Ambientes funerários no Complexo Arqueológico dos Perdigões: Uma análise preliminar no contexto...

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85 Intervenções } Ambientes Funerários no Complexo Arqueológico dos Perdigões 1. Âmbito 1. Âmbito 1. Âmbito 1. Âmbito 1. Âmbito L ocalizado cerca de 1 Km a norte de Reguengos de Monsaraz, o complexo arqueológico dos Perdigões foi identificado em 1983 (Gomes, 1994). As leituras interpretativas do sítio então avançadas foram fortemente condicionadas pelas limitações dos próprios dados disponíveis na altura, não tendo sido possível compreender a dimensão e a complexidade da realidade arqueológica existente no local. Em 1996, a concretização de trabalhos agrícolas de grande envergadura na Herdade dos Perdigões viriam a denunciar a real dimensão do sítio, tendo-se suspeitado que os contextos arqueológicos teriam sido gravemente afectados. As fotografias aéreas então obtidas permitiram uma primeira visão de conjunto, tornando-se claros os limites e a extraordinária complexidade estrutural do povoado. Na sequência daqueles acontecimentos, a Era-Arqueologia, Lda. realizou, em 1997, para a proprietária dos terrenos afectados, a Finagra, S.A., trabalhos arqueológicos de emergência, com os objectivos genéricos de realizar um diagnóstico da situação e obter informações sobre o sítio que possibilitassem uma correcta adopção de medidas de salvaguarda, conservação e investigação científica. Ambientes Funerários no Complexo Arqueológico dos Perdigões: Uma Análise Preliminar no Contexto das Práticas Funerárias Calcolíticas no Alentejo ANTÓNIO CARLOS VALERA * MIGUEL LAGO* CIDÁLIA DUARTE** LUCY SHAW EVANGELISTA* Figura 1 Vista aérea do complexo arqueológico dos Perdigões * ERA-Arqueologia, Lda. Cç. da Picheleira 46 E, 1900-372 Lisboa; ** Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências (IPA), Av. da Índia, 136, 1300-300 Lisboa.

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1. Âmbito1. Âmbito1. Âmbito1. Âmbito1. Âmbito

Localizado cerca de 1 Km a nortede Reguengos de Monsaraz, ocomplexo arqueológico dos

Perdigões foi identificado em 1983(Gomes, 1994). As leiturasinterpretativas do sítio então avançadasforam fortemente condicionadas pelaslimitações dos próprios dadosdisponíveis na altura, não tendo sidopossível compreender a dimensão e acomplexidade da realidadearqueológica existente no local.

Em 1996, a concretização de trabalhosagrícolas de grande envergadura naHerdade dos Perdigões viriam adenunciar a real dimensão do sítio,

tendo-se suspeitado que os contextosarqueológicos teriam sido gravementeafectados. As fotografias aéreas entãoobtidas permitiram uma primeira visãode conjunto, tornando-se claros oslimites e a extraordináriacomplexidade estrutural do povoado.

Na sequência daqueles acontecimentos,a Era-Arqueologia, Lda. realizou, em1997, para a proprietária dos terrenosafectados, a Finagra, S.A., trabalhosarqueológicos de emergência, com osobjectivos genéricos de realizar umdiagnóstico da situação e obterinformações sobre o sítio quepossibilitassem uma correcta adopçãode medidas de salvaguarda,conservação e investigação científica.

AmbientesFunerários noComplexoArqueológicodos Perdigões: Uma Análise Preliminar no Contexto dasPráticas Funerárias Calcolíticas no AlentejoANTÓNIO CARLOS VALERA * MIGUEL LAGO* CIDÁLIA DUARTE** LUCY SHAW EVANGELISTA*

Figura 1Vista aérea do complexo arqueológicodos Perdigões

* ERA-Arqueologia, Lda. Cç. da Picheleira 46 E, 1900-372 Lisboa;** Centro de Investigação em Paleoecologia Humana eArqueociências (IPA), Av. da Índia, 136, 1300-300 Lisboa.

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1 Projecto enquadrado no Plano Nacional de TrabalhosArqueológicos de 1999, com responsabilidade científica deMiguel Lago e António Valera, em colaboração com CidáliaDuarte, e financiado pelo Instituto Português de Arqueologia,ERA-Arqueologia, Lda., Finagra, S.A., Fundação CalousteGulbenkian e C.M. de Reguengos de Monsaraz. Investigadoresassociados: António Faustino Carvalho, Lucy ShawEvangelista, Maria João Jacinto e Maria João Valente.

2 Uma primeira apresentação pública foi realizada na 6.ªReunião Anual da European Association of Archaeologists; é arespectiva comunicação que agora se publica.

6) a definição de um quadrocronológico-cultural genérico quepermita o enquadramento destesambientes funerários no seio doprocesso evolutivo do própriopovoado e no âmbito da história daspráticas funerárias do Neolítico eCalcolítico peninsulares.

Concluídos os dois primeiros anos doprojecto, é altura para um primeirobalanço e apresentação de resultados2 .

2. Ambientes funerários: os dados2. Ambientes funerários: os dados2. Ambientes funerários: os dados2. Ambientes funerários: os dados2. Ambientes funerários: os dadosdisponíveis sobre o discursodisponíveis sobre o discursodisponíveis sobre o discursodisponíveis sobre o discursodisponíveis sobre o discursofuneráriofuneráriofuneráriofuneráriofunerário

Para além das opçõesmetodológicas, a abordagem dodiscurso funerário, sendo uma

vertente específica do que depois deChapman e Randsborg (1981) seconvencionou chamar “Arqueologia daMorte”, é igualmente uma das maisproblemáticas da investigação dosfenómenos fúnebres, uma vez que nosremete para duas das grandesdificuldades que lhe estão associadas:

a) por um lado, a complexidade doquestionário que esta abordagemapresenta, em grande parteconsequência do facto de oscontextos funerários apresentaremespecificidades próprias, dado que asua formação não resultaexclusivamente de processosaleatórios de sedimentação, mas dedeposições intencionais, reguladastanto por prescrições sociais globais,como por discursos de significadosde grande autonomia e variabilidade;

b) por outro, as exigências dessequestionário são frequentementeconfrontadas com as limitações e afalta de qualidade do registoarqueológico existente.

O primeiro problema remete para odebate teórico, em torno do que sepretende conhecer, através do registofunerário e das possibilidades elimitações do conhecimento emArqueologia. O segundo, para asdebilidades dos vestígios materiaisreferentes a práticas funeráriaspassadas, face às exigências dasproblemáticas que as envolvem.

