ANTIGO REGIME NO BRASIL, 1643-1713 - Pronunciamento de Lançamento na UFRRJ

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Pronunciamento de abertura do lançamento na UFRRJ do livro ANTIGO REGIME NO BRASIL, 1643-1713” – Alexander Martins Vianna Exclusivamente para Academia.edu 1 Primeiro Lançamento ocorrido na UFRRJ, em 17 de junho de 2015, 16h-19h, no Auditório Paulo Freire, do livro ANTIGO REGIME NO BRASIL: SOBERANIA, JUSTIÇA, DEFESA, GRAÇA E FISCO, 1643-1713. Pronunciamento de abertura do evento, proferido por Alexander Martins Vianna (autor). Boa tarde! Gostaria de agradecer a todos que prestigiam este evento com sua presença. Pretendo dividir a minha exposição em três partes (e não exceder a 40 minutos): na primeira parte, abordo o sentido crítico da função histórico-formativa do livro, referindo-me à ética historiográfica que o molda e ponderando o seu modelo de leitor/ouvinte, que é o estudante de graduação de História; na segunda parte, busco localizar o livro no campo crítico da Historiografia Brasileira sobre Antigo Regime no Brasil, que vem se formando desde meados da década de 1990, mas também demarco a sua distinção no interior deste campo crítico historiográfico, particularmente considerando a modalidade de História Social das ideias e das práticas político- institucionais que pratico na concepção dos seus subtemas (soberania, justiça, defesa, graça e fisco); por fim, exponho a natureza do corpus documental da pesquisa, as suas possibilidades de uso e como foi explorado para a concepção da espinha dorsal do livro, apresentando também o contexto institucional de formação de seu papel no Conselho Ultramarino como expressão social, cultural e política de ritos recursais entre poderes locais e centrais ao modo do ethos social corporatista-estamental do Antigo Regime. ***

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Pronunciamento de abertura do lançamento na UFRRJ do livro “ANTIGO REGIME NO BRASIL, 1643-1713” – Alexander Martins Vianna

Exclusivamente para Academia.edu

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Primeiro Lançamento ocorrido na UFRRJ, em 17 de junho de 2015, 16h-19h, no Auditório Paulo Freire, do livro ANTIGO REGIME NO BRASIL: SOBERANIA, JUSTIÇA, DEFESA, GRAÇA E FISCO, 1643-1713. Pronunciamento de abertura do evento, proferido por Alexander Martins Vianna (autor).

Boa tarde! Gostaria de agradecer a todos que prestigiam este evento com sua

presença. Pretendo dividir a minha exposição em três partes (e não exceder a 40

minutos): na primeira parte, abordo o sentido crítico da função histórico-formativa do

livro, referindo-me à ética historiográfica que o molda e ponderando o seu modelo de

leitor/ouvinte, que é o estudante de graduação de História; na segunda parte, busco

localizar o livro no campo crítico da Historiografia Brasileira sobre Antigo Regime no

Brasil, que vem se formando desde meados da década de 1990, mas também demarco

a sua distinção no interior deste campo crítico historiográfico, particularmente

considerando a modalidade de História Social das ideias e das práticas político-

institucionais que pratico na concepção dos seus subtemas (soberania, justiça, defesa,

graça e fisco); por fim, exponho a natureza do corpus documental da pesquisa, as suas

possibilidades de uso e como foi explorado para a concepção da espinha dorsal do

livro, apresentando também o contexto institucional de formação de seu papel no

Conselho Ultramarino como expressão social, cultural e política de ritos recursais entre

poderes locais e centrais ao modo do ethos social corporatista-estamental do Antigo

Regime.

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Posso dizer que meu livro é a síntese de uma trajetória que associa experiência

de pesquisa em História Moderna com ensino de História Moderna no Magistério

Superior. Chegar a esta forma de livro esteve muito ligado a exercitar a minha escuta

dos alunos de graduação de História dos terceiro e quarto períodos, desde 2002

(FEUDUC e UFRRJ), e dos alunos de Relações Internacionais do primeiro período, desde

2010 (UFRRJ). Tratou-se de exercitar uma escuta preocupada em fazer os resultados

de uma trajetória de pesquisa falar para além dos colegas especializados.

Exercitar tal escuta esteve, portanto, implicado em mudar os subentendidos:

aquilo que eu não precisaria explicar para um colega especializado, preciso fazê-lo para

um aluno de graduação em primeiro contato com a matéria. Se todo discurso é

estruturalmente dialógico, o meu modelo de ouvinte, por excelência, é o aluno de

graduação de História – e, colateralmente, os alunos de Relações Internacionais,

Ciências Sociais e Direito.

Todavia, vocês podem perguntar: O que tais modelos de ouvinte teriam de

comum interesse na relação com meu livro? Os temas da formação, ethos social,

lógicas e dinâmicas institucionais do Estado (no Antigo Regime). Outra pergunta

plausível seria por que considero tão importante lembrar esta aderência de interesse

temático para nossos alunos de História, RI, Ciências Sociais e Direito. Ora, porque a

espinha dorsal temática do livro – abordado por meio dos subtemas Soberania, Justiça,

Defesa, Graça e Fisco – é a figura do Estado europeu e a sua projeção institucional para

espaços coloniais não-europeus antes do liberalismo. Eu consideraria uma grande

vitória cultural deste livro se nossos alunos saíssem de suas páginas com o

entendimento de que a figura do Estado não é uma só ao longo do tempo; ou seja, se

conseguíssemos desnaturalizar ou estranhar o uso de categorias liberais para a

construção de entendimento sobre as figuras de Estado anteriores ao

constitucionalismo liberal.

