Andar na Vida Vivendo. Itinerários Celestinianos

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A n d ar n a V id a V ivendo ITINERÁRIOS CELESTINIANOS José Abílio Coelho [Coordenador]

Transcript of Andar na Vida Vivendo. Itinerários Celestinianos

Andar na VidaVivendo

ITINERÁRIOS CELESTINIANOS

José Abílio Coelho[Coordenador]

Andar na Vida Vivendo

José Abílio Coelho[coordenador]

Textos:

Alberto Oliveira | Maria José CosteiraBruno Celestino Amado

César da Costa Araujo ValençaCunha de Leiradella

David Augusto de Campos GuimarãesDomingos Mendes da Silva

Edivaldo M. BoaventuraJ. M. de Barros Dias

João PachecoJosé Abílio Coelho

José DiasLizir Arcanjo Alves

Nuno Lima de CarvalhoSãozinha Oliveira

Sonia SalesVictor Peixoto

ITINERÁRIOS CELESTINIANOS

Título:

Andar na Vida Vivendo: Itinerários Celestinianos

Coordenador:

José Abílio Coelho

Data de publicação:

24 de maio de 2014

Revisão gráfica:

Belarmino Marques Dias

Grafismo:

Tiago Barros Coelho

Impressão e acabamentos:

Graficamares, Lda

ISBN: 978-989-20-4800-0

Depósito legal: 375806/14

© 2014 by autores dos textos e das fotografias

Edição:Costeira — Engenharia e Construção, S.A.

Rua da Veiga, nº 9 n Barreiro n Adaúfe n 4719-572 BragaTel. 253 603 530 n [email protected] n www.costeira.pt

Capa: António Celestino, 1939. Fotografia da “ficha consularde qualificação” da República Federativa do Brasil,constante do seu processo de candidato a emigrante

António Celestino com Jorge Amado

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O pequeno António CelestinoE, pelos dez anos de idade, com a mãe Dona Virgínia e o professor Manuel Pedrosa

7

António Celestino com Gilberto Freyre e com Ferreira de Castro

8

ÍndiceAntónio Simões Celestino da Silva ....................................... 10

SÃOZINHA OLIVEIRA

Obrigada, meu amor ........................................................... 13

VIRGÍNIA SIMÕES PEDROSA

Ansiedade ......................................................................... 16

ANTÓNIO CELESTINO

Oração de Agradecimento ................................................... 17

Citações ............................................................................ 23

Publicações ....................................................................... 24

A Velha Casa ...................................................................... 26

ALBERTO OLIVEIRA | MARIA JOSÉ COSTEIRA

O nosso António Celestino ................................................... 29

BRUNO CELESTINO AMADO

Meu avô, meu porto de abrigo .............................................. 33

CÉSAR DA COSTA ARAUJO VALENÇA

Em lembrança do poeta do Ribeiro ...................................... 35

CUNHA DE LEIRADELLA

António Celestino, meu amigo ........................................... 39

DAVID AUGUSTO DE CAMPOS GUIMARÃES

No cinema, pela mão de António Celestino ........................... 42

9

DOMINGOS MENDES DA SILVA

A António Celestino .......................................................... 45

EDIVALDO M. BOAVENTURA

O académico António Celestino ......................................... 47

J. M. DE BARROS DIAS

António Celestino, meu primo de todos nós .......................... 51

JOÃO PACHECO

Obrigado, Celestino ............................................................ 55

JOSÉ ABÍLIO COELHO

O gigante que me carregou aos ombros ................................. 59

JOSÉ DIAS

Da improvável amizade entre dois especialistas ......................... 63

LIZIR ARCANJO ALVES

Amizade por herança ............................................................. 67

NUNO LIMA DE CARVALHO

António Celestino, um grande Senhor ................................. 71

SONIA SALES

A generosidade de António Celestino ...................................... 75

VICTOR PEIXOTO

O Senhor António Celestino .................................................79

ANTÓNIO CELESTINO

Fragmentos ......................................................................... 83

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António Simões Celestino da SilvaAntónio Simões Celestino da Silva nasceu na vila e município da Póvoa de Lanhoso, em 24 de maio de 1917, filho de Júlio Celes-tino da Silva e de sua mulher Dona Virgínia das Dores Simões Veloso de Almeida.

Com apenas um ano de idade ficou órfão de pai. Passou, então, a residir, com sua mãe, na casa do Ribeiro (em São João de Rei, freguesia do concelho natal), pertencente aos seus avós maternos. Anos mais tarde, Dona Vírginia casou em segundas núpcias com o professor Manuel Pedrosa, a quem Celestino amou como se fos- se seu verdadeiro pai.

Em 1939, contando 22 anos de idade e fruto da difícil situação económica que se vivia numa Europa ainda não recuperada da 1ª

Recebendo o colar de membro da Academia de Letras da Bahia

11

grande guerra e a poucos meses de se envolver num segundo confli- to, António Celestino emigrou para o Brasil onde, no Rio de Janei- ro, iniciou uma vida profissional de sucesso, ligada à banca.Co- meçou pelo cargo mais baixo no banco Irmãos Guimarães, e chegou a membro do conselho de administração do banco Económico.

No Brasil casou e teve três filhas. Ali construiu, também, um trajeto sócio-cultural que só um homem de grande inteligência e muita seriedade e caráter é capaz de percorrer. As suas ligações às grandes figuras das letras e das artes brasileiras e portuguesas, os livros que publicou, os cargos diretivos desempenhados, as pon- tes que estabeleceu, fizeram dele um dos maiores povoenses de sempre. Foi duas vezes agraciado pelo Estado português, com o grau de comendador e grande oficial, recebeu o estatuto de ci- dadão baiano, foi conselheiro da união das comunidades por-tuguesas, membro correspondente da academia de Letras da Bahia, figura honorária do terreiro Axé Opô Afonjá e da sociedade Santa Cruz. Aposentado, regressou à casa mãe em São João de Rei onde continuou a escrever, a escutar música, a cultivar as ar- tes plásticas e a receber amigos para longas conversas sobre o tudo e o nada e onde contou sempre com a proteção do seu anjo- -da-guarda, Sãozinha, sua segunda esposa.

Adormeceu serenamente no dia 21 de abril de 2013.

Em Ascot, com Zora Seljan, Carybé, Nancy e António Olinto

12

António Celestino e Sãozinha

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Obrigada, meu amor

Por Sãozinha Oliveira

Celestino querido: partiste deixando-me com as saudades de

quase quatro décadas de felicidade sem igual. Fomos apaixonados

companheiros, cúmplices, e vivemos os momentos bons e os me-

nos bons com o mesmo amor e carinho. Contigo pude conhecer e

conviver com muita gente linda e amiga que me ajudou a crescer.

É verdade que estás ausente, mas a tua presença está em todos os

cantinhos da nossa Casa do Ribeiro e em cada flor do jardim, de

que tanto gostavas. A hora da música, da televisão, da leitura e até a

hora do silêncio era partilhada por nós e eu lembro-me de cada uma

delas, todos os dias. São as recordações de tantas coisas felizes que

vivemos juntos que me ajudam a viver.

Como recordo com saudade as nossas viagens. Com elas apren-

di a gostar de tantas coisas que passaram por mim sem eu dar conta.

Aprendi a gostar de arte e tive o privilégio de conviver com artis-

tas maravilhosos. Destaco o que mais me impressionou com seus

traços rápidos e certeiros. Ir com ele à tourada e vê-lo rabiscar no

seu caderno e, no regresso ao hotel, ver renascer no papel o que se

passara na arena. Um deslumbramento, só possível com Carybé.

Mas o mesmo deslumbramento era vê-lo trabalhar em seu atelier de

Salvador. Quando estava de férias no Ribeiro, era a primeira visita

que eu tinha na escola. Não havia menino que não gostasse dele.

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Que saudades das vossas discussões e das partidas que pregavam

um ao outro

Recordo a tua paciência quando visitávamos museus e me expli-

cavas tudo, com todo o carinho.

Mas nas horas de lazer aconteciam as coisas mais engraçadas,

e tu, rindo, dizias que eu te fazia passar vergonhas. E era verdade!

Entre tantas recordo a das gôndolas em Veneza, onde eu não queria

entrar de jeito nenhum. Acabei indo, claro. E também no teleférico,

na Patagónia, muito embora aí só tenha conseguido ir até à primeira

estação. Recordo o teu carinho, compreendendo-me.

Outra peripécia engraçadíssima foi quando comi Teiú em casa

de Jorge Amado. Claro que eu não conhecia o bicho. Subi na con-

sideração de todos os amigos presentes, porque gostei e repeti. Es-

cusado será dizer que Celestino não comeu. Quando tive oportuni-

dade de conhecer o lagarto ao vivo, queria morrer.

Cenas como estas aconteciam constantemente e eu vivia-as to-

das para orgulho do meu amor. Todas estas lembranças me deixam

as maiores saudades.

Obrigada, Celestino, por me teres feito tão feliz.

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Com o ator Procópio Ferreira, ao lado de Dorival Caymmi

16

NAnsiedade, poema de Virgínia Simões Pedrosa

[Ao meu querido filho António Simões Celestino da Silva]

Senhor! Porque não recebi aindaA carta do meu filho? É a guerraQue tanto mal espalha sobre a terraNum furacão de morte que não finda.

Se vós me desseis, oh meu bom Jesus,Ligeiras asas para eu voarTranspunha bem depressa o grande marPara descer ao longe em Santa Cruz.

Mas não! Asas só têm as avezinhasCom que ligeiras percorrendo vãoTodo o espaço em doce liberdade

Penas também eu tenho, mas as minhasSão penas a cobrir o coração...E asas tenho só as da saudade.

Dona Virgínia, mãe de Celestino (a primeira à direita na foto), às compras com a família

in Horas de Penumbra, p. 23.

17

o dia 16 de março de 1979 — a um mês de completar quatro décadas de permanência no Brasil — António Celestino recebeu, da câmara municipal da cidade de Salvador, o título de cidadão baiano. Altura em que, na presença de um enorme grupo de intelectuais que, secundando Jorge Amado, subscreveu a petição por este dirigida à “igrégia câmara de vereadores” e publicada no seu livro Bahia de Todos os Santos — Guia de Ruas e Mistérios, Celestino proferiu a oração de agradecimento pela dis- tinção que acabava de receber. Assim:

Minhas Senhoras, Senhores:

Sou homem de emoção fácil. Não pretendo aparentar for-

talezas de ânimo, que não tenho. A vida tem-me ensinado que, já

nesta altura, mais fácil será aceitá-la assim mesmo, do que tentar

ludribiá-la. Perdoem-me portanto, já que tiveram a amabilidade

de comparecer a esta solenidade.

