Alteridades em fricção: Discursos e identidades na prevenção de dst/aids entre travestis
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Rodrigo Borba
ALTERIDADES EM FRICÇÃO:
Discurso e identidades na prevenção de
DST/AIDS entre travestis
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.
Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes
Rio de Janeiro
2008
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Rodrigo Borba
ALTERIDADES EM FRICÇÃO:
Discurso e identidades na prevenção de
DST/AIDS entre travestis
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.
Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes
Rio de Janeiro
2008
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Esta dissertação foi financiada com recursos do Governo Federal, via Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Borba, Rodrigo B726a Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis / Rodrigo Borba. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
170 f.; il.
Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2008.
Bibliografia: f.152-166
1. Lingüística aplicada. 2. Análise do discurso. 3. Travestis. 4. AIDS (Doença) -- Prevenção. 5. Identidade Sexual. 6. Sexualidade I. Lopes, Luiz Paulo da Moita. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
CDD 418
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Alteridades em Fricção: Discurso e Identidades na Prevenção
De DST/AIDS entre Travestis
Rodrigo Borba
Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.
CONCEITO: Aprovada por: _______________________________________________________________ Presidente, Profº Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes, UFRJ _______________________________________________________________ Profa Doutora Maria das Graças Dias Pereira - PUC-Rio _______________________________________________________________ Profa Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ ______________________________________________________________ Profa Doutora Ana Cristina Ostermann – UNISINOS ______________________________________________________________ Profa Doutora Myriam Brito Correa Nunes – UFRJ
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AGRADECIMENTOS
Nenhuma pesquisa é feita em um vácuo social. Como tal, múltiplas redes de
apoio intelectual, emocional e financeiro possibilitaram a elaboração da presente
dissertação. Gostaria de aqui expressar meus agradecimentos às pessoas e instituições
que, em maior ou menor grau, serviram de suporte à realização da pesquisa aqui
apresentada.
Agradeço, primeiramente, à equipe da ONG Liberdade e às travestis que nela
trabalham, procurando, arduamente, a melhoria da vida das transgêneros profissionais
do sexo na cidade onde realizei trabalho de campo. Com elas aprendi que toda e
qualquer diferença é valiosa.
Ao meu orientador, Luiz Paulo da Moita Lopes, pelo apoio e pela confiança
depositada em mim. Entre “broncas carinhosas”, discussões, orientações, trocas de e-
mails e muitas risadas construímos, conjuntamente, um trabalho do qual muito me
orgulho (e espero que ele também).
Ao corpo docente do Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, em
especial às professoras Branca Falabella Fabrício e Myriam Nunes que, com sábios
conselhos e palavras afáveis em momentos muito difíceis, me serviram de exemplo e
inspiração pessoal e acadêmica. Agradeço às professoras Branca e Myriam por terem
aceitado participar de minha banca examinadora.
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À Simone Rolim de Moura, que mesmo à distância, sempre foi um porto seguro
no qual pude desabafar as angústias e compartilhar aprendizados. Uma amiga sempre
disposta a ajudar, apoiar e aconselhar em momentos muito importantes. Não poderia
deixar de mencionar as outras mulheres da família Rolim de Moura, Adelaide (in
memoriam), Neila e Neusa, que, como uma segunda família, sempre se puseram
dispostas a apoiar meus passos acadêmicos e pessoais.
A Otávio Rios Portela, com quem compartilhei uma das épocas mais
significativas da minha vida. Entre passeios pelo Flamengo, jantas no Largo do
Machado e turismo pela Cidade Maravilhosa, aprendemos a lidar com nossas
diferenças regionais e cientificas e nos tornamos, de facto, grandes amigos.
Agradeço também aos alunos e alunas da turma de mestrado de 2006/1, em
especial à Ana Paula Loureiro, Milena Ximenes, Leda Boaventura e Petrilson Pinheiro.
Não posso deixar de mencionar os/as outros/as participantes do projeto Salinguas,
Paula, Natalia, Tatiana. Agradeço especialmente a Thiago Simões e a Ana Paula
Loureiro pela ajuda indispensável com as questões burocráticas da UFRJ.
Aos “guris” da república 404, Bucker, Macaé e Sagüi, que foram parte importante
na realização desta dissertação, pela amizade e pela paciência para agüentar os maus-
humores sulfúricos de um gaúcho perdido no Rio de janeiro.
À Cândida Rosa, corajosa e determinada, que me acolheu, de modo inusitado,
em sua casa e se tornou uma grande amiga.
A Nélio Giorgini agradeço pelo emprego e pelas muitas risadas entre uma aula e
outra, sem as quais minha estada no Rio teria sido muito mais difícil, quiçá impossível.
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Ao professor Pedro Garcez (UFRGS) por me acolher em sua disciplina
Lingüística e Ensino, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realizei
minha capacitação docente.
À professora Guacira Lopes Louro (UFRGS) pela acolhida calorosa e pelas
discussões sempre muito enriquecedoras nas frias tardes de quarta-feira na Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do sul.
À professora Maria das Graças Dias Pereira (PUC-Rio) por ter aceito fazer parte
de minha banca examinadora.
À professora Ana Cristina Ostermann (UNISINOS) por acreditar, desde o
princípio, na pesquisa e por ter aceitado o convite para ser uma das avaliadoras desta
dissertação. Sou grato pelo apoio e por todo aprendizado sobre como fazer pesquisa
em Linguagem e Gênero, sem o qual, minha entrada na UFRJ não teria sido possível.
Acima de tudo, agradeço as minhas mães, Rosalina e Duda, e meu pai, Laerte
que com simplicidade, trabalho e determinação souberam superar a saudade e as
dificuldades que minha mudança para o Rio de Janeiro motivaram. Minhas mães e meu
pai me serviram de apoio incondicional para superar as dificuldades durante a
elaboração da pesquisa e do mestrado. A elas e a ele dedico esta dissertação.
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Provavelmente, quanto maior é a diferença,
maior será a igualdade, e quanto maior é a igualdade maior a diferença será [...]
(Saramago, 1997, p. 97)
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RESUMO BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. Nesta dissertação, investigam-se as dinâmicas discursivo-identitárias emergentes de eventos de fala co-construídos entre travestis que se prostituem em uma cidade do sul do Brasil e mulheres ativistas na prevenção de DST/AIDS. Através de uma perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003), o estudo investiga os processos de construção, re-construção, negociação, re-negociação e administração de diferenças (percebidas ou construídas) entre as interagentes.As interações sob escrutínio ocorreram durante intervenções que visam à prevenção de DST/AIDS nas áreas de prostituição travesti. Foram gravadas 5 intervenções com uma média de 12 abordagens por intervenção – um total de 60 interações com aproximadamente 8 horas de gravação. Mais especificamente, com base no modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), analisam-se as táticas de intersubjetividade construídas entre as participantes no processo interacional que coloca suas identidades em fricção. As interventoras, indivíduos que têm se construído em categorias identitárias tradicionais, ao se depararem com as posições de sujeito socialmente marginalizadas das travestis (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), engajam-se em processos locais e seqüenciais de composição e re-composição de relações identitárias com suas interlocutoras. Esses processos são co-construídos entre travestis e interventoras durante as interações. As participantes desses eventos discursivos empregam táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ E HALL, 2004) para (i) autenticar a identidade e (ii) autorizar social e institucionalmente a produção de gênero das travestis, e para (iii) minimizar as barreiras sociais, i.e. gênero e poder institucional, que as diferenciam. Por meio de posicionamentos (DAVIES & HARRÉ, 1990), alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974), as interlocutoras parecem assumir discursivamente identidades que não fazem parte de seu repertório (KROSKRITY, 2000) cotidiano. Assim, as interagentes parecem engendrar um processo de empoderamento das performances de identidades das travestis. As análises apontam para o caráter fluido, multifacetado, fragmentado e sempre movente das identidades sociais que, em interações nas quais identidades díspares se tencionam, recompõem-se constantemente na administração das diferenças entre interlocutores/as. Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada, aproximando essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. Palavras-chave: identidades em fricção; gênero; sexualidade; táticas de intersubjetividade; travestis; prevenção de DST/AIDS
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ABSTRACT
BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. This thesis investigates the discursive and identity dynamics that emerge from speech events co-constructed between travestis who work as sex professionals and two female safer-sex outreach workers in a Southern Brazilian City. Guided by a socioconstructionist perspective on the relations between discourse and social identities (MOITA LOPES, 2003), the study analyses the processes of construction, re-construction, negotiation, re-negociation, and management of (perceived or constructed) differences among the interlocutors. The interactions under scrutiny are drawn from safer sex outreach work in the prostitution areas of travestis in the city. Five outreach visits to these areas were audio-recorded with an average of 12 approaches in each – totalizing 60 interactions and approximately 8 hours of recordings. More specifically, following Bucholtz and Hall (2003, 2004, 2005), I analyse the tactics of intersubjectivity produced by the interlocutors in the interactional process that put their differing identities in friction. The female outreach workers, individuals who have positioned themselves in traditional identity categories, when faced with travestis’ marginalised subject positions (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007) engage in local and sequential processes of (re)construction of identity relations with their transgendered interlocutors. These processes are co-constructed by travestis and the safer-sex outreach workers. The participants of the discursive events under scrutiny make use of tactics of intersubjectivity (BUCHOLTZ & HALL, 2004) (i) to authenticate the travestis’ identity and (ii) to authorize socially and institutionally the production of their gender performances, and (iii) to minimize the socio-cultural barriers that make them different. Through discursive positionings (DAVIES & HARRÉ, 1990), code switching (BLOM & GUMPERZ, 2002) and frame (GOFFMAN, 1974) the interactants seem to discursively take over identities that are not part of their daily identity repertoire (KROSKRITY, 2000). With this plethora of discursively produced identities, the interlocutors seem to engender a process of travestis’ identity performance empowerment. The analysis indicates that identities are always fluid, multilayered, fragmented and changeable. This flexibility of social identities is highly visible in interactions that put differing identities in tension, bringing about the necessity of constant re-makings of subject positions to administrate the differences among interlocutors. The study also advances a theoretical and methodological suggestion to widen the analytic lenses of Applied Linguistics, trying to bring this area of research closer to a relatively under-studied context in Brazil: SDT/Aids prevention. Key-words: identities in friction; gender; sexuality; tactics of intersubjectivity, travestis; STD/AIDS prevention
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Michelly ensinando Sandra a utilizar seu corpo na batalha p. 121 Figura 2 - Sandra (à esquerda) tentando imitar a travesti Michelly (à direita) exibindo suas formas corporais p. 121 Figura 3 – Sandra e Adriana exibindo seus novos seios p. 170
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CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO
As convenções para as transcrições foram adaptadas de Du Bois, Schuetze-Coburn,
Paolino & Cumming (1992) e são as seguintes:
MAIÚSCULAS volume maior
, entonação continuada . entonação decrescente ? entonação crescente [ ] sobreposição de fala - palavra truncada -- sentença truncada = falas engatadas :::: som prolongado >fala< fala mais rápida <fala> fala mais lenta (0.0) tempo em segundos durante o qual não há fala (( )) informações fáticas sobre a interação XXXX parte de fala inaudível; cada X representa mais ou menos uma sílaba Falante: no início de um turno de fala identifica a falante @@@ risos
* entrega de preservativos
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... p. 15 1. A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA ......... p. 28
1.1. Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados........................ p. 32
1.2. A construção do ativismo político das travestis................................................... p. 38
1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política
de travestis no Brasil .......................................................................................... p. 39
1.2.2. As intervenções: alteridades em fricção na
batalha................................................................................................................. p. 44
1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo seguro:
uma relação necessária ........................................................................................... p. 49
2. DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O REFERENCIAL
TEÓRICO ............................................................................................................. p. 54
3. (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO:
AS TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE ........................................................ p. 63
3.1. As táticas de intersubjetividade ........................................................................ p. 65
3.1.1. Adequação e distinção............................................................................ p. 68
3.1.2. Autenticação e desnaturalização............................................................ p. 71
3.1.3. Autorização e deslegitimação................................................................. p. 75
3.2. As ferramentas para a interpretação das táticas.............................................. p. 78
3.2.1. Enquadre................................................................................................ p. 79
3.2.2. Posicionamentos discursivos................................................................. p. 82
3.2.4. Alternância de códigos........................................................................... p. 84
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4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS, TRAVESTIS E A
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA PREVENÇÃO DE DST/AIDS ............. p. 89
4.1. O enquadre ‘intervenção’: institucionalidade das
interações......................................................................................................... p. 90
4.2. Quando o tradicional defronta-se com o não tradicional:
a construção discursiva de identidades de interventoras e travestis.................... p. 93
4.2.1. Semelhança suficiente: adequação às travestis.................................. p. 95
4.2.1.1. As flutuações identitárias das travestis:
desestabilizando as construções de identidades das interventoras.............. p. 111
4.2.2. Autenticação da identidade travesti..................................................... p. 116
4.2.3. Distinção, desnaturalização e deslegitimação..................................... p. 133
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ p. 136 5.1. Implicações para a Lingüística Aplicada....................................................p. 140 5.2 Implicações para o estudo de identidades sociais......................................p. 143 5.3 Implicações para o estudo de transgêneros...............................................p. 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... p. 152 ANEXO 1............................................................................................................. p. 167 ANEXO 2............................................................................................................. p. 170
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INTRODUÇÃO
A inserção das travestis no cotidiano: alteridades em fricção Cena 1 Copacabana, inverno carioca (35 graus!), ansioso a esperava para nosso
primeiro encontro. Conhecia sua voz, já havíamos conversado por telefone para discutir
os detalhes: hora (17:00) e local (Quiosque Rainbow, em frente ao luxuoso
Copacabana Palace) sugeridos por ela. Um dia avermelhado, morno, corpos
pavoneavam nas areais da praia. Quando a vi, algum tipo de senha absolutamente
indecifrável, me indicou: Valquíria.1 Caminhava resoluta em minha direção (talvez
tivesse me identificado através do mesmo tipo de senha que, misteriosa, me ajudou a
reconhecê-la): sorriso largo e fácil, seios voluptuosos, fartas ancas, andar lânguido,
pleno de leveza, tudo isso displicentemente decorado por um vestido preto (bá-si-co!)
com amplo decote. Cumprimentamo-nos e sentamos em uma das mesas dispostas
irregularmente por volta do quiosque. Rodeados por clientes do bar, transeuntes e
banhistas, Valquíria me contava sobre sua vida. Descobrira-se travesti muito cedo (13
anos!), já não mais se prostituía depois de uma rentável temporada na Europa. De volta
ao Rio de Janeiro, trocara o subúrbio, por Copacabana – bairro que diz amar por sua
concentração de todos os tipos de pessoas. Mantinha dupla jornada de trabalho: como
1 Por motivos de natureza ética, os nomes dos indivíduos envolvidos na pesquisa assim como os nomes de lugares, pessoas e instituições mencionados durante a gravação dos eventos de fala sob análise foram substituídos por pseudônimos.
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ativista de uma ONG e como funcionária da prefeitura do Rio. Olhava freqüentemente
para o relógio: não podia se atrasar para o curso pré-vestibular; almejava cursar
Comunicação em alguma universidade pública. Enquanto com ela conversava,
Valquíria, com seus gestos displicentes, lascivos meneios com a cabeça para exibir os
negros e lisos cabelos, seu olhar profundo e inquiridor, chamava a atenção dos que por
ali, inadvertidamente, passavam. A passos lentos, ofuscados pela figura opulenta da
travesti, homens, mulheres, crianças nos observavam, passavam, olhavam para trás e
comentavam. Risinhos de chacota, olhares escarninhos de respeitáveis senhoras,
olhares curiosos dos homens (alguns claramente surpresos, outros, porém,
deslumbrantemente desejosos) foram habitués de nosso encontro. Valquíria (cansada
de guerra!) continuava fluente, cheia de si. Entre uma história e outra, não deixava de
verificar o conteúdo das sungas expostas na praia. Conta de seus projetos na ONG
onde trabalha; das brigas internas do movimento político das travestis e transexuais,
afirma que não gosta do termo transgênero – importado, segundo ela, por Camille
Cabral, travesti brasileira vereadora em Paris – prefere utilizar, em documentos oficiais,
a dobradinha travestis/transexuais, mais clara e menos exclusiva. Mais olhares
inquietantes, desestabilizados, curiosos. Mais risinhos – confesso que estava me
sentindo incomodado. Valquíria, alheia ao frenesi que sua presença ali causava,
afirmava, perspicaz: “Rodrigo, depois que se anda de saia e se coloca peito, pra quê
seguir protocolo?”. [Diários de campo, 29/07/2006]
Cena 2
Era domingo e chovia; um dia viscoso com cheiro de terra: clima típico da Feira
do Livro de Porto Alegre. No entanto, o charme século-dezenove da Praça da
Alfândega estava mais cintilante com os roxos, brancos e amarelos dos ipês floridos.
Na tentativa de comprar um livro, lá estava eu no meio da multidão de leitores e leitoras,
visitando cada stand, sem sucesso. O tédio já me dominava. Com um mau-humor
sulfúrico, causado pela decepção de não ter encontrado o desejado livro, aviso meus
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amigos que não suportava mais toda aquela efervescência: ia embora. Porém, algo
inesperado me fez mudar de idéia. Entre as centenas de ávidos/as leitores/as, avisto
uma que me chama atenção, uma leitora-travesti. À época, meu trabalho de campo já
havia terminado, mas a curiosidade pelo universo trans se mantinha. Caminhando entre
o público, abrindo caminhos, com uma nonchalance adquirida com muito treinamento,
essa leitora explorava os stands, sedenta por literatura. Surpreso, decido investigar que
livro ela procurava. A quantidade de pessoas não me permitiu alcançá-la, mas, sub-
reptício, a segui. Sobre altíssimos saltos, elegantemente vestida em uma calça jeans
justíssima e uma blusa negra de cetim, sua figura chamava a atenção de todos/as que,
como ela, tentavam encontrar algum texto para seu deleite. Olhares curiosos,
duvidosos. Comentários incrédulos. A travesti (dias mais tarde fui a ela apresentado,
chama-se Clarissa) mantinha-se intacta, com passos fortes e sensuais. Quando me
aproximei, ela, finalmente, encontrara seu livro. Pensei em puxar assunto, mas sua
excitação diante da obra era tão bela que não tive coragem de interromper aquele
momento epifânico. Tinha em suas mãos um livro de Clarice Lispector – musa
inspiradora de seu nome. Claro, constatei, uma diva só poderia ler outra diva!
Recebendo o troco do vendedor que, irônico, perguntava: Mais alguma coisa, senhor?
Clarissa, balançando seus loiros cabelos e, displicentemente, ajeitando o decote da
blusa, assevera: senhorita! Virando-se, num movimento típico entre as travestis, jogou
primeiramente seus cabelos para, logo a seguir, virar seu corpo, marchando
delicadamente como sobre uma passarela – a rua dos Andradas. O vendedor, atrás do
balcão, confuso, em voz baixa, ecoava as palavras de sua cliente, para, segundos
depois, reclamar com seus colegas que “esse mundo está realmente perdido”. Clarissa,
decidida, ruma a sua casa, ansiosa para entregar-se à leitura de A Legião Estrangeira.
[Diários de campo, 06/11/2005]
As travestis há tempos deixaram de ser obscuras; míticos seres pouco visíveis
que habitavam somente os inóspitos territórios de prostituição dos grandes centros
urbanos brasileiros. Elas já possuem “inscrição popular e social” (SILVA, 1996:22), já
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estão incorporadas às nossas paisagens urbanas (SILVA, 1993:53). Deixaram o
“universo existencial restrito ao gueto” (PERES, 2004:121) e assim inauguram um
processo de mudança político-social: impõem sua presença e, perseverantes em meio
a preconceitos e limitações, mostram à sociedade a permeabilidade das fronteiras entre
os gêneros e a possibilidade de viver nessas fronteiras, de cruzá-las. As cenas
descritas no inicio desta dissertação, observadas por um pesquisador do que Benedetti
(2005) denomina de universo trans, poderiam ter sido presenciadas por qualquer
morador/a de qualquer grande cidade brasileira. Somos constantemente defrontados/as
com a travestilidade:2 em Copacabana, na tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, no
metrô em São Paulo, nos shopping centres, na televisão, nos ônibus, nas áreas de
prostituição, no aterro do Flamengo, na Redenção, nos aeroportos, em nossa
vizinhança. A circulação desses personagens em intensa relação com a sociedade
abrangente (SILVA & FLORENTINO, 1996:107) nos apresenta, concretamente, a
fragmentação e fluidez das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002), a possibilidade
do trânsito entre discursos de identidades nos quais podemos circular. Talvez os risos e
olhares incrédulos dirigidos à Valquíria, em Copacabana, e à Clarissa, no centro de
Porto Alegre, sejam pura e simplesmente frutos do preconceito que relega as travestis à
margem de nossa sociedade. Talvez sejam provocados pela demonstração
corporificada da possibilidade de uma mutação radical, acessível, em princípio, a
qualquer pessoa, que desmantela a estabilidade dos significados disponíveis: podemos
2 Peres (2004) cunha o termo travestilidade, em oposição a travestismo, pois, segundo o autor, esse termo contempla “a imensa complexidade das formas de expressão travesti existentes, considerando a heterogeneidade dos modos de ser no mundo que é configurado pela sub-cultura travesti” (p.120). Esse termo é adotado no decorrer desta dissertação.
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nos tornar quem quisermos, uma vez que tenhamos acesso3 a discursos que nos
possibilitem tal mudança. Essa é uma das desestabilizações causadas pelas travestis:
um homem e uma mulher podem se transformar, corporal, discursiva e simbolicamente,
em mulher e homem.
A intensa presença de travestis em nosso cotidiano nos impinge um processo de
fricção de alteridades que, em grande escala, pode motivar questionamentos sobre
nossas identidades. As travestis caminham entre nós e corporificam, concretamente, a
flexibilidade das identidades sociais. É à descrição desse processo que me dedico
nesta pesquisa. A dissertação foi possibilitada pela minha relação com a ONG
Liberdade, iniciada em 2003 por ocasião da elaboração de outra pesquisa sobre
travestis, requisito para minha graduação no curso de Letras da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (BORBA & OSTERMANN, 2007). Os dados aqui analisados foram
gerados em um período de 12 meses durante o qual acompanhei a rotina de trabalho
da ONG Liberdade. Essa ONG, idealizada e fundada por um grupo de travestis
politicamente engajadas na luta LGBTTT4, visa à melhoria das perspectivas sociais das
travestis na Cidade do Sul. A ONG Liberdade planeja, organiza e implementa projetos
com os mais diferentes propósitos. É sobre um desses projetos que esta dissertação se
debruça. Mais especificamente, ponho sob escrutínio intervenções para entrega de
preservativos às travestis enquanto essas se prostituem nas ruas da Cidade do Sul.
Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que se constroem como mulheres
em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em práticas 3 O acesso a determinados discursos que nos possibilitam transitar por identidades múltiplas, fluidas e fragmentadas é limitado financeira, geográfica, política e culturalmente de acordo com a posição social dos sujeitos em suas comunidades. 4 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Ver Facchini (2005) e Kulick (2000) para uma revisão crítica das variações constantes dos termos utilizados pelas políticas de identidade referentes a esses grupos.
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discursivas que configuram milieux onde indivíduos que têm se construído em discursos
de identidades díspares se encontram, o que pode gerar complexos processos de
negociação e administração das diferenças percebidas e/ou construídas das
interlocutoras. O corpus, para esta investigação, constitui-se de interações entre essas
mulheres e as travestis que recebem os preservativos. Tais interações foram gravadas
em áudio e transcritas segundo as convenções aqui já mencionadas
Guiado por uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais
(MOITA LOPES, 2002, 2003, 2006b) e por um aporte teórico-analítico intitulado táticas
de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo), analiso os
micro-detalhes das interações entre travestis e as duas interventoras na tentativa de
criar inteligibilidades sobre performances identitárias (BUTLER, 2003) que deslocam
posições discursivas convencionalmente ligadas às mulheres e aos homens. Tal
trânsito por uma miríade de discursos de identidades parece ser motivado pelo embate
interacional entre as identidades tradicionais das interventoras e as identidades não-
tradicionais das travestis, o que parece impelir as interventoras e as travestis a elaborar
flutuações identitárias, engajando-se, assim, em projetos identitários específicos,
maleáveis e moventes, durante as intervenções. Argumento que as ativistas da ONG
Liberdade, duas mulheres que têm se construído como heterossexuais de classe
média, posicionam-se em uma diversidade de discursos de gênero que as permite
construir identidades que não fazem parte do seu repertório cotidiano e produzem,
dessa forma, um processo interacional de empoderamento das performances de
identidades de suas interlocutoras transgênero.5 É importante sublinhar que as
5 O termo transgênero engloba uma ampla gama de possibilidades de transformação de gênero elaboradas por indivíduos nos mais diferentes lugares do planeta. Para uma discussão interessante
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dinâmicas discursivo-identitárias emergentes do contexto investigado são co-
construídas entre as participantes dos eventos de fala sob análise. Assim, tanto as
travestis quanto as interventoras têm participação importante no desenvolvimento das
coreografias identitárias e interacionais elaboradas durante as intervenções.
Descrições sobre as dinâmicas interacionais em conversas espontâneas entre
pessoas tradicionalmente generificadas e indivíduos transgêneros são inexistentes na
literatura especializada disponível. Essa é uma das lacunas que este trabalho visa a
preencher. Os estudos sobre indivíduos transgêneros (ver, por exemplo, BARRET,
1998, 1999; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2006; BESNIER, 1997, 2003; BOLIN, 1988;
EPPLE, 1998; HALL & O’DONOVAN, 1996; KULICK, 1998; WIKAN, 1978) têm
analisado as flutuações identitárias em sua fala e sua construção como seres sociais
através da manipulação de uma pletora de recursos discursivos como o sistema
gramatical de gênero (HALL, 2002; HALL & O’DONOVAN, 1996; LIVIA, 1997; BORBA &
OSTERMANN, 2007), as ideologias locais de gênero (BARRET, 1999; BESNIER, 1997;
HALL, 1997, 2005), posições locais e globais através da alternância de códigos
(BESNIER, 2003), entre outros. No entanto, é inexistente a documentação sobre como
pessoas que participam (cotidiana ou esporadicamente) do universo social
compartilhado por transgêneros conversam com tais atores sociais. Kulick (1999:615)
indica que “precisamos saber mais sobre como os indivíduos transgêneros falam com
outras pessoas em seus milieux, e precisamos saber como essas pessoas avaliam e
respondem a essa fala”. Tento encaminhar possíveis respostas a esse desafio lançado
sobre a construção de identidades transgênero nos E.U.A ver Valentine (2003). Para instigantes caracterizações das diferentes formas dos processos de transformações de gênero em outros contextos sócio-históricos ver Levy (1971), Wikan (1978), Bolin (1988), Clastres (1990), King (1993), Besnier (1997), Epple (1998), Benedetti (2002).
22
por Kulick (1999) ao investigar os processos de fricção de identidades produzidos
durante as intervenções.
Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de
alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar
essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos
lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais
seguras e a prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio temático no encontro
internacional da American Association of Applied Linguistics de 2007, na Califórnia
(http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm) o que evidencia um interesse crescente da
comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora investigue somente uma
pequena fatia de tal contexto (prevenção de DST/AIDS entre travestis que se
prostituem), a utilização da categoria táticas de intersubjetividade, como se verá, pode
nos servir de aporte para que analisemos os processos discursivo-identitários que
emergem de tais eventos de fala, nos quais as negociações entre as identidades dos/as
interventores/as e dos/as profissionais do sexo é fator crucial.
Descrevo aqui as implicações interacionais de somente um pequeno extrato do
amplo processo de fricção de alteridades encontrado no mundo contemporâneo:
mulheres e travestis nas zonas de prostituição. Essa fatia, embora muito particular,
pode ser considerada um bom exemplo dos atritos identitários encontrados em maior
escala em nossa sociedade. Investigar a construção de identidades em tal evento
discursivo pode ser um importante passo para poder compreender outros possíveis
jogos de identidades (S. HALL, 2001) que nos circundam cotidianamente; jogos que
marcam nossa vida social com instabilidade, fragmentação e fluidez. Os embates entre
as construções identitárias habituais das ativistas da ONG Liberdade e das travestis
23
emergentes das intervenções são representativos do universo trans (BENEDETTI,
2005). Isso não quer dizer que somente em tal contexto sócio-cultural tais embates
identitários aconteçam. Muito pelo contrário. Defrontamo-nos, constantemente, com
múltiplas alteridades em nosso dia-a-dia, e outras fricções emergem com dinâmicas
discursivo-identitárias específicas. Com as mudanças tecnológicas, econômicas,
científicas e culturais que acompanham os processos de globalização (BAUMAN, 2005;
FRIDMAN, 2000), há uma proliferação de novos costumes, de novos estilos de vida, e
de novas formas de vivenciar práticas identitárias que nos levam a “experimentar a
heterogeneidade da vida humana de frente” (MOITA LOPES, 2003:17), o que, por
conseguinte, nos intima a repensar nossas identidades sociais, a colocá-las em xeque.
Em uma sociedade que, continuamente, produz discursos sobre si mesma (GIDDENS,
BECK & LASH, 1997), “somos diariamente confrontados com um mundo de
reflexividade intensa na qual o questionamento de formas sociais, assim como suas re-
descrições, são práticas diárias” (MOITA LOPES, 2006c:31,32). Esse é o desafio
apresentado pelos processos de fricção alteritárias salientes nas sociedades
contemporâneas: o re-pensar constante sobre quem somos – e sobre quem podemos
ser (ver FOUCAULT, 1995; MOITA LOPES, 2003; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004).
