Anais IISIM-UFRJ ISBN9788565537025

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Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ

MARIA ALICE VOLPE (Org.)

Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Teoria, crítica e música na atualidade Maria Alice Volpe (org.). – Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2012 . 268 p. : il. ; 21cm.Trabalhos originalmente apresentados no II Simpósio Internacional de Músicologia da UFRJ (2. : 15 a 17 de agosto de 2011 : Rio de Janeiro, RJ)ISBN: 978-85-65537-02-51. Teoria Musical – História e crítica. 2. Musicologia – História e crítica. I. Volpe, Maria Alice, org. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Música. Programa de Pós-graduação em Música. III. Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ. CDD -780.5

S612a

Copyright © 2012 by Autores500 exemplares

Universidade Federal do Rio de JaneiroCarlos Antônio Levi da Conceição ReitorAntônio José Ledo da Cunha Vice-reitorDebora Foguel Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa

Centro de Letras e ArtesFlora de Paoli Decana

Escola de MúsicaAndré Cardoso DiretorMarcos Nogueira Vice-diretor

Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de GraduaçãoCelso Ramalho - Coordenador do Curso de LicenciaturaJoão Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico CulturalMiriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de ExtensãoMarcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em MúsicaMaria Alice Volpe - Editora-chefe

Normalização: Maria Alice Volpe Projeto gráfico: Márcia CarnavalEditoração e tratamento de imagens: Patrícia PerezIlustração: efeito color halftone sobre reprodução de Impressão III (Concert) de W. Kandinsky, 1911.

Anais do II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ “Teoria, Crítica e Música na Atualidade”Maria Alice Volpe (org.)

Conselho EditorialAndré CardosoDiósnio Machado NetoElliott AntokoletzIlza NogueiraMarcos NogueiraMaria Alice VolpeMaria Lúcia Pascoal

ApREsEntAção Maria Alice Volpe

pREFáCio Maria Alice Volpe

AgRAdECiMEntos

CRÍtiCAA música como linguagem e o retorno ao social

Edilson Vicente de Lima e Milton Castelli

Musicologia feminista, historiografia musical e teoria compensatóriaDiósnio Machado Neto e Leonardo Salomon Soares Tramontina

A prática interpretativa é uma arte mimética? – Acerca de mímesis e interpretação na Teoria da Reprodução Musical de Theodor Adorno

Frank Michael Carlos Kuehn

tEoRiAs AnALÍtiCAsUm estudo neo-riemanniano de dois fragmentos de música brasileira

Rita de Cássia Taddei e Rodolfo Coelho de Souza

A análise rítmica: uma perspectiva da percepção no contexto do século XXI Eduardo Lopes

A variação progressiva aplicada na geração de ideias temáticas Carlos Almada

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Sumário

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La música de la Segunda Escuela de Viena: una lectura desde la teoría de las funciones formales Alejandro Martínez

Elementos postonales como factores de integración de estructuras modales, tonales y postonales en la expresión estética modernista: a sonata para guitarra

y clavecín (1926) de Manuel Ponce Alejandro Barceló Rodríguez

Signos da Brasilidade Modernista numa canção de Guarnieri & Mário de Andrade: Lembranças de Losango Cáqui

Marcus Straubel Wolff

institUiçÕEsOs Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo

Lenita W. M. Nogueira e Lilia de Oliveira Rosa

Gênero feminino, relações afetivas e pedagogia em bandas de música nordestinas, de 1930 a 2000 Marcos dos Santos Moreira

Reflexão sobre uma proposta metodológica para pesquisas de performance musical em grupo à distância

Beatriz de Freitas Salles e Juliana Rocha de Faria Silva

noVos RUMosConsiderações sobre fundamentos teóricos compositivos para peças

instrumentais baseadas na escuta de paisagens sonoras Marcelo Villena e Roseane Yampolschi

Steve Reich e a estética minimalista Ismael Lins Patriota

Considerações sobre materiais compositivos utilizados em Méditations sur les Mystères de la Sainte Trinité de Olivier Messiaen

Miriam Carpinetti

pERFoRMAnCE E CRiAçãoA contribuição entre intérprete e compositor no processo de criação de três

concertos brasileiros para percussão Fernando Hashimoto

Colaboração saxofonista-compositor na criação musical mista: Plexus para sax tenor e eletrônica, de Arturo Fuentes

Pedro Bittencourt

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Vozes da Voz: a trajetória de Fátima Miranda Wânia Mara Agostini Storolli

pERFoRMAnCE E EstiLoAs Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de Heitor Villa-Lobos: alguns

aspectos interpretativos para o fagotista Aloysio Fagerlande

Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel: música sobre música Danieli Verônica Longo Benedetti

La formación integral del intérprete en cuerdas, especializado en la música contemporánea

Mariela Nedyalkova

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apresentação

Os Anais do Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ seguem a proposta de coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por objetivo publicar os trabalhos selecionados mediante submissão. Os Anais complementam a Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, dedicada aos conferencistas convidados, e conta igualmente com a colaboração estudiosos oriundos de instituições com diversidade geográfica, intensificando assim o diálogo entre as comunidades nacional e internacional.

O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da temática escolhida para cada volume.

Maria Alice VolpeEditora

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O presente volume Teoria, Crítica e Música na Atualidade oferece um amplo espectro dos estudos recentes sobre a música do século XX em diante e favorece um diálogo frutífero entre especialistas brasileiros e estrangeiros. A intersecção entre as teorias analíticas da música e as teorias da crítica cultural tem catalizado importantes questionamentos da área, não somente sobre os problemas teóricos e metodológicos das novas posturas, mas sobretudo ao levar a um redimensionamento da própria identidade da disciplina. Busca-se refletir em que medida as inovações da música do século XX em diante, ao trazer novas linguagens, novas práticas composicionais e de performance e novas escutas, têm constituído locus fundamental para novas proposições analíticas e críticas nos desenvolvimentos recentes da musicologia, em sua ampla gama de abordagens. O tema apresentado neste volume mostra-se ainda assaz propício à desejável aproximação da pesquisa musicológica aos processos criativos. O debate entre os especialistas da música contemporânea busca ampliar o espaço para as diversas tendências de análise e crítica, incentivando um encontro teórico-analítico que norteie o impulso historiográfico futuro.

Maria Alice Volpe

PREFÁCIO

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AGRADECIMENTOS

Aos membros do Conselho Editorial

E aos apoios deFaperjCapesCNPq

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CRÍTICA

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A música como linguagem e o retorno ao social

Edilson Vicente de LimaUniversidade Federal de Ouro Preto

Milton CastelliUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Ora, a prática [musical] propriamente dita, é quase uma física acústica da produção de som. Já a prática teórica ou

teoria da prática instrumental é assunto do sentido, do discurso, da retórica, do significado, da música como epi-

fenômeno de uma manifestação global do Homem, dos valores heterônomos. Não é, portanto, exclusivamente

musical. (Duprat, 1991)

Erudito versus popular

Apesar do modelo de estado-nação vigente no século XIX atentar para valores da cultura popular (seja aquela transmitida oralmente, ou a já produzida nos centros urbanos mais desenvolvidos), incorporando-os, paulatinamente, no fazer artístico dominante, a separação em dois campos distintos, um erudito e outro popular, persistirá como conceito válido na classificação do campo da música durante o século XX; e pelo que percebemos, prosseguirá no século XXI. Em nosso entender, essa divisão, mais do que um problema relacionado com a linguagem (puramente) musical – um sistema referencial que normatiza sua produção – reflete uma divisão que espelha opções de controle social na época e que se estenderá para adiante: uma elite “culta” que tem conhecimentos técnicos específicos e que pode fruir uma música mais sofisticada; e uma parte da sociedade “inculta” e impos-sibilitada de absorver toda uma sofisticação presente na música culta, ou erudita.

Essa divisão entre cultura de elite e cultura “popular” (como doravante classifi-caremos a produção artística ligada às tradições orais ou àquela produzida nos centros não vinculados á opera, à música religiosa e de concerto, ligadas às classes médias e baixas), já vinha sendo observada nos séculos precedentes. Tanto Mikhail Bakhtin (2008) quanto Peter Burke (2010) ressaltam uma relação mais próxima (mesmo que não democrática) entre cultura popular e cultura de elite. Será, portanto, durante o século XVIII (e inicio do XIX), que uma divisão clara entre cultura de elite e cultura popular será operada de modo categórico.

No Brasil, conforme observou Leoni em sua “Historiografia musical e hibridação racial” (2011), essa divisão entre cultura de elite e cultura popular será defendida por Manuel Araújo Porto Alegre já na primeira metade do século XIX, e norteará toda uma discussão até o inicio do século XX. Para Leoni, foi a partir de Porto Alegre que uma clara divisão teórica entre cultura erudita (produtora de alta cultura) e outra popular (receptora

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da cultura da elite) estabeleceu-se e norteou toda uma reflexão que alcançou o século XX. E sobre a música popular, ou seja, aquela produzida pelas classes populares, via nela uma atitude subserviente:

O popular, principalmente o de origem negra, não influenciava a cultura, era como se estivessem em esferas diferentes, elementos a serem modificados e encampados posteriormente. Via em tudo sempre uma influência de cima para baixo, rumo ao novo e, no seu entendimento, essencialmente nacional. (Leoni, 2011, p. 110)

Na fala de Leoni, era como se a cultura produzida fora do mundo da elite cultural não pudesse exercer influências para “cima”, ou seja, na música (ou na arte em geral) eru-dita, qual seja, a música de concerto ou a música sacra. E, mais adiante, comparando Porto Alegre e Silvio Romero, enfatiza: “Ao contrário de Porto Alegre, Sílvio Romero não separava as manifestações populares das que mais tarde seriam chamadas de eruditas” (Leoni, 2011, p. 103). Mais abaixo, sempre segundo Leoni, mesmo Romero que teoriza a mestiçagem, acabará aceitando a divisão entre “baixa” e “alta” cultura:

A vertente romântica de interpretação cultural de Porto Alegre admitia os negros e mulatos como representantes de um estágio inicial de desenvolvimento artístico nacional, desde que circunscritos a um modelo que o Império brasileiro já havia superado. Sílvio Romero admitia sua presença e influência, mas com a ressalva de que seria necessário um branqueamento para não prejudicar a evolução cultural e racial. Ambos os movimentos, antagônicos, caminharam para uma separação de alta e baixa cultura. (Leoni, 2011, p. 106)

Portanto, no limiar do século XXI, acreditamos que devemos não somente repensar a divisão entre a produção popular e erudita, ainda muito enraizada em nossa sociedade e refletindo em instituições e no fazer musical; mas também propor novos projetos so-cioculturais que possam minimizar os efeitos dessa realidade. Neste sentido, a teoria da hegemonia defendida por Jesús Martin-Barbero (2009), nos sugere outra orientação. Para o autor, compartilhando com o pensamento gramsciano, uma dominação social se configura como “uma imposição a partir do exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual um classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus as classes subalternas.” (Martin-Barbero, 2009, p. 12)

A partir dessa leitura, é questionável a idéia de que as culturas populares seriam passivas, diante da hegemonia da cultura erudita, pois esta “se faz e desfaz, se refaz per-manentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força, mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder de sedução e de cumplicidade” (Martin-Barbero, 2009, p. 112). Desse modo, o popular configura-se “como um uso e não como uma origem, como um fato e não como uma essência, como posição relacional e não como substância” (Martin-Barbero, 2009, p. 113).

Outro ponto que parece legitimar nossa leitura seria teorizado por Michel Vovelle (2004). No entendimento de Vovelle, os intermediários podem tanto ser sujeitos transver-sais, que transitam entre o universo dos dominantes e dos dominados, possibilitando a troca de valores culturais e minando não só a ideia de pureza da cultura oral e da cultura

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de elite; mas também as feiras e mercados, os cafés, as festas públicas, o carnaval, e até mesmo gêneros musicais, que podem assumir um papel de intermediários, ou mediadores culturais, recolocando a cultura popular urbana dentro de uma transversalidade dialógica com a cultura da elite (Machado, 2010).

Neste aspecto não só temos que abandonar a postura da cultura popular como um receptáculo passivo de valores advindos da elite; mas entendermos que a cultura popular e a cultura de elite – tanto em seu aspecto oral como cultura já adaptada aos centros urbanos – auto influenciam-se diretamente; e não negando uma dominação por parte daqueles que melhor se articularam na história do capitalismo ocidental. Uma separação em campos nitidamente delimitados no que tange à produção de bens culturais, não faz sentido, na atualidade nem no passado remoto. E nesse sentido acreditamos que os estudos musicais atuais não podem mais excluir essa relação, mas sim tê-la diante dos olhos e dos ouvidos, o que em nosso modo de ver, proporcionará mais riqueza à produção de conhecimento em nossa área.

O folclore e tutela oficial versus cultura popular urbana e as “classes perigosas” Sobretudo pela falência do modelo iluminista emancipador a cultura popular será,

durante o século XIX, entendida como manifestação oral; tornar-se-á base para o modelo de Estado-Nação1. É nesse sentido que os estudos folclóricos serão imprescindíveis para a consolidação desse projeto. Segundo Rafaelle Corso, citado por Nestor Garcia Canclini, “o trabalho folclórico é ‘um movimento de homens de elite que, através da propaganda assídua, esforçam-se para despertar o povo e iluminá-lo em sua ‘ignorância’” (Canclini, 2008, p. 209).

Embora os “românticos” efetuem a crítica aos preceitos iluministas, em se tratando da cultura popular, eles acabam se afinando com estes, pois, ao decidir que a especificidade da cultura reside em sua fidelidade ao passado rural, tornam-se cegos às mudanças que a redefinem nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada suprimem a possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura hegemônica. O povo é ‘resgatado’, mas não conhecido (Canclini, 2008, p. 210). E é nesse sentido que o popular/folclórico terá de ser “tutelado”; pois de outro modo, o modelo de estado novecentista perderia seu sentido.

Por outro lado, numa visão tradicionalista, a cultura popular produzida nos cen-tros urbanos tenderá a ser diminuída, pois já nasceriam “contaminadas” pelo processo de produção do mercado. Dentro dessa leitura, a cultura da classe média e, sobretudo, a do trabalhador urbano, serão desvalorizadas; e é justamente por este motivo, que Renato Ortiz afirma que a cultura das “classes perigosas” (o proletariado urbano) será alijada do processo de construção do Estado-Nação (Ortiz, 1992. p. 35).

Nessa perspectiva de uma visão tradicionalista, consolidar-se-á uma tríplice divisão: a cultura popular oral (original, essencial e pura), a cultura popular urbana considerada mediana, e uma cultura de elite, entendida como alta cultura. Para a concepção nacionalista vigente na época, as manifestações orais deveriam tornar-se base para a cultura musical erudita e assim, elevadas a alta cultura; enquanto aquelas não orais permaneciam como “semicultura”, como classificou Mário de Andrade (1980[1930]) ou “ligeira”, nas palavras

1 Para uma discussão mais aprofundada, consultar: Martin-Barbero (2009); Canclini (2008) e Ortiz (1992).

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de Theodoro Adorno (1996, p. 66). Nesse sentido, a divisão configurada antes do século XIX por Araújo Porto Alegre, permanece vigente. Mais uma vez, enfatizamos, o entendimento da cultura como processo hegemônico, onde a dominação não prescinde de interação, como defendido acima, pode nos ajudar a minimizar esse “gap”.

o silêncio das vanguardas e divórcio com relação às mediasDurante o século XX, mais enfaticamente no período entre guerras, o advento do

que se convencionou denominar indústria cultural, acentuou a separação entre a música de vanguarda e a produção vinculada ao mercado de bens culturais. A crítica dos intelectuais de esquerda, sobretudo aqueles associados à escola de Frankfurt, era dupla: de um lado eles atacavam a produção musical “culta” conservadora, centrada na música tonal e no ideal romântico (burguês) advindos do século XIX e que persistiam no XX; de outro, o modo como a música se associava ao mercado musical (publicação de partituras, long plays, concertos) adentrando a lógica de entretenimento associada ao modelo capitalista.

Deste modo, alguns artistas sustentaram uma dupla tarefa em sua resistência anti-capitalista: uma, combater a lógica do mercado negando o tonalismo, já que este se tornou, de acordo com leituras frankfurtianas, o sistema musical da burguesia por excelência; outra, combater a indústria cultural, ou seja, a lógica da produção capitalista aplicada à produção artística. Desta forma, sua “ruptura” não só se daria em sentido estético, em uma tentativa de superação dos pressupostos artísticos românticos; como também no social, negando-se a contribuir para a perversidade capitalista e seu controle desvairado no que acreditavam ser uma das últimas instâncias da liberdade humana: a arte. Nesse sentido, a postura de Adorno foi emblemática e, segundo a leitura de Fubini,

en la sociedad capitalista avanzada, la única vía de supervivencia de que dispone la música, aunque sea precaria para ella, consiste en ser la antítesis de la sociedad, conservando así “su verdad social gracias al aislamiento”. (Fubini, 2001, p. 150)

De qualquer modo, cabe frisar que o sistema tonal não foi somente a linguagem da elite cortesã e burguesa dos séculos XVIII até o século XX; foi também o sistema que possibilitou aos habitantes das zonas rurais e trabalhadores urbanos ligados à primeira e segunda revolução industrial a produzirem suas manifestações musicais durante esse período. Deste modo, não só óperas e concertos utilizam a linguagem tonal, mas também uma parte das canções folclóricas e as músicas produzidas pela classe média e proletari-ados urbanos. Assim, reconhecer-se na linguagem tonal representa algo mais do que ap-enas comungar de valores burgueses; mas também partilhar um modo de expressividade – que embora esteja também diretamente ligado aos valores burgueses – servirá como meio (media) para a expressividade de outros sujeitos sociais: cultura oral, classes médias urbanas, proletariado etc.

É evidente que não pretendemos com esta pequena comunicação discutir onde Adorno tem ou não razão em sua crítica à indústria cultura; de certo modo comungamos com a leitura de que o sistema capitalista tende a transformar tudo em mercadoria e, nesse sentido, a obra de arte, e em nosso caso a música, não escapa a essa lógica. Mas o que interessa para nós é frisar que nessa visão, a música “contemporânea”, nesse caso a música de Schoenberg e pós weberniana, ao estruturar-se em outro sistema referencial discursivo, o dodecafonismo e outros sistemas referenciais, acaba não somente negando

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o sistema tonal tradicional; mas afastando-se tanto do gosto burguês calcado na música de concerto e a ópera tradicionais, como da linguagem tonal, que serviu de veículo também para música das classes populares em época coeva.

Uma atitude combativa nesse momento passava tanto pela pesquisa de novas linguagens que pudessem estruturar o discurso musical; como por uma negação de todo aparato de produção. Mas, passados os anos de pós-guerra, e adentrado o terceiro milênio, necessitamos reavaliar nossas posturas e buscar outros modos de dialogar com o público; sobretudo aquele não especializado. De outro modo, cairemos não somente no ostracismo; mas no esquecimento.

Ao acompanhar a trajetória de Adorno verificaremos que mais adiante, ao propor o conceito de “audição consciente e estrutural”, ele procura minimizar os efeitos do que considera a “regressão da audição” planificada, principalmente, pelos meios como o rádio e o cinema. E para alcançar este fim (uma audição comprometida com a obra e a sociedade) vai procurar os meios massivos, como o programa que desenvolveu no rádio no final da década de 1930 e inicio de 1940 (Fubini, 2001). Adorno, também tocara num ponto central para a superação de uma escuta “alienada”: o tecnicismo ligado à formação de uma escuta tradicional, descartando o que denominou “apreciação” (uma escuta abstrata, superficial e genérica) por “compreensão”, entendida como uma escuta consciente da estrutura sonora e sua relação com o momento histórico, individualizando-a como obra; e sempre nas pala-vras de Fubini (2001, p. 153-156). De qualquer modo, essa atitude crítica – não sem razões, diga-se de passagem – abriu uma “gap” entre público (tradicional) e música de vanguarda, e suas consequências são ainda hoje enfaticamente sentidas.

A postura de Adorno, em que pese a profundidade de suas discussões, não deixa margem alguma para uma recuperação do diálogo entre arte e os meios massivos, pois, ao tematizar o divórcio da arte com os meios técnicos de produção, deixa pouco espaço para os possíveis encontros, entendendo-se estes como uma arte reconciliadora, como pastiche, “essa mistura de sentimento e vulgaridade, esse elemento plebeu que a verdadeira arte abomina” (Martin-Barbero, 2009, p. 78). E nesse sentido, “a crítica de Adorno [...] cheira demais a um aristocratismo cultural que se nega a aceitar a existência de uma pluralidade de experiências estéticas, uma pluralidade dos modos de fazer e usar socialmente arte” (Martin-Barbero, 2009, p. 78). E mais abaixo, o mesmo autor enfatiza: “Lastimável que uma concepção radicalmente pura e elevada da arte deva, para formular-se, rebaixar todas as outras formas possíveis até o sarcasmo e fazer do sentimento um torpe e sinistro aliado da vulgaridade” (Martin-Barbero, 2009, p. 79).

Ao contrário de Adorno, Walter Benjamin, sobretudo em seu texto A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936 (apud Costa Lima, 2000, p. 217), aponta para outra relação entre arte, sociedade e meios tecnicisados. Benjamin, ao invés de centrar sua análise na obra, elege a experiência. Esta, por sua vez, múltipla e sem centro, lhe possibilita enxergar de modo diverso a relação entre história, massa, técnicas (Martin-Barbero, 2009, p. 80) e consequentemente, a arte.

Outro ponto de sua crítica seria seu entendimento da concepção de “aura”. Se para Adorno a perda da aura representava a banalização da arte e sua desvalorização como obra única; para Benjamin,

A morte da aura na obra de arte fala não tanto da arte quanto dessa nova per-cepção que, rompendo o invólucro, o halo, o brilho das coisas, põe os homens,

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qualquer homem, o homem de massa, em posição de usá-la e gozá-la. Antes, para a maioria dos homens, as coisas, e não só as de arte, por próximas que estivessem, ficavam sempre longe, porque um modo de relação social lhes fazia parecer distantes. (Martin-Barbero, 2009, p. 82)

Mas como discute Martin-Barbero mais adiante, Benjamin não se ilude com tecnolo-gia, considerando que esta poderá vir a salvar os trabalhadores. Mas observa que uma nova sensibilidade de fruir a arte, um novo modo de percepção, está sendo desenvolvido a partir dos novos modos de produzir arte. Mas o que mais nos interessa, seria o reconhecimento dos múltiplos sujeitos sociais que podem compartilhar a experiência da obra de arte dentro de espaços coletivos, a cidade, e os “sentidos” que daí possam advir. Claro, uma atitude de resistência, ou desalienada, não será imposta pelo Estado controlador, sobretudo nos primeiros 45 anos do século XX. Porém, em Benjamin, há a esperança de que na multidão, nos bares e cafés esfumaçados, nos cinemas ou na fotografia (e em nosso caso no youtube), alguns “desesperados” tenham a possibilidade de experimentar um modo de fruir a arte que não seja apenas aquele burguês: individualista; hierárquico.

A música como linguagem e o retorno ao socialUma questão que merece ser revisitada é o tratamento da música como linguagem.

Em nosso entender, a linguagem está sempre vinculada a uma dimensão histórico-sócio-cultural. Com isso queremos destacar que o plano da sintaxe e da morfologia, tão caros à analise de qualquer língua, sempre serão redimensionados pela sua inserção em uma momento histórico, por sua relação com os sujeitos sociais que com ela compartilham e pelos valores (sentidos) erigidos e compartilhados por aqueles que condividem uma experiência comum, ou seja, pela cultura. Neste caso, o que nos interessa é que a música, tal e qual outras artes, configura-se como uma discurso, ou seja, “uma língua vista como uma manifestação, envolvendo sujeitos que falam e escrevem e, portanto, também e pelo menos parcialmente, leitores e ouvintes” (Eagleton, 2003, 173).

Embora a citação acima se refira a linguagem falada, vários pontos interessa para nós músicos, sobretudo o aspecto performático do discurso (sua manifestação) envolvendo sujeitos que participam, social e historicamente, desse processo. Isso, a nosso ver, coloca o discurso dentro de um campo de batalha, já que os “sujeitos” envolvidos dentro do processo discursivo pertencem a alguma classe social ou a diversas classes sociais. Portanto, mais do que buscar leis que governam uma determinada obra, ou seja, sua sintaxe ou morfologia como uma poética ou nas palavras de Joseph Kerman (1987), quais são os mecanismos que fazem a obra funcionar, acreditamos que devemos entendê-lo dentro de uma processo histórico social.

No campo da música, em especial na disciplina Análise Musical e na teoria como um todo, a busca por modelos estáveis que possam explicar a obra através de modelos analíticos estruturais, tem sido uma constante. E de certo modo, isso foi possível, pelos menos até o alvorecer do século XX, por causa dos sistemas que vigeram na música ocidental, tais como o modalismo e o tonalismo, e que serviram de princípio unificador à música ocidental durante um período de tempo. Evidentemente uma reflexão de como surgiram e se consumaram pode colocar melhor a discussão dentro de parâmetros menos rígidos. Porém, uma guinada nesta direção fugiria do escopo desse texto.

Em todo caso, em se tratando de música modal, tonal e até mesmo serial, uma

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análise que dê conta da base estrutural desses sistemas referenciais pode ser mais acessível. Mesmo assim, se acompanharmos a história desses sistemas de referência, veremos o quanto eles foram se transformando, mesmo que vagarosamente, durante sua vigência como sistemas hegemônicos. E que essas transformações partiram do uso social e da possibilidade de significados para determinadas classes sociais em épocas específicas. Mas na música contemporânea, mais do que um sistema estável, o compositor partiu de uma “vocação ontológica” de uma determinada poética (Duprat, 2005, p. 6). Ou seja, ele partiu do potencial significativo de determinada organização sonora e seu potencial de ser erigido como obra. E, no caso da música pós-werberiana, devemos falar de poéticas, já que cada compositor, ou grupo, liberou-se para o exercício da criação de seu próprio sistema composicional. E nesse sentido, também nas palavras de Duprat (2005), a análise, se manifesta no “varejo” e não mais no atacado. Tampouco, estamos defendendo a ideia de que a Análise Musical seja uma disciplina dispensável na formação do músico. Acreditamos apenas que a análise estrutural, não dá conta inteiramente da gama de significados que a música pode assumir na sociedade. E para que a música erudita, seja do passado ou atual, recupere seu diálogo com o público, faz-se necessária uma abertura dos significados que a obra musical possa assumir no mundo da vida.

Nesse sentido, o que queremos discutir é que a música, ainda que calcada numa dimensão estrutural subjacente mais estável (como em qualquer linguagem/discurso), não prescinde de uma dimensão polissêmica ligada não só aos sujeitos que a produziram, detentores de um conhecimento especializado; mas também à recepção e sua pluralidade sociocultural, relacionada, certamente, com fatores históricos e socioculturais. Dessa forma, a obra musical, tal e qual qualquer linguagem, só faz sentido no mundo da vida! Consequentemente, a luta por um modelo interpretativo hegemônico estável, configura-se como ideologia, ou seja: um modo de controlar a interpretação/recepção, dando a esta uma dimensão estática (portanto metafísica por parte de um grupo). Consequentemente cairíamos dentro de um modelo contratual clássico iluminista da linguagem associada ao individualismo burguês, ou seja, a linguagem seria “apenas uma espécie de instrumento que indivíduos [...] usam para trocar suas experiências pré-linguísticas” (Eagleton, 2003, p. 173). Portanto, “se eu tinha um conceito, fixava-lhe um signo verbal e oferecia-o a alguma outra pessoa” (Eagleton, 2003, p. 173), também detentora de uma ideal capacidade de análise. Assim sendo, o aprendizado deve seguir uma proposta muito clara do que seja válido ou não; tem o sentido de uma aquisição tecnicista.

E como afirma Giovanni Piana:

Agora, muito embora uma atitude formalista possa parecer inicialmente longe de relacionar a música com o inefável nesta acepção que foi ressaltada, todavia existe certamente um caminho que leva de um pólo para o outro, estabelecendo entre eles uma espécie de solidariedade peculiar. Talvez, expressando-nos mais exatamente, poderíamos dizer que, quanto mais se exaspera o tema da objetividade e da sintaxe, e quanto mais se ressalta a essência da obra como um ser que de per si está separado de qualquer ligação com o mundo, tanto mais nitidamente a impostação do problema tende a uma inversão total tão logo se apresenta de novo a pretensão da expressão. Na música não há espaço para tralalá de ninar. Mas tampouco fala de coisas grandes. Ela fala de nada, ou simplesmente não fala. Mesmo assim, nestas negações existe a afirmação

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de todas as coisas extremamente grandes que ela faz transparecer justamente neste seu não-falar. A ausência de sentido deve ter como contrapeso o excesso de sentido. (Piana, 2001, p. 307)

Para Piana, talvez a “ausência de sentido” (o inefável) a que se referiu acima, seria quando falta a palavra no ato da significação (Piana, 2001, p. 306). Mas isso não quer dizer que não haja significação; ao contrário, há na verdade um excesso de sentido. E esse excesso de sentido deve ser lido, também, como uma abertura de possibilidades, dimensionadas histórica, social e culturalmente, ou seja, em sentido ontológico. E aqui cabe, com certeza, a leitura efetuada por Duprat do conceito de intertextualidade inerente ao discurso defendido por Eliseo Veron: “a noção de discurso é inseparável de um conjunto de elementos extratextuais” e que “não se pode descrever o processo de produção de um discurso” sem relacioná-lo “com um conjunto de hipóteses referentes a elementos extratextuais.” (Duprat, 2005, p. 12). Sobretudo porque vige em todo discurso (o ato de a consumação da linguagem), do qual a música não é exceção, o que Veron, nas palavras de Duprat, caracterizou como “discursos ocultos”, ou seja, uma “profunda intertextualidade que nunca chega a atingir a consumação social dos discursos” (Duprat, 2005, p. 13).

Mais adiante, embora Piana esteja se referindo também ao universo do “jogo” do movimento sonoro2, e como esse movimento pode nos direcionar e dar “sentido” à nossa escuta, a citação abaixo soa certamente como arremate:

Se é possível levantar uma problemática de sentido com relação à música, ela não implica a sua suposta natureza linguística, mas sim a forma em que acontece o encontro entre a imaginação e o universo dos sons. (Piana, 2001, p. 321)

Porém, não obstante a Análise Musical passe por postura culturalista, crítica e histórico-fenomenolígica, as posturas organicistas, formalistas e estruturalistas têm sido muito fortes (Duprat, 2005). Essas três últimas posturas buscam explicar como a obra musical se constitui a partir de suas relações internas, reputando que só o entendimento desse funcionamento, ou seja, “o que faz as composições ‘funcionarem’” (Kerman, 1987, p. 77), pode levar o ouvinte a um entendimento da obra, e que este (o entendimento de seu funcionamento interno) produziria um elo comunicacional entre ouvinte e obra. E dentro dessa perspectiva, gostaríamos de repetir parte da epígrafe que encabeça esse texto: a música, para nós, “é assunto do sentido, do discurso, da retórica, do significado, da música como epifenômeno de uma manifestação global do Homem, dos valores heterônomos. Não é, portanto, exclusivamente musical.” (Duprat, 2005).

E dentro dessa leitura, já não podemos mais crer na posse exclusiva de recursos tecnológicos (Duprat, 2005, p. 12); portanto, não podemos crer na posse exclusiva da interpretação; ou, se quisermos, dos modelos analíticos.

2 O sentido em que Piana dá ao jogo, lembra-nos a concepção desenvolvida que Hans-Georg Gada-mer em seu livro A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa (1985). Porém, acredita-mos que essa comunicação não seja o lugar de aprofundarmos essa relação.

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ConclusãoNo primeiro segmento deste texto, buscamos recompor como o popular e o erudito

são tomados como manifestações distintas já na primeira metade do século XIX, e neste sentido os escritos de Manuel Araújo Porto Alegre (Leoni, 2011) aparecem como um marco, norteando as discussões posteriores. Segundo Leoni, Araújo encarava a cultura popular como um receptáculo passivo dos valores da “alta” cultura; e esta ideia continuará vigente em alguns autores acentuando a divisão entre cultura popular e cultura erudita.

Do ponto de vista histórico, ao trabalharmos com a teoria da mediação cultural (Machado, 2010; Vovelle, 2004) constatamos que valores de diversas classes sociais foram trocados, não sem conflitos, obviamente. Nesse sentido, por mais que haja uma tentativa de imposição por parte de uma classe hegemônica sobre as demais, as classes dominantes sempre acabam absorvendo valores das classes dominadas.

É evidente que não queremos com essa pequena conclusão minimizar conflitos sociais; mas evidenciar trocas interculturais entre classes e que o estudo de certas mani-festações advindas de classes populares ou do que convencionamos denominar música erudita, sempre podem conter valores comuns que concorrem ora de “cima” para baixo, ora de “baixo” para cima. De qualquer modo, este aspecto também não deve tornar-se uma camisa de força; um dogma. Mas estamos apenas tentando enfatizar que é possível construir modelos analíticos do ponto de vista histórico onde esses dois mundos, o erudito e o popular, não estejam tão separados, pelo menos na produção de bens culturais.

Outro fato, o reconhecimento das manifestações orais já no final do século XIX como base de modelos nacionalistas e a ênfase em seus traços mestiços, também não configurou uma inclusão das classes populares no processo de produção do conhecimento. Também a produção popular praticada nos centros urbanos, numa visão tradicional, acaba sendo tratada como manifestação que deve ser olhada com desconfiança, pois já nasciam con-taminadas pelo modo de produção voltado para o mercado e, nesse sentido, com menos valor artístico e com sua “autenticidade” comprometida.

Foi nesse sentido que destacamos que teremos uma tríplice divisão operando na primeira metade do século XX: uma cultura popular de tradição oral, outra urbana, e uma ter-ceira, cultura de elite (erudita). É justamente essa divisão, pelo menos no campo da produção de conhecimento, que acredito que devemos repensar nesse princípio de século XXI.

Já o tratamento da música como linguagem, em nossa leitura, deve incorporar sempre questões sociais e não ser tratada como uma aquisição de conhecimento técnico que possibilite uma leitura específica (controlada). Foi nesse sentido que destacamos que a obra musical, ao se consumar como um discurso deve levar em consideração não somente seus pressupostos composicionais; mas seu potencial de produzir “sentidos” como destacou Piana (2001). E esses sentidos estão seguramente relacionados com certa “intertextualidade” inerente a qualquer discurso. Este, ao exteriorizar a obra, e ao “acontecer” no mundo real (o mundo da vida) vai relacionar-se, seguramente, com a riqueza, ou conflitos, socioculturais que implicam, também, elementos “extratextuais”, ou os discursos ocultos, como defendeu Duprat (2005), e em nosso caso, extra-musicais.

Portanto a disciplina Análise Música deve, em nosso entender, ser pensada não somente como competência técnica, mas como busca de dar sentido à música. E nesse caso, as análises estruturais – levando em conta que houve uma liberação de sistemas de referências e, por conseguinte, modelos analíticos – devem ser encaradas como um modo, uma possibilidade de compreender a obra musical. Esta, a obra, que se realiza no discurso

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e como discurso, deve carregar consigo a possibilidade de suscitar sentidos e estes, a nosso ver, devem relacionar-se com a riqueza sociocultural e suas possibilidades de leitura; mesmo que estas, algumas vezes, sejam elaboradas a partir da convivência com outras artes e outros discursos e possam contradizer as intenções do analista e/ou compositor.

É nesse sentido que concebemos a linguagem: dentro de uma dimensão histórico-socio-cultural, onde diversos grupos, ou sujeitos sociais, condividem não apenas tempo e espaço, mas formas de compreensão que possibilitam interpretações, muitas vezes, que nunca passariam por nossas cabeças. Assim sendo, a reprodutibilidade técnica, nem sempre pode representar uma camisa de força, sobretudo porque os “usos” e os “sentidos”, e em nosso caso específico as escutas e os sentidos daí advindos, podem -- não que sejam -- ser diferentes; e não o mero “retorno do mesmo”.

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Musicologia feminista, historiografia musicale teoria compensatória

Diósnio Machado NetoUniversidade de São Paulo – Ribeirão Preto

Leonardo Salomon Soares TramontinaUniversidade de São Paulo

Sob influência teórico-metodológica de algumas linhas feministas provenientes, sobretudo, da crítica literária e dos estudos de alteridade, alguns autores da chamada New Musicology propuseram abordagens analíticas que almejavam inserir a mulher no corpus intelectual e bibliográfico da Academia e na disciplina de História da Música. A partir deste contexto, o objetivo do presente artigo é descrever como este movimento dialogou com a crítica de cunho feminista e, sobretudo, demonstrar como tal contato refletiu-se em três das mais utilizadas didáticas de História da Música norte-americanas. Em resumo, serão deslindadas as estratégias de apropriação do pensamento feminista pela musicologia de língua inglesa pós-1980 e, outrossim, analisadas como elas foram incluídas (e adaptadas) pelos seguintes textbooks:

(1) Music in Western Civilization, de Craig Wright e Bryan Simms(2) A History of Music in Western Culture, de Mark Evan Bonds(3) A History of Western Music, de J. Peter Burkholder, Donald J. Grout e Claude V. Palisca

Esses compêndios, acompanhados por (a) antologia de partituras (referentes às obras analisadas no texto), (b) CDs (contendo gravações destes exemplos), (c) sítios inte-rativos na Internet e (d) livros de apoio ao aluno (exercícios) e (e) ao docente (contendo estratégias pedagógicas, bibliografia complementar e sugestões de aulas e testes), são representativos tanto de um modelo de escrita de História da Música bastante difundido na graduação norte-americana (cujos paradigmas serão abordados) quanto do próprio ambiente de produção e de consumo (e, consequentemente, de ensino) musicais naquele país, que tende a privilegiar a prática instrumental. Assim como a Musicologia anterior à década de 1980, tal privilégio parece ser determinante na definição do modo como as narrativas aqui analisadas apropriam-se dos discursos do feminino.

Contudo, um estudo que se propõe deslindar as relações da crítica feminista com a musicologia e a escrita de Antologias de História da Música deve contemplar, antes de se aventurar pelas comparações e análises críticas, seus respectivos contextos, bem como as decorrentes especificidades na formação de seus pressupostos e de suas práticas, so-bretudo aquelas responsáveis por moldar o contato entre estas três áreas. Portanto, antes de proceder tal análise, serão abordadas (1) as principais linhas de pensamento que têm dominado, desde o século XIX, as narrativas e a metodologias dos livros e compêndios de

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História da Música e que têm, neste processo, definido e sido definidas pelas práticas de canonização, bem como a (2) reflexão hermenêutica que a denominada New Musicology propôs acerca de tais processos buscando, dentre outras coisas, inserir a mulher nos dis-cursos de pesquisa e escrita musicológicos por meio, sobretudo, do contato com algumas teorias da crítica feminista.

iEm relação às principais linhas de pensamento que têm dominado, desde o que

se costuma chamar de período romântico, a escrita e a metodologia dos livros de História da Música e que têm, também, definido as práticas de canonização, quatro se destacam: a Teoria do Grande Homem, a Teoria do Desenvolvimento Orgânico, o pensamento estético de Kant e Hegel, e a filosofia idealista alemã.

Fruto do novo status atribuído aos compositores e do interesse pela música do passado ainda em findo século XVIII, a primeira linha norteadora da escrita da História da Música, denominada pelo musicólogo Warren Dwight Allen (1962, p. 86-91) “Teoria do Grande Homem”, consiste na atribuição de um caráter quase religioso ao artista, con-siderando-o um ente agraciado com um espírito genial cujo poder criativo não é produto do seu intelecto, senão de uma revelação quase sobrenatural. Ainda que parte do ofício artístico, a labuta e a elucubração diuturnas não bastam, segundo esta teoria, para alcançar a excelência e produzir grande arte, mas apenas para desenvolver as potencialidades natas que, no momento oportuno, serão reveladas.

Deveras diferente, pois, do conceito racionalista do músico como inventor que intenta dominar, por meio de seu raciocínio, a arte da composição, este ideário enaltece a figura do artista como um herói da História, um modelo ideal, absoluto e, por isso, inde-pendente dos eventos temporais.

Não por acaso, é sob esta égide que recrudesce o gênero de escrita no qual a bio-grafia de “grandes personagens” é elemento clave na construção das Historias da Música. Assim como a História sociopolítica, a música no ocidente teve seus heróis e desbravado-res. Concomitantemente, alguns autores passaram a defender, outrossim, a ideia de que a genialidade e as contribuições dos biografados só seriam corretamente contempladas se acompanhadas de uma análise estilístico-formal de suas obras.

Já a “Teoria do Desenvolvimento Orgânico” (Allen, 1962, p. 91-7), diferentemente, propõe uma filosofia da História capaz de compreender o sujeito como um todo em suas relações com o universal, não enquanto figura individual. A música, sob esta premissa, é um saber cujo conhecimento representa o eixo da cultura moral humana e que, quando dominado, conduz ao pleno entendimento do mundo. Em outras palavras, é um meio expressivo que pode conduzir o homem, enquanto ente coletivo, à maturidade e à trans-cendência, numa ideia de progresso contínuo. Neste âmbito, a História é compreendida como avanço da consciência e do espírito do homem ou, nas palavras de Hegel, uma “fuga musical, na qual, na direção do mundo, se sucedem os povos que por sua vez propõem os temas dominantes” (apud Bodei, 2001, p. 45).

É a partir destes paradigmas que a Filosofia e a História começam a fazer uso de me-todologias comparativas baseadas em premissas analógicas que, no intuito de corroborarem suas “verdades”, traçam paralelos com outras áreas do saber. Como parte deste processo,

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a música, em sua temporalidade, passa a ser fragmentada em diferentes fases evolutivas1.Sob esta égide, destaca-se a explicação orgânica dos eventos e características mu-

sicais a partir da ideia de progresso contínuo, onde se destaca, no século XIX, o papel das ciências biológicas, especialmente das teorias de Charles Darwin2 e de Herbert Spencer3. Conforme Ruth Solie (1982, p. 297-308) e Warren Allen (1962), a obra de ambos os cien-tistas tiveram mais relevância na construção da historiografia musical da época do que o próprio pensamento historiográfico proveniente das áreas humanas ou da filosofia. Como reflexo disso, não raro os textbooks da disciplina trazem, em seus títulos, subtítulos e na organização da própria narrativa, termos e conceitos oriundos do pensamento darwinista e, sobretudo, spenceriano (“progresso” e “evolução”, etc.).

A ideia de progresso orgânico da História, segundo a qual os estilos, técnicas, gê-neros e formas musicais “aprimoram-se”, “desenvolvem-se” ou “crescem” 4 no decorrer das gerações, que tem servido de modelo na elaboração de textbooks desde John Hawkins (1719-1789), Charles Burney (1726-1814), Nikolaus Forkel (1749-1818), Raphael Georg Kiesewetter (1773-1850) e François-Joseph Fètis (1784-1871), parece encontrar, pois, nas teorias biológicas do século XIX, sua legitimação.

Soma-se a isso um importante dado: a conciliação de aspectos de ambas as te-orias (do Grande Homem e do Desenvolvimento Orgânico) como parte do processo de sistematização dos materiais didáticos para uso nas recém-criadas instituições de ensino musicais. Desde então, este modelo5 tem moldado, grosso modo, as antologias de História da Música6.

Junto às duas teorias supracitadas, há que mencionar, também, os debates filosóficos a respeito da natureza da música que, além de perpassarem a teoria estética relacionada às artes, foi substancialmente relevante para o pensamento do período. Sobressaem, aqui, dois articuladores: (a) Immanuel Kant, que propõe o conceito de “julgamento estético

1 O próprio Hegel, por exemplo, considera a História em cinco fases: a infância (representada pelo Oriente), a juventude (pela Ásia), a adolescência (a Grécia Antiga), o império romano representaria a idade adulta; e, como ponto culminante da maturidade, estaria a Alemanha do século XIX. No contexto propriamente musical, igualmente, há diversos exemplos de Histórias da Música que fragmentam seus conteúdos nos mais variegados padrões de separação e de analogias. Grosso modo, contudo, eles se dividem em dois grupos opostos: os progressistas, para os quais a música contemporânea representa o ápice evolutivo e os tradicionalistas, que admiram o passado. Para mais detalhes sobre os diversos modelos vide Allen, 1962.2 Para o qual, grosso modo, o velho (que não se adaptava às mudanças) era substituído pelo novo.3 Cuja teoria definia o processo evolutivo do simples e homogêneo para o complexo e heterogêneo.4 E, em alguns casos, involuem.5 Que, na sua concepção inicial, visava conciliar o foco na excelência nata dos grandes mestres – algo deveras desestimulante para o jovem estudante – com o conceito de que a música aperfeiçoava-se de modo natural, como um organismo. 6 De fato, as didáticas estudadas utilizam-no explicitamente ao traçar, por exemplo, o “desenvolvimento” do organum, inicialmente, exclusivamente paralelo, posteriormente, paralelo com dobramento de 5as e 8vas, organum misto oblíquo e paralelo, organum livre, o discantus da polifonia de Aquitaine, a escola de Notre Dame e a introdução dos modos rítmicos e de até quatro vozes.

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desinteressado”7, segundo o qual uma verdadeira análise da sensibilidade deve ser des-provida de pré-expectativas, separada do entendimento de suas contingências permitindo, assim, ignorar os contextos, circunstâncias e credos que poderiam influenciar a percepção do objeto (Beard e Gloag, 2005, p. 6), e (b) Hegel que, norteado por Kant, trata a música como entidade autossuficiente e autônoma. A relevância de ambos para a música reside no fato de que a contextualização de ordem temporal ou cultural é, neste caso, não somente prescindível como desaconselhável, quer seja por interferir no ‘real julgamento’ ou por retirar sua independência.

Com a articulação, por vários autores e, sobretudo, por Edward Hanslick, do modelo de autonomia de Kant e Hegel, priorizou-se o material musical e a música puramente instru-mental em detrimento de considerações outras. E, como elemento legitimador do caráter independente, a-cultural e atemporal da obra de arte, bem como da coerência de seus elementos internos enquanto balizadores da valoração estética, recrudesce a importância da teoria musical e da análise formalista para a História da Música.

Permeando este conjunto de ideias e contribuindo, assim, na consubstanciação dos princípios norteadores da historiografia musical, destaca-se um quarto elemento conceitual: o Idealismo, vertente estético-filosófica que dominou o pensamento artístico (e musical) alemão a partir do inicio do século XIX. Partindo das definições do musicólogo Mark Evan Bonds (2006, p. 6-28) acerca do mesmo, ele parece reunir elementos relevantes das correntes supracitadas: as ponderações acerca (a) do papel do artista individual como agente mediador entre o divino e o terrestre (presente na Teoria do Grande Homem); (b) a atribuição da música como meio redentor, num contexto onde o espírito tem primazia sobre a matéria (Teoria do Desenvolvimento Orgânico); e (c) na valorização do caráter autocontido e independente da obra de arte, bem como da imperativa coerência de seus elementos internos (Kant e Hegel). Nas palavras de Bonds: “A música ocupa o mundo separado dos ideais, independente dos objetos e emoções mundanos, e tem o poder de nos elevar a regiões acima das considerações cotidianas” (Bonds, 2006, p. 23).

Em resumo, somados ao culto romântico à personalidade, a construção dos pa-radigmas da historiografia musical tem se pautado pelas teorias evolutivas, pela tradição estética kantiana – onde o julgamento de uma obra deve ser calçado em sua estrutura e finalidade formais, e pelas relações hegelianas entre música e história, esta como elemento comprobatório da ação criativa do homem e possível fonte da verdade; aquela como ente independente e separado das vicissitudes mundanas.

iiÉ, pois, neste contexto de ideias onde a Musicologia surge como disciplina científica

nos moldes que se conhece atualmente e que se definem suas subáreas de pesquisa. É quando, também, ela passa a se confundir com a própria definição de História da Música (Kerman, 1982).

Para Alastair Williams (2007, p. 1), foi Guido Adler, sob influência do pensamento epistemológico positivista das ciências sociais e da filologia literária, o principal responsável por codificar os campos do estudo musical e organizar seus conteúdos e métodos, separando o que denominou Musikwissenschaft (tradicionalmente traduzido por Musicologia) em dois

7 Kant denomina “Estética Transcendental” (Mora, 2001, p. 231).

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campos, o Sistemático, que aborda questões ‘não históricas’ em sua natureza e abrange matérias de cunho tradicionalmente mais teórico, e o campo Histórico, que trata da música organizada em épocas, pessoas, impérios, localidades, escolas e artistas individuais (Duckles e Pasler, 2001, p. 490-1) e pressupõe como objeto de pesquisa a música europeia culta.

Atendendo aos princípios da ‘estética desinteressada’ de Kant e ao conceito de autonomia da linguagem musical proposta por Hegel, caro a autores como Hanslick, Schu-mann, Berlioz e Heinrich Schenker (Beard e Gloag, 2005, p. 6-7), bem como coadunada à nova estética da escuta fundada no pensamento idealista alemão e articulada por autores como E.T.A. Hoffmann (Bonds, 2006, p. 22), a classificação adleriana demonstra privilegiar a História metafísica em detrimento da abordagem contextualista da música. Mesmo sua Musicologia Histórica procura confirmar sua credibilidade por meio da análise musical.

Desta forma, desde sua formalização e institucionalização, consolida-se a pers-pectiva do cânone discursivo pela ‘grande arte’, onde os eventos e objetos históricos são medidos tendo por referência um modelo evolutivo ideal composto por obras e técnicas composicionais e estéticas representativas da tradição musical do Ocidente (sobretudo aus-tro-germânica) codificado, por sua vez, pela teoria musical tradicional (análise formalista). Este modelo, que é prudente observar, não é fixo, ao definir as condições ótimas da prática musical molda, consequentemente, a própria escrita historiográfica.

Vê-se, pois, que desde o início do século XIX até, aproximadamente, o pós-guerra, as Histórias da Música têm proposto construir uma cronologia de como as estruturas internas (consubstanciadas nas formas, gêneros e estilos e nas práticas composicionais), criadas, pensadas e executadas pelos grandes mestres, têm-se desenvolvido e sido transmitidas. E, como ‘artifício’ disso, vige a História linear e cumulativa, um continuum narrativo onde eventos de outrora estão encadeados, sob as mais variadas formas, aos eventos do presente. Neste mesmo contexto, tem-se consolidado a codificação de modelos ideais de referência – o Canon, que, por sua vez, influem nas escolhas dos temas e das metodologias a serem priorizadas, bem como as que serão esquecidas.

iiiA partir, sobretudo, da década de 1980, alguns musicólogos ingleses e norte-ame-

ricanos, propondo um entendimento hermenêutico da música e da própria disciplina, co-meçaram a atentar para as falácias e restrições decorrentes das premissas historiográficas e de seu papel canonizador, bem como do afunilamento do termo musicologia8. A esta tendência crítica, deu-se o nome de New Musicology9.

8 Apesar das contribuições dos estudos sobre a música em culturas não europeias, das quais são herdeiras da antropologia cultural e a etnomusicologia, terem iniciado alguns questionamentos ainda na década de 1960, coube essencialmente ao nada coeso grupo de pesquisadores sob a rubrica da New Musicology a sistematização e teorização destas inquirições.9 É importante observar que tem havido outras tentativas de escrutínio crítico da música (e da musicologia) que não são enquadradas nos (amplos) limites do que se denomina New Musicology. Contudo, a extensão do presente artigo não permite detalhar tais tentativas, tampouco, deslindar as próprias críticas à nomenclatura “New Musicology”. Para um mapeamento teórico-conceitual das tendências recentes da musicologia, ver Volpe (2004 e 2007).

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Buscando um conceito multidisciplinar10 que considerasse a música como, primei-ramente, agente de representação cultural capaz de tornar manifesto os mecanismos de crise e de mudança nos sistema culturais e ideológicos e, também, como produtora de significados que vão além do puramente musical, a New Musicology questionou a prática tradicional da disciplina e sua herança epistemológica iluminista e positivista.

Quais foram, mais especificamente, os objetos de inquirição da New Musicology? Sob uma perspectiva ampla, a pretensão científica e filosófica da verdade, o discurso metafísico, a metanarrativa, a visão universalista, ou seja, toda a tradição epistemológica ocidental com bases na herança iluminista e positivista. Já no âmbito específico da disciplina, combaliu-se (a) o positivismo historiográfico e a fixação textual – segundo o qual bastava ao pesquisador descobrir a lógica dos fatos relevantes, presentes no texto e nos objetos arqueológicos, para reconstruir a história; (b) a análise musical tradicional de cunho formalista como baliza qualitativa e guia de canonização; e (c) o próprio Canon, suas premissas norteadoras e sua influência na construção da História da Música. Em resumo, os autores da New Musicology procuraram desvelar como tais procedimentos dominaram a pesquisa musicológica, auxiliaram na construção de seus paradigmas e, com isto, excluíram e depreciaram de tudo que não cabia em seu modelo.

A tradição, até então considerada uma pré-condição permanente e dada, passou a ser percebida como um elemento que é produzido na medida em que é compreendido, ou seja, os mesmos agentes que participam de sua evolução por ela são moldados (Gadamer apud Beard e Gloag, 2005, p. 187). Neste sentido, seus discursos não somente revelam os prejuízos de quem a ela pertence, mas os “põe em jogo, expõe-os às nossas dúvidas, como réplica do outro” (Bodei, 2000, p. 229). É fortalecida, pois, a convicção de que a música tanto torna manifesto os mecanismos de crise e de mudança nos sistemas culturais e ideológi-cos quanto é capaz de revelar padrões e sistemas que, por outros meios, permaneceriam camuflados (Martinez apud Machado Neto, 2009, p.1).

Portanto, da perspectiva de encontrar a verdade e a melhor forma de descrevê-la, passou-se a discutir, então, um sentido baseado na assimilação de uma fragilidade episte-mológica (Machado Neto, 2009, p. 3) onde o sujeito é reposicionado. Neste âmbito, deu-se maior relevância à música enquanto agente aglutinador e produtor de símbolos e significados individuais e socioculturais, privilegiando o estudo do cotidiano e do corriqueiro, das micro-histórias (institucional, das ideias, da recepção, dos gêneros e sexualidade, etc.), da escuta, da performance, das relações dos sons com o corpo e com o prazer, da música popular e da indústria cultural, entre outros temas. Valora-se, claramente, a alteridade (o excluído, o subalterno, o ‘inferior’) e o estudo das estruturas e padrões de exclusão.

Para a disciplina como um todo, este processo desencadeou, ao longo do tempo, na necessidade de um conceito de musicologia que englobasse elementos históricos, an-tropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e linguísticos, que estudasse a música como agente de representação cultural e que integrasse as atividades humanas no discurso histórico. Como parte da reação contra o determinismo evolucionista e a história causal como fundamento para a constatação da evolução da lógica racional, a Academia, sobretudo por meio “novos musicólogos”, redefiniu seus paradigmas a partir de uma ótica multidis-ciplinar e, dentre outras práticas, desenvolveu-se uma crítica que estuda como a música e seus códigos formais participam na produção dos mais variados tipos de representações

10 Que englobasse elementos históricos, antropológicos, sociológicos, etnológicos, psicológicos e linguísticos, por exemplo.

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e direcionam a escuta do ouvinte a certos pontos de vista. Nesta senda de pensamento consolida-se, outrossim, a importância do estudo, o estabelecimento e a sistematização disciplina de História da Música nas instituições de ensino superior (norte-americanas) e, consequentemente, o desenvolvimento de estratégias pedagógicas.

iVDentre os diversos campos de pesquisa da chamada New Musicology, sobressai o

da Crítica Feminista. Incitada pela inquirição dos estudos literários norte-americanos em meados da década de 1970 (McClary, 2002, p. 5-31), procurou, num primeiro momento (década de 1970 em diante), incluir a mulher nos estudos musicológicos como um todo. E o fez, tendo por referência a ótica patriarcal da “Teoria da história compensatória” (Citron, 1990, p. 103) (e o conceito tradicional de genialidade a ela correlata), cujo objetivo era fazer ‘justiça’ às grandes artistas que, a despeito das adversidades, atingiram a excelência artística. Em resumo, propôs-se, em resposta ao Canon tradicional masculino, um contra-Canon feminino, sob um molde deveras símil. A partir de então, formou-se um corpus de biografias, edições de partituras e análise de obras de compositoras, bem como estudos sobre performers, professoras e patronas da música, responsável por expor rico material, até então, pouco conhecido.

Num segundo momento (fim da década de 1980), mais que uma simples busca por uma igualdade, os textos da New Musicology aproximam-se do tradicionalmente chamado “feminismo da segunda geração” (Lechte, 2010, p. 182), mais atento ao (a) modus operandi das estruturas ideológicas, sociais e econômicas que colocam a mulher em desvantagem11; aos (b) desvios de gênero na linguagem e à construção de códigos musicais de gênero e sexualidade12 e, igualmente, em (c) desvelar a semiótica, as teorias, e a epistemologia próprias das mulheres, ou seja, a existência de padrões de escolhas temáticas, técnicas, estilísticas ou conceituais exclusivos às mulheres, quer sejam eles induzidos pelo contexto discriminatório ou por qualquer outra razão. Suas estratégias ativeram-se à reformulação e à releitura do que se considera o mais evidente símbolo de exclusão do Outro nos estudos musicais: o Canon. Em outras palavras, deslindaram-se as condições históricas bem como os motivos e práticas que elidiram sistematicamente a mulher da tradição do repertório erudito referencial.

Com isso, a linha feminista da New Musicology, procurou revelar a parcialidade e a incompletude da tradição musical, cujas normas e paradigmas são orientados sob a ótica masculina. Como consequência, ampliou-se o repertório canônico, que passou a incluir a mulher, e reavaliar suas orientações filosóficas (Witt, 2008). Do ponto de vista da historio-grafia, igualmente, a busca pela independência e o intento em desmascarar os preconceitos e enfatizar a contribuição feminina à cultura – propostas ausentes nas grandes narrativas tradicionais – reintroduziram a mulher na História.

11 Como o patriarcado, o mercado de trabalho, contrato social iluminista, dentre outros.12 Como, por exemplo, as associações metafóricas entre fórmulas cadenciais, terminações harmônicas, temas da forma sonata e gêneros musicais, e atributos considerados masculinos (bravura, racionalidade, constância, objetividade) ou femininos (sedução, inconstância, delicadeza, liricidade), sendo que, geralmente, o primeiro têm primazia por aproximar-se mais do “ideal de música”

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VResumidos, pois, (1) os modelos de escrita historiográfica que fundamentaram a

escrita da História da Música, (2) o processo de formação da musicologia enquanto discipli-na, (3) os posteriores questionamentos da New Musicology acerca da mesma, bem como (4) as principais características da crítica feminista cabe, agora, indagar se e como três dos mais utilizados – e representativos – compêndios da disciplina em língua inglesa adotam o discurso desta última em suas narrativas e estratégias pedagógicas.

A partir da observação das ocorrências relativas ao feminismo ou à representação do feminino na música percebe-se, nos livros, dois eixos principais de abordagens.

O primeiro deles, claramente, busca coadunar o modelo biográfico patriarcal, cen-trado na análise formalista, à necessidade de dirimir o papel coadjuvante das mulheres na música. Nos casos observados, não é a condição e a particularidade de gênero, mas sim, as qualidades artísticas de suas obras e de suas personalidades13 que as legitimam como dignas de inclusão na tradição musical e, consequentemente, nas narrativas históricas. A referência é, todavia, o modelo de artista ideal forjado, sobretudo, no século XIX, no qual elas, em nome da música e de seus anseios interiores, sobrepujaram os mais diversos obstáculos, conseguindo, com seu ofício e talento ímpares, acercar-se do panteão da Grande Arte.

Sintomática desta abordagem é o caso de Hildergard von Bingen, sobretudo pelos autores sublinharem nela, precisamente, as características atribuídas ao masculino: a independência intelectual, teológica e artística perante o papado, sua grande erudição, o respeito e a reverência com que muitos nobres, reis e mesmo clérigos a tratavam e, no âmbito musical, seu pioneirismo em compor peças como o drama litúrgico Ordo Virtutum, uma obra que, a despeito de seu cunho exclusivamente votivo, apresenta qualidades que favorecem sua canonização14. Wright e Simms chegam a chamá-la, em tom elogioso, de “o primeiro homem renascentista” (2006, p. 39-40). Mark Evan Bonds, por sua vez, comenta que von Bingen, em virtude de sua personalidade e de sua postura, muitas vezes era tratada “como homem” (2008, p. 47).

Há exemplos, como nos casos de Madalena Casulana (c. 1544 – c. 1590), Barbara Strozzi (1619-1677), Clara Schumann, entre outros, onde se apontam seus feitos e logros, enfatizando a consciência que tais personalidades tinham acerca de suas próprias virtudes e dificuldades: “quão enganado é o homem que, ao se assumir dotado de grande inteligência, pensa ser a mulher inapta à compartilhar de seu nível intelectual”, dizia Casulana (apud Burkholder, 2006, p.251-2).

Noutros casos destacam-se, também, os empecilhos que impossibilitaram o desen-volvimento profissional e o possível reconhecimento artístico de determinadas compositoras, com destaque para Fanny Mendelsohn que, apesar de lhe ser oferecida a mesma educação que seu irmão, foi forçosamente desestimulada, sobretudo após o matrimônio, a exercer atividade musical profissional. Manifesta-se aqui uma espécie de nostalgia de um potencial não concretizado que se pergunta: “aonde chegaria este imenso talento se fosse tratada como homem, ou se não lhe fossem tolhidas certas liberdades?”.

13 Ao menos as valorizadas pelo cânone.14 É concebida como um todo musical original analiticamente complexo e acabado, independente do cantochão e textos pré-existentes, e com inovações melódicas, dentre outras.

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As mulheres que fomentaram, sobremaneira, as artes, também são observadas nas narrativas. Nestes exemplos, procura-se demonstrar como contribuíram tanto para elevar qualidade da prática musical quanto para desenvolver e aperfeiçoar estilos e gê-neros musicais. O mesmo ocorre com as pedagogas e estetas que formaram, por meio da educação técnica, estética e intelectual, gerações de intérpretes e compositores, como o fez Nadia Boulanger.

Mais próximo, portanto, ao que se costuma denominar “feminismo da primeira geração” (Lechte, 2010, p. 181-2), esta abordagem propõe um ‘contra-canon’ em que as musicistas – tal qual seus cômpares masculinos – além de admiradas pelas suas conquistas e genialidade excepcionais, são enaltecidas como quase heroínas por vencer as adversidades próprias do gênero15.

O segundo eixo temático, que possui viés mais sociológico e se esquiva do costu-maz tratamento biográfico (sobretudo ao associar-se à História da Recepção), analisa as funções e representações da mulher nas práticas comunitárias socioeconômicas e culturais ligadas à música.