N

18

Senhor Presidente da Câmara de Vereadores

Senhor Cônsul de Portugal

Senhores Vereadores

Senhor Vereador Newton Macedo Campos

Cumpre-me agradecer humildemente vossa alta honraria em

me concederem o título de Cidadão de Salvador. O gesto de magna-

nimidade em me receber como vosso irmão de cidadania tem para

mim o valor da aceitação por tudo o que tenho dito, feito e escrito

por esta cidade, ao correr de já longos anos. É evidente que houve

larga generosidade de vossa parte ao aceitar a sugestão transcrita

no livro de Jorge Amado sobre a Bahia, como é evidente que os

ilustres nomes que a subscreveram também a tiveram em escala

desmedida. Ao grande escritor, nome maior de todas as literaturas

de língua portuguesa, tantas atenções, todos nós, baianos, lhe

devemos, que dizer alguma coisa sobre gratidão poderia parecer

ridículo; pois a imponência com que deve ser tratada coloca nossa

intenção sem palavras apropriadas. Mas, mesmo assim, parece-me

que nesta hora em que me fizestes baiano não poderia deixar de

reverenciar seu nome, pois cumprimentando-o, comovidamente,

nele cumprimento toda a Grande Bahia, com suas humanidades

vivas e castigadas, com suas graças de encanto mágico e festivo, com

seus heróis anónimos e seus deuses sem ódios nem malquerenças.

Foi com ele que comecei a amar esta terra, foi pela sua mão que

a conheci melhor e foi pelo seu exemplo que achei que também

devia brigar por causa dela. Creio que dizendo-lhe sentidamente

muito obrigado, estou me reconhecendo igualmente obrigado a

todos os que tiveram a graça de nascer nesta cidade e que vós,

Senhores Vereadores, representais nesta hora. Falo por mim,

não sei dos outros, mas creio que, como eu, tantos se sentiram,

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pela mesma via, na obrigação de dirigir seus esforços para a

preservação dos nossos usos e costumes, dos nossos admiráveis

defeitos e de nossas terríveis qualidades.

Pois só assim, na aceitação do que somos, é que poderemos

continuar eternos e sempre vivos, com nossas leis não escritas tantas

vezes contrariando todas as outras, com nossos hábitos de povo mais

afeito ao ato de conviver do que ao de viver, independentemente

de regras e de sistemas, fluindo numa existência quase sempre

difícil, mas sempre fiel a determinadas imposições impossíveis de

aceitar pelos corifeus da eficiência tecnológica, mas que são as

leis herdadas pelo sangue e continuadas pela aceitação pacífica

dos tempos ocorridos secularmente.

Minhas Senhoras, Senhores,

Não tenho muito o que contar a meu respeito, nem muito

feitio para isso. Já um famoso frade português do século dezesseis,

o conhecido Frei Luiz de Sousa, disse certa feita que: “feia coisa é

homem falar de si mesmo” e eu acho que o frade tinha razão. Mas

esta é hora de agradecimentos pelo que esta terra fez por mim,

pelo que sua amorável gente influiu nos meus comportamentos,

pela ternura com que me tratou, pelas condições de vida que

me propiciou, mostrando-me como se pode conviver para além

das posições políticas ou religiosas de cada um, como se pode

compreender que o homem vale para além do que pode mandar,

como se podem aceitar naturalmente divergências de pensamento

sem que sejam consideradas como antipatias pessoais, como se

podem aceitar deuses com nossos erros vivendo por momentos

nossas qualidades, como se pode tornar íntima a presença do

Cristo sem que com isso se lhe perca o respeito divino, como se

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pode compreender que a mistura de sangue criou um novo sangue,

que para além da cor de cada um há a cor de todos nós, que até

a língua é mais ligada ao homem do que à sua cultura e que esta

será, para um futuro que começa todo o dia, a preocupação de

todos os que amando a sua Cidade, com ela própria a confundem.

E aqui vai, Senhores Vereadores, minha primeira proposta

como Cidadão de Salvador:

— Que nos unamos todos em defesa desse património, grandeza

dum país, único no Brasil. Comecemos a nos envolver mais em

tudo o que lhe diga respeito, para que ela se conserve viçosa,

atraente e viva. Para que os outros povos brasileiros sintam que

ela tem quem a defenda porque tem quem a ama, pois só com

amor se pode defender o que não se quer perder, já que o que se

defende com ódio se destrói da mesma forma.

Nossa bela cidade de Salvador lamentavelmente já perdeu

muito do seu caráter castiço, mas ainda tem certas inconfundíveis

caraterísticas com que muitos sonham em vão para as suas

capitais. Pois para além do seu povo magnífico, ainda que sofri-

do e amargurado pelo muito que tem sido castigado, existe es-

ta Cidade. O povo precisa dela intocada, intacta, preservada,

pacífica e grandiosa. Todos a querem como ela é ainda — pois

não é mais possível devolver-lhe o que lhe foi roubado — e não

como a querem tranformar, cosmopolita, poluída, indiferente.

Cada viaduto, inútel ou útil, custará mais do que dinheiro, custará

deformação. Todos sabemos que o chamado progresso, essa coisa

terrível, vem à custa de mutilações e de sangrias quando não é

feito com imaginação e cuidado especial. E o que nos alarma

é que esta Cidade possa ser trocada. Que em seu chão antigo

apareça outra Cidade, que lentamente, uma colina este ano, um

vale para o outro, assim continuadamente sejam substituídos seus

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valores, sejam modificados seus velhos traçados, seus contornos

musicais vistos do horizonte se transformem em riscos sem graça

nem caráter, que vândalos derrubem suas árvores centenárias, que

engenharias mercantilistas consigam montar engenhosas fábricas

à custa da paz do povo e das suas formas de vida, trazendo-lhes

mazelas que depois não terão recursos para curar, até que tudo

se consuma em saudade.

Vindo duma pequenina vila do Norte de Portugal, cedo me

habituei a gostar daquilo que o povo soube guardar, pois se ele

o fez, na sua grande sabedoria, razões teriam que existir, ainda

que às vezes mal compreendidas.

Sejamos responsáveis pelo que de admirável recebemos

como herança, e se por desgraça não tivermos nem graça, nem

habilidade, nem gosto para o enriquecer, ao menos deixemo-lo

como nos foi legado, para que assim o passemos às mãos de nossos

filhos, sem que estes possam fazer as graves censuras que hoje

fazemos aos que, por exemplo, destruiram a Sé Velha e deixaram

queimar o Paço do Saldanha.

Muito obrigado. E como se diz à boa moda portuguesa: Bem

hajam.

Sou muito reconhecido pela vossa paciência. Mas posso com-

preendê-la, pois é ela também uma das maiores virtudes deste povo.

In O Cidadão Baiano António Celestino, Bahia, Banco Económico, 1979

22

Entre velhos amigos, na Bahia

23

“Temos em São João de Rei um poeta; um poeta que andou escondido por anos e anos dentro de um amigo meu. Porquê? Quer que eu diga? Digo. É por sangue pois sua mãe fazia poesias e também porque na ar-gila em que foi modelado há uma puta carga de fado, azeite de olivas braguesas, vides e vinhos, também um enorme coração de filó, aberto, como uma praça”.

Carybé, carta aquando da publicação de Poemas de Cera Perdida

“António Celestino é um desses homens que tudo querem beber da vida e, em sua extraordinária riqueza, tudo lhe devolvem na gratuita moeda do amor e da amizade...”

James Amado, in Gente da Terra

“Personagem de romance dificilmente retrata tal ou qual pessoa (...). Po- de acontecer o romancista se basear na personalidade de um único ci-dadão; ao ser posto nas páginas do romance, no contexto de tempos e figuras, no espaço em que a ação se desenrola, transforma-se em outra criatura, já não é o indivíduo tomado na vida real do autor para agir nas páginas do livro. O banqueiro Celestino de Dona Flor e seus dois maridos tem algo em comum com o senhor António Celestino, diretor do Banco Económico, seu ponto de partida. O crítico de arte António Celestino de O Sumiço da Santa tem a ver com o erudito do Pátio das Artes, in-clusive o título da coluna semanal em A Tarde, porém dele mais se dife- rencia do que se assemelha. Cito um exemplo, poderia estender-me, no particular sobra-me experiência”.

Jorge Amado, in Navegação de Cabotagem, p. 553.

Citações

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n Gente da Terra[Crítica de arte], Salvador da Bahia, Martins Editora, 1972

n Couvent du Carmel à Salvador, État de Bahia[História], separata da revista Museum, Paris, Unesco (vol.3, nº 3), 1975

n Antigamente era San Joam de Rey[Monografia histórica], Junta de Freguesia de São João de Rei, 1987

n ... às vezes fico pensando se isto será poesia[Poemas], ed. de autor, São João de Rei, 1994

n Contos (mal) Falados[Contos, com José Abílio Coelho],Casa das letras, Póvoa de Lanhoso, 1996

n Poemas de Cera Perdida[Poemas], ed. de Autor,São João de Rei, 1996

n Contos em Forma de Cereja[Contos], Município da Póvoa de Lanhoso, 1997

n Notícia sobre a Casa do Ribeiro de São João de Rei[História], Póvoa de Lanhoso, 2002, policopiado

n Uma Vida em Si Menor[Autobiografia], Salvador da Bahia,Quarteto, 2006

Publicações

25

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A Velha Casa, a minha Velha Casa,encostada a um chão ainda mais velhodeve ter raízes pelas paredesregadas por invernos de maus tempose outras já secadas,como ossos de defuntos antigosà espera do juízo final.(...)A Velha Casa ficou à minha espera,mas dentro dela p’ra sempre se escoaramas vozes que tangiam nas paredes.Séculos de riso se calaram,mas devem ter ficado nos seus muros,pois as vozes do silêncio não se perdeme deve ser isso que é a sua alma.Um dia será minha vezde deixar minha voz ali gravada.

Extrato do poema A Velha Casain Poemas de Cera Perdida

A velha casa

””

27

””

A Casa do Ribeiro, no primeiro quartel do século XX

28

António Celestino em 2 de novembro de 1939, poucos mesesdepois de ter chegado ao Rio de Janeiro

29

O nosso António Celestino

Por Alberto Oliveira | Maria José Costeira

Ainda hoje temos bem presentes as passagens de António Celes-

tino pela Casa da Lage, vão lá alguns pares de anos. Normalmente

aconteciam no verão, quando as noites de cálida presença convida-

vam a uma boa conversa, no recato do banco exterior, após o jantar.

A delicadeza e a educação com que ele se dirigia a toda a família,

mas principalmente à Avó, marcavam-nos. Era um homem distinto,

superior. Sempre pela mão da Sãozinha, começámos a frequentar a

Casa do Ribeiro. Aí tivemos o distinto privilégio de poder conviver

com vários amigos do António Celestino, amigos do mundo das

Arte e das Letras como Jorge Amado e sua esposa Zélia Gattai,

Carybé, Fernando Assis Pacheco, o professor Edivaldo Boaventura

e tantos, tantos outros que nunca, quando vinham ao Minho, deixa-

vam de visitar o amigo de longa data. Mais tarde depois do regresso

de Celestino à Casa do Ribeiro, pude acompanhar mais de perto

esse Homem de cultura invejável, de conhecimento superior e de

uma edução exemplar.