Por outro lado, não posso deixar de confessar que a forma de conduzir a feitura

deste livro também está implicada com uma ética historiográfica, que considero

plenamente representada por um comentário feito ao livro, na página virtual da

Livraria Cultura, por Ana Cristina de Souza (minha irmã por escolha do coração). Cito:

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Para quem gosta de História do Brasil, eis um exemplo de livro que enfatiza a descontinuação,

que desmonta a "síndrome de vira-lata" da historiografia da Guerra Fria e nos devolve à

complexidade dinâmica do passado colonial como algo estranho ao nosso presente, embora

também constituidor dele e ligado ao Antigo Regime europeu. Dessa estranheza sobre o

passado, nasce a consciência da singularidade do presente, o entendimento de que vida não é

destino, linha contínua e confirmação do espelho. Conhecer é estranhamento – é isso que este

livro nos provoca! Precisamos olhar nosso passado com estranhamento, para que o presente

não seja encarado como destino, como uma espécie de "desde sempre"(...). Vemos o ranço da

historiografia do século XIX ser efetivamente superado em suas páginas, mas também o desafio

de revisar a historiografia recente, fazendo novas perguntas sobre fontes antigas (...). Assim,

embarcar em seus desafios é uma grande viagem sem destino (...).

Eu completaria esta fala generosa de Ana Cristina de Souza dizendo que é

preciso encarar “nosso passado” como “não nosso”, pois falar em “nosso passado

colonial” já seria inscrever a História Colonial do Brasil numa teleologia de História

Nacional, tanto quanto o “Gregório de Mattos Guerra” exaustivamente estudado por

João Adolfo Hansen também não faz parte da Literatura Nacional.

O comentário de Ana tem a generosidade laudatória característica da amizade,

mas, em todo caso, vai no âmago da ética historiográfica contida na concepção do

livro. A sua aguda micro-resenha revela o livro para si mesmo: na sua justa dimensão

ético-historiográfica, o livro está criticamente preocupado com uma percepção de

mundo muito imediatista-presentista, novidadeira, consumista e mercadológica, que

forma ethos de muitos sujeitos contemporâneos que acabam não desenvolvendo uma

densa capacidade histórico-comparativa, o que é fundamental para o próprio presente

não ser encarado como “destino”, como o “desde sempre” conformista que Ana

denuncia. Além disso, o seu comentário evidencia que a narrativa do livro pode ser

implicada com uma consciência histórica preocupada em combater o hábito de se

inventar Idades de Ouro contrastativas com o presente, que tanto idealizam o passado

quanto criam relações de causalidades (ou paralelos tipológicos) entre passado e

presente bastante simplificadores (e consoladores).

Diferentemente dos monarquistas atuais que surpreendentemente têm se

interessado por meu livro – talvez seduzidos pelos efeitos da arte da capa, vai se

saber!... –, este livro não vai mostrar o monárquico Brasil do Antigo Regime como um

mundo mais simples e melhor (aos meus olhos, fica difícil sustentar um idílio de

passado com escravidão, racismo e patriarcalismo estamental). O passado figurado em

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suas páginas é algo que pode ser bem distante e distinto das expectativas atuais tanto

de monarquistas quanto de republicanos, particularmente na forma como se entende

o que seja corrupção na esfera administrativa numa configuração institucional que é

estruturalmente linhagista e patrimonial-estamental, ou seja, sem funcionalismo

público burocrático – i.e., sem separação entre os meios administrativos e os

patrimônios (e prestígio social estamental) dos agentes da administração.

A ausência de um funcionalismo público burocrático não significa a ausência da

noção de coisa pública ou de bem comum. Trata-se de uma forma Antiga e, portanto,

não liberal-constitucional, de conceber a administração dos fatores e atores

administrativos que ultrapassam os espaços domésticos de poder patriarcal das elites

nobres e não-nobres do Antigo Regime. A administração do bem comum, em nome do

poder soberano da Coroa Portuguesa, dependia do interessado comprometimento

material e imaterial das elites locais para que pudesse existir. Isso fica enfaticamente

caracterizado nas partes do livro dedicadas à defesa, ao fisco e à figuração do súdito

servidor ideal para os ouvidos do poder soberano nos ritos recursais do Conselho

Ultramarino.

Na dinâmica formativa específica do Estado na Idade Moderna, há um ethos de

serviço característico da lógica hierárquica estamental das relações de mercês no

Antigo Regime, que é o antítipo histórico-sociológico das dinâmicas, ethos e lógicas do

funcionalismo público burocrático dos Estados contemporâneos. Disso decorre que

não há uma espécie de corrupção administrativa endêmica “característica da História

do Brasil desde a Colônia” (a “síndrome de vira-lata” criticada por Ana), pois muito

do que se pensava ser “característico de Brasil desde a Colônia” percebe-se, agora,

como constitutivo do Antigo Regime desde a Europa. Constatar isso é importante, pois

joga mais luz sobre a necessidade de se entender o que é historicamente específico da

formação do Estado no Brasil durante a ordem liberal configurada entre 1824 e 1930.

Como historiadores, temos um compromisso ético de combater percepções

causais simplificadoras sobre a relação entre passado e presente, tendo ampla

consciência dos efeitos de presente e de passado que construímos, em nossa

consciência, por meio da linguagem utilizada nos estudos históricos. Por isso, é bom

deixar claro que os recortes temáticos e a abordagem formadora do meu livro estão

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completamente desinvestidos de teleologias dos tipos: “formação do Estado

Nacional”, “exploração fiscal e luta pela independência” ou “diagnóstico estrutural de

longa duração das razões do subdesenvolvimento nacional”. À luz da primeira década

bibliográfica de produções historiográficas sobre Antigo Regime no Brasil, quase tudo

que se tentava jogar como formativo do Brasil desde a Colônia está sendo recolocado,

hoje, na conta da ordem liberal que se (de)forma entre 1824 e 1930. Por isso,

considerando os seus potenciais efeitos especulares comparativos, considero que

este livro indiretamente colabora com os estudos sobre o Brasil oitocentista.