Dentre os temas comuns, destacam-se os exemplos diretamente relacionados ao posicionamento da mulher na produção e consumo da música, sobretudo, nos períodos em que a ascensão de uma classe média estimulou a atividade instrumental doméstica como meio de prestigio, afirmação e entretenimento. Neste âmbito, a despeito das variantes, observa-se nos três materiais a ênfase no fato do ímpeto criativo feminino, quer seja na composição ou performance, ter-se circunscrito majoritariamente ao contexto privado e aos gêneros e formações instrumentais a ele associados – o madrigal, a cantata de câmara, o lied, a caracter piece, os duos, trios de corda, os instrumentos de teclado e a voz, em oposição às formas mais pretensiosas (óperas, cantatas, sinfonias, concertos), próprias às salas (públicas) de concerto e ao ambiente profissional masculino.

Relevantes, também, são os casos que tratam da educação e da profissionalização da música, demonstrando o papel da mulher nos diversos estratos da prática musical, bem como de sua exclusão tanto das instituições ou atividades consideradas para elas impróprias – ou onde sua presença poderia gerar depreciação e descrédito – quanto da própria produção bibliográfica. Como exemplo, pode-se citar o concerto dele donne da corte de Ferrara em findo séc. XVI cujas cantoras, profissionais oriundas da classe média italiana, obtiveram o título de duquesas simplesmente para que não precisassem trabalhar para obter sustento (a nobreza era financiada pelos impostos), uma vez que era impróprio para mulheres de tal talento e destaque fazerem disso uma profissão.

Um último tema de cunho social que ocorre com frequência aborda a posição do feminino no ambiente musical religioso, descrevendo, por exemplo, a liberdade relativa das freiras na música produzida nos conventos medievais (bem como sua exclusão da li-turgia), as diferentes considerações das igrejas Católica e Protestante sobre a presença (ou não) da mulher nas respectivas liturgias ou, também, o rigoroso treinamento de órfãs nos centros religiosos da Itália desde o século XVI, cujo resultado era, não raro, a produção de conjuntos musicais de tal excelência que atraía fieis de outras regiões, mas que, por outro lado, era motivo de preocupação para o clero, pelo protagonismo e fascínio que exerciam.

15 De certa forma, às vicissitudes atribuídas ao artista homem do século XIX (falta de adaptabilidade com o mundo real, não ser plenamente compreendido ou reconhecido, dentre inúmeras outras) são adicionadas às relativas ao gênero.

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A preocupação com questões relativas à sexualização da mulher no meio religioso, presente nestes casos, exemplifica o que a New Musicology denomina “disembodied music”, ou seja, a ‘descorporificação’ e a ‘des-sexualização’ da prática musical e do feminino, costumeiramente associado, nos ambientes sacros, ao pecado.

ViQuando vistos à luz da crítica feminista da New Musicology, os temas predominantes nos

materiais analisados, um norteado pela a fusão entre “teoria compensatória” (presente no feminismo da primeira geração) e uma História da Música baseada no desenvolvimento dos estilos, gêneros e formas e sob a égide do que Hepokoski (1991, p. 233) denomina Wirkungsgeschichte (a história cumulativa dos efeitos provocados pelos grandes personagens e obras individuais); o outro, com clara influência dos estudos sociais, da recepção e, em menor medida, da alteridade, evidenciam uma apropriação bastante peculiar da mencionada linha de pesquisa, pois, ao mesmo tempo em que explicitam uma preocupação pela inclusão respeitosa do outro (a mulher), reafirmando seu lugar no cânone e na História da Música, o faz parcimoniosamente, conjeturando muitas das sutilezas metodológicas e temáticas pertencentes à musicologia feminista em detrimento de assuntos menos complexos e polêmicos e, costumeiramente, aceitos pela historiografia musical tradicional.

Tal peculiaridade parece resultar, mais que do distanciamento crítico dos autores acerca da New Musicology, do contexto da graduação em música nos Estados Unidos. Como no Brasil, a maioria das Universidades naquele país privilegia a formação de professores de musicalização e, sobretudo, de performers, postergando a elucubração mais crítica da música à pós-graduação. Consequentemente, os currículos destas instituições, bem como todo corpus bibliográfico que as atende, têm sido elaborados sob tal desígnio, salvo raras exceções. No caso particular das didáticas de História da Música, o objetivo não é dar ao alunado subsídios críticos iniciais para uma discussão sobre a historiografia musical ou sobre a própria História, por exemplo, mas sim, prover ao bacharelando uma “visão geral dos fatos” e do “desenvolvimento” dos estilos, gêneros, formas, técnicas e ideias musicais da cultura ocidental que permita, por sua vez, uma vinculação mais direta com seus estudos performáticos cotidianos. Tal visão eminentemente funcional da disciplina acaba por delimitar os modelos pedagógicos das didáticas, suas estratégias narrativas e, consequentemente, os temas a ser, ou não, abordados – incluídos os da New Musicology.

Os materiais aqui estudados, não alienados às conquistas da New Musicology, mas cientes de que uma abordagem feminista demasiado crítica vai de encontro aos intentos pedagógicos dos cursos de música (endereçado ao instrumentista) e à escrita das próprias didáticas (enfoque na história dos estilos, gêneros e formas, predominância do modelo tradi-cional de canonização etc.), preferem tratar da representação do feminino com parcimônia, trazendo a mulher para a História sem vilipendiar os agentes e estratégias de exclusão. E, mesmo ao propor uma história de cunho mais social, desvinculada da Wirkungsgeschichte, o faz de modo a não prejudicar o caráter claramente pragmático destas obras e o contexto a que elas servem, aproximando-se da história da recepção16. Em resumo, busca-se um contato com a New Musicology que não afete sobremaneira a elaboração dos compêndios e tampouco o modelo tradicional de escrita histórica típico destas antologias.

16 Curiosamente uma das abordagens que Dahlhaus propõe ao impasse que vê na historiografia musical (não é História da música ou história da Música) é pelos estudos da recepção. Para maiores detalhes, vide seu Foundations of Music History (1977) e o mencionado texto de James Hepokoski.

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A prática interpretativa é uma arte mimética? – Acerca de mímesis e interpretação na teoria da Reprodução

Musical de theodor Adorno

Frank Michael Carlos KuehnUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Apresentação do problemaO conceito de mimesis remonta à Antiguidade (do grego mímésis, mimeós), onde

já começou a receber diferentes definições e significados. No vernáculo do latim clássico se impuseram os termos imitatio e imitare (imitação, imitar), os quais, entretanto, cor-respondem apenas parcialmente ao significado do conceito grego. Essa é a razão porque optemos doravante por empregar o conceito original com seus respectivos derivados em português mimese, mimético e mímico.

Como princípio primordial, a mimesis exerceu um papel fundamental no desen-volvimento do homem e de sua cultura. Sabe-se que o aprendizado, desde a mais tenra idade, se embasa na imitação. Por isso, o “bom exemplo” tem importância fundamental na educação. Nas ciências, tenta-se reproduzir, em ensaios de laboratório, as condições de um determinado ambiente natural de maneira mais fiel, o que não raramente envolve procedimentos de mais alta complexidade. Nas artes, a imitação de um certo modelo cos-tuma preceder a autonomia, constituindo o comportamento mimético o ponto de partida para a inovação artística. Assim acontece também na economia, onde se copiam produtos, modelos e estratégias. Todavia, sucesso e poder econômicos não só dependem do capital e dos meios de produção e sim também dos proprietários intelectuais de marcas, imagens e patentes, ou seja, de quem adquiriu o direito sobre a sua reprodução (copyright) (Sandler, 2008, p.2-3). Esses são apenas alguns exemplos de como o princípio mimético se manifesta em nosso cotidiano.

Analisado historicamente, o conceito de mimesis recebeu uma grande variedade de interpretações.1 Em razão da sua natureza ambígua, a mimesis pode ser interpretada de maneira afirmativa, como recriação, ou negativa, como mera cópia ou “macaqueação”. Seu elo com a música deve ser procurado na história das ideias, em particular, na história da filosofia. Halliwell (2002, p.23) sintetizou as diferentes interpretações nas acepções de espelhamento do mundo (world-reflecting) e de recriação do mundo (world-creating).

De certa forma, as variantes de espelhamento e de recriação do mundo já encontram em Platão e, respectivamente, também em Aristóteles uma correspondência, pois em suas teorias de produção artística o elemento mimético exerce uma função central. Em Platão, o dualismo entre a efemeridade do mundo sensível e a perenidade do mundo das ideias constitui um axioma central e encontra na dualidade de corpo e alma a sua equivalência. Os objetos do mundo físico não passam da copia de algo imutável e superior no plano das

1 Para uma exegese abrangente do conceito de mimesis e da história de suas interpretações, vide: Gebauer/Wulf (1992) e Halliwell (2002).

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idéias, tópos onde reina o grande demiurgo, o artesão divino que forma a matéria do universo através de moldes perfeitos. Na hierarquia platônica, o poeta é basicamente um imitador, um “criador de fantasmas” que “nada entende da realidade, mas só da aparência” (Platão, 2001, p.300; na trad. de P. Nassetti). Os objetos de arte constituem apenas “sombra da sombra”, mera cópia, portanto, inferior aos objetos da natureza. Por conseguinte, em prol de uma visão profundamente pragmática, o artista deve se subordinar aos fins políticos e educacionais do estado.

Aristóteles, por sua vez, estende o princípio mimético do fazer artístico (poiesis) a todas as artes. A mimesis explica tanto o conhecimento quanto a arte. Atribuindo às artes propriedades de verossimilhança, as ideias não estão no exterior dos objetos, mas no inte-rior de quem as produz (Aristóteles, 2001, 1140a, pass.). Por suas propriedades criativas e purificadoras, a mimesis adquire em Aristóteles um caráter afirmativo. Mais do que isso, o princípio mimético é um elemento “congênito no homem [zôon mimêtikôtaton]” (Aristóteles, 2003, 1448b, 4-6, na trad. de E. de Sousa). Acrescentando-lhe a kátharsis (purgação, purifi-cação) como elemento funcional, a reprodução de determinados caracteres ou personagens é para Aristóteles capaz de proporcionar no espectador uma sensação de alívio e prazer. Ao processo de produção artística como fazer artesanal se adunam ainda os conceitos de techné (habilidade e competência técnica) e de physis (natureza). Para o estagirita, trata-se na criação artística de uma ação que não pode ser reduzida a uma mera cópia ou plágio desalmado. De um lado, o poeta – em sua acepção abrangente de artista – engendra uma determinada ação criativa, enquanto, de outro, imita algo que está presente na natureza.

Por analogia, trazendo-se a teoria aristotélica para o campo da interpretação musical, a reprodução ao vivo de uma composição representa uma espécie de recriação de elementos da physis por meio da techné em arte (mimesis artística), em que uma composição musical é reconstituída com base numa realidade objetiva, dada pelo registro em forma de partitura. Nesse processo, o intérprete lhe empresta algo de si próprio, em conformidade tanto com a natureza da obra quanto com a sua natureza interior.

Considerando-se o enorme potencial da mimesis, surpreende que músicos-intérpre-tes e pesquisadores da música apenas raramente se dêem conta da presença do elemento mimético em suas práticas. Particularmente no âmbito do ensino e da pesquisa, observa-se que a mimesis representa um elemento subestimado senão totalmente relegado ou recalcado. Isso talvez se deva ao caráter paradoxal do princípio mimético, pois, gerando “o antigo” em condições, circunstâncias e formas sempre distintas, a mimesis costuma se apresentar de maneira nova e revigorada. Outrossim, ainda que demonstre certa singeleza ou simplicidade, o princípio mimético pode surpreender ao engendrar formas da mais alta complexidade. Tendo uma extraordinária capacidade de se duplicar e reduplicar em diferentes formas e direções, sua múltipla face tende a disfarçar a sua onipresença e poder. Nisto, a mimesis se assemelha com o mito, cuja presença também precisa ser literalmente “desmascarada”.2

Na seção que se segue, a Teoria da Reprodução Musical de Adorno é apresentada especificamente no tocante ao elemento mimético. O objetivo central é compreender melhor a função do elemento mimético no processo reprodutivo de uma composição musical.

2 Em A dialética do esclarecimento (2008), obra de referência da teoria crítica do século XX, Theodor Adorno e Max Horkheimer já apontaram essa relação em que o Esclarecimento iluminista, a razão instrumental e a crença no progresso tecnológico e científico se tornaram propriamente um mito.

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A teoria da Reprodução Musical de theodor AdornoPor “Teoria da Reprodução Musical” compreendemos, grosso modo, o conjunto

das reflexões de Adorno sobre a prática interpretativa. Composto por um grande número de fragmentos e manuscritos, revela uma face ainda pouco conhecida do autor. Editado na Alemanha sob o título Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion [Para uma teoria da reprodução musical] (2001),3 serviu também de base para a presente pesquisa. Considerando-se que o material engloba um grande número de fragmentos e manuscritos, não se trata de algo linear e homogêneo e sim de um conjunto de anotações heterogêneas. Essa peculiaridade sempre precisa ser levada em conta quando o assunto for a Teoria da Reprodução Musical.

Ao longo de suas anotações, é frequente Adorno associar a música e sua notação à linguagem idiomática e sua escrita alfabética. É logo no início de suas reflexões que essa questão se cristaliza como central: “Como se relacionam notação musical e notação idiomática? Uma das questões mais centrais, impossível de se separar desta: como se relacionam música e linguagem?” (TRM, p.11). Adorno argumenta que a notação musical constitui um sistema gráfico que, em termos de articulação e de logicidade, não deve nada ao da notação idiomática. Ao contrário da notação idiomática, entretanto, cuja origem está na comunicação de palavras e conceitos, a origem da notação musical deve ser procurada no elemento mimético. É, pois, no processo mimético que o som musical se transforma misteriosamente em linguagem, e o signo, em imagem, ou seja, na representação de uma idéia, de um pensamento ou na relembrança de uma experiência, de algo sensível.

Música e linguagem idiomática se aproximam principalmente em termos de gramática e de sintaxe. A grande diferença está no fato de que a linguagem e seu sistema de signos pertencem a um sistema homogêneo, enquanto a música e sua notação pertencem a sistemas heterogêneros (TRM, p.222). Adorno resumiu a diferença entre a linguagem idiomática e a linguagem musical num axioma lapidar, notável em sua lucidez: “Interpretar a linguagem significa compreendê-la; interpretar a música significa tocá-la” (GS, v.16, p.253). Com efeito, uma vez que a escrita musical imita o som, o intérprete terá necessariamente de imitar a notação musical: “A verdadeira interpretação é a imitação perfeita da notação”, assinalou Adorno (TRM, p.83).

Nessa tarefa, é necessário distinguir entre a notação como um instrumento de “dominação do material musical” e o texto propriamente dito. Enquanto os sinais gráficos representam o meio de fixar o som no espaço, a imagem do texto representa o vestígio histórico da obra. Há, no texto, um substrato histórico que precisa ser resgatado ou, melhor, “tocado” pelo músico-intérprete. Destarte, o registro gráfico representa apenas uma espécie de “matriz” ou “mapa” para que a composição possa ser efetivamente reproduzida. Vale ainda conferir o seguinte trecho da argumentação de Adorno:

A interpretação musical é a execução que, como síntese, preserva tudo o que tem de semelhante com a linguagem, ao mesmo tempo em que liquida aquilo

3 Para as referências bibliográficas da obra intitulada Zu einer Theorie der musikalischen Repro-duktion: Aufzeichnungen, ein Entwurf und zwei Schemata (Para uma teoria da reprodução musical: anotações, um esboço e dois esquemas, 2001), doravante também chamada de “Teoria da Reprodu-ção Musical” ou simplesmente de “teoria”, será usada a abreviação “TRM”. A paginação é da edição de bolso (Suhrkamp, 2005). Já para as referências da Obra completa de Adorno (2003) aparece a si-gla “GS”. Salvo indicação em contrário, a tradução das citações para o português é de minha autoria.

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que carrega de particular desta. Por isso, a ideia de interpretar é própria da música e não lhe é acidental. Tocar a música corretamente significa, em primeiro lugar, falar seu idioma de forma correta. Este capta a imitação por si mesmo e não via decifração. A música somente se revela na prática mimética [...] e nunca através de uma abordagem que a interpreta separada da sua execução (GS, v.16, p.253).4

Problemático é que os sinais gráficos da música não se aglutinam em palavras que designam objetos. Por essa razão, pode se falar, na música, de sons organizados em torno de temas, períodos e frases, mas não em palavras. As letras do alfabeto, empregadas para designar os diferentes sons, foram lhe acrescentadas apenas posteriormente. Como tal, representam para Adorno uma espécie de “conceitualidade primitiva” (primitive Begrif-flichkeit) (TRM, p.221).

Considerando-se que a notação musical encerra em si uma série de antinomias, o processo da sua transposição em som não é menos paradoxal. Daí, “interpretar” significa, nas palavras de Adorno, “a imitação de um processo dialético que se deu na própria com-posição” (TRM, p.92). Sua tarefa está “na restauração dialética” (TRM, p.273, 92), processo em que a unidade do tempo principal constitui um elemento fundamental para a coesão de suas partes (TRM, p.9). O problema central de toda interpretação está precisamente em reproduzir o todo e suas partes de forma adaquada, ou seja, na restauração do sentido da obra (TRM, p.9). O segredo de uma interpretação bem-sucedida está, portanto, em seu processo da transposição de sinais gráficos em som musical.5

O princípio dialético, por sua vez, emerge no interior da história e na tensão entre as antinomias da sociedade (GS, v.10, p.3, 36). Os diversos elementos que se encontram encapsulados no interior de uma obra de arte se desdobram dialeticamente num processo que de forma alguma pode ser separado da sua função crítica (TRM, p.286). Já o desdo-bramento de uma composição musical está em suas incontáveis reproduções ao longo da história. Por essa razão, a interpretação forma o que Adorno chama de “campo de força”: “O campo de força que a interpretação musical há de realizar está em seu aspecto histórico”, postula (TRM, p.121). Trata-se de uma espécie de campo agonal em que as “diferentes camadas, fortemente contrastantes” da composição são trazidas para o plano fenomênico (TRM, p.169). Quanto mais a interpretação revela as tensões que se encontram no interior da composição, melhor a reprodução como um todo.

Para, nesse campo, poder “navegar” de forma mais segura, o intérprete deve pon-derar entre a consciência subjetiva da necessidade em revelar as antinomias da obra e a fidelidade ao texto, que representa algo como a ideia objetivada do compositor. Destarte, conclui Adorno, “interpretar não significa apenas cristalizar a ideia e sim tornar visível o campo de força” (TRM, p.183). Sendo a expressão do seu caráter ambíguo, a separação

4 “Musikalische Interpretation ist der Vollzug, der als Synthesis die Sprachähnlichkeit festhält und zu-gleich alles einzelne Sprachähnliche tilgt. Darum gehört die Idee der Interpretation zur Musik selber und ist ihr nicht akzidentell. Musik richtig spielen aber ist zuvörderst, ihre Sprache richtig sprechen. Diese erheischt Nachahmung ihrer selbst, nicht Dechiffrierung. Nur in der mimetischen Praxis […] erschließt sich Musik; niemals einer Betrachtung, die sie unabhängig von ihrem Vollzug deutet” (GS, v.16, p.253).5 Sobre a distinção conceitual dos termos reprodução, interpretação e performance, vide: Kuehn, 2010b e 2011.

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(Auseinandertreten) da música em texto e som não se dá por acaso. Uma vez que o processo de produção musical está impregnado de paradoxos, também a reprodução musical deve ser dialética. Argumenta Adorno:

Como ser mímico, [a música] não é perfeitamente legível nem perfeitamente imitável pela linguagem, por isso ela se divide entre o ideal sonoro e a escrita, precisando da interpretação como esforço sempre renovado para conciliar seus elementos divergentes. Isto já justifica a reivindicação de se tratar a reprodução como uma categoria específica [...] Noutras palavras, a reprodução é necessária (TRM, p.238-239).6

O esquema da fig.1 ilustra esse campo de força, no qual a música se desdobra em som e texto:

Fig.1: O desdobramento da música em som e texto, permeado pelo campo de força.

Vimos, portanto, que uma interpretação bem-sucedida representa o resultado de um processo agonal em que os diversos elementos divergentes mantêm a música, por mimesis, em fluxo, ao mesmo tempo em que a unidade é pensada em termos de tempo e de produção de sentido. O modus procedendi de Adorno é dialético porque encara um determinado elemento ou objeto sempre com o seu pendant implícito, mesmo que este esteja oculto, seja na abstração do conceito, seja na do tempo histórico.

É precisamente nos dois manuscritos mais longos e elaborados da teoria que Adorno discorre sobre as origens e o desenvolvimento da notação musical a partir dos neumas (do grego, gesto, sinal).7 Para Adorno existem no desenvolvimento da notação musical

6 “Als mimisches Wesen ist sie nicht rein lesbar und nicht rein imitierbar als Sprache. Daher spaltet sie sich ins Ideal des Klangs und in Schrift und bedarf der Interpretation als einer immer erneu-ten Anstrengung zur Versöhnug der divergierenden Elemente. Das rechtfertigt den Anspruch von Reproduktion als spezifische Form genommen zu werden […] Mit anderen Worten, Reproduktion ist notwendig” (TRM, p.238-239).7 Para reconstituir a história da notação musical, a pesquisa bibliográfica de Adorno (TRM, p.76-84) se fundamenta, em boa parte, em Hugo Riemann (1849-1919). Influente teórico, historiador, musicólogo, pedagogo e lexicógrafo, Riemann é autor de uma vasta produção científica. Na primeira

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basicamente dois elementos que permeiam a história da música como uma espécie de fio condutor: mimesis e racionalidade.

A seguir, acompanhemos a parte da sua pesquisa sobre a notação musical do Ocidente de perto. O objetivo é descobrir de que modo mimesis e racionalidade se acham na raiz da notação musical e compreender a função que ambos os elementos tiveram em seu desenvolvimento. Para verificar as teses de Adorno e para efeito de ilustração, foram inseridas algumas imagens de documentos históricos, disponíveis na internet.

Comecemos com a comparação de dois documentos bem antigos. O primeiro é pro-veniente de um epitáfio de Éfeso e mostra uma estrofe da canção grega Seikilos. Estima-se que seja do século II a.C. Vemos que os gregos já recorriam a letras do alfabeto para indicar a altura do som. Supõe-se que as letras da escritura se refiram às cordas da khitara. No alto das letras acham-se ainda sinais gráficos indicando a duração do som:

Fig.2: Estrofe da canção Seikilos em notação grega do século II a.C.8

Com a ascensão do Império Romano, a notação grega se perdeu. Misteriosamente, a música atravessou longos séculos sem deixar muitos vestígios. Prova disso é Isidoro de Sevilha que – já no século VII d.C. – exclamou que “os sons perecerão se ninguém os guardar na memória, pois não há como escrevê-los”.9 É apenas por volta do século IX d.C. que aparecem os primeiros registros em neumas como tentativa de registrar o som (TRM, p.78-79 e 84). Por conseguinte, argumenta Adorno, é muito mais provável que o processo de formação da notação musical moderna tenha sido desencadeado apenas na Idade Média e não na Antiguidade grega, como havia se acreditado (TRM, p.230).

parte da sua pesquisa, Adorno recorreu a: Handbuch der Musikgeschichte, v.1 [Manual da história da música, Antiguidade e Idade Média até 1300], Leipzig, 1923; Musik-Lexikon [Enciclopédia da mú-sica], Leipzig, 1882, e: Vademecum der Phrasierung [Manual do fraseado], 1900. Na seção, intitulada Ad antike Notenschrift [Acerca da escrita musical antiga], Adorno recorreu ainda a outras duas obras de Riemann, a saber: Studien zur Geschichte der Notenschrift [Estudos sobre a história da escrita musical], de 1878, e Die Entwicklung unserer Notenschrift [O desenvolvimento da nossa notação musical], de 1881.8 Imagem disponível em: http://de.wikipedia.org/wiki/Notation_(Musik), último acesso out. 2008. Exis-tem também algumas gravações em áudio da canção, disponíveis em:<http://www.amazon.com/gp/dmusic/media/sample.m3u/ref=dm_sp_smpl/180-2458157-0010228?ie=UTF8&catalogItemType=track&ASIN=B0011BGZIS> e/ou:<http://mp3wm.com/download-musica/corvus-corax-seikilos-2111107.html>, último acesso julho 2011.9 “Nisi enim ab homine memoria teneantur soni, pereunt, quia scribi non possunt” (Isidoro de Sevi-lha, 1982, v.3, cap.15) .

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O segundo documento mostra um recorte de neumas iniciais. Estima-se que seja do século X. Como podemos notar, trata-se de uma notação bem precoce. Observando-se os traçados, surge mesmo a impressão de que se trata da representação gestual de um regente que está marcando o movimento rítmico e melódico da música com as mãos. A tese de Adorno é que tais gestos – convencionados numa técnica que é chamada de quironomia – tenham inspirado os monges dos monastérios medievais a empregar os neumas como tentativa de fixar o som musical. Esses neumas consistem precisamente numa “pictografia dos acentos dinâmicos, empregada nas igrejas católica romana e ortodoxa grega da Idade Média para indicar o movimento ascendente e descendente, do ritmo e do tempo da melodia para conduzir o coro com firmeza“ (Mocquereau apud Adorno, TRM, p.230-231). Com efeito, nesses termos, a quironomia pode ser considerada uma manifestação peculiar da mimese.10

Fig.3: Recorte de primeiros neumas (século X).11

Adorno confere ao surgimento dos neumas grande importância. Sua tese é que a escrita por neumas – em combinação com a quironomia como elemento mimético e a nomeação das notas musicais por letras do alfabeto – teria dado à notação musical clareza e univocidade necessárias para que ela pudesse se desenvolver da forma como se deu (TRM, p.80-81).

De qualquer forma, ainda que tivessem significado um grande avanço, os neumas representaram apenas uma forma primitiva de anotar a música. Como tal, não proporcio-navam mais do que uma vaga lembrança dos contornos da melodia. Não havia como se indicar a altura, nem a duração das notas com precisão. Em consequência disso, o advento progressivo da racionalização fez com que a notação se tornasse um instrumento cada vez mais poderoso para se poder exercer um maior controle sobre a produção e a execução musical. Se, no início desse processo, estavam no centro os elementos mímico e gestual

10 Do grego kheironomía, gesticulação cadenciada. Sistema de sinais emitidos pelas mãos, particularmente entre as tradições que desconheciam a escrita musical (Dourado, 2004, verbete “quironomia”). Segundo Houaiss (2001), designa: 1) arte dos ademanes, da harmonia entre os gestos e os discursos; 2) conjunto de gestos que acompanham a fala, mímica, e 3) figuração do desenho melódico por meio dos movimentos das mãos.11 Música na Idade Média (neumas iniciais). Imagem de domínio público disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Neumasiniciais.JPG#file>, último acesso março 2008.

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de anotar o som, no âmago do desenvolvimento subseqüente estava o aspecto normativo, revestido de uma função claramente disciplinadora. Com efeito, foi através do elemento mensural da notação como indicador quantitativo duracional que a música conquistou, poucos séculos depois, a sua autonomia perante a prosódia poética (TRM, p.82).

Também as reformas que tiveram início com Guido de Arezzo (990-1050) repre-sentaram marcos importantes no processo de racionalização da notação musical (TRM, p.236). Adorno aponta principalmente dois eventos como cruciais: a) o alinhamento dos neumas, e b) a introdução de sinais que indicam valores fixos para a duração do som (TRM, p.228-229). Nessas reformas, os traçados gestuais dos neumas primitivos foram substituídos gradativamente por notas quadradas que, ao invés de se alinhá-los em torno de uma única linha apenas, foram distribuídas por uma pauta de quatro linhas. O quadro da fig.4 mostra passo a passo o desenvolvimento dos neumas em notação mensural:

Fig.4: Primeiros neumas e seu desenvolvimento em notação mensural.12

Outro marco representa o desenvolvimento do manossolfa, no qual se passou a acrescentar o uso de sílabas na leitura do melos (do grego, canto, canção). Com base em princípios da quironomia, o manossolfa,13 mão de solfa ou mão guidoniana,14 introduziu o uso de sinais em que mãos e dedos do regente indicam cada nota musical da pauta. Adicio-nalmente, Arezzo denominou cada nota da escala natural de acordo com as sílabas iniciais de cada versículo da primeira estrofe do hino eclesiástico Ut queant laxis (ut [dó], ré, mi, fá etc.), o que permitiu, pela primeira vez, que se cantassem tanto a altura quanto o nome de cada nota simultaneamente. Com efeito, o manossolfa forma a base para o solfejo como ele é praticado até hoje sem grande variação.

Tudo isso mostra que a história da música ocidental está estreitamente entrelaçada com o desenvolvimento da sua notação. Ainda que na notação moderna predominem os aspectos normativos, no processo mimético da reprodução sonora prevalecem os aspectos

12 Imagem disponível em: www.wiki.commons, verbete “Mensuralnotation”, último acesso jan. 2009.13 Sistema de estudo de solfejo auxiliado pelo uso dos dedos das mãos, quironomia (Dourado, 2004, verbete “manossolfa”). Sistema de solfejo que indica a altura por meio de sinais dos dedos e das mãos (Houaiss, 2001).14 “Mão guidoniana, mão de solfa”: recurso mnemônico medieval, por meio da memória e não da escrita, para o domínio do sistema de hexacordes. Disponível em: <www.pt.wiktionary.org/wiki/m%C3%A3o_guidoniana>.

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gestual, dinâmico e expressivo. Desse modo, mimesis e racionalidade estão constituindo uma antinomia central que está também na raiz de seus problemas. Nas palavras de Adorno: “A notação regula, domestica e reprime ao mesmo tempo aquilo a que ela serve – uma dualidade de que toda reprodução musical sofre até a sua liquidação [...] A fidelidade à obra é ao mesmo tempo a obediência que a destrói” (TRM, p.229).

Toda notação musical tem como princípio fundamental a “espacialização do tempo” e encerra em si algo profundamente ambíguo e paradoxal. Em suma, “aquilo que [a notação] pretende fixar, está impreterivelmente perdido”. Para compreender melhor o que Adorno queria dizer, seguem ainda alguns trechos da sua argumentação:

Espacializar algo significa estar presente [...] [e] o que está plenamente presente, significa ser passível de dominação [...] para trazer, a seu mando, o que, por si mesmo, já está perdido. Toda prática musical é uma recherche du temps perdu. Essa é a chave para a dialética da música até a sua liquidação [...] A notação musical é o órganon da dominação do homem sobre a natureza [...] Tendo a música, em seu estágio remoto [...] sido usada para dominar o homem [...] agora a dominação se infiltra na música por meio da notação, ou seja, os gestos que a música ora prescreve, ora imita se tornam, como imagens, domináveis, podendo se proceder, em sua reprodução, ad libitum. É precisamente nesse estágio que a racionalização do material musical começou a aumentar gradativamente (TRM, p.228).15

Vemos, portanto, que é por meio do gesto que a música é trazida “à luz” ou, melhor, “ao ouvido”. Desse modo, quironomia, mimesis e racionalidade resultam, na notação, numa espécie de imagem do som em que se destacam duas qualidades centrais: a de ser uma imitação literal do gesto, e a de ter a racionalidade como elemento normativo (na tradição sinfônica incorporado pelo regente) (TRM, p.230). Ainda que na notação moderna sobres-saiam os elementos mensural e disciplinador, no processo mimético da reprodução musical predomina a dinâmica com seus elementos gestuais expressivos. Por essa razão, mimesis e racionalidade representam na teoria de Adorno uma espécie de antinomia dialética. O fragmento a seguir ilustra isso de forma exemplar:

Na notação musical subsiste algo de contrário ao seu conteúdo: a racionalidade, precondição de toda arte, ao mesmo tempo torna-se o seu adversário. A notação regula, obstrui aquilo que ela denota e desenvolve – tornando, desta forma, a reprodução um empreendimento bastante laborioso. Dito de forma mais clara:

15 “Etwas verräumlichen heisst da sein: [...] [und] was ganz da ist, lässt sich beherrschen [...] durch absolute Verfügung das wiederzubringen, was durchs Verfügen selber Unwiederbringlich ward. Alles Musizieren ist eine recherche du temps perdu. Das ist der Schlüssel zur Dialektik der Musik bis zu ihrer Liquidation […] Musikalische Schrift ist das Organon der musikalischen Naturbeherrschung […] Hat Musik in einem sehr frühen Stadium der Beherrschung von Menschen gedient [...] so wandert vermöge der Notation Beherrschung in sie selber ein, das heisst, die Gesten, welche Musik seis anregt, seis selber nachmacht, werden in ihr, als Bilder, beherrschbar, nach Belieben zu machen, wieder hervorzubringen, und darin bereitet sich die Rationalisierung des Materials der Musik vor” (TRM, p.228).

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na notação musical já está constituída a diferença desta para com a música. Embora empiricamente inadequada, a espacialização do elemento temporal é necessária (TRM, p.71-72).16

O caminho para se chegar à essência de uma composição musical passa, para Adorno, invariavelmente pela análise. Como “mais importante categoria de mediação” entre o texto e a sua reprodução (TRM, p.125), a análise constitui sobretudo um meio para a conscien-tização do intérprete. É nessa direção que aponta também o seguinte aforismo: “Só quem não apenas sente a música, mas também a pensa, sente-a corretamente” (TRM, p.127).

Noutro fragmento, Adorno sintetizou sua concepção analítica da seguinte maneira: “A verdadeira interpretação não é nem a irracional-idiomática [do músico] nem a puramente analítica [do teórico], mas a restauração do elemento mimético pela análise. O elemento neumático fornece notadamente as instruções para isso” (TRM, p.107). Explica-se: ao reconstituir o elemento neumático da notação musical segundo as instruções mimético-gestuais com base nos dados informados pelo elemento mensural, revela-se o sentido da obra, a sua “verdade”, por assim dizer.

Para Adorno, portanto, a função da análise não está em mostrar como “funciona” uma composição ou uma determinada técnica composicional, nem em legitimá-la, e sim na solução de problemas concretos para a sua interpretação.

O esquema da fig.5 ilustra os processos da produção e da reprodução musical em dois momentos distintos. Repara-se que o elemento mimético está associado ao gesto e à espontaneidade, e a racionalidade, ao entendimento e à análise. Por parte do compositor, a mimesis se manifesta numa espécie de auto-espelhamento da ideia musical em som (Hal-liwell: self-mirroring). Um processo semelhante ocorre também no momento da interpreta-ção, quando o espelhamento do texto leva a uma espécie de recriação do mundo (Halliwell: world-creating). Por seu caráter dialético, mimesis e racionalidade foram posicionadas perpendicularmente em oposição: a) no tocante ao espelhamento da ideia musical em som, e b) no tocante à análise e sua articulação em entendimento (ou conhecimento):

16 “Zugleich aber liegt in der musikalischen Schrift ein dem Musikalischen – ihrem eigenen Inhalt – Entgegengesetztes. Die Rationalisierung, Bedingung aller autonomen Kunst, ist deren Feind zugleich. Die Notation reguliert, hemmt, unterdrückt immer zugleich, was sie notiert und entwickelt – und daran laboriert alle musikalische Reproduktion. Genauer gesprochen: im Aufschreiben von Musik ist konstitutiv bereits die Differenz von dieser mitgesetzt. Die Veräumlichung des Zeitlichen ist notwendig, nicht bloss empirisch inadäquat” (TRM, p.71-72).

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Fig.5: Esquema dos processos de produção e de reprodução musical em dois momentos distintos da história.

Considerações finaisPor interagirem tanto na produção quanto na reprodução da música, mimesis e ra-

cionalidade formam a base da Teoria da Reprodução Musical de Adorno. Uma interpretação que recorre a apenas um único elemento estaria, portanto, fadada a fracassar.

O campo de força, por sua vez, é composto por uma grande diversidade de el-ementos intramusicais e extramusicais que interagem de forma agonal.

Os elementos da notação musical podem ser resumidos a três: a) o idiomático, remetendo à linguagem musical; b) o mensural, remetendo à racionalidade; e c) o neumático, remetendo à mimese do gesto em som. Sua relação é dialética. É na historicidade da música e na tensão entre as antinomias da sociedade que o princípio dialético se manifesta. Quanto mais a interpretação for capaz de revelar os elementos divergentes, encapsulados no inte-rior de uma composição musical, melhor a reprodução como um todo. O modo e a medida em que isso deve ocorrer dependem fundamentalmente das circunstâncias históricas e do caráter da composição.

A rigor, a relação entre mimesis e prática interpretativa já está no interior da própria denominação da teoria de Adorno, onde o prefixo “re” em “reprodução” evidencia essa

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relação em que uma composição é apresentada ao vivo. Nesse momento, ela é trazida por meio do gesto para o plano fenomênico do som, podendo a mimesis artística se manifestar como espelhamento e como recriação do mundo.

EpílogoTudo o que foi dito também se aplica, em maior ou menor grau, a outros contextos

interpretativos onde se recorre à notação musical ou a outro registro que serve à reprodução como base. Uma variante ainda relativamente recente da mimese emergiu com a internet e os meios eletrônicos. Também o DJ, o sampleador, o remix e o dubbing são variantes miméticas que empregam tecnologias digitais de reprodução. Espalhando-se, em escala global, pelas redes de comunicação, essas novas variantes de mimesis geram cópias, espe-lhamentos e clones, entre outras formas híbridas do mundo cibernético.

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TEORIAS ANALÍTICAS

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Um estudo neo-riemanniano de dois fragmentosde música brasileira

Rita de Cássia TaddeiUniversidade de São Paulo

Rodolfo Coelho de SouzaUniversidade de São Paulo – Ribeirão Preto

A teoria de análise harmônica tonal conhecida como Harmonia Funcional, usual-mente associada ao nome de Hugo Riemann (1849-1919), conquistou amplo espaço no Brasil devido à influência que H. J. Koellreutter e seus alunos. Uma parcela significativa dos cursos de música do Brasil, em universidades e conservatórios, utiliza essa teoria como ferramenta básica para o ensino de harmonia. A pesquisa que origina esta comunicação procura desven-dar a congruência da versão usada no Brasil da teoria da harmonia funcional, com os textos originais de Riemann que, nas últimas décadas, tem merecido substancial reavaliação por uma nova geração de teóricos, chamados de neo-riemannianos, entre os quais David Kopp, Daniel Harrison, Alexander Rehding, David Lewin, Henry Klumpenhower e Richard Cohn. Esclareça-se, todavia, que embora esteja no escopo global desta pesquisa, neste trabalho não abordaremos o problema das transformações entre acordes mediantes, tema central das teorias neo-riemannianas, concentrando-nos em uma revisão do problema dos acordes cromaticamente alterados, de acordo com as proposições originais de Riemann.

Ao longo do século XIX diversos compositores contribuíram para a expansão da linguagem harmônica tonal por meio da utilização de novas combinações de acordes, de relações entre tonalidades distantes e do próprio vocabulário harmônico, como resultado de um emprego sistemático da escala cromática. O uso intensivo do cromatismo foi considerado pela teoria tradicional da harmonia como um aparente enfraquecimento da estruturação tonal, ainda que, do ponto de vista da percepção, as obras ultra-cromáticas continuassem a soar fortemente ancoradas no sistema tonal. Essa contradição gerou a necessidade de se buscar novas teorias analíticas: se essa música não é totalmente coerente com os princípios teóricos da tonalidade diatônica, que outros princípios a justificariam?

A Teoria Funcional de Hugo Riemann surgiu em 1887 trazendo como um dos seus objetivos a proposição de um sistema capaz de esclarecer e codificar a linguagem harmônica mais complexa que vinha então se desenvolvendo.

Na primeira parte do texto apresentaremos um resumo de alguns conceitos do método analítico proposto por Riemann que enfocam aspectos da técnica utilizada para descrever a estrutura de acordes alterados. Exemplificaremos esse método com um frag-mento das “Variações sobre um Tema de Telemann” Op. 134 para piano de Max Reger. Escolhemos uma peça desse compositor porque ele estudou pessoalmente com Riemann e utilizou como ferramenta composicional os conceitos do mestre sobre processos har-mônicos cromáticos.

Esse exemplo demonstrará algumas diferenças existentes entre o método original

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de Riemann e a versão da harmonia funcional usada no Brasil que na verdade é uma al-ternativa teórica proposta por Wilhelm Maler (1902-1976) que procura simplificar o pen-samento riemanniano tentando compatibilizá-lo com a tradição da harmonia tradicional. Apresentaremos a seguir uma análise de duas passagens de peças brasileiras – trechos de uma canção de Geraldo Vandré arranjada para coro por Cozzella e de uma canção de Nepomuceno – que ilustram a diferença entre as abordagens.

Mostraremos também como a preocupação de Riemann com a unificação da fun-ções harmônicas antecipa o conceito de expansão de tonalidade apresentado em Funções Estruturais da Harmonia (1954), de A. Schoenberg e como sua concepção da constituição de acordes, baseada no princípio dualista de formações ascendente e retrógrada da série harmônica, antecipa um princípio fundamental da Teoria dos Conjuntos (1973) de Allen Forte, demonstrando assim que os conceitos originais de Riemann pavimentaram o caminho para a análise da música pós-tonal enquanto, por outro lado, ficaram obscurecidos quando reformulados como a 5ª lei tonal de Wilhelm Maler, derivada de um aforismo de Reger.

A teoria de Hugo Riemann para a análise de acordes cromaticamente alteradosRiemann apresenta a formação dos acordes relacionando-os aos sons da série

harmônica em movimentação ascendente e descendente (Riemann, 1893, p.6). Conforme Klumpenhouwer (2002, p.456) essa concepção teórica dualista ancora-se em uma sólida linhagem de teorias desenvolvidas na Alemanha prussiana através das pesquisas de Haupt-mann, Helmholtz e Oettingen. Estipula-se nessa teoria que a sonoridade que resulta da ressonância da série harmônica de uma fundamental produz o acorde maior (acorde de harmonia superior ou overclang), enquanto a congruência das notas de um acorde com a ressonância de uma fundamental entre as possíveis séries harmônicas a que elas pertencem, produz o acorde menor (acorde de harmonia inferior ou underclang).

No que diz respeito à questão do cromatismo, a visão riemanniana de acordes al-terados distingue-se da visão tradicional por considerar que todas as alterações têm igual grau de importância, e não somente aquelas que caracterizam acordes com função de dominante ou que integram processos de modulação. Essa postulação encontrou um eco posterior no Harmonielehre de Schoenberg em que este defende que “não existem sons estranhos à harmonia” (Schoenberg 1922/1999, p.435).

Sendo mais preciso: a teoria de Riemann distingue dois tipos principais de dis-sonâncias, as características e as figurativas, mas atribui a ambas significado estrutural. Com isso Riemann procurou resolver uma questão da análise harmônica que a harmonia tradicional (ou seja, a teoria do baixo cifrado) evitava enfrentar. No livro Harmonia Simpli-ficada, encontramos a seguinte afirmação:

Trata-se agora de estender a categoria das dissonâncias características e organizar em grupos o grande número de dissonâncias figurativas. Se começássemos pelas últimas, entenderíamos que a figuração através de notas de passagem ou de notas auxiliares naturalmente nos faz reconhecer um grande número de acordes dissonantes, aos quais, no método usual de ensino de harmonia, fundamentado no baixo cifrado, um excesso de importância é conferido a eles serem colocados no nível de dissonâncias características (Riemann, 1893, p. 107).Quanto à indicação das alterações de acordes, é importante apontar que as mesmas ocorrem sempre em semitons ascendentes ou descendentes em relação

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a um dos graus que estruturam um acorde maior ou menor (fundamental, terça ou quinta), havendo ainda a possibilidade de se acrescentar notas às tríades.

O sinal < indica semitom ascendente, e, de modo similar, o sinal > indica semitom descendente. Abarcando essas duas possibilidades – alterações cromáticas ou acréscimo de notas – Riemann obtém uma coleção considerável de acordes alterados, os quais são apresentados detalhadamente no livro Harmonia e Modulação.

O resultado é que, dentro de uma tonalidade, são possíveis quase todas as com-binações de três e quatro sons, englobando os doze sons do sistema temperado – alguns até podem ser escritos de diversas maneiras. Seria, contudo, uma grande falta não observar a teoria da tonalidade concreta, ou seja, a teoria da harmonia baseada no sistema tonal: os três acordes de tônica, dominante e subdominante. Precisamente, dever-se-ia fazer o contrário, reforçar nossa convicção, mas dirig-indo a visão até as inesgotáveis possibilidades da figuração livre melódica, e que só se obtém partindo de uma base sólida para avançar com passo seguro nessa imensidade de formações vacilantes. (Riemann, 1930, p. 148)

Para demonstrar um dos grupos de acordes alterados, transcrevemos do livro Harmonia e Modulação de Riemann as alterações possíveis para um acorde de tônica, na tonalidade de dó maior (ver a figura 1).

Figura 1. Acordes de tônica alterados e com notas acrescentadas em dó maior

Empregando este método, procedemos à análise de um fragmento das Variações sobre um tema de Telemann, Opus 134, de Max Reger (Variação X – comp. 21-28). Escolhemos este compositor não só porque ele foi aluno de Riemann, mas também porque ele utilizou de forma sistemática a concepção do mestre sobre processos harmônicos cromáticos como ferramenta composicional. Antes de apresentar a análise dos oito compassos menciona-dos, destacamos um detalhe do compasso 27, no qual ocorre um acorde com estrutura análoga ao chamado “acorde de Tristão”, ou seja, uma sonoridade de tríade diminuta com 7ª menor (ver a figura 2). A sonoridade circulada com uma elipse é a que corresponde ao problema em estudo. Note-se que a condução cromática desse acorde difere da resolução wagneriana. Essa questão da resolução por deslizamento cromático do acorde de Tristão, considerado como acorde apojatura, aparecerá, com outras configurações, nas análises de música brasileira que apresentaremos mais adiante.

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Figura 2. Reger – Variações Op. 134 – X – c. 27 – ocorrência de uma “sonoridade de Tristão”

Segue-se a análise da estrutura harmônica dos compassos 21-28 (ver a figura 3). Note-se que no pentagrama inferior procedemos a uma redução da estrutura harmônica para facilitar o entendimento da estruturação dos acordes e da condução das vozes.

Figura 3. Reger – Variações Op. 134 – X – c. 21-28 – Análise da estrutura harmônica

Evidencia-se na análise da figura 3 que a metodologia original de Riemann julgava har-monicamente relevantes, e procurava considerar na análise, todas as notas consideradas como “de passagem” pela harmonia tradicional. As análises funcionais que normalmente são praticadas no Brasil também evitam esse detalhamento das notas cromáticas, uma vez que a teoria que se costuma utilizar é a versão simplificada da harmonia funcional empreendida por Wilhem Maler que incorpora, entre outros, o conceito de nota estranha à harmonia da teoria do baixo cifrado. Note-se também que adotamos a nomenclatura internacional para acordes relativos e anti-relativos, conforme Harrison (1994) ou Krämer (1997): as funções relativas são indicadas com um “P ou p” (de Parallel, em alemão) e as anti-relativas com um “G ou g” (de Gegen).

A unificação das funções harmônicas na teoria de Riemann Examinando as análises apresentadas neste artigo, verificamos que, ao aplicar a

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teoria de acordes alterados de Riemann, resultou que todos os acordes apresentam funções de tônica, subdominante ou dominante, o que se coaduna com o pensamento riemanniano sobre a unificação das funções harmônicas. Segundo essa visão, qualquer passagem diatônica ou cromática pode ser vinculada a uma única tonalidade, pois a teoria riemanniana reduz todas as funções dos acordes de uma tonalidade como sendo subordinadas a três funções principais: T = tônica, S = subdominante e D = dominante.

A defesa desta concepção pode ser encontrada em diversas passagens de Riemann, como na citada abaixo, escolhida por ser de um texto tardio, o que demonstra que ele se conservou fiel a esse princípio ao longo de sua extensa obra:

Assim como todos os acordes guardam uma estreita relação funcional com o acorde principal de tônica, e cada novo acorde, que sucede a este, ainda que diferente, esclarece por si mesmo seu significado pela relação que guarda com aquele, assim também toda tonalidade estranha a um contexto harmônico, ad-quire sua significação e sua unidade conceitual com relação ao lugar que ocupa com referência à tonalidade principal. (Riemann, 1930, p. 152)

Para esse teórico, se entendermos cada uma das notas da melodia como parte integrante das três harmonias fundamentais da tonalidade, em lugar de nos guiarmos indi-vidualmente pelos sons da melodia, podemos olhar para o movimento natural das cadências no curso normal de harmonia por meio das suas funções. Assim, formam-se cadências sobre as harmonias da tonalidade, sem que haja uma mudança da tonalidade.

Posto que esses conceitos já haviam sido apresentados por Riemann ao redor de 1887, é fato que eles antecederam em muitas décadas as colocações de Schoenberg sobre monotonalidade expostas em Funções Estruturais da Harmonia (1954), como por exemplo:

A mistura de notas e acordes alterados com diferentes progressões diatônicas, mesmo em segmentos não cadenciais, era considerada modulação pelos teóricos antigos. Trata-se de uma visão limitada e, portanto, obsoleta da tonalidade. Não se deve falar de modulação a menos que uma tonalidade tenha sido definitivamente abandonada, e por tempo considerável, e outra tonalidade tenha se estabelecido quer harmonicamente quer tematicamente. O conceito de regiões é uma conse-qüência lógica do princípio de monotonalidade. De acordo com este princípio, considera-se que qualquer desvio da tônica ainda permanece na tonalidade, não importando se sua relação com ela é direta ou indireta, próxima ou remota. Em outras palavras, há somente uma tonalidade em uma peça, e, cada segmento, considerado antigamente como outra tonalidade, é apenas uma região, um contraste harmônico interno à tonalidade original. (Schoenberg, 2004, p. 37)

Examinando a extensa tabela de acordes alterados organizada por Riemann para o livro Harmonia e Modulação e comparando-a com o quadro de regiões proposto por Schoenberg no livro acima citado, observa-se que as semelhanças são claras, evidenciando a influência direta do pensamento de Riemann sobre Schoenberg, ainda que este não tenha adotado o modelo de cifragem de acordes proposta pelo outro. Para além deste aspecto superficial de nomenclaturas verifica-se a adesão de Schoenberg a diversos princípios fundamentais da harmonia dualista de Riemann.

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Relacionando a teoria de Riemann com a teoria dos conjuntosO elemento estrutural que tomamos como base para determinar a influência do

pensamento riemanniano em relação à Teoria dos Conjuntos é a simetria. A Teoria dos Con-juntos, geralmente associada a Allen Forte (1973), trabalha com agrupamentos de notas sem considerar sua ordenação, as quais formam conjuntos e estes por sua vez conjuntos de classes de intervalos. Nesta ferramenta de análise, que demonstra sua aplicabilidade a peças atonais da primeira metade do século XX, considera-se a questão da equivalência da oitava, e trabalha-se com a isometria. Neste contexto, um de seus postulados fundamentais é a simetria na inversão.

Retomando as propostas analíticas e estruturais de Hugo Riemann, verificamos que o elemento simetria está presente em todas as suas abordagens. A despeito de trabalhar com um material assimétrico, como é a escala diatônica, Riemann compreendia os intervalos considerando alterações cromáticas ascendentes e descendentes, tal como se apresentam os conjuntos de classes de intervalos (i) de acordo com sua quantidade de semitons (ver a figura 4).

Figura 4. Riemann – Representação de intervalos

Como vimos acima, a explicação de Riemann sobre a formação dualista dos acordes maior e menor está embasada nos sons da série harmônica em movimentação ascendente e descendente (ver a figura 5). Observamos que um é a inversão em espelho do outro. O mesmo conceito é abraçado pela Teoria dos Conjuntos.

Ao reorganizarmos a estrutura acima com outro formato de exposição, a simetria fica ainda mais evidente (ver a figura 6).

Figura 5. Riemann e Forte – Estruturação dos acordes maior e menor

Figura 6. Riemann e Forte – simetria entre os acordes maior e menor

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Complementando este aspecto da teoria de Riemann, apontamos que o cuidado deste teórico no que concerne à simetria se estende às alterações ocorrentes nas coleções escalares em ambos os modos, as quais ocasionarão o surgimento dos acordes menores em modo maior e vice versa (ver a figura 7).

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Figura 7. Riemann e Forte – simetria entre as alterações das coleções escalares

Analisando acordes alterados em duas canções brasileirasAnálise de um fragmento de arranjo coral de Cozzella

Trata-se de um trecho da canção Arueira de Geraldo Vandré, adaptada para coro a quatro vozes por Damiano Cozzella. O fragmento que nos despertou o interesse está apresentado na figura 8.

Figura 8. Fragmento da canção Arueira de Vandré em arranjo coral de Cozzella

Apresentamos na figura 9 uma redução harmônica daquela textura coral, com a respectiva análise, tanto em cifragem tradicional, como de harmonia funcional riemanniana.

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Figura 9. Redução e análise harmônica do fragmento do arranjo de Cozzella

Podemos comparar os acordes 1-2-3 da passagem de Cozzella com os acordes cor-respondentes do famoso início do prelúdio de Tristão de Isolda de Wagner. Para facilitar a comparação transpusemos para Dó menor a progressão paradigmática de Wagner (isto é, terça menor abaixo, uma vez que o original está em Lá menor).

Figura 10. Análises harmônicas tradicional e funcional do acorde de Tristão em Wagner

As análises da progressão de Wagner da figura 10 são de Roig-Francolí (2003, p.844-850), para a cifragem tradicional, e de Krämer (1997, p.56), para a cifragem funcional. Note-se que na passagem de Cozzella aparecem os mesmo acordes da progressão de Wagner, mas em ordem reversa. Por outro lado, esses acordes têm vínculos diferentes com a topologia funcional, pois os mesmos acordes 3 e 2 funcionam em Wagner como uma cadeia de pré-dominantes em dó menor, enquanto na passagem de Cozzela o acorde de Tristão funciona como dominante sem fundamental da dominante, precedida por uma dominante individual, porém na tonalidade de ré menor.

Vale ressaltar que pode passar despercebido ao ouvinte que a passagem de Cozzela é uma releitura da harmonia cromática wagneriana, pois esse vínculo fica obscurecido pelo ritmo harmônico mais rápido e pelo ritmo sincopado. Mesmo assim isso demonstra que os compositores brasileiros da geração de Cozzella consideravam como uma sofisticação, explícita ou irônica, impregnar as harmonizações de melodias populares com a linguagem cromática do romantismo. O mesmo poderia ser demonstrado em algumas canções de Tom Jobim. Análise de um fragmento de canção de nepomuceno

Trata-se de um trecho da canção O wag’ es nicht de Alberto Nepomuceno, sobre poema de Nicolaus Lenau. O fragmento que nos despertou o interesse está apresentado

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na figura 11. Num artigo sobre a Bar Form em Nepomuceno (Coelho de Souza, 2006) mencionou-se a inventividade da harmonia cromática dessa passagem, sem que, porém, ela tenha sido examinada em detalhe.

Figura 11. Compassos 21 a 23 da canção O wag’es nicht de Nepomuceno

A redução dessa passagem, apresentada na figura 12, nos permite apreciar a engen-hosidade do deslizamento cromático na condução das vozes que favoreceu ao compositor uma inusitada manipulação da funcionalidade tonal. Para facilitar a comparação com os acordes cromáticos dos exemplos anteriores, considerados enharmônicamente, a redução da passagem foi transposta uma quarta justa abaixo.

Figura 12. Redução transposta dos compassos 21 a 23 da canção de Nepomuceno

Observe-se que, neste caso, a sonoridade de Tristão é o último acorde da pas-sagem. O início da passagem caminha por deslizamento cromático da tônica para duas versões da dominante da subdominante, um procedimento algo sutil, mas ainda justificável como tonalmente funcional. A novidade aparece na passagem do terceiro para o quarto acorde da progressão, em que todas as notas daquela dominante com sétima deslizam cromaticamente para outra sonoridade de dominante com sétima que, entretanto, não parece ter uma funcionalidade tonal justificável. Esse acorde progride, a seguir, também por deslizamento cromático de duas das quatro vozes (enquanto as outras duas mantém-se suspensas) para uma sonoridade que, neste contexto de harmonias cromáticas, sugere a sonoridade de um acorde de Tristão, enquanto o anterior poderia sugerir uma sonoridade

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de sexta aumentada germânica (que, entretanto, não resolve adequadamente de modo a confirmar essa hipótese). O acorde em questão vai ser resolvido na seqüência como um acorde usual de subdominante, mas na tonalidade tônica relativa. Vemos assim como as sonoridades cromáticas do âmbito da progressão wagneriana do Tristão são usadas aqui com outro propósito, o de modular para outra tonalidade.

ConclusãoEste estudo sobre a teoria harmônica riemanniana procurou demonstrar como o

entendimento usual que se dá no Brasil ao estudo da harmonia funcional deixa a desejar primeiramente na compreensão de seus fundamentos teóricos, como é o caso de se desconsiderar seus fundamentos dualistas e seu objetivo central de dar conta das alterações cromáticas dos acordes funcionais. Também deixa a desejar quando ela não é aplicada com todos os critérios da teoria riemanniana ao estudo das progressões cromáticas, tanto na música erudita brasileira do período romântico, quanto da MPB da segunda metade do século XX, que, conforme estabelecemos, utiliza diversas características da harmonia romântica em sua linguagem.

Referências bibliográficas

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A análise rítmica: uma perspectiva da percepção no contexto do século XXI

Eduardo LopesUniversidade de Évora – Portugal

Jim Samson (1999) de uma forma pragmática e totalmente inclusiva conecta o ‘antigo’ e o ‘novo’ lembrando à ‘Nova’ Musicologia a preocupação de Umberto Eco sobre “os perigos da superinterpretação” (levada pela superintertextualidade), apontando que do ponto de vista histórico por vezes tem sido errado simplesmente ignorar a voz conservadora. Samson conclui que o antigo formalismo – como a musicologia contemporânea – vivem do prazer e da intensidade, e que a co-existência de perspectivas pode criar aquele ‘surplus’ que resultaria numa melhor crítica – sendo esta a razão, se houver necessidade, para uma defesa do formalismo. Samson não está somente a pedir cuidado a alguns que por vezes procuram indiscriminadamente ‘novidade’, mas mais importante está a defender uma forma de estudar a música totalmente inclusiva – em que o musicólogo poderá escolher a ‘ferramenta’ (antiga ou contemporânea) que lhe será mais ajustada para o seu argumento e objectivo final que será sempre o desfrutar a música.

A teoria da música no mundo pós-moderno (democrático e inclusivo) deverá assim também considerar os ouvintes, examinando assuntos mais ligados à experiência da música, evitando somente o uso de abstracções ideológicas. Sobre isto, Eugene Narmour (1984) refere que provavelmente devido à visão Romântica do artista como um ‘sacerdote’, tem sido assumido que uma relação directa existe entre o que um compositor planeia e o que o ouvinte recepciona. Para Narmour não há nenhuma razão a priori para acreditar que a correspondência entre estruturas composicionais e estruturas perceptuais é constante. O interface perceptual entre a música (composição) e o ouvinte é uma das relações mais tran-sitórias e flutuantes de todo domínio da comunicação humana. O facto de um compositor planear cuidadosamente aquilo que pensa serem as relações estruturais de uma peça não garante que estas sejam percepcionadas pelos ouvintes. Para Narmour, um compositor po-derá estruturar à partida um esquema de tonalidades para uma secção de desenvolvimento de 200 compassos, mas depois de composto, este esquema que dura um longo período de tempo poderá não possuir qualquer significado estrutural do ponto de vista da percepção – movendo-se assim distante do ouvinte.

São então as qualidades perceptuais da superfície musical (ritmo e métrica) que, num contexto pós-moderno, deverão ser ainda mais exploradas devido à sua fácil relação com os ouvintes. Em linha com isto, Just in Time (Lopes, 2003) propõe uma construção teórica capaz de avaliar a operação e qualidades derivadas de uma sequência rítmica duracional, e a sua interacção com outros parâmetros musicais. Esta construção foi desenvolvida em três partes: (1) estudando o comportamento perceptual do ritmo e da métrica como uma unidade - na forma como é apresentada aos ouvintes; (2) estudando independentemente o ritmo e a métrica de forma a produzir duas taxinomias ou modelos operacionais; (3) reinte-grando o ritmo e a métrica como uma unidade perceptual. Este artigo irá então apresentar

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a construção Just in Time como uma ferramenta de análise musical rítmica capaz de abordar vários géneros musicais numa perspectiva pós-moderna: a próxima secção apresentará um resumo da conceptualização da construção teórica, seguindo-se, em forma de estudo de caso, uma análise rítmica de parte da peça March - uma das Eight Pieces for Four Timpani de Elliot Carter.

o Empirismo na Construção Rítmica Just in Time Após a formulação com algum detalhe de qualquer teoria sobre uma determinada

área artística, e se as regras propostas correspondem de alguma maneira aos princípios inconscientemente reconhecidos e usados pelos receptores de uma determinada obra de arte, devemos sempre de questionar a forma de como estes receptores os assimilam; de todas as possíveis organizações que se podem formular sobre uma determinada teoria, por-que será que os receptores inferem determinadas organizações? A resposta que parece ser mais consensual é a de que muita da complexidade da instituição artística não é aprendida mas existe inerentemente na organização da nossa mente, ela própria determinada pela herança genética humana. No que respeita à música, os teóricos Lerdahl and Jackendoff (1983) denominam o anterior por musical innateness. Lerdahl and Jackendoff acreditam que a existência de diversos universos de teoria musical, que são resultantes da difusão cultural ou “acidentes” históricos, não afectam a base de competências cognitivas de toda a raça humana – aspectos inatos da mente que transcendem culturas ou períodos históricos. Os autores referem que se por um lado alguns universos musicais diferem em possibilida-des métricas, não existe nenhuma música que faça uso de regularidades métricas de, por exemplo, 31 em 31 tempos.

Se por um lado, o conceito de musical inateness de Lerdahl and Jackendoff não refere considerações de ordem fisiológica, eu acredito que estas considerações são tão relevantes quanto as de ordem psicológica. De acordo com Maury Yeston (1976), para além de con-tribuir com uma base de dados que poderá ser utilizada por todos os teóricos, uma teoria que enraíze o processo da percepção musical na fisiologia e psicologia nunca foi formulada sistematicamente. Yeston acredita que essa formulação deverá estar intimamente ligada a modelos fisiológicos baseados quer nos ritmos biológicos internos (batimento do coração, pulsação, ondas alfa, e outros relógios internos) como nas actividades externas humanas (caminhar, saltar, etc.). Com uma atitude orientadamente Gestalt, dever-se-á então tentar descobrir operações intrínsecas ou construções perceptuais, como por exemplo a tendên-cia inata humana de agrupar objectos (virtuais ou reais) em grupos recorrentes de 2 ou 3.

