«A Pastorícia e "Passagem" de Gado na serra do Laboreiro»

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| 86| BOLETIM CULTURAL DE MELGAÇO | 2007 | |87 | À pastorícia anda inerente o estudo de uma multiplici- dade de aspectos de elevado proveito para distintos âmbitos científicos: desde o aproveitamento e disputa de pastagens, as deslocações periódicas, a rede viária utilizada (canadas), a conflituosidade gerada, a cobrança de tributos específicos, os abrigos pastoris, o lobo e, consequentemente, a formação de ra- ças autóctones de cães, etc. Claro que todos estes aspectos são merecedores de sérios cuidados monográficos, mas o último aspecto merece referência obrigatória e de destaque, uma vez que nos montes que servem de espaço geográfico a este estudo se criou a nobre raça portuguesa do Cão Castro Laboreiro 2 . A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA PARA FRANÇA NA SEGUNDA METADE DO SÉC. XX A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DO LABOREIRO José Domingues 1 1 Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro. 2 Vide o trabalho que liga a origem histórica dos Mastins Ibéricos (a que junta as raças portuguesas do Serra da Estrela, do Castro Laboreiro e do Ra- feiro do Alentejo) com o fenómeno da transumância, de Luís Gerardo VEGA TOSCANO, Mª Luísa CARDEÑO SERRANO e Belén CÓRDOBA de OYA, “El Origen de los Mastines Ibéricos – La trashumancia entre los pueblos prerromanos de la Meseta”, Complutum, 9, Madrid, 1998, pp. 117-135.

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À pastorícia anda inerente o estudo de uma multiplici-dade de aspectos de elevado proveito para distintos âmbitos científicos: desde o aproveitamento e disputa de pastagens, as deslocações periódicas, a rede viária utilizada (canadas), a conflituosidade gerada, a cobrança de tributos específicos, os abrigos pastoris, o lobo e, consequentemente, a formação de ra-ças autóctones de cães, etc. Claro que todos estes aspectos são merecedores de sérios cuidados monográficos, mas o último aspecto merece referência obrigatória e de destaque, uma vez que nos montes que servem de espaço geográfico a este estudo se criou a nobre raça portuguesa do Cão Castro Laboreiro2.

A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA PARA FRANÇA NA SEGUNDA METADE DO SÉC. XX

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DO LABOREIRO

José Domingues1

1 Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro.2 Vide o trabalho que liga a origem histórica dos Mastins Ibéricos (a que junta as raças portuguesas do Serra da Estrela, do Castro Laboreiro e do Ra-feiro do Alentejo) com o fenómeno da transumância, de Luís Gerardo VEGA TOSCANO, Mª Luísa CARDEÑO SERRANO e Belén CÓRDOBA de OYA, “El Origen de los Mastines Ibéricos – La trashumancia entre los pueblos prerromanos de la Meseta”, Complutum, 9, Madrid, 1998, pp. 117-135.

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Malogradamente, a exacerbada míngua de relatos do-cumentais tem afastado o esforço dos investigadores para ou-tros campos mais fecundos, continuando a minguar os estudos nestes âmbitos3, mormente, sobre o Cão Castro Laboreiro4.

De qualquer forma, não há dúvida que o sector da ac-tividade pastoril portuguesa – se bem que nunca se chegou a institucionalizar numa organização poderosa e complexa como a Mesta de Castela – teve, ao logo do fio cronológico de sé-culos, um peso e importância vital para a economia do reino. Por isso, mesmo faltando o cabouco seguro dos comprovativos documentais e dos estudos acreditados, não é difícil conjec-turar que, desde tempos imemoriais, se tenham aproveitado as condições propícias do maciço montanhoso dos vetustos Montes Laboreiro para criação e pastagem de animais. A título de exemplo, segundo consta na acta de demarcação do con-celho de Lindoso com Galiza, lavrada a 22 de Julho de 1538, o alcaide-mor do castelo de Lindoso, em finais da Idade Média, seria um dos abastados proprietários de gado nesta região.

Nesse documento ficou consignado que Paio Rodrigues

de Araújo durante toda a sua vida apascentara, pacificamente, uma “vacaria” na serra, desde o Castanheiro do Castro até à Portela do Couto, águas vertentes para o rio de Tibo (actual Laboreiro), até à sua desembocadura no rio Lima.

