Alteridades em fricção: Discursos e identidades na prevenção de dst/aids entre travestis

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Rodrigo Borba ALTERIDADES EM FRICÇÃO: Discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada. Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes Rio de Janeiro 2008

Transcript of Alteridades em fricção: Discursos e identidades na prevenção de dst/aids entre travestis

Rodrigo Borba

ALTERIDADES EM FRICÇÃO:

Discurso e identidades na prevenção de

DST/AIDS entre travestis

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.

Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes

Rio de Janeiro

2008

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Rodrigo Borba

ALTERIDADES EM FRICÇÃO:

Discurso e identidades na prevenção de

DST/AIDS entre travestis

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.

Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes

Rio de Janeiro

2008

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Esta dissertação foi financiada com recursos do Governo Federal, via Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Borba, Rodrigo B726a Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis / Rodrigo Borba. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

170 f.; il.

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2008.

Bibliografia: f.152-166

1. Lingüística aplicada. 2. Análise do discurso. 3. Travestis. 4. AIDS (Doença) -- Prevenção. 5. Identidade Sexual. 6. Sexualidade I. Lopes, Luiz Paulo da Moita. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD 418

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Alteridades em Fricção: Discurso e Identidades na Prevenção

De DST/AIDS entre Travestis

Rodrigo Borba

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

CONCEITO: Aprovada por: _______________________________________________________________ Presidente, Profº Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes, UFRJ _______________________________________________________________ Profa Doutora Maria das Graças Dias Pereira - PUC-Rio _______________________________________________________________ Profa Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ ______________________________________________________________ Profa Doutora Ana Cristina Ostermann – UNISINOS ______________________________________________________________ Profa Doutora Myriam Brito Correa Nunes – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

Nenhuma pesquisa é feita em um vácuo social. Como tal, múltiplas redes de

apoio intelectual, emocional e financeiro possibilitaram a elaboração da presente

dissertação. Gostaria de aqui expressar meus agradecimentos às pessoas e instituições

que, em maior ou menor grau, serviram de suporte à realização da pesquisa aqui

apresentada.

Agradeço, primeiramente, à equipe da ONG Liberdade e às travestis que nela

trabalham, procurando, arduamente, a melhoria da vida das transgêneros profissionais

do sexo na cidade onde realizei trabalho de campo. Com elas aprendi que toda e

qualquer diferença é valiosa.

Ao meu orientador, Luiz Paulo da Moita Lopes, pelo apoio e pela confiança

depositada em mim. Entre “broncas carinhosas”, discussões, orientações, trocas de e-

mails e muitas risadas construímos, conjuntamente, um trabalho do qual muito me

orgulho (e espero que ele também).

Ao corpo docente do Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, em

especial às professoras Branca Falabella Fabrício e Myriam Nunes que, com sábios

conselhos e palavras afáveis em momentos muito difíceis, me serviram de exemplo e

inspiração pessoal e acadêmica. Agradeço às professoras Branca e Myriam por terem

aceitado participar de minha banca examinadora.

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À Simone Rolim de Moura, que mesmo à distância, sempre foi um porto seguro

no qual pude desabafar as angústias e compartilhar aprendizados. Uma amiga sempre

disposta a ajudar, apoiar e aconselhar em momentos muito importantes. Não poderia

deixar de mencionar as outras mulheres da família Rolim de Moura, Adelaide (in

memoriam), Neila e Neusa, que, como uma segunda família, sempre se puseram

dispostas a apoiar meus passos acadêmicos e pessoais.

A Otávio Rios Portela, com quem compartilhei uma das épocas mais

significativas da minha vida. Entre passeios pelo Flamengo, jantas no Largo do

Machado e turismo pela Cidade Maravilhosa, aprendemos a lidar com nossas

diferenças regionais e cientificas e nos tornamos, de facto, grandes amigos.

Agradeço também aos alunos e alunas da turma de mestrado de 2006/1, em

especial à Ana Paula Loureiro, Milena Ximenes, Leda Boaventura e Petrilson Pinheiro.

Não posso deixar de mencionar os/as outros/as participantes do projeto Salinguas,

Paula, Natalia, Tatiana. Agradeço especialmente a Thiago Simões e a Ana Paula

Loureiro pela ajuda indispensável com as questões burocráticas da UFRJ.

Aos “guris” da república 404, Bucker, Macaé e Sagüi, que foram parte importante

na realização desta dissertação, pela amizade e pela paciência para agüentar os maus-

humores sulfúricos de um gaúcho perdido no Rio de janeiro.

À Cândida Rosa, corajosa e determinada, que me acolheu, de modo inusitado,

em sua casa e se tornou uma grande amiga.

A Nélio Giorgini agradeço pelo emprego e pelas muitas risadas entre uma aula e

outra, sem as quais minha estada no Rio teria sido muito mais difícil, quiçá impossível.

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Ao professor Pedro Garcez (UFRGS) por me acolher em sua disciplina

Lingüística e Ensino, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realizei

minha capacitação docente.

À professora Guacira Lopes Louro (UFRGS) pela acolhida calorosa e pelas

discussões sempre muito enriquecedoras nas frias tardes de quarta-feira na Faculdade

de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do sul.

À professora Maria das Graças Dias Pereira (PUC-Rio) por ter aceito fazer parte

de minha banca examinadora.

À professora Ana Cristina Ostermann (UNISINOS) por acreditar, desde o

princípio, na pesquisa e por ter aceitado o convite para ser uma das avaliadoras desta

dissertação. Sou grato pelo apoio e por todo aprendizado sobre como fazer pesquisa

em Linguagem e Gênero, sem o qual, minha entrada na UFRJ não teria sido possível.

Acima de tudo, agradeço as minhas mães, Rosalina e Duda, e meu pai, Laerte

que com simplicidade, trabalho e determinação souberam superar a saudade e as

dificuldades que minha mudança para o Rio de Janeiro motivaram. Minhas mães e meu

pai me serviram de apoio incondicional para superar as dificuldades durante a

elaboração da pesquisa e do mestrado. A elas e a ele dedico esta dissertação.

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Provavelmente, quanto maior é a diferença,

maior será a igualdade, e quanto maior é a igualdade maior a diferença será [...]

(Saramago, 1997, p. 97)

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RESUMO BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. Nesta dissertação, investigam-se as dinâmicas discursivo-identitárias emergentes de eventos de fala co-construídos entre travestis que se prostituem em uma cidade do sul do Brasil e mulheres ativistas na prevenção de DST/AIDS. Através de uma perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003), o estudo investiga os processos de construção, re-construção, negociação, re-negociação e administração de diferenças (percebidas ou construídas) entre as interagentes.As interações sob escrutínio ocorreram durante intervenções que visam à prevenção de DST/AIDS nas áreas de prostituição travesti. Foram gravadas 5 intervenções com uma média de 12 abordagens por intervenção – um total de 60 interações com aproximadamente 8 horas de gravação. Mais especificamente, com base no modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), analisam-se as táticas de intersubjetividade construídas entre as participantes no processo interacional que coloca suas identidades em fricção. As interventoras, indivíduos que têm se construído em categorias identitárias tradicionais, ao se depararem com as posições de sujeito socialmente marginalizadas das travestis (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), engajam-se em processos locais e seqüenciais de composição e re-composição de relações identitárias com suas interlocutoras. Esses processos são co-construídos entre travestis e interventoras durante as interações. As participantes desses eventos discursivos empregam táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ E HALL, 2004) para (i) autenticar a identidade e (ii) autorizar social e institucionalmente a produção de gênero das travestis, e para (iii) minimizar as barreiras sociais, i.e. gênero e poder institucional, que as diferenciam. Por meio de posicionamentos (DAVIES & HARRÉ, 1990), alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974), as interlocutoras parecem assumir discursivamente identidades que não fazem parte de seu repertório (KROSKRITY, 2000) cotidiano. Assim, as interagentes parecem engendrar um processo de empoderamento das performances de identidades das travestis. As análises apontam para o caráter fluido, multifacetado, fragmentado e sempre movente das identidades sociais que, em interações nas quais identidades díspares se tencionam, recompõem-se constantemente na administração das diferenças entre interlocutores/as. Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada, aproximando essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. Palavras-chave: identidades em fricção; gênero; sexualidade; táticas de intersubjetividade; travestis; prevenção de DST/AIDS

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ABSTRACT

BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. This thesis investigates the discursive and identity dynamics that emerge from speech events co-constructed between travestis who work as sex professionals and two female safer-sex outreach workers in a Southern Brazilian City. Guided by a socioconstructionist perspective on the relations between discourse and social identities (MOITA LOPES, 2003), the study analyses the processes of construction, re-construction, negotiation, re-negociation, and management of (perceived or constructed) differences among the interlocutors. The interactions under scrutiny are drawn from safer sex outreach work in the prostitution areas of travestis in the city. Five outreach visits to these areas were audio-recorded with an average of 12 approaches in each – totalizing 60 interactions and approximately 8 hours of recordings. More specifically, following Bucholtz and Hall (2003, 2004, 2005), I analyse the tactics of intersubjectivity produced by the interlocutors in the interactional process that put their differing identities in friction. The female outreach workers, individuals who have positioned themselves in traditional identity categories, when faced with travestis’ marginalised subject positions (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007) engage in local and sequential processes of (re)construction of identity relations with their transgendered interlocutors. These processes are co-constructed by travestis and the safer-sex outreach workers. The participants of the discursive events under scrutiny make use of tactics of intersubjectivity (BUCHOLTZ & HALL, 2004) (i) to authenticate the travestis’ identity and (ii) to authorize socially and institutionally the production of their gender performances, and (iii) to minimize the socio-cultural barriers that make them different. Through discursive positionings (DAVIES & HARRÉ, 1990), code switching (BLOM & GUMPERZ, 2002) and frame (GOFFMAN, 1974) the interactants seem to discursively take over identities that are not part of their daily identity repertoire (KROSKRITY, 2000). With this plethora of discursively produced identities, the interlocutors seem to engender a process of travestis’ identity performance empowerment. The analysis indicates that identities are always fluid, multilayered, fragmented and changeable. This flexibility of social identities is highly visible in interactions that put differing identities in tension, bringing about the necessity of constant re-makings of subject positions to administrate the differences among interlocutors. The study also advances a theoretical and methodological suggestion to widen the analytic lenses of Applied Linguistics, trying to bring this area of research closer to a relatively under-studied context in Brazil: SDT/Aids prevention. Key-words: identities in friction; gender; sexuality; tactics of intersubjectivity, travestis; STD/AIDS prevention

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Michelly ensinando Sandra a utilizar seu corpo na batalha p. 121 Figura 2 - Sandra (à esquerda) tentando imitar a travesti Michelly (à direita) exibindo suas formas corporais p. 121 Figura 3 – Sandra e Adriana exibindo seus novos seios p. 170

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CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO

As convenções para as transcrições foram adaptadas de Du Bois, Schuetze-Coburn,

Paolino & Cumming (1992) e são as seguintes:

MAIÚSCULAS volume maior

, entonação continuada . entonação decrescente ? entonação crescente [ ] sobreposição de fala - palavra truncada -- sentença truncada = falas engatadas :::: som prolongado >fala< fala mais rápida <fala> fala mais lenta (0.0) tempo em segundos durante o qual não há fala (( )) informações fáticas sobre a interação XXXX parte de fala inaudível; cada X representa mais ou menos uma sílaba Falante: no início de um turno de fala identifica a falante @@@ risos

* entrega de preservativos

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... p. 15 1. A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA ......... p. 28

1.1. Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados........................ p. 32

1.2. A construção do ativismo político das travestis................................................... p. 38

1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política

de travestis no Brasil .......................................................................................... p. 39

1.2.2. As intervenções: alteridades em fricção na

batalha................................................................................................................. p. 44

1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo seguro:

uma relação necessária ........................................................................................... p. 49

2. DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O REFERENCIAL

TEÓRICO ............................................................................................................. p. 54

3. (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO:

AS TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE ........................................................ p. 63

3.1. As táticas de intersubjetividade ........................................................................ p. 65

3.1.1. Adequação e distinção............................................................................ p. 68

3.1.2. Autenticação e desnaturalização............................................................ p. 71

3.1.3. Autorização e deslegitimação................................................................. p. 75

3.2. As ferramentas para a interpretação das táticas.............................................. p. 78

3.2.1. Enquadre................................................................................................ p. 79

3.2.2. Posicionamentos discursivos................................................................. p. 82

3.2.4. Alternância de códigos........................................................................... p. 84

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4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS, TRAVESTIS E A

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA PREVENÇÃO DE DST/AIDS ............. p. 89

4.1. O enquadre ‘intervenção’: institucionalidade das

interações......................................................................................................... p. 90

4.2. Quando o tradicional defronta-se com o não tradicional:

a construção discursiva de identidades de interventoras e travestis.................... p. 93

4.2.1. Semelhança suficiente: adequação às travestis.................................. p. 95

4.2.1.1. As flutuações identitárias das travestis:

desestabilizando as construções de identidades das interventoras.............. p. 111

4.2.2. Autenticação da identidade travesti..................................................... p. 116

4.2.3. Distinção, desnaturalização e deslegitimação..................................... p. 133

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ p. 136 5.1. Implicações para a Lingüística Aplicada....................................................p. 140 5.2 Implicações para o estudo de identidades sociais......................................p. 143 5.3 Implicações para o estudo de transgêneros...............................................p. 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... p. 152 ANEXO 1............................................................................................................. p. 167 ANEXO 2............................................................................................................. p. 170

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INTRODUÇÃO

A inserção das travestis no cotidiano: alteridades em fricção Cena 1 Copacabana, inverno carioca (35 graus!), ansioso a esperava para nosso

primeiro encontro. Conhecia sua voz, já havíamos conversado por telefone para discutir

os detalhes: hora (17:00) e local (Quiosque Rainbow, em frente ao luxuoso

Copacabana Palace) sugeridos por ela. Um dia avermelhado, morno, corpos

pavoneavam nas areais da praia. Quando a vi, algum tipo de senha absolutamente

indecifrável, me indicou: Valquíria.1 Caminhava resoluta em minha direção (talvez

tivesse me identificado através do mesmo tipo de senha que, misteriosa, me ajudou a

reconhecê-la): sorriso largo e fácil, seios voluptuosos, fartas ancas, andar lânguido,

pleno de leveza, tudo isso displicentemente decorado por um vestido preto (bá-si-co!)

com amplo decote. Cumprimentamo-nos e sentamos em uma das mesas dispostas

irregularmente por volta do quiosque. Rodeados por clientes do bar, transeuntes e

banhistas, Valquíria me contava sobre sua vida. Descobrira-se travesti muito cedo (13

anos!), já não mais se prostituía depois de uma rentável temporada na Europa. De volta

ao Rio de Janeiro, trocara o subúrbio, por Copacabana – bairro que diz amar por sua

concentração de todos os tipos de pessoas. Mantinha dupla jornada de trabalho: como

1 Por motivos de natureza ética, os nomes dos indivíduos envolvidos na pesquisa assim como os nomes de lugares, pessoas e instituições mencionados durante a gravação dos eventos de fala sob análise foram substituídos por pseudônimos.

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ativista de uma ONG e como funcionária da prefeitura do Rio. Olhava freqüentemente

para o relógio: não podia se atrasar para o curso pré-vestibular; almejava cursar

Comunicação em alguma universidade pública. Enquanto com ela conversava,

Valquíria, com seus gestos displicentes, lascivos meneios com a cabeça para exibir os

negros e lisos cabelos, seu olhar profundo e inquiridor, chamava a atenção dos que por

ali, inadvertidamente, passavam. A passos lentos, ofuscados pela figura opulenta da

travesti, homens, mulheres, crianças nos observavam, passavam, olhavam para trás e

comentavam. Risinhos de chacota, olhares escarninhos de respeitáveis senhoras,

olhares curiosos dos homens (alguns claramente surpresos, outros, porém,

deslumbrantemente desejosos) foram habitués de nosso encontro. Valquíria (cansada

de guerra!) continuava fluente, cheia de si. Entre uma história e outra, não deixava de

verificar o conteúdo das sungas expostas na praia. Conta de seus projetos na ONG

onde trabalha; das brigas internas do movimento político das travestis e transexuais,

afirma que não gosta do termo transgênero – importado, segundo ela, por Camille

Cabral, travesti brasileira vereadora em Paris – prefere utilizar, em documentos oficiais,

a dobradinha travestis/transexuais, mais clara e menos exclusiva. Mais olhares

inquietantes, desestabilizados, curiosos. Mais risinhos – confesso que estava me

sentindo incomodado. Valquíria, alheia ao frenesi que sua presença ali causava,

afirmava, perspicaz: “Rodrigo, depois que se anda de saia e se coloca peito, pra quê

seguir protocolo?”. [Diários de campo, 29/07/2006]

Cena 2

Era domingo e chovia; um dia viscoso com cheiro de terra: clima típico da Feira

do Livro de Porto Alegre. No entanto, o charme século-dezenove da Praça da

Alfândega estava mais cintilante com os roxos, brancos e amarelos dos ipês floridos.

Na tentativa de comprar um livro, lá estava eu no meio da multidão de leitores e leitoras,

visitando cada stand, sem sucesso. O tédio já me dominava. Com um mau-humor

sulfúrico, causado pela decepção de não ter encontrado o desejado livro, aviso meus

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amigos que não suportava mais toda aquela efervescência: ia embora. Porém, algo

inesperado me fez mudar de idéia. Entre as centenas de ávidos/as leitores/as, avisto

uma que me chama atenção, uma leitora-travesti. À época, meu trabalho de campo já

havia terminado, mas a curiosidade pelo universo trans se mantinha. Caminhando entre

o público, abrindo caminhos, com uma nonchalance adquirida com muito treinamento,

essa leitora explorava os stands, sedenta por literatura. Surpreso, decido investigar que

livro ela procurava. A quantidade de pessoas não me permitiu alcançá-la, mas, sub-

reptício, a segui. Sobre altíssimos saltos, elegantemente vestida em uma calça jeans

justíssima e uma blusa negra de cetim, sua figura chamava a atenção de todos/as que,

como ela, tentavam encontrar algum texto para seu deleite. Olhares curiosos,

duvidosos. Comentários incrédulos. A travesti (dias mais tarde fui a ela apresentado,

chama-se Clarissa) mantinha-se intacta, com passos fortes e sensuais. Quando me

aproximei, ela, finalmente, encontrara seu livro. Pensei em puxar assunto, mas sua

excitação diante da obra era tão bela que não tive coragem de interromper aquele

momento epifânico. Tinha em suas mãos um livro de Clarice Lispector – musa

inspiradora de seu nome. Claro, constatei, uma diva só poderia ler outra diva!

Recebendo o troco do vendedor que, irônico, perguntava: Mais alguma coisa, senhor?

Clarissa, balançando seus loiros cabelos e, displicentemente, ajeitando o decote da

blusa, assevera: senhorita! Virando-se, num movimento típico entre as travestis, jogou

primeiramente seus cabelos para, logo a seguir, virar seu corpo, marchando

delicadamente como sobre uma passarela – a rua dos Andradas. O vendedor, atrás do

balcão, confuso, em voz baixa, ecoava as palavras de sua cliente, para, segundos

depois, reclamar com seus colegas que “esse mundo está realmente perdido”. Clarissa,

decidida, ruma a sua casa, ansiosa para entregar-se à leitura de A Legião Estrangeira.

[Diários de campo, 06/11/2005]

As travestis há tempos deixaram de ser obscuras; míticos seres pouco visíveis

que habitavam somente os inóspitos territórios de prostituição dos grandes centros

urbanos brasileiros. Elas já possuem “inscrição popular e social” (SILVA, 1996:22), já

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estão incorporadas às nossas paisagens urbanas (SILVA, 1993:53). Deixaram o

“universo existencial restrito ao gueto” (PERES, 2004:121) e assim inauguram um

processo de mudança político-social: impõem sua presença e, perseverantes em meio

a preconceitos e limitações, mostram à sociedade a permeabilidade das fronteiras entre

os gêneros e a possibilidade de viver nessas fronteiras, de cruzá-las. As cenas

descritas no inicio desta dissertação, observadas por um pesquisador do que Benedetti

(2005) denomina de universo trans, poderiam ter sido presenciadas por qualquer

morador/a de qualquer grande cidade brasileira. Somos constantemente defrontados/as

com a travestilidade:2 em Copacabana, na tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, no

metrô em São Paulo, nos shopping centres, na televisão, nos ônibus, nas áreas de

prostituição, no aterro do Flamengo, na Redenção, nos aeroportos, em nossa

vizinhança. A circulação desses personagens em intensa relação com a sociedade

abrangente (SILVA & FLORENTINO, 1996:107) nos apresenta, concretamente, a

fragmentação e fluidez das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002), a possibilidade

do trânsito entre discursos de identidades nos quais podemos circular. Talvez os risos e

olhares incrédulos dirigidos à Valquíria, em Copacabana, e à Clarissa, no centro de

Porto Alegre, sejam pura e simplesmente frutos do preconceito que relega as travestis à

margem de nossa sociedade. Talvez sejam provocados pela demonstração

corporificada da possibilidade de uma mutação radical, acessível, em princípio, a

qualquer pessoa, que desmantela a estabilidade dos significados disponíveis: podemos

2 Peres (2004) cunha o termo travestilidade, em oposição a travestismo, pois, segundo o autor, esse termo contempla “a imensa complexidade das formas de expressão travesti existentes, considerando a heterogeneidade dos modos de ser no mundo que é configurado pela sub-cultura travesti” (p.120). Esse termo é adotado no decorrer desta dissertação.

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nos tornar quem quisermos, uma vez que tenhamos acesso3 a discursos que nos

possibilitem tal mudança. Essa é uma das desestabilizações causadas pelas travestis:

um homem e uma mulher podem se transformar, corporal, discursiva e simbolicamente,

em mulher e homem.

A intensa presença de travestis em nosso cotidiano nos impinge um processo de

fricção de alteridades que, em grande escala, pode motivar questionamentos sobre

nossas identidades. As travestis caminham entre nós e corporificam, concretamente, a

flexibilidade das identidades sociais. É à descrição desse processo que me dedico

nesta pesquisa. A dissertação foi possibilitada pela minha relação com a ONG

Liberdade, iniciada em 2003 por ocasião da elaboração de outra pesquisa sobre

travestis, requisito para minha graduação no curso de Letras da Universidade do Vale

do Rio dos Sinos (BORBA & OSTERMANN, 2007). Os dados aqui analisados foram

gerados em um período de 12 meses durante o qual acompanhei a rotina de trabalho

da ONG Liberdade. Essa ONG, idealizada e fundada por um grupo de travestis

politicamente engajadas na luta LGBTTT4, visa à melhoria das perspectivas sociais das

travestis na Cidade do Sul. A ONG Liberdade planeja, organiza e implementa projetos

com os mais diferentes propósitos. É sobre um desses projetos que esta dissertação se

debruça. Mais especificamente, ponho sob escrutínio intervenções para entrega de

preservativos às travestis enquanto essas se prostituem nas ruas da Cidade do Sul.

Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que se constroem como mulheres

em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em práticas 3 O acesso a determinados discursos que nos possibilitam transitar por identidades múltiplas, fluidas e fragmentadas é limitado financeira, geográfica, política e culturalmente de acordo com a posição social dos sujeitos em suas comunidades. 4 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Ver Facchini (2005) e Kulick (2000) para uma revisão crítica das variações constantes dos termos utilizados pelas políticas de identidade referentes a esses grupos.

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discursivas que configuram milieux onde indivíduos que têm se construído em discursos

de identidades díspares se encontram, o que pode gerar complexos processos de

negociação e administração das diferenças percebidas e/ou construídas das

interlocutoras. O corpus, para esta investigação, constitui-se de interações entre essas

mulheres e as travestis que recebem os preservativos. Tais interações foram gravadas

em áudio e transcritas segundo as convenções aqui já mencionadas

Guiado por uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais

(MOITA LOPES, 2002, 2003, 2006b) e por um aporte teórico-analítico intitulado táticas

de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo), analiso os

micro-detalhes das interações entre travestis e as duas interventoras na tentativa de

criar inteligibilidades sobre performances identitárias (BUTLER, 2003) que deslocam

posições discursivas convencionalmente ligadas às mulheres e aos homens. Tal

trânsito por uma miríade de discursos de identidades parece ser motivado pelo embate

interacional entre as identidades tradicionais das interventoras e as identidades não-

tradicionais das travestis, o que parece impelir as interventoras e as travestis a elaborar

flutuações identitárias, engajando-se, assim, em projetos identitários específicos,

maleáveis e moventes, durante as intervenções. Argumento que as ativistas da ONG

Liberdade, duas mulheres que têm se construído como heterossexuais de classe

média, posicionam-se em uma diversidade de discursos de gênero que as permite

construir identidades que não fazem parte do seu repertório cotidiano e produzem,

dessa forma, um processo interacional de empoderamento das performances de

identidades de suas interlocutoras transgênero.5 É importante sublinhar que as

5 O termo transgênero engloba uma ampla gama de possibilidades de transformação de gênero elaboradas por indivíduos nos mais diferentes lugares do planeta. Para uma discussão interessante

21

dinâmicas discursivo-identitárias emergentes do contexto investigado são co-

construídas entre as participantes dos eventos de fala sob análise. Assim, tanto as

travestis quanto as interventoras têm participação importante no desenvolvimento das

coreografias identitárias e interacionais elaboradas durante as intervenções.

Descrições sobre as dinâmicas interacionais em conversas espontâneas entre

pessoas tradicionalmente generificadas e indivíduos transgêneros são inexistentes na

literatura especializada disponível. Essa é uma das lacunas que este trabalho visa a

preencher. Os estudos sobre indivíduos transgêneros (ver, por exemplo, BARRET,

1998, 1999; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2006; BESNIER, 1997, 2003; BOLIN, 1988;

EPPLE, 1998; HALL & O’DONOVAN, 1996; KULICK, 1998; WIKAN, 1978) têm

analisado as flutuações identitárias em sua fala e sua construção como seres sociais

através da manipulação de uma pletora de recursos discursivos como o sistema

gramatical de gênero (HALL, 2002; HALL & O’DONOVAN, 1996; LIVIA, 1997; BORBA &

OSTERMANN, 2007), as ideologias locais de gênero (BARRET, 1999; BESNIER, 1997;

HALL, 1997, 2005), posições locais e globais através da alternância de códigos

(BESNIER, 2003), entre outros. No entanto, é inexistente a documentação sobre como

pessoas que participam (cotidiana ou esporadicamente) do universo social

compartilhado por transgêneros conversam com tais atores sociais. Kulick (1999:615)

indica que “precisamos saber mais sobre como os indivíduos transgêneros falam com

outras pessoas em seus milieux, e precisamos saber como essas pessoas avaliam e

respondem a essa fala”. Tento encaminhar possíveis respostas a esse desafio lançado

sobre a construção de identidades transgênero nos E.U.A ver Valentine (2003). Para instigantes caracterizações das diferentes formas dos processos de transformações de gênero em outros contextos sócio-históricos ver Levy (1971), Wikan (1978), Bolin (1988), Clastres (1990), King (1993), Besnier (1997), Epple (1998), Benedetti (2002).

22

por Kulick (1999) ao investigar os processos de fricção de identidades produzidos

durante as intervenções.

Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de

alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar

essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos

lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais

seguras e a prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio temático no encontro

internacional da American Association of Applied Linguistics de 2007, na Califórnia

(http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm) o que evidencia um interesse crescente da

comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora investigue somente uma

pequena fatia de tal contexto (prevenção de DST/AIDS entre travestis que se

prostituem), a utilização da categoria táticas de intersubjetividade, como se verá, pode

nos servir de aporte para que analisemos os processos discursivo-identitários que

emergem de tais eventos de fala, nos quais as negociações entre as identidades dos/as

interventores/as e dos/as profissionais do sexo é fator crucial.

Descrevo aqui as implicações interacionais de somente um pequeno extrato do

amplo processo de fricção de alteridades encontrado no mundo contemporâneo:

mulheres e travestis nas zonas de prostituição. Essa fatia, embora muito particular,

pode ser considerada um bom exemplo dos atritos identitários encontrados em maior

escala em nossa sociedade. Investigar a construção de identidades em tal evento

discursivo pode ser um importante passo para poder compreender outros possíveis

jogos de identidades (S. HALL, 2001) que nos circundam cotidianamente; jogos que

marcam nossa vida social com instabilidade, fragmentação e fluidez. Os embates entre

as construções identitárias habituais das ativistas da ONG Liberdade e das travestis

23

emergentes das intervenções são representativos do universo trans (BENEDETTI,

2005). Isso não quer dizer que somente em tal contexto sócio-cultural tais embates

identitários aconteçam. Muito pelo contrário. Defrontamo-nos, constantemente, com

múltiplas alteridades em nosso dia-a-dia, e outras fricções emergem com dinâmicas

discursivo-identitárias específicas. Com as mudanças tecnológicas, econômicas,

científicas e culturais que acompanham os processos de globalização (BAUMAN, 2005;

FRIDMAN, 2000), há uma proliferação de novos costumes, de novos estilos de vida, e

de novas formas de vivenciar práticas identitárias que nos levam a “experimentar a

heterogeneidade da vida humana de frente” (MOITA LOPES, 2003:17), o que, por

conseguinte, nos intima a repensar nossas identidades sociais, a colocá-las em xeque.

Em uma sociedade que, continuamente, produz discursos sobre si mesma (GIDDENS,

BECK & LASH, 1997), “somos diariamente confrontados com um mundo de

reflexividade intensa na qual o questionamento de formas sociais, assim como suas re-

descrições, são práticas diárias” (MOITA LOPES, 2006c:31,32). Esse é o desafio

apresentado pelos processos de fricção alteritárias salientes nas sociedades

contemporâneas: o re-pensar constante sobre quem somos – e sobre quem podemos

ser (ver FOUCAULT, 1995; MOITA LOPES, 2003; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004).