O conceito psicológico Gestalt da unidade temporal do Par, propõe uma organização mental de sequências temporais por pares de pulsações contínuas. Segundo Koffka (1935), para ouvirmos duas pulsações como um par, estas terão que estar unidas por forças de al-guma espécie. O problema principal deste conceito, está em que a primeira pulsação deixa de existir no momento em que aparece a segunda. Assim, a conclusão de que forças são necessárias para produzir a unidade do Par de pulsações faz assumir os psicólogos Gestalt de que apesar da primeira pulsação deixar de existir aquando do início da segunda, algo deverá ter ficado que serve como um dos pontos nos quais as forças se fazem sentir – este processo é conhecido como “rasto”. Esta percepção de algo que apesar de terminado se mantém presente levou a que, segundo os princípios Gestalt para a organização cognitiva de unidades, fosse proposto que a primeira unidade de um grupo seja perceptualmente descodificada como mais saliente.

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Uma Taxinomia da MétricaOs compassos binários são de grande importância no processo da organização

métrica da música (Lopes, 2008a). Estruturas deste tipo são compostas por dois tempos, em que o primeiro é perceptualmente mais acentuado que o segundo (Fig. 1).

Fig. 1. Organização interna de um compasso binário

Para melhor entender as qualidades perceptuais dos compassos binários, é rele-vante reavivar a retórica Grega e os conceitos de thesis e arsis, aplicados aos pés métricos. O historiador Curt Sachs (1953) explica que existe duas secções para cada pé métrico: uma forte e outra fraca. No entanto, esta diferença de pesos não seria sempre realizada; bastava por vezes sugeri-la. Os Gregos apelidavam a parte forte de thesis ou basis, ou simplesmente kato (para baixo), pois os maestros de coros marcavam esta parte (tempo) batendo com o pé no chão. A parte (tempo) fraca, coincidia com o levantar do pé e era apelidada de arsis (levantar), ou ano (para cima). Da mesma forma, mais tarde, os Romanos falavam de positio e sublatio. A acção do maestro Grego em bater com o pé na parte forte do pé métrico, e levantá-lo na parte fraca, é uma clara realização das qualidades perceptuais dos compassos binários que têm sido discutidas até agora neste artigo. Hoje em dia o maes-tro moderno quando dirige um compasso binário ainda o faz de uma maneira similar ao maestro Grego através dos movimentos que realiza para baixo e para cima com a batuta. Utilizando o conceito gravitacional, pode-se descrever isto da seguinte forma: o peso do primeiro tempo tende a estabilizar o movimento, como é demonstrado no bater do pé no chão ou o movimento para baixo da batuta; o segundo tempo, perceptualmente mais fraco, cria um potencial cinético que procura estabilidade, sendo realizado através do movimento para cima do pé ou batuta.

Organizações ternárias representam de certa maneira elaborações de organizações base binárias (Lopes, 2008b). Desta maneira poder-se-á conceber um compasso ternário como um compasso binário ao qual foi adicionado um tempo extra (Fig. 2).

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Fig. 2. Derivação de um compasso ternário

Que peso perceptual terá então o “novo” terceiro tempo? O princípio da relativa sucessão de tempos fracos do primeiro ao último tempo foi confirmada através do trabalho experimental (Lopes 2003), dando assim a seguinte forma para a organização interna de um compasso ternário (Fig. 3).

Fig. 3. Organização interna de um compasso ternário

Uma Taxinomia do RitmoDurante o processo cognitivo de inferência de uma sequência de tempos (grelha

métrica), é a relativa proporção das durações das notas que define a subdivisão dos tempos. Trabalho experimental conduzido por Povel e Essens (1985) mostra que uma sequência duracional composta pelas seguintes durações: 250/250/250/250/1000 mseg. será inferida como dois tempos com a duração de 1000 mseg. cada, em que o primeiro começa na primeira duração de 250 mseg., e o segundo iniciar-se á na duração de 1000 mseg. Tendo em conta que neste caso as durações das notas têm uma relação de potência de 2 (mais precisamente uma relação de 1:4), a subdivisação dos tempos será interpretada como binária.

A Fig. 4 apresenta exemplos de células rítmicas de subdivisão binária num contexto de um tempo equivalendo a uma semínima. Dever-se-á considerar que a notação utilizada derivada dos pés poéticos (similar à utilizada em Cooper e Meyer 1960), ilustra apenas as relações interiores de uma célula; tendo em conta o número infinito de possíveis células rítmicas (resultando num número infinito de relações internas), Just in Time adoptou uma notação mais aberta, que no entanto não deixa mostrar eficientemente a organização básica das células rítmicas.

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Fig. 4. Células rítmicas de subdivisão binária

Contrastando com a células rítmicas apresentadas na Fig. 4, as da Fig. 5 não apre-sentam uma hierarquia de durações salientes; este tipo de células só poderão ser abordadas num determinado contexto métrico ou através do conceito de motivos rítmicos: fazendo parte de um grupo de células.

Fig. 5. Células rítmicas isócronas

A Fig. 6 apresenta vários exemplos de células rítmicas de subdivisão ternária e as suas organizações internas; estando estas notadas com base em tempos com a duração de uma semínima pontuada.

Fig. 6. Células rítmicas de subdivisão ternária

Em nível hierárquico mais elevado, grupos de células rítmicas perceptualmente identificáveis (como aqueles precedidos e seguidos por pausas) são apelidados de motivos rítmicos. Operando de uma forma similar às células rítmicas, os motivos rítmicos podem funcionar perceptualmente como um eficaz meio para acentuar ainda mais uma determi-nada nota. A Fig. 7 mostra o processo de acentuação de dois motivos rítmicos, notados novamente num contexto métrico de um tempo equivalendo a uma semínima. No motivo rítmico a) a semínima é extremamente acentuada pois é precedida por um número sig-nificativo de pequenas durações; a grande acentuação que a colcheia recebe no motivo rítmico b) é acção não só da grande quantidade de relativamente pequenas durações que a precedem mas também através do crescendo de acentuação que resulta da diminuição da duração das notas.

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Fig. 7 Exemplos de motivos rítmicos

Um Estudo de CasoEm forma de caso de estudo, apresentarei uma análise rítmica de um excerto musical

tentando mostrar de que modo Just in Time operacionaliza e aborda as qualidades rítmicas de uma peça musical. Este excerto compreende a primeira página do andamento da March – uma das oito peças de Elliot Carter para Quatro Tímpanos.

Com os quatro tímpanos afinados nas notas g2-b2-c3-e3, o início da March envolve o uso de duas sonoridades distintas, criando assim uma sensação de duas linhas musicais. Isto é realizado pela mão esquerda tocando com a baqueta ao contrário (ponta de madeira), e a mão direita tocando com a parte normal (ponta de feltro). A qualidade de som staccato na mão esquerda, juntamente com o padrão de ostinato rítmico, estabelece uma linha de acompanhamento; o som normal dos tímpanos na mão direita, juntamente com a expressão tenuto estabelece facilmente uma linha melódica.

Questões de ordem métrica numa peça intitulada “March” são também importantes de abordar. Embora em alguns casos a natureza simples de um compasso binário é o pre-ferido, as qualidades firmes, focadas, e conduzidas do ato de marchar parecem ser melhor representadas por uma métrica quaternária.

Como mostra o exemplo na Fig. 8, as construções rítmicas que melhor reflectem as qualidades básicas de uma marcha são aquelas em que uma nota é atribuída a cada um dos três primeiros tempos, sendo o quarto tempo composto por uma célula que acentua o 1º tempo seguinte. Desta forma, enquanto os três primeiros tempos implicam uma cer-ta qualidade passo-a-passo em ordem com a qualidade cinética de marcha, as durações menores no quarto tempo servem uma espécie de trampolim, resolvendo o movimento iniciado para o primeiro tempo, completando assim e organizando perceptualmente o compasso quaternário.

Fig. 8. Uma construção rítmica típica de marcha

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Embora num contexto de uma métrica notada de compasso quaternário (4/4), o início da March não cumpre as generalidades e qualidades rítmicas de uma marcha. Isto acontece devido a todo o trecho introdutório (compassos 0-2) não apresentar qualquer acentuação clara no primeiro tempo do compasso. Também, e tendo em conta a anacrusa longa (compasso 0), a peça começa com uma acentuação clara no terceiro tempo através do ênfase criado pelas duas notas em uníssono. Por outro lado, a organização das alturas dos sons desta peça (com base num acorde dó maior de sétima) acentua o terceiro (e o primeiro), tempos na linha de acompanhamento. Desta forma, em comparação com [0:3]1, [1:1] recebe apenas uma pequena acentuação derivada dos parâmetros da frequência - considerando a nota dó como mais perceptualmente saliente no contexto tonal de dó maior. Também, [2:1] não apresenta qualquer nota, sendo seguido por uma acentuação notória no segundo tempo devido a ser precedido por 3 notas curtas. O compasso segue ainda com três notas salientes (longas) em pontos métricos fracos. Através de duas notas, só existe então uma acentuação clara no primeiro tempo do compasso quaternário em [3:1] - o início da secção A. Porque a relevância da introdução da peça só pode ser plenamente avaliada mais tarde, por enquanto deve-se principalmente ter em conta que a linha de acompanhamento ao colocar notas em todos o tempos do compasso quaternário está em conformidade com uma das generalidades das marchas; mas não havendo uma clara acentuação do primeiro tempo nos primeiros dois compassos e meio, não se poderá assumir que as qualidades básicas de marcha estão presentes na introdução desta peça.

Fig. 9. Análise rítmica Just in Time

A Fig. 9 apresenta uma análise rítmica dos primeiros quatro compassos da secção A. Como mencionado anteriormente, esta secção começa com uma saliência clara em [3:1], causada não só pela ênfase da melodia e notas de acompanhamento, mas também pela resolução do movimento cinético anterior (abordarei isto mais adiante). Assim, do ponto de vista rítmico, as saliências claras em [3:1], e [5:1], juntamente com o padrão de acom-panhamento do ostinato, criam nos compassos 3 a 5 uma sensação razoável de marcha. Vale também a pena mencionar que a organização da afinação dos tímpanos, com as notas do acorde de sétima maior (especificamente a tónica e a quinta no acompanhamento, e a terceira e sétima na melodia) provocam também uma sensação de fanfarra. Por outro lado, o movimento controlado passo-a-passo da marcha é de certa forma contrastado pela

1 [nr. de compasso:nr. de tempo]

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acção das notas da melodia colocadas em pontos métricos fracos que libertam impulsos cinéticos (energia perceptual através da instabilidade métrica). Devido à diferença de ca-rácter entre as duas linhas musicais (quase como dois intérpretes), acredito que a energia cinética liberada pela linha melódica nos compassos 3 e 4, tende a não resolver nos tempos fortes da linha de acompanhamento - daí notados como livremente se dissipando (setas em tracejado). No entanto, mantendo a linha de acompanhamento o seu padrão ao longo deste compasso, qualquer eventual ambiguidade métrica criada pelo grande momento cinético dos compassos 3 e 4, é resolvida pela saliência das duas notas em [5:1]. Também, [5:1] inicia perceptualmente outra frase bastante cinética de dois compassos (compassos 5-6). Começando de uma forma idêntica à frase anterior, a linha da melodia torna-se cada vez mais cinética até o final do compasso 5. Devido à última nota do compasso 5 ser ime-diatamente precedida (sem pausas no meio) por outra nota muito instável, parte da energia cinética desta última poderá ser avaliada como resolvendo na primeira (como mostra a seta tracejada vertical na Fig. 9). Assim, a última nota do compasso 5 receberá uma acentuação devido à resolução da energia cinética das notas anteriores, tornando-se mais saliente, e liberando ainda mais energia. Este momento extremamente cinético impulsiona a peça para o compasso 6, elevando assim em mais um estado o crescendo de cinética - através da eliminação da qualidade de continuidade do acompanhamento em ostinato. Idêntico ao motivo rítmico do final do compasso 5, as três últimas notas pertencentes ao motivo rítmico que começa em [6:2] recebem uma acentuação extra resultado da resolução da energia cinética da nota anterior. Criando um efeito bola-de-neve que consiste no aumento da saliência e energia cinética de nota para nota, o processo anterior desenvolve um cres-cendo de sensação de movimento de dois compassos até ao seu clímax na última nota do compasso 6. Este padrão rítmico infere então um momento extremamente cinético que é resolvido em [7:1] (similar à transição entre os compassos 2 e 3).

De forma a manter o contexto do compasso quaternário no sequencia da grande instabilidade rítmica do compasso 6, a linha de acompanhamento do compasso 7 apresenta pela primeira vez na peça um exemplo da forma rítmica básica de uma marcha (ou seja, incluindo uma célula rítmica no quarto tempo que acentua o tempo seguinte). Iniciando com uma saliência clara em [8:1] e por três compassos, a melodia cria um momento bastante cinético que é resolvido de três em três tempos - acentuando assim [8:4] e [9:3]. Desta forma, a melodia cria a um nível hierárquico mais elevado uma polirritmia de três-contra-quatro, aumentando assim a consciência para o padrão de três tempos que é iniciado em [8:1], [8:4] e [9:3]. No compasso 10, há uma mudança de métrica para um compasso 5/8. Sem a linha de acompanhamento, a melodia termina o terceiro dos últimos padrões de três tempos, come-çando um outro no terceiro tempo. Este último padrão fica incompleto devido ao tamanho do compasso 5/8, e é seguido por uma saliência clara em [11:1], marcando assim o retorno da construção quaternária. O compasso 10 pode então ser avaliado como uma coda às frases anteriores de dois compassos. Embora Carter pudesse manter a construção quaternária no compasso 10, completando o ciclo de polirritmia três-contra-quatro em [11:1], ele optou por não fazê-lo. Em vez disso, decidiu romper abruptamente a fácil percepção da resolução do padrão de três-contra-quatro. Ao mesmo tempo que a diminuição súbita de estabilidade devido à remoção da linha acompanhamento, a natureza desequilibrada do compasso 5/8 cria um efeito de tropeço que só é resolvido em [11:1]. Considerando que o compasso 11 inicia um momento idêntico aos compassos 8-9, a construção rítmica do compasso 10 pode ser avaliada como um dispositivo de interjeição perceptualmente eficiente, que também

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enfatiza o retorno das qualidades da polirritmia três-contra-quatro.Embora idênticos aos compassos 8-9, as construções rítmicas dos compassos 11-12

pontuam mais fortemente as frases de três tempos. A fim de avaliar a diferença entre ambas as construções, vamos apresentar novamente uma análise com a notação Just in Time.

Fig. 10. Análise rítmica Just in Time dos compassos 8 e 11

Como apresenta a Fig. 10, a construção rítmica do compasso 8 é composta por uma saliência no primeiro tempo que inicia uma frase de três tempos; seguindo-se 3 momentos cinéticos, dos quais o último resolve no saliente quarto tempo, começando aqui a próxima frase de três tempos. Embora começando da mesma forma que a construção rítmica do compasso 8, a construção do compasso 11 difere substancialmente no terceiro tempo – o tempo que precede o primeiro de uma frase de três tempos. Em ambas as linhas de música, o terceiro tempo inclui células rítmicas que acentuam ainda mais o tempo seguinte. Na linha da melodia este processo compreende um grande momento de cinética, que pode ser avaliado como resolvendo na próxima nota, e assim activamente acentuando ainda mais o tempo forte seguinte. Deve-se ter em mente que tendo em conta a distância entre os pontos de ataque, a acentuação produzida pela resolução do grande momento cinético da colcheia pontuada em [8:3], é mais fraco do que o produzido pelo conceito células rítmicas - em que a distância entre os pontos de ataque da célula e da nota a acentuar é relativamente mais pequeno.

Carter reitera a sua composição rítmica através da atribuição de sinais de stress, e crescendo e decrescendo de acordo com o referido anteriormente. Embora pelo que men-cionei atrás, evitei analisar ambas as linhas musicais como uma só, no entanto devo referir que neste exemplo, uma descrição rítmica de nível hierárquica superior poderia considerar ambas as linhas, produzindo assim uma célula única de quatro semicolcheias - o que iria novamente acentuar ainda mais o quarto tempo. O processo rítmico e resultado no final da segunda frase de três tempos [12:2] é idêntico ao da primeira, contendo apenas uma ligeira alteração na forma do ritmo das linhas individuais - isto sem alterar a qualidade particular da construção total.

Diferentemente da anterior frase de três compassos com a polirritmia de três-contra-quatro (compassos 8-10), o ultimo padrão de três tempos é completo. Isto deve-se ao fato de que Carter mantém o compasso 13 como quaternário, permitindo assim que os ciclos de três-contra-quatro possam ser concluídos. Somando-se à grande saliência do primeiro tempo

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do padrão de três tempos, [12:3], Carter acentua ainda mais o último tempo do padrão (a colcheia pontuada em [13:1]), precedendo-a de três notas curtas. Sem a presença do cons-tante acompanhamento quaternário, o aumento da saliência destes tempos extremamente cinéticos no padrão de três tempos, inicia um processo perceptual de modulação. Através do dispositivo enfático de duas notas, a nota na segundo metade de [13:3] é acentuada. Assim, Carter reitera sua intenção de acentuar todos as notas do padrão, através da notação um crescendo no final do compasso 13. Desta forma, o aumento contínuo da importância de cada uma das 4 notas bastante cinéticas e igualmente espaçados do padrão de três tempos, culmina numa modulação de tempo em [14:1]. Resumindo, o processo rítmico da modulação de tempo que leva a semínima da secção A de 104 (por minuto) num compasso quaternário, para um tempo de semínima = 140 no compasso 14, pode ser avaliado em três etapas: (1) Carter começa por introduzir um padrão de 4 notas perceptualmente muito cinéticas que reflectem o tempo a atingir, na forma de uma polirritmia de três contra quatro (compassos 8-9). (2) Esta construção é também perceptualmente reforçada nos compassos 11-12 através da acentuação activa na primeira nota de cada padrão de quatro notas. E por último (3), juntamente com a eliminação da linha de acompanhamento, o compasso 13 descarta completamente a construção quaternária através de acentuar ritmicamente (e fisicamente através de sinais de stress) as restantes notas do padrão de quatro.

Neste ponto, e tendo em conta a análise rítmica da secção A, eu gostaria de voltar brevemente à introdução da peça. A natureza pouco clara acima mencionada do compasso quaternário nos compassos 0-1 - em que a primeira saliência da peça é [0:3], e em que o compasso 1 não tem nenhuma saliência clara no primeiro tempo - introduz o motivo da contradição constante da métrica quaternária na linha melódica da secção A. Mas impor-tante de observar é a construção do compasso 2, que inclui as duas principais construções rítmicas envolvidas no discurso musical da secção A. A partir de [2:2] é facilmente observável o padrão de quatro notas, que não só dá origem à polirrtimia de três-contra-quatro, mas que também está presente na fase final da modulação. Além disso, o dispositivo rítmico que Carter utiliza no compasso 2 para acentuar ainda mais o padrão de quatro notas, é uma célula rítmica que se torna fundamental na fase final da modulação; acentuando, pela primeira vez uma nota diferente que a primeira do padrão de 4 notas (a colcheia pontuada em [13:1]). Esta célula rítmica torna-se assim o ponto de pivô do momento modulatório. Carter usa assim a introdução de March para apresentar material temático significativo para o desenvolvimento da peça.

Consistindo apenas em uma linha de musical, a secção B da March começa no compasso 14 com quatro notas que definem claramente o novo contexto métrico (especi-ficamente o novo tempo). Consistindo em construções rítmicas quaternárias básicas, esta secção apresenta uma série de frases explorando o contraste entre a sonoridade dos tímpa-nos normal com a sonoridade em staccato de “ponta de madeira”. Depois de uma mudança da métrica quaternária da secção B para uma binária (2/4) no compasso 24 (que de certa forma funciona como uma resolução estendida do motivo rítmico iniciado em [23:3]), um outro processo de modulação começa a emergir. No compasso 25 uma mudança métrica é apoiada pelas colcheias como um denominador comum, dando origem a um compasso de 10/8. A construção rítmica deste compasso compreende uma simples sequência de dez colcheias em que a primeira e a sexta estão notadas com um stress. Com uma acentuação clara na primeira colcheia, o compasso 26 reintroduz as duas linhas musicais, tornando a sexta colcheia extremamente saliente. Da mesma forma, o primeira colcheia no compasso 27

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é também acentuada. A crescente saliência das notas nos pontos que dividem o compasso 10/8 em duas partes iguais que ocorre nos compassos 25-27, culmina surpreendentemente com uma pausa na segunda metade do compasso 27. Após a densidade da sequência de dez colcheias, e a crescente consciencialização perceptual da divisão do compasso em duas partes iguais, a total falta de actividade rítmica na segunda parte do compasso 27 é um outro dispositivo perceptual para inferir a métrica pretendida. A modulação métrica de 10/8 para um compasso de 2/2 é então realizada no início da secção de C da peça (compasso 28). Gostaria também de salientar que devido à segunda metade do compasso 27 ser uma pausa, Carter precedeu-o com uma nota muito cinética (a segunda na linha da melodia) a fim de conectar as duas secções. Embora esta nota não esteja em completa sintonia com a modulação em curso, a grande cinética libertada cria uma ponte perceptual entre as duas secções, escalando no ornamento de duas notas e com resolução em [28:1].

Esta análise tornou evidente o domínio de Carter da composição rítmica. Não só esta peça implica uma grande quantidade de qualidades perceptuais rítmicas, mas também foram encontrados recursos composicionais rítmicos que promovem a ideia da consciência e controle que Carter possui sobre as qualidade intrinsecamente rítmicas. Num contexto que se poderá dizer empobrecido de alturas de notas, Carter utilizou principalmente os parâme-tros duracionais a fim de produzir um discurso musical. Na March, pode-se observar como Carter moldou ritmicamente um dos temas mais comuns na música ocidental (a marcha), conferindo-lhe até uma roupagem de vanguarda. Esta peça é também um excelente texto para o estudo de uma das assinaturas composicionais de Carter - a modulação métrica. Usando as qualidades rítmicas primárias da saliência e cinética, Carter explora diferentes processos para realizar com sucesso estas modulações. Desta forma, esta peça também serve como um bom estudo de caso sobre a capacidade dos parâmetros rítmicos como ferramenta composicional de modulação.

Para concluir, embora a análise anterior aborde principalmente um contexto pu-ramente duracional, a construção Just in Time poderá também ser usada como uma ferra-menta na análise de música com uma maior componente de estruturas de pitch, apontando qualidades rítmicas, e como essas qualidades são integradas com outros parâmetros. Esta integração poderá ser conceptualizada numa abordagem rhythm-to-pitch ou pitch-to-rhythm de Maury Yeston (1976); ou mesmo numa abordagem analítica multi-paramétrica, como proposto por Eugene Narmour (1983). Além disso, porque o modelo promove uma compreensão sistemática dos meios para produzir, sublinhar, ou contradizer saliência e cinética rítmica, acredito que ele poderá ter algo a oferecer à composição, interpretação e ensino de música.

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A variação progressiva aplicada na geração deideias temáticas

Carlos AlmadaUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Elaborado por Arnold Schoenberg, o princípio da variação progressiva descreve es-sencialmente o conjunto de procedimentos composicionais empregados na contínua trans-formação da ideia primordial (ou Grundgestalt, segundo a terminologia schoenberguiana) de uma determinada peça, gerando motivos, temas e fragmentos temáticos. Esse princípio foi elaborado por Schoenberg a partir de análises de obras de, entre outros, Bach, Mozart, Beethoven e, especialmente, Brahms, a quem deve reconhecidamente o desenvolvimento de várias das técnicas elaborativas em sua própria música.1 As inúmeras possibilidades geradas pela variação progressiva têm merecido considerável atenção nas últimas décadas e são tema de vários estudos acadêmicos (ver Carpenter, 1983; Frisch, 1984; Dahlhaus, 1990; Haimo, 1997 e Dudeque, 2003, 2005 e 2007). O assunto também vem sendo um de meus objetos de pesquisa, antes mesmo da concepção do projeto atual, resultando em exames analíticos de peças de Beethoven (Almada, 2008b), Schoenberg (Almada, 2007 e 2009) e Alban Berg (Almada, 2008a e 2010b). O presente estudo inicia uma abordagem que visa, em última instância, o estabelecimento de bases para a elaboração de tipologia abrangente e detalhada e metodologia analítica para a variação progressiva, considerando não apenas o conjunto de técnicas existentes e os meios com que elas podem ser aplicadas, como as próprias finalidades de seu emprego, o que está ligado a uma concepção estrutural dos meios composicionais. Das várias finalidades existentes, é aqui destacada aquela que pode ser considerada a primordial: a extração de material construtivo de uma Grundgestalt (podendo se apresentar como uma unidade monolítica ou subdividida em fragmentos básicos) para a elaboração de diversas ideias temáticas componentes de uma peça, o que pode ser efetuado diretamente ou através de transformações progressivas, revelando linhas de derivação por vezes consideravelmente complexas. É justamente este o caso da obra escolhida para a exemplificação de tais procedimentos derivativos, a Primeira Sinfonia de Câmara op.9, composta por Schoenberg em 1906, da qual serão analisados diversos trechos.

informações básicas sobre a Sinfonia de Câmara Pertencente à porção final do período tonal schoenberguiano, a Primeira Sinfo-nia de Câmara op.9, escrita para quinze solistas,2 é extraordinariamente peculiar. Embora

1 Ver, por exemplo, o famoso ensaio Brahms the progressive, publicado na coletânea Style and idea (Schoenberg, 1984, p. 398-441). É também bastante ilustrativa a análise que Schoenberg faz do primeiro movimento do quarteto de cordas K 465 de Mozart, sob o aspecto da variação progressiva (Schoenberg, 2006, p. 53-60).2 Flauta (e flautim), oboé, corne inglês, requinta, clarineta, clarone, fagote, contrafagote, duas

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centrada na tonalidade de Mi maior, apresenta uma considerável expansão dos recursos do tonalismo, levando-o a latitudes inéditas.3 Uma de suas principais características é a arquitetura formal, fundamentada em um único e ininterrupto movimento de grande extensão (596 com-passos), subdivido, num nível básico, em cinco grandes partes, sendo sua sucessão organizada de modo a evidenciar uma revolucionária concepção de forma-sonata em larga escala. Como se observa no esquema da fig.1, é possível considerar que as partes ímpares (representadas pelos retângulos sombreados) formam uma espinha dorsal de sonata, com as partes pares interpondo-se a suas fronteiras, funcionando como espécies de episódios contrastantes.

Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia

Chama também bastante atenção na Sinfonia a profusão de temas e motivos, em diferentes funções e gradações de importância hierárquica.4 Como se pretende demonstrar neste estudo, todos os nove mais importantes temas que compõem a obra, por mais dis-tintos que sejam seus formatos e estruturas motívico-frasais, apresentam entre si notáveis graus de parentesco, que podem, em última instância, ser associados retroativamente à ideia primordial – a Grundgestalt.5

A Grundgestalt da Sinfonia de Câmara e seus componentes O ex. 1 apresenta uma redução dos quatro compassos de abertura da Sinfonia, de

modo a melhor evidenciar sua Grundgestalt. Após a entrada desacompanhada do 1º violino com um Lá bemol agudo, que se prolonga em pedal, segue-se uma espécie de cadência autêntica, direcionada ao I grau de Fá maior (região Napolitana em relação à tônica cen-tral, Mi).6 Nessa cadência enriquecida e transformada, um acorde quartal tem a função de dominante-da-dominante da tonalidade visada, encadeando-se a um acorde formado pelas

trompas, dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo.3 Para informações detalhadas sobre a extraordinária estrutura harmônica da Sinfonia, ver Almada (2010a).4 Para um estudo aprofundado sobre os motivos e os temas presentes na Sinfonia e as relações hierárquicas que os regem, ver Almada (2007b, p. 95-127).5 Limitar a prospecção ao grupo dos nove temas principais não significa que os demais temas, subordinados àqueles, não possuam também ligações com a Grungestalt, tratando-se apenas de uma opção metodológica, que é baseada na concentração sobre elementos de maior relevo da obra.6 A relação napolitana consiste na relação entre um determinado polo tonal e um outro dele distanciado por segunda menor ascendente, podendo se manifestar nos níveis das notas, dos acordes e das regiões tonais. A relação napolitana é um dos aspectos estruturais mais importantes na construção harmônica da Sinfonia (ao lado das harmonias baseadas no intervalo de quarta justa e na escala de tons inteiros). A despeito de todo seu destaque, entretanto, para os objetivos deste estudo trata-se de um fator de menor relevância, sendo portanto deixado de lado. Para maiores informações, ver Almada (2010a).

Figura 1 - duas interpretações para a estrutura básica das cinco Partes da Sinfonia

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notas da escala de tons inteiros (como uma versão do acorde dominante) e, finalmente, à tríade maior de Fá.7 Percebe-se como as vozes são conduzidas por movimento de semitons (quando não sustentadas como notas comuns entre acordes), o que é um fator de decisiva importância em toda estrutura melódico-harmônica da peça. Como se percebe no ex. 1, há quatro elementos distintos que definem a Grundgestalt: o intervalo de nona menor descendente (Lá@-Sol), o hexacorde quartal, a verticalização da escala de tons inteiros e a linha cromática descendente, Sol-Sol@-Fá.

Ex. 1 - Grundgestalt da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (redução dos c. 1-4)

No ex. 2, os quatro componentes básicos são isolados, tornando-se Grundgestalten auxiliares (ou, abreviadamente, GG): A, B, C e d. Cada qual apresenta uma característica marcante e identificadora,8 contudo não possuem necessariamente idênticos pesos de importância hierárquica (que são determinados, em suma, pela significação estrutural de seus desdobramentos, no decorrer da peça), como será devidamente demonstrado.

Ex.2 - As quatro Grundgestalten auxiliares

Análise derivativa dos temas principais da Sinfonia de Câmara Logo após a resolução da cadência inicial surge um dos temas mais importantes da

7 O protótipo desse tipo de encadeamento (que expande o conceito schoenberguiano de acorde errante) é apresentado como modelo no livro Harmonia (Schoenberg, 2001, p. 557), publicado em 1911.8 A rigor, é possível considerar d como uma elaboração de A (através de simplificação da nona para segunda menor e de expansão do modelo), como sugere a seta ondulada no ex. 2. Sob outro ponto de vista, A e d poderiam ser fundidos em uma só linha cromática descendente com quatro notas (A@-G-G@-F) (em um caso ou no outro, veríamos a variação progressiva em ação dentro da própria “semente”!). No entanto, pelas razões que ficarão evidentes mais adiante no texto, prefiro manter as quatro GG como estruturas distintas. É bastante interessante constatar que algo semelhante acontece na Sonata para Piano op.1, de Berg, obra que mantém com a Sinfonia estreitas relações de afinidade (Almada, 2008a): sua Grundgestalt subdivide-se em três fragmentos, sendo o terceiro deles derivado do primeiro (Almada, 2010b).

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peça, que é empregado especialmente na articulação das seções formais de maior relevo. Como se observa no ex. 3, esse tema (que será aqui, por conveniência e simplicidade, de-nominado “Tema Quartal”)9 deriva da horizontalização da GG B, a partir de sua transposição a uma quarta justa ascendente, e pela incorporação de uma configuração rítmica. Do contorno quase neutro do arpejo quartal em semínimas destaca-se o fragmento rítmico conclusivo do tema, de forte personalidade, que terá desdobramentos vários na construção de temas subsequentes. Abstraindo do fragmento seu conteúdo melódico-intervalar obtém-se uma espécie de Grundgestalt intermediária (a partir deste ponto, gg), subordinada ao nível das Grundgestalten auxiliares, que mantém apenas a essência rítmica em relação ao original. Esse fragmento, não sendo diretamente derivado de uma das quatro GG´s (mas da concret-ização de uma delas), passa a ser denominado x, configurando-se como um novo ramo, a partir do qual elaborações adicionais serão perpetradas. Por outro lado, é possível destacar o fragmento inicial do tema quartal – suas três primeiras notas –, e também submetê-lo a uma operação de abstração (desta vez, em sentido contrário, com a manutenção de seu conteúdo de alturas), resultando numa gg de caráter intervalar: b-1.

Ex. 3 - Derivação do Tema Quartal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 5-6)10

O Tema Quartal é imediatamente sucedido pelo Tema Cadencial,11 que tem a função de preparar harmonicamente a entrada do Tema Principal (a ser analisado mais adiante). O ex. 4 apresenta a análise derivativa do Tema Cadencial, evidenciando a ação dos proces-sos de variação progressiva em sua construção. Surge, assim, uma nova gg – xd-1 –, uma forma híbrida, a partir da associação de x com d. Essa nova variante é então reiterada, deslocada metricamentee e transformada, através de operações conjuntas de sequencia-ção (não literal) e aumentação (c.9). Tal nova formulação gera, através de abstração dupla, duas novas gg´s: x-1 e d-1.

9 Para uma terminologia mais precisa e detalhada dos temas da Sinfonia, ver Almada (2007).10 Para as descrições das operações abreviadas neste e nos próximos exemplos, ver o quadro 1 (p. 14). 11 Denominação criada por Alban Berg, em uma análise por ele feita da Sinfonia (Berg, 1993, p. 245).

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Ex. 4 - Derivação do Tema Cadencial da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 8-10)

Segue-se então a entrada do Tema Principal da Sinfonia (ex. 5), cuja anacruse é resultante de uma transformação de b-1, na qual o segundo intervalo de quarta tem sua qualidade trocada de justa para aumentada. A nova gg – b-2 – recebe uma configuração rítmica quialterada, que passa a ser empregada no próprio tema (compassos 9, 10 e 11), bem como em diversas ideias subsequentes.12 A primeira frase do tema (o trecho que é mostrado no ex. 5) é inteiramente construída com a escala de tons inteiros, revelando assim uma derivação direta de C.

Ex. 5 - Derivação do Tema Principal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 9-11)

Após tal concentração de temas em tão curto espaço de tempo (11 compassos) há uma relativa retração da velocidade da variação progressiva (ao menos no aspecto da

12 Não tendo, porém, um caráter transformativo, o que faz com que seus desdobramentos não sejam suficientemente relevantes para este estudo.

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derivação temática). A entrada de um novo tema importante – que encabeça a seção de transição da Parte I – acontece apenas no c. 78. O ex. 6 relaciona o enunciado desse tema a duas transformações de gg´s anteriores: d-1 e x-1 (esta última tendo a intermediação de uma nova variante, x-2).

Ex. 6 - Derivação do tema da transição da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 68-70)

O ex. 7 apresenta o elemento mais importante da seção secundária, o Tema Lírico.13 A múltipla derivação do fragmento de abertura desse tema é bastante interessante e carac-terística nesse tipo de processo construtivo, envolvendo aqui três fontes intermediárias.

Ex. 7 - Derivação do Tema Lírico da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 84-6)

13 Tomando emprestado o termo cunhado por Schoenberg para a designação dessa estrutura temática, a partir de suas relações funcionais dentro da forma-sonata (Schoenberg, 1991, p. 184-5).

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O trecho seguinte (ainda dentro da Exposição), embora não se refira propriamente a ideias temáticas, ao contrário dos casos anteriores, possui grande importância, pois apresenta transformações intermediárias necessárias para a construção definitiva de um dos temas da Parte subsequente. Como se observa no ex. 8, a nova formulação motívica é fruto de uma interessante conjunção entre a GG A (até este momento em “hibernação”, por assim dizer) e a ubíqua gg x, resultando na variante híbrida xa-1, que, por sua vez, é imediatamente transformada e disseminada através de vários tipos de imitação (dois deles são mostrados no exemplo).

Ex. 8 - Preparação para a Parte II da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 148-9)

Os dois próximos temas encontram-se na Parte II da Sinfonia. O Tema do Scherzo (ex. 9) tem sua frase inicial claramente derivada das GG A e d (desta, por inversão), como se fizesse necessário ao compositor voltar às fontes básicas de material, após um longo trecho de transformações sobre outras transformações intermediárias.

Ex. 9 - Derivação do tema do Scherzo da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)

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O Tema do Trio (ex. 10), por sua vez, baseia sua construção principalmente nas formulações obtidas na ponte que conecta as Partes I e II, a partir das quais for gerada a gg xa-1 (ver ex. 8). Observa-se ainda o emprego de d-2 no segmento cadencial que fecha a frase-enunciado do tema.

Ex. 10 - Derivação do Tema do Trio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 160-3)

Após o Desenvolvimento (onde, evidentemente, não surge qualquer ideia temática nova, apenas elaborações daquelas introduzidas nas Partes I e II), tem lugar o Adágio (Parte IV), com dois temas, um principal e um secundário. O ex. 11 apresenta o primeiro deles, marcado principalmente pela anacruse construída a partir da recorrente figura pontuada (gg x), presente em quase todos os outros temas. Embora o parentesco com o Tema Cadencial (ver ex. 4) seja evidente, uma transformação da gg xd-1, tornando-se cromática, parece resultar da influência da GG d (incluindo a manutenção das alturas iniciais Sol-Sol@[Fá#]-Fá), numa espécie de volta às origens.

Ex. 11 - Derivação do Tema (principal) do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 382-3)

Por fim, o Tema secundário do Adágio (ex. 12) tem grande parte de sua estrutura melódica derivada da escala de tons inteiros (coleção b),14 o que o associa à GG C. É pos-

14 Por sua estrutura simétrica, a escala de tons inteiros possui somente duas coleções possíveis: aquela que começa com uma determinada nota (como mi, por exemplo: Mi-Fá#-Sol#-Lá#-Dó-Ré), e a outra iniciada pela nota um semitom acima da referencial (Fá-Sol-Lá-Si-Dó#). Apenas por conveniência, levando-se em conta a tonalidade central da Sinfonia, essas coleções são designadas,

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sível, portanto, perceber uma relação indireta (de “consanguinidade”) entre este tema e o principal da Sinfonia (ver ex. 4), cuja frase inicial também é construída a partir da escala de tons inteiros, porém relacionando-se à coleção a.

Ex. 12 - Derivação do tema secundário do Adágio da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 415-9)

A fig. 2 resume as diversas relações de derivação entre os nove temas apresentados e a Grundgestalt da obra, através das Grundgestalten auxiliares (A, B, C e d) e intermediárias. As setas cheias representam operações de variação progressiva, enquanto as tracejadas referem-se a simples aplicações (ou seja, sem transformações) dos fragmentos sobre os temas.

Conclusões Este estudo examinou aquela que pode ser considerada a mais importante finali-dade composicional da variação progressiva: a obtenção de temas distintos a partir da ideia básica primordial – a Grundgestalt – de uma obra, que é em geral (como no caso presente) apresentada em seus primeiros compassos. Isso se mostra notavelmente bem exemplificado na peça selecionada para análise, a Primeira Sinfonia de Câmara, de Schoenberg. Como foi constatado, sua Grundgestalt subdivide-se em quatro componentes básicos, cada qual dando início a diversos processos derivativos, em diferentes graus de profundidade e – por assim dizer – em diferentes velocidades de propagação, o que permitiu a geração de elementos caracterizadores e consideravelmente distintos (muitas vezes fortemente constrastantes entre si) em seus formatos definitivos nos nove principais temas que formam a espinha dorsal da obra. Os estágios intermediários (gg´s) resultam de transformações diretas de formas precedentes ou da conjunção de algumas delas (i.e., por hibridismo) que, por sua vez em certos casos, dão início a novas linhas de descendência.

Os exemplos elaborados para ilustrar os procedimentos acima descritos constituem uma etapa inicial em relação ao objetivo de criação de um modelo analítico específico para a variação progressiva, o que se concretiza através de recursos gráficos (retângulos em linhas cheia ou tracejada, setas onduladas indicadoras de derivação etc.) e de abreviaturas, as-sociadas a novos símbolos e terminologia (GG, gg, as operações de transformação etc.).

respectivamente, pelas letras a e b (para maiores detalhes, ver Almada, 2010a). Observe-se ainda no ex. 12 que algumas poucas notas (indicadas por asteriscos) não pertencem à coleção b da escala, o que pode ser atribuído a uma intenção puramente colorística por parte do compositor.

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Figura 2 - Rede de derivações na construção dos temas da Primeira Sinfonia de Câmara op.9, a partir dos componentes auxiliares da Grundgestalt

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Ao mesmo tempo, este estudo também inicia a elaboração de uma tipologia abrangente e detalhada da variação progressiva (que será gradualmente ampliada no decorrer da pesquisa, a partir de novos estudos). Neste sentido, o quadro 1 apresenta um resumo das técnicas/operações derivativas empregadas na formação dos temas da Sinfonia, de acordo com o que foi apresentado nos exs.3 a 12.

Quadro 1 - operações de variação progressiva na construção temática daPrimeira Sinfonia de Câmara

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La música de la segunda Escuela de Viena: una lectura desde la teoría de las funciones formales

Alejandro MartínezUniversidad Nacional de La Plata – Argentina

Formenlehre revisitadaDesde hace unos años, puede observarse en la teoría musical tonal la aparición

de ciertas obras que retoman la problemática formal. Textos como los de Caplin (1994, 1998, 2009), Hepokoski y Darcy (2006) o Gjerdingen (2007) proponen diferentes enfoques – a veces decididamente contrapuestos- de lo que puede entenderse como un retorno a la tradición de la Formenlehre. William Caplin, particularmente, ha desarrollado cierto enfoque formal heredero de observaciones y planteos formulados por primera vez por la teoría de Schoenberg. La Formenlehre de Schoenberg (Schoenberg 1942, 1967, 2006) se apoya significativamente en una serie de oposiciones: la distinción entre dos estructuras temáti-cas básicas, la oración (Satz) y el período (Periode), así como en dos tipos de organización formal, caracterizables como estable o firme (fest), y lábil o inestable (locker). Una de sus mayores contribuciones a la teoría de la forma es la primera caracterización relativamente precisa de los rasgos que definen y diferencian a la oración del período.

Las ideas formales de Schoenberg fueron posteriormente retomadas por su discípulo Erwin Ratz (1951), quién profundiza el concepto de “función formal” planteado por Schoenberg en varios de sus textos teóricos. El trabajo de Caplin sobre la música instru-mental del Clasicismo -que es el punto de partida de nuestro trabajo-, se inscribe en esta tradición, pero avanza significativamente en su grado de sofisticación -tanto en relación a Schoenberg como a Ratz-, al definir con mayor precisión las características del período y la oración, las diferencias concretas entre secciones estables y lábiles y en proponer nuevos tipos formales (que Caplin denomina “formas híbridas”) que amalgaman características de la oración y el período.

Pero indudablemente el concepto más importante que la teoría de Caplin clari-fica y ubica en lugar central es, precisamente, el de “función formal”, definida como “el rol específico que un pasaje musical particular desempeña en la organización formal de una obra musical” (Caplin, 1998, p.254-255). En la propuesta de Caplin, cada pasaje presente en una obra musical es capaz de comunicar su función formal como resultado de la interacción de varios aspectos musicales. De este modo, la constitución interna de un pasaje musical (en términos rítmicos, armónicos, melódicos, de agrupamiento y texturales) y su relación con pasajes anteriores son factores que proporcionan a aquél una determinada cualidad temporal. El concepto de función formal apunta entonces a un aspecto que Caplin busca recuperar en su acercamiento a la forma musical: la experiencia de temporalidad que suscita la audición musical:

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La forma musical involucra directamente nuestra experiencia tempo-ral de una obra musical ya que sus segmentos temporales tienen la capacidad de expresar su propia ubicación dentro del tiempo musical. (Caplin, 2009, p. 23)

Puede afirmarse que su teoría conjuga tres aspectos de la funcionalidad formal (Caplin, 1998, p.9): Función formal: se refiere -como ya se ha afirmado anteriormente-, al rol de un deter-minado segmento temporal identificado dentro de la organización formal de una obra musical. Términos como “antecedente”, “continuación”, “tema principal”, “introducción”, “codetta”, etc., aluden –en distintos niveles jerárquicos- a una determinada función formal de una sección musical. Proceso formal: se refiere a los mecanismos o técnicas compositivas que permiten comunicar o proyectar determinada función formal. Entre estos pueden mencionarse procesos de repetición, fragmentación, secuenciación, liquidación, compresión, extensión, expansión cadencias, etc.Tipo formal: se refiere a combinaciones generalizables entre funciones y procesos formales, a varios niveles en la jerarquía formal. Esto abarca a tipos formales en varios niveles jerárquicos como la oración el período hasta piezas enteras como un rondó o la forma sonata

Desde la publicación del libro de Caplin en 1998 han aparecido algunos trabajos aplicando su enfoque funcional a repertorios posteriores al de la música instrumental del período clásico que aquél examina (e.g., BaileyShea 2003; Somer, 2005; Broman, 2007). Estos trabajos plantean varias cuestiones interesantes en relación a las propuestas originales de Caplin. Por un lado, muestran que tanto la oración como el período y las formas híbridas están presentes en la música de otros períodos históricos. Por otro lado, sugieren también algunas revisiones, adaptaciones y extensiones a la teoría, sobre todo aquellas vinculadas con la expansión de los tipos formales básicos y con su aplicación en contextos no tonales o incluso modales. Una revisión necesaria apunta a precisar entonces los elementos y procesos formales específicos que permitan todavía caracterizar funcionalmente un pasaje musical como oración, período u otra forma híbrida o no convencional en repertorios diferentes al clásico. Por ejemplo, BaileyShea (2003) ha señalado la presencia de nuevos modelos de forma oración utilizados por Wagner en sus óperas. En estas “oraciones wagnerianas”, este autor muestra que Wagner modifica en la forma oración prototípica el modo de expresar la función de continuación, mientras que la presentación (con la enunciación de la idea básica y su repetición) per-manece esencialmente sin alterar1. Asimismo, para abordar repertorios más recientes, es necesario elucidar y clasificar procesos formales en el plano de la textura, la dinámica y el timbre –elementos anteriormente secundarios con respecto al aspecto armónico/motívico- para establecer su contri-bución a la funcionalidad formal postonal tras el debilitamiento o la ausencia de funcionalidad tonal.

Webern y el período y la oraciónLa presencia de las oración y el período en la música atonal de los compositores de

la Segunda Escuela de Viena es sugerida por Anton Webern en un pasaje de las conferencias que éste dictara privadamente en el año 1933, y que fueron publicadas póstumamente en 1960 con el título Der Weg zur neuen Musik (“El camino hacia una música nueva”). En el transcurso de estas conferencias Webern deja entrever que, lejos de ser formas obsoletas y

1 Ver más adelante en la figura 1, la definición de los componentes formales de la forma oración.

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agotadas, pertenecientes a la música tonal del pasado, éstas siguen siendo utilizadas por los compositores como medio para una coherente exposición de las ideas musicales, aunque en forma extendida y exhibiendo un tratamiento más complejo de los elementos motívicos.

Tal como nos enseña Schoenberg, lo que caracteriza al período y la oración como estruc-turas contrastantes se encuentra en la diferente disposición y tratamiento otorgado a los elemen-tos motívicos. En términos de la expresión usada por Webern, es el modo de “presentación de las ideas musicales” el aspecto que está en juego entre ambas formas. Por idea musical Webern (1984, p.41) entiende “la expresión de una idea por medio de sonidos” y en sus conferencias, sostiene que, tanto el surgimiento de la música atonal libre como el de la técnica dodecafónica, están necesaria e ineludiblemente ligados a la exploración y expansión del material sonoro así como al refinamiento progresivo en la presentación de las ideas musicales. Webern señala que:

Estas dos formas [se refiere al período y la oración] constituyen el elemento fundamental, la base de toda construcción temática en la época clásica y de todo lo que sucedió en la música hasta nuestros días. Es una larga evolución y a veces es difícil localizar estos elementos básicos. No obstante, todo puede ser atribuido a ellos [...] ¿Por qué esas formas surgieron así? Bien, en el fondo, existe el deseo de expresarse de la manera más comprensible posible. (Webern, 1984, p.66)

Naturalmente, una sinfonía de Mahler difiere en su forma de composición de una de Beethoven, pero en esencia ambas son iguales; un tema de Schoenberg también se basa en las formas período y oración de ocho compases [...] En el desarrollo ocurrido después de Beethoven se dio preferencia a la oración de ocho compases. Más tarde –por ejemplo en Brahms-, se hace difícil relacionar las obras a esos tipos formales, sin embargo ellas están allí. La sinfonía moderna también se basa en esas formas. (Webern, 1984, p.81)

Si bien no tan explícitamente como Webern, en algunos pasajes de sus escritos Schoenberg también deja ver la persistencia de ciertas formas anteriores en su música atonal libre y en aquella basada en la técnica dodecafónica. Sin embargo, tanto Schoenberg como Webern no proporcionan claramente ejemplos propios en los que podamos apreciar su utilización del período o la oración en una obra musical no tonal. Ello supone un problema a resolver: ¿de qué maneras podrían operan estos prototipos formales en contextos en los que la dimensión estructural que aporta la tonalidad ya no es aplicable? Schoenberg acerca una respuesta a esta pregunta cuando afirma que

La coherencia en la música clásica se basa -en términos generales- en las cualida-des cohesivas de ciertos factores estructurales tales como ritmos, motivos, frases y la constante referencia de todos los rasgos melódicos y armónicos al centro de gravitación -la tónica. La renuncia al poder unificador de la tónica aun deja en operación a los restantes factores. (Schoenberg, 1984, p.87)

[…] se puede sacrificar lógica y unidad en la armonía antes que en la sustancia te-mática, en los motivos, en el contenido de ideas [musicales] […] Es difícil concebir que una pieza de música tenga significado a menos que haya significado en los motivos y en la presentación temática de las ideas. (Schoenberg, 1984, p. 280)

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Estas citas sugieren entonces que tras el abandono de la tonalidad, el tratamiento y la elaboración de los materiales motívicos cobran una importancia decisiva en la construcción formal de una obra musical, en especial a través del principio de variación progresiva o desarro-llante, uno de los pilares de la construcción formal en la teoría y el pensamiento compositivo de Schoenberg. Éste la concibe como una técnica especial de variación (diferente de la variación ornamental) en la que se aspira a la generación constante de nuevos materiales motívicos derivados de materiales anteriores (Haimo, 1997). La variación progresiva supone un proceso teleológico que permite vincular lógicamente entre sí las diferentes formaciones motívicas que una obra presenta en su desarrollo temporal (aun las más contrastantes). Puesto que es principalmente el tratamiento motívico lo que define que una unidad temática constituya un período, una oración o una forma híbrida y éste puede actuar también en un contexto no-tonal, el recurso a estos prototipos formales ya probados en la música del pasado supone tanto un tributo a la tradición tonal -en el sentido de la continuidad con el pasado que plantea Webern repetidamente en sus conferencias-, como un desafío: mostrar de qué modo la presentación lógica de las ideas musicales -cuyo fin, según Schoenberg, es la comprensibilidad-, permite construir un discurso coherente y orgánico prescindiendo de la tonalidad.

Algunos ejemplos musicalesLos fragmentos musicales que analizaremos a continuación muestran unidades

temáticas en las que se aprecian ejemplos de oración o período. Si bien las obras musicales que abordaremos son anteriores a la fecha de las principales publicaciones de Schoenberg sobre la cuestión formal, parece haber suficiente consenso acerca de que ellas manifiestan ideas sobre la forma y la construcción musical que Schoenberg siempre mantuvo a lo largo de su carrera como docente y compositor (Adams, 1993).

La formulación típica (o “forma modelo”, en términos de Schoenberg) de la forma oración en la música tonal podría representarse del modo siguiente:

Figura 1. Esquema de la forma oración.

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Debajo del esquema se representan las cualidades temporales asociadas a las funciones formales involucradas junto con algunos rasgos compositivos que caracterizan a éstas.2 La oración que muestra la figura 2, perteneciente a la quinta pieza, compases 29-41 del op.23 de Schoenberg, presenta todas las características enunciadas anteriormente:

Figura 2. Schoenberg op.23/5, c.28-41.

En la formulación más típica de la forma oración, como hemos visto, la función con-tinuación se fusiona con la función cadencial en un mismo agrupamiento.3 En el siguiente ejemplo, el comienzo del op. 24 de Webern, cada función formal es asignada a un diferente agrupamiento. Los primeros tres compases presentan la idea básica en los instrumentos de

2 Caplin propone un esquema de tres cualidades temporales principales distinguibles en todo segmento temporal: comienzo, medio o fin y dos accesorias: antes-del-comienzo y después-del final.3 Caplin representa este hecho con la indicación “continuación → cadencia”.

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viento. Luego, el piano reexpone esta idea básica con una operación variativa característica de la música dodecafónica de Webern: el palíndromo. De este modo, se produce una re-trogradación de los valores rítmicos de la idea básica original, así como una retrogradación interna de las notas en cada grupo (delimitados por los diferentes valores rítmicos) de la idea básica. Ambas presentaciones comienzan en F y descienden al P. Seguidamente, la función continuación se proyecta a través de un evidente incremento en la actividad rítmica (con el uso de las semicorcheas, el valor más breve aparecido en la idea básica). Hacen su aparición la viola y el violín y la dinámica se mantiene en F y FF. Todo ello refuerza la sensación de aumento de la tensión, característico de la función continuación. Hacia el compás 8 hay una cierta reducción de la actividad rítmica con la reaparición de las corcheas y los tresillos de corcheas que anticipa el gesto de los acordes del piano que expresan una cualidad temporal conclusiva (reforzada por la dinámica descendente y la aparición del primer PP aparecido hasta aquí). Tal como muestra la figura, el inicio y la finalización de cada componente formal mencionado están adecuadamente resaltados con cambios de tempo:

Figura 3. Webern op. 24/1, c.1-10.

El siguiente ejemplo muestra una forma oración en el comienzo de la primera pieza de las op.23 de Schoenberg. El rasgo más saliente de este ejemplo es el efecto que produce la técnica de variación progresiva sobre la repetición de la idea básica. La generación continua de nuevos materiales motívicos tiene como consecuencia una cierta desestabilización del contexto funcional de la presentación. No obstante, el pasaje siguiente, expresa claramente una funcionalidad de continuación, por lo que la oración se completa satisfactoriamente.

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Figura 4. Schoenberg, op. 23/1, c. 1-12.

En su libro y en artículos posteriores, Caplin parece asumir como evidente la identifi-cación de ciertas unidades formales como repeticiones o contrastes con respecto a unidades anteriores. Sin embargo, ya sea por la acción desestabilizante de la variación progresiva o por la presencia de conexiones motívicas más sutiles, ello no resulta tan sencillo en la música de la Segunda Escuela de Viena. En los ejemplos siguientes de oración y período es necesario recurrir a la Set Theory para la identificación de las diferentes funciones formales (idea bá-sica e idea contrastante), de modo de poder develar ciertas correspondencias interválicas.

En la cuarta pieza del op. 7 de Webern se muestra una forma período. La estructura típica del período en la música tonal es la siguiente:

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Figura 5. Esquema de la forma período.

Como puede apreciarse debajo del esquema, la forma período expresa dos niveles de temporalidad musical: la relación comienzo→conclusión dentro del antecedente y el consecuente se proyecta, en un nivel jerárquico superior, a la forma en su totalidad.

El detalle saliente de este pasaje con estructura de período se encuentra en el compás 6. Desde el punto de vista de la estructura “modelo”, este compás puede pensarse como una interpolación al comienzo de la frase consecuente. El análisis interválico revela que el tricordio (015) es subconjunto de (0145), el conjunto de la idea básica, y que (016) es subconjunto de (1247), el conjunto de la idea contrastante. Ambos tricordios se articulan desde el sonido sol 4, siguiendo una direccionalidad opuesta. Por ello, esta interpolación constituye una suerte de ver-sión reducida de los materiales interválicos que caracterizan a la idea básica y la idea contrastante.

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Figura 6. Webern, op. 7/4, c.1-9.

Figura 7.Análisis interválico de Webern, op. 7/4, c.1-9.

Otro rasgo para señalar es el calderón del compás 5. Schoenberg afirmaba, al des-cribir la estructura de la forma período en Fundamentals of Musical Composition, que el antecedente debía finalizar con una “cesura” (Schoenberg, 1967, p.25). (usualmente una semicadencia en la música tonal). Aquí, el calderón, sumado al ritardando contribuye a crear la sensación suspensiva que caracteriza típicamente el final del antecedente.

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El último ejemplo pertenece al comienzo de la tercera de las piezas para violín y piano op.7 de Webern.

Figura 8. Webern, op. 7/3, c.1-9.

En este pasaje se aprecia una forma oración cuyas idea básicas se superponen (representadas por el conjunto (0156), primero en el violín y luego en el piano). En esta presentación, asimismo, cada idea básica presenta una red de relaciones interválicas inte-resantes, tal como ilustra la figura siguiente:

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Figura 9. Análisis interválico de la presentación de Webern, op.7/3, c.1-5.

En el compás 5, Webern indica una pequeña articulación antes de las notas si y fa de la mano derecha del piano. Con ellas se inicia la frase de continuación que se extiende hasta el final del compás 9 con la articulación del tricordio (012) en la mano izquierda del piano, cuya cualidad cadencial es resaltada con la indicación “apenas audible”. En la función continuación, se observa la técnica de fragmentación en la parte del violín, que articula repetidas veces el conjunto (0167), una ampliación semitonal del conjunto (0156) de la idea básica.. Como puede apreciarse, la frase de continuación exhibe también uno de sus rasgos típicos: el aumento de la actividad rítmica con respecto a la presentación.

ConclusiónLos análisis anteriores han intentado mostrar de qué modo pueden presentarse

las formas período y oración en ciertas obras de Schoenberg y Webern, en un contexto no-tonal y en concordancia con las ideas expresadas por éste último acerca de su uso ex-tendido. Recordemos que Webern afirmaba que las formas habían evolucionado de modo tal que su identificación podía resultar difícil. Sin embargo, los ejemplos anteriores ponen de manifiesto que ciertos rasgos característicos que definen al período o a la oración per-manecen, aun cuando la tonalidad no está presente y el trabajo motívico sea más complejo. En los ejemplos vistos hay un predominio de ejemplos de forma oración. Recordemos que Schoenberg afirmaba que:

La oración es una forma de construcción más elevada que el período. No sólo establece una idea sino que al mismo tiempo inicia un cierto desarrollo. Puesto que el desarrollo es la fuerza motora de la construcción musical, comenzarlo simultáneamente indica premeditación. (Schoenberg, 1967, p. 58)

Podemos concluir entonces que la naturaleza evolutiva de la oración, gracias a la presencia de una unidad inicial fuertemente implicativa, creada por la enunciación repetida de un mismo material musical, genera una tendencia significativa hacia la continuación, al

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incremento de la tensión y al crecimiento orgánico de los elementos motívicos. Por estas razones, es posible considerar a la oración como la estructura temática más adecuada para aplicar a las ideas musicales los procesos de intensificación, diferenciación y crecimiento gradual que caracterizan al principio de variación progresiva

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Elementos postonales como factores de integración de estructuras modales, tonales y postonales en la

expresión estética modernista: a sonata para guitarra y clavecín (1926) de Manuel ponce

Alejandro Barceló RodríguezUniversidad Veracruzana, Mexico

La audición e interpretación de la sonata para guitarra y clavecín (1926) del composi-tor mexicano Manuel M. Ponce (1882-1948), permite escuchar y entender musicalmente la convivencia de elementos procedentes de tres tradiciones o prácticas de composición; la primera es la homogénea tradición de la tonalidad funcional mayor-menor, la segunda es la modalidad con sus colecciones de tonos característicos en proyecciones horizontales y la tercera es la heterogenea práctica postonal con sus múltiples propuestas en el uso de estructuras y procedimientos.

La sonata fue escrita en el París de 1926, entonces, el centro nodal de una intensa red cultural que se nutría del encuentro de artistas procedentes de diversas regiones, entre otras, América Latina, Estados Unidos y Europa. En tal arena de confluencias, los juegos ide-ológicos de préstamos musicales y representaciones culturales, fueron prácticas inevitables que derivaron en productos culturales como la sonata que este estudio atiende.

Así, Manuel M. Ponce integra en el discurso musical de esta sonata, elementos tonales, modales y postonales y al hacerlo, también asimila y representa a través de signifi-cadores audibles distintivos1, identidades culturales que aquí se comentan en tanto Otros culturales2, a fin de ubicar esta sonata en su contexto multidimensional.

El propósito de este artículo es mostrar cualidades modernistas en la sonata para gui-tarra y clavecín por medio de la explicación de algunas relaciones musicales y la descripción de significadores audibles distintivos relacionados con la noción de Otros culturales. Pero, ¿Qué productos culturales pueden inscribirse en la constelación del Modernismo cultural europeo? Es posible apuntar que aquellos que tengan que ver con prácticas artísticas que emplean usos no tonales de estructuras con base en la triada (acordes no funcionales), el uso de estructuras con base distinta a la triada (por ejemplo, base cuarta), así como referencias intertextuales de otras composiciones en tanto resultado de prácticas de actualización en boga, pero asimiladas estructuralmente en una obra cerrada, relacionada entre sus partes y la totalidad de la pieza.

Uno de los aspectos esenciales para la comprensión musical auditiva tanto del primer movimiento, como de esta sonata en su totalidad es la presentación del material inicial. Se trata de un gesto polifónico de apertura (GPA) donde confluyen un trío de estructuras. (Ver Figura 1)

1 Saavedra (2001, p. 327).2 Barceló (2011, p. 34).

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Figura 1

La estructura MEL2Q proyecta horizontalmente las quintas justas E-B y A-E. Por su parte, P4q2seg despliega una progresión de quintas justas enunciadas como cuartas justas ascendentes. La figura 2 expresa esta estructura como resultado de la aplicación de las operaciones T5 y T1.

Figura 2

El cuarto pulso del primer compás exhibe una aparente anomalía al proceso de las dos estructuras mencionadas MEL2Q y P4q2seg. La situación musical tiene relación con el predominio de una expectativa por encima de otra. La expectativa perdedora, provocada por la estructura MEL2Q deriva del procedimiento de repetición, su contorno melódico nos hace esperar la repetición de E4 en el cuarto pulso del compás 1. Sin embargo, la estructura P4q2seg transforma a MEL2Q en el pulso antes señalado: P4q2seg genera la expectativa de F 4 como continuación de la progresión de quintas justas –enunciadas como cuartas justas ascendentes-; de esta manera, el F 4 aparece en MEL2Q, y P4q2seg finalmente produce la expectativa musical ganadora. Mas adelante, la segunda parte de P4q2seg conduce por grado conjunto, el sentido de movimiento dirigido hacia E4 en el primer pulso del compás 2.

El diseño distintivo de las dos estructuras comentadas nos permite intuir en una lectura local una relación musical concreta, la interpretación tonal de una triada menor que decora a una sonoridad armónica o klang cuyo tono fundamental es E. Es decir, el (F ) que

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podría haber presentado MEL2Q en el contexto sugerido de un entorno tonal en (E, -), es transformado por P4q2seg en (F ), generando una inflexión asociada al modo frigio.