Diariamente, em nossa vida social, nos deparamos com discursos de
identidades que nos fazem questionar a estabilidade de significados, anteriormente
tidos como portos seguros. Dessa forma, somos levados a experienciar os aspectos
mutáveis de nossas identidades, instaurando processos de negociação e re-negociação
de nossas posições de sujeito. As negociações, re-negociações e transformações de
nossas identidades são mediadas no/pelo discurso. Tendo isso em perspectiva,
Chouliaraki e Fairclough (1999) salientam que vivemos em sociedades altamente
24
semiotizadas, nas quais nada pode ser feito sem discurso (SANTOS, 2000), o que
indica que as mudanças nos modos de viver socialmente são cada vez mais
possibilitadas pela linguagem. Como observa Giddens (2000), novos significados
sociais têm desafiado/desestabilizado discursos tradicionais sobre nossas identidades
de gênero, classe social, sexualidade, nacionalidade e tal desestabilização é, em parte,
causada pela proliferação de possibilidades de arranjos identitários do mundo
contemporâneo. Faz-se crucial criar inteligibilidades sobre como as identidades são
discursivamente produzidas e re-negociadas em meio ao turbilhão de outras possíveis
identidades a nós apresentadas cotidianamente. Ao investigar como as interventoras e
as travestis da Cidade do Sul constroem múltiplas possibilidades identitárias em
embates interacionais, a pesquisa apresentada aqui lança luz sobre processos de
fricção de alteridades mais abrangentes ao descrever as táticas de construção e re-
construção de identidades que a defrontação de arranjos identitários multifacetados e
transitórios parece motivar. Para tanto, a pergunta focal que orienta a pesquisa é: quais
são as táticas discursivas de construção identitária emergentes das interações
construídas durante as intervenções para prevenção de DST/AIDS nos territórios de
prostituição travesti da Cidade do Sul?
Faz-se necessário, neste momento, esclarecer os motivos pelos quais me refiro
às travestis no feminino. Gramaticalmente a palavra travesti é descrita como um
substantivo masculino. Porém, o uso feito dessa palavra e de pronomes, adjetivos e
substantivos para se referir a travestis, na comunidade estudada, indica que formas
femininas são a escolha preferida, não-marcada entre as participantes dessa pesquisa.
Essa é uma estratégia lingüística utilizada por diferentes comunidades de transgêneros
no mundo a qual Kira Hall (2002:140) rotula de supercompensação de gênero, ou seja,
25
uma subversão das determinações gramaticais que visa à construção de uma
identidade de gênero discursivo coerente com as performances generificadas dos
indivíduos em tais comunidades. Ademais, como vimos no comentário sarcástico do
vendedor de livros à Clarissa (cf. cena 2, acima), a utilização da desinência masculina é
uma forma comumente utilizada para negar o gênero construído pelas travestis,
subestimando, assim, a produção cultural e corporal de suas identidades e as
relegando a um não-lugar social. Como observa o antropólogo Don Kulick, utilizar o
masculino ao falar sobre travestis “é uma forma de colocá-las de volta em seu lugar
social (decentemente generificado), uma maneira de negar e se defender das
possibilidades que existem no sistema de gênero” (KULICK, 1997:582), possibilidades
de transitar de uma categoria a outra; ou de se posicionar na intersecção das
categorias de gênero (BORBA & OSTERMANN, 2007). Além disso, a feminilização da
palavra travesti é um dos objetivos políticos do movimento nacional de transgêneros.6
Portanto, ao me referir às travestis no decorrer do texto, utilizo o feminino gramatical
que, além de ser uma categoria êmica, é também uma forma de (1) assegurar-lhes a
construção consistente do gênero feminino e (2) manter-me alinhado aos ideais da
ONG Liberdade.7
Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, “A
zona de batalha: contexto e metodologia de pesquisa”, caracterizo os procedimentos
metodológicos que guiaram na construção da pesquisa. Nesse capítulo, descrevo o
apoio dado pela ONG Liberdade à realização deste estudo, os instrumentos geradores
6 Para discussões sobre as relações entre gênero gramatical e indivíduos transgêneros ver Borba e Ostermann (2007), K. Hall (2002), Hall e O’Donovan (1996) e Lívia (1997). 7 A ONG Liberdade faz parte de um grupo nacional de instituições organizadas por travestis. Para conhecer alguns dos projetos e ideais do movimento nacional das travestis e transexuais, organizados pela ANTRA – Articulação Nacional das Trans, acesse http://www.abglt.org.br/port/index.php.
26
de dados e os dados analisados aqui. Também teço algumas considerações sobre a
etnografia realizada entre travestis da Cidade do Sul e sobre as relações (necessárias)
entre prevenção de DST/AIDS e lingüística aplicada.
O segundo capítulo, “Discursos e identidades: construindo o referencial teórico”,
apresenta o aporte teórico que guia o estudo. Nesse capítulo, discuto a visão
socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, caracterizando como as
identidades são neste estudo consideradas: com base em uma perspectiva não-
essencialista/não representacional das relações entre linguagem e identidades enfatizo
os processos discursivos de sua construção interacional e contextual (MOITA LOPES,
2002, 2003, 2006b).
No terceiro capítulo, “(Re)construindo identidades na interação: as táticas de
intersubjetividade”, apresento o referencial analítico sobre o qual a interpretação das
negociações de identidades entre interventoras e travestis é estruturado. Aqui,
descrevo, também, os mecanismos lingüísticos utilizados na construção de
inteligibilidade sobre as táticas de intersubjetividade e sobre as relações identitárias
produzidas entre as interagentes.
“Alteridades em fricção: interventoras, travestis e a construção de identidades na
prevenção de DST/AIDS” é o quarto capítulo. Aqui, analiso os dados gerados durante o
período de trabalho de campo em conjunto com a ONG Liberdade. Foco minha atenção
nas táticas de intersubjetividade utilizadas por interventoras e travestis ao construírem
relações identitárias especificas com base nas flutuações de identidades efetuadas
pelas participantes dos eventos. Ver-se-á um amplo spectrum de identidades sendo
encenado pelas participantes das intervenções. As interventoras e as travestis valem-
se de uma grande gama de discursos e constroem identidades que, como as análises
27
tentam descrever, podem ser creditadas ao processo de alteridades em fricção que
emerge durante as intervenções.
28
1. A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE
PESQUISA8
Cena 3
Estávamos em agosto e o frio era tórrido. Cheguei à sede da Liberdade, numa terça-
feira à tardinha, mergulhado em um turbilhão de sentimentos que me usurpavam o
sossego: ansiedade, curiosidade, excitação, medo, insegurança; minha primeira
incursão efetiva no mundo da noite travesti era iminente. Cassiana, a coordenadora da
ONG, permitira minha participação nas intervenções para prevenção de DST/AIDS
organizadas pela instituição. À época, todos os procedimentos para a realização das
observações e gravações desses eventos, de modo a garantir um comportamento ético
em todos os estágios da pesquisa, haviam sido tomados: durante o mês anterior a essa
fria terça-feira de agosto, Cassiana e eu explicamos às travestis participantes das
reuniões semanais da Liberdade as idiossincrasias da investigação e distribuímos os
termos de consentimento livre para serem assinados por quem quisesse participar.
8 Batalha é o termo êmico utilizado pelas travestis na comunidade investigada para se referir ao seu trabalho na prostituição.
29
Quando entrei na sala da ONG, num tradicional prédio comercial no centro da Cidade
do Sul, Sandra e Márcia, respectivamente advogada e secretária da ONG, depois de
cumprimentos efusivos e reclamações sobre o clima, voltam ao trabalho que minha
aproximação interrompera: organizavam as dezenas de caixas de preservativos e
saches de gel lubrificante recém recebidos da Secretaria de Saúde. Segundo suas
previsões, naquela noite, devido ao frio, poucas travestis deveriam estar nas ruas, “mas
nunca se sabe né Rodrigo, essas monas9 são corajosas!” Rodeadas por camisinhas e
lubrificantes, a advogada e a secretária da Liberdade aproveitam esse momento de
descontração para desabafar algumas angústias de suas vidas pessoais. Márcia
começara um processo de divórcio: “não agüento mais aquele traste”, dizia. Sandra dá
alguns conselhos jurídicos a sua colega, mas se mostra mais preocupada com as filhas
do casal: “no começo é muito difícil, elas vão sentir falta dele, tu tem que ser forte”.
Descolada nesse assunto, Sandra já havia dado fim a dois casamentos. Tudo isso era
comentado num clima muito descontraído. No entanto, apesar dos risos e do savoir
vivre do momento, Sandra me parecia tensa. Pergunto o que estava acontecendo. A
advogada dizia-se muito preocupada, pois dois de seus filhos haviam decidido prestar
serviço militar ao exército de Israel: “ai, Rodrigo, não quero ficar longe dos meus
filhos”.Tento acalmá-la dizendo que isso é temporário, “logo logo eles mudam de
idéia.”10 Depois das fofocas, conselhos e desabafos, o negro da noite já dominava as
ruas da cidade. Márcia, preparada para batalha, leva consigo mais de 300 preservativos
a serem distribuídos. Sandra, num rompante, levanta-se, procura pelas chaves do carro
e, sorridente, anuncia: “Zona, aqui vamos nós!”. [Diários de campo, 07/10/2003]
9 Mona é um termo êmico utilizado por travestis (e também pelas interventoras) para se referir às travestis. A utilização desse termo é, juntamente com bicha, uma forma de manter o uso de desinências gramaticais femininas consistente, em oposição à palavra travesti (ver, KULICK, 1998; BENEDETTI 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007). 10 Em fevereiro de 2007, em uma visita à nova sede da ONG, fico sabendo que Sandra se preparava para uma viagem a Israel. O Governo israelense havia lhe enviado passagens para que ela pudesse visitar os filhos. À época, o filho mais novo de Sandra fora designado a trabalhar na Faixa de Gaza o que motivara o Governo daquele país a proporcionar a advogada uma estada de quinze dias junto a seus filhos. Sandra mostrava-se muito preocupada, pois, sabendo do constante estado de guerra naquela parte do mundo, não queria que seu filho fosse para lá enviado.
30
Há aproximadamente três décadas, testemunhamos o surgimento da epidemia
causada pelo vírus HIV que, desde então, tem intensificado o interesse coletivo acerca
de como exercemos nossa sexualidade e dos problemas de saúde que o vírus pode
acarretar. O sexo nunca foi tão visado por discursos públicos e privados que, para o
bem ou para o mal11, têm construído regimes de verdade (FOUCAULT, 1996) sobre
como indivíduos podem, ou não, ter um comportamento sexual considerado em risco de
infecção. Dentro desse afã discursivo, governos têm tentado conscientizar a população
sobre os riscos de contaminação pelo vírus e sobre como se distanciar da possibilidade
de ser por ele atingido.
No contexto brasileiro, as três esferas governamentais têm se ocupado, desde o
final da década de 1980, da conscientização da população por meio de grandes
investimentos em projetos publicitários e sociais que visam a espalhar a idéia da
necessidade e da importância da prática de sexo seguro (PARKER, 2002; UZIEL, RIOS
& PARKER, 2004). Quem não lembra do mote carnavalesco bota a camisinha, bota,
meu amor? Ou do emocionante depoimento da atriz Sandra Bréa que, atingida pelo
HIV, falou publicamente, no início dos anos 1990, sobre como se proteger da
contaminação? Ou de Cazuza, um dos ícones da cultura jovem brasileira dos anos
1980? Desde então, o governo brasileiro tem patrocinado e orientado projetos de
ONGs-AIDS que, das mais variadas formas, vêm tentando minimizar os riscos de
contaminação através de políticas de enfrentamento a comportamentos de risco.
11 Para o bem, esses discursos têm disponibilizado informações a camadas muito distintas da sociedade e espalhado a necessidade do sexo seguro com relativo sucesso. Para o mal, esses mesmos discursos, desde o inicio da epidemia, têm construído certos grupos de indivíduos como portadores em potencial do vírus. Essas construções (lembre-se que na década de 1980 a AIDS era conhecida como o “câncer gay”) têm estigmatizado grupos que, como veremos mais adiante, vêm tentando se livrar dos rótulos criados pelos discursos da AIDS a partir de ações afirmativas como, por exemplo, o ativismo político de ONGs como o Grupo Gay da Bahia e o Nuances em Porto Alegre.
31
Um dos projetos apoiados pelo Governo brasileiro constitui-se de intervenções
durantes as quais ativistas de ONGs visitam as zonas de prostituição das cidades para
distribuir preservativos aos indivíduos ali presentes. É nesse contexto que esta
pesquisa se insere. Com base em dados gerados durante 12 meses de trabalho de
campo nos anos de 2003 e 2004, trago à baila uma discussão sobre intervenções para
prevenção de DST/AIDS elaboradas pela ONG Liberdade entre travestis profissionais
do sexo12 de uma região urbana do sul do Brasil. Durante as intervenções, duas
mulheres empregadas pela ONG, Márcia, a secretária, e Sandra, a advogada, entregam
preservativos às travestis e se engajam em interações que, a meu ver, são estruturadas
com base na negociação das identidades de gênero e de sexualidade das
interlocutoras participantes desses eventos. Em tal negociação, as participantes dos
eventos discursivos aqui investigados transitam por uma miríade de discursos de
identidades construindo-se, dessa forma, em múltiplas, moventes e multifacetadas
posições de sujeito.
Neste capítulo, desenho os cenários sócio-culturais nos quais a presente pesquisa
foi realizada. Primeiramente, descrevo os dados gerados durante minha incursão
etnográfica no universo da ONG Liberdade e caracterizo minha posição no processo da
investigação. A seguir, situo sócio-historicamente o surgimento da ONG Liberdade, cujo
apoio foi fundamental para a realização desta pesquisa, para, logo após, fazer uma
descrição das intervenções para prevenção de DST/AIDS organizadas pela equipe
dessa organização não-governamental. 12 Segundo Denis Altman (1995:102-103) o termo [profissional do sexo] tem conotações muito diferentes do mais comum ‘prostituta’. [Esse termo] implica uma definição particular[...]: se alguém pratica sexo principalmente para fazer dinheiro essa pessoa é, ipso facto, um/a profissional do sexo. ‘Prostituta’ é um termo mais ambivalente, reconhecido em seu uso comum para descrever aqueles/as que praticam todo tipo de atividades não-sexuais; jornalistas, políticos/as e advogados/as são comumente acusados/as de ‘prostituirem-se’, mesmo quando não há referência à transação financeira envolvendo sexo.
32
1.1 Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados
Na tentativa de criar inteligibilidades sobre os processos discursivos produzidos
por fricções de alteridades, no caso em tela entre travestis e interventoras, mas, de
forma mais ampla, sobre fricções de identidades fabricadas pela proliferação de
diferentes e multifacetados modos contemporâneos de viver socialmente, apresento
uma descrição etnográfica do universo da ONG Liberdade. Essa descrição
contextualiza as práticas discursivas aqui em análise. A caracterização etnográfica das
práticas da ONG Liberdade situa sócio-historicamente as intervenções cujas análises
constituem o cerne desta pesquisa.
A ONG Liberdade é dirigida por travestis, contudo, duas mulheres que se
constroem como heterossexuais de classe média trabalham na ONG com funções
burocráticas essenciais para o desenvolvimento eficiente de seus projetos. Procuro
fazer uma descrição densa (GEERTZ, 1989) da estrutura social das intervenções da
qual a análise dos micro-detalhes das interações que as constituem é parte crucial.
Geertz (1989) indica que
Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (p.20)
33
Seguindo Geertz, através de observações não-participantes, descrevo as
práticas sociais que constituem essa instituição. Mais precisamente, ao observar as
práticas da ONG Liberdade e ao participar das entregas de preservativos às travestis
em seus territórios de batalha, caracterizo sua construção discursiva e investigo a lógica
social sob a qual as intervenções são construídas. Para tanto, além de prestar atenção
aos exemplos transitórios de comportamento modelado, investigo os usos feitos da
linguagem na estruturação dessas práticas e das pessoas que nelas se envolvem.
Essa interpretação é elaborada por meio das seguintes ferramentas de pesquisa:
• Incursão de cunho etnográfico no universo social da ONG Liberdade nos anos de
2003 e 2004.
• Gravações em áudio de conversas espontâneas entre travestis e interventoras
da Liberdade durante intervenções para entrega de preservativos nas áreas de
prostituição da Cidade do Sul.
• Gravações em áudio de conversas espontâneas na sede da Liberdade.
• Transcrições desses eventos de fala.
• Notas de campo sobre as práticas travestis dentro e fora das zonas de
prostituição.
• Fotos de cunho etnográfico feitas durante as intervenções
• Entrevistas semi-estruturadas com travestis e com a equipe da ONG elaboradas
na sede da Liberdade gravadas em áudio.
34
É importante enfatizar, porém, que as análises a serem apresentadas aqui são
principalmente baseadas nas gravações das intervenções. O corpus, portanto, constitui-
se de interações entre as interventoras e as travestis que recebem os preservativos.
Contudo, utilizo as entrevistas semi-estruturadas, as conversas espontâneas e as fotos
como ferramentas de apoio e de triangulação para a construção de inteligibilidade sobre
as práticas que constituem o universo social que circunda a ONG Liberdade e suas
participantes.
As gravações das intervenções, especificamente, ocorreram no período de
agosto a dezembro de 2003. Durante esses meses, acompanhei a equipe em cinco
intervenções que foram gravadas e transcritas. Aproximadamente doze abordagens13
ocorriam por intervenção14 o que constitui um total de sessenta interações e
aproximadamente oito horas de gravação.
Ademais, utilizo, no decorrer da dissertação, textos extraídos dos meus diários
de campo. Durante minha inserção no universo da ONG Liberdade, observei o cotidiano
de sua equipe e de aproximadamente 40 travestis ativistas da instituição, em vários
lugares de sociabilidade ocupados por elas na Cidade do Sul. Os diários de campo são
fruto do árduo trabalho de observar, participar, conversar (e por vezes silenciar) e
escrever sobre o campo, constituindo parte importante dos dados gerados.
No entanto, minhas observações não cessaram com o fim do trabalho de campo,
em meados de 2004. Com a sólida inserção de travestis no cotidiano dos grandes
centros urbanos brasileiros, não é raro encontrá-las nas esferas públicas de nossa vida
13 Abordagem é o termo utilizado pelas interventoras para se referir ao ato de parar o carro da ONG Liberdade para entregar preservativos a uma travesti (ou a um grupo de travestis) encontrada(o) em sua área de prostituição. 14 Intervenção refere-se ao projeto da ONG como um todo. Cada intervenção para distribuição de preservativos é composta por várias abordagens.
35
social: mercados, praias, parques etc. Tendo isso em mente, também elaborei
observações não sistematizadas de encontros esporádicos com travestis em diversos
eventos sociais, exemplos dessas descrições são as cenas que iniciam a introdução
desta dissertação (cf. cena 1 e 2). Tais descrições são aqui indicadas igualmente por
“diários de campo”, porém constituem um tipo específico de diário, elaborado em tempo
e espaços que extrapolam o perídio inicial de trabalho de campo. No decorrer da
dissertação, utilizo excertos dos dois tipos de diário de campo. Esses excertos têm por
objetivos: (1) ambientar o/a leitor/a com o universo da pesquisa através de descrições
minuciosas de eventos sociais relevantes para que se possa vislumbrar, mesmo que
parcialmente, os significados construídos no dia-a-dia da ONG Liberdade; (2) ilustrar o
processo de inserção de travestis na paisagem urbana de cidades por onde passei; e
(3) enquadrar capítulos e seções da dissertação, ligando-as, dessa forma, com meu
objeto de pesquisa.
É de crucial importância observar que a utilização de todos os dados
supradescritos foi consentida pelas travestis participantes dos projetos da ONG
Liberdade e pelas interventoras. Um termo de consentimento dando-me autorização
para fazer uso das informações geradas, das gravações, das fotos e dos diários de
campo foi assinado por todos os indivíduos que colaboraram com a realização desta
pesquisa (para uma discussão detalhada dos procedimentos éticos da pesquisa, ver
BORBA, 2005:27; 113).
Como mencionado acima, os dados foram gerados por meio de observações
não-participantes durante as quais acompanhei a equipe da Liberdade quando essa
entregava preservativos às travestis. Acredito que seja fundamental, neste ponto,
discutir meu envolvimento com os eventos sob escrutínio. No ano de 2003, durante a
36
realização de outra pesquisa sobre travestis elaborada como pré-requisito para minha
graduação no curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
(ver BORBA, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), em uma entrevista com a travesti
coordenadora da ONG Liberdade fui alertado sobre a realização dessas intervenções.
Logo me interessei. Perguntei a ela se eu poderia participar do projeto e recebi, com
entusiasmo, uma resposta afirmativa. Tendo adquirido a permissão da ONG e o
consentimento das travestis que recebem os preservativos para gravar em áudio as
interações, comecei a acompanhar a equipe da Liberdade em suas inserções no
“mundo da noite” da Cidade do Sul. É importante notar, contudo, que eu não entregava
as camisinhas. Portanto, eu não era um participante ativo dos eventos. Minha
participação nessas práticas era de observador. No entanto, minha presença (e a
presença do gravador) era sempre explicitada às travestis abordadas pela equipe.
O que acabo de descrever é relevante, pois, como sugere Freitas (2002),
O pesquisador [sic] é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. (p.28)
Isso quer dizer que a compreensão que construí durante o trabalho de campo no
universo de pesquisa é uma interpretação feita por um mestrando, que tem se
construído como gay, militante das causas LGBTTT, de classe média, branco, gaúcho,
feminista. Minha carga identitária é determinante da leitura que apresento das
identidades confeccionadas pelas travestis nas interações com as interventoras e vice-
versa.
37
Está claro, portanto, que as relações intersubjetivas que estabeleci com os
sujeitos da minha pesquisa também são relevantes para essa interpretação. Durante os
mais de 3 anos de relacionamento com a equipe da Liberdade, construí laços bastante
fortes de amizade, cumplicidade, respeito e admiração. Assim, não sou considerado na
comunidade simplesmente como um pesquisador, estranho aos seus valores e práticas.
Tanto a equipe da ONG como as travestis me vêem como um sujeito muito próximo
delas e de seu mundo. Freitas (2002) indica que “o pesquisador [sic] ao participar do
evento estudado constitui-se parte dele, mas ao mesmo tempo mantém uma posição
exotópica que lhe possibilita o encontro com o outro” (p.32). Essa posição paradoxal
do/a pesquisador/a, i.e. ao mesmo tempo dentro e fora dos eventos pesquisados, me
parece essencial para que possamos entender as práticas com uma visão êmica e para
descrevê-las de um modo que possa captar suas nuances em diversos níveis, o que
pode passar despercebido por aqueles e aquelas que vivem essas práticas diretamente
em seu cotidiano.
1.2. A construção do ativismo político das travestis
38
Grosso modo, travestis são indivíduos biologicamente masculinos que, através
da utilização de um complexo sistema de techniques du corps (MAUSS, 1996), moldam
seus corpos com características ideologicamente ligadas ao feminino15. Essa
construção de uma identidade feminina sobre um corpo masculino ilustra o caráter
inventado, multifacetado, maleável e instável das identidades sociais. Por subverter e,
assim, desestabilizar práticas semióticas disponíveis para a construção do gênero
social e sentidos históricos associados a práticas corporais, sexuais e de gênero
valorados positivamente, as travestis têm sido sumariamente estigmatizadas na
sociedade brasileira. Não são raras as histórias sobre violência (real e simbólica)
infligida contra as travestis colaboradoras desta pesquisa. Casos de travestis
assassinadas e feridas por clientes e/ou transeuntes foram freqüentes em minhas
conversas com as travestis que se prostituem na Cidade do Sul, participantes dos
projetos da Liberdade.
Por viver nos limiares discursivos dos gêneros, as travestis têm sido
marginalizadas e impedidas de levar suas vidas fora da prostituição. Preconceito,
violência, estigmatização e a impossibilidade de viver “durante o dia” levaram um grupo
de travestis, politicamente engajadas, a estruturarem uma organização não-
governamental que visa à melhoria das perspectivas sociais das travestis na Cidade do
Sul.16 No entanto, o surgimento do ativismo político travesti só pode ser entendido com
15 Ver Benedetti (2000, 2005); Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, 2005b) para discussões instigantes sobre a construção da corporalidade travesti e seus significados em diferentes comunidades de travestis no Brasil. 16 A ONG Liberdade faz parte de uma rede nacional de instituições, coordenada por travestis, que direciona seus trabalhos à prevenção de DST/AIDS entre travestis e à luta pelos direitos humanos desse grupo. Há uma estrutura hierárquica no movimento nacional de travestis e transexuais. A instância mais alta e mais próxima do Governo Federal é a ANTRA (Associação Nacional de Travestis) que, sob a liderança da presidente Keyla Simpson, organiza e agenda política das ONGs estaduais. A rede de ONGs ligadas à ANTRA espraia-se por todo território nacional, tendo representantes na grande maioria
39
referência a um contexto mais amplo de ativismo político homossexual e seu
engajamento com temas relacionados à AIDS. Acredito que a historicização do
surgimento desses movimentos faz-se necessária, pois como observam Daniel e Parker
(1990), embora as travestis não tenham sido sempre bem-vindas dentro do ativismo
gay e/ou contra AIDS, esses movimentos sociais influenciaram grandemente o
conteúdo e a organização estrutural do ativismo travesti. É à descrição desse contexto
que me dedico a seguir.
1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política de
travestis no Brasil
Depois de anos sob um regime ditatorial rígido, no final da década de 1970, o
Governo brasileiro iniciou um lento processo de redemocratização que terminaria
somente em 1989. Esse processo foi chamado de abertura. Essa abertura gerou uma
intensa mobilização social e política. A partir do final dos anos 1970, houve um boom de
ativismos sociais com movimentos como organizações de trabalhadores, organizações
feministas, grupos ambientalistas e grupos Afro-brasileiros. Baseados em ideais
democráticos, esses movimentos sociais representaram uma mudança na política social
brasileira e sua tradição clientelista e populista (TREVISAN, 1986; PAKER, 2002).
dos estados brasileiros. A criação dessa grande rede de ONGs como a Liberdade emergiu no final dos anos 1990, por motivos discutidos ao longo deste capítulo.
40
Esses movimentos serviram como força motriz para outros setores políticos e sociais
que se opunham à ditadura (ver, por exemplo, MCRAE, 1985; TREVISAN, 1986;
KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004).
É nesse contexto que nasce a política de identidade17 homossexual no Brasil.
Guiados/as pela premissa de que a sexualidade é, fundamentalmente, um terreno de
luta política e de emancipação individual (GIDDENS, 1993), os primeiros movimentos
políticos de gays e lésbicas visavam à luta contra a estigmatização; tentavam com suas
manifestações, nesse momento relativamente tímidas, minar o tripé opressão-privação-
discriminação (MELLO, 2005) que limitava (e ainda limita) suas vidas sociais a espaços
de socialização muito restritos. Facchini (2004:153) indica que, em seus primórdios, o
movimento homossexual brasileiro “definia seu projeto de politização da questão da
homossexualidade em contraste às alternativas presentes no ‘gueto’ [...], possuíam
uma atuação qualificada pelos militantes como ‘não-politizada’ por estar exclusivamente
voltada para a ‘sociabilidade’”. Dessa forma, os gays e as lésbicas engajados/as no
movimento almejavam a desguetização da homossexualidade, tentando ocupar loci
sociais além dos restritos lugares de socialização que encontravam à época.
Em 1979, o primeiro jornal brasileiro que era endereçado explicitamente à
população gay foi lançado: O Lampião. Nesse mesmo ano, em São Paulo, o grupo
SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual foi criado (MCRAE, 1985; KULICK &
KLEIN, 2001; FACCHINI, 2005). Durante esse período, alguns outros grupos de
liberação homossexual foram organizados em várias cidades do país. McRae (1985)
17 O termo “política de identidade” é utilizado em referência ao “movimento cultural em que grupos tradicionalmente secundarizados (tais como as mulheres, os sujeitos negros, as chamadas minorias sexuais, os vários grupos étnicos) levantam sua voz, reclamando o direito de se auto-representar, de falar por si e de si” (LOURO, 2002:231).
41
observa a existência de aproximadamente 20 grupos de ativismo homossexual em
meados dos anos 1980. Nesse primeiro momento de organização política homossexual,
os grupos ativistas enfatizavam, em suas agendas, as dimensões subversivas da
sexualidade, incluindo liberdade sexual e androginia (TREVISAN, 1986). Um ponto
importante a ser notado sobre esse primeiro momento de ativismo homossexual
brasileiro é o fato de que em vez de contestar a marginalidade dos homossexuais, os
lideres desses grupos afirmavam que o lado “vergonhoso” da homossexualidade (como
comportamentos efeminados e promiscuidade) não deveria ser somente experienciado
no nível pessoal, mas sim, constituir um fenômeno criativo contra a força autoritária de
uma sociedade patriarcal (KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004, 2005).
A partir da segunda metade da década de 1980, os grupos de afirmação
homossexual, que nessa época agregavam intelectuais, ativistas políticos e feministas
engajados/as na luta para a total democratização da sociedade brasileira, mudam seu
foco de atuação (TREVISAN, 1986; PARKER, 2002). Seguindo ideais do ativismo gay
norte-americano,
Os pervertidos assumidos, aos quais de início foi concedido um espaço público cuidadosamente obscurecido, tornaram-se altamente expressivos em prol da causa própria. [...] Falavam por si mesmos em manifestações de rua e nos corredores, através de panfletos, jornais e livros, e pela semiótica de ambientes altamente sexualizados, com seus elaborados códigos e padrões, cores e roupas, nos meios de comunicação popular e nos detalhes mais materiais da vida doméstica (WEEKS, 1985:213).
Almejavam o reconhecimento das possíveis e múltiplas formas de existência
sexual com o intuito de dar visibilidade social aos que eram considerados/as
42
aberrações da natureza; ameaças à vida social normal e bem regulada. A partir do final
dos anos 1980, um período de transformações profundas do movimento LGBTTT
brasileiro (FACCHINI, 2004), diferenças de orientação sexual, política, racial, de classe
social e de gênero estabeleceram uma profunda ruptura no ativismo homossexual no
país. Nessa época, O Lampião fechou suas portas e o grupo SOMOS, por causa de
conflitos internos, fragmentou-se em outros grupos com diferentes agendas políticas
(TREVISAN, 1986; FACCHINI, 2005). Foi aproximadamente nesse momento da história
do movimento que a epidemia da AIDS começou a se espraiar. Como sugere Altman
(1995:99),
a AIDS apareceu em uma época histórica que tinha vivenciado o desenvolvimento do gênero e da sexualidade como bases para mobilização política e muitas das mais efetivas respostas à nova epidemia foram moldadas por discursos e experiências de certos movimentos sociais.
