A historiografia brasileira relativa à colonização. Uma nova tendência.

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1 A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA RELATIVA À COLONIZAÇÃO: UMA NOVA TENDÊNCIA Claudinei Magno Magre Mendes (UNESP/Assis) INTRODUÇÃO Para compreendermos a nova tendência da historiografia brasileira relativa ao período colonial precisamos recuar um pouco e examinar o modo como se fazia História nas décadas anteriores a 1990. Isto porque esta nova tendência foi formulada, basicamente, em oposição ao modo como então se concebia a história e, por conseguinte, se interpretava a época colonial. Caio Prado Júnior (1907-1990) e Fernando Novais (1933) encontram-se no centro deste debate. Somente a partir deste confronto e do modo como se concebia a história do Brasil desde, mais ou menos, a década de 40 até, grosso modo, a de 80, é que poderemos compreender esta nova maneira de se interpretar a época colonial que teve início entre historiadores do Rio de Janeiro, motivo pelo qual, na falta de outro nome, denominamos de Escola do Rio. É verdade que suas bases já estavam sendo formuladas desde a década de 70, mas, efetivamente, foi somente nos anos 90 que ela tomou corpo. Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a década de 60, de um modo geral, os estudos sobre a época colonial tinham entre suas características não limitar a análise a este período histórico. Antes, sua principal característica era serem estudos que buscavam compreender a história do Brasil em seu conjunto. Mais do que isto, eram interpretações cujo objetivo maior era explicar o Brasil da época dos seus autores. Em suma, entendiam que o presente era explicado pelo passado. Por conseguinte, de acordo com estes autores, era preciso fazer a análise da época colonial para se compreender o Brasil da sua época. Alguns consideravam mesmo que era necessário ir além, abarcando a própria história de Portugal. Para estes autores, era o modo como havíamos nos constituído enquanto colônia que explicava nosso presente,

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A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA RELATIVA À COLONIZAÇÃO: UMA

NOVA TENDÊNCIA

Claudinei Magno Magre Mendes (UNESP/Assis)

INTRODUÇÃO

Para compreendermos a nova tendência da historiografia brasileira

relativa ao período colonial precisamos recuar um pouco e examinar o

modo como se fazia História nas décadas anteriores a 1990. Isto porque

esta nova tendência foi formulada, basicamente, em oposição ao modo

como então se concebia a história e, por conseguinte, se interpretava a

época colonial. Caio Prado Júnior (1907-1990) e Fernando Novais (1933)

encontram-se no centro deste debate. Somente a partir deste confronto e

do modo como se concebia a história do Brasil desde, mais ou menos, a

década de 40 até, grosso modo, a de 80, é que poderemos compreender

esta nova maneira de se interpretar a época colonial que teve início entre

historiadores do Rio de Janeiro, motivo pelo qual, na falta de outro nome,

denominamos de Escola do Rio. É verdade que suas bases já estavam

sendo formuladas desde a década de 70, mas, efetivamente, foi somente

nos anos 90 que ela tomou corpo.

Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a

década de 60, de um modo geral, os estudos sobre a época colonial

tinham entre suas características não limitar a análise a este período

histórico. Antes, sua principal característica era serem estudos que

buscavam compreender a história do Brasil em seu conjunto. Mais do que

isto, eram interpretações cujo objetivo maior era explicar o Brasil da época

dos seus autores. Em suma, entendiam que o presente era explicado pelo

passado.

Por conseguinte, de acordo com estes autores, era preciso fazer a

análise da época colonial para se compreender o Brasil da sua época.

Alguns consideravam mesmo que era necessário ir além, abarcando a

própria história de Portugal. Para estes autores, era o modo como

havíamos nos constituído enquanto colônia que explicava nosso presente,

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principalmente os seus problemas. É verdade que cada um deles tinha um

entendimento particular de colônia e colonização, interpretando o período

colonial de uma determinada maneira. Mas, para todos eles, encontrava-se

neste período a chave para explicar as vicissitudes do Brasil

contemporâneo. Não é casual que seus livros tenham, geralmente, no

título, algo que indicasse isto, como Formação, Raízes, etc. É o caso de

Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior,

Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e

Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado (1920-2004).

Antes dessas obras, em 1911, Oliveira Lima (1867-1928) já havia

publicado Formação histórica da nacionalidade brasileira. Nelson

Werneck Sodré (1911-1999), por sua vez, publicou, em 1944, Formação

da sociedade brasileira e, em 1962, Formação histórica do Brasil.

Quando estes vocábulos não aparecem no título, encontram-se, ao

menos, no subtítulo. Assim, temos obras como: Casa-grande & senzala.

Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933),

de Gilberto Freyre (1907-1987) e Os donos do poder. Formação do

patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro (1925-2003).

Por fim, mesmo quando não estão no título ou subtítulo do livro,

estes vocábulos aparecem nos títulos dos capítulos. Como exemplo,

podemos citar Populações Meridionais do Brasil (1920), de Oliveira

Vianna (1883-1951). Mas, mesmo quando estes não aparecem em

nenhum destes lugares, o pressuposto é que no passado colonial se

encontra a explicação para o Brasil no presente. Dentre essas obras,

podemos citar História econômica do Brasil (1937), de Roberto

Simonsen (1889-1948).

Além dessa característica, havia outra que, de um modo geral,

singularizava estes livros: menos do que histórias, eram ensaios, que

pretendiam assinalar as características peculiares da história do Brasil e

suas tendências com relação ao futuro.

Existem diferenças marcantes entre a história e o ensaio histórico,

embora ambos tratem do processo histórico de determinado país. Mas, o

fato é que o tratam de maneiras distintas.

A história pretende narrar ou descrever um determinado processo

histórico verificado no passado baseando-se em documentos e textos.

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Pretende, em última instância, nos dizer como foi este passado. O ensaio,

por seu turno, está organizado em torno de uma tese que o autor pretende

demonstrar. Embora também se apóie em textos e documentos, não

precisa citá-los ou fazer afirmações que somente possam ser

comprovadas empiricamente. Ele é mais livre, comportando uma

interpretação mais geral dos fatos, isto é, não se detém nas

particularidades e nos episódios singulares. Assim, enquanto a história, de

maneira geral, constitui uma interpretação do passado que se funda nos

fatos e acontecimentos, o ensaio busca descrever as tendências gerais da

história. Como assinalam muitos dos autores de um ensaio busca-se nele

a linha mestra ou o fio condutor do processo histórico.

Desse modo, enquanto a história se preocupa mais com o passado,

o ensaio, ainda que se ocupe do passado, tem os olhos postos no

presente e no futuro. Na verdade, faz um enlace entre passado, presente e

futuro. Este enlace constitui, na verdade, a principal característica da

historiografia que abrange o período do século XX até, mais ou menos, a

década de 60, ou seja, são textos que abarcavam o conjunto da história do

Brasil, oferecendo uma interpretação geral dela.

Em seu livro Formação da sociedade brasileira, Sodré deixa

patente o que pretendia ao escrever um ensaio:

Escrevendo esta Formação da Sociedade Brasileira não tive

outra intenção que a de oferecer ao leitor comum, dentro das

possibilidades de um levantamento tão sumário, uma visão de

conjunto de como viveu nosso povo, até os dias que

precederam a crise de 1929 (SODRÉ, 1944, p. 5).