Abrir mão de antigas premissas teleológicas que formavam as perspectivas

sobre passado colonial na historiografia do Brasil entre as décadas de 1920 e 1990 não

significa ignorar a relação assimétrica (e conjunturalmente conflituosa em matérias

fiscais) entre a Corte Portuguesa e as suas Conquistas ou Estados extra-europeus, mas

sim lembrar a complexidade dessas relações e as suas dinâmicas historicamente

mutáveis de configuração das cadeias de comando, direitos e autoridade que

formavam o corpo político da Coroa Portuguesa. Para tanto, durante a pesquisa, foi

fundamental abrir mão do uso, para o passado colonial do Brasil, de categorias

sistêmicas da economia política e do constitucionalismo liberal, para então se pensar a

dinâmica formativa específica daquilo que era visto como uma única coisa na

diversidade de suas partes: a Monarquia Portuguesa restaurada e reestruturada em

sua rede de corpos de privilégios ao longo da segunda metade do século XVII.

Para se afirmar nessa direção, a construção do livro esteve, portanto, implicada

com um combate contra determinados hábitos acadêmicos de abordagem sobre

História Colonial do Brasil, o que explica a necessidade de um capítulo dedicado à

Caracterização do Estado no Antigo Regime, que é, ao mesmo tempo, um

experimento de pesquisa, um combate historiográfico e um resultado de diálogos em

sala de aula, pois foi concebido para servir como uma primeira leitura sobre um

assunto que sei ser abrangente e difícil de ser abordado na graduação, particularmente

perante o desafio de aproximarmos do vocabulário político, das expectativas e das

concepções sobre justiça, soberania, poder político e instituições anteriores tanto ao

ethos da igualdade civil quanto à visão sistêmica não-providencialista da economia

política liberal.

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Nesse seu combate historiográfico, o livro não está sozinho: colabora com uma

tendência crítica na historiografia brasileira que emerge com força no campo

acadêmico da segunda metade da década de 1990, ao mesmo tempo em que se

distingue, dentro dessa tendência, em relação às formas de história social que se vem

praticando desde então. Para não me estender demais, vou traçar um breve panorama

resumido do nicho historiográfico no qual o livro se situa.

***

A partir da segunda metade da década de 1990, emergiu uma historiografia

brasileira sobre Brasil Colonial interessada em revisar as grandes chaves críticas

centradas nos temas “pacto colonial” ou “antigo sistema colonial”. Com foco de

interesse em poder político, instituições, soberania, governações, fiscalidade,

estruturas e relações sociais, tal revisionismo tendeu a considerar que a modelização

teórica centrada em “antigo sistema colonial” ou “pacto colonial” estava marcada pela

projeção, às experiências do passado, das categorias e concepções sistêmicas liberais

relativas à economia política, ao constitucionalismo no direito e à subordinação

econômica neocolonial.

Antes da onda revisionista historiográfica que redundará na Historiografia

sobre Antigo Regime no Brasil, havia o interesse crítico-diagnóstico específico da

historiografia brasileira sobre Brasil Colonial em explicar, particularmente depois da II

Guerra Mundial, as razões estruturais do subdesenvolvimento do Brasil e de contar a

história do país nos marcos críticos de uma teleologia da independência econômica

e/ou política. Podemos falar que isso era o seu tácito compromisso ético-

historiográfico, não mais presente na Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil.

A Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil inaugura uma virada crítico-

historiográfica brasileira que ainda não foi suficientemente diagnosticada, talvez por

ser um fenômeno ainda muito recente. Eu a entendo como relacionada, no Brasil, a

diálogos com a revisão de abordagens, objetos e questões historiográficas europeias

focadas em compreender a singularidade histórica das estruturas e dinâmicas

institucionais e sociais do Antigo Regime, o que significou uma grande guinada na

forma de abordar o tema da Formação do Estado Moderno.

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Tal historiografia europeia remonta à década de 1980 e esteve preocupada em

superar a projeção, para a História Europeia entre os séculos XIII e XVIII, de categorias

de percepção e avaliação formadas pelo telos crítico de modernidade quando

abordava temas relacionados à cultura, sociedade, leis, direitos, economia, práticas

sociais, sociabilidade, pensamento, representações de poder, padrões de legitimidade

política, parâmetros de autoridade social e dinâmicas institucionais. O telos crítico de

modernidade questionado pela virada crítica europeia sobre Antigo Regime na década

de 1980 foi aquele orientado por um paradigma de narrativa historiográfica formado

pela premissa tácita da inevitabilidade do Estado Nacional, do capitalismo, da

secularização do pensamento ou do imperativo individualizante liberal-emancipatório

da igualdade civil.

Os efeitos desse diálogo revisionista nos estudos brasileiros sobre instituições e

formas sociais ibero-americanas entre os séculos XVI e XVIII manifestaram-se no

mercado editorial brasileiro na virada para os anos 2000, depois de uma frutuosa

emergência de artigos, teses e dissertações com o mesmo viés revisionista na segunda

metade da década de 1990. Em 2001, pela primeira vez no mercado editorial

brasileiro, foi publicada uma coletânea de estudos coloniais sobre Império Marítimo

Português em que a palavra-chave Antigo Regime aparecia no título da obra1. Trata-se

de “Antigo Regime nos Trópicos”(2001).