Podemos afirmar, sem dúvida, que o movimento homossexual teve (e ainda tem
hoje) grande influência na estruturação de ações contra a epidemia. Instauravam,
assim, um projeto político de despatologização da homossexualidade, tentando, através
de investimentos publicitários, panfletos, manifestações de rua, afastar as idéias de que
a homossexualidade é uma doença e, acima de tudo, que a AIDS seria um “câncer
gay”, idéia corrente na época. Com o engajamento de grupos homossexuais na luta
contra a AIDS e com a criação das ONGs-AIDS, no início da década de 1990, o
Governo brasileiro viu-se forçado a patrocinar projetos de enfrentamento e prevenção
da doença. Em meados da década de 1990, o país recebeu um empréstimo de 160
43
milhões de dólares do Banco Mundial (KULICK & KLEIN, 2001). Com parte desse
montante, o Ministério da Saúde apoiou as ONGs-AIDS e ONGs de ativismo LGBTTT
na luta contra a epidemia. A partir de então, as instituições não-governamentais que
estavam na luta de conscientização e prevenção à epidemia causada pelo vírus HIV
tiveram autonomia para elaborar projetos para grupos específicos.
Observe que na breve historicização do surgimento, no Brasil, dos movimentos
homossexuais e de prevenção à AIDS acima oferecida, a participação das travestis não
é mencionada. Isso tem uma surpreendente razão. As travestis, na história da
organização do movimento político homossexual brasileiro, eram quase que
sumariamente excluídas desses grupos, sendo relegadas a uma fatia inexpressiva dos
movimentos e de seus projetos político-sociais. Talvez essa exclusão esteja relacionada
ao fato de que os/as militantes preferiram não trazer à tona a figura das travestis, por
essas subverterem as regras hegemônicas de como lidar com o corpo e a sexualidade.
Isso impeliu as travestis a uma dupla exclusão: dos grupos ativistas pelos quais
deveriam ter sido acolhidas e da sociedade em geral. A figura das travestis só veio
fortemente à tona, nesse cenário, quando da criação de algumas ONGs-AIDS que, em
seus projetos de prevenção e conscientização sobre a doença, incluíram-nas no seu
escopo de atuação (ver, por exemplo, KLEIN, 1998).
Foi nesse contexto que a ONG Liberdade nasceu. Idealizada por algumas
travestis que participavam dos grupos sistemáticos de discussão sobre prostituição de
uma das sedes do Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA), a Liberdade foi
inaugurada em 1999 a partir dos esforços de travestis que se viam desprivilegiadas nos
projetos implementados pelo GAPA que, segundo as travestis participantes da
Liberdade, não eram especificamente voltados aos problemas sociais sofridos pelas
44
travestis. Esses projetos tinham como principal foco de sua atenção a prevenção de
DST/AIDS entre profissionais do sexo da Cidade do Sul. Porém, a infecção pelo vírus
HIV não é o único problema enfrentado pelas travestis, especialmente aquelas que se
prostituem. Violência, discriminação, falta de acesso à escolarização e ao mercado de
trabalho, segregação, problemas de saúde causados pela utilização de silicone e
hormônios femininos dão às travestis uma vida com muitos obstáculos. Insatisfeitas
com esse cenário, Cassiana, Marcela, Claudia e Cynthya engajaram-se na organização
da ONG Liberdade. Essa ONG idealiza, organiza e implementa projetos com os mais
diferentes propósitos: da diminuição dos danos causados pela injeção de silicone
industrial nos corpos das travestis à distribuição de preservativos nas áreas de
prostituição da cidade. Em outras palavras, esse é o cenário sócio-cultural onde o
presente estudo se insere, ou seja, o âmbito institucional dessa ONG e seus projetos
com as travestis da cidade.
1.2.2. As intervenções
Cena 4
Saímos do posto de gasolina onde distribuíamos preservativos para caminhoneiros,
costumeiros clientes das travestis, às 19:00. A noite já tinha caído e, embora a
primavera já começara, fazia bastante frio. As intervenções foram criadas pela equipe
da Liberdade e são patrocinadas pelo Ministério Público que fornece as camisinhas. O
combustível é pago com dinheiro particular, da advogada e da secretária, pois o
ministério não disponibiliza verba para esse tipo de serviço.
45
Sandra, Márcia e eu percorremos a cidade de norte a sul à procura de pontos de
prostituição de travestis. Segundo depoimentos, as zonas de batalha, como são
popularmente chamadas, eram em maior número há alguns anos. No entanto,
problemas com a polícia, governo, drogas, clientes e dinheiro provocaram uma queda
no número de travestis que trabalham nos territórios de prostituição da Cidade do Sul.
As intervenções são executadas todas as terças, caso não chova e/ou o carro da ONG
não esteja estragado. A equipe começa o trabalho aproximadamente às 17 horas, com
os caminhoneiros, e termina na zona sul da capital, não antes do inicio da madrugada.
Somente travestis são beneficiadas com o serviço. Segundo Márcia, mesmo que
sobrem preservativos, ela não os distribui entre as prostitutas mulheres por dois
motivos: “elas têm a ONG delas que ganhou o carro pra fazer a intervenção, mas não
faz. Eu não dou camisinhas pra putas porque eu prefiro as mona.” [Diários de campo,
30/09/2003]
Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que têm se construído como
mulheres em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em
práticas discursivas que, como tento argumentar neste trabalho, configuram ricos
milieux para a subversão das construções discursivas normativas de identidades de
gênero. Essas intervenções acontecem às terças-feiras à noite. Normalmente, Sandra e
Márcia deixam a sede da Liberdade aproximadamente às 19 horas e percorrem cerca
de quatro pontos de prostituição rueira nos quais a travestis vendem seus serviços, de
norte a sul da cidade.
O projeto das intervenções tem apoio dos Governos Federal e Estadual que
concedem à ONG os preservativos a serem distribuídos. Tais intervenções são
efetuadas em um carro, doado à Liberdade pelo Ministério Público, que é dirigido por
Sandra. Márcia, durante as intervenções, encarrega-se de entregar os preservativos às
46
travestis abordadas e de anotar em um relatório o número de preservativos entregue
em suas incursões semanais no mundo da noite. Durante minha observação das
intervenções, eu ficava no banco de trás do carro, com meu gravador em mãos, atento
às interações produzidas entre interventoras e entre interventoras e travestis.
Segundo o estatuto da ONG Liberdade, essas intervenções visam (1) à
distribuição de preservativos e saches de gel lubrificante às travestis nos seus territórios
de prostituição e (2) ao anuncio dos diversos serviços prestados pela instituição, como
por exemplo, as reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde, workshops,
aconselhamento sobre questões legais elaborados por Sandra e outra advogada
associada à ONG. Segundo a travesti presidente da Liberdade, a incursão de
representantes oficiais da ONG nos territórios de prostituição travesti da Cidade do Sul
tem aumentado a popularidade da organização, pois ao inserir-se em ambientes nos
quais um grande número de travestis se encontram, Sandra e Márcia têm a
possibilidade de atingir uma gama maior de profissionais do sexo e tentar convencê-las
a participar dos grupos de ativistas ligados à Liberdade. Faz-se mister observar que,
durante as intervenções, Sandra e Márcia, além de exercer as funções institucionais
que motivam suas visitas às áreas de prostituição de travestis, engajam-se em
interações sobre os mais diversos assuntos relacionados às travestis: suas relações
com clientes e namorados, violências sofridas, fofocas sobre outras travestis, dicas de
moda etc. É interessante observar que nada é dito sobre a prática de sexo seguro e/ou
sobre a utilização dos preservativos distribuídos. Nem mesmo a entrega dos
preservativos é comumente verbalizada. Esses fatos podem ser indicativos dos
significados dados às intervenções pelas interventoras e travestis: a educação sobre
sexo seguro fica em segundo plano, pois, o que há de mais importante é consolidar
47
relações sociais, emocionais e identitárias entre as interventoras e suas interlocutoras
travestis e entre as travestis profissionais do sexo e a ONG Liberdade.
Ademais, esse projeto da ONG Liberdade também tem como função anunciar
entre as travestis os diferentes serviços prestados pela ONG e a importância de sua
participação efetiva nos grupos de discussão organizados pela equipe. Esses grupos de
discussão acontecem às quartas-feiras à tarde e, em geral, reúnem em torno de 30
travestis. Durante essas reuniões, oficinas são ministradas por convidados/as da ONG.
Essas oficinas têm objetivos variados, como por exemplo, a conscientização sobre
direitos humanos, explicação de questões legais referentes a problemas enfrentados
pelas travestis da cidade, cursos de profissionalização como corte e costura e produção
de velas artesanais.18 Durante as intervenções, Sandra e Márcia aproveitam seus
encontros com um grande número de travestis para convidá-las a participar das
reuniões que acontecem na tarde do dia seguinte.
É importante enfatizar que as intervenções acontecem enquanto as travestis
estão vendendo seus serviços no “mundo da noite”. Isso tem implicações cruciais para
o serviço das interventoras. Muitas vezes ouvi, das interventoras, reclamações sobre os
perigos enfrentados enquanto Sandra e Márcia efetuavam seu trabalho de prevenção
de DST/AIDS nos territórios de prostituição travesti. Benedetti (2005:44) sugere que o
“mundo da noite” é “uma dimensão espaço-temporal em que práticas sociais
específicas são experimentadas, outros códigos e valores estão em jogo e têm lugar
emoções e sentimentos específicos”. Trabalhar no “mundo da noite” significa entrar em
18 No ano de 2003, por ocasião de um grande evento internacional que ocorreria na cidade, eu ministrei algumas aulas de inglês a um pequeno grupo de travestis. Segundo a ONG Liberdade, esse evento traria muitos turistas estrangeiros à cidade, o que poderia render bons lucros às profissionais do sexo que soubessem um pouco da língua inglesa para negociar com seus potenciais clientes “gringos”.
48
contato com um universo de práticas sociais particulares que estruturam esse universo.
A violência é ali uma habituée. Durante o período de trabalho com a ONG Liberdade,
conheci histórias terríveis de travestis violentadas e/ou assassinadas enquanto
trabalhavam. Sandra e Márcia me pareciam sempre muito tensas enquanto executavam
a entrega de preservativos na batalha.
Outra questão relevante a ser mencionada é que as áreas de prostituição travesti
são importantes milieux para o aprendizado de gênero das travestis. “Os territórios de
prostituição constituem um importantíssimo espaço de sociabilização, aprendizado e
troca” (BENEDETTI, 2005:115), é na batalha que elas encontram ricas experiências de
construção de sua identidade como travestis (KULICK, 1998). As intervenções inserem-
se nesse contexto. Sandra e Márcia, por construírem-se em categorias identitárias tidas
como tradicionais, podem ser consideras estranhas às práticas generificadoras
experienciadas pelas travestis em seus espaços de prostituição, o que pode ser um
fator importante na estruturação dos processos discursivo-identitários confeccionados
durante as intervenções.
É na batalha que a fricção de identidade entre interventoras e travestis toma
corpo. Essa fricção, a meu ver, funciona como força motriz para as flutuações
identitárias elaboradas pelas interlocutoras, transformando as intervenções em palcos
sobre os quais múltiplas e fragmentadas performances identitárias vêm à baila. Por um
lado, as interventoras constroem-se, cotidianamente, como participantes de categorias
identitárias hegemônicas em relação às travestis, como gênero, classe social,
sexualidade e profissão. Por seu turno, as travestis, como tem sido descrito em várias
etnografias sobre esse grupo (ver, por exemplo, KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005), se
constroem na contramão de discursos normativos, sobrepondo insígnias do feminino e
49
do masculino na produção de suas posições de sujeito e, assim, se alocando em
categorias tidas como não-tradicionais relacionadas ao gênero, à sexualidade e à
profissão. Portanto, as intervenções aqui analisadas constituem um rico lócus para que
possamos entender alguns dos processos discursivo-identitários trazidos à tona pelo
turbilhão de novas formas de construção identitárias encontradas no mundo
contemporâneo.
1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo segu ro: uma relação
necessária
À primeira vista, pode-se crer que uma investigação das práticas descritas acima
seja primordialmente guiada por eixos antropológicos. Porém, meu objetivo não é
somente examinar as práticas sócio-culturais presentes nas intervenções. Meu
propósito é investigar como a linguagem é utilizada nessas práticas discursivas e sua
relação com a negociação (e contestação) de identidades entre travestis e as
interventoras no seu trabalho de prevenção de DST/AIDS. Levando em consideração
que nossas identidades sociais são fenômenos, em grande medida, discursivos
(CAMERON, 2001, MOITA LOPES, 2002, 2003; ECKERT & MCCONNELL-GINET,
2003; BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) tento entender qual a relação mantida
entre linguagem e identidades de gênero nas intervenções da ONG Liberdade.
50
Meu interesse, portanto, é na linguagem. A lingüística aplicada (LA) mostra-se
uma área de conhecimento apropriada para abrigar minha investigação. Tal área pode
me fornecer ferramentas para descrever as conexões entre o uso de língua nas
intervenções e as identidades das participantes de tal prática. Moita Lopes (2006a)
entende que o objetivo da LA “é criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a
linguagem tem um papel central” (p. 14), ou seja, a LA é “uma ciência social, já que seu
foco é em problemas de uso da linguagem enfrentados pelos participantes do discurso
no contexto social” (MOITA LOPES, 1996:20). Como ciência social, então, cabe à LA
lançar seus interesses de pesquisa sobre todo e qualquer uso da linguagem
socialmente situado. É essa posição que justifica meu interesse em trazer um estudo
sobre travestis e prevenção de DST/AIDS para o âmbito da LA. Como grupo cultural,
social e politicamente estruturado, as travestis (e as teias de significados que as
rodeiam) configuram um estrato de nossa cultura que precisa ser investigado não
somente por um viés antropológico, mas também discursivo para que possamos
compreender os processos de produção lingüística/semiótica de suas posições em
nossa sociedade. Como indica Moita Lopes (2006d), “os limites da LA estão se
alargando”, o que traz implicações para o projeto epistemológico dessa área do
conhecimento. Segundo esse autor, a LA, como ciência social, deve ter algo a dizer
sobre a vida social contemporânea para que, dessa forma “se abram alternativas
sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem: os pobres, os
favelados, os negros, os indígenas, homens e mulheres homoeróticos, mulheres e
homens em situação de dificuldades sociais [...]” (MOITA LOPES, 2006d:86). É com
isso em mente que, aqui, consoante Moita Lopes (2006a), tento apresentar uma
sugestão temática e teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da LA,
51
tentando aproximar esse campo de investigação a um contexto sócio-cultural
relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de
DST/AIDS, no caso em tela, entre travestis que se prostituem.
Por mais de 30 anos, as modificações corporais elaboradas pelas travestis que
transcendem as fronteiras que distinguem o feminino do masculino têm intrigado
cientistas sociais e o público em geral (MOTT & ASSUNÇÃO, 1987; SILVA, 1993, 1996;
OLIVEIRA, 1997; SILVA & FORENTINO, 1996; KULICK, 1997, 1998; BENEDETTI,
2000, 2005). Vê-se então que “há farta literatura a interpretar, explicar e diagnosticar o
travestitismo [sic], fenômeno de ocorrência universal. Mas, social e culturalmente, só
podemos entendê-lo circunscrevendo-o a um contexto específico” (SILVA, 1996:97).
Seguindo Silva (1996), os/as pesquisadores/as que se aventuraram no universo trans
(BENEDETTI, 2005) para entender o fenômeno da travestilidade tentaram fazê-lo ao
contextualizar as práticas travestis em seus contextos específicos (a Lapa no Rio de
Janeiro (SILVA, 1996), as ruas e as moradas conjuntas de travestis em Salvador
(KULICK, 1998), bares gays de Florianópolis (OLIVEIRA, 1997) e o fundão, a zona de
prostituição de travestis, em Porto Alegre (BENEDETTI, 2005) são exemplos dessa
literatura). Porém, os estudos citados, com exceção de Kulick (1997, 1998), analisam a
visão que as travestis têm de si mesmas e como elas se constroem como indivíduos
generificados desconsiderando um aspecto altamente relevante ao processo de
construção das identidades sociais: a linguagem e seus usos dentro de comunidades
específicas. Assim, a maioria dos estudos sobre as travestis brasileiras deixa para trás
o fato de que “a linguagem tem um papel crucial na estruturação de nossa experiência”
(COATES, 1998:301). Mais especificamente, como Eckert e McConnell-Ginet (2003)
explicam, “a linguagem entra nas práticas sociais que generificam os indivíduos, suas
52
atividades e idéias de muitas maneiras diferentes; o desenvolvimento de categorias
como ‘mulher’ e ‘homem’ sendo somente uma pequena parte da história” (p. 464).
Destarte, recorrendo a Eckert e McConnell-Ginet (1992) novamente, a linguagem é aqui
tomada “como um recurso simbólico e comunicativo chave, central para o
desenvolvimento das maneiras de pensar e agir que dão às comunidades de práticas
suas características” (p. 483). Pode-se, então, identificar uma lacuna a ser preenchida:
o estudo das práticas discursivas nas quais as travestis se engajam e sua relevância na
fabricação da identidade desses indivíduos e dos indivíduos com quem interagem.
Faz-se, neste momento, necessário observar que “a relação entre [travestis] e a
linguagem é uma relação de différance mútua, de fluidez mútua que excede
significados fixos, que se mantém sempre plural e continuamente rompe a marcação de
fronteiras” (KULICK, 1999:616). Dessa maneira, cabe a nós, estudiosos/as da
linguagem, tentar explicar como se dá a construção discursiva das identidades de
indivíduos transgêneros. Tendo também em perspectiva que “a linguagem é, ao mesmo
tempo, a determinante central do fato social [...] e o meio de se ter acesso a sua
compreensão” (MOITA LOPES, 1994:332), tenta-se aqui entender os significados
construídos durante as intervenções e a lógica que os estrutura para, no final do
percurso, chegar a uma possível compreensão.
Uma pesquisa no universo acima descrito e baseada nesse posicionamento em
relação à LA deve ser necessariamente interpretativista. Com isso quero dizer que a
captação das camadas de significados construídos no trottoir entre travestis e
interventoras depende de uma posição não generalizadora e universalizante. Tal
posição não seria capaz de entender a fluidez e a ambigüidade das práticas que
configuram o habitus (BOURDIEU, 1977; 1985) travesti. Acredito que o interpretativismo
53
através de “uma generalização construída intersubjetivamente, que privilegia a
especificidade, o contingente e o particular” (MOITA LOPES, 1994:332) seja um
paradigma epistemológico apropriado para entender os significados polissêmicos
confeccionados nas intervenções, pois esses significados, em contextos diferentes e
com interlocutores/as diferentes, transmutam-se. Destarte, generalizar sobre os
embates discursivo-identitários estabelecidos entre travestis e interventoras nunca
captaria a forma cambiante e fragmentada de sua participação desses eventos.
Portanto, os dados gerados são de natureza qualitativa. Como indica Holmes (1992), “o
interpretativismo foca em dados qualitativos, desse modo o objetivo não é tanto ser
capaz de mensurar os fenômenos, mas ser capaz de descrevê-los, entendê-los e
interpretá-los” (p.41). Segue-se, então, que minha pesquisa não visa a uma
generalização acerca das práticas realizadas durante as intervenções. Quero, pelo
contrário, centrar meus esforços para entender uma instância bem particular do
universo trans: a entrega de preservativos a travestis em uma metrópole da região sul
do Brasil feita por ativistas da ONG Liberdade. Desse modo, me preocupo com as
idiossincrasias desse contexto e, seguindo uma perspectiva interpretativista, objetivo
entendê-lo em suas especificidades e não chegar a conclusões sobre todas as
possíveis intervenções feitas com travestis em outras regiões do território brasileiro.
54
2. DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O
REFERENCIAL TEÓRICO
Cena 5 Conversávamos em tom deliciosamente informal na sede da Liberdade em uma quente
tarde de quarta-feira. Cassiana, sempre muito bem informada, contava as novidades
sobre as ‘monas’ da Cidade do Sul: Cynthya estava ‘batendo porta’19 como prostituta
em Paris; chegara à cidade uma travesti be-lís-si-ma nascida em Manaus; Suzi andava
‘sumida’ pois estava envolvida em rituais do candomblé; Thalia fora impedida de entrar
no banheiro feminino de um shopping e fez um escândalo... Todas essas informações
eram comentadas em diferentes tonalidades: ironia, sarcasmo, risos e muitos
conselhos. Bárbara, em certo momento, fala sobre sua nova estratégia de inserção no
mercado sexual da cidade: anunciaria seus serviços em classificados de jornais!
Cassiana e Marcela, respectivamente coordenadora e tesoureira da ONG, já haviam
utilizado tal recurso e aproveitam a oportunidade para aconselhar a iniciante. Bárbara
deveria escolher o jornal de acordo com seu público alvo. Além disso, a compra de um
celular exclusivo para o serviço deveria ser agilizada e, o mais importante, o texto do
anúncio teria que ser muito bem pensado. Todas presentes sugeriram um possível
texto. Até mesmo eu tentei ajudar. Minutos depois, Bárbara, entusiasmada, tem uma
idéia que, segundo ela, atrairia muitos clientes. Porém, manteve segredo (afinal,
alguma presente poderia roubá-la). Dias depois, recebo uma ligação, Bárbara pedia
minha opinião sobre seu anúncio. Abro o jornal e procuro a página por ela indicada. Lá
19 Termo êmico que se refere à freqüência dos programas feitos. Bater porta faz alusão ao ato de entrar e sair dos carros dos clientes.
55
encontro seu texto: “Bruna20, corpo de Eva com o melhor de Adão”. [Diários de campo,
21/01/2004]
Na cena acima ilustrada, Bárbara, ao anunciar seus serviços sexuais em um
jornal, faz uso de discursos que a constroem na intersecção da feminilidade e da
masculinidade (BORBA & OSTERMANN, 2007), ilustrando, assim, o poder que o
discurso tem de prover identidades às pessoas através de práticas discursivas que
colocam suas vidas em sociedade. Com o intuito de “atrair muitos clientes”, a
anunciante faz uso de discursos que, ao serem sobrepostos, produzem o efeito de uma
identidade específica: a identidade travesti. Bárbara, dona de um “corpo de Eva” que
mantém “o melhor de Adão”, sublinha os atributos corporais que a constroem nos
limiares de discursos sobre o gênero social disponíveis em uma sociedade fortemente
católica. A feminilidade, a candura e a pureza associadas à imagem bíblica de Eva são
entrelaçadas à virilidade representada pelo corpo de Adão. Ao valer-se de discursos e
imagens que, segundo ela, podem garantir-lhe uma boa clientela, Bárbara
discursivamente apropria-se de atributos identitários que visam enfatizar a construção
de sua própria identidade baseada na manipulação de uma biologia masculina na
tentativa de moldar seu corpo com formas e atributos simbólicos convencionalmente
ligados às mulheres. Dessa forma, o anúncio utilizado por Bárbara pode ser relacionado
20 É comum entre as travestis a utilização de vários nomes que são contextualmente específicos. Assim, uma travesti tem um nome feminino para o círculo de seu convívio social, outro para a prática de prostituição rueira, mais um para a prostituição via Internet e, como no caso ilustrado, um nome específico para os anúncios em jornais. Esse padrão de uso de pseudônimos foi também descrito por Benedetti (2005:49).
56
ao aporte teórico que guia esta investigação: a visão socioconstrucionista do discurso e
das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002, 2003).
Segundo essa perspectiva, nossas identidades são construídas através do
discurso, não havendo, assim, uma identidade única alocada na psiché dos indivíduos.
Pelo contrário, as identidades são fabricadas no momento do engajamento em algum
embate discursivo (MOITA LOPES, 2003; CAMERON, 2001; DAVIES & HARRÉ, 1990),
sendo, assim, o resultado/efeito dos processos sócio-culturais e interacionais nos quais
nos envolvemos cotidianamente (MOITA LOPES, 2001, 2005; K. HALL, 2005;
BUCHOTLZ & HALL, 2004; BUCHOLTZ, 1999; ECKERT & MCCONNELL-GINET,
1992). Moita Lopes (2002) afirma que “as identidades sociais não estão nos indivíduos,
mas emergem na interação entre os indivíduos agindo em práticas discursivas
particulares nas quais estão posicionados” (p.37). Desse modo, as identidades não
estão prontas nem fixas, mas situadas em processos discursivos que as constroem a
partir de propósitos localmente negociados.
A visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais é baseada na
premissa de que “cada um de nós é membro de muitos Discursos, e cada Discurso
representa uma de nossas múltiplas identidades” (GEE, 1990: xix). Gee (1990) e Gee &
Lankshear (1997) utilizam o termo Discurso, com D maiúsculo, para se referir a modos
de ser no mundo social, a diferentes formas de vida e a diferentes práticas que
sinalizam diferentes identidades. Consoante Gee & Lankshear (1997), recorremos a
determinados Discursos “em momentos e lugares apropriados [...] para sinalizar
participação em [...] um grupo social particular” (p.97). Assim, ao nos engajarmos em
algum embate discursivo, temos a oportunidade de fazer usos de determinados
57
Discursos para nos (re)construir e, simultaneamente, (re)construir nossos/as
interlocutores/as como determinados tipos de pessoas.21
Com isso não se afirma que acordamos a cada dia como outra pessoa
completamente diferente. Muito pelo contrário. Como observa Fabrício (2006:46),
“existir seria existir sempre em movimento, em meio a oscilações entre continuidades e
rupturas”; é a partir dessas oscilações entre discursos de identidades que podemos
perceber um certo grau de estabilidade que nos ajuda a manter uma certa coerência
identitária em nossas interações. Fabrício e Moita Lopes (2004), recorrendo à filosofia
da linguagem de Wittgenstein, sugerem que
a utilização do critério de identidade (em relação às coisas ou às pessoas), supondo a existência de identidades iguais a si mesmas, diz respeito a uma operação lógica, instauradora de algum grau de estabilidade para os sentidos, a qual exerce sobre nós uma força coercitiva, pois constitui uma estratégia para lidar com o caráter cambiante do significado. O efeito de estabilidade não seria intrínseco às idéias em jogo, mas sim atributo do uso, único responsável por certa constância na significação. Assim sendo, o conceito de identidade funciona como um conceito operacional que, subordinando-se a regras de uso que aprendemos a reificar, possibilitaria a criação de sentido entre as pessoas. (p.15)
Segundo autora e autor, a estabilidade deve ser considerada como um efeito do
uso repetido de padrões identitários; não um aspecto intrínseco às identidades. Essa
estabilidade só pode se percebida através de um escrutínio público que decide “o que
conta como ‘o mesmo’” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004:16). Assim, ao nos
movimentarmos em diversos discursos que constituem nossas identidades sociais,
produzimos o efeito de estabilidade ao nos colocarmos no palco interacional sobre o
21 Para evitar uma inflação conceitual, utilizo, no decorrer do texto, “discurso”, com d minúsculo, para me referir ao mesmo conceito.
58
qual a audiência decide o que conta como sendo nós mesmos. Outro fator importante
na construção da estabilidade (operacional) das identidades é a questão da repetição
de discursos que, ao serem proferidos, produzem um efeito de substância, como bem
observa Butler (1990/2003). Segundo os argumentos dessa autora, as identidades
parecem ser naturais e estáticas, pois os indivíduos reproduzem discursos já
sedimentados na cultura, o que produz um efeito de continuidade e essência. Porém,
como argumenta Butler (1990/2003), os indivíduos têm a potencialidade da repetição
subversiva. Isso quer dizer que podem reificar discursos a eles disponíveis, porém,
sobrepondo-os a outros significados e produzindo arranjos identitários inauditos.
Ao utilizar enunciados de discursos particulares, os indivíduos neles se alocam e
passam a ser percebidos como membros de determinados grupos. Não se afirma com
isso que utilizamos os discursos necessariamente para reclamar participação em
grupos específicos. Ao viver socialmente, circulamos por uma multiplicidade de
discursos que podem nos alocar em diferentes lugares sociais sem substancialmente
participarmos dos grupos a eles associados. O engajamento com um (ou vários)
discurso(s) é elaborado com base nos propósitos interacionais locais. Dessa forma, os
indivíduos não estão presos a posições de sujeito fixas que os privam de agência sobre
a escolha dos significados nos quais circulam (K. HALL, 1995; CAMERON, 1997;
MATOESIAN, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003; MOITA LOPES, 2006b). À
medida que vivemos socialmente, circulamos por discursos dos quais podemos nos
valer em momentos e lugares apropriados. A escolha de discursos específicos depende
(1) do acesso a esses discursos e (2) dos/as interlocutores/as aos/às quais nosso
discurso é dirigido (volto a essa questão mais detalhadamente abaixo).
59
Como indica Moita Lopes (2003:27), “aprendemos a ser quem somos nos
encontros interacionais de todo dia”. Por conseguinte, vemos que, em oposição à visão
tradicional da sociolingüística variacionista, segundo o socioconstrucionismo, não
falamos A, B ou C porque somos X, Y ou Z. Muito pelo contrário. Nos constituímos
como X, Y ou Z ao falarmos A, B ou C. Assim, o discurso tem uma natureza
constitutiva, pois ao nos engajarmos em práticas discursivas não só representamos o
mundo, mas também o construímos (FAIRCLOUGH, 2001; MOITA LOPES, 2001, 2002,
2003, 2006b). Vê-se, portanto, que, a partir dessa perspectiva, adota-se uma posição
anti-essencilista no sentido de que as identidades não são dadas a priori, não são pré-
discursivas, mas emergem de nosso engajamento em vários discursos na vida social.
Ao considerar as identidades como construídas no/pelo/através do discurso, nos
deparamos com seu caráter contraditório, fragmentado e processual, pois em cada
prática discursiva os indivíduos podem se constituir diferentemente vis-à-vis o contexto
sócio-histórico-cultural específico e vis-à-vis os/as outros/as participantes da interação.
