Aristófanes. Vespas (2ª ed.). Tradução, introdução e notas. Coimbra, FESTEA, 2009.

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Aristófanes As Vespas

As VespasIntrodução, tradução do grego e notas de

Carlos A. Martins de Jesus

Aristófanes

FESTEA

TEMA CLÁSSICO

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Autor: AristófanesTítulo: As VespasTradutor: Carlos A. Martins de JesusEditor: FESTEA – Tema ClássicoEdição: 2ª / 2009 Propriedade: FESTEA – Tema ClássicoConcepção e Planeamento: FESTEA – Tema Clássico

Secretariado:FESTEA – Tema ClássicoInstituto de Estudos ClássicosFaculdade de Letras da Universidade de CoimbraPraça da Porta Férrea3004-530 CoimbraTelefone: 967685736Fax: 239410022e-mail: [email protected]

Tiragem: 250 exemplares

IMPRESSÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA:Simões & Linhares, Lda.Av. Fernando Namora, n.º 83 - Loja 43030-185 COIMBRA

ISBN: 978-972-8869-22-9Depósito Legal: 290046/09

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Índice

Introdução 7O Sentido Político de Vespas 8Os tribunais e a sua paródia cómica 10

Personagens da peça 19

Argumento I 20Argumento II 21

As Vespas 23

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Introdução

Do conjunto das onze comédias completas que preservamos de Aristófanes, Vespas foi a quarta a ser apresentada, no ano imediatamente seguinte a Nuvens. As Leneias de 422 são a circunstância espácio-temporal unanimemente aceite pelos críticos para a apresentação da comédia, sobretudo a partir da afirmação do anónimo autor do I Argumento, quando se refere ao arcontado de Amínias, que terá decorrido entre os anos de 423 e 422, e à 89ª Olimpíada.

Obra de um Aristófanes já firmemente posicionado no panorama cómico ateniense, de um artista conhecido e que despertava ódios e paixões nos seus concidadãos, Vespas é claramente, e antes de mais, uma comédia política, no lato sentido do adjectivo. Na linha directa de Acarnenses e Cavaleiros, porquanto versa sobre as instituições da cidade e procura denunciar o seu mau funcionamento e a sua falência, mas também inspirada por Nuvens e desde logo pela primeira das suas comédias, a fragmentária Celebrantes do Banquete (frs. 205-255 K-A), por assentar no esquema cómico do conflito de gerações, a comédia de 422 tem ainda a particularidade de ter sido a primeira peça levada à cena após o grande golpe que foi, para Aristófanes, o não reconhecimento da novidade de Nuvens, apresentada nas Grandes Dionísias de 423. Como tal, deve ser encarada como um primeiro esforço aristofânico confesso de conciliação entre a comédia intelectual e a comédia vulgar, na busca não mais de uma novidade extrema, antes de um equilíbrio entre o gosto de ambos, poeta e público. De outro modo, permite-nos também olhar para o comediógrafo como um artista que testa os diferentes

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menus de cómico no seu público, procurando averiguar qual o que mais lhe agrada e mais facilmente lhe garantiria o primeiro prémio.

Fruto de um contexto político muito marcado pela Guerra do Peloponeso e, mais em específico, pela atitude de Cléon, sucessor de Péricles, na condução do conflito de Pilos-Esfactéria, Vespas reflecte sobre a justiça, o direito e a participação popular no sistema democrático, mas também sobre a retórica e as relações familiares e sociais, elementos que contribuem para a construção de uma comédia diversificada, hilariante e aguçada na crítica que leva a cabo, aguçada como o aguilhão desses homens-vespa que constituem o seu coro.Pese embora o texto do Argumento I, que a seguir traduzimos, não parece haver dados suficientes para duvidar da autoria aristofânica de Vespas, desde muito cedo tida como certa1.

O Sentido Político de VespasAristófanes tinha plena consciência da sua missão política,

como se o poeta cómico, mais do que qualquer outro, fosse um tenor do colectivo. Como tal, a comédia define e persegue o justo, por muito difícil que, no contexto que lhe é próprio, possa ser essa tarefa.2 A proposta cómica de Aristófanes em 422, na linha directa da fragmentária Babilónios (426), mas também de Acarnenses (425) ou Cavaleiros (424), não foge à regra. Ela é política porque se debruça sobre o funcionamento das instituições democráticas da cidade, baseando a comicidade mais na sua falência do que na sua eficácia; política porque reflecte bem as feridas de uma civilização em guerra; política ainda porque se faz eco, de um modo propositadamente diferente de Nuvens (423), das novas tendências retóricas do ensino sofístico.

Num primeiro momento da Guerra do Peloponeso, Atenas, sob o comando de Péricles, optou por resistir ao invasor dentro

1 Já o mais antigo manuscrito que contém as comédias de Aristófanes, datado do início do século X da nossa era, incluía Vespas entre as onze comédias do poeta, as mesmas que ainda hoje constituem o seu corpus de peças integralmente conservadas.

2 Cf. Aristófanes, Acarnenses 497-501, 645, 659-664, Cavaleiros 509 sqq., Nuvens 518 sqq., Vespas 1015.

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das muralhas, enquanto atacava por mar. Em 430, contudo, abate- -se sobre a cidade uma terrível peste, perecendo cerca de 30.000 cidadãos, entre os quais o próprio Péricles. Morto o estratego das forças atenienses, é Cléon, um homem de origens não nobres, quem assume as rédeas do conflito, iniciando aquilo que Péricles sempre evitara fazer, receoso das consequências: a conquista ao inimigo, por terra, de pontos estratégicos. O episódio mais recente na memória dos Atenienses terá ocorrido em 425, quando o general Demóstenes tomou de assalto o porto de Pilos, perto de Esparta, o que constituiu uma grande compensação psicológica para Atenas (Tucídides, 4. 1-7). Importa não esquecer que Esparta havia, por sua vez, ocupado Esfactéria, uma zona fronteiriça a Pilos, criando deste modo as condições para uma tensão entre as duas partes. A facção lacedemónia tentou entrar em negociações com Atenas, mas Cléon, ao tempo já um bouletes bastante influente, recusou o diálogo. Na Pnix, acusou de incompetência os generais responsáveis por Pilos (Demóstenes e, em especial, Nícias, seu inimigo pessoal) e propôs-se resolver toda a situação em apenas vinte dias (Tucídides, 4. 28). Após a demissão voluntária de Nícias, alia-se a Demóstenes em Pilos e sai vitorioso, muito embora tal vitória pertença quase em exclusivo àquele general.

A ofensiva continuava violenta para ambos os lados. Brásidas, general espartano (cf. Vespas, 475), toma de assalto Anfípolis, ponto importante para os Atenienses por constituir a fonte de subsistência da guerra, graças às suas minas de prata. No confronto das duas forças, tanto Cléon como Brásidas perdem a vida. Era o ano de 422, o mesmo que, em Janeiro, assistira à apresentação de Vespas nas Leneias. Não faria ideia Aristófanes de que o alvo de eleição da sua paródia estava prestes a encontrar a morte, escassos meses depois.3 O mesmo contexto que a Eurípides permitiu construir os mais sentidos dramas humanos ofereceu ao comediógrafo matéria de sobra para, rindo, expor os podres de toda uma sociedade e de todo um sistema político que davam já mostras de caducidade.

3 Para um estudo mais alargado deste período, do ponto de vista histórico, político e social, cf. The Cambridge Ancient History V, 370-342.

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Os tribunais e a sua paródia cómicaJulgar parecia ser uma obsessão, ou é pelo menos essa a

versão cómica do que, no contexto da democracia ateniense, seria, por princípio, um direito e um dever democráticos. Os tribunais (dikasteria) eram por excelência os espaços onde entrava em acção a participação popular, um cenário contudo permeável a situações variadas de corrupção.

Se o Areópago, etiologicamente criado por Atena para julgar o matricídio de Orestes,4 controlou grande parte do poder judicial até 462, ano em que Efialtes o despojou gravemente de poderes, se também o tribunal dos Éfetas, criado por Drácon, foi perdendo importância, era em Helieia que funcionava aquele que, com justiça, pode ser considerado o tribunal popular por excelência, ao que parece instituído por Sólon.5 Nele podiam exercer funções judiciais todos os cidadãos com idade superior a trinta anos (os assim designados heliastai) que, a partir do tempo de Péricles, passaram a receber um salário (misthos) pela sua participação. Eram anualmente sorteados de cada uma das dez tribos atenienses 600 indivíduos, constituindo-se assim uma espécie de bolsa de juízes com um total de 6.000 elementos (cf. Vespas, 662). Estes, claro está, dificilmente se reuniriam em plenário para uma qualquer causa, sendo que o número de juízes tendia a aumentar consoante a envergadura do processo em litígio. Normalmente, os processos públicos atraíam um maior número de magistrados do que os processos privados.

Um dos aspectos questionáveis neste sistema judicial de participação directa, no que toca aos tribunais em específico, reside na remuneração do que devia ser um dever democrático. De facto, cada juiz receberia, ao tempo da apresentação da comédia, três óbolos por dia de presença no tribunal (Vespas, 609, 1121, passim), sendo que inicialmente

4 Essencialmente o tema das Euménides de Ésquilo, apresentadas no remoto ano de 458.

5 D. Leão (2001), Sólon. Ética e Política, Lisboa, 321-328 alude a diversos testemunhos que parecem sustentar, pelo menos, que o legislador terá lançado as bases do que viria a ser, no séc. V, o grande tribunal popular de Atenas.

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eram apenas dois óbolos. Podem estas medidas denunciar o crescente desinteresse das massas pelo seu dever cívico de julgar ou, de outro modo, ser simplesmente um aliciamento à participação popular para dela retirar proveitos pessoais. Não obstante, esta questão leva-nos a uma outra em nada menos importante: a classe social e o estatuto económico das gentes que compunham o corpo de juízes nos tribunais. A sensação que nos fica de Vespas, que parece não corresponder à realidade, é a de que esse misthos constituiria uma espécie de pensão de velhice para a classe média-baixa, a avaliar não apenas pela faixa etária do coro da comédia e do próprio Filócleon, mas também pelas suas preocupações, por exemplo, com o custo do azeite para a lamparina (Vespas, 251-253). Seria comicamente mais eficaz apresentar estes juízes como pobres e envelhecidos, mais fragilizados e vulneráveis às investidas de aduladores e demagogos. De qualquer modo, o aliciamento de juízes, o suborno, ter-se-á transformado no prato do dia.

Se Acarnenses começara com o cenário da assembleia, o espaço cénico de Vespas é do mais tradicional que pode haver em comédia: uma casa e dois escravos, preguiçosos face à tarefa de que foram incumbidos e a discutir, por entre uma soneira quase invencível que deles se apoderou. Só entre os vv. 85-110 é dado a conhecer ao público o assunto central da peça, quando Xântias conta aos espectadores qual o mal de que padece o seu velho patrão. Mesmo os sonhos dos escravos parecem não denunciar, pelo menos directamente, o tema judicial. Mas o segundo destes sonhos, que na noite passada havia assaltado o sono de Sósias, vem já trazer algo que merece destaque. O cenário dessa visão onírica é a assembleia, na qual se reúne um grupo de carneiros que é “papado” por uma baleia, “cuja voz lembrava uma porca enraivecida” (35-36). Marca óbvia do poder dos demagogos, é certo, mas quando o escravo continua a narração as coisas mudam de figura: é que o terrível animal “tinha na mão uma balança, com a qual pesava sebo de boi” (39-40). Fica, deste modo, como que oficialmente introduzido o tema da justiça e dos tribunais na peça, pelo recurso à iconografia da deusa Dike, que ainda hoje vemos à porta dos nossos tribunais.

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Quando Xântias se dirige ao público e finge dele obter respostas quanto à doença (nosos) do velho Filócleon, aproveitando a ocasião para lhes contar o argumento da comédia, confessa que o velhote é phileliastes (‘viciado em julgamentos’), passando de seguida para uma primeira descrição da sintomatologia visível desse mal (85-110). Todos os seus sintomas, de facto, dizem respeito a hábitos ou objectos característicos do ofício de juiz, misturados com a postura de alguém ansioso e completamente hiperactivo. Há referência à clépsidra (93), à urna (99) e aos seixos de voto (94, 109), para cuja hipotética falta arranjou o velho um esquema hilariante: guarda em casa um areal deles. Prova evidente dessa obsessão patológica pelos julgamentos é o seu hábito de madrugar para ir para o tribunal (100-105). Ao desinteresse comum face à participação democrática evidente em comédias como Acarnenses ou Mulheres no Parlamento (um direito, é certo, mas acima de tudo um dever), opõe o poeta, nesta comédia, um exacerbado interesse, na pessoa de Filócleon, com contornos de uma doença obsessiva. Uma doença que é extensiva a toda a cidade e para a qual, como a um médico, é a Bdelícleon (imagem do poeta politicamente empenhado) que cumpre arranjar uma cura ou, pelo menos, traçar o diagnóstico da patologia, com vista, no futuro, a um tratamento mais eficaz (1023-1028).

O coro de juízes, comparsas de ofício e vocação do velho Filócleon, tem a sua entrada no v. 230. Vem à procura do companheiro, pois o caso dessa manhã é dos grandes e exige a sua comparência. Trata-se de um exemplo claro de um processo público, dos que mais atraíam a presença dos magistrados a Helieia. No diálogo que o corifeu estabelece com o filho, do grupo do coro de crianças que acompanha os juízes volvidos em vespas, sobressai a intenção aristofânica de apresentar estes magistrados populares como pertencentes a uma classe baixa, como se os três óbolos diários fossem para eles uma pensão de velhice ou uma diária insuficiente para as necessidades mais básicas de uma família. O rapaz é ameaçado de uma sova por puxar a torcida da lamparina (cf. Nuvens, 56.) – afinal, o azeite está caro –, estranhamento agravado com o pedido de figos, e

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mais uma vez o velho pai confessa não ter possibilidade de os comprar, queixando-se, como em todos os tempos, do custo da vida.

Desde cedo ficam bem delineadas na peça duas opiniões contrárias, numa perspectiva agonística corrente na comédia grega antiga. A de Filócleon, fervoroso defensor do sistema judicial, e a do filho Bdelícleon, que considera esse sistema de todo inútil e inoperante, razão que motiva o coro a ter vontade de chamar Cléon para acusar “um inimigo da cidade” (409-414), como se a vontade deste demagogo e os seus interesses fossem em tudo coincidentes com a vontade e os interesses do colectivo. Os nomes dos dois protagonistas revelam isso mesmo: o velho, Filócleon (à letra ‘adepto de Cléon’), por oposição ao filho, Bdelícleon (‘o que odeia Cléon’). O primeiro sente-se rei e senhor pelo exercício da sua função de heliasta, enquanto o segundo promete demonstrar-lhe como o que ele julga ser um poder absoluto não passa, na realidade, de uma vil forma de escravatura. Vale-se, para tal, de argumentos de natureza economicista – que sabe gritarem alto aos ouvidos do pai – e prova-lhe como tem vindo a ser explorado com a miséria de salário que recebe, uma ínfima porção dos fartos tributos pagos a Atenas pelas cidades aliadas; conclui, por isso, que os juízes como Filócleon não passam de joguetes nas mãos dos poderosos, que do seu poder legal se servem para ascenderem ao último degrau da carreira política. Por aqui se percebe como, na realidade, Bdelícleon não considera inúteis os tribunais (acusação francamente injusta que lhe faz o coro entre os vv. 411-414), antes vê neles uma instituição democrática demasiado valiosa para funcionar do modo como a vê funcionar, afundada na corrupção e no descrédito. Tudo o que pretende, no fundo, é evitar que o pai seja cúmplice dessa situação. Filócleon fica convencido, mas não está ainda psicologicamente curado da sua doença, mantendo um desejo indomável de julgar (751-759).

Face a esta evidência, Bdelícleon propõe ao pai, como derradeira tentativa de cura, aquilo que podemos considerar uma terapia homeopática: o julgamento doméstico. Ele é prova de que se mantém intacta a sua determinação de curar o pai e,

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em termos psicológicos, revelar-se-á uma excelente terapia de compensação. E é neste julgamento, irreal mas verosímil, que deve o público reconhecer as marcas fundamentais da prática judicial do tempo, para que o riso pela paródia e pela caricatura seja possível. Nada é descurado nesta adaptação cómica, sendo que Filócleon vai mesmo, no final da sessão, receber o seu salário das mãos do próprio filho (784).

Mas há, literalmente, que construir o tribunal à porta de casa. A regra é, mais do que qualquer outra, a improvisação. Enquanto se constrói o cenário de tribunal, ganha a comédia uma dinâmica impressionante. As personagens entram e saem em busca dos acessórios necessários; improvisa-se um altar a Lico, divindade que presidirá à sessão (819), traz-se a barra do tribunal (830), as tabuinhas e o estilete (849) e não faltam mesmo as urnas de voto (853). Acrescente-se-lhe um conjunto de acessórios de natureza mais cómica: a clépsidra, que devia medir a duração dos discursos, é improvisada a partir de um vaso que ali se encontra pendurado (856), já para não referir o penico (806), a sopa de lentilhas que deve aconchegar o estômago do juiz em exercício (811) e o galo, que o acordará caso seja vencido pelo sono ou pelo tédio (815).