Durante muitos anos faziam-se uns jantares, às sextas-feiras, na

Casa da Lage. António Celestino era cliente habitual. Enquanto eu

preparava o jantar, lembro-me de tantas vezes que o vi, frente à la-

reira acesa, petiscando e saboreando o seu copo de vinho, olhando

fixa e silenciosamente o movimento das chamas que saíam livre-

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mente do meio dos pedaços de lenha cuidadosamente colocados

pelo Remígio. Vez por outra, com o olhar sempre pregado na dança

do fogo, dizia: «Há pouca coisa mais cativante que este movimento

natural das chamas fervendo na lareira”.

Os nossos jantares não eram apenas mais uma refeição. Eram um

agradável convívio de várias horas, que Celestino animava com as

suas histórias, com a sua alegria, com a sua habitual boa disposição.

Era uma pessoa extremamente cuidadosa com a alimentação e,

por isso, a minha responsabilidade pelos jantares das sextas-feiras

era maior ainda. Quando, às vezes, no decorrer do repasto, lhe per-

guntavamos se estava bom, ele respondia sempre da mesma forma:

“Bom, estou eu; o jantar está ótimo”. Claro que, regra geral, no fi-

nal dos jantares lá tinha a Sãozinha que tratar dos milagrosos sais de

frutos, que ajudavam a aliviar algum excesso.

Era um homem de boas palavras e gestos poéticos: quando

vinha jantar, nunca deixava de trazer uma flor que entregava à Zeza,

ao cumprimentá-la. Pequenos gestos de carinho que ficam gravados

para sempre.

Recordo ainda da viagem que fizemos com Celestino e Sãozinha

a Salvador da Bahia, onde ficámos hospedados no seu luxuoso apar-

tamento, numa das torres viradas para o mar na avenida Sete de Se-

tembro. Tivemos o privilégio de visitar os principais monumentos e

pontos míticos da cidade, acompanhados, sempre, por António Ce-

lestino, que cuidadosamente nos explicava todos os pormenores —

tudo quanto os nossos olhos alcançavam e até aquilo que nós não

víamos. Chegado Celestino à Bahia, logo chegavam convites dos

amigos: de Vítor e Grace Gradin, do professor Edivaldo Boaventura

e Dona Solange, do professor Rudolfo e Dona Libinha, de Nancy

Carybé, geralmente jantares onde era estreitada a amizade que a

31

todos unia. Celestino fazia questão de nos levar e de nos apresentar

como seus “sobrinhos queridos, Berto e Zeza”.

Foram momentos inesquecíveis. Não temos dúvida alguma do

carinho e da amizade com que António Celestino nos brindava; mas

ficamos muito felizes por saber que ele tambem não tinha dúvidas

do carinho que nós sentíamos e continuamos a sentir por ele.

32

António Celestino, Zélia Gattai, Jorge Amado e o neto comum, Bruno Celestino Amado

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Meu avô, meu porto de abrigo

Por Bruno Celestino Amado

Falar sobre António Celestino, meu avô, ainda é muito difícil

para mim, pois apesar da distância física, de um oceano que nos se-

parava na maior parte do tempo, a certeza reconfortante da sua pre-

sença logo ali, na Casa do Ribeiro, como referência de integridade,

inteligência, bom humor, cultura e fonte interminável de bons con-

selhos, sempre foi um pilar na minha vida e um norte para a nossa

família, acreditava que ela estaria por lá para sempre. Não imaginei

que escrever sobre ele fosse ainda mais complicado.

Passei grande parte da minha infância frequentando o edifício

Açores, onde ele residiu na Bahia. Lá também viviam muitos dos

meus amigos e todos comentavam como seu apartamento parecia

uma galeria de artes devido ao enorme número de quadros, gravu-

ras, tapetes e esculturas que possuía, e isso me enchia de orgulho,

mais ainda por saber que a maioria dos artistas que produziam

aquelas obras eram seus amigos íntimos.

Lembro-me muito dos passeios de final de semana, íamos fre-

quentemente à casa de praia de Carybé, em Interlagos e os cerca de

cinquenta quilómetros da viagem até lá sempre foram a parte mais

rica do dia, uma oportunidade para estar juntos e conversar sobre

assuntos variados. Às vezes o próprio Carybé viajava no carro con-

nosco, o que era certeza de boas risadas.

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Quando, já adulto, fui concluir os meus estudos na Inglaterra,

São João de Rei era o meu porto seguro na Europa, pois sabia que

ele e Sãozinha estavam ali para o que eu precisasse. Para lá corri inú-

meras vezes e sempre me senti em casa. As remessas de queijo da

serra, barquinhas e marmelada que chegavam me ajudaram a matar

as saudades e a suportar o frio do inverno europeu.

Hoje já não temos sua presença física connosco. Mas gosto de

pensar que existe um lugar melhor, onde ele está cercado pelos ami-

gos que partiram antes e olhando por nós, que ficamos. De todo

modo, depois de quase cem anos vividos tão plenamente, não é cer-

to lembrá-lo com tristeza. Ficam a saudade e a lacuna que jamais

será preenchida, mas, especialmente o modelo de vida a ser seguido,

ainda que impossível de atingir. Como o grande e sábio amigo José

Abílio me disse quando me pediu este texto, “Quem é lembrado

continua a viver de alguma forma”.

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Em lembrança do poeta do Ribeiro

Por César da Costa Araujo Valença

Por sugestão do amigo José Abílio Coelho deixo aqui algumas

poucas palavras, nas quais recordo o poeta do Ribeiro e as circuns-

tâncias que deram início à nossa amizade, pois, se o passar do tem-

po provoca em nós a busca do passado, que reencontramos sempre

mais vivo ao aparecer associado a situações vividas há longos anos,

nessas alturas, pequenas coisas de outrora surgem-nos, como que por

feliz encanto, profundamente significativas.

Era ainda quase criança, tinha ido acompanhar minha mãe na

visita à Senhora Dona Virgínia, à Casa do Ribeiro. Nessa época, os

muito novos eram adestrados para saberem comportar-se nas salas

e tinham como privilégio assistir ao processar da conversa dos adul-

tos, no geral amigos ou parentes das famílias.

Decorria simpaticamente a conversa entre a Senhora do Ribeiro

e minha mãe quando, a dado passo, senti que a voz da Dona da Casa

se emocionara e que um grande ausente se tornava ali presente. A

Senhora Dona Virgínia falava com saudade, a minha mãe, de An-

tónio Celestino, de quem na Sarola já tinha ouvido mencionar o

nome, como da ligação à tão próxima e estimada família. Pela voz

de sua mãe a invocação era tão forte e conjuntamente tão doce que

fixei esse momento e tomei o grande ausente como um novo amigo.

Muitos anos depois, pelo mês de abril, dirigi-me ao Ribeiro,

36

António Celestino, Adriano Moreira, Ives Ganda da Silva Martins e Paulo Brás, à entrada para um conselho da União das Comunidades da Cultura Portuguesa (in Adriano Moreira, A Espuma do Tempo, extra-texto nº 2)

37

aproveitando um antigo privilégio que minha mãe e minha tia Hele-

na tinham recebido, da amizade da Senhora Dona Virgínia: era pedir

as esplendorosas camélias encarnadas das duas antigas e enormes

japoneiras reticula que ainda hoje adornam o jardim da Casa. Esse

privilégio era dado quando na Sarola se recebessem amigos a que

atribuíamos sensibilidade para se maravilharem com essas raras

flores. Davam o mote a falar do Ribeiro e das muitas qualidades e

lustre da família. Dessa vez, além das camélias esperava-me o pro-

prietário, bem presente em corpo e alma o qual, com a mesma gener-

osidade de sua mãe, me disponibilizou as cobiçadas flores. Tivemos

uma conversa em que logo me apercebi do profundo humor e cul-

tura do filho da antiga e sensível poetisa que fora a Senhora Dona

Virgínia. A partir dessa tarde, passei a usufruir da rica biblioteca

da Casa, aconselhado pela amizade e saber do António Celestino.

Posteriormente mostrou-me o notável e bem conservado arquivo de

que meu primo João Carlos Gachineiro fez largo uso e descoberta.

Entretanto a Sãozinha, minha amiga de infância, tornou-se mulher

do António e valorizou com a sua alegria franca e grande coração a

ilustre casa, onde as camélias rivalizam em qualidade com os livros

e códices do arquivo.

Ao ler as memórias do Professor Adriano Moreira, tive o prazer

de ver o elogio que fez ao António Celestino, relacionado com a di-

nâmica que este dera às associações portuguesas durante a sua lon-

ga estadia no Brasil.

Termino na certeza que as amizades eternizam a memória.

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A aldeia minhota de São João de Rei na década de 1940

39

António Celestino, meu amigo

Por Cunha de Leiradella

Nos conhecemos em 1998. E de uma maneira um tanto original.

Polemizando. Polemizando, assim. Discordando em número, gênero

e grau sobre o uso da linguagem (no caso a língua portuguesa) na

escrita de ficção.

Lançava eu, na Casa da Botica, meu romance Cinco Dias de Sagra-

ção, já publicado no Brasil, e naquele ano editado em Portugal.

Habituado aos lançamentos brasileiros, onde ninguém botava falação,

apenas o autor autografava e vendia seus livros se tivesse compradores,

sempre me espantou o facto de, em Portugal, o autor ter que falar so-

bre a sua obra. Isto, depois de alguém falar sobre o livro e outro

alguém falar também sobre o autor.

Quando me foi dada a palavra, comecei por dizer que não era um

criador de enredos. Era apenas um criador de situações e de climas.

Sempre foi minha convicção que um ficcionista deve escrever o mais

possível como se fala, deixando para os ensaístas o uso de adjetivos

e advérbios redundantes. Por isso, eu escrevia as falas dos meus per-

sonagens tal como escutava as pessoas falando na rua. Se ouvia al-

guém dizer, tás bom, porquê que havia eu de escrever na fala do meu

personagem, estás bom?

Fui interrompido por um assistente da falação, que me disse ser

este modo de escrever absolutamente errado. Que a língua portuguesa

40

tinha normas de uso, e que essas normas deviam ser respeitadas. Que

os autores clássicos portugueses sempre as tinham respeitado.

Interrompi-o com uma pergunta. O senhor tá bom? Tou, foi a

resposta. Tá vendo? Com esse seu tou, o senhor acaba de justificar o

que acabei de dizer. O ficcionista deve escrever sempre seus diálogos

o mais possível como se fala. Aí, o bate papo virou pinga-fogo, mas

não foi necessário chamar os bombeiros para apagar o incêndio.