Tendo em conta esta última situação,face aos objectivos do projecto deinvestigação em curso, nitidamentefocalizado numa das múltiplas facetasdo universo de problemas presentes nosPerdigões, e perante as especificidadesdos sepulcros a intervencionar no seuâmbito, optou-se por seguir, em termosde metodologias de campo, as propostasde P. Barker (1977) e R. Harris (1989):escavação por níveis naturais, definiçãode Unidades Estratigráficas (UE) e acriação de um esquema estratigráfico(Matriz de Harris); registo de evidênciasarqueológicas através da realização deplanos individuais ou de conjunto, comcoordenação tridimensional de todos osartefactos e ossos e respectivareferenciação por UE. Sempre quepossível, foi feita a identificação noterreno dos ossos recolhidos.

Apesar do trabalho estar ainda emcurso e muitas das questões em aberto,será conveniente avançar uma primeira

O INSTITUTO PORTUGUÊS DE

ARQUEOLOGIA CONSIDEROU O SÍTIO

“RESERVA ARQUEOLÓGICA”, TENDO

A ENTIDADE PROPRIETÁRIA

EXCLUÍDO A POSSIBILIDADE DE

PROCEDER A QUALQUER

APROVEITAMENTO AGRÍCOLA

Face aos dados então recolhidos, oInstituto Português de Arqueologiaconsiderou que o sítio deveriapermanecer como “reservaarqueológica”, estando actualmentesob controlo no que se refere apotenciais agressões, tendo a entidadeproprietária excluído a possibilidadede proceder a qualquer aproveitamentoagrícola.

Os dados obtidos em 1997 (LAGO et al.,1998) podem ser sintetizados daseguinte forma:

a) trata-se de um povoado abrangendouma área de cerca de 16 ha,apresentando uma planta de formasubcircular. O seu espaço édelimitado por dois grandes fossosconcêntricos, o exterior dos quaisapresenta aproximadamente 9 m delargura e mais de 4 m deprofundidade. A sua organizaçãointerna, ainda escassamenteconhecida, seria muito complexa eestruturada por diversas linhas defossos.

b) Num local específico e delimitadopor uma bolsa semicircular, entreas duas linhas de fossos, insere-seuma necrópole integrando váriossepulcros.

c) No exterior e a Este da área dopovoado, junto ao espaço danecrópole, existe um agrupamentode menires.

d) Genericamente, o espectrocronológico atestado enquadra-seentre a segunda metade do 4.ºmilénio e finais do 3.º milénio AC.

e) O enquadramento espacial do sítiodenota uma avaliação específica doterritório e das suas potencialidadespor parte dos habitantes dosPerdigões, destacando-se osseguintes aspectos: abundância deágua na sua área específica;

proximidade a terrenos de boaqualidade; subsolo caracterizadopor rochas brandas que favorecerama escavação de estruturas diversas;implantação estratégica no seio doVale da ribeira do Álamo.

Face às extraordinárias potencialidadesdo sítio, foi elaborado um primeiroprojecto de investigação1 , actualmenteem curso, especificamente orientadopara problemáticas relacionadas com oambiente funerário identificado. Sãoseus objectivos gerais:

1) a definição de um quadrocronológico-cultural para a área danecrópole;

2) a delimitação e compreensão da suarealidade espacial e monumental;

3) a definição de um quadro dasatitudes e prescrições funerárias etentativa de compreensão dasatitudes mentais face à morte, tendoem conta os seguintes aspectos:

a) concepção e forma de deposiçãodos restos humanos;

b) organização do espaço interiordos sepulcros;

c) evidências de ritualização;

d) sinais de gestão do espaçofunerário;

4) a partir dos restos osteológicos,contribuir para o conhecimentoantropológico e demográfico daspopulações que viveram emorreram no povoado;

5) a caracterização das técnicasconstrutivas e das arquitecturas dossepulcros e respectivoenquadramento numa revisão dasconcepções arquitectónicasfunerárias do 3.º milénio noSudoeste peninsular;

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Esta implantação dos ambientesfunerários poderá revestir-se desimbolismos múltiplos. A sua inserçãono recinto cercado, a Este do seucentro e num eixo em que se enquadratambém o recinto megalítico, o Vale doÁlamo e Monsaraz, poderá resultar dotradicional simbolismo atribuído aesse ponto cardial, carregado designificados de carácter religioso. Poroutro lado, a sua implantação noslimites do povoado reforçaria a cargamítica de um espaço que para oexterior poderia funcionar como um“território constrangedor”, porque“território de antepassados” (JORGE,1990); nesse âmbito, esta necrópole,situada na base do povoado, na sualigação natural ao vale, remete parauma relação com locais de passagem eacesso ao povoado.

Na realidade, a presença de inumações(primárias ou secundárias) ou decontextos integrando restos humanosem povoados do Calcolítico Peninsularé pouco comum, mas não é de tododesconhecida, ocorrendo em sítioscomo Castelo Velho, no Norte dePortugal (JORGE, 1999; JORGE et al,1998/99), em Leceia, na Península deLisboa (CARDOSO, 1994), ou na zonade Huelva, em San Bartolomé deAlmonte, Morero de la Mezquitilla ouValencina de la Concepción(ALCÁZAR GODOY, MARTINESPINOSA E RUIZ MORENO, 1992),embora nestes casos não se trate deinumações em sepulcros construídospara o efeito. Em Los Millares, apesarde a necrópole se estruturar fora dopovoado, verifica-se que ocorrem pelomenos duas sepulturas dentro dorecinto fortificado (CHAPMAN, 1990),o mesmo acontecendo em La Pijotilla(HURTADO, 1995), mas não numespaço especificamente estruturadopara o efeito, como parece acontecernos Perdigões.Efectivamente, aqui não parece tratar-sede nenhuma das situações referidas,mas sim de um espaço fisicamente

demarcado pelas mesmas estruturas dedelimitação do povoado. Aproximidade física aos mortos poderáser maior ou mais evidente noutroscasos, mas nos Perdigões surge umcenário estrutural extraordinariamenteorganizado e, talvez por isso mesmo, desimbólica própria.