Esse espaço territorial, que os jurados de 1538 identi-ficam com o Monte de Trabação e Obieiro, corresponde à actual serra do Quinjo. O filho de Paio Rodrigues de Araújo (Lopo Rodrigues de Araújo) sucedeu-lhe na alcaidaria e nos animais, que acabou por vender e gastar, haveria cinquenta anos pouco mais ou menos, referem as testemunhas de 1538. O termo vacaria indica tratar-se de gado vacum, plausivelmen-te pastoreado em regime extensivo. Não é possível sabermos ao certo o número de cabeças da manada, de qualquer forma, a extensão do espaço territorial referido e a memória popular com cerca de meio século, apontam sempre para uma ma-nada considerável. O melhor, já que são bastante escassos os sedimentos documentais escritos deste género, é aspar o que de mais relevante consta no próprio documento:

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3 Sobre a pastorícia na serra do Laboreiro vejam-se:Xaquin LORENZO FERNANDEZ, “O Pastoreo na Serra do Leboreiro”, Actas do Colóquio de Estudos Etnográficos «Dr. José Leite de Vasconcelos», Vol. I, Porto, 1959, pp. 245-249;Jorge DIAS, “Abrigos pastoris na Serra do Soajo”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XII, fasc. 3-4, 1950.A nível geral de todo o país, destacam-se os trabalhos meritórios de Maria José Lagos TRINDADE, “A Vida Pastoril e o Pastoreio em Portugal nos Sécu-los XII a XVI” e “Problemas do Pastoreio em Portugal nos Séculos XV e XVI”, em Estudos de História Medieval e outros, Lisboa, 1981.4 Para além dos diversos artigos que se podem localizar em revistas da es-pecialidade, veja-se:Manuel Fernandes MARQUES, Cão de Castro Laboreiro: Estalão da Raça, Lisboa, 1935.José VALDEZ, O Cão, Lisboa: Guimarães, 1910/1951 (5 edições). Refere a raça do Castro Laboreiro desde a sua 1.ª edição (1910), mas os dados subs-tanciais surgem a partir da publicação do estudo de Manuel Marques.Eva Elisabete Correia MARQUES, O Cão de Castro Laboreiro: estudo de alguns aspectos biométricos e morfológicos, Vila Real, 1998 (texto polico-piado).Cão de Castro Laboreiro: boletim informativo, n.º1, dir. Paula PENEDA, Clu-be do Cão Castro Laboreiro, Bombarral, 2001.José DOMINGUES, “O Cão de Castro Laboreiro – o regresso às origens”, Porto dos Cavaleiros – Jornal de Lamas de Mouro, n.º2, 2002.

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“E que este concelho de cynquoenta anos a esta parte pouquo mais ou menos se lhe tem mytido os de Galiza, a saber, os d’alldea de Buscallte que parte hy com a dyta serra e outra alldea de Quintella tambem de Ga-liza mais pera dyante lhe tem tomado todo hua sera de cyma ate baixo qual começa ao Castanheiro de Crasto ate chegar a Portella do Couto e de hy ate que decem pera rybeyra e se lhe tem mytido em pose de toda a dicta sera e lhe lançaom a demarcaçam a este concelho, a saber, ao Castanheiro de Crasto demandam Ho dicto Ryo de Tybo que torna a volltar pera esta villa pella frallda da dicta serra vem se meter na rybeira do rio Lymia no lugar onde se chama o Por[to] da Foz de Tybo e tudo isto que asy tomaom desta sera de cyma ate baixo ate a dicta rybeira sera em comprido dois terços de legoa e em largo sera mea legoa e tudo he sera e terá, a saber, fragosa que nam serve senam pera pasto a quall terra eu vy e me foram mostrar e que antygamente a dicta sera sobr’dyta que lha ora os galegos pastam com seus gados e nam consentem que os gados deste lugar vaom la pastar ha sesenta anos e dahy pera atras sempre este concelho e os que nelle foram moradores de cento e dozentos trezentos anos e mais sempre posoyraom por termo desta villa a dicta sera que lhe os galegos tem tomado que verdadei-ramente he termo desta villa e do regno de Portugall e que ainda agora ha aquy allguns antygos que s’acordam e sabem o termo desta villa partyr com Galiza, a saber, des o Castanheiro do Crasto hyndo pella sera acyma ao Esporam da Portella e dahy a Cruz de Travaçam e dahy a Portella do Couto e de hy decendo agoas vertentes pela Rybeira de Tybo e que os allcaydes mores que foram des-ta villa, a saber, Payo Rodriguyz d’Araujo avo de Yoam Rodriguyz d’Araujo que ora he alcaide mor desta villa em a dyta sera trazia sua vacarya pacyficamente enquanto vyveo ate que moreo e despoys per sa morte a trouxe hy seu filho que fyquou por alcaide mor per nome Lopo Ro-driguyz d’Araujo que avera cynquoenta anos pouco mais ou menos que ainda ahy a trazia por ser termo desta villa e que por aquelle tempo os vizinhos deste concelho terem que a terra outra onde traziam seus gados e nam