Ainda que Sodré tenha se detido em 1929, não formulando uma

interpretação da história do Brasil até a época da publicação do livro, nem

apontando as tarefas políticas a serem realizadas para superar os

problemas herdados do passado, uma e outras estão implícitas em sua

obra.

O ensaio, nos moldes dos relativos à história do Brasil, divide-se,

geralmente, em três partes. A primeira parte compreende o estudo da

colonização do Brasil, isto é, momento em que são lançados os

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fundamentos da história do Brasil. A maneira de caracterizar a colonização

constitui a base sobre a qual se ergue a interpretação da história do Brasil

em seu conjunto. Em outras palavras, é sua pedra de toque.

A segunda parte trata do presente, da época do autor, explicado,

fundamentalmente, pelo passado colonial. Os problemas do presente e

que deveriam ser solucionados são considerados heranças do passado,

isto é, apesar das mudanças verificadas, os problemas criados no passado

ainda persistem.

Por fim, a terceira parte trata do futuro, que se desenha a partir da

solução dos problemas do presente. É verdade que, muitas vezes, ela se

encontra subentendida. É o caso de Formação do Brasil

contemporâneo, de Caio Prado. Pelo título, percebe-se que seu objetivo

era expor como o Brasil contemporâneo, ou seja, da época em que o livro

foi publicado (1942), havia se constituído. Em função disso, estudou a

colonização e o que ela produziu ao longo de três séculos. Assinalou que,

depois, ao longo do período compreendido entre a Independência e a data

da publicação do livro, o Brasil havia se modificado. Em virtude disso,

definiu o Brasil contemporâneo dessa maneira: “O Brasil contemporâneo

se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o

século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do

centênio anterior a este e no atual” (PRADO JR., 1981, p. 10).

Para Caio Prado, a colonização se caracterizava por ser uma

produção voltada para o mercado externo. Segundo ele, esta característica

ainda predominava em sua época, estando na base dos problemas que os

brasileiros então enfrentavam. Esses problemas eram, portanto, aqueles

que derivavam da maneira como a colonização do Brasil havia se

processado, cujos caracteres ainda estavam presentes na economia

brasileira do século XX. De seu ponto de vista, a grande questão era

superar o caráter colonial da economia brasileira por meio do

estabelecimento de uma economia nacional, processo que estaria em

andamento.

Por economia nacional, Caio Prado entende uma produção voltada

para o mercado interno. O estabelecimento da economia nacional

constituía, dessa maneira, uma tendência que vinha se desenvolvendo

desde o início do século XIX, mas que somente em meados do XX se

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colocara como uma questão passível de solução. Estávamos, em sua

opinião, em meados do século XX, atravessando a última etapa da

transição da economia colonial para a economia nacional, processo que

exigia uma intervenção política para se completar. Desse modo, a

economia nacional seria o futuro do Brasil.

Devemos, antes de tudo, atentar para um fato importante. Podemos

supor que a forma como a colonização era compreendida determinava

uma explicação do presente. Entretanto, ainda que nestes ensaios a

questão apareça desta maneira, de fato, é o oposto que ocorre. Não é a

interpretação do passado que condiciona o modo de conceber o presente.

Antes, é o posicionamento político dos autores diante das questões da sua

época, portanto, do presente, que os leva a conceber o passado, em nosso

caso, a colonização, de determinada maneira. Com efeito, é a “solução”

que os historiadores davam às questões do presente que os levava a

considerar o passado de determinada maneira. Como bem observou o

historiador francês François Guizot (2008, p. 56), o passado muda com o

presente. Pretendia com isso afirmar que, de acordo com as questões do

presente, o passado é encarado de determinada maneira. É o historiador,

homem do seu tempo, com suas opções políticas, com sua visão de

mundo, que, munido de questões colocadas por sua época, se volta para o

passado e o analisa.

Duas constatações devem ser feitas. Primeiro: alterando-se as

questões do presente, surgindo outras, o modo de compreender o passado

também se altera. Segundo: cada autor, colocando-se diante das questões

do seu tempo de uma maneira determinada, considera, necessariamente,

o passado de um modo próprio, em consonância com seu posicionamento

político. Daí deriva o fato de, em uma mesma época, se verificar várias

concepções distintas do passado colonial. É que cada um dos

historiadores tem uma compreensão distinta dos problemas do presente.

Os autores do século XX até os anos 60, mais ou menos, com

ênfase nos da primeira metade dessa centúria, que elaboraram

verdadeiros ensaios, tinham em comum enfrentar uma questão

fundamental da sua época: o socialismo como uma alternativa ao

capitalismo e o marxismo como doutrina política. De forma explícita ou

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implícita, de maneira direta ou indireta, contra ou a favor, esses autores

tiveram que lhe dar uma resposta.

O ensaio, sob este aspecto, é uma forma bastante adequada para

se fazer isto. Com efeito, diante da formulação que apontava o socialismo

como o futuro da sociedade, isto é, como a forma de superação do

capitalismo, os autores, contrários a ela, precisavam defender a tese de

que a história do Brasil não caminhava em direção ao socialismo. Os

autores fizeram isso de diferentes maneiras. Mas, qualquer que ela fosse,

eles tinham que elaborar uma apreciação geral da história do Brasil,

abarcando seu passado, presente e futuro, justamente com o objetivo de

negar a tendência para o socialismo. Ou, ao menos, protelá-lo para um

futuro distante, insistindo na necessidade de se atravessar algumas etapas

intermediárias.

O principal argumento desses autores eram as particularidades da

história brasileira. Dito de outra maneira, eles afirmavam que as

formulações que serviam para a Europa não eram adequadas ao Brasil

justamente pelo fato deste possuir uma história que se diferenciava

completamente da européia. O argumento é perfeitamente válido. No

entanto, ele apenas servia para justificar uma interpretação da história que,

sob o pretexto de fundar-se nas particularidades do país, introduzir uma

visão reformista ou etapista da história. Afirmava-se, com isto, que o

socialismo era algo a que se chegaria no futuro. Mas, antes,e era preciso

percorrer algumas etapas ou proceder algumas reformas na sociedade.

Consideremos alguns exemplos.

Caio Prado Jr. já foi examinado neste livro como um autor que

elaborou um ensaio justamente com o objetivo de oferecer uma

interpretação da história brasileira que se contrapusesse à formulação de

que o socialismo constituiria o futuro do país, ao menos o futuro imediato.

Daí produzir uma interpretação da história do Brasil que postulava que o

traço distintivo do processo histórico brasileiro era a constituição de uma

economia nacional e não o estabelecimento de uma sociedade socialista.

Economia colonial/produção voltada para o mercado externo e economia

nacional/produção voltada para o mercado interno eram os dois pólos

entre os quais se moveria a história do Brasil. Como ele destacou, a

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transformação da economia colonial em economia nacional era o fio

condutor ou a linha mestra da história do Brasil.

Outro exemplo é Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. São

muitos os estudos sobre este autor e este capítulo não é o lugar para

discuti-los. Assinalaremos apenas que Freyre defendia a ideia de que as

relações entre senhores e escravos, que por suas características gerais

eram extremamente duras, haviam sido atenuadas ou abrandadas no

Brasil em função da família patriarcal e da experiência dos portugueses no

trato com populações não-brancas desde as épocas da reconquista e

expulsão dos mouros e da expansão marítima. A miscigenação teria sido

uma conseqüência disso.