2.2 A organização interna da necrópolee as arquitecturas funerárias

Sobre a organização global danecrópole dos Perdigões pouco sepode ainda avançar, sendo mais as

questões que as certezas. Tendo em contaos limites impostos pelas linhas de fosso,este espaço funerário apresenta uma áreaglobal de aproximadamente 4400 m2, ouseja, pouco menos de ½ ha, com umperímetro de cerca de 300 m (Fig. 2).

A sua estruturação interna, incluindoo número e a localização das diversassepulturas é desconhecida comexactidão, embora os dados deprospecções de superfície e deescavação apontem para existência desete ou oito sepulcros, eventualmentesemelhantes aos dois que jáconhecemos, sendo ainda de colocar ahipótese de existência de estruturasfunerárias para além dos limitesreferidos. Tais pressupostos assentam,antes de mais, nas prospecçõessistemáticas realizadas em 1997 com oterreno limpo de vegetação erecentemente revolvido. Foram entãoreferenciadas diversas manchas deconcentração de fragmentos de lajesde xisto, ossos humanos e restos deartefactos potencialmenterelacionáveis com contextosoriginalmente de natureza funerária.No âmbito dos trabalhos deemergência e do projecto agora em

NO ÂMBITO DOS TRABALHOS DE

EMERGÊNCIA E DO PROJECTO AGORA

EM CURSO, FORAM JÁ

INTERVENCIONADOS DOIS SEPULCROS

inventariação das limitações e daspotencialidades interpretativas queactualmente se colocam à abordagem dodiscurso funerário a partir da necrópoledo Povoado dos Perdigões, nas váriasescalas em que deverá ser considerado: anível macro (relação povoado/necrópole), a nível semimacro(organização interna da necrópole) e anível micro (organização interna dosdiferentes sepulcros).

2.1 Uma necrópole espacialmenteestruturada

A necrópole actualmenteconhecida no limite Este dopovoado (LAGO et al., 1998: 53)

localiza-se numa área especificamenteseleccionada e demarcada por umalargamento do perímetro do fossoexterno (UE 1) que criou uma espéciede bolsa, de configuração semicircular,definida internamente pela segundalinha de fosso (UE 2).

Esta estruturação espacial da necrópoledo povoado dos Perdigões éparticularmente interessante erepresenta uma situação singular no

panorama peninsular. Efectivamente,são hoje conhecidos vários casos declara relação entre espaçoshabitacionais e espaços sepulcrais,tanto para contextos neolíticos, comopara contextos calcolíticos. Nestesúltimos, destacam-se Los Millares,Valencina de la Concepción, LaPijotilla, La Zarcita ou mesmo Alcalar.

O carácter singular dos Perdigõesresulta, essencialmente, da forma comoé estruturada a relação espacial entreáreas habitacionais ou domésticas e áreaou áreas sepulcrais. Na realidade,observa-se uma demarcação física doespaço funerário que se apresentaintegrado na estruturação do própriopovoado, que se assume como um todoplurifacetado. Esta situação não foiainda registada para nenhum outropovoado onde surgem necrópoles comclara conexão com um povoado.

ESTA ESTRUTURAÇÃO ESPACIAL DA

NECRÓPOLE DO POVOADO DOS

PERDIGÕES REPRESENTA UMA

SITUAÇÃO SINGULAR NO PANORAMA

PENINSULAR

Figura 2Planta da área da necrópole com localização dos sepulcros escavadose das concentrações de superfície que indiciam a presença de outros.

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f) Cobertura de natureza desconhecidanos diferentes ambientes, apresentandoo topo da estratificação da câmara umderrube com características contráriasàs que resultariam do colapso de umafalsa-cúpula (quer no que concerne àdisposição das pedras no próprioderrube, quer no que respeita àquantidade das mesmas). Nos restantesespaços (corredor e átrio) não existiamquaisquer vestígios de derrubes.

g) Átrio com um diâmetro de cerca de2 m.

h) Corredor curto (1,8 m) e estreito, semvestígios evidentes de elementosarquitectónicos, pétreos. Com base nasevidências proporcionadas pelosepulcro 2, é de colocar a hipótese deterem existido esteios neste local.

e) Ausência total de vestígios de tumulus.

A escavação do sepulcro 2 apresentaum carácter ainda muito parcelar,estando apenas definida a planta geraldo sepulcro, ao que tudo indica decaracterísticas similares às do n.º 1, eescavado parte do átrio.Genericamente, apresenta as seguintescaracterísticas:

a) Estrutura semi-subterrânea,parcialmente escavada na rocha.

b) Câmara de planta subcircular eátrio de planta elipsoidal, comparedes revestidas de finas lajes dexisto verticalizadas (no átrioregistou-se ainda a presença de umpequeno esteio); corredor curto eestreito, definido por quatropequenos esteios (dois de cadalado).

c) Câmara com aproximadamente 3 mde diâmetro.

d) Ausência de evidências de tumulus ede vestígios de estruturas pétreas decobertura em qualquer dos trêsespaços definidos.

Figura 3Vista geral do Sepulcro 1

Figura 4Vista geral do Sepulcro 2

FACE AOS DADOS DISPONÍVEIS

ATÉ AO MOMENTO, ESTAMOS

PERANTE UMA NECRÓPOLE DE

SEPULTURAS COLECTIVAS

curso, foram já intervencionados doissepulcros: o sepulcro 1, com plantaintegralmente definida e escavação muitoavançada, permanecendo por intervir abase da sequência estratigráfica da câmara;e o sepulcro 2, com planta integralmentedefinida e escavação parcial do átrio.

Em termos da sua implantação nanecrópole, revelam situaçõesdiversificadas. O sepulcro 1, localizadosensivelmente a meio da área delimitada,está orientado precisamente a Este(89.5.º), enquanto o sepulcro 2,implantado cerca de 20 m a NE, se orientaa Sudeste (aproximadamente 130º). Estasituação poderá sugerir que uma eventualprescrição de orientação a Nascente fosseconjugada com outros factores que nosescapam.

2.2.1 As arquitecturas

O sepulcro 1 dos Perdigões, emprocesso de escavação desde1997, está situado

sensivelmente ao centro do espaço danecrópole.

Do ponto de vista da suaarquitectura, apresenta as seguintescaracterísticas gerais:

a) Estrutura semi-subterrânea, toda elaparcialmente escavada na rocha.

b) Organização do espaço tumular pelasubdivisão em três áreas específicas:o átrio, através do qual se entrava noambiente funerário, antecedendoum corredor, espaço intermédio deligação à câmara funerária.

c) Câmara e átrio de planta sub-circular com paredes revestidas definas lajes de xisto (2-3 cm)verticalizadas.

d) Câmara com aproximadamente3,5 m de diâmetro e 1,60 m dealtura original das lajes derevestimento da parede.

e) Compartimentação interna dacâmara funerária por lajes de xistoverticalizadas.

