1858) O Brasil nas relações internacionais do século 21: fatores externos e internos de sua...

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1 A ordem política e econômica mundial no início do século XXI Questões da agenda internacional e suas implicações para o Brasil Paulo Roberto de Almeida ([email protected] ; www.pralmeida.org ) Publicado in: in Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord.), III Anuário Brasileiro de Direito Internacional (Belo Horizonte: CEDIN, v. 3, n. 2, 2008, ISSN: 19809484; p. 151-189) Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas relevantes da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil. Trata-se de uma exposição descritiva, que não se pretende abrangente, sistemática ou completa, mas que cobre, ainda assim, os problemas considerados mais importantes das relações internacionais contemporâneas, introduzindo, para cada um deles, sua interação ou impacto para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados. Pode ser considerada uma “digressão livre”, pelo fato de que não pretende fundamentar a análise dos tópicos tratados em remissões exaustivas, baseadas em fontes documentais relativas aos casos selecionados ou em referências bibliográficas completas; mas a lista de leituras indicativas, apresentada ao final, oferece, ainda assim, um guia de informação complementar para a maior parte dos problemas abordados no texto. O ensaio recolhe algumas décadas de atento estudo das questões internacionais e a experiência adquirida no trato profissional de vários dos assuntos nele abordados. O texto foi organizado em três seções, apresentadas a seguir. Cada uma delas foi dedicada a um conjunto de questões com relevância internacional, nos planos político e econômico, para as quais são mencionadas as implicações ou o seu significado para o Brasil. A terceira seção aborda com maior grau de detalhe o impacto da presente ordem política e econômica mundial para o país. Este texto analítico-descritivo está assim estruturado: 1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções? 1.1. Segurança estratégica 1.2. Relações entre as grandes potências 1.3. Conflitos regionais 1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots; 2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções? 2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais 2.2. Assimetrias de desenvolvimento 2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio 3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil

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A ordem política e econômica mundial no início do século XXI Questões da agenda internacional e suas implicações para o Brasil

Paulo Roberto de Almeida

([email protected]; www.pralmeida.org) Publicado in:

in Leonardo Nemer Caldeira Brant (coord.), III Anuário Brasileiro de Direito Internacional

(Belo Horizonte: CEDIN, v. 3, n. 2, 2008, ISSN: 19809484; p. 151-189)

Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas relevantes

da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil.

Trata-se de uma exposição descritiva, que não se pretende abrangente, sistemática ou

completa, mas que cobre, ainda assim, os problemas considerados mais importantes das

relações internacionais contemporâneas, introduzindo, para cada um deles, sua interação

ou impacto para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos

enfocados. Pode ser considerada uma “digressão livre”, pelo fato de que não pretende

fundamentar a análise dos tópicos tratados em remissões exaustivas, baseadas em fontes

documentais relativas aos casos selecionados ou em referências bibliográficas completas;

mas a lista de leituras indicativas, apresentada ao final, oferece, ainda assim, um guia de

informação complementar para a maior parte dos problemas abordados no texto.

O ensaio recolhe algumas décadas de atento estudo das questões internacionais e a

experiência adquirida no trato profissional de vários dos assuntos nele abordados. O texto

foi organizado em três seções, apresentadas a seguir. Cada uma delas foi dedicada a um

conjunto de questões com relevância internacional, nos planos político e econômico, para

as quais são mencionadas as implicações ou o seu significado para o Brasil. A terceira

seção aborda com maior grau de detalhe o impacto da presente ordem política e

econômica mundial para o país. Este texto analítico-descritivo está assim estruturado:

1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções? 1.1. Segurança estratégica 1.2. Relações entre as grandes potências 1.3. Conflitos regionais 1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots; 2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções? 2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais 2.2. Assimetrias de desenvolvimento 2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio 3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil

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3.1. Crescimento econômico 3.2. Investimentos 3.3. Acesso a mercados 3.4. Integração regional 3.5. Recursos energéticos 3.6. Segurança e estabilidade

1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções?