Em seguida, atribuem-se funções específicas a cada um: Bdelícleon será o presidente da sessão e Filócleon o único juiz destacado para o caso. O processo, esse, é que não se sabe qual há-de ser. Valem a todos as queixas de Xântias, acabado de sair da porta de casa, a respeito do temperamento de um dos cães da família (835, 837-839), Labes – eco claro do nome Laques, comandante da expedição grega à Sicília entre 427-4256 – que rapinou da cozinha um queijo dito da Sicília para, às escondidas, o comer sozinho. Fora dos limites da alegoria cómica, é de crer que a paródia, no caso de Vespas, seja dirigida a um julgamento

6 Cf. Tucídides, 3. 86-115. Laques vê, na comédia, o seu nome volvido em Labes (a partir da raiz do verbo lambano: ‘tomar’ ou ‘roubar’). O processo de avaliação pública das contas desta empresa no estrangeiro terá tido lugar algures no ano de 425, cerca de dois anos e meio antes da apresentação de Vespas, pelo que é de aceitar que se tratasse, em 422, de um escândalo bem fresco na memória da assistência de Aristófanes.

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de euthyna, isto é, de prestação de contas ao cabo do exercício de um qualquer cargo político (cf. Vespas, 102).

Fazem-se libações aos deuses, antes de iniciar o julgamento, e tudo está a postos para começar a sessão. Todas as condições estão reunidas, as reais e as que lhe conferem a marca da comicidade. Os vv. 891-892 dão conta do atraso comum dos juizes, a que só Filócleon, porque doente, parece ser excepção (103-105). Bdelícleon lê o acto de acusação, em tom solene (894-897), e é o próprio Cão acusador, o Cidateneu, quem vem atribuir a Labes a culpa de roubar o queijo da Sicília e, pior do que isso, de nada ter partilhado consigo dessa iguaria (907-911, 914-916). É fácil imaginar que o auditório reconhecesse nestes dois cães Laques, comandante da expedição à Sicília, e o próprio Cléon, que lamenta destes despojos não ter recebido parte alguma e, por isso mesmo, vem acusar formalmente o inimigo (outrora aliado) de delapidação de capital.

Filócleon interrompe, ávido ainda de condenação, denunciando com as suas palavras como seria prática corrente, nos tribunais da época, a decisão estar já tomada muito antes de serem ouvidas as partes. Bdelícleon, presidente do júri em exercício, faz entrar as testemunhas (936 sqq.), uma série de utensílios de cozinha que terão presenciado o delito in loco. Não obstante, a defesa tem ainda o direito de se pronunciar. Mas o pobre Labes não pode defender-se, pois que ele sim se comporta de facto como um cão (944-945), e é Bdelícleon quem se encarrega da sua defesa, qual logógrafo ateniense do tempo. E Filócleon é agora alvo, à vista de todos (967-972), das súplicas em favor dos acusados que, na discussão com o filho, apresentara como uma das provas do seu poder supremo de magistrado, súplicas essas que, desta vez, parecem quase demovê-lo da mania de condenação (973-974).

A absolvição é vista como um mal, como um furor que lhe invade o corpo e a mente e o não deixa agir com racionalidade. Teve afinal o seu efeito a capacidade de persuasão do filho. No entanto a sua doença – que é nosos mas, não em menor medida, também mania – fala ainda mais alto. Uma última tentativa de persuasão é encetada por Bdelícleon: faz entrar em cena um

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cortejo de cachorros, supostamente pequenas crias do arguido que, sem dizer uma só palavra – pois que, como o pai, são cães de facto –,7 apenas com a força quase trágica dos seus latidos chorosos, devem comover o velho juiz, que mostrou já ser osso duro de roer (975-978). Mas não há remédio, pelo menos para já, para tão grave doença. Apenas uma escapatória menos correcta: Bdelícleon é forçado a ludibriar o pai, conduzindo-o até à urna da absolvição (julgando ele tratar-se da de condenação) e aí levá- -lo a depositar o seu voto.

Há, finalmente, que esvaziar as urnas, contar os votos e proclamar a decisão, ainda que um só juiz tenha votado. Cria-se, num momento hilariante, o suspense próprio de quem espera por uma grande decisão, completamente imprevisível, como se naqueles cães estivesse em causa o futuro de Atenas. Sem estranhar ou questionar a votação – e relembre-se como, de resto, não podia haver apelação da decisão de um tribunal – Filócleon ouve, doente ainda, a pronunciação da sentença (994). Não suporta o fardo de ter absolvido um réu (999-1002), mas sabe-lhe a mel a nova vida que o filho lhe promete.

A comédia não deixa de nos apresentar o outro lado da justiça ateniense, essas quezílias mais pequenas que também se multiplicavam no quotidiano do cidadão. De facto, os problemas que o suposto novo Filócleon tem com uma padeira a quem derrubou uma cesta de pão, ou com essa outra figura, anónima, que se faz acompanhar de uma testemunha e o vem acusar de hybris,8 não fosse a habilidade recentemente aprendida do velho para se safar com umas historietas de trazer por casa, redundariam em exemplos de processos privados. Importante ainda é o facto de, em ambos os episódios, Bdelícleon ter de intervir uma vez mais em favor do pai, terminando por raptá-lo para evitar que a situação chegue a vias de facto.

7 Não estamos com isto a sugerir que, ao contrário da figura do Cão acusador, Cidateneu, o papel do arguido Labes pudesse ter sido “representado” por um cão, apenas que, em termos simbólicos, é maior a sua natureza animal. Ainda assim, reconhecemos a validade desta opção numa encenação moderna.

8 A lei sobre a hybris, exemplo de legislação para delitos privados, parece ter sido da lavra de Sólon, legislador ateniense do século VI.

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A sátira aos tribunais, finalmente, é ainda visível pela explicação que de si mesmo dá o coro, na Parábase (1015-1021). É quando o corifeu explica o significado dos trajes de vespa que envergam que, uma vez mais, se aflora o tema para explicar que a raça dos Gregos, viciada em julgamentos toda ela, em tudo se assemelha às vespas, em especial pela vida em comunidade que os caracteriza a ambos, homens e animais. Quanto ao aguilhão, é ele o mais perfeito símbolo cómico do ofício de juiz, entendido apenas na sua vertente ofensiva e de condenação.

Uma palavra é devida à muito discutida cena final da comédia, na qual Filócleon desafia a nova geração de trágicos a competir com ele na dança. A novidade é confessada pelo próprio coro (1536-1537), a fechar, para que os espectadores a tenham em conta no momento da votação. Não que o velho tenha sido curado, mas, na impossibilidade disso mesmo, é necessário divertir o público.9 Mas, afinal, qual a dança executada? O escólio a este passo esclarece, erradamente, que se trata de uma exibição do córdax, a dança já na Antiguidade considerada própria da comédia. Anunciara o escravo que, dentro de casa, o velho se entretinha a dançar umas modinhas de Téspis (1476-1479), daí que o mais provável seja que a dança apresentada ao público – um prolongamento lógico dessa outra executada dentro de portas – constituísse de algum modo uma paródia dos coros de tragédia. É esse grupo dos trágicos mais jovens, com as suas coreografias exuberantes, que se quer humilhar neste agon físico, como se estivesse em discussão o estatuto de ambos os géneros, a tragédia e a comédia. Estão em jogo movimentos de difícil execução, para além da caracterização física das personagens, ao que tudo indica envergando fatos de caranguejo, na sequência do sentido etimológico do nome do tragediógrafo Karkinos. Para o que nos importa, ficamos com mais um exemplo de inovação na arte de fazer comédia, desta vez ao nível da própria coreografia.

9 Algo semelhante se passa no final de Mulheres no Parlamento. Tendo fracassado a proposta de governação das mulheres e a sua teoria da propriedade comum, como mostra a hilariante cena das três velhas que pretendem o jovem Epígenes, é ainda o poder feminino em exercício que organiza um banquete colectivo, onde são lei as danças e o vinho.

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Especial referência merece o coro teriomórfico de vespas. Se os coros de Aves e Rãs são constituídos realmente por animais, o de Vespas mais não é do que um conjunto de homens que por vezes se comportam como vespas, de juízes que apenas são caracterizados como esse insecto para concretizar materialmente o que neles é uma característica psicológica: o seu génio violento, irritadiço e vingativo. No entanto, a um nível mais imediato, ao caracterizar de vespas o seu coro de velhos juízes, Aristófanes tem o propósito de aproveitar a cor cénica, o movimento e os sons que esta técnica ancestral proporcionava desde as suas mais antigas manifestações pré-cómicas. Situados algures num patamar ambíguo entre a bestialidade e a humanidade, estes juízes apresentam os vícios da segunda, disfarçados pelos hábitos da primeira.

Outros animais povoam ainda os versos de Vespas. Os mais significativos são os cães intervenientes no julgamento doméstico e os filhos do réu, o bando de cachorrinhos a latir, em jeito de súplica, papéis certamente desempenhados por homens, também eles exteriormente caracterizados como bestas. Cumpre saber se podemos falar de personificação animal ou, pelo contrário, de animalização do comportamento humano, que desse modo tende a afastar-se dos valores da razão, da moral e da justiça. Todos eles, incluindo as vespas, acrescentam então à comédia uma dimensão farsesca mais primitiva, não deixando por isso a peça de ser essencialmente política e com miolo, dessas que leva à reflexão aqueles que se sentam a assistir.

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Personagens

Sósias, escravo de BdelícleonXântias, escravo de Bdelícleon

Bdelícleon, filho de Filócleon, um jovem endinheiradoFilócleon, velho juiz, pai do anterior

Coro, de juízes anciãos, companheiros de ofício de FilócleonCriança, filho do corifeu

Cão, CidateneuHomem, vem acusar Filócleon

Mírtia, padeiraAcusador, denuncia Filócleon por injúria

Personagens mudasBurro, pertença de Filócleon

Coro de criançasEscravos, de FilócleonLabes, um cão de Exona

Utensílios de cozinha, testemunhasCachorros, crias de Labes

Dárdanis, flautistaQuerefonte, testemunha de MírtiaTrês dançarinos, filhos de Cárcino

Cárcino, um tragediógrafo

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Argumento IO ateniense Filócleon, por natureza viciado em julgamentos,

marca assiduamente presença nos tribunais. O filho Bdelícleon, que detesta esta sua doença e tenta a todo o custo curar o pai, prende-o em casa, cerca-a com rede e monta-lhe guarda noite e dia. O tipo, ao ver que não pode escapar-se, põe-se aos berros. Chegam então os seus colegas juízes, em tudo semelhantes a vespas, procurando, pelo recurso à sua arte, resgatar o comparsa. Por eles é formado o coro e deles recebe a comédia o título. No entanto, nenhum deles consegue o que deseja. Em seguida, enquanto o filho se admira que o pai seja de tal modo escravo da sua condição, garante o velhote que o ofício de juiz é coisa séria, quase como a governação. O filho, para advertir o velho, trata de o encher de dúvidas quanto a esse assunto. Mas o velho não se deixa de maneira nenhuma convencer e não abandona a sua doença, pelo que o rapaz é forçado a consentir-lhe que julgue. Assim, é em privado que vai julgar as pessoas lá de casa. Dois cães, como se fossem cidadãos, são apresentados para se submeterem ao seu julgamento. E apesar de querer sempre condenar o acusado, é bem enganado e acaba por votar a sua absolvição.

Subjaz ainda à peça a defesa do poeta, feita sob uma máscara colectiva, para demonstrar como às vespas se assemelham as gentes do coro, de onde vem também o nome da comédia. Eles, enquanto jovens, investiam forte e feio contra os Persas; agora que são velhos, é vê-los ferrar com o aguilhão. Perto do final da comédia, o velho é convidado para um banquete e torna-se violento; é de violência que vem acusá-lo uma padeira. Mas o tipo vira-se para a flauta e para as danças, e a peça acaba em riso.

Esta comédia apresenta-nos um argumento que não é real, mas que bem podia sê-lo: toda ela foi inventada. Ataca os Atenienses como sendo viciados em julgamentos e aconselha o povo a deixar-se de processos. Por isso os juízes são caracterizados como vespas e têm ferrões, com que picam. Toda ela é composta com espírito.

Foi representada no arcontado de Amínias por Filónides, durante a 89ª Olimpíada. Obteve o segundo lugar nas Leneias. Em primeiro lugar ficou Filónides com o seu Proagon. O terceiro foi Lêucon com a comédia Embaixadores.

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Argumento II(Aristófanes de Bizâncio)Um filho prende em casa o pai, um tipo viciado em

julgamentos, e ele próprio e os criados lhe montam guarda para que não se esconda nem se esgueire, movido pela doença que o afecta. Mas ele bate-se por todos os meios e com toda a manha de que é capaz. Chegam em seguida, para o salvar, os seus comparsas, já velhotes – designados por vespas, por serem capazes de atacar violentamente toda a gente com o seu aguilhão – prontos a dar-lhe conselhos. Mas o velho, recluso, é convencido a julgar e a permanecer em casa, determinado a julgar como é seu costume.

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As Vespas

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AS VESPAS

A peça abre com dois escravos, Sósias e Xântias, que dormem em frente à porta de casa, trancada por uma trave. Lá dentro está cativo Filócleon. É ainda visível uma janela, no andar de cima, revestida com rede. Sósias acorda.

SÓSIAS Eh, Xântias! Que bicho te mordeu, meu desgraçado?

XÂNTIASEstou a ver se arranjo uma maneira de me escapar à

vigília.

SÓSIASAndas mas é a arranjar lenha para as tuas costas, e da feia!

Tens ao menos noção da espécie de bicho que estamos a guardar?

XÂNTIASTenho, tenho! Quero é esquecer-me disso por um bocado! [5]

SÓSIASBem, aguenta-te como puderes. É que também já me

tomba sobre as pálpebras uma soneira bem docinha. (Boceja e espreguiça-se.)

XÂNTIASMas afinal tu estás a delirar ou andas possuído pelos

Coribantes?

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

SÓSIASNada disso. É que já me vence o sono, um desses de

Sabázio.

XÂNTIASEstou a ver que serves o mesmo deus que eu. [10] É que

também a mim, desde há bocado, me tombou sobre as pálpebras uma soneira pesada, tal qual o ataque de um Persa. E tive um sonho de pasmar, ainda agora.

SÓSIASTambém eu, c’os diabos! Como nunca tive. Mas conta-me

lá primeiro o teu!

XÂNTIAS (num tom cavernoso)Pareceu-me ver uma águia [15] descer sobre a ágora, uma

das bem grandes, que filou nas garras uma serpente, um escudo de bronze, e o levou lá para cima, para as alturas; depois, tipo Cleónimo, atirou-o ao chão.

SÓSIASVerdade seja dita, esse teu Cleónimo dá um perfeito

enigma! [20]

XÂNTIASComo assim?

SÓSIASUm fulano atira aos companheiros de banquete com a

seguinte charada: “Qual é a criatura, qual é ela, que deitou fora o escudo em terra, no céu e no mar.”

XÂNTIASC’um raio! Que coisa má me vai acontecer por ter tido

semelhante visão em sonhos?!

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Aristófanes As Vespas

SÓSIASNão te passes! [25] Vais ver que não há-de ser nada de

especial, caramba!

XÂNTIASMas parece-me coisa terrível, um tipo que atira fora o seu

material. Mas vá! Conta-me lá agora o teu!

SÓSIASOlha que é um sonho dos valentes. É sobre a cidade, diz

respeito a toda a embarcação do estado.

XÂNTIASPois bem, despacha-te! Vai lá ao porão da questão! [30]

SÓSIASNo meu primeiro sono, pareceu-me ver na Pnix um

rebanho de carneiros, reunidos em assembleia, equipados com cajados e casacos. Depois, sonhei que no meio daquela carneirada toda surgia uma baleia a discursar, pronta para os papar a todos, [35] um animal cuja voz lembrava uma porca enraivecida.

XÂNTIASChiça!

SÓSIASQue foi?

XÂNTIASPára! Pára! Não me contes mais nada! Esse teu sonho

tresanda-me a coiro.

SÓSIAS (prosseguindo com a narração)E mais: a desgraçada da baleia tinha na mão uma balança,

com que pesava sebo de boi.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

XÂNTIASC’um raio! Está-se mesmo a ver! [40] O fulano quer fazer o

povo em pedacinhos.

SÓSIAS (concluindo o sonho)Finalmente, vi o Teoro junto dela, sentado no chão, com

cabeça de corvo. Logo o Alcibíades se vira para mim e põe-se a dizer, a trocar os rr pelos ll: “Olha o Teolo com cabeça de colvo. [45]

XÂNTIASE bem palrou esse teu Alcibíades!

SÓSIASNão te parece um mau presságio, o Teoro transformado em

corvo?

XÂNTIASQual quê?! Até é um presságio bem bom!

SÓSIASComo assim?

XÂNTIASAinda perguntas? Acontece que o tipo, de homem, se

transformou de repente em corvo. Ora, não se está mesmo a ver que, [50] em menos de nada, nos vai deixar em paz para… ir aos corvos?

SÓSIASE não hei-de eu pagar-te dois óbolos de salário, pela

esperteza com que interpretas os sonhos?!

XÂNTIASTem lá calma! Vou contar o nosso enredo aos espectadores,

não sem primeiro lhes dar algumas explicações, [55] para que não esperem de nós nada de muito sofisticado, nem piadas

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Aristófanes As Vespas

roubadas de Mégara. (Para os espectadores) Não temos um par de criados que atirem nozes de um cesto aos espectadores, nem um Héracles iludido com o almocinho; [60] nem será o Eurípides outra vez feito em picado. E nem mesmo o Cléon, apesar das graças que deve à sorte, será outra vez posto em marinada. Nada disso. O que nós temos é uma historieta com miolo, bem ao nível da vossa esperteza, [65] mas muito mais fina do que essas comédias vulgares.

O nosso patrão está a dormir lá em cima (aponta para o telhado), ali o manda-chuva, o do telhado. Encarregou-nos de vigiar o pai que ele enfiou lá dentro, para que não se escape porta fora. [70] É que esse pai está doente, de uma doença estranha, que nenhum de vocês conhece nem imagina, a menos que vos diga. Mas vá! Tentem lá adivinhar! (Finge obter respostas dos espectadores.)