Anos se passaram e, no meu regresso a Portugal, um dia, encontrei

nos correios da Póvoa de Lanhoso, um autêntico artista parisiense

dos anos vinte. Chapéu mole de abas largas e capa à espanhola. E

um sorriso que iluminava todo mundo à sua volta. Me abraçou, di-

zendo, tás bom, pá? Olhei-o, espantado, reconhecendo o meu

interlocutor da Casa da Botica. Você não devia dizer, estás bom,

rapaz? — lhe perguntei, também rindo, correspondendo ao abraço.

A língua portuguesa tem normas, uai! A resposta foi uma sonora

gargalhada, seguida de uma frase que nunca mais esqueci. Aquilo foi

só pra botar pimenta-malagueta no rabo do teu papo, pá. E ficamos

amigos. Do peito.

António Celestino era assim. Um coração do tamanho de um ho-

tel, onde todo mundo se hospedava, sincero, amigo do amigo. E culto

como poucos.

Foi um dos poucos amigos que tive com quem, papeando horas

e horas, o tempo passava num minuto.

Descansa hoje, tenho certeza, no panteão dos bons. De coração e

de escrita. Não fui só eu que perdi um bom amigo. Foi Portugal que

perdeu um bom autor.

41

A rua onde nasceu em 24 de maio de 1917, no coração da vila da PóvoaAbaixo: a velha Casa do Ribeiro, em São João de Rei, Póvoa de Lanhoso

42

No cinema, pela mão de António Celestino

Por David Augusto de Campos Guimarães

Caro José Abílio:

Quando falámos há dias pediu-me umas notas sobre o António

Celestino, o nosso falecido amigo de personalidade polifacetada.

Quase nada há a dizer, após os gabos e alongadas linhas a ele dedi-

cadas.

Chegado ao Brasil em 1939 foi, de começo, acolhido na casa de

meus pais, onde esteve por umas três semanas, no bairro de Santa

Teresa, na parte alta do Rio. Seu tio e padrinho, o Pe. José Carlos

Simões de Almeida, grande alma, fora diretor do Internato Munici-

pal de Guimarães, onde meu pai, Francisco Antunes Guimarães, foi

seu aluno. Este era o elo entre o Celestino e a família Guimarães.

Foi ele a primeira pessoa que me levou ao cinema! Facto in-

esquecível! Num cinema chamado Cineac, no centro da cidade, aos

domingos havia sessões matinais para crianças. Num domingo o

Celestino, retribuindo a acolhida recebida, levou-me ao tal cinema.

Ele com 23 anos e eu com 8! Desenhos animados e filmes do Gordo

e do Magro, ou Bucha e Estica. Foi divertido! Sendo a gratidão a

memória do coração, fiquei-lhe sempre reconhecido pela minha es-

treia em salas de cinema!

No mais, aqui no Brasil, ele começou lusófilo e acabou baianó-

filo! Não foi, pois, “uma vida em si menor”!...

43

44

Dedicatória do Prémio Nobel da Literatura Gabríel García

Márquez na edição brasileira de Cem Anos de Solidão (1978)

45

A António Celestino

Por Domingos Mendes da Silva

Se gostasse de futebol ou de qualquer dessas tangas televisivas

com que nos entopem o quotidiano, que bom seria: enchia-se-me o

tempo mais, tinha assunto para sair à rua. Mas também quem me

manda ter gostos esquisitos? Arte? Que interesse tem isso? Que os

quadros tal e tal atingiram avultada quantia, num recente leilão?

Mas, felizmente, aqui há um bom par de anos conheci um ho-

mem com quem se podia falar… António Celestino, naturalmente.

A conversa era sempre interessante e imparável como naquela

tarde primaveril em São João de Rei. Na sua casa, cada quadro, cada

livro, cada objeto eram uma história. E as histórias sucediam-se,

eram daqui e doutras paragens mas também de dentro, daquilo que

inquieta a alma humana. A conversa seguia por aí, assim, sem rumo,

e o tempo passava sem dar por nada ao sabor do momento, e eu dei-

xava-me ir, naquele embalo do grande conhecedor do mundo das

artes e dos reflexos que elas suscitam sobre os mistérios da condição

humana. Conversar com Celestino era ficar mais rico, e eu fiquei

mais rico daquela riqueza que não é cotada na bolsa e que ainda não

paga impostos (estão a pensar nisso...). É que a cultura é perigosa, o

outro puxava da pistola quando lhe falavam nela, não era?

Vou estar por aqui mais algum tempo, depois continuamos a

conversa.

46

Posse como membro da Academia de Letras da Bahia (2001)

47

O académico António Celestino

Por Edivaldo M. Boaventura

Ao ingressar na Academia de Letras da Bahia, como membro

correspondente, António Celestino avivou a sua participação na co-

munidade baiana. Celestino já não mais residia em Salvador, mora-

va na sua Casa do Ribeiro, em São João de Rei, Póvoa de Lanhoso.

Estando o Sodalício em recesso, aproveitamos a sua vinda no verão

daquele ano para a tomada de posse, em 26 de janeiro de 2001. Foi

um momento solar na sua jornada soteropolitana.

Um longo passado de trabalhos e lembranças de tempos per-

corridos apresentou-se ao entrar para a nossa Companhia. Quando

estudava em Braga, frequentou o Liceu Sá de Miranda, depois veio

para Guimarães, em seguida para o Brasil, precisamente, Rio de

Janeiro, Recife e Bahia, onde se encontrou. O futuro estava traçado

segundo a linha de espiritualidade primacial na Cidade de São Sal-

vador da Bahia de Todos os Santos. Salvador, primaz da América

Portuguesa, como Braga, primaz das Espanhas.

Influenciado pelo ambiente da Soterópolis, envolveu-se na vida

social e intelectual da cidade e soube construir amizades com Jorge

Amado, Carybé, Dorival, Caymmi, Mário Cravo Junior. Começou,

então, a escrever crónica de arte no jornal Tribuna da Bahia, sua in-

clinação maior. Tornou-se presidente do Museu de Arte Moderna

da Bahia, entre outros postos intelectuais exercidos.

48

Ao mesmo tempo, ocupou cargos de destaque na comunidade

portuguesa, a exemplo da presidência do Gabinete Português de

Leitura da Bahia. Como cidadão prestante, participou de várias or-

ganizações baianas: Instituto de Oftalmologia e Prevenção da Ce-

gueira, Ordem Terceira de São Francisco, Fundação Casa de Jorge

Amado, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. O colaborador

assíduo do jornal A Tarde, de Salvador, destacou-se, no conjunto das

lembranças, as ligações com intelectuais portugueses e sua interven-

ção para conhecer Salvador.

Era homem de cultura e homem de banco — Banco Guimarães

e Banco Económico — e assim induziu o financiamento bancário

para aquisição de obras de arte. Enviuvando, em 1985, retornou à

sua terra e dos seus ancestrais — Casa do Ribeiro. Integrando-se no

mundo das recordações dos seus maiores, incluindo o seu tio padre

José Carlos Simões. Casou-se com a professora Maria da Conceição

Oliveira, a nossa querida Sãozinha. Dividiu-se, como um bom luso-

-brasileiro, entre a Bahia, onde moravam e moram as suas três filhas

— Virgínia Maria, Maria da Luz e Maria do Carmo — e sua pátria

querida, Portugal.

Primando sempre pela exatidão verbal e pelo gosto da conver-

sação culta, insistia com muita graça pela precisão do verbo beber

muito próprio para degustar o vinho e o repúdio, pronto e imediato,

do muito impróprio, vulgar e até imoral verbo tomar para sorver o

precioso líquido. A tal ponto que não posso ouvir a expressão “to-

mar vinho” que não me recorde do preceito de Celestino, encanta-

dor na arte da conversação.

A intensa vida intelectual na Bahia permitiu a António Celes-

tino escrever Gente da terra. É um painel de entrada da pintura figu-

rativa baiana do pós-guerra 1945. É livro de interesse, conforme

James Amado, porque o grupo baiano, como passou a ser chamado

49

nas galerias de arte, é tratado nessa publicação de maneira indivi-

dualizada, pois, cada crónica se refere a um artista. É justificado

pelo caráter particular da criação dos artistas. António Celestino

participou da obra sobre os orixás, do pintor Carybé. Escreveu acer-

ca do Convento do Carmo de Salvador. Anos depois, interessou-se

pela história de sua terra natal, São João de Rei. Publicou suas poe-

sias e escreveu as memórias. É com esse cabedal que foi recebido

festivamente na nossa Academia de Letras da Bahia.

Pondere-se que largo tempo de sua vida produtiva e intelectual

foi na Bahia, integrado no movimento cultural do qual foi um fau-

tor. O ingresso na nossa Academia tonificou mais ainda a sua signi-

ficativa presença entre nós. Como membro do Sodalício, registou-se

definitivamente sua vida e obra, nos anais da instituição. Desapa-

recendo, em 21 de abril de 2013, António Celestino muito honrou

a nossa Academia. Recordo com satisfação o prezado confrade e

amigo na homenagem dos 97 anos.

50

Entre poemas, artes plásticas e amizades,António Celestino, o bancário executivo

51

António Celestino, meu primo de todos nós

Por J. M. de Barros Dias

Derrotado nas planuras da Ibéria, Jean-Andoche Junot, o gene-

ral Junot, ao fugir para França galgando os íngremes penhascos

do Minho, lá nas terras do Cávado, ao olhar para os vales mansos

da terra portuguesa, exclamou:

“Como a Natureza foi pródiga para com estes bárbaros!...”

Estava ele, o herói desasado das mil vitórias napoleónicas, ali,

naqueles cimos do mundo, húmus de meus diletos avós João José

Simões Veloso de Almeida, António Vicente Simões e Pascoal Si-

mões a abençoar, lôbrego, europeu e moderno, o mais insigne dos

nossos, o dileto António Celestino.

Eu conheci António Ceslestino quando ele já estava em acordo

entardecente com a vida, depois de, púbere, ter tido o ensejo de

privar com sua Mãe, Virgínia das Dores, e seu Padrasto, Manuel da

Costa Pedrosa, o tão querido Tio Pedrosa. Ensinou-me Celestino

— o Primo Celestino — coisas únicas e, até, divinas. Disse-me ele,

no santuário sempieterno que é a Casa do Ribeiro que, no nosso

lar, as dores são menos dores. Outra noite, essoutra de rigoroso

Inverno português, abençoada pelos fantasmas avoengos e pelo

divino São Francisco, de Carybé, ele asseverou que os amigos são

criaturas algo menos do que os deuses e um tanto quanto superiores

aos homens...

52

Celestino e sua muito querida companheira, Sãozinha, ins-

truíram-me, ex totto corde, em vivências miúdas entretecidas no

quotidiano que, no lar ancestral, cada um de nós pode encontrar

a matriz de sentido que é a Mater Dolorosa, a Mãe de Ternura. Na

velha casa senhorial, toda ela herança e tradição, a Saudade era,

muito mais do que criação do Passado, filha do Futuro. Esse era,

na verdade, o chão que permitia, àqueles que ali pernoitavam, o

voo livre do Espírito. Todos nós, aquecidos pela lareira, víamos

os jovens irmanarem-se com os fantasmas avoengos enquanto

Celestino ciciava lendas de encantar.