se serviam da dicta sera os galegos das aldeas comarcas com a dicta sera se meteram em pose della molle e molle ate que de todo estaom ja mitydos em pose della da dicta maneira (…) e por a dicta sera desde ho Castanheiro do Crasto per a sera todo acyma e de hum cabo da dicta sera ate o outro ate que decem pera o Ryo do Tybo como tem decrarado por onde era o termo se chama a dicta serra Monte de Travaçam e Obyeiro toda esta sera agoas vertentes pera Portugall o sabem ser termo desta vylla e sabem aver cynquoenta anos andarem nella os gados do alcaide mor desta villa Payo Rodriguyz d’Araujo trouxe enquanto vyveo em a dicta sera sua vacarya toda por ser termo desta villa ate que moreo e despoys per sua morte seu filho Lopo Rodriguyz d’Araujo seu filho que socedeo na allcaidaria mor desta villa tambem trouxe em a dicta sera sua vacarya ate que a vendeo e a gastou e porque por la em ella andar ho gado dos allcaides mores desta vylla e nam consyntyr que os vyzinhos deste lugar la levasem os seus gados porque queria so comer a dicta tera e sera o concelho trazia por qua seus gados por o mais do termo e des que Lopo Rodriguyz deixou de trazer gado em a dicta sera por o vender os moradores desta villa naom curaram de mandar la seus gados por terem qua mais perto tera outra boa onde os trazyaom em isto os galegos das alldeas comarcas com a dicta sera como a vyram despejada da vacarya do alcaide mor se começaram de a pastar com seus gados a este concelho nam atentou niso de maneira que ja agora tem tomado a pose da dicta sera desde cyma ate em todo baixo a decer a rybeira de Tybo que lhe lançam agora a demarcaçam desde o castanheiro de Crasto logo direito ao rybeiro de Tybo que se vem per o pe da dyta sera a meter na Rybeira de Lyma em vollta e toda a dicta sera de Trabaçaom e o monte do Boeiro des que se pasa Lyma que toda a dicta sera tomam a este concelho que he seu termo e nelle vyram pacyfycamente andar sendo elles moços gados desta terra e dos allcaydes mores como tem dicto e decrarado e que de cynquoenta anos a esta parte he o tempo que ho gado de Lopo Rodri-guyz d’Araujo que foy alcaide mor desta vylla deixou de andar em a dicta sera logo dahy pera dyante os galegos

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se meteram molle e mode em pose della de a pastar e ora trazem hy seus gados e naom consentem hy andar os gados deste concelho e porque nisso se affirmaraom tudo asy passa na verdade.”5

Enquanto os alcaides usufruíam livre-mente dos pastos do Quinjo, os vizinhos não podiam lá apascentar seus gados. De-pois, quando estes deixaram de ter ani-mais, perante a inércia dos moradores, que tinham pastos suficientes mais próximos, os galegos começaram a trazer os seus gados e, pouco a pouco, apoderaram-se desse espaço da montanha. Por isso, à data, rei-vindica-se a sua titularidade para o reino de Portugal, mas já não se sabia ao certo se o território pertencia ao termo do concelho de Lindoso, Soajo ou Castro Laboreiro6.

A uma distância de quase cinco sécu-los seria demasiado ousado da minha parte tomar uma posição categórica, de qual-quer forma não posso deixar de referir que o dito Paio Rodrigues de Araújo também

foi alcaide-mor do castelo de Laboreiro, nomeado por carta de 2 de Junho de 14837, e no tão contestado foral de Afonso Henriques a Castro Laboreiro os vilãos desta vila tinham que defender com armas o Porto de Araújo, em frente a Lobios8.

A propósito dos alcaides do castelo do Laboreiro, no foral manuelino de 1513, ficou consignado que estes cobra-vam indevidamente determinados carneiros, que lhe foram coarctados9. Neste documento foralengo consta outro ténue indício10 da actividade pastoril desta região agreste:

“E dos gados que vem paçer deste Regno senam leuara nynhum direito de montado E paçeram liuremente segun-do sempre paçeram Item E quanto aos de castella ou galiza decraramos que naquelles lugares de çellanoua ou myl-manda omde os portugueses paçiam de graça por paçerem assi de graça na dita terra os gallegos della Item Mandamos que estes taaes se quyserem tornar aa vizinhamça em que dantes estauam nam paguem nada Qua fazendosse sem maliçia E doutra maneira pagaram o que agora pagam – a saber – de hûu carneiro atee dous pollo gado muyto ou pouco que cada pessoa particullar-mente meter assy gaado grande como pequeno ou segundo em galiza leuaram dos montados aos portugueses.”11

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5 IAN/TT – Núcleo Antigo, n.º 289, fls. 138-142v.O códice onde constam as actas, lavradas por provisão régia de D. João III, foi publicado por Humberto Baquero MORENO, Demarcações de Fronteira Lugares de Trás-os-Monte e Entre-Douro-e-Minho, vol. III, Centro de Inves-tigação e Documentação de História Medieval, Universidade Portucalense – Infante D. Henrique, Porto, 2003.6 Assim consta na acta lavrada para o concelho de Soajo no dia seguinte à de Lindoso (23 de Julho de 1538). IAN/TT – Núcleo Antigo, n.º 289, fl. 145.7 IAN/TT – Chancelaria D. João II, Liv. 24, fl. 21v.8 Veja-se o que a este propósito escrevi em O Foral de D. Afonso Henriques a Castro Laboreiro, “adito” para o debate, edição do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro, Porto, 2003, pp. 41-42.