Olha! Está ali o Amínias, filho de Pronapes, a dizer que o fulano é viciado no jogo.

SÓSIASNada disso, [75] caramba! O tipo julga-o pela própria

doença.

XÂNTIAS (para o suposto Amínias da assistência)Não, mas está certo que o nome da doença dele começa por

“vício”. Olha! Ali está o Sósias a dizer ao Dércilo que é o vício dos copos.

SÓSIASNem por sombras! Isso é doença de gente fina. [80]

XÂNTIASE Nicóstrato, o Escambónida, diz que é o vício dos sacrifícios

ou o vício da hospitalidade.

SÓSIAS (a Nicóstrato)Pelo cão, Nicóstrato! Não pode ser o vício da hospitalidade,

até porque o Filóxeno é paneleiro.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

XÂNTIASSó dizem tolices! Vocês não chegam lá. [85] Se querem

mesmo saber, tratem de ficar calados. Vou contar-vos qual a doença do meu patrão. No vício dos julgamentos, não há outro como ele. Morre de amores por isso, julgar, e desfaz-se em gemidos se não se senta na primeira fila. [90] Durante a noite, não prega olho por pouco que seja. E se por um segundo fecha os olhos, o espírito lá lhe fica a pairar, toda a noite, em volta da clépsidra. De tão acostumado que está a segurar o seixo de voto, acorda com os três dedos apertados, [95] como quem faz libações de incenso pela Lua Nova. E, c’um catano, se vê gravado numa porta qualquer “O Demo é bonzão, o filho de Pirilampes”, logo lhe escreve ao lado “Boazona é a Urna!”. Se calha o galo de cantar logo ao anoitecer, [100] põe-se a dizer que o bicho foi subornado para o acordar tarde e que recebeu dinheiro dos arguidos. Logo depois de jantar, dá corda aos sapatos e corre a toda a pressa para o tribunal, onde passa a noite, colado ao pilar, como uma ostra. [105] Malvado como é, em todas as sentenças traça a linha comprida de condenação, e volta sempre para casa com as unhas cheias de cera, que nem uma abelha ou um zangão. Porque teme que algum dia lhe faltem os seixos para a votação, tem em casa um areal deles. [110]

Tal é o seu delírio, e quanto mais conselhos se lhe dá,mais ele julga.Foi por isso que lhe montámos guarda e o mantemos

trancado, para ele não se pôr ao fresco. É que o filho está de rastos com a doença do pai. De início, lá foi tentando persuadi-lo com falinhas mansas [115] a não voltar a vestir o manto nem sair de casa, mas o fulano não lhe ligava nenhuma. Em seguida deu-lhe um banho e purificou-o, mas ele nada. Levou-o depois aos ritos dos Coribantes: o velho, toca de fugir, de tambor em punho, para se ir pôr a julgar no Tribunal Novo. [120] Como nenhuma dessas tentativas parecia resultar, levou-o a Egina e deitou-o a dormir, de noite, no templo de Asclépio; antes de amanhecer, foram dar com ele às portas do tribunal.

Desde esse dia, nunca mais o deixámos pôr o pé fora de casa. [125] Mas ele lá se esgueirava pelas caleiras e pelas frestas. Então

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Aristófanes As Vespas

nós, passámos revista a todos os buracos da casa e apressámo-nos a tapá-los com farrapos. Mas ele, como uma gralha, espetava estacas na parede e punha-se a andar. [130] Por fim, cercámos toda a casa com rede e montámos-lhe guarda a toda a volta. (Boceja, novamente a render-se ao sono.) O nome do nosso velhote é Filócleon – e assenta-lhe como uma luva, caramba! Ali o filho chama-se Bdelícleon, um fulano todo cheio de nove horas. [135] (Deita-se e adormece.)

BDELÍCLEON (acorda e repara que os criados estão ferrados no sono)

Xântias! Sósias! Vocês estão a dormir?

XÂNTIAS (que acorda em primeiro lugar)C’os diabos! (Ao reparar que Sósias voltou a pegar no sono, dá-

lhe uns safanões.)

SÓSIASO Bdelícleon acordou.

BDELÍCLEONHei! Um de vocês os dois que venha aqui, e já! O meu pai

enfiou-se dentro do forno e vem por aí a baixo, feito um rato. Tu! Faz com que [140] ele não se escape pelos canos da banheira! E tu, põe-te à coca ao pé da porta!

XÂNTIASSim, senhor!

BDELÍCLEON (ao ouvir, de dentro, um grande estrondo)Ó soberano Poseídon! Mas que raio de barulheira é esta

na chaminé? (Repara que o velho tenta fugir pela chaminé. Finge ignorância.) Olá! Mas quem és tu?

FILÓCLEONSou o fumo a sair.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONO fumo, hã? E diz-me lá, de que lenha és tu?

FILÓCLEONDe figueira. [145]

BDELÍCLEONChiça! Esta é a fumarada mais espessa que eu já vi.

(Quebrando a farsa.) Mas tu sais daí ou não sais? Onde está a tampa da chaminé? (Tapa a chaminé com a tampa.) Toca lá para dentro! Vou-te dar uma estocada! E agora fica aí quietinho e trata de arranjar outro esquema. (Para os espectadores.) Eu sou mesmo o sujeito mais desgraçado que pode haver, [150] o único que há-de ser chamado filho do Fumeiro!

FILÓCLEON (de dentro, enquanto se atira à porta, tentando arrombá-la.)

Filho!

XÂNTIASO tipo está-se a atirar à porta!

BDELÍCLEONPois então segura com força! Coragem! Já vou aí abaixo. Vê

bem o ferrolho, verifica a tranca, não vá o gajo roer o trinco com os dentes. [155]

FILÓCLEONQue raio querem vocês? Não me deixam ir julgar, meus

patifes? Então o Dracôntides há-de ser absolvido?

XÂNTIASE que tens tu a ver com isso?

FILÓCLEONÉ que o deus, que uma vez consultei em Delfos, profetizou-me

que eu havia de morrer no dia em que um acusado fosse absolvido. [160]

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Aristófanes As Vespas

XÂNTIASApolo salvador! Que raio de oráculo!

FILÓCLEONPor tudo te peço, deixa-me sair daqui! Não me faças

rebentar!

XÂNTIASNão Filócleon, isso nunca, caramba!

FILÓCLEONPois muito bem! Se assim é, hei-de desfazer à dentada esta rede.

XÂNTIASMas tu já nem dentes tens!

FILÓCLEONAi de mim, desgraçado! [165] Como raio hei-de fazer-te

em pedaços, como?! Tragam-me uma espada, depressa, ou uma tabuinha de condenação!

BDELÍCLEON (que entretanto chegou à porta de casa. Para os escravos)

O fulano anda a tramar alguma, e das frescas!

FILÓCLEONNão, juro-te que não caramba! Só quero ir vender o meu

burrico e mais a albarda. [170] É que hoje é o primeiro dia do mês.

BDELÍCLEONE não posso eu vendê-lo tão bem como tu?

FILÓCLEONNão, como eu não podes.

BDELÍCLEONPois não, ora essa! Havia de vendê-lo ainda melhor.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEON (aos escravos)Muito bem! Tragam-me cá para fora o burro!

XÂNTIASVê lá bem o isco que o tipo te lançou! E como sabe fingir, o

gajo, para que o deixes sair!

BDELÍCLEONDescansa, que dessa rede não vem peixe! [175] É que eu

já lhe topei o esquema todo. Acho que vou mas é lá dentro e trago eu próprio o burro, não vá o velhote escapar-se outra vez. (Bdelícleon entra em casa. Quando sai, traz consigo um burro, debaixo do qual se esconde Filócleon. Fala para o animal, desconfiado.)

Ó meu lingrinhas, porque choras? É porque daqui a nada vais ser vendido, é? Vá lá! Despacha-te! Porque estás aos berros? Querem lá ver que levas aí [180] algum Ulisses?!

XÂNTIAS (espreitando por baixo do animal)C’um raio! Mas ele leva mesmo alguém escondido aqui de

baixo!

BDELÍCLEONO quê? Ora vamos lá ver isso.

XÂNTIASOlha, isto aqui!

BDELÍCLEON (reparando no pai agarrado à albarda do burro)Eh! Quem és tu, meu amigo?

FILÓCLEONSou o Ninguém, ora essa!

BDELÍCELONÉs o Ninguém? E de que terra és tu?

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONSou de Ítaca, filho do Foge-que-te-mato. [185]

BDELÍCLEONPois então, Ninguém, garanto-te que não ganhas nada com

isso. (Para Xântias.) Tira-o daí, rápido! Ó miserável! Vejam bem onde ele se escondeu! Eu seja ceguinho se o fulano não me parece tal qual um burro de intimação.

FILÓCLEONSe não me deixas em paz, podes crer que te encho de

pancada! [190]

BDELÍCLEONE por que razão havias de querer bater-te connosco?

FILÓCLEONPela sombra de um burro.

BDELÍCLEONNão vales nada, tu! És um pobre diabo, dos piores que para

aí há!

FILÓCLEONNão valho nada, eu? Podes crer que valho! Tu é que ainda

não percebeste o meu valor. Mas deixa lá que vais perceber, quando deitares o dente cá à carninha do velho juiz. [195]

BDELÍCLEONLarga lá o burro, e toca a andar para dentro de casa!

FILÓCLEON (em vez de obedecer, grita por ajuda)Ó meus queridos juízes, e tu também, Cléon! Acudam-me!

BDELÍCLEON (acaba de empurrar o pai para dentro de casa e fecha a porta)

Grita à vontade, mas lá dentro, com a porta bem fechada.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

(Para um dos criados.) Tu, empurra esses pedregulhos contra a porta, reforça mais uma vez o ferrolho na trave [200] e encosta esse cepo grande à viga, depois de a teres fechado.

XÂNTIAS (depois de ter trancado a porta, sente que algo lhe cai em cima)

Ai de mim, desgraçado! De onde me caiu este torrão em cima?

BDELÍCLEONÀs tantas foi um rato que to atirou lá do alto.

XÂNTIASUm rato? Nada disso, caramba! É mas é um desses juízes,

[205] enfiado debaixo das telhas, um juiz de telhado.

BDELÍCLEON (olhando para o telhado)Ai meu Deus, que azar o meu! Ali está o nosso homem,

armado em pardal. Vai levantar voo. Onde, onde raio está a rede? (Para Filócleon, como quem assusta um pássaro.) Xô, xô, toma lá outra, xô! C’um raio, melhor fora montar guarda a Escione do que aqui ao meu pai. [210] (Filócleon é neutralizado e empurrado para dentro de casa.)

XÂNTIASMas vá! Agora que prendemos de vez o nosso homem e

que finalmente ele não arranja maneira de fugir, porque não tiramos só… só uma soneca?

BDELÍCLEONQual quê, desgraçado! Daqui a nada estão por aí a romper

os amigos dele, os juízes, aos berros a chamar [215] pelo meu pai.

XÂNTIASO que raio estás a dizer? Se só agora começa a amanhecer.

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONC’os diabos, tens razão! Hoje levantaram-se mais tarde. É

que costumam aparecer a meio da noite, de lamparina na mão e a trautear umas modinhas delicodoces de Frínico, [220] para chamar por ele.

XÂNTIASPois bem, se tiver que ser, enxotamo-los logo à pedrada.

BDELÍCLEONMas, ó meu patego, a raça deles é tal, que se se irrita um

desses velhotes, comportam-se como as vespas. E têm mesmo um aguilhão bem afiado que lhes sai pelo rabo, [225] com que picam; dançam ao som dos seus zumbidos, e é vê-los atacar como raios.

XÂNTIASNão te preocupes. Enquanto tiver pedras à mão, sou capaz

de enxotar qualquer enxame de vespas.

Sai Bdelícleon. Os escravos voltam a adormecer. Entra o coro, constituído por velhos, às ocultas já vestidos de vespa e acompanhados de um segundo coro de crianças, que transportam as lamparinas para alumiar o caminho.

CORIFEUAdiante! Toca a andar, sem medos! Cómias, vens aí a

arrastar a asa ou quê? [230] Bolas, não costumavas ser assim; dantes eras rijo como o ferro. Mas agora, até o Carínades é melhor andarilho do que tu. Ó Estrimodoro de Côntilo, tu que és o melhor dos nossos comparsas! E o Evérgides, está cá? E Cabes, o da Flia? Ai meu Deus! [235] É o que resta daquela malta nova que montou guarda a Bizâncio, tu e eu! E depois, à noitinha, saímos para rapinar a masseira à mulher do pão, fizemo-la em achas e cozemos nela umas leitugas.

Vá, toca a mexer, meus senhores! É que hoje é a vez do Laques. [240] Dizem por aí que o fulano tem os cortiços cheios de

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

carcanhol. Por isso ontem o Cléon, o nosso chefe, nos disse para vir bem cedinho, armados de uma ração de cólera para três dias contra ele, para punir o tipo pelos crimes que cometeu.

Força, meus caros! Toca a andar, antes que seja dia! [245] Depressa, e olhem bem para todo o lado com a lamparina, não vá uma pedra cruzar-se no nosso caminho e arranjar-nos algum sarilho.

CRIANÇAEi! Ó pai, ó pai! Cuidadinho com essa lama aí!

CORIFEUApanha lá um pauzinho do chão e desentope a lamparina!

CRIANÇANã, nã! Acho que vou mas é limpar a lamparina cá com

isto. [250] (Mostra o dedo e puxa a torcida.)

CORIFEUMas que raio te passou pela cabeça para puxares a torcida

com o dedo, ainda por cima quando o azeite está tão caro, meu palerma? Vê-se logo que não te sai do bolso a ti.

CRIANÇAJuro-te, caramba, que se voltas a ameaçar-nos com esses

punhos, apagamos as lamparinas e pomo-nos a andar sozinhos para casa. [255] Depois, sempre vos quero ver, às escuras, sem elas, a chapinhar na lama enquanto caminham, que nem francolins.

CORIFEUAinda hás-de aprender que consigo castigar malta maior

que tu, meu patife! Mas parece mesmo que meti a pata na poça. (Olha para o céu.) Não há dúvida: no máximo daqui a quatro dias [260] há-de vir por aí uma borrasca do caraças. Não tarda nada estas torcidas ficam cheias de fungos, e é nessa altura que é mais provável cair uma chuvada. Para mais as colheitas, as que não são temporãs, precisam de chuva e do safanico do vento do Norte sobre elas. [265] (Param diante da porta de Filócleon.)

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Aristófanes As Vespas

Mas que diabo terá acontecido ao nosso colega aqui desta casa, que ainda não se juntou à malta? Não costumava ser desleixado, e até avançava sempre à nossa frente, a abrir-nos caminho e a cantar umas modinhas de Frínico. Isso é que ele era um amante da música!

Amigos! Acho que devíamos abancar aqui e chamá-lo cá para fora [270] com uma cantoria. Quem sabe se o prazer de ouvir uma das nossas cançonetas não o faz sair da toca.

CORO (a cantar)Por que não sai porta forae se mostra, esse velho?Por que não responde agora?Terá perdido os sapatos,ou talvez partido [275] um dedo,em algum sítio, e magoadoai as canelas, velho como é?Ou então arranjou uma hérnia.De nós era o mais azedo,ele não ia em balelas.E se alguém lhe pedia misericórdia,Ele, de cabeça baixa, respondia“Estás a chover no molhado!” [280]Às tantas é por causa daquele tipo,o que ontem nos escapou,à força de mentiras e a gritarque era amigo de Atenas e o primeiro a contar o caso de Samos.Se calhar isso dói-lhe, a pontode ficar de cama, cheio de febre.É um tipo às direitas! [285]Vá, levanta-te, amigo! Não fiquesa moer o caso nem te aborreças.Hoje temos caça grossa, um fulano dessesque entregaram as costas da Trácia.Vem daí mandá-lo para o caldeirão!

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

CORIFEU (para o filho, uma das crianças do coro)Toca a andar meu cachopo, toca a andar! [290]

CRIANÇAÓ pai! Davas-me uma coisa, se ta pedisse?

CORIFEUClaro que sim, filhote. Diz lá ao papá, o que é que queres

que eu te compre desta vez? Ah! Estou a ver que queres [295] uns ossinhos para brincar, não é rapaz?

CRIANÇANada disso! Quero mas é uns figos, papá. São bem melhores.

CORIFEUUm raio te parta, isso nunca! Nem que te enforques.

CRIANÇAPois então, caramba, não te guio nem mais um bocadinho.

CORIFEUCom uma miséria de salário como o meu [300] já tenho que

comprar cereais, lenha e comida para três. E tu ainda me vens pedir figos.

CRIANÇAMas então, ó pai! Se o arconte não convocar hoje o tribunal,

como havemos de arranjar o que comer? Tens em mente [305] para nós alguma coisinha melhor do que o caminho certo para a forca?

CORIFEUAi ai, que sorte a minha! C’um catano, não sei mesmo [310]

que haveríamos de comer.

CRIANÇAÓ mãe, pobre infeliz! Para que raio me pariste?

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Aristófanes As Vespas

CORIFEU (à parte)Para me dar o encargo de te alimentar.

CRIANÇA (em tom solene)Oh sacola! Para mim não passas de um enfeite. Ai, ai! [315]

Toca a lamentarmo-nos, todos!

Surge à janela Filócleon, que estivera dentro a ouvir toda a conversa do coro.