Muitos autores criticaram Freyre, acusando-o de traçar um quadro

idílico da escravidão brasileira. No entanto, não perceberam que seu intuito

era bastante claro: pretendia, comparando a escravidão no Brasil e nos

EUA e mostrando que no primeiro ela era mais branda do que no segundo,

defender a tese que, entre nós, as lutas entre as raças e as classes

constituíam um elemento exótico. Assim, enquanto nos EUA, pela forma

como se verificara a escravidão, os conflitos sociais e raciais se

justificavam, no Brasil não. Dito de outro modo, com a família patriarcal, a

escravidão no Brasil não teria oposto as raças e as classes, mas, ao

contrário, aproximara-as.

Um dos autores de ensaio mais importante é Sérgio Buarque de

Holanda com seu livro Raízes do Brasil. Nele, Holanda defende a idéia de

que, com a colonização, instituições de Portugal se estabeleceram no

Brasil. O processo de urbanização do país seria, a seu ver, a revolução

que o Brasil estava atravessando no século XX e que, por conseguinte,

superaria as instituições de origem ibérica que se encontravam

estabelecidas no campo e obstaculizavam a modernização do país. A

revolução não tinha, pois, caráter socialista.

Por fim, fechando a parte relativa aos ensaios acerca da história do

Brasil, temos Celso Furtado e sua Formação Econômica do Brasil

(1982), publicada, pela primeira vez, em 1959. Como os autores anteriores

foram tratados em outros capítulos, nos deteremos com mais vagar em

Furtado, analisando sua obra, principalmente o modo como concebeu a

colonização.

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CELSO FURTADO, A INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL E A

QUESTÃO DA COLONIZAÇÃO

Na introdução da obra Formação Econômica do Brasil, Furtado

observa que pretendeu apenas fazer um esboço do processo histórico de

formação da economia brasileira com vistas a destacar os problemas

econômicos contemporâneos do Brasil (FURTADO, 1982, p. 1). Como se

pode verificar, o autor pretendia, por meio de um exame da história do

Brasil, equacionar os problemas contemporâneos e lhes oferecer uma

solução. Assinala, assim, que sua obra era um ensaio, alertando que se

tratava somente de uma análise dos processos econômicos e não uma

reconstituição dos eventos históricos que estariam por trás desses

processos (FURTADO, 1982, p. 2), ou seja, não era, propriamente, um

livro de história do Brasil.

Furtado expõe o processo de ocupação e povoamento do Brasil,

por meio da organização de uma empresa agrícola, seguindo bem de perto

as formulações de Caio Prado. É verdade que, ao longo do trabalho, sem

mencioná-las, ele critica algumas das teses deste autor. Furtado inicia com

a observação de que a ocupação econômica das terras Américas

constituiu um episódio da expansão comercial da Europa (FURTADO,

1982, p. 5). Prossegue afirmando que o início da ocupação econômica do

território brasileiro tinha sido em boa medida uma conseqüência da

pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações

européias (FURTADO, 1982, p. 6). Mas, na região que coube a Portugal

com o Tratado de Tordesilhas não se havia encontrado metais preciosos e

nem possuía qualquer produto que pudesse ser comerciado. Diante destas

circunstâncias, Portugal teve que encontrar outra forma de utilização

econômica das terras americanas que não a extração de metais preciosos.

Somente assim seria possível, segundo o autor, cobrir os gastos de defesa

dessas terras (FURTADO, 1982, p. 8).

Ainda de acordo com Furtado, das medidas políticas que então

foram tomadas resultou o início da exploração agrícola das terras

brasileiras. Assim, como ele destacou, de simples empresa espoliativa e

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extrativa, a América passou a ser “(...) parte integrante da economia

reprodutiva européia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de

forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu”

(FURTADO, 1982, p. 8). Apesar do uso de uma linguagem econômica, não

é difícil perceber que Furtado, seguindo Caio Prado, caracteriza a

produção colonial como produção para o mercado externo.

Não vamos seguir de maneira pormenorizada a análise que Furtado

faz da economia colonial. Importa aqui, para os fins que temos em vista,

destacar que ele fez uma apreciação da economia escravista indicando

que seus lucros se davam, basicamente, na diferença entre o que

exportava e o que importava. Como a renda se concentrava nas mãos dos

empresários do açúcar, ou seja, dos senhores de engenho, fica a questão

do destino da maior parte do lucro, já que, caso permanecesse nas mãos

dos proprietários de terras e escravos, estes poderiam reaplicá-lo na

produção, expandindo-a, o que não aconteceu. Para Furtado, a resposta

estaria no fato de grande parte da renda criada na colônia ter se

transferido para a metrópole.

Furtado dedica boa parte do seu estudo relativo ao período colonial

à análise da economia açucareira após a invasão e expulsão dos

holandeses do Nordeste brasileiro. Estes, de posse de conhecimentos de

todos os aspectos técnicos e organizacionais da indústria açucareira,

implantaram e desenvolveram na região do Caribe, aliados aos ingleses e

franceses, uma indústria açucareira de grande escala concorrente da

brasileira. Os produtores brasileiros perderam sua condição de quase

monopólio no fornecimento de açúcar no mercado internacional. Os preços

reduziram-se à metade e persistiram neste patamar relativamente baixo

durante todo o século XVIII (FURTADO, 1982, p. 17).

Apesar da redução dos preços do açúcar, os empresários

brasileiros fizeram o possível para manter um nível de produção

relativamente elevado. A empresa açucareira, todavia, veria sua

rentabilidade diminuir ainda mais com o surgimento da economia mineira,

que fez os preços dos escravos e demais produtos se elevar. O sistema

açucareiro entrou, então, em uma letargia secular. Todavia, ainda assim,

sua estrutura foi preservada, mantendo-se intacta. Quando novas

condições favoráveis surgiram, no começo do século XIX, a economia

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açucareira voltaria a funcionar com plena atividade (FURTADO, 1982, p.

53).

Para Furtado, o Brasil somente começa a ingressar numa nova era

com a economia cafeeira. Sua acumulação e demanda por manufaturados

teria dado início à industrialização do Brasil. A abolição da escravatura e a

utilização de mão-de-obra livre teriam contribuído para a formação de um

mercado interno, até aquele momento de pouca expressão. As

necessidades de consumo das fazendas eram, então, atendidas pelas

atividades de subsistência localizadas nelas e pela importação. Com a

mão de obra livre verifica-se uma monetarização das atividades

econômicas, dando início ao mercado interno que, aos poucos, foi sendo

atendido pela industrialização. Não vamos acompanhar sua análise desse

processo. Cabe apenas indicar que, do seu ponto de vista, a condição

primeira para se promover o desenvolvimento econômico do país seria a

intervenção do Estado. Era necessário um Estado que orientasse,

regulasse e, sobretudo, planejasse a economia.

Bielschowsky, em obra relativa ao pensamento econômico

brasileiro, assinalou algumas das linhas gerais que norteavam o

pensamento de Furtado. Entre outras coisas, destacou que seu

pensamento se pautava pela

(...) defesa da liderança do Estado na promoção do

desenvolvimento, através de investimentos em setores

estratégicos e, sobretudo, do planejamento econômico.