Diariamente, em nossa vida social, nos deparamos com discursos de

identidades que nos fazem questionar a estabilidade de significados, anteriormente

tidos como portos seguros. Dessa forma, somos levados a experienciar os aspectos

mutáveis de nossas identidades, instaurando processos de negociação e re-negociação

de nossas posições de sujeito. As negociações, re-negociações e transformações de

nossas identidades são mediadas no/pelo discurso. Tendo isso em perspectiva,

Chouliaraki e Fairclough (1999) salientam que vivemos em sociedades altamente

24

semiotizadas, nas quais nada pode ser feito sem discurso (SANTOS, 2000), o que

indica que as mudanças nos modos de viver socialmente são cada vez mais

possibilitadas pela linguagem. Como observa Giddens (2000), novos significados

sociais têm desafiado/desestabilizado discursos tradicionais sobre nossas identidades

de gênero, classe social, sexualidade, nacionalidade e tal desestabilização é, em parte,

causada pela proliferação de possibilidades de arranjos identitários do mundo

contemporâneo. Faz-se crucial criar inteligibilidades sobre como as identidades são

discursivamente produzidas e re-negociadas em meio ao turbilhão de outras possíveis

identidades a nós apresentadas cotidianamente. Ao investigar como as interventoras e

as travestis da Cidade do Sul constroem múltiplas possibilidades identitárias em

embates interacionais, a pesquisa apresentada aqui lança luz sobre processos de

fricção de alteridades mais abrangentes ao descrever as táticas de construção e re-

construção de identidades que a defrontação de arranjos identitários multifacetados e

transitórios parece motivar. Para tanto, a pergunta focal que orienta a pesquisa é: quais

são as táticas discursivas de construção identitária emergentes das interações

construídas durante as intervenções para prevenção de DST/AIDS nos territórios de

prostituição travesti da Cidade do Sul?

Faz-se necessário, neste momento, esclarecer os motivos pelos quais me refiro

às travestis no feminino. Gramaticalmente a palavra travesti é descrita como um

substantivo masculino. Porém, o uso feito dessa palavra e de pronomes, adjetivos e

substantivos para se referir a travestis, na comunidade estudada, indica que formas

femininas são a escolha preferida, não-marcada entre as participantes dessa pesquisa.

Essa é uma estratégia lingüística utilizada por diferentes comunidades de transgêneros

no mundo a qual Kira Hall (2002:140) rotula de supercompensação de gênero, ou seja,

25

uma subversão das determinações gramaticais que visa à construção de uma

identidade de gênero discursivo coerente com as performances generificadas dos

indivíduos em tais comunidades. Ademais, como vimos no comentário sarcástico do

vendedor de livros à Clarissa (cf. cena 2, acima), a utilização da desinência masculina é

uma forma comumente utilizada para negar o gênero construído pelas travestis,

subestimando, assim, a produção cultural e corporal de suas identidades e as

relegando a um não-lugar social. Como observa o antropólogo Don Kulick, utilizar o

masculino ao falar sobre travestis “é uma forma de colocá-las de volta em seu lugar

social (decentemente generificado), uma maneira de negar e se defender das

possibilidades que existem no sistema de gênero” (KULICK, 1997:582), possibilidades

de transitar de uma categoria a outra; ou de se posicionar na intersecção das

categorias de gênero (BORBA & OSTERMANN, 2007). Além disso, a feminilização da

palavra travesti é um dos objetivos políticos do movimento nacional de transgêneros.6

Portanto, ao me referir às travestis no decorrer do texto, utilizo o feminino gramatical

que, além de ser uma categoria êmica, é também uma forma de (1) assegurar-lhes a

construção consistente do gênero feminino e (2) manter-me alinhado aos ideais da

ONG Liberdade.7

Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, “A

zona de batalha: contexto e metodologia de pesquisa”, caracterizo os procedimentos

metodológicos que guiaram na construção da pesquisa. Nesse capítulo, descrevo o

apoio dado pela ONG Liberdade à realização deste estudo, os instrumentos geradores

6 Para discussões sobre as relações entre gênero gramatical e indivíduos transgêneros ver Borba e Ostermann (2007), K. Hall (2002), Hall e O’Donovan (1996) e Lívia (1997). 7 A ONG Liberdade faz parte de um grupo nacional de instituições organizadas por travestis. Para conhecer alguns dos projetos e ideais do movimento nacional das travestis e transexuais, organizados pela ANTRA – Articulação Nacional das Trans, acesse http://www.abglt.org.br/port/index.php.

26

de dados e os dados analisados aqui. Também teço algumas considerações sobre a

etnografia realizada entre travestis da Cidade do Sul e sobre as relações (necessárias)

entre prevenção de DST/AIDS e lingüística aplicada.

O segundo capítulo, “Discursos e identidades: construindo o referencial teórico”,

apresenta o aporte teórico que guia o estudo. Nesse capítulo, discuto a visão

socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, caracterizando como as

identidades são neste estudo consideradas: com base em uma perspectiva não-

essencialista/não representacional das relações entre linguagem e identidades enfatizo

os processos discursivos de sua construção interacional e contextual (MOITA LOPES,

2002, 2003, 2006b).

No terceiro capítulo, “(Re)construindo identidades na interação: as táticas de

intersubjetividade”, apresento o referencial analítico sobre o qual a interpretação das

negociações de identidades entre interventoras e travestis é estruturado. Aqui,

descrevo, também, os mecanismos lingüísticos utilizados na construção de

inteligibilidade sobre as táticas de intersubjetividade e sobre as relações identitárias

produzidas entre as interagentes.

“Alteridades em fricção: interventoras, travestis e a construção de identidades na

prevenção de DST/AIDS” é o quarto capítulo. Aqui, analiso os dados gerados durante o

período de trabalho de campo em conjunto com a ONG Liberdade. Foco minha atenção

nas táticas de intersubjetividade utilizadas por interventoras e travestis ao construírem

relações identitárias especificas com base nas flutuações de identidades efetuadas

pelas participantes dos eventos. Ver-se-á um amplo spectrum de identidades sendo

encenado pelas participantes das intervenções. As interventoras e as travestis valem-

se de uma grande gama de discursos e constroem identidades que, como as análises

27

tentam descrever, podem ser creditadas ao processo de alteridades em fricção que

emerge durante as intervenções.

28

1. A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE

PESQUISA8

Cena 3

Estávamos em agosto e o frio era tórrido. Cheguei à sede da Liberdade, numa terça-

feira à tardinha, mergulhado em um turbilhão de sentimentos que me usurpavam o

sossego: ansiedade, curiosidade, excitação, medo, insegurança; minha primeira

incursão efetiva no mundo da noite travesti era iminente. Cassiana, a coordenadora da

ONG, permitira minha participação nas intervenções para prevenção de DST/AIDS

organizadas pela instituição. À época, todos os procedimentos para a realização das

observações e gravações desses eventos, de modo a garantir um comportamento ético

em todos os estágios da pesquisa, haviam sido tomados: durante o mês anterior a essa

fria terça-feira de agosto, Cassiana e eu explicamos às travestis participantes das

reuniões semanais da Liberdade as idiossincrasias da investigação e distribuímos os

termos de consentimento livre para serem assinados por quem quisesse participar.

8 Batalha é o termo êmico utilizado pelas travestis na comunidade investigada para se referir ao seu trabalho na prostituição.

29

Quando entrei na sala da ONG, num tradicional prédio comercial no centro da Cidade

do Sul, Sandra e Márcia, respectivamente advogada e secretária da ONG, depois de

cumprimentos efusivos e reclamações sobre o clima, voltam ao trabalho que minha

aproximação interrompera: organizavam as dezenas de caixas de preservativos e

saches de gel lubrificante recém recebidos da Secretaria de Saúde. Segundo suas

previsões, naquela noite, devido ao frio, poucas travestis deveriam estar nas ruas, “mas

nunca se sabe né Rodrigo, essas monas9 são corajosas!” Rodeadas por camisinhas e

lubrificantes, a advogada e a secretária da Liberdade aproveitam esse momento de

descontração para desabafar algumas angústias de suas vidas pessoais. Márcia

começara um processo de divórcio: “não agüento mais aquele traste”, dizia. Sandra dá

alguns conselhos jurídicos a sua colega, mas se mostra mais preocupada com as filhas

do casal: “no começo é muito difícil, elas vão sentir falta dele, tu tem que ser forte”.

Descolada nesse assunto, Sandra já havia dado fim a dois casamentos. Tudo isso era

comentado num clima muito descontraído. No entanto, apesar dos risos e do savoir

vivre do momento, Sandra me parecia tensa. Pergunto o que estava acontecendo. A

advogada dizia-se muito preocupada, pois dois de seus filhos haviam decidido prestar

serviço militar ao exército de Israel: “ai, Rodrigo, não quero ficar longe dos meus

filhos”.Tento acalmá-la dizendo que isso é temporário, “logo logo eles mudam de

idéia.”10 Depois das fofocas, conselhos e desabafos, o negro da noite já dominava as

ruas da cidade. Márcia, preparada para batalha, leva consigo mais de 300 preservativos

a serem distribuídos. Sandra, num rompante, levanta-se, procura pelas chaves do carro

e, sorridente, anuncia: “Zona, aqui vamos nós!”. [Diários de campo, 07/10/2003]

9 Mona é um termo êmico utilizado por travestis (e também pelas interventoras) para se referir às travestis. A utilização desse termo é, juntamente com bicha, uma forma de manter o uso de desinências gramaticais femininas consistente, em oposição à palavra travesti (ver, KULICK, 1998; BENEDETTI 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007). 10 Em fevereiro de 2007, em uma visita à nova sede da ONG, fico sabendo que Sandra se preparava para uma viagem a Israel. O Governo israelense havia lhe enviado passagens para que ela pudesse visitar os filhos. À época, o filho mais novo de Sandra fora designado a trabalhar na Faixa de Gaza o que motivara o Governo daquele país a proporcionar a advogada uma estada de quinze dias junto a seus filhos. Sandra mostrava-se muito preocupada, pois, sabendo do constante estado de guerra naquela parte do mundo, não queria que seu filho fosse para lá enviado.

30

Há aproximadamente três décadas, testemunhamos o surgimento da epidemia

causada pelo vírus HIV que, desde então, tem intensificado o interesse coletivo acerca

de como exercemos nossa sexualidade e dos problemas de saúde que o vírus pode

acarretar. O sexo nunca foi tão visado por discursos públicos e privados que, para o

bem ou para o mal11, têm construído regimes de verdade (FOUCAULT, 1996) sobre

como indivíduos podem, ou não, ter um comportamento sexual considerado em risco de

infecção. Dentro desse afã discursivo, governos têm tentado conscientizar a população

sobre os riscos de contaminação pelo vírus e sobre como se distanciar da possibilidade

de ser por ele atingido.

No contexto brasileiro, as três esferas governamentais têm se ocupado, desde o

final da década de 1980, da conscientização da população por meio de grandes

investimentos em projetos publicitários e sociais que visam a espalhar a idéia da

necessidade e da importância da prática de sexo seguro (PARKER, 2002; UZIEL, RIOS

& PARKER, 2004). Quem não lembra do mote carnavalesco bota a camisinha, bota,

meu amor? Ou do emocionante depoimento da atriz Sandra Bréa que, atingida pelo

HIV, falou publicamente, no início dos anos 1990, sobre como se proteger da

contaminação? Ou de Cazuza, um dos ícones da cultura jovem brasileira dos anos

1980? Desde então, o governo brasileiro tem patrocinado e orientado projetos de

ONGs-AIDS que, das mais variadas formas, vêm tentando minimizar os riscos de

contaminação através de políticas de enfrentamento a comportamentos de risco.

11 Para o bem, esses discursos têm disponibilizado informações a camadas muito distintas da sociedade e espalhado a necessidade do sexo seguro com relativo sucesso. Para o mal, esses mesmos discursos, desde o inicio da epidemia, têm construído certos grupos de indivíduos como portadores em potencial do vírus. Essas construções (lembre-se que na década de 1980 a AIDS era conhecida como o “câncer gay”) têm estigmatizado grupos que, como veremos mais adiante, vêm tentando se livrar dos rótulos criados pelos discursos da AIDS a partir de ações afirmativas como, por exemplo, o ativismo político de ONGs como o Grupo Gay da Bahia e o Nuances em Porto Alegre.

31

Um dos projetos apoiados pelo Governo brasileiro constitui-se de intervenções

durantes as quais ativistas de ONGs visitam as zonas de prostituição das cidades para

distribuir preservativos aos indivíduos ali presentes. É nesse contexto que esta

pesquisa se insere. Com base em dados gerados durante 12 meses de trabalho de

campo nos anos de 2003 e 2004, trago à baila uma discussão sobre intervenções para

prevenção de DST/AIDS elaboradas pela ONG Liberdade entre travestis profissionais

do sexo12 de uma região urbana do sul do Brasil. Durante as intervenções, duas

mulheres empregadas pela ONG, Márcia, a secretária, e Sandra, a advogada, entregam

preservativos às travestis e se engajam em interações que, a meu ver, são estruturadas

com base na negociação das identidades de gênero e de sexualidade das

interlocutoras participantes desses eventos. Em tal negociação, as participantes dos

eventos discursivos aqui investigados transitam por uma miríade de discursos de

identidades construindo-se, dessa forma, em múltiplas, moventes e multifacetadas

posições de sujeito.

Neste capítulo, desenho os cenários sócio-culturais nos quais a presente pesquisa

foi realizada. Primeiramente, descrevo os dados gerados durante minha incursão

etnográfica no universo da ONG Liberdade e caracterizo minha posição no processo da

investigação. A seguir, situo sócio-historicamente o surgimento da ONG Liberdade, cujo

apoio foi fundamental para a realização desta pesquisa, para, logo após, fazer uma

descrição das intervenções para prevenção de DST/AIDS organizadas pela equipe

dessa organização não-governamental. 12 Segundo Denis Altman (1995:102-103) o termo [profissional do sexo] tem conotações muito diferentes do mais comum ‘prostituta’. [Esse termo] implica uma definição particular[...]: se alguém pratica sexo principalmente para fazer dinheiro essa pessoa é, ipso facto, um/a profissional do sexo. ‘Prostituta’ é um termo mais ambivalente, reconhecido em seu uso comum para descrever aqueles/as que praticam todo tipo de atividades não-sexuais; jornalistas, políticos/as e advogados/as são comumente acusados/as de ‘prostituirem-se’, mesmo quando não há referência à transação financeira envolvendo sexo.

32

1.1 Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados

Na tentativa de criar inteligibilidades sobre os processos discursivos produzidos

por fricções de alteridades, no caso em tela entre travestis e interventoras, mas, de

forma mais ampla, sobre fricções de identidades fabricadas pela proliferação de

diferentes e multifacetados modos contemporâneos de viver socialmente, apresento

uma descrição etnográfica do universo da ONG Liberdade. Essa descrição

contextualiza as práticas discursivas aqui em análise. A caracterização etnográfica das

práticas da ONG Liberdade situa sócio-historicamente as intervenções cujas análises

constituem o cerne desta pesquisa.

A ONG Liberdade é dirigida por travestis, contudo, duas mulheres que se

constroem como heterossexuais de classe média trabalham na ONG com funções

burocráticas essenciais para o desenvolvimento eficiente de seus projetos. Procuro

fazer uma descrição densa (GEERTZ, 1989) da estrutura social das intervenções da

qual a análise dos micro-detalhes das interações que as constituem é parte crucial.

Geertz (1989) indica que

Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (p.20)

33

Seguindo Geertz, através de observações não-participantes, descrevo as

práticas sociais que constituem essa instituição. Mais precisamente, ao observar as

práticas da ONG Liberdade e ao participar das entregas de preservativos às travestis

em seus territórios de batalha, caracterizo sua construção discursiva e investigo a lógica

social sob a qual as intervenções são construídas. Para tanto, além de prestar atenção

aos exemplos transitórios de comportamento modelado, investigo os usos feitos da

linguagem na estruturação dessas práticas e das pessoas que nelas se envolvem.

Essa interpretação é elaborada por meio das seguintes ferramentas de pesquisa:

• Incursão de cunho etnográfico no universo social da ONG Liberdade nos anos de

2003 e 2004.

• Gravações em áudio de conversas espontâneas entre travestis e interventoras

da Liberdade durante intervenções para entrega de preservativos nas áreas de

prostituição da Cidade do Sul.

• Gravações em áudio de conversas espontâneas na sede da Liberdade.

• Transcrições desses eventos de fala.

• Notas de campo sobre as práticas travestis dentro e fora das zonas de

prostituição.

• Fotos de cunho etnográfico feitas durante as intervenções

• Entrevistas semi-estruturadas com travestis e com a equipe da ONG elaboradas

na sede da Liberdade gravadas em áudio.

34

É importante enfatizar, porém, que as análises a serem apresentadas aqui são

principalmente baseadas nas gravações das intervenções. O corpus, portanto, constitui-

se de interações entre as interventoras e as travestis que recebem os preservativos.

Contudo, utilizo as entrevistas semi-estruturadas, as conversas espontâneas e as fotos

como ferramentas de apoio e de triangulação para a construção de inteligibilidade sobre

as práticas que constituem o universo social que circunda a ONG Liberdade e suas

participantes.

As gravações das intervenções, especificamente, ocorreram no período de

agosto a dezembro de 2003. Durante esses meses, acompanhei a equipe em cinco

intervenções que foram gravadas e transcritas. Aproximadamente doze abordagens13

ocorriam por intervenção14 o que constitui um total de sessenta interações e

aproximadamente oito horas de gravação.

Ademais, utilizo, no decorrer da dissertação, textos extraídos dos meus diários

de campo. Durante minha inserção no universo da ONG Liberdade, observei o cotidiano

de sua equipe e de aproximadamente 40 travestis ativistas da instituição, em vários

lugares de sociabilidade ocupados por elas na Cidade do Sul. Os diários de campo são

fruto do árduo trabalho de observar, participar, conversar (e por vezes silenciar) e

escrever sobre o campo, constituindo parte importante dos dados gerados.

No entanto, minhas observações não cessaram com o fim do trabalho de campo,

em meados de 2004. Com a sólida inserção de travestis no cotidiano dos grandes

centros urbanos brasileiros, não é raro encontrá-las nas esferas públicas de nossa vida

13 Abordagem é o termo utilizado pelas interventoras para se referir ao ato de parar o carro da ONG Liberdade para entregar preservativos a uma travesti (ou a um grupo de travestis) encontrada(o) em sua área de prostituição. 14 Intervenção refere-se ao projeto da ONG como um todo. Cada intervenção para distribuição de preservativos é composta por várias abordagens.

35

social: mercados, praias, parques etc. Tendo isso em mente, também elaborei

observações não sistematizadas de encontros esporádicos com travestis em diversos

eventos sociais, exemplos dessas descrições são as cenas que iniciam a introdução

desta dissertação (cf. cena 1 e 2). Tais descrições são aqui indicadas igualmente por

“diários de campo”, porém constituem um tipo específico de diário, elaborado em tempo

e espaços que extrapolam o perídio inicial de trabalho de campo. No decorrer da

dissertação, utilizo excertos dos dois tipos de diário de campo. Esses excertos têm por

objetivos: (1) ambientar o/a leitor/a com o universo da pesquisa através de descrições

minuciosas de eventos sociais relevantes para que se possa vislumbrar, mesmo que

parcialmente, os significados construídos no dia-a-dia da ONG Liberdade; (2) ilustrar o

processo de inserção de travestis na paisagem urbana de cidades por onde passei; e

(3) enquadrar capítulos e seções da dissertação, ligando-as, dessa forma, com meu

objeto de pesquisa.

É de crucial importância observar que a utilização de todos os dados

supradescritos foi consentida pelas travestis participantes dos projetos da ONG

Liberdade e pelas interventoras. Um termo de consentimento dando-me autorização

para fazer uso das informações geradas, das gravações, das fotos e dos diários de

campo foi assinado por todos os indivíduos que colaboraram com a realização desta

pesquisa (para uma discussão detalhada dos procedimentos éticos da pesquisa, ver

BORBA, 2005:27; 113).

Como mencionado acima, os dados foram gerados por meio de observações

não-participantes durante as quais acompanhei a equipe da Liberdade quando essa

entregava preservativos às travestis. Acredito que seja fundamental, neste ponto,

discutir meu envolvimento com os eventos sob escrutínio. No ano de 2003, durante a

36

realização de outra pesquisa sobre travestis elaborada como pré-requisito para minha

graduação no curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

(ver BORBA, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), em uma entrevista com a travesti

coordenadora da ONG Liberdade fui alertado sobre a realização dessas intervenções.

Logo me interessei. Perguntei a ela se eu poderia participar do projeto e recebi, com

entusiasmo, uma resposta afirmativa. Tendo adquirido a permissão da ONG e o

consentimento das travestis que recebem os preservativos para gravar em áudio as

interações, comecei a acompanhar a equipe da Liberdade em suas inserções no

“mundo da noite” da Cidade do Sul. É importante notar, contudo, que eu não entregava

as camisinhas. Portanto, eu não era um participante ativo dos eventos. Minha

participação nessas práticas era de observador. No entanto, minha presença (e a

presença do gravador) era sempre explicitada às travestis abordadas pela equipe.

O que acabo de descrever é relevante, pois, como sugere Freitas (2002),

O pesquisador [sic] é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. (p.28)

Isso quer dizer que a compreensão que construí durante o trabalho de campo no

universo de pesquisa é uma interpretação feita por um mestrando, que tem se

construído como gay, militante das causas LGBTTT, de classe média, branco, gaúcho,

feminista. Minha carga identitária é determinante da leitura que apresento das

identidades confeccionadas pelas travestis nas interações com as interventoras e vice-

versa.

37

Está claro, portanto, que as relações intersubjetivas que estabeleci com os

sujeitos da minha pesquisa também são relevantes para essa interpretação. Durante os

mais de 3 anos de relacionamento com a equipe da Liberdade, construí laços bastante

fortes de amizade, cumplicidade, respeito e admiração. Assim, não sou considerado na

comunidade simplesmente como um pesquisador, estranho aos seus valores e práticas.

Tanto a equipe da ONG como as travestis me vêem como um sujeito muito próximo

delas e de seu mundo. Freitas (2002) indica que “o pesquisador [sic] ao participar do

evento estudado constitui-se parte dele, mas ao mesmo tempo mantém uma posição

exotópica que lhe possibilita o encontro com o outro” (p.32). Essa posição paradoxal

do/a pesquisador/a, i.e. ao mesmo tempo dentro e fora dos eventos pesquisados, me

parece essencial para que possamos entender as práticas com uma visão êmica e para

descrevê-las de um modo que possa captar suas nuances em diversos níveis, o que

pode passar despercebido por aqueles e aquelas que vivem essas práticas diretamente

em seu cotidiano.

1.2. A construção do ativismo político das travestis

38

Grosso modo, travestis são indivíduos biologicamente masculinos que, através

da utilização de um complexo sistema de techniques du corps (MAUSS, 1996), moldam

seus corpos com características ideologicamente ligadas ao feminino15. Essa

construção de uma identidade feminina sobre um corpo masculino ilustra o caráter

inventado, multifacetado, maleável e instável das identidades sociais. Por subverter e,

assim, desestabilizar práticas semióticas disponíveis para a construção do gênero

social e sentidos históricos associados a práticas corporais, sexuais e de gênero

valorados positivamente, as travestis têm sido sumariamente estigmatizadas na

sociedade brasileira. Não são raras as histórias sobre violência (real e simbólica)

infligida contra as travestis colaboradoras desta pesquisa. Casos de travestis

assassinadas e feridas por clientes e/ou transeuntes foram freqüentes em minhas

conversas com as travestis que se prostituem na Cidade do Sul, participantes dos

projetos da Liberdade.

Por viver nos limiares discursivos dos gêneros, as travestis têm sido

marginalizadas e impedidas de levar suas vidas fora da prostituição. Preconceito,

violência, estigmatização e a impossibilidade de viver “durante o dia” levaram um grupo

de travestis, politicamente engajadas, a estruturarem uma organização não-

governamental que visa à melhoria das perspectivas sociais das travestis na Cidade do

Sul.16 No entanto, o surgimento do ativismo político travesti só pode ser entendido com

15 Ver Benedetti (2000, 2005); Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, 2005b) para discussões instigantes sobre a construção da corporalidade travesti e seus significados em diferentes comunidades de travestis no Brasil. 16 A ONG Liberdade faz parte de uma rede nacional de instituições, coordenada por travestis, que direciona seus trabalhos à prevenção de DST/AIDS entre travestis e à luta pelos direitos humanos desse grupo. Há uma estrutura hierárquica no movimento nacional de travestis e transexuais. A instância mais alta e mais próxima do Governo Federal é a ANTRA (Associação Nacional de Travestis) que, sob a liderança da presidente Keyla Simpson, organiza e agenda política das ONGs estaduais. A rede de ONGs ligadas à ANTRA espraia-se por todo território nacional, tendo representantes na grande maioria

39

referência a um contexto mais amplo de ativismo político homossexual e seu

engajamento com temas relacionados à AIDS. Acredito que a historicização do

surgimento desses movimentos faz-se necessária, pois como observam Daniel e Parker

(1990), embora as travestis não tenham sido sempre bem-vindas dentro do ativismo

gay e/ou contra AIDS, esses movimentos sociais influenciaram grandemente o

conteúdo e a organização estrutural do ativismo travesti. É à descrição desse contexto

que me dedico a seguir.

1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política de

travestis no Brasil

Depois de anos sob um regime ditatorial rígido, no final da década de 1970, o

Governo brasileiro iniciou um lento processo de redemocratização que terminaria

somente em 1989. Esse processo foi chamado de abertura. Essa abertura gerou uma

intensa mobilização social e política. A partir do final dos anos 1970, houve um boom de

ativismos sociais com movimentos como organizações de trabalhadores, organizações

feministas, grupos ambientalistas e grupos Afro-brasileiros. Baseados em ideais

democráticos, esses movimentos sociais representaram uma mudança na política social

brasileira e sua tradição clientelista e populista (TREVISAN, 1986; PAKER, 2002).

dos estados brasileiros. A criação dessa grande rede de ONGs como a Liberdade emergiu no final dos anos 1990, por motivos discutidos ao longo deste capítulo.

40

Esses movimentos serviram como força motriz para outros setores políticos e sociais

que se opunham à ditadura (ver, por exemplo, MCRAE, 1985; TREVISAN, 1986;

KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004).

É nesse contexto que nasce a política de identidade17 homossexual no Brasil.

Guiados/as pela premissa de que a sexualidade é, fundamentalmente, um terreno de

luta política e de emancipação individual (GIDDENS, 1993), os primeiros movimentos

políticos de gays e lésbicas visavam à luta contra a estigmatização; tentavam com suas

manifestações, nesse momento relativamente tímidas, minar o tripé opressão-privação-

discriminação (MELLO, 2005) que limitava (e ainda limita) suas vidas sociais a espaços

de socialização muito restritos. Facchini (2004:153) indica que, em seus primórdios, o

movimento homossexual brasileiro “definia seu projeto de politização da questão da

homossexualidade em contraste às alternativas presentes no ‘gueto’ [...], possuíam

uma atuação qualificada pelos militantes como ‘não-politizada’ por estar exclusivamente

voltada para a ‘sociabilidade’”. Dessa forma, os gays e as lésbicas engajados/as no

movimento almejavam a desguetização da homossexualidade, tentando ocupar loci

sociais além dos restritos lugares de socialização que encontravam à época.

Em 1979, o primeiro jornal brasileiro que era endereçado explicitamente à

população gay foi lançado: O Lampião. Nesse mesmo ano, em São Paulo, o grupo

SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual foi criado (MCRAE, 1985; KULICK &

KLEIN, 2001; FACCHINI, 2005). Durante esse período, alguns outros grupos de

liberação homossexual foram organizados em várias cidades do país. McRae (1985)

17 O termo “política de identidade” é utilizado em referência ao “movimento cultural em que grupos tradicionalmente secundarizados (tais como as mulheres, os sujeitos negros, as chamadas minorias sexuais, os vários grupos étnicos) levantam sua voz, reclamando o direito de se auto-representar, de falar por si e de si” (LOURO, 2002:231).

41

observa a existência de aproximadamente 20 grupos de ativismo homossexual em

meados dos anos 1980. Nesse primeiro momento de organização política homossexual,

os grupos ativistas enfatizavam, em suas agendas, as dimensões subversivas da

sexualidade, incluindo liberdade sexual e androginia (TREVISAN, 1986). Um ponto

importante a ser notado sobre esse primeiro momento de ativismo homossexual

brasileiro é o fato de que em vez de contestar a marginalidade dos homossexuais, os

lideres desses grupos afirmavam que o lado “vergonhoso” da homossexualidade (como

comportamentos efeminados e promiscuidade) não deveria ser somente experienciado

no nível pessoal, mas sim, constituir um fenômeno criativo contra a força autoritária de

uma sociedade patriarcal (KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004, 2005).

A partir da segunda metade da década de 1980, os grupos de afirmação

homossexual, que nessa época agregavam intelectuais, ativistas políticos e feministas

engajados/as na luta para a total democratização da sociedade brasileira, mudam seu

foco de atuação (TREVISAN, 1986; PARKER, 2002). Seguindo ideais do ativismo gay

norte-americano,

Os pervertidos assumidos, aos quais de início foi concedido um espaço público cuidadosamente obscurecido, tornaram-se altamente expressivos em prol da causa própria. [...] Falavam por si mesmos em manifestações de rua e nos corredores, através de panfletos, jornais e livros, e pela semiótica de ambientes altamente sexualizados, com seus elaborados códigos e padrões, cores e roupas, nos meios de comunicação popular e nos detalhes mais materiais da vida doméstica (WEEKS, 1985:213).

Almejavam o reconhecimento das possíveis e múltiplas formas de existência

sexual com o intuito de dar visibilidade social aos que eram considerados/as

42

aberrações da natureza; ameaças à vida social normal e bem regulada. A partir do final

dos anos 1980, um período de transformações profundas do movimento LGBTTT

brasileiro (FACCHINI, 2004), diferenças de orientação sexual, política, racial, de classe

social e de gênero estabeleceram uma profunda ruptura no ativismo homossexual no

país. Nessa época, O Lampião fechou suas portas e o grupo SOMOS, por causa de

conflitos internos, fragmentou-se em outros grupos com diferentes agendas políticas

(TREVISAN, 1986; FACCHINI, 2005). Foi aproximadamente nesse momento da história

do movimento que a epidemia da AIDS começou a se espraiar. Como sugere Altman

(1995:99),

a AIDS apareceu em uma época histórica que tinha vivenciado o desenvolvimento do gênero e da sexualidade como bases para mobilização política e muitas das mais efetivas respostas à nova epidemia foram moldadas por discursos e experiências de certos movimentos sociais.

