A Hospedaria do Mosteiro de Alcobaça - Um passado, um presente, uma proposta de futuro

28
SEPARATA

Transcript of A Hospedaria do Mosteiro de Alcobaça - Um passado, um presente, uma proposta de futuro

SEPARATA

MosteirosCistercienses

História, Arte, Espiritualidade e Património

TOMO I

DIRECÇÃO

José Albuquerque Carreiras

Actas do Congresso realizado em Alcobaçanos dias 14 a 17 de Junho de 2012

ALCOBAÇA

2013

243

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇAUm Passado, um Presente, uma proposta de Futuro

JOÃO OLIVA MONTEIRO*, JOANA D’OLIVA MONTEIRO**, SOFIA FERREIRA***

«Todos os hóspedes que se apresentam, no mosteiro, sejam recebidos como se fosse o próprio Cristo…»

Regra de São Bento, Capítulo LIII

A modo de introdução

Decorrido mais de um século sobre a ideia da criação de um Museu de Alcobaça –uma história que conta com um amplo leque de contributos científicos expressos emlivros, artigos, catálogos de exposições, colóquios, congressos, seminários, conhecendoigualmente, ecos na imprensa – o argumento que esteve agora na base da iniciativa derevitalizar o espaço da Hospedaria do Mosteiro de Alcobaça tem por base a premissanuclear da conjugação entre as componentes da investigação e da programação mu-seológica e goza da formação pluridisciplinar dos autores.

Tirando partido desta conjuntura, ou melhor, desta rede produtiva de contágios, opresente artigo assume (e conjuga) um triplo objectivo: a) apresentar uma leitura his-tórico-crítica dos edifícios da Hospedaria; b) reunir apontamentos acerca do espólio doMosteiro; c) compilar uma proposta para o uso futuro da Hospedaria focalizada na de-lineação de um circuito museológico, complemento do actual percurso de visita, e

* Investigador.** Investigadora do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universi-

dade Nova de Lisboa). Bolseira de Doutoramento da FCT.*** Arquitecta (Câmara Municipal de Lisboa). Mestre em Recuperação do Património Arquitectónico e Pai-

sagístico pela Universidade de Évora.

Mosteiros Cistercienses, Vários Autores, José Albuquerque Carreiras (dir.), Alcobaça, 2013, Tomo I, 243-267.

favorecedora de uma aproximação directa entre o monumento, as colecções e os visi-tantes, os seus novos “hóspedes”.

Dado o cunho interpretativo que esta temática impõe, optámos, em larga escala, porsistematizar documentação iconográfica cujos conteúdos testemunham momentos cru-ciais da história do monumento, potenciando preferencialmente uma leitura crítica edescodificadora dos seus espaços, funções e circulações.

Por último importa sublinhar que o texto, que ora se apresenta, assume a fórmulade um contributo que justificará um contínuo e profícuo trabalho em prol de uma re-flexão que dê-a-ver partículas da longa permanência dos que habitaram e moldaram afisionomia deste monumento classificado pela UNESCO como Património da Huma-nidade desde 1989.

Uma leitura histórico-crítica dos edifícios da Hospedaria

Aquando da fundação de um Mosteiro Cisterciense, como o de Alcobaça, a co-munidade fundadora só podia habitá-lo quando estivessem cumpridas certas nor-mas sendo uma delas estarem construídos os edifícios do oratório, do refeitório, dahospedaria e da portaria, conforme estabelece o Exórdio de Cister, datável de 1134.A Hospedaria, um dos edifícios fundamentais do Mosteiro, acolhia os viajantesmasculinos que ali procuravam abrigo. As poucas mulheres que buscavam hospe-dagem ficavam no edifício da portaria, local de transição entre o espaço monás-tico, cercado por um alto muro, e o mundo exterior. Em Alcobaça, por volta de1450, começaram a estabelecer-se habitações de leigos no interior da cerca do mos-teiro, ocasionando no abaciado do Infante Cardeal D. Afonso (1519-1540) a modi-ficação do traçado do muro, de forma a colocar fora do espaço monástico a vilaentretanto constituída. Nesse tempo a fachada principal da igreja, as paredes poen-tes do claustro e da cozinha medieval, entre outras edificações, passaram a separaro mosteiro da urbe.

Por morte do Cardeal D. Afonso, em 1540, foi o irmão mais novo, D. Henrique,Arcebispo de Évora, quem lhe sucedeu na maioria dos seus elevados cargos ecle-siásticos entre os quais o de Abade de Alcobaça. O Papa conferiu-lhe o chapéu car-dinalício em 1545 e chegou a disputar as eleições Papais de 1550 e 1555. Damião deGóis, em 1567, descreveu-o como “indivíduo de estatura mediana, espírito vivo, des-tro nos exercícios físicos (caça, montaria, jogo da péla, cavalaria); conhecedor de la-tim, grego, hebraico, matemática, filosofia e teologia;…”1. Foi, à semelhança do pai,o Rei D. Manuel, e dos irmãos, um mecenas que mandou erigir alguns edifícios. NoMosteiro de Alcobaça, durante o seu abaciado, foram efectuadas importantes obras,

244

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

1 MATTOSO, José, História de Portugal, vol. III, Editorial Estampa, Lisboa, 1993, p. 551.

245

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

uma das quais na zona da cozinha medieval2, a poente do refeitório dos monges, ondese construiu um edifício assente numa planta quadrada, com três alas dispostas em Uem torno de um claustro com dois pisos (Fig. 1) o qual, devido a um equívoco publi-cado em 1885, é comummente denominado de D. Afonso VI e em simultâneo datadoda segunda metade do século XVII3. Esta datação errada e reiterada4 retirou ao claus-tro, e paralelamente ao edifício que o encerra, um lugar de destaque na História da Ar-quitectura Portuguesa. O projecto, com a fachada principal sobre a vila de Alcobaça

Fig. 1. Claustro quinhentista, da Hospedaria. No piso térreo, pilares toscanos cruciformes, arcos toraisda largura das pilastras, abóbodas de interessantes nervuras. No piso alto, colunas toscanas sobre

pedestais, parapeito corrido, friso com métopas e tríglifos, cimalha com goteiras, 2012

2 Sobre esta área na época medieval veja-se: NUNES, Ana, «Intervenção arqueológica na Ala Norte doMosteiro de Alcobaça», em Ministério da Cultura, (ed.), Actas do Colóquio Internacional CISTER Es-paços, Territórios, Paisagens, Alcobaça, 1998, pp. 523-524. Nas figuras 6 e 7 deste artigo, vê-se umportal medieval e a delimitação do intradorso das abóbadas da cozinha medieval, a descoberto desdeos anos 40, elementos anulados recentemente segundo critérios muito discutíveis.

