A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social

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Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014 * Psicólogo da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF) do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG). Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Texto elaborado a par- tir de palestra proferida no Seminário de abertura do Curso de Atualização “Psicanálise e Laço Social: Violência e Criminalidade”, do Departamento de Psicologia da UFMG. E-mail: [email protected] A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social The ethics of contingency and the implication of the psychoanalysis in the social tie Fábio Santos Bispo * Resumo Este artigo relaciona a lógica da ética da psicanálise, a partir da noção de contingência, com sua implicação no laço social. Levantamos questões relativas às possibilidades de uma orientação lacaniana da prática do psicanalista nos espaços sociais, tendo em vista a sustentação de uma experiência ética, para além de uma simples aplicação técnica de um saber esclarecido. A noção de implicação evocada no lugar da noção de aplicação indica a vertente lógica que o discurso da psicanálise formaliza para demarcar a possibilidade de provocar efeitos nos outros discursos com os quais se relaciona. Justamente por ser impossível obter garantias antecipadas a respeito da prática, a orientação do analista a partir de uma lógica da contingência torna-se uma condição fundamental para que uma ética que leve em conta a singularidade do desejo seja sustentada nos espaços coletivos. Abrem-se assim possibilidades pontuais de subversão da lógica de dominação inerente ao laço social. Palavras-chave: ética; contingência; laço social; psicanálise aplicada. Abstract This article relates the logic of psychoanalysis ethics from the contingency notion with its implication in the social tie. Questions are raised regarding the possibilities of analytical Lacanian orientation in the practice of the psycho- analyst in social spaces, aiming at sustaining an ethical experience beyond a

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Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

* Psicólogo da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF) do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG). Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Texto elaborado a par-tir de palestra proferida no Seminário de abertura do Curso de Atualização “Psicanálise e Laço Social: Violência e Criminalidade”, do Departamento de Psicologia da UFMG. E-mail: [email protected]

A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social

The ethics of contingency and the implication of the psychoanalysis in the social tie

Fábio Santos Bispo*

Resumo

Este artigo relaciona a lógica da ética da psicanálise, a partir da noção de contingência, com sua implicação no laço social. Levantamos questões relativas às possibilidades de uma orientação lacaniana da prática do psicanalista nos espaços sociais, tendo em vista a sustentação de uma experiência ética, para além de uma simples aplicação técnica de um saber esclarecido. A noção de implicação evocada no lugar da noção de aplicação indica a vertente lógica que o discurso da psicanálise formaliza para demarcar a possibilidade de provocar efeitos nos outros discursos com os quais se relaciona. Justamente por ser impossível obter garantias antecipadas a respeito da prática, a orientação do analista a partir de uma lógica da contingência torna-se uma condição fundamental para que uma ética que leve em conta a singularidade do desejo seja sustentada nos espaços coletivos. Abrem-se assim possibilidades pontuais de subversão da lógica de dominação inerente ao laço social.

Palavras-chave: ética; contingência; laço social; psicanálise aplicada.

Abstract

This article relates the logic of psychoanalysis ethics from the contingency notion with its implication in the social tie. Questions are raised regarding the possibilities of analytical Lacanian orientation in the practice of the psycho-analyst in social spaces, aiming at sustaining an ethical experience beyond a

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simple technical application of a clarified knowledge. The notion of implication evoked in place of the notion of application indicates the logical aspect that the psychoanalysis discourse formalizes to state the possibility of causing effects in other discourses with which it interacts. Precisely because it is impossible to obtain anticipated guarantees regarding the practice, the analyst’s orien-tation, from a logic of contingency, becomes a fundamental condition, so that an ethics that takes into account the singularity of the desire be sustained in the communal spaces. Thus, unique possibilities of subversion of the logic of domination intrinsic to the social tie are open.

Keywords: ethics; contingency; social tie; applied psychoanalysis.

INTRODUÇÃO

Podemos iniciar por uma questão central para as discussões a

respeito da prática efetiva da psicanálise na cidade, a saber, a questão de

sua aplicação. Por que falar de implicação da psicanálise no laço social em

vez de aplicação ou de psicanálise aplicada?

Miller (2011), que a princípio forjara essa noção de psicanálise apli-

cada à terapêutica, vem recentemente criticar a noção de aplicação, a partir

do que considerou como uma “rendição” da psicanálise aos impasses da

civilização e, o que é pior, pelo “preconceito terapêutico” que viria reduzir

a psicanálise ao “exercício profissional de psicanalistas confundidos com os

psis e os trabalhadores sociais” (p. 14). De fato, Lacan (1967/2003) provoca

uma reviravolta na psicanálise ao colocar o seu efeito terapêutico como um

objetivo secundário, elevando a experiência de passagem do psicanalisante

a psicanalista, a análise didática, ao estatuto de “psicanálise pura”. É ao

isolá-la da terapêutica que Lacan visa constituir a psicanálise como uma

“experiência original” (p. 251). A aplicação da psicanálise à terapêutica

seria, pois, uma redução dessa experiência original, que deveria permanecer

como um efeito secundário da prática de uma analista. Em dado momento,

entretanto, Miller (2011) acredita ter havido uma reinversão da reviravolta

lacaniana que, como num fenômeno de massa, colocou em evidência essa

dimensão reduzida e aplicada da psicanálise.