Dessa maneira, por exemplo, uma mulher que habitualmente se descreve como negra,
de classe trabalhadora, lésbica e mãe pode enfatizar determinados traços de seu feixe
identitário (MOITA LOPES, 2003) e amenizar outros por razões determinadas
localmente na interação. Aqui, seguindo Moita Lopes (2002, 2003), aludo a dois
aspectos importantes da visão socioconstrucionista adotada nesta investigação: a
alteridade (BAKHTIN, 1979/2003; 1929/1997) e a situacionalidade (LINDSTROM,
1992). Em outras palavras, todo e qualquer discurso é produzido por alguém que tem
marcas sócio-históricas particulares e é direcionado a alguém, com suas marcas
identitárias, em um contexto de produção específico. O anúncio de Bárbara, descrito
acima, exemplifica tal processo. A travesti, enfatizando seus atributos corporais,
60
anuncia seus serviços sexuais tendo em mente um leitor projetado22, i.e. um que se
interesse sexualmente por um corpo que sobreponha índices de feminilidade e de
masculinidade.23
Esses dois aspectos sublinham o papel social do discurso, nessa perspectiva
entendido como ação sobre o mundo. Alteridade e situacionalidade indicam que “as
pessoas usam a linguagem a partir de suas marcas sócio-históricas como homens,
mulheres, homoeróticos, heterossexuais, etc., ao mesmo tempo que [...] se reconstroem
ao agirem uns em relação aos outros via linguagem” (MOITA LOPES, 2003:25). Isso
quer dizer que não usamos a linguagem com um/a falante simplesmente, mas, com, por
exemplo, uma mulher, heterossexual, de classe média, feminista, branca, advogada,
procedente de uma família judia24, ou, pelo menos, de acordo com nossa
construção/interpretação de tal mulher. Em outras palavras, os atributos do feixe
identitário de nossos/as interlocutores/as influenciam a nossa escolha de significados
para a participação em um embate discursivo. Destarte, “o tipo de pessoa por meio do
qual se é reconhecido, em um dado momento e lugar, pode mudar de momento em
momento da interação, pode mudar de contexto para contexto, e, claro, pode ser
ambíguo e instável” (GEE, 2001:99 apud MOITA LOPES, 2003:20).
Os processos de construção discursiva de identidades sociais são
intersubjetivos, dialógicos e relacionais (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004) no sentido
22 Propositalmente, faço uso da generalização no masculino para me referir aos clientes das travestis, pois, como já observado por Kulick (1997, 1998), Benedetti (2005) e Pelúcio (2005), esses indivíduos têm, inexoravelmente, performances corporal, social e sexual associadas à masculinidade hegemônica. 23 Ao serem perguntadas por que são tão procuradas no mercado sexual, todas as minhas colaboradoras travestis deram respostas similares nas quais indicavam que os homens as procuram, pois desejam “uma mulher com algo a mais”. É isso, me parece, que Bárbara leva em consideração ao elaborar o texto para seu anúncio. Para discussões sobre os clientes das travestis ver Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, c). 24 Utilizo propositalmente, como exemplo, as marcas identitárias construídas por Sandra, umas das interventoras funcionárias da ONG Liberdade que participou do presente estudo.
61
de que os efeitos de identidades produzidos pelo discurso são sempre postos sob o
escrutínio do outro e são influenciados pelo contexto no qual os/as participantes
discursivos estão inseridos/as. No que se refere especificamente ao estudo dos
processos discursivos instaurados pela fricção de alteridades nas interações entre
mulheres e travestis, a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais
nos fornece um aparato teórico-analítico que possibilita criar inteligibilidade sobre as
flutuações identitárias elaboradas pelas participantes dos eventos aqui investigados.
Segundo Fabrício & Moita Lopes (2004:16)
O socioconstrucionismo aponta para o nosso contínuo envolvimento no processo de autoconstrução e na construção dos outros, o que implica dizer que, nas práticas discursivas em que estamos situados, tornando o significado compreensível (ou não) para o outro, construímos a outridade ao mesmo tempo em que ela nos constrói. Como seres sociais, estamos sempre em movimento no processo de vir a ser socialmente [...].
As características do discurso acima descritas (i.e, alteridade, situacionalidade,
dialogicidade e intersubjetividade) são pressupostos teóricos cruciais para
compreendermos as interações entre travestis e mulheres ativistas de prevenção de
DST/AIDS aqui investigadas. Grosso modo, no que tange o aspecto situacional, tais
interações são inseridas nos territórios de prostituição das travestis na Cidade do Sul –
importantes locais para sua socialização e aprendizado de gênero (KULICK, 1998;
BENEDETTI, 2005). No que se refere à alteridade, essas interações são estruturadas a
partir do que aqui chamo fricção de alteridades no sentido de que as interventoras
(indivíduos que se constroem e são construídos como representantes de identidades
tradicionais) engajam-se no discurso com travestis cuja construção de identidades
62
extrapola discursos tradicionais de gênero e sexualidade. Portanto, a alteridade de
ambas as partes é uma categoria fundamental para investigarmos tais eventos
discursivos.
A intersubjetividade é abordada aqui sob o prisma do modelo teórico-analítico
proposto por Bucholtz & Hall (2003, 2004, 2005, no prelo) intitulado táticas de
intersubjetividade no qual considera-se a construção identitária via linguagem como um
produto das relações entre participantes discursivos engajados/as na construção de
suas identidades vis-à-vis as identidades (percebidas ou construídas) de seus/suas
interlocutores/as (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; BUCHOLTZ, 2003; K. HALL,
2005). Essas relações são descritas no próximo capítulo à medida que caracterizo o
aporte analítico sobre o qual a análise das intervenções será efetuada.
63
3. (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO: AS
TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE
As dinâmicas (políticas, econômicas, sociais, culturais, históricas e geográficas)
que têm produzido uma multiplicidade de marcas identitárias que há 30 ou 40 anos
eram impensáveis não são recentes.25 No mundo contemporâneo, convivemos com
uma grande variedade de arranjos identitários o que produz, em nosso dia-a-dia,
múltiplos choques entre as características de nosso feixe de identidades (MOITA
LOPES, 2003) e aquele de nossos/as interlocutores/as. Nas ciências sociais, mais
especificamente, na antropologia, as fricções de alteridades têm gerado uma profícua
reflexão por parte dos/as pesquisadores/as. A clássica imagem de Malinowski
assistindo seu navio partir, deixando-o abandonado e perplexo entre os trombiandeses,
com suas roupas e decoração corporal exóticas (MALINOWSKI, 1976), foi seminal para
que antropólogos/as produzissem detalhadas descrições dos atritos causados pelas
diferenças geográficas, culturais, lingüísticas e de gênero trazidas à tona por sua
inserção em lugares sociais nos quais são, pelo menos no início do trabalho de campo, 25 Ver Bauman (2005), Chouliaraki & Fairclough (1999), Giddens, Beck & Lash (1997) e Giddens (2000) para instigantes discussões sobre esses processos.
64
estrangeiros/as. Tais choques entre as identidades percebidas de pesquisadores/as e
nativos/as podem ser debitados às diferentes formas por meio das quais esses
indivíduos se constroem socialmente. Quando, por exemplo, uma travesti que se
prostitui em São Paulo aconselha a antropóloga Larissa Pelúcio a “deixar a buceta em
casa” antes de sair para fazer sua etnografia (PELÚCIO, 2007), ela se vê perplexa e
engendra um complexo processo de relativização de sua posição como pesquisadora e
como ser social: afinal, Pelúcio tem um status social e um corpo que a distinguem de
suas informantes. Em sua pesquisa sobre as configurações conjugais entre lésbicas de
camadas médias do Porto Alegre, Nádia Meinerz (2007), uma jovem antropóloga
heterossexual, descreve o constante estado de ansiedade de suas informantes em
relação ao momento em que a pesquisadora “sairia do armário”, afirmando-se lésbica.26
Dessa forma, fricções emergem da relativa ou total discordância entre as construções
sociais dos/as interagentes e incitam processos de (re)negociação de posições sociais
entre os e as participantes de práticas culturais.
Gênero, sexualidade, classe social, corporalidade, religião, linguagem e origem
geográfica podem ser fontes para sofisticados processos de administração das
diferenças percebidas ou construídas entre interlocutores e interlocutoras. Com o intuito
de investigar como essa administração é elaborada discursivamente, utilizo o conceito
de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) na tentativa de
compreender as fricções produzidas pela dissonância entre as marcas identitárias das
interventoras da ONG Liberdade e suas interlocutoras travestis. A seguir, descrevo as
26 Ver Bonetti & Fleischer (2007) para discussões sobre as “saias justas” e os “jogos de cintura” produzidos pelos choques identitários, culturais e simbólicos entre pesquisadoras e informantes durante trabalho de campo.
65
ferramentas analíticas utilizadas neste trabalho para entender as construções, re-
construções e administração das identidades das participantes dos eventos estudados.
3.1. As táticas de intersubjetividade
Basilar para a perspectiva das táticas de intersubjetividade proposta por Bucholtz
e Hall (2005) é a premissa de que a “identidade é o posicionamento social do eu e do
outro” (p.586). Deliberadamente abrangente, tal conceito indica que a identidade é um
construto fundamentalmente discursivo (visto que os posicionamentos são
discursivamente construídos) que emerge e circula em contextos locais de interação,
como, de fato, já indicado anteriormente. A partir dessa premissa, as autoras sugerem
que as pesquisas sobre identidade devem centrar seus esforços sobre relações entre
linguagem, cultura e sociedade para que possamos descrever os processos através
dos quais as identidades sociais são produzidas. Destarte, as identidades são vistas
como produtos de ação social situada (BUCHOLTZ & HALL, 2003; BUCHOLTZ &
HALL, no prelo).
Bucholtz e Hall (2005:585-586) consideram a identidade “como um fenômeno
relacional e sociocultural que emerge e circula em contextos discursivos locais”. Para as
autoras, as identidades são produtos/efeitos de práticas socioculturais que somente
podem ser verificadas através de estudos etnográficos que analisem, com atenção, as
performances locais dos indivíduos. Essas performances incluem tanto categorias de
66
nível macro como posições culturais que emergem etnograficamente. É na intersecção
entre o micro e o macro que as identidades são construídas através de performances
que expressam em sua encenação as ideologias que informam essa construção (ver,
por exemplo, CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003;
HALL, 2005; MOITA LOPES, 2006b). Com base nessa perspectiva, os indivíduos co-
constroem suas identidades na interação fazendo uso de táticas de intersubjetividade e,
dessa forma, têm a oportunidade de aliarem-se a (ou distanciarem-se de) grupos
culturais específicos.
O termo táticas de intersubjetividade refere-se às maneiras pelas quais os/as
falantes (des)alinham-se vis-à-vis seus/suas interlocutores/as (e vis-à-vis o contexto
cultural onde estão inseridos/as) através do estabelecimento de uma plêiade de
relações identitárias (ver, por exemplo, BUCHOLTZ & HALL, 2004; MOITA LOPES,
2006b; HIGGINS, 2007). Essas relações intersubjetivas sublinham o caráter situacional
do discurso e sua inter-relação com a alteridade (a identidade do/a outro/a) na interação
face-a-face, trazendo à tona negociações e re-negociações das posições de sujeito
construídas por interagentes na medida em que um embate discursivo se desenrola. As
identidades sociais estão, dessa forma, compondo-se e recompondo-se
constantemente. O arcabouço analítico elaborado por Bucholtz e Hall (2003, 2004,
2005, no prelo) inclui três pares de táticas que constroem relações intersubjetivas com
base em três dimensões identitárias, a saber: semelhança versus diferença,
autenticidade versus paródia e reconhecimento institucional versus marginalização
estrutural (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494).
67
Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) destacam os seguintes pares: adequação /
distinção, autenticação / desnaturalização e autorização / deslegitimização.27 Segundo
as autoras (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494), a primeira parte de cada par constitui o
pólo positivo do processo discursivo de construção de identidades. Isso quer dizer que
através das táticas de adequação, autenticação e autorização, os indivíduos enfatizam
características ideologicamente reconhecidas como representantes de um grupo
identitário específico. Por outro lado, a segunda parte de cada par forma o pólo
negativo desse processo, no qual interagentes sublinham qualidades percebidas como
remotas e/ou dissonantes na performance de identidade do/a falante e dos/as outros/as
envolvidos/as na interação, orientando-se para aspectos incoerentes da performance
desejada.
Faz-se, contudo, necessário notar que as táticas de intersubjetividade
não são qualidades inerentes às pessoas ou a práticas sociais e ideologias, mas sim ferramentas analíticas utilizadas para chamar a atenção para aspectos salientes da situação discursiva. No que se refere às relações criadas na produção de identidades, as táticas de intersubjetividade nos oferecem um vocabulário mais preciso para discutir as relações entre identidade e linguagem (Bucholtz e Hall, 2004:493).
Essas táticas enfatizam o caráter múltiplo e complexo das relações entre
identidade e linguagem que são contextualmente específicas (HALL & O’DONOVAN,
1996; CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999, 2003; MOITA LOPES, 2002, 2003,
OSTERMANN, 2003; HEBERLE, OSTERMANN & FIGUEIREDO, 2006; BORBA &
OSTERMANN, 2007). O termo intersubjetividade sublinha o aspecto relacional das
27 Em inglês, adequation, distinction, authentication, denaturalization, authorization e illegitimation.
68
identidades e a sua negociação interacional, ou seja, elas não existem num vácuo
social; as identidades não são “propriedades de indivíduos isolados” (BUCHOLTZ &
HALL, 2004:494; ver também MOITA LOPES, 2002). Com esse aparato teórico, afirma-
se que compreender por que as identidades são construídas interacionalmente é tão
importante quanto entender como tal construção se dá (BUCHOLTZ & HALL, 2003). É a
essa tarefa que aqui me dedico. Tento compreender como e por que as flutuações
identitárias efetuadas pelas interventoras e travestis são construídas. Ao adotar certos
posicionamentos, discursos e estruturas lingüísticas, as participantes das intervenções
constroem identidades através da encenação de performances temporárias construídas
sequencialmente na interação. Essas performances identitárias são produzidas com
base no uso de discursos e formas lingüísticas convencionalmente associadas a
categorias identitárias locais. Dessa forma, veremos que tanto as interventoras quanto
as travestis apropriam-se discursivamente de características identitárias de grupos
sociais nos quais elas, de facto, não participam. Passemos, então, neste momento,
para a discussão das táticas de intersubjetividade per se.
3.1.1 Adequação e distinção
O primeiro par de táticas, adequação e distinção, constrói, respectivamente,
relações de semelhança e diferença entre participantes de um embate discursivo.
Adequação refere-se às maneiras pelas quais um indivíduo (ou grupo de indivíduos)
69
enfatiza semelhanças e, dessa forma, alinha-se com um grupo social do qual ele/a
efetivamente não participa. Essa tática é utilizada na fabricação de semelhança
suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004:495) entre interlocutores/as a partir do
apagamento de características socialmente discordantes. Na interação, diferenças
irrelevantes ou prejudiciais aos projetos identitários correntes são minimizadas e
semelhanças percebidas como importantes para a construção de uma relação
igualitária entre interagentes são sublinhadas (BUCHOLTZ & HALL, 2005:599). Assim,
esse processo envolve o apagamento de características consideradas como
potencialmente discordantes entre interagentes em favor de semelhanças percebidas
ou construídas que são tomadas como mais relevantes para os propósitos indentitários
localmente negociados (BUCHOLTZ & HALL, 2003). Em outras palavras,
discursivamente inventa-se a semelhança ao minimizar as diferenças.
Consoante Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a tática de adequação é utilizada
por um/a falante quando o ajuste de sua posição de sujeito a seus/suas
interlocutores/as faz-se necessário. A adequação é alcançada através de usos de
formas lingüísticas que sinalizam participação em determinados grupos sociais. Neste
trabalho, tento expandir o conceito, afirmando que tal adequação é influenciada não
somente pela natureza dialógica do discurso, mas também por seu caráter situacional.
Como veremos, a supressão de diferenças identitárias pode ser motivada (1) pelas
marcas identitárias de nosso/as interlocutores/as e (2) pelo contexto onde estamos
inseridos enquanto interagimos.
A tática de adequação, a título de exemplo, pode ser encontrada na pesquisa de
Cynthia D. Nelson (2006) sobre como professores/as de inglês como segunda língua
em salas de aula globalizadas nos Estados Unidos negociam suas identidades sexuais
70
com seus/suas alunos/as. Nelson investiga a questão do “sair do armário” nessas salas
de aula com base na perspectiva dos/as professores/as e nas interpretações dos/as
alunos/as. Um professor entrevistado, que se identificava como gay, afirma que se
apresenta para suas turmas como uma pessoa heterossexual, pois não achava
conveniente “sair do armário” para seus/suas alunos/as, já que por serem imigrantes
os/as estudantes “já têm que enfrentar bastantes choques culturais... [Então] eu vou ser
o americano normal” (p.218). Ao fazer uso de formas lingüísticas como “namorada”, “fui
ao cinema com uma mulher” e ao rir com seus/suas alunos/as enquanto esses/as
degradavam a cultura gay/lésbica norte-americana, esse professor posiciona-se em
discursos que o constroem como “o americano normal”, minimizando, assim, suas
diferenças identitárias com os/as alunos/as e produzindo o que Bucholtz & Hall chamam
de semelhança suficiente. Essa tática era utilizada pelo professor como meio de evitar
mais choques culturais para seus/suas alunos/as e para salva-guardar a construção de
sua identidade sexual de interpretações preconceituosas de seus/suas estudantes.28
Distinção é o processo de produção de diferenças sociais entre interagentes. Em
vez de apagar diferenças para construir semelhança, essa tática é executada a partir da
ênfase dada a diferenças percebidas ou construídas entre falantes. Segundo Bucholtz
e Hall (2003:384), “distinção é o mecanismo através do qual diferenças são
produzidas”. Vê-se, portanto, que essa tática é diametralmente oposta à tática de
adequação no sentido de que em vez de minimizar ou apagar diferenças, através dela
os/as participantes parecem produzir diferenças suficientes (BUCHOLTZ & HALL,
2003:384), ao fazer uso de discursos e formas lingüísticas que extrapolam sua
28 No entanto, ao verificar como os/as alunos/as entendiam a identidade sexual de seu professor, Nelson (2006) conclui que os/as estudantes, todos/as asiáticos/as, eram capazes de identificar o posicionamento identitário de seu professor.
71
performance identitária. Dessa forma, os processos de distinção funcionam com base
na supressão de semelhanças construindo discursivamente os/as interagentes como
participantes remotos dos grupos aos quais eles/as, por ventura, clamem por
participação.
Para dar um exemplo recorro novamente ao estudo de Nelson (2006) aludido
acima. Outra participante da pesquisa, uma professora lésbica que ensinava uma turma
altamente multicultural, afirma que “todo semestre saio do armário como lésbica”
enfatizando, assim, diferenças entre suas identidades e as identidades percebidas de
seus/suas alunos/as. Pode-se dizer que essa professora, seguindo as observações de
Nelson (2006:222-223), utiliza a tática de distinção como meio de ensinar seus/suas
estudantes a lidar com a heterogeneidade da vida cultural nos Estados Unidos. Tal
tática é elaborada com base na ênfase dada pela professora ao seu posicionamento
sexual que é usado em sala de aula como uma estratégia para a educação lingüística e
cultural.
3.1.2. Autenticação e desnaturalização
O segundo par de táticas, autenticação e desnaturalização, produz relações de
autenticidade e falsidade com base em uma performance identitária que pode ser
considerada como satisfatória ou não em comparação às posições de sujeito
disponíveis localmente. Autenticação se refere às ferramentas discursivas utilizadas por
72
falantes para construírem-se como membros autênticos de categorias particulares.
Essa tática baseia-se na construção de uma performance de identidade verídica, ou de
uma performance identitária satisfatória para os padrões culturais disponíveis aos/às
falantes. Com o processo de autenticação, chama-se a atenção para a produção de
sentidos identitários que são somente alcançados com relação a outras identidades
disponíveis nos contextos culturais locais. Bucholtz e Hall (2004:498) indicam que “o
termo autenticação enfatiza os processos através dos quais a autenticidade é
construída, imposta ou percebida”.
Nessa perspectiva, não se considera a autenticidade como uma característica
inerente aos membros de determinados grupos identitários. A autenticidade é
construída com base na apropriação de recursos lingüísticos e práticas simbólicas
disponíveis em contextos socioculturais que são ideologicamente associados a grupos
sociais, o que, por conseguinte, serve como forma de validação da performance de
identidade de um indivíduo. De acordo com Bucholtz (2003), em vez de entender a
autenticidade como um objeto a ser descoberto, devemos considerá-la como o
resultado das práticas lingüísticas dos atores sociais.
Através dessa tática, os/as interagentes “enfatiza[m] as maneiras pelas quais as
identidades são discursivamente verificadas” (BUCHOLTZ & HALL, 2005:601), i.e.
como as identidades são validadas, consideradas como performances satisfatórias com
base em discursos já sedimentados sobre determinadas categorias sociais. As relações
intersubjetivas produzidas por essa tática consistem em validar uma performance
identitária através de posicionamentos, índices e orientações avaliativas a sua
encenação. Tais estratégias lingüísticas sublinham a produção de determinada
identidade com relação a outras posições de sujeito disponíveis em determinado lócus
73
sociocultural. Interagentes, com essa tática, valem-se de discursos que constroem
identidades como naturais, utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK,
1995; BUCHOLTZ, 2003) que, ao enfatizar a veracidade de uma performance, chama a
atenção para sua produção sócio-cultural. Tal essencialismo estratégico funciona como
uma baliza para a autenticação de performances identitárias ao valer-se de significados
disponíveis no senso comum sobre as identidades sociais. Com efeito, essa
naturalização das identidades é local e serve propósitos negociados no momento-a-
momento da interação.
Com a tática de autenticação, os/as participantes discursivos constroem a
autenticidade de uma identidade com base em sua performance lingüística.
Desnaturalização, pelo contrário, refere-se ao processo pelo qual uma identidade é
desestabilizada a partir de rupturas em sua performance, produzindo-a (1) como
insatisfatória para os padrões locais ou (2) como descontinua e fragmentada. Dessa
forma, a tática de desnaturalização chama a atenção dos/as interagentes para aspectos
considerados problemáticos e/ou falsos da performance encenada (BUCHOLTZ &
HALL, 2005:602). Em outras palavras, com a tática de desnaturalização transforma-se
um indivíduo em um mero impostor que, ao falhar em sua performance lingüística,
desestabiliza a autenticidade de sua encenação.
Ambas essas táticas, autenticação e desnaturalização, podem ser encontradas
em um estudo elaborado por mim e por Ana Cristina Ostermann (BORBA &
OSTERMANN, 2007) no qual investigamos a manipulação do sistema gramatical de
74
gênero do português brasileiro em uma comunidade29 de travestis na Cidade do Sul.
Vejamos o excerto que segue.
Excerto 1 (BORBA & OSTERMANN, 2007:136)
Rod: e tu Thalia como é que tu definiria o travesti?=
Sandra: =OLHA AQUI Ó (.) vamo entrá no nível- num nível assim (.)
pra tu se enquadrá com a gente não é O tra[ves]ti. A travesti.
Rod: [ok]
Essa interação ocorreu logo no início do trabalho de campo com a ONG
Liberdade e envolvia um dos pesquisadores, Thalia e Fabíola (travestis ativistas da
ONG). Nesse momento da entrevista, Sandra (a advogada da Liberdade participante
das intervenções aqui investigadas) nos interrompe ao perceber que eu me referia às
travestis no masculino. Utilizando o tipo menos preferido de reparo (SCHEGLOFF,
JEFFERSON & SACKS, 1977), a correção iniciada e executada pelo outro, Sandra
corrige tal forma de endereçamento dizendo que eu deveria utilizar a forma “a travesti”,
por elas preferida. A advogada faz essa correção afirmando que se eu quisesse “me
enquadrar com elas”, i.e., fazer parte do grupo, eu deveria utilizar a forma êmica de
referência que sublinha a aquisição de um corpo e atributos simbólicos femininos. Essa
pode ser considerada como uma tática de autenticação da identidade travesti na qual
29 Utilizo o termo “comunidade” não como uma forma essencialista de enfatizar traços identitários comuns a todas as travestis presentes no estudo. Tal termo é utilizado pelas travestis por questões relativas ao seu engajamento político na causa LGBTTT da Cidade do Sul. Ecôo esse uso neste texto.
75
Sandra, ao utilizar o feminino gramatical, enfatiza a produção do gênero das travestis
ao subverter as determinações gramaticais do substantivo que se refere ao grupo.
No entanto, a utilização do feminino gramatical não é consistente nas
performances lingüísticas das travestis da Cidade do Sul. Como Borba e Ostermann
(2007) argumentam, o masculino gramatical também é utilizado de forma marcada em
contextos discursivos específicos, o que desestabiliza (desnaturaliza) a performance
feminina das travestis. Num desses contextos, a título de exemplo, as falantes travestis
referem-se a outras travestis no masculino como forma de negar sua participação na
esfera da feminilidade quando tais travestis são descritas em atividades escusas e/ou
violentas (BORBA & OSTERMANN, 2007:139-140). Destarte, a referência no masculino
configura uma ruptura na percepção da performance de feminilidade de determinadas
travestis das quais as falantes se distanciam através do sistema de gênero gramatical.
3.1.3. Autorização e deslegitimação
O último par de táticas, autorização e deslegitimação, considera os aspectos
institucionais e ideológicos dos processos de produção de identidade e suas relações
com estruturas de poder. Tais táticas constroem relações intersubjetivas de autoridade
e ilegitimidade na tentativa de legitimar uma performance através de poder institucional
ou de negar sua legitimidade através de resistência a autenticidade de sua
performance. Em outras palavras, “autorização refere-se ao uso do poder [institucional]
76
para legitimar certas identidades sociais como culturalmente inteligíveis ao passo que
deslegitimação refere-se à negação de tal validação” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:503).
Bucholtz e Hall (2005) sugerem que
a primeira parte do par, autorização, envolve a afirmação ou imposição de uma identidade através de estruturas de poder institucionalizado e ideologias [...]. Em contra partida, deslegitimação refere-se às maneiras nas quais as identidades são negadas, censuradas ou simplesmente ignoradas por essas estruturas. (p.603)
Essas táticas funcionam em relação muito próxima às táticas de autenticação e
desnaturalização, pois questões de legitimidade são freqüentemente ligadas a questões
de autenticidade. Ou seja, uma performance de identidade que pretende passar por
autêntica deve, inevitavelmente, adotar práticas que legitimem sua encenação. Um bom
exemplo dessas táticas pode ser encontrado na discussão do excerto 1 acima. Após ter
me referido a Thalia utilizando o masculino gramatical, Sandra me interpela e diz, em
tom não muito amigável, que para eu ser aceito no grupo, como pesquisador, eu
deveria utilizar as formas lingüísticas preferidas entre as travestis. Note que Sandra,
nesse contexto, é a representante legal da ONG Liberdade, por ser sua advogada, e
assim, possui poder institucional para legitimar a participação de indivíduos nesse
grupo. Eu, como pesquisador iniciante no universo trans, me encontrava em uma
posição bastante frágil: não conhecia suficientemente as práticas da ONG para ser ali
incluído e não possuía poder institucional em relação à Sandra. Porém, a advogada faz
uso de sua posição na hierarquia da ONG para deixar claro como a identidade travesti
deve ser lingüisticamente construída: através do feminino gramatical. Com isso, Sandra
77
autoriza institucionalmente a performance de uma identidade feminina elaborada pelas
travestis presentes nesse evento e, ao mesmo tempo, deslegitima minha participação
no grupo, enfatizando minha posição (naquele momento ainda) periférica.
No que se refere às intervenções, Sandra e Márcia têm, nos territórios de
prostituição travesti da Cidade do Sul, capital institucional, por serem representantes de
uma ONG, e capital de gênero (BENTO, 2006), por serem, segundo as colaboradoras
deste estudo, portadoras “naturais” da feminilidade que as travestis tanto ambicionam.
Assim, nesse contexto, as interventoras são vistas como representantes do poder
(institucional e de gênero) o que pode influenciar o design das interações, no que se
refere à assimetria em seu status interacional, e os processos de construção de
relações intersubjetivas entre as interlocutoras desses eventos.
Faz-se necessário afirmar que as táticas são acima apresentadas
separadamente como uma estratégia retórica para exemplificar as relações
intersubjetivas por elas construídas. No entanto, em situações reais de fala, elas podem
ocorrer isoladamente ou em conjunto no desenvolvimento de projetos identitários
emergentes de uma determinada interação. Funcionando em conjunto, combinando-se,
interpenetrando-se e modificando-se no decorrer de um evento de fala, as relações
produzidas pelas táticas de intersubjetividade indicam que as identidades estão
constantemente em devir; sempre dinâmicas e flexíveis – maleáveis às necessidades
interacionais construídas em interações nas quais diferentes alteridades são postas em
fricção.
78
3.2 Ferramentas para interpretação das táticas
As táticas de intersubjetividade, assim como as identidades sociais, não são
propriedades das interações ou dos indivíduos nelas envolvidos. São, sim, resultantes
do olhar lançado pelo/a analista sobre as interações. Dessa forma, as táticas
configuram uma possível interpretação das construções e reconstruções das posições
sociais adotadas por interagentes em seu engajamento em um determinado evento
discursivo. Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) sugerem que a interpretação das táticas
deve ser calcada em mecanismos propriamente lingüísticos utilizados no momento-a-
momento de uma dada interação. Em outras palavras, as táticas podem ser produzidas
através de uma multiplicidade de recursos lingüísticos disponíveis culturalmente aos
quais o/a analista recorre na tentativa de construir uma possível compreensão das
relações confeccionadas entre interagentes. Para os propósitos deste estudo, ponho
sob o foco de minha atenção os seguintes dispositivos analíticos: enquadre
(GOFFMANN, 1974, 2002), posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e
alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002). Portanto, é com base na análise
das dinâmicas interacionais produzidas pelos recursos lingüísticos recém listados que
minha interpretação das fricções de identidades construídas entre travestis e ativistas
da ONG Liberdade se dará. Essas fricções, a meu ver, trazem à tona uma pluralidade
de negociações, construções e reconstruções de posições de sujeito que podem ser
debitadas às táticas de intersubjetividade co-produzidas entre interventoras e travestis.