Assim, podemos falar da emergência (no pós-Guerra Fria) de uma

Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil2 como antítipo das premissas sistêmicas

1Permitam-me expressar uma constatação em termos de História da Historiografia do Antigo Regime no Brasil: ao

analisar os bancos de teses e dissertações das principais instituições públicas brasileiras entre 1995 e 2000, só há uma incidência de dissertação e/ou tese que utilizou em seu título o termo Antigo Regime como demarcador de distintividade de abordagem. Trata-se de: VIANNA, Alexander Martins. O ideal e a prática de governar: O Antigo Regime no Brasil Colonial (Diss.). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2000. Recentemente, este trabalho foi retomado, aperfeiçoado e ampliado pelo autor, redundando no presente livro. Ver: VIANNA, Alexander Martins. Antigo Regime no Brasil: Soberania, Justiça, Defesa, Graça e Fisco (1643-1713). Curitiba: Prismas, 2015. 2Para efeito de amostragem, ver: FRAGOSO, João et alii. O Antigo Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Na encruzilhada do império: Hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro, 1650-1750. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de Governar: Ideias e Práticas políticas no Império Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005; BICALHO, Maria Fernanda et alii. Culturas Políticas. Rio de Janeiro: Mauad, 2005; ABREU, Martha et alii. Cultura política e leituras de passado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas. São Paulo: Alameda, 2008; SCHWARTZ, Stuart B. et alii. O Brasil no Império Marítimo Português. São Paulo: EDUSC, 2009; RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, 1530-1630. São Paulo: Alameda, 2009; MONTEIRO, Rodrigo Bentes et alii. Império de várias faces. São Paulo: Alameda, 2009; MELLO E SOUZA, Laura de et alii. O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009; FRAGOSO, João et alii. Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização

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econômicas e sociológicas dependentistas e subdesenvolvimentistas que tiveram em

Fernando Novais um de seus índices-pináculo hegemônicos depois da publicação, em

1978, da tese “Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808”. É no

lugar específico de interlocução e formação desse novo campo historiográfico

brasileiro focado em novas abordagens sobre poder político, instituições, soberania,

governações, estruturas e relações sociais no Brasil Colonial que o meu livro se situa.

Contudo, o meu livro não participa de algumas simplificadoras polarizações

críticas contra as teses de Fernando Novais. Pelo contrário, reconhece que, antes de a

onda revisionista da Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil polarizar o debate

com as teses de Fernando Novais, criando cortina de fumaça sobre a tradição crítica

que o antecedia e da qual ele também fazia parte, poderíamos tipologicamente

balizar, tal como sugere Arno Wehling3, com Oliveira Vianna e Raymundo Faoro o

campo crítico da historiografia brasileira entre 1920 e 1970 dedicada a abordar

especificamente, tal como no meu livro, a relação entre poder político, instituições e

sociedade no Brasil Colonial.

Um dos efeitos da polarização crítica com as teses de Fernando Novais foi

obscurecer o fato de que a Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil aproximar-

se-ia muito mais do campo crítico de Raymundo Faoro, em “Os Donos do Poder”, por

pretender atenuar a premissa institucional-etológica da singularidade colonial ao

modo de Oliveira Vianna, em favor da abordagem centrada no teste adaptativo da

transferência das instituições e das lógicas estamentais-patrimonialistas ibéricas ao

Novo Mundo. No entanto, duas importantes diferenças estruturais devem ser

assinaladas:

a Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil está marcada por fragmentados estudos focais,

abrindo mão de uma leitura sociológica de síntese estrutural de longa duração na definição de

hipóteses sobre a formação das dinâmicas institucionais e o papel das elites brasileiras na

política desde a colônia até o Brasil contemporâneo;

a Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil deliberadamente tenta se livrar do peso dos

coeficientes de criticidade liberais que ainda formavam o modo como Raymundo Faoro

construía julgamento histórico ao deslocar as categorias sociológicas weberianas para sua

Brasileira, 2010; GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Mauad, 2011; MONTEIRO, Rodrigo Bentes et alii. Raízes do Privilégio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; FRAGOSO, João et alii. Monarquia Pluricontinental, sécs. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad, 2012. 3WEHLING, Arno. O Estado Colonial na Obra de Oliveira Vianna. In: BASTOS, Elide Rugai et alii. O pensamento de

Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993. p.63-81

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leitura social de longa duração a respeito da formação política e social das elites do Brasil em

seus diversos momentos de tensão e aliança com os polos de soberania (em Portugal ou no

Brasil) ao longo de quatro séculos de História do Brasil.

Portanto, a forma de Raymundo Faoro pensar o contínuo histórico-sociológico

das elites brasileiras por meio da categoria patrimonialismo4 ainda estava moldada

pelo empenho ético-diagnóstico (no caso dele, liberal) característico da historiografia

brasileira voltada à questão propositiva da superação do subdesenvolvimento.

Contudo, o efeito dessa ênfase no contínuo histórico-sociológico de um suposto

patrimonialismo ibérico como traço formador da relação entre poderes centrais e

poderes locais foi a atenuação da diferença histórica efetiva como meio de percepção

dos fatores que tornavam distintas as dinâmicas institucionais e jurídicas, as relações

sociais, as organizações econômicas e os dispositivos fiscais no Brasil durante o

Antigo Regime. Para Raymundo Faoro, crítico ao centralismo varguista, a ordem

constitucional liberal e urbanizada simplesmente foi descontinuada ou incompleta

depois da independência. O modelo de ordem constitucional liberal e urbanizada que

ele tinha em mente era o norte-americano.