Independente dos motivos que Miller apresenta para essa crítica à

noção de aplicação, permanece a questão: é possível sustentar algo dessa

“experiência original” da psicanálise no espaço social? Nossa resposta é

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afirmativa, ainda que seja importante esclarecer a lógica do “possível” em

questão, já que não se trata de nenhuma garantia de possibilidade, mas de

uma aposta que não ignora os riscos envolvidos. Tentaremos demonstrar

que essa aposta coincide justamente com a dimensão ética do discurso

analítico, na medida em que ele tem um modo próprio de formalizar os

impossíveis e paradoxos da relação do sujeito com o laço social.

Deslocamos, para tanto, nossa reflexão para esse termo implicação,

que tomamos de empréstimo ao Prof. Célio Garcia (2011), quando este trata

da interface entre Psicanálise e Direito. Ele sugere que, em vez de se falar

de aplicação da Psicanálise a diferentes áreas do conhecimento, pode-se

dizer que a Psicanálise encontra-se “implicada em outros discursos com os

quais ela se confronta além da clínica propriamente dita” (p. 26). Enquanto

o termo aplicação poderia evocar mais uma questão técnica, de reduzi-la

e adaptá-la à terapêutica em outros espaços distintos do setting analítico

clássico, o termo implicação destaca mais propriamente a vertente lógica.

Não se trata de propor um protocolo fixo de aplicação, mas de

desvendar o que implica, para o laço social e para toda a dimensão ético-

-política da ação humana, o funcionamento do discurso do analista. Lacan

(1972-73/1985) diz, no Seminário 20, que o discurso do analista aparece em

cada passagem de um discurso ao outro, sendo o que promove um efeito

de movimentação no discurso. Um efeito de movimentação e de desesta-

bilização dos discursos de domínio implica, pois, a própria possibilidade

do discurso do analista, na medida em que ele pode surgir nesses lapsos e

reviravoltas de um discurso a outro.

Figura 1 - Aplicação x Implicação

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1. ÉTICA DA PSICANÁLISE

A princípio, quando se fala em ética da psicanálise, pode vir à mente

quase que uma deontologia, ou seja, assim como existe o código de ética

do psicólogo, do médico, da Ordem dos Advogados, pode-se entender que

Lacan proporia um código de ética do psicanalista. Não é absolutamente

essa a ideia. Outra ideia, um pouco mais filosófica e mais elaborada, poderia

ser a de que a ética da psicanálise demarca uma pretensão de que a psicaná-

lise proponha um novo ideal ético. Ou que ela construa um novo sistema de

pensamento para a ética, uma nova moral, alternativa ao exercício filosófico

da reflexão ética. Quem tiver a oportunidade de ler o seminário 7 de Lacan

(1959-60/1997) verá que não é isso que ele faz.

Nesse sentido, ética da psicanálise não é uma aplicação da cosmo-

visão psicanalítica, seja no pensamento sobre a ética, seja no apontamento

de caminhos para a vida das pessoas. Não é também apenas um discurso

sobre como deve atuar um psicanalista. Esse é um ponto chave, porque

costumamos às vezes pensar que o estatuto ético da psicanálise diz respeito

somente à especificidade de atuação do psicanalista. Claro que a proble-

mática da atuação do psicanalista perpassa o tema da ética, mas não é o

ponto principal. O que destacamos como ponto principal é que, diante de

tudo que se pensou sobre a ética, para toda a reflexão sobre a ação humana,

seja ela advinda da ética filosófica, do campo religioso, das artes ou mesmo

da política, a psicanálise levanta uma questão fundamental que a prin-

cípio é posta por Freud e por Lacan em termos do desejo inconsciente. O

problema pode então ser resumido da seguinte maneira: Como pensar a

ação humana, todas as questões sobre o bem e o mal, sobre as escolhas, os

deveres, a própria liberdade, enfim, como pensar a dimensão ética da vida

tendo em vista que existe uma parte da subjetividade que escapa à própria

consciência de quem age?

Podemos destacar que, em Freud (1900/1996), esse campo do incons-

ciente é explicitado primeiramente a partir do desejo, na medida em que

os sintomas neuróticos possuem um sentido inconsciente. Os sintomas,

sonhos e atos falhos nos mostram que os nossos atos visam, no fundo, à

realização de desejos dos quais nós mesmos não nos damos conta. Num

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segundo momento, Freud (1920/1996) articula esse campo do incons-

ciente, do que foge do controle de nossa razão, à dimensão das pulsões.

O movimento de Lacan é parecido, indo do foco no desejo para o foco no

gozo (que pode ser entendido aproximativamente como a satisfação da

pulsão, na medida em que ela nunca é completa). Bispo (2012) trabalha

esse deslocamento que Lacan faz, do foco no desejo no Seminário 7 para o

foco no gozo no Seminário 20. A princípio, entretanto, posso destacar que

tanto um quanto outro dizem respeito a dimensões da ação humana que

escapam à consciência e que, portanto, constituem um problema crucial

para todo o pensamento sobre a moral.