3 Sobre a questão veja-se o estudo: MONTEIRO, João Oliva, «Rinoceronte e palácio quinhentistas no Mos-teiro de Alcobaça», em Ministério da Cultura (ed.), Actas do Colóquio Arte e Arquitectura nas Aba-dias Cistercienses nos séculos XVI, XVII e XVIII, Alcobaça, 1994, pp. 291- 300.

4 Ibidem, ver parte intitulada «Um equívoco centenário», pp. 296-297.

(Fig. 2), demandando “simultaneamente, a adequação de Serlio e a nobreza de Palla-dio”5, terá sido delineado por volta de 1550, porventura por Afonso Álvares ou comsua colaboração, para cumprir uma dupla função: Portaria do Mosteiro no piso térreo,Palácio do Infante Cardeal D. Henrique no piso alto, onde este passou várias tempora-das, paredes meias com os monges, por vezes na companhia de seu sobrinho neto, oRei D. Sebastião, de quem foi tutor de 1562 a 1568. Foi aliás em Alcobaça que rece-beu, em Agosto de 1578, a notícia da derrota de Alcácer-Quibir. Dali partiu para Lis-boa, cidade em luto profundo, onde foi aclamado rei pouco depois. Após a morte docardeal-rei, em 1580, o piso palatino sobre a portaria monástica passou a ser utilizadopara uma das principais valências de um Mosteiro Cisterciense, a Hospedagem.

A primeira notícia conhecida do Palácio do Cardeal em Alcobaça foi redigida em1589 por Frei Hierónimo Roman, relatando este que no mosteiro “ai una hospedariacosa toda real … edificola el infante cardenal don enrique para palácio suyo y como… murio el Abbad i juntamente Rei qdo para esta obra tan própria de los monasterioscomo es hospedar. La casa tiene todas las partes necessárias para aposentarse qualquerprincipe”6.

246

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

5 KUBLER, George, A Arquitectura Portuguesa Chã, entre as especiarias e os diamantes, 1521-1706, Vega,Lisboa, 1988, p. 35.

6 CORREIA, Vergílio, Obras, vol. V, Universidade, Coimbra, 1978, p. 63.

Fig. 2. Fachada quinhentista, com varandim e escadaria seiscentista. No corpo central, as janelas desacada, as bandeiras cegas, a porta, têm uma forma rectangular cuja proporção é de 2:1, denunciando

um edifício de «arquitectura matematizada», 2012

Por sua vez, Frei Manuel dos Santos refere uma escritura7 “feita em Lisboa nos pa-ços do Senhor Cardeal [D. Henrique], e em sua presença, a 7 de janeiro de 1558”, emque são nomeadas ”as Casas novas, que elle Cardeal, havia feito sobre a portaria doMosteiro”. O cronista explicita que “as casas novas … são as mesmas a que chama-mos hoje [1710] a hospedaria velha”. A designação de Hospedaria Velha aqui dada aoedifício quinhentista advém de ele ter sido prolongado para sul em 1649, provavelmentecom projecto de Frei João Turreano, por encomenda do Mosteiro, passando este acres-cento a ser designado Hospedaria Nova, em contraponto à pré-existente. Santos informaainda que no piso nobre os edifícios distinguiam-se “hum do outro, em que as salas donovo são por sima de abobadilha; as do velho são de forro ao modo antigo”8.

A fachada da nova construção tem o mesmo comprimento da do edifício qui-nhentista e utiliza os mesmos elementos arquitectónicos deste, jogando-se com o es-paçamento e largura dos vãos e com a colocação e a largura das pilastras paraconseguir um efeito dinâmico de continuidade dos dois edifícios. As duas fases, se-paradas por um século, fundem-se naturalmente aparentando ser o resultado de umprojeto único (Fig. 3).

No entanto, um olhar atento sobre a hospedaria permite localizar marcas e sinaisque documentam uma dupla construção, entre os quais, no exterior, assinalamos a exis-tência de goteiras, apenas nas cimalhas da fase quinhentista, tanto nas fachadas comono claustro, o que indicia a não existência de beirado saliente na origem, o que real-çaria o desenho “ao Romano” da Hospedaria Velha, particularmente no claustro.

247

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

7 Cf. SANTOS, Frei Manuel dos, Alcobaça Illustrada, Lisboa, 1710, p. 471.8 SANTOS, Frei Manuel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, Alcobaciana 3, Alcobaça, 1979,

p. 40.

Fig. 3. Fachada da hospedaria sobre a vila. O abade de Alcobaça na qualidade de capitão-mor dasmilícias das catorze vilas dos coutos do mosteiro, presidia, três vezes por ano, da janela entre pilastras no

piso alto à direita, aos exercícios militares conjuntos que decorriam no Rossio, c. 1935

248

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

No interior, na zona de encosto dos dois edifícios, especialmente no piso térreo, dis-tinguem-se facilmente ambas as fases. Estas evidências in loco, só por si, refutam atese ainda hoje muito comum de que se trata de um só edifício produto de um projectoglobal, levado a cabo no século XVII9. Observemos dois exemplos no Claustro da Por-taria (Fig. 4): na primeira imagem a janela da esquerda é seiscentista sendo as outrasquinhentistas. Na imagem seguinte (Fig. 5) vê-se uma pilastra e o arranque das abó-bodas que na zona à esquerda datam de cerca de 1550 e à direita são um século maistardios.

Temos pois, que a Hospedaria do Mosteiro de Alcobaça foi erigida em duas fasesseparadas por um século, na época estilística que George Kubler, um dos mais presti-giados historiadores da arquitectura, designa por Arquitectura Portuguesa Chã e situatemporalmente entre 1521 e 170610. A primeira fase assente em planta quadrada tra-çada sobre malha quadrangular, com duas fachadas, a principal, a poente, sobre a vilade Alcobaça, a outra mais simples, a norte, sobre o pátio de serviço do mosteiro, foiconstruída, cerca de 1550, com dupla função: servir de portaria do mosteiro no pisotérreo e de palácio no piso nobre. Esta construção do abaciado do Cardeal D. Henri-que foi a matriz de toda a longa fachada poente do mosteiro exceptuando, naturalmente,o frontispício da igreja (Fig. 6).

