izia del lavoro, emergo no co n e v id e nz a
ne l l ’o r d ina me nt o it a l ia no so pr a t t u t to a pa r t ir e d a l la l. n . 80 / 2005,
inserendo le riforme della giust izia civile nei piani di azione per lo sviluppo
economico, sociale e territoriale del paese.
6 . – È superfluo accennare alle tappe del percorso di successo che
la tutela cautelare, sulla scorta dello studio di Piero Calamandrei, ha
conosciuto nell’ordinamento italiano. Conviene rico rdare piuttosto la front iera
che attende ancora diessere varcata: l’emissione di misure cautelari da parte
della Corte Costituzionale. Nell’ordinamento tedesco alcuni fra i più important i
procediment i dinanzi al Bundesverfassungsgericht hanno conosciuto una
pronuncia su un’istanza cautelare, in particolare di sospensione della legge della cui
costituzionalità si dubita. Riconoscere che l’accoglimento dell’istanza è eccezionale, come
accade nell’ordinamento tedesco, è un conto. Negare che ciò sia compatibile con il ruolo
della Corte Costituzionale nel sistema, come si tende a sostenere nell’ordinamento italiano,
27 L’impulso fondamentale verso questo storico collegamento deriva dalla giurisprudenza della Corte di
Giustizia, in particolare da C. Giust. CE 10 febbraio 1994, C -398/92, Mund & Feste.
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è un altro conto. Ciò maschera la scarsa dimestichezza con questo strumento ed è frutto di
in s u f f ic ie nt e fo r z a a r go me nt a t iva28
. Spec ia lme nt e o ve s i t r a t t i d i leg g i
c he r ichiedono notevoli invest iment i o sforzi organizzat ivi, è inevitabile che
il peso dei fatti compiuti che si verificano prima della pronuncia della Corte e non
possono essere rimossi (ovvero possono essere rimossi con molta difficoltà) entri nel
bilanciamento costituzionale e giochi in favore di argomenti per salvare la
legge della cui costituzionalità si dubita. O si accetta questa situazione inaccettabile o si
valuta seriamente l’alternativa della sospensione erga omnes in via cautelare dell’efficacia
della legge. Tertium non datur. Si pensi per esempio al giudizio di costituzionalità della
recente legge che ha introdotto il tentativo obbligatorio di mediazione per una serie
notevole di controversie (d.lgs. n. 28/2010).
7. – Prima di chiudere il testo di questo intervento, la mia attenzione è caduta sulle
ult ime righe della avvertenza iniziale della Introduzione: «[..] che questa mia
speranza non andrà delusa, sarà dimostrato in questa stessa Collezione dal volume, già annunciato,
sulla teoria dei provvedimenti cautelari, dovuto al vivace ingegno di Alessandro
Pekelis»29
. Quel libro non è stato mai scritto: di lì a d ue a nn i sa ranno
approvate in Italia le infami leggi razziali e Alessandro Pekelis, ebre o russo di
Odessa approdato in Italia all’inizio degli anni venti, sarà costretto a riparare negli Stat i
Unit i con la sua famiglia. Mi sono messo sulle tracce documentali, come
avrebbe fatto forse Franco Cipriani, alla ricerca di ulteriori contatti tra Piero
Calamandrei e Alessandro Pekelis in questo periodo travagliato. La mia ricerca è stata
premiata. In una pagina del libro di memorie di Carla Pekelis(29), moglie di Alessandro,
si racconta che sul finire del 1941 la famiglia Pekelis si trova a Lisbona, in
attesa di ottenere i visti per emigrare negli Stati Uniti. Le autorità statunitensi sono
titubanti: attendono una prova della identità politica di Alessandro Pekelis e questa prova
arriva attraverso l’aiuto di Piero Calamandrei: «quando telegrafammo a Piero Calamandrei,
professore di Legge all’Università di Firenze e amico assai stimato, chiedendogli un
ritaglio dell’art icolo» (di un giornale fascista con cui si attaccava sul piano
28 In tema, v. A. Gragnani, La cognizione cautelare nel processo costituzionale: l’esperienza del tribunale costituzionale federale tedesco, in Riv. dir. cost . 2005, 157 ss. 29 P. Calamandrei , Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, cit.,VIII.(29) C.
Pekelis, La mia versione dei fatti , Palermo 1996, 167 s.