Mais ainda: a psicanálise mostra que desejo é sempre desejo do Outro,

desejo de desejo. O desejo sempre remete ao laço com o Outro, colocando-se,

pois, na própria base do laço social. O gozo, por sua vez, mesmo que se possa

considerar nele uma dimensão bem solitária, que não faz laço com o outro,

interessa inteiramente ao Outro social. É sobre o campo do gozo que incide

a ordenação da cultura. O laço social organiza o gozo, permitindo alguns

modos e proibindo outros. Seja através do pai, da família, da escola, das

leis, etc., o laço social e o próprio Estado estabelecem limites implícitos ou

explícitos para o gozo. Quando esses limites são ultrapassados é que aparece

mais diretamente o problema da violência: tanto na transgressão pela qual

o sujeito acede a um gozo proibido, quanto na repressão pela qual o laço

social ou o próprio Estado buscam eliminar o modo de gozo indesejado (e,

às vezes, os próprios indivíduos transgressores).

2. LÓGICA DA CONTINGÊNCIA

O segundo ponto a ser destacado tem a ver com a noção de contin-

gência, naquilo que ela marca a ética da psicanálise, a partir da seguinte

tese: é justamente por formular uma lógica que acolhe a contingência que

a psicanálise pode ser evocada para intervir em questões relativas ao laço

social.

Em seu seminário Coisas de fineza, que foi publicado em português

no livro intitulado Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Jacques

Lacan, Miller (2009; 2011) deixa entrever claramente a pertinência dessa

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tese. Essa expressão do título lhe fora inspirada por duas fontes: um texto

de Freud (1935/1996) traduzido para o português como As sutilezas de um

ato falho; e uma referência onde Pascal destaca uma dimensão que escapa

aos geômetras, dizendo que eles se perdem nas “coisas de fineza”, ou seja,

nas sutilezas. A ideia dá conta de que a psicanálise, sobretudo o último

ensino de Lacan, destaca aquilo que escapa à formalização, aquilo que não

cessa de não se escrever, que é impossível de se escrever: as sutilezas da

ação humana.

Mais explicitamente, Miller (2011) defende a tese de que Lacan foca

num primeiro momento a estrutura simbólica e caminha para, no último

ensino, focar o real sem lei, naquilo que escapa à estruturação propiciada

pela linguagem. Essa tese é apresentada por Bispo (2012) a propósito da

ética: no Seminário 7, Lacan (1959-60/1997) focaliza o caráter necessário

da incidência da lei na subjetividade – a partir da noção de das Ding e da

Lei Moral kantiana – e o caráter impossível de realização do desejo. No

Seminário 20 (Lacan, 1972-73/1985), por sua vez, esse impossível é oposto

não mais ao caráter necessário da Lei, mas ao seu caráter contingente.

O que vem a ser, então, essa noção de contingência?

Pode-se imaginar, ao ler o sintagma “ética da contingência” (Bispo,

2012), o que quer dizer a ética, mas o termo contingência parece sempre um

enigma. Isso pode ser ilustrado pela significação que o termo contingência

adquire na engenharia, sendo utilizado para designar os restos, as coisas que

sobram, os excessos inesperados, que escapam ao planejado. Soa estranha

a noção de uma ética dos restos, ética dos excessos, das sobras, dos dejetos.

Para a psicanálise, essa aproximação faz todo o sentido, pois é justamente

o que a sua clínica valoriza, ou seja, os tropeços da fala, as sutilezas de um

ato falho, as besteiras que a gente diz sem querer. É justamente nisso que

sobra, que escapa ao sentido, que Freud vai buscar a emergência da verdade

escondida nas racionalizações do nosso discurso oficial. A psicanálise presta

atenção naquilo que o sujeito desvaloriza como supérfluo, e é assim que

ela opera para desfazer os engodos que o narcisismo produz ao lidar com

as pulsões sexuais e agressivas.

Na administração também encontramos esse termo na noção de

“plano de contingências”, que é também chamado de planejamento de

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riscos, plano de continuidade de negócios ou plano de recuperação de

desastres. Um plano de contingências tem então o objetivo de descrever

as medidas a serem tomadas por uma organização para fazer com que seus

processos vitais voltem a funcionar plenamente, ou num estado minima-

mente aceitável, em caso de ocorrências imprevistas e inevitáveis, como

enchentes, incêndios, rebeliões, terremotos, furacões, acidentes ambientais,

ataque de hackers, etc. Por esse sentido é possível visualizar um posicio-

namento diante da contingência: prevenir-se contra ela, evitar surpresas

e danos a partir do estabelecimento de protocolos de ação que possam

orientar claramente as intervenções em momentos de crise. O administrador

tenta escrever a previsão das contingências e determinar um plano de ação

para lidar com elas.

Uma vertente da Psicologia comportamental também utiliza uma

lógica similar. Com a análise funcional do comportamento, busca-se mapear

as contingências que determinam e controlam as ações dos indivíduos para

intervir sobre elas, modificando assim o comportamento indesejável. Não

obstante à variedade de definições sobre a análise funcional do compor-

tamento (Neno, 2003), é possível demarcar, nas definições mais clássicas,

esse modo muito específico de lidar com a contingência, como demonstra a

definição de Hayes e Follette (1992): “A análise funcional clássica é essen-

cialmente a arte de analisar um caso individual em termos de contingências

funcionais” (p. 361). Os autores a descrevem como uma metodologia de

“avaliar-formular-intervir-avaliar”, de modo que a avaliação das contingên-

cias que determinam o comportamento orienta a intervenção no sentido de

identificar relações causais importantes que poderiam ser mudadas (p. 350).