FILÓCLEON (a cantar, em resposta ao coro)Amigos! Desfaço-me em pranto,e há muito, por este buraco,que ouço o vosso canto.Mas não posso já juntar-me à cantoria, que hei-de fazer?Tenho à coca estes fulanos,mas o que eu queria, e já há que tempos, [320]era ir com vocês até às urnase fazer mal a alguém!Vamos, Zeus tonitroante,transforma-me em fumo num instante,ou em Proxénides, o Espalha-Brasas, [325]esse aldrabão e oportunista que para aí está.Não hesites, ó soberano, em ser favorávelà minha miséria. Tem pena de mim! Ou então assa-me com o teu raio ardente, e já,e depois pega-me, sopra-me as cinzas [330]e enfia-me num caldo a ferver.Ou se quiseres transforma-me em pedra,dessas com que se contam os votos dos juízes.

COROMas quem é que te prende assim e te mantém fechado a

sete chaves? Conta lá, que estás a falar com gente da boa. [335]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEONÉ o meu filho. Mas não façam barulho. O tipo acaba de

adormecer ali à porta. Pouco chinfrim!

COROE sob que pretexto, meu desgraçado, te quer ele fazer tal

coisa? Que desculpa te deu o gajo?

FILÓCLEONNão me deixa, vejam só, meus amigos, ser júri nem fazer

mal a ninguém; [340] está disposto a encher-me de luxos, mas eu é que não quero nada disso.

COROAtreveu-se a dizer uma coisa dessas, o canalha, o

Demagogócleon, só por teres contado a verdade acerca da frota que ele tem? O fulano nunca teria ousado falar assim, se não fosse um conspirador. [345]

CORIFEUMas nestas circunstâncias, é tempo de congeminares

alguma ideia para desceres daí sem que o gajo te tope.

FILÓCLEONE como há-de ser isso? Pensem vocês por mim! Estou

disposto a tudo, desde que me seja dado voltar a correr pelas bancadas de concha na mão.

CORIFEUNão haverá aí dentro um buraco que consigas abrir, [350]

de modo a esgueirares-te cá para fora, embrulhado em farrapos, feito o Ulisses dos mil artifícios?

FILÓCLEONEstá tudo completamente tapado. Não há um buraquinho

que seja por onde passe um mosquito. Têm de arranjar outra solução; é que não quero derreter que nem manteiga.

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Aristófanes As Vespas

CORIFEULembras-te daquela vez, quando, em plena campanha,

roubaste uns espetos e com eles te puseste a descer a todo o gás pela muralha, na altura em que Naxos foi tomada? [355]

FILÓCLEONLembro pois! Mas o que é que isso importa agora? Uma

coisa não tem nada a ver com a outra. Nessa altura eu era rapaz novo, capaz de roubar; tinha o sangue na guelra, não tinha ninguém à perna a guardar-me e podia sempre escapar impune. Mas agora há hoplitas em linha de combate [360] a guardar todos os pontos de fuga possíveis. Dois estão à porta, armados de espetos, a vigiar-me como se eu fosse uma doninha que roubou um naco de carne.

COROTrata mas é de maquinar um esquema qualquer, e depressa!

[365] Já é de manhã, minha abelhinha!

FILÓCLEONO melhor que tenho a fazer é roer a rede. E que Dictina me

perdoe por atentar contra a sua rede!

COROÉ isso! É essa a conversa de um tipo que luta pela liberdade.

Vamos lá, toca a dar às queixadas! [370]

FILÓCLEONJá está roída. E vocês, nem pio, antes que o Bdelícleon nos

tope.

CORONada de medos, amigo, nadinha! Se esse fulano aí levantar

um dedo que seja, há-de ver como elas lhe mordem [375] e correr a bom correr para salvar o pêlo; é para aprender a não desrespeitar os decretos sagrados das duas deusas.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

CORIFEUVá lá, ata a corda, amarra-a à cintura e deixa-te escorregar

pela janela, de coração cheio de… Diopites. [380]

FILÓCLEONMuito bem. Mas e se estes dois vigias topam a jogada e me

puxam para dentro, que fazem vocês? Digam lá!

CORIFEUAjudamos-te, ora essa, apelando à nossa coragem, rija

como um carvalho, para que não consigam prender-te lá dentro. É isso que faremos.

FILÓCLEONAssim farei, confiante na vossa ajuda. Mas lembrem-se:

se me acontecer alguma coisa, [385] ergam-me em braços, lamentem-me como deve ser e, por fim, enterrem-me sob a barra do tribunal.

CORIFEUNão há-de ser nada, não tenhas medo! Vamos, amigo,

deixa-te escorregar, com confiança, depois de dirigires as preces aos deuses dos teus antepassados.

FILÓCLEON (a rezar, num tom pretensamente solene)Ó Lico soberano, herói cá da vizinhança! Tu que, como

eu, te comprazes com as lágrimas e as súplicas constantes dos acusados; [390] tu pelo menos assentaste praça nesse lugar para os ouvir, e em verdade és o único herói que aceitou permanecer junto dos que gastam o tempo com lamúrias. Compadece-te de mim, salva o teu vizinho! Que eu prometo não mais aliviar a bexiga ou soltar traques junto ao teu muro.

Terminada a prece, Filócleon lança-se a descer pela corda. Entretanto, Bdelícleon acorda, vê que algo se está a passar e tenta despertar Xântias, ainda ferrado no sono.

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONEh, tu! Toca a acordar!

XÂNTIASQue foi?

BDELÍCLEONPareceu-me ouvir uma voz qualquer. [395] Não será o

velhote a enfiar-se por algum sítio outra vez?

XÂNTIAS (olhando para cima)Não, caramba! Está mas é a descer, atado a uma corda.

BDELÍCLEON (para o pai)Ó miserável, que raio estás a fazer? Nem penses em

descer daí! (Para Xântias) Eh, tu! Sobe pelo outro lado, rápido, e dá-lhe com estes ramos, para que volte para cima a pau de carqueja.

FILÓCLEON (para os espectadores)Então não me ajudam, todos vocês que este ano vão

instaurar um processo a alguém?! [400] Esmicítion, Tisíades, Crémon, Feredípnon? Mas quando, senão agora, hão-de vocês salvar-me, antes de ser preso lá dentro outra vez?!

CORO (dialogando entre si, em resposta ao apelo de Filócleon)Diz-me lá! Porque tardamos a soltar aquela nossa cólera,

que nos toma quando alguém se mete com o nosso enxame? (O coro despe os casacos e deixa ver, preso nas costas, abaixo da cintura, o seu aguilhão de vespa.)

É agora, é agora a altura [405] de erguer o aguilhão irritadiço com que castigamos os culpados, de o ter em riste. Levem os nossos casacos, cachopos, e depressinha! Corram, façam barulho, e levem esta notícia a Cléon; digam-lhe que venha aqui [410] combater um inimigo da cidade – que por isso mesmo há-de morrer –, um fulano que diz serem inúteis os julgamentos.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEON (segurando o pai à força)Ai minha gente! Tratem mas é de ouvir o que se passa, em

vez de estarem para aí a zumbir. [415]

CORIFEUNão, caramba! Havemos de zumbir, e bem alto!

BDELÍCLEONGaranto-vos que não o vou largar.

CORONão se está mesmo a ver que isto é uma forma de vil tirania,

e chapadinha? Ó cidade! Ó Teoro, tipo que os deuses detestam! E todo e qualquer lambe-botas que nos governa!

XÂNTIASÓ Héracles! Os gajos têm ferrões a sério! Não vês, patrão? [420]

BDELÍCLEONSão os mesmos que deram cabo do Filipe em tribunal, o

gajo da comandita de Górgias.

CORIFEUE os mesmos que vão dar cabo de ti. (Para os seus companheiros

do coro.) Vá lá, todos! Todos para este lado! Empunhem-me esses ferrões e ataquem-no, em colunas cerradas, de forma ordeira e raiva à flor da pele, para que saiba, de futuro, com que espécie de enxame se meteu. [425]

XÂNTIASC’um caraças! A coisa não podia ser pior, se agora temos de

lutar com eles. É que fico sem pinga de sangue só de olhar para os ferrões que os tipos têm!

CORO (para Bdelícleon)Trata mas é de soltar o gajo. Caso contrário, digo-te eu, esse

teu coiro há-de invejar a carapaça das tartarugas.

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEON (ainda preso por Bdelícleon e Xântias)Vamos, companheiros, vespas de génio picante! [430] Uns

tantos voem, em pé de guerra, e atirem-se-lhes ao traseiro; os outros, é ferrá-los à volta dos olhos e nos dedos.

BDELÍCLEONMidas, Frígio! Venham cá dar uma mãozinha! E tu também,

Masíntias! (Saem de casa, a correr, três escravos.) Agarrem este tipo e não o deixem ir com ninguém. Caso contrário, hão-de sentir o peso das correntes e ficam sem almoço. [435] Conheço bem o crepitar de ramos de figueira , tantas foram as vezes que o ouvi!

CORIFEUSe não libertas este homem, ainda levas uma espetadela!

FILÓCLEONÓ Cecrops, herói soberano, da cintura para baixo filho de

Dracôntides! É assim que velas por mim, um joguete nas mãos de gente bárbara, tipos a quem eu próprio ensinei a derramar quatro quartos de lágrimas por quartilho? [440]

CORIFEU (para os espectadores)Vêem agora quantas desgraças terríveis traz consigo a

velhice? Não há dúvida. Aqui temos estes dois tipos a prenderem à força o patrão de outros tempos, esquecidinhos de todo das samarras e das túnicas que ele ontem lhes dava; comprava-lhes barretes e protegia-lhes os pés, no Inverno, [445] para que não tivessem frio. Mas esta malta de agora não tem um pingo de vergonha na cara e nem se lembra dos velhos... sapatos.

FILÓCLEON (para um dos escravos)Não me soltas, agora mesmo, minha besta miserável?! Nem

te lembras daquela vez em que fui dar contigo a roubar uvas e te amarrei ao tronco, para te dar uma sova de meter inveja? [450] Estou mesmo a ver que és um ingrato. Vá, deixem-me ir, vocês os dois, antes que o meu filho volte!

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CORIFEUMas vocês os dois, não tarda nada, vão pagar bem caro o

que estão a fazer! E não vão esperar muito até ficarem a saber quanto vale a raça dos homens de génio aguçado, justos e de pêlo na venta! [455] (Bdelícleon, Xântias e outro escravo saem de casa, armados com bastões e fumeiros para afugentar as vespas.)

BDELÍCLEONDá-lhes com força Xântias! Enxota essas vespas daqui para

fora!

XÂNTIASÉ o que estou a fazer.

BDELÍCLEON (para outro dos escravos)E tu, trata de fazer fumarada da grossa!

XÂNTIASXô, fora daqui! E se vocês se pusessem na alheta? Ala,

daqui para fora!

BDELÍCLEONDá-lhes com o pau! E tu, para as atordoar, junta ao fumeiro

um Ésquines, o filho do Espalha-Brasas.

XÂNTIASEu bem sabia que vos havíamos de enxotar, com o

tempo! [460]

FILÓCLEONPodes crer, caramba, que não lhes terias escapado tão

facilmente se calhasse estarem empanturrados com os cantos de Fílocles.

CORONão está mesmo chapadinho, até para qualquer pobre

diabo, que a tirania se vinha a infiltrar, pela calada, [465] quando

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Aristófanes As Vespas

tu, Amínias, um patife de primeira, com essas melenas, tentaste liquidar as leis criadas pela cidade, sem dar cavaco a ninguém nem apresentar qualquer argumento, como se fosses senhor absoluto do poder? [470]

BDELÍCLEONHaverá forma de discutirmos a questão e chegarmos a

acordo uns com os outros, sem este arraial de pancada e esta gritaria?

COROPaleio? Contigo? Um inimigo do povo e um apoiante da

ditadura? Tu, um comparsa de Brásidas, [475] com essas franjas de lã e a barba por fazer?

BDELÍCLEON (à parte)Co’a breca! Melhor fora entregar de mão beijada o meu pai,

do que bater-me com estes problemas dia após dia.

COROAinda a procissão vai no adro, meu amigo! [480] – para

falar curto e grosso. Por enquanto ainda não viste nada. Mas espera até o acusador desmascarar os teus podres em tribunal e te citar como conspirador.

BDELÍCLEONMas será possível? C’um caraças, vocês não me deixam

em paz?! Estarei condenado a passar o dia a levar e dar pancada? [485]

CORONunca, isso nunca! Só por cima do meu cadáver! Vê-se

mesmo que nos queres submeter à tirania.

BDELÍCLEONÉ impressionante como tudo para vocês é tirania e

conspiração, seja a coisa séria ou uma balela qualquer. Vai

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

para mais de cinquenta anos que não ouço pronunciar essa palavra, [490] mas agora é mais banal do que o peixe salgado, de tal modo que o seu nome anda na boca do povo pelo mercado.

Se um fulano compra carapau e não quer levar faneca, logo o peixeiro do lado, que vende fanecas, desata a dizer: “Este gajo compra peixe de olho fisgado na ditadura!” [495] Se outro pede uma cebola de graça para temperar meia dúzia de sardinhas, num ápice a hortaliceira olha-o de soslaio e atira-lhe com esta: “Diz-me lá, queres cebolas? Andas com ela fisgada na tirania, é? Ou agora pensas que Atenas tem obrigação de te fornecer os temperos?”

XÂNTIAS (para Bdelícleon)Também eu, ainda ontem, quando fui a casa de uma

meretriz, por volta do meio-dia, [500] assim que a convidei para cavalgar, logo a fulana se eriçou toda e me perguntou se queria voltar a instaurar a tirania de Hípias.

BDELÍCLEONEsta gentinha deve gostar muito de ouvir a tal palavra, se

mesmo agora, só por eu querer livrar o meu pai daquela chatice do sai-de-manhã-para-delações-e-processos, [505] e por querer proporcionar-lhe uma vidinha regalada como a do Mórico, sou acusado de conspirador e de adepto da ditadura.

FILÓCLEONE é muito bem feito, caramba! Eu cá nem por leite de pássaro

trocava a vida que agora me queres tirar. Não me contento lá com raias ou enguias; sabe-me bem melhor [510] um processozinho guisado na púcara!

BDELÍCLEONPois é! O problema é que te acostumaste a gostar dessas

coisas. Mas se te calares um bocadinho e ouvires o que eu tenho para te dizer, penso ser capaz de te demonstrar que estás completamente enganado.

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONEstou enganado, por querer ser juiz?

BDELÍCLEONPior ainda. [515] Não consegues ver que estás a passar por

parvo nas mãos desses fulanos a quem lambes as botas. Sem saber, não passas de um escravo.

FILÓCLEONPára de falar de escravatura. (Assume uma postura nobre.) Eu

cá mando em toda a gente!

BDELÍCLEONAh isso é que não mandas! Julgas-te rei, mas não passas de

um escravo. Mas diz-nos lá então, meu pai, que ganhas tu com a colheita que se faz da Grécia. [520]

FILÓCLEONMuita coisa! E tomo aqui estes sujeitos como árbitros da

questão (refere-se ao coro.)

BDELÍCLEONDe acordo! (Para os escravos que prendem Filócleon.) Vocês aí,

soltem-no lá!

FILÓCLEONE dêem-me uma espada! É que se me venceres na discussão,

deixo-me cair sobre esta espada.

BDELÍCLEONOra diz-me lá mais uma coisa. E se tu não... – como é que se

diz? – te renderes ao veredicto do júri?

FILÓCLEON (em tom solene)Que eu nunca mais beba do puro… salário em honra da

boa fortuna! [525]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

COROCabe-te agora a ti, que jogas no nosso clube, dizer algo de

novo, para que pareças…

BDELÍCLEON (falando para dentro de casa)Tragam-me cá fora a minha lancheira, depressa! (Para o

coro.) Mas que tipo de homem deve ele provar que é, se é a isso que o aconselhas? [530]

CORO… mais hábil a falar do que este fulaninho aqui. Vês bem

como é importante a discussão, e como tudo está em aberto. [535] É que o tipo – o diabo seja surdo! – está mesmo com vontade de ganhar!

BDELÍCLEONDiga ele o que disser, vou anotar tudo aqui, para depois

não me esquecer.

FILÓCLEON (para o coro)E que me dizem vocês, se este tipo me vencer na

discussão?

CORONesse caso, a terceira idade [540] fica nas lonas, abaixo

de zero. Vamos ser vaiados na rua, vão-nos chamar verbos de encher e sacos de processos. [545]

CORIFEUPois então, tu que és responsável pela defesa do nosso

poder, coragem! Põe à prova esse teu palavreado!

FILÓCLEONVamos a isso. E para começar vou provar-lhe como o nosso

poder não fica atrás de qualquer realeza. Que criatura, nos dias que correm, é mais feliz ou afortunada do que um juiz, [550] mais apaparicada ou mais temível do que ele, apesar da velhice?

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

Em primeiro lugar, mal salto da cama, tenho a olhar-me da balaustrada uns tipos de grande cabedal, de dois metros para cima. Depois, assim que me aproximo, sinto na minha uma mão delicada, daquelas que têm andado a delapidar os dinheiros públicos. E são vénias, súplicas e lamúrias de meter dó: [555] “Tem pena de mim, meu senhor, imploro-te, se também tu surripiaste algum no exercício de um cargo ou quando tratavas das provisões para as tropas!” E a verdade é que o gajo nem saberia que eu existo, não fosse tê-lo absolvido da primeira vez.

BDELÍCLEONEssa história dos suplicantes... deixa-me cá tomar nota!