A primeira observação que compete fazer a respeito desta seção, tem a ver com o

contraste oferecido em relação à seção seguinte, no sentido da inversão de caráter entre o

velho e o novo. No caso da ordem política, acredito que o mundo enfrenta novos

problemas, e eles não se situam apenas em supostas “ameaças globais”, como os

problemas do meio ambiente ou da ameaça do terrorismo fundamentalista. A curta visão

histórica das gerações presentes tende a crer que o “aquecimento global” tem sido

produzido pela Revolução industrial ou pelas atividades “civilizatórias” de modo geral,

esquecendo que, em escala geológica, o planeta Terra já enfrentou ciclos de aquecimento

e de resfriamento globais que impactaram profundamente – em alguns casos fatalmente –

o destino de sociedades humanas inteiras (ver Jared Diamond, Armas, Germes e Aço e

Colapso). Da mesma forma, independentemente do fato de que os atuais

fundamentalistas islâmicos matam, atualmente, um “pouco mais” de gente do que os

anarquistas de um século atrás – que tendiam a se concentrar em lideranças políticas –, a

violência indiscriminada como arma política está conosco há muito tempo, sendo que as

guerras globais do século XX foram insuperáveis em sua obra homicida (Niall Ferguson:

The War of the World).

Os problemas são novos no sentido em que, depois dessas matanças indescritíveis

do século XX, tão bem descritas por Ferguson, o mundo parece encaminhar-se para um

período de “relativa paz” no que se refere aos grandes sistemas imperiais. Minha leitura

do problema da paz e da guerra – certamente situada na tradição aroniana (Raymond

Aron: Paz e Guerra entre as nações), mas dela divergindo quanto à natureza dos

conflitos contemporâneos, que me parecem retroceder em relação ao panorama de

guerras totais, de estilo clausewitziano, que ele contemplava – pode ser resumida da

seguinte forma. As grandes nações guerreiras deixaram o cenário de pequenas guerras de

posição, muitas vezes travadas com o recurso eventual a tropas mercenárias, típicas dos

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séculos XV e XVI, para as guerras de conquista e ocupação, conduzidas pelos Estados-

nacionais em formação dos séculos XVII e XVIII. Importantes inovações táticas e

estratégicas foram introduzidas pelo estilo napoleônico de conduzir os combates,

envolvendo a mobilização de forças nacionais em larga escala, o que dominou o cenário

mundial na era dos grandes impérios nacionais (basicamente o século XIX, até a Primeira

Guerra Mundial). O século XX conheceu, sob a forma das guerras globais (em duplo

sentido), uma inacreditável explosão de violência, que não mais poupou instalações ou

populações de espécie alguma, até o advento da arma atômica, que sinalizou um limite

para o exercício dessa violência. É minha crença – talvez subjetiva e otimista, mas ainda

assim fundamentada numa certa percepção objetiva dos “custos” da guerra para os atuais

“impérios” – que as superpotências não mais voltarão a se enfrentar diretamente, em

grandes guerras totais, mas procurarão se acomodar mutuamente com o recurso às

negociações ou, quando for necessário, às guerras localizadas e aos conflitos militares por

procuração – proxy wars – que não mais envolverão a escalada final, isto é, a destruição

completa do inimigo (pois isso poderia significar a sua própria destruição, quando não

uma hecatombe em escala planetária).

Por outro lado, o desaparecimento do socialismo, que significava um messianismo

em bases universalistas, retira um dos mais poderosos indutores a um conflito global no

plano militar, pois, como disse Francis Fukuyama (“The End of History?”) – e nisso

estou em acordo com ele –, não existe mais uma alternativa credível aos sistemas de

mercado e ao capitalismo, ainda que as democracias demorarão um pouco mais para

atingir a universalidade. Ou seja, os “impérios” porventura existentes – americano,

europeu, chinês, russo, indiano – se encontrarão na interdependência do capitalismo

global, ainda que possam ter suas divergências econômicas, políticas e militares, e

mesmo conflitos localizados, mas todos eles equacionáveis diplomaticamente em bases

de mútua conveniência.

Os problemas são, portanto, “novos”, pois o recurso à guerra total já não é mais

possível na era nuclear, com a crescente interpenetração dos “impérios” regionais. Isto

não quer dizer que o direito internacional – e suas manifestações institucionais, como a

ONU e outras agências intergovernamentais – venha a prevalecer sobre a vontade dos

Estados-nacionais e, sobretudo, acima desses impérios: a ameaça do uso da força deve

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permanecer como a ultima ratio da política internacional durante um bom tempo ainda,

enquanto, pelo menos, a lógica westfaliana continuar a prevalecer (e isto pode durar mais

um século e meio, aproximadamente). As soluções são, portanto, “velhas”, por isso

mesmo: a lógica imperial e o uso da força continuarão conosco pelo futuro previsível, e

esta me parece a base da segurança e da estabilidade do mundo que conhecemos, que não

corre nenhum risco de tornar-se “kantiano” antes de três ou quatro gerações, pelo menos.