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estratigrafias permanece por publicar.Para os restantes sítios os dados sãomuito ambíguos. A bibliografiadisponível reflecte leituraspreconcebidas assentes em metodologiasde escavação e de registo limitadoras,sendo evidente que sistematicamentenão se encarou de forma crítica o registoarqueológico e se assumiu estar perantemonumentos de falsa-cúpula, mesmoque de tal técnica nenhum vestígio fosseverificável ou demonstrado embibliografia, através de dados objectivosresultantes do registo realizado3 .

A falta de elementos gerais e depormenores fiáveis sobre derrubes(quando estes existem) nos registosarqueológicos disponíveis não nospermite conhecer com rigor a suaorigem. É de todo precipitado, semqualquer dado convenientementeregistado sobre a sua forma específica,constituição e enquadramentoestratigráfico, associar diferentes tipos decontextos a restos de falsas-cúpulasderrubadas.

Perante este cenário, designaruniversalmente este tipo dearquitecturas como “tholos” não nosparece correcto. Só através de umestudo aprofundado desta temática sepoderá avançar com umanomenclatura apropriada para estasestruturas, assentes em concepçõesgerais comuns ao nível da suaorganização espacial e arquitectónica,mas para as quais se terão desenvolvidodiversas opções técnicas e

diversificadas soluções a vários níveis,particularmente no que concerne àscoberturas da câmara funerária eespaços anexos. Em conjunto, porém,estas formulações arquitectónicasparecem estar associadas a populaçõesenquadradas em sistemas religiosossimilares, manifestando atitudesperante a morte aparentadas entre si e,globalmente, reflectindo aspectosessenciais dos sistemas do megalitismofunerário.

2.3 Os rituais

Os contornos da ritualizaçãoenvolvida na gestão da morte nanecrópole dos Perdigões estão

ainda insuficientemente definidos.Porém, poderemos já hoje avançaralgumas das características e dasparticularidades das atitudes perante amorte das comunidades que viveramneste povoado.

Um primeiro aspecto diz respeito àgestão ritual do espaço funerário,nomeadamente ao nível de cadasepulcro.

Assim, no sepulcro 1, verifica-se umaclara diferenciação na forma comocâmara, corredor e átrio foramencarados e utilizados. Este últimoespaço não esteve, muitoprovavelmente, relacionado comdeposições funerárias de restoshumanos, tendo sido identificadascontextualmente na sua entradadeposições de objectos que podemosencarar como de sucessivas oferendas:um conjunto de 6 recipientes decalcário, um conjunto de pontas deseta, um recipiente cerâmico dereduzida capacidade volumétrica(forma 16), uma alabarda e, pelomenos, duas conchas de pecten. Osossos humanos são escassos e muitofragmentados, o que sugere umadeposição não intencional,essencialmente relacionável comprocessos tafonómicos (LAGO, et al.,

3 É o caso dos monumentos da Cabecinha Grande, Folha dasBarradas, Agualva, Trigache 4, Tituaria, Santiago do Escoural,Lousal 3, Monte das Pereiras, Monte do Outeiro, AmendoeiraNova, Cerro do Gatão, A-dos-Tassos, Marcela, Arrifes, CastroMarim, Eira dos Palheiros, Alcalar 2, 3, 5, 6, 8, 9, e de MonteVelho 1, 2 e 3.Nos sepulcros da Bela-Vista, do Cabeço da Arruda 2 e daSerra das Mutelas, os monumentos foram cobertos, na suatotalidade, por lajes de grandes dimensões.Em muitos dos casos (S. Martinho 1 e 2, Comenda 2 b,Farisoa 1 b, Monte da Boiça 1, Monte Velho, Malha Ferro eNora Velha), foram encontrados derrubes pétreos no interiordas câmaras funerárias, interpretados, sistematicamente,como resultando da ruína das falsas-cúpulas.

Face aos dados disponíveis até aomomento, estamos perante umanecrópole de sepulturas colectivas, decaracterísticas arquitectónicas geraispouco variáveis e enraizadas numsubstrato cultural e religioso comum,em que se enquadram globalmente ossepulcros tipo tholos. Este grupo dearquitecturas funerárias, cujo nível deconhecimento actualmente disponível éclaramente insuficiente, dúbio e poucofuncional, permanece obscuro, estandorepresentados numericamente de formapouco significativa no actual territórioportuguês, eventualmente por questõesinerentes à sua escassa visibilidade oufragilidade original e às sucessivasprioridades e problemáticas estabelecidasno âmbito dos processos de investigaçãodas sociedades do 3.º milénio AC.

Parece-nos que a designação de “tholos”,adoptada tradicionalmente para designareste tipo de estruturas, não será a maiscorrecta, nem deverá permanecer nodiscurso arqueológico, sob pena deperpetuação de determinados equívocosgeneralizadores. Na verdade, falar de

“tholos” implica falar de uma técnicaparticular de construção arquitectónica,para coberturas (ou paredes e coberturas)de compartimentos. Ora, não é esse ocaso da quase totalidade dosmonumentos estudados em Portugal eenquadrados nessa tipologia, nos quaisos vestígios objectivamente registados decobertura são, aliás, escassos.Actualmente, e com base na bibliografiadisponível, dos cerca de 60 sepulcrosidentificados no nosso território,naquele âmbito, apenas em três casosforam publicados dados queindiscutivelmente provam a existênciade falsa-cúpula: Alcalar 7 (VEIGA,1986), Monge (RIBEIRO, 1880), em queas características gerais são bastanteoriginais, e a anta de Vale de Rodrigo(LEISNER, 1949), à qual foiacrescentada uma falsa-cúpula. Esteconjunto poderá ser alargado com maisalguns monumentos que se encontramem estudo (nomeadamente no complexofunerário do Olival da Pega, Reguengosde Monsaraz, a escassos 15 Km dosPerdigões – GONÇALVES, 1999), mascujo registo detalhado de arquitecturas e

Figura 5 Aspecto da escavação da câmara do Sepulcro 1

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espaços definidos pela arquitecturado sepulcro e que poderão assumirsimbolismos diversificados. Estasituação poderá relacionar-se comuma eventual dualidade ritual: umcarácter mais individual, associadoao defunto ou defuntos, e queocorreriam na câmara e ao qualseriam associados artefactos maispersonalizados e depostos nomomento de colocação dos restosmortais no sepulcro; outro carácter,mais colectivo, no sentido de revelaruma distanciação dos rituaisrelativamente ao corpo, umdistanciamento do carácter físico dainumação, e que ocorreria no átrio,eventualmente em ligação adeposição pontual de oferendas.