FILÓCLEONEm seguida, terminada a súplica e acalmada a minha

cólera, [560] quando me apanho dentro do tribunal, não faço nada do que prometi; fico ali a ouvir balela atrás de balela dos acusados, a ver se escapam. Ora diz-me lá, haverá alguma bajulice que um júri não ouça no tribunal? Uns choram a sua miséria e acrescentam desgraças às que já têm, até as porem a par das minhas; [565] outros vêm para cima de mim com histórias, outros ainda com uma chalaça qualquer de Esopo. Há ainda os que se põem com gracinhas, na esperança de que eu me ria e ponha de lado o meu mau génio. E se não me comovem com estas manhas, toca de arrastar os filhos pela mão, raparigas e rapazes, e eu que os ouça; eles mentem e choram em coro; depois o pai suplica-me em nome deles [570] que o absolva no processo de má gestão, todo a tremer, como se eu fosse um deus: “Se te comoves com o grito de um cordeiro, tem piedade dos gritos deste menino!” Se gosto mais de porquinhas, procura convencer-me com o choro da filha. Aí sim, amaino um pouco a minha raiva contra ele.

Não é este um grande poder, capaz de nos fazer rir à gargalhada da riqueza? [575]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONOra aí está a segunda coisa que vou escrever: rir à gargalhada

da riqueza. E agora recorda-me lá os benefícios que tiras do que dizes ser o teu poder sobre a Grécia.

FILÓCLEONPara já, é-nos permitido olhar para o equipamento dos

moços quando são examinados para o registo. Depois, se o Eagro vem a tribunal como arguido, não se safa enquanto não escolhe e nos canta o mais belo passo da Níobe. [580] E se por ventura um flautista ganha uma contenda, como recompensa ergue o pífaro e despede-nos com uma modinha, quando estamos de saída. E se, no leito de morte, um pai nomeia como única herdeira a filha e a dá em casamento a alguém, mandamos dar uma volta ao testamento, e o mesmo quanto à carica que severamente cobre o sinete, [585] e entregamos a fulana ao primeiro tipo que nos convença com as suas lamúrias.

E por tudo isto nunca somos chamados a prestar contas. Eis um privilégio de que nenhum outro poder se pode gabar!

BDELÍCLEON (continuando a tomar notas)Essa é mesmo a única vantagem, em tudo o que estiveste

para aí a dizer. Parabéns! Mas olha que é injusto meteres-te com a carica da herdeira contra a vontade dela!

FILÓCLEON (ignorando a acusação)Mais ainda. Quando o Conselho e o Povo não se entendem

acerca de um caso dos grandes, [590] toca de decretar que os culpados compareçam diante dos juízes. Logo o Evatlo e esse grande Lambacónimo – o tal que deitou fora o escudo – não se cansam de jurar que nunca nos hão-de atraiçoar e que sempre irão lutar pelo povo. E nunca ninguém faz prevalecer uma proposta na Assembleia, a menos que prometa à partida pôr fim à sessão do tribunal depois de julgado um único processo. [595]

Até mesmo Cléon, o rei da gritaria, somos nós os únicos em quem ele não mete o dente, antes olha por nós, traz-nos ao colo e espanta-nos as moscas. Quanto a ti, nunca fizeste nada que se

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parecesse pelo teu pai. Já o Teoro – isso sim é um homem, que não fica atrás do Eufémio – saca da esponja da bacia e toca de nos polir os sapatos. [600]

Vê bem de que espécie de regalias me queres tu privar e afastar! E como se não bastasse, ainda te julgas capaz de provar que tudo isto é escravatura e baixo nível!

BDELÍCLEONFala para aí à vontade! Há-de vir a altura em que vais

baixar a bola e perceber que és um cara de cu demasiado sujo graças a esse teu poder magnífico.

FILÓCLEON Mas o mais doce de tudo, e de que quase me ia esquecendo,

[605] é quando volto para casa já com o carcanhol na mão e, à minha chegada, vêm todos ao molho saudar-me, tudo graças ao dinheirinho. Para começar, a minha filha dá-me banho e perfuma-me os pés; e toda inclinada, para me dar um beijo, com aquela treta do “paizinho”, lá me pesca o trióbolo da boca com a língua. Depois, é a minha patroa que, para me apaparicar, me oferece um bolo fofinho [610] e, sentada à minha beira, força-me a comer: “Toma lá, come isto, come aquilo!” Eu, claro está, fico todo inchado por não ter de depender de ti ou do caseiro, que ainda me venha por aí mandar vir ou aos berros. Este é o meu remédio contra as chatices, a minha arma de defesa contra as frechadas que me atira. [615] Quanto a ti, se não me serves vinho para beber, trago para casa este burro cheio de vinho (mostra um recipiente que traz ao pescoço) e depois, bota para dentro! O gajo abre o gargalo, manda um urro e espeta-te com um estrondo de combate nas trombas. Não é então grande o poder que eu tenho, em nadinha inferior ao do próprio Zeus, se até sobre mim ouço dizer o mesmo que se diz sobre Zeus? [620]

Por exemplo. Se nos pomos a fazer barulheira, logo dizem todos os que por ali passam: “Que raio de trovoada vai no tribunal, Zeus nosso senhor!” E se lanço o meu raio, os ricalhaços [625] e a gente graúda acagaçam-se e ficam a tremer com medo de mim. E tu também morres de medo, ai não que não morres,

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caramba! Pela minha parte, que um raio me parta se tenho algum medo de ti! [630]

CORONunca antes ouvimos alguém que falasse de forma tão

hábil e inteligente!

FILÓCLEONPois não! Mas este fulano aqui julgava que andava a

apanhar cachos em vinha vindimada! Que ele bem sabia que nesta arte eu sou do melhor que há. [635]

COROComo ele disse tudinho, sem esquecer coisa nenhuma, de

modo que eu me sentia ir às nuvens ao escutá-lo e me imaginava a julgar nas Ilhas dos Bem-Aventurados, [640] tal o deleite que me davam as suas palavras.

FILÓCLEONVejam bem como este gajo está perturbado e completamente

fora de si! (Para Bdelícleon.) Diabos me levem se ainda hoje não te faço sentir as correias!

CORO (para Bdelícleon)É mesmo preciso deitar mão a todas as artimanhas para te

tirares de apuros. [645] Aplacar a minha cólera não é coisa fácil para quem fala contra mim.

CORIFEUPor isso, a menos que tenhas alguma coisa de jeito para

dizer, trata mas é de arranjar uma mó novinha em folha, capaz de pôr cobro à minha cólera.

BDELÍCLEONÉ tarefa difícil e que exige grande inteligência, maior do que

a dos poetas cómicos, [650] essa de curar uma doença prolongada que é inata à cidade. Mesmo assim, ó pai, filho de Cronos…

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEON (julgando que o filho se lhe dirige)Parou, não me venhas com esses “ó meu pai!” Se não me

mostras já em que medida é que eu sou um escravo, hás-de morrer pela certa, mesmo que seja preciso eu manter-me longe dos sacrifícios.

BDELÍCLEONEntão escuta-me lá, paizinho, e abranda aí com os cavalos!

[655] Para começar, faz umas contas bem simples, nem precisas de pedrinhas, vai mesmo com os dedos, sobre o montante dos tributos que nos chega das cidades aliadas; junta-lhe os impostos, um a um, todas as taxas, as pritanias, as minas, os mercados, os portos, as rendas e as confiscações. Tudo somado representa para nós perto de dois mil talentos. [660] Subtrai-lhe agora o salário de um ano dos juízes, seis mil fulanos – nunca nesta terra se foi além desse número. Para nós ficam apenas, nas minhas contas, cento e cinquenta talentos.

FILÓCLEONQueres tu dizer que o nosso salário não chega nem a um

décimo das receitas globais?

BDELÍCLEONPois não chega, não senhor!

FILÓCLEONNesse caso, para onde se escapa o resto do dinheiro? [665]

BDELÍCLEONPara esses tipos do “jamais trairei a multidão dos Atenienses

e sempre lutarei pelas massas”. E tu, pai, amolecido com este palavreado, preferes deixar-te governar por eles. Depois toca de extorquir cinquenta talentos às cidades aliadas, com ameças deste tipo para as assustar: [670] “Hão-de pagar-me o tributo, caso contrário arraso-vos a cidade com um trovão!”

Quanto a ti, contentas-te em debicar as migalhas resultantes do teu poder. Os aliados, desde que toparam que a arraia miúda

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

morre de fome com a urna de votos e em comezainas de prato às moscas, olham para ti como para um voto do Cónon, enquanto esses fulanos se enchem de presentes: [675] travessas de peixe salgado, vinho, tapeçarias, queijo, mel, sésamo, almofadas, jarros, casacos, coroas, colares, taças, enfim, tudo do bom e do melhor. Mas a ti, nenhum dos que governas a custo de muitos tormentos na terra e no mar alto, nenhum deles te dá sequer uma cabecinha de alho para temperares o peixe.

FILÓCLEONPois não caramba! Ainda ontem mandei pedir três dentes

de alho ao Eucárides. [680] Mas já começo a ficar farto por não me explicares em que raio consiste a minha servidão.

BDELÍCLEONE afinal de contas não será servidão de lei ver esses tipos

carregadinhos de tachos, e os seus lambe-botas de bolsos cheios? Tu, pelo contrário, ficas todo contente se te derem os três óbolos que ganhaste a remar, a combater e no assalto a cidades, a custo de tantas penas. [685] Mas o que mais me irrita é que andes feito barata tonta às suas ordens, ou que venha por aí um rapazola todo finório, o filho do Quéreas, e se ponha a andar assim, de pernas abertas, a gingar-se todo, feito maricas, e a dizer que vocês têm de ir julgar de manhã cedo e à hora certa, porque “qualquer um que chegue depois do sinal não mete o dente no trióbolo.” [690] Mas ele recebe uma dracma, na qualidade de acusador público, mesmo que chegue atrasado.

Depois, trama-se um arranjinho com algum dos colegas e, se um acusado lhe deu um miminho, fica tudo em família, como um par de serradores: um puxa para um lado, o outro para o outro. Enquanto isso, tu ficas-te a olhar para o tesoureiro, de boca aberta, e não entendes a tramóia. [695]

FILÓCLEONEles fazem-me isso? Ai de mim, o que me estás a dizer?!

Como me remexes a alma e levas a melhor sobre a minha razão! E ainda por cima não sei que raio me estás a fazer.

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONPensa lá bem! Quando te era possível enriquecer, a ti e a

essa gente toda que para aí anda, deixaste-te não sei como levar por esses fulanos que se dizem defensores do povo. Governas sobre um grande número de cidades, desde o Ponto até Sardes, [700] mas não ganhas nada com isso para além da porcaria do teu salário; e ainda por cima dão-to com um tampãozinho de lã, gota a gota, que nem azeite, para te manter vivo. É que eles querem que sejas pobre, e vou já dizer-te porquê: para que saibas quem te dá de comer e, quando ele te der sinal para atacares um dos seus inimigos, tu te lances ao gajo como uma fera. [705]

Se quisessem mesmo garantir a subsistência ao povo, seria muito fácil. Há actualmente mil cidades que nos pagam tributo. Se a cada uma delas fosse exigido sustentar vinte homens, seriam vinte mil os populares a viver com abundância de lebres, de todo o tipo de coroas e de leite creme, [710] e a levar uma vida digna desta terra e do troféu de Maratona. Mas a verdade é que vocês, nem que andem na apanha da azeitona, estão sempre à coca do tipo que vos paga o salário.

FILÓCLEONAi meu Deus! Que se passa comigo?! Sinto nas mãos não

sei que tremor e já nem consigo erguer a espada. Todo eu estou fraco!

BDELÍCLEON (prossegue o seu discurso)Mas quando temem por eles próprios, prometem-vos a

Eubeia [715] e mais cinquenta medidas de trigo. O problema é que nunca te dão nada. Excepto no outro dia que conseguiste cinco medidas – sabe Deus a que custo! – acusado de ser estrangeiro, e lá foste levando quartilho a quartilho... de cevada.

É por isso que eu te prendia em casa todos os dias. Queria alimentar-te e evitar que esses tipos fizessem de ti gato-sapato com as suas grandes línguas de vento. [720] E agora estou disposto a dar-te tudo o que quiseres, tudo menos leite... de tesoureiro, para beber.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

CORIFEUSem dúvida que parece sábio o fulano que dizia: “antes de

teres ouvido os dois lados de uma história, [725] não deves tomar uma decisão.” (Para Bdelícleon) É que, desta vez, estou mesmo decidido a dar-te como vencedor, tanto que esqueço a minha cólera e deponho as armas. (Para Filócleon) Agora tu, tu que és da nossa idade e nosso comparsa...

CORO… deixa, deixa-te levar por estas palavras, não sejas tolo

nem um tipo inflexível ou intratável. [730] Quem me dera ter um protector assim, um parente que me desse tais conselhos! Deve ter sido um deus que te apareceu para te ajudar neste assunto, e é evidente que te está a fazer bem. Quanto a ti, colabora, aceita a ajuda que te quer dar! [735]

BDELÍCLEON (para o coro)Sim, eu hei-de sustentá-lo, garantir-lhe tudo o que faz falta

a um velhote: papas de aveia, uma mantinha de lã bem macia, uma samarra e... uma fulana que lhe estimule a gaita e os rins. [740]

Mas a forma como está calado, sem tugir nem mugir, isso não posso dizer que me agrade.

COROArrepende-se de tudo o que dantes o punha louco. É que

acabou de perceber a verdade, e só agora reconhece que era um grande erro [745] não te levar a sério quando o advertias. Está completamente convencido pelos teus argumentos e parece que ganhou enfim algum juízo, disposto a mudar, de futuro, os seus hábitos, e a escutar os teus conselhos.

FILÓCLEONUi! Ai de mim, ai de mim! [750]

BDELÍCLEONEh, tu, por que gritas?

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONDeixa-te lá dessas promessas! É por eles que morro de

amores, é lá que eu queria viver, nesse lugar onde o arauto apregoa: “Quem ainda não votou? Que se levante!” Oh, quem me dera estar junto dessas urnas, ser mesmo o último a votar! [755] (Ergue a espada, num tom trágico.) Apressa-te, minha alma! (Falha propositadamente o golpe.) Mas onde está a minha alma? Abram caminho, trevas! Por Héracles! Que eu nunca seja um dos juízes que acusam Cléon de ladroagem!

BDELÍCLEONAnda lá, pai! Caramba, faz o que eu te digo! [760]

FILÓCLEONFaço o quê? Pede-me o que quiseres, menos uma coisa.

BDELÍCLEONE que raio de coisa é essa? Ora diz lá.

FILÓCLEONQue eu não volte a julgar. Lá nisso, há-de o Hades levar-me

antes de eu ceder à tua vontade.

BDELÍCLEONPois seja. Já que gostas tanto de julgar, não vás mais ao

tribunal. Fica antes cá por casa [765] e julga os teus criados.

FILÓCLEONPor causa de quê? Que raio estás para aí a dizer?

BDELÍCLEONPelos mesmos motivos que lá. Se a criada abrir uma porta

à socapa, tu espetas-lhe... com uma multa, uma só e basta. De qualquer modo, era isso que costumavas fazer lá no tribunal. [770] E tudo se fará em boa ordem: se o dia se apresentar soalheiro, podes mesmo julgar o acusado ao sol, e se nevar, sentadinho ao borralho. Quando chover, vais lá para dentro. E se acordares ao

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

meio-dia, nenhum presidente do júri há-de dar-te com a porta na cara. [775]

FILÓCLEONIsso sim, já me agrada!

BDELÍCLEONE o melhor de tudo é que se um tipo se esticar no discurso,

não tens de ficar à espera, cheio de fome, às dentadas em ti próprio e … no arguido.

FILÓCLEONMas como raio serei capaz de julgar os processos em

condições, como dantes, se estiver a dar às queixadas? [780]

BDELÍCLEONMelhor é impossível, ora essa! De resto, como se costuma

dizer, quanto mais mentem as testemunhas, mais difícil é para os juízes descobrir a verdade, à força de muito mastigar a questão.

FILÓCLEONMuito bem, convenceste-me! Mas há ainda uma coisa que

não me explicaste: de onde vou sacar o salário?

BDELÍCLEONEu próprio to pagarei.

FILÓCLEONEncantado da vida, [785] já que o levo todo para mim e não o

divido com ninguém. É que o miserável do Lisístrato tem-me feito das boas, esse sem-vergonha. Há uns tempos ele e eu ganhámos uma dracma, e o gajo toca de ir ao mercado e trocar o dinheiro por peixes. Logo ele vá de me pôr três escamas de carapau na mão, [790] que eu papei sem demora, julgando que me tinham dado óbolos. Depois, enojado com o cheiro, cuspi-os fora. Então, sem mais conversas, fiz queixa do tipo.

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONE que disse ele quanto a isso?

FILÓCLEONQue disse ele? Que eu tinha um estômago de galinha.

“Em menos de nada digeres o dinheirinho!” – era o que ele dizia. [795]

BDELÍCLEONEstás a ver, também nesse aspecto, a vantagem que tu

tens?

FILÓCLEONNão vai ser pequena, não senhor! Enfim, faz o que

entenderes.

BDELÍCLEONEspera lá um bocadinho! Eu volto já com a tralha toda.

(Bdelícleon entra em casa para buscar os acessórios necessários à cena do julgamento.)

FILÓCLEON (sozinho, para o público)C’os diabos! Vejam bem como o oráculo se cumpre! Tinha

ouvido dizer que havia de chegar o dia em que os Atenienses [800] administrariam a justiça em suas próprias casas, e que cada indivíduo havia de montar à porta um pequeno tribunal, em miniatura, para uso próprio, como esses altares de Hécate que a cada passo se vêem em frente às portas.

Bdelícleon regressa com alguns escravos, trazendo para cena duas cadeiras e um caixote para servir de tribuna, além de outros acessórios a seu tempo referidos no diálogo. Os escravos iniciam a preparação do cenário do tribunal doméstico.

BDELÍCLEONOlha lá! Que mais podes dizer? Trago comigo tudo [805]

quanto prometi, e muito mais ainda. Mas antes, caso queiras

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

mudar a água às azeitonas, fica aqui um penico pendurado num prego.