79
A seguir, trago um detalhamento das ferramentas que me auxiliarão a interpretar a
construção das táticas entre as participantes dos eventos aqui estudados.
3.2.1. Enquadre
Segundo Goffman (1974/2002), o enquadre refere-se à construção da
metamensagem de um determinado enunciado a partir da qual inferimos o sentido de
um enunciado e/ou de uma interação. Em outras palavras, o conceito de enquadre diz
respeito ao tipo de conversa que está se desenvolvendo em um determinado momento
com interlocutores/as específicos/as: é essa interação uma palestra, uma consulta
médica, uma aula, uma entrevista de emprego, uma venda por telemarketing, uma
fofoca, uma descontraída conversa entre amigos/as íntimos/as ou uma intervenção de
prevenção de DST/AIDS? Ou, como colocam Tannen e Wallat (1987/2002), “a noção
[...] de enquadre se refere à definição do que está acontecendo na interação, sem a
qual nenhuma elocução (ou movimento ou gesto) poderia ser interpretada” (p.188).
Dessa forma, sempre recorremos à nossa interpretação do enquadre de determinada
interação para que possamos dela participar efetivamente. Os enquadres de uma
determinada interação são constantemente negociados durante seu desenvolvimento.
Assim, em uma única interação podemos encontrar uma diversidade de diferentes
enquadres. É importante observar que as mudanças de enquadre não acontecem de
súbito, mas são sinalizadas por uma multiplicidade de pistas que possibilitam que os/as
80
interlocutores/as reconheçam e possam orientar-se à pergunta “o que está acontecendo
aqui e agora? Para responder a essa pergunta, os/as interagentes valem-se de pistas
de contextualização (GUMPERZ, 2002) que sinalizam como determinado embate
discursivo deve ser interpretado por aqueles/as nele envolvidos/as. Tais pistas podem
ser lingüísticas (como por exemplo, a entonação, os termos de endereçamento, trocas
de códigos, organização de turnos de fala, etc) ou para-lingüísticas (como as alterações
proxêmicas e de postura (ERICKSON & SHULTZ, 2002), um olhar, um movimento com
a cabeça, etc). Muitas vezes essas pistas acontecem em conjunto e auxiliam os/as
participantes de uma interação a entender a interação com a qual estão engajados.
Goffman (2002) indica que as mudanças de enquadre engendram um minucioso
processo de mudança de posicionamento entre interlocutores/as. Podemos recorrer ao
excerto 1 anteriormente analisado para ilustrar esse ponto. Até a interrupção de
Sandra, Thalia e eu havíamos negociado um enquadre de entrevista no qual eu, como
pesquisador fazia perguntas e ela as respondia (ou não) com o intuito de elaborar uma
pesquisa sobre as travestis da ONG Liberdade. Tal enquadre desenrolava-se
facilmente até o momento em que eu utilizo o masculino gramatical ao me referir às
travestis. Nesse momento, Sandra levanta-se de sua mesa e se aproxima dos sofás
onde a entrevista era realizada (alterações proxêmicas). Ao realizar esses movimentos,
a advogada da ONG Liberdade fala, em volume elevado e tom nada amigável (pistas
lingüísticas), e indica como eu deveria me referir às travestis. Tal enquadre foi
interpretado por mim como uma ameaça (ou chantagem) e eu, ainda estranho às
práticas da instituição, indico que entendi a mensagem, enquanto Sandra de pé na
minha frente, colocava as mãos na cintura. Minha interpretação de tal mensagem como
ameaça está relacionada aos movimentos corporais de Sandra e ao modo que ela
81
enquadra sua mensagem, indicando meu status de estrangeiro no universo social da
ONG. As mudanças de enquadre engendram mudanças na interpretação das
mensagens de uma interação e de posicionamentos entre os/as interagentes. Como
podemos inferir, em uma interação podem haver múltiplos enquadres embutidos
(GOFFMAN, 1974) o que está relacionado à negociação de uma miríade de
relacionamentos identitários entre interlocutores/as.
No que se refere às análises das intervenções, o conceito de enquadre é
utilizado para entender a produção dos sentidos negociados entre interventoras e
travestis e, de forma mais operacional, entender a estrutura seqüencial dessas. Ale´m
disso, tal conceito nos auxiliará a entender a estrutura organizacional dos turnos de fala
das participantes do evento e sua relação, importante, na produção de táticas de
intersubjetividade. Sendo um projeto ligado a uma instituição, as intervenções são
estruturadas com base na tarefa de entrega de preservativos às travestis. No entanto,
os enquadres dessas interações são dinâmicos e as mudanças de enquadre (de
conversa institucional à conversa informal cotidiana) possibilitam a construção
discursiva de uma plêiade de identidades e relações identitárias entre as interagentes.
Essas mudanças de enquadre são elaboradas, durante as intervenções, por meio de
posicionamentos discursivos e alternância de códigos que alocam as falantes a grupos
identitários específicos.
82
3.2.2. Posicionamentos discursivos
Outro importante conceito para o desenvolvimento de minha interpretação das
táticas de intersubjetividade é o de posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ,
1990). Segundo autora e autor, “o posicionamento é o processo discursivo através do
qual as identidades são alocadas nas conversas” (DAVIES & HARRÉ, 1990:48) com
base no engajamento com um ou vários discursos. Desse modo, os discursos (de
gênero, de classe, de religião, de sexualidade, por exemplo) nos fornecem posições
para que delas nos apropriemos. Ao interagir, temos a nossa disposição uma plêiade
de posições-de-sujeito a serem utilizadas na negociação de objetivos identitários dentro
de determinadas interações. É por meio dos discursos que utilizamos em nossas
interações cotidianas que nos (re)constituímos e (re)constituímos nossas/os
interlocutoras/es como determinados tipos de pessoas. Assim, ao interagir os/as
falantes podem “modificar quem são” (WORTHAM, 2001:.xi), pois, com os discursos
que utilizam, têm oportunidade de “reforçar e às vezes recriar o tipo de pessoas que
são” (ibid.). Com o acesso a variados discursos, os/as interagentes podem construir ou
transformar sua identidade porque ao interagir negociam certas posições que os/as
auxiliam a “tornar-se certos tipos de pessoas” (WORTHAM, 2001:9). Portanto,
investigar os posicionamentos assumidos por falantes nos dá acesso aos micro-
detalhes da dinâmica identidade/alteridade, ou seja, a como as identidades são
construídas no momento-a-momento da interação quando transitamos por diferentes
discursos de identidades.
83
Para entender como os posicionamentos discursivos adotados possibilitam que
nossas identidades estejam constantemente em devir – continuamente cambiantes e
temporárias – acredito que seja necessário considerar os enunciados utilizados para
ocupar certos lugares na interação como performativos. Idealizada pelo filósofo da
linguagem J. L. Austin (1976), a teoria dos atos de fala indica que ao falar não só
descrevemos o mundo, mas sobre ele agimos. Enunciados como “Eu vos declaro
marido e mulher”, quando proferidos por indivíduos autorizados, não caracterizam a
realidade, mas a instauram. Dessa forma, enunciados não são meramente descritivos;
eles são atos que inauguram novas configurações da realidade. Utilizando insights
dessa teoria para descrever como os gêneros sociais (e, de modo geral, as identidades)
são produtos das performances locais dos indivíduos, a filósofa Judith Butler, em sua
obra Problemas de Gênero: Feminismo e a subversão da identidade (1990/2003),
afirma que “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos
no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo
para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (p.59). É,
assim, com base na repetição de certos atos (o discurso aí incluído) que criamos
nossas identidades. Esses atos são, para Butler, performativos, “pois a essência ou a
identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por
signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 1990/2003:194).
Em que pese à ocupação de lugares específicos em discursos (posicionamento),
a teoria da performatividade nos possibilita entender o caráter processual das
identidades sociais. Como mencionado acima, ao interagir nos apresentamos como
certos tipos de indivíduos por meio dos posicionamentos que assumimos dentro dos
discursos aos quais temos acesso. Os posicionamentos são performances. A ocupação
84
de certos lugares nos força a fazer uso de determinados enunciados que possam
produzir o efeito de uma identidade particular, trazida à tona localmente em relação às
necessidades interacionais construídas pelos/as interlocutores/as.
3.2.3 Alternância de códigos
Com o propósito de enriquecer a análise das táticas de intersubjetividade
construídas entre travestis e interventoras, lanço mão da interpretação das trocas de
códigos efetuadas durante os embates discursivos aqui sob análise. Em 1972, Jan-
Petter Blom e John J. Gumperz publicaram o artigo “O significado social da estrutura
lingüística: alternância de códigos na Noruega”, reeditado, no Brasil, por Branca Ribeiro
e Pedro Garcez no seu livro “Sociolingüística Interacional” (RIBEIRO & GARCEZ,
2002). Nesse clássico dos estudos sociolingüísticos, Blom e Gumperz investigam a
troca de códigos efetuada por moradores/as de uma pequena cidade no extremo norte
da Noruega. Os/as habitantes desse lugar têm em seu repertório lingüístico dois
códigos cujo status sociolingüístico difere grandemente: o ranamal, referente da vida
local considerada, pelos/as falantes, como parte integral de sua história e identidade
regional; e o bokmal, a língua considerada oficial pela lei norueguesa. Segundo os
autores, todos/as os/as habitantes dessa cidade são falantes competentes das duas
variedades lingüísticas e, dessa forma, “em suas interações diárias, eles [sic] optam
entre as duas de acordo com a situação” (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002:49). Assim, é
85
no dia-a-dia que surgem várias alternâncias entre esses códigos (i.e., da língua padrão
ao dialeto e vice-versa) que são impingidas por significados sociais específicos à cada
um dos códigos. Por exemplo, Blom e Gumperz observam que, em sala de aula,
quando dirigindo uma palestra ou expondo um assunto, os professores e as
professoras fazem uso do bokmal, quando, no entanto, propõem que seus alunos e
suas alunas engajem-se em atividades mais íntimas, como trabalhos em grupos ou
discussões sobre algum assunto que lhes é familiar, o dialeto local é a escolha feita.
Blom e Gumperz (1972/2002) sugerem, então, que as alternâncias entre um
código e outro são socialmente condicionadas e dependem (1) dos significados que
os/as falantes pretendem construir e (2) das identidades que objetivam assumir em
determinadas situações sociais. Em outras palavras, as alternativas lingüísticas de um
repertório simbolizam identidades ligadas a essas variedades que podem ser
assumidas pelos/as falantes no decorrer de suas interações diárias. Esse fato é
importante para que possamos entender as trocas de códigos elaboradas por travestis
e interventoras. O repertório lingüístico das interventoras e das travestis é relativamente
complexo. Sandra e Márcia são membras de camadas econômicas médias e tiveram
amplo acesso à escolarização, o que nos permite dizer que as interventoras são
falantes nativas da variedade prestigiosa do português brasileiro. As travestis, por outro
lado, são, em sua grande maioria, provenientes de camadas populares, com acesso à
escola relativamente escasso, o que nos leva a inferir que elas são falantes de alguma
variedade de português não-padrão. No entanto, o que é crucial para este estudo é o
fato de que as travestis possuem, em seu repertório lingüístico, um tipo de linguagem
cifrada bastante peculiar. Tal linguagem é chamada, entre as informantes, de bajubá ou
de bate-bate, esse último sendo o termo mais comum entre as travestis participantes
86
desta investigação, moradoras de uma cidade do sul do país. O bate-bate (ou
simplesmente bate) é composto por termos de algumas línguas africanas,
principalmente o ioruba-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português.30
Ademais, há grande freqüência de termos metonímicos e palavras estrangeiras
foneticamente adaptadas ao português (ver, SILVA 1993; ASTRAL,1996; KULICK 1998;
BENEDETTI, 2005; PELÚCIO 2005a, 2007).31 Durante os primeiros meses de trabalho
de campo, tive algumas dificuldades de comunicação com minhas informantes, pois não
era um falante proficiente do bate. Pude também notar que, nesse período inicial do
trabalho, algumas travestis, quando queriam conversar entre si algo que, na opinião
delas, eu, o pesquisador, não poderia saber, faziam uso radical do bate e, como uma
tática de distinção (BUCHOLTZ & HALL, 2004), enfatizavam suas diferenças culturais,
lingüísticas e sexuais impelindo-me a assumir meu lugar de estrangeiro em sua
comunidade. Porém, com o tempo, fui aprendendo com minhas informantes e já posso
ser considerado, na comunidade, um falante hábil dessa linguagem cifrada.
O que é importante observar é que as variedades lingüísticas presentes nas
interações entre travestis e interventoras têm significados sociais bastante específicos.
Mais precisamente, o português falado pelas representantes da ONG Liberdade é a
língua da instituição, através da qual as informações sobre as reuniões da ONG e sobre
30 Alguns enunciados comuns utilizados entre minhas informantes são: aqüenda os alibãn, mona! (olha os policias!), aqüenda o oxozinho na neca odara (coloca o preservativo no pênis ereto). Vê-se que a estrutura gramatical dos enunciados segue a do português, porém os componentes lexicais são em sua maioria derivações de línguas africanas ligadas aos rituais de religiões afro-brasileiras. 31 São exemplos os termos bafão, proveniente do francês bas-fond, que se refere, no bate, a eventos extraordinários, fora da rotina.; e buceta, metonímia utilizada, com referência ao corpo feminino, a mulheres. É importante notar que o bate é compartilhado por todas as travestis colaboradoras desta pesquisa. Ademais, tal linguagem cifrada parece ser falada em quase todas as comunidades de travestis no território brasileiro, marcada, obviamente, por variações regionais. Alguns grupos de homossexuais masculinos também fazem uso dessa linguagem cifrada que é freqüentemente creditada às travestis. Para conhecer um pouco do bate, ver Aurélia: a dicionária da língua afiada (VIP & LIBI, 2006), que, embora não sendo um documento elaborado com preocupações científicas, oferece uma bem-humorada descrição de alguns termos que compõem o bate.
87
a provisão de preservativos e saches de gel lubrificante são comumente dadas. A
variedade de português não padrão falada tanto por travestis quanto por interventoras é
utilizada quando da troca de enquadre nas intervenções. Em outras palavras, quando o
enquadre de conversa institucional é substituído por um enquadre de conversa
cotidiana e informal o bate parece ser a variedade preferida pelas interagentes. Tal
variedade simboliza a identidade travesti, por ser indicialmente ligada a essa
comunidade, e seu lugar social. É importante enfatizar que Sandra e Márcia são
falantes muito proficientes dessa linguagem. Essas são as variedades lingüísticas que
as participantes dos eventos discursivos aqui estudados têm a sua disposição e que
são utilizadas na construção de relações intersubjetivas durante as intervenções.
Mais algumas palavras sobre alternância de códigos se fazem necessárias. Em
seu artigo, Blom e Gumperz (1972/2002) fazem a distinção entre dois tipos de
alternância de código: a situacional e a metafórica. Na primeira, a troca de códigos
redefine a situação social em curso e tal redefinição impele os/as participantes a uma
mudança em seu status de participação interacional, por exemplo, quando em uma
reunião de negócios cessa o evento exposição de fatos e começa o evento discussão
sobre o curso de ação. É esse tipo de alternância de código que subjaz às mudanças
de enquadre durante as intervenções (de enquadre de intervenção para enquadre de
conversa informal cotidiana). Na segunda, a alternância enriquece a situação social
permitindo alusões a uma plêiade de relações sociais entre falantes dentro de um
mesmo evento discursivo. Observe que a troca situacional de códigos modifica a
situação social em curso. Já a metafórica “está relacionada a determinados tópicos e
assuntos, e não a mudanças na situação social. As situações em questão permitem que
sejam postas em prática duas ou mais relações entre o mesmo conjunto de indivíduos”
88
(BLOM & GUMPERZ, 1972/2002: 70). Dessa forma, os diferentes tipos de alternância
de código podem ser importantes ferramentas para a construção das táticas de
intersubjetividade, que constituem o eixo analítico principal deste trabalho. Num
primeiro plano, a alternância situacional, ao redefinir a situação social, permite que
outros enquadres, além do típico enquadre de intervenção, venham á tona, o que
possibilita, num segundo plano, a redefinição do status interacional e das identidades
das participantes dos eventos.
O eixo principal das análises que apresento no capítulo que segue é constituído
pelo modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) intitulado táticas de
intersubjetividade. As relações intersubjetivas motivadas pelas táticas de
intersubjetividade são produto da minha interpretação particular das interações. Essa
interpretação é elaborada com base na análise dos micro-detalhes das intervenções por
meio dos quais as táticas são alcançadas. As ferramentas de análise discutidas acima
possibilitam tal interpretação.
89
4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS,
TRAVESTIS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA
PREVENÇÃO DE DST/AIDS
Dedico-me, neste capítulo, às análises das intervenções gravadas durante o
trabalho em parceria com a ONG Liberdade. Primeiramente, descrevo, em linhas
gerais, a estrutura seqüencial das interações entre travestis e interventoras durante seu
trabalho de prevenção de DST/AIDS para, a seguir, debruçar-me sobre a negociação
de identidades das participantes dos eventos discursivos aqui analisados. Como
veremos, as intervenções são comumente estruturadas com base na identidade
institucional de Sandra e Márcia. No entanto, com a dinamicidade dos enquadres
interacionais (GOFFMAN, 1994/2002; TANNEN & WALLAT, 1987/2002) das
intervenções, as interlocutoras (re)criam identidades múltiplas com base na construção
e consolidação de relações intersubjetivas que enfatizam o caráter processual e
multifacetado das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003).
90
4.1. O enquadre “intervenção”: institucionalidade d as interações
Vejamos o excerto que segue.
Excerto 2 [INT 230903]
1 Sandra: ((aproxima-se e pára o carro))
2 Márcia: tudo bom?
3 Sandra: e aí? Tudo bom?=
4 Profana: =tu::do::=
5 Sandra: tem reunião amanhã na Liberdade=
6 Profana: =sim=
7 Márcia: =tem reunião e tem gel [tam]bém amanhã ta::?
8 Profana: [ta]
9 Márcia: uma sacolinha*
10Profana: brigada amor
11Sandra: >beijo beijo<
12Márcia: tchau
13Profana: obrigada
14Sandra: ((acelera o carro))
Tipicamente as interações estruturadas durante a entrega de preservativos são
dinâmicas, envolvendo poucas e rápidas trocas de turnos de fala. Segundo Sandra, as
abordagens não podem demorar muito, pois “não podemos chegar muito tarde em
casa. Temos filhos, casa, família pra cuidar”. Faz-se necessário retomar o fato de que
as intervenções acontecem à noite. A rigor, a equipe da Liberdade inicia suas
atividades aproximadamente às 19 horas e, depois de percorrerem todas as áreas de
91
prostituição travesti da Cidade do Sul, termina a distribuição de preservativos não antes
do inicio da madrugada. Durante as abordagens, Sandra e Márcia tentam convencer
suas interlocutoras a participar das reuniões da Liberdade que ocorrem às quartas-
feiras à tarde (linha 7 do excerto acima).
Como podemos verificar, logo após Sandra aproximar-se de uma travesti, inicia-
se a troca de turnos com informações fáticas sobre seu bem-estar o que é seguido por
informações sobre a reunião que acontecerá no dia seguinte. Vê-se que essa interação
organiza-se com base em pares adjacentes (SACKS, SCHEGLOFF & JEFFERSON,
1974) dos tipos cumprimento-cumprimento (L.2, 3 e 4) , convite para a reunião-
aceite/recusa (L. 5 e 6), informação sobre a reunião-indicação sobre a compreensão
dessa informação (L. 7 e 8), despedida-despedida (L. 11, 12 e 13). Os turnos são
engatados o que impinge à interação um ritmo rápido e dinâmico. A entrega dos
preservativos não é comumente verbalizada. Márcia, quando a travesti aproxima-se da
janela do carro, somente estende a mão e entrega as camisinhas (ação indicada por *
na transcrição) para, logo após, tomar notas no relatório que será enviado às agências
que financiam as intervenções.
Há um alto grau de assimetria nessas interações. Como o exemplo acima ilustra,
Sandra e Márcia parecem ser responsáveis pela introdução dos tópicos da conversa,
direcionando, assim, seu desenvolvimento. Isso pode ser creditado a seu status nesses
eventos. Como representantes de uma ONG, as interventoras são, nos territórios de
prostituição travesti, institucionalmente empoderadas. Além disso, há as variantes de
classe social, profissão e gênero que as constroem como diametralmente diferentes das
travestis com quem interagem. Tanto Sandra quanto Márcia têm se construído como
representantes de categorias sociais que possuem prestígio na sociedade brasileira
92
contemporânea: ambas têm filhos/as, têm nível de ensino superior, heterossexuais,
brancas etc. Esses fatos podem ilustrar as relações de poder construídas entre as
interventoras e suas interlocutoras transgênero, que não desfrutam de status na
sociedade abrangente.
O excerto 2 exemplifica o enquadre (GOFFMAN, 1974, 2002) típico das
interações produzidas durante as intervenções.32 Esse enquadre é sinalizado por uma
redundância de pistas de contextualização (ERICKSON & SHULTZ,2002) que envolve
a seqüencialidade dos turnos de fala, a organização dos pares adjacentes e a
orientação a uma tarefa institucional que indicam a posição institucional das
interventoras que, como vimos, interagem com as travestis para entregar preservativos
e para divulgar os projetos da ONG Liberdade, tarefas que motivam e estruturam a
seqüencialidade das ações nessas interações (DREW & HERITAGE, 1992). No
entanto, nem todas as interações são exclusivamente enquadradas dessa forma. Há
interações durante as quais outros enquadres são negociados (GAVRUSEVA, 1995) e,
assim, outras relações intersubjetivas construídas. Acredito que as interações
enquadradas com base na entrega dos preservativos acontecem somente com as
travestis que não são participantes ativas dos grupos da Liberdade, com quem as
interventoras não têm muita intimidade. Com travestis mais ativas nos projetos da ONG,
Sandra e Márcia costumam engajar-se em interações mais longas nas quais têm a
oportunidade de desempenhar performances de outras identidades, deixando sua
identidade institucional em segundo plano.
32 Outros exemplos desse tipo de enquadramento são oferecidos no Anexo 1.
93
4.2 Quando o tradicional defronta-se com o não-trad icional: a
construção discursiva de identidades entre interven toras e
travestis
A seguir trago as análises de intervenções nas quais outras identidades, além da
identidade institucional das interventoras, são co-construídas. Como veremos, essas
identidades são produzidas com base na negociação de enquadres diferentes do
enquadre de intervenção no qual somente a entrega dos preservativos e as
informações sobre as reuniões da Liberdade são produzidas (cf. excerto 2). Argumento
que a identidade institucional das interventoras33, ao se defrontar com as identidades
multifacetadas das travestis (BORBA & OSTERMANN, 2007; BENEDETTI, 2005;
PELÚCIO, 2005a, 2005b; JAYME, 2001; KULICK, 1998; PIRANI, 1997; OLIVEIRA,
1997; SILVA, 1996, 1993), é temporariamente deixada em suspenso e outras
possibilidades identitárias são encenadas, produzidas por meio das táticas de
intersubjetividade descritas por Bucholtz e Hall (2004; 2005). As interventoras e as
travestis assumem posicionamentos que produzem o efeito de identidades
fragmentadas, fluidas e contraditórias ao sobrepor enunciados ligados à identidade
travesti, à identidade de profissional do sexo e à identidade masculina. Esse processo
de fricção de identidades/alteridades é relacional e vale tanto para interventoras como
33 O que chamo de identidade institucional das interventoras faz parte do leque de identidades que compõe o repertório de identidades habitualizadas de Sandra e Márcia. Tal identidade não é nem uma nem coerente embora tenda a ser mais estável que aquelas encenadas temporariamente durante as intervenções.
94
para travestis. As interventoras, ao se defrontarem com a outridade travesti, parecem
ser forçadas a suspender suas identidades tradicionais e acionam discursivamente
outras identidades através dos posicionamentos co-construídos com suas
interlocutoras. As travestis, por sua vez, em contato com as construções de identidades
tradicionais de Sandra e Márcia, posicionam-se em discursos que as constroem (1)
como travestis e (2) como participantes de categorias identitárias convencionalmente
consideradas tradicionais, i.e., integrantes de discursos hegemônicos e positivamente
valorados com relação à classe social, sexualidade, profissão e gênero. Assim, ao
engajarem-se nesse embate discursivo, as interlocutoras constroem seu repertório de
identidades tendo como ponto de referência a outridade das interagentes (FABRICIO &
MOITA LOPES, 2004).
A partir deste momento, veremos uma grande multiplicidade de performances
identitárias (BUTLER, 2003) sendo encenadas por interventoras e travestis e
exacerbam os processos de negociação, re-negociação e administração das diferenças
(percebidas ou construídas) entre as características de seus feixes identitários (MOITA
LOPES, 2003). Nas seções que seguem, apresento minha interpretação das dinâmicas
discursivo-identitárias confeccionadas no momento-a-momento das intervenções cuja
força motriz é a tensão entre as alteridades das participantes dos eventos de fala
estudados. O atrito entre as identidades das interventoras e aquelas das travestis com
quem interagem parece motivar uma interligação das fronteiras que demarcam
diferentes grupos identitários; fronteiras essas que, como veremos, “a fala frivolamente
encaixa, insere e mistura” (GOFFMAN, 1974/2002:146).
95
4.2.1 Semelhança suficiente: adequação às travestis
O processo de adequação produzido por táticas de intersubjetividade envolve o
apagamento de características potencialmente discordantes entre interagentes em
favor de semelhanças percebidas ou construídas que são tomadas como mais
relevantes para os propósitos identitários localmente construídos (BUCHOLTZ & HALL,
2003). No caso em tela, essas semelhanças são discursivamente construídas através
de índices lingüísticos (OCHS, 1992; SILVERSTEIN, 1985) que mobilizam
posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e alocam as interlocutoras em
categorias pertencentes ao universo da prostituição travesti. Esses índices são
mecanismos sociolingüísticos que produzem ligações entre formas lingüísticas e grupos
sociais específicos. Tais ligações são produzidas através da repetição de determinadas
formas lingüísticas que passam a ser percebidas como “naturalmente” relacionadas a
esses grupos.
No excerto 3, vemos Sandra construir duas identidades diferentes: a de travesti e
a de cliente de travesti.34 A interventora desempenha performances de identidades
díspares em poucos turnos da interação.
34 Os recortes dos excertos utilizados no decorrer do texto foram feitos com base nas táticas produzidas em diferentes interações. Como as táticas podem ocorrer em conjunto, ou seja, várias durante a mesma interação, com o intuito de facilitar a leitura e a interpretação dos dados, apresento no texto recortes das transcrições.
96
Excerto 3 [INT071003]
18 Daniela: ai guria peguei um gripão que Deus o livre. e esse
19 vento maldito ainda pra [ajudá::
20 Sandra: [vai dá chuva=
21 Daniela: =não vai nada
22 Sandra: oi princesa
23 Karla: vai tê reunião [amanhã?
24 Márcia: [tudo bom?*
25 Sandra: tem reunião amanhã.
26 Márcia: amanhã tem.
27 (0,7)
28 Sandra: vamo se aqüendá tudo lá.
29 (0,8)
30 Daniela: vamo aqüendá o baco lá também?=
31 Sandra: =também.
32 Daniela: @@@@@
33 Márcia: ó uma sacolinha pra colocá o lixo.
34 Karla: ai arrasô!=
35 Sandra: =isso ai se chama:: profissional educada. jogue o
36 lixo no [lixo.
Após o típico enquadre de intervenção ter sido estabelecido, na linha 18, Daniela
introduz outro enquadre, o de conversa cotidiana, o que possibilita a negociação
discursiva de identidades que extrapolam a institucionalidade das interventoras nesse
contexto. Esse novo enquadre é contextualizado (GUMPERZ, 1982/2002) pelo termo
de referência “guria”, que, na região sul do país, é associado à intimidade e à igualdade
do status interacional. O termo de endereçamento “guria” configura uma troca
situacional de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002) no sentido de que ao ser
97
proferido instaura (1) um novo enquadre e (2) uma nova relação social entre
interventoras e travesti. Na linha 22, Sandra, ao notar a aproximação de Karla, a
cumprimenta utilizando um enunciado que, segundo minhas informantes, é típico de
seus clientes, “oi princesa”, configurando, assim, um índice dessa identidade e
posicionando a interventora nesse discurso de identidade. Dessa forma, Sandra
desencadeia uma performance de cliente de travesti ao utilizar um posicionamento que
as travestis reconhecem como pertencente a essa categoria.35
Karla re-introduz, ao perguntar se “vai ter reunião amanhã” (L.23), o enquadre de
intervenção. Contudo, essa intervenção já havia sido re-enquadrada (L.18) o que
possibilita a negociação de variadas relações intersubjetivas, além da relação
institucional típica das intervenções. Isso pode ser verificado na linha 28 quando Sandra
efetua uma alternância metafórica de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002)
utilizando a linguagem cifrada das travestis, o bajubá36, construindo o que Bucholtz e
Hall (2004:495) denominam semelhança suficiente. Ao fazer uso do bajubá, Sandra
parece diminuir suas diferenças identitárias ao construir-se como semelhante às
travestis com quem interage. Esse processo de apagamento de características
ideologicamente discordantes pode ser considerado como uma tática utilizada pela
interventora na tentativa de produzir discursivamente uma performance identitária que
não destoe do contexto onde está inserida durante as intervenções. Dessa forma,
Sandra posiciona-se, ao falar “vamo se aqüendá tudo lá”, como travesti.