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personale Alessandro Pekelis) «lo facemmo con una certa perples -sità. La
richiesta poteva procurargli dei guai? (...). Il ritaglio dell’articolo arrivà a giro di posta
(...). Dio ti benedica, Calamandrei! L’articolo servì a l lo s co po . I l 2 0
novembre, dopo una cerimonia che durò cinque ore, ci furono concessi
ufficialmente i vist i americani».
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TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL: O ANTECEDENTE DO PRECEDENTE
Renê Francisco Hellman
Mestrando em Ciência Jurídica pela UENP – Universidade
Estadual do Norte do Paraná, Especialista em Modernas
Tendências da Criminologia, do Direito Penal e do Processo
pela pelo IBE/SECAL (PR), Especialista em Educação a
Distância pela FATEB – Faculdade de Telêmaco Borba (PR),
Bacharel em Direito pela UEPG – Universidade Estadual de
Ponta Grossa (PR). Professor de Direito Processual Civil e
Coordenador Geral da FATEB – Faculdade de Telêmaco
Borba (PR). Advogado.
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a forma como vêm sendo
aplicados os precedentes no direito processual civil brasileiro, a partir da importação de
conceitos e institutos de países que adotam o sistema do common law, com a finalidade de
demonstrar o quão frágil é a aplicação de precedentes sem que se pense uma forma de bem
estruturar a decisão judicial, com a criação de uma teoria sólida, para que os julgadores
possam nela basearem-se e darem a resposta mais adequada ao jurisdicionado, aliando
devido processo legal com segurança jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: precedentes judiciais; decisão judicial; common law; civil law.
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ABSTRACT: This study aims to examine how precedents are being applied in Brazilian
civil procedural law, as imports of concepts and institutions of countries that adopt the
common law system, with the purpose of showing how fragile is the application no
precedents to think a way to structure the ruling and, with the creation of a solid theory, so
that the judges can draw on it up and give the most appropriate response to citizen,
aligning due process of law with legal security.
KEY-WORDS: judicial precedents; court decision; common law; civil law.
INTRODUÇÃO
O direito brasileiro, como é cediço, tem natureza de civil law, o que não impede,
entretanto, que em tempos de globalização, sofra consideráveis influências do common
law, fato natural e nem sempre prejudicial. Importante destacar que, ainda que se tratem de
dois sistemas jurídicos com diferenças consideráveis, a história já observou similitudes e
convergências entre eles1, fato este que tem forte influência neste fenômeno que se observa
hodiernamente.
O direito processual civil enfrenta atualmente uma crise estrutural no que tange à
decisão judicial, que deve ser considerada e avaliada, de modo que se tenha uma discussão
aprofundada dos caminhos que se pretendem seguir e das bases teóricas das quais se está
lançando mão para justificá-los.
Um dos reflexos dessa interferência manifesta-se com grande destaque no direito
processual, a partir da utilização dos precedentes judiciais como fatores determinantes no
momento da prolação da decisão judicial.
O movimento de elaboração de um Novo Código de Processo Civil, o grande
dissenso doutrinário a respeito da sua real necessidade e a chamada “jurisprudência
defensiva” dos tribunais superiores demonstram que urge o debate a respeito das bases
formadoras da teoria da decisão judicial.
1 “Com efeito, o que a primeira vista pode parecer uma realidade completamente distante, com um olhar mais centrado no nosso próprio ordenamento jurídico, pode-se afirmar, com segurança, que há circulação de
soluções e propostas entre a família romano-germânica, da qual faz parte o direito brasileiro, e a família da
common law.” (PORTO, 2010).
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É comum que se encontrem estudos doutrinários sobre a aplicação do precedente
judicial, entretanto, pouco se fala a respeito do elo necessário entre a necessidade de uma
construção adequada da decisão judicial e a correta aplicação do precedente no direito
brasileiro.
Importar institutos de outros ordenamentos é louvável quando se tem por
finalidade o aperfeiçoamento do sistema, entretanto, há que se fazer uma reflexão a
respeito de como os juízes têm decidido e quais os efeitos da utilização dos precedentes no
direito pátrio.
Dessa problemática é que partiu o presente trabalho, com o intuito de se analisar
de que forma essas influências podem ser proveitosas ou se podem ser desastrosas na
aplicação do direito brasileiro.