Relativamente ao sepulcro 2, e apesarda sua escavação se encontrar aindanuma fase inicial, também podemossubdividir o conjunto nas mesmas

três áreas específicas, no que respeitaà utilização do sepulcro.

O átrio, e ao contrário do que severificava no sepulcro 1, apresentacontextos com deposições secundáriasde restos humanos e rituais a elasassociados. Entre o mobiliáriofúnebre, registou-se um conjuntoigualmente composto por 6 vasos decalcário e um ídolo cilíndrico tambémem calcário; objectos em osso e corno(ídolos-falange, ídolo antropomórfico,placas de osso polido, bainha depunhal, alfinetes); escassosrecipientes cerâmicos lisos edecorados (presença de decoraçãosimbólica de elaboração “barroca”);escassa indústria lítica; conchas (1Pecten e 2 Patella); numerosas contasde colar (dominantemente em caliço);restos vestigiais de artefacto metálico.

Quanto ao corredor, cujos restospreservados foram apenasparcialmente decapados, foiverificada, igualmente, a presença dedeposições funerárias secundárias.

NO SEPULCRO 1, PARECE TER

EXISTIDO UMA SEGREGAÇÃO

ESPACIAL DAS DEPOSIÇÕES

1998). As deposições registadasassumem um carácter eminentementevotivo. Os materiais são na sua quasetotalidade relacionados com o sagradoe comuns em contextos funeráriosdesta época. O próprio estudo daspontas de seta (Idem) aponta para umacerta ineficácia funcional de cerca de70% destes artefactos (os realizados emxisto), sublinhando o seu eventualcarácter dominantemente simbólico.

Pelo contrário, a câmara foi uma áreade utilização funerária intensiva, comsistemáticas e sucessivas deposiçõessecundárias de restos humanos.Existindo a possibilidade de eventuaisorganizações na deposição dos restoshumanos, as evidências são poucoclaras, devendo ser averiguadas edemonstradas. A partir de determinadomomento da vida do sepulcro, observa--se um processo simultâneo dedeposição regular e intensa de restoshumanos e de ruína progressiva daestrutura geral da parede da câmara: oespaço fúnebre crescentementearruinado continuou a ser funcional,

pelo que lajes tombadas e deposiçõesde ossos se foram intercalando.

O mobiliário fúnebre é homogéneo,pouco variado e em bom estado deconservação: várias dezenas derecipientes cerâmicos, recipientes depedra (4 vasos de calcário), pontas deseta, contas de colar(dominantemente em pedra verde),punhais/alabardas de sílex, lâminas;artefactos de osso (alfinetes, pulseira,ídolos, ídolos-falange, “báculo”decorado e outros fragmentosdecorados ou simplesmente polidos);escassez de cerâmica decorada eausência de metal. Regista-se aassociação de blocos de quartzo adeposições de ossos, relacionável comdeterminadas prescrições religiosasde carácter especificamentefunerário, assim como oferendas departes de animais, com restosanatomicamente em conexão.

No sepulcro 1, parece ter existidouma segregação espacial dasdeposições, que se articula com os

Figura 6Aspecto das deposiçõesfunerárias no espaçocompartimentado da câmara doSepulcro 1, sobre esteiosderrubados, que por sua vezcobriam outras deposições maisantigas

Figura 7Pormenor de um recipientecerâmico e de um “copo” emosso decorado, esmagado pelaqueda de um fragmento deesteio

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A análise estatística realizada diz-nosque existem contrastes muito grandesentre as morfologias de recipientescompletos ou mais bem conservados(Figs. 8 e 9) e as morfologiasrepresentadas pelos pequenosfragmentos dispersos. Esses contrastesrevelam que o último conjunto defragmentos apresenta morfologias maisvariadas (quer na forma quer nadimensão), representativas dosconjuntos cerâmicos conhecidos para oscontextos domésticos dos Perdigões.Pelo contrário, os recipientes mais bemconservados apresentam uma menorvariedade morfológica, menor dimensãoe revelam a presença de formas aindanão reconhecidas nos conjuntos deorigem doméstica do povoado,denotando, por sua vez, a ausência deformas vulgares ou dominantesnaqueles conjuntos (pratos, taçascarenadas, potes mamilados).

Por outro lado, a análise do registoefectuado no sepulcro 1, entendidoenquanto conjunto de leituras dasrealidades materiais escavadas, revela aexposição a situações deposicionais epós-deposicionais diferentes, que sepoderão sintetizar nos seguintes pontos:

a) na câmara observa-se que, nosníveis superiores dos derrubesainda afectados pela surriba, apresença de fragmentos cerâmicos éelevada, reduzindo-se bastante nasunidades que não sofreram essaafectação de forma tão intensa. Porseu lado, no átrio, os pequenosfragmentos surgem na base daestratigrafia, em unidades semquaisquer vestígios de deposiçãointencional, quer de ossos, quer deartefactos, e que são anteriores àsdeposições documentadas na UE 19.

b) as remontagens entre os pequenosfragmentos dispersos são quaseinexistentes. Esta situação sugereque os fragmentos de bordos, bojos

OUTRO ASPECTO QUE CARACTERIZA OS

RITUAIS FUNERÁRIOS É A

ESPECIALIZAÇÃO E AS OFERENDAS

RELACIONADAS COM CULTOS DA MORTE

Figura 8 Recipientes utilizados nos rituais funerários da câmara do Sepulcro 1

Entre o mobiliário fúnebre destaca-seum vaso de calcário. A Câmarafunerária apenas definida em termosde planta, permanece por conhecer.

2.3.1 Rituais do ocre e do fogo

A utilização de ocre em rituaisfúnebres desta época estápresente em inúmeros sítios e

atestada na câmara do sepulcro 1, emdiversos contextos, onde artefactos,ossos e os sedimentos de terra foramfrequentemente polvilhados com ocrevermelho. A sua mistura com ossedimentos, por vezes em quantidadeapreciável, denuncia que as acçõesrelativas à sua aplicação ocorreram nopróprio ambiente da câmara (oueventualmente em locais onde oscorpos foram depositadosanteriormente), embora tais aspectosrelacionados com a formação doscontextos devam ser ainda largamenteponderados. No átrio e corredor não seregistaram sinais deste ritual.