35 Não é minha intenção afirmar que há uma identidade de cliente de travesti estável e coerente. Pelo contrário, tal categoria é múltipla e fluida. As travestis desenvolveram um leque de termos para se referir aos seus clientes que são categorizados de acordo com sua classe social, performance de masculinidade, atuação no intercurso sexual e aparência física. Esse leque inclui termos como ocó, bofe, maricona, vício, varejão, penoso, truque e fino (para uma discussão perspicaz sobre tais categorias ver Pelúcio, 2005b). 36 Ver capítulo anterior para uma descrição densa do repertório lingüístico que constitui o contexto sócio-cultural aqui investigado.
98
É interessante observar que aqüendar-se é um verbo com significados
polivalentes. Esse termo pode ter vários sentidos, por exemplo, encontrar-se, prestar
atenção, olhar e fazer sexo. O enunciado de Sandra (L. 28) pode ser traduzido por
vamos nos encontrar todas lá. Porém, Daniela, aproveitando-se do fato de Sandra
temporariamente suspender sua identidade institucional (construindo adequação a sua
identidade), pergunta se durante a reunião “vamo aqüendá o baco lá também?” (L. 30)
o que significa “vamos fazer sexo lá também?”. Sandra, jocosamente, afirma que sim.
Tal informalidade nesse momento da interação pode ser creditada à performance de
Sandra como travesti (L. 28), o que possibilita a re-significação das reuniões da
Liberdade como lugar erotizado.
O processo de adequação engendrado na administração das diferenças entre
interventoras e travestis, através do qual as performances identitárias habitualizadas
das mulheres que entregam preservativos às travestis são temporariamente suspensas
pelo contexto, é local e seqüencialmente construído. O vocativo “princesa” (L. 22),
utilizado por Sandra, posiciona a interventora em discursos que, segundo as travestis
colaboradoras desta pesquisa, são associados aos homens que procuram seus
serviços sexuais. Assim, uma identidade de cliente de travesti emerge de tal enunciado.
Sandra, na interação acima, igualmente produz, em poucos turnos da interação, uma
performance de travesti ao efetuar uma mudança de códigos (BLOM & GUMPERZ,
1972/2002) entre o português e a linguagem cifrada das travestis, o bajubá. Tais
recursos lingüísticos são recorrentes durante as intervenções. No excerto abaixo,
vemos Sandra e Márcia fazendo uso de vocativos e de enunciados típicos entre
travestis em uma interação com Adriana, uma travesti que, à época desta interação,
havia recentemente colocados silicone nos seios.
99
Excerto 4 [INT281003]
1 ((pára o carro))
2 Adriana: e aí Sandra?
3 Sandra: querida::[:
4 Márcia: [oi mona LUxo! Tu[do bom?
5 Adriana: [tudo bom meu anjo?/
6 Sandra: ah não que é isso?
((seis linhas omitidas))
12 Sandra: e esses óculos de intelectual?
13 Adriana: ah agora eu to intelectual. @@@
14 Sandra: olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ
15 Márcia: ai meu deus.
((treze linhas omitidas))
16 Adriana: sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às
17 quatro.
18 Sandra: ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))
19 Márcia: ta né meu bem!
20 Adriana: ah ta @@@@
21 Sandra: daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.
22 Márcia: @@[@@@@@
23 Adriana: [ah ta. obrigada Sandra.
24 Márcia: tchau. até amanhã.
25 Adriana: até amanhã.
26 Sandra: ((dá partida no carro))
Nessa interação, os trânsitos por discursos de identidades acontecem com base
em posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) que constroem as
interventoras como travestis através do uso de enunciados comuns entre as travestis
100
participantes deste estudo. Márcia, na linha 4, cumprimenta sua interlocutora com “oi
mona luxo”. Tal forma de endereçamento é comum entre as travestis da Cidade do Sul,
que, ao se encontrarem, se referem umas às outras por “mona luxo”, forma que enfatiza
o glamour de sua construção corporal e suas vestimentas. Alguns turnos mais adiante é
a vez de Sandra engajar-se na encenação de uma identidade travesti. Nessa noite,
Adriana usava somente sapatos de saltos altos e uma calcinha branca. A parte superior
de seu corpo estava parcialmente descoberta e a travesti exibia seus enormes seios à
procura de clientes. Na linha 14, a advogada da ONG Liberdade orienta-se para os
seios, recém adquiridos por Adriana, surpresa com a quantidade de silicone utilizado.
Ao afirmar “olha só os apeti da mona”, Sandra faz uso da palavra apeti que significa
seio em bajubá e pode-se dizer que, dessa forma, constrói-se como uma travesti
conhecedora dessa linguagem cifrada.
O excerto 4 nos apresenta a suspensão temporária das identidades tradicionais
das interventoras que, ao posicionarem-se em discursos ligados ao universo travesti,
encenam performances de identidades que povoam esse lócus sócio-cultural. Tal
suspensão materializa-se por meio da utilização de posicionamentos discursivos que ao
serem proferidos produzem as interventoras como participantes de grupos identitários
específicos, i.e, como travestis, como cliente de travesti e como profissional do sexo.
O uso do bajubá é talvez a ferramenta lingüística mais freqüentemente utilizada
pelas interventoras na negociação de suas posições-de-sujeito na batalha. Ao fazerem
uso desse código, as interventoras convergem no uso de linguagem (BORTONI-
RICARDO, 1984) com as travestis, construindo-se, assim, no mesmo universo social
que suas interlocutoras transgênero.
101
Vejamos mais um exemplo de interação, no qual Sandra faz uso fluente do
bajubá em sua construção identitária, posicionando-se, como veremos, no mesmo
universo lingüístico das travestis com quem interage.
Excerto 5 [INT251103]
1 ((pára o carro próximo à Mayka))
2 Sandra: VEM CÁ BELÍSSIMA
3 Mayka: oi
4 Márcia: tudo bom?
5 Sandra: escuta, amanhã tem reunião. (0,7) última reunião
6 do mês
7 Márcia: do ano*
8 Sandra: do ano. e depois não tem camisinha. só no outro
9 ano.
10 Márcia: amanhã então tem CEM camisinha e gel.
11 Sandra: amanhã vai lá e pega cem camisinha e gel e dia
12 dezessete tem a-
13 Mayka: a festa=
14 Márcia: =isso. só que vai sê às dezoito e trinta. [vai sê cedo
15 Sandra: [diz que vai
16 tê um sorteio de um BOFE belíssimo de neca [odara.
17 Mayka: [de neca odara
18 Márica: @@@@@@@@@@@[@@@@
19 Sandra: [ta bom?=
20 Mayka: =ta. brigada.
21 Márcia: tchau.
102
Essa intervenção foi gravada em novembro de 2003 quando a equipe da ONG
Liberdade se preparava para encerrar os projetos financiados pelos governos Federal e
Estadual, limitando-se, a partir de então, a questões burocráticas e administrativas a
serem resolvidas na sede da instituição. Aproveitando sua incursão nos territórios de
prostituição, Sandra e Márcia durante essa noite, avisavam as travestis sobre a última
reunião do ano e sobre a festa de lançamento de um livro que a ONG estava
organizando. No dia posterior a essa intervenção, haveria a distribuição de um grande
número de preservativos e as interventoras tentavam convencer suas interlocutoras a
participar desse encontro para abastecer seu estoque de camisinhas e gel lubrificante.
Dessa forma, a identidade institucional de Sandra e Márcia é uma constante construção
no excerto acima (L. 4-14) e emerge de sua orientação ao anúncio de questões
relativas ao funcionamento da ONG. No entanto, nas linhas 15 e 16 Sandra,
provavelmente com o intuito de convencer Mayka a participar da “última reunião do
ano”, alterna códigos, posiciona-se em discursos do bajubá e, assim, engendra a
encenação de uma identidade travesti, deixando temporariamente de lado sua
identidade institucional anteriormente construída. Afirmando que, segundo boatos,
haveria o sorteio de “um bofe belíssimo de neca odara”, Sandra parece tentar motivar
sua interlocutora travesti a participar da reunião. Esse enunciado indica que um belo
homem com grande órgão sexual estaria à disposição das travestis presentes na
reunião. Mayka orienta-se a esse fato e co-constrói o turno de Sandra através de uma
sobreposição de falas (L.17). No dia seguinte, eu participei da “ultima reunião do ano” e
pude perceber que, além de mim, mais nenhum “bofe” (belíssimo ou não) se encontrava
na sala, o que corrobora minha suspeita de que Sandra pode ter utilizado essa
informação como uma estratégia de convencimento para que Mayka participasse do
103
encontro. Na quarta-feira à tarde, Mayka entra na sala, vestindo preto e óculos escuros
(“chi-quér-ri-ma!”), quiçá, a aguardar o sorteio.
Em linhas gerais, os excertos acima ilustram a fluidez das posições de sujeito co-
construídas por interventoras e travestis possibilitada pelo re-enquadramento conjunto
da interação. Ao deixar de lado o enquadre intervenção, as ativistas da ONG Liberdade
engendram um processo de suspensão de sua identidade institucional e constroem-se
(1) como cliente de travesti e (2) como travesti, o que pode ser considerado, segundo
Bucholtz e Hall (2004; 2005), como uma tática de adequação à identidade de suas
interlocutoras. Como vimos, com base na análise de alguns micro-detalhes das
interações acima, ao fazer uso de enunciados convencionalmente ligados às travestis e
seus clientes, as interventoras re-ajustam, transformam, manipulam e recompõem suas
construções tradicionais de identidades como interventoras e mulheres de classe média
ao contexto onde a interação está inserida e às suas interlocutoras. Outro exemplo
dessas re-contextualizações identitárias que acompanham os re-enquadramentos das
intervenções é ilustrado no excerto que segue.
Excerto 6 [INT071003] 53 Sandra: como é que ta a coisa aí?
54 Daniela: quem tem cliente tem quem não tem.
55 Sandra: é né. (tem que) tê um corpitcho!=
56 Daniela: =tem que tê um um padrão né. tem que tê de tudo um
57 pouco!
58 Sandra: de tudo um pouco!=
59 Daniela: =CLARO. e eles enlouQUECE já guria.
60 Sandra: é verdade. qualqué dia desse eu vô te fazê um:[:
104
61 Daniela: [a Sheyla
62 me ligô semana passada=
63 Sandra: =a Sheyla::?=
64 Daniela: =ahã. ela e a Cláudia.
65 Sandra: ah/ manda um beijo pra ela. escuta:: a Júlia
66 vem vindo::?=
67 Daniela: =vem. fa:[:la o que tu ia falá!=
68 Sandra: [a passo bem (lento) =não. qualqué dia
69 desses vô ficá na tua esquina. tem lugar pra mim?=
70 Daniela: pode ficá. com certeza. Claro. tu sabe que sempre tem pra ti=
71 Sandra: =ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?
72 Márcia: @@[@@@
73 Daniela: [que que é?=
74 Sandra: =MEU ESPARtilho né
75 Daniela: lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=
76 Sandra: =ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as 77 mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e 78 joga os cabelos para os lados)) 79 Daniela: =ensino.
80 Márcia: @@[@@@@@@@
81 Sandra: [ah bom
82 (0,8)
83 Daniela: um jogo pra balançá TUDO que tem direito=
84 Sandra: =bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.
85 Daniela: [A:::I:[:: não pode balançá
86 Márcia: [@@@@@@@
87 Daniela: a loca!
88 Sandra: ta meu amor
89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama
90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))
91 Karla: vai! Tchau, beijo.
92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::
93 Daniela: ((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha
94 à vontade
105
Da linha 53 à linha 60 do excerto acima, Sandra e Daniela comentam sobre a
quantidade de clientes que circulavam na área naquela noite. À pergunta de Sandra, na
linha 54, Daniela afirma que o número de clientes é considerável para aquelas travestis
que já tem uma cartela de clientes bem consolidada. Na linha 55, a interventora sugere
que para se ter clientes, “tem que ter corpitcho”, ou seja, deve-se ser jovem e estar em
boa forma para que clientes em potencial se interessem pelas profissionais do sexo.
Nesse momento, Daniela, sublinhando a ambigüidade do corpo travesti, enfatiza que
“tem que ter de tudo um pouco”. Podemos inferir com base nesse enunciado que,
segundo a falante, para se ter clientes, no universo trans, deve-se construir um corpo
no qual a feminilidade enfatizada (CONNEL & MESSERSCHIMIDT, 2005) das travestis
é combinada com o órgão masculino (no bajubá, ‘neca’), que, segundo minhas
colaboradoras, é uma importante ferramenta para se angariar clientes na batalha.37 Em
outras palavras, recorrendo à fala de Bárbara na cena 5 (cf. capítulo 2), deve-se
construir um “corpo de Eva” mas não se livrar “da melhor parte de Adão”. Assim, de
acordo com Daniela, quando se tem “de tudo um pouco” em um só corpo, os clientes
“enlouquecem” (L.59). Após mais alguns turnos sobre uma travesti que Sandra e
Daniela conhecem (L.61-65), Daniela pede para que a interventora retome o tópico
iniciado na linha 60, mas abortado pelo assunto da ligação de Sheila.
Diante da informação de que o número de clientes no território onde Daniela
batalha pode ser bom, Sandra afirma que vai dividir com sua interlocutora seu ponto (L.
68-69)38 o que configura uma mudança de enquadre no qual a interventora indica seu
37 Ver Kulick 1997; 1998 e Benedetti, 2005 para reflexões enriquecedoras sobre o capital simbólico e sexual que circunda o ‘ter uma neca’ no mercado sexual das travestis que se prostituem. 38 Travestis como Daniela, jovens, bonitas e que investem muitos esforços econômicos e simbólicos na construção de um corpo feminino, segundo minhas informantes, conseguem fazer aproximadamente (ou
106
interesse em prostituir-se com Daniela. A travesti, reconhecendo tal mudança, alinha-se
positivamente ao novo posicionamento de Sandra e indica que a interventora tem
passagem livre nesse contexto e que, se quiser, pode prostituir-se ali. Nesse momento,
Sandra embute (GOFFMAN, 1974), na linha 71, um outro enquadre, um pedido de
sugestão, e pergunta à sua interlocutora sobre um item de vestimenta muito utilizado
entre as profissionais do sexo da Cidade do Sul. É nesse enquadre que a interventora,
sublinhando o poder da travesti nesse contexto, pede a Daniela conselhos sobre sua
possível vestimenta: “que cor o meu espartilho?” (L. 71). Daniela parece não ter
entendido o que Sandra afirmara (afinal, como uma advogada poderia pedir tal
informação?) e, na linha 73, pede à interventora que repita a pergunta. Sandra
imediatamente reitera, em volume elevado, a informação que precisa (L. 74). É aí que
Daniela ratifica a identidade recém produzida por Sandra orientando-se a essa
performance e dizendo que para ser prostituta (e ter muitos clientes) ela deve usar um
espartilho “bem vermelho, bem puta, bem tudo”.
Tendo em perspectiva a experiência de Daniela como profissional do sexo, na
linha 76, há um outro re-enquadramento na interação que, juntamente com o enquadre
de pedido de sugestão negociado nas linhas 71-75, configura uma inversão da
assimetria das intervenções. Sandra, nesse momento, sublinha o poder simbólico de
sua interlocutora e pede que ela a ensine um movimento corporal bastante utilizado
pelas travestis da cidade do sul para atrair seus clientes. Entre as linhas 76-85, Sandra
e Daniela co-constroem e consolidam a negociação de uma identidade de prostituta
para a interventora, negociação inicialmente sugerida pelo alinhamento de Sandra ao
mais de) R$ 5 mil em um bom mês na prostituição (nas zonas de batalha, nas agências, pela Internet, por telefone etc.).
107
contexto de prostituição da Daniela e aos ganhos financeiros da travesti. No Excerto 6,
Sandra e Daniela constroem conjuntamente a identidade de prostituta vislumbrada no
posicionamento de Sandra nas linhas 68 e 69. Esse é outro exemplo de semelhança
suficiente co-produzida por interventora e travestis no processo de negociação / fricção
de identidades inerente a esse contexto interacional específico.
Anteriormente, vimos Sandra construir uma performance de prostituta através da
utilização de enunciados e símbolos associados a esse grupo social. Daniela, sua
interlocutora, no excerto 6, corrobora a encenação dessa identidade ao dar conselhos
de como Sandra poderia tornar-se, corporal e simbolicamente, uma profissional do sexo
eficiente. Contudo, nem sempre os trânsitos identitários efetuados pelas interventoras
são ratificados pelas travestis com quem interagem. Vejamos o excerto 7.
Excerto 7 [INT230903]
1 Sandra: oi:::
2 Tabata: ((de longe, aproximando-se do carro)) oi=
3 Sandra: =qué uma chupadinha?
4 Tabata: não::::::=
5 Sandra: =não? ((supresa))
6 Tabata: não. NÃO quero.
7 Sandra: viu? ((olhando para Márcia))
8 Márcia: tudo bom?
9 Tabata: tudo sim.
10 Sandra: amanhã tem reunião viu, vê se aparece por lá*
11 Tabata: faz tempo que eu não vou, mas vou tentar ir amanhã sim.
12 to precisando de camisinha.
13 Sandra: então aparece por lá e abastece o estoque meu bem. tá?=
14 Tabata: =ta bom.
108
15 Sandra: beijo [beijo.
16 Márcia: [beijinho
17 Tabata: beijo. Tchau:::
Quando Tabata se aproxima do carro da Liberdade, Sandra, logo após
cumprimentá-la (L.1) lhe oferece um serviço sexual comumente prestado pelas
profissionais do sexo nas ruas da Cidade do Sul (L.3), i.e., sexo oral e, dessa forma,
essa interação, já de inicio, tem outro enquadre que não o típico enquadre institucional,
comum, pelo menos nos primeiros momentos de uma interação durante o projeto da
ONG Liberdade. Pode-se indicar que, ao abordar Tabata com um enunciado utilizado
pelas travestis ao iniciarem uma negociação de serviço sexual com seus clientes,
Sandra instaura um enquadre do que as profissionais do sexo chamam de programa,
i.e., um encontro sexual com propósitos financeiros. Assim, com base no uso do
enunciado “quer uma chupadinha”, Sandra, que em outros contextos constrói-se como
uma mãe de classe média procedente de família judia, posiciona-se em um discurso
associado a uma prática corporal característica dos grupos sociais que povoam o
universo trans (BENEDETTI, 2005), encenando, assim, uma identidade de profissional
do sexo. No entanto, diferentemente dos exemplos anteriores, essa performance não é
co-sustentada por sua interlocutora travesti. Na linha 4, Tabata, categoricamente, nega
a oferta feita por Sandra. A interventora, um tanto surpresa, ainda tenta, na linha 5,
envolver sua interlocutora em sua performance, engatando sua fala à fala da travesti.
Tal tentativa é novamente podada por Tabata que, na linha 6, afirma, em volume mais
alto, que não gostaria de ser “chupada” por Sandra. A interventora, nesse momento,
109
vira-se para sua colega e orienta-se para o fato de não ter sua performance
corroborada por sua interlocutora.
Tendo sua performance negada por sua interlocutora travesti, na linha 10,
introduz o enquadre de interação institucional orientando-se a sua tarefa de anunciar as
reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde. Vemos aqui um exemplo no qual as
flutuações identitárias das interventoras são limitadas pelo não-engajamento da
interlocutora nessa performance. Isso indica que as travestis têm papel importante nas
(re)negociações alteritárias efetuadas durante as intervenções. Em outras palavras, o
olhar do outro pode possibilitar ou restringir nossos trânsitos por discursos de
identidades. O eu e o outro se interpenetram e retro-alimentam-se e isso é crucial nos
embates discursivos nos quais indivíduos que se constroem em grupos identitários tidos
como dissonantes encontram-se.
Pode-se indicar que o confronto de identidades tradicionais e não-tradicionais
encontrado nas zonas de prostituição de travesti da Cidade do Sul parece um rico lócus
para a negociação de identidades de gênero e sexualidade. Mais significativamente, a
construção de semelhança suficiente entre interventoras e travestis parece indicar que,
nesse contexto, a identidade com mais poder, aquela que molda o enquadre da
interação e as relações intersubjetivas de construção de identidades, é a identidade
travesti. Esse fenômeno é bem exemplificado nos exemplos acima nos quais vemos a
suspensão temporária das construções identitárias tradicionais das interventoras por
identidades não-tradicionais (travesti, cliente, prostituta), tática que parece sublinhar as
posições das travestis durante as intervenções.
Até esse momento, analisei como Sandra (uma mulher branca, de classe média,
feminista, heterossexual, divorciada, mãe, procedente de uma família judia) e, em
110
menor grau, Márcia (uma mulher branca, mãe natural de duas filhas e adotiva de outra,
divorciada, heterossexual) engendram um processo de suspensão temporária de suas
performances cotidianas de identidades tradicionais e, a partir daí, desempenham
performances ligadas ao universo da prostituição travesti da Cidade do Sul. Como
descrito acima, essas identidades são, em parte, trazidas à interação por meio da
alternância de enquadres e re-enquadramentos embutidos (GOFFMAN, 1974) múltiplos
que possibilitam a elaboração de táticas que produzem o efeito de reajuste das
identidades tradicionais das interventoras às suas interlocutoras travestis e ao contexto
onde se encontram.
Note que os posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) adotados
pelas interventoras são ligados ao universo trans (BENEDETTI, 2005), isto é, são
posições que não seguem as regras tradicionais impostas por discursos hegemônicos.
As identidades não-tradicionais encenadas pelas travestis com quem interagem,
parecem levar as interventoras a construírem-se como participantes desse universo. As
performances de identidades habitualizadas das interventoras são, durante as
intervenções, deixadas em suspensão, o que desencadeia um processo local e
seqüencial de adequação às travestis e ao território de prostituição.
111
4.2.1.1 As flutuações identitárias das travestis: d esestabilizando as
construções de identidades das interventoras
No que segue, analiso os posicionamentos assumidos por travestis que
desestabilizam a fluidez identitária das interventoras, forçando-as a assumir uma
identidade associada convencionalmente à feminilidade hegemônica. Consideremos a
seguinte interação.
Excerto 8 [071003]
117 Júlia: To atrás de um home. HOME não [boiola.
118 Sandra: [ PRA
119 CHAMÁ DE SEU antes que seja EU ((canta))
120 Júlia: mandei meu bofe. mandei meu bofe embora
121 no dia que:: que tava fazendo aniversário do XXX. digo
122 “vai lixo!”
123 Sandra: é? e depois chora ai nos canto “volta querido, vem meu
124 amor”=
125 Júlia: =querida home é o que mais tem gatinha. meu negócio é
126 gozá e mandá embora. dá um cafezinho ou uma janta se
127 tivé com fome e ó tchau. que home não dá nada pra
128 gente, a gente tem se fudê no salto aí pelada NUA pegando
129 uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida
130 então querida agora que- sabe qual é o meu marido? é o
131 cartão do unibanco. todo dia oito eu passo assim sai o
132 aqüé e digo “ai amor como é que [tu ta? tudo bem?”
133 Márcia: [@@@@@@@@
134 Sandra: [@@@@@@@@@
135 Júlia: primeira coisa pago meu aluguel e e faço minhas coisa entendeu?
112
136 esse é meu marido. eu to aprendendo as coisa, cada vez
137 que to ficando MAIS velha mais experiência eu to tendo
138 da vida entendeu? por tudo que eu [passei/
O excerto acima inicia com a afirmação categórica de Júlia: “to atrás de um
homem, não boiola” (L. 117). Com esse enunciado, Júlia indica seu novo status: está
solteira. É relevante observar que o posicionamento de Júlia com relação ao seu ex-
parceiro é resumido pelo discurso reportado direto: “vai lixo” (L. 122). Ao trazer para a
interação sua voz no momento da separação, Júlia demonstra como se referia a seu ex-
companheiro. O vocativo “lixo” pode ser o primeiro índice da relação da falante com
seus parceiros sexuais: depois de usados, não servem mais. Nesse momento da
interação, Sandra tenta contra-posicionar (WORTHAM, 2001) sua interlocutora travesti
dizendo que ao mandar seu bofe embora ela vai “chorar nos cantos” dizendo “volta,
meu amor” (L. 123-124). Com isso, Sandra desempenha uma performance
convencionalmente ligada à feminilidade hegemônica e tenta impor a Júlia tal
posicionamento frágil e submisso. Porém, Júlia recusa o novo posicionamento e re-
afirma sua força e independência em relação aos homens. Esse tipo de posicionamento
é igualmente produzido por outros enunciados: “não boiola”, “home é o que mais tem,
gatinha” e “o meu negócio é gozar mandar embora”. Os termos boiola e gatinha aqui
utilizados pela narradora na construção de sua narrativa são convencionalmente
associados a um grupo específico de homens hegemônicos, i.e homofóbicos e
machistas. Performativamente falando, esses enunciados são repetições de normas
que precedem e limitam (BUTLER, 2003b) os/as falantes, pois ao constituir o campo
113
discursivo da masculinidade hegemônica tornam disponíveis tais posições para que
sejam adotadas, acriticamente, pelos indivíduos na vida social. Assim, ao utilizá-los,
Júlia posiciona-se nesse discurso e produz um tipo específico de masculinidade.
Observe, no entanto, que essa masculinidade é muito característica das travestis
que participaram deste estudo. Nas linhas 126 e 127, Júlia parece posicionar-se de
maneira diferente através da suas escolhas lexicais: “dá um cafezinho”, “uma janta”, “se
tiver com fome”. A escolha de palavras e ações convencionalmente tidas como
femininas posiciona a falante como uma pessoa preocupada com o bem-estar de seus
parceiros, o que é antagônico se levarmos em consideração seus posicionamentos
anteriores. Contudo, acredito que esses posicionamentos se complementam na
construção da identidade travesti. Uma identidade que se caracteriza pela rápida
circulação e fluidez por discursos generificados aos quais as travestis têm acesso.
Como indivíduos que foram criados como meninos e que, em certo momento de sua
vida, constroem uma nova identidade, adotando características corporais, simbólicas e
discursivas relacionadas ao feminino, as travestis têm acesso a variados discursos de
gênero, o que é exemplificado nos posicionamentos ocupados na construção dessa
(trans)masculinidade.
No excerto acima, Júlia ainda oferece às suas interlocutoras um enquadre
avaliativo de sua história, justificando as razões que a levaram a ter um posicionamento
de desapego (mas ao mesmo tempo solidário) aos seus parceiros sexuais. Nas linhas
128 – 130, Júlia afirma que “a gente tem que se fudê no salto aí pelada nua pegando
uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida”. Aí encontramos uma
possível justificativa aos comportamentos adotados por Júlia recentemente. Note que
nessa avaliação a feminilidade travesti é novamente trazida à tona por meio das
114
escolhas lexicais da narradora: “no salto”, “nua”. Mas, de forma similar aos
posicionamentos anteriormente descritos, essa feminilidade é desestabilizada por um
posicionamento convencionalmente masculino no senso comum: o apego financeiro.39
Ao afirmar que seu novo marido é o cartão do Unibanco, Júlia se constrói como
indiferente aos homens que “não dão nada pra gente”. Dessa forma, a
transmasculinidade (e de modo geral a travestilidade) é confeccionada através do
encaixe, da mistura e da inserção de posicionamentos associados à masculinidade e à
feminilidade no discurso das travestis colaboradoras deste estudo.
Como podemos ver, nas linhas 123 e 124, Sandra, a interventora que
anteriormente posicionara-se ora como travesti, ora como profissional do sexo, ora
como cliente de travesti adota uma performance de feminilidade frágil e dependente dos
homens. Ao tentar posicionar Júlia nessa performance, afirmando que sua interlocutora
ficaria “chorando nos cantos [dizendo] volta querido, volta meu amor”, a travesti recusa
tal performance e reitera seu posicionamento anterior, asseverando, como podemos
inferir, que ela não precisa de homens, que eles servem apenas “pra gozar e mandar
embora”. Como referido acima, aqui, vemos Júlia adotando uma performance ligada à
um tipo de masculinidade hegemônica que, heteronormativamente, é reconhecida por
sua contingência sexual e por seu desprezo com os parceiros (BADINTER, 1992). Ao
introduzir uma performance de identidade normativa/tradicional, Júlia parece impelir sua
interlocutora a assumir um discurso igualmente hegemônico e a deixar de lado a
plasticidade identitária descrita acima. Mais uma vez, Sandra engendra um processo de
adequação de seu repertório de identidades (KROSKRITY, 2000) às identidades das
39 Na quero indicar que mulheres não sejam também apegadas aos benefícios financeiros. Lanço mão, aqui, de um posicionamento construído no senso comum que indica a maior influência do dinheiro na produção da vida social de homens.
115
travestis com quem interage. Essa adequação pode ser resultante do contexto das
interações. As interventoras são, na zona de prostituição, corpos abjetos (BUTLER,
1999), pois não participam diretamente das práticas simbólicas e corporais desse
contexto. Portanto, ao executar seu trabalho de distribuir preservativos nas áreas de
prostituição da Cidade do Sul, as interventoras (inter)agem modulando suas identidades
tradicionais às identidades não-tradicionais das travestis. É importante observar, no
entanto, que não parece haver controle das interlocutoras sobre essas flutuações. Elas
emergem temporariamente durante as intervenções, mas os dados gerados não
possibilitam que se possa fazer qualquer afirmação sobre a intenção (ou falta de) das
interventoras para realizar tais movimentos por identidades ligadas ao universo trans
(BENEDETTI, 2005). O que é, contudo, saliente nos dados sob escrutínio é o fato de
que tais trânsitos por discursos de identidades serem co-construídos tanto por
interventoras quanto por travestis. Pode-se indicar, com efeito, que os posicionamentos
discursivos utilizados pelas interventoras são responsivos às performances de gênero
de suas interlocutoras e vice-versa. Destarte, quando as travestis desempenham
identidades ligadas a seu universo particular, as interventoras, ipso facto, constroem-se
como participantes desse universo. Por outro lado, quando as travestis engajam-se em
performances identitárias que nos remetem a posições identitárias tradicionais, Sandra
e Márcia, ipsis verbis, engajam-se em posicionamentos situados em discursos
semelhantes.