9 “E per esta Rezam senam leuaram nella os carneiros que leuaua o alcayde agora nem em nynhum tempo por que nam se achou foral nem scriptura nem tal posse que desse titollo pera se poderem leuar.”10 Não faz parte dos propósitos deste singelo artigo esgotar, ou sequer apro-fundar, este vasto tema, apenas carrear alguns subsídios e ideias que po-dem servir para trabalhos posteriores. Para a época Moderna, em múltiplos documentos, se podem coligir referências ao pagamento de tributos em animais ou seus derivados, sobretudo nos Tombos das Igrejas.11 IAN/TT – Forais Novos de Entre-Douro-e-Minho, Leitura Nova, fl. 53.Melgaço, AM – Pergaminho (cópia solicitada pelos moradores de Castro Laboreiro, completada com recurso ao foral de Guimarães).Vila Viçosa. AHCB – Reforma Setecentista, Forais, Tomo I, doc. 21, fls. 160v-176 (apógrafo de 15 de Novembro de 1760).Manuel A. Bernardo PINTOR, Castro Laboreiro e seus Forais, sep. Bracara Augusta, vol. XVIII-XIX, n.º 41-42 (53-54), Braga, 1965. (reeditado em Pa-dre Manuel António Bernardo PINTOR, Obra Histórica I, edição do Rotary Club de Monçaõ, Monção, 2005)Luiz Fernando de Carvalho DIAS, Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, Entre Douro e Minho, Beja, 1969, pp. 65-66.

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A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando paci-ficamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como senpre fezeram atee ora”12.

Esta conjuntura documental remete para uma particu-laridade interessante, a relação entre a pastorícia e o contra-bando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.

Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de frontei-ra, formando uma raia seca de vários quilómetros. Lagos Trin-dade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pas-toris”13 e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento da ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, con-quanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”14.

Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a “muda” das brandas para as inverneiras e vice-versa15. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.

Existe, no entanto, um documento que pode testemu-nhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno16. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos mon-tados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção17. A deslocação dos gados de Castro La-boreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgado por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:

“Os montados da terra sam cumuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comçertam . a saber . aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”18

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12 José MARQUES, “Relações económicas do norte de Portugal com o reino de Castela no século XV”, separata da Bracara Augusta, Tomo XXXII – Fasc. 73-74 (85-86), Janeiro-Dezembro de 1978, pp. 50-51.13 Maria José Lagos TRINDADE, “A Vida Pastoril e o Pastoreio em Portugal nos Séculos XII a XVI”, Estudos de História Medieval e outros, Lisboa, 1981, p. 42.14 Idem, p. 42.

15 Alice Duarte GERALDES, Brandas e Inverneiras – Particularidades do siste-ma agro-pastoril crastejo, Cadernos Juríz Xurés, Braga, 1996.Alexandra Cerveira LIMA, Castro Laboreiro – povoamento e organização de um território serrano, Cadernos Juríz Xurés, Braga, 1996.Manuel RIVERO PÉREZ, “Verandas e Inverneiras: migrações internas na Serra do Leboreiro”, Agália, Publicaçom Internacional da Associaçom Gale-ga da Língua, n.º 69-70, 1.º Semestre 2002, pp. 201-216.16 Alexandra Cerveira LIMA, Castro Laboreiro, p. 2017 Pub. Alexandra Cerveira LIMA, Castro Laboreiro, p. 27, nota 10.18 Luiz Fernando de Carvalho DIAS, Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve, p. 59. Este é o foral manuelino citado por Lagos Trindade, na referência acima transcrita. Mas, ao contrário do que diz a autora, no documento são os gados do Laboreiro que se deslocam para os montes (continua...)

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Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando,

de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”19. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Mel-gaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.

Em relação aos rebanhos que vêm de Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documen-tais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem dos seus rebanhos tran-sumantes?

A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou ou-tros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a pas-sagem lícita do gado transumante, mas também para o contra-

bando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.

Ao longo da raia seca, o pon-to nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recu-ada Idade Média que, vindo direc-tamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, pra-ticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se20 uma via para Mel-gaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de La-mas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez21.

Desde o tempo do rei D. Pedro I que se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, in-terditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alterna-tivo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximida-des do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à

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)... continuação)de Aguiar, Neiva e Penela e não os gados do reino que se deslocam para a serra do Laboreiro. É bem plausível que o Laboreiro ficasse coberto de neve durante praticamente todo o Inverno, forçando a deslocação dos seus gados para sítios mais abrigados e amenos, regressando depois com a Pri-mavera e a chegada do calor.19 José MARQUES, Os Forais de Melgaço, Câmara Municipal de Melgaço, 2003, p. 71.