Pelo contrário, o átrio do sepulcro 2documentou a presença de ocre, masquase exclusivamente amarelo. O ocreaparece, assim, claramente associadoaos contextos com deposições de ossoshumanos, estando ausente dos espaçosonde estas deposições não foramefectuadas.

A questão do ritual do ocre tem sidoabundantemente debatida, não sendoainda altura, relativamente aos casos dosPerdigões, para contribuições nessesentido. Acrescente-se apenas que, paraalém de tais aplicações, foram tambémidentificadas, no sepulcro 1, situaçõesem que sedimentos, ossos e artefactossurgem associados a uma coloraçãoesbranquiçada, mais ou menos intensa,resultante da mistura compequeníssimos pedaços de caliço (UE96), o que poderá revelar uma exploraçãosimbólica dos seus efeitos cromáticos.

Relativamente ao fogo, praticamentenão existem sinais verificáveis nosossos ou em qualquer categoria deartefactos. Apenas de referir a estruturade barro cozido e queimado que seregistou no átrio do sepulcro 1,anterior às primeiras deposições deartefactos votivos, e que encontraparalelos em algumas estruturas decombustão. Poder-se-ia colocar aqui apossibilidade de se tratar de umestrutura daquele tipo utilizadaritualmente nos momentos maisantigos da vida do sepulcro, hipóteseque contudo é de difícil demonstração.

2.3.2 Especialização do espólio votivo

Um outro aspecto quecaracteriza os rituaisfunerários desta comunidade é

a especialização artefactual dasoferendas relacionadas com cultos damorte. Se parte delas nos podem fugir,porque relativas a elementosperecíveis, outras surgemdocumentadas por uma escolhacriteriosa dos objectos a incluir nosrituais, nomeadamente ao nível dosrecipientes. Estes, inteiros ourepresentados por mais de metade doseu corpo, são sempre de volumetriaspequenas e incluem morfologias que,até ao momento, não foramreconhecidas no povoado.

Contudo, outras questões são suscitadaspela presença de fragmentos cerâmicosdispersos nos vários depósitos jáescavados do sepulcro 1 e respectivavalorização ou não como elementosparticipantes dos rituais. Trata-se, umavez mais, de questionar a nossacapacidade de distinguir entre processosintencionais e processos acidentais. Assoluções para esta dicotomia residemnormalmente em duas abordagens: aanálise estatística e espacial e a análisedos processos de formação do registoarqueológico, ou seja, a tafonomia.

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área de Reguengos é recorrenteobservar-se situações semelhantes àdescrita, ou seja, a presença derecipientes mais completos detipologias de carácter fúnebre e depequenos fragmentos de tipologias deâmbito marcadamente doméstico. Estasituação poderia, em muitos casos, serexplicada por longos períodos deutilizações e reutilizações e porprocessos tafonómicos ocorridos após oabandono definitivo. Mas seobservarmos as representações gráficasdos materiais cerâmicos publicadas(LEISNER e LEISNER, 1985),verificamos que morfologias como ospratos, as taças carenadas ou os potesmamilados, estando presentes em várioscontextos, ocorrem sempre sob a formade pequenos fragmentos, não seencontrando um único destesrecipientes inteiro ou com mais de ½metade do seu corpo preservado. Vejam-se os casos das Antas 1 e 3 de Gorginos,Tholos da Comenda, Tholos da Farisoa,Anta Grande do Olival da Pega, Anta 11das Areias ou Anta 1 do Cebolinho.Contudo, ao contrário dos Perdigões,não se conhecem povoados ouambientes habitacionais para a maioriadas áreas imediatas a estesmonumentos, pelo que, face aos dadosdisponíveis, as hipóteses avançadas parao caso do Monumento 1 dos Perdigõesnão são aqui aplicáveis. Desta forma, aincorporação destes materiais naquelescontextos deve ser vista como oresultado de, pelo menos, três situaçõespossíveis, não mutuamente exclusivas:

1) pela intrusão de restos materiaisprovenientes de áreas habitacionaissituadas nas proximidades, nãosendo de excluir que anteriormenteà concepção da necrópole o seuespaço tivesse tido uma ocupação decarácter doméstico; tal intrusãopoderia estar relacionada com aeventual ausência de cobertura emdeterminadas áreas dos sepulcros;

2) este tipo de recipientes de uso

eminentemente doméstico seriautilizado, eventualmente, durante osperíodos de construção ou,posteriormente, em fases deremodelação ou reconstruçõespontuais; no decurso de tais acções,que também elas se poderiamrevestir de carácter ritual, algunsdeles fragmentar-se-iam,incorporando-se parte dos elementosnos depósitos funerários. Assim,estaríamos perante depósitos nãointencionais, sem expressãosimbólica autónoma.

3) estes fragmentos seriam trazidos dopovoado e integrados intencionalmentenos contextos funerários, comoparte de rituais funerários, comexpressão simbólica própria.

Esta última situação tem vindo a sersugerida na interpretação de uma sériede contextos funerários da Pré-HistóriaRecente Peninsular. Porém, no casoconcreto dos Perdigões, a estreita relaçãocom os espaços habitacionais, ascaracterísticas arquitectónicas dossepulcros e os processos tafonómicosocorridos durante e após utilização dosítio, favorecem a hipótese de deposiçõesnão intencionais.

Para além dos recipientes cerâmicos, aespecialização das oferendas éigualmente observável nas pontas deseta, no sentido de que parte da colecçãoindicia ausência de funcionalidade, pelatotal ausência de artefactos de pedrapolida nos contextos preservados dossepulcros (apenas uma enxó foirecolhida e nos contextos revolvidos dotopo da câmara do sepulcro 1, o queindicia que estes artefactos, abundantesna área de habitat, teriam sidointencionalmente excluídos do ritualfunerário) e, obviamente, por toda apanóplia de artefactos tradicionalmenterelacionados com o sagrado, de que sedestacam os recipientes e ídolos decalcário e os ídolos e artefactos variadosem osso.

e de pesos foram integrados nestesdepósitos já com um tamanhoreduzido, e que não são o resultadode vestígios de primeiras deposiçõesafectadas pelas posteriores, o que asdiferenças tipológicas observadas járevelavam.