9 A este respeito veja-se RODRIGUES, Jorge, Mosteiro de Alcobaça, Scala Publishers, Lisboa, 2007, p. 107e MONTEIRO, Rinoceronte e palácio quinhentistas no Mosteiro de Alcobaça, cit., n. 25.

10 KUBLER, A Arquitectura Portuguesa Chã, entre as especiarias e os diamantes, 1521-1706, cit..

Fig. 4. Claustro da Portaria - Parede poente, 2012 Fig. 5. Parede nascente

As duas alas laterais, simétricas, aparentando ser fruto de um projecto único, são,todavia, o resultado de quatro encomendas distintas executadas, aproximadamente, en-tre 1550 e 1770. No edifício mais baixo, à esquerda, funcionava a portaria de baixo ea botica; foi demolido em 1839 para converter o pátio de serviço do mosteiro em praçapública da vila, acima simbolizada pelo seu pelourinho.

Quando a segunda fase foi construída, cerca de 1650, a hospedaria expandiu-se uti-lizando todo o novo piso alto, o que, por razões de salubridade, motivou a construçãode um claustro e de um saguão11 e a abertura de vãos de iluminação e passagem na pa-rede do piso superior do claustro de D. Dinis ((Figs. 7 e 8).).

A Hospedaria Nova no piso térreo possui um claustro que faz a ligação da portariaao claustro medieval e dá também acesso a uma grande sala onde decorriam sessõesdos Capítulos da Congregação autónoma de Alcobaça, nos quais se reuniam, anual-mente, todos os abades cistercienses portugueses.

No exterior, onde a nova fachada tem o mesmo comprimento da velha, o arquitectooptou por reproduzir os elementos pré-existentes para conseguir assim uniformizar osedifícios, o que foi aprimorado com a construção de um varandim pontuado por bolase pedestais pétreos ao longo de toda a fachada. A escadaria data desta época, não seconhecendo o traçado da primitiva, possivelmente marcado nas paredes e nas colunassob o piso da loggia e varandim, hipótese que só uma intervenção arqueológica poderáesclarecer.

249

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

11 O saguão iluminava e ventilava a capela e um dos quartos da hospedaria; incompreensivelmente foi co-berto nos anos 70 do século passado quando a estrutura do telhado da Hospedaria Nova foi substituída.

Fig. 6. Desenho à pena, em Mapa Topográfico de 1793

Para melhor leitura do que acima se escreveu, junta-se uma planta esquemática domosteiro, com a hospedaria marcada (Fig. 9), e uma planta actual do piso térreo desta,com as duas fases construtivas assinaladas (Fig. 10).

Viajantes e cronistas deixaram relatos sobre a “vida” da Hospedaria de Alcobaça. Por ordem cronológica apresentamos fragmentos de alguns12:

“As salas estam ornadas com grande perfeiçam e asseyo; todas com cortinados nasportas de serafina verde; seus bofetes grandes no meio de pao santo; cadeiras de solado Brasil lavradas; e pelas paredes painéis de excelente pincel”. Santos, 1710.“Nos nossos quartos que eram extremamente espaçosos, pendiam damascos emcarmesim e dourado; o chão estava coberto de tapetes persas, camas em alco-vas, cobertas com colchas bordadas”. Pitt, 1760.“A Hospedaria … está dividida em cómodos e magníficos aposentos. As ante-câmaras têm boas pinturas … Qualquer estranho que visite este convento podeestar certo de encontrar uma recepção hospitaleira”. Murphy, 1789.“Os aposentos constituídos por uma antecâmara, salão e quarto, pareceram-me

250

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

Fig. 7. Telhados da Hospedaria e canto noroeste do pisosuperior do claustro de D. Dinis, destelhado, c.1947

Fig. 8. Ala poente, 2012

12 Cf. SANTOS, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, cit., p. 40; PITT, Thomas, Observações de umaviagem a Portugal e Espanha, IPPAR, Lisboa, 2006, p. 104; MURPHY, James, Viagens em Portugal, Li-vros Horizonte, Lisboa, 1998, p. 89; BECKFORD, William, Alcobaça e Batalha, Recordações de viagem,Veja, Lisboa, 1997, p. 37; D’ALORNA, Marquês de Fronteira e, Memórias, Coimbra, 1926, p. 420.

espaçosos e bastante agradáveis… o teto era dourado e pintado… em cima dasmesas… viam-se magníficos jarros e bacias de prata lavrada”. Beckford, 1795.“A sala, em que entrámos, surpreendeu-me pela riqueza dos moveis e pelo aceioe boa ordem em que tudo estava. O lustre e os tremós admiraram-me, pela suaantiguidade e bom gosto. Junto à sala havia diferentes quartos de dormir e umfoi posto logo á minha disposição; nada faltava nelle para os commodos da vida”.Marquês de Fronteira, 1824.

As plantas que se seguem (Figs. 11 e 12) foram elaboradas tendo em conta descri-ções do séc. XVIII que permitiram delinear como seria a compartimentação da hospe-daria nessa época.

Frei Manuel dos Santos chama a atenção para o facto de, em 1716, todas as jane-las do mosteiro darem “para dentro dos muros, tirando somente as do palácio da hos-pedaria; porem a estas e na mesma hospedaria não chegam nem entram os monges semlicensa especial”13.

Durante o terramoto de 1755, “nas suas paredes e abobedas recebeu tal ruina quese faz inhabitavel”14. Foi restaurada, mas durante a terceira Invasão Francesa, em 1811,foi incendiada, nunca tendo sido totalmente reparada até ao encerramento do mosteiro,em Outubro de 1833, época em que o edifício foi pilhado durante dias. Com a extin-ção das Ordens Religiosas, decretada em 1834, o Mosteiro de Alcobaça foi incorpo-

251

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

13 SANTOS, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, cit., p. 83.14 COSME, João e VARANDAS, José, Memórias Paroquiais, Vol. II, Caleidoscópio, Lisboa, 2010, p. 31.