Podemos afirmar, sem dúvida, que o movimento homossexual teve (e ainda tem

hoje) grande influência na estruturação de ações contra a epidemia. Instauravam,

assim, um projeto político de despatologização da homossexualidade, tentando, através

de investimentos publicitários, panfletos, manifestações de rua, afastar as idéias de que

a homossexualidade é uma doença e, acima de tudo, que a AIDS seria um “câncer

gay”, idéia corrente na época. Com o engajamento de grupos homossexuais na luta

contra a AIDS e com a criação das ONGs-AIDS, no início da década de 1990, o

Governo brasileiro viu-se forçado a patrocinar projetos de enfrentamento e prevenção

da doença. Em meados da década de 1990, o país recebeu um empréstimo de 160

43

milhões de dólares do Banco Mundial (KULICK & KLEIN, 2001). Com parte desse

montante, o Ministério da Saúde apoiou as ONGs-AIDS e ONGs de ativismo LGBTTT

na luta contra a epidemia. A partir de então, as instituições não-governamentais que

estavam na luta de conscientização e prevenção à epidemia causada pelo vírus HIV

tiveram autonomia para elaborar projetos para grupos específicos.

Observe que na breve historicização do surgimento, no Brasil, dos movimentos

homossexuais e de prevenção à AIDS acima oferecida, a participação das travestis não

é mencionada. Isso tem uma surpreendente razão. As travestis, na história da

organização do movimento político homossexual brasileiro, eram quase que

sumariamente excluídas desses grupos, sendo relegadas a uma fatia inexpressiva dos

movimentos e de seus projetos político-sociais. Talvez essa exclusão esteja relacionada

ao fato de que os/as militantes preferiram não trazer à tona a figura das travestis, por

essas subverterem as regras hegemônicas de como lidar com o corpo e a sexualidade.

Isso impeliu as travestis a uma dupla exclusão: dos grupos ativistas pelos quais

deveriam ter sido acolhidas e da sociedade em geral. A figura das travestis só veio

fortemente à tona, nesse cenário, quando da criação de algumas ONGs-AIDS que, em

seus projetos de prevenção e conscientização sobre a doença, incluíram-nas no seu

escopo de atuação (ver, por exemplo, KLEIN, 1998).

Foi nesse contexto que a ONG Liberdade nasceu. Idealizada por algumas

travestis que participavam dos grupos sistemáticos de discussão sobre prostituição de

uma das sedes do Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA), a Liberdade foi

inaugurada em 1999 a partir dos esforços de travestis que se viam desprivilegiadas nos

projetos implementados pelo GAPA que, segundo as travestis participantes da

Liberdade, não eram especificamente voltados aos problemas sociais sofridos pelas

44

travestis. Esses projetos tinham como principal foco de sua atenção a prevenção de

DST/AIDS entre profissionais do sexo da Cidade do Sul. Porém, a infecção pelo vírus

HIV não é o único problema enfrentado pelas travestis, especialmente aquelas que se

prostituem. Violência, discriminação, falta de acesso à escolarização e ao mercado de

trabalho, segregação, problemas de saúde causados pela utilização de silicone e

hormônios femininos dão às travestis uma vida com muitos obstáculos. Insatisfeitas

com esse cenário, Cassiana, Marcela, Claudia e Cynthya engajaram-se na organização

da ONG Liberdade. Essa ONG idealiza, organiza e implementa projetos com os mais

diferentes propósitos: da diminuição dos danos causados pela injeção de silicone

industrial nos corpos das travestis à distribuição de preservativos nas áreas de

prostituição da cidade. Em outras palavras, esse é o cenário sócio-cultural onde o

presente estudo se insere, ou seja, o âmbito institucional dessa ONG e seus projetos

com as travestis da cidade.

1.2.2. As intervenções

Cena 4

Saímos do posto de gasolina onde distribuíamos preservativos para caminhoneiros,

costumeiros clientes das travestis, às 19:00. A noite já tinha caído e, embora a

primavera já começara, fazia bastante frio. As intervenções foram criadas pela equipe

da Liberdade e são patrocinadas pelo Ministério Público que fornece as camisinhas. O

combustível é pago com dinheiro particular, da advogada e da secretária, pois o

ministério não disponibiliza verba para esse tipo de serviço.

45

Sandra, Márcia e eu percorremos a cidade de norte a sul à procura de pontos de

prostituição de travestis. Segundo depoimentos, as zonas de batalha, como são

popularmente chamadas, eram em maior número há alguns anos. No entanto,

problemas com a polícia, governo, drogas, clientes e dinheiro provocaram uma queda

no número de travestis que trabalham nos territórios de prostituição da Cidade do Sul.

As intervenções são executadas todas as terças, caso não chova e/ou o carro da ONG

não esteja estragado. A equipe começa o trabalho aproximadamente às 17 horas, com

os caminhoneiros, e termina na zona sul da capital, não antes do inicio da madrugada.

Somente travestis são beneficiadas com o serviço. Segundo Márcia, mesmo que

sobrem preservativos, ela não os distribui entre as prostitutas mulheres por dois

motivos: “elas têm a ONG delas que ganhou o carro pra fazer a intervenção, mas não

faz. Eu não dou camisinhas pra putas porque eu prefiro as mona.” [Diários de campo,

30/09/2003]

Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que têm se construído como

mulheres em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em

práticas discursivas que, como tento argumentar neste trabalho, configuram ricos

milieux para a subversão das construções discursivas normativas de identidades de

gênero. Essas intervenções acontecem às terças-feiras à noite. Normalmente, Sandra e

Márcia deixam a sede da Liberdade aproximadamente às 19 horas e percorrem cerca

de quatro pontos de prostituição rueira nos quais a travestis vendem seus serviços, de

norte a sul da cidade.

O projeto das intervenções tem apoio dos Governos Federal e Estadual que

concedem à ONG os preservativos a serem distribuídos. Tais intervenções são

efetuadas em um carro, doado à Liberdade pelo Ministério Público, que é dirigido por

Sandra. Márcia, durante as intervenções, encarrega-se de entregar os preservativos às

46

travestis abordadas e de anotar em um relatório o número de preservativos entregue

em suas incursões semanais no mundo da noite. Durante minha observação das

intervenções, eu ficava no banco de trás do carro, com meu gravador em mãos, atento

às interações produzidas entre interventoras e entre interventoras e travestis.

Segundo o estatuto da ONG Liberdade, essas intervenções visam (1) à

distribuição de preservativos e saches de gel lubrificante às travestis nos seus territórios

de prostituição e (2) ao anuncio dos diversos serviços prestados pela instituição, como

por exemplo, as reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde, workshops,

aconselhamento sobre questões legais elaborados por Sandra e outra advogada

associada à ONG. Segundo a travesti presidente da Liberdade, a incursão de

representantes oficiais da ONG nos territórios de prostituição travesti da Cidade do Sul

tem aumentado a popularidade da organização, pois ao inserir-se em ambientes nos

quais um grande número de travestis se encontram, Sandra e Márcia têm a

possibilidade de atingir uma gama maior de profissionais do sexo e tentar convencê-las

a participar dos grupos de ativistas ligados à Liberdade. Faz-se mister observar que,

durante as intervenções, Sandra e Márcia, além de exercer as funções institucionais

que motivam suas visitas às áreas de prostituição de travestis, engajam-se em

interações sobre os mais diversos assuntos relacionados às travestis: suas relações

com clientes e namorados, violências sofridas, fofocas sobre outras travestis, dicas de

moda etc. É interessante observar que nada é dito sobre a prática de sexo seguro e/ou

sobre a utilização dos preservativos distribuídos. Nem mesmo a entrega dos

preservativos é comumente verbalizada. Esses fatos podem ser indicativos dos

significados dados às intervenções pelas interventoras e travestis: a educação sobre

sexo seguro fica em segundo plano, pois, o que há de mais importante é consolidar

47

relações sociais, emocionais e identitárias entre as interventoras e suas interlocutoras

travestis e entre as travestis profissionais do sexo e a ONG Liberdade.

Ademais, esse projeto da ONG Liberdade também tem como função anunciar

entre as travestis os diferentes serviços prestados pela ONG e a importância de sua

participação efetiva nos grupos de discussão organizados pela equipe. Esses grupos de

discussão acontecem às quartas-feiras à tarde e, em geral, reúnem em torno de 30

travestis. Durante essas reuniões, oficinas são ministradas por convidados/as da ONG.

Essas oficinas têm objetivos variados, como por exemplo, a conscientização sobre

direitos humanos, explicação de questões legais referentes a problemas enfrentados

pelas travestis da cidade, cursos de profissionalização como corte e costura e produção

de velas artesanais.18 Durante as intervenções, Sandra e Márcia aproveitam seus

encontros com um grande número de travestis para convidá-las a participar das

reuniões que acontecem na tarde do dia seguinte.

É importante enfatizar que as intervenções acontecem enquanto as travestis

estão vendendo seus serviços no “mundo da noite”. Isso tem implicações cruciais para

o serviço das interventoras. Muitas vezes ouvi, das interventoras, reclamações sobre os

perigos enfrentados enquanto Sandra e Márcia efetuavam seu trabalho de prevenção

de DST/AIDS nos territórios de prostituição travesti. Benedetti (2005:44) sugere que o

“mundo da noite” é “uma dimensão espaço-temporal em que práticas sociais

específicas são experimentadas, outros códigos e valores estão em jogo e têm lugar

emoções e sentimentos específicos”. Trabalhar no “mundo da noite” significa entrar em

18 No ano de 2003, por ocasião de um grande evento internacional que ocorreria na cidade, eu ministrei algumas aulas de inglês a um pequeno grupo de travestis. Segundo a ONG Liberdade, esse evento traria muitos turistas estrangeiros à cidade, o que poderia render bons lucros às profissionais do sexo que soubessem um pouco da língua inglesa para negociar com seus potenciais clientes “gringos”.

48

contato com um universo de práticas sociais particulares que estruturam esse universo.

A violência é ali uma habituée. Durante o período de trabalho com a ONG Liberdade,

conheci histórias terríveis de travestis violentadas e/ou assassinadas enquanto

trabalhavam. Sandra e Márcia me pareciam sempre muito tensas enquanto executavam

a entrega de preservativos na batalha.

Outra questão relevante a ser mencionada é que as áreas de prostituição travesti

são importantes milieux para o aprendizado de gênero das travestis. “Os territórios de

prostituição constituem um importantíssimo espaço de sociabilização, aprendizado e

troca” (BENEDETTI, 2005:115), é na batalha que elas encontram ricas experiências de

construção de sua identidade como travestis (KULICK, 1998). As intervenções inserem-

se nesse contexto. Sandra e Márcia, por construírem-se em categorias identitárias tidas

como tradicionais, podem ser consideras estranhas às práticas generificadoras

experienciadas pelas travestis em seus espaços de prostituição, o que pode ser um

fator importante na estruturação dos processos discursivo-identitários confeccionados

durante as intervenções.

É na batalha que a fricção de identidade entre interventoras e travestis toma

corpo. Essa fricção, a meu ver, funciona como força motriz para as flutuações

identitárias elaboradas pelas interlocutoras, transformando as intervenções em palcos

sobre os quais múltiplas e fragmentadas performances identitárias vêm à baila. Por um

lado, as interventoras constroem-se, cotidianamente, como participantes de categorias

identitárias hegemônicas em relação às travestis, como gênero, classe social,

sexualidade e profissão. Por seu turno, as travestis, como tem sido descrito em várias

etnografias sobre esse grupo (ver, por exemplo, KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005), se

constroem na contramão de discursos normativos, sobrepondo insígnias do feminino e

49

do masculino na produção de suas posições de sujeito e, assim, se alocando em

categorias tidas como não-tradicionais relacionadas ao gênero, à sexualidade e à

profissão. Portanto, as intervenções aqui analisadas constituem um rico lócus para que

possamos entender alguns dos processos discursivo-identitários trazidos à tona pelo

turbilhão de novas formas de construção identitárias encontradas no mundo

contemporâneo.

1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo segu ro: uma relação

necessária

À primeira vista, pode-se crer que uma investigação das práticas descritas acima

seja primordialmente guiada por eixos antropológicos. Porém, meu objetivo não é

somente examinar as práticas sócio-culturais presentes nas intervenções. Meu

propósito é investigar como a linguagem é utilizada nessas práticas discursivas e sua

relação com a negociação (e contestação) de identidades entre travestis e as

interventoras no seu trabalho de prevenção de DST/AIDS. Levando em consideração

que nossas identidades sociais são fenômenos, em grande medida, discursivos

(CAMERON, 2001, MOITA LOPES, 2002, 2003; ECKERT & MCCONNELL-GINET,

2003; BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) tento entender qual a relação mantida

entre linguagem e identidades de gênero nas intervenções da ONG Liberdade.

50

Meu interesse, portanto, é na linguagem. A lingüística aplicada (LA) mostra-se

uma área de conhecimento apropriada para abrigar minha investigação. Tal área pode

me fornecer ferramentas para descrever as conexões entre o uso de língua nas

intervenções e as identidades das participantes de tal prática. Moita Lopes (2006a)

entende que o objetivo da LA “é criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a

linguagem tem um papel central” (p. 14), ou seja, a LA é “uma ciência social, já que seu

foco é em problemas de uso da linguagem enfrentados pelos participantes do discurso

no contexto social” (MOITA LOPES, 1996:20). Como ciência social, então, cabe à LA

lançar seus interesses de pesquisa sobre todo e qualquer uso da linguagem

socialmente situado. É essa posição que justifica meu interesse em trazer um estudo

sobre travestis e prevenção de DST/AIDS para o âmbito da LA. Como grupo cultural,

social e politicamente estruturado, as travestis (e as teias de significados que as

rodeiam) configuram um estrato de nossa cultura que precisa ser investigado não

somente por um viés antropológico, mas também discursivo para que possamos

compreender os processos de produção lingüística/semiótica de suas posições em

nossa sociedade. Como indica Moita Lopes (2006d), “os limites da LA estão se

alargando”, o que traz implicações para o projeto epistemológico dessa área do

conhecimento. Segundo esse autor, a LA, como ciência social, deve ter algo a dizer

sobre a vida social contemporânea para que, dessa forma “se abram alternativas

sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem: os pobres, os

favelados, os negros, os indígenas, homens e mulheres homoeróticos, mulheres e

homens em situação de dificuldades sociais [...]” (MOITA LOPES, 2006d:86). É com

isso em mente que, aqui, consoante Moita Lopes (2006a), tento apresentar uma

sugestão temática e teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da LA,

51

tentando aproximar esse campo de investigação a um contexto sócio-cultural

relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de

DST/AIDS, no caso em tela, entre travestis que se prostituem.

Por mais de 30 anos, as modificações corporais elaboradas pelas travestis que

transcendem as fronteiras que distinguem o feminino do masculino têm intrigado

cientistas sociais e o público em geral (MOTT & ASSUNÇÃO, 1987; SILVA, 1993, 1996;

OLIVEIRA, 1997; SILVA & FORENTINO, 1996; KULICK, 1997, 1998; BENEDETTI,

2000, 2005). Vê-se então que “há farta literatura a interpretar, explicar e diagnosticar o

travestitismo [sic], fenômeno de ocorrência universal. Mas, social e culturalmente, só

podemos entendê-lo circunscrevendo-o a um contexto específico” (SILVA, 1996:97).

Seguindo Silva (1996), os/as pesquisadores/as que se aventuraram no universo trans

(BENEDETTI, 2005) para entender o fenômeno da travestilidade tentaram fazê-lo ao

contextualizar as práticas travestis em seus contextos específicos (a Lapa no Rio de

Janeiro (SILVA, 1996), as ruas e as moradas conjuntas de travestis em Salvador

(KULICK, 1998), bares gays de Florianópolis (OLIVEIRA, 1997) e o fundão, a zona de

prostituição de travestis, em Porto Alegre (BENEDETTI, 2005) são exemplos dessa

literatura). Porém, os estudos citados, com exceção de Kulick (1997, 1998), analisam a

visão que as travestis têm de si mesmas e como elas se constroem como indivíduos

generificados desconsiderando um aspecto altamente relevante ao processo de

construção das identidades sociais: a linguagem e seus usos dentro de comunidades

específicas. Assim, a maioria dos estudos sobre as travestis brasileiras deixa para trás

o fato de que “a linguagem tem um papel crucial na estruturação de nossa experiência”

(COATES, 1998:301). Mais especificamente, como Eckert e McConnell-Ginet (2003)

explicam, “a linguagem entra nas práticas sociais que generificam os indivíduos, suas

52

atividades e idéias de muitas maneiras diferentes; o desenvolvimento de categorias

como ‘mulher’ e ‘homem’ sendo somente uma pequena parte da história” (p. 464).

Destarte, recorrendo a Eckert e McConnell-Ginet (1992) novamente, a linguagem é aqui

tomada “como um recurso simbólico e comunicativo chave, central para o

desenvolvimento das maneiras de pensar e agir que dão às comunidades de práticas

suas características” (p. 483). Pode-se, então, identificar uma lacuna a ser preenchida:

o estudo das práticas discursivas nas quais as travestis se engajam e sua relevância na

fabricação da identidade desses indivíduos e dos indivíduos com quem interagem.

Faz-se, neste momento, necessário observar que “a relação entre [travestis] e a

linguagem é uma relação de différance mútua, de fluidez mútua que excede

significados fixos, que se mantém sempre plural e continuamente rompe a marcação de

fronteiras” (KULICK, 1999:616). Dessa maneira, cabe a nós, estudiosos/as da

linguagem, tentar explicar como se dá a construção discursiva das identidades de

indivíduos transgêneros. Tendo também em perspectiva que “a linguagem é, ao mesmo

tempo, a determinante central do fato social [...] e o meio de se ter acesso a sua

compreensão” (MOITA LOPES, 1994:332), tenta-se aqui entender os significados

construídos durante as intervenções e a lógica que os estrutura para, no final do

percurso, chegar a uma possível compreensão.

Uma pesquisa no universo acima descrito e baseada nesse posicionamento em

relação à LA deve ser necessariamente interpretativista. Com isso quero dizer que a

captação das camadas de significados construídos no trottoir entre travestis e

interventoras depende de uma posição não generalizadora e universalizante. Tal

posição não seria capaz de entender a fluidez e a ambigüidade das práticas que

configuram o habitus (BOURDIEU, 1977; 1985) travesti. Acredito que o interpretativismo

53

através de “uma generalização construída intersubjetivamente, que privilegia a

especificidade, o contingente e o particular” (MOITA LOPES, 1994:332) seja um

paradigma epistemológico apropriado para entender os significados polissêmicos

confeccionados nas intervenções, pois esses significados, em contextos diferentes e

com interlocutores/as diferentes, transmutam-se. Destarte, generalizar sobre os

embates discursivo-identitários estabelecidos entre travestis e interventoras nunca

captaria a forma cambiante e fragmentada de sua participação desses eventos.

Portanto, os dados gerados são de natureza qualitativa. Como indica Holmes (1992), “o

interpretativismo foca em dados qualitativos, desse modo o objetivo não é tanto ser

capaz de mensurar os fenômenos, mas ser capaz de descrevê-los, entendê-los e

interpretá-los” (p.41). Segue-se, então, que minha pesquisa não visa a uma

generalização acerca das práticas realizadas durante as intervenções. Quero, pelo

contrário, centrar meus esforços para entender uma instância bem particular do

universo trans: a entrega de preservativos a travestis em uma metrópole da região sul

do Brasil feita por ativistas da ONG Liberdade. Desse modo, me preocupo com as

idiossincrasias desse contexto e, seguindo uma perspectiva interpretativista, objetivo

entendê-lo em suas especificidades e não chegar a conclusões sobre todas as

possíveis intervenções feitas com travestis em outras regiões do território brasileiro.

54

2. DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O

REFERENCIAL TEÓRICO

Cena 5 Conversávamos em tom deliciosamente informal na sede da Liberdade em uma quente

tarde de quarta-feira. Cassiana, sempre muito bem informada, contava as novidades

sobre as ‘monas’ da Cidade do Sul: Cynthya estava ‘batendo porta’19 como prostituta

em Paris; chegara à cidade uma travesti be-lís-si-ma nascida em Manaus; Suzi andava

‘sumida’ pois estava envolvida em rituais do candomblé; Thalia fora impedida de entrar

no banheiro feminino de um shopping e fez um escândalo... Todas essas informações

eram comentadas em diferentes tonalidades: ironia, sarcasmo, risos e muitos

conselhos. Bárbara, em certo momento, fala sobre sua nova estratégia de inserção no

mercado sexual da cidade: anunciaria seus serviços em classificados de jornais!

Cassiana e Marcela, respectivamente coordenadora e tesoureira da ONG, já haviam

utilizado tal recurso e aproveitam a oportunidade para aconselhar a iniciante. Bárbara

deveria escolher o jornal de acordo com seu público alvo. Além disso, a compra de um

celular exclusivo para o serviço deveria ser agilizada e, o mais importante, o texto do

anúncio teria que ser muito bem pensado. Todas presentes sugeriram um possível

texto. Até mesmo eu tentei ajudar. Minutos depois, Bárbara, entusiasmada, tem uma

idéia que, segundo ela, atrairia muitos clientes. Porém, manteve segredo (afinal,

alguma presente poderia roubá-la). Dias depois, recebo uma ligação, Bárbara pedia

minha opinião sobre seu anúncio. Abro o jornal e procuro a página por ela indicada. Lá

19 Termo êmico que se refere à freqüência dos programas feitos. Bater porta faz alusão ao ato de entrar e sair dos carros dos clientes.

55

encontro seu texto: “Bruna20, corpo de Eva com o melhor de Adão”. [Diários de campo,

21/01/2004]

Na cena acima ilustrada, Bárbara, ao anunciar seus serviços sexuais em um

jornal, faz uso de discursos que a constroem na intersecção da feminilidade e da

masculinidade (BORBA & OSTERMANN, 2007), ilustrando, assim, o poder que o

discurso tem de prover identidades às pessoas através de práticas discursivas que

colocam suas vidas em sociedade. Com o intuito de “atrair muitos clientes”, a

anunciante faz uso de discursos que, ao serem sobrepostos, produzem o efeito de uma

identidade específica: a identidade travesti. Bárbara, dona de um “corpo de Eva” que

mantém “o melhor de Adão”, sublinha os atributos corporais que a constroem nos

limiares de discursos sobre o gênero social disponíveis em uma sociedade fortemente

católica. A feminilidade, a candura e a pureza associadas à imagem bíblica de Eva são

entrelaçadas à virilidade representada pelo corpo de Adão. Ao valer-se de discursos e

imagens que, segundo ela, podem garantir-lhe uma boa clientela, Bárbara

discursivamente apropria-se de atributos identitários que visam enfatizar a construção

de sua própria identidade baseada na manipulação de uma biologia masculina na

tentativa de moldar seu corpo com formas e atributos simbólicos convencionalmente

ligados às mulheres. Dessa forma, o anúncio utilizado por Bárbara pode ser relacionado

20 É comum entre as travestis a utilização de vários nomes que são contextualmente específicos. Assim, uma travesti tem um nome feminino para o círculo de seu convívio social, outro para a prática de prostituição rueira, mais um para a prostituição via Internet e, como no caso ilustrado, um nome específico para os anúncios em jornais. Esse padrão de uso de pseudônimos foi também descrito por Benedetti (2005:49).

56

ao aporte teórico que guia esta investigação: a visão socioconstrucionista do discurso e

das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002, 2003).

Segundo essa perspectiva, nossas identidades são construídas através do

discurso, não havendo, assim, uma identidade única alocada na psiché dos indivíduos.

Pelo contrário, as identidades são fabricadas no momento do engajamento em algum

embate discursivo (MOITA LOPES, 2003; CAMERON, 2001; DAVIES & HARRÉ, 1990),

sendo, assim, o resultado/efeito dos processos sócio-culturais e interacionais nos quais

nos envolvemos cotidianamente (MOITA LOPES, 2001, 2005; K. HALL, 2005;

BUCHOTLZ & HALL, 2004; BUCHOLTZ, 1999; ECKERT & MCCONNELL-GINET,

1992). Moita Lopes (2002) afirma que “as identidades sociais não estão nos indivíduos,

mas emergem na interação entre os indivíduos agindo em práticas discursivas

particulares nas quais estão posicionados” (p.37). Desse modo, as identidades não

estão prontas nem fixas, mas situadas em processos discursivos que as constroem a

partir de propósitos localmente negociados.

A visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais é baseada na

premissa de que “cada um de nós é membro de muitos Discursos, e cada Discurso

representa uma de nossas múltiplas identidades” (GEE, 1990: xix). Gee (1990) e Gee &

Lankshear (1997) utilizam o termo Discurso, com D maiúsculo, para se referir a modos

de ser no mundo social, a diferentes formas de vida e a diferentes práticas que

sinalizam diferentes identidades. Consoante Gee & Lankshear (1997), recorremos a

determinados Discursos “em momentos e lugares apropriados [...] para sinalizar

participação em [...] um grupo social particular” (p.97). Assim, ao nos engajarmos em

algum embate discursivo, temos a oportunidade de fazer usos de determinados

57

Discursos para nos (re)construir e, simultaneamente, (re)construir nossos/as

interlocutores/as como determinados tipos de pessoas.21

Com isso não se afirma que acordamos a cada dia como outra pessoa

completamente diferente. Muito pelo contrário. Como observa Fabrício (2006:46),

“existir seria existir sempre em movimento, em meio a oscilações entre continuidades e

rupturas”; é a partir dessas oscilações entre discursos de identidades que podemos

perceber um certo grau de estabilidade que nos ajuda a manter uma certa coerência

identitária em nossas interações. Fabrício e Moita Lopes (2004), recorrendo à filosofia

da linguagem de Wittgenstein, sugerem que

a utilização do critério de identidade (em relação às coisas ou às pessoas), supondo a existência de identidades iguais a si mesmas, diz respeito a uma operação lógica, instauradora de algum grau de estabilidade para os sentidos, a qual exerce sobre nós uma força coercitiva, pois constitui uma estratégia para lidar com o caráter cambiante do significado. O efeito de estabilidade não seria intrínseco às idéias em jogo, mas sim atributo do uso, único responsável por certa constância na significação. Assim sendo, o conceito de identidade funciona como um conceito operacional que, subordinando-se a regras de uso que aprendemos a reificar, possibilitaria a criação de sentido entre as pessoas. (p.15)

Segundo autora e autor, a estabilidade deve ser considerada como um efeito do

uso repetido de padrões identitários; não um aspecto intrínseco às identidades. Essa

estabilidade só pode se percebida através de um escrutínio público que decide “o que

conta como ‘o mesmo’” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004:16). Assim, ao nos

movimentarmos em diversos discursos que constituem nossas identidades sociais,

produzimos o efeito de estabilidade ao nos colocarmos no palco interacional sobre o

21 Para evitar uma inflação conceitual, utilizo, no decorrer do texto, “discurso”, com d minúsculo, para me referir ao mesmo conceito.

58

qual a audiência decide o que conta como sendo nós mesmos. Outro fator importante

na construção da estabilidade (operacional) das identidades é a questão da repetição

de discursos que, ao serem proferidos, produzem um efeito de substância, como bem

observa Butler (1990/2003). Segundo os argumentos dessa autora, as identidades

parecem ser naturais e estáticas, pois os indivíduos reproduzem discursos já

sedimentados na cultura, o que produz um efeito de continuidade e essência. Porém,

como argumenta Butler (1990/2003), os indivíduos têm a potencialidade da repetição

subversiva. Isso quer dizer que podem reificar discursos a eles disponíveis, porém,

sobrepondo-os a outros significados e produzindo arranjos identitários inauditos.

Ao utilizar enunciados de discursos particulares, os indivíduos neles se alocam e

passam a ser percebidos como membros de determinados grupos. Não se afirma com

isso que utilizamos os discursos necessariamente para reclamar participação em

grupos específicos. Ao viver socialmente, circulamos por uma multiplicidade de

discursos que podem nos alocar em diferentes lugares sociais sem substancialmente

participarmos dos grupos a eles associados. O engajamento com um (ou vários)

discurso(s) é elaborado com base nos propósitos interacionais locais. Dessa forma, os

indivíduos não estão presos a posições de sujeito fixas que os privam de agência sobre

a escolha dos significados nos quais circulam (K. HALL, 1995; CAMERON, 1997;

MATOESIAN, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003; MOITA LOPES, 2006b). À

medida que vivemos socialmente, circulamos por discursos dos quais podemos nos

valer em momentos e lugares apropriados. A escolha de discursos específicos depende

(1) do acesso a esses discursos e (2) dos/as interlocutores/as aos/às quais nosso

discurso é dirigido (volto a essa questão mais detalhadamente abaixo).

59

Como indica Moita Lopes (2003:27), “aprendemos a ser quem somos nos

encontros interacionais de todo dia”. Por conseguinte, vemos que, em oposição à visão

tradicional da sociolingüística variacionista, segundo o socioconstrucionismo, não

falamos A, B ou C porque somos X, Y ou Z. Muito pelo contrário. Nos constituímos

como X, Y ou Z ao falarmos A, B ou C. Assim, o discurso tem uma natureza

constitutiva, pois ao nos engajarmos em práticas discursivas não só representamos o

mundo, mas também o construímos (FAIRCLOUGH, 2001; MOITA LOPES, 2001, 2002,

2003, 2006b). Vê-se, portanto, que, a partir dessa perspectiva, adota-se uma posição

anti-essencilista no sentido de que as identidades não são dadas a priori, não são pré-

discursivas, mas emergem de nosso engajamento em vários discursos na vida social.