FILÓCLEONMuito inteligente da tua parte, sim senhor! Acertaste em

cheio no remédio para um velhote com problemas de retenção de líquidos. [810]

BDELÍCLEONE tens aqui também fogo. (mostra um braseiro) E mesmo ao

lado, uma sopa de lentilhas para engolires, se for preciso.

FILÓCLEONTambém isso é um grande achado! Assim, mesmo

que tenha febre, recebo o salário à mesma. Posso ficar aqui descansadinho a engolir a sopa. (Repara numa gaiola com um galo.) Mas para que raio me trouxeste cá para fora um galo? [815]

BDELÍCLEONPara que ele, se adormeceres a meio de um discurso de

defesa, te acorde a cantar, mesmo por cima da tua cabeça.

FILÓCLEONHá só uma coisa que eu ainda apreciava. Quanto ao resto,

estou satisfeito.

BDELÍCLEONE que coisa é essa?

FILÓCLEONQueria, se possível, que me trouxesses cá para fora um

altar em honra de Lico.

BDELÍCLEON (ordena a um escravo que se posicione, imóvel, em frente ao altar)

Aí o tens, e aí está também o herói em pessoa. [820]

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEON (em posição de oração)Ó herói soberano, como é penoso olhar para ti!

BDELÍCLEONParece-me tal qual o Cleónimo.

FILÓCLEONÉ verdade sim senhor! Mesmo sendo um herói, o gajo não

tem armas.

BDELÍCLEONSe fosses mas é mais rápido a sentar-te, mais rápido eu

dava início ao caso. [825]

FILÓCLEONPodes começar! Há muito tempo que estou sentado.

BDELÍCLEONVejamos então! Que caso devo eu em primeiro lugar

apresentar a este fulano? Quem é que cá de casa fez alguma coisa de errado? A Trata, que no outro dia deixou queimar um tacho...

FILÓCLEON (interrompendo o filho)Ei, parou por aí! Por pouco não deitavas tudo a perder.

Então tu querias dar início ao caso sem a barra do tribunal, [830] o primeiro dos mistérios que nos foi revelado?

BDELÍCLEONC’um catano, não é que falta mesmo!

FILÓCLEONDeixa estar, eu próprio vou lá dentro buscar uma, a correr.

(corre para dentro de casa.)

BDELÍCLEONMas que raio de sorte a minha! Que coisa terrível é ser

viciado num lugar!

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

XÂNTIAS (sai de casa a resmungar)Um raio te parta! Podemos nós ter em casa um cão destes! [835]

BDELÍCLEONQue se passa contigo?

XÂNTIASDiabos me levem, não é que o Labes, o desgraçado do cão,

irrompeu cozinha dentro e foi roubar um queijo da Sicília, para depois o comer?

BDELÍCLEON (para os espectadores)Perfeito! Cá está o primeiro crime a submeter ao julgamento

do meu pai. (Para Xântias) Tu, apresenta-te como acusador. [840]

XÂNTIASEu não, caramba! Até porque o outro cão garantiu que o

acusava se a coisa chegasse a tribunal.

BDELÍCLEONEntão toca a mexer, traz-me os dois cá fora!

XÂNTIASÉ melhor que eu faça isso, é.

Xântias vai para dentro. Entretanto, sai porta fora Filócleon, carregando as barras de madeira que tinha ido buscar, e constrói uma espécie de jaula para porcos.

BDELÍCLEON (para o pai)Eh, tu! Que é isso?

FILÓCLEONUma jaula para porcos de Héstia.

BDELÍCLEONMas então, não é sacrilégio trazê-la?

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONNada disso. Quero apenas arrasar seja com quem for,

começando por Héstia. [845] Mas vá, toca de pronunciar o caso! Já só penso na condenação.

BDELÍCLEONEspera lá, vou buscar-te as tabuínhas e as acusações. (Vai

para dentro.)

FILÓCLEONC’um raio, que perda de tempo! Levas o dia todo nisto e

dás-me cabo da cabeça! Há muito que anseio por marcar um traço no meu terreno. [850]

BDELÍCLEON (regressando de dentro de casa)Aqui tens.

FILÓCLEONAbre lá o caso então!

BDELÍCLEONEstá bem.

FILÓCLEONQuem é o primeiro?

BDELÍCLEONCo’a breca, estou farto disto! Esqueci-me de trazer cá para

fora as urnas de voto. (Volta a correr para dentro.)

FILÓCLEON (barrando-lhe o caminho)Tu, onde vais a correr dessa maneira?

BDELÍCLEONVou buscar as urnas.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEONNão senhor! Já cá tenho estes pucarinhos que servem bem

para o efeito. [855]

BDELÍCLEONPois então muito bem. Já temos tudo de que precisamos...

tudo menos a clépsidra.

FILÓCLEONE isto que raio é? (Aponta para o penico pendurado na porta por

um prego.) Não será uma clépsidra, não?!

BDELÍCLEONSabes bem dar a volta à questão, como bom Ateniense que

és! Mas vá, depressa! Alguém que traga lá de dentro fogo, [860] ramos de mirto e incenso, para podermos começar por fazer libações aos deuses.

COROE nós, por estas tréguas e estas libações, vamos dedicar-vos

uma bela cançoneta, [865] já que em boa hora chegaram a acordo, depois de longa guerra e discussão.

BDELÍCLEONMas antes de mais, tratemos de fazer silêncio!

CORIFEUÓ Febo, Apolo Piteu! Que em boa hora possa o esquema

[870] que este tipo montou à sua porta a todos nós ser favorável, para que tenham fim as nossas deambulações! Iô, Péan!

BDELÍCLEONÓ soberano Agiieu, nosso senhor, meu vizinho e guarda

da minha porta! [875] Aceita o novo ritual, ó soberano, que pelo meu pai te oferecemos pela primeira vez. Põe termo a essa cólera amarga que ele tem, ao seu génio inflexível, tempera-lhe aquele

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

coraçãozinho com um pingo que seja de mel, como se faz com o vinho misturado. Que de hoje em diante ele seja mais simpático para as pessoas, aos arguidos [880] se torne mais propício do que aos acusadores e se deixe comover pelos que lhe suplicam. Possa ele acalmar aquele génio e do seu espírito afastar o veneno das urtigas.

CORIFEUPartilhamos dos teus votos e cantamos [885] em honra dos

teus novos poderes, graças ao que acabas de dizer.

COROÉ que estamos do teu lado desde que percebemos que amas

o povo como nenhum outro homem, pelo menos entre a malta nova. [890]

BDELÍCLEONSe algum de vós, juízes, ainda está lá fora, toca a entrar!

É que, já com os discursos a correr, não vamos permitir que ninguém entre.

FILÓCLEONEntão quem é o nosso arguido? (À parte) Esse gajo há-de

ser condenado!

BDELÍCLEONOiçam, para começar, o termo de acusação. (Num tom

formal) “O Cão Cidateneu acusa Labes de Exona [895] pelo crime de ter comido, sozinho, um queijo da Sicília. Pena proposta: uma coleira de folhas de figo.”

FILÓCLEON (interrompendo o filho, aos berros)Antes uma morte de cão, se se provar que é culpado.

BDELÍCLEON (enquanto entram Xântias e dois cães)Ora aqui tens, diante de ti, o arguido, Labes em pessoa!

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEON (para Labes)Oh, miserável! Vejam bem que ares de ladrão tem o fulano!

[900] Como rosna e julga que me há-de dar a volta. Mas onde está o acusador, o cão Cidateneu?

CÃOÃo, ão!

BDELÍCLEONCá está ele.

XÂNTIASEste é outro como Labes, versado em ladrar e em lamber

as panelas.

BDELÍCLEON (para Filócleon)Silêncio! Senta-te! (para o cão acusador) Tu, sobe ao estrado e

formaliza mas é a acusação. [905]

FILÓCLEON (à parte)E eu, entretanto, vou entornando e emborcando um

bocadinho disto aqui (segura um vaso de vinho).

CÃOEscutastes, senhores juízes, a acusação que formalizei contra

este fulano aqui. Cometeu as piores patifarias, é bem verdade, contra mim e contra a malta toda do “oh-op!” Enfiou-se num canto, rapinou à siciliano um grande queijo [910] e empanturrou- -se às escuras com ele...

FILÓCLEON (interrompendo)C’um raio, é mais claro que água. Ainda agora o desgraçado

me arrotou para cima e cheirava a queijo que não se podia.

CÃO…e apesar de muito lhe pedir, não o dividiu comigo.

Agora, quem será capaz de olhar pelos vossos interesses, [915]

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

a menos que alguém me atire algo de comer, a mim, o vosso cão?

FILÓCLEONE tampouco deu nada à populaça, quer dizer... a mim! O

tipo é dos quentes, tal qual esta sopa. (Depois de beber, em pleno julgamento, tudo indica que Filócleon se prepara para comer a sopa de lentilhas que lhe deu o filho.)

BDELÍCLEONCo’a breca, pai! Não o condenes antes do tempo, não sem

primeiro ouvires ambas as partes.

FILÓCLEONMas meu caro, [920] a coisa é clara. Os factos falam por si.

CÃO (para Filócleon, o único juiz em exercício)E não o deixem escapar. É que o gajo, de quanto cão existe,

é o mais hábil a comer tudo sozinho. Ele, que a navegar à volta da masseira, tirou a casca... às cidades e as papou. [925]

FILÓCLEONE eu, nem sequer tenho quanto chegue para remendar o

meu cântaro da água.

CÃOPerante tudo isto, é castigá-lo – é que não pode uma só

moita alimentar dois... ladrões – para que eu não tenha levado a vida a ladrar a troco de nada. Se não, de futuro, não voltarei a ladrar. [930]

FILÓCLEONAi, ai! De quantas patifarias o acusou! Este fulano é a

ladroagem em pessoa. (Para o galo.) Não te parece, ó galo? C’um caramba, o bicho diz que sim com uma piscadela! (Para o filho, não o encontrando à primeira.) Ó senhor presidente do júri! Onde está o tipo? Quero que me dê um penico. [935]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONVai tu buscá-lo. Eu cá vou fazer entrar as testemunhas. (Em

tom formal.) Apresentem-se as testemunhas de Labes: o prato, o almofariz, o ralador de queijo, a sertã, a marmita e todos os outros utensílios de cozinha notificados. (Vão entrando actores mudos, cada um caracterizado como um dos utensílios mencionados. Para Filócleon.) Mas tu ainda estás a mijar? Será possível que não te sentes? [940]

FILÓCLEONSim, mas esse tipo aí, ainda hoje se há-de borrar de medo.

BDELÍCLEONSerá que nunca vais deixar de ser um patife e um

mau-carácter, em especial para com os acusados, e de lhes ferrar os dentes? (Para Labes.) Sobe para aqui! Defende-te! Por que te calas? Responde!

FILÓCLEONO tipo está com ar de quem não tem nada para dizer. [945]

BDELÍCLEONNão é isso, estou a ver é que se está a passar com ele o

mesmo que, em tempos, se passou com o Tucídides, quando foi a tribunal: de repente, o gato comeu-lhe a língua. (Para Labes.) Sai daí! Eu mesmo tratarei da tua defesa. (Sobe para a tribuna.)

Tarefa complicada, ó juízes, é fazer a defesa [950] de um cão tão caluniado. Mas vamos a isso, de qualquer modo. Ele é corajoso e afasta os lobos.

FILÓCLEON (interrompendo novamente o discurso de defesa)Um ladrão e um conspirador, é o que ele é!

BDELÍCLEONNada disso, caramba! É o melhor de quantos cães para aí

há, capaz de guardar um grande rebanho de ovelhas. [955]

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONE que raio importa isso, quando anda para aí a comer o

queijo?

BDELÍCLEONO que importa isso? Ele defende-te, guarda-te a porta de

casa e é em tudo o resto um cão de primeira. Se acaso roubou alguma coisa, é tua obrigação perdoá-lo: é que nunca aprendeu a tocar cítara.

FILÓCLEON (à parte, queixando-se do filho)Quem me dera que este gajo não tivesse sequer aprendido

as primeiras letras, [960] para que não se tivesse mostrado pérfido no discurso que nos fez.

BDELÍCLEONEscuta então, caro amigo, as minhas testemunhas. Sobe

para aqui, Ralador de Queijo, e fala bem alto. Tu é que eras o intendente. Responde a verdade, se sim ou não, se distribuiste o que recebeste pelos soldados. [965] (O actor acena afirmativamente com a cabeça.) Ele diz que distribuiu, vês?!

FILÓCLEONQue descaramento! O gajo mente.

BDELÍCLEONMeu querido senhor, compadece-te dos que sofrem!

Aqui o nosso Labes vive de pescocinhos e de espinhas, e nunca permanece muito tempo no mesmo sítio. Já esse outro, isso é que ele é um tipo levado da breca! É gajo para ficar em casa. [970] Está sempre à coca, e se aparece alguém que traz alguma coisa, toca de reclamar a sua parte; e morde, se não lha dão.

FILÓCLEON (à parte)Ai de mim! Que raio de coisa é esta que me amolece, pouco

a pouco? Um mal qualquer toma conta de mim, que começo a deixar-me vencer.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONVá lá, imploro-te, tem piedade dele, meu pai, [975] não

o desgraces! Onde estão os filhos? (Entra em cena um cortejo de cachorrinhos.) Venham cá, coitadinhos, façam ouvir os vossos latidos, peçam, supliquem, chorem!

FILÓCLEON (para Bdelícleon)Desce daqui, desce! Xô!

BDELÍCLEONEu desço. Se bem que esse teu “desce daí!” já enganou

muita gente [980] antes de mim. Mas eu desço, fica descansado.

FILÓCLEON (à parte)Co’a breca! Como esta sopa é terrível de engolir. Já me vêm

as lágrimas aos olhos, e tenho cá para mim que é só por me ter empanturrado com esta mistela.

BDELÍCLEONEle não tem mesmo hipótese de ser ilibado?

FILÓCLEONBem, é difícil de saber. [985]

BDELÍCLEON (dando o seixo de voto ao pai)Vá lá paizinho, sê um tipo às direitas! Pega neste voto, fecha

os olhos, corre para a segunda urna e deixa-o ir em liberdade.

FILÓCLEONNem pensar! É que eu também nunca aprendi a tocar

cítara, sabes?!

BDELÍCLEON (conduzindo – quase arrastando – o pai.)Vamos lá, deixa-me guiar-te pelo caminho mais rápido! [990]

FILÓCLEON (junto da segunda urna, a da absolvição)É esta a primeira?

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONEsta mesma!

FILÓCLEONCá vai disto! (deposita o voto)

BDELÍCLEON (à parte)Foi bem enganado. Acaba de o absolver sem querer! (Para

Filócleon.) Pronto, agora deixa-me esvaziá-las.

FILÓCLEON (impaciente)Então, qual foi o veredicto?

BDELÍCLEONJá vais ficar a saber. (Com solenidade.) Labes, foste absolvido!

(Os cachorros saltam de alegria e Filócleon desfalece.) Pai, pai, que bicho te mordeu, homem?! Ai de mim! (Para os escravos.) Tragam- -me água! [995] (Um escravo entra com um jarro de água, que despeja abruptamente sobre a cara de Filócleon.) Recompõe-te!

FILÓCLEONDiz-me lá, agora a sério! O gajo foi mesmo absolvido?

BDELÍCLEONFoi sim senhor.

FILÓCLEONEstou perdido! (Filócleon quase desfalece novamente, mas o

filho ampara-o.)

BDELÍCLEONNão te preocupes, meu caro! Vá, levanta-te!

FILÓCLEONComo suportarei de hoje em diante este fardo, de ter

absolvido um acusado? O que vai ser de mim? [1000] Mas, deuses do céu, perdoai-me! Fi-lo contra vontade, não costumo fazê-lo.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONNão te martirizes com isso! Eu tomo conta de ti, pai,

levo-te comigo para todo o lado – a jantar, aos banquetes, aos espectáculos – [1005] para que, de hoje em diante, leves a vida regaladinho. Nem voltarás a ser enganado ou feito parvo por Hipérbolo. Agora, toca a andar lá para dentro.

FILÓCLEONVamos lá então, se é essa a tua vontade! (Saem todos, à

excepção do coro, que fica em cena para a Parábase.)

COROVão lá onde querem e sejam felizes! (Aos espectadores.)

Entretanto vocês, cidadãos mais de muitos, [1010] cuidem que as palavras que vos vão ser ditas não caiam em saco roto. Essa é atitude de espectadores ignorantes, o que não é o vosso caso.

Parábase

CORIFEUAgora sim, todos vocês, prestem atenção, se vos agrada

a sinceridade. [1015] Hoje o poeta quer repreender os seus espectadores. Afirma ter sido injustiçado, ele que lhes fez tanto bem.