Assim, utilizando-se do método dedutivo, será feita uma análise a respeito da
importação de conceitos e institutos próprios do Common Law para o sistema processual
civil brasileiro e a forma como a doutrina tem encarado esse fenômeno.
Na sequência, será abordada a necessidade de que se pense a decisão judicial à
luz de uma teoria que a justifique e a fundamente, de modo a orientar os operadores do
direito a dar respostas adequadas às questões que são levadas à apreciação do Poder
Judiciário, à luz dos princípios da motivação e do contraditório, corolários do devido
processo legal.
1. A incorporação do sistema do Common Law no direito processual civil brasileiro
O sistema processual civil brasileiro já vem experimentando há alguns anos a
incorporação de conceitos do common law no seu bojo. É recorrente que se utilizem termos
próprios do sistema anglo-saxão para designar institutos processuais que a prática
incorporou na lide processual.
Em decorrência de ser este um fenômeno ainda incipiente, a doutrina brasileira
não conseguiu estabelecer o que se tenta chamar de teoria do precedente judicial.
Importam-se conceitos utilizados no common law e nem sempre de forma adequada. Na
mesma senda, os tribunais sofrem do que se pode denominar de uma crise de identidade,
uma vez que ora seguem os “precedentes”, ora agem a partir das chamadas “viradas
jurisprudenciais”, criando um clima de extrema insegurança ao jurisdicionado.
Essa insegurança é reforçada, ainda, pela precariedade do entendimento de grande
parte dos aplicadores do direito a respeito do chamado pós-positivismo, que trouxe o ganho
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de normatização dos princípios, alçados ao patamar de normas jurídicas, mas que, pela sua
própria natureza de maior abstração, acabam sendo tomados, em muitos dos casos, como
formas de solução universais, sobrepondo-se a regras indistintamente, num desmesurado
intento interpretativo, que acaba gerando efeitos negativos na própria formação da decisão
judicial.
E uma decisão judicial adequadamente construída é de extrema relevância para
que se possa, a partir dela, conhecer o que a doutrina denomina de ratio decidendi, que
seria uma abstração daquele comando, de regra, individual, contido na decisão proferida
em um determinado processo.
Não se pode olvidar também o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, que
trouxe o instituto da súmula vinculante, numa declarada aplicação de um comando judicial
com força vinculativa em relação às funções jurisdicionais e administrativas do Estado
brasileiro.
O advento da súmula vinculante, apesar de não ser este um instituto criado no
Common Law, indica de forma muito clara que se está a buscar soluções para a crise de
gestão do Poder Judiciário a partir da mudança de normas processuais, para que haja a
institucionalização de um sistema de precedentes.
Na análise do sistema norte-americano, Sergio Gilberto Porto (2010) indica que lá
se tem a “idéia de encorajar os juízes a serem mais cuidadosos e diligentes na formação das
decisões precursoras”, além de se pretender induzir os julgadores a se afastarem de seus
pré-conceitos, tornando os julgamentos mais impessoais, o que contribuiria, por fim, “para
demover os litigantes de retornar ao Judiciário na ilusão de obter uma resposta diferente
para o seu caso”.
Já o mesmo não se pode dizer do Brasil, uma vez que por ser o precedente um
instituto típico do common law, ainda não existem ferramentas devidamente formuladas
para a realização do intento de segurança jurídica a partir das decisões judiciais.
Já desde a formação básica em processo civil é comum que se encontrem
ensinamentos e referências doutrinárias a institutos novos, importados. É o que se vê, por
exemplo, na obra intitulada “Curso de Direito Processual Civil”, encabeçada pelo
festejado processualista Fredie Didier Junior (2009), quando, em seu volume 2, faz
referência ao que denomina de “Teoria do Precedente Judicial”.
Nesta obra, o precedente é apresentado como um dado do sistema brasileiro,
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fazendo-se um estudo, no estilo do que permite a fórmula de elaboração de manuais para o
público de graduandos em direito, a respeito dos conceitos de ratio decidendi, holding,
obter dictum, distinguishing, overriding, overruling etc.
Essa valorosa tentativa de sistematização da teoria do precedente no direito
brasileiro, com a adoção de institutos próprios do common law é sintomática da busca que
se faz de saídas para os problemas que afligem os operadores do direito no momento da
sua aplicação no processo, notadamente no que toca à efetividade e segurança jurídica.