A soberania continuará com os Estados-nacionais pelo futuro previsível; menos na

Europa, que está construindo sua própria soberania comunitária (mas este será um

processo longo, pois os europeus não parecem acreditar muito na força bruta, sendo,

neste caso, suplantados pelos chineses e indianos, que com russos e americanos

continuarão a dominar o panorama da segurança estratégica nas próximas décadas).

Quanto à ordem econômica, que me parece apresentar os mesmos “velhos”

problemas de sempre – desigualdades de acesso e de riqueza entre as nações, diferenciais

de renda e de prosperidade, com convergências e divergências operando em ritmo muito

lento para eliminar os ainda imensos bolsões de miséria abjeta –, algumas novas soluções

parecem estar em curso; elas se situam justamente na interdependência crescente dos

sistemas econômicos nacionais. Neste caso, o sistema “westfaliano” já saltou pelos ares e

o nacionalismo econômico parece uma coisa tão antiquada quanto o machado de bronze e

a roca de fiar. A internacionalização crescente das atividades produtivas e de circulação

de bens tangíveis e intangíveis me parece constituir a base de uma sociedade global que

existirá antes na prática do que no direito, este ainda dominado pelos nacionalismos de

base política que são duros de morrer. Aprofundarei estes temas na seção pertinente.

Feita esta introdução de caráter geral, vejamos agora os problemas da agenda

política mundial.

1.1. Segurança estratégica

Na equação estratégica contemporânea, a detenção de artefatos nucleares continua

a ser o elemento dominante, em ultima ratio, do jogo do poder. Existem, obviamente,

outros vetores de poder, em especial o tecnológico e o econômico, este constituindo, em

última instância – segundo o modelo analítico marxista, que neste particular conserva

plena validade –, o elemento crucial de afirmação de supremacia, de modo continuado.

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Não se compreende, aliás, o desenvolvimento e a posse de artefatos nucleares senão ao

cabo de certo grau de avanço científico e tecnológico, que costuma estar ligado ao nível

de desenvolvimento econômico do país.

Certamente que países economicamente poderosos estão em condições de

assegurar um modo de vida satisfatório aos seus cidadãos, podendo influenciar

decisivamente a agenda política e econômica mundial e contribuir, no mundo

contemporâneo, para o desenvolvimento econômico e social de outros povos e países.

Isso é plenamente verdade. Mas, se formos decidir, em determinados momentos, sobre a

paz e a guerra, e definir quem, no momento decisivo, é capaz de impor sua vontade – ou

de impedir que outros imponham a sua própria vontade –, então, a posse de armas

nucleares torna-se o diferencial absoluto de poder, independentemente do poder

econômico relativo de cada um dos contendores.

Como regular, então, as relações internacionais, ou melhor, as relações de poder,

nesse contexto da “arma de última instância”? O mundo dispõe de um acordo que não é

mundial, mas tão somente internacional, que regula parcialmente o problema, que é o

TNP, o tratado de não-proliferação nuclear (Washington-Moscou-Londres, 1968). Esse

tratado não é certamente universal e, sobretudo, não é multilateral, uma vez que apenas

três países o negociaram e depois o “ofereceram” à comunidade internacional. Ele foi

posteriormente “estendido” ao resto do mundo, na ausência – talvez na oposição – dos

dois outros únicos países nucleares à época, que eram a França e a China (que a ele só

aderiram no início dos anos 1990). Essa extensão se fez sob os olhos por vezes invejosos,

outras vezes preocupados, de outros países, alguns deles interessados em desenvolver

seus próprios artefatos nucleares, alguns outros temerosos de que a proliferação indevida

dessas terríveis armas pudesse conduzir ao holocausto nuclear.

De fato, vários outros países tentaram – alguns continuam tentando – desenvolver

a tecnologia nuclear, para fins de dissuasão ou para simples manifestação primária de

poder. Entre esses países se encontravam, na América Latina, o Brasil e a Argentina, sob

a escusa, pouco credível, de sua utilização para fins exclusivamente pacíficos, ou civis.

