A Carta que se fez HistóriaO povo que sue para pagar o luxo dos afiliados do governo!Aproveita pessoal!
Vá mamando no tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos...nada!
Mas isso um dia acaba.
(Frase de Natanael Robespierre dos Anjos em Laranja da China de Antonio Alcântara Machado)
Documento A 0001429Meu caro João Neves:
Recebi hoje a tua carta que em seguida respondo. Para não haver dúvida que formaremos
a combinação binária encontrada pelo C. Lafe (?) para a sucessão presidencial do Estado.
E ainda bem que és o meu companheiro de etapa. Pelo menos estou certo que não
desejarás a minha morte para substituir-me. Mas, digo-te em franqueza, minha impressão
não é de orgulho, nem de alegria. Pesa-me a apreensão de que não possa corresponder a
tão acolhedora simpatia que não sei explicar. Sou em retraído, avesso aos gestos ruidosos
e às atitudes desordenadas. Não cortejei nunca a popularidade. Repugnam-me as atitudes
artificiais. Sinto-me um campônio, atraído pela simplicidade da vida rural, mas deslocado,
não sei por que fados adversos, a atritos da vida pública. Isto é o que penso e que te vou
dizendo ao correr da pena. São as idéias que me sugerem as palavras confortantes e
evocadoras de tua carta. É chegada, como dizes, a hora da nossa geração. Oxalá não
tenha sido um erro dar a maior graduação ao menos capaz de representá-la. Recebe um
grande abraço do velho amigo. Getúlio Vargas. Rio 8-8-1927.1
1 Carta de Getúlio Vargas para João Neves da Fontoura de 08/08/1927, pertencente ao acervo documental do Banco Santos. Há na carta um nome difícil de ser identificado, mas acreditamos se tratar do Coronel Lafaiete Cruz, aliado de Vargas, também signatário do Pacto de Pedras Altas. João Neves da Fontoura acompanhou durante muito anos a trajetória de Vargas, se afastando dele durante o Movimento Constitucionalista de 1932. Após este episódio ser reaproximou de Vargas, tendo se tornado embaixador brasileiro em Lisboa no período de 1943-1945. Ainda como aliado de Getúlio Vargas se tornou Ministro das Relações Exteriores entre
1
A Produção da Memória Histórica
Foi o próprio Getúlio Vargas quem tornou toda e qualquer
correspondência sua em documento precioso para a
história. Esta carta transcrita acima é um exemplo da
permanência temporal de um documento que só foi se
valorizando na medida em que crescia e se projetava para
o futuro a personagem de Vargas. Há documentos que se
tornam históricos pelo futuro que a ele se seguiu. Há
outros que, ao contrário, se valorizam pelo passado ao
qual eles se reportam ou que se impõem como documentos
sínteses de um passado ou de uma época que se vê
concluída pela enunciação documental. Por exemplo, a
carta testamento de Vargas tornou-se um documento
síntese de uma época que ele próprio forjou a sua
definição e sua identidade históricas. A ilusão desta
unidade histórica reduzida à figura de um único líder
tornou-se tão forte, que mesmo os seus críticos ainda se
referem à história recente do passado republicano
brasileiro por meio de definições sínteses do tipo A Era
Vargas.
Os documentos têm esta capacidade de criação do tempo e
da duração históricas. Eles podem inaugurar novos tempos
no plano das representações sociais e podem encerrar 1951 e 1953 e foi membro da Academia Brasileira de Letras de 1937 a 1963.
2
outros. Podem fazer silêncio do passado ao qual eles
procuram superar, ou podem transformar este passado em
uma dimensão quase mítica. Por exemplo, no caso das
revoluções, falando de modo genérico e abrangente, os
seus discursos de consolidação política são documentos
incontestáveis da renovação do tempo histórico, com a
promessa de um tempo novo que se opões e supera os
tempos antigos. Para termos uma idéia mais nítida da
natureza de temporalização do discurso revolucionário,
podemos comparar o discurso de Vargas com um
pronunciamento feito por Lênin em 1918, alguns meses
depois da tomada do poder pelos comunistas na Rússia.“A história da humanidade realiza em nossos dias um de suas maiores e mais difíceis
mudanças, uma destas mudanças de alcance imenso, que podemos qualificar, sem
exagero, de universalmente libertador(...)destruímos em poucos dias uma das monarquias
mais antigas, mais poderosas, mais bárbaras e ferozes(...)A Revolução de Outubro iniciou o
fim de todo o jugo social e nacional e realizou as grandes idéias do socialismo. As
aspirações da humanidade a uma vida livre passaram do sono à realidade.”2
Estes documentos símbolos de ruptura, são momentos de
inauguração da história do ponto de vista do poder e as
revoluções modernas sempre se utilizam desta
representação do tempo novo para se legitimarem. Em
casos opostos, como a carta testamento de Vargas, o
documento procura encerrar uma época, construindo para
2 Discurso de Lênin publicado em 12 /03/1918, no Izvestia, jornal oficial do governo soviético. Apud. Charles-Olivier Carbonell, El Gran Octubre Ruso, Guadarrama, Espanha, 1968, os. 20, 21
3
uma tradição a partir da qual o futuro terá que se haver
e prestar contas.
Getúlio Vargas foi responsável pela criação destes dois
tipos de documentos até agora mencionados. Acima de
qualquer suspeita ele procurou ser um demiurgo da
história se autoproclamando líder supremo do movimento
que o levou ao poder máximo da república brasileira,
denominando este golpe político de Revolução de Trinta.
Vinte e quatro anos depois de afirmar que a sua
Revolução de trinta havia inaugurado um tempo histórico
novo para o Brasil, ele encerra este tempo com a sua
famosa carta testamento.
Mas, antes de seguirmos adiante neste percurso
documental de recente história republicana seria
oportuno darmos a conhecer, o que já é bastante
conhecido na história do Brasil, isto é, aqueles 2
documentos. Primeiramente, o que institui a
imperiosidade de uma revolução popular em 1930 cuja
unanimidade Vargas representava e o outro, a carta
testamento de 1954, que encerra o período da revolução
popular, insinuando que o Brasil voltaria para o tempo
das velhas oligarquias. Será depois da apresentação
destes dois documentos que voltaremos os nossos olhos à
4
carta apresentada acima, escrita por Vargas,
sintomaticamente, num mês de agosto de 1927.
Em outubro de 1930, logo após a chegada de Vargas ao
poder, ele concede uma entrevista à agência de notícias
Associated Press, na qual se refere ao caráter unitário,
unânime da revolução de trinta, levando os leitores à
suposição de que havia um e apenas um projeto
revolucionário para o Brasil. Isto é, em sua declaração
política, Vargas não deixa dúvidas de que o poder recém
instituído não pretenderia tergiversar sobre a
unanimidade de sua posição e sobre o caráter único e
incontestável da sua revolução. Como já havíamos
abordado anteriormente, uma das características dos
discursos revolucionários é a tentativa de instauração
de um tempo novo na história e a necessidade de se
autoproclamar como unânime e unitário em termos de
opções políticas. Em outras palavras, o discurso
revolucionário moderno não admite oposições. Para ele,
todas as alternativas políticas não concordantes com o
poder instituído são contra-revolucionárias e pertencem
ao passado, uma vez que a revolução inaugura o tempo do
futuro. Vejamos de que maneira Vargas, em sua
entrevista, delineia uma nova ordem para o tempo da
história do Brasil. Em alguns trechos da entrevista
podemos acompanhar de que modo a revolução redimensiona
5
o seu antes e o seu depois, tornando o passado uma
dimensão a ser esquecida e superada:
A vitória segura
Sendo o Brasil um país de vasto território e comunicações muitas vezes difíceis é de
admirar a assombrosa rapidez com que por toda a parte se alastra o movimento
reivindicador. A revolução está vitoriosa.(...)