Sergio Gilberto Porto (2010) sinaliza a ocorrência do que denomina de
commonlawlização do direito brasileiro, identificando uma clara tendência de valorização
da jurisprudência criativa como fonte de direito, a partir da atribuição de efeitos
vinculantes ou erga omnes a determinadas decisões jurisdicionais. Para ele:
Cumpre lembrar, - em face da afirmativa de que o crescente valor
atribuído à jurisprudência na civil law brasileira representa, de
certa forma, a influência da common law no sistema nacional, em
face da globalização – e que a fonte primeira do direito da
common law é a jurisprudência, eis que este sistema é
absolutamente pragmático, formando-se o direito através das
decisões jurisdicionais. Há nele, pois, um compromisso prévio de
prestigiamento do caso antecedente da decisão futura –
circunstância operada através do distinguishing efetivado pelo
magistrado posterior. São cotejados os grupos de casos
semelhantes para ao fim decidir qual precedente mais se afeiçoa ao
caso concreto. Assim, nos países em que vige o sistema da
common law, acima da legislação e acima de qualquer outra fonte
do direito está o caso julgado pelas cortes e que, portanto, criam
precedentes e, por decorrência, verdadeiramente, fazem nascer o
direito com base na experiência. Nesse sentido, as decisões
jurisdicionais em tais países, como se vê, desempenham um papel
que transcende o caso posto ao crivo judicial (PORTO, 2010, p.
7).
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E não se pode deixar de acreditar que esse movimento é absolutamente natural,
conquanto se viva numa sociedade globalizada, em que a transmissão de informações e de
conhecimentos é feita de modo muito mais facilitado.
Se as próprias culturas, se as sociedades acabam interligando-se e trocando
“experiências”, nada mais aceitável do que também o direito observe essa inter-relação.
Com isso, tem-se a influência clara do sistema common law no direito brasileiro,
até mesmo por conta do fato de que o civil law nem sempre soube dar as respostas corretas
para os problemas experimentados no ordenamento jurídico brasileiro. E esse fenômeno,
embora tenha adquirido uma visibilidade maior nos tempos atuais, remonta à época das
origens desses dois grandes sistemas jurídicos, que sofreram influências recíprocas desde
sempre, nos termos das lições de Mauro Cappelletti (apud PORTO, 2010).
A evolução histórica dos dois principais sistemas jurídicos do planeta desagua
atualmente numa cautelosa, mas acentuada, aproximação, do que decorre o ganho de
importância do direito legislado para o common law e dos precedentes para o civil law,
conforme leciona Miguel Reale, para quem:
Se alardearmos as vantagens da certeza legal, podem os adeptos do
common law invocar a maior fidelidade dos usos e costumes às
aspirações imediatas do povo. Na realidade, são expressões
culturais diversas que, nos últimos anos, têm sido objeto de
influências recíprocas, pois enquanto as normas legais ganham
cada vez mais importância no regime do common law, por sua vez,
os precedentes judiciais desempenham papel sempre mais
relevante no direito de tradição romanística (REALE, 1995, p.
142).
No sistema brasileiro, o legislador deixou de ser o protagonista da ordem
jurídica, “sendo substituído por um trabalho conjunto entre legisladores, administradores e
julgadores” (ROSSI, 2012, p. 209).
Fernando de Brito Alves (2012, p. 270) sinaliza a existência, no mundo moderno,
de uma função de concordância prática, pela jurisprudência, de valores e princípios que
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podem ser contraditórios teoricamente, mas que são desejáveis do ponto de vista prático.
Com isso, “os juízes ocupam, no Estado constitucional contemporâneo, uma especial e
difícil posição de intermediação entre o Estado e a sociedade”.
O trabalho em conjunto entre julgadores, administradores e legisladores pode ser
identificado na prática argumentativa que caracteriza o direito, levando o intérprete a uma
posição de destaque no cenário jurídico, já que é ele quem atribui sentido à norma
(DWORKIN, 2007), num claro abandono do paradigma positivista.
Essa mudança paradigmática é a pedra de toque do pós-positivismo, fenômeno
filosófico com claras influências no direito, a partir da incorporação de valores pelo
ordenamento.
Com isso, viu-se nascer o que se denominou de neoconstitucionalismo, a fim de
que a Constituição, que já era considerada o centro do ordenamento jurídico, passasse a,
também, ter os seus comandos efetivados.