Fig. 9. Localização da Hospedaria no Mosteiro

Fig. 10. Fases construtivas da Hospedaria

rado nos bens do Estado e pouco depois, em 1837, a hospedaria foi doada à CâmaraMunicipal de Alcobaça que ali instalou, na área virada a poente, serviços administra-tivos, judiciais e penais15. A zona do claustro quinhentista e da fachada norte foi ocu-pada por comércio e habitações particulares. Em 1942 o Estado retomou a posse destaparte e efectuou ali grandes obras. A hospedaria continuou, todavia, a ser utilizada pordiversos organismos oficiais, paroquiais, políticos e associativos até aos anos 90, épocaem que ficou totalmente afecta ao Estado. Hoje a área quinhentista aloja a direcção, osserviços administrativos, os serviços técnicos, as salas de apoio e as reservas do mo-numento; a maior parte da zona seiscentista encontra-se devoluta, mantendo ainda o

252

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

15 VILLA NOVA, Bernardo, Alcobaça através do Arquivo da sua Câmara Municipal (1836-1902), CâmaraMunicipal de Alcobaça, Alcobaça, 1940, p. 40.

Fig. 11. Piso térreo da Hospedaria, como seria no século XVIII segundo descrições da época

Fig. 12. Piso alto da Hospedaria, como seria no século XVIII segundo descrições da época

espírito do lugar em alguns compartimentos. A deslocação dos serviços do monumento,para a ala norte do claustro do Cardeal (do lado oposto da zona medieval), permitiriadevolver toda a hospedaria aos visitantes, disponibilizando-lhes áreas de lazer, de res-tauração e de fruição museológica.

Apontamentos sobre o corpus artístico do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça

A ideia da criação de um Museu de Alcobaça – cuja génese remonta aos finais doséculo XIX – é herdeira de um naipe de relevantes contributos16, sendo já conhecidos,em bibliografia de índole vária, quer propostas de organização para um futuro Museude Alcobaça, quer importantes estudos científicos com base nos núcleos que nele se-riam contemplados. Amplamente divulgada, esta ideia chegou mesmo a ser objecto deintenção legislativa com a publicação do Decreto-Lei n.º 433/85 de 23 de Outubro de198517 que cria o Museu de Alcobaça, estabelecendo a sua instalação na ala norte eparte da ala sul do Mosteiro18 e firmando, como desígnio maior, promover o diálogoentre o monumento e o contexto em que o mesmo se inscreve19. Visando dar cumpri-mento ao propósito enunciado, foi constituído, em 1993, um grupo de historiadores einvestigadores para trabalhar no referido projecto20. Os adquiridos desta etapa atingi-ram dimensão pública através da exposição Arte Sacra do Renascimento ao Barroconos Antigos Coutos de Alcobaça realizada em 1995, no Dormitório do Mosteiro de Al-cobaça, e cujo catálogo21 constitui uma referência para estudos com afinidade temática.

253

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

16 Neste âmbito, destacamos o artigo de S.H. LEVIE «Etablissement d’un centre culturel dans le monas-tère d’Alcobaça», datado de 1978 (disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0003/000320/032098fb.pdf), e, mais recentemente, o artigo «Museu Europeu de Cister & Hotel de Charme: a Fun-dação Reabilitação do Mosteiro de Alcobaça Museus de Arqueologia e Cerâmica de Cister, Ensino eInvestigação» de Rui Rasquilho (in Actas do IV Congreso Internacional Císter en Portugal y en Gali-cia, Tomo II, 2009, pp. 829-844) e a monografia de Maria Augusta Pablo T. Ferreira: A Cultura e aArte em Ambiente Cisterciense (Alcobaça, ACD Editores, 2011) onde é abordado o tema «Memória deum projecto inacabado», pp. 37-43.

17 Cf. Art. 1.º “É criado, na dependência técnica e administrativa do Instituto Português do PatrimónioCultural, o Museu de Alcobaça”.

18 Cf. Art. 3.º ponto 1: “…devendo futuramente vir a ocupar as restantes zonas que circundam os Claus-tros do Rachador e dos Noviços, incluídos no actual complexo arquitectónico do Mosteiro”.

19 Cf. Art. 2.º ponto 1: “São atribuições do Museu de Alcobaça fomentar e ampliar o entendimento doMosteiro de Santa Maria de Alcobaça e das suas relações históricas, artísticas, sócio-culturais e sócio-económicas com a região em que está inserido”.

20 “Associando informação inédita, proveniente de anos de investigação (…) cedo se constatou que o tra-balho desenvolvido era de uma extraordinária importância, não só para a o conhecimento da históriado Mosteiro, como para a das paróquias que integravam os seus coutos” – BARROS, Ana Mafalda Tá-vora [nota introdutória] in Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça [Catálogo de exposição], Lis-boa, IPPAR, 1995, p. 11.

21 Ver: AA.VV, Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 1995.

Posteriormente, em 1997, a ideia da criação de um Museu de Alcobaça é reconfigu-rada em favor de um confuso conceito de “monumento com núcleo museológico”22.

Cabe ressalvar que neste tópico será revisitada a questão do Museu de Alcobaça, não sepretendendo apresentar, do ponto de vista da sua génese e evolução, um estudo aturado docorpus artístico que subsiste no Mosteiro mas sim relembrar a informação contida na biblio-grafia da especialidade, usando-a para melhor servir os pressupostos que a programação mu-seológica23 enforma. Deste modo, procederemos a uma abordagem genérica focada emaspectos relacionados com o espólio existente no monumento e que contempla as seguintescategorias24: Escultura (em barro cozido, madeira e pedra); Pintura e Azulejaria25, sendo dadoespecial enfoque, embora não decorrente de nenhuma selecção de cariz qualitativo, ao so-berbo núcleo de Escultura produzido no último terço do século XVII e um dos mais signifi-cativos e originais da arte desse período temporal no que aos planos estético e técnico se refere“tornando Alcobaça um dos lugares maiores da Escultura no nosso país”26. Tal reconheci-mento tem vindo a reflectir-se na comunidade científica (plasmado em artigos, comunicações,dissertações de mestrado e teses de doutoramento) contribuindo, em larga medida, para a vi-sibilidade e valorização desse ímpar corpus artístico e, simultaneamente, para a demanda dasua tão desejada e urgente musealização. Já em 1945 o escultor Barata Feyo alertava: “Dadaa importância da escultura portuguesa do núcleo de Alcobaça, pode fazer-se do actual mos-teiro um notável museu”27. No mesmo sentido, em 1989, Dom Maur Cocheril, figura maiorda História de Cister, referia: “Na nossa descrição das esculturas dos retábulos omitimos de-liberadamente a indicação dos locais onde actualmente se encontram, visto que se trata deuma colocação provisória, até ser resolvida a sua instalação num museu condigno”28.