No manifesto de 4 de outubro, definia eu nas seguintes linhas o quadro da realidade
brasileira: “O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte, pela
subversão do sufrágio popular. O predomínio das oligarquias e do profissionalismo
político. As forças armadas, guardas incorruptíveis da dignidade nacional, constrangidas
ao serviço de guarda-costas do caciquismo político. A brutalidade, a violência, o suborno, o
malbarato dos dinheiros públicos, o relaxamento dos costumes(...) Daí, como conseqüência
lógica, a desordem moral, a desorganização econômica, a anarquia financeira, o
marasmo, a estagnação, o favoritismo, a falência da Justiça."
Cansada de lutar inutilmente contra essa máquina política, desesperada de melhorar a
situação do País, dentro das possibilidades legais, decidiu-se a Nação pela luta armada.
(...)
Trata-se de uma revolução nacional, generalizada em todo o País, com raízes profundas na
consciência popular e que traz consigo um vasto plano de reformas de ordem moral,
política, econômica e financeira. O novo governo dará anistia ampla a todos os implicados
em revoluções anteriores. (...)
Cordiais saudações.
Do mesmo modo que o discurso revolucionário inaugura um
novo tempo na história, desqualificando todo o passado
que lhe antecedeu, um outro documento pertence à Vargas
serviu para encerrar um ciclo histórico que ele mesmo
6
construiu. Trata-se, evidentemente, de sua carta
testamento, a mais contundente expressão de uma vontade
quase mítica de encerrar um tempo da própria história.
Em agosto de 1954, quando nosso personagem dá cabo à sua
vida com um tiro de espingarda, encerrando seu mandato
de presidente da República, ele deixa esta carta para o
futuro, dando-se ao capricho de encerrar um período
histórico e diagnosticando a vinda de tempos sombrios no
futuro. Assim, como no tempo do eterno retorno em que
ocorre a recuperação e a re-atualização do passado,
Vargas com a sua carta testamento, tanto encerra um
ciclo, como deixa em aberto a possibilidade da volta dos
perigos que assombraram o passado e que motivaram a sua
revolução de trinta.
Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se
desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não
me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para
que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os
humildes.(...) Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram
meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar
na história".
Apenas aparentemente os documentos até aqui apresentados
são descontínuos. Uma observação histórica mais atenta
dará conta das suas interdependências e do modo como
foram construídos para serem documentos históricos
7
sínteses e definidores dos sinais dos tempos. Por este
motivo, são documentos que falam do tempo, assinalam o
que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido pela
história. Autoriza a permanência de uns personagens e
agentes históricos, ao mesmo tempo em que, procura
varrer definitivamente do campo da história outros
personagens incômodos. Na entrevista que consagra a
revolução de trinta, Vargas, declaradamente, anistia do
passado todos os revolucionários. Isto queria dizer que,
naquele momento em que a entrevista foi dada, todos os
personagens e agentes históricos que quiseram
revolucionar a política brasileira dominada pelas
oligarquias, teriam a anistia dos revolucionários de
trinta.
A Carta e a sua abrangência histórica
Será a partir deste ponto que iniciaremos a análise
histórica da carta documento em que Vargas, humildemente,
aceita se candidatar a governador do Rio Grande do Sul
em dobradinha com João Neves da Fontoura. Se for
verdadeira a vontade do discurso varguista em anular
todo o passado anterior à revolução de trinta, podemos
entender também que este discurso também esconde o
passado do próprio personagem. Pelo sim ou pelo não, o
discurso da revolução de trinta silenciou a trajetória
do próprio Getúlio Vargas no período que a antecedeu.
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Havia bons motivos para a produção deste silêncio.
Afinal de contas , na época em que Vargas aceitou a
candidatura para o Governo do Rio Grande do Sul, ele não
pertencia, propriamente, ao arco de alianças políticas
que desencadeou movimentos revolucionários em alguns
estados brasileiros, dentre eles os de seu estado e o do
Estado de São Paulo. Tampouco cerrou fileiras com os
revolucionários organizadores da Coluna Prestes. Ao
contrário, no período em que Vargas escreveu a carta,
não só não estava do lado dos revolucionários, como era,
pura e simplesmente, o Ministro da Fazenda do Presidente
Washington Luiz, representante indiscutível das grandes
oligarquias cafeeiras e financeiras.
No momento em que Vargas escreveu para João Neves
aceitando a candidatura a governador, os
revolucionários, que haviam desencadeado movimentos
políticos armados contra o domínio das oligarquias,
tinham as suas principais lideranças no exílio,
espalhados pela Bolívia, Argentina e Uruguai. Era tão
grande a mobilização em defesa dos exilados que jornais
do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 1927, abriam listas
de subscrições e de doações de dinheiro para a
manutenção dos revolucionários exilados. Não há que se
estranhar com este tipo de movimentação e arregimentação
de opinião pública, porque no Brasil de 1927, falava-se
abertamente na necessidade de uma revolução para a
9
reforma dos costumes políticos e para a implementação de
medidas favoráveis ao desenvolvimento de uma economia
voltada para o mercado interno brasileiro e menos
dependente do capital financeiro internacional. O
próprio Ministro da Fazenda Getúlio Vargas tinha
assumido o mandato com o objetivo de fazer a
estabilização monetária e saneamento das finanças
públicas com o controle do processo inflacionário.
Contudo, seu mandato estava do lado das famosas
oligarquias paulistas, atendendo, abertamente, aos
acordos das elites político-partidárias republicanas.
Este mandato de Vargas no Ministério da Fazenda havia
sido negociado abertamente pelo então governador de Rio
Grande do Sul, o “caudilho” Borges de Medeiros. A
candidatura de Vargas para governador, em 1927, também
era a saída política mais eficiente para as elites
riograndenses, na medida em que, o então governador
Borges de Medeiros estava proibido, por um acordo
conhecido por Pacto de Pedras Altas, de se candidatar
pela sexta vez ao governo do estado. Aliás, o Pacto de
Pedras Altas foi firmado entre os opositores
federalistas, liderados por Assis Brasil e governistas
de Borges de Medeiros e este acordo das elites
riograndenses abriu o caminho para a candidatura de
Vargas ao governo do estado. Por este acordo, torna-se
possível uma aliança das forças políticas republicanas
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e federalistas que seria decisiva para o movimento
político que levaria Vargas ao poder em outubro de 1930.
Podemos perceber também, neste arranjo das elites
gaúchas, o modo como o governador Borges de Medeiros foi
hábil na articulação de seu sucessor, fazendo Vargas,
primeiramente, Ministro da Fazenda e logo depois
candidato a governador. Entretanto, mesmo sob a tutela
de Borges de Medeiros, Vargas conseguiria reunir
opositores políticos tradicionais do Rio Grande do Sul,
articulação decisiva definir a sua liderança política
regional.