Ao considerar as identidades como construídas no/pelo/através do discurso, nos

deparamos com seu caráter contraditório, fragmentado e processual, pois em cada

prática discursiva os indivíduos podem se constituir diferentemente vis-à-vis o contexto

sócio-histórico-cultural específico e vis-à-vis os/as outros/as participantes da interação.

Dessa maneira, por exemplo, uma mulher que habitualmente se descreve como negra,

de classe trabalhadora, lésbica e mãe pode enfatizar determinados traços de seu feixe

identitário (MOITA LOPES, 2003) e amenizar outros por razões determinadas

localmente na interação. Aqui, seguindo Moita Lopes (2002, 2003), aludo a dois

aspectos importantes da visão socioconstrucionista adotada nesta investigação: a

alteridade (BAKHTIN, 1979/2003; 1929/1997) e a situacionalidade (LINDSTROM,

1992). Em outras palavras, todo e qualquer discurso é produzido por alguém que tem

marcas sócio-históricas particulares e é direcionado a alguém, com suas marcas

identitárias, em um contexto de produção específico. O anúncio de Bárbara, descrito

acima, exemplifica tal processo. A travesti, enfatizando seus atributos corporais,

60

anuncia seus serviços sexuais tendo em mente um leitor projetado22, i.e. um que se

interesse sexualmente por um corpo que sobreponha índices de feminilidade e de

masculinidade.23

Esses dois aspectos sublinham o papel social do discurso, nessa perspectiva

entendido como ação sobre o mundo. Alteridade e situacionalidade indicam que “as

pessoas usam a linguagem a partir de suas marcas sócio-históricas como homens,

mulheres, homoeróticos, heterossexuais, etc., ao mesmo tempo que [...] se reconstroem

ao agirem uns em relação aos outros via linguagem” (MOITA LOPES, 2003:25). Isso

quer dizer que não usamos a linguagem com um/a falante simplesmente, mas, com, por

exemplo, uma mulher, heterossexual, de classe média, feminista, branca, advogada,

procedente de uma família judia24, ou, pelo menos, de acordo com nossa

construção/interpretação de tal mulher. Em outras palavras, os atributos do feixe

identitário de nossos/as interlocutores/as influenciam a nossa escolha de significados

para a participação em um embate discursivo. Destarte, “o tipo de pessoa por meio do

qual se é reconhecido, em um dado momento e lugar, pode mudar de momento em

momento da interação, pode mudar de contexto para contexto, e, claro, pode ser

ambíguo e instável” (GEE, 2001:99 apud MOITA LOPES, 2003:20).

Os processos de construção discursiva de identidades sociais são

intersubjetivos, dialógicos e relacionais (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004) no sentido

22 Propositalmente, faço uso da generalização no masculino para me referir aos clientes das travestis, pois, como já observado por Kulick (1997, 1998), Benedetti (2005) e Pelúcio (2005), esses indivíduos têm, inexoravelmente, performances corporal, social e sexual associadas à masculinidade hegemônica. 23 Ao serem perguntadas por que são tão procuradas no mercado sexual, todas as minhas colaboradoras travestis deram respostas similares nas quais indicavam que os homens as procuram, pois desejam “uma mulher com algo a mais”. É isso, me parece, que Bárbara leva em consideração ao elaborar o texto para seu anúncio. Para discussões sobre os clientes das travestis ver Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, c). 24 Utilizo propositalmente, como exemplo, as marcas identitárias construídas por Sandra, umas das interventoras funcionárias da ONG Liberdade que participou do presente estudo.

61

de que os efeitos de identidades produzidos pelo discurso são sempre postos sob o

escrutínio do outro e são influenciados pelo contexto no qual os/as participantes

discursivos estão inseridos/as. No que se refere especificamente ao estudo dos

processos discursivos instaurados pela fricção de alteridades nas interações entre

mulheres e travestis, a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais

nos fornece um aparato teórico-analítico que possibilita criar inteligibilidade sobre as

flutuações identitárias elaboradas pelas participantes dos eventos aqui investigados.

Segundo Fabrício & Moita Lopes (2004:16)

O socioconstrucionismo aponta para o nosso contínuo envolvimento no processo de autoconstrução e na construção dos outros, o que implica dizer que, nas práticas discursivas em que estamos situados, tornando o significado compreensível (ou não) para o outro, construímos a outridade ao mesmo tempo em que ela nos constrói. Como seres sociais, estamos sempre em movimento no processo de vir a ser socialmente [...].

As características do discurso acima descritas (i.e, alteridade, situacionalidade,

dialogicidade e intersubjetividade) são pressupostos teóricos cruciais para

compreendermos as interações entre travestis e mulheres ativistas de prevenção de

DST/AIDS aqui investigadas. Grosso modo, no que tange o aspecto situacional, tais

interações são inseridas nos territórios de prostituição das travestis na Cidade do Sul –

importantes locais para sua socialização e aprendizado de gênero (KULICK, 1998;

BENEDETTI, 2005). No que se refere à alteridade, essas interações são estruturadas a

partir do que aqui chamo fricção de alteridades no sentido de que as interventoras

(indivíduos que se constroem e são construídos como representantes de identidades

tradicionais) engajam-se no discurso com travestis cuja construção de identidades

62

extrapola discursos tradicionais de gênero e sexualidade. Portanto, a alteridade de

ambas as partes é uma categoria fundamental para investigarmos tais eventos

discursivos.

A intersubjetividade é abordada aqui sob o prisma do modelo teórico-analítico

proposto por Bucholtz & Hall (2003, 2004, 2005, no prelo) intitulado táticas de

intersubjetividade no qual considera-se a construção identitária via linguagem como um

produto das relações entre participantes discursivos engajados/as na construção de

suas identidades vis-à-vis as identidades (percebidas ou construídas) de seus/suas

interlocutores/as (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; BUCHOLTZ, 2003; K. HALL,

2005). Essas relações são descritas no próximo capítulo à medida que caracterizo o

aporte analítico sobre o qual a análise das intervenções será efetuada.

63

3. (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO: AS

TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE

As dinâmicas (políticas, econômicas, sociais, culturais, históricas e geográficas)

que têm produzido uma multiplicidade de marcas identitárias que há 30 ou 40 anos

eram impensáveis não são recentes.25 No mundo contemporâneo, convivemos com

uma grande variedade de arranjos identitários o que produz, em nosso dia-a-dia,

múltiplos choques entre as características de nosso feixe de identidades (MOITA

LOPES, 2003) e aquele de nossos/as interlocutores/as. Nas ciências sociais, mais

especificamente, na antropologia, as fricções de alteridades têm gerado uma profícua

reflexão por parte dos/as pesquisadores/as. A clássica imagem de Malinowski

assistindo seu navio partir, deixando-o abandonado e perplexo entre os trombiandeses,

com suas roupas e decoração corporal exóticas (MALINOWSKI, 1976), foi seminal para

que antropólogos/as produzissem detalhadas descrições dos atritos causados pelas

diferenças geográficas, culturais, lingüísticas e de gênero trazidas à tona por sua

inserção em lugares sociais nos quais são, pelo menos no início do trabalho de campo, 25 Ver Bauman (2005), Chouliaraki & Fairclough (1999), Giddens, Beck & Lash (1997) e Giddens (2000) para instigantes discussões sobre esses processos.

64

estrangeiros/as. Tais choques entre as identidades percebidas de pesquisadores/as e

nativos/as podem ser debitados às diferentes formas por meio das quais esses

indivíduos se constroem socialmente. Quando, por exemplo, uma travesti que se

prostitui em São Paulo aconselha a antropóloga Larissa Pelúcio a “deixar a buceta em

casa” antes de sair para fazer sua etnografia (PELÚCIO, 2007), ela se vê perplexa e

engendra um complexo processo de relativização de sua posição como pesquisadora e

como ser social: afinal, Pelúcio tem um status social e um corpo que a distinguem de

suas informantes. Em sua pesquisa sobre as configurações conjugais entre lésbicas de

camadas médias do Porto Alegre, Nádia Meinerz (2007), uma jovem antropóloga

heterossexual, descreve o constante estado de ansiedade de suas informantes em

relação ao momento em que a pesquisadora “sairia do armário”, afirmando-se lésbica.26

Dessa forma, fricções emergem da relativa ou total discordância entre as construções

sociais dos/as interagentes e incitam processos de (re)negociação de posições sociais

entre os e as participantes de práticas culturais.

Gênero, sexualidade, classe social, corporalidade, religião, linguagem e origem

geográfica podem ser fontes para sofisticados processos de administração das

diferenças percebidas ou construídas entre interlocutores e interlocutoras. Com o intuito

de investigar como essa administração é elaborada discursivamente, utilizo o conceito

de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) na tentativa de

compreender as fricções produzidas pela dissonância entre as marcas identitárias das

interventoras da ONG Liberdade e suas interlocutoras travestis. A seguir, descrevo as

26 Ver Bonetti & Fleischer (2007) para discussões sobre as “saias justas” e os “jogos de cintura” produzidos pelos choques identitários, culturais e simbólicos entre pesquisadoras e informantes durante trabalho de campo.

65

ferramentas analíticas utilizadas neste trabalho para entender as construções, re-

construções e administração das identidades das participantes dos eventos estudados.

3.1. As táticas de intersubjetividade

Basilar para a perspectiva das táticas de intersubjetividade proposta por Bucholtz

e Hall (2005) é a premissa de que a “identidade é o posicionamento social do eu e do

outro” (p.586). Deliberadamente abrangente, tal conceito indica que a identidade é um

construto fundamentalmente discursivo (visto que os posicionamentos são

discursivamente construídos) que emerge e circula em contextos locais de interação,

como, de fato, já indicado anteriormente. A partir dessa premissa, as autoras sugerem

que as pesquisas sobre identidade devem centrar seus esforços sobre relações entre

linguagem, cultura e sociedade para que possamos descrever os processos através

dos quais as identidades sociais são produzidas. Destarte, as identidades são vistas

como produtos de ação social situada (BUCHOLTZ & HALL, 2003; BUCHOLTZ &

HALL, no prelo).

Bucholtz e Hall (2005:585-586) consideram a identidade “como um fenômeno

relacional e sociocultural que emerge e circula em contextos discursivos locais”. Para as

autoras, as identidades são produtos/efeitos de práticas socioculturais que somente

podem ser verificadas através de estudos etnográficos que analisem, com atenção, as

performances locais dos indivíduos. Essas performances incluem tanto categorias de

66

nível macro como posições culturais que emergem etnograficamente. É na intersecção

entre o micro e o macro que as identidades são construídas através de performances

que expressam em sua encenação as ideologias que informam essa construção (ver,

por exemplo, CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003;

HALL, 2005; MOITA LOPES, 2006b). Com base nessa perspectiva, os indivíduos co-

constroem suas identidades na interação fazendo uso de táticas de intersubjetividade e,

dessa forma, têm a oportunidade de aliarem-se a (ou distanciarem-se de) grupos

culturais específicos.

O termo táticas de intersubjetividade refere-se às maneiras pelas quais os/as

falantes (des)alinham-se vis-à-vis seus/suas interlocutores/as (e vis-à-vis o contexto

cultural onde estão inseridos/as) através do estabelecimento de uma plêiade de

relações identitárias (ver, por exemplo, BUCHOLTZ & HALL, 2004; MOITA LOPES,

2006b; HIGGINS, 2007). Essas relações intersubjetivas sublinham o caráter situacional

do discurso e sua inter-relação com a alteridade (a identidade do/a outro/a) na interação

face-a-face, trazendo à tona negociações e re-negociações das posições de sujeito

construídas por interagentes na medida em que um embate discursivo se desenrola. As

identidades sociais estão, dessa forma, compondo-se e recompondo-se

constantemente. O arcabouço analítico elaborado por Bucholtz e Hall (2003, 2004,

2005, no prelo) inclui três pares de táticas que constroem relações intersubjetivas com

base em três dimensões identitárias, a saber: semelhança versus diferença,

autenticidade versus paródia e reconhecimento institucional versus marginalização

estrutural (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494).

67

Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) destacam os seguintes pares: adequação /

distinção, autenticação / desnaturalização e autorização / deslegitimização.27 Segundo

as autoras (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494), a primeira parte de cada par constitui o

pólo positivo do processo discursivo de construção de identidades. Isso quer dizer que

através das táticas de adequação, autenticação e autorização, os indivíduos enfatizam

características ideologicamente reconhecidas como representantes de um grupo

identitário específico. Por outro lado, a segunda parte de cada par forma o pólo

negativo desse processo, no qual interagentes sublinham qualidades percebidas como

remotas e/ou dissonantes na performance de identidade do/a falante e dos/as outros/as

envolvidos/as na interação, orientando-se para aspectos incoerentes da performance

desejada.

Faz-se, contudo, necessário notar que as táticas de intersubjetividade

não são qualidades inerentes às pessoas ou a práticas sociais e ideologias, mas sim ferramentas analíticas utilizadas para chamar a atenção para aspectos salientes da situação discursiva. No que se refere às relações criadas na produção de identidades, as táticas de intersubjetividade nos oferecem um vocabulário mais preciso para discutir as relações entre identidade e linguagem (Bucholtz e Hall, 2004:493).

Essas táticas enfatizam o caráter múltiplo e complexo das relações entre

identidade e linguagem que são contextualmente específicas (HALL & O’DONOVAN,

1996; CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999, 2003; MOITA LOPES, 2002, 2003,

OSTERMANN, 2003; HEBERLE, OSTERMANN & FIGUEIREDO, 2006; BORBA &

OSTERMANN, 2007). O termo intersubjetividade sublinha o aspecto relacional das

27 Em inglês, adequation, distinction, authentication, denaturalization, authorization e illegitimation.

68

identidades e a sua negociação interacional, ou seja, elas não existem num vácuo

social; as identidades não são “propriedades de indivíduos isolados” (BUCHOLTZ &

HALL, 2004:494; ver também MOITA LOPES, 2002). Com esse aparato teórico, afirma-

se que compreender por que as identidades são construídas interacionalmente é tão

importante quanto entender como tal construção se dá (BUCHOLTZ & HALL, 2003). É a

essa tarefa que aqui me dedico. Tento compreender como e por que as flutuações

identitárias efetuadas pelas interventoras e travestis são construídas. Ao adotar certos

posicionamentos, discursos e estruturas lingüísticas, as participantes das intervenções

constroem identidades através da encenação de performances temporárias construídas

sequencialmente na interação. Essas performances identitárias são produzidas com

base no uso de discursos e formas lingüísticas convencionalmente associadas a

categorias identitárias locais. Dessa forma, veremos que tanto as interventoras quanto

as travestis apropriam-se discursivamente de características identitárias de grupos

sociais nos quais elas, de facto, não participam. Passemos, então, neste momento,

para a discussão das táticas de intersubjetividade per se.

3.1.1 Adequação e distinção

O primeiro par de táticas, adequação e distinção, constrói, respectivamente,

relações de semelhança e diferença entre participantes de um embate discursivo.

Adequação refere-se às maneiras pelas quais um indivíduo (ou grupo de indivíduos)

69

enfatiza semelhanças e, dessa forma, alinha-se com um grupo social do qual ele/a

efetivamente não participa. Essa tática é utilizada na fabricação de semelhança

suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004:495) entre interlocutores/as a partir do

apagamento de características socialmente discordantes. Na interação, diferenças

irrelevantes ou prejudiciais aos projetos identitários correntes são minimizadas e

semelhanças percebidas como importantes para a construção de uma relação

igualitária entre interagentes são sublinhadas (BUCHOLTZ & HALL, 2005:599). Assim,

esse processo envolve o apagamento de características consideradas como

potencialmente discordantes entre interagentes em favor de semelhanças percebidas

ou construídas que são tomadas como mais relevantes para os propósitos indentitários

localmente negociados (BUCHOLTZ & HALL, 2003). Em outras palavras,

discursivamente inventa-se a semelhança ao minimizar as diferenças.

Consoante Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a tática de adequação é utilizada

por um/a falante quando o ajuste de sua posição de sujeito a seus/suas

interlocutores/as faz-se necessário. A adequação é alcançada através de usos de

formas lingüísticas que sinalizam participação em determinados grupos sociais. Neste

trabalho, tento expandir o conceito, afirmando que tal adequação é influenciada não

somente pela natureza dialógica do discurso, mas também por seu caráter situacional.

Como veremos, a supressão de diferenças identitárias pode ser motivada (1) pelas

marcas identitárias de nosso/as interlocutores/as e (2) pelo contexto onde estamos

inseridos enquanto interagimos.

A tática de adequação, a título de exemplo, pode ser encontrada na pesquisa de

Cynthia D. Nelson (2006) sobre como professores/as de inglês como segunda língua

em salas de aula globalizadas nos Estados Unidos negociam suas identidades sexuais

70

com seus/suas alunos/as. Nelson investiga a questão do “sair do armário” nessas salas

de aula com base na perspectiva dos/as professores/as e nas interpretações dos/as

alunos/as. Um professor entrevistado, que se identificava como gay, afirma que se

apresenta para suas turmas como uma pessoa heterossexual, pois não achava

conveniente “sair do armário” para seus/suas alunos/as, já que por serem imigrantes

os/as estudantes “já têm que enfrentar bastantes choques culturais... [Então] eu vou ser

o americano normal” (p.218). Ao fazer uso de formas lingüísticas como “namorada”, “fui

ao cinema com uma mulher” e ao rir com seus/suas alunos/as enquanto esses/as

degradavam a cultura gay/lésbica norte-americana, esse professor posiciona-se em

discursos que o constroem como “o americano normal”, minimizando, assim, suas

diferenças identitárias com os/as alunos/as e produzindo o que Bucholtz & Hall chamam

de semelhança suficiente. Essa tática era utilizada pelo professor como meio de evitar

mais choques culturais para seus/suas alunos/as e para salva-guardar a construção de

sua identidade sexual de interpretações preconceituosas de seus/suas estudantes.28

Distinção é o processo de produção de diferenças sociais entre interagentes. Em

vez de apagar diferenças para construir semelhança, essa tática é executada a partir da

ênfase dada a diferenças percebidas ou construídas entre falantes. Segundo Bucholtz

e Hall (2003:384), “distinção é o mecanismo através do qual diferenças são

produzidas”. Vê-se, portanto, que essa tática é diametralmente oposta à tática de

adequação no sentido de que em vez de minimizar ou apagar diferenças, através dela

os/as participantes parecem produzir diferenças suficientes (BUCHOLTZ & HALL,

2003:384), ao fazer uso de discursos e formas lingüísticas que extrapolam sua

28 No entanto, ao verificar como os/as alunos/as entendiam a identidade sexual de seu professor, Nelson (2006) conclui que os/as estudantes, todos/as asiáticos/as, eram capazes de identificar o posicionamento identitário de seu professor.

71

performance identitária. Dessa forma, os processos de distinção funcionam com base

na supressão de semelhanças construindo discursivamente os/as interagentes como

participantes remotos dos grupos aos quais eles/as, por ventura, clamem por

participação.

Para dar um exemplo recorro novamente ao estudo de Nelson (2006) aludido

acima. Outra participante da pesquisa, uma professora lésbica que ensinava uma turma

altamente multicultural, afirma que “todo semestre saio do armário como lésbica”

enfatizando, assim, diferenças entre suas identidades e as identidades percebidas de

seus/suas alunos/as. Pode-se dizer que essa professora, seguindo as observações de

Nelson (2006:222-223), utiliza a tática de distinção como meio de ensinar seus/suas

estudantes a lidar com a heterogeneidade da vida cultural nos Estados Unidos. Tal

tática é elaborada com base na ênfase dada pela professora ao seu posicionamento

sexual que é usado em sala de aula como uma estratégia para a educação lingüística e

cultural.

3.1.2. Autenticação e desnaturalização

O segundo par de táticas, autenticação e desnaturalização, produz relações de

autenticidade e falsidade com base em uma performance identitária que pode ser

considerada como satisfatória ou não em comparação às posições de sujeito

disponíveis localmente. Autenticação se refere às ferramentas discursivas utilizadas por

72

falantes para construírem-se como membros autênticos de categorias particulares.

Essa tática baseia-se na construção de uma performance de identidade verídica, ou de

uma performance identitária satisfatória para os padrões culturais disponíveis aos/às

falantes. Com o processo de autenticação, chama-se a atenção para a produção de

sentidos identitários que são somente alcançados com relação a outras identidades

disponíveis nos contextos culturais locais. Bucholtz e Hall (2004:498) indicam que “o

termo autenticação enfatiza os processos através dos quais a autenticidade é

construída, imposta ou percebida”.

Nessa perspectiva, não se considera a autenticidade como uma característica

inerente aos membros de determinados grupos identitários. A autenticidade é

construída com base na apropriação de recursos lingüísticos e práticas simbólicas

disponíveis em contextos socioculturais que são ideologicamente associados a grupos

sociais, o que, por conseguinte, serve como forma de validação da performance de

identidade de um indivíduo. De acordo com Bucholtz (2003), em vez de entender a

autenticidade como um objeto a ser descoberto, devemos considerá-la como o

resultado das práticas lingüísticas dos atores sociais.

Através dessa tática, os/as interagentes “enfatiza[m] as maneiras pelas quais as

identidades são discursivamente verificadas” (BUCHOLTZ & HALL, 2005:601), i.e.

como as identidades são validadas, consideradas como performances satisfatórias com

base em discursos já sedimentados sobre determinadas categorias sociais. As relações

intersubjetivas produzidas por essa tática consistem em validar uma performance

identitária através de posicionamentos, índices e orientações avaliativas a sua

encenação. Tais estratégias lingüísticas sublinham a produção de determinada

identidade com relação a outras posições de sujeito disponíveis em determinado lócus

73

sociocultural. Interagentes, com essa tática, valem-se de discursos que constroem

identidades como naturais, utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK,

1995; BUCHOLTZ, 2003) que, ao enfatizar a veracidade de uma performance, chama a

atenção para sua produção sócio-cultural. Tal essencialismo estratégico funciona como

uma baliza para a autenticação de performances identitárias ao valer-se de significados

disponíveis no senso comum sobre as identidades sociais. Com efeito, essa

naturalização das identidades é local e serve propósitos negociados no momento-a-

momento da interação.

Com a tática de autenticação, os/as participantes discursivos constroem a

autenticidade de uma identidade com base em sua performance lingüística.

Desnaturalização, pelo contrário, refere-se ao processo pelo qual uma identidade é

desestabilizada a partir de rupturas em sua performance, produzindo-a (1) como

insatisfatória para os padrões locais ou (2) como descontinua e fragmentada. Dessa

forma, a tática de desnaturalização chama a atenção dos/as interagentes para aspectos

considerados problemáticos e/ou falsos da performance encenada (BUCHOLTZ &

HALL, 2005:602). Em outras palavras, com a tática de desnaturalização transforma-se

um indivíduo em um mero impostor que, ao falhar em sua performance lingüística,

desestabiliza a autenticidade de sua encenação.

Ambas essas táticas, autenticação e desnaturalização, podem ser encontradas

em um estudo elaborado por mim e por Ana Cristina Ostermann (BORBA &

OSTERMANN, 2007) no qual investigamos a manipulação do sistema gramatical de

74

gênero do português brasileiro em uma comunidade29 de travestis na Cidade do Sul.

Vejamos o excerto que segue.

Excerto 1 (BORBA & OSTERMANN, 2007:136)

Rod: e tu Thalia como é que tu definiria o travesti?=

Sandra: =OLHA AQUI Ó (.) vamo entrá no nível- num nível assim (.)

pra tu se enquadrá com a gente não é O tra[ves]ti. A travesti.

Rod: [ok]

Essa interação ocorreu logo no início do trabalho de campo com a ONG

Liberdade e envolvia um dos pesquisadores, Thalia e Fabíola (travestis ativistas da

ONG). Nesse momento da entrevista, Sandra (a advogada da Liberdade participante

das intervenções aqui investigadas) nos interrompe ao perceber que eu me referia às

travestis no masculino. Utilizando o tipo menos preferido de reparo (SCHEGLOFF,

JEFFERSON & SACKS, 1977), a correção iniciada e executada pelo outro, Sandra

corrige tal forma de endereçamento dizendo que eu deveria utilizar a forma “a travesti”,

por elas preferida. A advogada faz essa correção afirmando que se eu quisesse “me

enquadrar com elas”, i.e., fazer parte do grupo, eu deveria utilizar a forma êmica de

referência que sublinha a aquisição de um corpo e atributos simbólicos femininos. Essa

pode ser considerada como uma tática de autenticação da identidade travesti na qual

29 Utilizo o termo “comunidade” não como uma forma essencialista de enfatizar traços identitários comuns a todas as travestis presentes no estudo. Tal termo é utilizado pelas travestis por questões relativas ao seu engajamento político na causa LGBTTT da Cidade do Sul. Ecôo esse uso neste texto.

75

Sandra, ao utilizar o feminino gramatical, enfatiza a produção do gênero das travestis

ao subverter as determinações gramaticais do substantivo que se refere ao grupo.

No entanto, a utilização do feminino gramatical não é consistente nas

performances lingüísticas das travestis da Cidade do Sul. Como Borba e Ostermann

(2007) argumentam, o masculino gramatical também é utilizado de forma marcada em

contextos discursivos específicos, o que desestabiliza (desnaturaliza) a performance

feminina das travestis. Num desses contextos, a título de exemplo, as falantes travestis

referem-se a outras travestis no masculino como forma de negar sua participação na

esfera da feminilidade quando tais travestis são descritas em atividades escusas e/ou

violentas (BORBA & OSTERMANN, 2007:139-140). Destarte, a referência no masculino

configura uma ruptura na percepção da performance de feminilidade de determinadas

travestis das quais as falantes se distanciam através do sistema de gênero gramatical.

3.1.3. Autorização e deslegitimação

O último par de táticas, autorização e deslegitimação, considera os aspectos

institucionais e ideológicos dos processos de produção de identidade e suas relações

com estruturas de poder. Tais táticas constroem relações intersubjetivas de autoridade

e ilegitimidade na tentativa de legitimar uma performance através de poder institucional

ou de negar sua legitimidade através de resistência a autenticidade de sua

performance. Em outras palavras, “autorização refere-se ao uso do poder [institucional]

76

para legitimar certas identidades sociais como culturalmente inteligíveis ao passo que

deslegitimação refere-se à negação de tal validação” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:503).

Bucholtz e Hall (2005) sugerem que

a primeira parte do par, autorização, envolve a afirmação ou imposição de uma identidade através de estruturas de poder institucionalizado e ideologias [...]. Em contra partida, deslegitimação refere-se às maneiras nas quais as identidades são negadas, censuradas ou simplesmente ignoradas por essas estruturas. (p.603)

Essas táticas funcionam em relação muito próxima às táticas de autenticação e

desnaturalização, pois questões de legitimidade são freqüentemente ligadas a questões

de autenticidade. Ou seja, uma performance de identidade que pretende passar por

autêntica deve, inevitavelmente, adotar práticas que legitimem sua encenação. Um bom

exemplo dessas táticas pode ser encontrado na discussão do excerto 1 acima. Após ter

me referido a Thalia utilizando o masculino gramatical, Sandra me interpela e diz, em

tom não muito amigável, que para eu ser aceito no grupo, como pesquisador, eu

deveria utilizar as formas lingüísticas preferidas entre as travestis. Note que Sandra,

nesse contexto, é a representante legal da ONG Liberdade, por ser sua advogada, e

assim, possui poder institucional para legitimar a participação de indivíduos nesse

grupo. Eu, como pesquisador iniciante no universo trans, me encontrava em uma

posição bastante frágil: não conhecia suficientemente as práticas da ONG para ser ali

incluído e não possuía poder institucional em relação à Sandra. Porém, a advogada faz

uso de sua posição na hierarquia da ONG para deixar claro como a identidade travesti

deve ser lingüisticamente construída: através do feminino gramatical. Com isso, Sandra

77

autoriza institucionalmente a performance de uma identidade feminina elaborada pelas

travestis presentes nesse evento e, ao mesmo tempo, deslegitima minha participação

no grupo, enfatizando minha posição (naquele momento ainda) periférica.

No que se refere às intervenções, Sandra e Márcia têm, nos territórios de

prostituição travesti da Cidade do Sul, capital institucional, por serem representantes de

uma ONG, e capital de gênero (BENTO, 2006), por serem, segundo as colaboradoras

deste estudo, portadoras “naturais” da feminilidade que as travestis tanto ambicionam.

Assim, nesse contexto, as interventoras são vistas como representantes do poder

(institucional e de gênero) o que pode influenciar o design das interações, no que se

refere à assimetria em seu status interacional, e os processos de construção de

relações intersubjetivas entre as interlocutoras desses eventos.

Faz-se necessário afirmar que as táticas são acima apresentadas

separadamente como uma estratégia retórica para exemplificar as relações

intersubjetivas por elas construídas. No entanto, em situações reais de fala, elas podem

ocorrer isoladamente ou em conjunto no desenvolvimento de projetos identitários

emergentes de uma determinada interação. Funcionando em conjunto, combinando-se,

interpenetrando-se e modificando-se no decorrer de um evento de fala, as relações

produzidas pelas táticas de intersubjetividade indicam que as identidades estão

constantemente em devir; sempre dinâmicas e flexíveis – maleáveis às necessidades

interacionais construídas em interações nas quais diferentes alteridades são postas em

fricção.

78

3.2 Ferramentas para interpretação das táticas

As táticas de intersubjetividade, assim como as identidades sociais, não são

propriedades das interações ou dos indivíduos nelas envolvidos. São, sim, resultantes

do olhar lançado pelo/a analista sobre as interações. Dessa forma, as táticas

configuram uma possível interpretação das construções e reconstruções das posições

sociais adotadas por interagentes em seu engajamento em um determinado evento

discursivo. Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) sugerem que a interpretação das táticas

deve ser calcada em mecanismos propriamente lingüísticos utilizados no momento-a-

momento de uma dada interação. Em outras palavras, as táticas podem ser produzidas

através de uma multiplicidade de recursos lingüísticos disponíveis culturalmente aos

quais o/a analista recorre na tentativa de construir uma possível compreensão das

relações confeccionadas entre interagentes. Para os propósitos deste estudo, ponho

sob o foco de minha atenção os seguintes dispositivos analíticos: enquadre

(GOFFMANN, 1974, 2002), posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e

alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002). Portanto, é com base na análise

das dinâmicas interacionais produzidas pelos recursos lingüísticos recém listados que

minha interpretação das fricções de identidades construídas entre travestis e ativistas

da ONG Liberdade se dará. Essas fricções, a meu ver, trazem à tona uma pluralidade

de negociações, construções e reconstruções de posições de sujeito que podem ser

debitadas às táticas de intersubjetividade co-produzidas entre interventoras e travestis.