Furtado, assim como os demais economistas de sua linha de

pensamento, não dispensava a contribuição do capital

estrangeiro, desde que limitada a setores não estratégicos e

submetida a controles. Sua conceituação da questão tem

origem na idéia de que só através da coordenação estatal seria

possível internalizar os centros de decisão sobre os destinos da

economia brasileira e romper com as relações de submissão ao

comando tradicional dos países desenvolvidos; ou seja, só

através de decidida ação estatal seria possível a emancipação

econômica nacional (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 134).

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A origem colonial da economia brasileira, o fato de o Brasil

industrializar-se em meio a uma situação em que as grandes potências já

se encontravam em um estágio avançado do capitalismo, fez com que

Furtado afirmasse ser necessária uma teoria para promover o seu

desenvolvimento, objeto das suas reflexões e obras. Para colocá-la em

prática, havia a necessidade da intervenção do Estado. Sob certos

aspectos, esta é a tese que defende ao longo dos seus textos.

A INTERPRETAÇÃO DA COLONIZAÇÃO DE FERNANDO A. NOVAIS

Fernando A Novais (1933), autor de Portugal e Brasil na crise do

Antigo Sistema Colonial (1777-1808) (1989), tese defendida em 1973 e

publicada pela primeira vez em 1987, apresenta-se como uma espécie de

discípulo de Caio Prado que teria aprofundado sua interpretação. É

verdade que ele se vale, também, na construção de sua interpretação da

colonização, de formulações de Celso Furtado. Mas, Caio Prado seria o

autor de quem ele descenderia diretamente.

Em diversas oportunidades, Novais (1933) tratou de sua relação

com Caio Prado. Segundo ele, os limites da análise da colonização do

Brasil deste autor estariam dados pelo fato de havê-la inserido na

expansão comercial européia, considerando-a um capítulo da história do

comércio europeu (PRADO JR., 1981, p. 22). Isto o teria levado a definir a

colonização como a organização de uma produção destinada ao

abastecimento do mercado europeu. Para Novais, este seria, no entanto,

apenas o aspecto externo deste processo. De acordo com ele, a

colonização somente poderia ser apreendida em toda a sua profundidade

caso a inseríssemos em um contexto mais amplo do que a revolução

comercial por que a Europa estava passando desde, ao menos, o século

XIV. Este contexto seria a transição do feudalismo para o capitalismo. Em

texto sobre Caio Prado (2005), publicado em 2000, Novais resume sua

relação com a interpretação da colonização deste autor:

E aqui vamos nos aproximando das possíveis limitações, que

mesmo as obras mais penetrantes acabam por revelar. Se

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buscamos uma integração crítica das contribuições de Caio

Prado Jr. que assimile suas análises procurando ao mesmo

tempo avançar no conhecimento de nossa história, temos que

nos debruçar sobre esse núcleo de seu estudo, questioná-lo, e

tentar ir além. Nesse sentido, talvez se possa argüir que, no

movimento de inserção no conjunto, isto é, no esforço por

apreender a categoria básica, sua análise se deteve ao meio

do caminho. Trata-se de definir com precisão o que deve ser

inserido, e em quê; e talvez o Brasil na expansão marítima

européia seja um recorte que apanhe apenas algumas

dimensões da realidade, não levando o olhar até a linha do

horizonte; “Brasil”, é claro, não existia, senão como colônia, e é

da colônia portuguesa que trata Caio Prado Jr.: a questão é

saber se não seria preciso a consideração do conjunto do

mundo colonial. Expansão comercial européia é, na realidade,

a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do

capitalismo moderno; a questão é saber se não seria preciso

procurar as articulações da exploração colonial com esse

processo de transição feudal-capitalista. Desse modo, a

análise, embora centrada numa região, seria sempre a análise

do movimento em seu conjunto, buscando permanentemente

articular o geral e o particular. A colonização não apareceria

apenas na sua feição comercial, mas como um canal de

acumulação primitiva de capital mercantil no centro do sistema.

(...) Assim se reformularia e aprofundaria a visão de conjunto.

Contudo, insistimos, esta é uma crítica que parte da análise de

Caio Prado e a incorpora (NOVAIS, 2005, p, 288-289).

Novais expôs em diversas oportunidades sua concepção de

colonização da era moderna. Uma das primeiras exposições foi em artigo

intitulado “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial” (NOVAIS,

1969), publicado pela primeira vez em 1968. A exposição mais

desenvolvida encontra-se em Portugal e Brasil na crise do Antigo

Sistema Colonial (NOVAIS, 1989).

De acordo com Novais, as colônias não tinham por objetivo

simplesmente produzir para abastecer o mercado europeu. Este seria o

aspecto aparente do processo colonial, o único captado por Caio Prado.

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Em virtude de compreender a colonização no interior de um processo mais

amplo, o da transição do feudalismo para o capitalismo, Novais afirmou

que as colônias tiveram um papel fundamental na constituição do

capitalismo.

Para Novais, para levar adiante a transição do feudalismo ao

capitalismo foram necessários apoios externos, no caso, as colônias, que

teriam funcionado como retaguardas econômicas destinadas a promover a

acumulação primitiva do capital nas metrópoles. Assim, durante o Antigo

Regime, fase intermediária entre a desagregação do feudalismo e a

constituição do capitalismo, a burguesia comercial encontrava obstáculos

de toda ordem para manter o ritmo de expansão das atividades. Derivaria

disto, no plano econômico, a necessidade de apoios externos, as

economias coloniais, para fomentar a acumulação de capital (NOVAIS,

1989, p. 66-67). Assim, a ultrapassagem do último e decisivo passo na

instauração da ordem capitalista pressupunha uma ampla acumulação de

capital nas mãos da camada empresária e uma expansão crescente do

mercado consumidor de produtos manufaturados. Uma e outra foram

obtidas por meio do sistema colonial. Desse modo, o sentido profundo da

colonização não seria apenas, como pretendia Caio Prado, produzir para

atender as necessidades do mercado europeu. Antes, tratava-se de

elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno

(NOVAIS, 1989, p. 70).

Para promover a acumulação primitiva de capital nas metrópoles

estas contavam com o exclusivo metropolitano, ou seja, as colônias

somente poderiam comerciar com suas metrópoles. Estas possuíam o

monopólio para fazer o comércio com suas colônias, o exclusivo de

comércio. O monopólio colonial constituía-se, por conseguinte, no

mecanismo por excelência do sistema colonial, por meio do qual se

operava a transferência da riqueza produzida na colônia para a metrópole.

Assim, na medida em que as metrópoles detinham a exclusividade da

compra dos produtos coloniais, os mercadores da mãe-pátria procuravam

rebaixar o preço destes produtos ao ponto mais baixo possível, até o nível

abaixo do qual seria impossível a continuação do processo produtivo. Por

outro lado, quando se tratava da venda de produtos para as colônias, os

mercadores tendiam a vendê-los o mais caro possível (NOVAIS, 1989, p.

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91). Dessa maneira, este era o principal mecanismo por meio do qual os

mercadores das metrópoles apropriavam-se dos lucros excedentes

gerados nas economias coloniais. Verificava-se, assim, nas metrópoles,

um acúmulo de riqueza, que era uma pré-condição para constituição do

capitalismo. (NOVAIS, 1989, p. 92).

No exame do modo como Novais concebe a colonização e,

principalmente, na análise da sua relação com Caio Prado, precisamos

fazer algumas considerações. A relação entre estes dois autores, em que

Novais aparece como um discípulo que teria aprofundado a análise de

Caio Prado, inserindo a colonização em um contexto mais amplo, constitui

o modo como o primeiro se coloca nesta relação. Em outras palavras,

trata-se de uma interpretação de Novais, comumente aceita, é verdade,

pelos historiadores, mas se trata da maneira como Novais apresenta sua

relação com Caio Prado.

Resta saber se podemos considerar Caio Prado um autor que ficou

no meio do caminho na análise da colonização, apreendendo apenas seus

aspectos superficiais. Como foi visto, a interpretação da história do Brasil

de Caio Prado abarca-a em sua totalidade. A maneira como concebe a

colonização não pode ser desvinculada e, portanto, compreendida, sem

levar em conta esta totalidade. Novais separou o modo como Caio Prado

concebia a colonização da sua concepção global da história do Brasil. Em

suma, transformou Caio Prado ensaísta em Caio Prado historiador da

colonização.

A formulação de Novais não apenas prejudica a compreensão de

Caio Prado como um autor que tinha uma interpretação que abarcava o

conjunto da história do Brasil como, ao defender a idéia de que este teria

ficado a meio caminho na análise do fenômeno colonial, coloca a

necessidade de se aprofundar sua interpretação da colonização.

É preciso, portanto, distinguir as duas interpretações, tratando-as

como formulações independentes e com vida própria. Somente desta

maneira poderemos apreender a concepção de colonização de cada um

deles.

CIRO CARDOSO E A CRÍTICA À HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

15

Ciro Flamarion Santana Cardoso (1942) é um dos mais expressivos

críticos de Caio Prado e Fernando Novais. Em seus textos, critica ambos,

especialmente o primeiro, afirmando que este teria dado um peso

excessivo às relações entre metrópole e colônia, ao comércio exterior, em

detrimento da análise das estruturas internas da colônia. De acordo com

Cardoso, o fato de as colônias serem encaradas como se produzissem em

função da economia européia, a qual lhes conferia sentido, prejudicava

visivelmente a análise das estruturas internas. Em resposta à concepção

de Caio Prado, que qualificou de obcecada pela plantation monocultora e

exportadora, Cardoso ressalta a consistência interna e a relativa

autonomia estrutural das sociedades coloniais.

Antes de prosseguirmos, é preciso observar que existe um grande

problema nas críticas que são feitas a Caio Prado e Fernando Novais,

provenientes da aceitação da maneira como o segundo se colocou diante

do primeiro. Com efeito, costuma-se tratá-los como se possuíssem a

mesma formulação, o que, evidentemente, conduz a um equívoco. Como

adiantamos, é preciso separar os dois autores e fazer, a cada um deles, a

crítica apropriada. Caso contrário, comete-se o equívoco de se atribuir aos

dois autores o que pertence, de fato, a um deles apenas. É comum, por

exemplo, atribuir-se a Caio Prado a afirmação de que as colônias eram

instrumento de acumulação primitiva de capital nas metrópoles, o que é

específico de Novais. Ainda que não tenha feito afirmação desta natureza,

Cardoso é um exemplo bastante expressivo da crítica que os trata de

maneira conjunta.

Entretanto, por mais incisivas que tenham sido as críticas de

Cardoso, o fato é que, em última instância, elas não constituem uma

completa negação da interpretação de colônia de Caio Prado. Ao contrário,

ele se baseou nela em suas linhas gerais. Matizou-a, é verdade, mas não

a desconsiderou nem a negou, ou seja, não formulou uma nova

interpretação do sistema colonial que se contrapusesse à de Caio Prado.

Para comprovar-se isso, basta verificar duas de suas obras, O trabalho na

América Latina Colonial (1985) e Escravo ou camponês (1987). Na

primeira, após ter tratado da colonização na América como um processo

que ocorreu no bojo das expansões marítima e comercial européias,

16

inclusive citando Caio Prado, Cardoso define as economias coloniais

fundamentalmente como zonas periféricas e dependentes, voltadas para o

mercado mundial (1985, p. 19, 22 e 52). Na segunda, caracteriza as

colônias como “(...) bem integradas ao mercado mundial como

exportadoras de produtos primários” (1987, p. 59). Nessa maneira de ver

está mantido o fundamento da interpretação de Caio Prado, isto é, a

caracterização de colônia como produção voltada para o mercado externo.

Entretanto, ainda que não tenha feito uma crítica radical a Caio

Prado, nem formulado uma nova interpretação da colonização, rompendo

este autor, Cardoso abriu caminho para novos estudos históricos que

possibilitaram uma maneira distinta de encarar a história do Brasil. Na

verdade, sua crítica estimulou estudos que, partindo de uma perspectiva

distinta do quadro geral estabelecido por Caio Prado ou por Fernando

Novais, baseando-se em uma farta documentação, buscaram descrever o

quadro econômico e social da colônia, enfatizando as estruturas internas.

Assim, dispostos a ir além da visão de Caio Prado, que afirmava

que a sociedade brasileira era composta, essencialmente, pelos grandes

proprietários e pelos escravos e que o restante da população formava uma

massa amorfa e marginal, esta historiografia revelou que a economia

brasileira era constituída por uma gama bastante variada de produtores.

Desde os grandes aos pequenos proprietários, desde os grandes

produtores vinculados ao mercado europeu até os pequenos produtores

ligados ao mercado interno, desde os grandes proprietários de escravos

aos médios, pequenos e até mesmo aos produtores que trabalhavam eles

próprios, pois, não possuíam escravos, enfim, a existência destes revela

uma enorme rede de produção e comércio em muitas partes do Brasil.

Revelam, assim, uma sociedade e uma economia que, até então, pouco se

suspeitava da sua existência.

As críticas de Ciro Cardoso deram, portanto, ensejo a novos

autores que, partindo delas, fizeram estudos sobre o Brasil colonial,

principalmente, sobre o Rio de Janeiro de fins do século XVIII e início do

XIX. Para seus autores, em virtude das suas conclusões, determinadas

teses defendidas por Novais foram colocadas por terra. Em virtude do

espaço disponível, trataremos apenas alguns autores.

17

OS DESDOBRAMENTOS DA CRÍTICA DE CIRO CARDOSO: UMA NOVA

TENDÊNCIA HISTORIOGRÁFICA

A nova tendência historiográfica da época colonial, que partiu,

fundamentalmente, das críticas de Ciro Cardoso, pode ser dividida em dois

momentos. O primeiro se caracteriza pelo surgimento de obras que tinham

como objetivo primeiro contestar as formulações de Caio Prado e

Fernando Novais. Dentre as obras deste primeiro momento destacam-se

Homens de grossa aventura, de João Luis Fragoso, tese defendida em

1990 e publicada, em sua primeira versão, em 1991. Posteriormente, este

autor publicou uma segunda edição, revista, em 1998; Em costas negras,

de Manolo Florentino, tese defendida também em 1991 e publicada, em

sua primeira versão, em 1995. Sua edição definitiva é de 1997. Ambos

foram orientados por Ciro Cardoso. Além delas, temos o interessante

estudo de B. J. Barickman, historiador americano, Um contraponto

baiano, publicado em 2003, baseado em sua tese de doutorado defendida

em 1990.

Dentre as características marcantes deste momento da nova

tendência historiográfica temos, em primeiro lugar, o exame do que se

passava no interior da colônia, ou seja, a análise das estruturas internas da

colônia, como havia proposto Ciro Cardoso. Estes exames chegaram a

algumas conclusões, quais sejam:

1. Havia uma acumulação interna de capital, contrariando a tese de

Fernando Novais, que afirmava que, por meio do exclusivo, a maior parte

da riqueza produzida pela colônia era transferida para a metrópole.

2. A partir de determinado momento, o controle do tráfico de escravos

passou a ser feito a partir da colônia, também contrariando tese de

Fernando Novais, que afirmava que o tráfico era controlado a partir da

metrópole. Aqui cabe ressaltar que o estudo abarcava a África, o Atlântico

Sul, mas o foco era chamar a atenção para o grupo de comerciantes do

Rio de Janeiro que, em finais do século XVIII e início do XIX, controlavam

o tráfico de escravos a partir desta capitania, conseguindo, por

18

conseguinte acumular capitais que eram empregados em outras

atividades.

3. Havia um mercado interno de grande dimensão e uma rede de comércio

bastante intensa, que alcançava o sertão, o sul do Brasil e mesmo a região

do rio da Prata. O estudo de Barickman mostra que, no Recôncavo baiano,

existia um grande número de produtores que abasteciam Salvador e os

engenhos, promovendo um intenso comércio.

O segundo momento da nova tendência historiográfica caracteriza-

se pelo alargamento do campo de estudo da época colonial. As pesquisas

não se voltaram apenas para o interior da colônia, como até então fora

feito, mas procuraram compreender a economia brasileira em um contexto

mais amplo. Para tanto, dois novos conceitos foram incorporados à análise

histórica: Império português e Antigo Regime.

Com a adoção do conceito de Império português, o universo da

análise foi ampliado, compreendendo o Reino, a África, o Brasil e a Ásia.

Várias obras, coletivas, expressam este novo momento, como Nas rotas

do Império (2006), Conquistadores e negociantes (2007) e Nas tramas

da rede (2010). Mas, o livro que melhor traduz este novo momento é O

Antigo Regime nos trópicos, publicado em 2001, razão pela qual nos

deteremos nele.

Na Introdução, os organizadores deste livro explicam em que

consiste a nova perspectiva historiográfica:

Mais especificamente, seus autores discutem e analisam o

“Brasil-Colônia” enquanto parte constitutiva do império

ultramarino português. Propõem-se, ainda, a compreender a

sociedade colonial e escravista na América enquanto uma

sociedade marcada por regras econômicas, políticas e

simbólicas de Antigo Regime (FRAGOSO, BICALHO E

GOUVÊA, 2001, p. 21).

Assim, o campo de estudo não é mais nem a relação entre

Metrópole e Colônia, nem apenas o interior da Colônia, suas estruturas

internas, mas o Império português, no qual aquela relação se acha

19

compreendida. Ainda acerca do conceito de Império português, os

organizadores do livro Nas rotas do Império assim comentam seu uso:

A utilização sistemática do conceito de império, em substituição

a uma visão centrada unicamente na relação metrópole-

colônia, pode ser considerada uma das principais

transformações da historiografia brasileira nos últimos anos.

Não se trata, é claro, do simples reconhecimento da existência

de um império português, mas sim de sua incorporação efetiva

como um dos mecanismos explicativos da realidade colonial

(FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS,

2006, p. 9).

O conceito Antigo Regime, utilizado pela nova tendência

historiográfica, tem o intuito, entre outras coisas, de chamar a atenção para

o fato de que as relações que se verificavam no Império português não

constituírem simplesmente relações de natureza puramente econômica. Ao

contrário, estavam “atravessadas” pela política. O elemento político era

determinante nessa relação e a economia era subordinada a ele. Do ponto

de vista de seus autores, isto caracterizava, fundamentalmente, uma

sociedade do Antigo Regime. Na Introdução de Conquistadores e

Negociantes, intitulada “Cenas do Antigo Regime nos trópicos”, escrita

pelos seus organizadores, lemos:

Nosso interesse será analisar, inicialmente, a nobreza principal

da terra e os negociantes de grosso trato. O primeiro segmento

é entendido como o punhado de famílias que comandaram a

conquista da América para a monarquia portuguesa e, entre

outros agentes, foram os responsáveis pela organização da

base produtiva (cana-de-açúcar, pecuária, lavras de ouro etc.)

e do governo econômico da res publica. O segundo grupo

compreende especialmente os empresários da mercancia

estabelecidos na América, que combinavam a ascendência

sobre rotas que podiam se estender do Mato Grosso ao Estado

da Índia, com pretensões de hegemonia política sobre a

sociedade. Esses sujeitos estavam envolvidos em ações que

resultaram na geração de estratificações sociais e em

20

acumulações de riqueza. Mais ainda, estavam envolvidos em

um mercado que, por ser pré-industrial, não era regulado

apenas pela oferta e procura, mas que se via continuamente

influenciado por relações como as de parentesco e de matiz

político. Assim, as trajetórias dos fidalgos da terra e dos

negociantes são apenas o ponto de partida para o estudo de

outros personagens atuantes na economia da chamada

sociedade colonial (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e

CAMPOS, 2007, p. 19-20. Grifos nossos).

Para os autores da nova tendência historiográfica, o fato de se

tratar de uma sociedade de Antigo Regime significa que a economia

encontra-se a serviço da política. Em seu modo de ver, isto significa que o

papel da economia é reiterar a hierarquia social. Ainda na Introdução de O

Antigo Regime nos trópicos, seus organizadores assim explicam como

vêem a relação entre política e economia numa sociedade de Antigo

Regime:

Cabe sublinhar que tais múltiplas ligações entre as diferentes

partes submetidas à Coroa portuguesa não se esgotavam no

comércio. Na verdade, a existência de um mercado imperial foi

fundamental para a manutenção de estruturas sociais e

econômicas tão distantes – e distintas -, como a ordem

estamental e aristocrática no reino, o escravismo-colonial na

América e as sociedades africanas fundadas no tráfico de

cativos. Em suma, o Império não era tão-somente uma colcha

de retalhos comerciais; ele dava vida, em graus distintos, às

diversas sociedades que o constituíam.

Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas

pela política. Os negócios e mercados imperiais eram

submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras

coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês régias. A

expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa

portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder

privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos

rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Tais

concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e

21

de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino,

propiciando a expansão dos interesses metropolitanos,

estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos

(FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 23).

Iniciamos o capítulo chamando a atenção para o fato de que, em

sua grande maioria, os trabalhos da primeira metade do século XX sobre a

história do Brasil possuíam a forma de ensaio. Igualmente destacamos que

este formato não era gratuito, mas decorria do debate político que então se

travava e cujo centro era a questão do socialismo. Disto derivava que não

se poderia, simplesmente, procurar descrever nosso passado,

principalmente o colonial. Era preciso, igualmente, indicar que o processo

histórico brasileiro, pelas suas peculiaridades, não caminhava em direção

ao socialismo, mas para outro ponto, variando-se este em função de cada

autor.

Com o fim do socialismo e, principalmente, deixando este de se

constituir uma alternativa histórica, tornou-se desnecessário que as obras

de história tivessem o caráter de ensaio. É verdade que muitos estudiosos

lamentam que a historiografia brasileira tenha perdido esta compreensão

mais geral e abrangente da história. A historiografia, no entanto, apenas

expressa o que se passa na história. A partir de então, a historiografia

deixou de se preocupar com as questões relacionadas com o socialismo e

com o marxismo e passou a ser feita a partir de novas questões.

Evidentemente, antes mesmo da derrocada do socialismo, a historiografia

já tomava novos rumos. Isto ocorre porque, antes mesmo de 1990, o

socialismo já dava sinais de exaustão, com a perestroika, a glasnost e o

fim da Guerra Fria, apenas para citar alguns momentos decisivos.

A historiografia sofreu, a partir de então, uma mudança significativa.

Com o fim da necessidade de estudos abrangentes, compreensivos, que

abarcassem o conjunto da história; pelo fato de não existir mais a

preocupação em responder à questão do caminho que a história estava

tomando, os historiadores passaram a tratar de novas questões que, a

partir de então, se colocavam. A historiografia passou, então, a repercutir

essas novas questões e os problemas do presente.

22

Os historiadores da nova corrente historiográfica que examinamos

têm consciência de que houve uma ruptura com o caráter ensaístico. Em

um livro paradidático, intitulado A economia colonial brasileira (1998),

seus autores observam que os estudos mais contemporâneos tenderiam

“(...) a romper com a tradição ensaística da historiografia nacional”

(FRAGOSO, FLORENTINO e FARIA, 1998, p. 2). É verdade que explicam

esta nova tendência pela disseminação dos cursos de pós-graduação,

iniciada na década de 70, que teria gerado inúmeras pesquisas de base.

Todavia, a nosso ver, a explicação maior para a tendência ao

estudo do passado sem enlaçá-lo ao presente encontra-se no fato de se

tomar a sociedade vigente como o horizonte dessas pesquisas. Não existe

nem uma proposta para a sua transformação, nem uma reação a esta

proposta. Com o desaparecimento da questão da transformação da

sociedade, a forma ensaística perde sua razão de ser. A historiografia

perde o fio condutor que, até então, era o que lhe dava direção. Na

verdade, são variadas as tendências da historiografia contemporânea, mas

abordamos apenas a que interessa mais de perto os estudos coloniais,

justamente a que se propõe uma nova interpretação da época colonial.

CONCLUSÃO

Como conclusão, vamos elencar as principais características da

nova tendência historiográfica brasileira no que diz respeito aos estudos

sobre a colonização. Evidentemente, como se trata de um processo que se

encontra em curso, todo cuidado é pouco. Tendências que julgamos

marcantes podem não se manterem, ficando a meio caminho. Outras, que

ainda não são suficientemente claras, e que não percebemos, podem se

tornar vigorosas a partir de dado momento. Enfim, ao se tratar de

tendências corre-se o risco de errar. Por isso, esta é apenas uma tentativa

de captar um processo que se desdobra diante de nossos olhos.

1. Talvez a principal característica das tendências da historiografia seja o

abandono da visão de conjunto da história, em que passado, presente e

futuro estejam interligados e a adoção de uma história que busca traçar um

23

quadro de nosso passado. Aliás, seus autores insistem que sua história

superou o caráter ensaístico que marcou a historiografia brasileira durante

décadas.

2. A segunda característica é a preferência por os estudos localizados,

regionais ou setorizados, abandonando-se a prática de se tratar do Brasil

como um todo. Os estudos são circunscritos no espaço e no tempo, ainda

que afirmem tratar do Império português.

3. Aliada a esta tendência, temos o fato de que esta historiografia alia o

estudo de caso, a biografia, a situação particular, com formulações de

cunho geral. Alguns textos iniciam com uma questão particular, uma

biografia, para, em seguida, alçar para uma formulação de caráter mais

geral.

4. A quarta característica é o deslocamento da produção para o comércio.

Com efeito, nessa tendência há, visivelmente, o abandono da análise da

produção pelo comércio; da escravidão para o tráfico de escravos.

Privilegia-se a circulação dos homens e das mercadorias. Não é casual

que, nos títulos dos trabalhos encontremos, com muita freqüência, termos

como rotas, redes e tramas, por exemplo. Além destes conceitos, outros

que aparecem são circuitos e eixos mercantis, dinâmica imperial, política e

negócios, elites, acumulação [mercantil] e hierarquia.

5. A quinta característica é que se trata de análises que são feitas rentes

aos documentos, assumindo, por isso mesmo, um caráter bastante

descritivo. Há, mesmo, uma valorização dos documentos e da pesquisa

em arquivos. Trata-se de uma história baseada em farta documentação

com o intuito de contrapor-se aos ensaios, acusados de generalistas e de

serem realizados, muitas vezes, sem base em uma documentação

suficientemente ampla para fundamentar as formulações feitas.

6. Por fim, a sexta característica, uma decorrência da primeira, é a maneira

de se criticar e explicar a historiografia vigente. De um modo geral, a crítica

é antes de natureza quantitativa do que qualitativa. Assim, a análise da

24

historiografia vigente seria “insuficiente”, a nova tendência utilizaria

procedimentos metodológicos “mais eficazes” e assim por diante.

REFERÊNCIAS

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro. 4ª edição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

BARICKMAN, B.J. Um contraponto baiano. Açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARDOSO, Ciro. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

_______ O trabalho na América Latina. São Paulo: Ática, 1985.

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura. Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo & FARIA, Sheila de Castro. A economia colonial brasileira (séculos XVI-XIX). 3ª edição. São Paulo: Atual, 1998.

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs.). Nas rotas do Império: Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.

FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (orgs.). Conquistadores e Negociantes. História de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

25

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 18ª edição. São Paulo: Nacional, 1982.

GUIZOT, François. A história das origens do governo representativo na Europa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 5ª edição. São Paulo: Hucitec, 1989.

_______ O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. 2ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969.

_______ Sobre Caio Prado. In: Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. 17ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SODRÉ, Nelson Werneck. Formação da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.

FONTES E REFERENCIAIS PARA APROFUNDAMENTO TEMÁTICO

EXTRATO DE DOCUMENTOS PARA LEITURA

Tratando do livro O Antigo Regime nos trópicos, seus

organizadores fazem, na verdade, um resumo da nova tendência

historiográfica sobre a época colonial:

Ele [o livro O Antigo Regime nos trópicos] é fruto de uma

perspectiva historiográfica inovadora que vem surgindo e se

impondo em teses de doutorado e em dissertações de mestrado, e

sendo cada vez mais discutida em seminários acadêmicos e na

própria sala de aula dos institutos e departamentos de história de

nossas universidades. Dito de outra forma, os diferentes capítulos

do nosso livro buscam apresentar uma nova abordagem de antigos

26

temas de história portuguesa e colonial. Mais especificamente,

seus autores discutem e analisam o “Brasil-Colônia” enquanto parte

constitutiva do império ultramarino português. Propõem-se, ainda, a

compreender a sociedade colonial e escravista na América

enquanto uma sociedade marcada por regras econômicas, políticas

e simbólicas de Antigo Regime.

Em realidade, trata-se de propor uma nova leitura historiográfica

que não se limite a interpretar o “Brasil-Colônia” por meio de suas

relações econômicas com a Europa do mercantilismo, seja

sublinhando sua posição periférica – e com isto privilegiando os

antagonismos colonos versus metrópole – seja enfatizando o

caráter único, singular e irredutível da sociedade colonial-

escravista. Evidentemente que não trata de negar a importância

fundamental dessas abordagens para o entendimento da história

do Brasil.

O que este livro propõe de diferente é uma rediscussão – a partir

de novos parâmetros conceituais e de novas perspectivas teóricas

– de algumas teses acerca das relações econômicas e das práticas

políticas, religiosas e administrativas imperiais. Ele busca

responder a algumas questões que vêm sendo colocadas pelas

pesquisas e pela experiência docente de seus autores: como

desfazer uma interpretação fundada na irredutível dualidade

econômica entre a metrópole e a colônia? Como esquecer que, ao

lado dos – e, às vezes, simultaneamente aos – conflitos entre

colonos e Coroa, inúmeras foram as negociações que

estabeleceram e ajudaram a dar vida e estabilidade ao Império?

Como tecer um novo ponto de vista, ou um novo arcabouço teórico

e conceitual que, ao dar conta da lógica do poder no Antigo

Regime, possa explicitar práticas e instituições presentes na

sociedade colonial?

(...)

Este livro foi, portanto, concebido a partir de renovadas – porque

algumas andava esquecidas – experiências de pesquisa, e do

investimento em novas perspectivas teórico-metodológicas. Aos

poucos, a partir de nossos próprios trabalhos, começamos a sentir

27

a materialidade econômica, política e geográfica deste Império.

Descobrimos que, além de escravos da Guiné e de Benguela,

chegaram ao Brasil antigos soldados do Estado da Índia e ex-

negociantes de Angola, fixando-se na terra, tornando-se colonos.

Reconstituindo a trajetória de alguns desses homens percebemos,

de forma cada vez mais nítida, que o comércio de panos indianos

foi, por muito tempo, peça fundamental no tráfico atlântico de

escravos e no desenvolvimento das manufaturas no Reino.

Constatamos, enfim, que os negócios de tecidos provenientes de

Goa foram vitais para a produção material das relações sociais do

Brasil escravista, assim como da economia de Portugal

setecentista. Negócios que ligavam a América portuguesa, Angola

e os vários espaços geográficos que formavam o Estado da Índia.

Cabe sublinhar que tais múltiplas ligações entre as diferentes

partes submetidas à Coroa portuguesa não se esgotavam no

comércio. Na verdade, a existência de um mercado imperial foi

fundamental para a manutenção de estruturas sociais e

econômicas tão distantes – e distintas -, como a ordem estamental

e aristocrática no reino, o escravismo-colonial na América e as

sociedades africanas fundadas no tráfico de cativos. Em suma, o

Império não era tão-somente uma colcha de retalhos comerciais;

ele dava vida, em graus distintos, às diversas sociedades que o

constituíam.

Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas pela

política. Os negócios e mercados imperiais eram submetidos às

regras do Antigo Regime; leia-se, entre outras coisas, ao complexo

sistema de doações e de mercês régias. A expansão e a conquista

de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e

cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos

e grupos, dispor de novos rendimentos com base nos quais se

distribuíam pensões. Tais concessões eram o desdobramento de

uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam

desde o reino, propiciando a expansão dos interesses

metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os

colonos.

28

Apesar de todas as diferenças políticas, econômicas, sociais,

religiosas e culturais entre Malaca, Goa, Macau, Luanda e Rio de

Janeiro, as práticas e instituições disseminadas a partir do reino – e

descritas acima – acabaram resultando na formação de sociedades

reguladas pela economia e pela cultura política do Antigo Regime

português. Isto nos leva à constatação da existência de alguns

mecanismos de enriquecimento e de mobilidade social presentes

nos diferentes quadrantes do Império.

Os indivíduos que foram para o ultramar levaram consigo uma

cultura e uma experiência de vida baseadas na percepção de que o

mundo, a “ordem natural das coisas” era hierarquizado; de que as

pessoas, por suas “qualidade” naturais e sociais, ocupavam

posições distintas e desiguais na sociedade. Na América, assim

como em outras partes do Império, esta visão seria reforçada pela

idéia de conquista, pelas lutas contra o gentio e pela escravidão.

Conquistas e lutas que, feitas em nome del Rey, deveriam ser

recompensadas com mercês – títulos, ofícios e terras.

Nada mais sonhado pelos “conquistadores” – em sua maioria

homens provenientes de uma pequena fidalguia ou mesmo da

“ralé” – co que a possibilidade de alargamento de seu cabedal

material, social, político e simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo –

assim como vários outros territórios e domínios ultramarinos de

Portugal – representava para aqueles homens a possibilidade de

mudar de “qualidade”, de ingressar na nobreza da terra e, por

conseguinte, de “mandar” em outros homens – e mulheres. Neste

quadro herdado do Velho Mundo, a escravidão africana só iria

reforçar uma hierarquia social transplantada para o ultramar;

multiplicando-a, dando-lhes novas cores e novos matizes

(FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 21-24).

TRECHOS DE LEITURA PARA EXERCÍCIOS

Considerando o que foi apresentado da nova tendência

historiográfica acerca da época colonial, comente o seguinte trecho contido

29

no livro Nas rotas do Império: Eixos mercantis, tráfico e relações sociais

no mundo português:

A utilização sistemática do conceito de império, em substituição a

uma visão centrada unicamente na relação metrópole-colônia, pode

ser considerada uma das principais transformações da

historiografia brasileira nos últimos anos. Não se trata, é claro, do

simples reconhecimento da existência de um império português,

mas sim de sua incorporação efetiva como um dos mecanismos

explicativos da realidade colonial.

O próprio conceito, porém, transformou-se. Longe de ser visto

como um todo homogêneo comandado por uma poderosa

metrópole, o Império português é hoje percebido como um conjunto

heterogêneo de possessões ultramarinas, cuja relação com a

metrópole variava não só conforme as conjunturas, mas também de

acordo com os variados processos históricos que constituíram

essas mesmas possessões.

Tais transformações obrigam o pesquisador a uma apreensão mais

complexa do que foi esse “mundo português”.

Em primeiro lugar, obriga-o a rever a antiga “metrópole”, cuja

imagem tradicional de uma monarquia centralizada e absolutista

está sendo substituída pela de variadas relações entre o poder

central e os diversos poderes locais – em favor de uma percepção

do caráter corporativo do poder numa sociedade de Antigo Regime.

Em segundo lugar, o conceito de império obriga-nos a voltar nossa

atenção para as demais possessões ultramarinas que o

constituíam, sem as quais sabemos hoje não ser possível conhecer

de fato a sociedade colonial brasileira. Entram em cena aqui as

Ilhas Atlânticas, o Estado da Índia e, sobretudo, a África –

fundamental para uma sociedade escravocrata como a brasileira.

Sabe-se que quase dez milhões de africanos desembarcaram nas

Américas (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS, 2006, p.

9-10).