Vez por outra, algum “estrategista”, aqui mesmo no Brasil, levanta a hipótese do

desenvolvimento de um artefato nuclear, mesmo na presença do obstáculo constitucional,

com a justificativa de que as condições externas poderiam exigi-lo para fins de “defesa”.

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Por certo, vários países estariam em condições de desenvolver rapidamente um artefato

nuclear, se a decisão política assim o determinasse; entre eles poderiam figurar:

Alemanha, Japão, Canadá, Suécia, Espanha, Itália e outros atores menores. Brasil,

Argentina, Egito e alguns outros demorariam mais tempo, em função de lacunas

tecnológicas ou de insuficiência do “combustível” nuclear.

A questão nuclear, no seu sentido amplo, estratégico, apresenta três aspectos que

não estão necessariamente conectados entre si de modo estrutural, mas que foram

conceitualmente reunidos pelo próprio instrumento que “regula” a questão no plano

internacional: (a) a não-proliferação, que é obviamente o aspecto principal subjacente às

intenções dos proponentes do TNP; (b) a cooperação nuclear para fins civis, ou

pacíficos, que representa uma promessa e uma garantia das potências nuclearmente

armadas em direção de todas as outras; (c) o desarmamento, que é uma hipótese

fantasiosa inventada pelos proponentes do TNP para atrair – enganar seria o termo mais

exato – os demais países a esse instrumento discriminatório e desigual. Em relação a esta

terceira dimensão da questão nuclear, se poderia repetir o velho argumento tantas vezes

utilizado em outras circunstâncias: em relação ao desarmamento, nós – ou seja, as

potências nuclearmente armadas –, fingimos que vamos desarmar, um dia, e todos os

demais fingem que acreditam nessa hipocrisia. De fato, parece difícil reverter a situação

ao status quo ante: uma vez que o “gênio” nuclear saiu da sua lâmpada militar, é

praticamente impossível fazê-lo retornar à sua “inexistência” anterior.

Para todos os efeitos práticos, o que vale, para as potências do TNP é a garantia

de não-proliferação, com alguma cooperação na dimensão da cooperação – sob o olhar

vigilante da AIEA – e a total desconsideração da dimensão desarmamento. Para todos os

“nucleares”, portanto, essa questão apresenta dois aspectos: o da projeção da força e o da

dissuasão. O primeiro aspecto, depois de Hiroshima e Nagasaki, não mais voltou ao

cenário internacional (a despeito de alguns “ensaios”, como em Cuba, em 1962). A arma

nuclear não mais voltou a ser usada como arma de terreno para abreviar o final de uma

guerra, ainda que ela tenha sido cogitada em alguns cenários ou teatros possíveis de

operação (como a sugestão do general MacArthur, em face da ofensiva chinesa durante a

guerra da Coréia, e talvez algum outro general “maluco” por ocasião da guerra do

Vietnã). Mesmo no caso de Cuba, quando os dois grandes contendores da fase pré-TNP

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parecem ter chegado “to the brink”, não estavam reunidas todas as condições para que o

jogo de pôquer, naquelas circunstâncias, chegasse a uma “solução final”, ao estilo do

filme Dr. Strangelove.

A arma nuclear é usada, portanto, para fins essencialmente dissuasórios, e é como

tal que Israel a concebe, em face de uma coalizão agressiva de Estados árabes que

gostariam de varrê-lo do mapa. Existem, certamente, militares, que concebem alguma

utilização tática da arma nuclear; mas os estadistas responsáveis e planejadores sensatos

dos países nuclearmente “capazes” – e não apenas daqueles nuclearmente armados –

assim imaginam sua equação nuclear nacional. De fato, repassando a lista dos nucleares,

veremos que eles sempre tiveram em mente algum perigo estratégico, para o qual se

buscou a solução de última instância.