Enseguida P3qKTON repite casi de manera exacta la información ofrecida por P4q2seg complementando el significado musical con la segunda mitad de MEL2Q que pro-longa a A4 en el compás 2. Tal significado consiste en afianzar la representación de la tónica con un klang cuya estructura tiene como base el intervalo de cuarta justa (o su inversión, la quinta justa), de ahí la etiqueta para esta tercera estructura –una progresión de tres quintas descendentes que definen al klang tónica-. Por otra parte, la percepción de una proporción de cambio rítmico en P4q2seg contribuye a definir el E como tono fundamental del klang que representa en este contexto a la tónica: el cambio de nota de octavo (corchea) a nota de cuarto (negra) produce la intuición de una sensación de freno, de expectativa de llegada a una meta parcial y de manera mas precisa, a la sensación de estar en la ubicación espacial musical inmediata anterior a una meta. La figura 3 expresa la proporción mencionada.

Figura 3

Del comentario anterior respecto de la estructura GPA es importante resaltar las siguientes cuatro intuiciones musicales; uno, hay una audición polifónica diatónica estruc-turada principalmente con las operaciones T5 y T7 y que en el contexto del GPA refieren diatónicamente a intervalos de quintas justas descendentes; dos, la representación de la tónica con un klang cuya estructura se basa en el intervalo de cuarta justa (en contraste con la triada); tres, la percepción del procedimiento tonal de prolongación llamado nota vecina y que por extensión podremos nombrar aquí como acorde vecino, i. e., el klang tónica base cuarta es decorado a través de una triada menor -II con mixtura desde la audición de mi menor- (Ver Figura 4) y cuatro, la inflexión melódica de MEL2Q hacia una estructura modal de tipo frigio.

Figura 4

En términos Hegelianos y con la expresión de Arnold Schönberg, el GPA juega el papel de la presentación de la Idea musical3, esto es, un material musical que presenta de forma concentrada y a manera de semilla el sentido musical o la idea que la obra autónoma desarrollará.

3 Schoenberg (1995, p. 56).

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En suma, al funcionar el GPA como la presentación de la idea, Ponce responde a una tradición históricamente arraigada que procede al menos de las composiciones barrocas y clásicas de J. S. Bach (1685-1750), G. F. Händel (1685-1759), J. Haydn (1732-1809), W. A. Mozart (1756-1791) y L. van Beethoven (1770-1827). Sin embargo, este proceder estruc-tural y formal en el contexto de la época y con los recursos postonales que se mencionarán enseguida, constituye también un gesto modernista. El impulso modernista se expresa en un entorno diatónico donde la estructuración del GPA deriva de las operaciones T5 y T7 con la consecuente inflexión al modo frigio de un segmento melódico y la transformación por mixtura de la subtónica (VII ), así como la representación armónica de la tónica con un klang de base cuarta.

Pero el movimiento por intervalos de quintas diatónicas ubicadas naturalmente en la escala de la tonalidad correspondiente, es un distinguido y antiguo procedimiento tonal ¿de dónde viene entonces la idea de un procedimiento modernista? Del énfasis en la estruc-turación de una retícula de áreas que se delimitan a partir de puntos armónicos derivados de las operaciones T5 y T7 pero que no necesariamente prolongan el punto armónico.

Entre otros factores, esta es una lógica musical audible que aunada a otros elemen-tos estructurales de la pieza, impide escuchar la sonata como una obra tonal en el sentido funcional mayor-menor que Heinrich Schenker4 generaliza en su teoría tonal, i. e., no es posible derivar un Urlinie5 ni tampoco un Ursatz en cada uno de los movimientos de la sonata y aunque se escuchan prolongaciones armónicas en diferentes planos de audición, en este sentido profundo estructural la pieza es una obra postonal diatónica modernista con fuertes énfasis tonales e inflexiones modales y las maneras de conciliación de estos materiales constituyen la riqueza artística, estética y musical de la obra.

En este orden de ideas es pertinente el comentario de Richard Taruskin al respecto del Modernismo musical como fenómeno cultural ambivalente que contiene tanto propu-estas radicales como moderadas6.

Existe un radicalismo de fines y un radicalismo de medios […] ambos no necesari-amente coinciden. No todo radicalismo debería considerarse como modernismo y no todo modernismo requiere medios radicales de expresión.

Veamos el alcance estructurador de las operaciones T5 y T7. La figura 5 ilustra en tres niveles insertos de atención una porción de este alcance. Un primer nivel que deter-mina la estructura del klang tónica (P3qKTON), un segundo nivel que establece la relación de intervalos entre triadas locales menores contiguas y un tercer nivel que gobierna la progresión y articulación de la música en un nivel medio de percepción mas profundo que el nivel anterior.

4 Schenker (2001, p. 86). 5 Urlinie y Ursatz, respectivamente, “línea fundamental” y “estructura fundamental” (N. del A.)6 Taruskin (2010, p. 3).

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Figura 5

Por su parte, la articulación de las secciones correspondientes a la Exposición y Recapitulación del allegro moderato es generada también por las operaciones T5 y T7. La figura 6 muestra esta idea.

Figura 6

Finalmente, la figura 7 representa un plano gráfico del allegro moderato dispuesto en un orden de quintas justas relacionadas por las operaciones de transformación T5, T7, que a su vez, además de otras operaciones de transposición involucradas, se ubican asociadas a las secciones formales de las formas sonata.

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Figura 7Una conciliación creativa de usos tonales con usos modernistas diatónicos es la

manera en que Ponce afianza la polarización armónica que se espera de la sección Exposición.

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En este caso hay una verdadera prolongación en un plano medio de atención, de la domi-nante de la tonalidad sugerida de mi menor. Se trata de un procedimiento de oscilación de klangs por relaciones de mediantes, los klangs proyectan estructuras armónicas de novena no funcionales, a tono con el color armónico predominante en la música de Claude Debussy7. La figura 8 ilustra esta prolongación.

Figura 8

En un nivel más profundo de atención estructural y partiendo de la figura 7, es posible detectar relaciones musicales que vinculan al allegro moderato que, sin ser tonal, está fuertemente orientado a (E, -), con el Andantino que enfatiza al (D, -) como centro de atracción y con el Allegro non troppo e piacevole que sugiere la tonalidad de (E, +). La figura 9 explica gráficamente, entre otras relaciones musicales, las siguientes tres relaciones.

Figura 9

Una primera elipse vertical sombreada proyecta los puntos armónicos de (E, +). Esta área corresponde a la Exposición del allegro moderato. La elipse horizontal refiere una extensa área que prolonga en un nivel medio profundo a F a través de doce aplicaciones

7 Devoto (2003. p. 184).

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de la operación T5. El punto armónico F es relevante en tanto mediante de la tonalidad sugerida de (D, -) que exhibe el Andantino. La tercera figura, con forma de círculo, proyecta grados de la tonalidad (E, +) que pueden asociarse con el tercer movimiento.

Al respecto de Otros culturales asociados al movimiento cultural del Modernismo, son relevantes los siguientes dos significadores audibles distintivos; uno, la estructura P4q2seg del gesto GPA del allegro moderato, que razonablemente puede conectarse con la progresión ascendente de cuartas justas en la primera sinfonía de cámara, op. 9 de Arnold Schönberg, sin duda un símbolo de la vanguardia vienesa antes del giro serial del autor de Verklärte Nacht y dos, la estructura MEL2Q, también del gesto GPA del primer movimiento, que puede relacionarse con el contorno melódico del preludio 8 en (G , +). - La fille aux cheveux de lin- de la primera serie de Préludes (1909-1910) de Claude Debussy. Esta segunda relación se asocia con el extenso vínculo de Ponce hacia el género de canción popular, es interesante destacar que el preludio para piano antes mencionado, tiene su antecedente en la canción para voz y piano La fille aux cheveux de lin: Sur la luzeme en fleur (1882) también de Debussy. Se trata de una composición creada por el autor de La Mer para acompañar la poesía La fille aux cheveux de lin, cuarta de una serie de seis chansons écossaises publicadas en el libro Poèmes Antiques (1852) del poeta francés, Charles-Marie-Rene Leconte De Lisle. (1818-1894). Las figuras 10 y 11 ilustran fragmentos de las obras mencionadas.

Figura 10

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Figura 11

En suma, los significadores audibles distintivos P4q2seg y MEL2Q representan, respectivamente, a los Otros culturales: la vanguardia modernista tonal de Schönberg en su op. 9 y el Modernismo musical à la Debussy. Asimismo, MEL2Q constituye un significador permeable multicultural8 pues también representa a un tercer Otro cultural: La canción popular en su dimensión francesa.

Antes de exponer algunas relaciones musicales del segundo movimiento, es relevante comentar una estructura simétrica de importancia estética y estructural que se ubica dentro de la retícula de secciones articuladas por T5 y T7 en el allegro moderato y que constituye un rasgo estructural modernista. Se trata de una estructura postonal AUM (percepción diatónica de triada aumentada) en virtud de su cualidad simétrica. Se percibe en un nivel medio estructural en la Exposición, el Desarrollo y la Recapitulación y deriva de tres aplicaciones de T4 con la proyección resultante de una octava dividida en tres segmen-tos iguales. A nivel local se interpreta como un despliegue de tres terceras mayores cuyo principio y meta de movimiento es F ( ). El hecho musical de que esta estructura AUM se ubique sobre este punto armónico, estimula y prepara la recepción de la mediante menor del área tonal enfatizada del Andantino que es (D, -). Es interesante ver como Ponce ajusta dentro de una progresión de áreas relacionadas por quintas diatónicas a la estructura AUM incluso sobre el mismo punto armónico, desplegando la estructura en tanto F - A-C -E . Las tres presentaciones de AUM generan un sabor característico dentro de la retícula por quintas. Las figuras 12 y 13 muestran respectivamente la presentación de AUM en la Exposición y en el Desarrollo (compases 51-53).

8 Saavedra (2001, p. 328).

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Figura 12

Figura 13

Por su parte, en el Andantino destacan las siguientes tres relaciones musicales que brindan cohesión estructural entre los tres movimientos de la sonata, de una manera mo-dernista. La primera relación ocurre en la sección central (“poco piú mosso”) del segundo movimiento, un movimiento central con forma tripartita. Aunque una primera intuición musical nos puede llevar a significar musicalmente la sección mencionada como una pro-longación de la dominante con mixtura de la forma que muestra la figura 14, la aparente presentación en segunda inversión de la dominante cromatizada (V6/4) no refleja el sentido de coherencia y naturalidad que resulta de la audición de tal sección en su contexto.

Figura 14

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Una significación musical que permite conectar nuestra percepción musical con el significado de lógica musical que la propia obra propone de manera consecuente, es el conectar el sentido de familiaridad de la sonoridad que supuestamente habíamos sugerido como V6/4 con mixtura, con la representación de la tónica en el allegro moderato en tanto klang base cuarta que engloba las quintas justas E-B y A-E (el supuesto V6/4 ahora se puede generalizar en tanto KTON –klang tónica-). Esta interpretación explica nuestra intuición de paralelismo musical con el primer movimiento, la familiaridad con la sonoridad y la natu-ralidad en el flujo musical de esta sección.

Adicionalmente, la percepción de los siguientes elementos locales en la prolongación del klang KTON base cuarta (compases 13 a 18 y compás 26) afianza la significación aludida: la centralización de E a la manera de una tónica, así como la significación de E como tono fundamental del klang KTON, el uso de la colección de tonos de la escala de E mayor en los compases 17 a 21 y la consecuente intuición de una articulación de los puntos estructurales E-A-B. La figura 15 muestra las relaciones comentadas.

La segunda relación que brinda cohesión a los movimientos de la sonata subyace a la percepción de contraste armónico entre los movimientos externos (Allegro moderato y Allegro non troppo e piacevole) que enfatizan el eje E-B mientras que el movimiento central enfatiza la tonalidad (D, -). Se trata de una relación de similaridad entre uno de los asuntos centrales del allegro moderato y que aparece en GPA en el primer movimiento, el procedi-miento de nota vecina –por extensión de acorde vecino– : (E, KTON)-(D, -)-(E, KTON).

Por una parte, una lectura tonal de las relaciones armónicas sugeridas en cada movimiento: (E, -) – (D, -) – (E, +) apuntan a un desplazamiento hacia un área armónica remota no tradicional en la práctica tonal (D, -), ya que los destinos armónicos mas usuales en una obra de varios movimientos a partir de una tonalidad que gobierna la obra completa serían la dominante (B, -), la subdominante o dominante inferior (A, -), la paralela mayor (E, +), la mediante (G, +) y la submediante (C, -). De esta manera, la mudanza temporal, en el segundo movimiento, hacia un área armónica tonalmente remota, tiene su fundamento en el procedimiento de acorde vecino contenido en el cuarto pulso del compás 1 de la presentación de la Idea (gesto GPA) del primer movimiento y de manera mas precisa es el tejido contrapuntístico de P4q2seg con MEL2Q y la consecuente transformación de

en , esto es, la semilla que provoca la fruto consecuente.

Figura 15

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Como refuerzo y consecuencia de la interpretación anterior, hay dos interpretaciones armónicas relevantes hacia el final de la tercera sección del Andantino. La figura 16 explora el sentido cadencial de esa sección y la figura 17 interpreta esa misma sección, a la luz de los paralelismos mencionados en el párrafo previo y en tanto tercera relación: Es posible escuchar una estructura de quinta justa vertical que es transpuesta vía T10 desde E hacia D: (E-B) T10 = (D-A), lo cual induce un paralelismo de E-B con los movimientos externos de la sonata y de D-A con el movimiento central, el Andantino.

Figura 16

Figura 17

De manera similar a como el allegro moderato presenta el procedimiento de acorde vecino en tanto uno de sus asuntos centrales, el allegro non troppo e piacevole por su parte, exhibe también el procedimiento mencionado en su material inicial. En este caso, en lugar de derivar del procedimiento de nota vecina inferior, deriva del procedimiento de nota vecina superior. Aquí la representación de la tónica es una triada mayor con sexta (X, M6) y el acorde vecino superior es (F , +), la figura 18 muestra este procedimiento.

Figura 18

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La preponderante textura polifónica del primer movimiento tiene su continuidad en el tercer movimiento. También en este último movimiento de la sonata se sigue el esquema de las formas sonata, aunque de manera mas libre que en allegro moderato.

Hacia el principio de la Exposición, un vaivén armónico por mediantes prolonga la tónica sugerida (primeros cuatro compases); en los siguientes cuatro compases, con una textura polifónica a cuatro partes y con una sonoridad mas cromática que la precedente, el proceso de prolongación de la tónica continúa en una manera que razonablemente podemos ubicar como modernista: se trata de la presentación de dos klangs con estructura de acorde de séptima semi-disminuída y de dos klangs con estructura de séptima de dominante, cuatro sonoridades que hacen familiar la audición del tramado polifónico y que nos conducen a la tónica, ataviada con un traje de séptima de dominante con novena (X9). La figura 19 expone la música en su registro correspondiente.

Figura 19

Por su parte, la figura 20 muestra una aproximación mas detallada en dos sistemas de pentagramas.

Figura 20

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El primer pentagrama hace explícitas las descripciones de las sonoridades armónicas arriba descritas. El pasaje es relevante para ilustrar una estrategia modernista de estructu-ración local para articular el sentido de dirección en una sonoridad cromatizada. Se trata de un contrapunto implícito a tres voces.

Una voz superior desplaza una estructura vertical de quinta justa –expresada como cuarta justa ascendente- a través de las operaciones T4 y T3:

(G -C )T4→(E -A ) T3→(C -F )Por otra parte, en la voz inferior, una progresión de quintas con pequeños ajustes

con fines contrapuntísticos y armónicos locales, genera un sentido de movimiento dirigido en apoyo a la voz superior:

(E)T5→(A)T6→(D )T5→(G )T10→(F )T5→(B)T6→(F )T1→(F )T5→(B)T5→(E)Finalmente, una tercera voz en un registro medio, proyecta una progresión melódica

descendente y así colabora con la guía auditiva de dirección en el pasaje aludido:G -F -E-D -C .Por su parte, el segundo pentagrama de la figura 20 muestra las relaciones men-

cionadas. Una polifonía a tres partes que aporta cohesión y dirección de audición en un entorno con cromatismo contextualmente significativo, que adquiere un significado musical de tipo armónico cadencial hacia los compases 7-9. Tres acordes de tipo dominante séptima en el entramado contrapuntístico que se intuyen local y tonalmente como una dominante aplicada a la dominante y la llegada a una tónica local que por integrar un intervalo de novena en su estructura vertical, genera una sensación de reposo sin perder el momentum en la percepción de movimiento dirigido.

En otro orden de ideas, es muy importante un elemento diatónico articulador de secciones que por su función cadencial y su rasgo principalmente melódico y rítmico, brinda cohesión al tercer movimiento. Se trata de la estructura tac –tema anacrúsico cadencial-. Es un contrapunto a cuatro partes cuya voz inferior prolonga un primer punto armónico X por medio de las operaciones T7 y T5. Una vez de regreso en el punto X, una aplicación adicional de T5 nos deposita en Z. La figura 21 muestra el gesto armónico de la voz inferior.

Figura 21

Las diferentes presentaciones de la estructura tac asumen los rasgos armónicos a ó b de la figura 22, que se ejemplifica con el área armónica de F como klang meta del gesto tac.

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Figura 23

Figura 22

Como lo expresa la figura anterior, el acorde meta de la estructura tac corresponde a la estructura de la representación de la tónica en el tercer movimiento, esto es, de una triada mayor con sexta. Enseguida la figura 23 explora las cinco presentaciones del tac en el Allegro non troppo e piacevole con la interpretación local correspondiente.

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Figura 23 (cont.)

Una relación importante entre el segundo y tercero movimientos tiene conexión con la repercusión melódica del patrón horizontal monofónico que exhibe el Andantino y que se establece en el área armónica y temática 2 del Allegro non troppo e piacevole. De la sección aludida del Andantino son relevantes la semifrase A de la frase 1 (sfA de F1) y la semifrase C de la frase 2 (sfC de F2). La figura 24 indica el esquema de frases en la partitura.

Como se observa en la figura 24, los finales de ambas semifrases se enuncian con valores de nota de cuarto (negra); en sfA: G-A y en sfC: G -A; en el primer caso la meta A se obtiene por T2 y en el segundo caso la meta A se obtiene por T1. En cuanto al allegro non troppo e piacevole, la repercusión melódica anunciada consiste en la prolongación de dos grados melódicos contiguos –supertónica y mediante en el entorno local tonal sugerido– por medio de una secuencia cromática que enuncia a una estructura melódica, t2 prolonga melódicamente y a través de sus dos semifrases a (F ) y a (G ); en el primer caso, la meta F se obtiene vía T2; en el segundo caso, la meta G se obtiene vía T1. La figura 25 muestra este procedimiento de prolongación que se intuye también como estructura melódica t2.

El esquema siguiente exhibe la relación transformacional entre ambas situaciones musicales del Andantino y el Allegro non troppo e piacevole:

[(g)T2=(A)] t1 [(g )T1=(A)][(E)T2=(F )] t3 [(F )T1=(G )]Un caso adicional de interacción de estructuras armónicas de base cuarta con

estructuras de base triada, sucede en la parte final del área armónica temática 2 de la Ex-posición, en el tramo que finaliza en el inicio de la Recapitulación –número de ensayo 22-. En esta sección de ocho compases (compases 59-67) que se percibe dividida en dos partes que llamaremos ASUBD-1 y ASUBD-2 –“a la subdominante”, la dirección del despliegue armónico que subyace, prepara y conecta un proceso contrapuntístico que culmina en el compás 67 con la llegada al IV en la Recapitulación.

En la parte ASUBD-1 (compases 59-62), la voz del bajo presenta la progresión melódica - que tiene su repercusión homóloga - . El paralelismo esta mediado por un movimiento de quinta –expresado como cuarta ascendente- - que a su vez progresa en un descenso de tercera - , conectándose con la repercusión - ya mencionada.

La progresión melódica ascendente por grado conjunto es importante tanto por los paralelismos locales de ASUBD-1 como del pasaje antes citado previo a la llegada a la Recapitulación.

ASUBD-1 anuncia de forma prematura en dos ocasiones el acorde meta del des-

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pliegue armónico que ocurre después de las enunciaciones de ASUBD-1 y ASUBD-2, es decir, el IV en el compás 67.

Otra anticipación que presenta ASUBD-1, es la presentación de un klang base cuarta que aparecerá de manera predominante en ASUBD-2. En ASUBD-1 ocurre dos veces, D -G -C en el compás 60 y A- D -G en el compás 61. Es posible intuir ambos klangs como una sola estructura vertical que se transpone vía T7.

Por su parte ASUBD-2 –compases 63-66– exhibe estructuras base cuarta que podemos expresarlas aquí con intervalos tono-clase: {6-5-5}, {5-6-5} y {5-5-5}. La audición contextual refiere estructuras verticales basadas en cuartas ascendentes, lo que a su vez puede interpretarse como un bloque diatónico vertical que se va transformando en su estructura interna y transponiendo a través de T9, desplazándose así, desde D hacia B. La figura 26 expresa las relaciones musicales anteriores.

Figura 24

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Figura 25

Figura 26

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Por otra parte, una relación importante que ofrece cohesión adicional a la sección del Desarrollo en el tercer movimiento es el pasaje que tiene a (D , -) como klang tónica local. La enunciación repetida de un patrón melódico con estructura modal frigia a partir de D , refuerza la intuición de un paralelismo, con la estructura monofónica lineal del Andantino. La figura 27 presenta un extracto de la edición Peer International.

Figura 27

El pasaje se escucha como una sección interna natural y consecuente con el pasado del Andantino. El carácter menor con fluctuaciones modales del segundo movimiento emerge aquí pero no sobre D , sino en D . La relación transformacional que se forma de la sección “poco piú mosso” del Andantino –que hace un paralelismo con el KTON del primer movimiento- con el área en (D , -) del Desarrollo en el tercer movimiento, puede expresarse como:

2º mov. “poco piú mosso” (D, -)t2 (E, -)3º mov. “Desarrollo” (D , -)t1 (E, +)

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Los puntos armónicos que marcan la parte final de la retícula de secciones que culminan el allegro final, se expresan en la figura 28, que ilustra la relevancia de T7 y T5 como generadores de estructura.

Figura 28

El camino de quintas justas ascendentes se ve interrumpido con una intrusión tem-poral al universo del Andantino, cuando la expectativa de aplicar por cuarta ocasión T7, se sustituye por T6 con la consecuencia de hacer una parada corta en D. Luego T1 retoma el camino de quintas justas ascendentes para llegar a la mediante de la dominante y desde este último punto, aplicar T5 con un resultado cadencial que impulse la caída al E.

Como comentario final a la suma de estrategias de representación de identidades y de procedimientos analíticos que subrayan el impulso modernista asimilado y representado por el compositor en esta sonata, es pertinente la mención de una situación de intertex-tualidad musical en el Andantino, así como la indicación de un patrón modal en boga en la segunda década de los veintes que bien pudo servir como significador de un Otro cultural, el medievalismo musical francés de principios del siglo XX.

La estructura lineal monofónica del Andantino tiene semejanza estructural con el alba Reis glorios del troubadour occitano Giraut Bornelh (c. 1138- 1215). De las publicacio-nes de la época a las que pudo haber tenido acceso Manuel M. Ponce en París, de 1925, fecha en que llega a la Ciudad Luz a 1926, año en que concluye la sonata para guitarra y clavecín; destaca el libro de divulgación Trouvères et Troubadours (París, 1910) de Pierre Aubry9, (1874-1810) filólogo y paleólogo de la École nationale des Chatres, Aubry, además de proponer una transcripción musical en su libro de 1910, refiere la ubicación del manuscrito original en la Bibliothèque nationale de France. MS F-Pn fr. 22543, (folio 8V). La figura 29 muestra la ilustración del manuscrito.

9 Aubry (1910. p. 14).

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Figura 29

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Por su parte la figura 30 ofrece un acercamiento del manuscrito con el detalle de la notación cuadrada a cuatro líneas10 y el texto (ver texto completo en apéndice 3) en la lengua occitana antigua: langue d´oc:

Figura 30. Giraut de Bornelh, MS R, fol. 8V 22543, [Reis glorios, verais lums e clartatz] Département de la reproduction, image numérique >1.8<50 Mo / CD, Bibiothèque nationale de France (copia

digital, MS, siglo XII)

La comparación de estructuras entre el patrón melódico del Andantino y el alba Reis Glorios de Bornelh permite establecer las siguientes cinco relaciones musicales de se-mejanza. (Del alba se utiliza la trascripción de Hendrik van der Werf11). La figura 31 muestra los dos patrones lineales.

Uno, el intervalo de inicio de quinta perfecta que repite cada nota del intervalo; dos, la repetición de un primer gesto musical, el cual esta delimitado por el intervalo de quinta en el principio de la frase; tres, el movimiento ascendente y descendente por grado conjunto de un esquema con inflexión modal dórica: - - - - ; cuatro, el descenso melódico por grado conjunto en una relación de segunda mayor para cerrar gestos mu-sicales. En Reis glorios, el descenso hacia la repercusa A en la primera frase y al final del alba en el descenso a la finalis D. En el Andantino, al final de los compases 2 y 4 sobre la tónica D y cinco, una similitud mínima que se refiere al contorno melódico que en el caso

10 Roussel (1981, p. 378) explica que en la notación cuadrada “las melodías están pautadas sobre un número variable de líneas que oscilan entre tres y ocho. La notación cuadrada manifiesta una intencionalidad diastemática, o sea, de precisar la notación de los intervalos”.11 Werf (1972, p. 17).

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de Reis glorios, se divide en dos partes: un movimiento por grado conjunto que ornamenta el A con notas vecinas superior e inferior respectivamente y otro movimiento que procede por segunda mayor descendente; este gesto ocurre de manera igual en 2 ocasiones en el alba. En el Andantino, la semajanza aplica solo en la primera parte del gesto en el contorno melódico descendente y ascendente hacia el compás 3 a partir del pulso número cuatro, donde se escucha en cada pulso la progresión: B -A-G -A.

Figura 31

La finalidad de este ejercicio es proponer una posible fuente específica musical de referencia en el Andantino. Sin embargo, es mas relevante apuntar que Ponce buscaba establecer una evocación medieval a través de una sonoridad modal característica y muy probablemente una referencia a la canción secular, negociando así una identidad cultural, i. e., representando en su música un significador permeable multicultural; por una parte, la práctica modernista à la Debussy en el sentido de evocar en una perspectiva exótica un pasado distante y por otro lado, la negociación entre su impulso nacionalista representado por la canción popular mexicana y la dimensión histórica de identidades francesas tales como los repertorios seculares medievales de los troubadours y que aquí se expresa como resultado de tal negociación con el alba Reis glorios de Girout Bornelh.

Finalmente, el patrón armónico modal en boga que bien pudo fungir como signi-ficador del Otro cultural, el medievalismo musical francés de principios del siglo XX, es sin duda, la cadencia frigia, que se muestra en la figura 32.

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Figura 32

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signos da Brasilidade Modernista numa cançãode guarnieri & Mário de Andrade:

Lembranças de Losango Cáqui

Marcus Straubel WolffUniversidade Cândido Mendes – Nova Friburgo, RJ

A análise semiótica da canção “Lembranças de Losango Cáqui” composta por Camargo Guarnieri em 1928, sobre um texto do poeta e escritor modernista brasileiro Mário de Andrade, procura demonstrar como se dá a relação intersemiótica entre poesia e música, de modo a formar o todo complexo e composto que é a canção. Procura-se também revelar a relação entre os signos verbal e musical e os objetos representados, mostrando como suas interações articulam vários níveis de significação. Para isso, ferramentas da semiótica peirceana são aplicadas ao campo musical, na linha aberta pelos semioticistas de W. Dougherty (1993), Hatten (1994) e Martinez (1997), que compreenderam a canção e as obras musicais em geral como signos da cultura que fazem parte de numa rede sígnica mais ampla – composta por correntes estéticas, políticas, musicais e outras - que forma o universo cultural de um contexto histórico preciso, neste caso, o momento posterior à primeira fase do movimento modernista brasileiro, na qual se buscou uma atualização das linguagens artísticas através da incorporação dos procedimentos das vanguardas européias (Moraes, 1978, 1983).

Assim, a análise semiótica da canção “Losango Cáqui” permite que se compreenda de que modo o compositor Camargo Guarnieri interpretou as diretrizes estéticas lançadas por Mário de Andrade, seu professor no “Conservatório Dramático e Musical de São Paulo”, chegando a tensionar o projeto do segundo momento do movimento modernista, caracter-izado pela tentativa de se atingir a modernidade ditada pelos centros culturais hegemônicos através da mediação e da tematização da brasilidade, vista como a contribuição original da nação à cultura universal. A análise dessa canção torna possível um exame mais acurado de como o compositor, que participou do projeto político e estético do nacionalismo musical brasileiro, esbarrou nos limites desse projeto, revelando o conflito entre o pólo nacional e o universal dessa relação.

Buscando-se um diálogo com a musicologia e a história da cultura, espera-se demonstrar, através das ferramentas da semiótica musical peirceana, como uma obra musi-cal específica se insere numa rede mais ampla de significados – num contexto histórico e cultural preciso, sem cair em explicações reducionistas ou mecanicistas que tenderam a ver a obra como mero reflexo da estrutura econômica e social. A análise semiótica da canção, diversamente, permite que se verifiquem os elos que ligam o compositor, a obra e seu contexto, revelando-se como a obra é ao mesmo tempo gerada pelos signos do passado, mas também geradora de novos processos culturais (Dougherty, 1994).

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Análise Musical intrínseca

Essa peça, composta por M. Camargo Guarnieri, logo após o começo de seus estudos com o maestro Lamberto Baldi em 1928, utiliza uma linguagem modal, que se apresenta logo na pequena introdução pianística (ex.1, comp. 1-2).

Ex.1

Verifica-se o emprego do modo frígio pelo compositor, um modo que pode ser encontrado em melodias folclóricas de origem ibérica principalmente no sul do Brasil, mas também no interior da Bahia.

Segundo Ermelinda Azevedo Paz (1989, p. 20), os modos do folclore brasileiro correspondem, em sua estrutura escalar aos modos medievais europeus, “porém com ritmos e melodias caracteristicamente brasileiros”. Neste sentido, M. Camargo Guarnieri (doravante CG) tanto poderia ter retirado os modos empregados nessa canção do folclore brasileiro quanto, sob a influência dos impressionistas franceses, poderia tê-los resgatado dos modos medievais europeus. A análise musical intrínseca1, que na teoria semiótica da música elaborada por José Luiz Martinez (1997) trata dos signos musicais em si mesmos e lida com as qualidades musicais (timbre, melodia, ritmo, forma, etc...) e a significação musical interna, não tem como resolver essa questão, sendo necessário realizar uma investigação da referência musical, ou seja, do modo como os modos representam objetos dinâmicos (no caso os vários significados veiculados pela poesia de Mário de Andrade) para lançar uma luz sobre ela mais adiante.

De qualquer forma, vale a pena ressaltar que em artigo mais recente Ermelinda A. Paz (1999, p. 59) salienta que Mário de Andrade (doravante MA) na década de trinta “chamava

1 J. L. Martinez (1997) definiu três campos de investigação como ferramenta para tornar mais claro o estudo da semiose musical partindo da concepção peirceana da ação sígnica como processo triádico: semiose musical intrínseca, referência musical e interpretação musical. Tal divisão baseia-se na lógica da semiose que envolve a relação entre signo, objeto e interpretante e reflete também as categorias universais (primeiridade, secundidade e terceiridade). Neste sentido, a semiose musical intrínseca corresponde a um dos subcampos da semiótica (a gramática especulativa), em que se lida com a natureza intrínseca dos signos e da semiose, assim como examina-se as relações entre os sig-nos. Já a referencia musical corresponde ao campo da crítica, lidando com a relação entre os signos e seus objetos e a interpretação musical, correspondendo ao subcampo da metodêutica, lida com a relação entre os signos e seus intérpretes, focalizando o processo de semiose a partir do ângulo do intérprete e dos interpretantes gerados em sua mente.

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a atenção para a riqueza inesgotável de melodias e ritmos provenientes da região nordes-tina e que poderiam ser empregados como fonte de renovação para a música brasileira”, citando os irmãos João e José Baptista Siqueira, CG e C. Guerra-Peixe como autores que “empregaram largamente em suas obras elementos desta música”. Todavia tal afirmação, ainda que possivelmente válida para obras compostas por esses artistas nos anos trinta e quarenta não poderia explicar o uso do modalismo por CG em 1928, considerando-se que a Missão de Pesquisas idealizada por MA quando diretor do Departamento de Cultura de São Paulo chegou a Pernambuco somente em 1938, ou seja, uma década após a composição da canção “Lembranças de Losango Cáqui”. Sendo assim é mais provável que tenha descoberto o modalismo, sob a influência das modas de Paris.

Os dois modos utilizados pelo compositor (frígio e eólio) possuem o mesmo centro, em fá# (ex.2), mas diferenciam-se pelo seu 2º grau - um semitom acima da tônica no caso do modo frígio e um tom acima no caso do eólio. A estrutura dos intervalos entre os sete tons que compõem esses modos diatônicos, portanto, é diferente. Em toda a canção, o modo frígio predomina e o modo eólio faz somente duas breves aparições ao final de cada seção (comp. 13-14; comp. 34-35), quebrando a monotonia do modo frígio, tal como é recriado por CG ao longo da peça.

Ex.2Sobre a utilização de dois modos numa mesma peça, como ocorre neste caso, o compositor

José Siqueira (1981) observou que se trata de uma ocorrência freqüente, denominada dualismo modal, acrescentando que os tipos de dualismo mais comuns na música folclórica brasileira são entre os modos jônio/ lídio, jônio/ mixolídio e mixolídio/ lídio. Assim, pode-se afirmar que ao criar um dualismo incomum, misturando os modos frígio e eólio, CG foi além da tradição popular brasileira, seguindo a orientação de Mário de Andrade, contida no Ensaio sobre a Música Brasileira (publicado em 1928, ano de composição da obra): “O artista tem só que dar pros elementos já existentes (na arte nacional, popular) uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada” (Andrade, 1962, p. 16).

Sendo assim, o contato com MA e a leitura do Ensaio chamou a atenção de Guarnieri para a necessidade de fazer tal transposição, unindo elementos da música folclórica aos pro-cedimentos das vanguardas européias. Neste sentido, seu contato com a obra de Debussy, antes mesmo do começo dos estudos com Baldi, tal como afirmaram Antonio L. de Sá Pereira2

2 Antonio L. de Sá Pereira afirmou que antes de completar seus estudos, CG teria sido “arrastado por dois poderosos campos magnéticos: o italiano e o wagneriano. [...] A essas influências teria se somado, com o aparecimento de Debussy, um terceiro campo, posteriormente, o francês” (Silva, 2001, p. 23).

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e Maria Abreu3, contribuiu certamente para despertar seu interesse pelos modos. Um traço geral da música modal tradicional, resgatado nessa canção por CG, con-

siste na circularidade das melodias que encaminham o ouvinte para a “experiência de um não-tempo”, como observou J. M. Wisnik (1989, p. 71), a respeito dessa temporalidade que “não se reduz à sucessão cronológica nem à rede de causalidades que amarram o tempo social comum”. Trata-se de uma experiência de produção comunal do tempo, resgatada e recriada pelo compositor paulista, que faz a música parecer monótona ou intensamente sedutora e envolvente, dependendo de como é escutada4.

Cumpre demonstrar de que forma CG produz essa circularidade temporal das músicas modais em sua pequena peça para canto e piano. Na verdade, esse efeito circular é obtido através da subordinação das notas da escala a um som fundamental (a tônica em fá#), repetido no baixo (executado pela mão esquerda do pianista) que cai no tempo forte de cada compasso, seguido por um semitom ascendente e pelo retorno à tônica, gerando assim uma ondulação hipnótica nos ouvintes. Sobre este centro tonal as outras linhas melódicas (do piano e do canto) criam um jogo polirrítmico e polifônico que lembra as experiências de Debussy quando começara a se libertar do tonalismo através dos modos medievais.

Na música modal tradicional, como observa Wisnik (1989), as linhas melódicas são geralmente manifestações da escala que colocam em cena as possibilidades dinâmicas do modo, mais do que motivos acabados. Sobre as notas da escala, geralmente os intérpretes têm a liberdade de improvisar, tal como ocorre na música clássica indiana ou mesmo em certos estilos do folclore brasileiro. Mas na peça de CG, a seqüência de graus conjuntos descendentes (dó#-si-lá-sol) que aparece na linha melódica do piano (ex.1), antes de ser ampliada e variada ritmicamente na primeira frase do canto (ex.3), pode ser compreen-dida como um motivo. Ele reaparece na segunda frase do canto (ex.4), variado através de mudança de direção, tornando-se uma seqüência ascendente de graus conjuntos (dó#-ré-mi-fá#), antes de cadenciar no 5º grau.

Ex.3

3 Segundo Maria Abreu, CG conheceu a obra de Debussy nas gavetas de partituras da Casa Di Franco, onde trabalhou como pianista (Silva, 2001, p. 36).4 Wisnik (1989, p. 71) salientou que “a circularidade em torno de um eixo harmônico fixo é um traço próprio do mundo modal”, que o diferencia do mundo da música tonal. Neste sentido, perceber tal circularidade seria “a pedra de toque que introduz a uma outra experiência do tempo musical”.

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Ex.4Tal como na música modal tradicional, na canção de CG as notas da escala também

circulam em torno de uma nota fundamental (fá#), que serve de ponto de referência para os outros sons. Mas, como se trata de uma paráfrase da música tradicional, isto é, de um processo de recriação de uma linguagem tradicional e não de uma citação de um trecho de música modal, o compositor tem a possibilidade de individualizar sua criação, o que se realiza através da construção de motivos que revelam a intervenção de sua subjetividade, algo muito valorizado na estética ocidental ao menos desde o romantismo.

Outra intervenção da subjetividade do compositor consiste na inesperada aparição do modo eólio no final da primeira seção (ex.5, comp. 13-14), antes da conclusão (ex.5, comp.15), na qual o modo frígio é restaurado. Como será visto adiante, essa intervenção decorre da interpretação que o compositor faz do texto e de sua necessidade de expressar seu espanto diante da semelhança entre a brancura da moça e a da neve.

Ex.5A segunda seção (A’), é uma variação da primeira, já que mantém os mesmos

elementos rítmicos, melódicos e harmônicos. As pequenas variações introduzidas na voz superior do piano (as apojaturas) não chegam a afetar a estrutura harmônica modal, idêntica a da seção inicial (A) na qual o fá# funciona como som fundamental.

A linha melódica do canto (ex.6) sofre maiores alterações do que a parte pianística (ex.7) na segunda seção, mas pode-se verificar que o motivo de graus conjuntos descen-dentes é mantido no piano e no canto, a despeito das variações que sofre, o que garante a unidade da obra.

Ex.6

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Ex.7

Na terceira frase do canto (ex.8), quando o cantor declara não gostar da neve, há um crescendo de dinâmica e a melodia atinge a tônica aguda através de um salto de quarta ascendente.

Ex.8

A última frase do canto (ex.9), que inicia no ponto mais agudo da melodia do canto, onde há uma indicação de maior intensidade de dinâmica (forte), consiste no clímax da canção. Mesmo aí a estrutura realizada pelo piano no modo frígio é mantida, notando-se a sutil introdução de acordes de sétimas e diminutos (A7 - F#4(7) - Em7 - C#°), tencionando a harmonia, justamente quando o poeta declara algo bastante inesperado.

Ex.9

Uma nova aparição do modo eólio (ex. 10), rompendo com a monotonia do frígio (que,como será visto adiante, representa musicalmente a paisagem indicada no poema) ocorre antes da conclusão da peça. Não se trata, todavia, de uma modulação propriamente dita, já que a tônica continua fixa em fá#, em sua unidade indivisa, soando através do tempo como eixo harmônico contínuo. A peça conclui com um retorno ao modo frígio (comp. 36) e ouvem-se os últimos acordes, formados por quintas (sem as terças que caracterizam os

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acordes tonais), soarem em dinâmicas contrastantes (forte e pianíssimo), que concluem a peça com o tilintar brilhante da apojatura (sobre o 2º grau do modo) na região aguda do piano, reafirmando o “território modal” frígio, para usar uma expressão de Wisnik.

Antes de concluir a análise musical, cumpre observar que embora a diferença entre os modos frígio e eólio seja aparentemente pequena, já que apenas o 2º grau distingue suas escalas (quando ambas tem a mesma tônica), a passagem de um modo para o outro significa a transformação de um ethos ao qual cada modo estava ligado no contexto das culturas tradicionais.

No campo da análise musical intrínseca cumpre investigar qual a significação musi-cal interna desses modos, lembrando que, como observou J. M. Wisnik, não são apenas as escalas e suas estruturas intervalares que distinguem os modos. Uma das características dos territórios modais consiste na “identificação da escala com uma determinada proprie-dade semântica, dinâmica, que se pode dizer também dinamogênica (corresponde a um movimento ou a um estado de corpo e de espírito)” (Wisnik, 1989, p. 68). Nas sociedades pré-modernas esses ethos foram codificados, fazendo parte de uma rede de signos mais ampla que estabelece correspondências, relacionando os modos aos deuses, às estações do ano, cores, astros - tal como ocorre na música clássica indiana e também na da Grécia Antiga. Em termos semióticos pode-se dizer que os modos nas culturas tradicionais são legisignos5 já que funcionam a partir de hábitos e convenções que os associam a uma rede ampla de significados.

Ex.10 Ao transportar os modos para o contexto da modernidade secularizada, os composi-

tores que buscavam uma saída para a crise do sistema tonal, especialmente os franceses Ravel e Debussy, descontextualizaram os modos e retiraram deles suas propriedades semân-ticas tradicionais. Mas para Mário de Andrade, professor do curso de estética musical e orientador intelectual de Guarnieri, a arte musical vai além do seu aspecto psicofísico para se tornar objeto de compreensão e de conhecimento, mas de um conhecimento específico que não pode ser traduzido pela linguagem verbal.

Para MA, “o Belo musical artístico é compreensível porque é uma expressão, um símbolo abstrato tal qual a palavra e como tal chega a ser objeto não só de conhecimento como o Belo musical natural porém de compreensão” (1995, p. 43). Sendo assim, discutindo com os psicólogos da música (sobretudo Bourgès e Denéréaz), MA defende a tese de que

5 Termo da teoria peirceana usado para designar os signos convencionais, o que Peirce chamou de um “tipo geral sobre o qual há uma concordância de que seja significante” (Peirce apud Nöth, 1995, p. 77).

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a música, sendo a arte dos sons, é expressão e conhecimento compreensivo, observando que “uma frase musical não é apenas objeto de conhecimento como também objeto de compreensão” (1995, p. 41).

Como será abordado logo adiante, CG, seguindo o pensamento de seu mentor intelectual e os procedimentos dos compositores impressionistas franceses, utilizou os modos atribuindo-lhes novos significados, que entram em paralelo com os sentidos da poesia de MA.

Análise do signo Verbal

“Meu Deus como ela era branca!...Como era parecida com a neve...Porém não sei como é a neve,Eu nunca vi a neveEu não gosto da neve!Eu não gostava dela...”* Mário de Andrade. “Lembranças do Losango Cáqui”. São Paulo: Chiarato, 1928.

O poeta-narrador nos dois versos iniciais compara sua musa à neve. Numa aborda-gem semiótica, essa musa poderia ser considerada um qualisigno6, ou seja, um signo que possui uma qualidade, a brancura. Mas esse signo, do ponto de vista do narrador que o interpreta, não é uma possibilidade qualitativa (rema), representando um objeto possível. Trata-se, antes, de um signo de “existência real”, ou melhor dizendo, de um signo que transmite, nesse caso, uma informação veiculada pelo narrador.

Deve-se notar que a voz desse narrador é, todavia, reticente e que sendo assim, a informação que veicula parece estar envolta na perplexidade do narrador diante da brancura de sua musa. É importante ressaltar que as reticências são indícios, na poética expressionista que MA absorveu ao longo dos anos vinte, da sensibilidade exacerbada e do complexo mundo interno de personagens muitas vezes divididos e contraditórios que se debatem internamente.

Tal como o narrador de Amar, verbo Intransitivo, romance escrito entre 1923 e 1926, o eu do poeta de “Losango Cáqui” segue a linha machadiana de perplexidade, es-pantando-se com a mulher cuja qualidade, a brancura, desconhece. No romance citado, o narrador tenta entender “uma figura singular de mulher, dela se distanciando, ou com ela se solidarizando, admitindo, todavia, que Fräulein lhe escapa [...] e faz com que se ques-tione”, como observa Telê Porto Ancona Lopes em seu prefácio à obra de MA, Amar Verbo Intransitivo (Andrade, 2002, p. 10).

Aqui no poema musicado por CG só há o estranhamento e a perplexidade. À medida que o poeta se dá conta de que não conhece a neve e que não gosta dela, desmorona-se a possibilidade da paisagem monocromática sugerida vir a ser um idílio de amor. Aos poucos

6 Analisando o signo do ponto de vista do representamen (ou seja, do que o receptor percebe do signo), Peirce observa que o qualisigno “é uma qualidade que é um signo” (Peirce apud Noth, 1995, p. 76) e tão logo passe a pertencer à classe da secundidade, sendo posto em relação a um objeto, torna-se um signo individual, uma qualidade que representa algo singular.

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são reveladas as diferenças entre o poeta-narrador e sua musa inspiradora. Caberia então perguntar quem seria essa Musa na trajetória do escritor.

Talvez um dado biográfico possa esclarecer não apenas quem foi objetivamente essa musa na via de MA, como também o significado do signo (“ela”) no poema. Em 1922, o escritor paulista escrevia os poemas que vieram a ser publicados em 1926 sob o título Losango Cáqui ou afetos militares com os porquês de eu saber alemão. Conforme revela Telê Porto A. Lopez, foram dedicados à amiga Anita Malfatti, “confessando-lhe terem os poemas nascido de sua paixão por uma ‘diabinha de alemã’” (apud Andrade 2002, p. 34). Essa pesquisadora acrescenta informações sobre os estudos de alemão que MA começou no mesmo ano da Semana de Arte Moderna com a profa. Käthe Blosen e levanta a hipótese dele ter transplantado para Amar, Verbo Intransitivo algumas características dessa profes-sora., como a apreciação da obra poética de Schiller.

Outro ponto que vale a pena comentar é que através de Else Scholer e de K. Blosen, suas primeiras professoras de alemão, MA se abriu à cultura germânica, deixando-se fascinar por sua literatura, artes plásticas, teatro, dança e música – fazendo assim um contraponto à forte influência francesa na cultura brasileira àquela época. Sabe-se, através de depoimento de Lotte Sievers (amiga da segunda professora), que em 1924 já era capaz de traduzir per-feitamente textos de canções alemãs, sem perder o sopro poético dos originais.

Após essa digressão, é possível retornar aos signos utilizados no poema musicado por CG, onde o narrador-poeta rememora alguém que ficou no passado, em sua memória (“era branca, era parecida com a neve...”), registrada por sua cor, cuja qualidade parece indicar um modo de ser europeu (ou talvez alemão), distinto do modo de ser tropical do poeta.

É interessante acrescentar que em Amar, Verbo Intransitivo, a personagem central, que representa o caráter do povo alemão (Fräulein), é construída a partir da necessidade do autor de definir as identidades nacionais. Como observou Telê Porto, “a oposição que estru-tura a psique do alemão [...] vem a propósito da grande preocupação nacionalista de Mário de Andrade – definir nosso caráter, ou, como escreveu em 1926 no primeiro Prefácio de Macunaíma, descobrir, o mais que pudesse, a ‘entidade nacional dos brasileiros’”(Andrade, 2002, p. 14).

Neste sentido, percebe-se que tanto nesse romance, terminado em 1926, quanto no poema musicado por CG (possivelmente de 1928), as identidades nacionais são construídas por comparação e contraste. No romance, o escritor vê traços positivos e negativos dos dois lados, criticando o alemão por sua tendência de “amordaçar o sublime e o brasileiro porque não possui consciência, conhecimento do seu modo de ser”, conforme revela Telê Porto (idem, ibidem). Já no poema, o escritor utiliza a neve para indicar o Outro, ou melhor, a Outra, a mulher “Civilizada”, que acaba sendo renegada pelo poeta, voz da consciência nacionalista do escritor.

A neve pode ser considerada, de acordo com a teoria sígnica de Peirce, um sinsigno icônico remático, na medida em que pode evocar no leitor (como possibilidade interpreta-tiva) a idéia do objeto representado, a cultura germânica. Mas, se a neve for compreendida pelo receptor como objeto particular e real não poderá ser considerada um qualisigno, ou seja, como uma possibilidade qualitativa. Torna-se um sinsigno já que, num processo de semiose representa iconicamente, isto é, através de suas qualidades e por semelhança com o objeto representado, a dita “Civilização” para os leitores brasileiros desse poema.

Sabendo-se que MA, ao longo dos anos vinte moveu-se em direção a um afastamento do eurocentrismo que caracterizava a primeira fase do modernismo brasileiro, peneirando os

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procedimentos vanguardistas que considerava compatíveis com a identidade nacional, pode-se considerar o desfecho do poema como um grito de independência da cultura nacional, ao mesmo tempo que numa outra leitura, pode-se perceber uma ruptura com expectativas oriundas da tradição poética romântica. Nas duas leituras, os versos finais soam como um grito expressionista, sem polimentos nem artificialismos, dando vazão ao “eu-profundo” de um poeta que descobre a distância que o separa da chamada “Civilização”.

Análise da intersemiose entre poesia e músicaNesta parte da análise procura-se demonstrar como a canção, considerada como

um signo composto, articula a relação entre os signos poético e musical ao longo da obra. Para isso, é preciso revelar os diferentes modos de articulação desses signos e as tensões no interior da obra, podendo-se também apontar suas relações com outros signos – dife-rentes tradições, identidades, correntes estéticas, etc. Neste caso atinge-se um nível mais amplo, em que se dá uma relação com outros níveis de significação e com outros signos que formam o universo cultural de um contexto histórico preciso.

Inicialmente, pode-se afirmar que Lembranças do Losango Cáqui é uma peça monocromática, se Guarnieri não tivesse introduzido o modo eólio nas duas passagens já vistas ao final de cada seção da peça. Esse efeito monocromático advém da circularidade em torno do eixo harmônico na parte pianística, bem como da repetição da estrutura rítmica das vozes superiores do piano. Também a parte do canto reforça essa circularidade, na medida em que mantém (em toda a primeira seção e no começo da segunda) uma mesma estrutura baseada num único motivo de graus conjuntos descendentes. Colocando-se os signos verbal e musical em confronto, pode-se observar que a paisagem sonora que resulta da superposição desses signos musicais procura representar iconicamente a brancura da neve que caracteriza o lugar de origem da musa do poeta. O signo musical, pensado como um todo, possui assim qualidades que permitem aproximá-lo, por similitude, das qualidades do signo verbal.

Todavia, para que o signo musical possa funcionar num processo de semiose é pre-ciso que o ouvinte perceba que as qualidades dele (a repetição, a circularidade, a presença constante da tônica, os motivos melódicos) e elas entrem em paralelo com as do signo verbal (a brancura da musa e da neve). Neste caso, o signo musical pode ser visto como icônico, já que representa seu objeto (verbal) pela semelhança. Pode ainda ser classificado como uma metáfora (no sentido peirceano7), possuindo um forte aspecto de terceiridade, ou seja, é um tipo de signo icônico que depende do interpretante gerado na mente do ouvinte para que possa significar. A chave para a compreensão dessa metáfora consiste na percepção do aspecto monocromático comum à brancura de uma paisagem de neve e à paisagem sonora criada por CG a partir do modo frígio.

Outro aspecto dos versos iniciais do poema, que Guarnieri apreende e procura ressaltar através da música, é a surpresa do poeta ao constatar a brancura de sua musa. Após essa constatação veiculada pelo texto, um signo musical procura expressar a súbita “iluminação” do poeta por meio da súbita aparição do modo eólio com seu brilho específico (devido a alteração do 2º grau, que agora passa a ser sol#).

7 Segundo Peirce, a metáfora “representa o caráter representativo de um representamen (parte percebida do signo) pelo estabelecimento de um paralelismo com outra coisa”(Peirce apud Martinez 1997. p. 112- 113).

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É interessante notar que essa “comoção” (para usar o termo que MA retirou das teorias psicológicas, especialmente a de William James) do poeta é fruto do lirismo do escritor, tal como a ruptura com o modo frígio decorre da intervenção da subjetividade do compositor. Assim, pode-se deduzir que a introdução do modo eólio pelo compositor, quebrando o tom monocromático da paisagem sonora, expressa o assombro do poeta ao constatar a brancura de sua musa. Esse é o significado que o modo eólio, em sua primeira aparição adquire no contexto da canção. Trata-se, desse modo, de um signo que causa uma surpresa ao introduzir um elemento estrutural diferente na ordem modal. O mais interes-sante é que este signo ressalta algo não dito explicitamente no poema – o fato do poeta admirar-se, surpreender-se com a brancura de sua musa – mas enfatizado pelo compositor em sua leitura do texto. É neste sentido que se pode falar, como fez o semioticista William Dougherty (1994), numa manipulação do signo verbal pelos compositores.

A partir do terceiro verso, o poeta começa a revelar fatos inesperados que destroem qualquer possibilidade de um desenlace romântico do poema. Inicialmente ele afirma não saber como é a neve, nem nunca tê-la visto. No entanto, a paisagem monocromática continua presente no signo musical, especialmente na parte o piano, na qual se verifica a repetição da tônica e a presença do modo frígio. Em termos harmônicos, há uma sutil intensificação das tensões com o aumento das dissonâncias, como foi visto anteriormente. Essa harmonia, mesmo contida dentro da ordem modal, acaba se tornando cada vez mais tensa até que o ponto em que o poeta declara não gostar da neve. A palavra neve, até então representada por duas notas na mesma freqüência, é representada pela primeira vez como um salto do 5º grau da escala para a oitava aguda. Diversos signos musicais são utilizados concomitantemente para expressar o “grito” do poeta, sua expressão autêntica de aversão à moça e à neve. A melodia do canto atinge, então, seu clímax (comp. 30, ex. 9) quando o poeta constata que não gostava da moça branca.

O último verso contraria as expectativas oriundas da estética romântica, o que pode ser visto como uma característica da poética modernista de MA que desde a juventude se contrapunha ao sentimentalismo e ao virtuosismo dessa corrente na literatura. É bom lembrar que o poeta MA não desejava nos textos de sua juventude extinguir a sensibilidade e o lirismo da arte moderna, mas procurava a expressão de uma sensibilidade moderna, evitando o sentimentalismo romântico.

O rompimento que se verifica a nível poético não é, todavia, acompanhado pelo signo musical, uma vez que o acompanhamento pianístico mantém, em sua estrutura básica, a paisagem monocromática configurada pelo modo frígio, ao passo que a última frase do cantor, com indicações de tenuto para cada nota na região mais aguda da voz, cadenciando na oitava superior, parece representar o “grito” do poeta. Somente na coda final é que a comoção do poeta parece atingir o piano e quebrar a estrutura monocromática do modo frígio, através de uma nova aparição do modo eólio, ao qual se associam indicações de dinâmica (crescendo) até que o 1º e o 5º graus justapostos encerrem a obra numa textura polifônica que relembra certos procedimentos de Debussy e Ravel.

A possibilidade de não paralelismo entre os significados verbal e musical é explorada por Guarnieri nesse interessante afastamento entre o piano e o canto. O que o signo musical indica neste caso? Possivelmente representa a presença da musa branca, a qual se refere o poeta, já que, conforme visto, o mesmo signo musical representava a brancura da moça na primeira parte da canção. Ao final da peça, a última irrupção do modo eólio expressa novamente uma emoção que vem a reboque, após o cantor declarar seu repúdio pela moça

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e pela neve, tal como na teoria dos sentimentos reflexos de W. James, Ribot que CG pode ter conhecido através de MA, segundo a qual nos sentimos mal porque choramos. Assim, se para W. James e Théodule A. Ribot (autores com os quais MA discute em seu curso de Estética8), a emoção pode ser induzida pela manipulação anterior de um movimento cor-poral que a antecede, do mesmo modo para Guarnieri o “grito” do poeta vem a posteriori, como algo que resulta do que foi dito anteriormente. Portanto somente ao final da peça, através da irrupção final do modo eólio, o signo musical expressará a emoção contida de um sujeito moderno e tropical, que declara ter descoberto que não gosta da musa branca e de tudo o que ela representa como signo da cultura européia.

Considerando-se a virada do movimento modernista ocorrida por volta de 1924, quando o imediatismo da fase inicial foi suplantado pelo desejo de mediatizar a incorpora-ção dos procedimentos das vanguardas européias através da tematização da brasilidade, (Moraes 1978; Wolff 1991), essa canção pode ser vista como um signo dentro de uma rede mais ampla de signos culturais, articulando-se com o contexto da virada modernista e ten-sionando o projeto dessa segunda fase do movimento, já que parece levar o nacionalismo a um rompimento com a ordem universal ditada pela “Civilização”.

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8 MA em torno de 1925 havia escrito em sua Introdução à Estética Musical, publicada postumamen-te, que “os psicólogos enrabichados pela teoria dos sentimentos reflexos da escola de James, Sergi, Ribot, consideram a música como simples provocadora de comoções sensoriais, puro fenomeno fisiológico sem nenhuma inteligibilidade consciente” (1995, p. 45). Embora MA preferisse a posição de Combarieu, de que a música “é a arte de pensar sem conceitos por meio de sons” (1995, p. 45), é possível que tenha transmitido tais idéias a seu aluno Guarnieri, que frequentou suas aulas de estética no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

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INSTITUIÇÕES

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os seminários de Música da pró-Arte de são paulo

Lenita W. M. NogueiraUniversidade Estadual de Campinas

Lilia de Oliveira RosaUniversidade Estadual de Campinas

Apesar de vasta literatura sobre a história da educação musical no Brasil, a década de 1950, especificamente o resgate da Escola Livre de Música da Pró-Arte de São Paulo, criada em 1952 pelo empresário Theodoro Heuberger e compositor Hans-Joachim Koellreutter, ainda não recebeu a devida atenção pela importância de suas proposições musicais e pedagógicas inovadoras no meio musical. Esta instituição foi responsável pela formação de inúmeros músicos que formaram a nata da música brasileira com reflexos até os dias de hoje.

O presente estudo tem como objetivo investigar a Escola, o currículo, os cursos e eventos ali desenvolvidos, as ideias de Heuberger e Koellreutter, bem como os mais significativos alunos ou discípulos, enfim, a instituição e a contribuição de Koellreutter no período 1952-1958.

A metodologia de pesquisa emprega a análise de textos (livros, dicionários e trabal-hos acadêmicos), artigos publicados e inéditos, principalmente de ex-alunos como Samuel Kerr, Júlio Medaglia, Luiz Carlos Lessa Vinholes, Carlos Kater e outros, relatos, entrevistas e documentos oficiais ou pessoais (cartas, registros etc.).

Heuberger e a pró-Arte Para se falar dos Seminários de Música da Pró-Arte de São Paulo, fundada em

1952 com o nome de Escola Livre de Música da Pró-Arte, é preciso voltar ao ano de 1924, época que marca a chegada ao Brasil do alemão Theodor Heuberger, nascido em Munique em 1898. Com uma atuação respeitada na Alemanha e ligado às tendências mais contem-porâneas das artes e aos ideais da Bauhaus, Heuberger veio ao país a convite do pintor e cônsul geral do Brasil em Munique, Navarro da Costa, para organizar a 1ª Exposição de Arte e Artesanato Alemães no Rio de Janeiro, inaugurada naquele mesmo ano de 1924. O sucesso foi grande e a mostra foi apresentada também em São Paulo, Santos e Campinas.

Em 1928 fundou no Rio de Janeiro uma galeria de arte que levava seu nome e ali foram expostas obras de artistas contemporâneos ainda desconhecidos no Brasil como Barlach, Klee, Feininger, Kokoschka, entre outros. Desta galeria surgiu também a empresa “Casa e Jardim” que fabricava móveis e artefatos, bem como promovia a difusão do arte-sanato alemão e obras de artistas brasileiros.

A presença de Heuberger em um Rio de Janeiro ainda bastante conservador, em especial no que se refere às artes plásticas, caracterizadas por uma produção ligada ao ideal acadêmico na linha da Escola Nacional de Belas Artes, trouxe uma movimentação de grande valia para o desenvolvimento das artes no Brasil. Ao visitar a XXXI Exposição Geral de Belas Artes, que ocorreu em 1924 no prédio da Escola Nacional de Belas Artes no

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centro do Rio de Janeiro, ficou chocado com a maneira como os quadros foram expostos e comentou sobre isso em entrevista bastante posterior. Além do registro de sua decepção perante a organização da mostra, revelou à pesquisadora Maria Cristina Burlamaqui como contrariou esta postura ao montar a Deutsche Werkbund-Bauhaus (1929) e a Exposição Alemã em homenagem ao Brasil em 1931 (Valle, 2011):

Eu quase desmaiei quando vi a exposição do Salão de 1924, na Escola de Belas Artes, com quadros em quatro filas... por isso eu organizei uma exposição em uma linha só! Foi uma beleza! Eles disseram: ‘Que coisa, a gente pode respirar, a gente pode ver um quadro diferente do outro, em vez de um quadro matar o outro!’1

Seguem abaixo registros fotográficos da exposição onde Heuberger apresenta sua concepção do que deveria ser uma exposição de arte:

Figura 1. Exposição Alemã em homenagem ao Brasil montada por Theodor Heuberger. Escola Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1931.

Em artigo recente dedicado a essa mesma Exposição Alemã, o pesquisador Marcelo S. Masset Lacombe assim a ela se referiu:

Heuberger, de acordo com as fotografias que fazem parte do álbum de 31, realizou uma curadoria inovadora para os padrões habituais do Rio de Janeiro; os quadros foram expostos alinhados sobre o lambri das paredes do salão, de forma a estarem na altura da vista dos expectadores e não dispostos uns sobre os outros até o pé direito da parede como parece ter sido comum na década de 20. Com isso Heuberger conseguia pôr o espectador numa situação de contemplação íntima de cada obra, acentuando em cada uma delas a sua individualidade (Valle, 2011).

Foi com essa visão inovadora da arte que Heuberger atuou também no campo da música ao fundar em 1931, ao lado da pianista Maria Amélia Rezende Martins2, a Pró-Arte

1 In: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/egba_instalacao.htm>. Acesso em: 03 set. 2011. 2 Trata-se da neta do Barão Geraldo de Rezende, antigo proprietário da Fazenda Santa Genebra em Cam-

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Sociedade de Artes, Letras e Ciências na cidade do Rio de Janeiro. Nos salões desta instituição realizaram-se exposições, conferências e concertos, em geral conectados à arte contem-porânea. Heuberger e Maria Amélia extrapolaram os limites do Rio de Janeiro e percorreram diversas cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, levando mostras de pintura, exposições de artesanato e concertos de música.