Considerando isso, podemos constatar que, ao pretender acentuar a

singularidade histórica do mundo das instituições e das relações sociais dos impérios

coloniais anteriores ao constitucionalismo liberal e à economia política, a

Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil rompeu com as premissas do contínuo

histórico-sociológico patrimonialista ao modo de Raymundo Faoro, sendo menos

historicamente dedutiva no uso de conceitos sociológicos, econômicos e

antropológicos. Para tanto, desenvolveu interlocuções acadêmicas específicas que

4Embora Raymundo Faoro parta das categorias sociológicas de Max Weber para refletir sobre a persistência do

“patrimonialismo” como um traço formativo do Estado Brasileiro, faz uma apropriação dos conceitos que não segue as mesmas expectativas críticas dos tipos ideais de estruturas de poder de Weber. Resumidamente, podemos dizer que, ao ter como objeto de sua crítica a experiência do Estado Novo e como coeficiente de legitimidade o aparato institucional do liberalismo constitucional norte-americano, Faoro pensa “patrimonialismo” como forma estrutural de corrupção do Estado por meio de famílias de grandes potentados que se apossariam dos dispositivos estatais para potencializar e projetar as suas esferas domésticas de poder. Nesse sentido, a “estrutura centralizadora” do Estado metropolitano não concorreria necessariamente com os poderes locais, não sendo algo “externo” ou artificial em relação às formações geográficas dos poderes locais; pelo contrário, esses poderes locais disputariam entre si a ocupação desse aparato, o que é coerente com o modelo analítico que Faoro também desenvolve ao pensar o Estado Novo como resultado da cisão ou crise intra-oligárquica da República Velha. Enfim, Faoro caracterizaria o “patrimonialismo” como a fusão corrupta dos meios da administração pública com o patrimônio doméstico dos agentes da administração, o que impediria a formação social de um ethos liberal efetivo de distinção entre o bem comum e a esfera doméstica de autoridade patriarcal. Por esse viés, o “patrimonialismo” seria o ethos da corrupção formativa do Estado Brasileiro, cuja origem remontaria à própria formação do Estado Português, sendo muito mais um traço formativo ibérico do que uma singularidade colonial.

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considero determinantes das suas principais características de temas, abordagens e

questões para a História do Brasil Colonial, a ponto de podermos falar de uma nova

historiografia em que o termo “Colonial” cede lugar a “Antigo Regime” como palavra-

chave no campo acadêmico de estudos sobre poder político, instituições, estruturas e

relações sociais nos estados brasílicos da Coroa Portuguesa antes de 1808.

Sem pretensão de ser absolutamente exaustivo, destaco nas publicações

brasileiras de coletâneas e livros, entre 2001 e 2012, algumas recorrências de

interlocuções5 que formaram possibilidades de abordagens que reconfiguraram o

modo de conceber questões e objetos na história político-administrativa e social do

Brasil Colonial: (1) a sociologia da dádiva de Marcel Mauss, por meio dos estudos de

Bartolomé Clavero sobre a etologia das mercês e das práticas econômicas e

fazendárias no Antigo Regime; (2) a relação entre história e antropologia na

abordagem economia moral (em contraposição à economia política) de E. P.

Thompson, para se entender padrões coletivos de conflitos e negociações jurídicas em

sociedades tradicionais; (3) a antropologia pós-funcionalista e pós-estruturalista de

Fredrik Barth, particularmente os estudos de identidade, mobilidade, hierarquia,

relações e redes sociais por meio da trajetória e genealogia de indivíduos-pivô e/ou

famílias, parentelas ou linhagens; (4) os estudos específicos de social agency da

história social das elites administrativas ibéricas, desenvolvidos particularmente por

5Exemplos de interlocuções teórico-metodológicas e de abordagens mais recorrentes na Historiografia sobre

Antigo Regime no Brasil entre 2001 e 2012: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001; CLAVERO, Bartolomé. Antidora. Milano: Giuffrè Editore, 1991; THOMPSON, E.P.. Senhores e Caçadores. São Paulo: Paz e Terra, 1997; THOMPSON, E.P.. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; CERUTTI, Simona. La ville et les métiers: naissance d’un langage corporatif (Turin, 17

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e siècle. Paris: Gallimard, 1989; HESPANHA,

António Manuel (org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982; HESPANHA, António Manuel(org.). Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993; HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: Instituições e poder político, Portugal – séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994; HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europea: Síntesis de un Milénio. Madrid: Tecnos, 1998; GREENE, Jack. Negotiated Authorities. Virginia: University of Virginia Press, 1994; GUERRA, François-Xavier. L’État et les communautes: Comment inventer un empire? In: GRUZINSKI Serge; WACHTEL, Nathan (dir.). Le Nouveau Monde. Mondes Nouveaux: L’expérience américaine. Paris: ERC et Ed. EHESS, 1996. p.351-364

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Nuno Gonçalo Monteiro por meio das trajetórias de indivíduos, famílias e linhagens;

(5) a apropriação das leituras que Karl Polanyi fez de Marcel Mauss para criticar a

universalização geográfica e histórica no uso de concepções e categorias da economia

política liberal; (6) o viés específico de micro-história em Giovanni Levi, com seu estudo

social de trajetória biográfica que enfatizava a necessidade de ideias e práticas

econômicas não serem abstraídas das práticas sociais e dos recursos imateriais

sancionados pelos atores sociais; (7) a renovação crítica da história do direito e das

instituições capitaneada por Antônio Manuel Hespanha desde a década de 1980; (8) a

abordagem constitucionalista de “autoridades negociadas” de Jack Greene; (9) os

estudos sobre a complexidade das relações entre poderes locais e centrais

corporatistas6 na América Colonial à luz da obra de François-Xavier Guerra.