Hoje, o cérebro de António Celestino transformou-se em

terra da muito amada terra de meus ancestrais. É lá, em São

João de Rei, que a divina Saudade se transfigura em desejo de

Eternidade. Nesse rincão do Minho, em tempos conquistado por

Suevos e por Celtas, os homens de sempre indicam o Caminho.

De entre eles, hirto, senhorial, bravo, independente de critério,

António Celestino é, de todos, o primeiro. Cabe a cada um ser

quem tem o dever de vir a ser. Se assim o quisermos, Celestino,

o filho preclaro das Terras de Lanhoso será, para cada um de

nós, o Espírito Avisador do Império sem Imperador, o lusíada

Império da Paz.

53

Uma carta de Vitorino Nemésio

54

António Celestino e Sãozinha com Jorge Amado, na livraria Barata (Lisboa), no dia da apresentação de Navegação de Cabotagem

55

Obrigado, Celestino

Por João Pacheco

Quando aprendi o tamanho de Lisboa estava à mesa, no Minho.

O mais provável é que tivesse a boca entretida com arroz de

feijão e panados de porco dos fininhos, bem temperados com

sumo de limão antes de irem à frigideira.

Ou poderia ser qualquer outra criação de Sãozinha.

Pastéis de bacalhau? Arroz de ervilhas?

A comida terá servido como subterfúgio para muitas gera-

ções ganharem tempo perante argumentação superior, não terei

sido o primeiro nem o último a jogar na defensiva com mais uma

garfada levada à boca.

Um gajo mastiga e sorri, à vez. Pega no copo e bebe mais um

bocado de vinho para recuperar a voz. Mastiga e sorri, de novo.

E depois quando fala já não contra-argumenta, porque o

tempo que passou com a ideia contrária a ressoar sobre a mesa

acabou por lhe dar peso de verdade quase absoluta.

Naquela tarde de sol não havia verdade absoluta nem ideia

contrária.

Havia António Celestino a dizer apenas verdades puras, que

para este eu-puto surgiam como revelações:

— Vocês em Lisboa são muito ignorantes.

Eu mastigava e calava-me em sinal de respeito, interrompendo

56

a minha arrogância ainda com muitas borbulhas e cidade.

Mastigava e marinava a ignorância no meu silêncio e nas pa-

lavras alheias, como faz tão bem a qualquer adolescente.

Lá fora o berbequim do emigrante voltava a ressoar através

do calor de Agosto, abafando os altifalantes da festa de São João.

— Vocês em Lisboa são muito ignorantes, nem sabem falar

português. O que falam é lisboês.

António Celestino dava exemplos desta e daquela palavra.

E eu calava-me, cada vez mais envergonhado com isto de ser

lisboeta.

Passado pouco tempo percebi a minha falta de argumentos.

Não podia defender a minha cidade contra a minha aldeia,

porque eu era também de São João de Rei.

Era há muito tempo também daquela aldeia que se preparava

para mais uma festa de São João. Com cabazes leiloados e crianças

mascaradas de anjinhos a abanar asas de tule.

Era e sou também daquela aldeia onde um dia participei na

procissão meio vestido e meio despido de São João, atrelado à

ovelha enorme que nesse ano fez avançar os andores a uma velo-

cidade nunca antes vista por aquelas bandas.

O que o meu avô adotivo me queria explicar durante esse al-

moço era mais universal do que isso das geografias, dos falares

e dos bairrismos em geral.

Somos sempre tão pequenos. E sozinhos somos ainda menores.

É preciso crescer para compreender a beleza disso.

Obrigado, Celestino.

57

À esquerda, junto à dependência do banco Irmãos Guimarães, onde teve o seu primeiro emprego no Brasil

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António Celestino em primeiro plano, ao centro, de camisa listada. Entre primos e tios na escada exterior da velha casa do Ribeiro

59

O gigante que me carregou aos ombros

Por José Abílio Coelho

Consta que terá sido Isaac Newton quem disse: “Se consegui

ver mais longe, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes”.

Diz-se, mas pode até nem ter sido Newton o autor da célebre fra-

se. De qualquer modo o que para aqui interessa é o seu sentido, a

sua profundidade, a verdade que em si carrega. Poder repeti-la

com verdade, sentindo a metáfora com o mesmo prazer com que

se beberica um vinho raro é para qualquer um enorme honra. E

eu, com a licença de quem a disse primeiramente, repito-a, palavra

por palavra, para declarar que ao longo da vida, também eu me

encavalitei muitas vezes em ombros de gigantes, de muitos gigantes,

aproveitando o favor das boleias a caminho do desconhecido, o mun-

do todo lá na frente, cheio de homens que passeavam saberes.

De entre todos, foi meu pai o maior dos gigantes. E logo de-

pois António Celestino. Com ambos aprendi caminhos, com am-

bos aprendi que se vai mais seguro devagar que a correr, com am-

bos aprendi que nem tudo vale a pena, mesmo se a alma não é

pequena. Ensinaram-me quase tudo quanto eu perguntei ou tive

capacidade para aprender: o cheiro das flores, o correr de águas

límpidas, a beleza das cores, o prazer das palavras trocadas ou o

dos silêncios escolhidos. Com meu pai, aprendi pelo caminho a

beleza das coisas simples. Já Celestino ensinou-me o improvável.

60

Acho que conheci António Celestino desde que me lembro

de mim. Ou talvez me lembre mais de mim desde que o conheci.

Porque sem Luz há penumbras e Celestino pôs-me o Sol à dis-

posição. Ou, melhor dizendo, foi o meu Sol. Sem contrapartidas,

sem segundas intenções, sem superioridades. E, contudo, eu via-o

superior, enormemente superior, carregando-me aos ombros. Le-

vou-me outras vezes pela mão, com humildade, animou-me a

caminhada longa com histórias de encantar, presenteou-me com

momentos mágicos. Deu-me de presente o convívio com Jorge

Amado, Zélia Gattai, Agostinho da Silva, Carybé, Vinicius de

Morais, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Assis Pacheco, António

Olinto, Dário Castro Alves. E ensinou-me livros, pintura, gas-

tronomia e cinema. Poesia. Sentou-me à mesa do rei e recebeu-me

como a um filho, nas suas nobres casas de São João de Rei e da

Bahia. E fez-me tanta vez seu confidente! Numa velha noite de

verão, sentado nas escadas de granito antigo da multisecular Casa

do Ribeiro que ele dizia ter as vozes dos seus ancestrais falando

dentro das paredes, quando a dois deitávamos fora conversa es-

tafada sobre fidalguias de certos conhecidos, deixou cair, com a

sua serena calma dos condenados à vida:

“— A nobreza não está no sangue, mas no caráter”.

Abriu-me portas muito largas e esforçou-se para me sentar

sempre na melhor cadeira. Fez-me amigo dos seus amigos tantos

e tão grandes e cedeu-me muitas vezes o espaço que lhe pertencia.

E ensinou-me método por parábolas. Com ele aprendi significados

e soube o que era verdadeiramente amizade, fraternidade, tolerân-

cia, cor. A profundidade do verso mais simples. Fui muitas vezes

o seu oráculo e ele o meu deus antigo.

António Celestino foi o meu amigo, o irmão mais velho que

61

não tive, que nenhum de nós teve, a palavra generosa, a cama-

radagem sã, pirâmide do meu equilíbrio, livro aberto na página

certa em cada dia, meu mestre, gigante em cujos ombros me enca-

valitei. Evidentemente que não vi tão longe como Newton, se efe-

tivamente foi Newton quem disse que assim lhe aconteceu. Mas

o defeito não foi dele, Celestino, que me deixou ir, que me levou

serena mas firmemente por todo o lado, como quem diz: pergunta

e olha e saberás; o defeito foi dos meus olhos mal afeiçoados à

luzerna tamanha que de si irradiava.

Hoje saúdo Sãozinha, seu anjo-da-guarda e seu tudo na

vida, a viração da Bahia que ele me ensinou, as vozes ancestrais

nas paredes da velha casa, poemas de cera perdida, páginas de

Graciliano, uma música de Noel Rosa, um São Francisco de Rai-

mundo Oliveira, o bacalhau do Vítor, os serafins da varanda do

Ribeiro, o relógio de pêndulo repetindo os quartos de hora, Nossa

Senhora da Lapa da sua devoção, um Boer sempre por perto, o

chapéu de abas largas, o falar adocicado, a piada inteligente, o

sorriso claro, pessoas que o amaram, uma vida cheia — caminho

que não havia e que fez caminhando. Tudo isso é o nosso António

Celestino. Eu escrevi é porque, por favor, não me venham dizer

que ele já cá não está, que por motivo urgente precisou de se

ausentar. Sei daquilo que falo: ele jamais se ausentaria da sua

aldeia de São João de Rei onde sempre disse que até a dor dói

menos. Não escutam, dentro das paredes da velha casa, a sua voz

serena contando uma história em forma de cereja?

62

Com o casal Calazans e Grace Gradin

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Da improvável amizade entre dois especialistas

Por José Dias

Celeste-hino, em homenagem a um amigo.

“Consta que a música é celeste, de natureza divina e de tal beleza

que encanta a alma e a eleva acima da sua condição”.

Aristóteles

“Hino – composição literária para louvor a uma personalidade”.

De um dicionário

A minha ascendência materna é de Travassos, freguesia da

Póvoa de Lanhoso; mãe e tios nascidos entre 1914 e 1921.

Trabalhei em Braga, na agência de viagens Abreu, entre 1983 e

1996, como técnico de turismo. Aí nasci em 1948 e vivi até 1952 e,

depois, de 1978 a 1996. Aí conheci e cultivei a honra de ser amigo

do mestre.

António Celestino cabe claramente na rara categoria dos esses

– especialistas especialmente especializados.

Eu, incluo-me na generalizada e poluente categoria de espones

– especialistas em porra nenhuma.

Como se consegue uma relação cidadã de amizade e estima

mútua, separada por mais de trinta anos de idade e por níveis cultu-

rais tão distintos, como se o divino e o profano decidissem trocar

amizades?

64

Ainda por cima condicionada pelo verão boreal, dada a sua

intermitência luso-brasileira. Mas, também pelo breve espaço de

território de encontro, frente ao prédio da avenida Central, núme-

ro 171, onde eu trabalhava e falávamos por tempo breve, em meia

dúzia de conversas anuais, durante não mais de 10 anos. Em dois

metros quadrados de espaço físico e em milhões de quilómetros de

espaço mental. Tivemos, talvez, algumas sessenta conversas de mais

ou menos dez minutos cada uma. Sim, talvez uns seiscentos minu-

tos de um convívio intermitente, o que representa, no seu conjunto,

dez horas. Não apago a memória!