Em 1950 Heuberger criou na cidade de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, o I Curso Internacional de Férias, pioneiro deste tipo de encontro no Brasil. Chamou para assumir o cargo de diretor artístico o compositor, flautista e professor alemão radicado no Brasil, Hans Joachin Koellreutter (Freiburg, 1915-São Paulo, 2005), que já havia se apresentado diversas vezes como flautista na Pró-Arte. O curso teve continuidade e entre seus diretores artísticos podemos destacar músicos como Roberto Schnorrenberg, Heitor Alimonda, Homero Magalhães, Gilberto Tinetti, Alberto Jaffé, Roberto Ricardo Duarte e Carlos Alberto Figueiredo. Entre seus professores destacam-se Villa-Lobos, E. Krenek, Karl Ulrich Schnavel, Gerard Huesch, Carl Seeman, Tomas Teran, Noemie Perugia, Oscar Niemeyer, Mario Pedrosa, Manuel Bandeira, Guilherme Figueiredo. E dele, saíram alunos que depois se projetaram no cenário musical, tais como Isaac Karabtchevsky, Edino Krieger, David Machado, Cláudio Santoro, Saloméa Gandelman, Mauro Moreira, João Carlos Martins, Berenice Menegale, entre tantos outros.

O curso serviu assim de modelo para os festivais de Ouro Preto, de Porto Alegre, Curitiba, Campos do Jordão e outros. Durante o XV Curso, Teresópolis foi declarada a “Cidade dos Festivais” e o prefeito, Paulo Torres, doou uma área para a fundação da Escola de Arte e Artesanato, que depois se tornou Centro Cultural e posteriormente sede dos Cursos de Férias de Teresópolis3.

Após a terceira edição do festival, Heuberger resolveu expandir a Pró-Arte e, então, funda em 1952 a Escola Livre de Música da Pró-Arte em São Paulo que, mais tarde, em 1956, passaria a ser chamada Seminários de Música da Pró-Arte. Nesta época, Koellreut-ter morava em São Paulo e, segundo o maestro Júlio Medaglia (2002), muito contribuiu para isso a insistência da nova geração de músicos paulistas, que, ávida por conhecer as novas tendências da música contemporânea, começou a solicitar constantemente a sua presença. Para dar início às aulas e palestras do compositor alemão, a família Gregori cedeu uma sala com piano em sua residência na capital paulista. Ali foi se agrupando um bom número de artistas e músicos como Damiano Cozzella, Olivier Toni, Jorge Wilheim, Henrique Gregori, Nininha Gregori, Roberto Schnorrenberg, Eunice Catunda e outros, além de músicos populares.

A esta altura, Heuberger também morava em São Paulo e, vendo o interesse que as aulas de Koellretter despertavam nos jovens músicos paulistas, propôs a ele a criação de uma escola de música, da qual seria diretor. A partir daí, “Koell” ou “K”, como era chamado carinhosamente por seus alunos e colaboradores, começou a formar um grupo de professores de instrumento e de matérias teóricas, escolhidos a dedo os seus entres os mais destacados da época. Corria o ano de 1952 e a Escola Livre de Música estabeleceu-se na Rua Sergipe, 271.

pinas, onde hoje está localizado o campus da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.3 Conforme consta no site da Pró-Música do Rio de Janeiro em: <http://www.proarte.org.br/Home.htm>.

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Figura 2. Seminários de Música da Pró-Arte em São Paulo – Rua Sergipe, 271 Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Segundo o compositor L. C. Vinholes4, secretário da Escola e também do professor Koellreutter, rapidamente a sede da nova escola transformou-se no

mais fervilhante, criativo, informativo e moderno centro musical do país. As pes-soas não “passavam” por lá para ter aulas e sim, ao terem os primeiros contatos, enfeitiçadas com o astral do ambiente, consideravam-na, praticamente, sua segunda casa. Além da elevadíssima qualidade técnica do ensino, Koellreutter cuidava da “cabeça” das pessoas, fazendo-as mergulhar em outros repertórios musicais e culturais. Os alunos assistiam a palestras e dialogavam com filósofos, cineastas, coreógrafos, atores e diretores de teatro, jazzistas, artistas plásticos, poetas concretistas e compositores da vanguarda – entre eles Pierre Boulez. Todos estudavam uma matéria principal, mas participavam de dezenas de outras atividades, cantando no coro de alunos, formando grupos de câmara, integrando espetáculos não musicais, “happenings”, frequentavam coletivamente mostras e exibições culturais, espalhavam música pela cidade nos mais diversos espaços e assim por diante. (Vinholes, 2004)

Koellreutter implantou uma política educacional que diferia das demais escolas e conservatórios brasileiros. O fato de esta escola ter sido fundada em São Paulo e não no Rio de Janeiro, como seria mais lógico, deve ser creditado ao ambiente artístico mais tradicional que ainda predominava na então capital federal. São Paulo era uma cidade formada por classes bastante heterogêneas, a expansão de seu parque industrial era notável e estava atenta aos ideais artísticos da modernidade desde a Semana de Arte Moderna de 1922.

Koellreutter Hans-Joachim Koellreutter nasceu em 2 de setembro de 1915, em Freiburg, na

Alemanha. Estudou na Staatliche Akademische Hochschule für Musik de Berlim e no Con-servatoire de Musique de Genebra, formando-se em flauta, piano, musicologia, composição e regências coral e orquestral (Kerr, 2002). Dentre seus professores, Kurt Thomas, Paul Hin-

4 A quem agradecemos o fornecimento de grande parte do material para este artigo.

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demith e Hermann Scherchen foram fundamentais para a formação do jovem Koellreutter. De acordo com Kater (2001), Scherchen influenciou profundamente a sua personalidade e as realizações futuras no Brasil como, por exemplo, divulgar a música nova de todos os tempos e a produção musical de autores de sua época, além de promover a música de maneira pedagógica.

Em 16 de novembro de 1937, a bordo do navio Augustus, Koellreutter chegou ao Rio de Janeiro, onde passou a residir e a desenvolver suas atividades musicais. No ano seguinte, é apresentado a Theodor Heuberger que o convida para realizar vários recitais de flauta, promovidos pela Sociedade Pró Arte, cuja estreia no país se deu no Conservatório Mineiro de Música de Belo Horizonte (atual Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais). Atuou também como flautista na Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro e, em seguida, dedicou-se às atividades pedagógicas.

Fig. 3. Hans-Joachin Koellreutter

Com a colaboração de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Koellreutter estreitou con-tato “com o núcleo de músicos e intelectuais frequentadores da loja de música Pingüim” (KATER, 2001, p.48) e, a partir daí, fundou o grupo Música Viva, movimento pioneiro de renovação musical, que lutou pela produção musical contemporânea ou pela revelação do “novo” como princípio estético.

O movimento foi efervescente e durou até 1952, destacando-se inúmeras ativi-dades como audições, concertos, boletins, aulas de composição, palestras, conferências, publicação de obras, criação de revista, programas radiofônicos, eventos artísticos, criação da “sociedade”, promoção da educação musical moderna e elaboração de Manifestos que provocaram discussões estéticas e ideológicas calorosas.

Na década de 1940, Koellreutter lecionou composição para jovens alunos, dentre os quais Santoro e Guerra-Peixe, aplicando em suas aulas particulares a técnica dodecafônica. A partir daí desenvolveu grande dinâmica de atividades, principalmente como compositor e educador, sistematizando Cursos Independentes de Composição Musical, nas cidades de

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São Paulo e Rio de Janeiro, uma forma de atuação pedagógica autônoma que se intensificou até os últimos dias de sua vida.

Com o apoio do empresário e amigo Theodoro Heuberger e a colaboração da cantora austríaca Hilde Sinnek, Koellreutter fundou em 1950 os Cursos Internacionais de Férias Pró-Arte, em Teresópolis, Rio de Janeiro. Em 1952, fundou a Escola Livre de Música de São Paulo e, em 1954, os Seminários Internacionais de Música da Universidade da Bahia (1954-1962), que originou mais tarde a Escola de Música da referida Universidade. Minis-trou aulas nos cursos de pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, da Universidade de Minas Gerais (BH) e da Universidade Estadual do Ceará. Ainda, paralelamente, desenvolveu atividades na FAP-ARTE de São Paulo, Piracicaba, Curitiba e Ouro Preto, nas décadas de 1970-1980 (Rosa, 2011).

As propostas pedagógicas de Koellreutter sempre se mostraram bastante originais e, especificamente no projeto de criação do SMUB – Setor de Música da Universidade da Bahia (1954) –, os programas das disciplinas e cursos, bem como as atividades culturais apresentam-se de maneira integradora, desenvolvendo o indivíduo em todo o seu potencial criativo e humano (Kater, 2001).

Propôs a criação de um instituto modelo para o norte brasileiro, consagrado ao ensino da arte musical, que consistia num conjunto de cursos livres de todas as matérias musicais e correlatas, além de uma Seção de Dança. Dentre as matérias obrigatórias, ele listou as seguintes: pedagogia, interpretação, metodologia e prática de ensino. Ainda, sugeriu um Departamento de Difusão Cultural, no intuito de proporcionar aos alunos o conhecimento das obras representativas da literatura de todos os tempos, além de um espaço que compreenderia uma Orquestra Universitária e os corais do SMUB.

Este documento mostra que Koellreutter procurava proporcionar ao estudante de música um ensino musical completo, além de cursos complementares e de extensão muito similares ao que já vinha ocorrendo nas cidades de São Paulo e Teresópolis.

Em 1952, na cidade de São Paulo, como veremos adiante, Koellreutter fundou e diri-giu uma das mais importantes escolas de música do país, além de ter atuado intensamente como professor de diversas disciplinas, divulgador da produção musical contemporânea e promotor de encontros com artistas, filósofos e músicos nacionais e estrangeiros.

A partir de 1956, passou a se chamar Seminários de Música da Pró-Arte, cujas metas visavam tanto o preparo de bons profissionais, quanto à formação de um público capacitado a apreciar e a julgar os diversos tipos de música.

No âmbito da composição, Koellreutter foi bastante criativo e instigador, estreando sua primeira obra de forma aberta, Sistática, para flauta solo, em 1955, cujos princípios técnicos e estéticos ali apresentados contribuíram para o desenvolvimento de uma técnica própria, de caráter vanguardista, que a denominou Planimetria.

Nas décadas de 1960-70, Koellreutter desenvolveu intensa atividade pedagógica fora do Brasil como Alemanha (Berlim, Munique), Índia (Nova Delhi, Mysore, Bombaim), Japão (Tóquio), entre outros. Após treze anos de ausência, Koellreutter retornou ao Brasil, dando continuidade às suas aulas particulares, palestras e cursos em diversos centros de ensino do país. Essas atividades, caracterizadas sempre pela reflexão e debate vivos, confronto de idéias e posicionamentos filosóficos, estéticos e ideológicos, levaram muitos educadores e músicos a tomar consciência de si e da realidade sociocultural brasileira, de sua função como artista na sociedade e da importância da música na educação de seres humanos melhores. Uma fase que durou até os seus últimos dias de vida (2005).

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seminários de Música da pró-Arte de são pauloNa empreitada paulista, Heuberger teve o auxílio de Koellreutter que implantou

uma política educacional que diferia das demais escolas e conservatórios brasileiros. Um dos pontos mais importantes de seu projeto era uma proposta educacional inovadora que, além da preparação de artistas e profissionais, tinha um objetivo mais audacioso, a formação “de um público dotado de conhecimentos que o capacite a apreciar e julgar as obras musicais, assim como outras manifestações artísticas”, conforme publicado em um folheto de divulgação da escola (Kater, 2001).

Outra novidade introduzida nesta escola foi o estudo de jazz e nisto foi pioneira na América Latina. Além das matérias tradicionais, constavam no seu currículo disciplinas que ainda não constavam nas escolas oficiais, tais como harmonia funcional, harmonia de jazz, canto gregoriano, entre outras.

Ali se estudou, pela primeira vez no Brasil, os livros de Paul Hindemith e seu Ludus Tonalis, o contraponto dodecafônico de Ernst Krenek e o Microkosmos de Béla Bartók. Em 1954, chegou a ter um pequeno laboratório de música eletrônica sob a responsabilidade de Ernst Mahle. Por sua sede, à Rua Sergipe, passaram artistas e instrumentistas de renome internacional como Walter Gieseking, Henrry Jolles e Sebastian Benda, o bailarino Masami Kuni, idealizador da “creative dance”, os compositores Pierre Boulez e Wolfgang Fortner, o regente coral Kurt Thomas e a compositora Kikuko Kanai, representante do Japão às comemorações do IV Centenário de São Paulo.

A prática do canto coral com um repertório nada convencional, obras instrumentais e vocais polifônicas e as jam-sections aos sábados e domingos faziam da Escola um ambiente singular. As apresentações de jazz tinham no pianista Paul Urbach seu grande incentivador. Em uma turnê pelo Brasil, o pianista austríaco Frederich Gulda teve a oportunidade de assistir a uma jam-section e ficou impressionado com a qualidade do jazz ali praticado, es-pecialmente por tratar-se de um ambiente dedicado à “música erudita”. Ao voltar à Áustria, inclusive, introduz o jazz no currículo da Academia de Viena (Vinholes, 2002).

Seus alunos e professores foram responsáveis por primeiras audições no Brasil de obras como a Missa Notre Dame de Guillaume de Machaut, a Paixão de Schultz, a Sinfonia op.21 de Anton Webern, além de peças corais de compositores do barroco brasileiro e europeus. Havia um público fiel e foi histórico o concerto realizado na Igreja da Consolação quando foram apresentadas a Missa em Dó de Mozart e o Pater Noster de Igor Stravinsky. Os recitais realizados no salão da escola, com repertório pouco comum aos programas dos eventos musicais de São Paulo, atraiam público fiel que ocupava todos os espaços internos e os do jardim que circundava o prédio (Vinholes, 2002).

Ainda segundo Vinholes (2002), a Escola teve influência decisiva na criação dos Cursos Internacionais de Música de Teresópolis e, em meados de 1954, do Seminário Internacional de Música da Bahia, embrião da Escola de Música da Universidade daquele Estado, e da Escola Livre de Música da Pró-Arte em Piracicaba, hoje, Escola de Música de Piracicaba Ernst Mahle.

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Figura 4. Koellreutter (ao piano) e L. C. Vinholes Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Em 1956, com sua metodologia de ensino já consolidada, a escola foi pressionada pela Secretaria Estadual de Educação a refazer seu currículo para adequar-se às normas oficiais e assim receber autorização para manter suas atividades. A legislação vigente es-tabelecia uma grade de matérias para o funcionamento de uma escola de música e estas não se adequavam aos propósitos da Pró-Arte, que trazia em sua proposta a ideia, expressa em seu nome, de ser “livre”, não ligada aos padrões oficiais. Defendendo as linhas do seu ensino, optou-se pela continuidade do trabalho que vinha sendo feito e, ao não atender às normas da Secretaria de Educação, houve a necessidade de eliminar a palavra “escola” de seu nome. A instituição passou a ser chamada de Seminários de Música da Pró-Arte, palavra de sentido mais amplo e em consonância com as ideias que haviam norteado a criação daquele estabelecimento de ensino. De acordo com Vinholes (2002), a troca de palavras foi uma sugestão dos assessores jurídicos da Pró-Arte que trabalhavam com Theodor Heuberger.

Contudo, o ‘braço’ de Piracicaba, criado em 1953 por Ernst Mahle com o nome Escola Livre de Música da Pró-Arte, optou por se alinhar à grade definida pelos órgãos oficiais e “para melhor atender às exigências legais referentes á certificação oficial de diplomas teve seu nome alterado para Escola de Música de Piracicaba (EMP)”, conforme consta no site da escola, desvinculando-se da Pró-Arte em 1961.

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Figura 5. Ernst Mahle, Rosita Salgado Góis, Sandino Hohagen e Munir Busamra Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

ConclusãoNosso estudo sobre a Escola e Seminário de Música da Pró-Arte ainda está no seu

início, mas podemos afirmar com certeza a sua importância na história da educação musical, especialmente na organização dos cursos e formação de muitos dos que viriam a integrar a nata da música brasileira.

No seu corpo docente inicial, além de Koellreutter (idealizador e também diretor da escola) que lecionava composição, harmonia funcional, contraponto, regência, flauta, estética e análise, outros marcaram presença como Celina Sampaio, Hilda Sineck5 (canto), Damiano Cozzella (harmonia funcional e análise), Roberto Schnorrenberg (história da música e regência), Conrad Bernard (repetição e leitura a primeira vista), Walter Bianchi (óboe), Bino Pedini (trompete), Alexandre Schaffman (violino), Johannes Olsner (viola), José Kliass, Hans e Isolda Bruch (piano), Rosita Salgado Góis (iniciação musical), Yulo Brandão (estética e filosofia da música), Yanka Rudzka (dança moderna) e Madalena Nicols (teatro).

Entre os alunos que passaram pela Escola-Seminário, encontramos um bom número daqueles que se destacariam no cenário nacional e internacional e se fossemos citar alguns, certamente ficaríamos em dívida com muitos outros. Entretanto, não podemos deixar de destacar nomes como Klaus Dieter Wolff, Ney Salgado, Sandino Hohagen, Gerardo Parente, Maria de Lourdes (Baby) e Henrique Gregori, Norma Graça, Antonieta Moreira Leite, Clélia Ognibene, Carlos Alberto Pinto Fonseca, Ronaldo Bolonha, Eva Milko, Hortência Ravagnani Montgomery, Cláudio Petraglia, Orlando Leite, Severino Filho, K-Ximbinho, José Carlos e José Eduardo Martins, Marli Hatsbach, Carlos Eduardo Prates, Paulo Affonso de Moura Ferreira, Gilberto Tinetti, Dalva Barbosa, Brasil Eugênio da Rocha Brito, Antônio Naclério Galvão Novaes, Araçari de Oliveira, Lia Carvalho, Isaac Karabtchevsky, Clara Sverner, Marina e Dilza de Freitas Borges, Ronaldo Bolonha, Maria Amélia (Meméia) Cozzela, Tiche Vespaziano,

5 Colaborou para a criação dos Cursos de Férias de Teresópolis.

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Paulo Herculano, Samuel Kerr, Ula Wolf, Lídia Hortélio, Suzana Bandeira de Melo, Terezinha Schnorrenberg e Munir Bussamra, mentor do Grêmio Bela Bartok e criador de mini-cartazes de precursora plasticidade gráfica, usados na divulgação dos eventos promovidos pela Escola.

Outro aspecto que ainda demanda novas pesquisas é a produção intelectual de alguns professores e alunos ligados às atividades da Escola, que se destacaram escrevendo colunas especializadas, assinando críticas e comentários na imprensa paulista, todos de grande interesse para leitores e frequentadores das salas de concertos, estudiosos e apre-ciadores de música. Até o momento temos conhecimento de que H. J. Koellreutter, Roberto Schnorrenberg, L. C. Vinholes e Cyro Monteiro Brisolla escreveram para o Diário de São Paulo, Diogo Pacheco para O Tempo e José Luiz Paes Nunes para O Estado de São Paulo.

Figura. 6. José Luis Paes Nunes, Carlos Alberto Pinto da Fonseca e L. C. Vinholes em 1954 Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Sem dúvida alguma, Koellreutter renovou os conceitos e as ideias de compositores, instrumentistas, cantores, educadores e estudantes através de novas técnicas composicionais (dodecafonismo e serialismo), de propostas pedagógicas inovadoras (improvisação como técnica e didática) e reflexões filosóficas sobre música, educação musical, arte e vida. Para ele, a arte possui função social e é essencial à existência do homem, além de “converter-se em fator preponderante de estética e de humanização do processo civilizador” (Koellreut-ter, 1988, p.40 apud Rosa, 2011).

Dentro deste pensamento, a escola foi palco de eventos importantes na história das artes e da cultura de São Paulo e do Brasil, e não podemos deixar de citar a primeira

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exposição individual de Tomie Ohtake no Brasil.

Figura 7. Exposição de Tomie Othake – Década de 1950 Fonte: Arquivo Particular de L. C. Vinholes.

Ali os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, juntamente com Décio Pignatari, Waldemar Cordeiro, Maurício Lima e Saciloto puderam expor suas ideias no início do concretismo na literatura e na pintura; o pintor Sanson Flexor, um dos responsáveis pela difusão do abstracionismo no Brasil, apresentou sua metodologia de estruturação do espaço pictórico e Hercules Barsotti e Anatol Wladislav expuseram suas obras.

Para que se tenha ideia da importância dos ensinamentos de Koellreutter para os discípulos daquela escola, recorremos ao depoimento do maestro Júlio Medaglia, que no dia primeiro de setembro de 2002, véspera do octogésimo sétimo aniversário de H. J. Koellreutter, recebera em sua casa um grupo de mais de cinquenta ex-alunos da Pró-Arte para um almoço de confraternização. Ele afirma:

Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes de nossas vidas, ainda que entristecidos que estávamos com a ausência daquele que foi nosso “guru”. Koellreutter, apesar de viver em São Paulo, já habita outras esferas levado pe-los sintomas do mal de Alzheimer. Se o tom do reencontro foi emocional, não podemos dizer que teria sido melancólico, pois a sensação que todos tinham era a de que seriam possíveis outros encontros e, talvez, até a recriação, num breve futuro, de outra instituição que tivesse o espírito daquela que foi a maior usina de criação de música e músicos deste país nos tempos modernos, a Escola Livre de Música. (Medaglia, 2002)

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Referências bibliográficas

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Gênero feminino, relações afetivas e pedagogia em bandas de música nordestinas, de 1930 a 2000

Marcos dos Santos MoreiraUniversidade Federal de Alagoas

Este ensaio aborda o papel socioeducativo e artístico da presença das mulheres em grupos filarmônicos na região nordeste, comparando-a com dois casos lusitanos1. A pesquisa empreendida visa a compor uma constatação da atuação do Gênero Feminino2 e sua relevân-cia nestes grupos centenários. Sabe-se que a presença feminina nas bandas só ocorrerá de fato no século XX, mais precisamente a partir da década de 1930. Assim, faz-se necessária uma busca histórica a partir da referida década, averiguando-se atas e documentos que indiquem a presença feminina e sua entrada nos grupos pesquisados e como esta situação decorreu em termos pedagógicos, sociais, bem como estudar o convívio e a interação com integrantes masculinos em instituições de euterpes nas últimas décadas.

gênero e música: Uma fundamentação propostaO argumento que torna o tema relevante baseia-se no levantamento bibliográfico

temático enfatizando uma análise dos papéis de gênero feminino na sociedade a partir das mudanças ocorridas nos estatutos e a abertura para as mulheres nos grupos pesquisados, não somente do lado social e artístico em questão, mas também pedagógico. Primeira-mente, far-se-á uma leitura do que significa o termo Gênero na ciência educacional e social no nosso país.

o gêneroSandra Unbehaum, socióloga da Universidade de São Paulo, define:

Gênero é uma linguagem, uma forma de comunicação, uma forma de ordenar o mundo, que orienta a conduta das pessoas na maneira como elas vão se relacionar com as outras... é mais do que uma maneira como as pessoas se relacionam, é também um jeito de olhar e compreender a realidade ... O gênero nos ajuda a

1 Esta pesquisa constitui um desdobramento da tese de doutorado Mulheres em Bandas de Música: Relações de Gênero em Filarmônicas nordestinas brasileiras e Portuguesas (1990 a 2000). A Univer-sidade Federal de Alagoas-UFAL mantem o grupo de pesquisa-PROPEP-CNPQ, Metodologia e Con-cepção Social do Ensino Coletivo Instrumental, sob coordenação deste autor. Fundado em 2008, tal grupo de pesquisa da UFAL firmou acordo de cooperação institucional com o grupo de Investigação do Instituto Piaget em Viseu, Portugal, pelo qual os projetos de pesquisa sobre as bandas nordesti-nas e lusitanas têm sido desenvolvidos de modo integrado. 2 O Dicionário da língua portuguesa (1990), de Aurélio Buarque de Holanda define: “Gênero - Ca-tegoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas. Há gêneros masculino, feminino e neutro”.

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compreender que essa maneira de organizar a sociedade – dividida em dois jeitos de ser: homem e mulher, masculinos e femininos. (Unbehaum, 2005, p. 35)

Arneide Bandeira Cemin afirma:

O conceito de gênero, apesar de sua imprecisão teórica, diz respeito à construção cultural e simbólica das relações entre homens e mulheres. No Ocidente, desde os gregos e passando pelos iluministas, o valor máximo é a razão clara, objetiva, considerada atributo masculino, em confronto com a subjetividade obscura, identificada ao feminino. (Cemin, 2001, p. 26)

As relações do gênero feminino estão ligadas política e sociologicamente a movimen-tos antropológicos como o feminismo3. Carneiro (1993) e Branca e Pitanguy (1985) destacam a precisão ideológica do movimento pela necessidade da representação não só simbólica, mas como fundamental para tal representação de identidade da mulher na sociedade:

Portanto, seja numa visão biológica, que define a mulher como inferior ao homem do ponto de vista da força física; seja numa visão religiosa que identifica a mulher como subproduto do homem, já que foi construída da costela de Adão, seja do ponto de vista cultural, que define um campo específico para a atividade femi-nina e o outro, privilegiado, para atividade masculina, todos estes argumentos, na maioria pseudocientíficos, prestam-se a construir uma identidade negativa para mulher e, assim, justificar os diversos níveis de subordinação e opressão a que as mulheres estão submetidas e a promover, nelas, a aceitação de um papel subordinado socialmente. (Carneiro, 1993, p. 48)

Para muitos sociólogos que lidam sobre a categoria de gênero, o sistema patriarcal, associado aos caminhos estruturais históricos da sociedade, tanto do ponto de vista social propriamente dito, como econômico, ratifica a hegemonia do masculino.

Foram as feministas americanas que começaram a utilizar a palavra “gênero” no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos. O termo gênero indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual” e tam-bém sublinhava o aspecto relacional das definições normativas de feminilidade e, conseqüentemente, de masculinidade. (Scott, 2004, p. 26)

O termo gênero se torna, a priori, muito complexo e amplo, envolvendo vários aspectos ideológicos, políticos, sociais, educativos, onde a literatura se entrelaça (Gên-

3 Feminismo: um termo que traduz todo um processo desenvolvido ao longo da História, e que continua a ser trabalhado diariamente, em todos os espaços da vida social. Como todo processo de transformação, contém contradições, avanços, recuos, medos e alegrias. Para entendê-lo, é preciso confrontar a situação da mulher na sociedade antiga, medieval e moderna, buscar suas raízes enquanto movimento político e desvendar a ideologia que ainda hoje outorga direitos, deveres e comportamentos distintos para homens e mulheres (Branca e Pitanguy, 1985).

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ero-feminismo), por todo o século XX. Freitas (2003), Cemin e Nienow (2005) e Carvalho (2010) fazem referência a Pierre Bourdieu, especialmente O poder simbólico (2000) e A Dominação Masculina (2010), ao analisar a supremacia masculina como conseqüência de uma construção social dentro de instituições sociais, sejam escolas, instituições religiosas, associações de classe; uma dominação, ou, como o próprio Bourdieu denomina, uma vio-lência simbólica. O sociólogo francês alerta sobre a necessidade de reflexão acerca de tais relações de gênero, de poder e da análise politicoeconômica e cognitiva, que influenciam a sociedade de forma geral:

Também sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e viven-ciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento... do sentimento. (Bourdieu, 2010, p. 7)

Assim, descaracteriza as naturezas biológicas, numa elaboração de conjuntura so-ciocultural dos papéis. Bourdieu retrata esta visão simbólica, decisiva para o termo por ele abordado, divisão social do trabalho, produzindo tais papéis através das ações, da linguagem, dos símbolos, peremptórios para impor funções masculinas e femininas na sociedade. Em Boff e Muraro (2002), esta concepção se estrutura na sociedade como um todo e abre a discussão, sobretudo baseado em alicerces do surgimento das instituições citadas, como família, igreja e sociedades de classe na história social humana:

A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. Rela-ções essas que estão diretamente vinculadas aos preceitos religiosos, princi-palmente àqueles em que seus códigos foram se estruturando sob a ideia de um Deus masculino: Em conseqüência, todas as grandes religiões históricas que estruturaram no código patriarcal a sua experiência originária do Divino são reducionistas e nos transmitem uma tradução parcial. O mesmo aconteceu com as instituições religiosas. O imaginário, a linguagem, os símbolos, os ritos e os textos fundadores destas instituições trazem a marca da cultura masculina. (Boff e Muraro, 2002, p. 86).

Em Saffioti (1979) o foco aborda a discriminação sobre as mulheres ligadas ao conceito do patriarcado no Brasil:

O Patriarcado constitui-se num pacto masculino para garantir a opressão de mulheres. As relações hierárquicas entre homens, como a solidariedade exis-tente entre eles, capacitam a categoria constituída por homens a estabelecer e a manter o controle sobre as mulheres. (Saffioti, 1979, p. 14)

Para Dantas (1992), o tema gênero feminino ganhou destaque por causa dos movi-mentos feministas do século XX em detrimento de temas do masculino sobre determina-das profissões, principalmente na área de ensino, sendo menos explorado nas pesquisas brasileiras. Para este autor, o que se encontra como referencias bibliográficas no Brasil é

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bastante escasso:Mapeando as produções acadêmicas impulsionadas por esses movimentos, ob-servei lacunas importantes, reconhecidas pelos próprios autores, em relação ao universo masculino. A grande maioria dos estudos sobre gênero foi produzida por mulheres, sobre mulheres e para mulheres... O diálogo entre estes dois conjuntos de produções ainda é incipiente. (Dantas, 1992, p. 12; grifo nosso)

As relações de poder na músicaConsiderando-se Joana de Holanda (2005), Mello e Gomes (2007) e Mello, Piedade

e Schneider (2010), as pesquisas sobre gênero e música no Brasil são ainda mais recentes e escassas quando comparadas às americanas, principalmente no terreno da musicologia:

As pesquisas relacionando gênero e música são recentes. Na década de [19]80, surgiram as primeiras antologias de partituras, CDs e biografias de compositoras, principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra. No início dos anos 90, autoras como Susan McClary (1991) e Marcia Citron (1993) suscitaram discussões sobre as metáforas de gênero presentes no código musical. (Mello e Gomes, 2007, p. 28)

O gênero feminino, neste caso, é explanado não só sob o ponto de vista de relação de poder do corpo propriamente dito, mas filosoficamente, sobre concepções analíticas da Teoria musical e da musicologia: A New Musicology. Tal teoria, como análise de discurso musical, influenciou diversos teóricos do meado do século XX em relação ao contexto música-socie-dade-discurso, proposto por Susan McClary4. Mello e Gomes (2007), fazendo referências a McClary (1994) e, posteriormente, Kermann (1985), em seu artigo Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro, aborda tal conceito feminino e suas ramificações em apologias da estrutura composicional de sons “femininos” em obras musicais desde o período clássico, particularmente sonatas de Beethoven (1770-1827). Assim coloca a autora:

Como aponta Joseph Kermann (1985), a tradição musicológica esteve sempre muito mais voltada para análises formais do que para questões sensíveis às humanidades, e isto se deve muito ao fato de que, no desenvolvimento da música

4 Notável por seu trabalho combinando musicologia e uma crítica de música feminista, McClary é professora adjunta de Musicologia e vice-reitora do Instituto Internacional da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Nasceu em 1946 e está entres os líderes do movimento New Musicology, destacando-se pela combinação da musicologia com o feminismo. Sugere que a forma sonata deve ser interpretada como sexista ou imperialista e que tem “tonalidade própria - com o seu processo de incutir confiança e, posteriormente, retenção de superação prometida até o clímax”. Para McClary é a principal forma musical, durante o período de 1600-1900, para despertar e canalizar o desejo. Ela interpreta o princípio da forma sonata para as construções de gênero e identidade sexual. Importan-te destacar o artigo anterior de Maus (1993), sobre o discurso masculino na teoria musical.

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ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de pressupostos teóricos, explicitados através de convenções e construções retóricas repletas de metáforas sexuais. Es-tas se ligam a questões de gênero que estão na base de um paradigma narrativo poderoso, em cujo âmago está o ponto de vista masculino. Contudo, apesar da centralidade destas questões, a disciplina não parece tratá-las de modo consciente (McClary, 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico, os tempos fortes de um determinado trecho musical são considerados “masculinos”, enquanto que os fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é dito que elas exercem atração, em oposição às menores, ligadas à repulsão; também percebe-se “ímpetos procria-tivos” ocorrendo por meio das qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a ideia prevalente, desde o século XVII, do processo desencadeado pela expectativa (clímax) e resolução da expectativa, também chamado de tensão vs. relaxamento, presente no cerne da música ocidental, o que parece uma forte metáfora da ativi-dade sexual. A forma sonata-allegro é estruturalmente um exemplo deste modelo: o tema de abertura deve ter um “caráter masculino”, enérgico, determinado, heróico, enquanto que o tema subsidiário é “feminino”, flexível, considerado o “outro”. Todos estes pontos são “naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca dê a última palavra neste contexto: no mundo da narrativa musical tradicional não há terminações femininas. (Mello e Gomes, 2007, p. 20)

Sair do contexto composicional e adentrar na pedagogia implica concomitantemente indagações sobre de que maneira as práticas de ensino foram constituídas, tanto na Educação geral, formal, como no ensino musical em filarmônicas. As relações de ensino professor-aluno, além das questões do gênero e se conceituando relações humanas, levam a investigar paralelamente o processo da afetividade nestes conflitos de figuras masculina e feminina em tal práxis, que se pretende abordar. Tais contextos são vistos na pesquisa de gênero em Educação Musical por Lucy Green:

As características das práticas musicais de meninas, como descrito por professores e alunos, não só representam convenções do comportamento feminino, mas per-petuam construções discursivas da própria feminilidade. (Green, 1997, p. 35)

Exemplificando a temática de ascensão feminina na música, em seu artigo sobre administração e direção de mulheres em bandas americanas, Gould (2005) retrata que a educação musical nas ocupações os EUA foi segregada por gênero e raça durante décadas. Enquanto as mulheres são mais suscetíveis a ensinar os jovens estudantes em sala de aula, os homens são mais propensos a ensinar os alunos mais velhos em todas as configurações, mas em particular nos grupos de percussão.

Apesar de práticas de gênero afirmativas de emprego, os homens constituem a grande maioria entre os diretores da banda em todos os níveis. No nível pós-secundário nos EUA, as mulheres constituem menos de 10%. Em todos os casos e todos os níveis, a grande maioria dos diretores da banda são brancos. Segregação ocupacional inibe o desenvolvimento de carreiras dos indivíduos, bem como o desenvolvimento da profissão como os indivíduos escolhem ou são contratados para cargos com base em seu gênero e / ou raça, em vez de suas habilidades. Em

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termos demulheres diretoras de bandas universitárias, pesquisadores investiga-ram as tendências do emprego, características pessoais e profissionais, modelos de trabalho e identidade profissional. (Gould, 2005, p. 7)

Portanto, dentro da conjuntura apresentada, a profissão regente, na maioria das vezes, está condicionada diretamente e de forma contemporânea, às questões diferenciais de gênero, raça e habilidades profissionais em boa parte das Instituições de Ensino Superior de Música nos Estados Unidos.

Revisão de literatura sobre bandas de músicaNo Brasil ainda há uma carência considerável de trabalhos científicos que tratem

do assunto Banda Filarmônica ou Banda de Música, como é denominada mais comumente no sul do país. Apesar do crescente interesse investigativo sobre filarmônicas, pouco se tem dito sobre a participação feminina nestas instituições. Por muitos anos, na relação social das filarmônicas, a influencia masculina é visível desde a sua criação ainda como Guildas5 até meados do século XX quando as mulheres não eram vistas nos seus quadros como musicistas.

Como no Brasil, a participação do gênero feminino nas Bandas filarmônicas portu-guesas é diminutamente similar sob predominância masculina. Podem-se destacar casos no país lusitano em centenas de grupos (proposta de pesquisa). Em Évora, cidade lusitana, somente na segunda metade do século XX observa-se a citação onde o gênero feminino compartilha as primeiras incursões relevantes:

A década de 70/80 foi outro período durante o qual se registraram grandes mudanças, não só em Portugal como em termos globais, que permiti-ram novas conquistas sociais e culturais que tiveram repercussões ao nível da sociedade e da sua sociabilidade. Foi, por exemplo, a partir deste período que as mulheres começaram a integrar as bandas filarmónicas. (Russo, 2007, p. 18)

No Brasil, mas especificamente no nordeste, em Sergipe, em período anterior à referência acima, nas décadas de 1950/60, Silva (2000, p. 26) e Andrade (2010, p. 38) revelam dois exemplos abordados em seus trabalhos sobre surgimentos de bandas exclusivamente femininas no Estado.

[Banda de Música Feminina da Associação Maria Rosa Vieira de Melo-Rosário do Catete-Sergipe]... Fundada em 1959 pela presidente da Associação, a ben-emérita Srª Maria Passos, conhecida como Dona. Inicialmente as moças eram previamente preparadas pelo regente Luiz Ferreira Gomes... As pessoas ficavam

5 Na Renascença,os grupos filarmônicos surgem como as guildas, que eram agremiações de artistas, geralmente funcionários públicos, vigias, que to-cavam seus cromornes, sacabuxas ou sacabutes e charamelas, em vários eventos nas cidades onde “... tinham estruturas profissionais mais ou menos definidas com uma série de regulamentações estatutárias” (Massim, 1997, p. 71)

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admiradas como era possível formar uma banda de música exclusivamente feminina. (Silva, 2000, p. 26)

Na década de 1960... Na Escola Normal, [Leozírio Guimarães] fundou um coral e uma banda de música só de moças... O desfile da Escola Normal no Sete de Setembro tinha a marca da presença bonita das jovens instrumentistas que se esmeravam na interpretação de dobrados e canções brasileiras, tendo sempre à frente o seu maestro Leozírio Guimarães. (Andrade, 2010, p. 38)

Outro exemplo nordestino e sergipano da entrada das mulheres ocorreu no municí-pio de Japaratuba, a poucos quilômetros de Aracaju. Santos (2004) afirma que a centenária Lira Sociedade Filarmônica Japaratubense, fundada em 1900, só permitiu alguma interfer-ência feminina nos idos anos de 1960:

Nos primeiros anos de existência da Banda as Mulheres não faziam parte dela como instrumentista. Acompanhantes e simpatizantes femininos eram muitos. Apenas admiradoras. Excepcionalmente na década de 1960 é que uma mulher tivera um contato mais direto com os músicos, ajudando direta-mente à Banda. [...] Mimosa Moura, que fez parte do coral da Euterpe-que se apresentava regularmente nas missas, foi a única mulher que mais se aproximou dos instrumentistas. Trinta anos [anos 1990] se passaram até que, por iniciativa própria, as mulheres resolveram tornarem-se profissionais na área. Três mulheres compunham a Banda até o ano de 2001. (Santos, 2004, p. 34; grifo nosso)

Além disso, em tempos recentes pode-se enfatizar já na década de 1990/2000, profes-soras ou musicistas em geral, algumas com titulação de mestrado e doutorado, que atuam até os dias atuais como regentes de banda no Brasil.

Sendo assim, as bandas, que tinham um histórico exclusivamente masculino, hoje despontam para um universo mais feminino, apesar de ainda haver um domínio masculino considerável na práxis instrumental e pedagógica. Ratifica-se assim uma mudança mesmo branda sobre a tradição do ensino musical em filarmônicas, que sempre tiveram desde os primórdios de formação a figura do homem, e que vem modificando este panorama a cada década.

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Reflexão sobre uma proposta metodológica para pesquisas de performance musical em

grupo à distância

Beatriz de Freitas SallesUniversidade de Brasília

Juliana Rocha de Faria SilvaInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília,

campus Planaltina

A atualidade pressupõe o avanço tecnológico com as mudanças sociais, culturais, educacionais, econômicas, políticas e as relações entre seres vivos e computadores (Santaella, 2003). Neste sentido, a performance e seu ensino-aprendizagem passam por transformações demandadas por essas mudanças. O presente artigo pretende relatar o processo de integração das tecnologias com o ensino da performance de instrumento e das práticas de conjunto em um curso dentro do projeto de extensão “Piano/Teclado para Crianças em Grupo” realizado na Universidade de Brasília (UnB). Tendo como objetivo realizar uma reflexão sobre processos, práticas, produtos e, principalmente, buscar a integração das novas possibilidades pedagógicas que a mídia da atualidade oferece aos contextos metodológicos específicos do ensino de música, procuramos neste artigo refletir sobre a seguinte questão: qual a abordagem metodológica de pesquisa capaz de integrar a análise qualitativa e quantitativa de dados com as questões artíticas, pedagógicas e tecnológicas do ensino coletivo de piano/teclado para crianças?

Para tanto, apresentamos o histórico da questão que envolve o ensino da performance em grupo com o uso da tecnologia; a trajetória presencial à virtual da proposta metodológica do projeto de extensão; a contextualização da pedagogia do ensino com a metodologia de pesquisa mediada pelos vídeos nas atividades virtuais; a a/r/tografia, uma abordagem metodológica de pesquisa em artes, como uma possibilidade de convergência para o processo de ensino-aprendizagem da performance em grupo.

Histórico do piano/teclado para crianças em grupoO projeto de extensão onde a pesquisa se desenvolve apresenta a proposta de

ensino e aprendizagem de piano em grupo com crianças de 5,5 a 12 anos mediados por recursos tecnológicos dentro da perspectiva do Ensino a Distância (EAD). Essa perspectiva aqui entendida é como tudo o que diz respeito aos processos de ensino e aprendizagem mediados pela tecnologia, em plataformas alternativas ao Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment (MOODLE) e nos formatos semipresencial e à distância, no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão. Funciona desde 2005 com 15 encontros presenciais

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de 45 minutos por semestre ao final dos quais é realizada uma apresentação musical.Esse projeto é desenvolvido na UnB com o objetivo de oportunizar uma vivência

lúdico-musical voltada para a performance por meio do ensino presencial e virtual em grupo para crianças. A proposta visa desenvolver o potencial humano da criança por meio dos aspectos afetivo, social, psicomotor e cognitivo a partir de uma vivência musical rica e diversificada mediada por jogos e brincadeiras, lançando um olhar sobre a presença das tecnologias na atualidade, testando e analisando algumas das consequências implicadas no seu uso e adaptando-as para a aprendizagem da música.

O projeto se desenvolve com atividades presenciais por meio da Prática de Conjunto que visam, prioritariamente, desenvolver as habilidades musicais da performance coletiva equalizando e homogeneizando as habilidades musicais do grupo e com atividades virtuais por meio de vídeos tutoriais que priorizam o desenvolvimento individual das questões técnicas e de performance do instrumento propriamente dito.

Nas aulas presenciais do projeto, as crianças participam de atividades nas quais a interação individual com o professor, os pais e as outras crianças promovem a criatividade e a imaginação, valorizando as respostas de cada criança para o processo de construção do conhecimento musical. As atividades virtuais propostas pelos vídeos são exercitadas presencialmente em sala e depois encaminhadas aos pais utilizando-se três meios digitais, e-mail, Youtube e Clube do Piano, para que os pais possam auxiliar e monitorar adequadamente o estudo de seus filhos em casa.

O canal do projeto de extensão no Youtube foi criado vinculado à conta gmail “pianoparacriancas”. Os vídeos tutoriais produzidos pelos professores são enviados para o canal e configurados na opção de privacidade “vídeos não listados ( qualquer pessoa com o link pode visualizar)”. Depois que é feito o upload do vídeo no canal, um link é gerado e enviado por email aos pais dos alunos. Só os usuários que possuem o link podem visualizar o conteúdo do vídeo. Esta é uma forma de garantir a privacidade e a segurança do material postado, pois em muitos casos eles envolvem imagens dos alunos. Estes vídeos estão organizados dentro do canal de acordo com as turmas para facilitar a sua localização e também como uma forma de mantermos o histórico de acessos e a evolução dos alunos de cada turma.

O Clube do Piano é uma rede social fechada na qual realizamos experiências musicais lúdicas, didáticas e pedagógicas envolvendo pais, alunos e monitores. O acesso se dá por meio de uma senha individual digitada no endereço eletrônico <http://pianoparacriancas.ning.com>. Esse clube auxilia o processo de interação tanto dos conteúdos musicais e dos vídeos tutoriais como dos professores/monitores com crianças/pais.

O projeto inicialmente partiu de uma proposta presencial baseada no ensino de piano tradicionalmente ofertado em escolas e conservatórios de música e voltado para o desenvolvimento de habilidades individuais. Com o decorrer do tempo, as necessidades demandadas, principalmente pelo público, foram modificando os processos de ensino-aprendizagem, incluindo a organização e elaboração de conteúdos gravados em vídeos e a ênfase às metodologias presentes na Prática de Conjunto como mostrado na secção a seguir.

Do acústico ao tecnológico, do presencial ao virtual

A trajetória pedagógica e didática do “Piano/Teclado em Grupo para Crianças” partiu de uma proposta tradicional de ensino contando, inicialmente, com três pianos acústicos

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e seis crianças tocando em uníssono. O repertório era proveniente de métodos de piano em grupo internacionais. Mais tarde, o projeto se configurou em uma proposta de Prática de Conjunto com repertório adaptado à realidade local com arranjos que utilizam três elementos – base harmônica, rítmica e melódica. No quadro abaixo, demonstramos que o uso do teclado versus tecnologias, no lugar do instrumento acústico, possibilitaram atingir os objetivos pedagógico-musicais do curso, a vivência lúdico-musical através da Prática de Conjunto adaptada ao universo infantil.

Figura 1. Possibilidades trazidas ao projeto pelo piano acústico e pelo teclado eletrônico

A proposta musical do projeto de extensão foi construída a partir da elaboração de arranjos com três elementos diferentes como a melodia, o ritmo e o baixo e/ou harmonia. O repertório foi escolhido considerando as músicas folclóricas locais e as sugestões das crianças, trilhas sonoras de desenhos animados e filmes infantis como, por exemplo, Speed racer, Indiana Jones, Backyardigans, Harry Potter e Screk.

Os arranjos foram construídos pelos professores/monitores combinando diferentes ritmos provenientes de partes da bateria ou de instrumentos de percussão originais; da elaboração de uma segunda voz ou de ostinatos melódicos ou de riffs# ou, ainda, da criação de padrões ritmicos baseados na harmonia da melodia. Alguns arranjos foram pensados a partir das composições originais transcritas em partituras, outros a partir de gravações re-arranjadas dos clássicos por músicos e arranjadores de diferentes estilos/gêneros musicais e, ainda, outros elementos percebidos pelas crianças através da audição das trilhas sonoras originais dos desenhos e dos filmes.

No decorrer da execução desse projeto foram surgindo necessidades pedagógicas e didáticas para possibilitar o acompanhamento pelos pais – em sua maioria, leigos em

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música - das crianças em casa. Neste sentido, foram enviadas tarefas com desenhos que mostravam a posição das mãos e dos dedos para tocar determinada melodia em que a mão direita se diferenciava da esquerda pelas cores. Acima da letra da música, foi colocado o dedilhado em algarismos numéricos seguindo o catálogo de cores das respectivas mãos. A partitura seguia com o desenho e a letra com as notas musicais também apresentadas por cores diferentes – vermelho para a mão esquerda e azul para a mão direita.

Para potencializar os tempos e espaços de aprendizagem dos conteúdos individuais em casa e da Prática de Conjunto em sala de aula foram criados os vídeos tutoriais. Há três tipos de vídeos de acordo com as suas funções: 1) aqueles gravados pelos celulares dos pais para ajudá-los a acompanhar o monitoramento das crianças em casa; 2) os vídeos tutoriais gravados pelos professores para o aprendizado tanto dos conteúdos individuais quanto coletivos; e 3) os vídeos gravados pelos pais e enviados aos professores para monitoramento da tarefa realizada em casa.

A sistematização dos conteúdos dos vídeos gravados pelos professores teve como objetivo desenvolver as competências individuais de cada elemento musical a ser trabalhado e as competências coletivas da Prática de Conjunto. Foi necessária a classificação dos vídeos tutoriais, visando a organização dos dados para futuras análises. Neste sentido, classificamos os vídeos em duas grandes categorias: uma que visa o desenvolvimento individual de cada criança dos três elementos e a outra que prioriza as habilidades perceptivas destinadas à Prática de Conjunto. Essas categorias possuem várias sub-categorias elaboradas a partir do conteúdo do vídeo – exercício técnico; posição da mão; aprendizado da melodia, da percussão ou do baixo/harmonia; execução de um elemento ouvindo um outro – play along.

As categorias e sub-categorias foram sistematizadas como:1) inserindo os elementos no contexto: 1.1) exercitando os cincos dedos - posição da melodia no teclado; 1.2) exercitando a melodia; 1.3) percussão corporal; 1.4) transpondo a percussão corporal para o teclado; e, 1.5) exercitando a base harmônica/ baixo; 2) juntando os elementos (play alongs): 2.1) a melodia cantada com a percussão corporal; 2.2) a melodia com a percussão/ritmo; 2.3) a melodia com o baixo/harmonia; e 2.4) o baixo com a percussão/ritmo.

O uso dos vídeos como ferramenta tecnológica nesse processo de potencialização do tempo e espaço de aprendizagem são caracterizados por: reprodução do som em alta-fidelidade; visualização dos gestos; posição da mão; dedilhado; localização espacial no teclado; isolar ou repetir determinadas passagens do conteúdo a ser apreendido, facilitando sua compreensão e estudo; tutoriais personalizados, ou seja, conteúdos específicos de aprendizagem adaptados às especificidades de cada aluno.

Mesmo com os problemas de delay que acontecem, principalmente, no momento do download dos vídeos pelos pais em suas casas, os vídeos renovam a interação da relação professor-aluno, auxiliando a lembrança dos conteúdos já trabalhados nas aulas anteriores, reproduzindo a experiência sensorial, perceptiva e visual fidedignamente. O aluno, ao assistir os vídeos em casa, vivencia novamente a experiência da performance da maneira correta.

Os desafios atuais do projeto de extensão estão relacionados à busca de referenciais teóricos e metodológicos que sirvam de embasamento para a análise qualitativa e quantitativa dos dados observados e levantados no contexto da sala de aula; nos encontros de planejamento; no feedback dos pais sobre as tarefas virtuais enviadas e na elaboração e sistematização dos conteúdos a serem gravados. A seguir apresentaremos uma breve revisão de autores que abordam o processo de ensino-aprendizagem de instrumentos

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musicais mediado por vídeos e das mudanças causadas pelo uso da tecnologia na educação e na relação professor-aluno.

Contextualizando a pedagogia do ensino com a metodologia de pesquisa mediada pelos vídeos

A temática ensino-aprendizagem musical mediada por recursos tecnológicos está presente nos trabalhos de Gohn (2002) e Ribeiro e Braga (2010). Este propõe a pesquisa-ação para o estudo do ensino coletivo de instrumento em grupo à distância, por essa modalidade constituir-se em uma estrutura aberta que proporciona um alto nível de análise da interação entre professor e aluno por meio de vídeos-conferência, chats e listas de discussão. Por outro lado, Ribeiro e Braga (2010) teve como objeto de pesquisa os mecanismos de auto-aprendizagem de um instrumento musical, abordando um estudo comparativo do ensino formal e não formal, bem como o uso e análise de vídeos tutoriais no processo de ensino-aprendizagem. Para Gohn (2002), um dos objetivos centrais dos processos de educação musical não-formal# voltados para a auto-aprendizagem é desenvolver instrumentistas, habilitando os aprendizes tecnicamente para a performance musical, e criar um domínio da prática e da teoria - a prática sempre sendo enfatizada - de instrumentos musicais.

A utilização de conteúdos audio-visuais permite a aprendizagem pela observação da prática. Sua utilização como uma ferramenta de potencialização dos espaços e tempo de aprendizagem substitui, parcialmene, a necessidade da presença física do professor no local da realização musical. Essa utilização de recursos tecnológicos na educação infere na aprendizagem centrada no aprendiz que constrói seu conhecimento ao criar e desenvolver projetos, ao interagir com os objetos de estudo, com os seus pares, com os seus professores e mentores.

Como serão, então, no futuro, os modelos educacionais na era digital? Esta pergunta poderá ser respondida a partir de modelos propostos nos quais a nova geração de aprendizes tem contato com tecnologias digitais em contextos diversos. Imagens, sons, vídeos, ambientes tridimensionais e simulações são exemplos de recursos tecnológicos que podem ser utilizados em ambientes de ensino-aprendizagem para a construção do conhecimento. Esses ambientes, mediados pela tecnologia, viabilizam vários tipos de interfaces interativas. Essa interação visa, de forma ainda incipiente, gerar a criação de interfaces com vários níveis de complexidade para o desenvolvimento de habilidades afetivas, motoras, lúdicas, sensório-perceptivas e cognitivas que garantam a interação fluida da sensibilidade e inteligência humanas diante da máquina (Santaella, 2003).

Segundo Prensky (2001), esses aprendizes antenados às tecnologias, denominados de geração dos nativos digitais, se envolvem em experiências de aprendizagem informais em diferentes situações, tais como interagir com jogos, conteúdos na internet ou participar de comunidades on-line. Estas novas sociedades de conhecimento necessitarão de sistemas educacionais ad hoc, onde salas de aula deverão se conectar a instrumentos, dispositivos e redes de conhecimento continuamente atualizado.

Uma vez que o aprendiz desempenha diferentes atividades, a relação professor-aluno também é transformada nesta perspectiva tecnológica. Sedita (2003) argumenta que em um mundo estático o importante é acumular conhecimento e não aprender; no entanto, em um mundo incerto, onde ocorrem mudanças diárias, é primordial aprender a aprender, transformando o clássico binômio professor aluno na construção de um ecossistema interativo de conhecimento. Esta abordagem ecológica traz o conceito de que nenhum

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organismo ou fator ambiental pode ser tratado e estudado isoladamente de seu sistema, já que a alteração do organismo afeta seu ecossistema e vice-versa.

Esse ecossistema que envolve os recursos tecnológicos e a comunidade de mestres e aprendizes – chamado digital - atua como um sistema que apóia a cooperação, o compartilhamento do conhecimento, o desenvolvimento de tecnologias abertas e adaptativas e a evolução de ambientes ricos em conhecimentos (Ficheman, 2008).

A pesquisa, ora aqui fomentada pelo curso de extensão, se baseia no conceito de ecossistema quando considera que o processo de ensino-aprendizagem é bilateral – de uma lado, é alimentado por seus professores e monitores e de outro, pelas crianças e seus pais. Na próxima secção discutiremos a a/r/tografia (Irwin, 2004; Gouzouasis, 2008) como opção metodológica para essa pesquisa.

A/r/tografia como possibilidade de convergênciaA escolha da a/r/tografia como metodologia de pesquisa se deu pelo fato dessa

proposta metodológica, principalmente, estar vinculada à internet e suas possibilidades interativas e ao vínculo intrínseco entre o pesquisador como artista e como professor.

A a/r/tografia tem sua origem na necessidade de uma pesquisa baseada nas artes que busque a participação ativa na criação e construção de significados tornando-a um espaço para o compartilhamento de experiências. É uma metodologia de pesquisa, com base em práticas artísticas, que enfatiza o questionamento vivo e a prática reflexiva em que o conhecimento é criado a partir dos diferentes olhares do sujeito enquanto artista, pesquisador e professor. Nessa perspectiva, essa relação é traduzida como o cerne de uma nova metodologia: a/r/tografia (“a” de artist, “r” de research e “t” de teacher). As barras contemplam o espaço/lugar que viabiliza os diferentes olhares e a integração das identidades (Irwin e Cosson, 2004).

A/r/tografia é uma metodologia de pesquisa que se enreda e funciona como um rizoma, como referido por Giles Deleuze e Felix Guattari (1987). Um rizoma é uma montagem que se move e desliza em um momento dinâmico. É um espaço intersticial, aberto e vulnerável onde os significados e as compreensões são interrogados e rompidos. Construída sobre o conceito de rizoma, a a/r/tografia transforma radicalmente a idéia de teoria como um sistema abstrato distinto e separado da prática. Ao invés disto, a teoria é entendida como um intercâmbio crítico que é reflexivo, responsivo e relacional e que esta em contínuo estado de reconstrução e conversão em outra coisa. Assim, a teoria como prática se converte em espaço vivo e corporificado de pesquisa em que os rizomas ativam o entre-lugar; uma incitação para explorar os espaços intersticiais da criação artística, da pesquisa e do ensino.

A pesquisa a/r/tográfica resulta, portanto, num processo de intercâmbio que não está separado do corpo; mas emerge do entrelaçado de corpo e mente, eu e o outro e através das nossas interações com o mundo. Está situada no entre-lugar, onde a teoria-como-prática-como-processo-como-complicação intencionalmente altera a percepção e o conhecimento através da pesquisa viva.

Enquanto as tradições disciplinares da ciência entendem a pesquisa como um meio para explicar o fenômeno ou para revelar o significado, a a/r/tografia entende a pesquisa como uma disposição para criar conhecimento e compreensão através de atos de teorização como complicação. À princípio, a teoria e a pesquisa são usadas para encontrar respostas às perguntas. A teorização através do questionamento procura o entendimento por meio

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da evolução de perguntas internas ao processo de pesquisa viva do praticante. Em outras palavras, os praticantes estão interessados numa constante busca pelo entendimento, uma procura, se desejar. Este momento ativa a criação de conhecimento através da pesquisa, revela suas práticas, fazendo suas pesquisas temporais, emergentes, gerativas e responsivas a todos aqueles envolvidos.

Sullivan (2005), adepto da prática da arte como pesquisa, defende a pesquisa baseada na prática e aponta que a teorização para a compreensão através da prática está “baseada na práxis do envolvimento humano e rende resultados que podem ser vistos como individualmente libertadores e culturalmente iluminadores” (Sullivan, 2005, p.74). Esse autor afirma que “se a medida da utilidade da pesquisa é vista como a capacidade de criar novo conhecimento que seja individual e culturalmente transformador, então o critério precisa ir além da probabilidade e da plausibilidade à da possibilidade” (Sullivan, 2005, p.72).

Os artistas vêem o tempo e o espaço como condições de vida: condições de compromisso com o mundo a través da pesquisa e da performance. Os educadores vêem também o espaço e o tempo de maneiras particulares. A aprendizagem, dessa forma, nunca é previsível e é compreendida como uma participação no mundo, um tipo de co-evolução dos que aprendem juntos.

Na revisão de literatura realizada no tema da A/r/tografia e Música encontramos poucas referências. Não há publicações nacionais na área e, dentre as internacionais, encontramos alguns trabalhos como o de Peter Gouzouasis, onde a a/r/tografia é utilizada no contexto de análise de obras de compositores e análises de processos de composição musical.

Gouzouasis (2008) também sugere uma abordagem a/r/tográfica para a análise, o aprendizado e a performance das formas musicais. Para ele, em certo sentido, o aspecto mais importante deste processo de pesquisa é permitir ao intérprete, ouvinte, e professor conceituar a partitura (no caso do artigo citado, a Sonata op. 109 de Beethoven), compreendendo a obra a partir de sua escuta, leitura e análise. Neste processo, ele observa que a pesquisa a/r/tográfica pode começar com a análise de perguntas como, por exemplo, noções sobre a natureza dos dados, as possíveis influências da música e da forma musical na pesquisa narrativa, no (des)usos das terminologias musicais e seus significados, podendo terminar com muito mais perguntas do que as colocadas no início do processo.

Analogamente, assim como acontece com as características de transição entre exposição, desenvolvimento e reexposição de uma forma sonata, esta profunda auto-reflexão se desenvolverá em um fluxo de consciência de como os motivos temáticos são desvendados e revelados em sua estrutura/forma musical como um todo, tal como um discurso fundamentado na lógica e escrita criativa. Neste contexto, enquanto as diversas formas de pesquisa se interessam em reportar ao conhecimento que já existe ou em encontrar conhecimento que precisa ser desvendado, a pesquisa ação e a a/r/tografia estão interessadas em criar as circunstâncias para produzir conhecimento e compreensão através de um processo carregado de pesquisa (Irwin e Cosson, 2004).

Nas considerações finais demonstraremos como os vídeos tornam-se ferramentas imprescindíveis para o monitoramento da aprendizagem das crianças fora da sala de aula constituindo-se ainda em um registro para sistematização dos procedimentos pedagógicos e didáticos do instrumento e coleta de dados subsidiar a pesquisa.

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Considerações finais

A importância da utilização das tecnologias está na ampliação dos espaços e tempos de aprendizagem, na potencialização do espectro do público-alvo, no aperfeiçoamento dos processos de monitoramento da aprendizagem de conteúdos musicais a distância e na formação de professores, monitores e alunos em processos que envolvam políticas publicas de inclusão musical, incentivando-os a participarem criativamente e de forma crítica da humanização das tecnologias e da sensibilização musical pela arte.

Consideramos que para o ensino e aprendizagem da performance musical é necessário que o músico reúna três competências: a do artista, a do professor e a do pesquisador. O artista, enquanto intérprete, capaz de inspirar e sensibilizar o aprendiz a desenvolver seu potencial criativo e dramático; o educador, enquanto mentor, capaz de viabilizar a eficiência, eficácia e efetividade dos conteúdos a serem apreendidos através de práticas e metodologias didático-pedagógicos; e o pesquisador, que com seu espírito crítico e inovador, observa, questiona, testa, analisa e atualiza os processos de ensino e aprendizagem propondo soluções adequadas as demandas específicas do público alvo a ser atendido.

A proposta de pesquisa do projeto de extensão ora em curso pretende aliar conceitos metodológicos da A/r/tografia para fundamentar as práticas da performance de teclado em grupo com processos de ensino e aprendizagem que envolvem crianças, pais, tutores e professores na produção de produtos onde a performance musical em tempo real está aliada a produção de conteúdos multimídia, representações dramático e cênico musicais criadas e desenvolvidas no projeto.

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NOVOS RUMOS

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Considerações sobre fundamentos teóricos compositivos para peças instrumentais baseadas na

escuta de paisagens sonoras

Marcelo VillenaUniversidade Federal do Paraná

Roseane Yampolschi Universidade Federal do Paraná

Este trabalho tem por objetivo investigar ideias de natureza estética com vistas a ampliar as possibilidades de abordagem compositiva. O nosso propósito é desenvolver ferramentas teóricas a partir de princípios pertinentes à soundscape composition, gênero pertencente ao repertório de música eletroacústica, para nortear o processo compositivo em meio instrumental.

As sonoridades ambientais oferecem um estímulo à criatividade do compositor, que participa por meio de sua escuta das diversas situações que emergem acidentalmente através da combinação de agentes naturais e da vida social. Se por um lado as combinações de sons de seu entorno oferecem desafios que sejam de interesse à discussão de questões técnicas (timbre, temporalidade, espacialidade), por outro elas nos remetem às suas vivências afetivas e às maneiras de canalizá-las expressivamente para orientar o processo de comunicação com o seu auditório.