20 Esta bifurcação é referida em 1565, quando a comitiva encarregue da de-marcação da linha limítrofe da comenda de Castro Laboreiro se reuniu no Porto dos Asnos, onde um Francisco Fernandes tinha uma casa e “partem se os caminhos”. [Braga, AD – Registo Geral, Liv. 2, fls. 424-428v]21 Sobre estas vias medievais vide:Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, Vias Medievais Entre Douro e Minho, Porto, Dissertação de Licenciatura em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1968, pp. 210-211. (Inédita)José DOMINGUES, O Couto de S. João de Lamas de Mouro, Porto, 1999, pp. 19-20.

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vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”22. Mas este autor não fez a ligação com o Por-to dos Asnos23. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melga-ço, em 1538.

O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahy tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Millmanda que come diso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”24.

O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser controla-do de ambos os lados.

Do lado português, a incipiente regulamentação norma-tiva para evitar que se passem animais para o reino vizinho parece iniciar-se no reinado de D. Afonso IV. A lei de 16 de Dezembro de 1341, para além do ouro, prata e armas, proíbe também que se tirem para fora do reino, sem licença régia, os

cavalos25. No século seguinte intensificar-se-á a legislação em torno da passagem de gados para fora do reino. No reinado de D. Duarte, para atalhar aos prejuízos causados pelas sacas do pão e gados concedidas, o monarca promulga um alvará, em Almeirim a 13 de Abril de 1437, impondo a “qualquer pessoa, que nos saca do dito pam, e gaados requerer, e lha nos outor-garmos, que nos pague a dizima do que assy per bem della pera fora dos ditos nossos Regnos levarem, como ataa qui pagavão, a saber, de cincoenta huum”26. Nas cortes de Santarém de 1451 reitera-se o pedido para que o rei dificulte a concessão de alvarás de saca de gado para outros reinos e que autorize que qualquer do povo possa demandar e tomar e haver a metade dos gados exportados sem sua licença; o monarca difere27. A proibição da passagem de gado para fora do reino terá sido, definitivamente, generalizada com a compilação das Ordena-ções Afonsinas (terminada a 28 de Julho de 1446): “defende-mos e mandamos, que nom seja alguum tam ousado, que leve [para] fora do Regno, per mar ou per terra, armas, nem servos, nem goados; e qualquer que o contrairo fezer, perca todo pera a Coroa do Regno, assy como suso he estabellicido nos cavallos, ouro, prata, e moeda”28.

Sem embargo da ordenação geral, o monarca, em carta de 7 de Maio de 1459 em Alenquer, outor-ga aos monteiros de Soajo o privi-légio de poderem passar os seus gados para Galiza29. Neste tempo o concelho de Soajo chegava até à Portela do Lagarto, onde, até há poucos anos, existiu um pene-do com três cruzes a assinalar a confluência dos três concelhos de

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22 Crónica de D. João I de Fernão Lopes, Livraria Civilização – Editora, II volume, 1983, p. 295. De Fiães foi a rainha, a pedido de seu marido, assistir ao combate e rendição da fortaleza de Melgaço.23 Esta ligação, como disse, está implícita no documento de D. Pedro I, de 1361. Se o monarca proíbe o trânsito pelo “camjnho que uem de galiza pera o meu senhorio o qual uay pello monte de san tome o qual se toma no meu senhorio a par da ponte de moa e uay ferir ao porto dos asnos”, impondo a passagem pela vila de Melgaço, então, forçosamente, tinha que existir outro caminho alternativo do Porto dos Asnos até Melgaço.24 IAN/TT – Núcleo Antigo, n.º 289, fls. 153-157.

25 Chancelaria de D. Afonso IV, vol. III, doc. 344, pp. 198-201.Ordenações Afonsinas, Liv. V, Tít. 47.26 Ordenações Afonsinas, Liv. V, Tít. 48.27 Armindo de SOUSA, As Cortes Medievais Portuguesas (1�8�-1490), Porto, INIC – Centro de História da Universidade do Porto, 1990, vol. II, p. 344.28 Ordenações Afonsinas, Liv. V, Tít. 47, § 16.29 Valdevez Medieval, documentos II Arquivos de Lisboa (1�00-1479), Edição da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, 2001, doc. 153, p. 210.

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Castro Laboreiro, Soajo e Valadares – extintos pelas reformas administrativas do século XIX. Por isso, é plausível que o Porto dos Asnos e a rede viária dos Montes Laboreiro lhe fosse pro-pícia e muito proveitosa para o escoamento dos seus animais.

Mas, para além des-

te e outros privilégios ré-gios similares, o controlo de contrabando de gado irá colidir com o já referido costume, arraigado em sé-culos de tradição, anterior à fundação do reino e das suas estremas, de livre cir-culação de gados no âmbi-to territorial de toda a Pe-nínsula Ibérica. A linha de fronteira é continuamente

devassada por animais transumantes, com destino a pastagens sazonais, ou que beneficiam de uma boa vizinhança entre co-munidades raianas. Verifica-se ainda o caso dos lavradores que possuem propriedades do outro lado da fronteira e que, por isso, tem que deslocar os seus bois, não só para pastar, mas também para arar a terra30. Por outras palavras, disfarçadas sob uma transumância permissiva, a titularidade de terrenos ou um simples costume de vizinhança raiana poder-se-iam passar, para fora do reino, grandes quantidades de animais, livres de quaisquer tributos ou impedimentos legais.