Porque fui e sou um cidadão indignado, um cidadão civica-

mente empenhado, na procura constante de um caminho de espe-

rança, admirador de Stéphane Hessel, também dele recebi, sempre,

palavras de incentivo, de estímulo, de encorajamento, contributos

decisivos para fazer subir a minha autoestima ao seu ponto mais

alto. Vindas dele, música celestial!

Obrigado Mestre, a sua passagem aérea de volta a Salvador

está reconfirmada. Tão só! Bom verão austral! Um beijo à Sãozinha!

Um abraço às suas amigas e aos seus amigos! Amizade suspensa.

Por seis meses! Voltava sempre! Beijo à Zélia, abraço ao Jorge!

Saravá!

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De férias, em Portugal, com amigos na Villa Beatriz, propriedade da família Guimarães para a qual trabalhava no Brasil

66

Com Odorico Tavares, Jorge Calmon e Jorge Amado, na posse de Jorge Calmon (ao centro) na Academia de Letras da Bahia, a 7 de julho de 1965

67

Amizade por herança

Por Lizir Arcanjo Alves

Minha primeira viagem a Portugal foi através da literatura.

Viagem marítima, por mares nunca dantes navegados, na compa-

nhia de Luiz de Camões, enfrentando obstáculos tais como o gigan-

te Adamastor, sereias enganadoras e uma linguagem que me exigia

a consulta permanente de um dicionário. Tinha então 13 anos e o

entusiasmo por Camões estendeu-se a outros clássicos da nossa an-

tiga metrópole. Aos 16 anos já tinha lido Almeida Garrett, Alexan-

dre Herculano, Camilo Castelo Branco e todos os romances de Eça

de Queirós. Com este, principalmente, conheci o espaço urbano de

Portugal e certa vez, depois da leitura d’Os Maias, fiz um álbum

com recortes de fotos de locais por onde andaram e viveram os per-

sonagens. Alimentava o sonho remoto de um dia poder visitá-los.

A oportunidade da sonhada travessia do Atlântico chegou, fi-

nalmente, em 1991, quando das férias, no mês de julho, de minhas

funções de professora de Literatura na Universidade Católica do

Salvador e de jornalista do jornal A Tarde. Nesta empresa, comuni-

quei ao diretor, Jorge Calmon, que estava indo a Portugal, começan-

do a visita pelo Porto, onde se encontrava uma colega que ali fazia

pós-graduação. Ele, então, de pronto, me pediu que fosse visitar um

amigo dele que residia não muito longe do Porto, António Celes-

tino. Que lhe desse muitas lembranças e à sua esposa “uma cria-

68

tura formidável”, chamada Sãozinha. Logo no dia seguinte à minha

chegada, telefonei para o tal amigo e comuniquei-lhe o recado do

meu chefe. Muito educadamente, ele agradeceu e com certa ênfase

no falar disse-me o seguinte: “Se o doutor Jorge Calmon disse que

a senhora tem de me conhecer, então obedeça e venha a minha casa

em Póvoa de Lanhoso”. Com o endereço na mão lá fui eu, obedi-

entemente, cumprir um dever de amiga. Tudo não poderia ter pas-

sado de um simples dever protocolar, troca de amabilidades sem

consequências. Mas mal sabia eu que uma vez chegando à Casa

do Ribeiro, estaria enlaçando, para sempre, o coração numa feliz e

imorredoura amizade. Voltaria a encontrar o casal, algumas vezes

na Bahia, outras em Portugal, já na companhia de Jorge Calmon.

Todo mundo tem um conceito sobre a amizade e muito já se

filosofou sobre o tema, mas o texto mais famoso, “Da Amizade”,

pertence a Cícero, que contraria a comum reflexão de que é nas

horas difíceis que se conhece o verdadeiro amigo. Afirma ele que

não é bem assim. Pelo contrário, é nas horas felizes que se manifesta

o sentimento mais leal da amizade. O amigo que sabe alegrar-se com

as alegrias do outro, sem invejá-lo, sem constranger-se com a felici-

dade alheia, este, sim, é o verdadeiro amigo. Quando me recordo do

casal Celestino, só vem à mente cenas de grandes alegrias, a última

delas, quando Jorge completou 90 anos e quis passar a data longe

do Brasil, tendo escolhido Portugal, que tanto amava, e a Casa do

Ribeiro, como o lugar ideal para dia tão especial. Esperavam-nos

com um banquete inesquecível.

A última vez que vi o saudoso amigo, disse-lhe, ao chegar: “O

senhor sabe por que venho aqui? Porque ao entrar nesta casa me

sinto em minha própria casa”. Ele me respondeu: “E está certa,

porque esta casa também é sua”. Este é meu conceito pessoal sobre

a amizade: o amigo verdadeiro é aquele em cuja casa nos sentimos

69

“em nossa casa”. Certa vez, escrevendo um dos seus artigos, Jorge

Calmon disse que a morte é um mero incidente, que a pessoa conti-

nua a existir enquanto perdurar entre nós a vibração do seu espírito.

Foi esta a minha sensação, quando estive na Casa do Ribeiro, de-

pois da partida do seu ilustre proprietário. Apesar da saudade da

boa companhia, da conversa agradável, das gargalhadas inevitáveis

por causa do seu constante bom humor, ele continua entre nós, nos

alegrando o espírito, nos alimentando os corações.

70

Celestino com António Carlos Jobim e Paloma Amado

71

António Celestino, um grande Senhor

Por Nuno Lima de Carvalho

Conheci António Celestino, aquando da realização de uma

grande Semana Cultural e Gastronómica da Bahia no Estoril, em

1980, de homenagem a Jorge Amado, à qual se seguiu a realização

de uma semana, igualmente cultural e gastronómica, do Estoril/

Portugal, na Bahia, em 1981, eventos que tiveram uma importante

colaboração de Celestino, sendo de sua autoria o texto do catálogo

da exposição de Artes Plásticas, realizada por essa altura, com obras

dos ilustradores dos livros do autor dos “Capitães da Areia”, Carybé,

Carlos Bastos, Mário Cravo Júnior, Jenner Augusto, Calasans Neto,

Floriano Teixeira e Mário Cravo.

António Celestino era uma das pessoas, que quem com elas

contacta, não tem dificuldade em descobrir que se encontra perante

uma personagem de grande qualidade humana. Foi o caso. Logo no

primeiro contacto, vi em Celestino um grande senhor, invulgarmente

culto, afável, fazedor de amigos. Não tendo qualquer licenciatura

universitária, tinha o doutoramento da vida, obtido em duas fases,

a primeira, através da leitura das centenas de livros de seu tio, padre

Carlos; a segunda, tirada na vida, na aprendizagem do dia-a-dia, e

num esforço de valorização permanente.

Ouvi da boca de Jorge Amado, de quem Celestino era com-

padre, em mais do que uma ocasião, rasgados elogios, confirmados,

por escrito, em alguns dos seus livros.

72

Não resisto a transcrever do “Navegação de Cabotagem”, o

testemunho seguinte: “Pai amantíssimo de três filhos, a do meio mãe

de meus netos, ainda o é mais da filha caçula, a dos poemas, não

esconde a vaidade quando lhe gabam os versos de Carminha. Baiano

do Minho, esse senhor Celestino, bancário a vida toda, banqueiro

por uns tempos, é um dos responsáveis pelo florescimento das artes

modernas na Bahia. Director do Banco Económico, com o aval de

Miguel Calmon e o apoio de Ângelo Calmon de Sá, abriu carteira

para o financiamento de exposições e a venda de quadros e esculturas,

iniciativa de evidente importância para as finanças sempre incertas

dos artistas. Em A Tarde exerce a crítica de arte, douta e moderna,

não direi imparcial, pois Celestino é devoto da amizade e a amizade

é partidária. Escreveu um livro, Gente da Terra, sobre os artistas

plásticos da Bahia, os de sua preferência: Carybé, Carlos Bastos,

Floriano, Calá, Fernando Coelho, Mário Cravo, a curriola toda.”

Em vários escritos, Jorge Amado se refere com louvor e aplauso,

ao apreço que António Celestino demonstrou ter pelos artistas

plásticos baianos, recordando também ter incluído o seu nome no

rol de personagens de seus livros, sempre “se saindo bem, com honra

e brio”.

Celestino foi autor de vários livros, em prosa e verso. Não era

orador de púlpito ou de tribunas de conferências, mas escrevia com

invulgar elegância, propriedade de termos, que o meu professor de

português, Benjamin Salgado, me dizia ser a melhor qualidade, tanto

do bom escritor, como do bom orador, que Celestino era.

Foram algumas as vezes, que depois da manducação do divino

bacalhau, no restaurante do Victor, em São João de Rei, nos deliciava

com as suas deliciosas “falas”, nunca lhe faltando a citação oportuna

ou o toque de fino humor que a todos deliciava.

Uma faceta da vida de António Celestino que não pode ser

73

esquecida foi o relacionamento com os artistas plásticos do Brasil, não

apenas os de Salvador, mas também, bastantes dos grandes pintores

do Brasil, Di Cavalcanti, Cícero Dias, Goeldi e Aldemir Martins.

Instituiu em Salvador um Centro Cultural, onde se reuniam os

artistas baianos e os amantes das Artes, o “Oxummaré”, sempre com

grande frequência, quer de artistas, quer de amantes das Belas Artes.

De não esquecer foi a sua iniciativa, de que muito se orgulhou

e Jorge Amado aplaudiu, como acima referi, de haver concretizado

no Banco em que trabalhava, um projeto de financiamento de

aquisição de obras de Arte, um projeto de características invulgares

e únicas, mesmo a nível mundial, tendo chegado a permitir a venda

de exposições inteiras e incentivo do mercado da Arte.

Se era amigo de artistas plásticos, incluía, também, no rol dos seus

amigos, grandes escritores brasileiros e portugueses, como Ferreira

de Castro, Reinaldo dos Santos, Homem Cidade, Vitorino Nemésio,

Mário Chicó, João Gaspar Simões, Eduardo Lourenço, José Osório

de Oliveira, Joaquim Paço D’Arcos, Luis Forjaz Trigueiros, Fernando

Namora, Álvaro Salema, Lyon de Castro, Fernando Assis Pacheco,

David Mourão Ferreira e muitos outros nomes, que ele regista na

sua autobiografia, “António Celestino, uma vida em si menor”, que

para nós, penosamente, ficou a meio.

António Celestino está no espírito e no coração de todos quantos

tiveram o privilégio de o conhecer, como um grande Senhor e um

grande Amigo. Recordar o seu nome é um ato de Justiça. Bem haja

quem tal iniciativa promoveu.

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Família da Casa do Ribeiro reunida no acesso à “varanda”.À esquerda, na fotografia, o jovem António Celestino

75

A generosidade de António Celestino

Por Sonia Sales

Conheci Antonio Celestino por intermédio de outro querido

amigo, Wilson Rocha, grande poeta baiano, que também já se foi;

mas como os poetas não morrem, viram estrelas, os dois devem

estar trocando ideias no céu.