A pesquisa que apoia este trabalho, de natureza experimental, requer um corpo de ideias para nortear aquelas vivências de escuta e as tomadas de decisões necessárias du-rante o processo compositivo; e para estimular a reflexão enriquecedora de conhecimentos na área em questão. O conceito de mimesis, compreendido de modo lúdico e abrangente, e o de gesto musical, como um fenômeno de impulso e articulação do discurso musical fundamentam as considerações feitas neste trabalho.

Soundscape compositionNo final da década de 1960, o compositor canadense Murray Schafer (1933) e

a equipe de pesquisadores da Simon Fraser University (SFU), dentre eles Barry Truax e Hildegard Westerkamp, se unem para criar, em Vancouver, o World Soundscape Project com a finalidade de encontrar soluções para um ambiente sonoro ecologicamente sau-dável, ajustado ao equilíbrio da comunidade humana (Westerkamp, 1991). A partir de suas intervenções práticas e sociais e estudos sobre ecologia sonora, Schafer introduz o termo soundscape – paisagem sonora, para se referir a um campo sonoro que compõe um determinado ambiente acústico:“eu denomino soundscape (paisagem sonora) ao entorno acústico e com este termo me refiro ao campo sonoro total, qualquer que seja o lugar em que nos encontremos.” (apud Ferreti, 2006, p. 25, tradução nossa) Nesse sentido, o termo pode ser compreendido como uma “trama” acústica que se mostra perceptível em um espaço determinado, seja ela uma praça, um museu, uma sala de concertos etc.

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A relativa aceitação do termo nos meios artísticos reflete em parte o interesse cres-cente que o som do meio ambiente vem adquirindo desde o início do século XX. Exemplos disso são o manifesto A arte dos Ruídos (1913) de Luigi Russolo, que convida os músicos futuristas a usar o som/ruído das cidades industrializadas na composição musical; e a in-fluência dos ambientes sonoros nas ideias de Cage (1973) sobre “música indeterminada” e nas suas propostas de ação para performance. Contribui também para a assimilação, por parte dos compositores, de materiais antes não musicáveis o surgimento das tecnologias de gravação (e edição) e a música concreta.

O pensamento de Schafer pode ser considerado uma extensão ecológica do pensa-mento cageano. Dele incorpora a disposição de abrir os ouvidos aos estímulos do mundo e receber os sons do acaso como um fenômeno passível de fruição estética; contudo, desvia a sua atenção dessa orientação estética para focar na qualidade sonora das paisagens – na sua visão, o aspecto “mais negligenciado” do meio ambiente.1 Sob a liderança de Schafer, então, o World Soundscape Project trouxe uma extensão do aspecto ecológico já mencio-nado. Anteriormente, sons e ruídos de um ambiente eram percebidos como ocorrências sonoras. A partir das ideias de Schafer sobre paisagem sonora, esses sons passaram a ser percebidos e assimilados em contextos variados, do ponto de vista social e psicológico; com efeito, o processo compositivo propiciou a ampliação da escuta e das vivências estéticas do compositor e do ouvinte em relação ao ambiente evocado (Truax, 2002).

O núcleo da SFU iniciou suas atividades com o registro de paisagens sonoras em Vancouver. As primeiras gravações tiveram o objetivo de documentar as mudanças da so-noridade ambiental local. Por este motivo, as gravações eram editadas com um mínimo de processamento, apenas equalizadas para deixar o som “cristalino”, com maior definição. Gradualmente, porém, os pesquisadores da SFU ampliaram a sua experiência por meio de processamentos na gravação. Conforme Truax (2002), dessa experiência surgiu um novo gênero de música eletroacústica: a soundscape composition.

O termo soundscape composition se refere a uma estética compositiva que enfatiza os nexos do ouvinte com os estímulos sonoros que recebe no seu cotidiano. Esta ênfase na relação do ouvinte com o som distingue em parte essa forma de fruição daquela vivên-cia sonora global, da paisagem sonora; e também estabelece limites entre a soundscape composition e a música concreta: enquanto nesta os sons são trabalhados como “objetos sonoros” autorreferentes, em uma poética criada “internamente” pelo compositor, na soundscape composition os sons são empregados de maneira a criar a ilusão no ouvinte de estar imerso em uma ambiência sonora referencial.

Para Simon Emmerson (1986), a oposição entre esses valores estéticos reflete de certo modo a divergência histórica de princípios que orientavam gêneros de composição. Daí a sua afirmação de que na música eletroacústica, a intenção explícita do compositor em “evocar” uma situação do mundo real sinaliza controvérsias de natureza estética que prevaleceram em séculos anteriores na prática compositiva.2 Conforme essa ideia, Emmerson cria um eixo imaginário discursivo para representar aquela oposição estética com limite em dois polos: o “discurso mimético” e o “discurso aural”. O primeiro se refere à intenção de

1 Essa ideia já está presente no World Soundscape Project e se tornou um dos principais objetivos de seu livro The Tuning of the World (1977).2 Por exemplo, entre a polifonia renascentista da prima prattica e as formas “barrocas” da seconda prattica, desenvolvida no início do século XVII.

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imitar, sugerir, eventos do mundo real; o segundo, de criar materiais a partir de “valores musicais mais abstratos”.3 Na prática, porém, se constata o emprego de diversos graus de combinação de ambos, o que Emmerson define como “discurso musical”. Este é o que mais oferece possibilidades criativas ao compositor.

A visão de Emmerson serve como ponto de partida para esta discussão à medida que estabelece nexos entre a produção contemporânea e a tradição musical. Este vínculo com o passado serve para situar a nossa proposta, com base em uma ideia de mimesis, em relação ao repertório tradicional. Por um lado, podemos observar a diferença de foco entre a concepção mimética na música (associada comumente com a literatura e a recriação de fatos excepcionais) e a poética da soundscape composition (recriação artística do cotidiano); e então compreender a experiência da música eletroacústica como fator de expansão das técnicas de execução instrumental (técnicas expandidas). O “discurso musical” não mais requer, como no período da “prática comum”, de uma “gramática” pré-determinada.

Por outro lado, a elaboração do conceito de mimesis vem à tona nesta reflexão para gerar caminhos alternativos para investigação de mecanismos de criação, fazendo do que parece um entrave, a princípio, uma motivação à pesquisa compositiva. A mimesis, segundo Benjamin, pode ser compreendida como base para um processo de escuta aberta a determi-nadas formas de interpretação (Ferretti, 2011) e reconstrução criativa de eventos de um meio em outro. Nesse sentido, a principal opção neste trabalho será considerar uma aproximação entre mimesis e gesto musical.

Mimesis e criaçãoA mimesis esteve presente em diversas regiões do mundo como fundamento original

de criação artística dentro de um contexto mítico-mágico. Exemplos disso são as pinturas rupestres, as reproduções de fenômenos naturais no teatro tradicional japonês e o vínculo do som ambiental com a criação musical da etnia dos Suyá (Mato Grosso) (Seeger, 2004, p. 53-54). Nesses casos, a mimesis é trabalhada dentro de um código pré-estabelecido de simbolismo religioso.

Na época da filosofia clássica, o conceito de mimesis se estendeu às representações artísticas. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin assinala a particularidade desse conceito na música:

Os gregos clássicos pensam sempre a arte como uma figuração enraizada na mímesis, na representação, ou, melhor, na “apresentação” da beleza do mundo [...]; a música é o exemplo privilegiado de mímesis, sem que seja imitativa no nosso sentido restrito. (Gagnebin, 2011, p. 68)

Foi a partir dos escritos de Platão e Aristóteles que o conceito, da forma como o compreendemos hoje, influenciou o pensamento filosófico ocidental. Para Aristóteles, a mimesis apresenta um papel importante no conhecimento do mundo – ela abriga a raiz da

3 Emmerson exemplifica o uso de “discurso aural” através de peças eletrônicas de fundamento serial (Ensemble - Babbit) e o uso de “discurso mimético” através de peças que empregam som ambiental com mínimos processamentos em estúdio (Presque Rien - Ferrari). Esses discursos também repre-sentam polos opostos em outra categoria empregada pelo compositor: a “sintaxe abstrata” e a “sin-taxe abstraída”. Na “sintaxe abstrata” a organização dos materiais obedeceria a critérios estabeleci-dos a priori, enquanto que na “sintaxe abstraída” a organização é deduzida dos próprios materiais.

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criação artística. Em seu fundamento, a mimesis condiciona toda forma de criação artística e o modo como ela deve ser contemplada para o desfrute de sua Beleza. Assim, Aristóteles em sua Poética prescreve normas do fazer poético que, embora contemplem aspectos morais, se concentram em “como” se realiza a mimesis (Gagnebin, 1993, p. 69).

No século XX os filósofos germânicos Adorno e Benjamin contribuíram significativamente para aprofundar o conceito do ponto de vista social e artístico. Para Gagnebin, a noção de mimesis em Dialética do Esclarecimento oscila do ponto de vista ontológico. Adorno parte do pensamento mítico/mágico – em que sentimentos contraditórios de temor e prazer são comuns diante de fenômenos de perigo e exaltação da vida, respectivamente. A esta ideia primeva de mimesis Adorno sobrepõe uma segunda, de acordo com a sua constatação histórica da formação racional, rígida, do modo de pensamento ocidental. Com base em Freud, o filósofo vê no comportamento do homem moderno uma espécie de recalque mimético de experiências originais, no passado, de abandono e de fraqueza (Gagnebin, 2008, 146-148). Esta mimesis negativa faz regredir o homem a uma condição que avilta e denigre a sua própria natureza. Em suas conclusões, a autora se refere à possibilidade de que a mimesis – em Teoria Estética, último trabalho de Adorno – seja uma via de abertura para que o homem possa redefinir os seus limites cristalizados pela perversidade e autoritarismo e então alcançar a sua liberdade própria em direção ao “outro” (Gagnebin, p. 152).

Para Benjamin, a mimesis parece ser uma lei da natureza, um dom, que outrora representava para o homem uma forma essencial de agir e de compreender o mundo e que, no curso do tempo, perdera a sua força de expressão na vida moderna. O homem, dentre os seres da natureza, é aquele que tem a capacidade “suprema para produzir as semelhanças.” Assim como para Aristóteles, Benjamin postula a relevância da faculdade mimética para a aprendizagem das coisas no mundo: a mimesis está na raiz do conhecimento de como as coisas funcionam na realidade. E em sua natureza educativa, ela gera “prazer em conhecer”. Prova disso é a persistência da mimesis, no curso da história, nos jogos de aprendizagem infantil, e aparentemente, nos atos de criação artística. A criança, em sua brincadeira, toma para si o controle dos objetos à sua disposição e cria, a partir deles, o seu próprio mundo de forma original (Benjamin, 2002, p. 238).

Outro exemplo da força da experiência mimética está na astrologia. Em tempos passados, a conjunção dos astros era “dada” para o astrólogo de modo imediato. Mas para o homem moderno, é a linguagem que medeia a sua “leitura” O que é comunicável na linguagem, para o filósofo, não está apenas na sua natureza significativa. A percepção mimética tem como correlato uma natureza “mágica” da linguagem, uma natureza que afeta o seu leitor, em sua expressão. Nesse sentido, o conceito ultrapassa a ideia de semelhança. Saber ler uma história exige do seu leitor a capacidade de reconhecer semelhanças que não se encontram na parte visível de objetos, as semelhanças não sensíveis, o que implica reunir as partes em “uma relação de configuração” (Gagnebin apud Schlesener, 2009, p. 155).

Esta explicação nos remete a outro ensaio de Benjamin, em que o filósofo expõe a tarefa do tradutor. Deste texto consideramos a hipótese de que os conceitos de mimesis e tradução, conforme Benjamin, convergem, ao menos, em um ponto. Essa hipótese é relevante devido ao nosso propósito de conceituar do ponto de vista mimético a interpretação e reconstrução de determinados “comportamentos” e morfologias sonoras da música eletroacústica na música instrumental.

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Em suas reflexões, Benjamin afirma que a tradução “é uma forma”. Ele então relaciona o conceito de forma à noção de “traduzibilidade”, própria de certas obras. A “traduzibilidade” de uma obra literária, que está na “sua própria essência” – não depende diretamente de seu significado ou da frase que o contém4 – implica de certo modo uma visão autorreferente da forma artística. O que é comunicável está na própria língua, não exatamente em seu conteúdo, mas em seu “modo-de-querer-dizer” (Camacho, 2008, p. 32). Em outro ensaio, Benjamin explica essa ideia de outra forma: “a linguagem desta lâmpada não comunica a lâmpada mesma (pois a essência espiritual da lâmpada enquanto comunicável não é nunca a lâmpada mesma), mas a lâmpada-na-linguagem, a lâmpada-na-comunicação, a lâmpada-na-expressão.” (apud Portugal, 2011, p. 61) 5

Essa condição da natureza das coisas, comunicáveis enquanto forma de “expressão” na linguagem, significa um ponto de partida metafísico: o que é comunicável da espiritualidade do ser das coisas na natureza está na própria linguagem de modo imediato. Esse é o motivo pelo qual Benjamin pode se referir a uma “linguagem” da música,6 dentre outras linguagens, pois a “comunicação” de sua essência, a sua “expressão”, reside na música. Assim, a magia da linguagem, como forma poética, se refere a essa imediatidade. Não há forma de representação a priori.

Portanto, é possível inferir que a mimesis consiste num modo de apreensão da realidade que “tangencia” a tarefa do tradutor. É esta visão da mimesis que interessa à nossa abordagem, do ponto de vista musical. A mimesis propicia a criação de formas mais ou menos livres, do ponto de vista produtivo e lúdico, pois ela faz ecoar aquele modo de agir das crianças no processo de escritura do compositor. Esta visão abrangente e aberta a inúmeras possibilidades de criação é condizente com a abordagem fenomenológica proposta à medida que favorece a investigação de novas relações entre o som ouvido e a construção musical, instigada pela memória e universo afetivo do compositor. Assim, o trabalho proposto considera as possibilidades de interpretação que as paisagens sonoras oferecem para a realização de um trabalho compositivo aberto a diferentes abordagens.

O gesto musical como estratégia para a apreensão miméticaA escuta direta, lúdica, do som propicia a distinção e interpretação pelo compositor

de modos de comportamento e organização de eventos sonoros. Esta vivência lhe possibilita estabelecer vínculos afetivos com o seu objeto e de buscar, em sua escuta, uma nova dimensão poética da forma sonora.7 Essa constatação nos oferece terreno para desenvolvermos, nos próximos parágrafos uma possível ligação entre mimesis e gesto musical: a estratégia mimética, concebida no limiar daquela tarefa, própria do tradutor, apresenta de certo modo, um correlato sonoro: o gesto.8

4 Apesar da importância dos valores estéticos herdados de sua tradição romântica, sobretudo os de Iena, interessa ao nosso propósito discutir questões de natureza imanente. 5 Portugal especula sobre a extensão que o significado de expressão apresenta para Benjamin. 6 A noção de linguagem no âmbito musical, para o nosso propósito, é compreendida como discurso.7 Esta forma de escuta não prescinde de uma análise de gravações. Estas fornecem dados qualitativos e quantificáveis sobre o “comportamento” de uma paisagem.8 A associação da mimesis com o gesto musical passa pela esfera cognitiva e corporal. Há muitos estudos hoje que versam sobre a importância da mimesis como forma de conhecimento de si e do mundo. Cox (2011) desenvolve as suas ideias baseada na premissa de que toda forma de imagem

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Em The performance of Gesture, then, and now (1984) Mark Sullivan propõe que “gesto musical” seja o termo próprio para conceituar as diversas terminologias que tratam das relações entre “parâmetros” e entre eventos de diferentes meios (p. 1). Importa destacar duas ideias que são relevantes para o nosso propósito, a saber:

– o gesto se distingue como um “todo”, como uma gestalt composta; ou seja, o gesto é um fenômeno híbrido em que prevalece o som em movimento. Está implícito que tal configuração referencia materiais de meios diversos. O gesto deixa transparecer uma ou mais configurações que são criadas conjuntamente entre esses parâmetros. Em suas palavras: “o gesto musical não pode ser encontrado ao se olhar para uma sequência de tons [...] ou para uma dinâmica de constelações [...] isoladamente. Ele é encontrado em configurações criadas conjuntamente entre parâmetros” (Sullivan, 1984, p. 32; tradução nossa).

– gesto e meio são indissociáveis, este caracteriza aquele do ponto de vista físico e histórico. Quanto à materialidade, um meio se distingue a partir de seu comportamento. Este comportamento apresenta, por sua vez, uma “ordem” estrutural que gera restrições de uso: um meio oferece resistência ou favorece a elaboração de certas ideias. As características físicas de um meio estão condicionadas ao tempo. Assim, à natureza histórica do meio corresponde, por exemplo, hábitos de uso, condicionamentos práticos e valores estéticos que foram preservados nele como um resíduo histórico.

Assim, a resistência que um meio oferece ao compositor limita a sua escolha e organização de elementos constitutivos na criação. Pode-se tentar alterar a “ordem” deste meio ao se adotar materiais de outro meio. Ao fazer isso intencionalmente, o compositor cria um meio híbrido – o qual Sullivan reconhece imageticamente como “gesto”.

Quando componho gestos, eu crio ligações propositais. Por meio de uma configu-ração inserida num evento em um meio, eu o ligo a uma configuração em outro meio, e assim, às características de um evento em outro meio, às características de uma classe de eventos em outro meio, ou às características de uma classe de eventos que abarcam vários meios. (Sullivan, 1984, p. 21-22; tradução nossa)

Seguindo o raciocínio de Sullivan, conclui-se que a percepção auditiva de um evento, desde uma fruição estética (tal como proposto por Murray Schafer), se efetua concretamente em um meio híbrido. Por exemplo, o foco na escuta apreende o som de um caminhão trafegando que se mistura ao canto de um pássaro, a um objeto metálico batendo, à fricção de uma vassoura no chão, ao pregão de um vendedor de rua. Os sons de diversas fontes se misturam de forma dinâmica e extremamente complexa, sugerindo ao compositor diferentes relações sonoras para sua interpretação em um meio instrumental (relações comportamentais de materiais sonoros na composição também podem referenciar o entorno sonoro). As mudanças na dinâmica de comportamentos sonoros durante um lapso de tempo, portanto, poderão servir de subsidio a um planejamento macroestrutural da composição, tendo em mente certa liberdade apropriada à nova dimensão física e psicológica dos materiais na música.

Com efeito, o conceito de gesto se amplia para abarcar as diversas sonoridades, com

ou pensamento musical é em parte imagem motora, isto é, imagem que é encorpada a partir de exercícios e movimentos realizados pelo nosso corpo, em performance.

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suas possíveis dinâmicas de interação comportamental; e as suas “morfologias”, incluindo o seu ataque, impulso, direcionamento, variações de espectro e de intensidade e formas de articulação em seu contexto sonoro global. As ideias de Sullivan também sugerem para nós uma hipótese valiosa em relação à estética da soundscape composition: quando um evento característico de um meio é “levado” para outro, ele ativa a memória e cria novas relações afetivas. Daí a relevância da faculdade mimética tal como concebida por Benjamin para direcionar em parte a percepção de sons como gestos: o campo referencial que dá sentido à mimesis em um meio se expande e se multiplica, abrindo novas possibilidades de apreensão do fenômeno sonoro em sua forma híbrida.

É nesse sentido, mais global, que nos voltamos para aquela representação de Emmerson das várias possibilidades de “discurso”. 9 A característica híbrida do gesto musical o distingue como uma configuração dinâmica, uma imagem em “ação”. A possibilidade de distinguir o gesto como discurso, no entanto, depende em parte de como ele se efetua perceptivelmente como expressão. Para ampliar a compreensão desses conceitos e o modo como eles se inter-relacionam esteticamente, será útil considerar, a seguir, alguns fatores de criação e percepção do gesto musical na composição.

Conforme o compositor Trevor Wishart (1996), as ocorrências sonoras na música eletroacústica podem ser “re-criadas” de modo direto na música instrumental. Em suas palavras:

A morfologia de gestos intelectuais e psicológicos (um aspecto do comportamento humano) pode ser transportada diretamente na morfologia dos objetos sonoros pela ação da laringe ou da musculatura e um transdutor instrumental. (Wishart, 1996, p. 15; tradução nossa)

Essa visão aparentemente objetiva de “transposição” de materiais de um meio para outro deve ser compreendida com ressalvas. A compreensão mimética deste processo relativiza a racionalidade operadora, e abre espaço para a contextualização da força de expressão mimética do intérprete. O gesto preciso do instrumentista é necessário para uma boa performance. Quando um compositor concebe uma obra, ele “visualiza” os gestos que o instrumentista deve realizar. Desta maneira, uma intenção musical carrega em si muitas vezes uma intenção gestual.10

Prova disso é que frequentemente a escrita musical (descritiva e prescritiva) se refere tanto à representação do som quanto à “ação” do instrumentista. Os sinais gráficos de uma partitura são em parte instruções dadas pelo compositor ao intérprete sobre as “ações” corporais que ele deve realizar para dar vida à “ideia” musical.11 Dessa maneira, o gesto físico que produz o som está presente não só na execução; ele ganha sentido na intenção, na concepção imagética de uma peça. Por tal motivo, a renovação das ideias no decorrer da história tornou necessária a renovação dos sinais. Ideias musicais como as do compositor Helmut Lachenmann, por exemplo, derivadas das experiências da música

9 Ananay Aguilar (2005), em sua análise sobre a proposta de Emmerson dos conceitos de discurso e sintaxe argumenta que essa proposta depende da relação direta do ouvinte com o fenômeno sonoro por meio da escuta.10 Para Cox (2011) esta relação é evidente. 11 Os instrumentos transpositores são um exemplo claro disto: para o instrumentista importa, sobretudo, visualizar a posição dos dedos.

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concreta, jamais poderiam ser grafadas numa escrita convencional e talvez sejam um exemplo claro da importância do gesto corporal na concepção e interpretação de uma obra.

Wishart distingue dentre os instrumentos musicais aqueles que reforçam mais ou menos a intenção do compositor: o poder gestual da voz vem em primeiro lugar, seguido dos instrumentos de sopro e as cordas tocadas com arcos. A percussão e o piano, segundo o autor, estão em uma categoria à parte. Essa distinção se refere às possibilidades de mudanças na morfologia interna de uma só nota ou uma determinada ocorrência musical. Apenas os primeiros apresentam tal possibilidade de transformação tímbrica e dinâmica. Exemplo dessa capacidade de transmitir ideias ou “imagens” (por meio dos instrumentos) está no uso dos instrumentos de percussão “falantes” em algumas etnias da costa ocidental africana (Haussas, Ghana, Yorubás).12 Em culturas tradicionais, esses instrumentos produzem padrões sonoros em ritmos proporcionados, os “códigos” gestuais instrumentais, que imitam as inflexões das linguais tonais usadas por esses povos; desse nodo, eles conseguem transmitir determinados “conteúdos” para suas comunidades.

Outra dimensão relevante da concepção gestual para a apreensão mimética consiste no sentido espacial que o som apresenta na escuta. O gesto musical, por ser um evento híbrido, tende a gerar um sentido espacial que se constitui no tempo. Assim, a pesquisa da escuta do som no espaço, no campo da música eletroacústica, por exemplo, poderá servir para estimular a memória e a criatividade no trabalho instrumental (Caesar, 2004). A ambientação espacial do som no local de sua apresentação aviva a intenção do compositor em relação às configurações construídas em seu meio.

Por sua vez, Oliveira e Toffolo (2008) sinalizam a relevância de aspectos psicológico-afetivos na criação de soundscape compositions: “a paisagem sonora apresenta restrições de significação em situações de performance em palco italiano” já que o foco da escuta acontece por um corpo imerso no meio e não por um ouvinte passivo “fora da cena”. Estratégias de espacialização sonora se tornam então a melhor maneira de trazer a exper-iência fenomenológica do ouvinte no entorno sonoro para o palco. A dimensão espacial do som se projeta por meio da distribuição dos instrumentos no palco e de sua profundidade no ambiente. A concepção de estratégias de performance, portanto, devem se ajustar às condições artísticas de organização sonora em seu conjunto.

A concepção espacial do som, em geral, enfatiza a gestualidade musical no espaço acústico de uma sala de concerto. Os instrumentos concorrem, cada um com seu impulso, ataque e energia, para gerar planos que interagem no espaço; assim, eles evocam a multi-plicidade sonora de uma ambiência musical. Por meio deles, ajustamos a concepção sonora à realização prática. Na música eletroacústica, a percepção da profundidade sonora no local de apresentação pode fracassar parcialmente devido à movimentação “automática” dos sons entre os alto-falantes. Já os instrumentos acústicos podem ser movidos e manipulados durante a execução, ou amplificados e reproduzidos em outro local da sala para gerar novas ambiências sonoras.

Enfim, a concepção espacial do som reafirma a potencialidade discursiva do gesto, pois ela cria uma identidade sonora reconhecível para o ouvinte, que poderá então inter-pretá-la de outro modo. Ela pode servir também para articular formalmente os eventos ou ser usada como matriz de ideias maiores. Wishart observa que uma ocorrência gestual se

12 Talking Drum. Disponível em <http://www2.si.umich.edu/chico/instrument/pages/tlkdrum_gnrl.html>.

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articula em eventos de maiores e menores proporções, em camadas estruturais distintas na composição.13 Já a contraposição de estruturas sonoras que apresentam comportamentos diversos possibilita ao compositor, para fins expressivos, articular essas estruturas para ampliar os materiais e recriar espacialmente as relações de comportamentos. Esse processo de articulação formal entre os materiais estimula a imaginação discursiva do compositor, e afeta o seu ouvinte por meio de experiências de surpresa e expectativa.

Considerações finaisEste trabalho buscou refletir sobre princípios estéticos que possam nortear a

criação de composições de caráter experimental. A proposta de aproximar o conceito de mimesis (segundo Benjamin) a um processo de escuta e interpretação de materiais de um meio em outro, de modo lúdico e criativo, oferece vários desafios, dentre eles: a consciência da mediação subjetiva na vivência musical, como um todo; a representação imagética de comportamentos sonoros em meios distintos e a percepção dos modos e da intensidade com os quais eles afetam o seu ouvinte; a vivência estésica/poética do fenômeno musical, imediata e pré-reflexiva.

Sob essa perspectiva, uma determinada correspondência entre gesto – um evento híbrido – e estratégia mimética nos conduz a uma compreensão focada das possibilidades de abordagem conceitual e prática do “discurso” na música instrumental. Desse modo, o gesto pode funcionar como elemento articulador e impulsionador do discurso sonoro; como ferramenta de interpretação das sonoridades ambientais, tanto no aspecto unitário (eventos pontuais) quanto macro-formal (“comportamentos”, “massas sonoras”) e sua aplicação compositiva; e por meio de sua dimensão cinemática e espacial (estratégias para mimetizar, por exemplo, características sonoras como: ataque, impulso, energia, densidade, direcionamento, articulação e duração dos sons no ambiente reservado).

Portanto, a concepção híbrida do gesto musical serve a uma tarefa poética de interpretação e reconstrução de ‘momentos comportamentais’ diversos; e a sua concreção sonora tem por finalidade mover o seu ouvinte em sua expressão. O empenho na qualidade da pesquisa do som, como forma de transgredir em parte aquela dupla natureza do meio, vem a ser determinante, nesse sentido, para estear o processo de composição e ativar a memória do ouvinte no fluxo do discurso musical.

Outra questão que foi implicitamente abordada e que merece ser investigada posteriormente trata do “foco auditivo” da experiência sonora em um determinado ambiente. A complexidade na sucessão e simultaneidade de eventos sonoros nesse contexto pode oferecer desafios para o compositor no que se refere ao direcionamento de sua percepção e interpretação dos mesmos durante o processo de escuta. Este foco servirá para traçar estratégias para a prática composicional e afetar produtivamente a percepção de seu ouvinte. Deste modo, a noção de gesto musical – que se distingue como uma configuração dinâmica, de impulso referencial (para dentro e para fora de seu meio composto) – poderá então ser ampliada a partir desta nova pesquisa.

13 Essas ocorrências podem revelar, através de uma análise espectromorfológica, elementos sonoros de meios diversos. A referência às estruturas de grandes proporções é exemplificada por certo tipo de repertório pós-serial (Penderecki, Xenakis), em que predomina uma concepção “arquitetônica” na organização sonora. Nestas obras as “massas sonoras” podem ser compreendidas como “desdobramentos gestuais de eventos muito lentos e muito controlados” (Wishart, 1996, p. 32).

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Steve Reich e a estética minimalistaIsmael Lins Patriota

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Descendente de judeus alemães, Steve Reich (1936-) estudou filosofia a partir dos 16 anos na Cornell University, terminando o curso com uma dissertação sobre o filósofo Wittgenstein (1889-1951). Em 1958 entrou na Julliard School of Music, estudando com Vincent Persichetti (1915-1987), compositor e pianista americano. Entre os vários empregos no início de sua carreira, destaco aqui sua experiência como taxista, que o levou a compor Livelihood (1964), feita de colagens em fita magnética de sons gravados em seu taxi. Ele iria destruir a fita nos anos 1980. Podemos imaginar que a experiência com as colagens em Livelihood não o interessaram, composicionalmente, tanto pela ausência desta peça em seu conjunto de obras, como pela destruição da fita. De qualquer modo, nos anos 1960 Reich já havia composto algumas obras para o grupo teatral Francisco Mime Troupe Theater, participando também como pianista. Foi numa das apresentações da trupe que ele conheceu Terry Riley e a amizade entre os dois acabou por levar Reich a participar da première de In C (Riley, 1964). Potter (2004, p. 164) destaca a influência desta peça na formação do compositor, pois ela “apontou para um mais organizado e consistente tipo de “fazer-padrões” com meios altamente redutivos”. Reich considerou In C uma peça seminal e importante também para seu caminho composicional. De fato, It’s Gonna Rain (1965) e Come Out (1966), que trabalham com os “meios altamente redutivos” de que fala Potter, vieram logo depois desta experiência com Riley.

Reich também se envolveu nos eventos promovidos pelas artes plásticas e a première de Violin Phase (1967) foi feita no School of Visual Arts em 1967 (Potter, 2004, p. 171), sob a direção de Robert Rauschenberg (1925-2008), este um importante escultor e pintor americano. A importância destas experiências com outros artistas levou Potter a declarar que “Reich descobriu que ele tinha mais em comum com os que trabalhavam na escultura ou pintura, teatro ou filme, do que com a maioria dos músicos” (Potter, 2004, p. 171).

Mas quais seriam essas familiaridades? Como podemos estabelecer relações entre o compositor e as artes plásticas? Procurando responder a esta pergunta, discutimos a seg-uir um pouco de suas preferências estéticas a partir do trabalho de Jonathan Bernard, The Minimalistic Aesthetic in The Plastic Arts and in Music (1993) que expõe algumas caracterís-ticas do Minimalismo compartilhadas pela música e artes visuais. Analisaremos três pontos problematizados por Bernard, a saber: a reação ao Expressionismo Abstrato, o destaque sobre a superfície e a mudança da ênfase na composição para o arranjo. Discutiremos esses três pontos enfocando as escolhas composicionais e estéticas de Reich.

O Expressionismo Abstrato foi uma corrente do pós-guerra que valorizava a espon-taneidade gestual e o acaso. Teve como conhecido representante o artista Jackson Pollock (1912–1956), que pintava com as telas no chão, à medida que as circulava, na técnica con-hecida como “drip painting”. O método, criado por Pollock, consiste em gotejar a tinta sobre a tela, resultando em linhas difusas, desconexas, embora o artista negasse a existência do acaso, ou de “uma “ação aleatória” em suas obras” (Emmerling, 2003, p. 68). Levine (1971,

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p. 24) destaca que o Expressionismo de Pollock leva a um “perder-se nos ritmos... Ele usa a linha não para criar forma, mas para evitar qualquer experiência de forma e, portanto, de qualquer entidade individualizada.”1 Este foco no gestual e no acidental,

traz à lembrança as obras de John Cage, Morton Feldman e Earle Brown do início dos anos 50. Todos os três incorporaram em suas peças métodos baseados no acaso, seja como um processo composicional, um veículo da performance, ou os dois.2 (Bernard, 1993, p. 91)

Nesta linha de pensamento, a obra musical de Cage nos levaria a um perder-se nos sons, através da utilização sonora fora de contexto formal, rompendo com a experiência linear no sentido em que “a redução do contexto musical à apresentação do fenômeno sonoro isolado... Aniquila o som musical, que possui significado somente através de seu contexto”3 (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). A ausência contextual em suas obras só aumenta as incertezas e surpresas auditivas. Isolando um som de outro, “só assim eles podem ser eles mesmos” (Boehmer e Pepper, 1997, p. 69). Cage claramente rompe com os Serialistas pós-webernianos, que, nas palavras de Paulo de Tarso Salles (2005, p. 68), “sustentavam ainda a continuidade de uma tradição fundada sobre a coerência tonal”. Nesse contexto, é importante destacar que o Minimalismo musical não foi contra o acaso de Cage. Eles viam o acaso apenas como uma proposta a não ser seguida, uma abordagem reacionária com a qual eles não simpatizavam.

Steve Reich, na sua segunda entrevista a Michael Nyman em 1976, fala que, ao escrever o artigo Music as a Gradual Process (1968), sua intenção era se separar do acaso e da livre improvisação. “O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada com certa impessoalidade” (Reich, 2004, p. 92). Ele iria afirmar:

Certamente não há lugar para o acaso [em minha música], além do lugar tradicio-nal que ela ocupa. Isto é, depois dos ensaios, ninguém pode afirmar exatamente como irá ocorrer a performance. A ideia de compor jogando moedas ou através de oráculos, ou outras formas de acaso, eu rejeitaria agora tal como eu rejeitei em 1967... Mas há uma grande diferença entre acaso e escolha, e o que eu estava tentando fazer nas minhas primeiras peças, era, até certo grau, eliminar escolhas pessoais como compositor.4 (Reich, 2004, p. 93)

1 “Lose oneself in the rhythms… He uses line not to create form but to obviate any experience of form and hence an individualized entity.”2 “Bears a good deal of resemblance to the work of John Cage, Morton Feldman, and Earle Brown from the early fifties onward. All three of these composers incorporated chance-based methods into their music, either as a matter of compositional process, or a vehicle for performance, or both.”3 “The reduction of musical context to the presentation of isolated sound phenomena… liquidates musical sound, which possesses significance only through its contextual placement.”4 “Certainly there’s no place for chance beyond the traditional place for it. Namely, after the rehearsals, one can never know exactly how a live performance will go. The idea of composing through tossing coins, or oracles, or other chance forms I would reject now, as I did in 1967… But there is a great difference between chance and choice, and what I was trying to do in my earlier pieces was, to some extent, eliminate personal choices as a composer.”

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Como podemos perceber, Reich não se interessou pela proposta de Cage em usar nas composições, moedas, oráculos etc. e sua busca por eliminação de escolhas pessoais o levaria a outros caminhos, como veremos mais adiante. Bernard destaca ainda que o acaso não foi totalmente eliminado pela estética Minimalista. “Devido à simplificação drástica do material e das rédeas formais às quais o material está sujeito, que são consideráveis, o resultado permanece afunilado em um pequeno campo de possibilidades”5 (Bernard, 1993, p. 96). Assim, Bernard dá dois exemplos do que ele chama de constrained chance. Terry Riley (1935 -), por exemplo, em In C (1964), deixa em aberto não só o número de instrumentistas e a instrumentação, mas também o tempo exato que cada instrumentista pode levar em cada uma das 53 figuras que compõem a peça. Um segundo exemplo vem de La Monte Young (1935 -), com The Well-Tuned Piano (1964), que dura de três a quatro horas e meia, podendo durar até mais. Esse tempo, diz Bernard, está baseado em seções que podem ser alongadas ou contraídas, dependendo da escolha do intérprete. Podemos indagar se as escolhas em algumas obras de Steve Reich não podem ser incluídas nesta categoria. Tome-se, por exemplo, Piano Phase (1967), em que um padrão melódico tocado inicialmente em uníssono, por dois pianistas, entra em defasagem. A escolha do tempo que leva para a entrada de uma nova fase como também a duração das fases depende exclusi-vamente de um dos intérpretes. Logicamente, a cada nova apresentação uma nova versão da peça será ouvida e já que ela se resume basicamente a esse processo de defasagem, somos tentados a incluí-la na categoria de Bernard: não é somente uma escolha, porque aqui esse processo é a própria peça.

A ênfase sobre a superfície é outra característica que se buscou no Minimalismo. Na pintura e na escultura, essa procura tomou a forma de objetos e telas como se feitos indus-trialmente. Frank Stella (1936-) diria: “tentei manter a tinta na pintura tão próxima quanto à que estava na lata de tinta”6 (apud Bernard, 1993, p. 97) e Robert Morris (1931-) dizia ser essa busca fundamental para “quebrar a tediosa cadeia de artisticidade7 que circunscreveu cada nova fase da arte desde a Renascença”8 (apud Bernard, 1993, p. 99). Stella e Morris claramente estavam se afastando da subjetividade das artes plásticas e se aproximavam de uma clareza discursiva, no sentido em que as subjetividades se afastam e o espectador observa as obras como num contato direto, sem a necessidade de interpretações próprias. Como disse Frank Stella (1936-) “O que você vê é o que você vê”9 (apud Bernard, 1993, p. 53). Esse foco se manifestou radicalmente no uso do monocromatismo, em que as telas são pintadas com somente uma cor. Strickland reconhece três artistas como pioneiros: Yves Klein (1928-1962), Ad Reinhardt (1913-1967) e Robert Rauschenberg (1925-2008). Klein, por exemplo, ficou conhecido por telas completamente azuis. A escolha do azul seria inspirada no céu, e daria às suas obras “patente subjetividade e simbolismo... Evocam forças elemen-tares ou eternas” (Strickland, 2000, p. 34). É interessante que mesmo o monocromatismo azul de Klein sugere, para Strickland, certo grau de subjetividade. Talvez, por isso, as cores

5 “Because the material itself has been drastically simplified, and because the formal constraints to which it is subjected are considerable, the result remains channeled within a relatively narrow range of possibilities.”6 “I tried to keep the paint as good as it was in the can.”7 Palavra sugerida pelo professor Rodrigo Cicchelli (UFRJ) na falta de uma tradução em português.8 “the tedious ring of ‘artiness’ circumscribing each new phase of art since the Renaissance.”9 “What you see is what you see.”

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branca e preta foram as mais utilizadas no monocromatismo, pois o branco é a soma das cores, enquanto que o preto é a ausências delas. Isto é, telas brancas e pretas se afastam tanto da expressividade quanto da subjetividade que as cores podem trazer. Esta visão objetiva, privada de subjetivismos, seria muito influente com o passar dos anos e chama a nossa atenção porque diz respeito ao próprio papel da obra de arte, vista aqui como um objeto que não precisa nem remete a algo fora de si mesmo. Isso influenciou no uso de materiais industriais por parte dos escultores. Eles utilizaram desde o aço inoxidável até tubos e lâmpadas fluorescentes, plásticos, vidro, papel de jornal etc. Os artistas buscaram então, com obras “manufaturadas”, remover ou encobrir traços de pessoalidade artística, levando o espectador a entrar em contato com a obra de arte sem intermediações de qualquer tipo. Reich também fala:

O que eu queria era uma mistura de escolha individual controlada com certa impessoalidade. Você está fazendo algo que por si só está sendo trabalhado, e ainda por que você escolheu o material e o processo, isto também é uma expressão de você mesmo, não necessitando uma intromissão maior para você expressar sua personalidade.10 (Reich, 2004, p. 92)

A procura e o interesse na organização do material sonoro levaram Reich a obras impessoais, ou superficiais, utilizando o termo de Bernard, ainda que ele fale de “expressar de sua personalidade”. Para Bernard, a superficialidade seria consequência do uso exten-sivo da repetição, estando ou não a serviço de uma mudança gradual. Quando a repetição é combinada com um pulso firme e uniforme, a obra “parece calculada para evocar um senso de horizontalidade, negar que exista algo além da superfície para atrair a atenção do ouvinte” (Bernard, 1993, p. 99). Podemos enxergar uma ênfase na superfície como provinda da busca pelo controle do material e do processo, de que fala Reich, principalmente nas primeiras peças do compositor, quando ele se utiliza de um processo “puro” (Reich, 2004, p. 92), isto é, a utilização de um processo como sendo aquilo que ocorre, acontece, na música. Logo depois de It’s Gonna Rain (1965) e Come Out (1966), Reich compôs Piano Phase (1967) e Violin Phase (1967) utilizando o mesmo processo anterior realizado com fitas magnéticas: a defasagem, que consiste basicamente de uma mudança de fase entre duas vozes em uníssono.

Posteriormente, suas obras perderão a ênfase na “pureza processual” em vista de uma maior liberdade harmônica, mas mesmo depois das primeiras experiências do com-positor na utilização de um processo puro, a maioria de suas obras continua a manter um pulso firme e uniforme. Potter, por exemplo, utiliza o termo maquinístico11 (Potter, 2004, p. 242) ao se referir à última parte de Music for 18 Musicians (1976), mesmo já considerando a obra, em sua análise, como pertencente a uma fase pós-minimalista do compositor. Esta peça é um bom exemplo aqui, pois o ritmo firme e pulso uniforme são apenas destaques sonoros para outros processos. O interesse de Reich pela percussão e posterior valoriza-

10 “What I want was a blend of controlled individual choice and impersonality. You’re doing something that’s working itself out and yet because you’ve chosen the material and the process it’s also expressive of yourself and you needn’t meddle with it any further for it to express your personality.”11 Maquinations, no original.

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ção do grupo percussivo em suas obras, junto com uma ênfase em processos repetitivos, ao nosso olhar, legitimam o uso do termo maquinístico, mas devemos usá-lo de forma cuidadosa, evitando simplificar a riqueza dos processos de uma peça a uma mera questão rítmica. A evocação de um caráter “industrial” é somente um ponto de vista. Como Reich falou no início de seu artigo Music as a Gradual Process: “eu não considero o processo da composição, mas obras musicais que são, literalmente, processos”12 (Reich, 2004, p. 34). Ou seja, claramente a questão processual se sobrepõe ao caráter percussivo. Por exemplo, em The Four Sections (1987), sua primeira peça para orquestra, cada um dos quatro movi-mentos pode ser dividido em quatro partes, onde cânones e repetições são constantemente explorados em partes específicas da orquestra. Há também o uso de uma harmonia simples (mesmo no quarto movimento, parte em que há mais cromatismo, há extensa repetição do motivo, que ajuda na compreensão) e, logicamente, essa ênfase harmônica e a maior liberdade na exploração orquestral estão sendo usados de um modo limitado, sem a busca de virtuosismos ou complexidades melódicas ou timbrísticas.

A terceira característica do Minimalismo discutida por Bernard vem das artes plásticas, onde os artistas mudaram a ênfase da composição para o arranjo, ou das partes para o todo. Ele explica:

Arranjo aqui implica em uma noção pré-concebida do todo, e oposta à noção de composição, que implica num ajuste das partes, isto é, os tamanhos, formas, cores ou localização, em vista a se chegar ao trabalho final, cuja natureza exata não é conhecida de antemão.13 (Bernard, 1993, p. 99)

O interesse, então, é reduzir o número de partes que compõem a obra, de modo a uma maior uniformidade e clareza no discurso. A partir dessa clareza discursiva, alguns artistas desenvolveram as chamadas “formas simples”, ou formas “unitárias” isto é, polie-dros regulares ou irregulares, no qual o espectador não precisa se mover para ter a ideia do todo. Em Equivalents I-VIII,

as formas são “capturadas” instantaneamente pelo espectador... O mesmo número de tijolos14 (120) é colocado para formar cada um dos oito blocos maio-res, todos com dois blocos de altura, mas variando nas outras duas dimensões.15 (Bernard, 1993, p. 101)

Ou seja, “alguém vê e imediatamente ‘acredita’ que o padrão dentro de sua mente corresponde à existência factual do objeto”16 (Robert Morris, apud Bernard, 1993, p. 101).

12 “I do not mean the process of composition, but pieces of music that are, literally, processes.”13 “Arrangement is taken here to imply ‘a preconceived notion of the whole,’ as opposed to composition, which “usu-ally means the adjustment of the parts, that is, their size, shape, color, or placement, to arrive at the finished work, whose exact nature is not known beforehand.”14 Sand – Lime bricks.15 “The same number of bricks (120) is placed to form each of eight larger blocks, all two bricks high but varying in their other two dimensions”16 “One sees and immediately ‘believes’ that the pattern within one’s mind corresponds to the existential fact of the object.”

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Um exemplo musical que Bernard cita é a peça de Alvin Lucier, I am sitting in a room (1969), em que a própria voz de Lucier é gravada e depois regravada, repetidas vezes, até que o ouvinte não distingue mais o texto.

Mesmo o ouvinte que nunca viu a ‘partitura’ logo irá perceber – após ouvir o texto algumas vezes – que as decisões composicionais foram todas feitas anteriormente ao início da obra – que de fato elas precederam o momento em que a composição, diga-se, mesmo conceitualmente, começou.17 (Bernard, 1993, p. 101)

O que nos chama a atenção é que o interesse artístico não está mais no processo criativo, mas no resultado. Esta ideia de pré-concepção seria levada adiante por um escultor ligado ao movimento: Sol Lewitt (1928-2007) trabalharia com a chamada arte conceitual.

Vou me referir ao tipo de arte em que estou envolvido como arte conceitual. Na arte conceitual a ideia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra... Isto significa que todos os planos e decisões são feitas de antemão e a execução é uma questão sem muita importância... As ideias não necessitam ser complexas... Não importa qual a forma que ela [a obra de arte] finalmente tome, ela deve começar com uma ideia. É o processo da concepção e realização com o qual o artista está preocupado... Uma vez que ela [a obra de arte] está fora das mãos do artista, ele não tem mais controle sobre o modo com que o espectador irá perceber a obra. Diferentes pessoas irão perceber a mesma obra de diferentes maneiras.18 (Lewitt, 1969)

A ideia de uma concepção anterior à obra, de que fala Lewitt, seja ela simples ou não, lembra o artigo de Reich Music as a Gradual Process. Podemos indagar se, ao conceber suas composições como processos, Reich está, de certo modo, pensando primeiramente no conceito. O processo, uma vez pensado, ou seja, pré-concebido, irá prosseguir por ele próprio. Michael Nyman percebeu a similaridade entre o que Lewitt fala: “todos os planos e decisões são feitas de antemão”, com o que Steve Reich diz: “uma vez que o processo está pronto, ele prossegue por ele mesmo” (Reich, 2004, p. 34). Respondendo a Nyman, Reich admite a ideia de uma impessoalidade buscada no inicio de sua carreira, como visto anteriormente, mas por outro lado, não concorda com a ideia de que todas as decisões sejam tomadas de antemão e a execução seja uma questão sem importância. Ele diz que em suas

17 “Even the listener who has never seen the “score” will soon realize – having heard the text throu-gh a few times – that the compositional decisions were all made before the beginning of the work – that in fact they preceded the moment at which the composition could be said, even conceptually, to have begun.”18 “I will refer to the kind of art in which I am involved as conceptual art. In conceptual art the idea or concept is the most important aspect of the work… it means that all of the planning and decisions are made beforehand and the execution is a perfunctory affair… The ideas need not to be complex… No matter what form it may finally have it must begin with an idea. It’s the process of conception and realization with which the artist is concerned… Once it’s out of his hand the artist has no control over the way a viewer will perceive the work Different people will understand the same thing in a different way.”

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composições, “a forma pode preceder o conteúdo assim como também o conteúdo pode preceder a forma” (Reich, 2004, p. 92). Pelo que percebemos, sua principal preocupação estética não é o conceito em si, ou no processo como anterior à obra, mas o processo como base da sua composição.

Eu não sou um artista conceitual... Em minha música, o material musical tem normalmente se tornado claro antes da forma. Em It’s Gonna Rain, o material, o loop original, precedeu a ideia de phase... Pra mim, sempre pensei o som como superior e mesmo em It’s Gonna Rain a questão de quanto tempo seria a execução da fase... Esta decisão foi crucial. Assim a execução nunca é o de menos... Eu discordo completamente com o que Sol Lewitt fala... Pelo menos no que diz respeito à minha música...19 (Reich, 2004, p. 92)

Estas considerações de Reich nos fazem chegar a algumas conclusões importantes. Primeiro, quando ele diz que não é um artista conceitual, isto significa, entre outras coisas, que sua proposta não é seguir uma única estética, ou seguir o modelo composicional de Sol Lewitt. Ele próprio diz, na mesma entrevista, que seu interesse não está em uma música genuinamente minimalista. Claramente Reich não quer rotular sua obra ou dedicar-se a algum estilo de composição específico. Segundo, ao pensar o som como algo superior, ele diz que mesmo os processos estão sujeitos ao resultado sonoro. Seu interesse não está nos processos em si, como em Lewitt, mas na forma com que ele vai usá-los. Estes proc-essos, portanto, estarão sujeitos ao seu julgamento. Isto adquire uma maior importância se percebermos que a pintura ou escultura se fixam no tempo. A música, ao contrário, se move nele. Ou seja, enquanto a pintura mostra algum processo em uma tela fixa, a música pode se valer de mais ferramentas que se modificam com o passar do tempo. Para Lewitt, uma vez que o conceito seja concebido, depois da realização da obra, a peça estará pronta, imóvel. Em música, no caso de Reich, uma vez que o processo é concebido, ele é posto em movimento, implicando não em uma estaticidade, mas na variabilidade. Por fim, também podemos perceber que o compositor não estava, quando escreveu seu artigo, somente reagindo ao Serialismo ou seguindo uma estética parecida com o das artes plásticas. Reich também estava tentando se firmar como um artista que tem seu próprio modo de compor. O fato de ele discordar completamente de Sol Lewitt com relação à sua música é justamente isto, uma afirmação de liberdade composicional, que embora tenha algumas conexões com Lewitt e com outros compositores e artistas, também é única.

Strickland também fala sobre isso e é muito claro em defender as particularidades de cada artista. Por exemplo, se Klein, Reinhard e Rauschenberg são vistos como pioneiros na estética monocromática, no caso de Klein, “tão importante quanto à infinitude do espaço simbólico, entretanto, é a ausência do espaço composicional... A espacialidade foi apagada

19 “Also, I’m not a conceptual artist... In my music, the musical material has usually become clear before the form. In It’s gonna rain, the material, the original loop, preceded the phasing idea… For me, sound has been uppermost in my mind, and even in It’s gonna rain the question of how long the execution of the phasing would be… That decision was crucial. So the execution is never perfunctory… So I would completely disagree with what Sol says… as far as my own music is concerned…”

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através da fusão de uma tonalidade com algodão saturado”20 (Strickland, 2000, p. 37); as telas negras de Rauschenberg, “compostas com papeis de jornal rasgados e mergulhados em tinta preta, colados às telas e pintados com mais tintas preta, são fragmentados e irregu-lares na estrutura e textura e alusivos em conteúdo”21 (Strickland, 2000, p. 38). Já Reinhardt misturava azul, vermelho e verde para chegar a várias tonalidades de preto e “suas telas pretas também tinham um diferente senso de tempo... Diametricalmente oposto ao tipo de imediatismo... procurado por escultores e pintores posteriores”22 (Strickland, 2000, p. 52).

O papel e as particularidades de cada artista nos leva a ver o Minimalismo com uma junção de diferentes pontos de vista, onde o social tem um papel fundamental. Isto é, apesar das particularidades de cada um, os artistas envolvidos na estética Minimalista estavam vivendo em uma sociedade que na época sofria importantes mudanças. Como diz Cervo (2005, p. 45), “o Minimalismo é, portanto, filho de uma década muito especial na história do século XX”. Strickland (2000, p. 282) percebeu o paralelo entre a revolução artística provocada pelo Minimalismo e a revolução social ocorrente na época:

Não é uma coincidência que os artistas que trabalhavam com formas simples, regulares ou frequentemente seriais vivessem em um ambiente em que analo-gias arquiteturais daquelas formas proliferassem a uma taxa sem precedentes. A paisagem americana foi transformada por estrondos da construção, seja no comércio urbano e torres comerciais no estilo Internacional, seja nas casas sub-urbanas em padrões pré-fabricados das caixas dos Levittowns, do pós-guerra.23 (Strickland, 2000, p. 282)

A transformação da paisagem americana, como fala Strickland, afetou a própria procura estética do Minimalismo, que não surgiu somente como uma reação, mas também como uma problematização sobre aquilo que estava ocorrendo na sociedade. As Levittowns, localizadas em Nova York (figura 1), Pensilvânia e New Jersey, foram cidades construídas para os veteranos da segunda guerra e suas famílias. Nesse contexto, o Minimalismo talvez tenha se firmado justamente por trazer à discussão, como diz Strickland, uma sociedade que construía casas em padrões pré-estabelecidos, levando o espectador a perceber, nas obras artísticas, paralelos com sua vida diária. Os “padrões pré-fabricados” das casas dos Levittowns se mostravam na arte Minimalista através das repetições, da clareza discursiva, da falta de subjetividade, do uso de objetos cotidianos, como lâmpadas, plásticos, papéis

20 “As important as the endlessness of symbolic space, however, is the absence of compositional space… Spatiality was erased through the fusion of the single hue and the saturated cotton.”21 “Composed with torn sheet of newspapers dipped in black paint, pasted to the canvas and brushed over in more black paint, are fragmented and irregular in structure and texture and allusive in content.”22 “His blacks also had a different sense of time… Diametrically opposed to the kind of immediacy… Sought by some of the later painters and sculptors.”23 “It is not coincidental that artists working in stripped-down, regularized, often serial forms were living in an environment in which architectural analogues of those forms were proliferating at an unprecedented rate. The American landscape had been transformed by construction booms both in urban commercial and residential towers in the International Style and suburban houses in the pre-fabricated box patterns of the post-war Levittows.”

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de jornal etc., como também através de uma abordagem superficial, industrial, não pessoal, não individual, do objeto artístico. Também podemos enxergar na obra de Steve Reich uma alusão a esse novo momento da sociedade norte americana, através de processos repetitivos, claros, e de certa forma, industriais, maquínísticos. Sua obra City Life (1995), ao utilizar sons gravados da própria vida na cidade em um contexto sonoro repetível em cinco movimentos, explora não só a vida cotidiana e suas questões específicas, como a polícia, mas também as influências da própria cidade em cada cidadão. Assim, tanto na música, como nas artes plásticas, o Minimalismo é tanto uma crítica como um reflexo de uma sociedade que se utiliza da repetição, seja na construção de casas, no consumo, com produtos agora feitos industrialmente e em larga escala, ou mesmo no dia-a-dia, com hábitos de vida constantes e interruptos. Isto nos abre mais os olhos, pois os questionamentos que os minimalistas propuseram aos nossos conceitos de obra de arte sugeriram que ela não pode ser vista apenas como um mundo à parte, longe de nosso cotidiano. Ao contrário, ela agora põe em discussão a nossa própria vida, falando diretamente, sem mediações, artifícios ou subjetiv-ismos, tão claro e audível quanto àquilo que vemos e ouvimos diariamente.

Figura 1. Levittown, NY. The U.S. National Archives and Records Administration, William Thomas, 1950. Fonte: <http://www.understandingrace.org/history/society/post_war_economic_boom.html>.

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Considerações sobre materiais compositivos utilizados em Méditations sur les Mystères de la Sainte

Trinité de Olivier Messiaen

Miriam CarpinettiUniversidade Estadual de Campinas

Méditations sur les Mystères de la Sainte Trinité1 surgiu da feliz conjunção das atividades litúrgicas de seu autor e da celebração do centenário da Église de la Trinité, onde ele exerceu o ofício de organista durante 61 anos. Por sua sugestão, foi convidado o reitor do Sacré-Coeur, Monsenhor Charles, para pregar sobre a doutrina da Santa Trindade, que nomeia a referida igreja, no dia 23 de novembro de 1967. Nessa ocasião, Messiaen impro-visou antes, entre e depois das três partes do sermão, sempre finalizando com o canto do Bruant jaune.2 Para Messiaen, que desde 1950 não improvisava em concertos (apenas nas liturgias e nos acompanhamentos do cantochão), este foi um evento musical marcante e de grande expectativa, não sabendo o que ocorreria: “talvez alguma coisa muito boa vá acon-tecer, talvez algo muito ruim – mas de qualquer maneira eu tocarei com amor” (Messiaen apud Gillock, 2010, p. 199). Dessas improvisações nasceram as ideias para a composição da obra presentemente estudada, a qual Messiaen estreou em 20 de março de 1972 em Washington, DC, e publicou em 1973.

A macro-forma desta obra é dividida em nove meditações que podem ser, grosso modo, classificadas por sua maior ou menor complexidade estrutural (Bruhn, 2008, p. 131). As meditações de número par são mais simples: duas estrofes e coda (med. II), quatro seções (med. IV), duas estrofes (med. VI), quatro seções (med. VIII); e apresentam certo direciona-mento tonal. Já as meditações de número ímpar apresentam estruturas mais complexas.

As nove meditações foram apenas numeradas por Messiaen; contudo, elas são tradicionalmente nomeadas pelos organistas em razão dos temas nelas abordados: I – O Pai Inengendrado; II – A Santidade de Jesus Cristo; III – A relação real em Deus é realmente idêntica à essência; IV – Eu Sou, Eu Sou!; V – Deus é imenso, eterno, imutável – O sopro do Espírito – Deus é amor; VI – O Filho, Verbo e Luz; VII – O Pai e o Filho amam a si mesmos e a nós pelo Espírito Santo; VIII – Deus é simples; IX – Eu Sou o que Sou.3

1 Doravante a obra estudada será designada Méditations e seus nove movimentos meditações.2 O canto desse pássaro foi o sinal de Messiaen para indicar o final de cada improvisação e o início de cada uma das três partes do sermão.3 I – Le Père Inengendré; II – La Saintité de Jésus Christ; III – La relation réelle en Dieu est réellement identique à l’essence; IV – Je Suis, Je Suis!; V – Dieu est immense, éternel, immuable – Le souffle de l’Esprit – Dieu est amour; VI – Le Fils, Verbe et Lumière; VII – Le Père et le Fils aiment, par le Saint-Esprit, eux-mêmes et nous; VIII – Dieu est simple; IX – Je Suis celui qui Suis. Esta tradução, assim como todas as que se seguirão foram realizadas pela autora.

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Materiais utilizados e sua grafiaAs estruturas temporais utilizadas em Méditations são amétricas, com duração

flexível, desligadas do conceito de repetição idêntica, tendo por princípio a repetição vari-ada.4 O compositor justapõe e sobrepõe ritmos de formação diversa, criados pela livre soma, subtração e multiplicação de um valor de pequena duração.5 Inspira-se em princípios da rítmica hindu e da prosódia grega; contudo, modifica e deforma os ritmos por meio das suas operações aritméticas preferidas (Messiaen, 1990, p. 14-18), as quais privilegiam a criação de figuras com durações expressas por números primos: 5, 7, 9, 11 e 13. Também utiliza o cromatismo de durações, explicado em Mode de valeurs et intensités (1950).

A ordenação das alturas valoriza a melodia – muitas vezes constituída de grandes saltos – que varia conforme o material escolhido: diatonia do cantochão, composição derivada dos cantos de pássaros e modos de transposição limitada (Messiaen, 1990, p. 33-34 e 58-63).6 O desenvolvimento melódico se dá por eliminação de intervalos, inversão, interversão, mudanças de registros, ampliação e redução assimétrica de intervalos (Mes-siaen, 1990, p. 35-36).

Silêncios com diferentes durações, geralmente, separam as texturas que variam da monodia à combinação complexa de diversas camadas, diferenciadas por suas densidades (texturais e rítmicas) e intensidades (geradas pela registração organística e pela sobreposição de diversos eventos musicais).

Os textos da Summa Teologica de São Tomás de Aquino integram e constroem a obra estudada, diferentemente de outras de suas obras, nas quais os textos apenas indicam sua inspiração. Em Méditations, materiais de diversas procedências são apresentados para criar imagens e símbolos relativos à criação do universo e à Santa Trindade.

Para esta obra, Messiaen utiliza a primeira notação, grafia criada por ele mesmo para registrar peças solísticas ou para pequenas formações, que, em vez das tradicionais fórmulas de compasso, recorre a “barras apenas para indicar os períodos e anular o efeito dos acidentes” (Messiaen, 1990, p. 28).7 Diferentemente das obras da literatura organística alemã, as de Messiaen exploram, em longos trechos, a região superior dos teclados, apresentando texturas mais rarefeitas, em busca de maior clareza e brilho. Assim, muitos trechos a serem tocados pela mão esquerda são grafados em clave de sol (Wills, 1997, p. 106). Constatamos também que, quando escreve dentro dos sistemas modal e tonal – cantochão, suas variações e alguns outros fragmentos – emprega os acidentes dentro das regras tradicionais; por outro lado, quando em sistemas preponderantemente atonais – cantos dos pássaros, linguagem comunicável e outros – indica antes de cada nota um sustenido, bemol ou bequadro, considerando-as como entidades individuais.

4 As estruturas temporais utilizadas por Messiaen apresentam uma maior liberdade em relação à música metrificada, muito embora sejam apresentadas com padrões rítmicos e grafia precisos.5 Procedimento que o autor prefere, desde sua juventude, ao da divisão de um valor maior.6 Os modos são indicados por dois algarismos como no Traité de rythme, de couleur, et d’ornithologie (Tratado de ritmo, de cor e de ornitologia), de 2002, sendo o primeiro o número indicativo do modo e o segundo, sobrescrito, o indicativo da transposição. O algarismo “um” sobrescrito indica a altura original do modo.7 Utilizaremos o termo divisão para referir-nos aos trechos musicais encerrados entre as barras divisórias, já que o compositor utiliza conceitos de tempo diversos aos da metrificação empregada na música tradicional. Numeramos as divisões para possibilitar sua localização durante os comentários.

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tratamento dado aos materiaisNo que se refere ao tratamento dado a alguns dos materiais empregados em Médi-

tations, Gillock (2010, p. 200) considera que há uma maior variedade destes em relação aos apresentados na década anterior, quando o compositor lançou as bases do serialismo integral. Na obra estudada, há um tratamento mais emocional, com maior variedade de material, pelo emprego do cantochão – representando a espírito humano – e cantos de 12 pássaros, que representam a natureza e as demais criaturas. A grande diversidade do mate-rial utilizado corresponde ao resgate de elementos da linguagem de suas fases compositivas anteriores como marca de sua maturidade composicional.

Neste texto, damos especial destaque ao código serial denominado por Messiaen de linguagem comunicável,8 criado e empregado pela primeira vez nesta obra.9 No prefácio de Méditations, Messiaen discorre sobre as convenções – vocalização, movimentos, imagens, cores, perfumes, toque (no caso do alfabeto Braille) – necessárias para que se estabeleça um tipo de linguagem para transmissão de ideias.