Uma primeira nota dirá respeito ao modo como surgiu o actual recheio artístico doMosteiro, resultado da vaga de intervenções a que o monumento foi sujeito, na década

254

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

22 Sobre este assunto ver: PEREIRA, Fernando António, «Sobre o problema da Musealização do Mosteiro de Alco-baça e da região envolvente», Casa-Museu Vieira Natividade, Pareceres, Rebate, Alcobaça, 2005, pp. 70 e 71.

23 Enquanto processo “que consiste no desenvolvimento de um conjunto de reflexões que, posteriormente,vêm a resultar em programas sectoriais específicos: institucional; de colecções; arquitectónico; de ex-posições; de difusão e comunicação; de segurança; económico; e de recursos humanos” in VALE, José,Museu de Marinha-Contributos para a Definição de um Projecto Cultural, Trabalho de Projecto apre-sentado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2009, p. 1.

24 A este propósito sugere-se a consulta do catálogo da exposição Arte Sacra nos Antigos Coutos de Al-cobaça [Catálogo de exposição], cit.

25 Estendendo-se ainda à ourivesaria (citemos a título de exemplo os cálices da segunda metade do sé-culo XII e a Cruz processional do século XV, actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga, bemcomo a Cruz-relicário e o par de galhetas de finais do século XVII/inícios do século XVIII hoje noMuseu Nacional de Soares dos Reis) e à documentação proveniente da Biblioteca e do Cartório doMosteiro, disponível na Biblioteca Nacional de Lisboa e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

26 PEREIRA, «Sobre o problema da Musealização do Mosteiro de Alcobaça e da região envolvente», cit., p. 72.27 FEYO, Barata, A Escultura de Alcobaça, Edições Ática, 1945, p. 35. 28 COCHERIL, Dom Maur, Alcobaça: Abadia Cisterciense de Portugal, Imprensa Nacional - Casa da

Moeda, 1989, p. 97.

255

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

de trinta do século XX, sob a égide da Direcção Geral dos Edifícios e MonumentosNacionais (DGEMN) e numa linha que se norteou pelo “regresso à pureza original”dos edifícios. Como consequência directa deste modus operandi, o Mosteiro de Alco-baça assistiu à desmontagem e parcial destruição ou disseminação dos seus altares egrupos escultóricos maneiristas e barrocos por várias dependências do monumento.

Iniciemos a nossa incursão pelo corpus artístico do Mosteiro com o núcleo de escul-tura em barro cozido29 ilustrando-o com duas imagens (Figs. 13 e 14) da antigaCapela-mor da igreja do Mosteiro cujo retábulo começou a ser desmontado em Julho de1930, ocorrendo, neste contexto, o apeamento das suas esculturas monumentais (Fig. 14).

Ideado pelo Cardeal D. Henrique, Abade de Alcobaça entre 1542 e 1580, o retábuloda capela-mor sofreu, ao longo dos tempos, remodelações e acrescentos. Neste sentido

29 Quer esta tipologia de escultura, quer a escultura em madeira foram estudadas pelo Professor DoutorCarlos Moura. Ver: MOURA, Carlos, A Escultura de Alcobaça e a Imaginária Monástico-Conventual(1590-1700), Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-versidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2 vols, 2006; IDEM, «A escultura nos coutos de Alcobaça do finalda Idade Média ao século XVIII», Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, cit., pp. 67-81 e pp.214-257; IDEM, «Da figuração à decoração. O percurso artístico dos mosteiros cistercienses em Portu-gal entre os séculos XVI e XVIII«, Arte del Císter en Galicia y Portugal, Fundação Calouste Gulben-kian, Fundação Pedro Barrié de La Maza, Lisboa, 1998, pp. 329-375.

Fig. 13. Capela-mor da igreja, antes de 1930

Fig. 14. Capela-mor da igreja durante aintervenção da DGEMN, década de 1930

256

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

– e tendo em vista o nosso desígnio –, sublinhamos a remodelação ocorrida em 1676no abaciado de Frei Sebastião de Sottomayor na qual se procedeu à substituição dospainéis quinhentistas (actualmente com paradeiro desconhecido) por esculturas embarro cozido em escala monumental (com cerca de 2,60 metros de altura). Esta remo-delação constituiu a intervenção mais marcante no contexto das empreitadas do retá-bulo, concedendo à composição uma intencionalidade cenográfica de notávelespectacularidade. No primeiro registo fotográfico é visível, ao centro do segundocorpo, um globo de grande dimensão, acrescentado nos finais do século XVIII, e re-matado por uma escultura em madeira policromada e estofada, representando a Virgemcom o Menino30 (com cerca de 1,72 metros de altura).

Organizada em três corpos, constavam do primeiro registo da capela-mor duas grandesesculturas, em madeira policromada e estofada, dos Patriarcas de Cister, São Bernardo e SãoBento, hoje expostas no Refeitório do monumento. Já no segundo registo, foram incorpora-das oito esculturas – imediatamente identificadas por grandes inscrições pétreas – simboli-zando importantes figuras da Igreja e da Ordem de Cister. A embelezar a cena, à entrada dacapela-mor, a meia altura dos dois primeiros pilares (ver Fig. 13), surgem as imagens da Vir-gem e do Anjo Gabriel (com cerca de 2,32 metros de altura) que vieram substituir as ima-gens medievais, colocadas após a Batalha de Aljubarrota, podendo aquelas, bem como osreferidos santos, ser admiradas na Sala do Capítulo do Mosteiro.

Aspecto digno de frisar na imagem que se segue (Fig. 16) é a perspectiva das anti-gas capelas radiais do deambulatório da igreja, através da qual podemos testemunhar

Fig. 15. Escultura de São Bernardoe dois conjuntos de ladrilhos, Sala

do Capítulo, c. 1950

30 Esta escultura encontra-se actualmente no transepto da igreja.

Fig. 16. Vista parcial da charola da igreja,antes de 1930

257

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

o revestimento em talha barroca, a par das pinturas que decoravam as suas paredes.Embora não visíveis na imagem, figuravam, nas referidas capelas, esculturas em ma-deira policromada dos séculos XVII e XVIII.

Constituem motivo de particular interesse os ladrilhos31 cerâmicos datáveis do sé-culo XIII que atapetavam o primitivo pavimento das capelas da charola da igreja e des-cobertos no contexto das obras de reintegração a cargo da DGEMN, permanecendo osrestantes conjuntos em estado de reserva32.

