A carta que se fez História

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A Carta que se fez História O povo que sue para pagar o luxo dos afiliados do governo!Aproveita pessoal! Vá mamando no tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos...nada! Mas isso um dia acaba. (Frase de Natanael Robespierre dos Anjos em Laranja da China de Antonio Alcântara Machado) Documento A 0001429 Meu caro João Neves: Recebi hoje a tua carta que em seguida respondo. Para não haver dúvida que formaremos a combinação binária encontrada pelo C. Lafe (?) para a sucessão presidencial do Estado. E ainda bem que és o meu companheiro de etapa. Pelo menos estou certo que não desejarás a minha morte para substituir-me. Mas, digo-te em franqueza, minha impressão não é de orgulho, nem de alegria. Pesa-me a apreensão de que não possa corresponder a tão acolhedora simpatia que não sei explicar. Sou em retraído, avesso aos gestos ruidosos e às atitudes desordenadas. Não cortejei nunca a popularidade. Repugnam-me as atitudes artificiais. Sinto-me um campônio, atraído pela simplicidade da vida rural, mas deslocado, não sei por que fados adversos, a atritos da vida pública. Isto é o que penso e que te vou dizendo ao correr da pena. São as idéias que me sugerem as palavras confortantes e evocadoras de tua carta. É chegada, como dizes, a hora da nossa geração. Oxalá não tenha sido um erro dar a maior graduação ao menos capaz de representá-la. Recebe um grande abraço do velho amigo. Getúlio Vargas. Rio 8-8-1927. 1 1 Carta de Getúlio Vargas para João Neves da Fontoura de 08/08/1927, pertencente ao acervo documental do Banco Santos. Há na carta um nome difícil de ser identificado, mas acreditamos se tratar do Coronel Lafaiete Cruz, aliado de Vargas, também signatário do Pacto de Pedras Altas. João Neves da Fontoura acompanhou durante muito anos a trajetória de Vargas, se afastando dele durante o Movimento Constitucionalista de 1932. Após este episódio ser reaproximou de Vargas, tendo se tornado embaixador brasileiro em Lisboa no período de 1943-1945. Ainda como aliado de Getúlio Vargas se tornou Ministro das Relações Exteriores entre 1

Transcript of A carta que se fez História

A Carta que se fez HistóriaO povo que sue para pagar o luxo dos afiliados do governo!Aproveita pessoal!

Vá mamando no tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos...nada!

Mas isso um dia acaba.

(Frase de Natanael Robespierre dos Anjos em Laranja da China de Antonio Alcântara Machado)

Documento A 0001429Meu caro João Neves:

Recebi hoje a tua carta que em seguida respondo. Para não haver dúvida que formaremos

a combinação binária encontrada pelo C. Lafe (?) para a sucessão presidencial do Estado.

E ainda bem que és o meu companheiro de etapa. Pelo menos estou certo que não

desejarás a minha morte para substituir-me. Mas, digo-te em franqueza, minha impressão

não é de orgulho, nem de alegria. Pesa-me a apreensão de que não possa corresponder a

tão acolhedora simpatia que não sei explicar. Sou em retraído, avesso aos gestos ruidosos

e às atitudes desordenadas. Não cortejei nunca a popularidade. Repugnam-me as atitudes

artificiais. Sinto-me um campônio, atraído pela simplicidade da vida rural, mas deslocado,

não sei por que fados adversos, a atritos da vida pública. Isto é o que penso e que te vou

dizendo ao correr da pena. São as idéias que me sugerem as palavras confortantes e

evocadoras de tua carta. É chegada, como dizes, a hora da nossa geração. Oxalá não

tenha sido um erro dar a maior graduação ao menos capaz de representá-la. Recebe um

grande abraço do velho amigo. Getúlio Vargas. Rio 8-8-1927.1

1 Carta de Getúlio Vargas para João Neves da Fontoura de 08/08/1927, pertencente ao acervo documental do Banco Santos. Há na carta um nome difícil de ser identificado, mas acreditamos se tratar do Coronel Lafaiete Cruz, aliado de Vargas, também signatário do Pacto de Pedras Altas. João Neves da Fontoura acompanhou durante muito anos a trajetória de Vargas, se afastando dele durante o Movimento Constitucionalista de 1932. Após este episódio ser reaproximou de Vargas, tendo se tornado embaixador brasileiro em Lisboa no período de 1943-1945. Ainda como aliado de Getúlio Vargas se tornou Ministro das Relações Exteriores entre

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A Produção da Memória Histórica

Foi o próprio Getúlio Vargas quem tornou toda e qualquer

correspondência sua em documento precioso para a

história. Esta carta transcrita acima é um exemplo da

permanência temporal de um documento que só foi se

valorizando na medida em que crescia e se projetava para

o futuro a personagem de Vargas. Há documentos que se

tornam históricos pelo futuro que a ele se seguiu. Há

outros que, ao contrário, se valorizam pelo passado ao

qual eles se reportam ou que se impõem como documentos

sínteses de um passado ou de uma época que se vê

concluída pela enunciação documental. Por exemplo, a

carta testamento de Vargas tornou-se um documento

síntese de uma época que ele próprio forjou a sua

definição e sua identidade históricas. A ilusão desta

unidade histórica reduzida à figura de um único líder

tornou-se tão forte, que mesmo os seus críticos ainda se

referem à história recente do passado republicano

brasileiro por meio de definições sínteses do tipo A Era

Vargas.

Os documentos têm esta capacidade de criação do tempo e

da duração históricas. Eles podem inaugurar novos tempos

no plano das representações sociais e podem encerrar 1951 e 1953 e foi membro da Academia Brasileira de Letras de 1937 a 1963.

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outros. Podem fazer silêncio do passado ao qual eles

procuram superar, ou podem transformar este passado em

uma dimensão quase mítica. Por exemplo, no caso das

revoluções, falando de modo genérico e abrangente, os

seus discursos de consolidação política são documentos

incontestáveis da renovação do tempo histórico, com a

promessa de um tempo novo que se opões e supera os

tempos antigos. Para termos uma idéia mais nítida da

natureza de temporalização do discurso revolucionário,

podemos comparar o discurso de Vargas com um

pronunciamento feito por Lênin em 1918, alguns meses

depois da tomada do poder pelos comunistas na Rússia.“A história da humanidade realiza em nossos dias um de suas maiores e mais difíceis

mudanças, uma destas mudanças de alcance imenso, que podemos qualificar, sem

exagero, de universalmente libertador(...)destruímos em poucos dias uma das monarquias

mais antigas, mais poderosas, mais bárbaras e ferozes(...)A Revolução de Outubro iniciou o

fim de todo o jugo social e nacional e realizou as grandes idéias do socialismo. As

aspirações da humanidade a uma vida livre passaram do sono à realidade.”2

Estes documentos símbolos de ruptura, são momentos de

inauguração da história do ponto de vista do poder e as

revoluções modernas sempre se utilizam desta

representação do tempo novo para se legitimarem. Em

casos opostos, como a carta testamento de Vargas, o

documento procura encerrar uma época, construindo para

2 Discurso de Lênin publicado em 12 /03/1918, no Izvestia, jornal oficial do governo soviético. Apud. Charles-Olivier Carbonell, El Gran Octubre Ruso, Guadarrama, Espanha, 1968, os. 20, 21

3

uma tradição a partir da qual o futuro terá que se haver

e prestar contas.

Getúlio Vargas foi responsável pela criação destes dois

tipos de documentos até agora mencionados. Acima de

qualquer suspeita ele procurou ser um demiurgo da

história se autoproclamando líder supremo do movimento

que o levou ao poder máximo da república brasileira,

denominando este golpe político de Revolução de Trinta.

Vinte e quatro anos depois de afirmar que a sua

Revolução de trinta havia inaugurado um tempo histórico

novo para o Brasil, ele encerra este tempo com a sua

famosa carta testamento.

Mas, antes de seguirmos adiante neste percurso

documental de recente história republicana seria

oportuno darmos a conhecer, o que já é bastante

conhecido na história do Brasil, isto é, aqueles 2

documentos. Primeiramente, o que institui a

imperiosidade de uma revolução popular em 1930 cuja

unanimidade Vargas representava e o outro, a carta

testamento de 1954, que encerra o período da revolução

popular, insinuando que o Brasil voltaria para o tempo

das velhas oligarquias. Será depois da apresentação

destes dois documentos que voltaremos os nossos olhos à

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carta apresentada acima, escrita por Vargas,

sintomaticamente, num mês de agosto de 1927.

Em outubro de 1930, logo após a chegada de Vargas ao

poder, ele concede uma entrevista à agência de notícias

Associated Press, na qual se refere ao caráter unitário,

unânime da revolução de trinta, levando os leitores à

suposição de que havia um e apenas um projeto

revolucionário para o Brasil. Isto é, em sua declaração

política, Vargas não deixa dúvidas de que o poder recém

instituído não pretenderia tergiversar sobre a

unanimidade de sua posição e sobre o caráter único e

incontestável da sua revolução. Como já havíamos

abordado anteriormente, uma das características dos

discursos revolucionários é a tentativa de instauração

de um tempo novo na história e a necessidade de se

autoproclamar como unânime e unitário em termos de

opções políticas. Em outras palavras, o discurso

revolucionário moderno não admite oposições. Para ele,

todas as alternativas políticas não concordantes com o

poder instituído são contra-revolucionárias e pertencem

ao passado, uma vez que a revolução inaugura o tempo do

futuro. Vejamos de que maneira Vargas, em sua

entrevista, delineia uma nova ordem para o tempo da

história do Brasil. Em alguns trechos da entrevista

podemos acompanhar de que modo a revolução redimensiona

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o seu antes e o seu depois, tornando o passado uma

dimensão a ser esquecida e superada:

A vitória segura

Sendo o Brasil um país de vasto território e comunicações muitas vezes difíceis é de

admirar a assombrosa rapidez com que por toda a parte se alastra o movimento

reivindicador. A revolução está vitoriosa.(...)

No manifesto de 4 de outubro, definia eu nas seguintes linhas o quadro da realidade

brasileira: “O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte, pela

subversão do sufrágio popular. O predomínio das oligarquias e do profissionalismo

político. As forças armadas, guardas incorruptíveis da dignidade nacional, constrangidas

ao serviço de guarda-costas do caciquismo político. A brutalidade, a violência, o suborno, o

malbarato dos dinheiros públicos, o relaxamento dos costumes(...) Daí, como conseqüência

lógica, a desordem moral, a desorganização econômica, a anarquia financeira, o

marasmo, a estagnação, o favoritismo, a falência da Justiça."

Cansada de lutar inutilmente contra essa máquina política, desesperada de melhorar a

situação do País, dentro das possibilidades legais, decidiu-se a Nação pela luta armada.

(...)

Trata-se de uma revolução nacional, generalizada em todo o País, com raízes profundas na

consciência popular e que traz consigo um vasto plano de reformas de ordem moral,

política, econômica e financeira. O novo governo dará anistia ampla a todos os implicados

em revoluções anteriores. (...)

Cordiais saudações.

Do mesmo modo que o discurso revolucionário inaugura um

novo tempo na história, desqualificando todo o passado

que lhe antecedeu, um outro documento pertence à Vargas

serviu para encerrar um ciclo histórico que ele mesmo

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construiu. Trata-se, evidentemente, de sua carta

testamento, a mais contundente expressão de uma vontade

quase mítica de encerrar um tempo da própria história.

Em agosto de 1954, quando nosso personagem dá cabo à sua

vida com um tiro de espingarda, encerrando seu mandato

de presidente da República, ele deixa esta carta para o

futuro, dando-se ao capricho de encerrar um período

histórico e diagnosticando a vinda de tempos sombrios no

futuro. Assim, como no tempo do eterno retorno em que

ocorre a recuperação e a re-atualização do passado,

Vargas com a sua carta testamento, tanto encerra um

ciclo, como deixa em aberto a possibilidade da volta dos

perigos que assombraram o passado e que motivaram a sua

revolução de trinta.

Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se

desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não

me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para

que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os

humildes.(...) Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram

meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. nada receio.

Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar

na história".

Apenas aparentemente os documentos até aqui apresentados

são descontínuos. Uma observação histórica mais atenta

dará conta das suas interdependências e do modo como

foram construídos para serem documentos históricos

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sínteses e definidores dos sinais dos tempos. Por este

motivo, são documentos que falam do tempo, assinalam o

que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido pela

história. Autoriza a permanência de uns personagens e

agentes históricos, ao mesmo tempo em que, procura

varrer definitivamente do campo da história outros

personagens incômodos. Na entrevista que consagra a

revolução de trinta, Vargas, declaradamente, anistia do

passado todos os revolucionários. Isto queria dizer que,

naquele momento em que a entrevista foi dada, todos os

personagens e agentes históricos que quiseram

revolucionar a política brasileira dominada pelas

oligarquias, teriam a anistia dos revolucionários de

trinta.

A Carta e a sua abrangência histórica

Será a partir deste ponto que iniciaremos a análise

histórica da carta documento em que Vargas, humildemente,

aceita se candidatar a governador do Rio Grande do Sul

em dobradinha com João Neves da Fontoura. Se for

verdadeira a vontade do discurso varguista em anular

todo o passado anterior à revolução de trinta, podemos

entender também que este discurso também esconde o

passado do próprio personagem. Pelo sim ou pelo não, o

discurso da revolução de trinta silenciou a trajetória

do próprio Getúlio Vargas no período que a antecedeu.

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Havia bons motivos para a produção deste silêncio.

Afinal de contas , na época em que Vargas aceitou a

candidatura para o Governo do Rio Grande do Sul, ele não

pertencia, propriamente, ao arco de alianças políticas

que desencadeou movimentos revolucionários em alguns

estados brasileiros, dentre eles os de seu estado e o do

Estado de São Paulo. Tampouco cerrou fileiras com os

revolucionários organizadores da Coluna Prestes. Ao

contrário, no período em que Vargas escreveu a carta,

não só não estava do lado dos revolucionários, como era,

pura e simplesmente, o Ministro da Fazenda do Presidente

Washington Luiz, representante indiscutível das grandes

oligarquias cafeeiras e financeiras.

No momento em que Vargas escreveu para João Neves

aceitando a candidatura a governador, os

revolucionários, que haviam desencadeado movimentos

políticos armados contra o domínio das oligarquias,

tinham as suas principais lideranças no exílio,

espalhados pela Bolívia, Argentina e Uruguai. Era tão

grande a mobilização em defesa dos exilados que jornais

do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 1927, abriam listas

de subscrições e de doações de dinheiro para a

manutenção dos revolucionários exilados. Não há que se

estranhar com este tipo de movimentação e arregimentação

de opinião pública, porque no Brasil de 1927, falava-se

abertamente na necessidade de uma revolução para a

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reforma dos costumes políticos e para a implementação de

medidas favoráveis ao desenvolvimento de uma economia

voltada para o mercado interno brasileiro e menos

dependente do capital financeiro internacional. O

próprio Ministro da Fazenda Getúlio Vargas tinha

assumido o mandato com o objetivo de fazer a

estabilização monetária e saneamento das finanças

públicas com o controle do processo inflacionário.

Contudo, seu mandato estava do lado das famosas

oligarquias paulistas, atendendo, abertamente, aos

acordos das elites político-partidárias republicanas.

Este mandato de Vargas no Ministério da Fazenda havia

sido negociado abertamente pelo então governador de Rio

Grande do Sul, o “caudilho” Borges de Medeiros. A

candidatura de Vargas para governador, em 1927, também

era a saída política mais eficiente para as elites

riograndenses, na medida em que, o então governador

Borges de Medeiros estava proibido, por um acordo

conhecido por Pacto de Pedras Altas, de se candidatar

pela sexta vez ao governo do estado. Aliás, o Pacto de

Pedras Altas foi firmado entre os opositores

federalistas, liderados por Assis Brasil e governistas

de Borges de Medeiros e este acordo das elites

riograndenses abriu o caminho para a candidatura de

Vargas ao governo do estado. Por este acordo, torna-se

possível uma aliança das forças políticas republicanas

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e federalistas que seria decisiva para o movimento

político que levaria Vargas ao poder em outubro de 1930.

Podemos perceber também, neste arranjo das elites

gaúchas, o modo como o governador Borges de Medeiros foi

hábil na articulação de seu sucessor, fazendo Vargas,

primeiramente, Ministro da Fazenda e logo depois

candidato a governador. Entretanto, mesmo sob a tutela

de Borges de Medeiros, Vargas conseguiria reunir

opositores políticos tradicionais do Rio Grande do Sul,

articulação decisiva definir a sua liderança política

regional.

Observando-se as manifestações artísticas do período,

podemos concluir que a população estava esperançosa com

o novo governo de Washington Luiz, ao menos pelo fato de

ele ter terminado com um estado de sítio no Brasil, que

foi decretado por 4 anos pelo seu antecessor Arthur

Bernardes. O bom humor parecia ter voltado nas canções

populares e a autocensura havia abandonado a cabeça dos

artistas. Um bom exemplo são as músicas que ironizavam o

novo presidente e a famosa aliança regional entre as

elites de São Paulo e Minas Gerais, que ficou conhecida

como a política do café com leite. Podemos perceber esta

fina ironia popular em versos como estes de Freire

Junior:

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Café paulista, Leite mineiro, Nacionalista Bem brasileiro(...)3

Ou então, a marchinha que ficou conhecida como

Cavanhaque de bode onde os autores faziam sátira com o

novo presidente comparando-o a um bode, por causa de seu

cavanhaque. Na letra bem humorada e sem temor de

censura, percebe-se a boa receptividade do novo

presidente da república:

Diz que o bode vai dar sorte, quero vê pra acreditá, u-lê-lê, u-lá-lá,esse bode eu já conheço,

pois cresceu no meu quintá! (...)4

Aliás, as mudanças no cenário intelectual e político

eram marcantes desde o início da década de vinte. Os

impactos da primeira grande guerra que abalou o mundo já

tinham repercutido no Brasil em um momento anterior, e a

greve operária de 1917 foi um destes momentos críticos

que exigiu uma nova postura das elites políticas

brasileiras frente às manifestações populares. Sinais de

tempos de mudança, esta greve operária que teve o seu

mais impacto nas áreas industriais de São Paulo,

antecedeu em três meses aquele que seria um dos grandes

acontecimentos do século XX, a Revolução comunista na

Rússia. Indícios de grandes agitações de massa e também

a insinuação no cenário da política de novas e fortes 3 Café com Leite, maxixe de Freire Junior de 1926, copilado por Franklin Martins em sua página da Internet:http://redeglobo.globo.com/cgi-bin/franklinmartins/somnacaixa 4 O cavanhaque do bode, marcha de Nabor de Camargo e Dieno Castanho, de 1927, copilada por Franklin Martins, http://redeglobo.globo.com/cgi-bin/franklinmartins/somnacaixa

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tendências ideológicas contrárias ao liberalismo das

grandes potências capitalistas internacionais. Neste

sentido, os anos vinte se inauguram sob o impacto destas

novas ideologias, que iriam dividir as opções das massas

urbanas e rurais nas próximas décadas. O comunismo e o

fascismo no campo da política se tornariam as grandes

opções ideológicas que iriam promover movimentos

contrários à política liberal do grande capitalismo

internacional. Não é por acaso, que no início da década

de vinte eclodem no Brasil rebeliões militares

contrárias ao modelo liberal da república brasileira. Os

militares, por terem se envolvido na questão republicana

brasileira( os primeiros presidentes foram militares,

Deodoro da Fonseca, Hermes da Fonseca e Floriano

Peixoto), sentiam-se traídos pelo liberalismo das elites

civis que dominavam a política brasileira dando

privilégios aos grandes capitalistas do setores ditos

oligárquicos, que eram representados pelos negócios da

cafeicultura, do setor financeiro e industrial.

Evidentemente, este setor econômico dominante garantia-

se no poder por intermédio de pactos políticos com

elites de outros estados brasileiros e tinha-se a

impressão de que era possível a manutenção desta

situação política sem os riscos de contestação popular.

Como já havíamos antecipado, a década de vinte inaugura-

se com as rebeliões militares que pregam reformas no

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sistema político brasileiro, defendendo também a criação

de uma economia nacional, voltada predominantemente,

para o mercado interno. Apesar de não deixar explícita a

necessidade de uma política social de proteção do

trabalhador urbano e rural, estes movimentos abririam o

caminho para a defesa destas bandeiras no decorrer da

década de vinte. Ao mesmo tempo em que correram estas

manifestações militares que culminariam com a marcha de

Luiz Carlos Prestes pelo interior do Brasil, tivemos a

criação do Partido Comunista do Brasil em 1922, formado

por inúmeros militantes egressos do anarquismo e que

tiveram participação importante nas greves de 1917.

Ainda que não possamos delinear ideologicamente todas as

tendências políticas do período, uma coisa era patente.

Todas elas se opunham ao pacto político liberal

republicano das elites brasileiras. Sem dúvida, as

distinções ideológicas eram ainda pouco nítidas nestes

novos agentes políticos de oposição formando-se um arco

que percorria posições desde a esquerda mais radical até

a extrema direita. Haja vista que muitos dos militantes

políticos que estavam unidos neste período, ora optaram

por posições comunistas, ora por posições simpáticas ao

fascismo. Aliás, a própria marcha da Coluna Prestes

tinha com o que se inspirar, levando-se em consideração

a marcha sobre Roma de Benito Mussolini em 1922.

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A carta de Vargas a João Neves da Fontoura aceitando a

candidatura ao governo do estado vai ganhando novos

contornos quando a confrontamos com outras tendências

políticas do período. Para não nos atermos apenas

àquelas tendências já mencionadas e que ainda voltaremos

a falar delas, há que se considerar a enorme importância

da criação, em 1926, do Partido Democrático Nacional,

porque nele se revelaria a mais profunda cisão que

ocorreu nas elites civis políticas brasileiras desde a

instalação da república em 1889. Se até agora, estávamos

nos referindo às oposições políticas em um arco

ideológico correspondente às ideologias do comunismo e

do fascismo, não seria este o recorte ideológico do

Partido Democrático. Ao contrário daquelas correntes

ideológicas radicais, este partido político procurou a

sua definição no interior da doutrina liberal, num

liberalismo mais progressista, capaz de incorporar o

operariado ao campo da política, defender um capitalismo

menos dependente das oligarquias financeiras

internacionais, mais voltado para o desenvolvimento do

mercado interno, promovendo a agricultura e a indústria

nacionais, bem como defendendo uma reforma política pelo

voto secreto para combater o sistema de perpetuação das

grandes oligarquias político-financeiras que dominavam a

república brasileira.

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A criação do partido Democrático no âmbito das elites

políticas , principalmente, paulistas seria decisiva

para a organização das alianças de oposição que

acabariam por conduzir Vargas ao poder em outubro de

1930. Em torno do programa do Partido Democrático as

oposições se aglutinariam e aos poucos iriam depurar os

elementos mais extremistas situados à esquerda e à

direita do espectro político. Não por acaso que logo

após o golpe de 1930, o maior líder dos revolucionários

da década de 20m, Luiz Carlos Prestes se filiaria ao

Partido Comunista, ao mesmo tempo em que é criado em São

Paulo a Ação Integralista de Plínio Salgado, organização

de cunho abertamente fascista. Como já havíamos

mencionado, o programa do Partido Democrático tornar-se-

ia a base de acordo dos setores oposicionistas e

autodenominados anti-oligárquicos, principalmente por:

1) Defender os princípios liberais consagrados na Constituição, tornando uma realidade o

governo do povo pelo povo e opondo-se a qualquer revisão constitucional que implique

restrições às garantias e liberdades individuais;

2) Pugnar pela reforma da lei eleitoral, no sentido de garantir a verdade do voto,

reclamando, para isso, o voto secreto e medidas asseguradoras do alistamento, do

escrutínio, da apuração e do reconhecimento;

3) Vindicar para a lavoura, para o comércio e para a indústria a influência a que têm

direito, por sua importância, na direção dos negócios públicos;

4) Suscitar e defender todas as medidas que interessam à questão social;

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5) Pugnar pela independência econômica da magistratura nacional e pelo estabelecimento

de uma organização judiciária em que a nomeação dos juizes e a composição dos

tribunais independam completamente de outro qualquer poder público.

6) Pugnar pela independência econômica do magistério público e pela criação de um

organismo integral de instrução, abrangendo o ensino primário, secundário, profissional e

superior.5

Sintomaticamente, não apenas no âmbito das elites

apareceram as nítidas cisões políticas por volta de

1926. Nos meios operários, depois de um pequeno período

de legalidade do Partido Comunista, já em 1927 seria

criado o Bloco Operário, para em 1928 se transformar em

Bloco Operário e Camponês, agremiação de esquerda,

subordinada ao Partido Comunista do Brasil que tinha

como objetivo levar os operários à participação político

partidária, em concordância com as outras tendências de

oposição, como era o caso do Partido Democrático. Em seu

manifesto de criação o Bloco Operário mostrava-se

suscetível às alianças políticas que combatessem o

grande capital e o imperialismo, defendendo a

participação de candidatos compromissados com o

operariado no sistema político representativo

republicano:

5 Extraído de Nazaré Prado, Antonio Prado no Império e na República, Rio de Janeiro: F. Briguiet Editores, 1929, pp. 390-2, apud Edgar Carone (org.), A Primeira República (1889-1930): texto e contexto. 2a ed. amp. São Paulo: Difusão Européia do Livro, s/d.

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Nós não queremos uma política de promessas fáceis e vãs. Queremos pelo contrário, uma

política de compromissos partidários, portanto de responsabilidades.(...) Queremos que os

deputados proletários que representam o interesse do proletariado e são eleitos pela

massa proletária sejam responsáveis por seus atos perante as organizações proletárias.6

Esta mudança de posição no interior do movimento

operário representou uma quebra significativa das

antigas posturas de cunho anarquistas, criando-se a

impressão de que as primeiras levas de imigrantes

italianos já estavam saindo da cena da história, dando

lugar para uma nova geração de operários já nascidos no

Brasil e com pouca propensão pelas doutrinas políticas

defendidas pelos seus antecessores. Diante desta nova

postura política estreitam-se os espaços para aqueles

que não pretendiam jogar o movimento operário no sistema

de alianças político partidário de oposição. Assim foram

descritos os anarquistas pelos comunistas, em 1927,

quando da criação do Bloco Operário no momento em que se

defendia também a criação de uma Confederação sindical

controlada pelos comunistas:

Em todas as partes do mundo são sempre os mesmos elementos que no seio do

proletariado levantam obstáculos para a realização da unidade sindical. Também no

Brasil, os anarquistas e reformistas dão as mãos contra os comunistas, combatendo a

obra pró Confederação Geral do Trabalho tão espontaneamente aceita pelas massas.

6 O Programa do Bloco Operário, A Nação, 17-2-1927

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admitem discussão da questão da unidade sindical e do movimento pró-CGT. Em sua

cegueira sectária e dogmática, basta que este movimento seja encabeçado pelos

comunistas para que desapareça chagado com todos os males do passado.7

As acusações de sectarismo devem ser vistas com cautela

neste caso, porque é evidente a tentativa de controle do

movimento operário por parte dos comunistas, estratégia

condizente com as orientações da III Internacional

comunista em todo o mundo. Este período, aliás,

caracterizou-se pelo sectarismo da política comunista,

sendo o sinal mais evidente a marginalização de Trotsky

do Partido Comunista da União Soviética e a ascensão ao

poder de Joseph Stalin em 1927. Não deixa de ser

sintomático que este curto período que estamos estudando

tenha visto surgir os grandes líderes autoritários do

início do século XX, tais como Mussolini, Stalin, Hitler

e porque não incluir neste rol o próprio Getúlio Vargas.

Todos estes líderes tinham posições políticas contrárias

ao liberalismo e suas ideologias pendiam da esquerda à

extrema direita. Não é absolutamente fortuito que o

comunismo no Brasil e em outras partes do mundo tenha

combatido o anarquismo nos meios operários, com a mesma

força usada para combater o liberalismo das elites

capitalistas. Tanto para o comunismo como para o

fascismo, o anarquismo e o liberalismo não deixavam de

7 Astrogildo Pereira” El camino de la unidad sindical em Brasil, La correspondencia Sudamericana, março de 1927. Apud. Paulo Sergio Pinheiro e Michael HaLl, A classe operária no Brasil(1889-1930-documentos)

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ser as faces de uma mesma moeda. As frentes

oposicionistas ao governo republicano que se formaram na

segunda metade da década de vinte tiveram estas

conotações ideológicas. De um lado, colocaram-se

abertamente contra o liberalismo e pelo flanco esquerdo

liquidaram a presença anarquista nos meios operários,

tanto na América latina como em alguns países da Europa,

exceção feita à Espanha.

Um outro aspecto ideológico muito presente no campo da

política foi o sentimento nacionalista, que já havia se

exacerbado por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Neste

conflito internacional, as aspirações nacionalistas

moveram as massas para os campos de batalha e depois do

fim da guerra, tanto os países vencedores como os

vencidos fizeram tremular as bandeiras nacionais, com

maior ênfase nestes últimos. No Brasil, a questão

nacional suscitou os movimentos políticos

revolucionários de 1922 e 1924, liderado por civis e

militares que ficaram conhecidos depois como “os

tenentes” e também se tornou a principal bandeira da

coluna Prestes. No campo da cultura, o movimento

modernista da Semana de 1922, principalmente depois de

um início de orientação cosmopolita e muito bem

aquinhoado de saudações das vanguardas européias,

voltou-se para o nacionalismo e se afirmou em atitudes

que ora se aproximavam do socialismo, ora se ligava ao

20

fascismo. Por este motivo, muitos dos intelectuais que

lideraram a Semana de Arte Moderna de 1922 cerraram

fileiras no comunismo ou no integralismo, lá pelo final

dos anos vinte e início da década de trinta.

As várias faces do nacionalismo

De fato, muitas mudanças estavam em curso no Brasil dos

anos vinte e nesta época Getúlio Vargas entrou na cena

política como deputado do Partido Republicano. Elegeu-se

como deputado para a Câmara Federal em 1924 e estes

foram anos decisivos para esta personagem emblemática da

política brasileira. Dentre as curiosidades documentais

mais intrigantes que pudemos associar a Getúlio Vargas,

há uma em especial, que merece a nossa atenção. Trata-se

de uma foto de Getúlio Vargas lendo a revista francesa

Paris Match de 24 de abril de 1951. Nela, a personagem

soberba de Vargas está fumando um cachimbo, lendo com

atenção uma reportagem sobre o encontro dos assassinos

do fascinante aventureiro Fawcett.

21

Foto de Vargas com o Paris

Match

Por estranha coincidência, a reportagem da revista

francesa trazia para o cenário da história, um

acontecimento que havia causado muita consternação nos

idos de 1925. Vargas olha atento a revista e se sente

orgulhoso com a possível descoberta dos assassinos do

Coronel Percy Fawcett, um explorador inglês que havia

desaparecido nas selvas de Mato Grosso. Isto porque o

desaparecimento de Fawcett havia se tornado um

verdadeiro mistério internacional, criando-se hipóteses

desde as mais razoáveis até as mais mirabolantes que

procuravam solucionar o fantástico mistério. Sabe-se que

Fawcett conquistou o publico internacional com as suas

viagens mirabolantes em busca do continente perdido da

Atlântida e nesta procura alucinante realizou nada menos

do que 8 viagens ao Brasil e à Bolívia. Notícias de

possíveis pistas de uma cidade perdida nas selvas

22

brasileiras circularam nos jornais de vários países do

mundo, principalmente, a partir de 1911. Os mistérios do

continente perdido que embalou os sonhos de Fawcett

acabaram por sensibilizar nada mais, nada menos do que o

escritor Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock

Holmes. Em 1911, Doyle ouviu uma conferência de Fawcett

na Royal Geographic Society de Londres sobre as suas

buscas incansáveis e inspirado por estes relatos

mrabolantes escreveu um dos seus contos mais

fascinantes, The Lost World e que não contou com o seu

maior personagem, Sherlock Holmes. Apesar da ausência do

famoso detetive, o romance de Conan Doyle alcançou

sucesso imediato e ajudou a projetar ainda mais o nome

de Fawcett. Tão conhecidas ficaram as aventuras de

Fawcett, que em 1925 estreava a primeira versão de

cinema mudo do romance de Doyle, O Mundo Perdido. Depois

desta, outras versões desta aventura fantástica foram

filmadas e a última é a de 1955, alguns anos depois da

revista Paris Match fazer a reportagem de capa. Afinal,

o desvendamento do mistério do desaparecimento de

Fawcett estaria projetando Vargas no cenário

internacional europeu em 1951, uma vez que foi a

expedição de Oswaldo Villas Boas pela Funai (Fundação

Nacional do Índio) quem teria descoberto a tribo

indígena responsável pela morte do aventureiro.

23

Segundo a versão de Villas Boas, a tribo Kalapagos

aprisionou o explorado inglês e seu filho por eles terem

matado um canário e machucado uma criança índia.

Afogaram ambos em um rio e em seguida os enterraram

debaixo de uma árvore. Na expedição da Funai os índios

levaram Villas Boas até o local onde Fawcett e o filho

haviam sido enterrados e exibiram os seus restos

mortais. De fato, a reportagem lida por Getúlio no Paris

Match dava todos os créditos à expedição financiada pelo

governo brasileiro e isto era motivo para uma grande

propaganda. Afinal, o governo de Vargas estava ajudando

a solucionar um mistério que se manteve sem solução

desde os idos de 1925, ano em que Vargas começava a

ascender na vida política como deputado estadual.

No entanto, podemos admitir outros encontros inesperados

naquele ano de 1925. Também a Coluna Prestes inicia sua

grande marcha pelo Brasil a partir do Rio Grande do Sul.

Na verdade um dos líderes revolucionários de 1924, Luiz

Carlos Prestes, que havia combatido o estado de sítio do

presidente Arthur Bernardes, também iniciava a sua

carreira política no mesmo estado em que Vargas iria se

candidatar a governador. Evidentemente, estas

coincidências tornam ainda mais enigmáticos os meandros

da história republicana e os dois líderes políticos

teriam uma longas trajetórias políticas de encontros e

desencontros. Na verdade, a Coluna Prestes, em 1925,

24

buscava despertar os sertões brasileiros para a luta

contra as oligarquias e acreditavam os seus líderes que

uma longa marcha seria o estopim de uma revolta

nacional. Assim, como o Coronel Fawcett, a Coluna

Prestes também se embrenhou pelas selvas de Mato Grosso

caminhando em direção à Bolívia e Paraguai. Depois deste

longo percurso, retornou ao Brasil e do estado de Goiás

partiu em direção ao nordeste, chegando até o estado do

Maranhão. Apesar de seu pequeno êxito político, a Coluna

acabou se tornando um emblema da luta contra elites

brasileiras republicanas. Este prestígio atingiu o auge

no ano de 1928, quando jornais do Rio e de São Paulo

criaram listas de contribuições para os revolucionários

que se encontravam exilados na Bolívia, Uruguai e

Argentina. O próprio Luiz Carlos Prestes, residindo em

Buenos Aires era chamado de lider da revolução e tinha a

simpatia de todas as correntes políticas de oposição ao

governo de Washington Luiz. Contando com o apoio do

dissidente Partido Democrático nacional, criado em 1926,

com dissidências republicanas regionais, dentre elas a

do Rio Grande do Sul e com as correntes comunistas que

estavam dominando os sindicatos operários, Prestes viria

a ser tornar o líder de uma revolução nacional de ampla

envergadura. A inspiração política e ideológica da

revolução pretendida por estes setores de oposição

coincidia com a tendência anti-imperialista de

25

movimentos políticos da América Latina, destacando-se

principalmente a Frente de Libertação Nacional da

Nicarágua liderada por Sandino. Tamanha foi a

repercussão da luta de Sandino, que no Brasil, líderes

revolucionários civis como Maurício de Lacerda chegaram

a criar propostas de frentes anti-imperialistas para

aproximar as oposições com as tendências da III

Internacional Comunista. Em 1928, nenhum líder político

reunia tantas preferências como Luiz Carlos Prestes e

seria impensável imaginar que um ano depois, Prestes

abandonaria a frente de oposições, deixando o caminho

aberto para que Getúlio Vargas, um político ainda pouco

conhecido, viesse a liderar o movimento que tomaria o

poder em outubro de 1930, proclamando ter feito uma

revolução nacional. Há um famoso manifesto escrito por

Luiz Carlos Prestes em 1929, onde são colocados os

motivos da radicalização política do movimento

revolucionário e que deve ter desagradado muitas das

dissidências civis regionais.

As ultimas controversias politicas, largamente discutidas pela imprensa do paiz, envolvem,

de tal fórma, o meu nome no enredo das conjecturas com que se tem apreciado a situação

da minoria revolucionaria perante a nação, que nos sentimos obrigados a vir positiva-la

definitivamente, esclarecendo-a sobretudo, no que diz respeito ás suas ligações com os

partidos politicos de opposição.

Ha, por parte dos que, até agora, tem julgado interpretar o nosso pensamento, deante da

conducta dos partidos, um erro inicial, e grave de apreciação. Esse erro reside, antes de

tudo, na presupposição de que ha, entre as collectividades partidarias e os chefes

26

revolucionarios, compromissos reciprocos de qualquer natureza. Essa supposição é

descabida, porque implica numa generalisação falsa. Os vinculos de verdadeira

solidariedade que nos ligam a alguns chefes democraticos não implicam em qualquer

compromisso, mesmo tacito, entre a revolução e os partidos a que elles pertencem.

Os partidos, coherentes com o seu ponto de vista politico, organisaram seus programmas,

elegendo a propaganda pacifica, pela dignificação do voto, em arma pre-excellente para

executal-os. Suas "élites" directoras estão sinceramente convencidas da efficiencia dessa

actuação pacifica. É natural, portanto, que a préguem, num intenso apostolado civico, cuja

sinceridade não podemos contestar.

Nós, os revolucionarios, somos inteiramente descrentes das possibilidades de uma

solução efficiente, para o caso brasileiro, dentro dos tramites constitucionaes. Nem

cremos que os partidos de opposição consigam, pelo voto, desalojar de suas posições

os actuaes donatarios do poder, nem lobrigamos como, depois de vencerem essa

primeira etapa, poderão desembaraçar-se, legalmente, do acervo monstruoso de

erros e rotinas com que alguns decennios de legislação criminosa contaminaram as

instituições do paiz.(grifos nossos)

Santa Fé, 8 de Março de 1929. - (a. ) Luiz Carlos Prestes 8

Não há do que se estranhar diante destas disposições do

revolucionário Luiz Carlos Prestes. Com o seu

pronunciamento ficaram implícitas as opções políticas

das dissidências partidárias regionais, destacando-se

inclusive aquela que seria representada por Getúlio

Vargas. Diante da possibilidade de uma radicalização

política, as lideranças civis estaduais criaram o

movimento da Aliança Liberal que lançaria a candidatura

de Vargas à presidência da república concorrendo com o

candidato oficial de seu próprio partido republicano, o

paulista Julio Prestes. Procurando se aproximar de 8 Folha da Manhã, 18 de março de 1929

27

lideranças revolucionárias menos radicais e afastando

progressivamente da frente de oposição os sindicatos e

organizações políticas proletárias como o recém criado

Bloco Operário e Camponês, a Aliança Liberal iniciou em

1929 a desmontagem de um movimento revolucionário que

trazia em sua composição inúmeras propostas de

transformação política do Brasil. A Aliança Liberal teve

mais êxito do que a frente revolucionária de oposição

arquitetada por Luiz Carlos Prestes e logo depois de sua

derrota nas urnas, Getúlio Vargas daria início à sua

marcha em direção ao Palácio do Catete com o objetivo da

tomada de poder. Iniciava-se em 1929, uma acirrada

disputa entre Vargas e Luiz Carlos prestes, que se

tornaria o líder comunista mais importante do Brasil

durante mais de 50 anos. Destas inimizades haveria ainda

outras mais agudas, dentre elas a criação de um

movimento anti-fascita que tinha como objetivo combater

o regime político de Vargas, em 1935. A Aliança Nacional

Libertadora transformou-se em uma bandeira contra o

fascismo e seu principal inimigo era o líder político

Getúlio Vargas. Entretanto, a habilidade política de

Prestes mostrou-se mais uma vez muito limitada e o seu

movimento foi derrotado por Getúlio, sem ter conseguido

a arregimentação popular tão esperada. Sua prisão

aconteceu em 1936, juntamente com a sua esposa Olga

Benário que, posteriormente, seria entregue às prisões

28

do nazismo alemão pelo ditador Getúlio Vargas. O próprio

Getúlio soube muito bem aproveitar as manifestações

pouco eficientes da ANL e dois anos depois de sua

derrota alardeou aos quatro ventos que uma grande

conspiração comunista estava em curso no Brasil. Este

foi o seu principal pretexto para a decretação da

ditadura corporativista do Estado Novo em 1937, que

muita semelhança guardou com o fascismo italiano. A

esposa de Luiz Carlos Prestes foi assassinada pelo

nazismo e ele mesmo ficou confinado nas prisões do

Estado Novo até 1945.

Entre a carta de aceite à candidatura ao governo do Rio

Grande do Sul endereçada a João Neves da Fontoura e

reportagem da revista francesa, todo um período

histórico havia transcorrido. Entretanto, nada havia

mudado a atitude soberba de Vargas. Ele havia sido

apeado do poder em 1945, logo após o fim da Segunda

Guerra Mundial e voltado à presidência da república nos

braços do povo em 1950. Na época da publicação da

revista Paris Match, Vargas já não era o ditador

populista que havia implantado a ditadura do Estado

Novo. Precisando se valer do apoio popular para se

manter à frente do governo brasileiro, Vargas buscou nas

bases sindicais que ele mesmo havia criado na época da

ditadura do Estado Novo. Entretanto, a sua arrogância

não havia se alterado, como podemos observar na foto de

29

1951, em que ele empunha uma metralhadora de fabricação

nacional. São as faces de uma mesma moeda, o

desvendamento do mistério do desaparecimento do Coronel

Fawcett e a agressiva e orgulhosa demonstração de poder

com as suas mãos em uma metralhadora, provavelmente,

fabricada com o aço da Companhia Siderúrgica Nacional,

empresa estatal criada durante a ditadura do Estado

Novo. Este foto de Vargas revela também a sua maneira de

jogar com as ambigüidades. Não deixa de ser prepotente

um líder populista que se manteve no poder através de

uma ditadura de caráter fascista que durou de 1937 a

1945, aparecer já no início da década de 50 com uma

metralhadora em punho, fabricada com o aço de uma

Companhia Siderúrgica que foi financiada com capitais

americanos. Um líder populista de muita habilidade

política que negociou o seu apoio à luta contra o

nazismo e o fascismo, em troca do financiamento

americano a uma siderurgia nacional. Esta associação

entre guerra e industrialização e estado ditatorial,

acabou se tornando a marca registrada deste líder

político, mesmo depois de ter se tornado um presidente

eleito.

Dentre os documentos que indicam a existência de uma

relação diplomática de troca de favores entre o Brasil e

os Estados Unidos, destacamos o bilhete escrito por

Vargas por ocasião da visita do presidente dos EEUU ao

30

Brasil em 1943. A visita ao Brasil de Franklin D.

Roosevelt pretendeu selar um compromisso público visando

consolidar a aliança do governo brasileiro ao governo

americano na luta contra o fascismo e o nazismo. A

presença de Roosevelt ocorreu na cidade de Natal, uma

cidade de localização estratégica para a geo-política

americana, que pretendia usar o nordeste brasileiro como

base de para o exército americano. Evidentemente, todas

estas gentilezas, apoio e financiamento dos EEUU à

industria siderúrgica brasileira só se consolidaram

depois das ameaças feitas por Getúlio Vargas, em 1941,

prometendo aliar-se aos países do eixo nazi-fascista.

Hoje, passados muitos anos, outros documentos vieram à

tona e um deles publicado em 06/10/2002 no Jornal do

Brasil, refere-se a um mapa elaborado pela Alemanha

Nazista em 1941, onde há uma redefinição dos espaços

territoriais e nacionais da América do Sul. A existência

deste mapa chegou a ser mencionada pelo próprio

presidente em discurso de outubro de 1941:

''Os peritos geógrafos de Berlim obliteraram brutalmente todas as linhas divisórias para

reduzir a América do Sul a cinco estados vassalos, todos sob dominação alemã''

Não é de se estranhar, neste sentido, o empenho da

diplomacia americana em assegurar bases militares no

nordeste brasileiro e facilitar as linhas de

financiamento à industria siderúrgica e à industria

nacional de motores. O mapa elaborado pelo nazismo,

31

ainda que de origem duvidosa, foi utilizado

politicamente pelo presidente dos EEUU e hoje sabemos

qual foram as propostas de redivião territorial da

América Latina. Segundo o documento publicado:

1- O Brasil perderia os Estados da Região Sul do país, no novo

desenho do continente.

2- A Argentina absorveria o Uruguai, o Paraguai, toda a parte baixa

da Bolívia e um corredor para o Pacífico na altura de Antofagasta;

com isso, o território do país vizinho se estenderia em direção à

Amazônia, indo muito além de Corumbá.

3- O Chile perderia sua parte inferior, e incluiria o restante do Peru

e da Bolívia.

4- Surgiria a Nova Espanha, formada pela Colômbia, Venezuela e

Equador, mais o Panamá e a Zona do Canal.

5- As três Guianas seriam unificadas.

32

Os Presidentes Vargas e Roosevelt em natal – Pintura a

óleo - 1943

Bilhete anunciando a vinda de

Roosevelt

33

Foto de Getúlio com a metralhadora

As intrigantes relações históricas que estes documentos

estabelecem dão uma dimensão mais abrangente do tempo de

permanência de Vargas no cenário político nacional. Em

1926, ele estava apenas articulando os seus primeiros

movimentos. Não fosse o silêncio que pairou sobre a

história brasileira anterior a 1930, muita coisa já

teria sido devidamente conhecida. Como mencionamos

anteriormente, o nacionalismo constituiu-se em uma

bandeira de muitos matizes e colorações. Até mesmo o

Partido Republicano de inspiração liberal havia

percebido a importância política desta bandeira

carregada de sentimentos de xenofobia. Dentre as

manifestações culturais mais curiosas e que ironizou

este surto nacionalista dos anos vinte, destacamos a

obra, muito bem humorada, do escritor modernista Antonio

de Alcântara Machado, Laranja da China, publicada naqueles

agitados anos.9 Em 1928, o autor elaborou de modo

9 Antonio Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda – Laranja da China, Editora Martin Claret, SP, 2002

34

magistral os traços da alma brasileira, quais sejam, a

revolta, o patriotismo e o lirismo. Nada mais apropriado

do que os traços desta caricatura para aquela geração

dos anos vinte, que aliou o inconformismo dos movimentos

políticos e culturais aos traços de um exacerbado

nacionalismo e de um lirismo transbordante e piegas.

Seria impossível desenhar um retrato mais profundo e

mais eloqüente destes anos e o próprio título Laranja da

China, hoje precisaria de uma explicação. Na época todo o

mundo sabia que Laranja da China é a forma onomatopéica

burlesca da introdução do Hino Nacional. Não é difícil

fazer a simulação da introdução de nosso hino

utilizando-se desta paródia, laranja da china, laranja da china,

laranja da china...abacate, cambucá e tangerina. Esta paródia muito

bem humorada criada, inicialmente, pelo poeta Mario de

Andrade, um dos expoentes da Semana de arte Moderna de

1922 em seu livro de poesias Paulicéia Desvairada, foi muito

bem apropriada para a coletânea de contos de Alcântara

Machado, que traçaria com muita ironia os traços da

personalidade brasileira em 1928.

Nas Asas da VARIG

Daquela carta de Vargas a João Neves da Fontoura

aceitando a sua candidatura ao governo do Estado do Rio

Grande do Sul, podemos inferir que o esta experiência

política se tornaria quase que um laboratório para a

35

preparação de um exercício de poder em nível nacional.

Alguns dos mais fiéis ministros de Vargas na década de

trinta, teriam a sua preparação no governo do Rio Grande

do Sul. Encontraremos dentre eles, não somente o futuro

ministro Oswaldo Aranha, mas também Lindolfo Collor e

Maurício Cardoso. Não pode ser negligenciada esta

experiência política regional, uma vez que inúmeras

reformas já tinham sido ensaiadas durante o governo

estadual. De todos estes personagens, o mais proeminente

foi sem dúvida, Oswaldo Aranha, que somente não

suplantou a Vargas. No entanto, foi o principal

articulador da política externa brasileira e através

dele articulou-se uma diplomacia de grande astúcia e

habilidade, num período em que o mundo ocidental se

debatia entre as opções do liberalismo, do fascismo e do

comunismo. Além dele, destaca-se também Lindolfo Collor,

o primeiro Ministro do Trabalho do Brasil, responsável

pela implantação da legislação trabalhista nos primeiros

anos do governo Vargas.

Mas, os ensaios de uma política de corporativismo

sindical arregimentando setores empresariais ligados ao

mercado interno já podiam ser percebidos em sua passagem

pelo governo do Rio Grande do Sul. A perspectiva de

atuação política num sistema corporativo parece ter sido

a marca da administração de Vargas. Incentivou a

sindicalização dos empresários ligados ao charque e dos

36

estancieiros, assim como já tinha havido a

sindicalização do setor ligado ao plantio e

beneficiamento do arroz. A sindicalização proposta por

Vargas tinha um objetivo muito claro, isto é, fortalecer

o mercado os setores de produção agro-industriais

ligados ao mercado interno, permitindo a manipulação dos

preços dos respectivos produtos. Entretanto, a reforma

política do Estado não se limitou ao incentivo à

sindicalização. Vargas se utilizou dos recursos públicos

para criar um banco estadual com 2/3 do capital inicial.

Segundo um estudo pioneiro de um historiador americano,

“ o impulso organizatório dos estancieiros, charqueadores e produtores de

arroz era o sintoma de um aumento geral da ‘associatividade’ no Rio

Grande, no término da década de vinte. Viticultores e fabricantes de banha

também formaram sindicatos e os comerciantes organizaram uma

Federação das Associações Comerciais do Estado. Das 70 e tantas

associações comerciais, agrícolas e pecuárias existentes n Rio Grande em

1930, quase a metade se formou entre 1926 e 1929. Vargas aprovava essa

tendência; efetivamente, seu governo encorajou-a patrocinando novas

associações de grupos de interesses.10

Estes impulsos corporativistas que entraram em vigor no

Rio Grande com a chegada de Vargas ao governo contrastam

sobremaneira com a posição do grande empresariado

paulista.

10 Joseph Love, O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de trinta,Ed. Perspectiva, SP, 1975, p.241

37

Ao contrário do que acontecia no Rio Grande do Sul, o

empresariado paulista era avesso à sindicalização e

aqueles que se colocavam favoravelmente ao tema, como o

empresário Roberto Simonsen, não admitiam a intervenção

do estado na esfera dos seus negócios. Deste

posicionamento ideológico acabou resultando a criação do

Centro de Indústrias do Estado de São Paulo(CIESP), que

com a sindicalização obrigatória da legislação de Vargas

se transformaria na famosa FIESP(Federação das

Industrias do Estado de São Paulo). Este centro

pretendia não apenas organizar o empresariado para o

combate à legislação trabalhista promulgada nos anos

finais da década de vinte, como pretendia também

organizar o empresariado para uma participação mais

ativa na formação das elites políticas nacionais. Não é

por mero acaso, que estes empresários, tendo à testa

Roberto Simonsen, fundaram em 1933 a famosa Escola Livre

de Sociologia e Política, em São Paulo. Esta escola de

nível superior tinha o objetivo de formar lideranças

empresariais que pudessem se constituir em novas elites

brasileiras com educação mais técnica e científica do

que bacharelesca. Com este espírito liberal inspirado em

Henry Ford nascia em 1928 por iniciativa do empresário

Roberto Simonsen, o CIESP. Na inauguração deste Centro

que Roberto Simonsen pronunciou um discurso que se

tornaria emblemático para o grande empresariado paulista

38

que se opunha abertamente às pretenções políticas das

oposições brasileiras. Defendendo abertamente a aliança

republicana dos grandes industriais paulistas com o

setor exportador cafeeiro, Simonsen exortava a união

empresarial:

“As indústrias paulistas que reúnem força, capital e inteligência tinham as suas

associações isoladas, reunindo cada uma delas um ramo. Para que sua eficiência se fizesse

sentir e os seu interesses pudessem ser examinados e defendidos com êxito, tornava-se

indispensável a sua congregação. Era preciso que se formasse um bloco único. Duas

cLasses valorosas, que tanto quanto as indústrias concorreram e concorrem para a

grandeza e a prosperidade de São Paulo, possuíam os seus centros: o comércio e a

lavoura. Esses centros sempre pugnavam em prol dos direitos das cLasses conservadoras,

mas era forçoso reconhecer que as industrias têm problemas outros a debater, interesses

que não poucas vezes estão em choque com os interesses do comércio e da lavoura(...)11

Deste modo, a grande indústria sediada em São Paulo já

dava indícios de que seria uma pedra no sapato de

Vargas, sendo contrária não somente às formas

corporativas de associação, mas avessa à intervenção do

estado nas relações entre o capital e o trabalho. Fiéis

aos princípios rígidos de um liberalismo inspirado na

doutrina americana de Henry Ford, o empresariado da

grande indústria paulista, ainda defendia com afinco a

idéia de que a questão social era uma questão de

polícia. Evidentemente, esta posição acabou sendo

completamente desvirtuada pelo discurso da revolução de 11 Discurso de Roberto Simonsen publicado no Jornal do Comércio de 29/03/1928, apud Edgar de Decca, 1930: O silêncio dos vencidos, Editora Brasiliense, SP, 1997, ps. 156, 157

39

trinta, imputando ao empresariado paulista a pecha de

repressor. Mas não é nada disso que se pode depreender

da idéia destes empresários. Eles apenas eram fiéis aos

princípios do liberalismo, segundo os quais, não cabe a

intervenção do estado na esfera privada doas relações

entre o capital e o trabalho. Neste sentido,

compreendemos porque estes empresários eram contrários

à promulgação das leis trabalhistas que começavam a

existir no Brasil, a partir de 1927, em pleno governo de

Washington Luiz. Deste modo, estes empresários não só

não concordavam com uma legislação trabalhista, como

queriam ver o Estado bem longe das fábricas e por este

motivo, julgavam que a questão social, quando descambava

para conflitos grevistas que perturbavam a ordem

pública, deveria ser objeto de ação policial e não de

qualquer tipo de justiça do trabalho. Apesar da

aparência absurda e desumana, este posicionamento

empresarial não foi mais repressivo do que a legislação

Varguista, que terminou com a promulgação da

Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1942, em pleno

regime ditatorial do Estado Novo.

Tampouco, foi o empresariado paulista uma voz solitária

contra a intervenção do estado nas relações entre

capital e o trabalho, O movimento anarquista também

negou terminantemente a intromissão da política estatal

nestas relações trabalhistas e somente com o crescimento

40

da atuação dos comunistas nos sindicatos operários,

principalmente depois de 1926, é que o operariado

começou a defender esta legislação. Contudo, é

importante frisar que a aceitação de uma legislação

trabalhista pelos comunistas, não se assemelhava em nada

com o corporativismo implantado por Getúlio. Ao

contrário, durante os primeiros anos de governo, entre

1931 e 1936, os comunistas e os anarquistas lutaram

contra a sindicalização compulsória exigida pela nova

legislação autoritária e se opuseram à intervenção do

Estado nos sindicatos operários. Assim como o movimento

operário, a sindicalização foi um processo difícil entre

o grande empresariado paulista e só ganhou adesões por

parte de setores do pequeno e médio empresariado. A

desconfiança do empresariado paulista quanto à presença

do Estado na economia era tão grande que por ocasião da

criação da Companhia Siderúrgica Nacional o industrial

Roberto Simonsen saiu de mãos abanando, ao convidar o

setor paulista a investir seus capitais em negócios do

governo federal.

Dentre as iniciativas empresariais que foram estimuladas

pelo governo Vargas no Rio Grande a mais emblemática foi

sem dúvida a criação da primeira empresa aérea

brasileira, a VARIG.(Viação Aérea Rio-Grandense), em

1927. Inicialmente formada com capitais de empresários

teuto-brasileiros e brasileiros a empresa aérea operou

41

os vôos entre Pelotas e Porto Alegre e aproveitando-se

das novas proezas da aviação internacional, que já em

1928 presenciava um vôo que cruzava o oceano Atlântico

ligando a Europa com a América do Sul, pode se tornar um

exemplo de iniciativa empresarial capitalista. O autor

desta proeza, o piloto francês Jean Mermoz se

encontraria com Getúlio Vargas alguns anos mais tarde.

Em 1933, voando nas asas do “Arc en Ciel”, Mermoz realizou a

proeza de cruzar o Atlântico no primeiro vôo comercial e

Vargas de tão entusiasmado convidou o projetista da

aeronave, o francês Jean Couzinet, para fundar uma

fábrica de aviões no Brasil.

A Coruja do final da tarde

Toda a história até aqui se iniciou com uma carta

sigilosa de Vargas ao seu amigo de muitos anos João

Neves da Fontoura. Dizem alguns que a coruja da teoria

voa ao final da tarde, quando o sol se põe no céu da

história, podemos avaliar a sua trajetória completa. Se

quisermos adotar este procedimento poderíamos aventar

pelo menos duas teorias muito utilizadas para a

interpretação do movimento que levou Vargas ao poder em

1930. Evidentemente, não podemos aplicar estas teorias

sobre os discursos por Vargas pronunciados, porque seria

o mesmo que reafirmar as marcas históricas deixadas pelo

vencedor das contendas políticas do período. Melhor

42

seria analisar o contexto de uma época à luz de seus

próprios discursos políticos. Observando-se a intensa

agitação política dos anos vinte no Brasil, um autor

como Karl Marx resumiria os acontecimentos de 1930 do

mesmo modo como ele resumiu o golpe de Estado de Luis

Bonaparte em 1848, na França.12 Em seu famoso texto

intitulado O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Marx defende

a tese de que em momentos de confusão política, quando

uma crise de hegemonia de uma elite ou classe se

avizinha, ao mesmo tempo em que não há ainda um

proletariado organizado, há a possibilidade de que um

aventureiro qualquer empolgue as massas desempregadas

urbanas e os pequenos camponeses para a tomada do poder

político. Enfim, até um líder de pouca expressão poderia

se tornar um ditador no momento em que há a ausência de

um projeto político hegemônico de uma nova classe

ascendente, como seria o caso de uma burguesia

industrial. Fazendo analogia com o caso brasileiro, a

burguesia industrial paulista encontrava-se atada aos

grandes fazendeiros do café e ao mesmo tempo, o

proletariado urbano ainda não era suficientemente forte

e expressivo, politicamente falando. Nessa medida, um

líder inexpressivo como Vargas poderia sair vitorioso

por ser capaz de seduzir as massas pobres urbanas e os

setores rurais não satisfeitos com os privilégios de um

12 Karl Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, apud. Os Pensadores, Editora Abril, SP, 1974

43

setor exportador ligado às finanças internacionais. Sem

dúvida alguma, uma explicação como esta tem certas

vantagens, mas deixa de lado a questão de que em

história os modelos só são apropriados para uma

explicação a posteriori. Deste modo, poderíamos aplicar tanto

o modelo utilizado por Marx para explicar o golpe de

Luis Bonaparte na França, como também outros que

levassem em consideração este conjunto de variáveis.

Um modelo mais ou menos parecido com o de Marx e que foi

muito utilizado para se interpretar o sucesso do golpe

de Getúlio Vargas em 1930 é o de crise de hegemonia

proposto pelo comunista italiano Antonio Gramsci em sua

explicação para o fascismo. Segundo o autor, a mesma

crise política de legitimidade de elites tradicionais é

acompanhada de uma profunda crise econômica, que faz

desabar definitivamente o edifício de uma classe

dominante. Aplicando-se o modelo de Gramsci ao nosso

caso, diríamos que as oposições brasileiras já haviam

desencadeado uma crise política com as revoluções dos

anos vinte e as elites brasileiras, principalmente,

aquelas ligadas ao setor cafeeiro, ainda viveriam uma

profunda crise econômica provocada pelo crack da bolsa de

Nova York em 1929. Uma crise de legitimidade seguida de

uma crise econômica, além de uma frente de oposições sem

nenhum projeto hegemônico. A alternativa a estas duas

crises, deveria ser dada por um lado, pela burguesia

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industrial paulista que transitaria o país de um regime

agrário para um sistema plenamente capitalista. Mas esta

burguesia estava mancomunada com as velhas elites. A

outra possibilidade de criação de um novo modelo de

hegemonia seria a vitória do operariado à frente de uma

revolução socialista. Entretanto, segundo os defensores

deste modelo de interpretação, o proletariado era

naquela época politicamente frágil, restando como força

política apenas as classes médias, que por não terem uma

posição fundamental na sociedade, apelam para o Estado

para a solução dos seus problemas. Este vazio de poder,

segundo Gramsci, explicaria a ascensão de Mussolini e do

fascismo na Itália, do mesmo modo que poderia explicar

também vitória surpreendente do golpe de 1930 no Brasil.

Mas existem ainda outros modelos de interpretação. Um

dos mais utilizados pelas ciências sociais no Brasil é

aquele que defende a idéia de uma modernização

conservadora para explicar o fenômeno político das

modernas ditaduras. 13Neste caso, há o contraponto entre

sociedades que se tornaram capitalistas com a

consolidação de uma burguesia industrial independente

politicamente das classes agrárias tradicionais e as

sociedades que não produziram esta burguesia e que

realiza a passagem para o capitalismo pela mobilização

13 Barrington Moore Junior, As origens sociais da ditadura e da democracia(senhores e camponeses na construção do mundo moderno), Martins Fontes, Lisboa, 1967

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de setores agrários ligados ao mercado interno. A

modernização industrial, em virtude da ausência de uma

burguesia, se realiza por intermédio de uma forte

presença do Estado em dois níveis: no econômico através

de forte intervencionismo e dirigismo e no político pela

suas características autoritárias e ditatoriais, visando

o controle de todas as classes da sociedade.

Enfim, depois do vôo da coruja sentimo-nos mais

confortável, não porque ela tenha nos dado uma

explicação definitiva para a nossa história, mas porque

ela sugere modelos heurísticos muitas vezes úteis para

decidirmos qual a narrativa histórica mais convincente.

Contudo, nenhum modelo conseguiria moldar o passado e a

história de acordo com as nossas expectativas. Por esta

razão, a história no nascer do dia se renova e deixa

para trás a velha e sábia coruja.

Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca – Unicamp –

27/05/2003

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