Em suas considerações declara que a música não pode «dizer», informar nada com precisão, podendo apenas “sugerir, suscitar um sentimento, um estado de alma, tocar o sub-consciente, ampliar as faculdades oníricas, e estes são já imensos poderes” (Messiaen, 1973, prefácio). Embasado na Summa Teologica de Aquino, Messiaen ressalta que “apenas os anjos têm o privilégio de se comunicar entre si sem linguagem, sem convenção, e, mais maravilho-samente ainda, sem necessidade de levar em conta o tempo e o espaço” (Id., ibid.).

A partir dessas considerações, criou um código de correspondência estrita entre elementos da linguagem verbal (unidades mínimas distintivas) e elementos da linguagem musical, visando traduzir em música ideias colhidas na Summa Theologica de Aquino. Esse código pode ser considerado como um processo de serialização, embora na peça não haja uma aplicação rigorosa do serialismo, apresentando as frases em linguagem comunicável sempre em contextos diferentes, sobrepostas a materiais modais e cantos de pássaros.

Diferentemente da tradição latina, que utiliza sílabas de solfejo para nomear as notas musicais, ele parte da tradição germânica, que utiliza letras do alfabeto. Entretanto, em vez representar com elas somente as alturas, ele atribui valores de altura – em oitavas determinadas – e durações específicas para representar as letras do alfabeto francês (seu idioma nativo), a fim de transcrever palavras em elementos musicais. Nessa codificação, ele diferencia grupos de letras, iniciando com as tradicionalmente utilizadas no sistema musical alemão (A, B, C, D, E, F, G, H). A seguir, ele completa seu código com outras que ele mesmo categoriza por suas características fonético-morfológicas: vogais (A, E, I, O, U), palatais (I, J, Y), sibilantes (S, Z), dentais (D, T), C duro (C, Q, K), labiais (B, P, F, V, M), linguais (L, N), acrescentando a estas as letras R, W, X. A série completa é apresentada no exemplo 1 e é interessante observar que, reunindo as três notas/letras de maior duração, é possível formar o termo francês mot, que significa palavra.

8 Langage communicable.9 Posteriormente, Messiaen voltou a utilizá-lo em Des canyons aux étoiles, obra para pequena formação orquestral de 1974, e no Livre du Saint Sacrement, sua última e mais longa obra para órgão, composta em 1984.

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Para evitar o acúmulo de palavras, ele cria motivos para estabelecer relações entre as palavras, substituindo artigos, pronomes, advérbios e preposições pelo sistema de casos e declinações que depreende do latim, criando também, dois temas para representar os verbos ser e ter. O quadro 1 mostra os motivos criados para representar casos e declinações e verbos.

No prefácio da partitura, Messiaen discorre sobre o tema que criou para representar a “única palavra importante de qualquer linguagem, a palavra que não é apenas o nome de um rei, mas do Rei dos reis, o Nome Divino!”. O compositor explica que, a forma direta e a retrógrada representam “que Deus é imenso tanto quanto eterno, sem começo nem fim tanto no espaço quanto no tempo” como “dois extremos que se olham e que poderiam se retroceder indefinidamente…”. Esse tema especial é mostrado no exemplo 2.

Ex.1 Série completa da linguagem comunicável

Quadro 1 – Motivos conectores presentes nas Meditations.Fonte: informações de Messiaen colhidas no prefácio de Meditations.

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Além do tema de Deus, Messiaen criou outros para as três pessoas da Trindade e um para o verbo amar; contudo não os indicou no prefácio, apenas no decorrer da obra. Esses temas são mostrados no quadro 2.

As frases em linguagem comunicável são apresentadas nas meditações I, III e VII. A utilização dos temas (Deus, Pai, Filho, Espírito Santo e amor)10 e de motivos musicais (representando os artigos, pronomes, advérbios, preposições e os verbos ser e ter) são elementos que oferecem maior unidade ao discurso, apesar de serem circundados sempre por contextos musicais diferentes. Os temas podem ser considerados como personagens de um poema para órgão sinfônico, cuja primeira cena descrita apresenta o Pai das estrelas.11 Esse primeiro tema, em sucessivas variações nos transmite a sensação do caos inicial da criação do mundo pelo Incriado Deus Pai.

Além das frases musicais construídas com seu código, no final de cada uma das meditações, Messiaen coloca uma breve conclusão dos artigos da Summa Theologica que selecionou para explicar a doutrina da Santa Trindade. A seguir, apresentamos essas frases e trechos da partitura que ilustram a variedade de tratamentos empregados na elaboração da composição.

O primeiro texto codificado estabelece que Deus é o princípio, é o criador e não foi

10 Neste texto, serão referidos em português: Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, amor.11 Assim denominado por Messiaen, pois sua melodia é composta de notas relacionadas aos astros do nosso sistema solar, tal como apontadas pelo astrônomo E. Savin. (Messiaen, 2002, p. 152-156).

Ex.2 Tema de Deus e seu retrógrado.

Quadro 2 - Outros temas utilizados nas Méditations.

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criado; apresentando também sua primazia em relação às outras pessoas da Trindade. “Em relação às pessoas que procedem d’Ele, o Pai é conhecido por sua paternidade e inspiração; como ‘Princípio que não tem princípio’, conhecido pelo fato de que Ele não é de outro; essa é precisamente a propriedade de inascibilidade designada pelo termo Incriado”.12

No exemplo 3, podemos observar os primeiros elementos empregados na construção desta frase: um tema (Pére), um conectivo (datif: vers les) e um substantivo (personne);13 assim como o modo de Messiaen indicar os diferentes elementos de seu código: temas (encartuchados),14 motivos conectores (entre parênteses) e palavras (soletradas acima das respectivas notas). A mão esquerda acompanha e complementa ritmicamente a frase com uma melodia que emprega notas do tema Pai das estrelas.15

Apresentamos no exemplo 4, a última palavra em linguagem comunicável a aparecer na primeira meditação é Inengendrado. Sobreposta por blocos harmônicos, ela é interpre-tada na pedaleira (em legato, com intervalos descendentes que sobrepassam a oitava, com

12 “Par rapport aux Personnes qui procèdent de lui, le Père se notifie ainsi: paternité et spiration; en tant que “Principe qui n’a pas de principe”, il se notifie ainsi: il n’est pas d’un autre: c’est là précisé-ment la propriété d’innascibilité désignée par le nome d’Inegendré.” Esta citação, que se encontra no rodapé, ao final da meditação, Messiaen indica como proveniente de “Saint Thomas d’Aquin, Somme Théologique – la Trinité, livre II, question 33, “la personne du Père” – article 4, conclusion”; contudo, não a localizamos literalmente na Suma Teológica, fato que se repete nas demais referências men-cionadas por Messiaen. 13 O final deste substantivo encontra-se no pentagrama seguinte, que não aparece no recorte do exemplo.14 Messiaen indica a procedência deste método no prefácio da partitura, explicando que os temas – Pai, Filho, Espírito Santo – são envolvidos em cartuchos, assim como os nomes das divindades nos antigos escritos persas e egípcios.15 No exemplo 3 podemos notar o início da linguagem comunicável empregada na construção desta melodia, que se apresenta da seguinte forma “Père (datif: vers les) personnes procédant (ablatif: du) Père (avoir: il a) paternité spiration Père (datif: vers le) principe (privative: sans) principe (avoir: il a) (privatif: ne pas) (être) (ablatif: d’un) autre (être: c’est) (avoir) innascibilité (être) inengendré Père”.

Ex.3 Méditations. Primeira frase em linguagem comunicável (med. I, divs. 52-57).Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

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registração e tessitura muito graves, dinâmica em ffff e em tempo extremamente lento), conferindo profundidade à apresentação do texto de Aquino.16

A terceira meditação enuncia: “A relação em Deus é idêntica à essência de Deus”.17 Para compreender melhor esta frase, podemos nos reportar às informações dadas por Mes-siaen à organista alemã Almut Rössler, quando ele expõe que, os seres humanos podem melhorar ou piorar suas qualidades e viver em relação uns com os outros. Contudo, Deus é imutável, nada pode ser adicionado ou subtraído de sua essência, Ele está em si, assim como as três pessoas da Trindade estão n’Ele. (Rössler apud Bruhn, 2008, p. 28).18

Diferentemente da primeira frase, que era acompanhada apenas por uma melodia, esta é apresentada em um contexto de textura mais densa, pelo acréscimo de duas vozes: uma no manual de acompanhamento e outra na pedaleira. A melodia – que se estende por quase todo o teclado – é registrada com fundos (tous les fonds 16, 8, 4) abrilhantados e en-riquecidos por um coro de linguetas (Bombarde 16, Trompete 8, Clairon 4), ambos com base

16 Para os leitores não familiarizados com a grafia organística, apontamos os sinais indicativos do pedilhado que, acima da nota, se referem ao pé direito e, abaixo, ao pé esquerdo: ponta do pé e talão; e as substituições silenciosas para tocar e manter a nota enquanto se substitui a ponta ou o talão: .17 “La relation réelle en Dieu est réellement identique à l’essence”. (Saint Thomas d’Aquin, Somme Théologique – question 28, “les relations Divines” – article 2, conclusion).18 Texto utilizado na construção da melodia: “Relation (locatif: en) Dieu (est – verbe être) identique (datif: à) essence (genitive: de) Dieu”.

Ex.4 Méditations. Palavra em linguagem comunicável (med. I, divs. 132-133). Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

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16’.19 Ela é acompanhada por registros de fundos com base 16’ no manual e 32’ no pedal, como se vê no exemplo 5. As vozes do acompanhamento são organizadas com ritmos hindus: na mão esquerda, pratâpaçekhara (força que emana da fronte),20 râgavardhana (ritmo que dá vida à melodia) e varnamanthikâ (análise da cor); na pedaleira, em forma de ostinato rítmico, são apresentados sempre duas vezes o ritmo rangapradîpaka (cor luminosa), sendo cada apresentação circundada por silêncios de diferentes durações. Messiaen escolhe os ritmos por seu significado espiritual e os modifica para adaptá-los ao contexto, como indica a observação anotada na primeira divisão, logo abaixo do pentagrama do pedal.

Na oitava meditação, o enunciado declara “Pai, Filho – amam – Pai, Filho por meio do Espírito Santo – Amor procedente. Pai, Filho – amam – raça humana por meio do Espírito Santo”. Ao final do movimento ele acrescenta “O Pai e o Filho amam, pelo Espírito Santo (o Amor que procede), a eles mesmos e a nós”.21 Esta mensagem de amor é acompanhada por duas linhas melódicas de caráter muito distintos dos apresentados anteriormente: um ostinato na pedaleira construído a partir da cromatização de durações,22 cujo perfil é composto de grandes saltos descendentes (perfil melódico que se assemelha ao da palavra Inengendrado apresentado no exemplo 4, na primeira meditação) e o canto do pássaro Bulbul na mão direita, que complementa ritmicamente as outras vozes.

19 Para mensurar o comprimento dos tubos, é utilizada a unidade de medida inglesa Pé (indicada pelo sinal diacrítico apóstrofe), equivalente a um pouco mais do que 30 cm. Portanto, um tubo de 16’ mede quase 5 m; um de 32’, o dobro. Para mais informações sobre o instrumento, conferir o primeiro capítulo da dissertação da autora: CARPINETTI, Miriam Emerick de Souza. O órgão tubular: guia prático sobre seu idiomático com ilustrações dos Quadros de uma Exposição de Moussorgski, 2008.20 Significado espiritual do ritmo, como se encontra na tabela de 120 Deçî-tâlas que, segundo John Satterfield, Messiaen obteve no Conservatório de Paris (Messiaen, 1990, p. 14).21 Texto utilizado na construção da melodia: “Père Fils (aiment – verbe aimer) Père Fils (ablative: par) Saint Esprit (Amour – verbe aimer) procédant Père Fils (aiment – verbe aimer) race humaine (ablative: par) Saint Esprit (Amour – verbe aimer) (genitive: du) Père (genitive: du) Fils”. Texto explicativo colocado ao final da meditação: “Le Père et le Fils aiment, par le Saint-Esprit (l’Amour qui procède), eux-mêmes, et nous.” (Saint Thomas d’Aquin, Somme Théologique – “la Trinité”, tome II – question 37, article 2, conclusion).22 O cromatismo de durações é explicado na obra para piano Quatre études de rythme (1949-50) e utilizado também nas obras para órgão Messe de la Pentecôte (1950) e Livre d’Orgue (1951).

Ex.5 Méditations. Segunda frase em linguagem comunicável (med. III, divs. 1-2).Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

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Diferentemente das outras apresentações já ilustradas, nas quais as frases são acompanhadas de materiais variados, na quarta meditação, ela aparece em um breve trio, como podemos observar no exemplo 7. Nele, cada voz apresenta uma das três pessoas da Trindade, cada qual com um ritmo hindu: râgavardhana (ritmo que dá vida à melodia), pratâpaçekhara (força que emana da fronte) e simhavikrama (a força do leão). Aparente-mente, Messiaen apresenta os temas conforme sua ordem de procedência – em primeiro lugar, o Pai Incriado; procedendo dele, o Filho e de ambos, o Espírito Santo – e com ritmos que os caracterizam.

Observamos que a linguagem musical criada por Messiaen não guarda a mesma objetividade da verbal. As dificuldades para a compreensão da mensagem veiculada com esse código são de ordem fonético-fonológica, sintática e semântica. Ela não segue regras de prosódia quanto à união de consoantes e vogais nem elisões, apenas soletra as palavras e as ordena sintaticamente com os casos. Assim, sua comunicação se dá para o ouvinte como a de qualquer outro sistema musical.

Acrescemos a nossas observações, as hipóteses de Bruhn (2008, p. 138), que conecta a prática de criar uma linha melódica com palavras em longas durações, à prática do cantus firmus dos motetos dos séculos XII e XIII. Para ela, a ininteligibilidade da mensagem é cor-relata ao caráter transcendente da doutrina que está sendo musicada e ao fato de que a mente humana não consegue – nem em palavras, nem em música – compreendê-la total-mente. Segundo Bruhn, o próprio fato de se acrescer vozes com textos rápidos em outros idiomas, como se fazia no moteto medieval, demonstra a diferença entre o Ser supremo e o mundo cronológico sobre o qual ele reina. Ela acrescenta que, do século XV em diante,

Ex.6 Méditations. Terceira frase em linguagem comunicável (med. VII, divs. 17-18).Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

Ex.7 Méditations. Trio em linguagem comunicável (med. IV, divs. 20-22).Fonte: Alphonse Leduc, 1973.

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a discrepância de duração das notas do cantus firmus e vozes que o envolviam foi sendo reduzida progressivamente, à medida que o moteto focava na relação entre o Divino e a humanidade, veiculando mensagens de compreensão no plano sensível. Assim, a lentidão do texto em linguagem comunicável e a velocidade muito maior dos contrapontos apre-sentados por Messiaen, afirmam a diferença de natureza que existe entre Deus e as “cores” que representam Seu amor neste mundo.

Direcionamo-nos ao âmbito estritamente musical observando que, em Méditations, as melodias tratadas como personagens de forma simultaneamente autônoma geram extra-tos musicais independentes, um contraponto de camadas. Messiaen não utiliza a polifonia como entendida na música ocidental, na qual, em geral, as formas imitativas tem um papel preponderante. Seguindo modelos de agenciamento de materiais provenientes de outras culturas, assim como de outras fases da linguagem musical ocidental, Messiaen sobrepõe materiais heterogêneos e de sistemas musicais diferentes, pelo controle vertical. Esse efeito é explicado por Pierre Boulez (1995, p. 263), quando compara a tradição do contraponto ocidental ao que se apresenta em outras culturas, mesmo as que possuem consistentes bases teóricas: “Nas músicas chamadas exóticas, observa-se frequentemente a heterofonia, a antifonia e todas as formas de superposição devidas a relações simultâneas no tempo, mas não responsáveis”.23

ConclusãoEm Méditations, Messiaen trabalha com dois tipos de materiais: o primeiro formado

por elementos de caráter fixo, que remetem ao significado que ele estabeleceu e que se apresentam, geralmente, da forma como foram criados (motivos conectores da linguagem; motivos dos verbos ser, ter e amar; e os temas Deus, Pai, Filho e Espírito Santo), para gerar unidade; e o segundo, por elementos móveis (canto gregoriano, cantos dos pássaros e das estrelas, melodias e acordes em camadas simultâneas aos elementos fixos), que são trabalhados mais pela variação do que pelo desenvolvimento.

Como Bach e Mahler, busca sintetizar um amplo conjunto de conhecimento musical em diferentes níveis disponibilizados em sua época, diferentemente de compositores como Anton Webern e John Cage que se radicalizaram na busca da construção de uma linguagem específica, monográfica. Como Cage e Murray Schafer, em Méditations, ele se vale de pin-turas sonoras para transmitir os Mistérios da Santa Trindade, conforme seu conhecimento da teologia da Igreja Católica Apostólica Romana.

Messiaen, com amplitude de visão, utiliza uma vasta paleta de sistemas, procedi-mentos e materiais, tanto da música tradicional europeia como de outras culturas, em uma linguagem pessoal, atual para a sua época e inovadora no âmbito organístico. Integra-os em uma proposta musical consistente, coerente e totalizante, apesar da riqueza de diversidade desses recursos.

23 Inferimos de seu texto que o termo “responsáveis” refere-se à capacidade das vozes reportarem-se umas às outras.

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Referências

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BRUHN, Siglind. Messiaen’s interpretations of holiness and Trinity: echoes of medieval theology in the oratorio, organ meditations, and opera. Hillsdale, NY: Pendragon Press, 2008.

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PERFORMANCE E CRIAÇÃO

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A contribuição entre intérprete e compositor no processo de criação de três concertos brasileiros

para percussão

Fernando HashimotoUniversidade Estadual de Campinas

Instrumentos de percussão são com toda certeza um dos últimos a entrarem no repertório de concertos solistas com orquestra. Este artigo discute a contribuição entre intérprete e compositor durante o processo composicional dos três primeiros concertos brasileiros para percussão, compostos respectivamente por José Siqueira, Radamés Gnattali e Eleazar de Carvalho, bem como traça um paralelo desses concertos com outros concertos para percussão pertencentes ao repertório consagrado internacional. Devido ao pouco material publicado sobre essas três obras, grande parte do levantamento histórico se baseou em fontes primárias como entrevistas com os percussionistas envolvidos, e críticas contemporâneas encontradas em jornais, revistas e programas de concerto.

Preliminarmente à apresentação desses três concertos brasileiros para percussão, e no intuito de mapear e contextualizar o leitor, enumero alguns dos considerados principais concertos para percussão compostos anteriormente a 1968. O primeiro concerto para percussão foi escrito por Darius Milhaud em 1929, em Paris, e emprega um set de percussão múltipla solista acompanhado de uma orquestra de câmara. Dedicado à Paul Collaer, o Concerto pour Batterie et Petit Orchestre, teve sua primeira performance pela Pro Arte Orchestre no ano de 1930, no Palais des Beaux-Arts em Bruxelas, tendo como solista Theo Coutelier (Lesnik, 1997).

O primeiro concerto para marimba, Concertino for Marimba and Orchestra, foi escrito pelo compositor americano Paul Creston em 1940, e foi estreado pela Orchestrette Classique em 1940, no Carnegie Chamber Music Hall, em New York, tendo Ruth Stuber Jeanne como solista. Na época a crítica definiu a obra como uma extravagância e um gênero sem muitas perspectivas futuras (Kastner, 1994).

Em 1947, Darius Milhaud escreve novamente um concerto para percussão, mas tendo agora como instrumentos solistas a marimba e o vibrafone. O Concerto for Marimba and Vibraphone foi comissionado e estreado pelo percussionista americano Jack Connor em 1949 com a St. Louis Symphony Orchestra (Fink, 1978). Ainda se referindo aos concertos para percussão, é importante destacar o Concerto pour Percussion et Orchestre, do francês André Jolivet, escrito em 1958, e o Concerto for Timpani and Orchestra de Harold Faberman escrito em 1962, o qual teve sua primeira performance a cargo de Vic Firth, timpanista da Boston Symphony Orchestra.

O primeiro concerto brasileiro para percussão data de 1968, e nesse período é pertinente citar obras para instrumentos de percussão que se tornaram referência para gerações futuras. Obras estas que foram resultado de uma cooperação extensa entre intérprete e compositor, das quais resultaram novas grafias, explorações timbrísticas e expansões técnicas instrumentais. Como por exemplo a obra para timpanos solo

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Eight Pieces for Four Timpani de Elliott Carter, composta entre 1950-66, e o trabalho de comissionamento e estréias da marimbista japonesa Keiko Abe, a qual realiza em 04 de outubro de 1968, em Tokyo, o considerado “primeiro” recital de marimba como instrumento solista. O programa incluiu obras de Akira Yuyama, Divertimento for Marimba and Alto Saxophone (1968), de Minoru Miki, Time for Marimba (1968), de Teruyuki Noda, Quintetto per Marimba, 3 Flauti e Contrabasso “Matinnata” (1968). (Kite, 2007) Outras obras para percussão nesse período que merecem citação incluem The King of Denmark de Morton Feldman, de 1964, Circles composta por Luciano Berio em 1960, e Persephassa, escrita em 1969 por Iannis Xenakis.

primeiros Concertos Brasileiros para percussãoEm 1968, Eleazar de Carvalho escreve a obra Variações Sobre Duas Séries para

Percussão e Orquestra de Cordas, em um caso de cooperação única com o percussionista americano Richard O‘Donnell. Regente da St. Louis Symphony Orchestra, Carvalho solicita ao percussionista da orquestra, O’Donnell, para escrever uma cadência para percussão sobre a qual Carvalho escreve seu concerto para percussão. A obra foi estreada em 1969 pela Saint Louis Symphony Orchestra, no Powell Hall, tendo como solista Richard O’Donnell, e com regência do próprio compositor (Hashimoto, 2008).

O compositor foi surpreendido ao receber a cadência de O’Donnell, uma vez que o percussionista utilizou em seu set alguns instrumentos com altura definida, bem como utilizou uma notação gráfica e proporcional muito semelhante à empregada por Stockhausen em sua obra Zyklus Nr. 9.

O set de instrumentos utilizados na cadência é enorme, sendo que muitos instrumentos foram construídos pelo próprio percussionista. A instrumentação inclui: tam-tam amplificado, steel drum (com extensão de G3-B4), bombo, 5 temple blocks, 4 slit drums, boo-bams (afinados cromaticamente com extensão de E2-F3, e construídos com canos de PVC de 3 polegadas de diâmetro e fechados somente por um lado com peles plásticas regulares de tambor; o comprimento do casco determina a altura desejada), 1 tímpano (B2-G3), prato suspenso, cuíca, bell-tree, 1 pequeno tam-tam, caixa-clara, 5 cowbells, wood-chimes, metal-chimes, cluster-hanging cowbells, picolo wood-blocks cromáticos, 4 timp-toms (tambores de duas peles com o casco feito de tubos de papel cartão duro, com 8 polegadas de diâmetro e 6 polegadas de comprimento), triângulo, pandeiro, talking drum, flexatone, 4 tuilis (similares a grandes wood-blocks; com relação ao timbre estão entre o som de wood-blocks e temple-blocks). Eleazar adicionou ao set original da cadência xilofone, vibrafone, glockenspiel, marimba de 4.6 oitavas (F2-C7) e 2 pratos suspensos. Para ilustrar melhor, veja a Figura 1 com a disposição do set sugerida pelo autor após estudo interpretativo.

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Figura 1. Set sugerido pelo autor.

A utilização de instrumentos com altura definida obrigou o compositor a adaptar partes desta ao material utilizado na orquestra de cordas. Eleazar estabeleceu duas séries dodecafônicas como material composicional básico de sua obra, e em alguns trechos ele alterou ou permutou notas da parte de percussão com notas das séries empregadas. O compositor ainda teve que acomodar a notação tradicional utilizada nas cordas com a notação gráfica e proporcional da parte de percussão. A solução encontrada foi determinar o andamento da parte de cordas em concordância com a organização de tempo da escrita gráfica, como mostra a Figura 2.

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Figura 2. Variações sobre Duas Séries para Percussão e Orquestra de Cordas, Eleazar de Carvalho – partes de viola, percussão solista e cello, compassos 65-67.

Eleazar utilizou na obra três distintos procedimentos composicionais: 1. notação tradicional para todas as partes de cordas e em algumas seções na parte de percussão solista; 2. notação gráfica e proporcional em algumas seções da parte de percussão solista; e 3. recortando e colando literalmente partes da cadência na partitura.

De certo modo, podemos considerar o caso do concerto de Eleazar como um extremo exemplo de cooperação entre intérprete e compositor, onde fica até mesmo em questão a possível co-autoria da obra. Ao ser perguntado pelo autor sobre a idéia de co-autoria na obra, O’Donnell respondeu tranquilamente que a obra é de Eleazar, e que toda a idéia geral da obra e a fusão das partes foi realizada por Eleazar, segundo O’Donnell ele somente forneceu a cadência (O’Donnell, 2007).

O segundo concerto brasileiro para percussão foi escrito por Radamés Gnattali em 1973. O Divertimento para Marimbafone e Orquestra de Cordas é dedicado ao percussionista Luiz D’Anunciação. A estréia da obra foi realizada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, regida por Chleo Goulart, em 1976, tendo como solista o próprio Luiz D’Anunciação. Escrita em um movimento contínuo, possui três seções, e a cadência, escrita por Luiz D’Anunciação, serve como ligação da primeira com a segunda seção. Tem duração aproximada de 12 minutos. A primeira gravação ocorreu em 1977, em disco da II Bienal da Música Brasileira Contemporânea, com execução da Camerata da Universidade Gama Filho, regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky, e tendo como solista D’Anunciação.

Semelhante ao concerto de Eleazar de Carvalho, o concerto para marimba nasceu da convivência diária entre Gnattali e D’Anunciação. Neste caso o percussionista estimulou o compositor a escrever uma obra para um instrumento ainda inusitado na época, e o compositor, após a composição da obra, pediu para D’Anunciação escrever a cadência de marimba do concerto (Hashimoto, 2003). Luiz D’Anunciação relata como ocorreu o processo de composição da obra:

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Nós trabalhávamos na Globo, éramos eu, o Radamés, e o Mário Tavares que fazia a regência do trabalho, e outros. O fato é que naquele tempo, pela falta de repertório, eu comecei a fazer algumas transcrições para a marimba. Eu estava trabalhando uma peça do Radamés, que é o Moto-Contínuo nº 1, uma peça para piano que eu comecei a transcrever para marimba. Um dia, eu estava trabalhando em um programa, e o Radamés estava no programa também, e no intervalo eu fui praticar na marimba e estava vendo uns detalhes desse Moto-Contínuo, e de repente ele apareceu. Ele ficou me olhando praticar a peça dele, e comecei a perguntar se estava bom, se eu poderia fazer algumas alterações. E ele me olhando, olhando. De repente ele disse: se eu soubesse como, eu escreveria um concerto para você. Eu prontamente respondi: é só querer! Aí ele disse que não sabia tocar marimba e que ficaria difícil, e eu disse a ele que pensasse no piano tocado com somente quatro dedos e que depois a gente iria discutir. O tempo passou, e estou eu em casa um certo dia e ele me telefona dizendo que a música estava pronta. Eu logo relacionei com alguma orquestração da Globo, e disse a ele que estava tudo certo, que eu não havia pedido para ele fazer nenhum programa e que o material já estava com o copista. Então ele me disse que a música para marimba estava pronta. Eu nem acreditei, e fui na mesma hora buscar. No mesmo dia começamos a trabalhar a peça, ver alguns detalhes. Ele escreveu para a marimba que eu tinha, uma Deagan de quatro oitavas, e ele usou da primeira a última nota. Em uma das minhas idas aos Estados Unidos para estudar na universidade, eu mostrei a peça ao [John] Galm. Ele me disse que a peça era muito bem feita, mas sugeriu que o compositor incluísse uma cadência para colocar a peça num outro status. Assim que voltei pro Rio eu contei o acontecido pro Radamés que concordou prontamente. Só que o Radamés disse que eu é que deveria fazer a cadência. No início eu relutei um pouco porque a peça era dele, mas no final aceitei e como já conhecia bem a peça escrevi a cadência. Quando terminei eu mostrei pro Radamés, e ele disse: essa eu assino! (D’Anunciação, 2002)

Esse processo de cooperação também pode ser visto em concertos anteriores ao de Eleazar e Gnattali. A composição do concerto para marimba e vibrafone de Darius Milhaud se deve em grande parte ao esforço imenso do percussionista americano Jack Connor. Ao comissionar a obra, Connor ouviu de Milhaud que não acreditava que a marimba ou o vibrafone pudessem ser bem recebidos como instrumentos solistas, e que ele não tinha interesse em escrever um concerto para esses instrumentos. Deste modo, Connor se empenhou ao máximo para convencer Milhaud a compor a obra. Connor frequentemente visitava o compositor onde nesses encontros tocava trechos de obras e adaptações para o instrumento. Após um longo periodo de comissionamento Milhaud compôs uma obra onde vários procedimentos encontrados nela são resultados diretos dessa proximidade com o intérprete. Milhaud utilizou mais de uma dezena de tipos de indicações de baquetas durante a obra, bem como a utilização dos dedos nas teclas do instrumento e o uso do cabo da baqueta para explorar novas sonoridades do instrumento (Fink, 1978).

O Concertino para Tímpanos e Orquestra de Câmara de José Siqueira foi escrito em 1976. A obra possui duração aproximada de 14 minutos e é estruturada em três movimentos: I. Cadência – Devagar, II. Ciranda, III. Dança Regional. Foi estreado somente

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em 26 de novembro de 1981, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, executado pela Orquestra de Câmara do Brasil, com a regência do próprio José Siqueira, e tendo como solista o percussionista americano Gary Diperna (Diperna, 2011).

Em 2001, durante pesquisa sobre os concertos brasileiros para percussão, procurei o material original do concertino de Siqueira. Encontrei parte do material original no acervo do compositor no Rio de Janeiro. As partes de orquestra e a partitura estavam em estado legível, porém a parte solista não foi encontrada. Comecei uma busca pelo músico que tocou como solista na estréia, porém após anos de procura sem sucesso, abandonei a idéia e me conformei com a análise do material encontrado. Porém, em 2011, encontrei o Sr. Diperna, em uma situação completamente inusitada, através de um amigo em comum de Boston, o percussionista Neil Grover. Ao ler os nomes na parte de baixo de uma foto tirada dos membros de um naipe de percussão onde meu amigo recentemente havia tocado, notei o nome de Gary Diperna. No mesmo instante perguntei ao Grover se ele o conhecia e se possuía os contatos telefônicos. Nesse mesmo dia liguei e conversei com Diperna, o qual mediante algumas entrevistas forneceu informações valiosas sobre a primeira e única performance da obra, bem como forneceu cópia do programa do concerto de estréia, fotos e a cópia da parte solista original tão procurada. Gary Diperna, que vive hoje em dia em Massachusetts nos EUA, estudou no Boston Conservatory com Vic Firth, e foi contratado como timpanista da Orquestra Sinfônica Brasileira entre 1979 e 1982. A parte do solista foi levemente alterada na cadência, com anuência do compositor. Um trecho da cadência já com as alterações pode ser vista na Figura 3.

Figura 3. Concertino para Tímpanos e Orquestra de Câmara, de José Siqueira – cadência de tímpanos, compassos 140-155.

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A Figura 4, mostra uma das poucas fotos do percussionista Gary Diperna, tirada no dia da estréia em frente ao cartaz anunciando o concerto. Diperna está à esquerda ao lado do solista de trompete que tocou no mesmo concerto.

Figura 4. Gary Diperna em foto tirada no dia da estréia.

ConclusãoNota-se que em muitos obras para percussão solista escritas no século XX, a

contribuição entre compositor e intérprete é um fato constante, e podemos até mesmo inferir que devido as especificidades da percussão, surgidas tardiamente no repertório consagrado de concertos, compositores buscaram na consulta aos intérpretes soluções para alcançar uma escrita idiomática em suas obras.

Fica evidente também que essa cooperação entre intérpretes e compositores produziu toda uma nova perspectiva para as gerações posteriores a esse período. A expansão dos instrumentos de percussão ocorrida neste período é impressionante. Se torna

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impossível comparar as mudanças de notação, técnicas e de construção dos instrumentos de percussão sofridas no último século, com relação a qualquer outro instrumento musical utilizado na música de concerto. Nos três primeiros concertos brasileiros para percussão, se nota, em diferentes níveis de contribuição, que essa interação entre intérprete e compositor foi determinante no resultado final das obras.

Referências bibliográficas

D’ANUNCIAÇÃO, Luiz. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 25 mai., 2002, Sala Cecília Meirelles, Rio de Janeiro.

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O’DONNELL, Richard. Entrevista de Fernando Augusto de Almeida Hashimoto em 05 jun., 2007. St. Louis, MO, EUA.

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Colaboração saxofonista-compositor na criação musical mista: Plexus para sax tenor e eletrônica,

de Arturo Fuentes

Pedro BittencourtUniversidade Federal do Rio de Janeiro / Université Paris VIII, França

A música mista conjuga instrumentos acústicos a dispositivos eletrônicos diversos, sejam eles fixos (fita magnética, arquivos digitais), sejam eles transformações ao vivo (mais citado como em “tempo real”), com difusão através de caixas de som. A música mista repre-senta hoje um terreno fértil para a criação musical, tendo em vista alguns fatores como a sua curta história, o crescente interesse dos músicos e do público, os avanços na tecnologia digital e a democratização da informática musical. A parte eletrônica da música mista se encontra atualmente muitas vezes estratificada numa “pletora de objetos informáticos” (Vaggione, 2010), com múltiplas configurações e interações em tempo real e em tempo diferido.

O saxofone foi inventado há menos de 200 anos, sendo portanto um instrumento bastante recente, se comparado à outros da mesma família (madeiras). O seu repertório se encontra em expansão, como uma conseqüência da disseminação de suas técnicas exten-didas em diferentes estilos musicais e em diversas instituições de ensino (conservatórios, universidades). Desde o primeiro estudo de fundo sobre essas possibilidades expressivas (Kientzy, 1990), a utilização dessas novas sonoridades pelas novas gerações de saxofonistas têm crescido consideravelmente. Esse aumento da “paleta” sonora do sax muitas vezes ocorre dentro do repertório da música mista, onde a eletrônica também possibilita novas perspectivas sonoras aos músicos e ao público.

Na nossa abordagem, as fontes sonoras na música mista não pertencem à “dois mundos diferentes”, ou mesmo à duas fontes sonoras antagônicas, como já foi proposto por musicólogos franceses (respectivamente, Tiffon, 1994 e Lallite, 2006). No saxofone podemos produzir sons múltiplos bastante complexos que se aproximam de sonoridades produzidas eletronicamente, assim como hoje é possível sintetizar sons de instrumentos acústicos a ponto de não diferenciarmos o real do artificial. Nós consideramos essas fontes sonoras (acústica e eletrônica) como complementares. Nosso interesse é na articulação dos dois, em investigar como a colaboração entre um instrumentista e um compositor pode se tornar um intercâmbio de competências produtivo na música. Esse trabalho participativo — que de certa maneira pode ser considerado como uma “cumplicidade” entre os músicos — pode abrir um verdadeiro celeiro de explorações e descobertas sonoras. Na nossa pesquisa, tanto o compositor quanto o saxofonista são considerados como intérpretes das obras musicais em questão. Vale ressaltar entretanto que a autoria continua sendo exclusivamente dos compositores, não há “co-autoria” por parte do instrumentista.

Nos limites desse artigo, propomos que a participação de um saxofonista no pro-cesso criativo e interpretativo de uma peça mista, desde a concepção até a realização, seja um diferencial para otimizá-la, e que o instrumentista tenha um papel criativo ao

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assistir o trabalho do compositor. Tomamos como exemplo Plexus (2009) para sax tenor e eletrônica do compositor Arturo Fuentes (1975-), que foi estreada no projeto ENLARGE YOUR SAX (sax, eletrônica e imagens digitais) na sala de concertos Kubus_ZKM (Karlsruhe, Alemanha) em 26 de fevereiro de 2010. A peça foi gravada ao vivo nessa ocasião e poste-riormente em estúdio (ZKM, fevereiro de 2011), para integrar futuramente os anexos da tese de doutorado em andamento (Universidade Paris 8, França) e os arquivos do ZKM no projeto europeu Media Art Base (<www.mediaartbase.de>). Plexus foi também interpre-tada ao vivo em outras ocasiões (Festival Primavera en La Habana-Cuba, Festival Visiones Sonoras –México, Ibrasotope e Sesc pompéia — São Paulo). Alguns trechos de gravações de Plexus podem ser ouvidos nos links <http://soundcloud.com/pedro-bittencourt-sax> e <http://pedrobittencourt.info>.

Colaboração saxofonista-compositor em PlexusO compositor mexicano e residente na Áustria Arturo Fuentes (1975-) quis explorar

desde o início possibilidades de articulação entre diversas técnicas extendidas no sax tenor, especialmente sons eólios (sons de sopros, ou “vento”, com ou sem altura definida) e “var-reduras” de harmônicos (variações de um som obtido com mesma digitação e diferentes combinações de embocadura). Antes de escrever Plexus, o compositor pediu auxílio para a revisão de uma outra obra sua, Antecedente X (2007), originalmente para sax alto, piano et percussão. A ideia de articular e de sobrepor camadas de ruídos de chaves, sons eólios e harmônicos poderiam dar melhores resultados no sax tenor, por ser mais grave do que o sax alto, e assim foi feita a adaptação, que consistiu no embrião da colaboração para a nova peça, Plexus.

Em seguida foram realizadas duas longas seções de gravações áudio e vídeo com improvisações no sax tenor, dirigidas pelo compositor. A partir dessas improvisações, muitas partes da peça foram construídas, e representações gráficas foram propostas pelo compositor para indicar as improvisações dirigidas da partitura, como veremos nas figuras abaixo. O compositor optou pro escrever primeiro a partitura para sax integralmente, e a parte eletrônica foi elaborada posteriormente, para ser executada em tempo real (sem partes pré-gravadas), embora um trabalho de pesquisa das sonoridades produzidas deva ser realizado nos ensaios.

Foram exploradas formas de obtenção dos harmônicos no sax tenor. Começamos pela nota mais grave, um Sib escrito (Láb 1, nota real) nas mais variadas nuances, com possibilidades de trêmulos e trilos. Durante as improvisações, notamos que os harmôni-cos mais agudos a serem obtidos (estáveis ou em glissando) quando tocados pianissimo também geravam sons eólios e ruídos brancos intermediários, que foram posteriormente explorados ao longo da peça, em diversos registros do sax. A obtenção dessa sonoridade (harmônico mais agudo possível, sons eólios e freqüências intermediárias) foi acidental: o saxofonista buscava atingir sons cada vez mais agudos, diminuindo a nuance, até o ponto de tornar audíveis ao mesmo tempo o agudo em glissando e também os sons intermediários (chamados “intrusos”), que o compositor adotou como um efeito desejável na parte final da sua peça. Não fosse pelas gravações realizadas pelo compositor durante as improvisações, o saxofonista talvez não acreditasse que tal efeito seria possível. O controle do fluxo do ar deve ser minucioso, a embocadura nunca crispada em demasia. A nuance deve ser bem piano, senão não seria possível ouvir todos os sons simultaneamente.

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Fig. 1. Longo glissando (em torno de 20 segundos), os sons mais agudos obtidos com harmônicos do Sib (a nota mais grave no sax tenor). Os sons “intrusos” não estão escritos na partitura, mas podem ser ouvidos.

Foram superpostos sons eólios com ruídos de chaves, que puderam ser “preenchi-dos” de sons normais do sax pouco a pouco (os pontilhados na partitura indicam mudanças graduais) e pontuados de slaps (sons curtos e percussivos, obtidos por uma ventosa da língua golpeando a palheta, indicados como pizzicato ou simplesmente “slap” na partitura). Para um melhor equilíbrio das nuances e conforto no fraseado, a digitação dos sons de chaves (indicados com “x”) ficam ao critério do saxofonista, sempre respeitando a métrica e a direção (agudo/grave). A proposta do compositor era de alternar mão direita com mão esquerda, mas dessa forma seria difícil controlar as nuances. O saxofonista pode então escolher as notas exatas para que o controle da nuance seja bem realizado, e nesses momentos (sons eólios com ruídos de chaves) não houve improvisação. Assim pode ser obtida uma espécie de polifonia de sons extendidos, “idiomática” e confortável a ser executada apesar da com-plexidade sonora. Em outras partes, o compositor deixa livre o saxofonista pra escolher as notas improvisadas, indicando a direção (ascendente/descendente) e a região a ser tocada, no que ele denominou “velato” (Figura 2).

Fig. 2 Exemplo de “Velato” (improvisações de notas dirigidas)

Fig 3. Ruídos de chaves e sons eólios simultâneos, com súbitos slaps.

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Na figura 3 podemos observar como ruídos de chaves são utilizados com sons eólios e articulados por slaps. Na figura 4 apresentamos outro exemplo de sons eólios combinados com ruídos de chaves, dessa vez com varredura de harmônicos em glissando ascendente.

Fig.4. Exemplo de glissandos de harmônicos com ruídos de chaves

Como vemos na Figura 5, a peça apresenta transformações graduais e de certa forma reflexiva (ou mesmo “elástica”), como uma respiração.

Fig.5. Transformações reflexivas e graduais de altura, sons eólios em sons normais e nuance (p – f).

A parte eletrônica de Plexus (Figura 6) foi escrita no aplicativo Max-MSP. O patch de Plexus consiste em uma série de quatro granuladores (módulos 1 a 4) e quatro moduladores de freqüências (módulos 5 a 8), todos individualmente controláveis, e que transformam em diferentes escalas temporais diferentes regiões do espectro sonoro em tempo real. Nenhum som pré-gravado é utilizado na versão atual, apesar de na parte de baixo e à direita do Patch haver um controle para “sound files” que foi usado apenas na estreia e abandonado em seguida, pois os resultados não foram satisfatórios). O compositor previu que sejam memorizadas diferentes configurações (pre-sets) com diversas disposições dos granuladores/moduladores, que podem produzir diversas respostas aos sons produzidos pelo saxofone, sempre modificando, complementando ou enriquecendo os timbres produzidos(ouvir as diferentes versões em <http://soundcloud.com/pedro-bittencourt-sax> e <http://pedro-bittencourt.info>). O Patch permite uma abertura à diversas versões a serem realizadas pelos seus intérpretes, além de poder se comportar e se adaptar a diferentes acústicas de

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salas de concerto. No clímax da peça, na parte final (Figura 7), a eletrônica reforça os sons agressivos do saxofone (slaps, frulatos, growl), sempre seguindo a ideia principal de trabalhar gradualmente as técnicas extendidas e fusionar o instrumento acústico à eletrônica.

Fig.6. Janela principal da parte eletrônica (Patch) Max-Msp de Plexus.

Fig.7. Parte final da peça, após clímax do glissando agudo. Os pontos indicam acentos (ataques secos).

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Considerações finaisAs experiências realizadas para a composição e interpretação de Plexus mostram

como a colaboração de um saxofonista com um compositor podem resultar em novas combinações de técnicas extendidas, que não se encontram necessariamente descritas e exemplificadas em métodos de referência do saxofone (Londeix, 1989), nem estão ao alcance de musicólogos, que não acompanham as escolhas feitas durante o processo criativo, que pode incluir a improvisação e também erros qeu podem ser adotados de forma criativa. Alguns efeitos que surgem durante o trabalho em conjunto nem estão devidamente ano-tados na partitura. Assim, a comunicação oral durante esse processo é fundamental para uma boa performance da peça. A versão final da partitura em muitos momentos permite improvisações dirigidas do instrumentista, para que elas sejam idiomáticas, à vontade para cada instrumentista. O objetivo é que os efeitos desejáveis funcionem, e que haja um maior controle dos instrumentistas para uma melhor integração da parte eletrônica. Isso não quer dizer que uma morfologia geral não deva ser respeitada (intervalos ascendentes, descen-dentes, limites de alturas, etc). A interpretação de Plexus é construída pelo saxofonista e pelo compositor, em conjunto. Podemos afirmar que através desse trabalho colaborativo houve uma otimização do processo criativo musical. Tanto o saxofonista quanto o compo-sitor (que operou a parte eletrônica e que tem a “última palavra” em relação às escolhas feitas) dividem a interpretação de Plexus, que a cada performance contou com diferentes configurações, que continuarão a ser modificadas por outros intérpretes da parte eletrônica. O fato do saxofonista ter participado ativamente na produção da peça em questão implica numa visão dinâmica do processo criativo, que pode ser continuado e atualizado.

Referências bibliográficas

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TIFFON, Vincent. Recherches sur les musiques mixtes, tese de doutorado, Université Aix en Provence, 1994.

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Vozes da Voz: a trajetória de Fátima Miranda*1

Wânia Mara Agostini StorolliUniversidade de São Paulo

A voz tem desempenhado papel fundamental como condutora de diversos processos de criação artística a partir da exploração de seus diversos registros, de diferentes formas de emissão e da investigação dos inúmeros sons que é capaz de produzir. Sobretudo desde o século XX, a voz é revelada enquanto possibilidade sonora. Os processos de experimentação incentivam a redescoberta da enorme gama de sons vocais, ativando formas de expressão naturais da voz humana, trazendo à tona aspectos por vezes adormecidos pelas limitações das línguas faladas no cotidiano. Como material sonoro a ser transformado, a voz incorpora influências do meio, representando uma possibilidade de fusão de culturas, suas línguas e sons. A redescoberta das possibilidades da voz gera desdobramentos junto aos processos de criação e influencia continuamente o surgimento de novas estéticas. Nas diversas mani-festações em que está presente, na música, no teatro e na poesia experimental, surgem novos parâmetros vocais, para os quais são determinantes os movimentos das vanguardas artísticas do início do século XX. Muitos são os artistas que se dedicam a descobrir a voz enquanto linguagem, podendo-se citar, entre outros, Demetrio Stratos, Joan La Barbara, David Moss, Diamanda Galás, Meredith Monk e Fátima Miranda. No contexto da contem-poraneidade observa-se como algumas artistas, a partir de um processo de investigação da voz, conseguem afirmar-se como artistas criadoras de linguagens singulares. Natural de Salamanca, na Espanha, a criadora e performer Fátima Miranda, é uma das artistas que faz da voz o principal elemento propulsor de seu processo criativo. Este estudo relata a trajetória desta artista singular, observando especificamente como sua linguagem musical resulta de seu processo de experimentação com a voz, além de ressaltar a importância de sua performance. Como metodologia procede-se à apreciação de obras gravadas e regis-tros de imagem, incluindo-se parcialmente dados da entrevista recentemente concedida por Fátima Miranda a esta autora, assim como impressões sobre sua última performance PerVERSIONES. A pesquisa também se fundamenta em artigos de Llorenç Barber e Theda Weber-Lucks, pretendendo-se enfatizar o fato de que o contato com outras culturas e tradições assim como a condução de processos de experimentação têm resultado em transformações significativas da voz no âmbito das manifestações artísticas.

Estéticas de vanguardaA produção artística de Fátima Miranda situa-se no contexto contemporâneo, numa

época de pós-vanguarda, onde a procura por novas formas e surgimento de múltiplas esté-ticas resultam parcialmente da exploração de procedimentos apontados pelas vanguardas

* Pesquisa de pós-doutorado realizada com o apoio da FAPESP.

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artísticas do século XX. Em especial, a influência das vanguardas futuristas e dadaístas do início do século ainda se faz perceptível, já que estes movimentos foram responsáveis por mudanças significativas na forma de se fazer arte, norteando parte da produção artística posterior. Entre as principais transformações deflagradas por estes movimentos estão a mudança de foco no fazer artístico – do resultado para o processo, estimulando desta forma os processos de investigação, assim como uma crescente dissolução das fronteiras artísticas, provocada pelo uso de uma mixagem de linguagens nas diversas manifestações e eventos artísticos. Observa-se também uma procura por novos materiais, acompanhada pelo desejo de aproximar arte e vida cotidiana. Na criação musical observa-se a inclusão de sons do meio-ambiente, tidos até então como não-musicais, um procedimento estimulado também pelo Bruitismo. Originalmente o Bruitismo (1913) é uma concepção musical do futurista Luigi Russolo. Porém, este conceito não se restringe à música, mas também influencia o desenvolvimento da poesia experimental, uma forma realizada principalmente por repre-sentantes do movimento dadaísta em Zürich e que conduz ao surgimento de gêneros como a poesia fonética e a poesia sonora, com desdobramentos até os dias atuais (Schoon, 2006, p. 26-28). Além disso, grande parte das manifestações artísticas destas vanguardas ocorre através de performances, onde o corpo ganha destaque, uma tendência que se expande ainda mais nas últimas décadas do século, com o surgimento dos Happenings e da Perfor-mance Art. Assim, a investigação do corpo, que já se tornava importante no âmbito artístico especialmente a partir do final do século XIX, passa a ser ainda mais relevante para a geração de processos de criação. A voz é parte deste processo de investigação e o aparelho fonador com sua enorme gama de sons oferece-se como material sonoro, gerando novas possibili-dades de criação. Pouco a pouco estabelece-se uma tradição de experimentação vocal, que resulta em linguagens artísticas singulares. É a partir de um processo de experimentação e investigação pessoal, e tendo como base um conhecimento prévio das manifestações das vanguardas artísticas do século XX, resultante de sua formação como historiadora da arte, que Fátima Miranda dá início a sua trajetória como criadora e performer.

Ao revés... um percurso artístico singular “Ao revés...”, essa é a forma como Fátima Miranda descreve sua trajetória musi-

cal. Sem uma formação musical sistemática e desfrutando de liberdade e curiosidade para investigar, Fátima Miranda começa seu percurso artístico com processos de criação e performances. Seu aprendizado musical tem início diretamente no ambiente estimulante e inovador da produção contemporânea através de sua própria atuação. Como ela mesma relata: “Comecei ao revés... as pessoas começam estudando, eu comecei diretamente no palco....” (Miranda, 2011).

Considerando-se antes de mais nada uma criadora, Fátima Miranda inicia sua trajetória artística através da participação no grupo Taller de Música Mundana em 1979, a partir do convite de um colega - Llorenç Barber, músico, compositor e musicólogo (Weber-Lucks, 2003, p. 6). Com forte enfoque experimental e inspirado em John Cage, este grupo, composto na maioria por participantes sem formação musical acadêmica, é sua escola de improvisação. Nele Fátima Miranda tem a oportunidade de desenvolver suas primeiras pesquisas, que con-sistem em investigar diversos materiais e suas sonoridades particulares, tais como os sons da água, das pedras, do papel. O grupo Taller de Música Mundana apresenta, por exemplo, um concerto com sons de papel e posteriormente até mesmo uma ópera composta apenas com este material. Na Opera para papel o grupo faz uso de sons produzidos por diferentes tipos

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de papel (celofane, papel de seda, jornais, papelão, papel de alumínio, etc) juntamente com um trabalho de cena, luzes e até mesmo odores, provenientes da queima de papel realizada durante a própria performance. O resultado sonoro resulta principalmente “da interação entre os participantes, da reação sensível ao estímulo do outro, compondo um processo de trabalho coletivo e improvisacional” onde, segundo Fátima Miranda, “todos sabem o que vão fazer, mas não como vão fazer”, o que é determinado pelo momento, pelo espaço e pela atmosfera do local (Nauck, 1996, p. 26). Em 1996, a Opera para Papel chegou a ser encenada no espaço Podewil em Berlin, porém o grupo Taller de Música Mundana caracteriza-se por apresentar suas performances em locais diferenciados, muitas vezes em espaços públicos, tais como jardins e parques. O trabalho neste grupo desperta Fátima Miranda para um percurso de investigações sonoras. A voz é no início apenas uma entre outras fontes sonoras pesquisadas, como a própria Fátima Miranda relata:

Comecei a ensaiar com objetos encontrados. Com uma atitude muito dada, muito dadaísta. Eu ensaiava com metais, com tubos de plásticos, com conchas, com cornetas, com papel, papelão, plástico, panelas, pedras, tudo o que en-contrava... eu improvisava com pedaços de bambu, pedaços de madeira... E foi nestes ensaios, que motivada pelos ritmos e pelo trabalho que se fazia, que a voz saiu como uma reação, mas sem buscá-la...eu não buscava. Na realidade foi o contrário, eu trabalhava de maneira orgânica, trabalhava com sons e a voz saia como consequência disto...Claro, como eu não sabia cantar, a voz saia de uma maneira singular...Há uma frase muito bonita de Santo Agostinho: eu não a teria buscado, se não a tivesse encontrado... Eu não busquei a voz, a encontrei” (Miranda, 2011).

Assim, estimulada por sua atividade neste grupo, Fátima Miranda começa a trilhar um caminho não planejado, ditado “pela própria vida”, através de encontros especiais, que possibilitam a descoberta e desenvolvimento de seus recursos vocais. Seja pelo antigo desejo de querer estudar um instrumento, seja pela potencialidade natural até então insuspeitada de sua voz, Fátima Miranda passa a ser guiada por suas inúmeras vozes, tornando-se não apenas uma cantora, mas uma performer e criadora que faz da voz uma arte.

O início da atividade artística de Fátima Miranda junto ao grupo Taller de Música Mundana é um período de pesquisas e descobertas, funcionando como uma escola que privilegia a investigação e a criatividade, que não impõe caminhos, mas que deixa seus participantes encontrá-los. A improvisação livre é a base deste trabalho. Não há limites, mas eventualmente algumas propostas. Por exemplo: o grupo decide fazer um concerto com água, vento e pedras. Sem outras indicações ou restrições sobre o que fazer ou não fazer, os limites são determinados pelos materiais escolhidos. O material sonoro, o jogo entre os participantes e uma audição sensível orientam a realização destes concertos, assim como a relação com o espaço onde se realizam. Se, para um músico tradicional a improvisação é muitas vezes uma entre outras estratégias, para Fátima Miranda representa sua atividade musical inicial e torna-se fundamental, na medida em que é capaz de gerar um processo de estudos e pesquisas pessoais. A partir de seu envolvimento junto ao grupo Taller de Música Mundana e também estimulada pela relevância que sua voz passa a ter, Fátima Miranda começa a aprimorar o conhecimento de seu aparato vocal através de aulas de canto. Sem nunca ter pretendido “trabalhar com a voz, nem ser artista, nem cantora, nem atriz”, sua

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carreira artística surge como uma surpresa para ela mesma, revelando sua potencialidade incomum como artista e criadora (Miranda, 2011). Em 1986 Fátima Miranda cria junta-mente com Llorenç Barber o grupo de poesia fonética Flatus Vocis Trío. Assim, descobre a fala como música, enriquecendo ainda mais sua pesquisa vocal. Deste trabalho provém, segundo Llorenç Barber, “as inúmeras personagens que sua voz desenha com toques de ironia e suas falas diferentes, de verdureiros a anjos” (Barber, 2000, p. 9).

dissoluções de fronteiras e perVersões Assim como uma parcela da produção artística contemporânea, o trabalho de Fátima

Miranda orienta-se a partir de uma mixagem de linguagens, em que a performance é funda-mental, abrangendo não somente a voz, como também a movimentação, os cenários, luzes e figurinos, onde cada elemento é detalhadamente pensado e planejado. A voz é o território de Fátima Miranda, uma voz que atravessa as diversas linguagens, trazendo personagens diversos e fundindo diferentes tradições musicais através de um registro vocal privilegiado de quatro oitavas. Em seu trabalho, as fronteiras entre as linguagens se interpõem, “entre o que é música, canto, performance, poesia em geral, poesia fonética, composição, interpretação. São fronteiras muito sutis, praticamente não existem...” (Miranda, 2011). Tudo, no entanto, parece originar-se na voz. Se primeiro houve a descoberta dos inúmeros sons que pode realizar com a voz, houve também uma intensa disciplina por parte de Fátima Miranda para catalogar seus sons vocais. Descobrir a diversidade de sons vocais é o primeiro passo, mas o que fazer com eles, como organizar o material sonoro, constitui um caminho de trabalho árduo. A voz é sem dúvida o centro do processo criativo de Fátima Miranda, porém, como ela mesma afirma, “há um componente poético tão importante” em seu trabalho, pois “está tudo muito pensado...está tudo muito medido”. A dramaturgia surge portanto como um componente fundamental, entrelaçando as criações e organizando as performances. Há um diálogo contínuo entre as vozes de Fátima Miranda e as performances que estas podem gerar, os contextos e personagens que podem criar. Estes por sua vez estimulam a geração de outras vozes, tornando as fronteiras entre criação e performance indefinidas. Se as vozes sugerem um contexto, a dramaturgia idealizada conduz também à descoberta de outras vozes, uma intrincada trama onde os fios se confundem.

A voz de Fátima Miranda transforma-se pouco a pouco numa espécie de amálgama, incorporando influências de tradições musicais do ocidente e do oriente, que ela procura com determinação. Primeiramente tem aulas de canto com a soprano japonesa Yumi Nara (1987-1988) e canto difônico mongol com Tran Quang Haï, ambos em Paris. A estadia em Paris, que ao contrário de uma Espanha defasada culturalmente devido às imposições do regime de Franco, oferecia uma vida cultural intensa, repleta de eventos artísticos prove-nientes de diversas tradições e povos, também é determinante para a formação da artista, despertando seu interesse pelo canto clássico do norte da Índia. Decidindo ir para a Índia, Fátima Miranda lá aprende o canto Dhrupad com a família Dagar (1989-1990). Mas, nesta estadia, o mais importante não é a assimilação de uma nova técnica, sua intenção inicial. A estadia revela-se antes como um aprendizado de vida, de extrema disciplina, que requer dela exercícios diários como acordar antes do nascer do sol e entoar por duas horas o som mais grave possível. Também através do canto Dhrupad sua percepção auditiva torna-se mais aguçada. É a partir desta mistura de influências e tradições de canto, combinada com uma pesquisa vocal e uma potencialidade dramática natural, que surge a primeira obra indi-vidual de Fátima Miranda – Las Voces de la Voz (1991), título que expressa claramente o seu

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trabalho vocal, que revela as muitas vozes que uma voz carrega. Nesta e nas próximas obras a voz de Fátima Miranda não é apenas canto ou fala, mas é capaz de transitar por diversas tradições e linguagens, pela música, pela poesia, pela arte sonora, fundindo não somente as técnicas aprendidas, mas também as desenvolvidas por ela. Em 1994 surge Concierto en Canto, com composições que revelam claramente a influência do canto Dhrupad como Dhrupad Dreams, espécie de meditação sonora em que as diversas vozes criadas por Fátima Miranda e gravadas em cinco pistas diferentes circulam em torno de um som contínuo. Mas também há obras como El Principio del Fin, em que um texto é repetido inúmeras vezes, revelando as complexas relações entre meninas e meninos, mulheres e homens. A peça é construída a partir da correspondência entre fonemas e palavras do texto em espanhol e o ritmo da tala indiana, trazendo na performance uma gestualidade e coreografia que, realizadas com muito humor, permitem a apreciação das diversas vozes simultaneamente. Em 2000 surge ArteSonado. Entre outras composições, esta obra traz Desasosiego, uma peça que revela, através de um denso entrelaçamento de doze vozes, o cruzamento dos caminhos entre oriente e ocidente. Em 2005 Fátima Miranda estréia o espetáculo Cantos Robados. Entre Salamanca, cidade natal de Fátima Miranda e Samarkanda, a caminho da Índia, onde aprofunda seus conhecimentos musicais, entre ocidente e oriente, entre tradição e avant-garde, reside a essência deste espetáculo.

Figura 1. Cantos Robados (Foto: Juanjo Delgado)

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Imitar e copiar é indigno. Roubar, apropriar-se das fontes para poder integrá-las, digerir e esquecer, transcendendo-as e transformando-as em outra coisa, pode pelo contrário levar a uma arte original, uma arte sem artifícios. A obra de arte só pode ser o resultado de um processo: nem se cria, nem se elege. Está tudo lá. As musas não existem, o novo, tanto na arte como na ciência, é um segredo aberto à espera de ser revelado (In: <www.fatima-miranda.com>).

O processo criativo de Fátima Miranda envolve muitas vezes uma espécie de jogo com as palavras, o que se observa também nos títulos de suas composições e performances. Em 2011, estréia PerVERSIONES. Performance estruturada em sete partes ou atmosferas, é o primeiro espetáculo em que Fátima Miranda apresenta canções de outros compositores, hits consagrados, canções de uma vida inteira. PerVERSIONES como projeto seria talvez o primeiro, anterior a todos os outros projetos de Fátima Miranda. Ao realizá-lo neste período de maturidade artística, após ter desenvolvido sua linguagem musical, o espetáculo adquire contornos bastante pessoais trazendo uma reinvenção de cada canção escolhida. O espe-táculo inclui temas tanto introspectivos como extrovertidos, cotidianos ou sagrados. Assim, a primeira parte da performance apresenta o tema Deuses, Preces e Perguntas e tem início com Fátima Miranda girando em torno de si mesma, executando o giro sagrado dos Derviches em meio a um cenário representando o espaço, repleto de estrelas. A primeira canção de autor anônimo é Salmo Copto. Neste espetáculo, Fátima Miranda, acompanhada apenas por um pianista, faz um percurso através das canções mais diversas, trazendo não apenas uma nova versão de composições consagradas como Cry me a River (Arthur Hamilton) e Chega de Saudade (Antonio Carlos Jobim), mas procedendo a sua reconstrução. Com fina ironia e humor Fátima Miranda as perverte. Em Cry me a River há o exagero vocal e de sentimentos, deixando-se aflorar o aspecto melodramático e uma voz furiosa, que delineia o sentimento que esta canção suscita. Já em Chega de Saudade, um clássico absoluto da bossa-nova, Fátima Miranda traz irreverência e um toque de brincadeira, introduzindo uma língua inventada e fazendo um solo de sopro com o auxílio das mãos. Interrompendo repetida e ritmicamente o fluxo do som ao virar o rosto para os lados, como se estivesse a mudar a estação de rádio, Fátima Miranda interrompe o fluxo da voz quebrando as palavras em partes, para em seguida realizar a melodia com uma língua inventada. Contracenando com o pianista Miguel Angel Alonso Mirón, Fátima Miranda finaliza a canção com uma brincadeira de bater com as palmas das mãos, brincadeira de crianças, acompanhada pelo verso final “não quero mais este negócio de você viver sem mim”. O repertório eclético deste concerto congrega desde melodias medievais, ragas, lieds de Schubert, canções de John Dowland, Erik Satie, Gabriel Fauré e Kurt Weill, até canções pop, fados, chanson, bossa-nova e standards do jazz. Como observado no programa do concerto, realizado no Festival de Otõno en Primavera em Madrid em maio de 2011, este repertório eclético é capaz de criar “um mapa sem fronteiras que por sua vez dirige-se a e emerge da memória coletiva”. Juntamente com a performance vocal, Fátima Miranda interage com o cenário, as luzes, o figurino e a história destas canções de “toda a vida”, integrando as diversas linguagens de modo a ofuscar suas fronteiras. Proporciona, através de suas perVERSÕES, uma experiência única e a transformação de nossa percepção.