Nas cortes de Santarém de 1451 já são tomadas algumas medidas para obstar a estas dificuldades. No artigo 6º pede-se que os castelhanos vindos ao reino mostrem à entrada os bois que trazem e à saída os que levam de modo que lhes seja impedido levar gados da terra em troca dos seus; e tenham as penas da lei os que prevaricarem – o monarca difere31.

Houve uma iniciativa legislativa régia, uma vez que, em seguida, as cortes de Lisboa de 1455 abrem (artigo 1º) com o

pedido de abolição da lei recente que obriga todos os lavra-dores e criadores a declararem, a partir do dia 24 de Junho de 1455, os gados que possuem, “fazendo deles receita e despesa” – desta vez o deferimento é condicionado32. Desconheço o paradeiro deste regimento, mas outros se lhe seguiram, como veremos. O tema continuou a ser abordado em quase todas as Cortes reunidas na segunda metade deste século XV33.

Consequentemente, nos finais do século XV e dealbar do século XVI, assiste-se ao intensificar da malha em torno dos passadores de gado para fora do reino. Ao longo da fronteira são definidos os portos de entrada e saída dos gados de Cas-tela e neles são colocados oficiais responsáveis pela contagem e verificação dos animais e recebimento dos respectivos im-postos alfandegários. De entre os oficiais mores destacam-se os alcaides das sacas e os contadores dos gados, coadjuvados pelos respectivos escrivães.

A zona raiana do La-boreiro ficou a cargo de Afonso Eanes, que foi no-meado por D. João II con-tador dos gados de Mon-ção, Melgaço, Valadares e Castro Laboreiro, por carta de 20 de Junho de 149034. A raia seca seria a faixa mais preocupante para o contador régio. Se bem que também se pudesse passar gado transumante pela raia húmida, a barreira natural do rio Minho dificultava imenso essa passagem e facilitava o controlo de contrabando, aliviando, em simultâneo, o trabalho de Afonso Eanes e dos sucessivos contadores de gado.

Para regular a actividade dos oficiais, no dia 20 de Abril

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30 Esta conjuntura já é prevista pelas Ordenações Filipinas, Liv. V, Tít. 115 e manteve-se até há bem pouco tempo.31 Armindo de SOUSA, As Cortes Medievais Portuguesas, vol. II, p. 341.

32 Armindo de SOUSA, As Cortes Medievais Portuguesas, vol. II, p. 348.33 Armindo de SOUSA, As Cortes Medievais Portuguesas, vol. II.34 IAN/TT – Chancelaria D. João II, Liv. 16, fl. 4v. Doc. em anexo final.

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de 1503, el-rei D. Manuel mandou publicar um regimento so-bre o passar do gado e as outras cousas defesas para fora do reino35, que irá ser incorporado nas sucessivas colectâneas le-gislativas da sua lavra – primeiro no Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares destes Reinos36, depois nas sucessivas Ordenações de 1512/13, 1514 e 152137. Em data muito próxima – 24 de Maio de 1503 – surge uma ordenação contra os que levassem pão, farinha e gados para fora do reino38. Luís Miguel Duarte publica um regimento avulso, sem data, enviado ao alcaide das sacas do Algarve e comarcas de Entre-Tejo-e-Gua-diana e Além Guadiana, Lopo Álvares de Moura39.

De forma muito sucinta, vejamos o que de mais relevan-te, para este trabalho, se pode extractar desses regimentos do alcaide das sacas. O gado de Castela deveria entrar mais de cinco léguas da raia, caso contrário os maiorais e pastores esta-vam obrigados a dar fiança, pela qual ficavam obrigados a não saírem com os gados sem serem vistos e contados e fazendo o contrário “percam todos seus guados e sejam presos e ajam a pena dos Passadores”. Todos os gados que entram, vindos de Castela, como os que saem do reino, devem ser contados e escritos em livro de registo próprio. Esse registo teria que ser feito “polo miudo e com toda boa declaraçãm”, de forma que ficasse assente o número de cabeças, o seu género e os luga-res a que pertenciam. Isto, para que no regresso se pudesse averiguar e controlar se passavam mais animais do que os que tinham entrado para pastar. Os prevaricadores perdiam tudo o que levassem a mais e ficavam sujeitos às penas previstas para os passadores.

Em outro parágrafo prevê-se que as dizimas dos gados castelhanos, que nascessem em Portugal, fossem pagas, não em dinheiro, mas em cabeças de gado. Ao invés, as solda-das dos pastores castelhanos que vinham ao reino de Portugal

“guanhar suas vidas” deviam ser pagas em dinheiro e não em gado. Pretendia-se engrossar o gado do reino e, sobretudo, evitar que, sob pretexto de soldada, se passassem juntamente outros animais. Ou seja, sob a forma simulada do pagamento de soldadas poder-se-iam contrabandear animais para fora do reino.