Com a possível exceção da França – que estava exercendo uma opção de “orgulho

nacional”, depois de tantas humilhações sofridas desde o século XIX – e, possivelmente,

da África do Sul – que se sentia acuada por todos os demais países africanos no momento

do apartheid –, todos os demais países tinham algum contendor em mente no

desenvolvimento do seu programa nuclear. A China se armou contra os EUA e contra a

própria URSS; a Índia o fez contra a China, menos do que contra o Paquistão; o

Paquistão contra a Índia, with a little help from China; Israel contra os países árabes, e

eles eram muitos; a Coréia do Norte contra os EUA (e possivelmente o Irã, também, mais

do que contra o Iraque). As aventuras nucleares de Saddam Hussein (ditador do Iraque

até sua derrubada pelos EUA em março de 2003) e as do coronel Kadhafy, da Líbia

(estas, finalizadas depois de duras sanções contra o país), entram nesta equação a título de

bizarrice, embora o ditador do Iraque tivesse o “inimigo” iraniano no seu planejamento

militar. De todos esses países, o único que desarmou voluntariamente foi a África do Sul;

mas ela o fez no momento da transição para o regime de maioria negra, e esse elemento

pode ter entrado no cálculo estratégico da liderança branca que assim decidiu no início

dos anos 1990. Quanto à Coréia do Norte, a supor que ela desarme, efetivamente, tal fato

pode ser atribuído à dupla pressão da China e dos EUA, nessa ordem.

Parece haver uma teoria das relações internacionais contemporâneas – mas não

testada na prática – que afirma que os Estados que se tornam nuclearmente armados

passam a se comportar de modo mais responsável e condizente com suas novas

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responsabilidades no plano internacional. Este foi certamente o caso da China, de Israel,

da Índia, embora haja desconfianças em relação ao que possam algum dia fazer o

Paquistão, a Coréia do Norte e, eventualmente, o Irã. Mesmo com relação à China, se

questiona se seu papel foi responsável, uma vez que ela pode ter sido decisiva na

capacitação nuclear do Paquistão, que por sua vez foi, em parte, negligente com o seu

programa: um físico desse país está na origem de uma das mais importantes redes de

disseminação de tecnologia e materiais nucleares, num contexto de “proliferação” por

empreendimento individual, um pouco como faziam os piratas de antigamente, que

também podiam servir de corsários para seus Estados respectivos. Alguns cenários

podem ser preocupantes, nessa hipótese de uma proliferação não controlada pelos atores

responsáveis, o que poderia ser o caso do Paquistão, da Coréia do Norte e do Irã,

precisamente.

Mesmo quando um país nuclearmente “capaz” não parece ameaçar a paz mundial,

cenários de conflito são sempre imprevisíveis, pois as fontes podem emergir não da

situação objetiva de um país determinado, em seu contexto geopolítico próprio, mas

como resultado da paixão dos homens, falíveis por definição. Imaginemos, por um

instante, uma ocupação das Malvinas por tropas argentinas respaldadas por um artefato

nuclear que teria sido previamente desenvolvido pela ditadura militar. A história poderia

ter sido bastante diferente.

O TNP vem se “universalizando” nos últimos anos, em que pese sua notória falta

de legitimidade intrínseca. Por outro lado, mais países estão se tornando nuclearmente

capazes, quando não nuclearmente armados. A Índia já criou uma situação nova e vem

sendo aceita como uma potência nuclear de fato, ainda que não o venha a ser de direito.

O grande responsável por essa transformação foi, a rigor, a potência garantidora, por

excelência, do TNP e aquela teoricamente mais engajada na não-proliferação: os EUA. A

dissuasão e o cálculo estratégico estão aqui bem presentes. As boas relações entre Índia e

EUA, nesse terreno, têm a ver com a China, embora equivocadamente considerada como

a fonte possível de desafios estratégicos para os EUA. O acordo nuclear entre EUA e

Índia vale estritamente para fins civis, e não tem o poder de qualificá-la para o clube

formal das potências nucleares, o que de toda forma exigiria reforma do TNP, algo

praticamente impossível de ocorrer nessas bases.

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O TNP precisa, sim, de reformas, mas elas teriam de ser bem mais radicais do que

poderiam admitir os cinco privilegiados da atualidade. Nem eles poderiam admitir o seu

desarmamento, o que obviamente não ocorrerá, nem eles vão querer estimular em

demasia o desenvolvimento nuclear – ainda que para fins eminentemente pacíficos – dos

demais países. Assim, parecem existir poucas chances de progresso institucional na

questão nuclear, com base nos instrumentos atualmente disponíveis, em primeiro lugar o

TNP. Haverá, portanto, muita hipocrisia e muito more of the same nesta agenda.