Ora, a estratégia psicanalítica abre mão justamente desse plano de

ação prévio ou desses mecanismos de controle sobre as contingências. Ela

lida com aquilo que foge ao protocolo, aquilo que pode ser tanto de um jeito

quanto de outro, sem tentar encaixar o sujeito em categorias necessárias

e pré-definidas. Teixeira (2011a; 2011b) levanta a hipótese de que, a partir

da reforma psiquiátrica, a psicanálise fora largamente evocada a atuar na

substituição progressiva do atendimento hospitalar pelos serviços abertos

de saúde mental por uma razão muito específica. Para ele, essa substi-

tuição implicou a passagem de uma terapêutica que funcionava como uma

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experimentação controlada, cuja metodologia poderia ser parametrizada

em protocolos, para uma prática cuja orientação se conceberia no momento

oportuno da experiência. Nesse sentido, a exemplo dos planos de contin-

gências administrativas, o tratamento hospitalar funcionaria justamente

pela tentativa de padronizar procedimentos – ou seja, de instituir soluções

com pretensão de que sejam válidas para todos – enquanto os serviços

abertos, por outro lado, marcariam a impossibilidade de se controlar todas

as contingências que podem vir a interferir na saúde mental do paciente.

Isso vem ratificar a nossa tese sobre a importância da contingência para

a qualificação da intervenção psicanalítica sobre o laço social, na medida

em que resgata a noção de prudência, que é tomada por Aristóteles como

“princípio que orienta a ação no nível contingente da realidade prática”

(Teixeira, 2011b, p. 06).

Apesar disso, essa noção mais imediata do termo contingência ainda

não esclarece toda a sua riqueza epistemológica. Bispo (2012) se propõe

resgatar o valor lógico dessa noção e o modo como ela ajuda esclarecer

o pensamento sobre a ética. Não será necessário recuperar aqui toda

construção lógica desde Aristóteles, mas apenas apresentar o quadro das

oposições modais, a fim de localizar a apropriação que Lacan faz dessas

categorias.

Figura 2 - Quadro das oposições modais de Aristóteles

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Podem ser destacados dois pontos cruciais nesse quadro: as relações

de necessidade e impossibilidade e as de possibilidade e contingência. A

necessidade é algo que, para Aristóteles, realiza-se necessariamente na

própria essência da coisa. Por exemplo, Spinoza (1677/2009) diz que a

existência de Deus é necessária porque sua essência pressupõe a existência.

Por outro lado, ele diz que a existência de outro Deus é impossível, pois,

“além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância”

(Proposição 14, 1ª parte, p. 22). De igual modo, Parmênides dizia que o

ser é Uno, só pode haver Um ser, porque, se houvesse dois, aquilo que

distingue um do outro, é em um e não é no outro, o que é inconcebível,

pois, pelo princípio da não contradição o ser não pode não ser. Trata-se

então de uma necessidade e de uma impossibilidade ontológicas, marcadas

na própria essência que define o ser da proposição. Sendo assim, na lógica

clássica, necessidade e impossibilidade seriam marcas essenciais da própria

natureza das coisas.

Por esse quadro também podemos ver que Aristóteles utiliza o termo

‘possível’ em dois sentidos: o primeiro, mais óbvio, para indicar aquilo

que não é impossível. Entretanto, o que é necessário também não pode ser

impossível, de modo que do necessário segue-se o possível, mas a recíproca

não é verdadeira, ou seja, nem tudo que é possível é necessário. Às vezes

Aristóteles utiliza o termo possível num sentido mais fraco, que não o dife-

rencia do necessário, e outras vezes num sentido mais forte, para indicar

aquilo que não é nem impossível, nem necessário. Kneale & Kneale (1962)

optam por reservar ‘é possível que-P’ para a contraditória de ‘é impossível

que-P’ e utiliza ‘é contigente que-P’ para aquilo que é possível, mas não

necessário, conforme visualizamos na figura acima. A noção de contingência

está, pois, vinculada aos aspectos não essenciais das coisas, aos aspectos

acidentais, que não se afirmam necessariamente.

Lacan traduz essas relações em termos de simbolização. Em vez de

uma necessidade ontológica, ele demarca no sintoma uma necessidade

simbólica. Dessa maneira, se ele admite que persiste no sujeito um desejo

insaciável, significa que esse desejo é impossível – ele não cessa de não se

escrever, não importa o que o sujeito faça. Essa impossibilidade de satis-

fação, por sua vez, faz com que o sujeito repita insistentemente algo que

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lhe trouxe prazer, na busca de alcançar uma satisfação completa. Desse

modo, o gozo que aí se instala torna-se necessário para o sujeito, ou seja,

não cessa de se escrever. Pode-se citar o exemplo da toxicomania, que se

apresenta como uma busca compulsiva (necessária, portanto) pela droga,

sustentada por um anseio implacável (impossível). Em suma, porque o

desejo é impossível, o gozo se torna necessário.

A apresentação dessas oposições modais serve para mostrar que

o contingente tem esse sentido na filosofia e que a ética sempre buscou

sustentar a noção de bem a partir de um fundamento que fosse universal

e necessário. Kant (1788/2002), em sua elaboração da Lei Moral, busca

chegar a essa lei que seja válida para todo ente racional. Aristóteles (trad.

2001), por outro lado, valoriza os aspectos contingentes da experiência,

destacando inclusive a prudência como uma virtude moral necessária para

se deliberar bem sobre as coisas da vida humana, que são contingentes. Para

ele, entretanto, as leis da lógica são aplicáveis às coisas universais e neces-

sárias, e a opinião experiente (doxa) seria aplicável às coisas contingentes,

que exigiriam prudência e experiência para ser bem resolvidas.

Como expusemos anteriormente, Teixeira (2011a) destaca a impor-

tância de se resgatar, para a psicanálise, a noção de prudência, justamente

por que ela lida com essas coisas de fineza, das quais não se pode extrair

nenhuma ontologia, nenhuma lei válida para todos. Ou seja, para as ques-

tões do desejo e do gozo, os pretensos protocolos sempre se mostram falhos.

O que buscamos circunscrever com a expressão “lógica da contingência” é

que Lacan, a partir dos matemas, visa justamente ultrapassar a dimensão da

simples opinião e definir uma lógica da contingência. Não se trata de uma

lógica para o controle das contingências, mas de uma lógica que permita que

aquilo que não pode ser padronizado (impossível de se escrever) apareça e

encontre uma solução circunstancial (às vezes se escreva) em seu próprio

campo. Mesmo que essas soluções não sejam generalizáveis, não sirvam

para todos, mesmo que até pareçam ridículas, é importante que elas sejam

escutadas e aventadas como possibilidade para aquele que padece. Que o

sujeito tenha o direito, ou mais, que ele se autorize a utilizar sua própria

solução singular para lidar com seus sofrimentos sem ser escravizado por

ela, sem transformá-la numa necessidade.

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Veja que ao trazer a contingência, trazemos à tona também uma

valorização do possível. No seminário 7, Lacan (1959-60/1997) coloca

o impossível do desejo como a marca da ética da psicanálise, criticando

inclusive a ética de Aristóteles por basear-se na medida do possível, no

meio termo. Entretanto, ao focar o gozo a partir do Seminário 20, Lacan

(1972-73/1985) traz de volta o possível para se pensar a relação do sujeito

com a satisfação que ele pode conseguir. Um possível no sentido forte, ou

seja, que não escorrega para o necessário.

Miller (2009; 2011) mostra isso em seu seminário, afirmando que,

quanto ao gozo, já não se trata tanto de ultrapassar uma barreira do mais

além. Ao realizar essa comparação entre o gozo transgressivo do Seminário

7 e o gozo ilimitado do Seminário 20, que ele chama de gozo por toda parte

[partout], sugere que não se trata de sempre, necessariamente, levar o

sujeito a romper com toda a ordem limitada do serviço dos bens, articu-

lada ao gozo fálico, em prol de um desejo puro. Às vezes se pode almejar

apenas que fiquemos “mais confortáveis em nossa miséria” (Miller, 2011,

p. 157). Trata-se do que ele chama de arranjos. É preciso que a coisa se

arranje de outro modo para que a quantidade de desprazer causado pelo

sintoma diminua, deixando o sujeito numa situação mais confortável que

lhe permita uma mínima tomada de posição diante do próprio sofrimento.

Não é necessário sempre levar o sujeito a atravessar seu gozo limitado pela

fantasia, mas apenas arranjar-se com ele, na medida do possível. Ou seja,

fazendo com que ele cesse de se escrever, ou que ele não se escreva, a menos

que se queira, como Lacan (1976-77/2012) diz no Seminário 24.

Como já é possível depreender, às vezes o que é possível pode tornar-

-se necessário e fixar-se como única possibilidade. É por isso que Cortella

(2007) critica a noção de possível. Ele diz que, enquanto os americanos

dizem “I’ll do my best”, nós brasileiros dizemos “vou fazer o possível”. É

bem diferente dizer “eu vou fazer o melhor e não apenas o possível”. Mas é

porque o possível nesse sentido quase flerta com a impotência, justamente

porque se prende nisso: “é só o que eu posso fazer”. Ou seja, subentende-se

que foi necessário ficar nisso. O contingente é aquilo que é possível, mas

não é necessário, às vezes não se escreve, cessa de se escrever, ou, como diz

Lacan, não continua se escrevendo a menos que se queira. É, nesse sentido,

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um possível que não cede do desejo em nome da segurança. Acena mais

para a abertura de possibilidades, sem a ambição de fixá-las e torná-las

universais. Trata-se de tornar possível o que antes era impossível por uma

solução não prevista, não usual e às vezes até descartável, aplicável somente

num dado e específico instante.

Podemos nos remeter a um exemplo relatado pelo Prof. Célio Garcia

(Conferência, 30 de outubro de 2009). Na ocasião, ele falava sobre a prática

de um psicólogo, chamado a intervir em processos envolvendo atos infra-

cionais de adolescentes. Destacava as situações nas quais esses adolescentes

não queriam ser incluídos nos programas comuns, destinados a reinseri-los

socialmente. Muitos acabavam encontrando uma solução mais pacífica

para a relação com o laço social em situações muito contingentes, que não

haviam sido absolutamente preparadas para educá-los. Ele relata, então,

o caso de alguns meninos que, após serem levados para uma fazenda onde

havia apenas um vaqueiro (que não sabia nada de psicologia) e algumas

vacas, que lhes forneciam um leite que eles mesmos extraíam, retornavam

para o abrigo muito mais tranquilos, de modo a passarem algum tempo

sem necessidade de chutar portas e agredir os companheiros. É essa que

ele chama de uma inclusão outra, onde o acaso acaba funcionando para o

adolescente como um encontro feliz, um ato equívoco, a princípio, porque

não constava de nenhum protocolo de tratamento psíquico, mas que ganha

um valor para o sujeito que nunca poderia ter sido previsto.

Em síntese, a ética da contingência implica a valorização subjetiva

– e porque não dizer política, no caso das circunstâncias sociais – daquilo

que é sutil e imprevisível, mas que marca a própria causa do desejo de cada

um. É uma ética que não exclui a salvação pelos dejetos (Miller, 2011), mas

que também não torna o dejeto necessário, ou seja, não fixa o sujeito na

posição de dejeto.

3. A IMPLICAÇÃO DA PSICANÁLISE NO LAÇO SOCIAL

Há um dilema moral, que costuma ser proposto por psicólogos em

dinâmicas de grupo, que consiste em solicitar que sejam indicados, dentre

um conjunto de indivíduos, alguns que poderiam ser escolhidos para serem

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salvos de uma catástrofe. A ideia é que o pequeno grupo remanescente – que

não pode ser todo mundo – dê continuidade à sobrevivência da espécie.

Se, nesse conjunto, além de um médico, um advogado e um enfermeiro,

houvesse um psicanalista, e se os redentores tivessem o direito de interrogá-

-los sobre a importância da atividade de cada um para pesar sua decisão, o

que o psicanalista poderia propor como bem que justificasse a manutenção

de sua atividade?

Essa pequena anedota evoca de maneira muito ilustrativa uma inter-

rogação sobre o destino da psicanálise na cidade. Esse destino não parece ser

muito distante daquele que Lacan destaca a propósito de Sócrates, já que,

“no laço social, as opiniões não adquirem um lugar se não são comprovadas

por tudo o que assegure o equilíbrio da cidade, e a partir daí Sócrates não

apenas não tem seu lugar nela, mas não o tem em lugar nenhum” (Lacan,

1960-1961/1992, p. 18). Como situar, pois, a participação da psicanálise

na cidade sem cair na “rendição”, denunciada por Miller (2011), à lógica

utilitarista dos serviços sociais?

O que essa referência a Sócrates evoca é justamente o contraste entre

o caráter atópico da psicanálise e sua oferta como serviço no campo social.

Seria possível inscrever e garantir o lugar da psicanálise no serviço dos

bens? Qual seria então a contribuição da psicanálise para a política pública?

É importante lembrar que, segundo a crítica apresentada no Seminário 7

ao utilitarismo, o serviço dos bens funciona por uma oferta de interesses

patológicos (no sentido kantiano do termo, mas que guarda alguma relação

com o sentido comum) e que, mesmo que a psicanálise não promova impe-

rativos categóricos, também não propõe nenhum protocolo de imperativos

hipotéticos para os sujeitos. Isso é trabalho dos manuais de autoajuda: se

seu namorado o trair, então arrume outro. O “se... então...” aqui marca um

imperativo hipotético que fixa o sujeito numa necessidade simbólica (não

é uma necessidade objetiva ou racional, no sentido kantiano, que caracte-

rizaria uma lei moral) ou numa compulsão a repetir o que o outro faz ou a

repetir seus próprios fracassos.

Esse é um dilema permanente para os praticantes de psicanálise que

participam da gestão das políticas públicas, já que muitas vezes se dividem

entre os interesses do sujeito e os interesses considerados públicos ou do

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

Fábio Santos Bispo88

Estado. Não é nossa intenção resolver esse dilema, mas evocamos uma

referência que tem sido objeto de nossas pesquisas e que pode ser eluci-

dativa. Giorgio Agamben (2010) traz uma problematização de inspiração

foucaultiana ao destacar que o corpo biológico do cidadão ocupa posição

central nos cálculos e estratégias do poder estatal. Isso significa que a polí-

tica moderna transformou-se numa biopolítica, onde a vida politicamente

qualificada (bios) perde todo seu espaço para a vida nua (zoé) – a vida

natural, que coincide com o corpo biológico dos cidadãos, despojado de

toda relevância política.

Somente é possível dizer que o discurso analítico intervém ou se

apresenta no laço social se e somente se abrir-se espaço para a emergência

do sujeito, para além de seu corpo biológico. Ou seja, quando o cálculo utili-

tário e a biopolítica excluem totalmente da cena as dimensões incalculáveis,

contingentes e sutis que concernem ao sujeito, temos o império do discurso

do mestre [ou da universidade, que é chamado por Lacan (1969-70/1992)

de “discurso do mestre moderno”], que é o avesso do discurso do analista.

É o que faz um protocolo de atendimento quando estabelece um fluxograma

de decisões baseadas em critérios que prescindem tanto do profissional que

decide o rumo da assistência quanto do sujeito que é atendido. O que se

pode fazer no interior de um discurso como esse é, ou adaptar-se a ele, ou

subvertê-lo, a partir das suas brechas, das sutilezas, dos dejetos que todo

discurso de domínio produz.

De todo modo, podemos concluir afirmando que a psicanálise está

politicamente implicada no laço social como uma contingência. No sentido

de que ela nem sempre se escreve. Pode ser ofertada, pode haver psicana-

listas trabalhando no posto de saúde, na escola, nas medidas socioeduca-

tivas, mas nada disso garante que um efeito subjetivo próprio ao discurso

do analista, ou seja, um efeito de mudança de discurso, deverá ocorrer.

Permanecerá talvez sempre atópica, sempre como uma aposta e sempre

com o risco de pender para um discurso burocrático.

A teoria dos conjuntos distingue as noções de pertencimento e

inclusão, que Badiou (1996) traduz em termos políticos. Ele diz que um

termo pertence a uma situação se ele é apresentado e contado como unidade

nessa situação – como os indivíduos presentes numa fila, por exemplo. Diz

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social 89

ainda que um termo está incluído em uma situação se é representado na

metaestrutura – os indivíduos recodificados pelo Estado em classes, como

a de “eleitores”. A partir dessas duas relações, de pertença e de inclusão,

Badiou define três condições possíveis que aqui poderemos utilizar para

pensar como a psicanálise está implicada no laço social. Ele diz que:

1) Normal seria um termo que está, ao mesmo tempo, apresentado e

representado, isto é, pertence e está incluído. Nesse sentido, a psica-

nálise não é normal, porque, por mais que ela se apresente e produza

efeitos, ela escapa a essa representação metaestrutural. Toda tentativa de

representá-la acaba subordinando-a ao discurso do mestre e fazendo-a

desaparecer.

2) Excrescência, por sua vez, seria um termo que está representado, mas

não se apresenta, ou seja, está incluído na situação sem pertencer a ela,

como um funcionário fantasma na folha de pagamento.

3) Finalmente, singular é um termo que está apresentado, mas não repre-

sentado (que pertence, sem estar incluído). Minha apropriação aqui foi

bastante rápida, mas suficiente como uma proposta de mostrar que o

discurso da psicanálise opera efetivamente no laço social (ele pertence

ao laço, pois aí se apresenta), mas não obedece sua lógica de funciona-

mento (não está incluído ou representado) – já que laço social é funda-

mentalmente dominação e o discurso do analista é avesso ao domínio.

A situação da psicanálise no laço social é, por conseguinte, uma situação

singular.

Figura 3 - Relações de inclusão e pertença propostas por Badiou (1996)

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

Fábio Santos Bispo90

4. A implicação política da psicanálise e a efetivação da liberdade

Chegamos então ao último ponto, onde destacamos a noção de

liberdade, tão cara ao campo da ética, como marcando essa relação da

psicanálise com a política social. A questão da efetivação da liberdade

está diretamente ligada à situação de violência e do controle que o Estado

opera para tentar reduzir seu risco, sendo, portanto, um ponto bastante

propício para interrogar a relação da psicanálise com o laço social. Miller

(2011) sugere que a vida social não se organiza mais em Cidades (Polis),

como nos tempos gregos (p. 14) e que, nesse caso, trata-se de saber se a

psicanálise se colocará numa posição servil em relação aos interesses da

sociedade, rendendo-se aos impasses da civilização. Do ponto de vista da

ética, a efetivação da liberdade é, para Hegel (2000), a questão crucial, na

medida em que ela representa o momento supremo da relação dialética do

sujeito com o Outro, momento em que a vontade singular realiza a vontade

política universal ou do Estado ético.

O primeiro momento dessa dialética corresponderia ao direito

abstrato. Ou seja, seria a dimensão do contrato social – destacada por

Hobbes – onde o “Leviatã” representaria um controle dos impulsos indi-

viduais operado pelo Estado. O que estaria no horizonte desse contrato

social é simplesmente o temor da morte – como ele explicita vividamente

na dialética do Senhor e do Escravo, apropriada por Lacan para referir-se

à constituição subjetiva. É o medo da morte que leva o sujeito a ceder ao

Outro o domínio sobre sua vida em troca de uma segurança mínima.

Essa alienação é, para Hegel (2000), um momento necessário na

dialética de efetivação da liberdade, mas não é o único. É preciso haver

uma inversão que recoloque o sujeito no centro. Nesse sentido, a ética

kantiana destacaria a passagem da heteronomia para a autonomia como um

momento crucial onde o sujeito se apropriaria da norma, transformando-a

em lei moral a partir da luz da razão pura. Esse momento, que Hegel chama

de moralidade, é um momento em que o sujeito assume autonomamente o

seu dever por uma vontade racional, e não apenas por temer a morte. Ou,

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social 91

para dizer em termos hegelianos, a vontade “é a particularidade refletida

sobre si e que assim se ergue ao universal, quer dizer, a individualidade”

(p. 24).