Apreciemos agora alguns pormenores dos referidos santos, chamando a atenção paraa força plástica e o poder que emanam destas esculturas, a par do hábil tratamento ico-nográfico evidenciado no enfatizar do pormenor (Figs. 17 e 18).

31 A este respeito consultar: SIMÕES, J. M. dos Santos, Azulejaria em Portugal nos Séculos XV e XVI, Fun-dação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª ed., 1990; BERNARDA, João da, «A arte da cerâmica no Mos-teiro e nos coutos alcobacenses», Arte Sacra nos Antigos Coutos de Alcobaça, cit., pp. 117-145 ; IDEM,A loiça de Alcobaça, Asa, Porto, 2001.

32 No deambulatório da igreja existem alguns destes exemplares in situ.

Figs. 17 e 18. São Malaquias e São Tomás (pormenores)

258

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

O terceiro corpo da capela-mor foi preenchido com oito figuras de anjos músicos(com cerca de 2,30 metros de altura) de igual matéria-prima e técnica de execução.Merece um especial apontamento o forte cunho humanizado das figuras que, aliado aum realismo comovente, provoca emoção e afecto no visitante (Figs. 19 e 20).

Dando continuidade ao percurso pelo núcleo de escultura surgem dois registos fo-tográficos onde podemos observar um conjunto de esculturas provenientes de altaresdistintos. Na primeira imagem (Fig. 21) é visível o antigo altar de São Pedro (ou doRedentor), magistral retábulo barroco. Profusamente decorado com colunas salomóni-cas, o seu interior, revestido a talha, albergava um conjunto de esculturas em barro co-zido policromado que narrava o episódio de Cristo a entregar as chaves a S. Pedro queas recebia perante o testemunho dos restantes Apóstolos. Deste grupo escultórico con-servam-se ainda onze esculturas: Cristo e dez apóstolos.

Figs. 19 e 20. Anjos (pormenores)

Fig. 21. Altar de São Pedro (ou doRedentor), antes de 1930

Fig. 22. Interior da Capela de NossaSenhora do Desterro, década de 1950

259

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

Na segunda imagem, referente ao interior da Capela de Nossa Senhora do Desterro(século XVIII) (Fig. 22), são identificáveis esculturas em madeira policromada que per-maneceram neste local até 1980, aproximadamente. Registe-se que algumas destas es-culturas, bem como pinturas do acervo pictórico do monumento, ocuparam durantelargo tempo o Dormitório e a Sacristia Manuelina, encontrando-se actualmente umaparcela exibida neste mesmo espaço. Pela sua qualidade ímpar, realçamos ainda as es-culturas de grande dimensão, em madeira policromada de Cristo Ressuscitado e deS. Miguel Arcanjo (Fig. 23), provenientes dos antigos altares quinhentistas dispostosfrente a frente nos topos do transepto da igreja e desmantelados aquando das obras dereintegração.

No tocante à escultura em pedra, dado o valor histórico-artístico que encerra, caberegistar uma escultura medieval da Virgem e a existência, no piso superior do Claus-tro D. Dinis, de alguns fragmentos pétreos: capitéis, peanhas, baldaquinos, pedras la-pidares (exemplo da inscrição do milagre dos pães), sendo ainda dignos de registar osbrasões do Mosteiro e da Congregação e a escultura da Virgem do claustro.

Fig. 23. Escultura de S. Miguel Arcanjo

260

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

Reunindo cerca de duas dezenas de peças, o acervo pictórico33 do Mosteiro contacom valiosos exemplares de pinturas das épocas maneirista e barroca, obras de nomesincontornáveis do universo da pintura portuguesa: a dupla Domingos Vieira Serrão eSimão Rodrigues, Bento Coelho da Silveira e Baltazar Gomes Figueira (Fig. 24), re-presentado este último em exposições internacionais34.

Uma pequena parte deste interessante acervo foi exibida recentemente (Fig. 25)aquando da exposição Cister e Alcobaça - Exposição Bibliográfica35, possibilitando umolhar sobre as reservas do Mosteiro, alterando temporariamente o estatuto dos objec-tos selecionados de “não visíveis” para “visíveis”.

Fig. 24. Virgem das Litanias,Baltazar Gomes Figueira,

c.1636

Fig. 25. Vista da exposição Cister e Alcobaça - Exposição Bibliográfica. Pintura Última Ceia de autor não identificado, c. 1660

e esculturas da Virgem do Calvário e de S. João Evangelista

33 “Este acervo foi, pela primeira vez, estudado pelo Professor Doutor Vítor Serrão em 1994, e sugerida a suadistribuição por núcleos: I - Pintura do ciclo maneirista; II - Outras pinturas do Século XVII; III - Pinturado Século XVIII, in FERREIRA, A Cultura e a Arte em Ambiente Cisterciense, cit., pp. 34-35. Sobre este nú-cleo pictórico merecem ainda especial destaque os artigos: «A arte da pintura entre o gótico final e o bar-roco», cit., pp. 82-113 e «Pintura maneirista e barroca na região dos Coutos de Alcobaça, 1538-1750», cit.,pp. 121-144, de Vítor Serrão.

34 A título informativo, referem-se as exposições: Pintura Portuguesa do Séc. XVII, histórias, lendas, nar-rativas no Museu Nacional de Arte Antiga em 2004; Rouge et Or no Musée Jacqemart-André em2001/2002; e Rosso e Oro no Museo Capitolino em 2002.

35 Inaugurada a 14 de Junho de 2012 na Galeria de Exposições Temporárias do Mosteiro de Alcobaça eassociada à iniciativa do Congresso Internacional Mosteiros Cistercienses, Passado, Presente, Futuro,a mostra reuniu sete esculturas em madeira e quatro pinturas do espólio do Mosteiro. Sobre as pintu-ras ver: LEAL, Lécio, [texto e entradas do catálogo], in Cister e Alcobaça – Exposição Bibliográfica[Catálogo de exposição], 2012, pp. 89-102. Na mesma referência bibliográfica cf: GIL, Cecília, «Pin-tura e Escultura do acervo do Mosteiro de Alcobaça», pp. 83-87.

261

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

Para uma proposta de um futuro museu

A génese destas notas provém de uma investigação aturada da história da hospeda-ria e do espólio que ainda hoje o monumento conserva. O objectivo prioritário consisteno enquadramento de uma nova espacialidade num argumento museológico assentenuma intervenção pautada por uma subtileza que destacará o corpus artístico.