Não se concebe, com efeito, as potências nuclearmente armadas favorecendo o

ingresso de países “candidatos” no clube nuclear. Eles precisariam “forçar a porta” e

garantir o seu ingresso, mas sempre serão passageiros incômodos, por não disporem do

bilhete desde a partida. Em outros termos, não haverá nenhum levantamento de restrições

à transferência de tecnologia. Mas os próprios países que aspiram ingressar no grande

jogo estratégico terão de buscar sua equiparação progressiva – embora rudimentar – com

os cinco grandes, com base em sua própria capacitação. Esta dependerá em grande

medida do aprendizado próprio – ou seja, ciência e indústria, com base em tecnologia

endógena ou copiada –, da política dirigida ao comércio de materiais sensíveis, alguma

cooperação bilateral e um pouco de espionagem.

Quanto ao problema da reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu

Conselho de Segurança, esse processo não tem a ver, diretamente, com a posse de algum

artefato nuclear. O Japão – potencialmente capaz de desenvolver a arma, mas que prefere,

por enquanto, viver castrado nessa dimensão – e a Índia são, teoricamente, os dois únicos

países que estariam na lista dos EUA para ingresso no CSNU, mas não por algum cálculo

de natureza estratégica que envolva a posse de armas nucleares. De toda forma, o alegado

desejo dos países membros e dos candidatos em promover uma “democratização” das

estruturas de poder internacional não passa de uma hipótese pouco credível para quem

acompanha a realidade das relações internacionais. Os cinco permanentes atuais não

desejam a reforma e não pretendem diluir o seu poder com novos candidatos. O status

quo lhes convém e assim será mantido até que novos dados da realidade alterem

substancialmente a equação estratégica do cenário internacional contemporâneo. Uma

coisa é certa: o “gênio” nuclear continuará fora da garrafa.

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E o Brasil, como se situa ele, neste cenário de unilateralismo arrogante, de

arranjos oligárquicos e de pressões sobre os países “desviantes”? Ele mesmo poderia ser

incluído nessa categoria, ao persistir sua recusa do Protocolo adicional ao TNP, mesmo

depois de aceitar relutantemente esse instrumento discriminatório em 1996. É certo que,

na origem, isto é, nos anos 1950, o Brasil mantinha concepções otimistas – talvez

ingênuas – sobre a utilização do poder nuclear, tanto sob a forma de energia, como em

aplicações médicas e mesmo em obras de engenharia civil. Depois ele alimentou o sonho

de aceder à tecnologia de processamento e de sua eventual utilização militar, ao

empreender, entre outros programas, a cooperação nuclear com a Alemanha (que, junto

com o Brasil, foi objeto de intensas pressões dos EUA). Sua capacitação interna foi

prejudicada por insuficiência de recursos e de vontade política, independentemente do

eventual sucesso tecnológico do acordo com a Alemanha, que não foi conduzida a termo.

Foi, provavelmente, melhor assim, pois o espectro de uma corrida nuclear com a

Argentina foi afastado e ambos os países terminaram não apenas acedendo ao TNP, como

também desenvolveram um programa exemplar de cooperação em salvaguardas

nucleares que pode servir de modelo para outras situações do gênero (talvez no sul da

Ásia, com o impasse indo-paquistanês ainda pendente).

Continuam pendentes, portanto, o problema da recusa brasileira ao Protocolo

adicional ao TNP – que parece ter a ver com uma hipotética “tecnologia original”

utilizada na fábrica de processamento de Resende – e a questão da postura em relação à

“doutrina nuclear” de Bush, que envolve o controle das atividades civis, em todos os seus

aspectos (comerciais, tecnológicos, produtivos). Tendo em vista o nacionalismo e o

soberanismo brasileiros, não haverá progresso sensível no futuro imediato, mas essa

questão não é crucial no plano da segurança estratégica para a ordem política mundial:

afinal de contas, o Brasil não é um elemento desestabilizador da ordem internacional e o

mundo pode facilmente conviver com esse tipo de nacionalismo “nuclear”.