Daí a importância do intérprete, na medida em que todas as decisões fossem
legitimadas na passagem pelo filtro constitucional. Vale dizer, o aplicador do direito,
mesmo diante de uma regra dita clara, deve buscar também embasamento na norma
constitucional (MAUÉS, FONSECA, RÊGO, 2006), de modo que todo juiz exerça uma
parcela da jurisdição constitucional (FACCINI NETO, 2011), atendendo ao que Dworkin
denominou de princípio da integridade, a saber:
Temos de insistir num verdadeiro princípio de poder, uma ideia
contida no próprio conceito de direito: a ideia de que, quaisquer
que sejam as suas convicções acerca da justiça e da
imparcialidade, os juízes têm também de aceitar um princípio
superior e independente – o princípio da integridade (DWORKIN,
2006, p.133).
Faccini Neto (2011), nessa esteira, entende ser o juiz “um romancista em cadeia”,
que deve considerar a construção dos juízes no passado, para desvendar o que foi decidido
e, a partir disso, concluir na solução do novo caso que se lhe pôs para exame,
desenvolvendo este “romance”, respeitando o já construído, sem que lhe seja autorizada
uma ruptura com o encadeamento da obra.
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A adoção de um sistema de precedentes é de suma importância para que se
confira ao ordenamento jurídico a segurança e a efetividade necessárias. Hans Kelsen
(2000, p. 389) já sinalizava a necessária função legislativa do Judiciário, a partir da
criação de um precedente que poderia servir de base para decisões de casos similares,
ocasião em que o tribunal, a partir desta decisão, criaria “uma norma geral que se encontra
no mesmo nível dos estatutos criados pelo chamado órgão legislativo”.
Entretanto, o que se vê na práxis forense não se coaduna com as intenções
teóricas acima referidas. A problemática da “commonlawlização” reside no fato de que,
muito embora os precedentes sejam, teoricamente, instrumentos de garantia de segurança
jurídica e até mesmo de efetividade, no Brasil ainda enfrenta-se um problema antecedente
a ele, que é relativo à construção da decisão judicial.
Não há uma teoria sólida nesse sentido e a situação agrava-se ainda mais quando
se está diante da era pós-positivista, com o império dos conceitos abertos e da
interpretação, aliado ao ativismo e ao protagonismo judiciais.
2. A necessidade de uma construção adequada da decisão judicial para a correta
aplicação do precedente
O que se vê na prática forense é a má construção do diálogo processual e,
consequentemente, da decisão judicial, decorrente da utilização de saídas pouco
defensáveis, tais como chamar decisão judicial de jurisprudência dominante e posição
isolada de doutrina pacificada, numa frágil tentativa de convencer as partes a respeito do
entendimento a que chegou o juiz, em muitos casos, antes mesmo de analisar o caso
concreto.
Daniel Mitidiero alerta para o impacto do que denomina de tripla mudança no
campo da fundamentação das decisões judiciais. Segundo ele:
A passagem do Estado Legislativo para o Estado Constitucional
impõe fundamentação analítica para aplicação de princípios e
regras mediante postulados normativos e para a concretização de
termos indeterminados, com eventual construção de consequências
jurídicas a serem imputadas aos destinatários das normas.
(MITIDIERO, 2012, p. 67)
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Isso significa a atribuição de uma função diferenciada ao julgador, que atuará na
reconstrução do sentido normativo das proposições jurídicas. Vale dizer: as normas
decorrem de uma outorga de sentido dos textos, que, por seu turno, são dados pelo
legislador (GRAU, 2005).
Tal situação gera uma abertura para o julgador, que poderá considerar-se livre
para atribuir o sentido que bem lhe aprouver para o texto, gerando, por conseguinte,
insegurança jurídica. É o que se vem observando no Brasil atualmente. A proliferação de
princípios jurídicos acaba conferindo ao julgador a oportunidade de manejá-los muito
livremente. A chamada colisão entre princípios – num ordenamento em que os princípios
se acotovelam – ocorre seguidamente e as saídas para isso nem sempre resistem a uma
apurada análise.
O tema que se quer desenvolver baseia-se na doutrina que defende a necessidade
de se pensar a construção de uma sólida teoria da decisão judicial e demonstra a fraqueza
do sistema de precedentes utilizado no Brasil.