A ligação entre a arte e a arquitectura revela-se, cada vez mais, numa permuta de co-nhecimentos e de experiências. A arquitectura deve conferir aos objectos artísticos o argu-mento cénico que lhes realçará as capacidades plásticas, sem deixar de afirmar o edifíciohistórico em toda a sua plenitude. As características e excelente qualidade do espólio artís-tico conferem à relação entre a obra de arte e a sua envolvente uma particular sensibilidade,sendo essencial promover generosas áreas de visualização das peças para que as mesmaspossam oferecer ao visitante a completa percepção da sua plasticidade.

O edifício é agregador: une as longas fachadas poente e norte do mosteiro e arti-cula três claustros, marcando a evidência de um momento temporal posterior ao me-dievo e uma continuidade histórica da vida monástica alcobacense. São várias asligações à área hoje visitável, o que permitirá uma fluidez de percursos entre ambos osespaços. A função principal da hospedaria, receber e acolher viajantes, caracterizou-acomo um espaço de convite para que ali se detivessem os visitantes. Após a extinçãodas ordens religiosas, tornou-se edifício de múltiplas valências mantendo, maioritaria-mente, um carácter público. Na proposta para a parte pública de um museu futuro, re-tomará a sua função de convite, abrindo aos novos “hóspedes” outra realidade de ummonumento que irá estabelecendo um maior dinamismo e uma maior proximidade comos seus “convidados”. Embora integrada num complexo que revela uma grande forçaarquitectónica, a entidade museal constituir-se-á num contributo para a valorização dolegado patrimonial do Monumento da Humanidade nas suas múltiplas formas e, porcontágio, da própria comunidade alcobacense.

A morfologia e a organização funcional do edifício resultam de uma sucessão deintervenções que nele foram imprimindo a marca dos arquitectos e dos utilizadores quepassaram pela sua história. Assim, a metamorfose far-se-á continuando a lógica cons-trutiva, estabelecendo simbioses entre as formas e os materiais do passado e do pre-sente. Esta continuidade será articulada com as circunstâncias legais da actualidade36.

A caracterização de uma intervenção como a que se apresenta centra-se na conser-vação e no restauro da hospedaria, de acordo com critérios estabelecidos na Carta de

36 A manutenção da estrutura existente é uma premissa incontornável deste projecto, sendo propostas al-terações muito pontuais à compartimentação. O restauro / conservação dos elementos de ordem artís-tica inseridos na arquitectura, nomeadamente, azulejos e carpintarias, tomará a primazia das opções doprojecto museológico. A adaptação à legislação actual serve, sobretudo, as normas para acessibilidadea pessoas de mobilidade reduzida, constantes do Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de Agosto.

262

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

Veneza de 196437 e que se mantêm até aos nossos dias38. Neste contexto, a proposta dereutilização do espaço para novas funções contempla, essencialmente, a sua conserva-ção e a retirada de elementos dissonantes, tendo em conta que “a conservação dos mo-numentos é favorecida pela afectação destes a uma função útil à sociedade”39 com ofito da manutenção da autenticidade do imóvel e da sua significação cultural40. Sa-lientemos que “A indústria patrimonial … representa hoje em dia, directamente ou não,uma parte crescente do orçamento e do lucro das nações. Para muitos Estados, re-giões e municipalidades, ela significa a sobrevivência e o futuro económico”41.

Neste esboço arquitectónico, conforme o programa preliminar para um futuro mu-seu, o rés-do-chão (Figs. 26 e 27) é concebido para a recepção e acolhimento aos no-vos “hóspedes”, instando-os aos percursos históricos e museológicos de uma formaquase casuística. Terá também características lúdicas, contendo uma pequena cafetariae salas de audiovisual e multimédia que promoverão uma maior abrangência e inte-ractividade entre o Mosteiro e os visitantes, acrescentando-lhe vitalismo.

Fig. 27. Rés-do-chão. Uma dasligações à área medieval, através do

Claustro da Portaria, 2012

Fig. 26. Rés-do-chão. Entrada, recepção e acolhimento ao público, 2012

37 ICOMOS, Carta de Veneza – Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos eSítios, Veneza, 1964.

38 No seu preâmbulo, a Carta de Cracóvia de 2000, reitera o espírito da Carta de Veneza, tendo em contaas recomendações internacionais e o panorama político do processo da União Europeia, numa Europade uma enorme diversidade cultural e, consequentemente, de maiores conflitos de interesses, o que ob-riga os responsáveis pela salvaguarda do património a tomarem maior atenção aos problemas e alter-nativas que surgem.

39 Carta de Veneza, art.º 5.º.40 Cf: Documento de Nara sobre Autenticidade, 1994.41 CHOAY, Françoise, A Alegoria do Património, ed. portuguesa, Edições 70, Lisboa, 2000, p. 197.

263

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

Fig. 29. Piso alto. Área de circulação(24). Verifica-se a existência de rebocosfendilhados e retirada de um lambrim

de azulejos, 2012

Fig. 28. Piso alto. Sala expositiva (17). O tecto, em laje de vigotasde cimento e abobadilhas, datado dos anos 80 do século passado,

resulta de uma má opção de intervenção no espaço, 2012

Fig. 31. Piso alto. Pormenor do tecto dazona de circulação (15). O vigamento

em madeira contrasta com umaestrutura em vigotas de cimento e

abobadilhas executada (mal) nos anos80 do século passado, 2012

Fig. 30. Piso alto. Futura Sala da Anunciação (23). Foram retiradosos rebocos e as pinturas das paredes e parte do soalho. Nota-se a

anterior existência de um lambrim de azulejos, 2012

No piso alto (ver Figs. 28 a 31), substancialmente destinado à exposição da colecção per-manente, a circulação dos públicos organizar-se-á segundo a programação museológica. É desalientar a reabertura dos acessos ao piso superior, já da Renascença, do claustro de D. Diniso qual integrará este âmbito expositivo, ficando assim com um bom acesso, pois actualmenteo ingresso faz-se, com dificuldade, por uma estreita escada de caracol, conectada ao claustronos anos 30 do século passado após terem sido desfeitos os dois acessos originais.