Existem outros vetores de segurança estratégica no cenário mundial e eles têm a

ver com os esquemas regionais (ou geopolíticos) de defesa e de aliança militar: o único

esquema que sobreviveu à Guerra Fria e que continuou a se expandir gloriosamente foi a

OTAN, que teve um notável sucesso em suas novas roupagens “camaleônicas” de “pau

para toda obra”, ao incorporar em seu programa temas como direitos humanos e defesa

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do meio ambiente (incrível, mas verdadeiro). A OTAN não é mais “atlântica”, mas

mundial, pois que suas tropas estão no Afeganistão, como poderiam estar em outros

cenários, sempre e quando o comando americano assim o decida. A Eurásia continua a

ser, como nos tempos de Mackinder, o elemento-chave do equilíbrio estratégico mundial,

mas os europeus continuam numa encruzilhada de vocações: eles não sabem se retomam

suas antigas tradições imperiais – afogadas desde os antigos desvarios nazistas e ameaças

do hoje inexistente inimigo soviético, parcialmente revivido no novo czarismo russo – ou

se continuam atados ao guarda-chuva nuclear da OTAN (de fato americano). Sua

proverbial incapacidade de engajar recursos consideráveis em tecnologia bélica promete

continuar reduzindo-os a nada mais do que assistentes militares do império americano, o

que muito os desgosta (mas eles não fazem muita coisa para mudar a situação).

No plano global, de toda forma, essas indecisões européias são irrelevantes para o

equilíbrio estratégico internacional: a dissuasão continua a funcionar e o mundo é mais

seguro do que jamais o foi no decorrer do século XX. No plano regional, os cenários de

conflito potencial continuam situados em zonas periféricas e empobrecidas da Ásia, da

África e do Oriente Médio, pois não se imagina que as regiões dinâmicas e os países mais

engajados na globalização (e, ipso facto, de alto crescimento econômico) venham a se

deixar envolver em uma escalada de enfrentamentos que possam precipitar algum

conflito de grandes proporções.

A América Latina continua a ser uma região isenta de grandes enfrentamentos e o

TIAR (1947) continuará a exibir sua inoperância relativa (o que não representa um

problema para o Brasil, talvez, antes, uma solução). Depois dos “anos clássicos” de

alinhamento ideológico, mas fora do cenário de enfrentamentos, durante a Guerra Fria, o

que menos interessa ao Brasil é ter a América Latina como o teatro de uma corrida

armamentista (que poderia ser protagonizada por novos candidatos a caudilho). Os novos

desafios se situam inteiramente na evolução democrática do continente e na sua

integração física, base indispensável para o desenvolvimento da integração econômica. O

único desafio “militar” na região parece ser o anacrônico problema da narcoguerrilha,

que na verdade se confunde com o crime organizado e está, portanto, mais próximo de

um problema policial do que da segurança estratégica no conceito tradicional do termo. A

paz relativa na América do Sul, ou seja, a ausência de focos declarados de tensão inter-

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ou intra-estatais (a despeito mesmo da afirmação indigenista em alguns países e, portanto,

potencialmente um fator de fragmentação nacional), deve contribuir para o baixo nível de

dispêndio militar na região. Mas a recusa das Forças Armadas em assumir o novo papel

de “caçadores de traficantes” – que lhes pretendem atribuir os EUA – pode continuar a

ajudar a preservar os focos de instabilidade localizada da narcoguerrilha, que ameaça

extravasar para o sistema político e “invadir” as cidades (se já não o fez).

Um pouco de “futurologia” na questão estratégica global permitiria antecipar uma

mudança, já em curso, nos cenários: dos velhos enfrentamentos entre Estados aos

conflitos assimétricos típicos da contemporaneidade, ou seja, conflitos geralmente

regionais, de baixa intensidade e localizados, tipicamente envolvendo lutas civis (étnicas,

religiosas) e um ou outro enfrentamento territorial. O que pode já estar em curso,

também, é o novo intervencionismo militar com base em pressões da opinião pública nos

centros imperiais democráticos (pois não se imagina os “impérios” não democráticos

atendendo a apelos de ONGs humanitárias): a questão que se coloca é a de saber se esse

tipo de limitação ao “direito de massacrar o seu próprio povo” – tal como exercido por

alguns “ditadores de opereta” (eles ainda existem) – representa o começo do fim da

soberania estatal. A outra questão que se coloca, e que representa um problema para o

Brasil, é a de saber se ele, ou pelo menos o seu establishment militar e diplomático, está

preparado para esse tipo de missão. Provavelmente não, pois isso exigiria, mais do que a

simples capacitação técnica – em armas e táticas de combate –, uma verdadeira revolução

conceitual, difícil para um país que tem em Rui Barbosa o seu paradigma de

comportamento soberanista.