Esse dois momentos, no entanto, ainda são para Hegel momentos

abstratos, e é o terceiro momento, da eticidade, que representa a concreti-

zação verdadeira da liberdade. É o momento onde a liberdade individual se

concretiza coletivamente – e não apenas subjetivamente. O termo “concreto”

remete etimologicamente a “cum-crescere”, crescer junto, o con-crescer do

singular e do universal. A eticidade seria, pois, o momento de concretização

da liberdade através das instituições do Estado. Lembrando que este, para

Hegel, não significa unicamente a estrutura burocrática e abstrata das

organizações (a esfera econômico-jurídica), mas justamente a efetivação

política da participação de cada sujeito particular na realização universal

do momento supremo da liberdade (esfera público-política).

Figura 4 - Momentos da dialética de efetivação da liberdade propostos por Hegel (2000)

A ideia fundamental de Hegel é que o objetivo e o subjetivo (o

universal e o particular; ou o Estado e o indivíduo) não se suprimem reci-

procamente. A contradição ou o conflito levam a um outro nível de desen-

volvimento da verdade que suprassume o primeiro. Ou seja, assume em

um nível superior de inteligibilidade. Nesse sentido, a eticicidade supera

a contradição entre o direito abstrato e a moralidade fazendo com que a

segunda realize o primeiro de forma concreta. A aufhebung, nesse sentido,

seria a operação de superação das contradições.

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

Fábio Santos Bispo92

Freud e Lacan vêm demonstrar justamente que essa aufhebung é,

diz Lacan (1972-73/1985), “um desses bonitos sonhos de filosofia” (p. 115).

Não no sentido de que ela não se realize, mas no sentido de que é sempre

uma realização incompleta, não-toda. Nessa suprassunção sempre fica

algo que passa para o próximo nível sem ser por ele assumido. É como

Freud (1896/1996) explicita no modelo da Carta 52, articulando a noção

de recalque com uma “sobrevivência” de algo que não foi traduzido e

permanece na nova configuração como um corpo estranho. Desse ponto

de vista, toda realização concreta da liberdade – entrevista, por exemplo,

no funcionamento justo das leis sociais – sempre guarda em si elementos

recalcados das fases anteriores. A esfera política do Estado ou da Cidade

sempre carrega em si elementos típicos da lógica de dominação e controle

dos corpos inerente ao laço social. A contradição não é toda resolvida

pela aufhebung, e é justamente a impossibilidade dessa resolução que faz

com que o equilíbrio da cidade somente seja conseguido à custa de uma

supressão do sujeito.

Se a psicanálise vai ser chamada a atuar nessa dimensão onde o

sujeito se submete a um discurso, ou seja, onde ele se aliena ao desejo

do Outro na busca de pertencimento ao laço social, certamente não será

a favor da coerção exigida para o equilíbrio social. Se o sintoma é uma

solução de compromisso entre as exigências civilizatórias e as pulsões que

habitam o corpo, os sintomas sociais são, de igual modo, manifestações

do conflito estrutural entre esse equilíbrio da cidade e a singularidade de

cada sujeito. Assim como a psicanálise se propõe a fazer falar o sintoma

individual, afrouxando os nós que a ele prendem o sujeito, de igual modo,

nos sintomas sociais, é a dimensão da fala que possibilitará com que, por

meio do dizer, sejam afrouxados os nós que prendem os sujeitos a uma

forma rígida e localizada do laço social.

CONCLUSÃO

Para finalizar, podemos destacar algumas conclusões cruciais a

respeito da participação da psicanálise no laço social. Em primeiro lugar,

que ela é contingente e singular, ou seja, não se pode prescrever a psicanálise

Psic. Rev. São Paulo, volume 23, n.1, 75-95, 2014

A ética da contingência e a implicação da psicanálise no laço social 93

como um protocolo de serviço no laço social, sob pena de subjugá-la ao

discurso do mestre ou da universidade. Não há garantias de que uma “expe-

riência original” se realize a partir de uma prática de psicanálise voltada

para o campo social. Isso, porém, não a elimina como possibilidade. A

contingência indica esse caráter possível, mas não necessário. A singulari-

dade é um outro modo de demarcar essa contingência, ao se propor, nos

termos de Badiou (1996), que essa experiência original pode apresentar-

-se, mas não se representar, ou seja, pode acontecer, mas não como efeito

de nenhum protocolo oficial de tratamento. Em segundo lugar, é preciso

estar sempre advertido do risco de rendição aos impasses civilizatórios

quando se coloca o efeito terapêutico, o bem-estar ou o equilíbrio da cidade

como metas primárias em relação à experiência do sujeito. A biopolítica,

o utilitarismo e o próprio direito abstrato ou a moralidade são modos de

se apresentar o caráter de dominação inerente ao laço social impossível de

ser completamente superado. Qualquer eticidade ou experiência original,

embora possível, será estritamente contingente e a psicanálise está impli-

cada nessa condição. É importante não tentar fugir disso, entregando-se à

tentação da busca de garantias sociais para a prática do psicanalista, sob

pena de se apagar sua dimensão ética mais radical.

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