Em todos esses diálogos, parecia haver um esforço conjunto de superar o

modelo dependentista diádico “Metrópole/Colônia” da abordagem antigo sistema

colonial e, por meio de vários estudos focais de trajetórias de indivíduos, famílias ou

grupos sociais, tal virada historiográfica passou a enfatizar tematicamente: (1) as

táticas e as estratégias negociadas de autoridade social e política na rede imperial

durante o Antigo Regime; (2) as formas sociais e estratégias de ascensão ou

mobilidade social-racial-geográfica na malha colonial durante o Antigo Regime; (3) a

casuística jurídico-administrativa corporatista, estamental e flexível de acomodação de

conflitos de interesses, de jurisdições e de mobilidade social-racial-geográfica nas

malhas do império; (4) as representações de autoridade soberana, mediação de

soberania e de pertencimento ao corpo político; (5) a participação e interferência das

elites coloniais nas alianças e acordos da Coroa Portuguesa; (6) a dimensão antidoral

dos vínculos fiscais-financistas e de serviços das elites formativas das malhas de

governações da Monarquia Portuguesa; (7) as práticas de mercês como lastros de

coesão social e política do Império Marítimo Português; (8) as formas de governações

ou os modos de governar, considerando as redes familiares durante o Antigo Regime;

6Aqui, uso “corporatista”, em vez de “corporativismo” ou “corporativista”, pois estes últimos insurgem como uma

matriz de crítica antiliberal nos séculos XIX e XX. Portanto, “corporativismo” é um conceito antitético assimétrico em relação ao conceito “liberalismo”. Sobre esta discussão, ver: DOYLE, William. O Antigo Regime. São Paulo: Ática, 1991.p.9-25; MARTINHO, Francisco Carlos et alii. Os intelectuais do Antiliberalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Nesse sentido, com “corporatista” (ou “corporatismo”) quero afirmar a singularidade histórico-sociológica (estamental-patrimonial), etológica e cultural da dinâmica e concepção de causalidade sobre leis, poder político, justiça, autoridade social, soberania, estrutura e relações sociais na Europa (e suas esferas coloniais) entre os séculos XV e XVIII.

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(9) as redes clientelares das parentelas patriarcais e os efeitos da economia das mercês

na configuração dos negócios, governações, circulações de bens e indivíduos no

interior do Império Marítimo Português; (10) a natureza mutável, pragmática e

multifacética dos vínculos hierárquicos de subordinação de privilégios dos atores

institucionais e sociais no interior do Império Marítimo Português.

Diferentemente do que pretendeu veicular uma reação simplificadora às

revisões críticas da Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil7, esta não visou a

negar a diferença hierárquica entre Reino e Conquistas – e as constantes tensões (e

ajustes de tensões) entre interesses locais e centrais em matérias fiscais –, mas sim

penetrar na dinâmica mutável das redes de privilégios dos diferentes corpora que se

agregavam, ao longo do tempo, para a formação do corpo político da Coroa

Portuguesa, cujo poder soberano, como em qualquer Estado no Antigo Regime, seria o

tutelador-mor da rede mutável de privilégios que configurava vínculo ao corpo político

dos súditos (reinóis ou não) da Monarquia Portuguesa.

A rigor, chegando-se a tal percepção, já estamos falando da abordagem central

que permeia os principais subtemas de meu livro. Daí, como parte final de minha

exposição, gostaria de abordar as minhas relações com as fontes, pois nisso me

diferencio no campo da Historiografia sobre Antigo Regime no Brasil quanto à forma

de história social das ideias e práticas de governar que desenvolvi a partir do contato,

entre 1996 e 2000, com os arquivos do Conselho Ultramarino na Biblioteca Nacional

do Rio de Janeiro. Inicialmente, vamos passar por uma breve síntese sobre a criação,

as prerrogativas e a função do Conselho Ultramarino, para constituirmos uma

compreensão do contexto institucional do corpus documental utilizado na pesquisa e,

por fim, vamos medir as suas possibilidades de uso para os problemas da pesquisa que

formam o coração do meu livro.

***

O Conselho Ultramarino, como qualquer conselho régio, deveria mediar o

“ouvido régio” como última instância deliberativa sobre assuntos específicos. A sua

criação foi a primeira grande medida institucional pós-Restauração da Monarquia

Portuguesa visando à focalização administrativa, judicial e fiscal num único conselho

7Ver o exemplo de: PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: Poder e política na Bahia colonial, 1548-1700. São Paulo:

Alameda, 2013.

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das matérias dos Estados e Conquistas fora do Reino de Portugal (na verdade, “as

coisas da Índia, Brasil e Angola...”8, pois a sua jurisdição recursal não abarcaria a costa

oriental da África e as Ilhas de Açores e Madeira9). O Conselho Ultramarino recebeu

decreto régio sobre seu regimento em 14 de julho de 1643, embora o regimento

datasse de 14 de julho de 164210. Esta ambígua datação documental cria, até hoje,

dúvidas sobre a sua criação em 1642 ou 1643. Para os marcos cronológicos de meu

livro, é a datação do decreto régio que serviu como parâmetro.

Segundo o decreto régio sobre seu regimento de criação, o Conselho

Ultramarino seria composto por um presidente de alta nobreza (conde ou acima

disso), dois conselheiros de capa e espada (nobres de espada) e um conselheiro letrado

(nobre de ofício)11. Essa configuração funcional não guardava propriamente inovação

em relação ao Conselho das Índias do período filipino. Os detalhes novos se referiam

aos seguintes pontos: a fazenda que agora viesse ao reino seria administrada pelo

próprio Conselho Ultramarino; competiria ao Conselho Ultramarino a consulta das

naus que deveriam ir às conquistas e do tempo de sua partida; também poderia exigir

de seus capitães relatos sobre suas percepções das armas e gentes das terras; ficaria

excetuado do provimento dos cargos eclesiásticos (matéria da Mesa de Consciência e

Ordens). Depois de sua criação, ficavam vedados aos demais tribunais da Corte os

negócios atribuídos ao Conselho Ultramarino, sejam por costume, regimento, alvarás

ou provisões12.