79

A seguir, trago um detalhamento das ferramentas que me auxiliarão a interpretar a

construção das táticas entre as participantes dos eventos aqui estudados.

3.2.1. Enquadre

Segundo Goffman (1974/2002), o enquadre refere-se à construção da

metamensagem de um determinado enunciado a partir da qual inferimos o sentido de

um enunciado e/ou de uma interação. Em outras palavras, o conceito de enquadre diz

respeito ao tipo de conversa que está se desenvolvendo em um determinado momento

com interlocutores/as específicos/as: é essa interação uma palestra, uma consulta

médica, uma aula, uma entrevista de emprego, uma venda por telemarketing, uma

fofoca, uma descontraída conversa entre amigos/as íntimos/as ou uma intervenção de

prevenção de DST/AIDS? Ou, como colocam Tannen e Wallat (1987/2002), “a noção

[...] de enquadre se refere à definição do que está acontecendo na interação, sem a

qual nenhuma elocução (ou movimento ou gesto) poderia ser interpretada” (p.188).

Dessa forma, sempre recorremos à nossa interpretação do enquadre de determinada

interação para que possamos dela participar efetivamente. Os enquadres de uma

determinada interação são constantemente negociados durante seu desenvolvimento.

Assim, em uma única interação podemos encontrar uma diversidade de diferentes

enquadres. É importante observar que as mudanças de enquadre não acontecem de

súbito, mas são sinalizadas por uma multiplicidade de pistas que possibilitam que os/as

80

interlocutores/as reconheçam e possam orientar-se à pergunta “o que está acontecendo

aqui e agora? Para responder a essa pergunta, os/as interagentes valem-se de pistas

de contextualização (GUMPERZ, 2002) que sinalizam como determinado embate

discursivo deve ser interpretado por aqueles/as nele envolvidos/as. Tais pistas podem

ser lingüísticas (como por exemplo, a entonação, os termos de endereçamento, trocas

de códigos, organização de turnos de fala, etc) ou para-lingüísticas (como as alterações

proxêmicas e de postura (ERICKSON & SHULTZ, 2002), um olhar, um movimento com

a cabeça, etc). Muitas vezes essas pistas acontecem em conjunto e auxiliam os/as

participantes de uma interação a entender a interação com a qual estão engajados.

Goffman (2002) indica que as mudanças de enquadre engendram um minucioso

processo de mudança de posicionamento entre interlocutores/as. Podemos recorrer ao

excerto 1 anteriormente analisado para ilustrar esse ponto. Até a interrupção de

Sandra, Thalia e eu havíamos negociado um enquadre de entrevista no qual eu, como

pesquisador fazia perguntas e ela as respondia (ou não) com o intuito de elaborar uma

pesquisa sobre as travestis da ONG Liberdade. Tal enquadre desenrolava-se

facilmente até o momento em que eu utilizo o masculino gramatical ao me referir às

travestis. Nesse momento, Sandra levanta-se de sua mesa e se aproxima dos sofás

onde a entrevista era realizada (alterações proxêmicas). Ao realizar esses movimentos,

a advogada da ONG Liberdade fala, em volume elevado e tom nada amigável (pistas

lingüísticas), e indica como eu deveria me referir às travestis. Tal enquadre foi

interpretado por mim como uma ameaça (ou chantagem) e eu, ainda estranho às

práticas da instituição, indico que entendi a mensagem, enquanto Sandra de pé na

minha frente, colocava as mãos na cintura. Minha interpretação de tal mensagem como

ameaça está relacionada aos movimentos corporais de Sandra e ao modo que ela

81

enquadra sua mensagem, indicando meu status de estrangeiro no universo social da

ONG. As mudanças de enquadre engendram mudanças na interpretação das

mensagens de uma interação e de posicionamentos entre os/as interagentes. Como

podemos inferir, em uma interação podem haver múltiplos enquadres embutidos

(GOFFMAN, 1974) o que está relacionado à negociação de uma miríade de

relacionamentos identitários entre interlocutores/as.

No que se refere às análises das intervenções, o conceito de enquadre é

utilizado para entender a produção dos sentidos negociados entre interventoras e

travestis e, de forma mais operacional, entender a estrutura seqüencial dessas. Ale´m

disso, tal conceito nos auxiliará a entender a estrutura organizacional dos turnos de fala

das participantes do evento e sua relação, importante, na produção de táticas de

intersubjetividade. Sendo um projeto ligado a uma instituição, as intervenções são

estruturadas com base na tarefa de entrega de preservativos às travestis. No entanto,

os enquadres dessas interações são dinâmicos e as mudanças de enquadre (de

conversa institucional à conversa informal cotidiana) possibilitam a construção

discursiva de uma plêiade de identidades e relações identitárias entre as interagentes.

Essas mudanças de enquadre são elaboradas, durante as intervenções, por meio de

posicionamentos discursivos e alternância de códigos que alocam as falantes a grupos

identitários específicos.

82

3.2.2. Posicionamentos discursivos

Outro importante conceito para o desenvolvimento de minha interpretação das

táticas de intersubjetividade é o de posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ,

1990). Segundo autora e autor, “o posicionamento é o processo discursivo através do

qual as identidades são alocadas nas conversas” (DAVIES & HARRÉ, 1990:48) com

base no engajamento com um ou vários discursos. Desse modo, os discursos (de

gênero, de classe, de religião, de sexualidade, por exemplo) nos fornecem posições

para que delas nos apropriemos. Ao interagir, temos a nossa disposição uma plêiade

de posições-de-sujeito a serem utilizadas na negociação de objetivos identitários dentro

de determinadas interações. É por meio dos discursos que utilizamos em nossas

interações cotidianas que nos (re)constituímos e (re)constituímos nossas/os

interlocutoras/es como determinados tipos de pessoas. Assim, ao interagir os/as

falantes podem “modificar quem são” (WORTHAM, 2001:.xi), pois, com os discursos

que utilizam, têm oportunidade de “reforçar e às vezes recriar o tipo de pessoas que

são” (ibid.). Com o acesso a variados discursos, os/as interagentes podem construir ou

transformar sua identidade porque ao interagir negociam certas posições que os/as

auxiliam a “tornar-se certos tipos de pessoas” (WORTHAM, 2001:9). Portanto,

investigar os posicionamentos assumidos por falantes nos dá acesso aos micro-

detalhes da dinâmica identidade/alteridade, ou seja, a como as identidades são

construídas no momento-a-momento da interação quando transitamos por diferentes

discursos de identidades.

83

Para entender como os posicionamentos discursivos adotados possibilitam que

nossas identidades estejam constantemente em devir – continuamente cambiantes e

temporárias – acredito que seja necessário considerar os enunciados utilizados para

ocupar certos lugares na interação como performativos. Idealizada pelo filósofo da

linguagem J. L. Austin (1976), a teoria dos atos de fala indica que ao falar não só

descrevemos o mundo, mas sobre ele agimos. Enunciados como “Eu vos declaro

marido e mulher”, quando proferidos por indivíduos autorizados, não caracterizam a

realidade, mas a instauram. Dessa forma, enunciados não são meramente descritivos;

eles são atos que inauguram novas configurações da realidade. Utilizando insights

dessa teoria para descrever como os gêneros sociais (e, de modo geral, as identidades)

são produtos das performances locais dos indivíduos, a filósofa Judith Butler, em sua

obra Problemas de Gênero: Feminismo e a subversão da identidade (1990/2003),

afirma que “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos

no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo

para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (p.59). É,

assim, com base na repetição de certos atos (o discurso aí incluído) que criamos

nossas identidades. Esses atos são, para Butler, performativos, “pois a essência ou a

identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por

signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 1990/2003:194).

Em que pese à ocupação de lugares específicos em discursos (posicionamento),

a teoria da performatividade nos possibilita entender o caráter processual das

identidades sociais. Como mencionado acima, ao interagir nos apresentamos como

certos tipos de indivíduos por meio dos posicionamentos que assumimos dentro dos

discursos aos quais temos acesso. Os posicionamentos são performances. A ocupação

84

de certos lugares nos força a fazer uso de determinados enunciados que possam

produzir o efeito de uma identidade particular, trazida à tona localmente em relação às

necessidades interacionais construídas pelos/as interlocutores/as.

3.2.3 Alternância de códigos

Com o propósito de enriquecer a análise das táticas de intersubjetividade

construídas entre travestis e interventoras, lanço mão da interpretação das trocas de

códigos efetuadas durante os embates discursivos aqui sob análise. Em 1972, Jan-

Petter Blom e John J. Gumperz publicaram o artigo “O significado social da estrutura

lingüística: alternância de códigos na Noruega”, reeditado, no Brasil, por Branca Ribeiro

e Pedro Garcez no seu livro “Sociolingüística Interacional” (RIBEIRO & GARCEZ,

2002). Nesse clássico dos estudos sociolingüísticos, Blom e Gumperz investigam a

troca de códigos efetuada por moradores/as de uma pequena cidade no extremo norte

da Noruega. Os/as habitantes desse lugar têm em seu repertório lingüístico dois

códigos cujo status sociolingüístico difere grandemente: o ranamal, referente da vida

local considerada, pelos/as falantes, como parte integral de sua história e identidade

regional; e o bokmal, a língua considerada oficial pela lei norueguesa. Segundo os

autores, todos/as os/as habitantes dessa cidade são falantes competentes das duas

variedades lingüísticas e, dessa forma, “em suas interações diárias, eles [sic] optam

entre as duas de acordo com a situação” (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002:49). Assim, é

85

no dia-a-dia que surgem várias alternâncias entre esses códigos (i.e., da língua padrão

ao dialeto e vice-versa) que são impingidas por significados sociais específicos à cada

um dos códigos. Por exemplo, Blom e Gumperz observam que, em sala de aula,

quando dirigindo uma palestra ou expondo um assunto, os professores e as

professoras fazem uso do bokmal, quando, no entanto, propõem que seus alunos e

suas alunas engajem-se em atividades mais íntimas, como trabalhos em grupos ou

discussões sobre algum assunto que lhes é familiar, o dialeto local é a escolha feita.

Blom e Gumperz (1972/2002) sugerem, então, que as alternâncias entre um

código e outro são socialmente condicionadas e dependem (1) dos significados que

os/as falantes pretendem construir e (2) das identidades que objetivam assumir em

determinadas situações sociais. Em outras palavras, as alternativas lingüísticas de um

repertório simbolizam identidades ligadas a essas variedades que podem ser

assumidas pelos/as falantes no decorrer de suas interações diárias. Esse fato é

importante para que possamos entender as trocas de códigos elaboradas por travestis

e interventoras. O repertório lingüístico das interventoras e das travestis é relativamente

complexo. Sandra e Márcia são membras de camadas econômicas médias e tiveram

amplo acesso à escolarização, o que nos permite dizer que as interventoras são

falantes nativas da variedade prestigiosa do português brasileiro. As travestis, por outro

lado, são, em sua grande maioria, provenientes de camadas populares, com acesso à

escola relativamente escasso, o que nos leva a inferir que elas são falantes de alguma

variedade de português não-padrão. No entanto, o que é crucial para este estudo é o

fato de que as travestis possuem, em seu repertório lingüístico, um tipo de linguagem

cifrada bastante peculiar. Tal linguagem é chamada, entre as informantes, de bajubá ou

de bate-bate, esse último sendo o termo mais comum entre as travestis participantes

86

desta investigação, moradoras de uma cidade do sul do país. O bate-bate (ou

simplesmente bate) é composto por termos de algumas línguas africanas,

principalmente o ioruba-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português.30

Ademais, há grande freqüência de termos metonímicos e palavras estrangeiras

foneticamente adaptadas ao português (ver, SILVA 1993; ASTRAL,1996; KULICK 1998;

BENEDETTI, 2005; PELÚCIO 2005a, 2007).31 Durante os primeiros meses de trabalho

de campo, tive algumas dificuldades de comunicação com minhas informantes, pois não

era um falante proficiente do bate. Pude também notar que, nesse período inicial do

trabalho, algumas travestis, quando queriam conversar entre si algo que, na opinião

delas, eu, o pesquisador, não poderia saber, faziam uso radical do bate e, como uma

tática de distinção (BUCHOLTZ & HALL, 2004), enfatizavam suas diferenças culturais,

lingüísticas e sexuais impelindo-me a assumir meu lugar de estrangeiro em sua

comunidade. Porém, com o tempo, fui aprendendo com minhas informantes e já posso

ser considerado, na comunidade, um falante hábil dessa linguagem cifrada.

O que é importante observar é que as variedades lingüísticas presentes nas

interações entre travestis e interventoras têm significados sociais bastante específicos.

Mais precisamente, o português falado pelas representantes da ONG Liberdade é a

língua da instituição, através da qual as informações sobre as reuniões da ONG e sobre

30 Alguns enunciados comuns utilizados entre minhas informantes são: aqüenda os alibãn, mona! (olha os policias!), aqüenda o oxozinho na neca odara (coloca o preservativo no pênis ereto). Vê-se que a estrutura gramatical dos enunciados segue a do português, porém os componentes lexicais são em sua maioria derivações de línguas africanas ligadas aos rituais de religiões afro-brasileiras. 31 São exemplos os termos bafão, proveniente do francês bas-fond, que se refere, no bate, a eventos extraordinários, fora da rotina.; e buceta, metonímia utilizada, com referência ao corpo feminino, a mulheres. É importante notar que o bate é compartilhado por todas as travestis colaboradoras desta pesquisa. Ademais, tal linguagem cifrada parece ser falada em quase todas as comunidades de travestis no território brasileiro, marcada, obviamente, por variações regionais. Alguns grupos de homossexuais masculinos também fazem uso dessa linguagem cifrada que é freqüentemente creditada às travestis. Para conhecer um pouco do bate, ver Aurélia: a dicionária da língua afiada (VIP & LIBI, 2006), que, embora não sendo um documento elaborado com preocupações científicas, oferece uma bem-humorada descrição de alguns termos que compõem o bate.

87

a provisão de preservativos e saches de gel lubrificante são comumente dadas. A

variedade de português não padrão falada tanto por travestis quanto por interventoras é

utilizada quando da troca de enquadre nas intervenções. Em outras palavras, quando o

enquadre de conversa institucional é substituído por um enquadre de conversa

cotidiana e informal o bate parece ser a variedade preferida pelas interagentes. Tal

variedade simboliza a identidade travesti, por ser indicialmente ligada a essa

comunidade, e seu lugar social. É importante enfatizar que Sandra e Márcia são

falantes muito proficientes dessa linguagem. Essas são as variedades lingüísticas que

as participantes dos eventos discursivos aqui estudados têm a sua disposição e que

são utilizadas na construção de relações intersubjetivas durante as intervenções.

Mais algumas palavras sobre alternância de códigos se fazem necessárias. Em

seu artigo, Blom e Gumperz (1972/2002) fazem a distinção entre dois tipos de

alternância de código: a situacional e a metafórica. Na primeira, a troca de códigos

redefine a situação social em curso e tal redefinição impele os/as participantes a uma

mudança em seu status de participação interacional, por exemplo, quando em uma

reunião de negócios cessa o evento exposição de fatos e começa o evento discussão

sobre o curso de ação. É esse tipo de alternância de código que subjaz às mudanças

de enquadre durante as intervenções (de enquadre de intervenção para enquadre de

conversa informal cotidiana). Na segunda, a alternância enriquece a situação social

permitindo alusões a uma plêiade de relações sociais entre falantes dentro de um

mesmo evento discursivo. Observe que a troca situacional de códigos modifica a

situação social em curso. Já a metafórica “está relacionada a determinados tópicos e

assuntos, e não a mudanças na situação social. As situações em questão permitem que

sejam postas em prática duas ou mais relações entre o mesmo conjunto de indivíduos”

88

(BLOM & GUMPERZ, 1972/2002: 70). Dessa forma, os diferentes tipos de alternância

de código podem ser importantes ferramentas para a construção das táticas de

intersubjetividade, que constituem o eixo analítico principal deste trabalho. Num

primeiro plano, a alternância situacional, ao redefinir a situação social, permite que

outros enquadres, além do típico enquadre de intervenção, venham á tona, o que

possibilita, num segundo plano, a redefinição do status interacional e das identidades

das participantes dos eventos.

O eixo principal das análises que apresento no capítulo que segue é constituído

pelo modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) intitulado táticas de

intersubjetividade. As relações intersubjetivas motivadas pelas táticas de

intersubjetividade são produto da minha interpretação particular das interações. Essa

interpretação é elaborada com base na análise dos micro-detalhes das intervenções por

meio dos quais as táticas são alcançadas. As ferramentas de análise discutidas acima

possibilitam tal interpretação.

89

4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS,

TRAVESTIS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA

PREVENÇÃO DE DST/AIDS

Dedico-me, neste capítulo, às análises das intervenções gravadas durante o

trabalho em parceria com a ONG Liberdade. Primeiramente, descrevo, em linhas

gerais, a estrutura seqüencial das interações entre travestis e interventoras durante seu

trabalho de prevenção de DST/AIDS para, a seguir, debruçar-me sobre a negociação

de identidades das participantes dos eventos discursivos aqui analisados. Como

veremos, as intervenções são comumente estruturadas com base na identidade

institucional de Sandra e Márcia. No entanto, com a dinamicidade dos enquadres

interacionais (GOFFMAN, 1994/2002; TANNEN & WALLAT, 1987/2002) das

intervenções, as interlocutoras (re)criam identidades múltiplas com base na construção

e consolidação de relações intersubjetivas que enfatizam o caráter processual e

multifacetado das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003).

90

4.1. O enquadre “intervenção”: institucionalidade d as interações

Vejamos o excerto que segue.

Excerto 2 [INT 230903]

1 Sandra: ((aproxima-se e pára o carro))

2 Márcia: tudo bom?

3 Sandra: e aí? Tudo bom?=

4 Profana: =tu::do::=

5 Sandra: tem reunião amanhã na Liberdade=

6 Profana: =sim=

7 Márcia: =tem reunião e tem gel [tam]bém amanhã ta::?

8 Profana: [ta]

9 Márcia: uma sacolinha*

10Profana: brigada amor

11Sandra: >beijo beijo<

12Márcia: tchau

13Profana: obrigada

14Sandra: ((acelera o carro))

Tipicamente as interações estruturadas durante a entrega de preservativos são

dinâmicas, envolvendo poucas e rápidas trocas de turnos de fala. Segundo Sandra, as

abordagens não podem demorar muito, pois “não podemos chegar muito tarde em

casa. Temos filhos, casa, família pra cuidar”. Faz-se necessário retomar o fato de que

as intervenções acontecem à noite. A rigor, a equipe da Liberdade inicia suas

atividades aproximadamente às 19 horas e, depois de percorrerem todas as áreas de

91

prostituição travesti da Cidade do Sul, termina a distribuição de preservativos não antes

do inicio da madrugada. Durante as abordagens, Sandra e Márcia tentam convencer

suas interlocutoras a participar das reuniões da Liberdade que ocorrem às quartas-

feiras à tarde (linha 7 do excerto acima).

Como podemos verificar, logo após Sandra aproximar-se de uma travesti, inicia-

se a troca de turnos com informações fáticas sobre seu bem-estar o que é seguido por

informações sobre a reunião que acontecerá no dia seguinte. Vê-se que essa interação

organiza-se com base em pares adjacentes (SACKS, SCHEGLOFF & JEFFERSON,

1974) dos tipos cumprimento-cumprimento (L.2, 3 e 4) , convite para a reunião-

aceite/recusa (L. 5 e 6), informação sobre a reunião-indicação sobre a compreensão

dessa informação (L. 7 e 8), despedida-despedida (L. 11, 12 e 13). Os turnos são

engatados o que impinge à interação um ritmo rápido e dinâmico. A entrega dos

preservativos não é comumente verbalizada. Márcia, quando a travesti aproxima-se da

janela do carro, somente estende a mão e entrega as camisinhas (ação indicada por *

na transcrição) para, logo após, tomar notas no relatório que será enviado às agências

que financiam as intervenções.

Há um alto grau de assimetria nessas interações. Como o exemplo acima ilustra,

Sandra e Márcia parecem ser responsáveis pela introdução dos tópicos da conversa,

direcionando, assim, seu desenvolvimento. Isso pode ser creditado a seu status nesses

eventos. Como representantes de uma ONG, as interventoras são, nos territórios de

prostituição travesti, institucionalmente empoderadas. Além disso, há as variantes de

classe social, profissão e gênero que as constroem como diametralmente diferentes das

travestis com quem interagem. Tanto Sandra quanto Márcia têm se construído como

representantes de categorias sociais que possuem prestígio na sociedade brasileira

92

contemporânea: ambas têm filhos/as, têm nível de ensino superior, heterossexuais,

brancas etc. Esses fatos podem ilustrar as relações de poder construídas entre as

interventoras e suas interlocutoras transgênero, que não desfrutam de status na

sociedade abrangente.

O excerto 2 exemplifica o enquadre (GOFFMAN, 1974, 2002) típico das

interações produzidas durante as intervenções.32 Esse enquadre é sinalizado por uma

redundância de pistas de contextualização (ERICKSON & SHULTZ,2002) que envolve

a seqüencialidade dos turnos de fala, a organização dos pares adjacentes e a

orientação a uma tarefa institucional que indicam a posição institucional das

interventoras que, como vimos, interagem com as travestis para entregar preservativos

e para divulgar os projetos da ONG Liberdade, tarefas que motivam e estruturam a

seqüencialidade das ações nessas interações (DREW & HERITAGE, 1992). No

entanto, nem todas as interações são exclusivamente enquadradas dessa forma. Há

interações durante as quais outros enquadres são negociados (GAVRUSEVA, 1995) e,

assim, outras relações intersubjetivas construídas. Acredito que as interações

enquadradas com base na entrega dos preservativos acontecem somente com as

travestis que não são participantes ativas dos grupos da Liberdade, com quem as

interventoras não têm muita intimidade. Com travestis mais ativas nos projetos da ONG,

Sandra e Márcia costumam engajar-se em interações mais longas nas quais têm a

oportunidade de desempenhar performances de outras identidades, deixando sua

identidade institucional em segundo plano.

32 Outros exemplos desse tipo de enquadramento são oferecidos no Anexo 1.

93

4.2 Quando o tradicional defronta-se com o não-trad icional: a

construção discursiva de identidades entre interven toras e

travestis

A seguir trago as análises de intervenções nas quais outras identidades, além da

identidade institucional das interventoras, são co-construídas. Como veremos, essas

identidades são produzidas com base na negociação de enquadres diferentes do

enquadre de intervenção no qual somente a entrega dos preservativos e as

informações sobre as reuniões da Liberdade são produzidas (cf. excerto 2). Argumento

que a identidade institucional das interventoras33, ao se defrontar com as identidades

multifacetadas das travestis (BORBA & OSTERMANN, 2007; BENEDETTI, 2005;

PELÚCIO, 2005a, 2005b; JAYME, 2001; KULICK, 1998; PIRANI, 1997; OLIVEIRA,

1997; SILVA, 1996, 1993), é temporariamente deixada em suspenso e outras

possibilidades identitárias são encenadas, produzidas por meio das táticas de

intersubjetividade descritas por Bucholtz e Hall (2004; 2005). As interventoras e as

travestis assumem posicionamentos que produzem o efeito de identidades

fragmentadas, fluidas e contraditórias ao sobrepor enunciados ligados à identidade

travesti, à identidade de profissional do sexo e à identidade masculina. Esse processo

de fricção de identidades/alteridades é relacional e vale tanto para interventoras como

33 O que chamo de identidade institucional das interventoras faz parte do leque de identidades que compõe o repertório de identidades habitualizadas de Sandra e Márcia. Tal identidade não é nem uma nem coerente embora tenda a ser mais estável que aquelas encenadas temporariamente durante as intervenções.

94

para travestis. As interventoras, ao se defrontarem com a outridade travesti, parecem

ser forçadas a suspender suas identidades tradicionais e acionam discursivamente

outras identidades através dos posicionamentos co-construídos com suas

interlocutoras. As travestis, por sua vez, em contato com as construções de identidades

tradicionais de Sandra e Márcia, posicionam-se em discursos que as constroem (1)

como travestis e (2) como participantes de categorias identitárias convencionalmente

consideradas tradicionais, i.e., integrantes de discursos hegemônicos e positivamente

valorados com relação à classe social, sexualidade, profissão e gênero. Assim, ao

engajarem-se nesse embate discursivo, as interlocutoras constroem seu repertório de

identidades tendo como ponto de referência a outridade das interagentes (FABRICIO &

MOITA LOPES, 2004).

A partir deste momento, veremos uma grande multiplicidade de performances

identitárias (BUTLER, 2003) sendo encenadas por interventoras e travestis e

exacerbam os processos de negociação, re-negociação e administração das diferenças

(percebidas ou construídas) entre as características de seus feixes identitários (MOITA

LOPES, 2003). Nas seções que seguem, apresento minha interpretação das dinâmicas

discursivo-identitárias confeccionadas no momento-a-momento das intervenções cuja

força motriz é a tensão entre as alteridades das participantes dos eventos de fala

estudados. O atrito entre as identidades das interventoras e aquelas das travestis com

quem interagem parece motivar uma interligação das fronteiras que demarcam

diferentes grupos identitários; fronteiras essas que, como veremos, “a fala frivolamente

encaixa, insere e mistura” (GOFFMAN, 1974/2002:146).

95

4.2.1 Semelhança suficiente: adequação às travestis

O processo de adequação produzido por táticas de intersubjetividade envolve o

apagamento de características potencialmente discordantes entre interagentes em

favor de semelhanças percebidas ou construídas que são tomadas como mais

relevantes para os propósitos identitários localmente construídos (BUCHOLTZ & HALL,

2003). No caso em tela, essas semelhanças são discursivamente construídas através

de índices lingüísticos (OCHS, 1992; SILVERSTEIN, 1985) que mobilizam

posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e alocam as interlocutoras em

categorias pertencentes ao universo da prostituição travesti. Esses índices são

mecanismos sociolingüísticos que produzem ligações entre formas lingüísticas e grupos

sociais específicos. Tais ligações são produzidas através da repetição de determinadas

formas lingüísticas que passam a ser percebidas como “naturalmente” relacionadas a

esses grupos.

No excerto 3, vemos Sandra construir duas identidades diferentes: a de travesti e

a de cliente de travesti.34 A interventora desempenha performances de identidades

díspares em poucos turnos da interação.

34 Os recortes dos excertos utilizados no decorrer do texto foram feitos com base nas táticas produzidas em diferentes interações. Como as táticas podem ocorrer em conjunto, ou seja, várias durante a mesma interação, com o intuito de facilitar a leitura e a interpretação dos dados, apresento no texto recortes das transcrições.

96

Excerto 3 [INT071003]

18 Daniela: ai guria peguei um gripão que Deus o livre. e esse

19 vento maldito ainda pra [ajudá::

20 Sandra: [vai dá chuva=

21 Daniela: =não vai nada

22 Sandra: oi princesa

23 Karla: vai tê reunião [amanhã?

24 Márcia: [tudo bom?*

25 Sandra: tem reunião amanhã.

26 Márcia: amanhã tem.

27 (0,7)

28 Sandra: vamo se aqüendá tudo lá.

29 (0,8)

30 Daniela: vamo aqüendá o baco lá também?=

31 Sandra: =também.

32 Daniela: @@@@@

33 Márcia: ó uma sacolinha pra colocá o lixo.

34 Karla: ai arrasô!=

35 Sandra: =isso ai se chama:: profissional educada. jogue o

36 lixo no [lixo.

Após o típico enquadre de intervenção ter sido estabelecido, na linha 18, Daniela

introduz outro enquadre, o de conversa cotidiana, o que possibilita a negociação

discursiva de identidades que extrapolam a institucionalidade das interventoras nesse

contexto. Esse novo enquadre é contextualizado (GUMPERZ, 1982/2002) pelo termo

de referência “guria”, que, na região sul do país, é associado à intimidade e à igualdade

do status interacional. O termo de endereçamento “guria” configura uma troca

situacional de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002) no sentido de que ao ser

97

proferido instaura (1) um novo enquadre e (2) uma nova relação social entre

interventoras e travesti. Na linha 22, Sandra, ao notar a aproximação de Karla, a

cumprimenta utilizando um enunciado que, segundo minhas informantes, é típico de

seus clientes, “oi princesa”, configurando, assim, um índice dessa identidade e

posicionando a interventora nesse discurso de identidade. Dessa forma, Sandra

desencadeia uma performance de cliente de travesti ao utilizar um posicionamento que

as travestis reconhecem como pertencente a essa categoria.35

Karla re-introduz, ao perguntar se “vai ter reunião amanhã” (L.23), o enquadre de

intervenção. Contudo, essa intervenção já havia sido re-enquadrada (L.18) o que

possibilita a negociação de variadas relações intersubjetivas, além da relação

institucional típica das intervenções. Isso pode ser verificado na linha 28 quando Sandra

efetua uma alternância metafórica de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002)

utilizando a linguagem cifrada das travestis, o bajubá36, construindo o que Bucholtz e

Hall (2004:495) denominam semelhança suficiente. Ao fazer uso do bajubá, Sandra

parece diminuir suas diferenças identitárias ao construir-se como semelhante às

travestis com quem interage. Esse processo de apagamento de características

ideologicamente discordantes pode ser considerado como uma tática utilizada pela

interventora na tentativa de produzir discursivamente uma performance identitária que

não destoe do contexto onde está inserida durante as intervenções. Dessa forma,

Sandra posiciona-se, ao falar “vamo se aqüendá tudo lá”, como travesti.