116
4.2.2 Autenticação da identidade travesti
Cena 6
Na sede da Liberdade, distribuídas ao redor da grande mesa de mogno sobre a qual
encontravam-se centenas de documentos burocráticos da instituição e cartazes
multicoloridos com a mensagem “Travesti e respeito”, estavam Thalia, Fabiola e
Cassiana. Sandra e Márcia pareciam bastante ocupadas na frente do computador da
secretária. Eu, iniciando o trabalho de campo, bombardeava as travestis com
perguntas, sempre acompanhado de minha caderneta de anotações. Thalia e Fabiola,
muito atenciosas, respondiam a todas, com riqueza de detalhes, datas, nomes e
comentários irônicos sobre suas experiências na batalha. Pergunto a Thalia como ela
definiria o travesti. À época eu tentava incansavelmente encontrar uma definição êmica
para a identidade, mas, como percebi ao final do campo, tal definição não era possível.
Todas as travestis as quais eu pedia uma explicação sobre o que significa ser travesti
me davam respostas desconexas e de difícil padronização. Da minha ânsia por
definições, aprendi que ser travesti é uma experiência vivida individualmente, com fases
de transformação, métodos de modelagem do corpo e práticas sexuais bastante
distintas. Há muitos tons no espectro da travestilidade. Ao perceber que havia utilizado
consistentemente em minhas perguntas a palavra travesti precedida do artigo
masculino, Sandra desvencilha-se de suas obrigações burocráticas, levanta-se e vai em
direção à mesa onde eu conversava com Thalia e Fabíola. Com seu jeito expansivo,
voz alta, cigarro na mão e olhar sempre inquisidor, Sandra me interpela: ‘não é o
travesti, é a travesti”. Eu, sem saber como lidar com a gafe lingüística que cometera,
ainda estranho às praticas sociais da ONG Liberdade, só pude pedir desculpas. A
117
advogada, insistente continua: “Eu trabalho na Liberdade por 3 anos, conheço quase
todas as monas da cidade. Sempre digo que elas são mais mulheres que eu, olha o
corpo dessas bichas, olha o cuidado que elas têm com o cabelo, com a pele! E tu vem
aqui me dizer o travesti?”. Depois dessa experiência, nunca mais me atrevi a utilizar o
masculino para falar sobre as monas que conheci. [Diários de campo, 15 de maio,
2003].
Outra tática de intersubjetividade que compõe as dinâmicas identitárias
emergentes das intervenções configura um processo de autenticação da identidade
travesti. Segundo Bucholtz e Hall (2005:601), tal tática “enfatiza as maneiras pelas
quais as identidades são discursivamente verificadas”, i.e., validadas, consideradas
como performances satisfatórias com base em discursos já sedimentados sobre
determinadas identidades. As relações intersubjetivas produzidas por essa tática
consistem em validar uma performance identitária através de posicionamentos, índices
e orientações avaliativas à performance encenada. Tais estratégias lingüísticas
sublinham a produção de uma performance identitária com relação a outras posições
de sujeito disponíveis localmente em determinado lócus social. Através dessa tática,
interagentes valem-se de discursos que constroem identidades como naturais,
utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK, 1995) que, ao enfatizar a
veracidade de uma performance, chama a atenção para sua produção sócio-cultural.
Tal essencialismo estratégico funciona como uma baliza para a autenticação de
performances identitárias ao fazer uso de significados disponíveis no senso comum
sobre as identidades de gênero e sexualidade.
118
Um exemplo desse processo de validação da identidade travesti pode ser
encontrado no excerto 3 acima. Sandra e Daniela (que trabalha como profissional do
sexo) conjuntamente constroem uma identidade de prostituta para a interventora
através de índices que a alocam em tal categoria – permissão para prostituir-se num
ponto específico, conselhos sobre a possível vestimenta de Sandra, itens que
compõem a identidade de prostituta como um “espartilho bem vermelho, bem puta, bem
tudo” etc. A negociação de tal identidade continua nas linhas 76, 77 e 78 nas quais
Sandra pede a Daniela que a ensine um movimento corporal tipicamente utilizado pelas
travestis da Cidade do Sul para exibir seus atributos físicos (colocando as mãos nos
quadris, balançando os seios e mexendo lentamente a cabeça para jogar os cabelos de
um lado para o outro). Retomemos a interação:
Excerto 9 [071003] 71 Sandra: =ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?
72 Márcia: @@[@@@
73 Daniela: [que que é?=
74 Sandra: =MEU ESPARtilho né
75 Daniela: lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=
76 Sandra: =ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as 77 mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e 78 joga os cabelos para os lados)) 79 Daniela: =ensino.
80 Márcia: @@[@@@@@@@
81 Sandra: [ah bom
82 (0,8)
83 Daniela: um jogo pra balançá TUDO que tem direito=
84 Sandra: =bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.
85 Daniela: [A:::I:[:: não pode balançá
119
86 Márcia: [@@@@@@@
87 Daniela: a loca!
88 Sandra: ta meu amor
89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama
90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))
91 Karla: vai! Tchau, beijo.
92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::
93 Daniela: ((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha
94 à vontade
A referência a essa prática corporal nos mostra Sandra sublinhando o capital
simbólico de Daniela nesse contexto e, dessa forma, validando a construção cultural de
sua posição de sujeito. A validação da identidade de Daniela como prostituta eficiente,
que conhece as práticas simbólicas e corporais valiosas em seu ponto de prostituição, é
enfatizada na linha 84 na qual Sandra menospreza sua própria capacidade para
elaborar tal prática corporal (“se eu começá a balançá PLAFT cai tudo”) orientando-se
desfavoravelmente a sua performance e deixando implícita, em comparação com
Daniela, sua inabilidade para tal tarefa. A travesti, defrontada com a ineficiência da
performance de Sandra, consolida sua superioridade de gênero indicando que Sandra
“não pode balançar” (L. 85) o corpo do jeito que ela o faz. Essa negociação é
interrompida no momento que um possível cliente passa de carro pelas interlocutoras.
Daniela, sem titubear, o chama e, exibindo seu corpo, engaja-se no movimento que
impossibilita Sandra de ser uma eficiente profissional do sexo.Vejamos:
120
Excerto 10 [071003] 87 Daniela: a loca!
88 Sandra: ta meu amor
89 Daniela: ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama
90 um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))
91 Karla: vai! Tchau, beijo.
92 Sandra: tchau (0,5) até amanhã::
Podemos indicar, seguindo Bucholtz e Hall (2004), que a referência e a ênfase
dada por Daniela à prática corporal que, nessa interação, lhe confere capital simbólico
(BOURDIEU, 1985) do qual a interventora não compartilha configura uma tática de
distinção, através da qual a travesti parece sublinhar sua autenticidade como
profissional do sexo e como travesti em comparação à Sandra. Essa distinção fora
iniciada pelo posicionamento de Sandra com relação a sua incapacidade de efetuar os
movimentos corporais que atraíram um cliente (barbudinho) para Daniela e, assim, a
travesti ao mostrar seus seios e balançar o tronco (prática que impossibilita Sandra de
efetuar uma performance de travesti profissional do sexo convincente) desnaturaliza e
deslegitima a performance identitária de Sandra que, anteriormente, havia sido
ratificada por Daniela (L.75.).
No entanto, Sandra em outra intervenção não se satisfez em somente pedir
conselhos sobre como construir práticas corporais que a produzissem como uma
profissional do sexo eficiente; ela as executa de facto, tentando imitar Michelly. Vejamos
as imagens.40
40 Embora tenha recebido permissão das participantes da pesquisa para a utilização dessas imagens (por meio do documento de consentimento assinado em 2003 já mencionado no capítulo 1), as fotos foram manipuladas por motivos éticos com o intuito de evitar o reconhecimento das pessoas retratadas.
121
Fig. 1 Michelly ensinando Sandra a Fig. 2 Sandra tentado imitar Utilizar o corpo na batalha a travesti MIchelly exibindo suas formas corporais
Essas fotos foram tiradas pelo pesquisador em uma das raras vezes que as
interventoras saíram do carro da ONG Liberdade durante o período de geração de
dados. Infelizmente não pude gravar as falas que acompanham essas cenas, pois havia
sido requisitado a administrar a máquina fotográfica. Porém, minhas notas de campo
indicam que, antes de sair do carro, Sandra havia feito uso das ferramentas discursivas
acima descritas para pedir a Michelly que a ensinasse a usar o corpo de forma que a
interventora pudesse “fazer um aqüé” (i.e. fazer dinheiro) enquanto entregava
preservativos naquela noite. Michelly prontamente convida Sandra a sair do carro e
122
engaja-se em práticas que, segundo ela, atrairiam um bom número de clientes. Sandra
tenta imitá-la (fig.1), ameaça abrir a blusa para mostrar os seios e pega o cigarro das
mãos da travesti. Na figura 2, posando para minha máquina fotográfica, Michelly fica de
costas e mostra a parte traseira de seu corpo, levantando uma de suas pernas. Sandra,
sem titubear, tenta fazer a mesma pose afirmando que “meu edi não é como o dela”
(i.e. minha bunda não é como a da Michelly).
As imagens acima são significativas, pois indicam que o processo de negociação
das identidades das interventoras e das travestis pode extrapolar o nível lingüístico e
chegar ao nível das práticas corporais. O que me parece ser mais relevante aqui é que
Sandra, segundo algumas informantes, é naturalmente mulher, dona da feminilidade
que as travestis tanto ambicionam. Portanto, ao tentar imitar gestos e trejeitos típicos
entre as travestis da Cidade do Sul, Sandra parece engendrar um processo de
autenticação dessa identidade, indicando, através de sua tentativa de imitar Michelly,
que sua feminilidade não é suficiente para que ela possa se tornar uma boa profissional
do sexo. Aí vemos interpenetradas três das táticas de intersubjetividade descritas por
Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a autenticação da performance de Michelly, a
adequação à identidade travesti por meio da imitação de suas práticas corporais e a
legitimação institucional de sua posição de sujeito. Tal legitimação é fruto da posição de
Sandra na ONG Liberdade e na sociedade. A interventora, advogada da ONG,
divorciada, mãe de três filhos, ao imitar Michelly enfatiza o poder que a posição de
sujeito da travesti tem no contexto onde estão inseridas e, assim, valida sua identidade
e legitima institucionalmente a performance da feminilidade da travesti. Vê-se, portanto,
que o corpo, como discurso, tem papel fundamental na fabricação de identidades
(SHILLING, 1997; MOITA LOPES 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007) e, no caso em
123
tela, na consolidação de relações intersubjetivas entre as interventoras dos eventos de
fala investigados.
Em outra intervenção, Sandra e Márcia encontram Amanda e Lya que se
prostituem em um dos locais mais perigosos da batalha. Amanda é muito feminina.
Tendo construído seu corpo travesti com base no que é, no senso comum,
compreendido como o estereótipo da negra brasileira, parece muito com uma dançarina
de um dos grupos de axé da Bahia. Aparentava, à época do trabalho de campo, ter não
mais do que 20 anos. Lya aparenta ter mais de 40 anos e, no momento em que as
abordamos, não mostrava partes do seu corpo, usava roupas mais compridas para
abrandar o frio daquela noite. Sandra, ao ver Amanda, não dá as informações sobre as
reuniões que acontecem no dia seguinte e, orientando-se para as formas do corpo de
Amanda, pede para que ela dê uma “viradinha” (L. 24) para exibi-lo.
Excerto 11 [251103]
22 Sandra: e aí? como é que ta guria?=
23 Amanda: =tudo bem?=
24 Sandra: =tudo bem. vira aqui. vira ((pede pra Amanda dar uma
25 voltinha))
26 Amanda: ((da uma voltinha pra mostrar seu corpo))
27 Sandra: olha só::::: olha só!
28 Márcia: olha só.
29 Sandra: olha aqui. Eu quero apresentá o Ro, o nosso teacher de inglês.
30 Rodrigo: tudo bem?=
31 Amanda: oi. Tudo [bem?
32 Lya: [ prazer, Lya.
33 Márcia: ((entrega os preservativos))
34 Amanda: brigada=
124
35 Márcia: e uma sacolinha pra [vocês botá o lixo.
36 Lya: [então ta. brigada.
37 Márcia: ta::: não tenho certeza se tem gel amanhã.
38 Sandra: alguma novidade?=
39 Lya: =não. tudo no mesmo.
40 Sandra: então ta. tu vai amanhã? ((pergunta para Amanda))
Amanda tinha recentemente bombado, i.e., injetado silicone industrial (utilizado
como lubrificante de máquinas) em seu corpo, e Sandra, validando as novas formas de
sua interlocutora, engaja-se em uma performance que nos remete à masculinidade
hegemônica (MOITA LOPES, 2002; BADINTER, 1992), objetificando,
condescendentemente, o corpo feminino da travesti e sua beleza. Nas linhas 27 e 28,
Sandra e Márcia, enquanto Amanda faz um giro de 360 graus, comentam sobre sua
beleza, entoando “olha só” repetidamente. Esse processo de autenticação da
performance corporal satisfatória (i.e uma que se apropria de símbolos ideologicamente
associados à feminilidade) de Amanda pode ter sido motivada por minha presença na
interação. Logo após Amanda exibir seus atributos físicos, Sandra me apresenta como
o “teacher de inglês” da Liberdade. A presença de um indivíduo com performance
masculina durante essa interação pode ter sido a força motriz para que Sandra
orientasse a interação à feminilidade de sua interlocutora.41 Tanto o pedido para que a
travesti exibisse seu corpo para seus interlocutores, quanto as interjeições de Sandra e
41 Constantemente, durante meu trabalho de campo, Sandra tentava motivar algum tipo de interesse afetivo-sexual de minha parte em relação às travestis. Enfrentei situações bastante embaraçosas por esse motivo. Com o tempo, aprendi a administrar as investidas e insinuações sexuais das travestis a mim, tentando, na medida do possível tratar seus discursos como brincadeiras feitas entre amigos. Quando tal estratégia não funcionava, eu costumava ser franco e direto, podando o possível interesse de minhas informantes por mim já no seu início. Faz-se necessário observar que, tanto as interventoras quanto as travestis conheciam meu posicionamento sexual à época do trabalho de campo, o que, em alguns casos foi usado a meu favor na administração de algumas situações em campo.
125
Márcia com relação ao corpo de Amanda são orientações avaliativas (BUCHOLTZ &
HALL, 2005) de sua performance de gênero feminino. Tal avaliação positiva, feita por
duas mulheres detentoras de capital de gênero (BENTO, 2006) nesse contexto,
consolida a relação intersubjetiva de autenticação da identidade de Amanda que, como
toda travesti, passa grande parte de sua vida tentando apropriar-se de formas corporais
e simbólicas tradicionalmente associadas às mulheres. Elogios tão enfáticos
elaborados por mulheres (donas “naturais” da feminilidade que as travestis tanto
almejam) parecem servir como estratégias para enfatizar a produção satisfatória de
uma performance de gênero que reproduz e reitera discursos sobre a corporalidade
feminina construída sobre um corpo biologicamente masculino.
O projeto das intervenções elaborado pela ONG Liberdade, apoiado por
instituições governamentais, tem como propósito entregar preservativos às travestis
espalhando a necessidade do exercício de práticas sexuais seguras. Porém, a entrega
dos preservativos parece servir como pano de fundo para processos identitários que
dominam as interações. As intervenções parecem ser estruturadas, através das
ralações intersubjetivas construídas entre interventoras e travestis, com base na re-
afirmação discursiva da performance de gênero das travestis nos seus territórios de
prostituição. Sandra e Márcia fazem muito mais do que simplesmente seu trabalho de
prevenção de DST/AIDS. Esse fato pode ser verificado nos excertos acima nos quais
vemos as interventoras e as travestis envolvidas em projetos conjuntos de (1)
adequação de suas posições de sujeito às diferentes alteridades inseridas nas
intervenções e (2) validação a performance de gênero das transgêneros profissionais
do sexo. No excerto que segue, Sandra, Márcia, Amanda e Lya engajam-se em uma
126
relação intersubjetiva de autenticação do gênero de Amanda. A interação abaixo
acontece quando as travestis já receberam os preservativos. Nesse momento, há a
troca do enquadre intervenção para o enquadre de conversa cotidiana, o que, como
vimos, facilita o processo local de (re)negociação de identidades co-construído entre
interventoras e travestis.
Excerto 12 [251103]
58 Sandra: e tu melhorô legal?
59 (0,7)
60 Amanda: melhorei bastante=
61 Sandra: XX tu nos deixo preocupada guria!
62 Amanda: por quê?
63 Sandra: porque:: apesar da gente assim não:: não convivê (0,5)
64 é uma preocupação. então uma guria BONITA, não modifica
65 nada o que tu tem de bonito.
66 Márcia: já tem muito.
67 Lya: já tem demais @@[@@
68 Sandra: [já. Já. Olha, por exemplo assim- eu vô te
69 dá um exemplo, a Fafá de Belém botô os peito no no
70 seguro eu acho que tu tem que botá o teu corpo porque
71 tu não precisa mais- porque olha aqui ó tu da de dez a
72 zero em muita bicha não é ver[dade?
73 Lya: [é verdade. É, [é
74 Márcia: [claro que dá.
75 Sandra: então. e tu qué fazê o quê? botá mais o quê?
76 Lya: é:: não precisa.
77 Sandra: olha. eu acho que até a globeleza tu põe no chão.
78 Márcia: @[@@@@@@@@@
79 Lya: [@@@@@@ dezenove aninho né?/
127
80 Márcia: é::
81 Sandra: ai que saudade eu tenho da aurora da [minha vida
82 Lya: [@@@@@
83 Sandra: ó. cuidado ó. Ui!
84 ((passa um caminhão))
85 Sandra: ta gurias?
86 Amanda: então ta
87 Lya: ta=
88 Márcia: =tem gel amanhã viu [gurias.
89 Lya: [ta. eu vô i amanhã com a Júlia.
90 Sandra: então ta
91 Lya: eu vo lá. Tchau.
92 Sandra: tchau.
93 Márcia: tchau.
Como mencionado anteriormente, Amanda havia há pouco tempo se submetido
a mais uma sessão para injetar silicone industrial em seu corpo. Porém, a injeção
dessa substância não ocorreu como planejado: Amanda enfrentou alguns problemas de
saúde após a sessão. As aplicações de silicone industrial não são comumente
realizadas por um/a profissional da saúde. Elas são feitas por outras travestis,
chamadas de bombadeiras, que aumentam sua renda mensal prestando esse tipo de
serviço. Durante uma sessão, a travesti a ser bombada fica deitada com meias de nylon
amarradas a sua cintura e às pernas para evitar que o silicone escorra para lugares não
desejados. O silicone é aplicado com agulhas de uso veterinário (mais grossas, o que
permite que o silicone seja mais facilmente injetado). Após uma área ter sido bombada,
coloca-se uma espécie de super-cola ou esmalte de unha no furo feito pela agulha para
evitar que o silicone saia do corpo. Tais aplicações de silicone podem causar sérios
128
problemas ao bem-estar da travesti. Aconselha-se, como observado por Benedetti
(2005), que a travesti recém-bombada tome algum tipo de anti-inflamatório para evitar
complicações causadas pela aplicação de silicone. Não são raros os casos de travestis
cujo silicone se moveu dentro de seus corpos, causando deformações pela sua
acumulação em lugares como os calcanhares e as pernas (KULICK, 1998).42
Sandra, apesar de não conviver muito com Amanda (L.63-64), soube dos
problemas enfrentados por sua interlocutora causados pela injeção de silicone.
Preocupada, pergunta se ela havia se recuperado da infecção que a deixou alguns dias
acamada. Amanda diz que está melhor. Nesse ponto da interação, a modificação do
corpo da travesti (já arredondado e protuberante) torna-se o tópico sobre o qual o
processo de validação da performance feminina de Amanda será reforçado. A
interventora constrói uma relação intersubjetiva de autenticação do gênero de sua
interlocutora através de duas ferramentas lingüísticas. A primeira delas é o uso repetido
de vocativos e adjetivos femininos (L.63, 64, 68, 70, 71, 73) que constituem índices que
categorizam seus referentes como participantes de determinados grupos sociais
(OCHS, 1992; BUCHOLTZ & HALL, 2004, 2005). Por meio do uso freqüente desses
índices, Sandra enfatiza a performance de gênero feminino elaborada por Amanda.
Outra estratégia discursiva utilizada pelas funcionárias da Liberdade na tentativa
de validar a performance de gênero de Amanda é o ato de re-afirmar a beleza da
travesti em contraste com outras travestis (L. 71, 72) e com artistas brasileiras tidas
como ícones de feminilidade (L.68-71, 77). A cantora Fafá de Belém, que “botou os
peito no seguro” (L.69-70), é utilizada como exemplo para enfatizar o belo corpo de
42 Para descrições detalhadas do processo de bombação, ver Kulick (1998, 1997) e Benedetti (2000, 2005).
129
Amanda que deveria, segundo Sandra, “botar o corpo” no seguro, pois, fica implícito,
esse é também um ícone de beleza e feminilidade. Ao ter estabelecido a relação
intersubjetiva de autenticação da performance identitária de Amanda, com base na
comparação entre a travesti e um ícone da sensualidade e da feminilidade da mulher
brasileira, Sandra afirma que sua interlocutora “dá de dez a zero em muita bicha aí”
(L.71, 72), enfatizando que Amanda não precisa colocar mais silicone para ser
feminina. Nesse ponto da interação, a interventora convida as outras participantes para
validar as comparações que está fazendo (L.72, 73, 74) perguntando se não é verdade
o que diz. Lya e Márcia, em coro, concordam com a validação da identidade da travesti
em questão (L. 73 e 74). Valendo-se do fato de Amanda ser mulata, Sandra, na linha
83, afirma que sua interlocutora tem um corpo mais bonito que o da Globeleza, símbolo
da sensualidade do carnaval brasileiro (“até a Globeleza tu põe no chão”). Tal
comparação parece ter como intuito a autenticação da feminilidade da travesti. Lya,
companheira de Amanda na batalha, na linha 85, dando continuidade ao processo de
validação da beleza de sua parceira, enfatiza sua juventude (“dezenove aninho né”)
que, no universo trans (BENEDETTI, 2005) é muito valorizada por que, nessa época, o
corpo masculino é mais flexível para ser moldado com formas arredondas e sutis
associadas ao corpo feminino (LOPES, 1995; KULICK, 1998; BENEDETTI, 2000,
2005).
Os excertos 11 e 12 são bons exemplos dos processos intersubjetivos de
validação da performance de uma identidade feminina encenada pelas travestis com
quem as ativistas da ONG Liberdade trabalham. Ao posicionar-se em discursos da
masculinidade hegemônica (cf. excerto 12), Sandra aloca sua interlocutora travesti,
130
concomitantemente, a posições de sujeito associadas às mulheres, valorizando seus
corpos e sua beleza no processo interacional de autenticação de sua produção de uma
nova identidade, uma identidade travesti. A utilização de estratégias discursivas (cf.
excerto 11) como o uso de vocativos e adjetivos femininos para se referir às travestis e
as comparações do corpo de Amanda com ícones da feminilidade na cultura popular
brasileira constituem táticas intersubjetivas de validação (BUCHOLTZ & HALL, 2003,
2004, 2005) da performance de feminilidade efetuada pelas travestis da Cidade do Sul.
Com a utilização de tais táticas, as interventoras parecem ser levadas a suspender
suas identidades tradicionais de mulheres brancas, heterossexuais de classe média e,
através de uma pletora de ferramentas lingüísticas, sublinham os esforços que as
travestis investem na produção de formas corporais convencionalmente associadas às
mulheres.
O processo de autenticação da identidade travesti, como vimos, é principalmente
baseado nas performances corporais das travestis com quem Sandra e Márcia
interagem. Através de orientações avaliativas e comentários sobre a beleza das formas
corporais de suas interlocutoras, as ativistas da ONG Liberdade sublinham a
construção corporal e simbólica da travestilidade. No excerto abaixo, Sandra e Márcia,
defrontadas com as novas formas de Adriana orientam-se à corporalidade da travesti.
Excerto 13 [281003]
1 ((pára o carro))
2 Adriana: e aí Sandra?
3 Sandra: querida::[:
131
4 Márcia: [oi mona LUxo! Tu[do bom?
5 Adriana: [tudo bom meu anjo?/
6 Sandra: ah não que é isso?
((seis linhas omitidas))
12 Sandra: e esses óculos de intelectual?
13 Adriana: ah agora eu to intelectual. @@@
14 Sandra: olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ
15 Márcia: ai meu deus.
((treze linhas omitidas))
16 Adriana: sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às
17 quatro.
18 Sandra: ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))
19 Márcia: ta né meu bem!
20 Adriana: ah ta @@@@
21 Sandra: daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.
Anteriormente, analisei essa interação ao descrever os trânsitos por discursos
de identidades efetuados por Sandra e Márcia no processo de adequação de suas
identidades tradicionais às identidades das travestis. Neste momento, gostaria de
enfatizar a tática de autenticação da identidade de Adriana, estruturada sobre
comentários relativos a seu corpo.
Ao nos aproximarmos da travesti, Sandra, na linha 6 já se orienta aos novos
seios de sua interlocutora (“ah não o que é isso?). Márcia, surpresa com as novas
formas corporais de Adriana enfatiza que a travesti “ta muito linda, meu deus”. O ápice
desse processo de autenticação das formas corporais de Adriana está na linha 15
132
quando Sandra utiliza o bajubá e diz que a mona arrasou com seus novos seios.43 É,
no entanto, importante observar que ao serem perguntadas sobre as formas corporais
de Adriana, algumas das travestis colaboradoras da pesquisa se mostraram
preocupadas com a quantidade de silicone por ela adquirido. Segundo essas travestis,
Adriana era a nova “Pamela Anderson” da Cidade do Sul.44 Os comentários irônicos
sobre os novos seios de Adriana eram permeados por preocupações com o bem-estar
da travesti. Com seios tão grandes, segundo algumas de minhas informantes, Adriana
poderia desenvolver sérios problemas de coluna, teria incômodos para dormir e,
eventualmente, teria dificuldades em se livrar de clientes incômodos durante seu
trabalho na batalha.
É importante observar aqui que nem todas as travestis com quem conversei
sobre o novo corpo de Adriana se mostravam preocupadas. Algumas severamente
criticavam as novas formas adquiridas por Adriana, dizendo que ela parecia “um
travecão”. Segundo Pelúcio (2005a:227), “o travecão está ligado ao exagero, ao
masculino e, portanto, ao insucesso ou ao ultrapassado”, pois o corpo que constitui um
travecão é marcado pelo excesso (ancas fartas, grandes seios, coxas grossas e boca
carnuda) o que sublinha claramente a artificialidade de sua feminilidade. A antropóloga
Larissa Pelúcio indica que “o estilo valorizado atualmente é a ‘ninfetinha’, mais natural –
curvas mais enxutas, seios menos exagerados” (2005a:227). As críticas dirigidas ao
novo corpo de Adriana indicam que além de parecer artificial, ela estava “fora da
moda”, i.e., não seguia os padrões corporais desejados na comunidade à época do
trabalho de campo. Contudo, Sandra e Márcia parecem não levar esses fatos em
43 Ver Anexo 2. 44 Atriz norte-americana conhecida por seus enormes seios.
133
consideração. Na linha 21, Sandra afirma ainda que ela seria a próxima a fazer seios
como os de Adriana. Não posso afirmar que os comentários de algumas travestis sobre
os problemas que os novos seios de Adriana trariam sejam verdadeiros, não posso
igualmente sugerir que Sandra também faria uma aplicação de silicone para ter seios
iguais aos de sua interlocutora; posso, contudo, sugerir, baseado nos excertos acima
expostos, que o que parece importar nas intervenções é a validação das posições de
sujeito das travestis que se prostituem na Cidade do Sul.
4.2.3 Distinção, desnaturalização e deslegitimação
No corpus aqui analisado, processos que constroem relações intersubjetivas de
distinção, desnaturalização e deslegitimação são virtualmente inexistentes. Nas quase
dez horas de gravação das interações entre interventoras e travestis, há, como vimos,
um grande envolvimento das interlocutoras em relações identitárias que sublinham a
autenticidade e o capital simbólico que as performances identitárias das travestis têm
nesse lócus sócio-cultural.
Essa constatação pode ser bastante significativa. Segundo Bucholtz e Hall
(2004), as relações intersubjetivas trazidas à tona pelas táticas de distinção,
desnaturalização e deslegitimação constituem o pólo negativo dos processos
discursivos de construção de identidades na interação. As autoras asseveram que tais
táticas envolvem “a ênfase dada a qualidades percebidas como distantes do eu e do
134
outro” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494). Como se pode inferir da discussão acima, as
interventoras consistentemente validam a performance de identidade das travestis com
quem interagem, legitimando, assim, suas performances de feminilidade. Parece-me
que os processos do pólo negativo acima mencionados não serviriam aos propósitos
identitários localmente negociados entre interventoras e travestis. As intervenções
parecem servir como palcos sobre os quais a travestilidade é produzida e consolidada,
tanto por travestis quanto por interventoras. Ademais, um dos propósitos políticos da
ONG Liberdade é o empoderamento das posições de sujeito das travestis na Cidade do
Sul. Propósito esse que é, discursivamente, levado às intervenções para educação de
sexo seguro descritas acima. Vemos, portanto, que as intervenções são fortemente
estruturadas com base na identidade das travestis; as identidades tradicionais às quais
Sandra e Márcia têm se engajado são temporariamente deixadas em suspensão
durante suas interações com as monas da Cidade do Sul e, dessa forma, uma plêiade
de identidades que constituem o universo trans (BENEDETTI, 2005) é confeccionada
em conjunto por travestis e interventoras.