De início não funcionava às claras, mas dava, às escondidas, o seu contributo a outros poetas, imitando a qualidade e a inteligência do adivinho Êuricles, e a estômagos alheios fornecia muitos achados cómicos. [1020] Passado esse tempo, decidiu-se a correr o risco às claras e por si próprio, tomando as rédeas de um bando de Musas que eram só suas e de mais ninguém. E quando obteve benefícios e honra como nenhum outro alguma vez conseguiu obter de vós, garante que o sucesso não lhe subiu à cabeça, que nunca se encheu de orgulho nem andou por aí a correr as palestras no engate. E se algum amante,

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

[1025] de candeias às avessas com um queridinho qualquer, o incentivava a descascar no fulano, diz ele que jamais, em tempo algum, consentiu semelhante coisa, por amor à decência e fiel ao propósito de não obrigar as suas Musas a fazer de alcoviteiras. Pelo contrário, afirma que da primeira vez que dirigiu coros não se bateu contra tipos comuns; antes, detentor da coragem de um Héracles, lançou-se contra monstros enormes, [1030] enfrentando cara a cara, desde o início, o próprio monstro de dentes aguçados, com aqueles olhos de Cina a lampejar e aquela cara lambida pelas cabeças de um cento de... aduladores malditos. Tinha uma voz semelhante ao açoite de uma torrente avassaladora, o cheiro de uma foca, os testículos imundos de uma Lâmia e o traseiro de um camelo. [1035]

Perante este monstro, diz ele, não se acobardou nem se deixou subornar por uns trocos; qual quê? Lutou sempre e ainda hoje luta em vossa defesa. Continua dizendo que, depois dele, no ano passado, se atirou contra esses tremores e essas febres que, de noite, degolam os pais e estrangulam os avós, esses fulanos que se enfiam no sossego das vossas camas [1040] e vos assombram o sono com processos, acusações e testemunhas, de modo que não falta quem salte da cama cheio de medo a correr para o arconte-chefe. Pois vocês, apesar de terem encontrado um tal libertador e purificador dos males desta terra, no ano passado deixaram-no ficar mal quando ele tinha semeado uma série de ideias novas: por as não terem compreendido, impediram-nas de germinar. [1045] Mesmo assim, com todas as libações e mais algumas, ele jura a pés juntos, por Diónisos, que jamais alguém ouviu versos cómicos melhores do que esses. É uma vergonha que vocês não lhe tenham dado o devido valor. Mas não é por isso que o nosso poeta deixa de ser apreciado pela malta inteligente se, levando a melhor sobre os seus rivais, for por diante o seu propósito. [1050]

Mas, meus amigos, daqui em diante, tratem de prestar mais atenção e de acarinhar os poetas que procuram algo novo que dizer. Guardem-lhes as ideias [1055] e arrecadem-nas em arcas, perfumadas de marmelos. Se assim fizerem, vão ter a roupa a cheirar a esperteza o ano inteiro.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

COROAh! Como antigamente éramos versados na dança, [1060]

versados na luta, e até cá nisto (aponta para o falo) nós éramos os tipos mais versados, caramba! Mas isso era dantes, isso era dantes! O que lá vai, lá vai, e as nossas cabeleiras crescem agora mais brancas do que a penugem de um cisne. [1065] Mas até deste entulho que somos devemos recuperar a pujança da juventude. É que estou convencido de que a minha velhice vale mais do que essa malta nova, com os seus caracóis, a sua figuraça e aquela paneleirice toda. [1070]

CORIFEUSe algum de vocês, espectadores, ao olhar para a nossa

aparência, se admira de nos ver com trajo de vespa e se pergunta qual o significado do nosso aguilhão, em menos de nada lho explicarei, por muito tapado que esse fulano seja. Nós, os que temos esta garupa, [1075] somos os únicos Atenienses de gema, os indígenas, a raça mais valente, os que tantas vezes defenderam esta cidade em combates, nos tempos em que os bárbaros vinham por aí enchendo esta terra de fumo e fogo, dispostos a destruir os nossos cortiços pela força. [1080]

Logo acorremos de lança e escudo na mão e os enfrentámos, embebidos de uma cólera aguçada, homem contra homem, mordendo os lábios de raiva. Tantas eram as flechas, que não conseguíamos ver o céu. Finalmente, com a ajuda dos deuses, despachámo-los antes do fim do dia: [1085] é que antes da batalha, uma coruja tinha voado sobre o nosso exército. Depois, toca de os perseguir, harpando-os como a atuns nas suas calças de saco. Os tipos vá de fugir, picados pelo aguilhão nas trombas e nas sobrancelhas.

À custa disso, ainda hoje é voz corrente entre os bárbaros, por toda a parte, que não há criatura mais feroz do que a vespa da Ática. [1090]

COROAh, como eu era terrível nesse tempo, tanto que não tinha

medo de nada; venci todos os meus inimigos, quando andava por

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

lá nas nossas trirremes. Nesse tempo não nos preocupávamos em ter de proferir um bom discurso, [1095] nem uma acusação falsa contra ninguém, apenas em descobrir quem era melhor remador.

Foi por isso que ganhámos muitas cidades aos Medos, e somos também os responsáveis pelo tributo pago a Atenas, para logo [1100] a malta nova o açambarcar.

CORIFEUSe nos observarem por todos os lados compreenderão que

somos tal qual as vespas, no carácter e no modo de vida. Para já, nenhum ser vivo tem um génio mais irritadiço nem mais azedo do que o nosso, quando nos provocam. [1105] Depois, toda a nossa actividade faz lembrar as vespas: reunimo-nos em enxames nos nossos cortiços e julgamos, uns à volta do Arconte, outros com os Onze, outros ainda no Odeon, assim, bem apertadinhos (agacha-se) contra os muros, muitas vezes de cabeças para baixo, [1110] só a muito custo nos mexendo, feito larvas nos casulos.

E também no que toca a garantir a subsistência somos nós os mais espertalhões. Ferramos toda a gente e é assim que levamos a vida. Infelizmente, há por aí entre nós uns zangões, uns tipos sem aguilhão, que se deixam ficar por casa, mas devoram o nosso quinhão [1115] do tributo, sem terem trabalho nenhum. E isso é o que mais nos lixa, que um fulano que nunca serviu no exército leve parte do nosso salário, sem por uma vez que seja ter tido remos, armas ou bolhas nas mãos em defesa da sua pátria.

Para falar curto e grosso, sou da opinião de que, daqui por diante, qualquer cidadão [1120] que não tenha aguilhão não deve tocar no trióbolo.

Filócleon, Bdelícleon e um escravo saem de casa. O velho vem a barafustar.

FILÓCLEONNunca, enquanto eu for vivo, hei-de tirar este casaco. É que

ele foi o único que me salvou o coiro, daquela vez em que estava no campo de batalha, quando nos atacou o grande... Bóreas.

80

Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEON (apresentando ao pai um casaco novo, mais requintado)

Até parece que não queres que te tratem bem, homem! [1125]

FILÓCLEONNão quero não, c’os diabos! Não tenho nada a ganhar

com uma fatiota dessas. Ainda no outro dia, depois de me empanturrar com uma peixada, tive de gastar o trióbolo na lavandaria.

BDELÍCLEONMas pelo menos experimenta-o, já que te confiaste

interirinho nas minhas mãos para cuidar de ti. [1130]

FILÓCLEONMas que raio queres tu que eu faça?

BDELÍCLEONQue mandes passear o teu velho casaco, e te enfies neste

manto aqui, como um tipo elegante.

FILÓCLEON (para os espectadores)De que raio serve ter filhos e criá-los, quando este gajo

agora quer abafar-me?

BDELÍCLEONVá, toma lá e veste-o! Deixa-te de tretas! [1135]

FILÓCLEON (depois de vestir o manto)Chiça! Que coisa horrível é esta?

BDELÍCLEONHá quem lhe chame um casaco persa, outros uma

samarra.

FILÓCLEONE eu que pensei que era uma samarra da Timécia.

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONNão admira, como nunca foste a Sardes! Se não, ias logo

reconhecê-la. Olha bem, agora já a reconheces?

FILÓCLEONEu [1140] não, podes crer que não! Mas parece-me tal e

qual uma capa à moda de Mórico.

BDELÍCLEONNada disso. Isto é material tecido em Ecbátana.

FILÓCLEONQueres tu dizer que eles fazem chouriços de lã, lá em

Ecbátana?

BDELÍCLEONEntão não, meu caro? Isto aqui saiu do tear dos bárbaros,

[1145] e olha que foi bem carote. Só este casaco, comeu à vontadinha um talento de lã.

FILÓCLEONNesse caso, não era melhor chamar-lhe papa-lãs, em vez

de samarra?

BDELÍCLEONToma lá, meu amigo! E quietinho enquanto te visto.

FILÓCLEON (deitando ao chão o casaco mal o veste)Socorro! [1150] Credo, fico a assar de calor com esta

porcaria!

BDELÍCLEONMas não o vais vestir?

FILÓCLEONAi não vou não, caramba!

82

Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONMas, meu caro...

FILÓCLEONSe tiver mesmo de ser, mete-me antes num forno.

BDELÍCLEONVá, deixa-me embrulhar-te nela.

FILÓCLEONPronto, está bem. Mas pelo menos põe-me um gancho ao

lado.

BDELÍCLEONE para quê? [1155]

FILÓCLEONPara me tirarem do forno antes que eu derreta.

BDELÍCLEONAgora vá! Descalça esse raio desses sapatos pobretanas e

calça estes aqui, da Lacónia.

FILÓCLEONQue raio! Posso lá eu enfiar os pés nos odiosos sapatos

feitos pelos nossos inimigos? [1160]

BDELÍCLEONEnfia-os lá, meu caro! Despacha-te e pisa com firmeza esse

solo da Lacónia.

FILÓCLEONÉ um insulto! Obrigas-me a pôr o pé em solo inimigo!

BDELÍCLEONVá, agora o outro.

Aristófanes As Vespas

83

Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONEste é que não, isso nunca! Um dos dedos dele é

completamente anti-Lacónia. [1165]

BDELÍCLEONNão tens outro remédio.

FILÓCLEONDesgraçado de mim, que nem depois de velho me deu para

ter frieiras!

BDELÍCLEONToca a andar, enfia-o lá! E depois, armado em rico,

avança assim (exemplifica), todo cheio de ares e a dar ao rabo.

FILÓCLEON (já calçado, seguindo o conselho do filho)Olha só! Repara bem no meu porte, e diz lá com que fulano

[1170] rico eu me pareço a andar.

BDELÍCLEONCom quem? Com um furúnculo besuntado de alho.

FILÓCLEONMas eu estou a esforçar-me em dar à anca, repara bem!

BDELÍCLEONAgora vamos lá saber. Serias capaz de contar histórias

sérias na presença de malta culta e finória? [1175]

FILÓCLEONClaro que sim.

BDELÍCLEONMuito bem! E qual contarias tu?

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEONHá mais que muitas. Para começar, contava como Lâmia se

peidou ao ser apanhada. Depois, como à mãe Cardápio…

BDELÍCLEON (interrompendo o pai)Deixa-te de fantasias, fala antes de histórias de gente,

dessas que costumamos contar ao borralho. [1180]

FILÓCLEONBem, eu sei uma que é bem caseira, aquela que começa

assim: “era uma vez um rato e uma doninha...”

BDELÍCLEONÓ meu miserável, que mal educado! – como dizia Teógenes

ao limpa-retretes, com ideia de o insultar – tencionas falar de ratos e doninhas perante esses indivíduos? [1185]

FILÓCLEONEntão que tipo de histórias devo eu contar?

BDELÍCLEONDas que impressionem! Por exemplo: que uma vez partiste

em delegação oficial com o Ândrocles e o Clístenes.

FILÓCLEONMas eu nunca fui como embaixador a parte nenhuma, a

não ser a Paros. E ainda por cima, dessa vez, só me pagaram dois óbolos.

BDELÍCLEONEstá bem, pronto! Mas deves pelo menos contar, por

exemplo, como daquela vez [1190] Efúdion lutou com ganas contra Ascondas, no pancrácio; o tipo já era velhote e grisalho, mas sabes bem como tinha os flancos, as mãos e os punhos no ponto, para além de um peito rijo como ferro.

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONPára, pára! Não dizes nada de jeito. Como podia o tipo

lutar no pancrácio de couraça no peito? [1195]

BDELÍCLEONÉ assim que os espertalhões costumam contar histórias.

Mas então diz-me lá outra coisa: se fosses para os copos com tipos estrangeiros, qual seria a grande aventura da tua mocidade que gostarias de lhes contar?

FILÓCLEONAquela, aquela, a mais valente de todas as minhas aventuras,

[1200] quando dei cabo daquelas videiras do Ergásion.

BDELÍCLEONDás-me cabo da paciência! Quais videiras qual quê! Conta antes

como uma vez caçaste um javali, ou uma lebre, ou como participaste numa corrida de tochas, sei lá, a maior proeza que te vier à cabeça.

FILÓCLEONJá sei, já sei qual foi a minha maior proeza! [1205] Foi daquela

vez, ainda cachopito, em que fui atrás do Faulo, o corredor, e o derrotei… por dois votos apenas, acusado de injúria.

BDELÍCLEONChega! Agora anda cá, reclina-te aqui e aprende a ser um

verdadeiro conviva e um tipo da sociedade.

FILÓCLEONComo me devo reclinar? Diz-me, rápido!

BDELÍCLEONCom estilo. [1210]

FILÓCLEONQueres dizer que me devo reclinar assim? (Deixa-se cair

abruptamente.)

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONNada disso!

FILÓCLEONEntão como?

BDELÍCLEON (exemplifica)Estica as pernas e, como um atleta, bem untado, desliza

sobre as cobertas. Depois, elogia uma das estatuetas de bronze que para lá haja, fixa o olhar no tecto e espanta-te com as tapeçarias da sala. [1215] Água para as mãos, avançam as mesas. Começamos a comer. E de mãos bem limpas, fazemos libações.

FILÓCLEONCo’a breca, que sonho de banquete!

BDELÍCLEON (continuando)A flautista dá o tom. Os convivas são Teoro, Ésquines, Fano,

Cleón [1220] e, ao lado dele, um outro, um tipo estrangeiro, o filho do Acestor. Na companhia desta malta, aplica-te nas canções de mesa como deve ser.

FILÓCLEONEstás a gozar? Melhor do que qualquer montanhês.

BDELÍCLEONIsso é o que vamos ver. Mas agora imagina que eu sou

Cléon e começo a cantar a do “Harmódio”; e tu continuas... [1225] “nunca se viu em Atenas um homem assim.”

FILÓCLEON“… nunca se viu tão grande malvado e ladrão.”

BDELÍCLEONVais fazer isso? Hás-de morrer com tantos apupos! O tipo

dirá que vai arruinar-te, destruir-te, expulsar-te desta terra.

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONE aí eu, [1230] se o fulano me ameaçar, diabos me levem

se não canto logo outra: “Meu senhor, tu que tens sede de um poder supremo, ainda hás-de arruinar a cidade. E ela que já balança!” [1235]

BDELÍCLEONE que tal quando o Teoro, reclinado aos pés do Cléon, a

segurar-lhe na mão, cantar assim: “Lembra-te, meu amigo, da história de Admeto, e ama a gente de bem!” Que canção cantarias em troca, diz lá!

FILÓCLEONQualquer coisa assim, [1240] em tom lírico... “não me vou

armar em raposa, nem jogar para os dois lados”

BDELÍCLEONDepois vem o Ésquines, o filho de Selo, tipo espertalhaço e

um músico de primeira, e põe-se a cantar assim: “Fortuna e vida longa [1245] para Clitágora e para mim, lá na Tessália...”

FILÓCLEON“... muito nos gabamos, tu e eu.”

BDELÍCLEONLá nisso, não haja dúvida, safas-te tu bem! Mas agora é

tempo de irmos a casa do Filoctémon para jantar. [1250] (Fala para dentro de casa, a um escravo imaginário.) Rapaz, ó rapaz! Creso, arranja aí a marmita com o jantar para nós os dois! (Para Filócleon.) Assim podemos, finalmente, apanhar uma piela das valentes.

FILÓCLEONNada disso! A pinga faz mal. O vinho é o responsável por

deitar portas abaixo, por andar à pedrada ou dar uma valente sova a alguém. Depois, no final de tudo, ainda há que pagar os estragos provocados pela borracheira. [1255]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

BDELÍCLEONNão, não se estiveres na companhia de gente fina. Nesse

caso, ou te salvam o coiro perante a vítima, ou então és tu quem se põe a contar uma historieta engraçada, dessas de Esopo ou Síbaris, que tenhas ouvido num banquete. No fim, quando tudo tiver terminado em risada, [1260] o tipo deixa-te escapar e vai-se embora à sua vida.

FILÓCLEONEntão tenho mesmo de aprender muitas histórias dessas,

se não quero pagar nada quando fizer estragos. Agora vá, toca a andar. Que nada mais nos retenha! (Filócleon, o filho e Xântias saem. O coro volta a ficar sozinho em cena.)

Segunda Parábase

COROMuitas vezes me julguei um espertalhão de nascença, e

[1265] nunca um parvo. Mas o Amínias, o filho de Selo, do clube do Rabo-de-Cavalo, ainda é pior que eu; ele que eu vi uma vez, em vez de se contentar com uma maçã ou romãs, a jantar com o Leógoras – um tipo tão comilão quanto o Antifonte. [1270] Mais ainda: foi um dia em embaixada a Farsalo e lá passou a viver sozinho, apenas em companhia dos Pobretanas da Tessália; logo ele que não era menos pobretana do que qualquer um deles.

CORIFEUÓ Autómenes, seu sortudo, as nossas felicidades! [1275] És

pai de filhos de mãos hábeis como o caraças: o primeiro, esse fulano que tem a simpatia geral, um artista a valer, o melhor dos citaristas, a quem não falta talento; o outro, o actor, talentoso para além da conta; depois o Arífrades, de longe o mais inspirado, [1280] ele que – assim jurou o pai um dia – aprendeu, sem lições de ninguém, por talento pessoal, a usar a língua... sempre que ia ao bordel.

Aristófanes As Vespas

89

Aristófanes As Vespas

CORO[Lacuna no texto]

CORIFEUHouve quem dissesse que eu me fui abaixo, daquela vez

em que o Cléon se lembrou de me perseguir com os seus ataques [1285] e me causou tamanha humilhação. E depois, enquanto eu era enxovalhado, esses aí (aponta para os espectadores) riam-se nas minhas costas e assistiam quietos aos meus protestos, nada preocupados comigo, claro está, mas apenas em saber se, mesmo aflito, eu me atreveria a alguma graçola. Quando lhes topei o esquema, preguei-lhes uma rasteira. [1290] E agora, saiu-lhes o tiro pela culatra.