Os contadores de gado cobravam para seu salário, tanto pela entrada como saída, quatro reais por cada cem cabeças de gado miúdo e dez reais por cada cem cabeças de gado vacum40. Os bois que entravam no reino com carretas deviam ser registados “quantos sam, e de que sinaes, e cores, e cujos sam, e de que Lugares, e com toda outra boa declaraçam, pera se saber, e veer ao tempo da tornada delles, se tiram, ou leuam mais dos que meteram”. E se pretendessem tornar por outro porto deviam requerer os respectivos alvarás de guia, para se-rem apresentados no porto de passagem escolhido.

Outros oficiais da justiça régia, nomeadamente os cor-regedores de comarca, estavam obrigados prestar toda a cola-boração quando se tratava de poderosos, contra os quais os al-caides das sacas e contadores do gado não conseguissem fazer justiça. As gentes locais, por sua vez, são aliciadas a colaborar através da denúncia, recebendo a respectiva compensação de um terço ou então a metade se fosse alcaide de castelo, corre-gedor, juiz, meirinho ou alcaide pequeno.

Para transaccionar bois, os carniceiros e os lavradores que os compravam para a sua lavoura ou criação, tinham que estar munidos de imprescindíveis cartas de certidão, onde se assentava a soma de gado que necessitavam, o nome e lugar dos respectivos vendedores.

Nos reinados seguintes de D. João III e D. Sebastião são publicadas várias leis de subido interesse para o tema, quer da pastorícia e transumância, quer do contrabando. Estes di-plomas normativos foram coligidos por Duarte Nunes de Leão nas suas Leis Extravagantes, sob o título dos Gados e dos Pas-sadores41.

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35 IAN/TT – Corpo Cronológico. Parte III, maço 2, doc. 29.36 Regimento dos Oficiais das cidades, villas e lugares destes Reinos, fls.81-91v.37 Ordenações Manuelinas, Liv. V, tít. 89.38 IAN/TT – Corpo Cronológico, Parte 2, maço 7, doc. 119.39 Luís Miguel DUARTE, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (14�9-1481), Fundação Calouste Gulbenkian– Fundação para a Ciência e a Tec-nologia, Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Coimbra, [1999], doc. 97, pp. 654-659.

40 São estas as taxas previstas na carta de nomeação de Afonso Eanes, transcrita em anexo.41 Duarte Nunes de LEÃO, Leis Extravagantes, Lisboa, 1569, pp. 122v-138. (edição fac-simile da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987)

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Curiosa, por exemplo, uma provisão de 14 de Agosto de 1527, que agrava as penas (previstas nas Ordenações, liv. V, tít. 89) para aquele que tirasse ou mandasse tirar, por si ou por outrem, gados para fora dos senhorios de el-rei:

O peão seria publicamente açoutado com baraço e pregão; ser-lhe-ia decepado um pé, junto ao pelouri-nho; degradado para sempre para a ilha de S. Tomé; e perdia toda a sua fazenda, metade para quem o acusas-se e a outra metade para a Câmara de sua Alteza;

O escudeiro ou cavaleiro seria degradado para sempre para a dita ilha e perderia toda a sua fazenda;

O fidalgo ou alcaide-mor de alguma fortaleza perderia qualquer jurisdição, fortaleza, direitos reais, tenças, moradias e qualquer outra cousa que de sua Al-teza tivesse. Sendo as ditas cousas ou cada uma delas de juro, perdia-as somente em sua vida e seria degra-dado cinco anos para cada um dos lugares de África. E não tendo cousa alguma de sua Alteza perdia toda a sua fazenda, metade para quem o acusasse e a outra metade para a Câmara Real, sendo degradado os ditos cinco anos para África. E sendo alcaide-mor que tivesse fortaleza da mão de outra pessoa, que a de sua Alteza tivesse, perdia a dita alcaidaria-mor e não poderia ser mais alcaide-mor de fortaleza alguma.42

Por alvará de 3 de Novembro de 1529 ordenou-se que aos castelhanos passadores de gado e cousas defesas se lhe dessem as mesmas penas que se aplicavam aos portugueses43. A lei 32 dos capítulos das cortes de Torres Novas e Évora de 1538 ordena que nenhum alcaide-mor ou seu logotenente, nem comendador das ordens trouxesse gado nas cidades, vilas ou lugares, nem em seus termos, onde fossem alcaides-mo-res ou tivessem comenda44. Esta proibição estende-se também aos escrivães da almotaçaria45. Outra lei destas cortes estabe-

lece que cada um traga as carneiradas que quiser46. E chega-se mesmo a proibir a entrada de gados que viessem pastar ao reino:

“que nenhuma pessoa de qualquer qualidade que fosse, metesse gado de nenhuma sorte de fora destes regnos, para nelles pastar, sob pena de perder o dito gado, a metade para quem o accusasse, e a metade para os captiuos, e fossem presos, assi os senhores dos gados, que neste regno fossem achados, como os pastores, ou pessoas que em guarda dos gados andassem, e fossem degradados por cinquo annos para Africa”47