O Conselho Ultramarino deveria ter desembargadores próprios, mas,

inicialmente, as suas atividades não ganharam a especialização necessária, pois os seus

desembargadores eram os mesmos do Conselho da Fazenda – muitos dos quais sem

8BN, CEHB, nº. 5806, Cod. n.º 714-8, C222 Brasil. Expos. 1doc. 4fls

9Ver: CAETANO, Marcelo. O Conselho Ultramarino: Esboço da sua História. Lisboa: Agência Geral do Ultramar,

1967. 10

Há um traslado de decreto e regimento do Conselho Ultramarino na Biblioteca Nacional (RJ). Ver: BN, CEHB, nº. 5806, Cod. n.º 714-8, C222 Brasil. Expos. 1doc. 4fls 11

No decreto régio de criação do Conselho Ultramarino, são definidos ordenados para seus desembargadores e oficiais de serventia. No entanto, inicialmente, segundo o decreto, os recursos para tais ordenados seriam consignados na “Alfândega de Lisboa ou uma de suas casas de direito”. Os ordenados previstos no decreto de 1643 foram hierarquizados da seguinte forma: Presidente (400.000 réis por ano); Conselheiros (300.000 réis por ano); secretário (300.000 réis por ano); porteiros (30 mil réis cada um por ano). Ver: BN, CEHB, nº. 5806, Cod. n.º 714-8, C222 Brasil. Expos. 1doc. 4fls. 12

Ver: CAETANO, Marcelo. O Conselho Ultramarino: Esboço da sua História. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1967; MYRUP, Erik Lars. Governar a distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino, 1642-1833. In: SCHWARTZ, Stuart B. et alii. O Brasil no Império Marítimo Português. São Paulo: EDUSC, 2009. p.263-298

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experiência no ultramar13. Entretanto, no último quarto do século XVII, ou seja, depois

das experiências da Restauração de Pernambuco (1654) e do reconhecimento da

independência do Reino de Portugal (1668), já é possível observar a marcante

especialização do Conselho Ultramarino como instância recursal, com grande foco de

interesse nas matérias do Brasil em sua interface com a África e a Ásia14. Na virada

para o século XVIII, o Conselho Ultramarino já era um tribunal poderoso e respeitado

por todos que dependiam dele, recebendo redízimos de quase todos os contratos de

arremate de impostos que recaíam sobre: as alfândegas e passagens de rios; a venda

do charque de baleias e seus óleos; os subsídios dos vinhos, aguardentes, azeite, sal e

couros; a venda de escravos, especiarias e tabaco; etc.

Entre os seus vários atributos e prerrogativas, o Conselho Ultramarino tornou-

se uma importante instância recursal para as matérias do fisco régio nas Conquistas.

Por isso, os seus ritos recursais sobre matérias fiscais acabam sendo um grande

manancial para estudos sobre concepções e práticas administrativas relacionadas à

prerrogativa régia de temperar casuisticamente os efeitos distributivos e comutativos

do fisco sobre as diferentes categorias e privilégios de súditos nas Conquistas. Nos

processos do Conselho Ultramarino, o poder soberano é solicitado como instância

arbitral que deveria equilibrar os efeitos patrimoniais das demandas de communis

oeconomia locais e extralocais e, assim, evitar motivos para desuniões entre

moradores, oficiais régios e demais corporações de privilégios existentes nas

localidades.

Malgrado a sua riqueza de repertório sobre ideias e práticas de governar, a

documentação do Conselho Ultramarino foi ignorada pela História Social ao longo do

século XX, sendo ocasionalmente objeto de interesse de estudos de História

Administrativa e do Direito ainda formados por coeficientes de criticidade

marcadamente liberais. Por outro lado, em função da fortuna crítica dos trabalhos de

13

Isso fica perceptível por meio do decreto régio de 14 de julho de 1643. Ver: BN, CEHB, nº. 5806, Cod. n.º 714-8, C222 Brasil. Expos. 1doc. 4fls. Ver também: CARDIM, Pedro. ‘Administração’ e ‘Governo’: Uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de Governar: Ideias e Práticas políticas no Império Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p.45-68; MYRUP, Erik Lars. Governar a distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino, 1642-1833. In: SCHWARTZ, Stuart B. et alii. O Brasil no Império Marítimo Português. São Paulo: EDUSC, 2009. p.263-298 14

Ver, sobre isso, o caso exemplar do parecer (de 17 de julho de 1709) do desembargador Antônio Rodrigues da Costa em: Doc.148 Consultas ao Conselho Ultramarino – Governo do Rio de Janeiro e demais Capitanias do Sul, 1674-1731. In: Documentos Históricos, vol. 93. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. p.226-229.

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Charles Boxer sobre a documentação camarária do Império Marítimo Português, criou-

se um boom de interesse historiográfico nesse tipo de fonte como se fosse o locus

documental, por excelência, das vozes, características e interesses das elites locais.

Por conseguinte, criou-se o entendimento, a meu ver equivocado, de que os pareceres

e consultas do Conselho Ultramarino diziam respeito apenas à administração central,

à visão de Corte sobre as Conquistas, a formalidades desimportantes e, portanto, de

menor interesse para a história social e política do Brasil Colonial.

Tudo isso se torna compreensível se consideramos que ainda não se havia

constituído no Brasil, até meado da década de 1990, uma abordagem histórico-

antropológica sobre a documentação da justiça e direito ao modo de E.P.Thompson

em “Senhores e Caçadores”; de igual forma, ainda não se havia constituído no Brasil o

campo crítico de uma renovada História Política, mais interessada nas ideias,

reconstituição contextualista de vocabulário político e práticas de governar presentes

em instituições recursais do Antigo Regime15. Esta renovada História Política aborda os

seus objetos sem desconsiderar o mundo social a que se referiam – e era inovadora

justamente por pensar os seus objetos para além dos pináculos consagrados pela

Ciência Política e pela antiga História (marcadamente Liberal) das Ideias Políticas.