35 Não é minha intenção afirmar que há uma identidade de cliente de travesti estável e coerente. Pelo contrário, tal categoria é múltipla e fluida. As travestis desenvolveram um leque de termos para se referir aos seus clientes que são categorizados de acordo com sua classe social, performance de masculinidade, atuação no intercurso sexual e aparência física. Esse leque inclui termos como ocó, bofe, maricona, vício, varejão, penoso, truque e fino (para uma discussão perspicaz sobre tais categorias ver Pelúcio, 2005b). 36 Ver capítulo anterior para uma descrição densa do repertório lingüístico que constitui o contexto sócio-cultural aqui investigado.

98

É interessante observar que aqüendar-se é um verbo com significados

polivalentes. Esse termo pode ter vários sentidos, por exemplo, encontrar-se, prestar

atenção, olhar e fazer sexo. O enunciado de Sandra (L. 28) pode ser traduzido por

vamos nos encontrar todas lá. Porém, Daniela, aproveitando-se do fato de Sandra

temporariamente suspender sua identidade institucional (construindo adequação a sua

identidade), pergunta se durante a reunião “vamo aqüendá o baco lá também?” (L. 30)

o que significa “vamos fazer sexo lá também?”. Sandra, jocosamente, afirma que sim.

Tal informalidade nesse momento da interação pode ser creditada à performance de

Sandra como travesti (L. 28), o que possibilita a re-significação das reuniões da

Liberdade como lugar erotizado.

O processo de adequação engendrado na administração das diferenças entre

interventoras e travestis, através do qual as performances identitárias habitualizadas

das mulheres que entregam preservativos às travestis são temporariamente suspensas

pelo contexto, é local e seqüencialmente construído. O vocativo “princesa” (L. 22),

utilizado por Sandra, posiciona a interventora em discursos que, segundo as travestis

colaboradoras desta pesquisa, são associados aos homens que procuram seus

serviços sexuais. Assim, uma identidade de cliente de travesti emerge de tal enunciado.

Sandra, na interação acima, igualmente produz, em poucos turnos da interação, uma

performance de travesti ao efetuar uma mudança de códigos (BLOM & GUMPERZ,

1972/2002) entre o português e a linguagem cifrada das travestis, o bajubá. Tais

recursos lingüísticos são recorrentes durante as intervenções. No excerto abaixo,

vemos Sandra e Márcia fazendo uso de vocativos e de enunciados típicos entre

travestis em uma interação com Adriana, uma travesti que, à época desta interação,

havia recentemente colocados silicone nos seios.

99

Excerto 4 [INT281003]

1 ((pára o carro))

2 Adriana: e aí Sandra?

3 Sandra: querida::[:

4 Márcia: [oi mona LUxo! Tu[do bom?

5 Adriana: [tudo bom meu anjo?/

6 Sandra: ah não que é isso?

((seis linhas omitidas))

12 Sandra: e esses óculos de intelectual?

13 Adriana: ah agora eu to intelectual. @@@

14 Sandra: olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ

15 Márcia: ai meu deus.

((treze linhas omitidas))

16 Adriana: sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às

17 quatro.

18 Sandra: ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))

19 Márcia: ta né meu bem!

20 Adriana: ah ta @@@@

21 Sandra: daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.

22 Márcia: @@[@@@@@

23 Adriana: [ah ta. obrigada Sandra.

24 Márcia: tchau. até amanhã.

25 Adriana: até amanhã.

26 Sandra: ((dá partida no carro))

Nessa interação, os trânsitos por discursos de identidades acontecem com base

em posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) que constroem as

interventoras como travestis através do uso de enunciados comuns entre as travestis

100

participantes deste estudo. Márcia, na linha 4, cumprimenta sua interlocutora com “oi

mona luxo”. Tal forma de endereçamento é comum entre as travestis da Cidade do Sul,

que, ao se encontrarem, se referem umas às outras por “mona luxo”, forma que enfatiza

o glamour de sua construção corporal e suas vestimentas. Alguns turnos mais adiante é

a vez de Sandra engajar-se na encenação de uma identidade travesti. Nessa noite,

Adriana usava somente sapatos de saltos altos e uma calcinha branca. A parte superior

de seu corpo estava parcialmente descoberta e a travesti exibia seus enormes seios à

procura de clientes. Na linha 14, a advogada da ONG Liberdade orienta-se para os

seios, recém adquiridos por Adriana, surpresa com a quantidade de silicone utilizado.

Ao afirmar “olha só os apeti da mona”, Sandra faz uso da palavra apeti que significa

seio em bajubá e pode-se dizer que, dessa forma, constrói-se como uma travesti

conhecedora dessa linguagem cifrada.

O excerto 4 nos apresenta a suspensão temporária das identidades tradicionais

das interventoras que, ao posicionarem-se em discursos ligados ao universo travesti,

encenam performances de identidades que povoam esse lócus sócio-cultural. Tal

suspensão materializa-se por meio da utilização de posicionamentos discursivos que ao

serem proferidos produzem as interventoras como participantes de grupos identitários

específicos, i.e, como travestis, como cliente de travesti e como profissional do sexo.

O uso do bajubá é talvez a ferramenta lingüística mais freqüentemente utilizada

pelas interventoras na negociação de suas posições-de-sujeito na batalha. Ao fazerem

uso desse código, as interventoras convergem no uso de linguagem (BORTONI-

RICARDO, 1984) com as travestis, construindo-se, assim, no mesmo universo social

que suas interlocutoras transgênero.

101

Vejamos mais um exemplo de interação, no qual Sandra faz uso fluente do

bajubá em sua construção identitária, posicionando-se, como veremos, no mesmo

universo lingüístico das travestis com quem interage.

Excerto 5 [INT251103]

1 ((pára o carro próximo à Mayka))

2 Sandra: VEM CÁ BELÍSSIMA

3 Mayka: oi

4 Márcia: tudo bom?

5 Sandra: escuta, amanhã tem reunião. (0,7) última reunião

6 do mês

7 Márcia: do ano*

8 Sandra: do ano. e depois não tem camisinha. só no outro

9 ano.

10 Márcia: amanhã então tem CEM camisinha e gel.

11 Sandra: amanhã vai lá e pega cem camisinha e gel e dia

12 dezessete tem a-

13 Mayka: a festa=

14 Márcia: =isso. só que vai sê às dezoito e trinta. [vai sê cedo

15 Sandra: [diz que vai

16 tê um sorteio de um BOFE belíssimo de neca [odara.

17 Mayka: [de neca odara

18 Márica: @@@@@@@@@@@[@@@@

19 Sandra: [ta bom?=

20 Mayka: =ta. brigada.

21 Márcia: tchau.

102

Essa intervenção foi gravada em novembro de 2003 quando a equipe da ONG

Liberdade se preparava para encerrar os projetos financiados pelos governos Federal e

Estadual, limitando-se, a partir de então, a questões burocráticas e administrativas a

serem resolvidas na sede da instituição. Aproveitando sua incursão nos territórios de

prostituição, Sandra e Márcia durante essa noite, avisavam as travestis sobre a última

reunião do ano e sobre a festa de lançamento de um livro que a ONG estava

organizando. No dia posterior a essa intervenção, haveria a distribuição de um grande

número de preservativos e as interventoras tentavam convencer suas interlocutoras a

participar desse encontro para abastecer seu estoque de camisinhas e gel lubrificante.

Dessa forma, a identidade institucional de Sandra e Márcia é uma constante construção

no excerto acima (L. 4-14) e emerge de sua orientação ao anúncio de questões

relativas ao funcionamento da ONG. No entanto, nas linhas 15 e 16 Sandra,

provavelmente com o intuito de convencer Mayka a participar da “última reunião do

ano”, alterna códigos, posiciona-se em discursos do bajubá e, assim, engendra a

encenação de uma identidade travesti, deixando temporariamente de lado sua

identidade institucional anteriormente construída. Afirmando que, segundo boatos,

haveria o sorteio de “um bofe belíssimo de neca odara”, Sandra parece tentar motivar

sua interlocutora travesti a participar da reunião. Esse enunciado indica que um belo

homem com grande órgão sexual estaria à disposição das travestis presentes na

reunião. Mayka orienta-se a esse fato e co-constrói o turno de Sandra através de uma

sobreposição de falas (L.17). No dia seguinte, eu participei da “ultima reunião do ano” e

pude perceber que, além de mim, mais nenhum “bofe” (belíssimo ou não) se encontrava

na sala, o que corrobora minha suspeita de que Sandra pode ter utilizado essa

informação como uma estratégia de convencimento para que Mayka participasse do

103

encontro. Na quarta-feira à tarde, Mayka entra na sala, vestindo preto e óculos escuros

(“chi-quér-ri-ma!”), quiçá, a aguardar o sorteio.

Em linhas gerais, os excertos acima ilustram a fluidez das posições de sujeito co-

construídas por interventoras e travestis possibilitada pelo re-enquadramento conjunto

da interação. Ao deixar de lado o enquadre intervenção, as ativistas da ONG Liberdade

engendram um processo de suspensão de sua identidade institucional e constroem-se

(1) como cliente de travesti e (2) como travesti, o que pode ser considerado, segundo

Bucholtz e Hall (2004; 2005), como uma tática de adequação à identidade de suas

interlocutoras. Como vimos, com base na análise de alguns micro-detalhes das

interações acima, ao fazer uso de enunciados convencionalmente ligados às travestis e

seus clientes, as interventoras re-ajustam, transformam, manipulam e recompõem suas

construções tradicionais de identidades como interventoras e mulheres de classe média

ao contexto onde a interação está inserida e às suas interlocutoras. Outro exemplo

dessas re-contextualizações identitárias que acompanham os re-enquadramentos das

intervenções é ilustrado no excerto que segue.

Excerto 6 [INT071003] 53 Sandra: como é que ta a coisa aí?

54 Daniela: quem tem cliente tem quem não tem.

55 Sandra: é né. (tem que) tê um corpitcho!=

56 Daniela: =tem que tê um um padrão né. tem que tê de tudo um

57 pouco!

58 Sandra: de tudo um pouco!=

59 Daniela: =CLARO. e eles enlouQUECE já guria.

60 Sandra: é verdade. qualqué dia desse eu vô te fazê um:[:

104

61 Daniela: [a Sheyla

62 me ligô semana passada=

63 Sandra: =a Sheyla::?=

64 Daniela: =ahã. ela e a Cláudia.

65 Sandra: ah/ manda um beijo pra ela. escuta:: a Júlia

66 vem vindo::?=

67 Daniela: =vem. fa:[:la o que tu ia falá!=

68 Sandra: [a passo bem (lento) =não. qualqué dia

69 desses vô ficá na tua esquina. tem lugar pra mim?=

70 Daniela: pode ficá. com certeza. Claro. tu sabe que sempre tem pra ti=

71 Sandra: =ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?

72 Márcia: @@[@@@

73 Daniela: [que que é?=

74 Sandra: =MEU ESPARtilho né

75 Daniela: lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=

76 Sandra: =ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as 77 mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e 78 joga os cabelos para os lados)) 79 Daniela: =ensino.

80 Márcia: @@[@@@@@@@

81 Sandra: [ah bom

82 (0,8)

83 Daniela: um jogo pra balançá TUDO que tem direito=

84 Sandra: =bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.

85 Daniela: [A:::I:[:: não pode balançá

86 Márcia: [@@@@@@@

87 Daniela: a loca!

88 Sandra: ta meu amor

89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla: vai! Tchau, beijo.

92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::

93 Daniela: ((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha

94 à vontade

105

Da linha 53 à linha 60 do excerto acima, Sandra e Daniela comentam sobre a

quantidade de clientes que circulavam na área naquela noite. À pergunta de Sandra, na

linha 54, Daniela afirma que o número de clientes é considerável para aquelas travestis

que já tem uma cartela de clientes bem consolidada. Na linha 55, a interventora sugere

que para se ter clientes, “tem que ter corpitcho”, ou seja, deve-se ser jovem e estar em

boa forma para que clientes em potencial se interessem pelas profissionais do sexo.

Nesse momento, Daniela, sublinhando a ambigüidade do corpo travesti, enfatiza que

“tem que ter de tudo um pouco”. Podemos inferir com base nesse enunciado que,

segundo a falante, para se ter clientes, no universo trans, deve-se construir um corpo

no qual a feminilidade enfatizada (CONNEL & MESSERSCHIMIDT, 2005) das travestis

é combinada com o órgão masculino (no bajubá, ‘neca’), que, segundo minhas

colaboradoras, é uma importante ferramenta para se angariar clientes na batalha.37 Em

outras palavras, recorrendo à fala de Bárbara na cena 5 (cf. capítulo 2), deve-se

construir um “corpo de Eva” mas não se livrar “da melhor parte de Adão”. Assim, de

acordo com Daniela, quando se tem “de tudo um pouco” em um só corpo, os clientes

“enlouquecem” (L.59). Após mais alguns turnos sobre uma travesti que Sandra e

Daniela conhecem (L.61-65), Daniela pede para que a interventora retome o tópico

iniciado na linha 60, mas abortado pelo assunto da ligação de Sheila.

Diante da informação de que o número de clientes no território onde Daniela

batalha pode ser bom, Sandra afirma que vai dividir com sua interlocutora seu ponto (L.

68-69)38 o que configura uma mudança de enquadre no qual a interventora indica seu

37 Ver Kulick 1997; 1998 e Benedetti, 2005 para reflexões enriquecedoras sobre o capital simbólico e sexual que circunda o ‘ter uma neca’ no mercado sexual das travestis que se prostituem. 38 Travestis como Daniela, jovens, bonitas e que investem muitos esforços econômicos e simbólicos na construção de um corpo feminino, segundo minhas informantes, conseguem fazer aproximadamente (ou

106

interesse em prostituir-se com Daniela. A travesti, reconhecendo tal mudança, alinha-se

positivamente ao novo posicionamento de Sandra e indica que a interventora tem

passagem livre nesse contexto e que, se quiser, pode prostituir-se ali. Nesse momento,

Sandra embute (GOFFMAN, 1974), na linha 71, um outro enquadre, um pedido de

sugestão, e pergunta à sua interlocutora sobre um item de vestimenta muito utilizado

entre as profissionais do sexo da Cidade do Sul. É nesse enquadre que a interventora,

sublinhando o poder da travesti nesse contexto, pede a Daniela conselhos sobre sua

possível vestimenta: “que cor o meu espartilho?” (L. 71). Daniela parece não ter

entendido o que Sandra afirmara (afinal, como uma advogada poderia pedir tal

informação?) e, na linha 73, pede à interventora que repita a pergunta. Sandra

imediatamente reitera, em volume elevado, a informação que precisa (L. 74). É aí que

Daniela ratifica a identidade recém produzida por Sandra orientando-se a essa

performance e dizendo que para ser prostituta (e ter muitos clientes) ela deve usar um

espartilho “bem vermelho, bem puta, bem tudo”.

Tendo em perspectiva a experiência de Daniela como profissional do sexo, na

linha 76, há um outro re-enquadramento na interação que, juntamente com o enquadre

de pedido de sugestão negociado nas linhas 71-75, configura uma inversão da

assimetria das intervenções. Sandra, nesse momento, sublinha o poder simbólico de

sua interlocutora e pede que ela a ensine um movimento corporal bastante utilizado

pelas travestis da cidade do sul para atrair seus clientes. Entre as linhas 76-85, Sandra

e Daniela co-constroem e consolidam a negociação de uma identidade de prostituta

para a interventora, negociação inicialmente sugerida pelo alinhamento de Sandra ao

mais de) R$ 5 mil em um bom mês na prostituição (nas zonas de batalha, nas agências, pela Internet, por telefone etc.).

107

contexto de prostituição da Daniela e aos ganhos financeiros da travesti. No Excerto 6,

Sandra e Daniela constroem conjuntamente a identidade de prostituta vislumbrada no

posicionamento de Sandra nas linhas 68 e 69. Esse é outro exemplo de semelhança

suficiente co-produzida por interventora e travestis no processo de negociação / fricção

de identidades inerente a esse contexto interacional específico.

Anteriormente, vimos Sandra construir uma performance de prostituta através da

utilização de enunciados e símbolos associados a esse grupo social. Daniela, sua

interlocutora, no excerto 6, corrobora a encenação dessa identidade ao dar conselhos

de como Sandra poderia tornar-se, corporal e simbolicamente, uma profissional do sexo

eficiente. Contudo, nem sempre os trânsitos identitários efetuados pelas interventoras

são ratificados pelas travestis com quem interagem. Vejamos o excerto 7.

Excerto 7 [INT230903]

1 Sandra: oi:::

2 Tabata: ((de longe, aproximando-se do carro)) oi=

3 Sandra: =qué uma chupadinha?

4 Tabata: não::::::=

5 Sandra: =não? ((supresa))

6 Tabata: não. NÃO quero.

7 Sandra: viu? ((olhando para Márcia))

8 Márcia: tudo bom?

9 Tabata: tudo sim.

10 Sandra: amanhã tem reunião viu, vê se aparece por lá*

11 Tabata: faz tempo que eu não vou, mas vou tentar ir amanhã sim.

12 to precisando de camisinha.

13 Sandra: então aparece por lá e abastece o estoque meu bem. tá?=

14 Tabata: =ta bom.

108

15 Sandra: beijo [beijo.

16 Márcia: [beijinho

17 Tabata: beijo. Tchau:::

Quando Tabata se aproxima do carro da Liberdade, Sandra, logo após

cumprimentá-la (L.1) lhe oferece um serviço sexual comumente prestado pelas

profissionais do sexo nas ruas da Cidade do Sul (L.3), i.e., sexo oral e, dessa forma,

essa interação, já de inicio, tem outro enquadre que não o típico enquadre institucional,

comum, pelo menos nos primeiros momentos de uma interação durante o projeto da

ONG Liberdade. Pode-se indicar que, ao abordar Tabata com um enunciado utilizado

pelas travestis ao iniciarem uma negociação de serviço sexual com seus clientes,

Sandra instaura um enquadre do que as profissionais do sexo chamam de programa,

i.e., um encontro sexual com propósitos financeiros. Assim, com base no uso do

enunciado “quer uma chupadinha”, Sandra, que em outros contextos constrói-se como

uma mãe de classe média procedente de família judia, posiciona-se em um discurso

associado a uma prática corporal característica dos grupos sociais que povoam o

universo trans (BENEDETTI, 2005), encenando, assim, uma identidade de profissional

do sexo. No entanto, diferentemente dos exemplos anteriores, essa performance não é

co-sustentada por sua interlocutora travesti. Na linha 4, Tabata, categoricamente, nega

a oferta feita por Sandra. A interventora, um tanto surpresa, ainda tenta, na linha 5,

envolver sua interlocutora em sua performance, engatando sua fala à fala da travesti.

Tal tentativa é novamente podada por Tabata que, na linha 6, afirma, em volume mais

alto, que não gostaria de ser “chupada” por Sandra. A interventora, nesse momento,

109

vira-se para sua colega e orienta-se para o fato de não ter sua performance

corroborada por sua interlocutora.

Tendo sua performance negada por sua interlocutora travesti, na linha 10,

introduz o enquadre de interação institucional orientando-se a sua tarefa de anunciar as

reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde. Vemos aqui um exemplo no qual as

flutuações identitárias das interventoras são limitadas pelo não-engajamento da

interlocutora nessa performance. Isso indica que as travestis têm papel importante nas

(re)negociações alteritárias efetuadas durante as intervenções. Em outras palavras, o

olhar do outro pode possibilitar ou restringir nossos trânsitos por discursos de

identidades. O eu e o outro se interpenetram e retro-alimentam-se e isso é crucial nos

embates discursivos nos quais indivíduos que se constroem em grupos identitários tidos

como dissonantes encontram-se.

Pode-se indicar que o confronto de identidades tradicionais e não-tradicionais

encontrado nas zonas de prostituição de travesti da Cidade do Sul parece um rico lócus

para a negociação de identidades de gênero e sexualidade. Mais significativamente, a

construção de semelhança suficiente entre interventoras e travestis parece indicar que,

nesse contexto, a identidade com mais poder, aquela que molda o enquadre da

interação e as relações intersubjetivas de construção de identidades, é a identidade

travesti. Esse fenômeno é bem exemplificado nos exemplos acima nos quais vemos a

suspensão temporária das construções identitárias tradicionais das interventoras por

identidades não-tradicionais (travesti, cliente, prostituta), tática que parece sublinhar as

posições das travestis durante as intervenções.

Até esse momento, analisei como Sandra (uma mulher branca, de classe média,

feminista, heterossexual, divorciada, mãe, procedente de uma família judia) e, em

110

menor grau, Márcia (uma mulher branca, mãe natural de duas filhas e adotiva de outra,

divorciada, heterossexual) engendram um processo de suspensão temporária de suas

performances cotidianas de identidades tradicionais e, a partir daí, desempenham

performances ligadas ao universo da prostituição travesti da Cidade do Sul. Como

descrito acima, essas identidades são, em parte, trazidas à interação por meio da

alternância de enquadres e re-enquadramentos embutidos (GOFFMAN, 1974) múltiplos

que possibilitam a elaboração de táticas que produzem o efeito de reajuste das

identidades tradicionais das interventoras às suas interlocutoras travestis e ao contexto

onde se encontram.

Note que os posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) adotados

pelas interventoras são ligados ao universo trans (BENEDETTI, 2005), isto é, são

posições que não seguem as regras tradicionais impostas por discursos hegemônicos.

As identidades não-tradicionais encenadas pelas travestis com quem interagem,

parecem levar as interventoras a construírem-se como participantes desse universo. As

performances de identidades habitualizadas das interventoras são, durante as

intervenções, deixadas em suspensão, o que desencadeia um processo local e

seqüencial de adequação às travestis e ao território de prostituição.

111

4.2.1.1 As flutuações identitárias das travestis: d esestabilizando as

construções de identidades das interventoras

No que segue, analiso os posicionamentos assumidos por travestis que

desestabilizam a fluidez identitária das interventoras, forçando-as a assumir uma

identidade associada convencionalmente à feminilidade hegemônica. Consideremos a

seguinte interação.

Excerto 8 [071003]

117 Júlia: To atrás de um home. HOME não [boiola.

118 Sandra: [ PRA

119 CHAMÁ DE SEU antes que seja EU ((canta))

120 Júlia: mandei meu bofe. mandei meu bofe embora

121 no dia que:: que tava fazendo aniversário do XXX. digo

122 “vai lixo!”

123 Sandra: é? e depois chora ai nos canto “volta querido, vem meu

124 amor”=

125 Júlia: =querida home é o que mais tem gatinha. meu negócio é

126 gozá e mandá embora. dá um cafezinho ou uma janta se

127 tivé com fome e ó tchau. que home não dá nada pra

128 gente, a gente tem se fudê no salto aí pelada NUA pegando

129 uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida

130 então querida agora que- sabe qual é o meu marido? é o

131 cartão do unibanco. todo dia oito eu passo assim sai o

132 aqüé e digo “ai amor como é que [tu ta? tudo bem?”

133 Márcia: [@@@@@@@@

134 Sandra: [@@@@@@@@@

135 Júlia: primeira coisa pago meu aluguel e e faço minhas coisa entendeu?

112

136 esse é meu marido. eu to aprendendo as coisa, cada vez

137 que to ficando MAIS velha mais experiência eu to tendo

138 da vida entendeu? por tudo que eu [passei/

O excerto acima inicia com a afirmação categórica de Júlia: “to atrás de um

homem, não boiola” (L. 117). Com esse enunciado, Júlia indica seu novo status: está

solteira. É relevante observar que o posicionamento de Júlia com relação ao seu ex-

parceiro é resumido pelo discurso reportado direto: “vai lixo” (L. 122). Ao trazer para a

interação sua voz no momento da separação, Júlia demonstra como se referia a seu ex-

companheiro. O vocativo “lixo” pode ser o primeiro índice da relação da falante com

seus parceiros sexuais: depois de usados, não servem mais. Nesse momento da

interação, Sandra tenta contra-posicionar (WORTHAM, 2001) sua interlocutora travesti

dizendo que ao mandar seu bofe embora ela vai “chorar nos cantos” dizendo “volta,

meu amor” (L. 123-124). Com isso, Sandra desempenha uma performance

convencionalmente ligada à feminilidade hegemônica e tenta impor a Júlia tal

posicionamento frágil e submisso. Porém, Júlia recusa o novo posicionamento e re-

afirma sua força e independência em relação aos homens. Esse tipo de posicionamento

é igualmente produzido por outros enunciados: “não boiola”, “home é o que mais tem,

gatinha” e “o meu negócio é gozar mandar embora”. Os termos boiola e gatinha aqui

utilizados pela narradora na construção de sua narrativa são convencionalmente

associados a um grupo específico de homens hegemônicos, i.e homofóbicos e

machistas. Performativamente falando, esses enunciados são repetições de normas

que precedem e limitam (BUTLER, 2003b) os/as falantes, pois ao constituir o campo

113

discursivo da masculinidade hegemônica tornam disponíveis tais posições para que

sejam adotadas, acriticamente, pelos indivíduos na vida social. Assim, ao utilizá-los,

Júlia posiciona-se nesse discurso e produz um tipo específico de masculinidade.

Observe, no entanto, que essa masculinidade é muito característica das travestis

que participaram deste estudo. Nas linhas 126 e 127, Júlia parece posicionar-se de

maneira diferente através da suas escolhas lexicais: “dá um cafezinho”, “uma janta”, “se

tiver com fome”. A escolha de palavras e ações convencionalmente tidas como

femininas posiciona a falante como uma pessoa preocupada com o bem-estar de seus

parceiros, o que é antagônico se levarmos em consideração seus posicionamentos

anteriores. Contudo, acredito que esses posicionamentos se complementam na

construção da identidade travesti. Uma identidade que se caracteriza pela rápida

circulação e fluidez por discursos generificados aos quais as travestis têm acesso.

Como indivíduos que foram criados como meninos e que, em certo momento de sua

vida, constroem uma nova identidade, adotando características corporais, simbólicas e

discursivas relacionadas ao feminino, as travestis têm acesso a variados discursos de

gênero, o que é exemplificado nos posicionamentos ocupados na construção dessa

(trans)masculinidade.

No excerto acima, Júlia ainda oferece às suas interlocutoras um enquadre

avaliativo de sua história, justificando as razões que a levaram a ter um posicionamento

de desapego (mas ao mesmo tempo solidário) aos seus parceiros sexuais. Nas linhas

128 – 130, Júlia afirma que “a gente tem que se fudê no salto aí pelada nua pegando

uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida”. Aí encontramos uma

possível justificativa aos comportamentos adotados por Júlia recentemente. Note que

nessa avaliação a feminilidade travesti é novamente trazida à tona por meio das

114

escolhas lexicais da narradora: “no salto”, “nua”. Mas, de forma similar aos

posicionamentos anteriormente descritos, essa feminilidade é desestabilizada por um

posicionamento convencionalmente masculino no senso comum: o apego financeiro.39

Ao afirmar que seu novo marido é o cartão do Unibanco, Júlia se constrói como

indiferente aos homens que “não dão nada pra gente”. Dessa forma, a

transmasculinidade (e de modo geral a travestilidade) é confeccionada através do

encaixe, da mistura e da inserção de posicionamentos associados à masculinidade e à

feminilidade no discurso das travestis colaboradoras deste estudo.

Como podemos ver, nas linhas 123 e 124, Sandra, a interventora que

anteriormente posicionara-se ora como travesti, ora como profissional do sexo, ora

como cliente de travesti adota uma performance de feminilidade frágil e dependente dos

homens. Ao tentar posicionar Júlia nessa performance, afirmando que sua interlocutora

ficaria “chorando nos cantos [dizendo] volta querido, volta meu amor”, a travesti recusa

tal performance e reitera seu posicionamento anterior, asseverando, como podemos

inferir, que ela não precisa de homens, que eles servem apenas “pra gozar e mandar

embora”. Como referido acima, aqui, vemos Júlia adotando uma performance ligada à

um tipo de masculinidade hegemônica que, heteronormativamente, é reconhecida por

sua contingência sexual e por seu desprezo com os parceiros (BADINTER, 1992). Ao

introduzir uma performance de identidade normativa/tradicional, Júlia parece impelir sua

interlocutora a assumir um discurso igualmente hegemônico e a deixar de lado a

plasticidade identitária descrita acima. Mais uma vez, Sandra engendra um processo de

adequação de seu repertório de identidades (KROSKRITY, 2000) às identidades das

39 Na quero indicar que mulheres não sejam também apegadas aos benefícios financeiros. Lanço mão, aqui, de um posicionamento construído no senso comum que indica a maior influência do dinheiro na produção da vida social de homens.

115

travestis com quem interage. Essa adequação pode ser resultante do contexto das

interações. As interventoras são, na zona de prostituição, corpos abjetos (BUTLER,

1999), pois não participam diretamente das práticas simbólicas e corporais desse

contexto. Portanto, ao executar seu trabalho de distribuir preservativos nas áreas de

prostituição da Cidade do Sul, as interventoras (inter)agem modulando suas identidades

tradicionais às identidades não-tradicionais das travestis. É importante observar, no

entanto, que não parece haver controle das interlocutoras sobre essas flutuações. Elas

emergem temporariamente durante as intervenções, mas os dados gerados não

possibilitam que se possa fazer qualquer afirmação sobre a intenção (ou falta de) das

interventoras para realizar tais movimentos por identidades ligadas ao universo trans

(BENEDETTI, 2005). O que é, contudo, saliente nos dados sob escrutínio é o fato de

que tais trânsitos por discursos de identidades serem co-construídos tanto por

interventoras quanto por travestis. Pode-se indicar, com efeito, que os posicionamentos

discursivos utilizados pelas interventoras são responsivos às performances de gênero

de suas interlocutoras e vice-versa. Destarte, quando as travestis desempenham

identidades ligadas a seu universo particular, as interventoras, ipso facto, constroem-se

como participantes desse universo. Por outro lado, quando as travestis engajam-se em

performances identitárias que nos remetem a posições identitárias tradicionais, Sandra

e Márcia, ipsis verbis, engajam-se em posicionamentos situados em discursos

semelhantes.