Costumava mandar para Wilson Rocha, meu material de

trabalho e convites, e ele os repassava a Antonio Celestino, que

não só os publicava no jornal A Tarde em Salvador, como fazia

referências elogiosas ao meu trabalho e eu era-lhe muito grata.

Depois de algum tempo, passamos a nos corresponder e ficamos

amigos missivistas.

Antonio Celestino, português – baiano, muito culto, tinha

incrível senso de humor, era aquele que animava qualquer reunião e

sem dúvida uma das figuras mais conhecidas nos meios intelectuais

da Bahia. Banqueiro, gostava de ser apresentado como jornalista

e poeta. Grande incentivador da arte baiana e amigo dos artistas,

aos quais sempre ajudava, sendo autor de vários livros escreveu

ainda no Brasil uma antologia crítica na qual enaltecia os artistas

da Bahia. “Gente da Terra”.

Na verdade era um brincalhão e unido a Jorge Amado e Carybé

– uma trinca baiana do barulho, curiosamente composta por um

português, um argentino e só um baiano gostava de atormentar

carinhosamente os amigos.

76

Em certo verão, estando de férias, resolvi passar uma semana

em Salvador. Escrevi ao já grande amigo Celestino e combinei

de conhecê-lo pessoalmente.

Assim que cheguei à cidade telefonei-lhe para combinar o

encontro. Convidou-me para almoçar no dia seguinte. Imaginem!

No dia de Iemanjá, que equivale na religião africana, a Nossa

Senhora da Conceição (sou Sonia da Conceição).

–Vamos almoçar em casa de um amigo.

Mal sabia eu o que me esperava! O tal amigo era simplesmente:

Jorge Amado. Fiquei encantada! Ele mal me conhecia e já estava

me proporcionando um encontro com o mais brasileiro dos

escritores, o meu favorito. Eu não tinha ideia de que o filho de

Jorge fosse casado com a filha de Celestino. Passada a semana,

voltei para o Rio (naquele tempo ainda morava lá) com uma mala

cheia de livros dedicados por Jorge Amado, que daí em diante

também se tornou meu amigo.

De outra vez, dando um jantar em minha casa, de brincadeira

convidei Celestino, mas na verdade não o esperava. Pois bem, ele

foi o primeiro a chegar. Levei um susto! Foi o rei da festa, todos

os meus amigos o adoraram. Daí em diante esse comportamento

tornou-se lugar comum. Vinha sempre com generosas lembranças:

Gravura de Caribé, artesanatos baianos, tudo o que pudesse

lembrar a Bahia.

Vou reproduzir um trecho de uma de suas cartas:

Sonia, amiga,

Ora até que enfim... Já estava meio desanimado de te encontrar,

mandei cartões de Portugal, cartão de Boas Festas já aqui, e nada...

Foi portanto com alegria, sim com ALEGRIA, que recebi tuas notícias,

pequenas, sim, mas de qualquer forma, notícias. Para te falar a verdade,

77

só dois cartões de festas deram a este seu amigo real alegria: o teu e o de

Carlos Drummond de Andrade. Palavra de honra!

Antonio Celestino deixou sua marca neste mundo, além dos

seus feitos e escritos, a lembrança de uma grande generosidade.

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No restaurante O Victor, em São João de Rei, falando durante a homenagem que ali foi prestada a Zélia Gattai e Jorge Amado, no 20º aniversário da

primeira passagem do casal de escritores por aquela casa (20-08-2005)

79

O Senhor António Celestino

Por Victor Peixoto

Aí pelos meus cinco anos, mais coisa menos coisa, levado por

minha mãe, Maria Rita, comecei a conhecer a família da Casa do

Ribeiro, especialmente a senhora Dona Virgínia Simões, mãe do se-

nhor António Celestino. As famílias da Argainha, casa agrícola de

São João de Rei de onde minha mãe provinha, e a do Ribeiro, onde

teve ascendência materna o senhor Celestino, sempre conviveram

com grande amizade.

Ainda menino ouvi muitas vezes falar no senhor Celestino, que

já então se encontrava no Rio de Janeiro. Quando cá veio, em férias,

pela primeira vez, lembro-me da alegria sentida em toda a aldeia,

e das vezes em que, juntamente com as filhas, visitou a casa dos

meus pais, distribuindo alegria contagiante por todos aqueles que

o rodeavam.

Com o decorrer dos anos tive a sorte de cimentar mais profun-

damente essa amizade antiga e de receber inúmeros conselhos para

que, dando então eu os primeiros passos na afirmação desta casa

que tenho a honra de administrar há trinta anos, e que começou por

ser uma simples mercearia de aldeia onde se serviam uns petiscos,

não estragasse o ambiente que rodeava a nossa casa, mantendo an-

tes a traça rural que a envolvia e envolve.

Contribuiu grandemente para a divulgação e sucesso do meu

80

restaurante, acompanhando algumas das mais ilustres figuras das

artes e das letras tanto portuguesas como brasileiras.

Ao longo da vida sempre foi um grande amigo de São João de

Rei, tendo pertencido à fábrica da igreja, juntamente comigo e com

o senhor Luís Megre Beça, tendo contribuído com o seu saber no

campo das artes, para que a igreja paroquial fosse classificada como

de interesse nacional, o que levou a que tivesse sido restaurada com

todos os quês da sua originalidade. Mas não se ficou por aqui pois

ainda há alguns poucos anos ofereceu os melhores terrenos que exis-

tiam no centro da freguesia, e que lhe pertenciam, para a construção

da sede da junta e dos escuteiros. Escreveu um livro, que teve já

duas edições, onde conta a história desta nossa terra e tem por título

“Antigamente era San Joan Del Rey”. Mas estes são apenas alguns

pequenos apontamentos para a importância que teve para esta fre-

guesia, pois a sua dedicação, o seu amor e a sua dinâmica para a

divulgar não podem ser descritos por simples palavras.

Terminaria relembrando que foi um verdadeiro contador de his-

tórias, e como eram alegres e animados os almoços e jantares que

no meu restaurante fazia com tantos e tantos amigos.

Por tudo isso e por muito e muito mais que fica por falar, arrisca-

va-me a dizer que o senhor António Celestino foi um dos maiores

habitantes que São João de Rei conheceu ao longo dos tempos, e

que esta freguesia nunca lhe pagará o que fez por ela.

81

Carta do Prémio Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa, e, napágina seguinte, missiva de João Ubaldo Ribeiro

82

83

“Os graves problemas mundiais

trágicos, inclementes,

têm a maior repercussão

na aflição das gentes.

Mas afligem menos

que a minha dor de dentes”.

in ... às vezes fico pensando se isto será poesia, p. 10.

“Fruto e flor de tanta lei

Só renegando tudo,

Me farei.

Preso a tanto preconceito

Não sou o que queria.

Aquele que devia ser perfeito,

Para o ser, mentia”.

in Poemas de Cera Perdida, p. 16.

“Na velha Casa do Ribeiro, de São João de Rei, da qual [meu avô]

era senhor absoluto, a desordem era completa. A entrada era comum

a animais e a pessoas, o serviço da quinta e a presença indiscrimina-

da de trabalhadores e caseiros davam-lhe um ar triste e desleixado.

E os porcos conviviam com as galinhas no mesmo terreiro da en-

trada mais nobre da Casa e quem subia as suas escadas de pedra, le-

vava nas botas ferradas os sinais da promiscuidade que atravessara.

Até que, certo dia, a limpeza começou com um tapete na porta da

sala, a fim de habituar as visitas a certo cuidado que minhas tias

começavam a exigir. A resposta não se fez tardar pela voz do Abade

Fragmentos

84

85

da freguesia, que impressionado com aquele objeto tão limpo, reco-

mendou:

— Por favor, tirem isso daí, senão acabo pondo-lhe os pés em cima!”

*

“Um dia tive a dita de conhecer Jorge Amado e Zélia. Jorge, enorme

coração, enorme romancista, enorme amigo, por sua generosidade

ganhei muito prestígio, sua grandeza de alma e seu renome univer-

sal agasalharam meu nome de uma forma comovente e magnânima.

Por sua mão entrei em muitas portas que sem ele eram impossíveis

de transpor, com seus conselhos tornei conhecidos meus escritos e

em sua casa generosa conheci muitos dos que hoje são meus amigos

também. A ele e sua mulher devo os maiores favores, mas sou teste-

munha de que essa largueza de ânimo era a forma aberta de estarem

no mundo. E distribuíam sem medir, jorrava naturalmente como a

água duma interminável nascente donde tantos bebiam. Eu sei e

não foi por ouvir contar”.

*

“Lembro da vinda de Floriano Teixeira para a Bahia. Com uma ex-

posição de artistas cearenses vieram desenhos dele, verdadeiras obras-

-primas duma grafia exaustiva e impressionante. Alertei Jorge [Ama-

do] para a qualidade daquele artista e ele foi à exposição e, como

eu, ficou impressionado. E pensando no enriquecimento do viveiro

baiano, logo que o artista veio a Salvador, Jorge convidou-o a passar

algum tempo em sua casa do Rio Vermelho para o incitar a mudar-

-se daquela outra cidade, onde morava com a mulher e muitos fi-

lhos, pois não via que nela pudesse desenvolver seus talentos como

merecia. (...). E Floriano veio e foi hóspede de Jorge não sei quantos

meses. Gostou da terra e resolveu trazer Alice e a filharada, mas

esbarrava na falta de dinheiro. ‘Não seja por isso’, disse o romancista.

‘Arranja-se uma exposição e com a venda dela, você traz a família’.

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— Mas eu não tenho nenhum quadro pronto e eu pinto devagar.

— Também isso se arranja. Celestino vende-a toda e depois você en-

trega os quadros à medida que ficarem prontos.

E assim se fez. Relacionei os possíveis compradores numa lista, e

fui falando, um a um, da importância daquele artista para a Bahia e

da sorte de quem pudesse adquirir alguma obra com antecedência.

Foram 24 voluntários que pagaram sem ver o que compravam, acre-

ditando na minha palavra que sabiam honrada. E com esse dinheiro

Floriano foi buscar sua admirável Alice e não sei quantos filhos”.

*

“Viajei por esse mundo, devo ter atravessado o Atlântico Sul mais

de 50 vezes, corri também outros mares e outras rotas, conheci gen-

tes e povos, fiz mais de trezentos artigos para jornais, fiz amigos e

inimigos, amei e creio ter sido amado, estive alegre e triste como nas

letras dos fados antigos, algumas vezes chorei mas na maioria ri,

senti o calor da bondade humana, gozei do respeito de alguns e do

desprezo de outros, nunca abusei de nada e sempre que posso tam-

bém de nada me privo dentro desse mesmo princípio, li imenso o

que tinha descuidado, enfim, cumpri como me foi possível a minha

circunstância. (...). Procuro ter fé, mas não sei se o consigo. Respeito

a de todos, bem como todos os credos honestos. Gosto da vida, pois

gosto de mim e dos meus. E a única das virtudes que eventualmen-

te possa ter, é a de gostar. Mas se isso acontece é unicamente por

defeito meu, pois não sou de odiar, embora às vezes tenha lastima-

do essa falta. Creio que, com certa frequência, é bom descarregar os

humores em cima de alguém e para isso não há melhor alvo do que

um inimigo particular”.

in Uma Vida em Si Menor, pp. 15-16, 178-179, 179-180, 216.