Observando-se as manifestações artísticas do período,
podemos concluir que a população estava esperançosa com
o novo governo de Washington Luiz, ao menos pelo fato de
ele ter terminado com um estado de sítio no Brasil, que
foi decretado por 4 anos pelo seu antecessor Arthur
Bernardes. O bom humor parecia ter voltado nas canções
populares e a autocensura havia abandonado a cabeça dos
artistas. Um bom exemplo são as músicas que ironizavam o
novo presidente e a famosa aliança regional entre as
elites de São Paulo e Minas Gerais, que ficou conhecida
como a política do café com leite. Podemos perceber esta
fina ironia popular em versos como estes de Freire
Junior:
11
Café paulista, Leite mineiro, Nacionalista Bem brasileiro(...)3
Ou então, a marchinha que ficou conhecida como
Cavanhaque de bode onde os autores faziam sátira com o
novo presidente comparando-o a um bode, por causa de seu
cavanhaque. Na letra bem humorada e sem temor de
censura, percebe-se a boa receptividade do novo
presidente da república:
Diz que o bode vai dar sorte, quero vê pra acreditá, u-lê-lê, u-lá-lá,esse bode eu já conheço,
pois cresceu no meu quintá! (...)4
Aliás, as mudanças no cenário intelectual e político
eram marcantes desde o início da década de vinte. Os
impactos da primeira grande guerra que abalou o mundo já
tinham repercutido no Brasil em um momento anterior, e a
greve operária de 1917 foi um destes momentos críticos
que exigiu uma nova postura das elites políticas
brasileiras frente às manifestações populares. Sinais de
tempos de mudança, esta greve operária que teve o seu
mais impacto nas áreas industriais de São Paulo,
antecedeu em três meses aquele que seria um dos grandes
acontecimentos do século XX, a Revolução comunista na
Rússia. Indícios de grandes agitações de massa e também
a insinuação no cenário da política de novas e fortes 3 Café com Leite, maxixe de Freire Junior de 1926, copilado por Franklin Martins em sua página da Internet:http://redeglobo.globo.com/cgi-bin/franklinmartins/somnacaixa 4 O cavanhaque do bode, marcha de Nabor de Camargo e Dieno Castanho, de 1927, copilada por Franklin Martins, http://redeglobo.globo.com/cgi-bin/franklinmartins/somnacaixa
12
tendências ideológicas contrárias ao liberalismo das
grandes potências capitalistas internacionais. Neste
sentido, os anos vinte se inauguram sob o impacto destas
novas ideologias, que iriam dividir as opções das massas
urbanas e rurais nas próximas décadas. O comunismo e o
fascismo no campo da política se tornariam as grandes
opções ideológicas que iriam promover movimentos
contrários à política liberal do grande capitalismo
internacional. Não é por acaso, que no início da década
de vinte eclodem no Brasil rebeliões militares
contrárias ao modelo liberal da república brasileira. Os
militares, por terem se envolvido na questão republicana
brasileira( os primeiros presidentes foram militares,
Deodoro da Fonseca, Hermes da Fonseca e Floriano
Peixoto), sentiam-se traídos pelo liberalismo das elites
civis que dominavam a política brasileira dando
privilégios aos grandes capitalistas do setores ditos
oligárquicos, que eram representados pelos negócios da
cafeicultura, do setor financeiro e industrial.
Evidentemente, este setor econômico dominante garantia-
se no poder por intermédio de pactos políticos com
elites de outros estados brasileiros e tinha-se a
impressão de que era possível a manutenção desta
situação política sem os riscos de contestação popular.
Como já havíamos antecipado, a década de vinte inaugura-
se com as rebeliões militares que pregam reformas no
13
sistema político brasileiro, defendendo também a criação
de uma economia nacional, voltada predominantemente,
para o mercado interno. Apesar de não deixar explícita a
necessidade de uma política social de proteção do
trabalhador urbano e rural, estes movimentos abririam o
caminho para a defesa destas bandeiras no decorrer da
década de vinte. Ao mesmo tempo em que correram estas
manifestações militares que culminariam com a marcha de
Luiz Carlos Prestes pelo interior do Brasil, tivemos a
criação do Partido Comunista do Brasil em 1922, formado
por inúmeros militantes egressos do anarquismo e que
tiveram participação importante nas greves de 1917.
Ainda que não possamos delinear ideologicamente todas as
tendências políticas do período, uma coisa era patente.
Todas elas se opunham ao pacto político liberal
republicano das elites brasileiras. Sem dúvida, as
distinções ideológicas eram ainda pouco nítidas nestes
novos agentes políticos de oposição formando-se um arco
que percorria posições desde a esquerda mais radical até
a extrema direita. Haja vista que muitos dos militantes
políticos que estavam unidos neste período, ora optaram
por posições comunistas, ora por posições simpáticas ao
fascismo. Aliás, a própria marcha da Coluna Prestes
tinha com o que se inspirar, levando-se em consideração
a marcha sobre Roma de Benito Mussolini em 1922.
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A carta de Vargas a João Neves da Fontoura aceitando a
candidatura ao governo do estado vai ganhando novos
contornos quando a confrontamos com outras tendências
políticas do período. Para não nos atermos apenas
àquelas tendências já mencionadas e que ainda voltaremos
a falar delas, há que se considerar a enorme importância
da criação, em 1926, do Partido Democrático Nacional,
porque nele se revelaria a mais profunda cisão que
ocorreu nas elites civis políticas brasileiras desde a
instalação da república em 1889. Se até agora, estávamos
nos referindo às oposições políticas em um arco
ideológico correspondente às ideologias do comunismo e
do fascismo, não seria este o recorte ideológico do
Partido Democrático. Ao contrário daquelas correntes
ideológicas radicais, este partido político procurou a
sua definição no interior da doutrina liberal, num
liberalismo mais progressista, capaz de incorporar o
operariado ao campo da política, defender um capitalismo
menos dependente das oligarquias financeiras
internacionais, mais voltado para o desenvolvimento do
mercado interno, promovendo a agricultura e a indústria
nacionais, bem como defendendo uma reforma política pelo
voto secreto para combater o sistema de perpetuação das
grandes oligarquias político-financeiras que dominavam a
república brasileira.
15
A criação do partido Democrático no âmbito das elites
políticas , principalmente, paulistas seria decisiva
para a organização das alianças de oposição que
acabariam por conduzir Vargas ao poder em outubro de
1930. Em torno do programa do Partido Democrático as
oposições se aglutinariam e aos poucos iriam depurar os
elementos mais extremistas situados à esquerda e à
direita do espectro político. Não por acaso que logo
após o golpe de 1930, o maior líder dos revolucionários
da década de 20m, Luiz Carlos Prestes se filiaria ao
Partido Comunista, ao mesmo tempo em que é criado em São
Paulo a Ação Integralista de Plínio Salgado, organização
de cunho abertamente fascista. Como já havíamos
mencionado, o programa do Partido Democrático tornar-se-
ia a base de acordo dos setores oposicionistas e
autodenominados anti-oligárquicos, principalmente por:
1) Defender os princípios liberais consagrados na Constituição, tornando uma realidade o
governo do povo pelo povo e opondo-se a qualquer revisão constitucional que implique
restrições às garantias e liberdades individuais;
2) Pugnar pela reforma da lei eleitoral, no sentido de garantir a verdade do voto,
reclamando, para isso, o voto secreto e medidas asseguradoras do alistamento, do
escrutínio, da apuração e do reconhecimento;
3) Vindicar para a lavoura, para o comércio e para a indústria a influência a que têm
direito, por sua importância, na direção dos negócios públicos;
4) Suscitar e defender todas as medidas que interessam à questão social;
16
5) Pugnar pela independência econômica da magistratura nacional e pelo estabelecimento
de uma organização judiciária em que a nomeação dos juizes e a composição dos
tribunais independam completamente de outro qualquer poder público.
6) Pugnar pela independência econômica do magistério público e pela criação de um
organismo integral de instrução, abrangendo o ensino primário, secundário, profissional e
superior.5
Sintomaticamente, não apenas no âmbito das elites
apareceram as nítidas cisões políticas por volta de
1926. Nos meios operários, depois de um pequeno período
de legalidade do Partido Comunista, já em 1927 seria
criado o Bloco Operário, para em 1928 se transformar em
Bloco Operário e Camponês, agremiação de esquerda,
subordinada ao Partido Comunista do Brasil que tinha
como objetivo levar os operários à participação político
partidária, em concordância com as outras tendências de
oposição, como era o caso do Partido Democrático. Em seu
manifesto de criação o Bloco Operário mostrava-se
suscetível às alianças políticas que combatessem o
grande capital e o imperialismo, defendendo a
participação de candidatos compromissados com o
operariado no sistema político representativo
republicano:
5 Extraído de Nazaré Prado, Antonio Prado no Império e na República, Rio de Janeiro: F. Briguiet Editores, 1929, pp. 390-2, apud Edgar Carone (org.), A Primeira República (1889-1930): texto e contexto. 2a ed. amp. São Paulo: Difusão Européia do Livro, s/d.
17
Nós não queremos uma política de promessas fáceis e vãs. Queremos pelo contrário, uma
política de compromissos partidários, portanto de responsabilidades.(...) Queremos que os
deputados proletários que representam o interesse do proletariado e são eleitos pela
massa proletária sejam responsáveis por seus atos perante as organizações proletárias.6
Esta mudança de posição no interior do movimento
operário representou uma quebra significativa das
antigas posturas de cunho anarquistas, criando-se a
impressão de que as primeiras levas de imigrantes
italianos já estavam saindo da cena da história, dando
lugar para uma nova geração de operários já nascidos no
Brasil e com pouca propensão pelas doutrinas políticas
defendidas pelos seus antecessores. Diante desta nova
postura política estreitam-se os espaços para aqueles
que não pretendiam jogar o movimento operário no sistema
de alianças político partidário de oposição. Assim foram
descritos os anarquistas pelos comunistas, em 1927,
quando da criação do Bloco Operário no momento em que se
defendia também a criação de uma Confederação sindical
controlada pelos comunistas:
Em todas as partes do mundo são sempre os mesmos elementos que no seio do
proletariado levantam obstáculos para a realização da unidade sindical. Também no
Brasil, os anarquistas e reformistas dão as mãos contra os comunistas, combatendo a
obra pró Confederação Geral do Trabalho tão espontaneamente aceita pelas massas.
6 O Programa do Bloco Operário, A Nação, 17-2-1927
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admitem discussão da questão da unidade sindical e do movimento pró-CGT. Em sua
cegueira sectária e dogmática, basta que este movimento seja encabeçado pelos
comunistas para que desapareça chagado com todos os males do passado.7
As acusações de sectarismo devem ser vistas com cautela
neste caso, porque é evidente a tentativa de controle do
movimento operário por parte dos comunistas, estratégia
condizente com as orientações da III Internacional
comunista em todo o mundo. Este período, aliás,
caracterizou-se pelo sectarismo da política comunista,
sendo o sinal mais evidente a marginalização de Trotsky
do Partido Comunista da União Soviética e a ascensão ao
poder de Joseph Stalin em 1927. Não deixa de ser
sintomático que este curto período que estamos estudando
tenha visto surgir os grandes líderes autoritários do
início do século XX, tais como Mussolini, Stalin, Hitler
e porque não incluir neste rol o próprio Getúlio Vargas.
Todos estes líderes tinham posições políticas contrárias
ao liberalismo e suas ideologias pendiam da esquerda à
extrema direita. Não é absolutamente fortuito que o
comunismo no Brasil e em outras partes do mundo tenha
combatido o anarquismo nos meios operários, com a mesma
força usada para combater o liberalismo das elites
capitalistas. Tanto para o comunismo como para o
fascismo, o anarquismo e o liberalismo não deixavam de
7 Astrogildo Pereira” El camino de la unidad sindical em Brasil, La correspondencia Sudamericana, março de 1927. Apud. Paulo Sergio Pinheiro e Michael HaLl, A classe operária no Brasil(1889-1930-documentos)
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ser as faces de uma mesma moeda. As frentes
oposicionistas ao governo republicano que se formaram na
segunda metade da década de vinte tiveram estas
conotações ideológicas. De um lado, colocaram-se
abertamente contra o liberalismo e pelo flanco esquerdo
liquidaram a presença anarquista nos meios operários,
tanto na América latina como em alguns países da Europa,
exceção feita à Espanha.
Um outro aspecto ideológico muito presente no campo da
política foi o sentimento nacionalista, que já havia se
exacerbado por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Neste
conflito internacional, as aspirações nacionalistas
moveram as massas para os campos de batalha e depois do
fim da guerra, tanto os países vencedores como os
vencidos fizeram tremular as bandeiras nacionais, com
maior ênfase nestes últimos. No Brasil, a questão
nacional suscitou os movimentos políticos
revolucionários de 1922 e 1924, liderado por civis e
militares que ficaram conhecidos depois como “os
tenentes” e também se tornou a principal bandeira da
coluna Prestes. No campo da cultura, o movimento
modernista da Semana de 1922, principalmente depois de
um início de orientação cosmopolita e muito bem
aquinhoado de saudações das vanguardas européias,
voltou-se para o nacionalismo e se afirmou em atitudes
que ora se aproximavam do socialismo, ora se ligava ao
20
fascismo. Por este motivo, muitos dos intelectuais que
lideraram a Semana de Arte Moderna de 1922 cerraram
fileiras no comunismo ou no integralismo, lá pelo final
dos anos vinte e início da década de trinta.
As várias faces do nacionalismo
De fato, muitas mudanças estavam em curso no Brasil dos
anos vinte e nesta época Getúlio Vargas entrou na cena
política como deputado do Partido Republicano. Elegeu-se
como deputado para a Câmara Federal em 1924 e estes
foram anos decisivos para esta personagem emblemática da
política brasileira. Dentre as curiosidades documentais
mais intrigantes que pudemos associar a Getúlio Vargas,
há uma em especial, que merece a nossa atenção. Trata-se
de uma foto de Getúlio Vargas lendo a revista francesa
Paris Match de 24 de abril de 1951. Nela, a personagem
soberba de Vargas está fumando um cachimbo, lendo com
atenção uma reportagem sobre o encontro dos assassinos
do fascinante aventureiro Fawcett.
21
Foto de Vargas com o Paris
Match
Por estranha coincidência, a reportagem da revista
francesa trazia para o cenário da história, um
acontecimento que havia causado muita consternação nos
idos de 1925. Vargas olha atento a revista e se sente
orgulhoso com a possível descoberta dos assassinos do
Coronel Percy Fawcett, um explorador inglês que havia
desaparecido nas selvas de Mato Grosso. Isto porque o
desaparecimento de Fawcett havia se tornado um
verdadeiro mistério internacional, criando-se hipóteses
desde as mais razoáveis até as mais mirabolantes que
procuravam solucionar o fantástico mistério. Sabe-se que
Fawcett conquistou o publico internacional com as suas
viagens mirabolantes em busca do continente perdido da
Atlântida e nesta procura alucinante realizou nada menos
do que 8 viagens ao Brasil e à Bolívia. Notícias de
possíveis pistas de uma cidade perdida nas selvas
22
brasileiras circularam nos jornais de vários países do
mundo, principalmente, a partir de 1911. Os mistérios do
continente perdido que embalou os sonhos de Fawcett
acabaram por sensibilizar nada mais, nada menos do que o
escritor Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock
Holmes. Em 1911, Doyle ouviu uma conferência de Fawcett
na Royal Geographic Society de Londres sobre as suas
buscas incansáveis e inspirado por estes relatos
mrabolantes escreveu um dos seus contos mais
fascinantes, The Lost World e que não contou com o seu
maior personagem, Sherlock Holmes. Apesar da ausência do
famoso detetive, o romance de Conan Doyle alcançou
sucesso imediato e ajudou a projetar ainda mais o nome
de Fawcett. Tão conhecidas ficaram as aventuras de
Fawcett, que em 1925 estreava a primeira versão de
cinema mudo do romance de Doyle, O Mundo Perdido. Depois
desta, outras versões desta aventura fantástica foram
filmadas e a última é a de 1955, alguns anos depois da
revista Paris Match fazer a reportagem de capa. Afinal,
o desvendamento do mistério do desaparecimento de
Fawcett estaria projetando Vargas no cenário
internacional europeu em 1951, uma vez que foi a
expedição de Oswaldo Villas Boas pela Funai (Fundação
Nacional do Índio) quem teria descoberto a tribo
indígena responsável pela morte do aventureiro.
23
Segundo a versão de Villas Boas, a tribo Kalapagos
aprisionou o explorado inglês e seu filho por eles terem
matado um canário e machucado uma criança índia.
Afogaram ambos em um rio e em seguida os enterraram
debaixo de uma árvore. Na expedição da Funai os índios
levaram Villas Boas até o local onde Fawcett e o filho
haviam sido enterrados e exibiram os seus restos
mortais. De fato, a reportagem lida por Getúlio no Paris
Match dava todos os créditos à expedição financiada pelo
governo brasileiro e isto era motivo para uma grande
propaganda. Afinal, o governo de Vargas estava ajudando
a solucionar um mistério que se manteve sem solução
desde os idos de 1925, ano em que Vargas começava a
ascender na vida política como deputado estadual.
No entanto, podemos admitir outros encontros inesperados
naquele ano de 1925. Também a Coluna Prestes inicia sua
grande marcha pelo Brasil a partir do Rio Grande do Sul.
Na verdade um dos líderes revolucionários de 1924, Luiz
Carlos Prestes, que havia combatido o estado de sítio do
presidente Arthur Bernardes, também iniciava a sua
carreira política no mesmo estado em que Vargas iria se
candidatar a governador. Evidentemente, estas
coincidências tornam ainda mais enigmáticos os meandros
da história republicana e os dois líderes políticos
teriam uma longas trajetórias políticas de encontros e
desencontros. Na verdade, a Coluna Prestes, em 1925,
24
buscava despertar os sertões brasileiros para a luta
contra as oligarquias e acreditavam os seus líderes que
uma longa marcha seria o estopim de uma revolta
nacional. Assim, como o Coronel Fawcett, a Coluna
Prestes também se embrenhou pelas selvas de Mato Grosso
caminhando em direção à Bolívia e Paraguai. Depois deste
longo percurso, retornou ao Brasil e do estado de Goiás
partiu em direção ao nordeste, chegando até o estado do
Maranhão. Apesar de seu pequeno êxito político, a Coluna
acabou se tornando um emblema da luta contra elites
brasileiras republicanas. Este prestígio atingiu o auge
no ano de 1928, quando jornais do Rio e de São Paulo
criaram listas de contribuições para os revolucionários
que se encontravam exilados na Bolívia, Uruguai e
Argentina. O próprio Luiz Carlos Prestes, residindo em
Buenos Aires era chamado de lider da revolução e tinha a
simpatia de todas as correntes políticas de oposição ao
governo de Washington Luiz. Contando com o apoio do
dissidente Partido Democrático nacional, criado em 1926,
com dissidências republicanas regionais, dentre elas a
do Rio Grande do Sul e com as correntes comunistas que
estavam dominando os sindicatos operários, Prestes viria
a ser tornar o líder de uma revolução nacional de ampla
envergadura. A inspiração política e ideológica da
revolução pretendida por estes setores de oposição
coincidia com a tendência anti-imperialista de
25
movimentos políticos da América Latina, destacando-se
principalmente a Frente de Libertação Nacional da
Nicarágua liderada por Sandino. Tamanha foi a
repercussão da luta de Sandino, que no Brasil, líderes
revolucionários civis como Maurício de Lacerda chegaram
a criar propostas de frentes anti-imperialistas para
aproximar as oposições com as tendências da III
Internacional Comunista. Em 1928, nenhum líder político
reunia tantas preferências como Luiz Carlos Prestes e
seria impensável imaginar que um ano depois, Prestes
abandonaria a frente de oposições, deixando o caminho
aberto para que Getúlio Vargas, um político ainda pouco
conhecido, viesse a liderar o movimento que tomaria o
poder em outubro de 1930, proclamando ter feito uma
revolução nacional. Há um famoso manifesto escrito por
Luiz Carlos Prestes em 1929, onde são colocados os
motivos da radicalização política do movimento
revolucionário e que deve ter desagradado muitas das
dissidências civis regionais.
As ultimas controversias politicas, largamente discutidas pela imprensa do paiz, envolvem,
de tal fórma, o meu nome no enredo das conjecturas com que se tem apreciado a situação
da minoria revolucionaria perante a nação, que nos sentimos obrigados a vir positiva-la
definitivamente, esclarecendo-a sobretudo, no que diz respeito ás suas ligações com os
partidos politicos de opposição.
Ha, por parte dos que, até agora, tem julgado interpretar o nosso pensamento, deante da
conducta dos partidos, um erro inicial, e grave de apreciação. Esse erro reside, antes de
tudo, na presupposição de que ha, entre as collectividades partidarias e os chefes
26
revolucionarios, compromissos reciprocos de qualquer natureza. Essa supposição é
descabida, porque implica numa generalisação falsa. Os vinculos de verdadeira
solidariedade que nos ligam a alguns chefes democraticos não implicam em qualquer
compromisso, mesmo tacito, entre a revolução e os partidos a que elles pertencem.
Os partidos, coherentes com o seu ponto de vista politico, organisaram seus programmas,
elegendo a propaganda pacifica, pela dignificação do voto, em arma pre-excellente para
executal-os. Suas "élites" directoras estão sinceramente convencidas da efficiencia dessa
actuação pacifica. É natural, portanto, que a préguem, num intenso apostolado civico, cuja
sinceridade não podemos contestar.
Nós, os revolucionarios, somos inteiramente descrentes das possibilidades de uma
solução efficiente, para o caso brasileiro, dentro dos tramites constitucionaes. Nem
cremos que os partidos de opposição consigam, pelo voto, desalojar de suas posições
os actuaes donatarios do poder, nem lobrigamos como, depois de vencerem essa
primeira etapa, poderão desembaraçar-se, legalmente, do acervo monstruoso de
erros e rotinas com que alguns decennios de legislação criminosa contaminaram as
instituições do paiz.(grifos nossos)
Santa Fé, 8 de Março de 1929. - (a. ) Luiz Carlos Prestes 8
Não há do que se estranhar diante destas disposições do
revolucionário Luiz Carlos Prestes. Com o seu
pronunciamento ficaram implícitas as opções políticas
das dissidências partidárias regionais, destacando-se
inclusive aquela que seria representada por Getúlio
Vargas. Diante da possibilidade de uma radicalização
política, as lideranças civis estaduais criaram o
movimento da Aliança Liberal que lançaria a candidatura
de Vargas à presidência da república concorrendo com o
candidato oficial de seu próprio partido republicano, o
paulista Julio Prestes. Procurando se aproximar de 8 Folha da Manhã, 18 de março de 1929
27
lideranças revolucionárias menos radicais e afastando
progressivamente da frente de oposição os sindicatos e
organizações políticas proletárias como o recém criado
Bloco Operário e Camponês, a Aliança Liberal iniciou em
1929 a desmontagem de um movimento revolucionário que
trazia em sua composição inúmeras propostas de
transformação política do Brasil. A Aliança Liberal teve
mais êxito do que a frente revolucionária de oposição
arquitetada por Luiz Carlos Prestes e logo depois de sua
derrota nas urnas, Getúlio Vargas daria início à sua
marcha em direção ao Palácio do Catete com o objetivo da
tomada de poder. Iniciava-se em 1929, uma acirrada
disputa entre Vargas e Luiz Carlos prestes, que se
tornaria o líder comunista mais importante do Brasil
durante mais de 50 anos. Destas inimizades haveria ainda
outras mais agudas, dentre elas a criação de um
movimento anti-fascita que tinha como objetivo combater
o regime político de Vargas, em 1935. A Aliança Nacional
Libertadora transformou-se em uma bandeira contra o
fascismo e seu principal inimigo era o líder político
Getúlio Vargas. Entretanto, a habilidade política de
Prestes mostrou-se mais uma vez muito limitada e o seu
movimento foi derrotado por Getúlio, sem ter conseguido
a arregimentação popular tão esperada. Sua prisão
aconteceu em 1936, juntamente com a sua esposa Olga
Benário que, posteriormente, seria entregue às prisões
28
do nazismo alemão pelo ditador Getúlio Vargas. O próprio
Getúlio soube muito bem aproveitar as manifestações
pouco eficientes da ANL e dois anos depois de sua
derrota alardeou aos quatro ventos que uma grande
conspiração comunista estava em curso no Brasil. Este
foi o seu principal pretexto para a decretação da
ditadura corporativista do Estado Novo em 1937, que
muita semelhança guardou com o fascismo italiano. A
esposa de Luiz Carlos Prestes foi assassinada pelo
nazismo e ele mesmo ficou confinado nas prisões do
Estado Novo até 1945.
Entre a carta de aceite à candidatura ao governo do Rio
Grande do Sul endereçada a João Neves da Fontoura e
reportagem da revista francesa, todo um período
histórico havia transcorrido. Entretanto, nada havia
mudado a atitude soberba de Vargas. Ele havia sido
apeado do poder em 1945, logo após o fim da Segunda
Guerra Mundial e voltado à presidência da república nos
braços do povo em 1950. Na época da publicação da
revista Paris Match, Vargas já não era o ditador
populista que havia implantado a ditadura do Estado
Novo. Precisando se valer do apoio popular para se
manter à frente do governo brasileiro, Vargas buscou nas
bases sindicais que ele mesmo havia criado na época da
ditadura do Estado Novo. Entretanto, a sua arrogância
não havia se alterado, como podemos observar na foto de
29
1951, em que ele empunha uma metralhadora de fabricação
nacional. São as faces de uma mesma moeda, o
desvendamento do mistério do desaparecimento do Coronel
Fawcett e a agressiva e orgulhosa demonstração de poder
com as suas mãos em uma metralhadora, provavelmente,
fabricada com o aço da Companhia Siderúrgica Nacional,
empresa estatal criada durante a ditadura do Estado
Novo. Este foto de Vargas revela também a sua maneira de
jogar com as ambigüidades. Não deixa de ser prepotente
um líder populista que se manteve no poder através de
uma ditadura de caráter fascista que durou de 1937 a
1945, aparecer já no início da década de 50 com uma
metralhadora em punho, fabricada com o aço de uma
Companhia Siderúrgica que foi financiada com capitais
americanos. Um líder populista de muita habilidade
política que negociou o seu apoio à luta contra o
nazismo e o fascismo, em troca do financiamento
americano a uma siderurgia nacional. Esta associação
entre guerra e industrialização e estado ditatorial,
acabou se tornando a marca registrada deste líder
político, mesmo depois de ter se tornado um presidente
eleito.
Dentre os documentos que indicam a existência de uma
relação diplomática de troca de favores entre o Brasil e
os Estados Unidos, destacamos o bilhete escrito por
Vargas por ocasião da visita do presidente dos EEUU ao
30
Brasil em 1943. A visita ao Brasil de Franklin D.
Roosevelt pretendeu selar um compromisso público visando
consolidar a aliança do governo brasileiro ao governo
americano na luta contra o fascismo e o nazismo. A
presença de Roosevelt ocorreu na cidade de Natal, uma
cidade de localização estratégica para a geo-política
americana, que pretendia usar o nordeste brasileiro como
base de para o exército americano. Evidentemente, todas
estas gentilezas, apoio e financiamento dos EEUU à
industria siderúrgica brasileira só se consolidaram
depois das ameaças feitas por Getúlio Vargas, em 1941,
prometendo aliar-se aos países do eixo nazi-fascista.
Hoje, passados muitos anos, outros documentos vieram à
tona e um deles publicado em 06/10/2002 no Jornal do
Brasil, refere-se a um mapa elaborado pela Alemanha
Nazista em 1941, onde há uma redefinição dos espaços
territoriais e nacionais da América do Sul. A existência
deste mapa chegou a ser mencionada pelo próprio
presidente em discurso de outubro de 1941:
''Os peritos geógrafos de Berlim obliteraram brutalmente todas as linhas divisórias para
reduzir a América do Sul a cinco estados vassalos, todos sob dominação alemã''
Não é de se estranhar, neste sentido, o empenho da
diplomacia americana em assegurar bases militares no
nordeste brasileiro e facilitar as linhas de
financiamento à industria siderúrgica e à industria
nacional de motores. O mapa elaborado pelo nazismo,
31
ainda que de origem duvidosa, foi utilizado
politicamente pelo presidente dos EEUU e hoje sabemos
qual foram as propostas de redivião territorial da
América Latina. Segundo o documento publicado:
1- O Brasil perderia os Estados da Região Sul do país, no novo
desenho do continente.
2- A Argentina absorveria o Uruguai, o Paraguai, toda a parte baixa
da Bolívia e um corredor para o Pacífico na altura de Antofagasta;
com isso, o território do país vizinho se estenderia em direção à
Amazônia, indo muito além de Corumbá.
3- O Chile perderia sua parte inferior, e incluiria o restante do Peru
e da Bolívia.
4- Surgiria a Nova Espanha, formada pela Colômbia, Venezuela e
Equador, mais o Panamá e a Zona do Canal.
5- As três Guianas seriam unificadas.
32
Os Presidentes Vargas e Roosevelt em natal – Pintura a
óleo - 1943
Bilhete anunciando a vinda de
Roosevelt
33
Foto de Getúlio com a metralhadora
As intrigantes relações históricas que estes documentos
estabelecem dão uma dimensão mais abrangente do tempo de
permanência de Vargas no cenário político nacional. Em
1926, ele estava apenas articulando os seus primeiros
movimentos. Não fosse o silêncio que pairou sobre a
história brasileira anterior a 1930, muita coisa já
teria sido devidamente conhecida. Como mencionamos
anteriormente, o nacionalismo constituiu-se em uma
bandeira de muitos matizes e colorações. Até mesmo o
Partido Republicano de inspiração liberal havia
percebido a importância política desta bandeira
carregada de sentimentos de xenofobia. Dentre as
manifestações culturais mais curiosas e que ironizou
este surto nacionalista dos anos vinte, destacamos a
obra, muito bem humorada, do escritor modernista Antonio
de Alcântara Machado, Laranja da China, publicada naqueles
agitados anos.9 Em 1928, o autor elaborou de modo
9 Antonio Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda – Laranja da China, Editora Martin Claret, SP, 2002
34
magistral os traços da alma brasileira, quais sejam, a
revolta, o patriotismo e o lirismo. Nada mais apropriado
do que os traços desta caricatura para aquela geração
dos anos vinte, que aliou o inconformismo dos movimentos
políticos e culturais aos traços de um exacerbado
nacionalismo e de um lirismo transbordante e piegas.
Seria impossível desenhar um retrato mais profundo e
mais eloqüente destes anos e o próprio título Laranja da
China, hoje precisaria de uma explicação. Na época todo o
mundo sabia que Laranja da China é a forma onomatopéica
burlesca da introdução do Hino Nacional. Não é difícil
fazer a simulação da introdução de nosso hino
utilizando-se desta paródia, laranja da china, laranja da china,
laranja da china...abacate, cambucá e tangerina. Esta paródia muito
bem humorada criada, inicialmente, pelo poeta Mario de
Andrade, um dos expoentes da Semana de arte Moderna de
1922 em seu livro de poesias Paulicéia Desvairada, foi muito
bem apropriada para a coletânea de contos de Alcântara
Machado, que traçaria com muita ironia os traços da
personalidade brasileira em 1928.
Nas Asas da VARIG
Daquela carta de Vargas a João Neves da Fontoura
aceitando a sua candidatura ao governo do Estado do Rio
Grande do Sul, podemos inferir que o esta experiência
política se tornaria quase que um laboratório para a
35
preparação de um exercício de poder em nível nacional.
Alguns dos mais fiéis ministros de Vargas na década de
trinta, teriam a sua preparação no governo do Rio Grande
do Sul. Encontraremos dentre eles, não somente o futuro
ministro Oswaldo Aranha, mas também Lindolfo Collor e
Maurício Cardoso. Não pode ser negligenciada esta
experiência política regional, uma vez que inúmeras
reformas já tinham sido ensaiadas durante o governo
estadual. De todos estes personagens, o mais proeminente
foi sem dúvida, Oswaldo Aranha, que somente não
suplantou a Vargas. No entanto, foi o principal
articulador da política externa brasileira e através
dele articulou-se uma diplomacia de grande astúcia e
habilidade, num período em que o mundo ocidental se
debatia entre as opções do liberalismo, do fascismo e do
comunismo. Além dele, destaca-se também Lindolfo Collor,
o primeiro Ministro do Trabalho do Brasil, responsável
pela implantação da legislação trabalhista nos primeiros
anos do governo Vargas.
Mas, os ensaios de uma política de corporativismo
sindical arregimentando setores empresariais ligados ao
mercado interno já podiam ser percebidos em sua passagem
pelo governo do Rio Grande do Sul. A perspectiva de
atuação política num sistema corporativo parece ter sido
a marca da administração de Vargas. Incentivou a
sindicalização dos empresários ligados ao charque e dos
36
estancieiros, assim como já tinha havido a
sindicalização do setor ligado ao plantio e
beneficiamento do arroz. A sindicalização proposta por
Vargas tinha um objetivo muito claro, isto é, fortalecer
o mercado os setores de produção agro-industriais
ligados ao mercado interno, permitindo a manipulação dos
preços dos respectivos produtos. Entretanto, a reforma
política do Estado não se limitou ao incentivo à
sindicalização. Vargas se utilizou dos recursos públicos
para criar um banco estadual com 2/3 do capital inicial.
Segundo um estudo pioneiro de um historiador americano,
“ o impulso organizatório dos estancieiros, charqueadores e produtores de
arroz era o sintoma de um aumento geral da ‘associatividade’ no Rio
Grande, no término da década de vinte. Viticultores e fabricantes de banha
também formaram sindicatos e os comerciantes organizaram uma
Federação das Associações Comerciais do Estado. Das 70 e tantas
associações comerciais, agrícolas e pecuárias existentes n Rio Grande em
1930, quase a metade se formou entre 1926 e 1929. Vargas aprovava essa
tendência; efetivamente, seu governo encorajou-a patrocinando novas
associações de grupos de interesses.10
Estes impulsos corporativistas que entraram em vigor no
Rio Grande com a chegada de Vargas ao governo contrastam
sobremaneira com a posição do grande empresariado
paulista.
10 Joseph Love, O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de trinta,Ed. Perspectiva, SP, 1975, p.241
37
Ao contrário do que acontecia no Rio Grande do Sul, o
empresariado paulista era avesso à sindicalização e
aqueles que se colocavam favoravelmente ao tema, como o
empresário Roberto Simonsen, não admitiam a intervenção
do estado na esfera dos seus negócios. Deste
posicionamento ideológico acabou resultando a criação do
Centro de Indústrias do Estado de São Paulo(CIESP), que
com a sindicalização obrigatória da legislação de Vargas
se transformaria na famosa FIESP(Federação das
Industrias do Estado de São Paulo). Este centro
pretendia não apenas organizar o empresariado para o
combate à legislação trabalhista promulgada nos anos
finais da década de vinte, como pretendia também
organizar o empresariado para uma participação mais
ativa na formação das elites políticas nacionais. Não é
por mero acaso, que estes empresários, tendo à testa
Roberto Simonsen, fundaram em 1933 a famosa Escola Livre
de Sociologia e Política, em São Paulo. Esta escola de
nível superior tinha o objetivo de formar lideranças
empresariais que pudessem se constituir em novas elites
brasileiras com educação mais técnica e científica do
que bacharelesca. Com este espírito liberal inspirado em
Henry Ford nascia em 1928 por iniciativa do empresário
Roberto Simonsen, o CIESP. Na inauguração deste Centro
que Roberto Simonsen pronunciou um discurso que se
tornaria emblemático para o grande empresariado paulista
38
que se opunha abertamente às pretenções políticas das
oposições brasileiras. Defendendo abertamente a aliança
republicana dos grandes industriais paulistas com o
setor exportador cafeeiro, Simonsen exortava a união
empresarial:
“As indústrias paulistas que reúnem força, capital e inteligência tinham as suas
associações isoladas, reunindo cada uma delas um ramo. Para que sua eficiência se fizesse
sentir e os seu interesses pudessem ser examinados e defendidos com êxito, tornava-se
indispensável a sua congregação. Era preciso que se formasse um bloco único. Duas
cLasses valorosas, que tanto quanto as indústrias concorreram e concorrem para a
grandeza e a prosperidade de São Paulo, possuíam os seus centros: o comércio e a
lavoura. Esses centros sempre pugnavam em prol dos direitos das cLasses conservadoras,
mas era forçoso reconhecer que as industrias têm problemas outros a debater, interesses
que não poucas vezes estão em choque com os interesses do comércio e da lavoura(...)11
Deste modo, a grande indústria sediada em São Paulo já
dava indícios de que seria uma pedra no sapato de
Vargas, sendo contrária não somente às formas
corporativas de associação, mas avessa à intervenção do
estado nas relações entre o capital e o trabalho. Fiéis
aos princípios rígidos de um liberalismo inspirado na
doutrina americana de Henry Ford, o empresariado da
grande indústria paulista, ainda defendia com afinco a
idéia de que a questão social era uma questão de
polícia. Evidentemente, esta posição acabou sendo
completamente desvirtuada pelo discurso da revolução de 11 Discurso de Roberto Simonsen publicado no Jornal do Comércio de 29/03/1928, apud Edgar de Decca, 1930: O silêncio dos vencidos, Editora Brasiliense, SP, 1997, ps. 156, 157
39
trinta, imputando ao empresariado paulista a pecha de
repressor. Mas não é nada disso que se pode depreender
da idéia destes empresários. Eles apenas eram fiéis aos
princípios do liberalismo, segundo os quais, não cabe a
intervenção do estado na esfera privada doas relações
entre o capital e o trabalho. Neste sentido,
compreendemos porque estes empresários eram contrários
à promulgação das leis trabalhistas que começavam a
existir no Brasil, a partir de 1927, em pleno governo de
Washington Luiz. Deste modo, estes empresários não só
não concordavam com uma legislação trabalhista, como
queriam ver o Estado bem longe das fábricas e por este
motivo, julgavam que a questão social, quando descambava
para conflitos grevistas que perturbavam a ordem
pública, deveria ser objeto de ação policial e não de
qualquer tipo de justiça do trabalho. Apesar da
aparência absurda e desumana, este posicionamento
empresarial não foi mais repressivo do que a legislação
Varguista, que terminou com a promulgação da
Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1942, em pleno
regime ditatorial do Estado Novo.
Tampouco, foi o empresariado paulista uma voz solitária
contra a intervenção do estado nas relações entre
capital e o trabalho, O movimento anarquista também
negou terminantemente a intromissão da política estatal
nestas relações trabalhistas e somente com o crescimento
40
da atuação dos comunistas nos sindicatos operários,
principalmente depois de 1926, é que o operariado
começou a defender esta legislação. Contudo, é
importante frisar que a aceitação de uma legislação
trabalhista pelos comunistas, não se assemelhava em nada
com o corporativismo implantado por Getúlio. Ao
contrário, durante os primeiros anos de governo, entre
1931 e 1936, os comunistas e os anarquistas lutaram
contra a sindicalização compulsória exigida pela nova
legislação autoritária e se opuseram à intervenção do
Estado nos sindicatos operários. Assim como o movimento
operário, a sindicalização foi um processo difícil entre
o grande empresariado paulista e só ganhou adesões por
parte de setores do pequeno e médio empresariado. A
desconfiança do empresariado paulista quanto à presença
do Estado na economia era tão grande que por ocasião da
criação da Companhia Siderúrgica Nacional o industrial
Roberto Simonsen saiu de mãos abanando, ao convidar o
setor paulista a investir seus capitais em negócios do
governo federal.
Dentre as iniciativas empresariais que foram estimuladas
pelo governo Vargas no Rio Grande a mais emblemática foi
sem dúvida a criação da primeira empresa aérea
brasileira, a VARIG.(Viação Aérea Rio-Grandense), em
1927. Inicialmente formada com capitais de empresários
teuto-brasileiros e brasileiros a empresa aérea operou
41
os vôos entre Pelotas e Porto Alegre e aproveitando-se
das novas proezas da aviação internacional, que já em
1928 presenciava um vôo que cruzava o oceano Atlântico
ligando a Europa com a América do Sul, pode se tornar um
exemplo de iniciativa empresarial capitalista. O autor
desta proeza, o piloto francês Jean Mermoz se
encontraria com Getúlio Vargas alguns anos mais tarde.
Em 1933, voando nas asas do “Arc en Ciel”, Mermoz realizou a
proeza de cruzar o Atlântico no primeiro vôo comercial e
Vargas de tão entusiasmado convidou o projetista da
aeronave, o francês Jean Couzinet, para fundar uma
fábrica de aviões no Brasil.
A Coruja do final da tarde
Toda a história até aqui se iniciou com uma carta
sigilosa de Vargas ao seu amigo de muitos anos João
Neves da Fontoura. Dizem alguns que a coruja da teoria
voa ao final da tarde, quando o sol se põe no céu da
história, podemos avaliar a sua trajetória completa. Se
quisermos adotar este procedimento poderíamos aventar
pelo menos duas teorias muito utilizadas para a
interpretação do movimento que levou Vargas ao poder em
1930. Evidentemente, não podemos aplicar estas teorias
sobre os discursos por Vargas pronunciados, porque seria
o mesmo que reafirmar as marcas históricas deixadas pelo
vencedor das contendas políticas do período. Melhor
42
seria analisar o contexto de uma época à luz de seus
próprios discursos políticos. Observando-se a intensa
agitação política dos anos vinte no Brasil, um autor
como Karl Marx resumiria os acontecimentos de 1930 do
mesmo modo como ele resumiu o golpe de Estado de Luis
Bonaparte em 1848, na França.12 Em seu famoso texto
intitulado O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Marx defende
a tese de que em momentos de confusão política, quando
uma crise de hegemonia de uma elite ou classe se
avizinha, ao mesmo tempo em que não há ainda um
proletariado organizado, há a possibilidade de que um
aventureiro qualquer empolgue as massas desempregadas
urbanas e os pequenos camponeses para a tomada do poder
político. Enfim, até um líder de pouca expressão poderia
se tornar um ditador no momento em que há a ausência de
um projeto político hegemônico de uma nova classe
ascendente, como seria o caso de uma burguesia
industrial. Fazendo analogia com o caso brasileiro, a
burguesia industrial paulista encontrava-se atada aos
grandes fazendeiros do café e ao mesmo tempo, o
proletariado urbano ainda não era suficientemente forte
e expressivo, politicamente falando. Nessa medida, um
líder inexpressivo como Vargas poderia sair vitorioso
por ser capaz de seduzir as massas pobres urbanas e os
setores rurais não satisfeitos com os privilégios de um
12 Karl Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, apud. Os Pensadores, Editora Abril, SP, 1974
43
setor exportador ligado às finanças internacionais. Sem
dúvida alguma, uma explicação como esta tem certas
vantagens, mas deixa de lado a questão de que em
história os modelos só são apropriados para uma
explicação a posteriori. Deste modo, poderíamos aplicar tanto
o modelo utilizado por Marx para explicar o golpe de
Luis Bonaparte na França, como também outros que
levassem em consideração este conjunto de variáveis.
Um modelo mais ou menos parecido com o de Marx e que foi
muito utilizado para se interpretar o sucesso do golpe
de Getúlio Vargas em 1930 é o de crise de hegemonia
proposto pelo comunista italiano Antonio Gramsci em sua
explicação para o fascismo. Segundo o autor, a mesma
crise política de legitimidade de elites tradicionais é
acompanhada de uma profunda crise econômica, que faz
desabar definitivamente o edifício de uma classe
dominante. Aplicando-se o modelo de Gramsci ao nosso
caso, diríamos que as oposições brasileiras já haviam
desencadeado uma crise política com as revoluções dos
anos vinte e as elites brasileiras, principalmente,
aquelas ligadas ao setor cafeeiro, ainda viveriam uma
profunda crise econômica provocada pelo crack da bolsa de
Nova York em 1929. Uma crise de legitimidade seguida de
uma crise econômica, além de uma frente de oposições sem
nenhum projeto hegemônico. A alternativa a estas duas
crises, deveria ser dada por um lado, pela burguesia
44
industrial paulista que transitaria o país de um regime
agrário para um sistema plenamente capitalista. Mas esta
burguesia estava mancomunada com as velhas elites. A
outra possibilidade de criação de um novo modelo de
hegemonia seria a vitória do operariado à frente de uma
revolução socialista. Entretanto, segundo os defensores
deste modelo de interpretação, o proletariado era
naquela época politicamente frágil, restando como força
política apenas as classes médias, que por não terem uma
posição fundamental na sociedade, apelam para o Estado
para a solução dos seus problemas. Este vazio de poder,
segundo Gramsci, explicaria a ascensão de Mussolini e do
fascismo na Itália, do mesmo modo que poderia explicar
também vitória surpreendente do golpe de 1930 no Brasil.
Mas existem ainda outros modelos de interpretação. Um
dos mais utilizados pelas ciências sociais no Brasil é
aquele que defende a idéia de uma modernização
conservadora para explicar o fenômeno político das
modernas ditaduras. 13Neste caso, há o contraponto entre
sociedades que se tornaram capitalistas com a
consolidação de uma burguesia industrial independente
politicamente das classes agrárias tradicionais e as
sociedades que não produziram esta burguesia e que
realiza a passagem para o capitalismo pela mobilização
13 Barrington Moore Junior, As origens sociais da ditadura e da democracia(senhores e camponeses na construção do mundo moderno), Martins Fontes, Lisboa, 1967
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de setores agrários ligados ao mercado interno. A
modernização industrial, em virtude da ausência de uma
burguesia, se realiza por intermédio de uma forte
presença do Estado em dois níveis: no econômico através
de forte intervencionismo e dirigismo e no político pela
suas características autoritárias e ditatoriais, visando
o controle de todas as classes da sociedade.
Enfim, depois do vôo da coruja sentimo-nos mais
confortável, não porque ela tenha nos dado uma
explicação definitiva para a nossa história, mas porque
ela sugere modelos heurísticos muitas vezes úteis para
decidirmos qual a narrativa histórica mais convincente.
Contudo, nenhum modelo conseguiria moldar o passado e a
história de acordo com as nossas expectativas. Por esta
razão, a história no nascer do dia se renova e deixa
para trás a velha e sábia coruja.
Prof. Dr. Edgar Salvadori de Decca – Unicamp –
27/05/2003
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