É, então, o empoderamento da performance da identidade travesti (um dos
objetivos discursivos das intervenções) que parece impossibilitar o engajamento das
interventoras em processos que desestabilizariam as performances identitárias de suas
interlocutoras transgênero. No entanto, é interessante observar que no excerto 11
acima apresentado, a travesti Daniela produz uma relação intersubjetiva de distinção
com relação à Sandra, desnaturalizando e deslegitimando a performance corporal de
profissional do sexo que Sandra tentava, naquele momento, engendrar. Talvez esse
seja o único exemplo de processos através dos quais as identidades produzidas
135
durante as intervenções são vetadas. Mas, esse veto foi construído por uma travesti
que, com base em sua performance corporal, chama a atenção para a incapacidade da
interventora de construir-se como eficiente profissional do sexo. Assim, podemos inferir
que o empoderamento da performance da travestilidade durante as intervenções
fornece possibilidades discursivas às travestis de construção de performances de
gênero que as posicionam interacional e generificadamente superiores às mulheres
ativistas da ONG Liberdade. As alteridades das interventoras, nos territórios de
prostituição travesti da Cidade do Sul, servem como trampolim para que as identidades
das travestis sejam empoderadas, validadas e intersubjetivamente consolidadas.
136
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base em uma perspectiva sócio-cultural das relações entre linguagem e
identidade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; MOITA LOPES, 2003, 2006b),
neste trabalho descrevi os processos discursivos de adequação à identidade travesti e
de validação dessa identidade em interações co-produzidas por ativistas da ONG
Liberdade em seu trabalho de prevenção de DST/AIDS e travestis que se prostituem
em uma cidade do sul do Brasil. As interventoras, indivíduos que têm se construído
como representantes de identidades tradicionais de gênero, classe social e
sexualidade, ao interagirem com as travestis, parecem ser levadas a suspender as
performances habitualizadas dessas identidades e adotar posições de sujeito ligadas
ao universo trans (BENEDETTI, 2005). A encenação dessas performances identitárias
(BUTLER, 2003) é produzida por meio da construção de posicionamentos discursivos
(DAVIES & HARRÉ, 1990), índices lingüísticos (OCHS,1992), troca de códigos (BLOM
& GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974/2002) e narrativas orais (LINDE,
1993) que parecem alocar as interventoras e as travestis em discursos associados à
masculinidade hegemônica, à feminilidade, à travestilidade e à prática da prostituição,
produzindo, assim, identidades fluidas e, por vezes, contraditórias (MOITA LOPES,
2003). Esses trânsitos identitários elaborados entre travestis e interventoras parecem
137
advir do fato de suas identidades estarem, nas intervenções, em fricção, i.e.
interventoras e travestis, como seres sociais, constroem-se, cotidianamente, em grupos
que não estão comumente em contato entre si, produzindo, assim, atritos sócio-
culturais entre os significados de suas posições de sujeito. Entretanto, tais identidades
são postas em contato durante o trabalho de educação para sexo seguro efetuado pela
equipe da Liberdade, o que incita a (re)negociação de relações identitárias específicas
para o contexto onde essas interações estão inseridas.
Como as análises tentam descrever, as interventoras são levadas a suspender
temporariamente as performances habitualizadas de suas identidades na medida em
que interagem com as travestis. Esse trânsito por discursos de identidades é aqui
investigado com base no conceito de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL,
2003, 2004, 2005). Essas táticas produzem relações identitárias entre as interlocutoras,
o que pode nos oferecer um aparato teórico-analítico apropriado à construção de
inteligibilidade sobre o processo de fricção de alteridades construído durante as
intervenções e, por que não, na sociedade em geral. Através da produção de
determinadas relações identitárias entre as interlocutoras dos eventos aqui
investigados, as interventoras discursivamente constroem a outridade das travestis que,
por sua vez, dá às interventoras a possibilidade de se construírem como outras (em
outros discursos), pois, como indicam Fabrício e Moita Lopes (2004:16), “nas práticas
discursivas em que estamos situados [...] construímos a outridade ao mesmo tempo
que ela nos constrói.” Dessa forma, Sandra e Márcia constroem relações intersubjetivas
locais e temporárias de adequação à identidade de suas interlocutoras, produzindo
semelhança suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004) entre elas e as travestis. Essa
semelhança é fabricada pelo apagamento, temporário, de traços das performances
138
cotidianas de identidades das interventoras em processos interacionais nos quais
flutuações discursivas causam o efeito de ajuste de suas identidades tradicionais ao
contexto onde as intervenções ocorrem. No processo de validação e empoderamento
das performances de identidades das travestis, as interventoras fazem uso de
orientações avaliativas, comparações entre travestis e símbolos populares de
feminilidade, vocativos e adjetivos femininos para se referir repetidamente às suas
interlocutoras transgêneros. Com essas ferramentas, Sandra e Márcia parecem,
discursivamente, construir o efeito de autenticação das performances de feminilidades
produzidas pelas travestis. Essa legitimação do feminino travesti (BENEDETTI, 2005) é
seqüencialmente manufaturada com base nos discursos localmente disponíveis sobre o
que é compreendido como feminino no contexto investigado.
É importante ressaltar que essas dinâmicas identitárias que produzem o efeito
de adequação às identidades das travestis e de validação dessas identidades são co-
construídas entre interventoras e travestis. As travestis permitem (e, por vezes,
parecem motivar) a produção das táticas de intersubjetividade que emergem das
intervenções sendo, assim, tão responsáveis pelas flutuações identitárias efetuadas por
Sandra e Márcia quanto as próprias interventoras.
Podemos inferir, pelas análises acima elaboradas, que essas intervenções são
primordialmente estruturadas sobre táticas discursivas que sublinham o capital
simbólico (BOURDIEU, 1985) das travestis nos seus territórios de prostituição. As
interventoras fazem muito mais do que simplesmente entregar preservativos às suas
interlocutoras. Notadamente, essa entrega é raramente verbalizada. Destarte, as
intervenções parecem servir como pano de fundo para o empoderamento e legitimação
139
das construções de identidades elaboradas pelas travestis: um dos objetivos político-
ideológicos da ONG Liberdade que visa à melhoria da qualidade de vida das travestis.
Comentando sobre o tema do trânsito, termo que ilustra bem a posição de sujeito
das travestis em nossa cultura e, como vimos, os processos discursivo-identitários
produzidos entre travestis e interventoras, Fabrício (2006:62) indica que “aprendemos
na cultura a olhar com desconfiança para as misturas, os cruzamentos, as
metamorfoses e a diversidade”. É tentando driblar a desconfiança e o desprezo que
muitos/as profissionais do sexo tentam estruturar suas vidas sociais. No entanto, como
as análises acima ilustram, as interventoras da ONG Liberdade, por meio dos
movimentos discursivos descritos, parecem direcionar esforços interacionais à
diminuição de suas diferenças sociais e identitárias em relação às travestis com quem
trabalham. Tais movimentos indicam que as negociações de identidades, na prevenção
de DST/AIDS, têm um papel crucial para que a tarefa institucional das interventoras
possa ser executada. Mais significativamente, esses movimentos discursivos ilustram a
importância da adaptação, do trânsito, da flutuação e das revisões identitárias (MOITA
LOPES, 2006d) em interações institucionais nas quais identidades díspares entram em
contato. Os movimentos discursivo-identitários que emergem das intervenções
radicalizam a idéia de ‘identidades multifacetadas’ (MOITA LOPES, 2003, 2006; K.
HALL, 2005; S. HALL, 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007; BUCHOLTZ & HALL,
2004; FABRICIO, 2006; BARRET, 1998; BAUMAN, 2005; HEBERLE, OSTERMANN &
FIGUEIREDO, 2006; entre outros) que é um dos postulados teóricos que moldam
muitas das ciências sociais hoje em dia. O contato com identidades díspares, as
(re)negociações identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das
140
interações e dos processos identitários em geral, processos que, na
contemporaneidade, encontram-se exacerbados.
A seguir, discuto algumas implicações que o presente estudo traz para a
Lingüística Aplicada, para a prevenção de DST/AIDS, para os estudos sobre as
identidades sociais e para os estudos sobre indivíduos transgênero. Ademais, aponto
também algumas lacunas a serem preenchidas por estudos futuros sobre as fricções de
alteridades produzidas na sociedade brasileira contemporânea.
5.1. Implicações para a lingüística aplicada
Vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento
do escopo temático da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar essa área do
conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos
brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais seguras e a
prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio no encontro internacional da
American Association of Applied Linguistics de 2007, na Califórnia
(http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm). Isso evidencia um interesse crescente da
comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora aqui investigue somente
uma pequena fatia de tal contexto, a utilização da categoria táticas de
intersubjetividade, como tentei argumentar, pode nos servir de aporte para que
analisemos os processos discursivo-identitários que emergem de tais eventos de fala,
141
nos quais as negociações entre as identidades dos/as interventores/as e dos/as
profissionais do sexo parecem ser um fator crucial.
Paradoxalmente, como Silverman e Peräkylä (1990:293) observam, embora a
epidemia causada pelo vírus HIV tenha gerado um grande número de pesquisas nas
ciências sociais, o foco de atenção dessas investigações tem sido guiado por questões
epidemiológicas e por preocupações com a informação sobre a epidemia e os
comportamentos de risco de alguns grupos sociais. Os autores também indicam que a
epidemia da AIDS não será combatida apenas com a provisão de informações às
pessoas. Segundo Silverman e Peräkylä (1990), muitas outras condições devem ser
satisfeitas até que essas informações transformem o comportamento sexual dos
indivíduos (p. 294). Alguns autores e autoras ainda indicam que a pesquisa e a
prevenção de DST/AIDS têm sido reducionistas, pois seu foco tem sido sobre fatores
individuais estáticos e não sobre fatores estruturais, contextuais e situacionais (ver
MARTIN, 2006; DÍAZ, AYALA & BEIN, 2002; MAYS, COCHRAN & ZAMUDIO, 2004).
Tendo isso em perspectiva, tentou-se, nessa pesquisa, preencher essas lacunas ao
trazer um estudo sobre prevenção de DST/AIDS para o campo da Lingüística Aplicada.
A pesquisa aqui relatada indica que o estudo das lógicas e dos significados co-
produzidos local e seqüencialmente em interações entre interventores/as e profissionais
do sexo é um importante milieux para a (re)negociação e (re)construção de identidades
entre interlocutores/as. Como vimos, a administração das diferenças identitárias entre
travestis e interventoras é o eixo ao redor do qual a prevenção de DST/AIDS, nos
territórios de prostituição travesti, parece movimentar-se. Dessa forma, ao construir-se
no mesmo universo lingüístico-identitário de suas interlocutoras transgênero, Sandra e
Márcia engendram processos interacionais que causam o efeito de aproximação de
142
suas posições de sujeito ao contexto social no qual se inserem durante seu trabalho
nas intervenções. Essa aproximação pode ter efeitos sobre o comportamento sexual
das travestis, pois, afinal, quem dá informações sobre DST/AIDS parece conhecer a
fundo os significados culturais relevantes entre as travestis da Cidade do Sul e, mais
significativamente, parece realmente importar-se com a melhoria de sua qualidade de
vida.
As análises acima elaboradas parecem estar em consonância com Moita Lopes
(2006d) que sugere que a pesquisa em LA deve “colaborar para que se abram
alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem” (p.86). Ao
por sob escrutínio as dinâmicas discursivas emergentes das interações entre
interventoras e travestis da ONG Liberdade, no presente estudo, vislumbra-se uma
sugestão para o desenvolvimento futuro de projetos de prevenção de DST/AIDS entre
grupos considerados marginalizados. Com base nas e com as vozes das interventoras
e das travestis da ONG Liberdade, vimos que diferenças potencialmente prejudiciais
para os propósitos das intervenções são deixadas em suspensão temporária e outras
configurações identitárias, potencialmente mais apropriadas para a obtenção dos
objetivos das interventoras, venham à tona.
A categoria teórico-analítica das táticas de intersubjetividade mostra-se, portanto,
uma ferramenta útil para o estudo de interações no contexto da prevenção de
DST/AIDS; interações essas que produzem o confronto das identidades de
interventores/as com a identidade do outro, os/as profissionais do sexo e vise-versa.45
45 Recentemente, muitas ONGs-AIDS têm utilizado a técnica da “educação por pares”, ou seja, ativistas dessas instituições capacitam indivíduos participantes dos grupos para os quais trabalham para que esses façam o trabalho de intervenção. Tal estratégia passou a ser utilizada para evitar mal entendidos entre os interlocutores e para otimizar os serviços.
143
Talvez a mensagem implícita das interações aqui analisadas seja a de “não resistir ao
contato com o outro, não impor de antemão conceitos pré-estruturados [o que] não
significa tornar-se o outro, mas permitir ser atingido por ele” (DIAS 2007:89). Dessa
forma, com base nos argumentos construídos nesta dissertação, pode-se afirmar que
tanto a pesquisa quanto a prevenção de DST/AIDS, ao invés de direcionar os esforços
de resistência à epidemia da AIDS somente à disseminação de informações sobre
como evitar o contágio, devem, como as intervenções da ONG Liberdade ilustram,
construir estratégias de enfrentamento à epidemia com base nas experiências
particulares dos indivíduos envolvidos nas práticas discursivas construídas durante os
projetos de prevenção. Experiências essas que podem estar relacionadas a muitos
fatores, sendo a construção das identidades de gênero e sexualidade dos/as
profissionais do sexo um dos mais salientes (particularmente no caso das travestis). As
táticas de intersubjetividade que emergem das intervenções nas áreas de prostituição
de travestis na Cidade do Sul indicam que, para restringir a disseminação do vírus HIV
nesse grupo, a esperança é construir estratégias de intervenção centradas nas
experiências das pessoas envolvidas, já que somente a provisão de informação pode
não ser suficiente.
5.2 Implicações para o estudo das identidades socia is
O que a natureza divide, a fala frivolamente encaixa, insere e mistura.
(Erving Goffman, [1974]2002, p. 146)
144
As fricções de alteridades construídas nas zonas de prostituição da Cidade do
Sul são apenas um exemplo de fricções identitárias produzidas pelos processos de
mudança social encontrados no mundo contemporâneo (cf. introdução). Com a
proliferação de novos estilos de vida (BAUMAN, 2005), novas configurações afetivo-
sexuais (VAITSMAN, 1994), novas conjugalidades (MELLO, 2005), novas formas de
lidar com o corpo e apresentação de si (SHILLING,1997), encontramos diariamente
construções identitárias que, ao desafiarem discursos tradicionais, nos fazem repensar
a vida social. A heterogeneidade da vida contemporânea pode nos impor
questionamentos sobre quem somos e sobre quem podemos ser (ver FOUCAULT,
1995; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004). O socioconstrucionismo (MOITA LOPES,
2002; 2003) e o modelo teórico-analítico das táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ
& HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo) nos fornecem um aparato para investigarmos as
flutuações identitárias efetuadas cotidianamente por indivíduos ao se tornarem seres
sociais.
Acredito que esse seja um movimento importante para os estudos sobre as
identidades sociais no mundo contemporâneo, pois, como indica Moita Lopes
(2006d:102), “algumas pessoas são cada vez mais expostas a uma multiplicidade de
projetos identitários, como também à percepção da heterogeneidade identitária
existindo em um mesmo ser social”. Essa exposição a múltiplos projetos identitários é,
em grande parte, mediada em e constituída por nossas práticas discursivas diárias.
Cotidianamente, nos defrontamos com uma pluridiversidade de projetos identitários
que, como sugere Fabrício (2006), causa desconcertos e vertigens pós-modernas
(FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004; FRIDMAN, 2000). Fica claro, então, que o estudo
145
dos atritos identitários emergentes da exposição aludida por Moita Lopes (2006d) pode
ser um movimento de pesquisa crucial para que possamos entender os múltiplos e
maleáveis processos discursivo-identitários que constituem a sociedade
contemporânea. Faz-se mister, então, trazer para o foco das pesquisas na LA e nas
humanidades em geral, a pergunta: como lidamos, em nossas práticas discursivas, com
os deslocamentos de significados identitários antes entendidos como estáticos?
Encaminhei, nas análises acima, de modo parcial, algumas respostas potenciais a tal
questionamento. Contudo, as fricções de alteridades são produzidas em uma miríade
de contextos sócio-culturais que, acredito, merecem nossa atenção em estudos futuros.
Investigar as dinâmicas discursivas emergentes de tais contextos pode nos ajudar a
compreender alguns dos trânsitos identitários constituintes de nossa vida social.
Seguindo essa linha de pesquisa, devemos questionar, e olhar com
desconfiança, a perspectiva histórica na sociolingüística variacionista que considera as
relações entre linguagem e identidade como monolíticas. Com isso quero afirmar que a
investigação sobre os processos interacionais de construção, re-construção,
negociação, re-negociação e administração de diferenças percebidas ou produzidas em
embates discursivos específicos problematiza a “distinção confortável [baseada naquela
perspectiva] de mulheres fazendo feminilidades e homens fazendo masculinidades”
(GEORGAKOPOULOU, 2005:182). Tal perspectiva parece improdutiva para entender
as práticas discursivo-identitárias estruturadas no trottoir, e de modo mais abrangente,
na sociedade contemporânea.
Os jogos de identidades (S. HALL, 2001) com os quais nos engajamos
cotidianamente trazem à tona construções identitárias múltiplas e moventes. Essa
maleabilidade identitária ilustra como as fronteiras entre as identidades são porosas,
146
abertas para mudanças e transformações (locais e temporárias). Como vimos, o
repertório de identidades das interventoras é afetado pelas travestis, e vice-versa. Em
outras palavras, em nossas práticas discursivas, o eu e o outro interpenetram-se, retro-
alimentam-se e, dessa forma, produzem dinâmicas interacionais por meio das quais as
fronteiras entre as identidades (de gênero, sexualidade, classe social e raça) podem ser
ultrapassadas, sobrepostas, borradas ou até mesmo apagadas. As dinâmicas entre o
eu e o outro indicam que não controlamos quem somos, o olhar do outro é crucial para
que possamos nos movimentar em nossa vida social, o que engendra, como vimos,
múltiplos e complexos processos de administração de diferenças entre
interlocutores/as. Essa administração, no caso das intervenções, é marcada pelo
trânsito por discursos de identidades, por ambigüidades, oscilações, pela mudança,
pela adaptação, pelas mesclas de significados identitários múltiplos e, por vezes,
contraditórios. No caso em tela, vimos as interventoras e as travestis encenando
feminilidades, masculinidades e travestilidades, encaixando, inserindo e misturando
(frivolamente!) discursos de identidades que as alocam em múltiplas posições sociais e
possibilitam a consolidação de suas relações identitárias e institucionais. Com a
combinação de recursos discursivos, ao explorar possibilidades identitárias,
interventoras e travestis fabricam múltiplas identidades, o que indica sua participação
em universos lingüísticos variados. Resta investigar outras possíveis fricções e os
processos discursivos que delas emergem para que, assim, possamos construir
inteligibilidades sobre as dinâmicas identitárias que constituem um mundo que parece
estar em descontrole (GIDDENS, 2000).
Ademais, o estudo sobre identidades em fricção pode nos fornecer subsídios
para que entendamos os processos discursivos que produzem misturas e cruzamentos;
147
entre-espaços que nos causam desconfiança e insegurança por trazer à baila
significados identitários inauditos. Afinal, como essa proliferação de identidades do
mundo contemporâneo afeta a construção cotidiana de nosso feixe identitário (MOITA
LOPES, 2003)? Como indivíduos que se alocam em discursos de identidades
considerados não-tradicionais negociam suas posições de sujeito em face das forças
hegemônicas referentes a gênero, sexualidade, classe social, raça e profissão? E qual
a conseqüência que esse espectro multifacetado composto por identidades ditas não-
tradicionais traz para aqueles e aquelas que ainda se vêem atrelados a discursos de
identidades normativos?
Possíveis respostas a essas perguntas são ilustradas neste trabalho. Embora
tenha investigado somente um pequeno sub-estrato dos amplos processos identitários
contemporâneos, pode-se aqui vislumbrar possibilidades de construções identitárias
múltiplas, causadas, como se argumentou, pelas fricções entre as identidades das
interventoras e das travestis. Dito de outra forma, como indica a epígrafe desta
dissertação, “quanto maior a diferença, maior será a igualdade” e de forma similar,
“quanto maior a igualdade, maior será a diferença” (SARAMAGO, 1997:97). Com isso
afirma-se que, nos embates discursivos com os quais nos engajamos diariamente, a
outridade de nossos/as interlocutores/as afeta a construção de nossas identidades, e,
na via contrária, nossa outridade influencia as identidades das pessoas com quem
interagimos (ver MOITA LOPES, 2002; FABRICIO & MOITA LOPES, 2004; HALL, 2005;
BUCHOLTZ, 2003; BUCHOLTZ & HALL, 2004, no prelo). A análise das intervenções da
ONG Liberdade indica, ainda, que as interlocutoras orientam-se a uma forma
diferenciada de organização para a diferença. Vê-se, nos movimentos interacionais co-
construídos pelas interlocutoras dos eventos investigados, que as fronteiras entre as
148
performances habitualizadas das identidades tradicionais das interventoras e das
posições de sujeito periféricas das travestis estão abertas para a interpenetração e para
intercâmbios. Assim, os limites entre a igualdade e a diferença são tornados tênues, o
que indica que a diferença pode ser uma fonte de engrandecimento de nossas
experiências discursivo-identitárias. As práticas discursivas emergentes das
intervenções da ONG Liberdade ilustram a possibilidade de contato positivo e
enriquecedor com a diferença e, assim, indicam um porvir otimista para aqueles/as à
margem de nossa sociedade. Oxalá esses processos de apagamento da diferença co-
construídos por interventoras e travestis pudessem inspirar outros atores sociais a
organizar suas práticas discursivas para a minimização da discriminação e do
preconceito. Utopias à parte, devemos ter em perspectiva que as re-negociações das
diferenças identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das interações
produzidas em contextos contemporâneos. Para entendê-los, faz-se, então, necessário
lançar o foco das pesquisas sobre as dinâmicas que produzem tais deslocamentos e
sobre seus efeitos na vida dos indivíduos que participam as práticas sociais que
investigamos.
5.3. Implicações para os estudos de transgêneros
Nas últimas décadas, pesquisadores/as têm tentado descrever as configurações
culturais e as posições sociais de indivíduos transgêneros nos mais diversos contextos
149
sócio-históricos. Estudos etnográficos sobre tal fenômeno46 têm investigado como as/os
transgêneros cruzam as fronteiras de gênero (LOURO, 2001) nas práticas sócio-
culturais, corporais e simbólicas de que participam. A literatura disponível parece indicar
que os/as transgêneros usam a linguagem fluidamente e, dessa forma, marcam
afiliações com diferentes posições culturais locais de seus milieux específicos, i.e.
identidades globais vs. identidades locais (BESNIER, 2003), masculinidade vs.
feminilidade (LIVIA, 1997; BORBA & OSTERMANN, 2007), poder vs. solidariedade
(HALL & O’DONOVAN, 1996).
Com a onda de interesse pelo fenômeno da transformação de gênero, iniciada
na antropologia, importantes documentações sobre o uso da linguagem entre indivíduos
transgêneros foram elaboradas. Esses estudos têm enfatizado que uma das dinâmicas
que o fenômeno transgênero promove na vida social é mostrar, através de corpos e
discursos, a permeabilidade das fronteiras entre os gêneros (KULICK, 1998, 1999;
BENEDETTI, 2005; LIVIA, 1997; HALL, 2002, entre outros/as). Contudo, essas
pesquisas têm, em sua grande maioria, investigado dados de entrevistas entre
transgêneros ou entre transgênero e pesquisadores/as, deixando de lado a importância
de conversas espontâneas entre esses indivíduos e as pessoas que fazem parte de seu
contexto cultural. Em uma extensa e minuciosa revisão da literatura dos estudos sobre
as relações entre transgênero e a linguagem, o antropólogo Don Kulick (1999) observa
a infeliz ausência de pesquisas, com dados naturalísticos de conversas espontâneas,
sobre como os/as transgêneros conversam com as pessoas que constituem seu
46 Veja, por exemplo, os estudos sobre as mahu taitianas (Levy, 1971); sobre as xanith de Omã (Wikan, 1978); sobre as panemas paraguaias (Clastres, 1990); sobre as berdache norte-americanas (Epple, 1998); e outras ocorrências múltiplas de transformações de gênero em várias sociedades (Bolin, 1988; King, 1993; Mckenzie, 1994; Shapiro, 1991).
150
universo social. Kulick (1999:615) sugere que “precisamos saber mais sobre como os
indivíduos transgêneros falam com outras pessoas em seus milieux, e precisamos
saber como essas pessoas avaliam e respondem a essa fala” (p. 615).
Seguindo a sugestão de Kulick, neste estudo, investigaram-se as dinâmicas
discursivo-identitárias emergentes de embates discursivos entre duas mulheres ativistas
de uma ONG criada por e para travestis e as travestis profissionais do sexo de uma
cidade do sul do Brasil. Com base no modelo das táticas de intersubjetividade, descrevi
como as interlocutoras empregam essas táticas e produzem dinâmicas interacionais
que parecem produzir os efeitos de (i) autenticação da identidade e (ii) autorização
social e institucional da produção de gênero das travestis, e de (iii) minimização das
barreiras sociais que diferenciam as interventoras de suas interlocutoras transgênero.
Por meio de uma grande variedade de ferramentas lingüísticas e corporais, essas
mulheres parecem co-construir discursivamente identidades que não fazem parte de
seu repertório cotidiano. Com essa plêiade de identidades discursivamente construídas,
as interlocutoras parecem engendrar um processo discursivo de empoderamento das
posições de sujeito das travestis. Sandra e Márcia parecem fazer uso do discurso como
uma ferramenta para se aproximarem das travestis. O discurso, durante as
intervenções aqui investigadas, funciona como uma ponte que minimiza as distâncias
identitárias entre as interlocutoras.
No entanto, os processos discursivos de produção de identidades entre travestis
e interventoras aqui investigados só podem ilustrar uma fatia das dinâmicas identitárias
que emergem de interações entre travestis e as pessoas que fazem parte de seus
contextos sociais. O uso das táticas de adequação e autenticação pelas interventoras
pode ser fruto de seu engajamento político com uma ONG que visa à melhoria das
151
perspectivas das perspectivas sociais das travestis da cidade investigada. Infelizmente,
essa filiação político-ideológica não é compartilhada por muitos dos transeuntes e dos
clientes das travestis que as encontram em seus lugares de batalha. E mais
significativamente, com a inserção das travestis no cotidiano de nossos grandes centros
urbanos (cf. introdução), múltiplos processos discursivos devem vir à tona quando, por
exemplo, as travestis pegam um táxi, vão às compras, passeiam pelos seus bairros.
Assim como o discurso tem o poder de amenizar as distâncias entre as pessoas,
ele também tem o poder de separá-las. Vimos, nesta dissertação, que as táticas de
distinção, desnaturalização e deslegitimação não parecem ser utilizadas pelas
interventoras durante o embate discursivo que coloca suas identidades em atrito com
as posições de sujeito das travestis. Mas, como se dá a administração das diferenças
identitárias no dia-a-dia das travestis ao inserirem-se em outras configurações sociais e
outros discursos de identidades que as alocam à margem de nossa sociedade? Faz-se
necessário, ainda, investigar como indivíduos tradicionalmente generificados são
influenciados pela outridade das travestis com quem potencialmente podem interagir
em sua vida social. Ademais, precisamos descrever as dinâmicas sociais e discursivas
que relegam os indivíduos transgêneros e, de forma mais abrangente, os indivíduos
que não se filiam a discursos de identidades hegemônicos, à margem de nossas
sociedades. Investigar as fricções de alteridade pode nos servir como instrumento para
entendermos os processos que transformam o diferente em exótico, o relegando a
espaços sociais periféricos, enclausurado em não-lugares. Entretanto, as fricções
alteritárias co-construídas entre interventoras e travestis felizmente indicam que o
contato com o diferente pode ser uma valiosa e inspiradora fonte de experiências
identitárias.
152
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ANEXO 1
Exemplos do enquadre típico das intervenções (1) [INT230903]
1 ((pára o carro))
2 Sandra: como é que ta? tudo bom?
3 Alexandra: tudo.
4 Márcia: ((entrega as camisinhas))
5 Sandra: amanhã tem reunião na Liberdade. cresça e [apareça.
6 Márcia: [tem gel também.=
7 Sandra: =tem gel também.
8 Alexandra: ta.
9 Sandra: sabe onde é?.=
10 Alexandra: sei. nun- vocês não me viro lá quarta?/
11 Sandra: então ta.
12 Alexandra: ta bom. obrigada viu.
13 Márcia: tchau.
14 Sandra: tchau, até amanhã.
15 Alexandra: tchau.
(2) [INT071003]
1 Aline: tudo bom?
2 Márcia: tudo bom e aí?*
3 Aline: como é que tão?
4 Márcia: tudo bem.
5 Sandra: amanhã tu vai na reunião?
168
6 Márcia: amanhã tem gel.
7 Aline: amanhã? amanhã?
8 Márcia: amanhã tem reunião e tem gel.=
9 Aline: ahã, ta.
10 Sandra: [ta?
11 Márcia: [ta?
12 Aline: ta.
13 Márcia: tchau.
14 Sandra: beijo. ((arranca o carro))
(3) [INT111103]
1 ((buzina))
2 Sandra: o:::i::[::
3 Fernanda: [oi.=
4 Sandra: =tudo bom?=
5 Fernanda: =tudo.
6 Márcia: ((entrega as camisinhas))
7 Fernanda: brigada. [Brigada.
8 Márcia: [amanhã tem reunião.=
9 Fernanda: é:: eu vô i.
10 Sandra: então ta. beijo beijo.
11 Fernanda: tchau.
12 Márcia: tchau.
13 Sandra: ((dá a partida no carro))
14 Fernanda: ((aborda um cliente que a esperava))
169
(4) [INT 281003]
1 ((pára o carro bem próximo de Jéssica))
2 Sandra: OI:::::[:::
3 Jéssica: [olá/
4 Márcia: tudo bom?= *
5 Jéssica: =tudo [bom.
6 Sandra: [amanhã tem reunião=
7 Jéssica: =ta::,amanhã eu vô.
8 Sandra: então [ta.
9 Jéssica: [eu já to SEM camisinha.
10 Márcia: então ta bom.
11 Sandra: ((continua a dirigir))
12 Jéssica: ((volta ao seu ponto))