Assim, a presença de pequenos edispersos fragmentos de pratos, taças,globulares ou taças carenadas naquelescontextos poderia ser justificada pelaconjugação de uma série de factores comdiferentes significados.Nos contextos funerários megalíticos da

Figura 9Tabela de formas dosrecipientes utilizados noritual funerário da câmarado Sepulcro 1.

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2.3.3 Deposições primárias / Deposiçõessecundárias

A frequência relativa dos ossosdominantes neste conjunto nãoé a previsível num processo

“natural” de decomposição edesmembramento dos corpospostmortem, nomeadamente, dada apresença de um elevado número deelementos cranianos. Apesar deprovisórios, os dados disponíveis nãodeixam de ser sugestivos da presençade uma selecção de elementosespecíficos para permanência no localde enterramento definitivo – o momentosecundário do processo funerário.

A constatação de que o sepulcro 1 dosPerdigões sugere uma utilização decarácter secundário leva-nos a colocarvárias hipóteses relativas ao processode tratamento funerário:

Hipótese AHipótese AHipótese AHipótese AHipótese AConcretização da primeira fase doprocesso mortuário em sepulturasadjacentes que revelariam, nos seusconjuntos osteológicos, umaorganização totalmente distinta da dosepulcro 1, hipoteticamentecaracterizada por menor quantidade deossos no seu todo, maiorrepresentatividade de elementos ósseosausentes no sepulcro 1.

Hipótese BHipótese BHipótese BHipótese BHipótese BPrimeira fase do processo mortuárioefectuada em estruturas perecíveissituadas dentro do complexo dosPerdigões, mas não no interior dequalquer sepulcro. Neste caso, nãoteriam restado quaisquer vestígios, àexcepção da presença de ossoshumanos em locais onde não seriamprevisíveis, ou seja, em locais nãoassinalados por qualquer estrutura decarácter permanente.

Hipótese CHipótese CHipótese CHipótese CHipótese CPrimeira fase do ritual mortuárioconcretizada em locais distanciados do

próprio povoado, sendo praticamenteimpossível a detecção de vestígiosvisíveis dessa etapa inicial, remetendo,assim, os sepulcros para um papelsimbólico específico dentro doprocesso funerário.

Hipótese DHipótese DHipótese DHipótese DHipótese DO sepulcro 1 possuir dentro de si os(dois) momentos fundamentais doprocesso mortuário praticadoregularmente. Neste caso, todos osrestos osteológicos até agora exumadosconstituem o resultado de umaexumação após descarnamento,seguida de trasladação dos ossos para aszonas mais periféricas da própriacâmara. Contudo, vestígios dessehipotético primeiro momento nãoforam ainda identificados.

A terem existido esqueletosindividualizados completos na câmarado sepulcro 1 dos Perdigões, estesdeveriam ter sido conservados (pelomenos, parcialmente) entre as lajesque tão singularmente preservaram adisposição de conjuntos osteológicos,entre os vários momentos de derrubeda parede. No entanto, só a conclusãoda escavação da câmara funerária podeexcluir em definitivo a hipótese deinumação primária no interior dosepulcro.

Assim, e antes da conclusão dessaescavação, a única hipótese explicativapara este tipo de disposição de ossadasé a existência de um primeiromomento do processo funerário numlocal exógeno àquele sepulcro. Aidentificação do local onde esseprimeiro momento terá tido lugar éfundamental para compreender adinâmica de funcionamento do mundofunerário destas comunidades, emboratal deva ser extremamente difícil deconseguir.

A existência de dois locais deprocessamento dos corpos – o primárioe o(s) secundário(s) – implica o

Figura 10Recipiente em osso decorado, ídolo-falange decoradoe pequena placa de xisto decorada (revelando oreaproveitamento de um fragmento de uma placamaior). (101)

Figura 11“Báculo” em osso polido decorado. (913)

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câmara do sepulcro escavadoanteriormente. Isto é, enquanto queaquele continha um maior número defragmentos de crânio, fémur, ilíaco etíbia, o sepulcro 2 (pelo menos, noátrio) possui maior número de costelas,falanges e vértebras, elementos em faltano primeiro (cf. Fig. 12).

As características diferentes dos doistipos de espólio osteológico podem serexplicadas de diversas formas, dado ocarácter preliminar da análise,nomeadamente pelo facto de seestarem a comparar deposiçõesrealizadas num átrio e numa câmara.Por outro lado, estão apenasquantificados os ossos registados eidentificados no campo durante aescavação, podendo a imagem geral seralterada após a quantificação total emlaboratório. Além disso, aspercentagens referem-se ao númerototal de ossos identificados, podendosomente ser entendidas como tal. Umainterpretação do seu significado emtermos de ritual mortuário só poderáser validada depois da curva dedistribuição ser contraposta ao númeroprevisto de cada categoria anatómicaem relação ao total de indivíduosrepresentados.

A distribuição diferenciada dasdiversas categorias anatómicas nos doissepulcros poderá confirmar a hipótesede que os diferentes compartimentosdos edifícios do complexo tumularpossam cumprir tarefas distintas noprocesso funerário.

3. A vivência da morte nos3. A vivência da morte nos3. A vivência da morte nos3. A vivência da morte nos3. A vivência da morte nosPPPPPerdigões: consideraçõeserdigões: consideraçõeserdigões: consideraçõeserdigões: consideraçõeserdigões: consideraçõesprovisórias de uma investigaçãoprovisórias de uma investigaçãoprovisórias de uma investigaçãoprovisórias de uma investigaçãoprovisórias de uma investigaçãoem cursoem cursoem cursoem cursoem curso

A investigação em curso nosPerdigões sobre as questões damorte confirma o elevado

potencial de informação que acomunidade científica dispõe no local.O enquadramento das realidades

arqueológicas em metodologias e emlinhas de problematização adequadaspermitirá avanços muito significativosno lento processo de conhecimento dascomunidades do 3.º milénio A.C.

A necrópole como espaço de vivos emortos é aqui paradigmática. Osmortos que estudamos foram gente dosPerdigões, de determinados momentosdos Perdigões, e eventualmente denúcleos habitacionais periféricos. Nãopodemos esquecer futuramente queeste espaço de ritual específico podeser apenas relacionável com umsegmento do vasto tempo durante oqual este local foi habitado e/ou comum segmento da sua população. Esta éapenas, muito provavelmente, uma dasvárias necrópoles que os Perdigõesconheceu. Apresenta-se como umespaço dos mortos claramenteindividualizado e estruturado emrelação à área habitacional e ao recintode menires pré-existente, revelandouma organização espacial semparalelos conhecidos.