É na obra de Streck, notadamente, que se encontra a base para a presente
pesquisa. Ele já vem denunciando a equivocada importação da teoria da interpretação
proposta por Robert Alexy, afirmando que os pensadores tupiniquins transformaram a
“razoabilidade” em princípio jurídico, utilizando-a como “um instrumento para o exercício
da mais ampla discricionariedade (para dizer o menos) e o livre cometimento de
ativismos”. Segundo o professor gaúcho, o uso da ponderação, em Alexy, não significa
uma operação em que se escolhe um dos princípios que estejam em colisão e, sim, “um
procedimento que serve para resolver uma colisão em abstrato de princípios
constitucionais”, do que resultaria uma regra que resolveria o conflito (STRECK, 2013).
A motivação da decisão judicial é princípio de natureza constitucional (art. 93,
IX/CF), revelando-se um “banco de prova do direito ao contraditório” (MOREIRA, 1988,
p. 83) atribuído às partes. Conclui-se, com isso, que a ausência de motivação retira da
decisão o seu caráter jurisdicional (MARINONI, 2006). Importante destacar, entretanto,
que quando se fala em existência de motivação, até mesmo pela sua vinculação ao
princípio do contraditório, quer-se dizer que há a exigência de que a fundamentação da
decisão seja construída de forma sólida e não a partir de artifícios.
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Ou seja, para que uma decisão seja considerada jurisdicional, deve estar
devidamente motivada, construída sobre bases firmes de argumentação, o que permitirá,
então, a extração do precedente judicial. Sem isso, gera-se um círculo vicioso. Os
“precedentes” são gerados a partir de decisões judiciais mal construídas, que, por seu
turno, adotam os “precedentes” como parâmetros para novos julgamentos.
Daniel Mitidiero (2012) sugere que a adoção de um sistema de precedentes no
ordenamento jurídico brasileiro deva ser pensada criticamente a partir da tradição do
common law. Para ele, muito embora haja correspondência entre as razões para seguir os
precedentes no civil law e no common law, é na tradição deste último “que se deve buscar
os meios pelos quais os precedentes podem ser corretamente identificados e aplicados em
juízo”.
Justificando esse posicionamento, o referido processualista indica obras de autores
brasileiros, em sua maioria processualistas, que bebem na fonte do sistema do common law
e tentam abrasileirar a aplicação dos precedentes judiciais.
Não obstante isso e até mesmo por conta disso, há outros autores brasileiros,
ligados mais diretamente à teoria do direito, que analisam de forma crítica a adoção dos
precedentes, sejam eles vinculantes ou não, ou entendidos como fontes do direito,
defendendo uma análise mais aprofundada da teoria da decisão judicial, com caráter
antecedente à aplicação de um sistema de precedentes no direito processual brasileiro.
Os defensores da utilização do sistema do precedente judicial no Brasil ancoram-
se na necessidade de que haja segurança jurídica a partir das decisões judiciais, o que
contribuiria para a solução da crise por que vem passando o Poder Judiciário, a partir do
aumento considerável da litigiosidade.
Referenciando Ronald Dworkin, Alexandre Bahia (2012) critica essa visão,
mencionando a série de reformas pelas quais vem passando o processo civil brasileiro, que,
a despeito delas, e do que chama de aperfeiçoamento do sistema de Súmulas, “a crise do
Judiciário não foi resolvida, pois que nosso problema não é de texto – como poderia
parecer a uma comunidade de regras”.
Júlio César Rossi (2012) ressalta certo descuido que se vem observando na mescla
das características dos sistemas do civil law e do common law. Para ele, não se “pode
desprezar a produção judicial do direito”, entretanto, há que se “evocar o precedente” e
“motivar a sua aplicabilidade”. Do contrário, estar-se-ia legitimando discricionariedades,
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capazes de conferir ao precedente “qualidade de fundamentar, por si só, uma decisão
judicial, na maioria das vezes descontextualizada dos efetivos elementos constantes no
caso concreto”.
E é isso que se vê em muitos casos na práxis forense. Decisões que vêm sendo
motivadas a partir da menção a outras decisões e mais nada, como se o caso em exame não
comportasse qualquer análise diferenciada.