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Figura 2. PerVERSIONES (Foto: Juanjo Delgado)

Como o título perVERSIONES sugere, através desta performance Fátima Miranda pretende revelar um sabor distinto, um outro perfume, através da execução das canções escolhidas, propiciando ao ouvinte-espectador outra escuta, outro sentir.

A voz como arteJuntamente com a pesquisa da voz, com a descoberta de novos sons e incorporação de

técnicas vocais diversas, que não se substituem, mas se adicionam, Fátima Miranda também mantém um catálogo dos próprios recursos vocais, resultante das primeiras experiências nos grupos Taller de Música Mundana e Flatus Vocis Trío. Fátima Miranda dá nomes para os sons da voz, tais como sons de pranto e voz de cristal, um som agudíssimo que não parece humano. Para ela, as técnicas vocais são todas compatíveis, mas o treinamento é fundamental. Não significa apenas treinar a voz, mas também o ouvido e o corpo inteiro. A improvisação, embora fundamen-tal para a descoberta dos sons, não é compreendida como algo que se realiza sem preparo. Ao contrário, a liberdade gerada pela improvisação reside para Fátima Miranda em poder eleger o que se quer fazer. Improvisar significa para ela não fazer “qualquer coisa que surja no momento”, mas algo que resulte deste constante e árduo preparo de seu corpo como um todo.

Guia de um processo criativo muito original, a voz de Fátima Miranda revela-se como uma linguagem artística particular, que pode também nortear todo seu processo criativo. O conheci-mento da história da arte, a história das vanguardas artísticas do século XX são aqui fundamentais. A influência do movimento Dada e da poesia fonética faz-se sentir claramente em suas obras. E neste sentido, Fátima Miranda já estava preparada, ao menos conceitualmente, pelo seu conhecimento da História da Arte. A técnica, ou melhor, as técnicas, decorrem de sua pesquisa com a própria voz. Mas também resultam de uma procura determinada, de encontros provocados com profissionais e artistas da voz, através do interesse pelas diversas tradições vocais, aparentemente tão distintas quanto irreconciliáveis, mas que podem conviver nas múltiplas vozes de Fátima Miranda.

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Em sua obra há principalmente uma desvinculação entre palavra e sentido, a palavra surge na maior parte das vezes enquanto som. Sua trajetória é uma busca das possibilidades primordiais da voz. Como observa Fátima Miranda ao relatar sobre o trabalho no grupo Flatus Vocis Trío, não existe “a pretensão de descobrir algo novo, em certa medida se volta en-cantado às fontes” (In: <www.fatima-miranda.com>).

Este retorno às possibilidades originais da voz torna-se ainda mais curioso, por ocorrer numa época em que a música resulta cada vez mais de sons sintetizados. Mas a voz não está aqui procurando um caminho para imitar estes sons, muito pelo contrário, existe um desejo de recuperar possibilidades sonoras esquecidas, qualidades inerentes aos recursos vocais, um desejo que conduz a uma pesquisa constante e que revela uma enorme diversidade de sons, que podem então fazer da voz uma linguagem artística. O que está em sintonia com parte da produção musical contemporânea é a pesquisa e valorização do som enquanto material para a criação. O movimento dos artistas da voz orienta-se no entanto a partir de um outro pressuposto, de retorno às fontes, a uma voz que é ela própria uma linguagem.

Habitualmente se considera a voz como um instrumento, como o violino, como o fagote ou o piano, mas a voz é muito mais . Eu falaria da arte da voz, como a arte da pintura ou da arte da música. A voz pode ter uma dimensão enorme, pois não é somente um instrumento (Miranda, 2011).

Referências

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PERFORMANCE E ESTILO

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As Bachianas Brasileiras nº6 para flauta e fagote de Heitor Villa-Lobos: alguns aspectos interpretativos

para o fagotista

Aloysio FagerlandeUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Aspectos históricosA partir de 1930 a pioneira e febril atividade modernista da década anterior dá lugar

a uma atividade mais ordenada, mais clássica, embora com a mesma entusiástica exploração de temas brasileiros. Não só a música, mas vários setores da cultura brasileira, passado o ímpeto dos anos 20, expandiram-se, com o lançamento de dicionários, enciclopédias na-cionais, filmes brasileiros, além da fundação de orquestras e coros (Wright, 1992).

Havia também uma tendência mundial de retorno ao século XVIII, já que a música dos períodos barroco e clássico oferecia como modelos “formas claras e concisas, tão opostas... ao que havia de longo e complexo em [Gustav] Mahler... além disso, a música de Bach em especial podia ser considerada um modelo de construção objetiva, e a objetividade estava agora entre as primeiras preocupações dos artistas” (Griffiths, 1987, p. 62).

A série das Bachianas Brasileiras foi composta entre os anos de 1930 e 1945. Um dos maiores desafios para Heitor Villa-Lobos após a fase dos Choros, entre 1920 e 1928, foi procurar um caminho no qual pudesse objetivar a síntese do nacional com o universal. Ele estava profundamente ligado à obra de Johann Sebastian Bach, de quem fez várias transcrições, notadamente de peças do “Cravo Bem Temperado”, para coro ou conjunto de violoncelos. Também estaria estimulado pelas afinidades que acreditava existir entre as composições de Bach e a música popular e folclórica brasileira, em que cada parte in-strumental possui uma considerável autonomia melódica, segundo Luiz Heitor Correa de Azevedo (Sadie [org], 1980, p. 765).

É igualmente interessante estabelecer uma analogia entre Villa-Lobos, Bela Bártok e Paul Hindemith. Estes dois últimos, como bem observou Paul Griffiths, igualmente buscaram influências do mestre do barroco alemão, e a abordagem da música barroca, para Bártok, foi como “a da canção folclórica... profunda e analítica” (Griffiths, 1987, p. 78). Mais um ponto em comum com Villa-Lobos, que cresceu ouvindo e tocando peças do mestre alemão, e na juventude participava de grupos de chorões.

Vários autores, como Nóbrega, Neves e Guérios, apenas para mencionar represen-tantes de três gerações distintas de pesquisadores, abordaram a questão da interpenetração da música de concerto européia, representada por J.S.Bach, e a música popular urbana carioca do início do século XX, representada principalmente pelo choro.

Tentarei demonstrar, então, como duas fontes aparentemente tão distintas con-tribuíram para esta Bachianas Brasileiras n° 6, nosso objeto de estudo.

O próprio choro, enquanto gênero, constituiu-se basicamente através do modo de tocar de músicos populares das danças de salão européias, em voga na virada do século

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XIX para o XX1, sobretudo a polca e a mazurca. Aos poucos, o choro sedimentou-se quanto à forma: A-B-A-C-A.

Alguns estudiosos da obra de Villa-Lobos também mencionam um paralelismo, entre figuras melódicas tipicamente bachianas com algumas encontradas no choro.

Segundo Ademar Nóbrega,

Nos choros de Pixinguinha, de Callado ou de Chiquinha Gonzaga, são encontráveis desenhos e procedimentos bachianos, como a escrita para um instrumento monódico dando a impressão de duas vozes, a exemplo do que ocorre nos concertos [sic] para flauta de Bach. (Nóbrega, 1976:15)

Em seu aspecto formal, a maior parte das Bachianas pode ser considerada como suítes, constituídas de dois, três ou quatro movimentos. É interessante observar a dupla denominação dos movimentos: a tradicional da música de concerto e uma outra, tipicamente brasileira, aludindo ao aspecto rítmico, melódico ou ao conteúdo expressivo.

Esta dupla denominação dos movimentos também remete à própria questão de dualidade da série - Bach e música popular brasileira.

Em um aspecto mais amplo, a série das Bachianas Brasileiras descarta as combi-nações instrumentais pouco comuns dos Choros, além de seus efeitos sonoros, sua com-plexidade rítmica e seu vocabulário harmônico; a bitonalidade praticamente inexiste, e a harmonia é predominantemente tonal.

A Bachianas Brasileiras n° 6 foi composta em 1938, sendo dedicada a dois músicos amadores da época, Alfredo Martins Lage, flautista, e Evandro Moreira Pequeno, fagotista. Interessante notar que é a única obra, de toda a série, para conjunto de câmara.

Villa-Lobos, em depoimento sobre a peça, disse:

“Escolhi a combinação destes dois instrumentos (flauta e fagote) para sugerir a velha serenata brasileira para dois instrumentos e substituí o oficlide [sic] pelo fagote, porque este instrumento está mais próximo do espírito de Bach e quis dar a impressão de improvisação como na serenata cantada. Esta suíte é mais ‘bachiana’ na sua forma do que ‘brasileira’.” (Palma e Chaves Jr., 1971, p. 121-122)

Como se vê, o próprio compositor sugere a instrumentação da Bachianas n°6 como uma serenata, atribuindo ao primeiro movimento - Ária - o subtítulo de Choro, para em seguida afirmar que sua forma está mais para Bach do que para algum outro gênero brasileiro.

Noël Devos conta que, recém-chegado ao Brasil em 1952, foi com a flautista Odette Ernest Dias tocar a peça para Villa-Lobos, e este recomendou que “tocassem como dois músicos em uma serenata improvisada, como que debaixo de uma sacada de casa antiga,

Apresento a seguir um quadro com a série das nove Bachianas Brasileiras:à luz do lampião...”. 2

1 Segundo Ary Vasconcelos, o choro surge por volta de 1870 no Rio de Janeiro, inicialmente não como um gênero, mas como um determinado tipo de conjunto musical, “um jeito brasileiro de se tocar a música européia da época” (Vasconcelos, 1977:13).2 Comunicação pessoal, 1995.

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Quadro 1As nove Bachianas Brasileiras

Número e ano de composição

Destinação instrumental Denominação tradicional dos movimentos

Denomina-ção brasile-ira dos mo-vimentos.

1- 1930 Orquestra de violoncelos - Introdução- Prelúdio- Fuga

- Embolada- Modinha- Conversa

2- 1930 Orquestra - Prelúdio- Ária- Dança- Toccata

- O canto do capadócio- O canto de nossa terra- Lembrança do sertão- O trenzinho do caipira

3- 1938 Piano e Orquestra - Prelúdio- Fantasia- Ária- Toccata

- Ponteio- Devaneio- Modinha- Picapau

4-- 1930 Piano (orquestrada em 1941) - Prelúdio- Coral- Ária- Dança

- Introdução- Canto do sertão- Cantiga- Miudinho

5- 1938/45 Canto e Orquestra de violon-celos

- Ária (1938)- Dança (1945)

- Cantilena- Martelo

6 - 1938 Flauta e Fagote - Ária- Fantasia

- Choro- ( )

7 - 1942 Orquestra - Prelúdio- Giga- Toccata- Fuga

- Ponteio- Quadrilha caipira- Desafio- Conversa

8 - 1944 Orquestra - Prelúdio- Ária- Toccata- Fuga

- ( )- Modinha- Catira bati-da- ( )

9 - 1945 Orquestra de vozes ou de cordas

- Prelúdio- Fuga

- ( )- ( )

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A primeira audição da Bachianas Brasileiras n° 6 ocorreu na então Escola Nacional de Música, atual Escola de Música da UFRJ, por ocasião do evento “Música das Américas”. Encontrei duas datas de ocorrência: 21 de janeiro de 1945, segundo Adhemar Nóbrega (Nóbrega, 1976:95), e 24 de setembro de 1945, segundo o catálogo “Villa-Lobos - Sua Obra”, publicado pelo Museu Villa-Lobos. Os intérpretes dessa primeira audição foram Hans Joachin Koelreutter, flautista, e Achiles Spernazzati, fagotista. e a obra encontra-se editada pela Associated Music Publishers Inc. (1946), nos Estados Unidos, e no Suplemento Musical do Boletim Latino-Americano de Música - vol. 6, do Instituto Interamericano de Musicologia, Rio de Janeiro (1946).

Aspectos analítico-interpretativos1º movimento: ária (Choro)Villa-Lobos não estabelece indicações metronômicas para nenhum movimento da

Bachianas Brasileiras nº6. Segundo sua tese de mestrado sobre o Trio do mesmo composi-tor, defendida em 1996, Luis Carlos Justi afirma que

a anotação metronômica é importante mas não fundamental e não deve ser tomada como imutável verdade estabelecida, mas antes como sugestão do au-tor, de um tempo aproximado através do qual, da melhor maneira possível, se chegaria à sua idéia ou concepção musical”. (Justi, 1996, p. 26)

A questão do correto andamento é de extrema complexidade, pois envolve uma aproximação quase assintótica do intérprete ao texto do compositor. Tal aproximação pode ocorrer de várias maneiras, mas talvez a mais eficiente seja a de amadurecer a peça, até que adquira uma fluência absolutamente natural para o intérprete. Mas o que seria isto? Provavelmente um estado de compreensão e domínio técnico do texto musical que permita ao intérprete a melhor execução possível da obra.

O objetivo seria então chegar à verdadeira concepção musical do compositor. No entanto, dialeticamente, pode-se sempre argumentar que não existe uma verdade absoluta sobre a interpretação de uma obra musical, mas diferentes visões. Assim, apresentarei uma determinada linha interpretativa, procurando embasá-la em argumentos teóricos suficientes para justificá-la.

De acordo com o que expus acima, o andamento inicial estabelecido para esta Ária é q = 50.

A entrada inicial na nota Ré exige do fagotista uma boa dose de concentração e uma respiração dentro do andamento da introdução exposta pela flauta nos dois compassos anteriores; a velocidade da respiração no ataque inicial de um movimento é diretamente proporcional ao andamento deste – como se a velocidade da inspiração do ar, no preciso momento anterior ao ataque da primeira nota, fosse dar a exata noção do tempo, mental-mente, para o intérprete.

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Ex.1. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: o motivo na parte do fagote (destacado), c.3 a c.5.1.

As articulações marcadas pelo compositor na parte do fagote não apresentam maiores problemas, a não ser em determinados instrumentos que talvez necessitem utilizar a posição do Mi de ligadura3; esta nota é muito importante, pois estabelece o intervalo de 9a., característico do acorde do motivo. Para alguns fagotistas, pode ser necessário um ataque ligeiro, mas muito sutil, dentro da ligadura para o Sol, após um intervalo de 6a. descendente (c.4.2). Ligaduras em intervalos descendentes para a região grave são às vezes perigosas, devido à própria natureza acústica do instrumento4; geralmente, com um bom apoio da coluna de ar, esta ligadura, assim como todas as articuladas com intervalos descendentes, pode ser realizada, minimizando-se eventuais falhas.

Por se tratar de um movimento com indicação de andamento Largo, as frases são geralmente longas, e a adequação dos locais para a respiração deve levar em conta toda a seqüência fraseológica.

A entrada do Motivo na tonalidade contrastante acontece no c.15, na flauta - é interessante observar a parte livre no fagote, com uma escrita bastante diferente daquela da flauta, no início: aqui, Villa-Lobos utiliza um movimento cromático com sentido sempre descendente. Esta entrada é claramente unitônica, em Lá m.

A questão rítmica passa a ser de extrema importância, principalmente por ser um dos possíveis elementos de conexão com o choro. Quando a flauta expõe o Motivo na to-nalidade contrastante (c.15), o fagote apresenta uma parte livre, em que a figuração evoca em alguns trechos a precipitação rítmica característica da baixaria de um violão de sete cordas, provocando um acirramento do tempo - é como se o intérprete, tendo que chegar à nota fundamental de determinado acorde do esquema harmônico, pusesse o número necessário de notas de passagem, gerando figurações com cinco, seis ou sete notas em dois tempos, ou mesmo quiálteras de semicolcheias, como neste caso (c.16.1 e c.17.3).

3 Encontrada em qualquer tabela de posições para fagote.4 Alguns dos principais tratados de orquestração do final do séc. XIX e início do séc. XX, como os de Berlioz e Lavignac, não recomendam a utilização de intervalos descendentes ligados, para o fagote.

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A confirmação cadencial iniciada no c.33 (c.33.2 a c.36), sempre em sentido descen-dente e trabalhando nas três oitavas do instrumento, motivará o fagotista, favorecido pelo ambiente tonal de Ré m, a procurar uma bela sonoridade. Ela também apresenta algumas dificuldades quanto à articulação proposta por Villa-Lobos. São três grandes ligaduras, em três regiões distintas do fagote: aguda, média e grave; estes quatro compassos (c.33 a c.36) podem demonstrar o grau de técnica do fagotista, exigido em quase toda a extensão do instrumento.

Em termos interpretativos, há uma interpolação de intenções, pois a flauta em seu movimento ascendente gera intensidade, enquanto o fagote, em movimento descendente, suscita uma intenção de acalmando, mesmo com a repetição das reproduções.

Ex.3. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: confirmação cadencial, c.32 a c.36.

Ex.2. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: motivo na flauta (em destaque), c.15 a c.17.1.

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No c.40 surge na parte do fagote o ritmo deslocado, comum ao choro e tão car-acterístico da obra de Villa-Lobos, fato já mencionado anteriormente.

A flauta apresentará o seu sentido conclusivo cinco compassos antes do fim, en-quanto o fagote continuará nas reproduções descendentes, passando por uma pequena conclusão durante três compassos antes do fim, para só então apresentar a entrada final, embora parcial, do motivo principal para encerrar a Ária. Toda a expressividade natural deste movimento deverá ser repetida de maneira concentrada na execução, por parte do fagotista, desta entrada final.

Ex.4. Bachianas Brasileiras nº 6, Ária: c.37 ao fim.

2º movimento: FantasiaO termo “Fantasia”, de origem italiana, tem vários significados musicais, e quase

sempre é associado a uma livre ordenação de idéias do compositor, em oposição às formas tradicionais estabelecidas. Mesmo com uma aparente liberdade de apresentação dos moti-vos, a Fantasia, assim como a Ária, está intrinsecamente ligada à forma binária, com todas as características desta. É também interessante notar que as seções transitivas constituem variações motívicas.

Também neste movimento não há indicação metronômica na partitura. Pelos mes-mos motivos já expostos, a sugestão é de h = 64.

Os pontos para respiração, aqui, são encontrados mais facilmente, pois sendo basicamente composta por variações motívicas, a Fantasia é mais seccionada que a Ária. Outro fato interessante é que existe um processo totalmente interligado, no qual tanto a respiração é dependente do andamento quanto este é determinado por ela.

Quanto ao aspecto virtuosístico, todas as Variações apresentam uma parte de flauta excepcionalmente difícil do ponto de vista técnico, com figurações bastante variadas: grandes saltos, vários grupos de fusas com graus disjuntos, e o uso de registros diversos. A parte do fagote também exige bastante do músico em termos virtuosísticos, principalmente no tocante aos grandes saltos intervalares e o uso de registros diversos.

Quanto à questão rítmica, assim como na Ária, aparecem com frequência certos

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procedimentos comuns ao choro, como o ritmo deslocado. Na Fantasia, ele surge logo no c. 5 na parte da flauta e c.6 e c.7 na do fagote.

Ex.5. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: ritmo deslocado (destacado), c.6 e c.7. A parte da flauta apresenta a seguir uma variação extremamente virtuosística, tam-

bém remetendo a procedimentos também adotados no choro, como os grandes saltos. O ritmo deslocado também está presente nesta ampliação variada que tem início no c.13.

Ex.6. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.13 a 21.

No final do c.13, há a necessidade de se utilizar um staccato bem leve na parte do fagote, para não retardar a articulação do c.14 junto com a flauta - o mesmo se aplica no c.16.4. A apogiatura para o primeiro tempo do c.18 deve ser articulada anacrusticamente, como está no manuscrito original de Villa-Lobos, diferentemente da edição da American Music Publishers.

Todas as articulações dos tempos fortes no fagote, que inclusive definem a harmo-nia, devem ser extremamente precisas junto com a flauta, que tem uma movimentação

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bastante mais difícil; é o caso dos c.13, c.14, c.15, c.17 e c.18.No c.73, há o início de um pedal de Mib, com a ligadura interrompida para uma

articulação pelo próprio compositor, entre os c.75 e c.76. Após este pedal, há uma ampliação cadencial, na qual o fagote apresenta um desenho extremamente expressivo e que deve ser enfatizado, tanto na tercina ligada à mínima pontuada (c.78.4 e c.79.1), como na nota Sib cadencial (c.79.4) que deve ser articulada como o violoncelo, em uma cadência perfeita de algum movimento de uma das Suítes de Bach. Nos c.80 e c.81, a repetição é idêntica, e nos c.82, c.83 e c.84, a imagem da articulação de um violoncelo se adequa perfeitamente. Em termos interpretativos, podemos nos remeter a J.S. Bach e ao modo de se articular na música barroca.

Ex.7. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.73 a c.84.

Os sinais de portato indicados pelo compositor nas três primeiras notas dos c.90, c.91 e c.92, não significam que elas devam ser articuladas da mesma maneira. Segundo Pablo Casals, um dos princípios básicos da execução musical é que a nota repetida jamais deve ser tocada do mesmo modo que a anterior (Blum, 1980). A execução ideal deste trecho é um crescendo nas três notas repetidas, e um diminuendo nas sextinas posteriores; mas cada compasso em um grau de dinâmica mais forte que o anterior, até chegar ao ponto culminante (c. 95).

No início da Coda (c.116.3) aparece uma figuração imitativa também bastante uti-lizada no choro e que, segundo A. Nóbrega, “evoca as primeiras notas do Tico-tico no Fubá” (Nóbrega, 1976, p. 99). Isto se deve, provavelmente, às bordaduras duplas encontradas nos incisos iniciais, tanto do trecho da Fantasia como do início do choro de Zequinha de Abreu.

Com esta figuração imitativa, a partir do c.116.3, a preocupação básica na Coda é a sincronia entre os dois instrumentos, que devem ser articulados de modo bem preciso, sendo então necessário uniformizar os ataques.

Os arpejos repetidos, e em oitava, a partir do c.121, devem ser articulados com um staccato leve e bastante claro; qualquer peso na articulação pode atrapalhar a sincronia deste desenho conjunto de flauta e fagote, e novamente a repetição da figuração na região grave do fagote, por cinco compassos seguidos, pode provocar uma eventual falha.

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Isto poderá ajudar a vencer as dificuldades técnicas da obra, como as notas superagudas da flauta ou as ligaduras descendentes para a região grave do fagote, sempre procurando colocar a idéia musical acima dos problemas mecânicos da técnica.

Ex.8. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: c.85 a c.99.

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Ex.9. Bachianas Brasileiras nº 6, Fantasia: Coda, c.114 ao fim.

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Considerações finaisCertos procedimentos usuais na música de J.S. Bach encontram-se presentes ao lado de elementos brasileiros, sem que haja, contudo, uma deformação da lógica interna da obra. Justamente aí se encontra o traço de genialidade de Villa-Lobos: apropria-se de elementos pertinentes ao universo bachiano, e em seguida constrói uma obra essencialmente pessoal e brasileira.

Assim, a cada vez que interpreto a Bachianas Brasileiras n°6, surge um novo mo-vimento interpretativo, ainda que pequeno – e desde 1986 mantenho esta obra em meu repertório regular, tendo-a tocado com diversos flautistas, em vários países. Mesmo após gravá-la para o CD A Obra de Câmara para Sopros de Heitor Villa-Lobos (ABMusica, 2005), em dezembro de 2004, sempre me surgem novas idéias, nos ensaios e concertos. Não no que diz respeito a grandes conceitos estruturais, mas a pequenos detalhes, que variam um pouco em cada apresentação. Salas diferentes, climas diferentes, palhetas diferentes, públi-cos diferentes, tudo contribui para que um concerto ao vivo jamais seja igual a outro.

O intérprete sempre experimenta transformações diárias, o que contribui para tornar a arte interpretativa cada vez mais viva. É o retrato de um instante, de um momento, com todas as suas peculiaridades e particularidades. Ele jamais se repetirá.

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Le tombeau de Couperin de Maurice Ravel:música sobre música*1

Danieli Verônica Longo BenedettiUniversidade Cruzeiro do Sul / Universidade de São Paulo

Fundamentado em material coletado no acervo da Bibliothèque Nationale de France – BNF, este trabalho visa analisar sob o ponto de vista histórico e pianístico (e cravístico-musical), a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin, escrita pelo compositor francês Maurice Ravel (1875-1937) durante os anos da Primeira Grande Guerra. A Suíte, homena-gem ao ancestral François Couperin (1668-1733), é composta de seis peças inspiradas nas formas musicais do século XVIII. Ao abarcar esses dois universos – o século XVIII e o século XX – a pesquisa busca compreender a fusão realizada por Ravel da música de Couperin somada à música francesa contemporânea, numa abordagem pianístico-musical em relação ao momento histórico em que a obra foi composta. Le Tombeau de Couperin sintetiza os sentimentos e objetivos de uma era, constituindo assim um documento histórico.

Iniciada em julho de 1914 e concluída somente em novembro de 1917, a obra, Le Tombeau de Couperin, é uma suíte escrita segundo a forma do século XVIII, e composta de seis peças dedicadas, cada uma delas, a um amigo que, assim como Ravel, se engajaria pela defesa da França durante a Guerra, porém, diferente dele, estes deixariam suas vidas nos campos de batalha. As seis peças que compõem a Suíte foram inspiradas em formas musicais do século XVIII e estão assim organizadas:

1. Prélude - dedicada ao amigo e colaborador Jacques Charlot;2. Fugue - dedicada ao amigo Jean Crouppi;3. Forlane - dedicada ao amigo Gabriel Deluc;4. Rigaudon - dedicada aos irmãos e amigos Pierre e Pascal Gaudin;5. Menuet - dedicada ao amigo Jean Dreyfus;6. Toccata - dedicada ao amigo Joseph de Marliave.

A primeira audição da obra ocorreu no dia 11 de abril de 1919, em concerto orga-nizado pela Societé Musicale Independente – SMI2, na Salle Gaveau em Paris, interpretada

* Em continuidade à pesquisa de mestrado intitulada A produção pianística de Claude Debussy du-rante a Primeira Guerra Mundial (2002), o presente trabalho resulta da tese de doutorado intitulada Le Tombeau de Couperin (1914-1917) de Maurice Ravel: obra de uma guerra (2008) e da pesquisa de pós-doutorado (2011), sediada no Departamento de Música da ECA-USP, todas desenvolvidas com o apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.2 A Societé Musicale Independente – SMI, idealizada por Maurice Ravel e criada em 1909 por um grupo de compositores entre os quais Charles Koechlin, Florent Schimitt e o próprio Ravel, foi uma associação cujo principal objetivo seria promover a música contemporânea, sem distinção de escola e nacionalidade. A SMI foi criada a partir do desentendimento desses compositores junto a Societé

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pela pianista Marguerite Long, viúva de Joseph de Marliave, dedicatário da última peça da Suíte. Segue trecho da crítica do concerto de estréia, publicado pelo Le Courrier Musicale em 1 de maio de 1919.

Porém os favores do auditório foram – com justiça – à segunda parte do programa. O adorável Tombeau de Couperin de Maurice Ravel, suíte de peças de um requinte pianístico, as quais o músico de Scarbo se propõe evocar por meio das mais mod-ernas expressões, o arcaísmo elegante e sutil de seu mais antigo predecessor! Ele encantou a todos. Também o toque antigo e moderno, elegante e sutil, da Sra. Marguerite Long colabora, no sentido em que o talento de uma intérprete contribui para valorizar o talento de um compositor. E a sala inteira impõe com entusiasmo o bis da peça preferida: Forlane. Com a presença sobre o estrado do Sr. Maurice Ravel. L. V. (BNF, Le Courrier Musicale, 1/05/1919, p. 134)

Um paralelo entre a obra de Ravel e de Couperin, seguido de um aprofundamento da linguagem musical usada nesses períodos histórico-estilísticos, revelam que a suíte para piano Le Tombeau de Couperin não comporta nenhuma intenção de pastiche. A obra possui a clareza e a estrutura do estilo das danças que compõem a suíte barroca; é construída com extremo rigor formal que suscita a filiação intrínseca de Ravel a este período. Ravel combina assim a linguagem barroca com a modernidade ímpar do seu idioma. Tal abordagem revela o domínio cabal dos vários estilos formais consagrados, tecladísticos e pianísticos do referido compositor francês do século XX.

Dois musicólogos se evidenciam na bibliografia fundamental sobre o assunto: Arbie Orenstein e Marcel Marnat, especialistas da vida e obra de Maurice Ravel. Orenstein, em seu livro Maurice Ravel – Lettres, écrit, entretiens, reúne o essencial da correspondência, além de algumas anotações pessoais e entrevistas. No que diz respeito as biografias do compositor, é necessário citar primeiramente a escrita pelo francês Marcel Marnat. É um trabalho referencial, documentado com artigos de revistas especializadas e jornais da época. Importa também citar a biografia escrita por Vladimir Jankélévitch; a realizada pelo já citado Arbie Orenstein e, mais recente, a de Étienne Rousseau-Plotto, que ressalta a origem basca do compositor e a influência desta cultura em sua vida e obra.

Marguerite Long, pianista e primeira intérprete da Suíte Le Tombeau de Couperin, deixou em suas anotações pessoais um precioso material para a interpretação das obras pianísticas de Ravel. Um capítulo é reservado à Suíte em questão, no qual relata detalhes acerca da estréia da obra, registrando importantes informações sobre dedilhado e interpre-tação. Essas anotações foram reunidas e editadas pelo professor e pianista Pierre Laumonier, sob o título de Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel.

No final de 2006 realizamos uma pesquisa de campo em Paris, voltada a uma es-pecífica coleta de material, como aquisição de partituras, visitas a vários acervos musicais, em particular o da Bibliothèque Nationale de France - BNF para exame de manuscritos, depoimentos e publicações em jornais da época, correspondências e gravações, a fim de complementar banco de dados e checar tais documentos in loco. A BNF permitiu a reprodução de alguns documentos, ainda hoje inéditos, os quais fazem parte do corpo

Nationale de Musique – SNM, criada em 1871, esta com o objetivo de divulgar a música contempo-rânea porém restrita aos compositores franceses.

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desse trabalho. Os principais acervos consultados foram: as salas de trabalho restritas aos pesquisadores no departamento de música Bibliothèque Nationale de France – BNF (sítios Louvois, Opera e Tolbiac), a Bibliothèque de l´IRCAM, Bibliothèque du Centre George Pompidou e Bibliothèque de la Sorbonne. Durante a mesma jornada, entrevistas foram concedidas à autora pelo pianista Dominique Merlet3, pela pianista Dana Ciocarlie4 e pela cravista Elizabeth Joyé5. Em tais entrevistas foram abordadas questões interpretativas per-tinentes à linha de pesquisa do presente estudo. As orientações recebidas foram transcritas no capítulo referente à análise da obra.

O trabalho foi organizado em cinco partes ou capítulos:O primeiro capítulo tratou do contexto histórico a partir da Guerra Franco-Prussiana

em 1870 até a declaração da Primeira Guerra e está subdividido em três partes. Como ponto de partida o primeiro item discorre sobre a questão do revanchismo e do nacionalismo como sentimentos formadores de uma identidade nacional. Tais sentimentos seriam cultivados pelos franceses em relação ao inimigo alemão a partir do conflito de 1870, influenciando todo o universo político e cultural até a declaração da Primeira Grande Guerra. O segundo item irá tratar da redescoberta dos mestres franceses do século XVIII, pois os compositores da geração revanchista, como forma de salvaguardar a música francesa, buscariam reviver o significativo século XVIII francês – esquecido durante o século XIX, o qual seria dominando por compositores germânicos – e inspirar-se-iam nos mestres franceses do passado. A partir da obra Dix piéces pittoresques (1881) para piano solo, escritas pelo compositor Emmanuel Chabrier, é realizado um levantamento das obras inspiradas pelos mestres franceses do século XVIII, no qual serão focalizadas obras de Claude Debussy e Maurice Ravel. A última parte desse primeiro capítulo enfatiza a criação das Sociedades Musicais como importantes aparelhos ideológicos dentro do movimento nacionalista francês: a Societé Nationale de Musique, a Schola Cantorum, a Ligue Nationale pour la Défense de la Musique Française e a Societé Musicale Independente. A criação, ideologias e consequências desses agrupamentos são atualmente sujeito desta pesquisa.

O segundo capítulo, intitulado “Ravel e a Guerra”, pretendeu mostrar a que ponto a idéia fixa pela defesa da pátria tomou conta da vida do compositor Maurice Ravel; para isso foram transcritas algumas das correspondências do compositor trocadas durante a guerra. Ravel travaria uma luta pessoal para se fazer incorporar as armas. Recusado por três

3 Pianista francês de renome internacional foi professor do Conservatório Nacional Superior de Mú-sica de Paris e do Conservatório Nacional de Genève. Merlet é considerado pela crítica especializada um dos maiores intérpretes da obra pianística de Maurice Ravel da atualidade. Sua versão da inte-gral da obra para piano de Maurice Ravel foi registrada em 1991 pela gravadora Mandala e recebeu o prêmio Diapason d´or. Sua versão da obra Le Tombeau de Couperin foi usada como referência para este trabalho.4 Jovem pianista romena. É professora de piano na École Normale de Musique de Paris e vem se afirmando como intérprete de um vasto repertório – o qual inclui a Suíte Le Tombeau de Couperin - em importantes salas da Europa. 5 Cravista, especialista da música de François Couperin. Esta entrevista foi de grande importância no sentido de sanar as dúvidas relacionadas à linguagem do cravo barroco francês, em particular os vários questionamentos sobre a ornamentação usada na obra para cravo de François Couperin, e usada por Maurice Ravel na suíte Le Tombeau de Couperin.

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vezes consecutivas pela sua estatura, 1,57 metros, e seu peso, 48 quilos – o peso mínimo exigido era 50 quilos – recorreu a amigos influentes para poder participar de seu projeto patriótico.

As transcrições foram organizadas cronologicamente e traduzidas a partir dos tra-balhos referenciais sobre o assunto. Existem três trabalhos dedicados à correspondência de Ravel: Ravel au miroir de ses lettres, livro raro e antigo organizado por René Chalupt em 1956, no qual encontramos 190 cartas; Lettres à Roland Manuel et à sa famille6, no qual Jean Roy reúne a correspondência do compositor com o amigo e primeiro biógrafo Roland Manuel e sua mãe, a senhora Fernand Dreyfus, madrinha de guerra e figura importante na vida do compositor, sobretudo durante os anos do conflito; e Maurice Ravel – Lettres, écris, entretiens, organizado por Arbie Orenstein, que reúne, após 20 anos de pesquisa, o essencial da correspondência de Maurice Ravel, 350 cartas inéditas até então.

Em pesquisa de campo realizada em Paris foi obtida autorização para analisar o acervo das lettres autographes7 da Bibliothèque National de France, que possui um grande número de cartas de Maurice Ravel, trocadas entre 1900 e 1933, a maioria escrita durante a Primeira Guerra, sendo que muitas delas se encontram transcritas no trabalho de Oren-stein. Nesta análise foi possível encontrar algumas cartas inéditas nos trabalhos referentes à correspondência do compositor e que se encontram transcritas neste capítulo.

O terceiro capítulo pretendeu fazer um levantamento e uma reflexão sobre a produção musical durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Representados por Lili Boulanger (1893-1918), Erik Satie (1866-1925), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). O objetivo deste capítulo foi apontar os procedimentos adotados na composição das obras de guerra, permitindo-nos reconhecer tal produção, juntamente com a suíte Le Tombeau de Couperin, como obras inseridas dentro desse contexto histórico.

Com o quarto capítulo dá-se início à análise da obra Le Tombeau de Couperin, em que se aborda a linguagem que inspirou a criação da obra em questão: a linguagem dos cravistas franceses do século XVIII. O estudo concentrou-se na obra para cravo de François Couperin, ancestral homenageado por Maurice Ravel. Nesse sentido, o foco, já com prévio conhecimento do Tombeau, é direcionado a todo tipo de detalhe relacionado ao personagem homenageado e a obra do período em questão que levasse a um possível paralelo entre os procedimentos usados no século XVIII e a obra que esta tese se propôs analisar.

Para tanto, foi importante o estudo e a utilização da obra didática L´Art de toucher le Clavecin (A Arte de tocar o Cravo), publicada em 1717, e das Pièces de Clavecin, escritas entre 1713 e 1730 - obras que François Couperin dedicou ao instrumento - como fonte dos elementos necessários para que esta análise fosse realizada da maneira mais completa e minuciosa possível. Para estas obras foram consultados fac-símiles dos manuscritos originais mantidos na Bibliotheque National de France, organizados pela Éditions Fuzeau, a edição de L´Art de toucher le Clavecin das Edition Breitkopf e para uma leitura mais clara das Pièces de Clavecin, além das partituras fidedignas, a edição organizada pela Dover Publications a partir da edição de Fr. Chrysander datada de 1888.

A entrevista realizada em Paris com a cravista Elizabeth Joyé, professora e intérprete

6 Correspondência trocada entre os anos de 1911 a 1934. Mme. Dreyfus ou “Chère marraine” (que-rida madrinha), termo usado por Ravel ao iniciar as cartas, era casada com Fernand Dreyfus, pai de René e Jean Dreyfus, ao qual foi dedicado o Minueto do Tombeau.7 Cartas autógrafas.

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especialista na obra do compositor francês, por ocasião de pesquisa de campo foi de grande importância, uma vez que possibilitou esclarecer dúvidas relacionadas à complexa linguagem do cravo barroco francês e, em especial, à obra para cravo de François Couperin.

No quinto capítulo apresento a análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de Couperin escrita para piano solo pelo compositor francês Maurice Ravel entre os anos de 1914 e 1917. Resultado importante para a realização desta análise foram os documentos coletados e analisados por ocasião de pesquisa de campo em Paris, que levam ao ponto de partida para a criação do Tombeau.

O ponto de partida para a criação da obra Le Tombeau de Couperin é bastante curioso. No final do século XIX, autoridades da igreja católica francesa proíbem a dança do tango argentino, considerado “de natureza lasciva e ofensiva para a moral”8. Tal proibição criaria grande polêmica e vários artigos seriam publicados sobre o assunto. Com a conde-nação desta, outra dança deveria ser colocada em seu lugar e, em uma declaração sobre o assunto, o Papa Pio X diria não ver mal algum na dança condenada, mas que a Forlane lhe parecia mais bela. Este pronunciamento provocaria o interesse na esquecida dança do século XVII, de origem italiana, fazendo com que vários compositores fossem convidados a escrever aos moldes da dança em questão. A Revue Musicale, da qual Ravel era leitor assíduo e na qual colaborou com alguns artigos durante os anos de 1912 e 1922, publica em 14 de abril de 1914 um artigo intitulado La Forlane, escrito pelo musicólogo Jules Écorcheville. O longo artigo de Écorcheville retrata o histórico desta dança e da polêmica causada pela proibição do tango que deveria ser substituído pela antiga dança. No final do artigo encontramos uma versão da Forlane do 4º Concert Royale de François Couperin, harmonizada por A. Bertelin. Certamente Maurice Ravel teria lido o artigo, conforme escreve em carta enviada de Saint Jean de Luz, onde passava férias, ao amigo Cipa Godebski em maio de 1914.

Eu turbino [expressão usada para dizer que trabalha intensamente] na intenção do Papa. Você sabia que este augusto personagem [...] acaba de lançar uma nova dança: a forlane. Estou transcrevendo uma de Couperin. (Chalupt, 1956, p. 106, grifo nosso)

A cópia dessa desconhecida transcrição de Maurice Ravel, ausente no catálogo das obras do compositor, organizado por Marcel Marnat9, e do acervo de manuscritos da Biblioteca Nacional da França, só foi possível através do contato com Dr. Arbie Orenstein,10 que generosamente concedeu uma reprodução deste raríssimo documento.

A dificuldade ao acesso dos manuscritos musicais de Maurice Ravel deve-se a complexa sucessão da herança do compositor. Maurice Ravel nunca se casou e conse-

8 Laloy (1914).9 Neste referencial Catálogo cronológico de todos os trabalhos musicais esboçados ou concluídos por Maurice Ravel, Marnat fornece uma ficha completa das obras de Ravel contendo as seguintes informações: instrumentação, duração da obra, época de composição, dedicatários, para as obras vocais as indicações sobre o texto de inspiração, data, local e intérpretes que estrearam as obras, localização e proprietários dos manuscritos originais; se editada, a casa editora e data de edição da obra (Marnat, 1986, p.721-778).10 Autor de inúmeros trabalhos dedicados à obra de Maurice Ravel, Arbie Orenstein é professor na Escola de Música ‘Aaron Copland’ em New York, EUA.

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quentemente não teve herdeiros diretos. Com a sua morte em 28 de dezembro de 1937, o irmão Eduard foi seu único herdeiro e com a sua morte, todos os manuscritos de posse da família que perdia seu último membro seriam deixados ao casal de empregados da família. A Sra. Taverne possui ainda hoje muitos manuscritos, entre eles a versão para piano solo da suíte Le Tombeau de Couperin – a versão orquestral foi vendida para a The Morgan Library em New York – e a transcrição em questão da Forlane de François Couperin. Orenstein em contato com a Sra. Taverne obteve permissão para a reprodução desta transcrição que publicou no final de seu artigo “Some Unpublished Music and Letters by Maurice Ravel” (Orenstein, 1973).

A cópia dessa transcrição juntamente com a reprodução da versão original da Forlane de François Couperin, fazem parte do corpo desse trabalho e foram analisados na primeira parte desse capítulo. O objetivo desse estudo foi apontar as semelhanças encontradas entre a Forlane de Couperin e a de Ravel.

Para que a realização da análise pianístico-musical da obra Le Tombeau de Couperin fosse concretizada, foi necessário, primeiramente como material de suporte, a realização das análises formal e harmônica que sustentam a estrutura musical da obra, uma vez que este trabalho está vinculado a linha de pesquisa deste estudo: Técnicas Composicionais e Questões Interpretativas.

Quanto a análise formal, a pesquisa remeteu-se ao estilo das formas das obras de François Couperin e dos cravistas franceses do século XVIII, tendo como fonte de pesquisa o estudo das danças do século XVII e XVIII realizado por Sophie Jouve-Ganvert em seu Theorie Musicale, os Fundamentos da Composição Musical de Arnold Schoenberg e o Dic-tionnaire Encyclopedique de la Musique, organizado por Denis Arnold, voltando-se também aos elementos de composição levantados capítulo anterior, aliado à sua fundamentação bibliográfica.

Referente à análise harmônica a ferramenta adotada voltou-se ao conceito de regiões de Arnold Schoenberg expostas em seu estudo Funções Estruturais da Harmonia. Como bibliografia de apoio para esta análise faz-se importante citar o ensaio analítico realizado por Jean Claude Teboul em seu Ravel le langage musical dans l´oeuvre pour piano, baseado a partir dos princípios elaborados por Schoenberg; da análise da suíte Le Tombeau de Couperin realizada por Oliver Messiaen, publicada em seu Ravel - Analyses des oeuvres pour piano de Maurice Ravel e do Ètude technique et stylistique de l´Harmonie, do estudioso francês Jean Doué. A importância desta análise é compreender de que maneira Ravel se afasta dos paradigmas do século XVIII, conservando assim o seu idiomático.

Logo, o objetivo fundamental e a originalidade desta pesquisa – análise pianística, cravística e musical da suíte Le Tombeau de Couperin – consiste na comparação e no estudo da fusão de dois estilos musicais distanciados no tempo: o cravo de François Couperin e o pianismo de Maurice Ravel, sob o olhar do intérprete.

Apontamentos relacionados as questões interpretativas constituem um item a parte dentro da análise de cada uma das seis peças do ciclo, enfatizando as dificuldades encon-tradas e direcionando o executante a soluções no sentido de uma interpretação histórica e cientificamente fundamentada. Esses apontamentos foram guiados por intermédio dos intérpretes consultados para este trabalho: Margueritte Long11, Vlado Perlemuter12, Henri-

11 Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel (ed. 1995).12 No livro Ravel d´après Ravel, organizado por Jean Roy, o pianista de origem polonesa (1904-2002)

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ette Fauré13, Dana Ciocarlie14 e Dominique Merlet15. Nesse sentido, foi realizado sob minha interpretação e encontra-se anexo ao trabalho, o registro sonoro da obra que significa o cerne desta pesquisa, a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel.

Para a composição de Le Tombeau de Couperin, Ravel volta no tempo e restaura a obra de um mestre esquecido durante o século XIX: François Couperin. Presta a ele seu respeito e suas homenagens sem, entretanto, esquecer que a obra é dedicada ao piano do século XX. Assim, é importante salientar que o estudo da obra Le Tombeau de Couperin evidenciou uma fase, uma postura ímpar de Ravel que, ao retroceder no tempo a partir de um ponto de vista musical, enfatiza o nacionalismo e resgata um período da música francesa que estava esquecido, tendo como cenário e fonte de inspiração um dos maiores conflitos da história da humanidade: a Primeira Guerra Mundial.

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deixa um importante testemunho em forma de entrevista, na qual aborda questões interpretativas de toda a obra pianística de Maurice Ravel com quem trabalhou a integral desta.13 Henriette Fauré (1904-1985) é considerada a primeira intérprete da obra completa para piano de Maurice Ravel, com o qual trabalhou o repertório em questão. Fauré escreve sobre o assunto em seu livro Mon Maitre Maurice Ravel, no qual reúne suas impressões e os ensinamentos do mestre.14 Entrevista concedida a autora em Paris no dia 28/12/2006.15 Entrevista concedida a autora em Paris no dia 21/12/2006.

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La formación integral del intérprete en cuerdas, especializado en la música contemporánea

Mariela NedyalkovaUniversidad de Cuyo, Mendoza – Argentina

Para empezar, me gustaría citar el gran compositor contemporáneo, el mexicano Mario Lavista:

En la actualidad los instrumentos tradicionales están siendo, literalmente rein-ventados a través de una nueva técnica que propone otra manera de concebir la música, es decir, de escucharla. Es por ello que las recientes técnicas instru-mentales inciden directamente y en forma definitiva en el pensamiento musical de nuestro tiempo. Nos muestran la existencia de inusitados mundos sonoros a la vez que anuncian el comienzo de un nuevo virtuosismo de un renacimiento instrumental del que no podemos, ni debemos sustraernos. A partir de este nuevo virtuosismo se tendrá que reconsiderar seriamente la educación profesional del músico. (Lavista, 1989, p.7-8)

Estrictamente hablando, la expresión “Música contemporánea” se refiere a la música que coincide con nosotros en el tiempo. Dentro de la notoria pluralidad de tenden-cias estéticas en la música muchas son más bien conservadoras, con niveles distinguibles entre sus extremos más radical y más conservador y no requieren para su ejercicio de una formación diferente a la que se adquiere dentro del perfil tradicional de un conservatorio. Pero también después del 1950 los compositores empezaron a buscar nuevas posibilidades instrumentales; en primer lugar nuevos contrastes tímbricos, debido a la necesidad de crear los sonidos representativos del nuestro tiempo. Ampliamente fueron exploradas e amplia-das las principales técnicas referidas a la posición del arco (normal, sul tasto, sul ponticello, detrás del puente, col legno), a la ejecución del pizzicato, al uso de los armónicos naturales e artificiales. Sin embargo la fuerte influencia de Webern, asociada con su Rlangferbenmelodie impuso una nueva dimensión al universo sonoro tradicional y pide rápidas sucesiones de sonidos contrastantes, cuales brindan un caleidoscópico efecto de timbres. El empleo de sonidos (ruidos) con poca sustancia crea un efecto parecido al ruido blanco de la electrónica. Novedosos son también la obtención de los sonidos mecánicos percutiendo el cuerpo del instrumento o sus cuerdas, el variado uso de la presión de las cerdas del arco sobre las cuerdas, como también la de los dedos de la mano izq. sobre la cuerda.

Las nuevas formas de pensamiento musical han dado como resultado nuevas formas de escritura, han llevado a inventar nuevas simbologías. El concepto de Forma musical ha sido reconsiderado completamente y se concibe como producto del proceso creador e interpretativo. Ante las partituras instrumentales, denominadas grafías musicales, el rol y la colaboración del ejecutante se intensifica, exigiendo su imaginación creativa y libertad de creación. Así en la 2da mitad del siglo XX vemos nacer un personaje nuevo: el intérprete

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especializado en música contemporánea. Su virtuosismo es consecuencia del avance y la renovación constante de las escuelas de técnica instrumental. El compositor potencia este grado de perfeccionamiento agregando sucesivas dificultades mecánicas que sus ideas necesitan para ser expresadas. Es una equivocación pensar que un intérprete no debe mane-jar mas que conocimientos sobre la técnica y la mecánica de su instrumento, como también que un buen compositor no precisa del buen manejo de un instrumento. No deberían existir diferencias de formación en las primeras etapas para intérpretes y compositores.

En la práctica actual en muchas ocasiones al alumno se le induce a imitar la versión del profesor, pero lo que no se hace, frecuentemente al menos, es formar el criterio del alumno desde el indicio de los estudios formales educándolo a escuchar varias versiones de una misma obra y mostrándole detalladamente el trabajo a realizar con la partitura para convertirla en música. Según el español Pedro Cañada la Improvisación y la Creatividad tendrían que ser el fundamento del Sistema Pedagógico desde la Primaria hasta terminar el Ciclo Superior.

Sus principios fundamentales son:1. Desarrollar y fomentar la Creatividad como eje del proceso educativo a través

de la Improvisación.2. Desarrollar las capacidades cognitivas a la vez que las técnicas y las expresivas

del alumno.3. Profundizar en los criterios musicales en los que se basa la Interpretación para

mejorarla.4. Potenciar el análisis y la audición. La Creatividad está unida a valores positivos generalmente aceptados. Establecer

propuestas nuevas, ofrecer alternativas distintas a las que en principio se podían pensar, ser creativo en cualquier ámbito son valores que se aplauden, potencian e impulsan en las nuevas corrientes pedagógicas. La Improvisación, al contrario suele ser sinónimo de una falta de preparación y de previsión, que conlleva el no alcanzar determinados objetivos o metas propuestas.

En la enseñanza tradicional se insiste mucho en la interpretación y la composición, pero casi nada en la improvisación. La improvisación implicaría por lo tanto:

- la capacidad de hablar musicalmente mediante el propio instrumento, combinando elementos conocidos para crear ideas nuevas

- el resultado de la comprensión y el manejo practico de los elementos del lenguaje musical

La creatividad y la improvisación han estado presentes a lo largo de la historia de la música, siendo los motores de su avance. Antiguamente ser músico implicaba ser composi-tor e intérprete de manera simultánea. En la música popular, quizá debido a estar desligada a una partitura, las partes improvisadas también son manifiestas. El hecho que en el s.XX haya sido la música del Jazz la que mantenga viva la llama de la improvisación, ha conducido a identificarla en muchos casos con este género.

En la actualidad básicamente se conciben dos alternativas para un músico:- el compositor que inventa nuevas ideas- el interprete que las transmite

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Este planteamiento, llevado al plano de la enseñanza, ha disminuido notablemente en los intérpretes la capacidad creativa y de improvisación. Casi todas las energías del proceso educativo están enfocadas a la formación de instrumentistas y a su perfeccionami-ento técnico, lo que ha llevado en muchos casos a la mecanización de la lectura, haciendo que el alumno llega a cursos elevados sin haber comprendido realmente el significado el mensaje musical, que interpreta y sin poder tocar su instrumento fuera del contexto de una partitura, salvo en los casos donde la intuición lo permite. Podríamos decir que la técnica y la expresión estética del mensaje musical han sido los pilares de la formación del músico-interprete.

Sin embargo: - la técnica no puede ser un fin de si misma, sino una herramienta para acceder a

la música a través del instrumento- la expresión del mensaje musical debe basarse en un conocimiento, lo mas pro-

fundo posible, de los elementos de la partitura y no a la intuición como única quíaPor otro lado todas estas metas no podrían ser alcanzadas, al menos durante el

cursado de la carrera, sin la eliminación de algunas paradojas en los denominados Progra-mas de Estudio. Me refiero que en ninguna de las edades del estudiante estos programas no consideran el conocimiento del instrumento como parte de la cultura material, como objeto artesanal, tecnológico, fruto de la creatividad y gran capacidad humana. La Estética de la Música, la Organología y la Historia de la Luteria como saberes científicos no están integradas al estudio instrumental. Otra paradoja es el no-estudio de la físico-acústica, el conocimiento científico del sonido, propiedades, formas de emisión básicas en el instru-mento, formas de expansión, propagación, reverberación en el medioambiente( acústica) y de percepción por parte del auditor (socio acústica).

La improvisación y el piano complementario:Bajo el prisma de la Improvisación el piano puede llegar a ser una fuente enriquece-

dora de la formación integral musical. Su comportamiento como instrumento globalizador, sus posibilidades armónicas, sus posibilidades como acompañante y las facilidades que ofrece a la comprensión musical componen las condiciones que ningún otro instrumento puede lograr.

Otras de las líneas, pertinentes para el intérprete contemporáneo son la investi-gación, el estudio y la interpretación de la música contemporánea. Revisando los programas de estudio de violín en varias Universidades Nacionales Argentinas, he observado que las obras más contemporáneas incluidas (y la realidad no nos garantiza que los alumnos van a llegar a tocarlas) son de Stravinski, Bartok, Hachaturian, ya clásicos entre los contem-poráneos.

En casos esporádicos se exige obligatoriamente la interpretación de una obra de autor argentino.

Basándome a este hecho y a las dificultades que enfrentan algunos estudiantes en tocar obras, la mayoría de cuales tienen influencias folclóricas, me gustaría hacer hincapié a la necesidad que el interprete tenga amplios conocimientos sobre las músicas no occi-dentales, incluidas las tradicionales del propio país (continente) de origen del intérprete. En esta relación el estudio del folclore seria un beneficio más para la formación del intérprete de música contemporánea.

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Además, en la formación del intérprete contemporáneo interviene todo tipo de intercambios con otras áreas de conocimiento, en particular con otras artes, ya sean me-dios alternativos o más tradicionales. En los programas de licenciatura o de Profesorado en instrumento rara vez aparece la materia Historia del arte y menos todavía la del Arte Contemporáneo.

Quizá el elemento más característico de un intérprete de música contemporánea es el trato frecuente y cercano con compositores vivos que son la fuente natural de la música que ejecuta. Otro aspecto a fomentar seria la revisión de la bibliografía, en primer lugar de los tratados contemporáneos a la música que interesa interpretar.

Indudablemente el desarrollo de la creatividad interpretativa debería empezar con la iniciación al instrumento.

Como resultado de la búsqueda de un método adecuado para niños pequeños, confiado en sus capacidades perceptivas, estimulando su creatividad y despertando su amor hacia la interpretación correcta, recomendaría algunos métodos de enseñanza inicial en violín y en violonchelo ( según mi criterio y experiencia son los instrumentos de cuerda que exigen la iniciación en una edad temprana)

El método de Ljerko Spiller, Iniciación al violín en grupos, contiene importantes logros y ofrece al principiante estudios de índole técnica por medio de canciones infantiles y danzas argentinas. Otro pro es el agregado a la voz principal otra de acompañamiento de modo que el alumno aprenda a adaptarse desde tierna edad a la ejecución en conjunto, despertando su oído y sentir para la música de cámara. También es de suma importancia la exigencia del autor que el niño cante cada canción con el texto, acompañado por el otro violín o por el piano.

Pero en algunos casos las tonalidades de las canciones parecen ser elegidas de acuerdo con consideraciones de índole técnica sin tomar en cuenta el registro natural de la voz infantil.

Tampoco está presente un orden didáctico progresivo.Queda en duda la necesidad de los ejercicios de gimnasia preparatoria y sobre

todo el extenso periodo de duración, entre 4 y 6 semanas? Suficiente para que el joven principiante pierda el interés.

Otro punto débil de este método es el comienzo en tercera posición, sobre todo por la inestable posición del primer dedo y el difícil control de afinación con la octava en-tre el primer dedo y la cuerda al aire más baja, esto es posible solo si el niño tiene previa preparación auditiva y reconocimiento de intervalos.

Además el autor usa recursos musicales fuera del alcance de la comprensión infantil, como ritmos, armonías o contrapuntos más completos.

Mirando hacia el viejo continente podríamos señalar un método mucho más completo y parejo, basado sobre un orden didáctico progresivo, 33 conversaciones con el joven músico, de S. Schalmann. El autor lo determina como un complejo de lecciones que se van a desarrollar en el término de tres años. Cada “conversación” consiste en unas cuantas tareas cuyo objetivo es desarrollar la musicalidad, la expresión, la percepción auditiva y la habilidad motriz. El autor está tratando de presentar el contenido al alcance del niño y sobre todo motivador y divertido. Cada lección es acompañada por textos, que el alumno puede leer solo o con la ayuda de sus padres. Cabe destacar el lado más valioso de este método-las cartas dirigidas al alumno, a sus padres y al pedagogo, pero su principal punto débil es su contenido donde prevalecen canciones de origen ruso, lo que lo hace inaplicable en el medio Nacional.

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De todos modos, las conversaciones y los consejos dirigidos al pequeño violinista son el logro más significativo del maestro de Siberia.

Otro método que tiene la modalidad de estimular la creatividad infantil es el de Eta Cohen (Inglaterra). El método está pensado a favorecer la concentración del alumno con juegos, integrar melodías de todo el mundo, usar desde temprano armonías, pizzicatos, golpeteos y otros efectos, que acercan a los niños al lenguaje musical contemporáneo.

Aquí, los ejercicios de gimnasia preparatoria se realizan en forma de juego y sin dedicar tiempo innecesario las partes del violín o como afinar las cuerdas (algo absurdo en los primeros años del aprendizaje), ofrece al niño imitar al banjo o practicar divertidos ejercicios de contacto imaginario con el violín y el arco. Otra exigencia muy valiosa es de tocar todo el material de memoria (después de leerlo).

El niño se inicia simultáneamente con el estudio del violín al de la música vinculada a ella con este método desde los ejercicios en cuerda al aire. Todas las melodías, escalas y ejercicios, siguen un orden didáctico progresivo y sirven para despertar el amor hacia la práctica noble, o sea el fin mismo del aprendizaje musical.

El Método CAD (Desarrollo de la habilidad creativa) de Allice Kay Kanack sostiene que todos los niños nacen con habilidad creativa, que puede desarrollarse en un alto grado usando la formula Libertad de elección más Practica disciplinada es igual a Habilidad crea-tiva. Las instrucciones son presentadas en forma de juego, comparando sus reglas con las del ejercicio.

Analizando el proceso creativo se destine el trabajo consciente, el subconsciente y la inspiración. Se apunta a la conciencia del estudiante que no hay creatividad ni inspiración sin practica. El CD que acompaña el método entrena el oído del estudiante en la afinación musical y el ritmo y desarrolla su habilidad de hablar el idioma musical. El método propor-ciona una multitud de estilos y armonías con el objetivo de de alentar nuevas ideas.

Enseñar a los niños de tocar el violonchelo de manera sencilla y lúdica y a la vez resolver los problemas iniciales de ritmo y extensiones es el propósito del método “Vio-lonchelo en colores” de la mexicana Pilar Gadea Lacasa. Este método está integrado por canciones tradicionales de todo Latinoamérica, pero también contiene la letra de las mis-mas, creadas por grandes poetas del continente. Así los niños toman contacto con el arte de la poesía y empiezan a vivirla como una parte íntima y cotidiana. Un gran aporte a la formación integral de los pequeños chelistas son los arreglos para ensambles de violonch-elos que permiten desarrollar “el oído armónico” y la habilidad de tocar en conjunto, que además es muy positivo para acostumbrarse a la poliritmia y a la polifonía y desarrollar habilidades técnicas y motrices.

Otro de los métodos de enseñanza en violonchelo más activos, creativos, y contem-poráneos es el de K. y D. Blackwell. Este, igual a los ya mencionados parte desde el sonido hacia el símbolo, contiene más elementos innovadores y asigna un papel más activo al alumno en su propio proceso de aprendizaje. Estas características junto con las aportaciones de la tecnología, en forma de grabaciones en los métodos, favorecen una interpretación y expresiva por parte del alumno.

No es de menor importancia la manera de presentar hasta la melodía más sencilla con acompañamiento de piano, acostumbrando así al infante a ensamblar la afinación no temperada de su instrumento con la temperada del piano y acostumbrar el oído la armonía.

Definitivamente cada método tiene sus “pro y sus contras” y es aquí donde entra en juego el rol del profesor quien sabe combinar los métodos y hacer los arreglos necesarios

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según las diferencias de personalidad del alumno, su temperamento, velocidad con que procesa la información, agudeza sensorial y capacidad motriz.

Todos los métodos mencionados más arriba ponen en relieve, la importancia de la formación del profesorado en formas de enseñanza más activas, creativas, y contem-poráneas.

En conclusión me gustaría reiterar que solamente un cambio cualitativo programático de los contenidos curriculares de aprendizaje seria el soporte para la formación integral del intérprete en cuerdas, especializado en música contemporánea.

Referencias bibliográficas

BLACKWELL K. y D. Cello Time Joggers (Volume 1°). Oxford University Press, 2002.

BLACKWELL K. y D. Cello Time Runners (Volume 2°). Oxford University Press, 2002.

BLACKWELL K. y D. Cello Time Sprinters (Volume 3°). Oxford University Press, 2002.

COHEN, Eta. Eta Cohen’s violin method. Londres: Novello Publishing,1996.

KAY KANAC, Alice. Creative ability development. Summy Birchard Music, 1996.

LAVISTA, Mario. Nuevas técnicas instrumentales. México, D. F.: INBA, CENIDIM, 1989, p. 7-8.

REID, S. “Preparándose para interpretar”, en Rink (Ed.), La interpretación musical. Madrid: Alianza editorial, 2006, p. 125-135.

SHALMANN, Serguei. 33 conversaciones con el joven músico. Leningrado: Editorial Composi-tor Soviético, 1987.

SPILLER, Ljerko. Nuevo método Iniciación al violín en grupos. Buenos Aires: Editor Jorge V. Gonzales, 1980.

TERRAZAS, Wilfrido. “Ser intérprete a principios del Siglo XXI. Dos textos breves”. Revista redes música: música y musicología desde Baja California, v. 2, n. 2, Julio - Diciembre de 2007 /, v. 3, n. 1, Enero - Junio de 2008.

CONCHA MOLINARI, Olivia. “De la enseñanza profesional del músico”. Revista Musical Chilena, v. 53, n. 192, Santiago, julio del 1999.

Referencias electrónicas

CAÑADA, Pedro. Música creativa a través de la improvisación, disponible en <www.iem2.com/pdf/pedro.pdf>

<http://www.violoncellodecolores.com/menu/contnedor.html>

<www.redesmusica.org/no3>

Anais do Simpósio Internacional de Musiologia da UFRJII SIM_UFRJ 2011 - Teoria, Crítica e Música na AtualidadeIII SIM_UFRJ 2012 - Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder