A HISTORIA DE POLÍCRATES DE SAMOS
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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)
M A R I A D E F á T I M A S I L V A
Universidade de Coimbra
A HISTORIA DE POLÍCRATES DE SAMOS
MAIS UM CAPÍTULO NA BIOGRAFIA DA HUMANIDADE
Reunia Polícrates, o tirano de Samos, um conjunto de condições para merecer um lugar de destaque nas Histórias de Heródoto, ao lado de Creso, Ciro, Cambises ou Xerxes. Como eles detinha poder e riqueza, governava um império sólido que ansiava por aumentar, parecia, em todos os empreendimentos que arriscava, um dilecto da fortuna. E, como eles, confiava na sorte, que julgava fiel aliada. Sem disso ter consciência, Polícrates, pelo simples facto da sua enorme prosperidade, corria o risco de desencadear a infalível inveja (cpSóvoç) divina; não fosse ainda, a acrescer a essa mesma fortuna, a ousadia de tentar sempre mais, de ceder à corrupção que o poder acarreta, dando assim, à justiça dos deuses, o pretexto de uma punição merecida. Mas, como aos seus iguais no poder deste mundo, uma lição o aguardava, à espera apenas que a roda da fortuna lhe marcasse dia e hora. E esse dia em que Polícrates compreendeu a sua cegueira e aprendeu, pelo sofrimento, as verdadeiras regras da existência humana, esse foi igualmente o dia da sua morte. Cumpria-se, uma vez mais em Samos, aquela que Heródoto anunciara, desde o prólogo da sua narrativa, como uma constatação irrefutável e universal, que determinara o historiador a passar em revista a história das cidades grandes e pequenas, sem distinção: que a felicidade humana em caso algum permanece constante (T^V áv8pcu7tr)ír]v ôv sTciCTxájaevoç eô8aiu.ovÍT)v oòSauà év TòDTCB u.évoucrav, 1. 5. 4); como se executava também, uma vez mais, a véu.ecnç divina, a que sobretudo os poderosos estão sujeitos.
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Era já proverbial entre os Gregos, ao tempo de Heródoto, a fama da prosperidade a que o tirano de Samos, no poder desde os anos trinta do séc. VI a. C , tinha guindado a sua ilha1; à riqueza, associou-se um requintado mecenatismo, que atraiu à corte artistas célebres 2, em cujo número figuram os nomes de Anacreonte e Ibico. E parece que a permanência em Samos não desiludia as expectativas daqueles que à ilha se acolhiam; assim Ibico, num dos seus poemas3, propunha esquecer os heróis troianos, e canalizar todas as suas forças para o louvor da glória imortal de Polícrates; como também Anacreonte lhe não terá negado merecidos elogios4.
Plenamente justificado, em Histórias, o episódio de Polícrates, constatamos que, nas suas linhas gerais, a textura que lhe dá forma repete uma estratégia comum a outros logoi de índole semelhante, que Immerwahr5
definiu segundo um ritmo permanente: ascensão de um chefe, expansão do seu poder até um ponto climático, queda fatal que leva à destruição ou à morte. Tal esquema, repetitivo em Heródoto, informa em conceitos de base como a efemeridade da sorte, fippiç como corrupção que o excesso de poder provoca, inveja (çGóvoç) e infalível vingança (véu.scriç) que os deuses não deixam de aplicar ao prevaricador.
Mas se o tema deste episódio encontra, em Heródoto, paralelos evidentes, de que a história de Creso é, sem dúvida, o mais flagrante, a técnica narrativa patenteia qualidades de energia e eficácia, simetria, impres-sividade e força vocabular, que deixam reconhecer, no logos de Polícrates, o dedo de artista do famoso contador de histórias que é Heródoto6.
1 Ateneu (3 a) menciona a grandeza da biblioteca de Samos; e largo é o eco das preciosidades exóticas que o tirano foi acumulando como um imenso tesouro.
2 Cf. Ateneu 540 c-e. 3 Lyra Graeca, fr. 263 Page. 4 Estrabão (638 c) confirmava que também Anacreonte não poupou versos de
elogio ao tirano de Samos. Cf. ainda, para outras referências ao tirano e à sua relação com este poeta, Heródoto 3. 121; Ateneu 540 e; Eliano, História Verdadeira 9. 4. De resto, o curso do tempo pareceu reavivar a memória, já mítica, de Polícrates: cf. Galieno, Protréptico 4, pp.3-4 Kaibel; Tzetzes 7. 203-220; Cícero, De extremis 5.(30).92; Plínio, História Natural 33. 27.
5 Form and Thought in Herodotus, The American Philological Association, Cleveland, 1966, pp. 76 sq.
6 Com toda a propriedade se poderá adequar a este logos um critério de análise vocabular semelhante àquele que, com significativos resultados, foi aplicado às histórias do Livro I por T. Long, Repetition and variation in the short stories of Herodotus, Frankfurt, 1987. É também um pouco no mesmo sentido que se orienta o recente artigo de J. Van der Veen, 'The lord of the ring. Narrative technique in Herodotus story on Polycrates' ring', Mnemosyne, 44, 1993, pp. 433-457.
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Liberta de pormenores desnecessários ou decorativos, a história de Polícrates desenvolve-se de uma forma directa, a que a escolha, particularmente hábil, da linguagem confere uma enorme força e expressividade. A introdução de um certo vocabulário restrito a cada momento da narrativa, que ganha, devido às inúmeras repetições de que é objecto, uma inegável prioridade, define os próprios momentos do episódio e salienta os aspectos prioritários ou essenciais na arquitectura das situações e no perfil psicológico dos seus intervenientes.
O percurso da existência de Polícrates, que faz dele um paradigma trágico do homem poderoso que mergulha no mais infame dos aniquilamentos, desenvolve-se, no Livro III de Histórias, em dois momentos distintos: o do apogeu (39-43) e o da queda (120-125). Internamente, esta bipartição da história faz da segunda parte a demonstração prática e concreta de tudo aquilo que, na primeira, tinha o tom da profecia. Esta mesma relação de equilíbrio natural entre os dois momentos do logos ganha uma verdadeira simetria no desenvolvimento estrutural e vocabular, que os torna, de forma visível, as duas faces de uma mesma moeda. Para maior enriquecimento deste esquema claramente articulado, quaisquer desvios de um puro paralelismo só contribuem como factores de empolamento dos dados climáticos da história.
O acesso do tirano ao poder não foi pacífico, antes se envolveu em instabilidade e violência. Da mesma forma que a dinastia mérmnade (1.8--13), de que Creso foi o último soberano, ficou marcada por um começo sangrento — provocado pela espada com que Giges, o cortesão de confiança, feriu de morte o seu senhor, Candaules — também Polícrates, para impor sobre toda a Samos a sua autoridade, não hesitou, depois de uma partilha de poder com os seus dois irmãos, Pantagnoto e Síloson, em liquidar um e reduzir ao exílio o outro dos rivais da sua autoridade (39. 2). Sem reticências ocupou um trono culpado, sem mesmo procurar obter dos deuses um sinal de assentimento. Ao avalizar outrora o direito de Giges ao trono da Lídia, Apolo remetera para o quarto descendente na linha dinástica de Sardes a expiação daquele crime (1. 13). O silêncio, que agora cobre o usurpador, não significa conivência — a justiça divina não dorme —, mas simplesmente que a Polícrates os deuses reservavam uma expiação imediata, a pagar, sem adiamentos, pelo próprio culpado.
Por outro lado, no lugar de qualquer contestação humana, Polícrates colhe as manifestações de amizade afável de um aliado poderoso, Amásis, faraó do Egipto, nascida sob os melhores auspícios, de que os presentes constantes se tornaram, de parte a parte, um expressivo penhor. "E%etv 'ter' é então o verbo que melhor define a situação: Polícrates firma o seu
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poder no domínio progressivo de toda a ilha (ea%£ Eáuov, 39. 1, SCT%£ 7tãaav Eá(^ov, 39. 2) e na consolidação de alianças (è'xcov õè ÇSIVÍTJV 'Ap.ácn., 39. 2).
O tempo de ascensão é sempre curto na narrativa de Heródoto (èv Xpóvco 5è oXiyco aÒTÍKa, 39. 3) e cobre-se de vitórias e de fama. É pelas armas que o tirano se engrandece, multiplicando-se em campanhas (arpaTeóscBai, 39. 3) que vão alargando as fronteiras de um império em constante expansão. O modo como Heródoto narra a actividade bélica do tirano de Samos torna esses anos de progresso num verdadeiro frenesim. Consciente do poder militar e naval que possuía, que tornava Samos a maior talassocracia grega depois dos tempos lendários de Minos (cf. 3. 122. 2), Polícrates vivia a rentabilizar, sem tréguas, esse potencial: sçepe ... T)ys ... Xafiòv ... ápaipfjKse ... Kpaxrjaaç siXe (39. 4), 'rapinava ... raptava ... tomava ... apropriava-se ... dominava'. Diversas na forma, mas similares no sentido, estas palavras de acção sugerem o ritmo imparável de uma marcha sem fim, que não permite um momento, ainda que breve, de reflexão ou de humanidade. É o desvario que impera.
No meio do torvelinho abre-se uma brecha para o vislumbre de um sentimento, a amizade. Como procede com os amigos este Polícrates conquistador? A resposta dá-a o próprio Polícrates adequada, prática, demolidora de qualquer barreira, por mais ténue que seja, oposta à sua sede insaciável de conquista: 'os amigos ficam mais satisfeitos se se lhes devolve o que se lhes tirou do que se nada se lhes tiver tirado' (39. 4). O que significa que amizade, aliança, põe-nas Polícrates ao serviço dos seus interesses, favorecendo-as, como no caso do Egipto, ou desconhecendo-as, de acordo com uma única preocupação verdadeira: o fortalecimento do império marítimo de Samos.
Deste Polícrates, conquistador activo e incansável, se pode dizer que era SUTD%T)ç (cf. 39. 3) 'afortunado', o mesmo epíteto com que Sólon definiu Creso, o poderoso rei da Lídia no auge da sua grandeza. EôTO%íO,,
a situação daquele a quem tudo 'acontece' dentro dos melhores auspícios, não dá direito — afirmara-o o sábio de Atenas — ao qualificativo de oXfhoç 'feliz'. O que sobretudo distingue estes dois estados é a margem de contingência que faz parte da própria natureza de Tó%T). Sólon fora bem claro (1. 32. 6-7): ' ... alguém isento de deformidades, de doenças, de desgraças, e, por outro lado, dotado de filhos e de beleza; se, para além de todas estas vantagens, tiver um bom fim de vida, é esse o homem que procuras, a quem, com justa razão, se pode chamar feliz (ôA,pioç).
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Mas antes que atinja o fim da vida, convém aguardar e evitar chamar-lhe feliz; o que ele é de facto é afortunado (evJTU%f]ç)'.
A agitação frenética que dominava Polícrates conhece um momento de pausa com a chegada à corte de Samos de uma carta enviada por Amásis. Introduz Heródoto, desta forma, um alerta ao tirano, numa perfeita simetria com a chegada de Sólon à corte de Sardes7. Cobertos de sabedoria, ambos os conselheiros trazem aos poderosos um aviso, a que Polícrates, aliás, ao contrário de Creso, não é indiferente8. Representa, por outro lado, ó' conselheiro um poderoso factor de oposição ao monarca, que muito contribui para lhe projectar, com nitidez ímpar, os traços de carácter. Todo este episódio, que marca o ponto de mudança no trajecto da vida de Polícrates, se constrói de uma forma rigorosamente simétrica, jogando com aqueles que são, à distância, os seus dois interventores. Em vez do diálogo directo, a carta serve de veículo do conselho de Amásis e, depois, de emissário da resposta de Polícrates. No intervalo das missivas situa-se o ritual do lançamento ao mar do anel, duplamente projectado como reflexo de uma tradição famosa, de que Histórias são o eco, e símbolo supremo, no contexto interno da narrativa, da inevitabilidade do destino, uma das grandes mensagens de todo o episódio.
Antes de mais, o factor que leva Amásis a tomar a iniciativa de alertar Polícrates é a sua capacidade de pensar, de sondar a realidade sob a capa das falsas aparências9. Em conformidade, pela primeira vez neste episódio, multiplicam-se os termos que abrem lugar à razão e à compreensão: OòK êXávGavs (40. 1) ..., s7U|j.eXéç (40. 1) ..., TtuvOávsaGai (40. 2) ..., èmorauévcp (40. 2), 'não lhe passou despercebido ... preocu-
7 Da mesma maneira que a cronologia relativa da actividade legislativa de Sólon e do remado de Creso exclui a historicidade desta entrevista, também a missiva de Amásis não passa de um mero artifício literário. Ambas cumprem uma função semelhante, a de trazer, à presença do poderoso, directa ou indirectamente, o aviso do destino através de uma voz autorizada.
8 Sobre a intervenção da figura do conselheiro como uma constante na história de Heródoto, cf. R. Lattimore, "The wise adviser in Herodotus', CPh 34, 1939, pp. 24-35.
Pelo tipo de actução que lhe cabe, o conselheiro torna-se um elemento equivalente aos sonhos, portentos ou oráculos em qualidade profética.
9 Cabe aqui recordar, pela propriedade com que se ajustam a Amásis, as palavras com que Hans-Peter Stahl ('Learning through suffering? Croesus' conversations in the history of Herodotus', YCIS 24, 1975, p. 7) refere a intervenção de Sólon junto de Creso: 'Sólon, embora conhecendo a inveja divina e as perturbações que provoca, não possui qualquer iluminação divina do presente ou pressentimento do futuro. As suas preocupações derivam do conhecimento empírico que tem da instabilidade comum na condição humana'.
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pava-o ... tomou conhecimento ... sabia'. Mas nem só a lucidez o distin
guia de Polícrates, Amásis tinha também um critério de amizade e lealda
de aos amigos, que não pode deixar de recordar, por oposição, a atitude
pragmática e falsa que era a de Polícrates na mesma matéria10. A conten
to com a personalidade delicada e sensitiva que Heródoto aqui atribui ao
faraó, Amásis não se manifesta, em relação aos amigos, apenas com pre
sentes, e menos ainda com a devolução cínica e opulenta daquilo que,
pela força, antes lhes houvesse confiscado. Amizade manifestava-a o egíp
cio com preocupação (èm\ieXèq, 40. 1), com o prazer de constatar-lhes a
felicidade (f)8b u.èv icuvSávsaBai avSpa cpíXov KCC! ^e ívov eò
7ipriaaovTa, 40. 2), com o desejo de partilhar com eles os anseios que
alimentava para si próprio (KCù KCOç PoóXou.ai iça! aòxòç KCù T S V
av KTj8cou.ai, 40. 2), com o conselho oportuno e bem intencionado (aó
vuv èu.01 7rsi9ójj.evoç, 40. 3).
Em todo este contexto em que, à volta de Polícrates, cresce um halo
de preocupação na pessoa de um Amásis racional e sensível, o tirano de
Samos continua a ser tão somente o eôxo%écûv u,syáXcoç (40. 1) ' o
senhor de uma grande fortuna', noXXcá §è STI nXéovóq oí eÔTuxíilç
•yivouivTjç (40. 1) 'bafejado por uma sorte que não parava de aumentar',
a i c a l \ieyaXai sín;vj%íai (40. 2) 'coberto de uma enorme prosperida
de ' , num embriagamento total e inconsciente face ao bafejo da sorte.
Nada mais consentâneo com a cegueira e a ignorância do que o próprio
sucesso.
A mensagem transmitida por Amásis condensa-se na mesma filosofia
da imprevisibilidade da existência (èvaXXát,) e da inconstância da fortu
na, para além do critério 'teleológico' de felicidade, que fora também a
essência da reflexão de Sólon em Sardes. Acima desta fragilidade estão
ainda os deuses, sempre dispostos a tudo revolucionarem se o excesso de
felicidade dos homens se lhes torna desagradável. Deste princípio existe
um eco iniludível nas palavras dos dois filósofos: é7ti<náiievóv [ie T ò
Beïov nõ.v èòv cpOovspóv TS KCù xapa%cõ5eç (1. 32. 1), dissera
Sólon; e agora Amásis reafirma: t ò Bsïov èjttcrxaiiévff) cbç è'cri <p9o-
vspóv (3. 40. 2). Falta apenas ao monarca egípcio a consciência do poder
soberano do destino; optimista perante a vida, julga Amásis poder propor
medidas de prevenção que acautelem os homens avisados contra as pena
lizações invariáveis de TV%J]. É nesse sentido que sugere a Polícrates uma
medida concreta para se antecipar a pagar ao destino o preço da sua fortu-
Cf. supra p. 58.
A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 61
na, antes que a respectiva factura lhe seja cobrada. É, em primeiro lugar,
à reflexão, à consciencialização do amigo que Amásis apela: cppovxíaaç
av supr)ç (40. 4), abrindo, na actividade até aí frenética do tirano, um
espaço até então esquecido. É necessário que Polícrates encontre, num
gesto de privação, o modo de criar a ficção do sofrimento, através da
perda irreparável de algo da sua particular estima. Palavras de privação e
sofrimento — sic' óS ànoXo\j.sv(ù u á ^ i c t a rrjv \)/vj%-f|v aXyrjoxic
(40. 4) 'com essa privação infligirás à tua alma o maior sofrimento'; a i
evJ>TVj%íai TOI TTJcri náQrjdi Ttpoo-juTtTCûai (40. 4) 'a fortuna a alternar
com o sofrimento' — insistem neste jogo infantil em que o homem procu
ra iludir e vencer o seu adversário, a própria Tú%TJ. Partida semelhante
arriscara-a Astíages, face ao prenúncio da chegada de um usurpador do
seu poder na pessoa de Ciro (1. 120); jogara-a igualmente Creso, ao tomar
medidas para impedir que sobre a cabeça de Átis desabasse a espada fatal
(1. 34). Mas fora constante o resultado de cada jogada: perdida e inútil é
a partida derradeira em que o ser humano se confronta com o destino, na
hora da sua execução.
A mensagem calou fundo a Polícrates, que a aceitou como sensata e
se decidiu de novo à acção, agora numa atitude medida e pensada de pro
cura (S§íÇT]TO, 41. 1, SiÇrjiísvoç, 41 . 1), até encontrar (sôpiaKe 4 1 . 1)
o objecto cuja perda o atingisse mais fundo na alma (èrc' &> a v
jiálxcjTa TTJV \|/vj%fjv àcTTjSeÍT], 4L 1). A própria semelhança da lingua
gem entre a sugestão da carta e a sua execução por parte de Polícrates.
revela a submissão meticulosa com que o tirano entendeu dever aceitá-la.
Para, por fim, encontrar a solução num anel pessoal (o selo que sempre
trazia consigo e que era símbolo da sua autoridade), valioso (encastoado
em ouro e ornamentado de uma bela esmeralda), raro (obra de um artista
famoso e já falecido), insubstituível. Era de facto um pouco de si próprio
que Polícrates sacrificava ao privar-se de tal objecto. Por isso quis o tira
no rodear o acto de solenidade e oferecê-lo ao testemunho do seu povo,
num rito que se revestiu de aparato teatral. Foi em pleno mar alto, sobre
um navio, cenário simbólico do seu poder, que o monarca, à vista de
todos, tirou do dedo o anel da sua autoridade para o lançar nas profunde
zas marinhas, como vítima oferecida aos deuses e ao destino u . No regres-
11 J. Labarbe, no seu artigo 'Polycrate, Amasis et Fanneau', AC 53, 1984, pp. 19sq., faz-se eco de uma hipótese, aventada por Reinach, que vê no gesto de Polfcrates um acto ritual, uma espécie de rito de casamento com o mar, próprio de uma talassocracia, para o qual encontra, ao longo da história, diversos paralelos. Esta inter-
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so, Polícrates retirou-se e, no isolamento silencioso dos seus aposentos, deu largas ao sofrimento. Pela primeira vez o tirano sofria (o-Du.(popf} èxpãxo, 41. 2), sobrepondo ao arbítrio da sorte a sua própria vontade de se submeter à dor; mas, na realidade, a tentativa montada por Polícrates de prescindir das insígnias do poder não passava de uma vaga simulação, que em nada alterou a sua condição de soberano e não pôde, portanto, travar a marcha do destino.
Por isso este lhe recusou a imolação e lhe devolveu a alegria, sob a forma de uma dádiva suave, irrecusável (5c6pov ooOrjvai, 42. 1; 8i5oóç, 42. 1), grande e bela como o exigia o destinatário (uéyav -te içai KCCXóV, 42. 1). Chegava, sob uma falsa capa de júbilo, a hora do ajuste de contas.
Ao depor nas mãos do soberano um enorme peixe que acabava de colher nas suas redes, um pescador de Samos fez-se, involuntariamente, porta-voz dessa coerência constante entre Polícrates e o que é belo e magnífico: 'mas, por o achar bem digno do teu poder, aqui to trago de presente' (42. 2). Tão simples palavras e oferta tão especial tiveram o condão de alterar de imediato o humor do soberano. E, sem hesitação, esquecendo o prudente <ppovTÍcraç 'pensa primeiro' com que Amásis procurara regrar-lhe o espontâneo optimismo, eis Polícrates entregue ao prazer (íjaGsíç, 42. 2), disposto a saudar, como honras devidas à sua grandeza, as atenções de que era alvo (sõ eTtoí-rjcraç Kal %áptç SITIA,-/], 42. 2). Aos seus olhos o palácio desanuviava-se de sombras e a alegria que o dominava
pretação foi, por Legrand (Les Belles Lettres, Paris, 1939, pp. 33sq.), repudiada em favor de uma outra leitura: 'a história maravilhosa do anel, sacrificado para prevenir a inveja dos deuses e que regressa ao proprietário dentro de um peixe que lhe é dado de presente, pode bem ser a adaptação de um conto popular, em que um anel mágico, perdido pelo seu proprietário, regressava ao seu poder de forma milagrosa, ou, na versão contrária, de um outro conto em que o proprietário de um anel maldito não conseguia desfazer-se dele'. Este conjunto de hipóteses, em que sobressai o carácter ritual e mágico do anel, torna patente, em Heródoto, a exclusão do dado maravilhoso. Sobeja, nesta versão da história, o racionalismo pragmático que transforma em sacrifício apotropaico o acto de privação do anel, que é sobretudo um objecto de estimação. Se mais algum significado se pode atribuir a este objecto é, sem dúvida, o de símbolo do poder político do seu possuidor. Tais alterações conciliam-se perfeitamente com o espírito iónico do historiador. Recorde-se a adaptação idêntica a que foi submetida a história de Giges e Candaules, face à versão do mesmo conto transmitida por Platão na República (359d--360b); um anel que possuía, na versão de Platão, o poder de conferir a quem o usasse o dom da invisibilidade, e cuja posse incentivou Giges a matar impunemente o seu soberano, conquistar a rainha e tomar o poder de Sardes, é, em Heródoto, totalmente suprimido em favor de uma nova versão dos acontecimentos, em que impera um jogo psicológico e a execução da vingança sobre o comportamento desmedido de Candaules.
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parecia contagiar-se a todos os que o rodeavam: ao pescador, galardoado
com um convite real para jantar, aos criados a quem coube 'redescobrir'
(eòpícjKouai, 42. 3) o talismã — objecto que, enquanto longe da vista
dos homens, havia de proteger o seu senhor — e que lho devolveram,
radiantes (KS%apTjKÓxsç, 42. 4). Uma vez mais é patente a semelhança
entre a reacção de Polícrates e a de Creso, num momento em que, após o
alerta lançado por Sólon, uma força divina complementa, com alguma
ambiguidade é certo, o mesmo grito de prudência: Creso recebeu, do orá
culo de Apolo, uma resposta aos seus projectos de novas conquistas que o
deixou radioso de certezas (1. 53; cf. ainda ònepi]aQr], 1. 54. 1; TT.OX.XOV
TI (a.áXiCTxa Ttávxcov r\aQr], 1. 56. 1); também Polícrates acolhe este
sinal incerto, onde pressente a mão divina, com euforia. Ou seja, o riso e
a alegria coroam ironicamente um processo de avisos, que não colheram,
junto daqueles a quem se dirigiam, o mais leve eco de compreensão.
'Veio à ideia de Polícrates que ali andava o dedo dos deuses' (42. 3),
conta Heródoto, e essa sensação levou-o a dirigir, por sua vez, uma missi
va a Amásis a narrar o resultado das suas diligências; o faraó sim, com
preendeu a situação (sunOs, 43. 1), elaborou-lhe as respectivas conse
quências e tirou dela uma conclusão, para si também: de que nada se
pode fazer para obstar ao curso do destino; a um homem como Polícrates,
a quem a sorte persistia em favorecer, mesmo contra sua vontade, só res
tava esperar um mau fim. De novo o tema do euxu%eïv e do eu xeXeo-
T8ÏV (43. 1) se cruzam neste momento, a encerrar um primeiro aro que
tem no centro o anel poderoso de Polícrates.
Quedaram-se os acontecimentos em suspenso, enquanto soava ainda
o eco destas palavras proféticas; com elas, no entanto, o senhor de Samos
registava a sua primeira perda efectiva, a amizade zelosa do faraó que lha
retirou para se poupar ao sofrimento que lhe causaria a infelicidade de um
amigo (í'va jxí] cjoyxuxírjç ... áXy-rjcjsxs xfjv \\rv%f)v, 43 . 2). 12
Subtilmente, neste final de capítulo, à eôxu%ía substitui-se a CTVJVXU%í<X,
numa vaga previsão de desgraças futuras.
12 Na versão de Heródoto é Amásis que toma a iniciativa de romper o pacto de aliança existente com Samos; Diodoro (1. 95. 3) confirma esta versão, embora a justifique de outro modo, pelo repúdio do faraó pela política tirânica de Samos. Hoje tem-se defendido mais a ideia de que a iniciativa do rompimento fosse de Polícrates, perante a ameaça persa contra o Egipto. De facto, o capítulo que se segue comprova até uma tentativa de adesão, por parte de Samos, ao inimigo poderoso em marcha contra o Egipto (3. 44).
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Seguiu-se para Polícrates uma fase de tréguas com a sua sorte, até ao
dia em que os acontecimentos vieram dar inteira razão à prudência de
Amásis. Apesar do intervalo 13 que separa as duas partes deste logos, o
processo de destruição do tirano, que deixámos como um S ò T U X ^ ç , vai
suceder-se como uma resposta, ponto por ponto, ao processo de ascensão
que colocou Polícrates no lugar de um alvo ideal para a desdita. Heródoto
acentua que não foi necessário que o soberano cometesse qualquer erro
para que a crise estalasse. Tal como fora inútil a iniciativa tomada para
travar o progresso do destino, não foi igualmente necessário accionar o
que quer que fosse para o pôr de novo em movimento. Foi 'sem dele ter
sofrido qualquer ofensa, sem ter ouvido da sua boca qualquer palavra
insolente, e até, simplesmente, sem nunca o ter visto antes' (120. 1), que
Oretes, o governador persa de Sardes, congeminou o plano de o liquidar.
Mas se nenhum sinal de inimizade para com Oretes justificava semelhante
vingança, razões havia-as, no entanto (xoirjvSe xivà O.íTIT]V, 120. 1), M
pessoais e políticas; e, como é habitual em Heródoto, a estas últimas é
dado um espaço curto de intervenção, enquanto avultam motivos pessoais
e conceptuais, ou seja, aqueles que, no contexto do episódio, obrigam o
indivíduo a cumprir um destino, cujo progresso é constante e universal.
Fora, segundo uma versão muito divulgada de que o historiador se
torna agora o eco, no decurso de uma conversa sobre valentia e notabili
dade (Ttspi àpeTríç, 120. 2) que tal projecto havia sido sugerido a
Oretes. Porque não provaria ele a sua superioridade anexando, aos domí
nios de sua jurisdição, a ilha de Samos, servindo ao mesmo tempo os seus
interesses e os do rei persa? Nem tal empresa representaria uma dificulda
de desanimadora, já que um simples homem da ilha, com um punhado de
hoplitas, aí tinha imposto o seu poder, que até então conservava. Estas
palavras, para além de incentivarem a ambição de Oretes, picaram-lhe
também o orgulho e decidiram-no a desejar arrasar por completo (Ttávxcoç
ânoXéaai, 120. 4) o reino de Polícrates. Não se tratava, porém, em todo
este processo de agressão, de uma circunstância fortuita que simplesmente
13 No Livro III sucedem-se episódios que se centram sobre a história da Pérsia, no momento em que a morte inesperada de Cambises deixa o império a braços com um problema de sucessão.
14 É muito curioso que Heródoto não inclua a razão dada por Diodoro (10. 16. 4) de que se tratava, da parte de Oretes, de uma vingança por Samos ter acolhido alguns lídios que fugiam à sua perseguição. Esta omissão deixa campo livre a uma outra justificação, muito mais expressiva dentro do sentido global da história de Polícrates.
A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 65
resultasse de uma conversa de acaso; na realidade, o destino preparava
contra o tirano uma hábil armadilha, que visava, antes de mais, o primeiro
dos seus crimes: a tomada do poder pela violência. Ao liquidar sumaria
mente a concorrência dos irmãos e ao tomar conta do poder de Samos, o
próprio Polícrates revelara ao inimigo o acesso fácil à soberania da ilha,
pelo simples exemplo de como também ele dela se assenhoreara.I5 Se esta
versão dos factos aponta para um aspecto concreto — o primeiro com
relevância no seu crescimento como homem poderoso — , de que é a
réplica e a justa reparação, a segunda versão registada por Heródoto tal
vez represente, dentro dos erros antes salientados em Polícrates, um
exemplo da inconsequência com que tratava os hóspedes e aliados. Trata-
se agora de uma simples atitude de omissão para com um embaixador
que, em nome do senhor de Sardes, dirigia ao tirano de Samos uma qual
quer solicitação. A cena descrita enquadra um tirano poderoso e adulado,
entregue ao conforto e ao capricho mecenático de uma corte faustosa,
num momento de lazer, em companhia de Anacreonte de Téos, hóspede
dilecto da ilha16. Em contraste com toda a descontracção e tranquilidade
régia, tanto mais gritante se torna o efeito da insistência num vocabulário
onde pondera xó%rj: xòv I loXuKpáxsa XVJ%SIV KaxaKeíiisvov èv
ávSpsrovi (121. 1), 'por acaso Polícrates descansava estendido nos apo
sentos masculinos do palácio'; xòv IIoXoKpáxsa xu%sïv yàp è n e a -
xpau.uévov Ttpòç xòv xot%ov (121. 2), 'Polícrates estava então, por
acaso, voltado para a parede'. Sobretudo crrjvxo%ír| (121. 2), a desgraça
temida por Amásis (cf. supra p. 63), regressa, numa manifestação evidente
de que é chegada a hora do seu cumprimento.
Ainda uma vez se impõe um paralelo com a história de Creso, no
momento em que se iniciava o cumprimento do seu destino, muito seme
lhante ao de Polícrates. Também a desgraça (crupcpopá) chega a Sardes na
pessoa de um hóspede e suplicante, Adrasto. E apesar de Creso, ao con
trário de Polícrates, ter para com o recém-chegado o comportamento aten
to e solícito de um hospedeiro zeloso, nem por isso ele deixa de ser um
embaixador de sofrimento (1. 35. 41-45). Pela indiferença ou pela solici-
15 A ironia que subjaz a esta sugestão recorda o caso, mutatis mutandis, da própria tomada de Sardes, cidade defendida pelas suas muralhas e escarpas naturais, que parecia, à primeira vista, inexpugnável. Mas a simples queda do capacete de um dos defensores, que desceu pelas ribas da cidade a apanhá-lo, patenteou ao inimigo que era falsa toda aquela aparente resistência (1. 84). Nos dois casos, são as próprias vítimas da ameaça quem, involuntariamente, ilumina ao agressor o caminho para o golpe mortal.
16 Cf. supra p. 56, a respeito da presença de Anacreonte em Samos.
66 MARIA DE FÁTIMA SILVA
tude, ambos os tiranos alimentam, na pessoa de um hóspede, uma mão
cúmplice com o destino.
De facto Oretes, decidido a liquidar Polícrates, opta por feri-lo com
as mesmas armas pelas quais se sentira atingido: será através de um novo
embaixador, que se apresenta em Samos, não a pedir, mas a oferecer van
tagens, que Oretes desafia a ambição de Polícrates e lhe prepara uma cila
da. Tal como Amásis, Oretes valeu-se da inteligência, do conhecimento
que tinha dos projectos de Polícrates (u.a9ò>v t o o rioXuKpctTeoc xòv
vóov, 122. 1; u.a9ò)v av Taõxa u.iv § iavosú(^svov , 122. 3)) no
momento em que decidiu estabelecer com ele contacto; e, naturalmente, o
mesmo vocabulário, alusivo à reflexão e ao conhecimento impõe-se de
novo no texto.
Heródoto retoma de seguida o tema da conquista e alargamento do
poder empreendido pelo talassocrata de Samos. Recorda a sua aposta
(è7isvorj9r|, 122. 2) na famosa armada de que era senhor, a projecção que
ela efectivamente lhe tinha trazido (íjp£,e xríç OaXáaarjç, 122. 2) e
levanta o véu sobre novos projectos (èXníòa,ç noXXàç s%cov, 122. 2),
que trariam, às fronteiras já largas de um império marítimo, outra dimen
são (Tcovírjç TE Kcxi vrjccov ap%eiv, 122. 2). Em perfeita simetria
com aquela ocasião em que Amásis procurara alertar Polícrates para pos
síveis perigos ameaçadores da sua grandeza, a narrativa adopta agora, no
momento em que essas vagas sombras se tornam verdadeira procela, uma
estrutura que lhe é também equivalente. Uma outra missiva é enviada a
Samos, que, por razões inversas, vai merecer do tirano uma atenção não
inferior àquela com que ponderara as recomendações do faraó. Mas, pela
própria iminência da fatalidade, a decisão é agora mais dilatada: Polícrates
informa-se da sua viabilidade, escuta, para os recusar, os brados de pru
dência, múltiplos, que lhe são dirigidos. Depois, executa o seu plano, já
não um ritual apotropaico e meramente simbólico, mas o sacrifício autên
tico que lhe é infligido na carne. Por fim, à missiva de Oretes responde,
desta vez, o silêncio de Polícrates, numa assimetria final por demais
expressiva.
Tal como o aviso de Amásis, a mensagem da tentação chega numa
missiva, enviada por Oretes, que é da anterior um eco sugestivo.
Preparam-nos para essa similitude as simples fórmulas de abertura, que se
repetem: 'OpoÍTTjç r i o ^ u K p a x s i œSs ^ é y s i (122. 3) / "Ajraaiç
r io^uKpaxei tí>§8 Xéyei (40. 1). Mas se a repetição não é aqui parti
cularmente significativa, dado o carácter formular do texto, o mesmo se
não pode dizer das palavras seguintes, onde Amásis se congratulava por
saber da prosperidade de um amigo ou de um hóspede, embora se preo-
A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 67
cupasse com a sua excessiva fortuna: fj§b (lev TtuvOávecrGai a v S p a
q>{\ov Kal Çsivov su Ttpi iaaovxa, su.ol Sè a í a a i p s y á A a i
sòxo%íai OôK ápéciKooCTi (40. 2). Neste ponto a confluência é flagran
te: 7tuv0ávou.cu STtiPouXsúeiv CTS 7tpr)Ynacn psyáA,oiCTi Kal
%prju.axa TOI OòK e iva i Kaxà xà (ppovfjpaxa (122. 3). Retira Oretes
das suas palavras as afirmações de amizade ou dedicação que davam à
missiva do faraó uma outra tonalidade, apesar de, em geral, as referências
à prosperidade e aos sonhos de grandeza serem as mesmas; poupa, pelo
menos, à sua vítima esse acréscimo de ironia; não lhe elogia a prosperida
de adquirida; fixa-se sobretudo no futuro, nos projectos megalómanos de
Polícrates e propõe-se, não contrariá-los, antes alimentá-los e patrociná-los
activamente. Xprju«xa, a alusão directa ao dinheiro, soa em todo o con
texto como uma nota viva e agressiva: fora um pequeno pedido de dinhei
ro (cf. 122. 1, xprjuaxoç SeTjaópsvov), tratado por Polícrates com indi
ferença, que despoletara, segundo alguns, a sede de vingança em Oretes;
mas esta oferta de apoio financeiro para facilitar novas conquistas de um
poderoso senhor projecta a desmesura dos planos, já mesmo além das
enormes riquezas do próspero tirano de Samos.
Como outrora Amásis, também Oretes avança com uma proposta
concreta, cujo objectivo define com clareza. Dissera o faraó: CTú VUV
êu.ol TtsiGó^evoç TIOíTJCTOV Ttpòç xàç s£)xu%íaç xo iáSs (40. 3),
'aceita o meu conselho e, contra a tua constante prosperidade, faz o
seguinte'; de igual forma, Oretes sugere agora: cró vuv còSe Ttoirjcraç
ôpOaxreiç fièv CTsmuxóv, CTCDCTSIç § S Kal èjj,é (122. 3), 'se agires
assim, projectas a tua pessoa e salvas-me a mim também'. Ambos incenti
vam Polícrates à acção, mas em direcções opostas: Amásis propõe-lhe
uma estratégia para travar uma prosperidade perigosa, Oretes uma outra
para o impulsionar à aquisição de vantagens, de que o próprio se deseja
também beneficiário. Esta margem de egoísmo e hipocrisia que se vai
infiltrando, preenche o espaço dedicado, no texto de Amásis, à amizade e
ao desinteresse afectuoso.
A mentira acrescenta ao quadro uma pincelada final; insiste-se em
afirmações de clareza e transparência, de lealdade e lisura, para que mais
convincente se torne a trama de falsidade que com elas se deseja encobrir.
Fala Oretes de um projecto de assassínio (éTxiPoiAeúsi Gávaxov, 122.
3), claramente anunciado (è£,ayys^Xsxai CTacprjvécoç); e, nesta informa
ção, todos os dados estão correctos, menos a clareza com que o facto é
divulgado; na realidade, a versão que Oretes transmite altera apenas os
intervenientes no crime anunciado, assumindo-se ele próprio como vítima
de um carrasco, que, na ficção, é encarnado por Cambises. A esta falsa
68 MARIA DE FÁTIMA SILVA
clareza, segue-se uma falsa comprovação de lealdade: quaisquer dúvidas que o tirano de Samos possa alimentar quanto ao projecto proposto (eí Sé um âîciorésiç, 122. 4) podem ser totalmente sanadas por um emissário da confiança de Polícrates (ócrxiç Tticrxóxaxoc, xuy%ávei scov, 122. 4), numa visita a Sardes; a intervenção de um mensageiro, preparada como uma garantia de confiança, para afinal se tornar um colaborador involuntário numa cilada, ganha, no actual esquema de vingança, particular significado dados os antecedentes da questão. No centro da trama está o dinheiro (%pr)p.axa, cf. 122. 3-4), constantemente a vibrar aos ouvidos de Polícrates, dinheiro que lhe aumentará o património (xà p.èv aòxcov aòxòç s'xs, 122. 3), dinheiro que lhe trará mais poder, mesmo para além dos seus projectos mais ambiciosos (eívetcév xs %pr]u.áxa)v âp^siç ãnáar]q xTJç ' E ^ á S o ç , 122. 4), dinheiro que Oretes deseja mostrar-lhe (xcp éycb àiio8é^cû, 122. 4) através dos olhos de um seu representante, para que o sinta como a presença palpável de tantos sonhos de grandeza.
Como poderia o Polícrates ambicioso que conhecemos reagir a esta mensagem sedutora, senão com voracidade e esfuziante alegria (f^aGr), 123. 1)? Como aos seus pares, atraía-o, por um lado, o hábito do sucesso, que estimula o ser humano à aventura e ao perigo; por outro, não podia deixar de sentir que a renovação e ampliação do seu reino se tornaria um factor de segurança e estabilidade para o trono que ocupava. Eis Polícrates encravado num ciclo vicioso, em que o sucesso pede risco e o risco bem sucedido fortalece o sucesso. De facto, Oretes tinha-lhe atingido o ponto fraco e feito fervilhar a sua paixão desmedida, excessiva — e, como tal, perigosa — pelo poder do dinheiro (iu.eípexo yàp %prju.axœv Li6yáÀ,coç, 123. 1). Por isso, de sorriso nos lábios, tomado de doce ilusão, Polícrates propôs-se conspirar com as traições da sorte.
À mesma inconsciência, por instinto confiante, de Polícrates, continuou Oretes a opor uma esperteza mal intencionada: ao saber (uaBcòv, 123. 2) da vinda próxima de um inspector, o senhor de Sardes tudo preparou cuidadosamente para o tornar um agente activo, ainda que involuntário, no logro 17. O inspector de confiança chegou, examinou atentamente (9erjcyáu.evoç, 123. 3) a evidência que lhe foi oferecida e fez o seu relato a Polícrates. Não se deu, porém, conta de que, por baixo de uma fina camada de oiro, uma
17 Tal como no logos de Ciro foram apresentadas aos inspectores enviados por Hárpago provas convincentes da morte da criança abandonada nas montanhas, tanto mais óbvias quanto se procurava, através delas, iludir uma verdade diferente, também aqui Oretes prepara um espectáculo tanto mais convincente, quanto ilusório.
A HISTORIA DE POLICRATES DE SAMOS 69
mera aparência de fortuna, os tesouros arrecadados em cofres por Oretes
não passavam, na realidade, de uma imensa pilha de pedras.
As últimas dúvidas do monarca de Samos desvaneceram-se; aos
olhos da sua imaginação ofereciam-se tesouros e vitórias sem conta.
A todos os que procuraram, com insistência, dissuadi-lo — adivinhos,
amigos (124. 1) — se mostrou surdo e indiferente. Por intermédio da
filha, chegou-lhe, sob a forma de uma visão nocturna, a imagem da des
graça iminente: 'parecia-lhe ver o pai, nas alturas do firmamento, a ser
banhado por Zeus e oleado pelo sol' (124. 1)18. Também Creso recebeu,
por um sonho, no momento da derrocada, um último aviso, que quis, mas
não pôde, acautelar. Polícrates nem mesmo prestou atenção às advertên
cias que a filha, com insistência, lhe repetia; foi, então, sob funestos aus
pícios (s7ie(pr)|j.íÇeTO, 124. 2) que partiu num navio, já não para executar
um ritual profiláctico, mas, agora sim, em busca do verdadeiro sofrimen
to; pôde ainda, no derradeiro momento, corresponder às palavras de dedi
cação e amizade, com que a filha o alertava, com uma última ameaça,
como tantas vezes fazia àqueles que lhe eram fiéis e devotados. Com a
presença da filha abre-se, no mundo de Polícrates, quase exclusivamente
público, um acesso ao plano familiar. Na intimidade, o monarca persiste
na mesma atitude: cruel, na forma apressada como afasta, com uma sim
ples palavra de ameaça gratuita, aqueles que apenas queriam a sua felici
dade. Este é mais um aspecto em que Creso se encontra, em relação ao
tirano de Samos, em clara vantagem, apesar das muitas confluências que
se podem pressentir entre os dois monarcas. O espaço dado, na história do
rei da Lídia, ao mundo privado é maior; e nele, Creso evidencia uma certa
compreensão humana, nomeadamente para com Adrasto, uma preocupa
ção séria para com aquele que considera o seu herdeiro, Átis, uma atenção
a que não falta liberalidade, quando este se opõe a uma decisão que o pai
havia tomado.
18 Já foi notado (apud A. Corcella, Erodoto e Y analogia, Palermo, 1984, p. 157) que, em Heródoto, 'os sonhos constituem o sinal da crise iminente, o anúncio implícito ou explícito do fim, ou de um episódio significativo que tem o valor de um golpe da fortuna para uma personagem poderosa e o início da ascensão do seu sucessor'. Os exemplos multiplicam-se: o sonho de Creso que anuncia a morte de Átis; os sonhos de Astíages que lhe prevêm a ascensão de Ciro ao poder; o de Ciro, no momento de atacar os Massagetas, que lhe fala da futura subida ao trono da Pérsia de Dário; o sonho em que Cambises toma conhecimento do acesso de Esmérdis ao poder de Susa; e, finalmente, os sonhos de Xerxes durante a preparação da campanha contra a Grécia.
70 MARIA DE FÁTIMA SILVA
Com uma última constatação desta surdez teimosa e insolente,
Heródoto lança Polícrates no desastre, que ocorre rápido, sem perdas de
tempo, fulminante: 'chegado à Magnesia, Polícrates teve uma morte terrí
vel (SieçBápr] KCIKCDç), de modo algum digna dele ( O U T S èauxoõ
á^ícoç), nem dos seus projectos (ouxe èauxoõ (ppovr}u,áx<Bv, 125. 2).
Uma última referência à dignidade e magnificência deste tirano, um gran
de entre os grandes, apenas consegue agora tornar mais agudas as circuns
tâncias que envolveram a sua morte. Morte que, pelo horror de que se
rodeou, nem sequer pareceu digna de ser relatada por palavras (áE,ícoç
àTtTjy/]aioç, 125. 3). Já cadáver, Polícrates foi crucificado e, lá no alto,
cumpriu por completo a visão do sonho de que a filha tinha sido a emis
sária: 'era lavado por Zeus quando chovia e oleado pelo sol, que lhe
extraía das carnes as últimas seivas' (125. 4).
Uma fórmula de remate cerra o grande círculo que é a história de
Polícrates: 'eis como terminou a enorme prosperidade de Polícrates, como
lhe tinha predito Amásis, faraó do Egipto' (125. 4). IToÀAal eôxvj%íai
sç XOVJXO éx6À.8ÓxrjCTav: a grandeza da vida e a qualidade da morte, na
sua eterna relação de incerteza, fizeram mais uma vítima predilecta entre
os poderosos deste mundo. Previra-o um egípcio, aqui mais douto do que
o grego Polícrates, senhor de Samos. Executara-o o destino de modo
metódico, eficiente, inabalável. Com ele colaborara Polícrates, que, na sua
vida, somara a uma permanente actividade de conquista, actos de cruelda
de, sempre em nome de uma insaciável sede de poder, que é, por nature
za, a vertigem fascinante do abismo.
Feita de história e de ficção, de tradição popular e de conceitos de
uma filosofia de vida que Heródoto partilhou com a Grécia do seu tempo
— em particular com a tragédia de Esquilo e de Sófocles —, a história de
Polícrates está muito além de ser o relato frio e rigoroso de factos concre
tos. Acima de tudo ela é um símbolo das forças constantes que impulsio
nam a existência humana, das grandes leis universais que ditam, invaria
velmente, os diversos capítulos da biografia da humanidade.