É evidente que há lides repetitivas, entretanto, toda situação fática requer uma
análise individualizada e é isso que justifica a existência do Poder Judiciário, pois, a
seguir-se por esse caminho, fatalmente chegar-se-á a um momento em que o padrão
estabelecido em decisões anteriores subjugará o julgador, tornando-o um repetidor, que
aderiu ao que Alexandre Morais da Rosa (2011) denominou de Franchising Judicial.
Atualmente, o sistema processual brasileiro atravessa uma fase de profundas
indagações. Vive-se a consequência da abertura democrática, da ampliação dos direitos e
da tentativa de efetivação de acesso à justiça.
Nesse mundo pós-moderno em que as informações são disponíveis a grande parte
da população em tempo real e onde as relações entre as pessoas são firmadas em grande
número e pelas mais variadas razões, é natural que surjam conflitos diferentes, conflitos
semelhantes e conflitos idênticos e, dada a falência da autorregulação da sociedade e o
desrespeito em massa dos direitos, fatalmente tais conflitos serão levados ao Poder
Judiciário.
Com isso, o Poder Judiciário vem enfrentando uma séria crise de administração, o
que acaba afetando, logicamente, o estudo sobre o processo.
Muitas tentativas já foram feitas, algumas com sucesso, outras não, para reverter
esse quadro de crise que assola o poder jurisdicional. Mudanças legislativas pontuais e até
mesmo a elaboração de um projeto de novo Código de Processo Civil já foram
empreendidas. Além disso, a doutrina brasileira debruça-se rotineiramente sobre teses para
encontrar soluções aptas a tornar a prestação jurisdicional mais célere, efetiva e justa.
E numa dessas tentativas, tem-se a iniciativa de aplicação, no direito brasileiro, do
sistema de precedentes judiciais. Entretanto, observa-se que, apesar dos grandes esforços
empreendidos pela doutrina, a prática forense demonstra a fragilidade do sistema, que é
carente de uma fundamentação adequada. Fala-se em fundamentação aqui no sentido de
base teórica justificante.
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Há que se pensar na importação de conceitos e institutos a partir de um
fortalecimento prático do princípio do contraditório, corolário do princípio da
fundamentação.
O contraditório atualmente não é mais pensado sob aquele ponto de vista
mecanicista de possibilitar que as partes formulem suas teses e antíteses. Contraditório
atualmente é significado de informação e possibilidade de manifestação, cuja consequência
é a formação da decisão judicial.
Devem ser abandonadas essas terríveis práticas antidemocráticas de decisão
“conforme a consciência” do julgador, de baixa fundamentação em decisões que não
analisam todos os pontos levantados pelas partes no decorrer do processo.
É comum que se vejam decisões judiciais “fundamentadas” em ementas de
julgados colhidas aleatoriamente nas ferramentas de pesquisa que a internet possibilita sem
que sequer se tenha feito uma análise deste “precedente”, a fim de verificar se, de fato,
aquela decisão anterior poderia influenciar no julgamento deste novo caso.
Aprisiona-se a justiça em ementas que nada mais são do que uma reunião de
palavras para resumir um determinado julgamento. O contraditório é espezinhado
recorrentemente, pois no momento do julgamento olvidam-se as considerações formuladas
pelas partes e autoriza-se o magistrado a analisar apenas as questões que ele entender
pertinentes para a solução da lide.
E, infelizmente, esse posicionamento, ao que parece, é o majoritário, até mesmo
nos tribunais superiores, que entendem no sentido de que o juiz não está obrigado a
analisar todos os argumentos levantados pelas partes, bastando que decida a questão posta
em litígio dentro de seu livre convencimento, senão veja-se:
Como é de sabença geral, o julgador não está obrigado a discorrer
sobre todos os regramentos legais ou todos os argumentos
alavancados pelas partes. As proposições poderão ou não ser
explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado
a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando o
seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado
nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice e com a legislação
que entender aplicável ao caso concreto (STJ. RECURSO
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ESPECIAL Nº 792.497 - RJ 2005/0172468-8. RELATOR:
MINISTRO FRANCISCO FALCÃO).
Não ocorre violação do art. 535, do CPC, quando o acórdão
recorrido não denota qualquer omissão, contradição ou obscuridade
no referente à tutela prestada, uma vez que o julgador não se obriga
a examinar todas e quaisquer argumentações trazidas pelos
litigantes a juízo, senão aquelas necessárias e suficientes ao
deslinde da controvérsia (STJ. REsp nº 394.768/DF, Relator
Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 01/07/2002, pág. 00247).
O magistrado não está obrigado a refutar, um a um, os argumentos
deduzidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham
sido suficientes para embasar a decisão (STF - EMB.DECL. NO
AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM
AGRAVO: ARE 689418 RS. Rel. Min. Luiz Fux).
Ora, fazer menção ao livre convencimento como saída de justificação para
decisões que deixam de analisar todos os pontos levantados pelas partes é uma conduta,
deveras, discutível. O sistema processual civil brasileiro não adotou em nenhum momento
o princípio do livre convencimento do juiz. O que se tem aqui é a adoção do princípio do
livre convencimento motivado, da persuasão racional.
Deve-se destacar que o livre convencimento, por si só, atribui ao juiz extremos
poderes e joga por terra todo o edifício normativo construído sobre o princípio do devido
processo legal. A exigência de motivação que adjetiva o livre convencimento é justamente
para garantia da democracia nas decisões do Poder Judiciário.
Não se pode cogitar da hipótese de que, em um Estado Democrático de Direito, o
Judiciário possa decidir como bem quiser, sem a necessidade de fundamentação. Embora a
legislação não estabeleça gradações legais sobre o peso deste ou daquele argumento, isso
não significa que o juiz é livre para decidir como quiser.
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Há necessidade de apreciação de todos os pontos levantados pelas partes e essa
necessidade decorre não só do princípio constitucional da motivação das decisões judiciais,
mas também do próprio contraditório, norma de caráter principiológico, também
considerado um direito fundamental.
Por essa nova visão que se tem do contraditório, é forçoso que se conclua que o
juiz está, sim, obrigado a responder a todos os argumentos levantados pelas partes e não
apenas àqueles que entenda suficientes para justificar sua decisão.
A decisão do juiz não se dirige a ele, mas, sim, às partes. Então, se as partes
levantaram a questão, é do juiz o dever de respondê-la, pois, muito embora o
convencimento seja livre de gradações legais, a justificação é necessária, imperativa e
garantia de democracia.
Ao fundamentar adequadamente a sua decisão, o juiz revela às partes todos os
motivos pelos quais entendeu desta ou daquela maneira e há que se lutar por essa
motivação completa, pois as partes têm o direito de saber as razões pelas quais os seus
argumentos não foram acatados pelo julgador, ainda que este os tenha reputado
desprovidos de fundamento.
Ignorar argumentos não é democrático, pois se o julgador os considera
impertinentes, que diga a razão de entender dessa forma, já que a própria função
jurisdicional é justificada na necessidade de se responder ao jurisdicionado, na tentativa de
convencê-lo do acerto da decisão judicial, a fim de que se torne realidade a finalidade do
processo: de pacificação social.
Não se pacifica sem que o sucumbente esteja convencido de que não possui razão.
E não há convencimento se o juiz deixa de apreciar as questões levantadas pelas partes.
Frise-se, está-se tratando do convencimento das partes e não do juiz. Este é pressuposto
daquele, é um meio. Aquele é o fim a ser perseguido e como tal deve ser encarado.
3. Considerações Finais
O sistema de precedentes que se pretende implantar a partir das experiências
vivenciadas no sistema do common law encontra a barreira da falta de uma sólida teoria da
decisão judicial no Brasil. O fato é que as decisões judiciais vêm sendo construídas de
forma deficiente, sem atenção ao básico e constitucional princípio da motivação.
E a decisão judicial bem construída é a base sobre a qual poderá se apoiar a
aplicação do precedente. Sem ela, ou sendo ela deficiente, o precedente ruirá, pois, de
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consequência, não será bem construído e apresentará fragilidades que somente contribuirão
para o aumento da insegurança jurídica, ocorrendo o inverso daquilo que se pretende com
ele.
Dessa maneira, impende que se discuta o precedente judicial à luz de uma sólida
teoria da decisão, como antecedente necessário, de modo a que se investigue a formação da
decisão judicial e os seus efeitos na construção do sistema de precedentes, abolindo-se as
indefensáveis práticas de julgamento por decisões standards, que encaram os litígios como
problemas a serem classificados neste ou naquele entendimento jurisprudencial, sem que se
faça uma análise apurada do caso concreto.
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