116

4.2.2 Autenticação da identidade travesti

Cena 6

Na sede da Liberdade, distribuídas ao redor da grande mesa de mogno sobre a qual

encontravam-se centenas de documentos burocráticos da instituição e cartazes

multicoloridos com a mensagem “Travesti e respeito”, estavam Thalia, Fabiola e

Cassiana. Sandra e Márcia pareciam bastante ocupadas na frente do computador da

secretária. Eu, iniciando o trabalho de campo, bombardeava as travestis com

perguntas, sempre acompanhado de minha caderneta de anotações. Thalia e Fabiola,

muito atenciosas, respondiam a todas, com riqueza de detalhes, datas, nomes e

comentários irônicos sobre suas experiências na batalha. Pergunto a Thalia como ela

definiria o travesti. À época eu tentava incansavelmente encontrar uma definição êmica

para a identidade, mas, como percebi ao final do campo, tal definição não era possível.

Todas as travestis as quais eu pedia uma explicação sobre o que significa ser travesti

me davam respostas desconexas e de difícil padronização. Da minha ânsia por

definições, aprendi que ser travesti é uma experiência vivida individualmente, com fases

de transformação, métodos de modelagem do corpo e práticas sexuais bastante

distintas. Há muitos tons no espectro da travestilidade. Ao perceber que havia utilizado

consistentemente em minhas perguntas a palavra travesti precedida do artigo

masculino, Sandra desvencilha-se de suas obrigações burocráticas, levanta-se e vai em

direção à mesa onde eu conversava com Thalia e Fabíola. Com seu jeito expansivo,

voz alta, cigarro na mão e olhar sempre inquisidor, Sandra me interpela: ‘não é o

travesti, é a travesti”. Eu, sem saber como lidar com a gafe lingüística que cometera,

ainda estranho às praticas sociais da ONG Liberdade, só pude pedir desculpas. A

117

advogada, insistente continua: “Eu trabalho na Liberdade por 3 anos, conheço quase

todas as monas da cidade. Sempre digo que elas são mais mulheres que eu, olha o

corpo dessas bichas, olha o cuidado que elas têm com o cabelo, com a pele! E tu vem

aqui me dizer o travesti?”. Depois dessa experiência, nunca mais me atrevi a utilizar o

masculino para falar sobre as monas que conheci. [Diários de campo, 15 de maio,

2003].

Outra tática de intersubjetividade que compõe as dinâmicas identitárias

emergentes das intervenções configura um processo de autenticação da identidade

travesti. Segundo Bucholtz e Hall (2005:601), tal tática “enfatiza as maneiras pelas

quais as identidades são discursivamente verificadas”, i.e., validadas, consideradas

como performances satisfatórias com base em discursos já sedimentados sobre

determinadas identidades. As relações intersubjetivas produzidas por essa tática

consistem em validar uma performance identitária através de posicionamentos, índices

e orientações avaliativas à performance encenada. Tais estratégias lingüísticas

sublinham a produção de uma performance identitária com relação a outras posições

de sujeito disponíveis localmente em determinado lócus social. Através dessa tática,

interagentes valem-se de discursos que constroem identidades como naturais,

utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK, 1995) que, ao enfatizar a

veracidade de uma performance, chama a atenção para sua produção sócio-cultural.

Tal essencialismo estratégico funciona como uma baliza para a autenticação de

performances identitárias ao fazer uso de significados disponíveis no senso comum

sobre as identidades de gênero e sexualidade.

118

Um exemplo desse processo de validação da identidade travesti pode ser

encontrado no excerto 3 acima. Sandra e Daniela (que trabalha como profissional do

sexo) conjuntamente constroem uma identidade de prostituta para a interventora

através de índices que a alocam em tal categoria – permissão para prostituir-se num

ponto específico, conselhos sobre a possível vestimenta de Sandra, itens que

compõem a identidade de prostituta como um “espartilho bem vermelho, bem puta, bem

tudo” etc. A negociação de tal identidade continua nas linhas 76, 77 e 78 nas quais

Sandra pede a Daniela que a ensine um movimento corporal tipicamente utilizado pelas

travestis da Cidade do Sul para exibir seus atributos físicos (colocando as mãos nos

quadris, balançando os seios e mexendo lentamente a cabeça para jogar os cabelos de

um lado para o outro). Retomemos a interação:

Excerto 9 [071003] 71 Sandra: =ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?

72 Márcia: @@[@@@

73 Daniela: [que que é?=

74 Sandra: =MEU ESPARtilho né

75 Daniela: lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=

76 Sandra: =ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as 77 mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e 78 joga os cabelos para os lados)) 79 Daniela: =ensino.

80 Márcia: @@[@@@@@@@

81 Sandra: [ah bom

82 (0,8)

83 Daniela: um jogo pra balançá TUDO que tem direito=

84 Sandra: =bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.

85 Daniela: [A:::I:[:: não pode balançá

119

86 Márcia: [@@@@@@@

87 Daniela: a loca!

88 Sandra: ta meu amor

89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla: vai! Tchau, beijo.

92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::

93 Daniela: ((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha

94 à vontade

A referência a essa prática corporal nos mostra Sandra sublinhando o capital

simbólico de Daniela nesse contexto e, dessa forma, validando a construção cultural de

sua posição de sujeito. A validação da identidade de Daniela como prostituta eficiente,

que conhece as práticas simbólicas e corporais valiosas em seu ponto de prostituição, é

enfatizada na linha 84 na qual Sandra menospreza sua própria capacidade para

elaborar tal prática corporal (“se eu começá a balançá PLAFT cai tudo”) orientando-se

desfavoravelmente a sua performance e deixando implícita, em comparação com

Daniela, sua inabilidade para tal tarefa. A travesti, defrontada com a ineficiência da

performance de Sandra, consolida sua superioridade de gênero indicando que Sandra

“não pode balançar” (L. 85) o corpo do jeito que ela o faz. Essa negociação é

interrompida no momento que um possível cliente passa de carro pelas interlocutoras.

Daniela, sem titubear, o chama e, exibindo seu corpo, engaja-se no movimento que

impossibilita Sandra de ser uma eficiente profissional do sexo.Vejamos:

120

Excerto 10 [071003] 87 Daniela: a loca!

88 Sandra: ta meu amor

89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla: vai! Tchau, beijo.

92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::

Podemos indicar, seguindo Bucholtz e Hall (2004), que a referência e a ênfase

dada por Daniela à prática corporal que, nessa interação, lhe confere capital simbólico

(BOURDIEU, 1985) do qual a interventora não compartilha configura uma tática de

distinção, através da qual a travesti parece sublinhar sua autenticidade como

profissional do sexo e como travesti em comparação à Sandra. Essa distinção fora

iniciada pelo posicionamento de Sandra com relação a sua incapacidade de efetuar os

movimentos corporais que atraíram um cliente (barbudinho) para Daniela e, assim, a

travesti ao mostrar seus seios e balançar o tronco (prática que impossibilita Sandra de

efetuar uma performance de travesti profissional do sexo convincente) desnaturaliza e

deslegitima a performance identitária de Sandra que, anteriormente, havia sido

ratificada por Daniela (L.75.).

No entanto, Sandra em outra intervenção não se satisfez em somente pedir

conselhos sobre como construir práticas corporais que a produzissem como uma

profissional do sexo eficiente; ela as executa de facto, tentando imitar Michelly. Vejamos

as imagens.40

40 Embora tenha recebido permissão das participantes da pesquisa para a utilização dessas imagens (por meio do documento de consentimento assinado em 2003 já mencionado no capítulo 1), as fotos foram manipuladas por motivos éticos com o intuito de evitar o reconhecimento das pessoas retratadas.

121

Fig. 1 Michelly ensinando Sandra a Fig. 2 Sandra tentado imitar Utilizar o corpo na batalha a travesti MIchelly exibindo suas formas corporais

Essas fotos foram tiradas pelo pesquisador em uma das raras vezes que as

interventoras saíram do carro da ONG Liberdade durante o período de geração de

dados. Infelizmente não pude gravar as falas que acompanham essas cenas, pois havia

sido requisitado a administrar a máquina fotográfica. Porém, minhas notas de campo

indicam que, antes de sair do carro, Sandra havia feito uso das ferramentas discursivas

acima descritas para pedir a Michelly que a ensinasse a usar o corpo de forma que a

interventora pudesse “fazer um aqüé” (i.e. fazer dinheiro) enquanto entregava

preservativos naquela noite. Michelly prontamente convida Sandra a sair do carro e

122

engaja-se em práticas que, segundo ela, atrairiam um bom número de clientes. Sandra

tenta imitá-la (fig.1), ameaça abrir a blusa para mostrar os seios e pega o cigarro das

mãos da travesti. Na figura 2, posando para minha máquina fotográfica, Michelly fica de

costas e mostra a parte traseira de seu corpo, levantando uma de suas pernas. Sandra,

sem titubear, tenta fazer a mesma pose afirmando que “meu edi não é como o dela”

(i.e. minha bunda não é como a da Michelly).

As imagens acima são significativas, pois indicam que o processo de negociação

das identidades das interventoras e das travestis pode extrapolar o nível lingüístico e

chegar ao nível das práticas corporais. O que me parece ser mais relevante aqui é que

Sandra, segundo algumas informantes, é naturalmente mulher, dona da feminilidade

que as travestis tanto ambicionam. Portanto, ao tentar imitar gestos e trejeitos típicos

entre as travestis da Cidade do Sul, Sandra parece engendrar um processo de

autenticação dessa identidade, indicando, através de sua tentativa de imitar Michelly,

que sua feminilidade não é suficiente para que ela possa se tornar uma boa profissional

do sexo. Aí vemos interpenetradas três das táticas de intersubjetividade descritas por

Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a autenticação da performance de Michelly, a

adequação à identidade travesti por meio da imitação de suas práticas corporais e a

legitimação institucional de sua posição de sujeito. Tal legitimação é fruto da posição de

Sandra na ONG Liberdade e na sociedade. A interventora, advogada da ONG,

divorciada, mãe de três filhos, ao imitar Michelly enfatiza o poder que a posição de

sujeito da travesti tem no contexto onde estão inseridas e, assim, valida sua identidade

e legitima institucionalmente a performance da feminilidade da travesti. Vê-se, portanto,

que o corpo, como discurso, tem papel fundamental na fabricação de identidades

(SHILLING, 1997; MOITA LOPES 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007) e, no caso em

123

tela, na consolidação de relações intersubjetivas entre as interventoras dos eventos de

fala investigados.

Em outra intervenção, Sandra e Márcia encontram Amanda e Lya que se

prostituem em um dos locais mais perigosos da batalha. Amanda é muito feminina.

Tendo construído seu corpo travesti com base no que é, no senso comum,

compreendido como o estereótipo da negra brasileira, parece muito com uma dançarina

de um dos grupos de axé da Bahia. Aparentava, à época do trabalho de campo, ter não

mais do que 20 anos. Lya aparenta ter mais de 40 anos e, no momento em que as

abordamos, não mostrava partes do seu corpo, usava roupas mais compridas para

abrandar o frio daquela noite. Sandra, ao ver Amanda, não dá as informações sobre as

reuniões que acontecem no dia seguinte e, orientando-se para as formas do corpo de

Amanda, pede para que ela dê uma “viradinha” (L. 24) para exibi-lo.

Excerto 11 [251103]

22 Sandra: e aí? como é que ta guria?=

23 Amanda: =tudo bem?=

24 Sandra: =tudo bem. vira aqui. vira ((pede pra Amanda dar uma

25 voltinha))

26 Amanda: ((da uma voltinha pra mostrar seu corpo))

27 Sandra: olha só::::: olha só!

28 Márcia: olha só.

29 Sandra: olha aqui. Eu quero apresentá o Ro, o nosso teacher de inglês.

30 Rodrigo: tudo bem?=

31 Amanda: oi. Tudo [bem?

32 Lya: [ prazer, Lya.

33 Márcia: ((entrega os preservativos))

34 Amanda: brigada=

124

35 Márcia: e uma sacolinha pra [vocês botá o lixo.

36 Lya: [então ta. brigada.

37 Márcia: ta::: não tenho certeza se tem gel amanhã.

38 Sandra: alguma novidade?=

39 Lya: =não. tudo no mesmo.

40 Sandra: então ta. tu vai amanhã? ((pergunta para Amanda))

Amanda tinha recentemente bombado, i.e., injetado silicone industrial (utilizado

como lubrificante de máquinas) em seu corpo, e Sandra, validando as novas formas de

sua interlocutora, engaja-se em uma performance que nos remete à masculinidade

hegemônica (MOITA LOPES, 2002; BADINTER, 1992), objetificando,

condescendentemente, o corpo feminino da travesti e sua beleza. Nas linhas 27 e 28,

Sandra e Márcia, enquanto Amanda faz um giro de 360 graus, comentam sobre sua

beleza, entoando “olha só” repetidamente. Esse processo de autenticação da

performance corporal satisfatória (i.e uma que se apropria de símbolos ideologicamente

associados à feminilidade) de Amanda pode ter sido motivada por minha presença na

interação. Logo após Amanda exibir seus atributos físicos, Sandra me apresenta como

o “teacher de inglês” da Liberdade. A presença de um indivíduo com performance

masculina durante essa interação pode ter sido a força motriz para que Sandra

orientasse a interação à feminilidade de sua interlocutora.41 Tanto o pedido para que a

travesti exibisse seu corpo para seus interlocutores, quanto as interjeições de Sandra e

41 Constantemente, durante meu trabalho de campo, Sandra tentava motivar algum tipo de interesse afetivo-sexual de minha parte em relação às travestis. Enfrentei situações bastante embaraçosas por esse motivo. Com o tempo, aprendi a administrar as investidas e insinuações sexuais das travestis a mim, tentando, na medida do possível tratar seus discursos como brincadeiras feitas entre amigos. Quando tal estratégia não funcionava, eu costumava ser franco e direto, podando o possível interesse de minhas informantes por mim já no seu início. Faz-se necessário observar que, tanto as interventoras quanto as travestis conheciam meu posicionamento sexual à época do trabalho de campo, o que, em alguns casos foi usado a meu favor na administração de algumas situações em campo.

125

Márcia com relação ao corpo de Amanda são orientações avaliativas (BUCHOLTZ &

HALL, 2005) de sua performance de gênero feminino. Tal avaliação positiva, feita por

duas mulheres detentoras de capital de gênero (BENTO, 2006) nesse contexto,

consolida a relação intersubjetiva de autenticação da identidade de Amanda que, como

toda travesti, passa grande parte de sua vida tentando apropriar-se de formas corporais

e simbólicas tradicionalmente associadas às mulheres. Elogios tão enfáticos

elaborados por mulheres (donas “naturais” da feminilidade que as travestis tanto

almejam) parecem servir como estratégias para enfatizar a produção satisfatória de

uma performance de gênero que reproduz e reitera discursos sobre a corporalidade

feminina construída sobre um corpo biologicamente masculino.

O projeto das intervenções elaborado pela ONG Liberdade, apoiado por

instituições governamentais, tem como propósito entregar preservativos às travestis

espalhando a necessidade do exercício de práticas sexuais seguras. Porém, a entrega

dos preservativos parece servir como pano de fundo para processos identitários que

dominam as interações. As intervenções parecem ser estruturadas, através das

ralações intersubjetivas construídas entre interventoras e travestis, com base na re-

afirmação discursiva da performance de gênero das travestis nos seus territórios de

prostituição. Sandra e Márcia fazem muito mais do que simplesmente seu trabalho de

prevenção de DST/AIDS. Esse fato pode ser verificado nos excertos acima nos quais

vemos as interventoras e as travestis envolvidas em projetos conjuntos de (1)

adequação de suas posições de sujeito às diferentes alteridades inseridas nas

intervenções e (2) validação a performance de gênero das transgêneros profissionais

do sexo. No excerto que segue, Sandra, Márcia, Amanda e Lya engajam-se em uma

126

relação intersubjetiva de autenticação do gênero de Amanda. A interação abaixo

acontece quando as travestis já receberam os preservativos. Nesse momento, há a

troca do enquadre intervenção para o enquadre de conversa cotidiana, o que, como

vimos, facilita o processo local de (re)negociação de identidades co-construído entre

interventoras e travestis.

Excerto 12 [251103]

58 Sandra: e tu melhorô legal?

59 (0,7)

60 Amanda: melhorei bastante=

61 Sandra: XX tu nos deixo preocupada guria!

62 Amanda: por quê?

63 Sandra: porque:: apesar da gente assim não:: não convivê (0,5)

64 é uma preocupação. então uma guria BONITA, não modifica

65 nada o que tu tem de bonito.

66 Márcia: já tem muito.

67 Lya: já tem demais @@[@@

68 Sandra: [já. Já. Olha, por exemplo assim- eu vô te

69 dá um exemplo, a Fafá de Belém botô os peito no no

70 seguro eu acho que tu tem que botá o teu corpo porque

71 tu não precisa mais- porque olha aqui ó tu da de dez a

72 zero em muita bicha não é ver[dade?

73 Lya: [é verdade. É, [é

74 Márcia: [claro que dá.

75 Sandra: então. e tu qué fazê o quê? botá mais o quê?

76 Lya: é:: não precisa.

77 Sandra: olha. eu acho que até a globeleza tu põe no chão.

78 Márcia: @[@@@@@@@@@

79 Lya: [@@@@@@ dezenove aninho né?/

127

80 Márcia: é::

81 Sandra: ai que saudade eu tenho da aurora da [minha vida

82 Lya: [@@@@@

83 Sandra: ó. cuidado ó. Ui!

84 ((passa um caminhão))

85 Sandra: ta gurias?

86 Amanda: então ta

87 Lya: ta=

88 Márcia: =tem gel amanhã viu [gurias.

89 Lya: [ta. eu vô i amanhã com a Júlia.

90 Sandra: então ta

91 Lya: eu vo lá. Tchau.

92 Sandra: tchau.

93 Márcia: tchau.

Como mencionado anteriormente, Amanda havia há pouco tempo se submetido

a mais uma sessão para injetar silicone industrial em seu corpo. Porém, a injeção

dessa substância não ocorreu como planejado: Amanda enfrentou alguns problemas de

saúde após a sessão. As aplicações de silicone industrial não são comumente

realizadas por um/a profissional da saúde. Elas são feitas por outras travestis,

chamadas de bombadeiras, que aumentam sua renda mensal prestando esse tipo de

serviço. Durante uma sessão, a travesti a ser bombada fica deitada com meias de nylon

amarradas a sua cintura e às pernas para evitar que o silicone escorra para lugares não

desejados. O silicone é aplicado com agulhas de uso veterinário (mais grossas, o que

permite que o silicone seja mais facilmente injetado). Após uma área ter sido bombada,

coloca-se uma espécie de super-cola ou esmalte de unha no furo feito pela agulha para

evitar que o silicone saia do corpo. Tais aplicações de silicone podem causar sérios

128

problemas ao bem-estar da travesti. Aconselha-se, como observado por Benedetti

(2005), que a travesti recém-bombada tome algum tipo de anti-inflamatório para evitar

complicações causadas pela aplicação de silicone. Não são raros os casos de travestis

cujo silicone se moveu dentro de seus corpos, causando deformações pela sua

acumulação em lugares como os calcanhares e as pernas (KULICK, 1998).42

Sandra, apesar de não conviver muito com Amanda (L.63-64), soube dos

problemas enfrentados por sua interlocutora causados pela injeção de silicone.

Preocupada, pergunta se ela havia se recuperado da infecção que a deixou alguns dias

acamada. Amanda diz que está melhor. Nesse ponto da interação, a modificação do

corpo da travesti (já arredondado e protuberante) torna-se o tópico sobre o qual o

processo de validação da performance feminina de Amanda será reforçado. A

interventora constrói uma relação intersubjetiva de autenticação do gênero de sua

interlocutora através de duas ferramentas lingüísticas. A primeira delas é o uso repetido

de vocativos e adjetivos femininos (L.63, 64, 68, 70, 71, 73) que constituem índices que

categorizam seus referentes como participantes de determinados grupos sociais

(OCHS, 1992; BUCHOLTZ & HALL, 2004, 2005). Por meio do uso freqüente desses

índices, Sandra enfatiza a performance de gênero feminino elaborada por Amanda.

Outra estratégia discursiva utilizada pelas funcionárias da Liberdade na tentativa

de validar a performance de gênero de Amanda é o ato de re-afirmar a beleza da

travesti em contraste com outras travestis (L. 71, 72) e com artistas brasileiras tidas

como ícones de feminilidade (L.68-71, 77). A cantora Fafá de Belém, que “botou os

peito no seguro” (L.69-70), é utilizada como exemplo para enfatizar o belo corpo de

42 Para descrições detalhadas do processo de bombação, ver Kulick (1998, 1997) e Benedetti (2000, 2005).

129

Amanda que deveria, segundo Sandra, “botar o corpo” no seguro, pois, fica implícito,

esse é também um ícone de beleza e feminilidade. Ao ter estabelecido a relação

intersubjetiva de autenticação da performance identitária de Amanda, com base na

comparação entre a travesti e um ícone da sensualidade e da feminilidade da mulher

brasileira, Sandra afirma que sua interlocutora “dá de dez a zero em muita bicha aí”

(L.71, 72), enfatizando que Amanda não precisa colocar mais silicone para ser

feminina. Nesse ponto da interação, a interventora convida as outras participantes para

validar as comparações que está fazendo (L.72, 73, 74) perguntando se não é verdade

o que diz. Lya e Márcia, em coro, concordam com a validação da identidade da travesti

em questão (L. 73 e 74). Valendo-se do fato de Amanda ser mulata, Sandra, na linha

83, afirma que sua interlocutora tem um corpo mais bonito que o da Globeleza, símbolo

da sensualidade do carnaval brasileiro (“até a Globeleza tu põe no chão”). Tal

comparação parece ter como intuito a autenticação da feminilidade da travesti. Lya,

companheira de Amanda na batalha, na linha 85, dando continuidade ao processo de

validação da beleza de sua parceira, enfatiza sua juventude (“dezenove aninho né”)

que, no universo trans (BENEDETTI, 2005) é muito valorizada por que, nessa época, o

corpo masculino é mais flexível para ser moldado com formas arredondas e sutis

associadas ao corpo feminino (LOPES, 1995; KULICK, 1998; BENEDETTI, 2000,

2005).

Os excertos 11 e 12 são bons exemplos dos processos intersubjetivos de

validação da performance de uma identidade feminina encenada pelas travestis com

quem as ativistas da ONG Liberdade trabalham. Ao posicionar-se em discursos da

masculinidade hegemônica (cf. excerto 12), Sandra aloca sua interlocutora travesti,

130

concomitantemente, a posições de sujeito associadas às mulheres, valorizando seus

corpos e sua beleza no processo interacional de autenticação de sua produção de uma

nova identidade, uma identidade travesti. A utilização de estratégias discursivas (cf.

excerto 11) como o uso de vocativos e adjetivos femininos para se referir às travestis e

as comparações do corpo de Amanda com ícones da feminilidade na cultura popular

brasileira constituem táticas intersubjetivas de validação (BUCHOLTZ & HALL, 2003,

2004, 2005) da performance de feminilidade efetuada pelas travestis da Cidade do Sul.

Com a utilização de tais táticas, as interventoras parecem ser levadas a suspender

suas identidades tradicionais de mulheres brancas, heterossexuais de classe média e,

através de uma pletora de ferramentas lingüísticas, sublinham os esforços que as

travestis investem na produção de formas corporais convencionalmente associadas às

mulheres.

O processo de autenticação da identidade travesti, como vimos, é principalmente

baseado nas performances corporais das travestis com quem Sandra e Márcia

interagem. Através de orientações avaliativas e comentários sobre a beleza das formas

corporais de suas interlocutoras, as ativistas da ONG Liberdade sublinham a

construção corporal e simbólica da travestilidade. No excerto abaixo, Sandra e Márcia,

defrontadas com as novas formas de Adriana orientam-se à corporalidade da travesti.

Excerto 13 [281003]

1 ((pára o carro))

2 Adriana: e aí Sandra?

3 Sandra: querida::[:

131

4 Márcia: [oi mona LUxo! Tu[do bom?

5 Adriana: [tudo bom meu anjo?/

6 Sandra: ah não que é isso?

((seis linhas omitidas))

12 Sandra: e esses óculos de intelectual?

13 Adriana: ah agora eu to intelectual. @@@

14 Sandra: olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ

15 Márcia: ai meu deus.

((treze linhas omitidas))

16 Adriana: sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às

17 quatro.

18 Sandra: ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))

19 Márcia: ta né meu bem!

20 Adriana: ah ta @@@@

21 Sandra: daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.

Anteriormente, analisei essa interação ao descrever os trânsitos por discursos

de identidades efetuados por Sandra e Márcia no processo de adequação de suas

identidades tradicionais às identidades das travestis. Neste momento, gostaria de

enfatizar a tática de autenticação da identidade de Adriana, estruturada sobre

comentários relativos a seu corpo.

Ao nos aproximarmos da travesti, Sandra, na linha 6 já se orienta aos novos

seios de sua interlocutora (“ah não o que é isso?). Márcia, surpresa com as novas

formas corporais de Adriana enfatiza que a travesti “ta muito linda, meu deus”. O ápice

desse processo de autenticação das formas corporais de Adriana está na linha 15

132

quando Sandra utiliza o bajubá e diz que a mona arrasou com seus novos seios.43 É,

no entanto, importante observar que ao serem perguntadas sobre as formas corporais

de Adriana, algumas das travestis colaboradoras da pesquisa se mostraram

preocupadas com a quantidade de silicone por ela adquirido. Segundo essas travestis,

Adriana era a nova “Pamela Anderson” da Cidade do Sul.44 Os comentários irônicos

sobre os novos seios de Adriana eram permeados por preocupações com o bem-estar

da travesti. Com seios tão grandes, segundo algumas de minhas informantes, Adriana

poderia desenvolver sérios problemas de coluna, teria incômodos para dormir e,

eventualmente, teria dificuldades em se livrar de clientes incômodos durante seu

trabalho na batalha.

É importante observar aqui que nem todas as travestis com quem conversei

sobre o novo corpo de Adriana se mostravam preocupadas. Algumas severamente

criticavam as novas formas adquiridas por Adriana, dizendo que ela parecia “um

travecão”. Segundo Pelúcio (2005a:227), “o travecão está ligado ao exagero, ao

masculino e, portanto, ao insucesso ou ao ultrapassado”, pois o corpo que constitui um

travecão é marcado pelo excesso (ancas fartas, grandes seios, coxas grossas e boca

carnuda) o que sublinha claramente a artificialidade de sua feminilidade. A antropóloga

Larissa Pelúcio indica que “o estilo valorizado atualmente é a ‘ninfetinha’, mais natural –

curvas mais enxutas, seios menos exagerados” (2005a:227). As críticas dirigidas ao

novo corpo de Adriana indicam que além de parecer artificial, ela estava “fora da

moda”, i.e., não seguia os padrões corporais desejados na comunidade à época do

trabalho de campo. Contudo, Sandra e Márcia parecem não levar esses fatos em

43 Ver Anexo 2. 44 Atriz norte-americana conhecida por seus enormes seios.

133

consideração. Na linha 21, Sandra afirma ainda que ela seria a próxima a fazer seios

como os de Adriana. Não posso afirmar que os comentários de algumas travestis sobre

os problemas que os novos seios de Adriana trariam sejam verdadeiros, não posso

igualmente sugerir que Sandra também faria uma aplicação de silicone para ter seios

iguais aos de sua interlocutora; posso, contudo, sugerir, baseado nos excertos acima

expostos, que o que parece importar nas intervenções é a validação das posições de

sujeito das travestis que se prostituem na Cidade do Sul.

4.2.3 Distinção, desnaturalização e deslegitimação

No corpus aqui analisado, processos que constroem relações intersubjetivas de

distinção, desnaturalização e deslegitimação são virtualmente inexistentes. Nas quase

dez horas de gravação das interações entre interventoras e travestis, há, como vimos,

um grande envolvimento das interlocutoras em relações identitárias que sublinham a

autenticidade e o capital simbólico que as performances identitárias das travestis têm

nesse lócus sócio-cultural.

Essa constatação pode ser bastante significativa. Segundo Bucholtz e Hall

(2004), as relações intersubjetivas trazidas à tona pelas táticas de distinção,

desnaturalização e deslegitimação constituem o pólo negativo dos processos

discursivos de construção de identidades na interação. As autoras asseveram que tais

táticas envolvem “a ênfase dada a qualidades percebidas como distantes do eu e do

134

outro” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494). Como se pode inferir da discussão acima, as

interventoras consistentemente validam a performance de identidade das travestis com

quem interagem, legitimando, assim, suas performances de feminilidade. Parece-me

que os processos do pólo negativo acima mencionados não serviriam aos propósitos

identitários localmente negociados entre interventoras e travestis. As intervenções

parecem servir como palcos sobre os quais a travestilidade é produzida e consolidada,

tanto por travestis quanto por interventoras. Ademais, um dos propósitos políticos da

ONG Liberdade é o empoderamento das posições de sujeito das travestis na Cidade do

Sul. Propósito esse que é, discursivamente, levado às intervenções para educação de

sexo seguro descritas acima. Vemos, portanto, que as intervenções são fortemente

estruturadas com base na identidade das travestis; as identidades tradicionais às quais

Sandra e Márcia têm se engajado são temporariamente deixadas em suspensão

durante suas interações com as monas da Cidade do Sul e, dessa forma, uma plêiade

de identidades que constituem o universo trans (BENEDETTI, 2005) é confeccionada

em conjunto por travestis e interventoras.