Entre 1996 e 2000, os primeiros passos da pesquisa documental que

redundaram no meu livro estavam muito sensíveis a tais questões, assim como, à

noção de configuração social de Norbert Elias e à sua seminal forma de abordar o tema

do Estado no século XVII por meio de documentos que não seriam do interesse da

antiga História Política, da História das Ideias e da Ciência Política. Então, a forma

como passei a encarar qualitativamente a documentação do Conselho Ultramarino que

se referia aos estados brasílicos na segunda metade do século XVII mudou

completamente o modo de fazer as fontes falarem para o tempo presente de minha

pesquisa. Nesse processo, foi fundamental entender que as consultas e pareceres do

Conselho Ultramarino faziam parte de um rito recursal caro e, portanto, não se tratava

15

Comparativamente, ver: ANTÓN, Luis González. Las Cortes en la España del Antiguo Régimen. Madrid: Siglo XXI, 1989; CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1999; CARDIM, Pedro. ‘Administração’ e ‘Governo’: Uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de Governar: Ideias e Práticas políticas no Império Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p.45-68.

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de banalidade inócua ou de formalidade vazia, mas da expressão social, cultural e

política de formas de negociação por prerrogativas entre poderes centrais e locais.

A maior parte das cartas e relações que chegaram ao Conselho Ultramarino

está perdida, sobrevivendo indiretamente nos resumos das consultas e pareceres.

Assim, percebi que as cartas que chegavam ao Conselho Ultramarino – e que eram

transmutadas em discursos indiretos pelo padrão retórico concelhio – deixavam os

seus rastros nos textos das consultas e pareceres, ou seja, de alguma forma os seus

padrões de intencionalidade eram preservados nas consultas e pareceres.

Estrategicamente, focalizei minha análise nas consultas e pareceres que expressavam

os seguintes padrões temáticos de intencionalidade: (1) conflitos de jurisdições (e

solicitações específicas por justiça nessa matéria); (2) pedidos de mercês (incluindo

nessa categoria as solicitações de jurisdições especiais e isenções fiscais); (3)

configuração de contratos de arrematantes de impostos; e (4) consignações para a

proteção de portos, construção de fortalezas e o pagamento de dotes matrimoniais

régios.

Os rastros de intencionalidade dos poderes locais preservados nos discursos

indiretos das consultas e pareceres do Conselho Ultramarino situavam justamente os

seus padrões de consulta nos marcos das relações de poder e ethos institucional-social

de reciprocidade hierárquica entre poderes centrais e locais característicos do Antigo

Regime, ou seja, as consultas e pareceres eram a materialização textual da interseção

entre disputas estratégicas de vozes suplicantes locais e os ouvidos concelhios

potencialmente portadores de mercês, em particular nos casos que envolviam

conflitos de jurisdições e prerrogativas (entre elas, isenções fiscais) dos atores

institucionais e sociais da interface administrativa Corte/Conquistas.

Por este viés, a documentação do Conselho Ultramarino tornava-se o locus, por

excelência, do encontro e choque de expectativas entre poderes locais e centrais,

revelando a tensa teia governativa de mútuo reconhecimento das instâncias de poder

do corpo político da Monarquia Portuguesa no Antigo Regime. Portanto, os ritos

recursais no Conselho Ultramarino eram, em si mesmos, uma prova da dinâmica de

tensões e interesses, choques de expectativas e negociação de prerrogativas e

autoridades entre as instâncias locais e centrais de poder, revelando, de forma

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singular, a recorrente reconfiguração casuística da reciprocidade hierárquica entre as

partes reinóis e extra-reinóis de súditos preeminentes da Coroa Portuguesa, assim

como, os seus entendimentos sobre seus papeis, prerrogativas e contrapartidas

materiais e imateriais na configuração do bem comum da Monarquia Portuguesa.

Nos ritos recursais do Conselho Ultramarino, os padrões de intencionalidade

figuravam expectativas de legitimidade social e política sempre referidas ao poder

soberano – entendido como o tutelador-mor dos privilégios que criavam o senso de

pertencimento à Monarquia Portuguesa. Por isso, podemos afirmar que as disputas

pelo “ouvido régio” expressavam, em si mesmas, a submissão pactista dos súditos

preeminentes, que teriam a obrigação social de atuar adequadamente a autoridade

régia em suas esferas específicas de prerrogativas e privilégios. Daí, dirigir-se ao ouvido

régio já seria a figuração social de mútua (e, por vezes, tensa) legitimidade e

interdependência dos poderes centrais e locais. O avesso disso seria a doença sectária,

que deveria ser purgada do corpo político por meio da pena de morte, do degredo e da

reconfiguração casuística das redes de privilégios formadores do corpo político da

Monarquia Portuguesa.

***

Enfim, por meio dos ritos recursais do Conselho Ultramarino, o meu livro

pretendeu abarcar os rastros de lógicas de relações sociais e de dinâmicas

institucionais referidas à configuração dos estados brasílicos como corpora da

Monarquia Portuguesa no Antigo Regime, rompendo com o modelo crítico iluminista

de Montesquieu que figurava os conceitos “Metrópole” e “Colônia” como pares

necessariamente antitéticos assimétricos. Com isso, busquei, alternativamente, uma

maior aproximação – sempre problematizada – com o vocabulário político do Antigo

Regime expresso nos ritos recursais do Conselho Ultramarino anteriores aos

coeficientes de criticidade iluministas e liberais...

Aqui concluo a minha exposição e, mais uma vez, agradeço a presença de vocês

e a disponibilidade de seu tempo para ouvir esta síntese imperfeita de jornada

intelectual que redundou no presente livro. Vou cessar agora o palavrório para

iniciarmos o outro deleite, o coquetel, durante o qual me disponibilizo a conversar

mais individualmente sobre o livro.