XÂNTIAS (sai de casa esbaforido)Ó tartarugas, como são felizes debaixo das vossas carapaças.

Em boa hora e com muito tino vocês cobriram o dorso com esse telhado para vos guardar as costas. [1295] Quanto a mim, estou para morrer de tanta pancada do bastão!

CORIFEUQue se passa, meu rapaz? (para os espectadores) É correcto

chamar rapaz a quem leva pancada, por muito velho que seja.

XÂNTIASQuem diria que este velho me ia sair a peste mais terrível

que pode haver e o mais bêbado e barulhento dos convivas? [1300] Apesar de lá estarem o Hipilo, o Antifonte, o Lícon, o Lisístrato, o Teofrasto e essa malta toda do Frínico, de entre todos foi ele de longe o que se portou pior.

Desde que se empanturrou com quanta comida havia, do bom e do melhor, e se pôs a saltar, a dançar, a fazer troça, a peidar-se e a gozar, [1305] feito um burro a quem encheram a barriga de cevada, é vê-lo a desancar-me em cima sem parar e a gritar “Rapaz, rapaz!” Então o Lisístrato, ao vê-lo nessa figura, fez esta comparação acertada: “ó meu velho, és tal e qual um Frígio novo-rico, ou um burro que se escapou para a palha.” [1310]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

Logo o tipo, aos berros, o compara a um gafanhoto que perdeu as asas, ou ao Esténelo despojado dos seus trapilhos. Todos aplaudiram, menos o Teofrasto, que se pôs a morder os lábios, armado em finório. [1315] Vai o velhote e diz ao Teofrasto: “Diz-me lá então, por que te enches de ares e te armas em esperto, se levas o tempo a lamber as botas, com as tuas piadas, aos que estão bem na vida?”

Desta forma os desancava, um a seguir ao outro, com tiradas de pacóvio e historietas, [1320] como um parvo que não se sabia comportar na situação. Depois, a cair de bêbado, pôs-se a andar para casa a distribuir pancada sobre todos os que encontrava pela frente.

Olha, aí vem ele, a cambalear! É melhor desviar-me, não vá levar ainda mais porrada. [1325] (Corre para dentro de casa.)

Filócleon entra em cena bêbado, acompanhado de uma flautista e perseguido pelas gentes que maltratou pelo caminho, do banquete até casa, nessa noite. Tenta afugentá-los com uma tocha.

FILÓCLEON (para alguém imaginário)Xô, sai da frente! Diabos me levem se os que me perseguem

não se hão-de arrepender! (Ergue a tocha em posição ameaçadora.) Se não me deixam em paz, podem crer [1330] que vos asso com esta tocha, miseráveis!

HOMEMPodes apostar que vais ser chamado a contas amanhã pelo

que nos fizeste a todos, por muito novo que sejas! Viremos todos em cortejo para te notificar.

FILÓCLEONAh, ‘tá bem está, ser notificado! [1335] Vocês são mesmo

cotas. Então não sabem que eu já nem posso ouvir falar em processos? Puf! É disto que eu gosto. Que se lixem as urnas de voto! Não se põem a andar? Onde está [1340] o júri? Desamparem-me a loja! (Filócleon sobe para um plano mais alto. Dirige-se à flautista que o acompanha.)

Aristófanes As Vespas

91

Aristófanes As Vespas

Sobe lá para aqui, meu pequenino escaravelho dourado, agarra esta cordinha com a mão. (A flautista segura no falo de Filócleon e sobe para o estrado.) Segura nela, isso! Mas tem cautela, que a cordinha já começa a ficar gasta. Mesmo assim, não lhe sabe nada mal ser agarrada. Vês como em boa hora te raptei, [1345] quando estavas prestes a mamar os convivas? Como recompensa, faz-me cá agora um jeito a esta verga. (Reparando na hesitação da flautista.) Mas não, não me vais retribuir, não vais fazer o que te peço – está-se mesmo a ver –, antes me vais enganar e rir-te a bom rir do meu material. A muitos outros já fizeste o mesmo, antes de mim. [1350] Mas agora, se fores uma boa menina, assim que o meu filho bater as botas, eu hei-de comprar a tua liberdade e fazer de ti minha amante, minha porquinha marota!

É que agora nem sequer controlo os meus bens, pois sou chavalito. E ando vigiado de perto. [1355] O meu filhote mantém-me debaixo de olho – é um malvado e um agarradão de primeira apanha! É por isso que tem medo que me dê alguma: é que não tem mais nenhum pai além de mim. (Bdelícleon aproxima-se)

Olha, lá vem ele! Parece que anda atrás de mim, e de ti também. [1360] Vá, segura nesta tocha quanto antes e faz de estátua, para que eu lhe possa espetar uma grande peta, tal como ele fazia comigo antes de me iniciar nestas artes.

BDELÍCLEONEh, tu! Tu aí, velho imbecil e debochado! Quer-me cá parecer

que andas mortinho por um caixão dos jeitosos. [1365] Mas um raio me parta como não te safas impune com o que queres fazer!

FILÓCLEONCom que prazer tu havias de comer um processo bem

avinagrado!

BDELÍCLEONNão tens vergonha de ter roubado essa flautista aos

convivas?

92

Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEONQual flautista? Por que raio dizes esses disparates todos,

como se tivesses caído da... tumba? [1370]

BDELÍCLEON (reparando na flautista, quase imóvel, a fazer-se passar por uma estátua)

Co’a breca, se não é a Dárdanis quem aqui tens?!

FILÓCLEONNada disso. É uma tocha que arde na ágora, em honra dos

deuses.

BDELÍCLEONCom que então uma tocha, hã?

FILÓCLEONUma tocha, nem mais! (Apontando para o meio das pernas da

flautista, que permanece imóvel.) Não vês como está rachada?

BDELÍCLEONE que coisa preta é esta que ela tem aqui no meio?

FILÓCLEONÉ a resina que escorre dela, ao arder. [1375]

BDELÍCLEONE isto aqui, do outro lado? É um cu, ou não será?

FILÓCLEONNão, olha lá com atenção! É um nó da madeira.

BDELÍCLEONMas o que é que estás para aí a dizer? Qual nó, qual quê?

(Para a flautista.) Anda cá, desce daí!

FILÓCLEONHei, hei! O que é que vais fazer?

Aristófanes As Vespas

93

Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONLevá-la daqui para fora, afastá-la de ti. Não passas de um

velho jarreta [1380] e já não te aguentas com ela.

FILÓCLEON (tentando dar a volta ao filho com uma historieta)

Pois muito bem. Agora escuta lá esta. Uma vez, em Olímpia, quando eu lá estava em delegação, o Efúdion bateu-se bem contra o Ascondas, mesmo sendo já velhote. Logo o tipo mais velho saca de um soco e deita por terra o mais novo. [1385] Depois do que te contei, é melhor teres cuidado, não vá ficares com um olho negro. (Mal acaba de falar, derruba o filho com um soco.)

BDELÍCLEON (levantando-se)Caramba! Não há dúvida que aprendeste bem a lição em

Olímpia!

Entra Mírtia, uma padeira a quem Filócleon derrubou um cesto de pão quando regressava a casa do banquete. Faz-se acompanhar de Querefonte, sua testemunha.

MÍRTIAAvança e fica do meu lado, é o que te peço, pelos deuses!

(Vê Filócleon.) Aqui está o tipo que me arruinou ao dar-me com a tocha e ao deitar ao chão [1390] dez óbolos de casqueiros, só daqui, para além de outros quatro.

BDELÍCLEON (para o pai)Estás a ver, o que tu foste arranjar? Agora vamos levar

com mais problemas e mais processos, tudo graças à tua pinga.

FILÓCLEONNada disso. Bastam umas historietas e a gente dá-lhe a

volta. Fica sabendo que eu cá consigo dar conta desta fulaninha à vontade. [1395]

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

MÍRTIA (para Filócleon)Pelas duas deusas! Não te hás-de safar cá da Mírtia, a filha

do Ancílion e da Sóstrata, depois de teres dado cabo assim da minha mercadoria.

FILÓCLEONOuve-me lá, mulher! Quero contar-te uma história que te

vai agradar.

MÍRTIAIsso é que era bom! A mim não me enganas tu, meu

amigo! [1400]

FILÓCLEONCerto dia, à tardinha, regressava Esopo a casa

depois de jantar, quando teve de aturar uma cadela desavergonhada e com os copos, que se pôs a ladrar. Logo lhe disse: “Ó cadela, cadela! Diabos me levem se não tiravas mais proveito em trocar essa tua língua malvada por umas côdeas de pão!” [1405]

MÍRTIAAinda te ris na minha cara?! Pois bem, fica sabendo

que vou fazer queixa de ti – e não me importa quem tu sejas – aos comissários do mercado, por teres desbaratado a minha mercadoria. E tenho por testemunha aqui o Querefonte.

FILÓCLEONNão, chiça! Ouve-me mas é e vê se te parece que falo bem.

Laso e Simónides, certo dia, competiam num concurso. [1410] Então disse o Laso: “Quero lá saber disso!”

MÍRTIACom que então, ele é isso, é? (Mírtia sai. Querefonte segue no

seu encalço.)

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEON (berrando para ser ouvido pelos que saem)E o mesmo vales tu para mim, Querefonte, testemunha

amarelenta de uma mulher; mais pareces uma Ino dependurada aos pés de Eurípides!

BDELÍCLEON (reparando que alguém se aproxima)Olha! Aí vem outro tipo que também parece disposto

[1415] a acusar-te. E ainda por cima traz com ele uma testemunha.

ACUSADORAi de mim, desgraçado! Vou denunciar-te, velhote, por injúria.

BDELÍCLEONInjúria?! C’um caraças, não o acuses, peço-te! Pago-te o que

te parecer justo para lhe salvar o coiro, e ainda te fico eternamente agradecido. [1420]

FILÓCLEONMas espera lá, que eu quero chegar a acordo com este

fulano, com a melhor das boas vontades. Admito que o ataquei e lhe fiz mossa. (Para o acusador.) Ora anda cá. Deixas comigo a fixação da quantia que devo pagar-te pelo que te fiz, e ficamos todos amigos, ou dita-la tu mesmo? [1425]

ACUSADORDiz tu! Eu cá não quero mais saber de processos nem acções.

FILÓCLEONUm tipo de Síbaris caiu do carro em que seguia e rachou

a cabeça que metia dó. Acontece que o gajo não era lá grande condutor. Veio depois um amigo dele que lhe disse: [1430] “Cada macaco no seu galho!” Também no teu caso, toca a andar para casa do Pítalo!

BDELÍCLEONIsso é mesmo teu: é assim que reages em relação a tudo.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

ACUSADOR (para a sua testemunha)E tu, lembra-te bem da resposta deste senhor.

FILÓCLEON (atinge o acusador na cabeça)Ouve lá, não fujas! Em Síbaris houve uma vez uma fulana

[1435] que partiu uma jarra...

ACUSADOR (para a testemunha)Tu, também és testemunha desta história!

FILÓCLEON (continuando)Logo a jarra tomou alguém como testemunha. E disse-lhe

a tal mulher de Síbaris: “Co’a breca! Melhor era se te deixasses de testemunhas e tratasses de arranjar umas ligaduras, e depressinha!” [1440]

ACUSADORIsso, sê insolente, até o Arconte chamar o teu caso a

tribunal.

BDELÍCLEON (para o pai)C’um caraças, não ficas aqui nem mais um minuto! Vou

é pegar em ti e levar-te para dentro... (Pega no pai às costas e prepara-se para sair.)

FILÓCLEONQue estás a fazer?

BDELÍCLEONO que estou a fazer? A levar-te daqui para fora. Caso

contrário, não tarda nada não há testemunhas que cheguem para a malta toda que te vem acusar. [1445]

FILÓCLEON (enquanto é carregado pelo filho para fora de cena)

As gentes de Delfos acusaram uma vez Esopo...

Aristófanes As Vespas

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Aristófanes As Vespas

BDELÍCLEONQuero lá saber disso!

FILÓCLEON…de ter gamado um vaso votivo do deus. Logo o tipo lhes

contou como, certa vez, um escaravelho...

BDELÍCLEONChiça! Ainda me desgraças, tu e os teus escaravelhos!

(Saem ambos.)

COROInvejo a boa sorte [1450] deste velho, pela mudança radical

que se operou na sua vida e nos seus hábitos. Agora, instruído noutros modos em vez dos que antes tinha, há-de realmente mudar-se para as delícias e para o luxo. [1455] Mas talvez ele não queira. É que não é coisa fácil pôr de parte a natureza que sempre nos acompanhou. No entanto, isso já aconteceu a muitos: por efeito das opiniões alheias, [1460] mudaram de facto os seus hábitos.

Conseguiu um grande elogio da minha parte e dessa gente ajuizada, graças ao seu amor para com o pai e à sua esperteza, [1465] o filho de Filócleon. É que nunca conheci um tipo tão generoso, alguém cujos hábitos me tenham comovido e derretido desta maneira. Na verdade, em que é que este rapaz, na discussão com o pai, [1470] não saiu vitorioso, quando queria apenas aliciar o seu progenitor para uma vida mais regaladinha?

XÂNTIAS (sai de casa esbaforido)C’um catano! As coisas de loucos que um deus nos fez

passar dentro de casa. [1475] Esse velhote, depois de muito tempo a enfrascar-se e a ouvir o som da flauta, fica de tal forma afectado pela coisa que se põe a dançar toda a noite aquelas modinhas antigas que Téspis costumava apresentar a concurso. E mais. Afirma que, não tarda nada, vai provar como os dançarinos trágicos de hoje não passam de velhos Cronos, [1480] desafiando-os para um pezinho de dança.

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Aristófanes As VespasAristófanes As Vespas

FILÓCLEON (saindo porta fora)Quem assim se senta à porta de casa?

XÂNTIAS (à parte)Isto, realmente, vai de mal a pior!

FILÓCLEONQue se abram estes portões! Neste momento, começa a

coreografia... [1485]

XÂNTIAS (à parte)É mas é a loucura que começa, e bem cedo!

FILÓCLEON... de balançar a anca num giro. Ui, como bufam as minhas

narinas, como estalam os meus ossos!

XÂNTIAS (à parte)Vai mas é beber a tua mezinha, vai!

FILÓCLEONFrínico agacha-se que nem um galo... [1490]

XÂNTIASNão tarda vão-te apedrejar!

FILÓCLEON... levanta uma perna até ao céu. O gajo fica de cu aberto...

XÂNTIASTem cuidado contigo!

FILÓCLEONComo rodopiam ágeis as articulações destas ancas! [1495]

Não está bem assim?!

Aristófanes As Vespas

99

Aristófanes As Vespas

XÂNTIASNão está não, caramba! Isso é coisa de gente maluca.

FILÓCLEONVá! Deixa-me fazer um apelo e chamar os meus adversários.

(Para os espectadores.) Se algum dos trágicos se gaba de ser bom dançarino, que venha para aqui agora e dance comigo. Alguém responde? Ninguém?!

XÂNTIAS (reparando que chega um dançarino vestido de caranguejo)

Só aquele tipo ali. [1500]

FILÓCLEONMas quem é este miserável?

XÂNTIASO filho de Cárcino, o do meio.

FILÓCLEONPois muito bem. Então ele há-de ser papado! Vou destruí-

lo com o estilo do meu passo de dança. No que toca a ritmo, ele não dá uma para a caixa.

XÂNTIAS (quando entra um segundo dançarino)Ó meu desgraçado! Olha que já aí vem outro trágico filho

de Cárcino, [1505] irmão do primeiro.

FILÓCLEONC’um catano! Já arranjei para o tacho!

XÂNTIASNão arranjaste não, caramba! Não mais que três caranguejos.

É que já aí vejo outro tipo da mesma família dos Cárcinos. (Entra um terceiro dançarino.)

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Aristófanes As Vespas

FILÓCLEONMas que raio de coisa é esta que se arrasta para aqui? Uma

lagosta ou uma tarântula?

XÂNTIASEste aqui é o crustáceo mais pequeno da família, [1510] o

caçula, o que faz tragédias.

FILÓCLEONÓ Cárcino! Felicito-te pelas tuas crias. Que praga de

passarinhos voadores se abateu sobre nós! (Para Xântias.) Bem, chegou a hora de competir com eles. Tu, prepara-lhes uma salmoura, caso eu saia vencedor. [1515]

COROVamos! Toca a dar à perna por um bocadinho, todos nós,

para ajudar à festa e para que estes possam rodopiar, à vontade, à nossa frente. (O coro divide-se em dois semi-coros. Um deles rodeia Filócleon e o outro os filhos de Cárcino. Ambos os grupos mostram as suas habilidades na dança.)

Vá, ilustres crias do Senhor dos Mares! Dançai na areia [1520] e na praia do mar não vindimado, ó irmãos dos camarões! Façam girar com rapidez os vossos pés, que cada um mande pontapés à moda de Frínico, de modo que os espectadores, ao verem a perna [1525] ir ao ar, soltem os seus “oh-op!” Toca a girar, dança em círculo e bate na barriga. Manda uma perna ao ar, perde-te em piruetas! [1530] (Entra uma última figura vestida de caranguejo, representando o próprio Cárcino.) Aí está o vosso pai, o senhor absoluto das marés em pessoa, todo inchado pelos filhos que tem, os três dançarinos.

E agora, se vos agrada, deixai-nos sair a dançar, [1535] e depressa! É que nunca antes alguém se atreveu a semelhante proeza: terminar com danças um coro de comédia.

A dança prolonga-se durante alguns segundos. Saem todos.