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“Um homem, geralmente, perde-se quando tenta definir-se, pois a

sua circunstância não se fabrica: acontece. E a minha foi o resultado

feliz de ter assumido três nacionalidades. Primeiro, por ser portu-

guês, que sou por vaidade e teimosia. Depois, por querer ter sido

brasileiro que também sou por gratidão, enlevo e fascínio e, final-

mente, porque aceitei, por convencimento, magia e devoção, a Pá-

tria que é a Bahia, onde renasci (...)”

*

“Recordo que os ritmos de vida são sempre mutáveis. Basta obser-

var que entre os animais o galgo é elegantíssimo, corre que dá gosto

vê-lo, mas só dura pouco mais de dez anos. E que a tartaruga, atar-

racada, feia, mexendo-se com dificuldade, para sair do lugar é um

Deus nos acuda, dura mais de trezentos anos... É claro que não dá

para escolher, mas dá que pensar...”

in Coelho, José Abílio, António Celestino, Póvoa de Lanhoso,

Jornal Terras de Lanhoso, 2007, pp. 13-14

*

“Dizia Simone de Beauvoir

que quando Sartre lia alguma coisa por ele escrita

que não mais entendia,

ria-se a valer,

pois sabia que a inteligentzia de plantão acharia aquilo

o profundo da profundidade.

Grande Sartre...”

in Poemas de Cera Perdida, p. 107.

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António CelestinoComendador da Ordem do Infante Dom Henrique

Grande Oficial da Ordem de BenemerênciaMedalha de Mérito Cultural Castro Alves

Cidadão Honorário da Cidade do SalvadorCurador da Fundação do Infante Dom Henrique

Conselheiro da União das Comunidades PortuguesasMembro da Academia de Letras da Bahia

Sócio Honorário da Sociedade Santa Cruz e doTerreiro de Candomblé Axé Apô Afonjá

89

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OS COLABORADORES

n ALBERTO OLIVEIRA | MARIA JOSÉ [email protected]

Minhotos de nascimento e empresários de profissão, o casal Alberto Oliveira e Maria José Costeira são sobrinhos por afinidade de António Celestino e foram grandes amigos do autor de Poemas de Cera Perdida e Contos em Forma de Cereja.

n BRUNO CELESTINO [email protected]

Bacharel em administração de empresas pela Universidade Federal da Bahia com pós-graduação em marketing pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, e MBA pela University of Nottingham, além de neto de António Celestino.

n CÉSAR DA COSTA ARAUJO VALENÇ[email protected]

Licenciado em Ciências Históricas pela Universidade do Porto. Foi professor efetivo do ensino secundário, docente da Universidade do Minho, diretor do Museu Nogueira da Silva (UMinho) entre 1988 e 2002, membro da comissão instaladora da Casa-Museu de Monção, membro do Conselho Cultural da Universidade do Minho e diretor para o distrito de Braga da Associação Portuguesa de Casas Antigas. Fez investigação no campo das artes decorativas. Colaborou nas revistas Forum, da Universidade do Minho, e Artes e Leilões, sendo autor de diversas publicações. Reside em Verim, Póvoa de Lanhoso, na Casa da Sarola de Baixo.

n CUNHA DE [email protected]

Escritor. Nasceu em Brunhais, Póvoa de Lanhoso, e viveu várias dé-cadas no Brasil. Escreveu romances, contos, peças de teatro, ensaios e roteiros para televisão e cinema. Tem obras traduzidas no México e na Itália, e ganhou alguns prémios literários, aqui, lá e além. Que muito bem lhe fizeram à carteira. Só.

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n DAVID AUGUSTO DE CAMPOS GUIMARÃES

Advogado. Reside no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu, filho de por- tugueses. Amigo e compadre de António Celestino.

n DOMINGOS MENDES DA [email protected]

Formado pela escola artística de Soares dos Reis (Porto), é professor do ensino secundário e artista plástico. Natural e residente em Tra-vassos, Póvoa de Lanhoso. Está representado em dezenas de coleções públicas e privadas. É ilustrador de vários livros e autor das bandas desenhadas Maria da Fonte e Foral de Lanhoso. O monumento erigido ao 25 de Abril, na Póvoa de Lanhoso, é da sua autoria.

n EDIVALDO M. [email protected]

É doutor em Direito e professor jubilado da Universidade Federal da Bahia. Académico titular de número e benfeitor da Academia de Letras da Bahia, é também membro da Academia Portuguesa da História. Foi diretor-geral do diário A Tarde e é autor de mais de uma vintena de livros.

n J. M DE BARROS [email protected]

É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e doutor em Filosofia pela Universidade de Évora. Professor Associado da Univer-sidade de Évora, reside em Curitiba (Brasil) desde início de 2012, onde é professor na Faculdade Inspirar, na Faculdade Anchieta de Ensino Superior do Paraná e no IBPEX – Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão. É autor de doze livros e mais de cem artigos científicos nas áreas da Ética, Filosofia da Educação e Filosofia Social e Política.

n JOÃO [email protected]

É jornalista e gosta de escrever sobre comida e sobre isto de estar vivo. Na infância e adolescência, fez na Casa do Ribeiro parte da for-mação que importa mesmo. Podendo escolher várias nacionalidades, reclama-se também de São João de Rei.

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n JOSÉ ABÍLIO [email protected]

Licenciado e doutorando em história contemporânea pela Universidade do Minho, é bolseiro da FCT. Historiador e ficcionista, tem mais de duas dezenas de trabalhos publicados em livro. Prémio de mérito da Universidade do Minho e prémio Engº Duarte do Amaral, da Funda-ção Martins Sarmento, venceu, em 2014, o prémio literário António Celestino, que veio juntar-se a outros anteriormente alcançados.

n JOSÉ [email protected]

José Dias é Comendador da Ordem da Liberdade e Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique (Portugal), Grande Oficial da Ordem de Bernardo O’Higgins (Chile) e Companheiro Paul Harris da Fundação Rotária Internacional. É membro de numerosas asso-ciações cívicas e políticas. Foi assessor político do Presidente Jorge Sampaio. Foi dirigente da Organização Internacional do Turismo Social, em Bruxelas.

n LIZIR ARCANJO [email protected]

Lizir Arcanjo Alves é doutora em Literatura Brasileira e professora aposentada da Universidade Católica do Salvador-Bahia. Tem diversos livros publicados, dentre os quais: Humor e sátira na guerra de Canudos (1997); A cidade da Bahia no romance de Jorge Amado: Dicionário topográ-fico (2008) e O 2 de Julho na Bahia (2010), este um estudo de história política através da poesia. É sócia efetiva do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

n NUNO LIMA DE [email protected]

Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Salamanca e em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Secretário-Geral do grupo Estoril-Sol e diretor da Galeria de Arte do Casino Estoril. Fundador e mordomo-mor da Confraria dos Gastrónomos do Minho. Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e da Ordem de Mérito Civil de Espanha. Amigo e admirador de António Celestino

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n SÃOZINHA [email protected]

Natural de São João de Rei (Póvoa de Lanhoso), Maria da Concei-ção Oliveira, de seu nome completo, é professora do ensino básico aposentada. Foi esposa e “anjo da guarda” de António Celestino nos últimos anos de vida do autor de Uma Vida em Si Menor.

n SONIA [email protected]

Estudou Psicologia e Arte. Poeta, ensaísta, cronista, autora de lite-ratura para crianças, tem 18 livros publicados. Pertence, entre outras agremiações, à Academia Carioca de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, à Sociedade Eça de Queiroz, à Academia Luso Brasileira de Letras e ao PEN Clube do Brasil. Recebeu os pré-mios Menotti Del Picchia, da União Brasileira de Escritores; e Pedro Paulo Moreira, da UBE: Rio de Janeiro. Em 2011 foi agraciada com a medalha de mérito cultural “Académico Austagésilo de Athayde”. Nasceu no Rio de Janeiro e reside em São Paulo.

n VICTOR [email protected]

Chefe de cozinha e proprietário de O Victor (em São João de Rei, Póvoa de Lanhoso, Portugal), restaurante que transformou num ícone da gastronomia minhota a partir de uma pequena mercearia herdada de seus pais. Ao longo das últimas quatro décadas recebeu comensais tão famosos como os escritores Jorge Amado e sua esposa Zélia Gattai, David Mourão-Ferreira ou Fernando Assis Pacheco, pintores como Manuel Cargaleiro ou Carybé, músicos como Rui Veloso ou Nana Caymmi, jornalistas como Miguel Esteves Cardoso, diplomatas como Dario Castro Alves ou Luiz Filipe Lampreia ou desportistas como Vítor Baía. Era nesta casa que Celestino levava a almoçar ou jantar os amigos de passagem pela sua aldeia natal.

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Cólofon[“Nota final de um livro que reproduz ou completa o frontispício”]

Um dia, conversando sobre livros, dizia-me António Celestino que todos deviam ter cólofon, e que nele devia reproduzir-se a informação essencial que não coubera na estrutura da obra.

Aqui fica, pois, o cólofon deste livro, a título de posfácio.Esta breve obra, composta por 96 páginas e tiragem limitada a 200 exem-

plares, é hoje, dia 24 de maio de 2014, oferecida aos que se encontram pre- sentes num jantar que reuniu, no restaurante O Victor, em São João de Rei, um grupo de amigos do autor de Poemas de Cera Perdida para o recordarem no dia em que completaria 97 anos. Para além dos que são hoje oferecidos, alguns mais serão entregues aos que, manifestando o desejo de estarem presentes, não o conse- guiram, pelas mais variadas razões.

Enquanto coordenador desta “relembrança” do Homem e do Amigo que foi António Celestino, agradeço à empresa Costeira a sua edição. Sem esse apoio não teria sido possível materializar esta pequena oferta.

Agradeço ainda os apoios da Junta de Freguesia de São João de Rei e da empresa portuense Atlas Seguros.

Agradeço, por fim, a todos aqueles que, convidados para colaborar, quise- ram honrar o homenageado com os seus textos breves. Ressalvo que todos os convites para colaboração foram da minha inteira e exclusiva responsabilidade, como, aliás, toda a configuração do trabalho.

Nele expresso, uma vez mais, o meu reconhecimento, agradecimento e saudade ao Amigo e Mestre António Celestino.

José Abílio Coelho

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... na nossa terra até a dor dói menos...

De velhos pedaços de caminho,fiz um caminho novo.Dum sonho esquecidotirei uma paisagemcom montanhas, com rios,casario de pedra.Uma igrejinhae matas de carvalhos e pinheiros.E no fundo — as nuvens do Outono.encostadas ao céu.

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