É, então, o empoderamento da performance da identidade travesti (um dos

objetivos discursivos das intervenções) que parece impossibilitar o engajamento das

interventoras em processos que desestabilizariam as performances identitárias de suas

interlocutoras transgênero. No entanto, é interessante observar que no excerto 11

acima apresentado, a travesti Daniela produz uma relação intersubjetiva de distinção

com relação à Sandra, desnaturalizando e deslegitimando a performance corporal de

profissional do sexo que Sandra tentava, naquele momento, engendrar. Talvez esse

seja o único exemplo de processos através dos quais as identidades produzidas

135

durante as intervenções são vetadas. Mas, esse veto foi construído por uma travesti

que, com base em sua performance corporal, chama a atenção para a incapacidade da

interventora de construir-se como eficiente profissional do sexo. Assim, podemos inferir

que o empoderamento da performance da travestilidade durante as intervenções

fornece possibilidades discursivas às travestis de construção de performances de

gênero que as posicionam interacional e generificadamente superiores às mulheres

ativistas da ONG Liberdade. As alteridades das interventoras, nos territórios de

prostituição travesti da Cidade do Sul, servem como trampolim para que as identidades

das travestis sejam empoderadas, validadas e intersubjetivamente consolidadas.

136

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base em uma perspectiva sócio-cultural das relações entre linguagem e

identidade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; MOITA LOPES, 2003, 2006b),

neste trabalho descrevi os processos discursivos de adequação à identidade travesti e

de validação dessa identidade em interações co-produzidas por ativistas da ONG

Liberdade em seu trabalho de prevenção de DST/AIDS e travestis que se prostituem

em uma cidade do sul do Brasil. As interventoras, indivíduos que têm se construído

como representantes de identidades tradicionais de gênero, classe social e

sexualidade, ao interagirem com as travestis, parecem ser levadas a suspender as

performances habitualizadas dessas identidades e adotar posições de sujeito ligadas

ao universo trans (BENEDETTI, 2005). A encenação dessas performances identitárias

(BUTLER, 2003) é produzida por meio da construção de posicionamentos discursivos

(DAVIES & HARRÉ, 1990), índices lingüísticos (OCHS,1992), troca de códigos (BLOM

& GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974/2002) e narrativas orais (LINDE,

1993) que parecem alocar as interventoras e as travestis em discursos associados à

masculinidade hegemônica, à feminilidade, à travestilidade e à prática da prostituição,

produzindo, assim, identidades fluidas e, por vezes, contraditórias (MOITA LOPES,

2003). Esses trânsitos identitários elaborados entre travestis e interventoras parecem

137

advir do fato de suas identidades estarem, nas intervenções, em fricção, i.e.

interventoras e travestis, como seres sociais, constroem-se, cotidianamente, em grupos

que não estão comumente em contato entre si, produzindo, assim, atritos sócio-

culturais entre os significados de suas posições de sujeito. Entretanto, tais identidades

são postas em contato durante o trabalho de educação para sexo seguro efetuado pela

equipe da Liberdade, o que incita a (re)negociação de relações identitárias específicas

para o contexto onde essas interações estão inseridas.

Como as análises tentam descrever, as interventoras são levadas a suspender

temporariamente as performances habitualizadas de suas identidades na medida em

que interagem com as travestis. Esse trânsito por discursos de identidades é aqui

investigado com base no conceito de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL,

2003, 2004, 2005). Essas táticas produzem relações identitárias entre as interlocutoras,

o que pode nos oferecer um aparato teórico-analítico apropriado à construção de

inteligibilidade sobre o processo de fricção de alteridades construído durante as

intervenções e, por que não, na sociedade em geral. Através da produção de

determinadas relações identitárias entre as interlocutoras dos eventos aqui

investigados, as interventoras discursivamente constroem a outridade das travestis que,

por sua vez, dá às interventoras a possibilidade de se construírem como outras (em

outros discursos), pois, como indicam Fabrício e Moita Lopes (2004:16), “nas práticas

discursivas em que estamos situados [...] construímos a outridade ao mesmo tempo

que ela nos constrói.” Dessa forma, Sandra e Márcia constroem relações intersubjetivas

locais e temporárias de adequação à identidade de suas interlocutoras, produzindo

semelhança suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004) entre elas e as travestis. Essa

semelhança é fabricada pelo apagamento, temporário, de traços das performances

138

cotidianas de identidades das interventoras em processos interacionais nos quais

flutuações discursivas causam o efeito de ajuste de suas identidades tradicionais ao

contexto onde as intervenções ocorrem. No processo de validação e empoderamento

das performances de identidades das travestis, as interventoras fazem uso de

orientações avaliativas, comparações entre travestis e símbolos populares de

feminilidade, vocativos e adjetivos femininos para se referir repetidamente às suas

interlocutoras transgêneros. Com essas ferramentas, Sandra e Márcia parecem,

discursivamente, construir o efeito de autenticação das performances de feminilidades

produzidas pelas travestis. Essa legitimação do feminino travesti (BENEDETTI, 2005) é

seqüencialmente manufaturada com base nos discursos localmente disponíveis sobre o

que é compreendido como feminino no contexto investigado.

É importante ressaltar que essas dinâmicas identitárias que produzem o efeito

de adequação às identidades das travestis e de validação dessas identidades são co-

construídas entre interventoras e travestis. As travestis permitem (e, por vezes,

parecem motivar) a produção das táticas de intersubjetividade que emergem das

intervenções sendo, assim, tão responsáveis pelas flutuações identitárias efetuadas por

Sandra e Márcia quanto as próprias interventoras.

Podemos inferir, pelas análises acima elaboradas, que essas intervenções são

primordialmente estruturadas sobre táticas discursivas que sublinham o capital

simbólico (BOURDIEU, 1985) das travestis nos seus territórios de prostituição. As

interventoras fazem muito mais do que simplesmente entregar preservativos às suas

interlocutoras. Notadamente, essa entrega é raramente verbalizada. Destarte, as

intervenções parecem servir como pano de fundo para o empoderamento e legitimação

139

das construções de identidades elaboradas pelas travestis: um dos objetivos político-

ideológicos da ONG Liberdade que visa à melhoria da qualidade de vida das travestis.

Comentando sobre o tema do trânsito, termo que ilustra bem a posição de sujeito

das travestis em nossa cultura e, como vimos, os processos discursivo-identitários

produzidos entre travestis e interventoras, Fabrício (2006:62) indica que “aprendemos

na cultura a olhar com desconfiança para as misturas, os cruzamentos, as

metamorfoses e a diversidade”. É tentando driblar a desconfiança e o desprezo que

muitos/as profissionais do sexo tentam estruturar suas vidas sociais. No entanto, como

as análises acima ilustram, as interventoras da ONG Liberdade, por meio dos

movimentos discursivos descritos, parecem direcionar esforços interacionais à

diminuição de suas diferenças sociais e identitárias em relação às travestis com quem

trabalham. Tais movimentos indicam que as negociações de identidades, na prevenção

de DST/AIDS, têm um papel crucial para que a tarefa institucional das interventoras

possa ser executada. Mais significativamente, esses movimentos discursivos ilustram a

importância da adaptação, do trânsito, da flutuação e das revisões identitárias (MOITA

LOPES, 2006d) em interações institucionais nas quais identidades díspares entram em

contato. Os movimentos discursivo-identitários que emergem das intervenções

radicalizam a idéia de ‘identidades multifacetadas’ (MOITA LOPES, 2003, 2006; K.

HALL, 2005; S. HALL, 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007; BUCHOLTZ & HALL,

2004; FABRICIO, 2006; BARRET, 1998; BAUMAN, 2005; HEBERLE, OSTERMANN &

FIGUEIREDO, 2006; entre outros) que é um dos postulados teóricos que moldam

muitas das ciências sociais hoje em dia. O contato com identidades díspares, as

(re)negociações identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das

140

interações e dos processos identitários em geral, processos que, na

contemporaneidade, encontram-se exacerbados.

A seguir, discuto algumas implicações que o presente estudo traz para a

Lingüística Aplicada, para a prevenção de DST/AIDS, para os estudos sobre as

identidades sociais e para os estudos sobre indivíduos transgênero. Ademais, aponto

também algumas lacunas a serem preenchidas por estudos futuros sobre as fricções de

alteridades produzidas na sociedade brasileira contemporânea.

5.1. Implicações para a lingüística aplicada

Vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento

do escopo temático da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar essa área do

conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos

brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais seguras e a

prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio no encontro internacional da

American Association of Applied Linguistics de 2007, na Califórnia

(http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm). Isso evidencia um interesse crescente da

comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora aqui investigue somente

uma pequena fatia de tal contexto, a utilização da categoria táticas de

intersubjetividade, como tentei argumentar, pode nos servir de aporte para que

analisemos os processos discursivo-identitários que emergem de tais eventos de fala,

141

nos quais as negociações entre as identidades dos/as interventores/as e dos/as

profissionais do sexo parecem ser um fator crucial.

Paradoxalmente, como Silverman e Peräkylä (1990:293) observam, embora a

epidemia causada pelo vírus HIV tenha gerado um grande número de pesquisas nas

ciências sociais, o foco de atenção dessas investigações tem sido guiado por questões

epidemiológicas e por preocupações com a informação sobre a epidemia e os

comportamentos de risco de alguns grupos sociais. Os autores também indicam que a

epidemia da AIDS não será combatida apenas com a provisão de informações às

pessoas. Segundo Silverman e Peräkylä (1990), muitas outras condições devem ser

satisfeitas até que essas informações transformem o comportamento sexual dos

indivíduos (p. 294). Alguns autores e autoras ainda indicam que a pesquisa e a

prevenção de DST/AIDS têm sido reducionistas, pois seu foco tem sido sobre fatores

individuais estáticos e não sobre fatores estruturais, contextuais e situacionais (ver

MARTIN, 2006; DÍAZ, AYALA & BEIN, 2002; MAYS, COCHRAN & ZAMUDIO, 2004).

Tendo isso em perspectiva, tentou-se, nessa pesquisa, preencher essas lacunas ao

trazer um estudo sobre prevenção de DST/AIDS para o campo da Lingüística Aplicada.

A pesquisa aqui relatada indica que o estudo das lógicas e dos significados co-

produzidos local e seqüencialmente em interações entre interventores/as e profissionais

do sexo é um importante milieux para a (re)negociação e (re)construção de identidades

entre interlocutores/as. Como vimos, a administração das diferenças identitárias entre

travestis e interventoras é o eixo ao redor do qual a prevenção de DST/AIDS, nos

territórios de prostituição travesti, parece movimentar-se. Dessa forma, ao construir-se

no mesmo universo lingüístico-identitário de suas interlocutoras transgênero, Sandra e

Márcia engendram processos interacionais que causam o efeito de aproximação de

142

suas posições de sujeito ao contexto social no qual se inserem durante seu trabalho

nas intervenções. Essa aproximação pode ter efeitos sobre o comportamento sexual

das travestis, pois, afinal, quem dá informações sobre DST/AIDS parece conhecer a

fundo os significados culturais relevantes entre as travestis da Cidade do Sul e, mais

significativamente, parece realmente importar-se com a melhoria de sua qualidade de

vida.

As análises acima elaboradas parecem estar em consonância com Moita Lopes

(2006d) que sugere que a pesquisa em LA deve “colaborar para que se abram

alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem” (p.86). Ao

por sob escrutínio as dinâmicas discursivas emergentes das interações entre

interventoras e travestis da ONG Liberdade, no presente estudo, vislumbra-se uma

sugestão para o desenvolvimento futuro de projetos de prevenção de DST/AIDS entre

grupos considerados marginalizados. Com base nas e com as vozes das interventoras

e das travestis da ONG Liberdade, vimos que diferenças potencialmente prejudiciais

para os propósitos das intervenções são deixadas em suspensão temporária e outras

configurações identitárias, potencialmente mais apropriadas para a obtenção dos

objetivos das interventoras, venham à tona.

A categoria teórico-analítica das táticas de intersubjetividade mostra-se, portanto,

uma ferramenta útil para o estudo de interações no contexto da prevenção de

DST/AIDS; interações essas que produzem o confronto das identidades de

interventores/as com a identidade do outro, os/as profissionais do sexo e vise-versa.45

45 Recentemente, muitas ONGs-AIDS têm utilizado a técnica da “educação por pares”, ou seja, ativistas dessas instituições capacitam indivíduos participantes dos grupos para os quais trabalham para que esses façam o trabalho de intervenção. Tal estratégia passou a ser utilizada para evitar mal entendidos entre os interlocutores e para otimizar os serviços.

143

Talvez a mensagem implícita das interações aqui analisadas seja a de “não resistir ao

contato com o outro, não impor de antemão conceitos pré-estruturados [o que] não

significa tornar-se o outro, mas permitir ser atingido por ele” (DIAS 2007:89). Dessa

forma, com base nos argumentos construídos nesta dissertação, pode-se afirmar que

tanto a pesquisa quanto a prevenção de DST/AIDS, ao invés de direcionar os esforços

de resistência à epidemia da AIDS somente à disseminação de informações sobre

como evitar o contágio, devem, como as intervenções da ONG Liberdade ilustram,

construir estratégias de enfrentamento à epidemia com base nas experiências

particulares dos indivíduos envolvidos nas práticas discursivas construídas durante os

projetos de prevenção. Experiências essas que podem estar relacionadas a muitos

fatores, sendo a construção das identidades de gênero e sexualidade dos/as

profissionais do sexo um dos mais salientes (particularmente no caso das travestis). As

táticas de intersubjetividade que emergem das intervenções nas áreas de prostituição

de travestis na Cidade do Sul indicam que, para restringir a disseminação do vírus HIV

nesse grupo, a esperança é construir estratégias de intervenção centradas nas

experiências das pessoas envolvidas, já que somente a provisão de informação pode

não ser suficiente.

5.2 Implicações para o estudo das identidades socia is

O que a natureza divide, a fala frivolamente encaixa, insere e mistura.

(Erving Goffman, [1974]2002, p. 146)

144

As fricções de alteridades construídas nas zonas de prostituição da Cidade do

Sul são apenas um exemplo de fricções identitárias produzidas pelos processos de

mudança social encontrados no mundo contemporâneo (cf. introdução). Com a

proliferação de novos estilos de vida (BAUMAN, 2005), novas configurações afetivo-

sexuais (VAITSMAN, 1994), novas conjugalidades (MELLO, 2005), novas formas de

lidar com o corpo e apresentação de si (SHILLING,1997), encontramos diariamente

construções identitárias que, ao desafiarem discursos tradicionais, nos fazem repensar

a vida social. A heterogeneidade da vida contemporânea pode nos impor

questionamentos sobre quem somos e sobre quem podemos ser (ver FOUCAULT,

1995; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004). O socioconstrucionismo (MOITA LOPES,

2002; 2003) e o modelo teórico-analítico das táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ

& HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo) nos fornecem um aparato para investigarmos as

flutuações identitárias efetuadas cotidianamente por indivíduos ao se tornarem seres

sociais.

Acredito que esse seja um movimento importante para os estudos sobre as

identidades sociais no mundo contemporâneo, pois, como indica Moita Lopes

(2006d:102), “algumas pessoas são cada vez mais expostas a uma multiplicidade de

projetos identitários, como também à percepção da heterogeneidade identitária

existindo em um mesmo ser social”. Essa exposição a múltiplos projetos identitários é,

em grande parte, mediada em e constituída por nossas práticas discursivas diárias.

Cotidianamente, nos defrontamos com uma pluridiversidade de projetos identitários

que, como sugere Fabrício (2006), causa desconcertos e vertigens pós-modernas

(FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004; FRIDMAN, 2000). Fica claro, então, que o estudo

145

dos atritos identitários emergentes da exposição aludida por Moita Lopes (2006d) pode

ser um movimento de pesquisa crucial para que possamos entender os múltiplos e

maleáveis processos discursivo-identitários que constituem a sociedade

contemporânea. Faz-se mister, então, trazer para o foco das pesquisas na LA e nas

humanidades em geral, a pergunta: como lidamos, em nossas práticas discursivas, com

os deslocamentos de significados identitários antes entendidos como estáticos?

Encaminhei, nas análises acima, de modo parcial, algumas respostas potenciais a tal

questionamento. Contudo, as fricções de alteridades são produzidas em uma miríade

de contextos sócio-culturais que, acredito, merecem nossa atenção em estudos futuros.

Investigar as dinâmicas discursivas emergentes de tais contextos pode nos ajudar a

compreender alguns dos trânsitos identitários constituintes de nossa vida social.

Seguindo essa linha de pesquisa, devemos questionar, e olhar com

desconfiança, a perspectiva histórica na sociolingüística variacionista que considera as

relações entre linguagem e identidade como monolíticas. Com isso quero afirmar que a

investigação sobre os processos interacionais de construção, re-construção,

negociação, re-negociação e administração de diferenças percebidas ou produzidas em

embates discursivos específicos problematiza a “distinção confortável [baseada naquela

perspectiva] de mulheres fazendo feminilidades e homens fazendo masculinidades”

(GEORGAKOPOULOU, 2005:182). Tal perspectiva parece improdutiva para entender

as práticas discursivo-identitárias estruturadas no trottoir, e de modo mais abrangente,

na sociedade contemporânea.

Os jogos de identidades (S. HALL, 2001) com os quais nos engajamos

cotidianamente trazem à tona construções identitárias múltiplas e moventes. Essa

maleabilidade identitária ilustra como as fronteiras entre as identidades são porosas,

146

abertas para mudanças e transformações (locais e temporárias). Como vimos, o

repertório de identidades das interventoras é afetado pelas travestis, e vice-versa. Em

outras palavras, em nossas práticas discursivas, o eu e o outro interpenetram-se, retro-

alimentam-se e, dessa forma, produzem dinâmicas interacionais por meio das quais as

fronteiras entre as identidades (de gênero, sexualidade, classe social e raça) podem ser

ultrapassadas, sobrepostas, borradas ou até mesmo apagadas. As dinâmicas entre o

eu e o outro indicam que não controlamos quem somos, o olhar do outro é crucial para

que possamos nos movimentar em nossa vida social, o que engendra, como vimos,

múltiplos e complexos processos de administração de diferenças entre

interlocutores/as. Essa administração, no caso das intervenções, é marcada pelo

trânsito por discursos de identidades, por ambigüidades, oscilações, pela mudança,

pela adaptação, pelas mesclas de significados identitários múltiplos e, por vezes,

contraditórios. No caso em tela, vimos as interventoras e as travestis encenando

feminilidades, masculinidades e travestilidades, encaixando, inserindo e misturando

(frivolamente!) discursos de identidades que as alocam em múltiplas posições sociais e

possibilitam a consolidação de suas relações identitárias e institucionais. Com a

combinação de recursos discursivos, ao explorar possibilidades identitárias,

interventoras e travestis fabricam múltiplas identidades, o que indica sua participação

em universos lingüísticos variados. Resta investigar outras possíveis fricções e os

processos discursivos que delas emergem para que, assim, possamos construir

inteligibilidades sobre as dinâmicas identitárias que constituem um mundo que parece

estar em descontrole (GIDDENS, 2000).

Ademais, o estudo sobre identidades em fricção pode nos fornecer subsídios

para que entendamos os processos discursivos que produzem misturas e cruzamentos;

147

entre-espaços que nos causam desconfiança e insegurança por trazer à baila

significados identitários inauditos. Afinal, como essa proliferação de identidades do

mundo contemporâneo afeta a construção cotidiana de nosso feixe identitário (MOITA

LOPES, 2003)? Como indivíduos que se alocam em discursos de identidades

considerados não-tradicionais negociam suas posições de sujeito em face das forças

hegemônicas referentes a gênero, sexualidade, classe social, raça e profissão? E qual

a conseqüência que esse espectro multifacetado composto por identidades ditas não-

tradicionais traz para aqueles e aquelas que ainda se vêem atrelados a discursos de

identidades normativos?

Possíveis respostas a essas perguntas são ilustradas neste trabalho. Embora

tenha investigado somente um pequeno sub-estrato dos amplos processos identitários

contemporâneos, pode-se aqui vislumbrar possibilidades de construções identitárias

múltiplas, causadas, como se argumentou, pelas fricções entre as identidades das

interventoras e das travestis. Dito de outra forma, como indica a epígrafe desta

dissertação, “quanto maior a diferença, maior será a igualdade” e de forma similar,

“quanto maior a igualdade, maior será a diferença” (SARAMAGO, 1997:97). Com isso

afirma-se que, nos embates discursivos com os quais nos engajamos diariamente, a

outridade de nossos/as interlocutores/as afeta a construção de nossas identidades, e,

na via contrária, nossa outridade influencia as identidades das pessoas com quem

interagimos (ver MOITA LOPES, 2002; FABRICIO & MOITA LOPES, 2004; HALL, 2005;

BUCHOLTZ, 2003; BUCHOLTZ & HALL, 2004, no prelo). A análise das intervenções da

ONG Liberdade indica, ainda, que as interlocutoras orientam-se a uma forma

diferenciada de organização para a diferença. Vê-se, nos movimentos interacionais co-

construídos pelas interlocutoras dos eventos investigados, que as fronteiras entre as

148

performances habitualizadas das identidades tradicionais das interventoras e das

posições de sujeito periféricas das travestis estão abertas para a interpenetração e para

intercâmbios. Assim, os limites entre a igualdade e a diferença são tornados tênues, o

que indica que a diferença pode ser uma fonte de engrandecimento de nossas

experiências discursivo-identitárias. As práticas discursivas emergentes das

intervenções da ONG Liberdade ilustram a possibilidade de contato positivo e

enriquecedor com a diferença e, assim, indicam um porvir otimista para aqueles/as à

margem de nossa sociedade. Oxalá esses processos de apagamento da diferença co-

construídos por interventoras e travestis pudessem inspirar outros atores sociais a

organizar suas práticas discursivas para a minimização da discriminação e do

preconceito. Utopias à parte, devemos ter em perspectiva que as re-negociações das

diferenças identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das interações

produzidas em contextos contemporâneos. Para entendê-los, faz-se, então, necessário

lançar o foco das pesquisas sobre as dinâmicas que produzem tais deslocamentos e

sobre seus efeitos na vida dos indivíduos que participam as práticas sociais que

investigamos.

5.3. Implicações para os estudos de transgêneros

Nas últimas décadas, pesquisadores/as têm tentado descrever as configurações

culturais e as posições sociais de indivíduos transgêneros nos mais diversos contextos

149

sócio-históricos. Estudos etnográficos sobre tal fenômeno46 têm investigado como as/os

transgêneros cruzam as fronteiras de gênero (LOURO, 2001) nas práticas sócio-

culturais, corporais e simbólicas de que participam. A literatura disponível parece indicar

que os/as transgêneros usam a linguagem fluidamente e, dessa forma, marcam

afiliações com diferentes posições culturais locais de seus milieux específicos, i.e.

identidades globais vs. identidades locais (BESNIER, 2003), masculinidade vs.

feminilidade (LIVIA, 1997; BORBA & OSTERMANN, 2007), poder vs. solidariedade

(HALL & O’DONOVAN, 1996).

Com a onda de interesse pelo fenômeno da transformação de gênero, iniciada

na antropologia, importantes documentações sobre o uso da linguagem entre indivíduos

transgêneros foram elaboradas. Esses estudos têm enfatizado que uma das dinâmicas

que o fenômeno transgênero promove na vida social é mostrar, através de corpos e

discursos, a permeabilidade das fronteiras entre os gêneros (KULICK, 1998, 1999;

BENEDETTI, 2005; LIVIA, 1997; HALL, 2002, entre outros/as). Contudo, essas

pesquisas têm, em sua grande maioria, investigado dados de entrevistas entre

transgêneros ou entre transgênero e pesquisadores/as, deixando de lado a importância

de conversas espontâneas entre esses indivíduos e as pessoas que fazem parte de seu

contexto cultural. Em uma extensa e minuciosa revisão da literatura dos estudos sobre

as relações entre transgênero e a linguagem, o antropólogo Don Kulick (1999) observa

a infeliz ausência de pesquisas, com dados naturalísticos de conversas espontâneas,

sobre como os/as transgêneros conversam com as pessoas que constituem seu

46 Veja, por exemplo, os estudos sobre as mahu taitianas (Levy, 1971); sobre as xanith de Omã (Wikan, 1978); sobre as panemas paraguaias (Clastres, 1990); sobre as berdache norte-americanas (Epple, 1998); e outras ocorrências múltiplas de transformações de gênero em várias sociedades (Bolin, 1988; King, 1993; Mckenzie, 1994; Shapiro, 1991).

150

universo social. Kulick (1999:615) sugere que “precisamos saber mais sobre como os

indivíduos transgêneros falam com outras pessoas em seus milieux, e precisamos

saber como essas pessoas avaliam e respondem a essa fala” (p. 615).

Seguindo a sugestão de Kulick, neste estudo, investigaram-se as dinâmicas

discursivo-identitárias emergentes de embates discursivos entre duas mulheres ativistas

de uma ONG criada por e para travestis e as travestis profissionais do sexo de uma

cidade do sul do Brasil. Com base no modelo das táticas de intersubjetividade, descrevi

como as interlocutoras empregam essas táticas e produzem dinâmicas interacionais

que parecem produzir os efeitos de (i) autenticação da identidade e (ii) autorização

social e institucional da produção de gênero das travestis, e de (iii) minimização das

barreiras sociais que diferenciam as interventoras de suas interlocutoras transgênero.

Por meio de uma grande variedade de ferramentas lingüísticas e corporais, essas

mulheres parecem co-construir discursivamente identidades que não fazem parte de

seu repertório cotidiano. Com essa plêiade de identidades discursivamente construídas,

as interlocutoras parecem engendrar um processo discursivo de empoderamento das

posições de sujeito das travestis. Sandra e Márcia parecem fazer uso do discurso como

uma ferramenta para se aproximarem das travestis. O discurso, durante as

intervenções aqui investigadas, funciona como uma ponte que minimiza as distâncias

identitárias entre as interlocutoras.

No entanto, os processos discursivos de produção de identidades entre travestis

e interventoras aqui investigados só podem ilustrar uma fatia das dinâmicas identitárias

que emergem de interações entre travestis e as pessoas que fazem parte de seus

contextos sociais. O uso das táticas de adequação e autenticação pelas interventoras

pode ser fruto de seu engajamento político com uma ONG que visa à melhoria das

151

perspectivas das perspectivas sociais das travestis da cidade investigada. Infelizmente,

essa filiação político-ideológica não é compartilhada por muitos dos transeuntes e dos

clientes das travestis que as encontram em seus lugares de batalha. E mais

significativamente, com a inserção das travestis no cotidiano de nossos grandes centros

urbanos (cf. introdução), múltiplos processos discursivos devem vir à tona quando, por

exemplo, as travestis pegam um táxi, vão às compras, passeiam pelos seus bairros.

Assim como o discurso tem o poder de amenizar as distâncias entre as pessoas,

ele também tem o poder de separá-las. Vimos, nesta dissertação, que as táticas de

distinção, desnaturalização e deslegitimação não parecem ser utilizadas pelas

interventoras durante o embate discursivo que coloca suas identidades em atrito com

as posições de sujeito das travestis. Mas, como se dá a administração das diferenças

identitárias no dia-a-dia das travestis ao inserirem-se em outras configurações sociais e

outros discursos de identidades que as alocam à margem de nossa sociedade? Faz-se

necessário, ainda, investigar como indivíduos tradicionalmente generificados são

influenciados pela outridade das travestis com quem potencialmente podem interagir

em sua vida social. Ademais, precisamos descrever as dinâmicas sociais e discursivas

que relegam os indivíduos transgêneros e, de forma mais abrangente, os indivíduos

que não se filiam a discursos de identidades hegemônicos, à margem de nossas

sociedades. Investigar as fricções de alteridade pode nos servir como instrumento para

entendermos os processos que transformam o diferente em exótico, o relegando a

espaços sociais periféricos, enclausurado em não-lugares. Entretanto, as fricções

alteritárias co-construídas entre interventoras e travestis felizmente indicam que o

contato com o diferente pode ser uma valiosa e inspiradora fonte de experiências

identitárias.

152

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ANEXO 1

Exemplos do enquadre típico das intervenções (1) [INT230903]

1 ((pára o carro))

2 Sandra: como é que ta? tudo bom?

3 Alexandra: tudo.

4 Márcia: ((entrega as camisinhas))

5 Sandra: amanhã tem reunião na Liberdade. cresça e [apareça.

6 Márcia: [tem gel também.=

7 Sandra: =tem gel também.

8 Alexandra: ta.

9 Sandra: sabe onde é?.=

10 Alexandra: sei. nun- vocês não me viro lá quarta?/

11 Sandra: então ta.

12 Alexandra: ta bom. obrigada viu.

13 Márcia: tchau.

14 Sandra: tchau, até amanhã.

15 Alexandra: tchau.

(2) [INT071003]

1 Aline: tudo bom?

2 Márcia: tudo bom e aí?*

3 Aline: como é que tão?

4 Márcia: tudo bem.

5 Sandra: amanhã tu vai na reunião?

168

6 Márcia: amanhã tem gel.

7 Aline: amanhã? amanhã?

8 Márcia: amanhã tem reunião e tem gel.=

9 Aline: ahã, ta.

10 Sandra: [ta?

11 Márcia: [ta?

12 Aline: ta.

13 Márcia: tchau.

14 Sandra: beijo. ((arranca o carro))

(3) [INT111103]

1 ((buzina))

2 Sandra: o:::i::[::

3 Fernanda: [oi.=

4 Sandra: =tudo bom?=

5 Fernanda: =tudo.

6 Márcia: ((entrega as camisinhas))

7 Fernanda: brigada. [Brigada.

8 Márcia: [amanhã tem reunião.=

9 Fernanda: é:: eu vô i.

10 Sandra: então ta. beijo beijo.

11 Fernanda: tchau.

12 Márcia: tchau.

13 Sandra: ((dá a partida no carro))

14 Fernanda: ((aborda um cliente que a esperava))

169

(4) [INT 281003]

1 ((pára o carro bem próximo de Jéssica))

2 Sandra: OI:::::[:::

3 Jéssica: [olá/

4 Márcia: tudo bom?= *

5 Jéssica: =tudo [bom.

6 Sandra: [amanhã tem reunião=

7 Jéssica: =ta::,amanhã eu vô.

8 Sandra: então [ta.

9 Jéssica: [eu já to SEM camisinha.

10 Márcia: então ta bom.

11 Sandra: ((continua a dirigir))

12 Jéssica: ((volta ao seu ponto))

170

ANEXO 2

Fig. 3 Sandra e Adriana exibindo seus novos seios