264

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

Na descrição sucinta dos espaços e dos seus usos que abaixo se apresenta, a nume-ração utilizada corresponde à que consta nas plantas (sem escala)42 do rés-do-chão edo primeiro andar, as quais, parcialmente, não resultam de um levantamento métricorigoroso, destinando-se sobretudo a apresentar um esboço da lógica distributiva dos es-paços e das funções, bem como dos circuitos museológicos propostos.

Planta do rés-do-chão (Fig. 32)

1 - Entrada: antiga Portaria do Mosteiro, onde se situará a bilheteira e, eventual-mente, uma pequena área de vendas. Daqui o visitante acederá ao edifício daHospedaria/Museu e também às áreas do Mosteiro hoje visitáveis43.

2 - Passadiço: manterá a sua função original como espaço de transição. 3 - Pátio do Claustro da Hospedaria: permanecerá descoberto.4 - Cafetaria: será constituída por um espaço de apoio, aproveitando um dos com-

partimentos existentes, e por uma área exterior, de esplanada, inserida na alanascente do claustro.

5 - Instalações sanitárias: existentes, objecto de recente remodelação. 6 - Passagens para a área medieval: existentes, serão acessíveis ao público.7 - Espaço audiovisual: exibirá um documentário com a duração de 10-15 minu-

tos sobre o percurso histórico do Mosteiro. 8 - Antecâmara9 - Espaço multimédia: será um espaço interactivo, onde o conhecimento respei-

tante ao Mosteiro e à colecção a expor é complementado através de tecnolo-gia em suporte digital. Conterá vários meios de comunicação (som, texto,vídeo, animação) acessíveis aos públicos em várias línguas e em braille. Aquipoderá chegar um elevador exterior (d) o qual constituirá uma hipótese de re-solução de uma imposição legal no plano das acessibilidades ao monumento44.

10 - Escada: construída nos anos 40 do século XX aquando dos “restauros” entãoefectuados; é hoje o único (e mau) acesso ao piso superior.

42 As plantas apresentadas provêm de documentação gráfica que nos foi gentilmente cedida pelo Institutode Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológio (IGESPAR).

43 Estamos convictos que esta sala tornar-se-á, naturalmente, a entrada principal para todo o monumento (no-meadamente para grupos), coexistente, todavia, com um acesso através da igreja abacial. A confluência deturistas junto à actual entrada no interior da igreja, é frequentemente foco de perturbação do ambiente desilêncio e de introspecção necessário à espiritualidade, inerente ao espaço e subjacente à sua construção.

44 Actualmente o único acesso à área visitável para pessoas com mobilidade reduzida faz-se através deuma rampa provisória, em madeira, dando acesso à sala dos monges, na fachada norte. O pequeno ele-vador, essencialmente em vidro, será uma solução digna de acessibilidade, reocupará uma parcela ín-fima da demolida portaria de baixo e resolverá condignamente uma disposição legal.

265

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

11 - Espaço de apoio: propõe-se o entaipamento da desproporcionada porta para acasa da portaria, “inventada” nos anos 40.

12 - Claustro da Portaria/acesso ao piso superior: propõe-se uma cobertura trans-parente e a instalação de um elevador (b)45. Mediante um levantamento alti-métrico e planimétrico rigoroso, será viável o estudo da possível instalação deuma escadaria neste espaço (c), a qual, para além de proporcionar um bomacesso ao piso superior, promoverá uma boa lógica de articulação com o cir-cuito museológico do primeiro andar.

13 - Sala das Conclusões: poderá ser palco de um programa polivalente, sala ex-positiva, loja do Mosteiro, para citar apenas dois exemplos.

14 - Salas de apoio logístico

45 A instalação do elevador, podendo este ter um tratamento escultórico, é fundamental para o cumpri-mento das actuais normas de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida (Dec.-Lei n.º163/2006, de 8 de Agosto).

Fig. 32. Planta do rés-do-chão

266

JOÃO OLIVA MONTEIRO, JOANA D’OLIVA MONTEIRO, SOFIA FERREIRA

Planta do primeiro andar (Fig. 33)

15 - Área de entrada/circulação: permitirá a ligação entre os espaços expositivos.Uma parede divisória sem valor patrimonial deverá ser retirada.

16 - Piso superior do Claustro de D. Dinis: será parcialmente destinado a receberexposição de maquetes que recriem as fases e os modos de construção do Mos-teiro, bem como a painéis elucidativos da vida dos seus Monges e do territó-rio dos seus Coutos.

17 - Sala expositiva: albergará as esculturas em barro cozido da capela-mor. 18 - Espaço expositivo: incluirá uma maqueta da capela-mor na época barroca e fo-

tografias.19 - Quarto da Hospedaria: reconstituição com base em descrições do século XVIII.20 - Saguão: a cobertura, colocada nos anos 80 do século passado, será retirada.21 - Capela da Hospedaria: pequena, com cúpula, poderá receber “diapositivos”,

em tamanho real, das principais peças de ourivesaria do mosteiro dispersas emcolecções estatais.

22 - Espaço a definir 23 - Sala da Anunciação: acolherá as duas peanhas e baldaquinos do século XIV e

as duas esculturas barrocas, outrora sitas à entrada da capela-mor.24 - Corredor: manterá a sua função original.25 - Sala do Apostolado: acolherá as figuras do altar de São Pedro. 26 - Área expositiva: apresentará uma parte significativa do núcleo de escultura em

madeira. A parede divisória (e), criada aquando das intervenções da DGEMNdos anos 40 do século XX e sem valor patrimonial, poderá vir a ser retirada,caso se verifique ser benéfico para a concretização da solução expositiva.

27 - Espaço de passagem: a separar da escada, com uma parede (f).28 - Área expositiva: incluirá escultura e pintura. 29 - Antecâmara 30 - Área expositiva: referente ao acervo pictórico.31 - Área expositiva: destinada a alguns fragmentos escultóricos avulsos que se en-

contram actualmente dispersos. 32 - Salas de apoio logístico33 - Instalações sanitárias: recentes. 34 - Escada: existente.

267

A HOSPEDARIA DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, UM PASSADO, UM PRESENTE, UMA PROPOSTA DE FUTURO

Fig. 33. Planta do primeiro andar

Acresce referir que a proposta aqui apresentada remete a sua execução para a plu-ridisciplinaridade, por serem múltiplas as vocações que nela se encerram. O Públicoexiste, o Espaço é perfeito, o Espólio aguarda, há demasiado tempo, pela materializa-ção de uma forma condigna de o dar-a-ver. Possa este exercício reflexivo contribuirpara a concretização deste desiderato.