No seu interior, as arquitecturas jádocumentadas permitem questionaralgumas ideias enraizadas nodiscurso arqueológico. Ascaracterísticas detectadas edevidamente registadas, tal como oseu confronto com os diferentessepulcros conhecidos em Portugal,considerados como tholos, e portantocomo possuindo falsa-cúpula,permitem afastar a possibilidade dautilização de tal técnica no sepulcro1 e questionar a sua efectivautilização em muitos outros casos.Esta situação obriga a uma revisãogeral dos dados disponíveis sobreaquilo que tem sido consideradocomo um tipo arquitectónicoespecífico, sugerindo antes estarmosem presença de um conjuntodiversificado de tipologiasarquitectónicas e de técnicasconstrutivas, entre as quais secontaria a da falsa-cúpula.

prolongamento de um ritual, ocontacto demorado e permanente comos antepassados, uma perpetuação dasua memória. A distribuição espacialdos diversos ossos humanos nosepulcro 1 (ainda é cedo para avaliar osepulcro 2) indicia a inexistência deum tratamento especial de certosindivíduos. As ossadas parecem estarassociadas em núcleos (grupos deossos), que aparentam ter sidodepositados em simultâneo. Dos dadosde campo, podemos afirmar que estesnúcleos são compostos de elementosdiversificados, não respeitando regrasde distribuição etária ou de género.Esta gestão indiscriminada dos restoshumanos sugere que não há a intençãode perpetuar para além da morte umamemória do indivíduo, que, assim,parece ser diluído no colectivo globalda comunidade ou num colectivoespecífico da mesma. Esta aparentediluição do estatuto individual estariaassociada a uma valorização de umespaço tumular colectivo concreto. Talinterpretação será reforçada pelacontínua deposição de ossos humanose oferendas ao longo do processo deruína do monumento, prática atestadapelos contextos de deposição funeráriaintercalados por lajes derrubadas daparede da câmara do próprio sepulcro 1(cf. Figura 6).

Se a análise da distribuição espacialdas ossadas no sepulcro 1 tinha

indicado uma utilização diferencial dacâmara e do átrio (LAGO et alii, 1998),sendo este apenas utilizado de formasimbólica no ritual funerário, aescavação do sepulcro 2 no verão de2000 sugeriu, pelo contrário, umautilização bastante diferente das duasáreas. O átrio é, neste segundo caso,um espaço de intensa tumulação, ondeas ossadas se distribuem em núcleos deossos de deposição secundária,representando vários indivíduos.Distinguindo-se do sepulcro 1 pelomaior grau de conservação das ossadas,o sepulcro 2 evidencia a presença deossos sem conexão anatómica de, pelomenos, cinco esqueletos distintos –uma criança, um jovem e três adultosindividualizáveis pelos graus diferentesde robustez do esqueleto.

Embora apenas o átrio tenha sidoescavado, o gráfico de distribuição dosossos pelas categorias anatómicas quetinham servido de base à interpretaçãodo processo funerário no sepulcro 1,demonstra uma distinta gestão dosrestos humanos no sepulcro 2,caracterizada pela presença maioritáriados elementos menos frequentes na

EXISTÊNCIA DE DOIS LOCAIS DE

PROCESSAMENTO DOS CORPOS

–O PRIMÁRIO E O(S)

SECUNDÁRIO(S)– IMPLICA O

PROLONGAMENTO DE UM RITUAL

Figura 12 Categorias anatómicas dos sepulcros 1 e 2.

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O CARÁCTER COLECTIVO E

INDIFERENCIADO DESTES NÚCLEOS

PARECE INDICIAR UMA ATITUDE PERANTE

A MORTE NIVELADORA DAS EVENTUAIS

DIFERENCIAÇÕES ENTRE INDIVÍDUOS

Figura 13Recipiente decorado com temática simbólica doátrio do Sepulcro 2.

Figura 14Recipientes de calcário do átrio do Sepulcro 2.

As evidências de ritualização sãomúltiplas e ricas, sinal de que a gestãoda morte continua a “jogar” um papelcentral na ideologia e visão do mundodas comunidades calcolíticas, apesardas novas arquitecturas sugerirem umcerto desinvestimento de esforço,comparativamente às suaspredecessoras do Neolítico. Essasevidências surgem na forma demanipulação dos corpos, de gestão dossepulcros e nos conjuntos artefactuais(mais ou menos especializados) a elesassociados, documentando umaintegração das comunidades dosPerdigões em planos superestruturaisde vigência transregional. Nestesentido, este é um sítioparticularmente propício para a análisede como se processa a articulação decorrentes religiosas e simbólicas gerais,que circulam por amplas áreasregionais durante o 3.º milénio AC,com as especificidades dasmentalidades e prescrições locais.

OS MORTOS QUE ESTUDAMOS FORAM

GENTE DOS PERDIGÕES Mas para além das questões técnicas eideológicas deveremos privilegiartambém o que se relaciona com omundo das mentalidades. As atitudesperante a morte e o seuespartilhamento são acessíveis a partirda observação das formas de gestão emanuseamento dos corpos e dos restosdo esqueleto, assim como dos restantesaspectos rituais. Não há, nos Perdigões,o esquecimento da morte ou dosantepassados. Ela está presente nasimediações, é vivida, manipulada,gerida, disposta no interior deelementos arquitectónicos específicos,enquadrados num espaço próprio, masestruturado em função do povoado. Aausência de deposições primárias nosespaços arquitectónicos até agoraescavados indica que os corpos eramdecompostos num primeiro local paradepois serem seleccionadas porçõesrestantes, transportadas para ossepulcros onde eram dispostas deformas variáveis. O carácter colectivo eindiferenciado destes núcleos pareceindiciar uma atitude perante a morte

niveladora das eventuais diferenciaçõesentre indivíduos, assumindo a morteaspectos de referencial de memória docolectivo ou de colectivos específicos.

Estas são, contudo, considerações denatureza ainda marcadamentetransitória. Orientadoras do trabalhofuturo, constituem-se como hipóteses atestar com a continuidade dainvestigação no sítio dos Perdigões.

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