Outras leis de avultado interesse são as que estabe-lecem como e quando se de-viam escrever os gados, onde constam devassas e diligên-cias a fazer acerca dos passa-dores dos gados e dos que os compram, vendem, mudam ou levam a pastar de um lu-gar para outro. Seria dema-siado fastidioso – e o tempo também não me sobeja para a conclusão deste breve artigo – estar aqui a fazer uma análise meticulosa de todos os parágrafos desses extensos diplomas normativos. Por isso fica a remissão para a colectânea de leis de Duarte Nunes de Leão, de fácil acesso, ou, em última ins-tância, para os originais da Torre do Tombo.

A partir dessas leis extravagantes de D. João III de 14 de Agosto de 1527 e de alguns capítulos das Cortes de 1538 e, sobretudo, da lei de D. Sebastião de 18 de Julho de 1564 se acrescentam várias disposições às Ordenações Filipinas (Liv. V, tít. 115), em relação às antecessoras Manuelinas (Liv. V, tít. 89). Os passadores de gado que levam gado para fora do reino são punidos com degredo para o Brasil e perdem todos os bens,

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42 LEÃO, Leis Extravagantes, Quarta Parte, Tít. 6, Lei 1.43 Idem, Lei 2.44 Idem, Lei 3.45 Idem, Lei 4.

46 Idem, Lei 6.47 Idem, Lei 5.

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devendo os juízes tirar, oficiosamente, todos os anos, devassas desses casos. No intuito de evitar tal crime, todo aquele que viver dentro de dez léguas da raia de Castela, deveria mani-festar, nos meses de Abril a Junho, o gado graúdo e miúdo, excepto as ovelhas, na Câmara do lugar. O respectivo escrivão teria um livro especialmente ordenado para esse efeito. Pela mesma razão, é proibida a venda e transporte de gado para fora do lugar e termo onde fossem moradores, salvo obtendo primeiro carta de vizinhança.

Só para terminar este sucinto excurso normativo, deri-vada da conjuntura que se viveu com a unificação dos dois reinos peninsulares, a lei de 1 de Janeiro de 1605 permite a livre passagem de gado para Castela48.

O tema em si requer mais tempo, dedicação e um cotejo aturado dos su-cessivos regimentos – até para apurar a data do que publica Luís Miguel Duarte – o inventário de outros diplo-mas para épocas posteriores e, sobretudo, a pesquisa de novos indícios documentais para esta zona setentrional do país.

Em definitivo, desde há muitos séculos que os Montes Laboreiro são palco

de uma intensa actividade pastoril, que tem vindo a reduzir drasticamente nas últimas décadas. No entanto, os testemu-nhos sólidos dessa intensa actividade perseveram na docu-mentação remanescente ou nas vetustas tradições pastoris e no património material disseminado a esmo por todo este ma-ciço montanhoso de Entre-Lima-e-Minho, nomeadamente, os abrigos de pastores e os fojos do lobo – que clamam pelo seu estudo, classificação e preservação efectiva.

ANEXO DOCUMENTAL

I

1490, Junho, 20 – Évora.

D. João II nomeia Afonso Eanes para contador dos gados de Monção, Melgaço, Valadares e Castro Laboreiro.

IAN/TT – Chancelaria de D. João II, Liv. 16, fl. 4v.

Dom João cetera a quantos esta carta virem fazemos saber que confiando nós da bondade e descrição d’Afonso Annes morador n’Alfarella termo de Galles entendendo que o fará bem e como cumpre a noso serviço e bem do povo temos por bem e damo-llo por contador dos gados das terras da villa de Monçom e Malgaço(sic) e Valladares e Crasto Lebo-reiro com toda-llas proes e percalços e enteresses que ao dicto ofício pertenceer e de direito deve d’haver porém mandamos aos nossos alcaides das sacas dos dictos lugares e a toda-llas nosas justiças oficeaes e pessoas a que o conhecimento desto pertenceer e esta nosa carta fôr mostrada que o hajam o dicto Afonso Annes por contador dos gados das terras e lugares e outro algum cetera e o leixem servir e usar do dicto ofício e ha-ver as proes e percalços delle como dicto é porque asi é nosa mercêe o quall jurou em a nosa Chanceraria(sic) aos Santos Avangelhos que bem e direitamente o é e use do dicto ofício guardando a nós noso serviço e ao povo seu direito dada em a nosa cidade d’Évora a xx dias de Junho Bastião Barroso a fez de mjl iiiic lR. O quall Afonso Annes havera com o dicto ofício de gado destes nossos Reinos pera os de castella pasar de cada cem cabeças de gado vacum dez reais e de gado meudo coa-tro reais segundo está em nosso regimento cetera das sacas.

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48 José Justino de Andrade e SILVA, Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa, 1854.