1.2. Relações entre as grandes potências

As relações entre as grandes potências – ou, como querem alguns, as guerras entre

os impérios – sempre estiveram no centro da política mundial, por qualquer prisma que se

examine a agenda internacional. No plano estrito dos equilíbrios estratégicos, esta é uma

verdade quase absoluta, embora a natureza desse relacionamento – e suas possíveis

conseqüências no plano militar – tenha evoluído ao longo do tempo. Os antigos sistemas

imperiais estavam baseados: na conquista militar, na extração de recursos e a

conseqüente escravização ou submissão de povos submetidos ao poder incontrastável de

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sistemas políticos unificados, dotados de meios militares relativamente mais avançados

ou de técnicas de dominação mais condizentes com a vontade de poder de seus

dirigentes.

Foi assim que “povos bárbaros” conquistaram sistemas imperiais aparentemente

fortes e até mesmo seculares: esse destino alcançou o Egito, a Assíria, a Pérsia, o império

criado por Alexandre, a China e Roma clássica. Por outro lado, a ineficiência econômica,

o atraso tecnológico e erros políticos levaram à decadência os impérios ibéricos que

dividiram o mundo entre os séculos XVI e XVIII; paralelamente, desapareciam de cena

os impérios árabe, mogul e, em nossa época, o otomano, antecedendo a fragmentação da

comunidade multinacional dos Habsburgos e o irresistível declínio dos britânicos, dentre

uma longa lista de sucessões hegemônicas ao longo dos tempos (que inclui, por exemplo,

os holandeses, embora estes não tenham decaído absolutamente, mas, sim, souberam

unir-se aos ingleses na preservação de uma prosperidade alimentada pelo comércio).

Os modernos sistemas “imperiais” baseiam-se bem menos na dominação direta ou

na extração forçada de recursos – e, obviamente, não mais na escravização ou

colonização direta de populações mais “atrasadas” – e mais na organização da produção,

no controle dos circuitos de distribuição e na “extração” de ganhos quase-monopolistas

derivados dos fluxos de capitais financeiros, de tecnologia proprietária e de rendas

diversas obtidas a partir, justamente, de sua posição dominante ou hegemônica. O recente

debate sobre a natureza do “império” americano – que Niall Ferguson pretende ser um

império de fato, mas envergonhado de sê-lo e, por isso mesmo, um pouco desastrado –

obscurece um pouco a questão de saber se vivemos, inevitavelmente, sempre sob a égide

de sistemas imperiais, ou se tudo se desenvolve num continuum que se caracteriza,

simplesmente, pela sucessão de hegemonias políticas, alimentadas por fatores

temporários – embora alguns possam durar séculos – de preeminência econômica ou

tecnológica. O livro de Ferguson sobre o “império” americano (Colossus) é mais um

alinhamento de argumentos em favor de uma tese do que propriamente uma prova

irrefutável da natureza imperial do sistema americano atual, dominante e hegemônico

como ele pode ser.

Da mesma forma, a natureza precisa do “império soviético” – ele, sim, em grande

medida derivado das ambições territoriais dos Romanoff ao longo dos séculos XVIII e

14

XIX, depois alimentado por Stalin com base nas vitórias militares da segunda guerra

mundial e na sua paranóia de uma nova invasão alemã, ou ocidental – carece, ainda, de

uma definição e de estudos similares aos efetuados pelos historiadores e cientistas

políticos ocidentais para os “impérios” ibéricos, da Europa central, otomano, britânico e

americano. Os velhos sistemas imperiais europeus não resistiram ao impacto de suas

próprias idéias – liberdade, direitos humanos, autonomia nacional – bem como à criação

do sistema político multilateral do pós-guerra: autodeterminação e a soberania estatal são

dois princípios fundadores das Nações Unidas, tanto quanto a resolução pacífica dos

conflitos, a defesa dos direitos humanos e a cooperação em prol do desenvolvimento.

Por maior que seja, atualmente, o predomínio da força do direito sobre o direito

da força, as grandes potências não renunciam, obviamente, à projeção de poder militar,

cada vez que seus interesses maiores sejam ameaçados. O cenário contemporâneo mudou

muito desde o declínio dos velhos impérios, a partir da primeira guerra mundial, com a

emergência simultânea das duas grandes potências do pós-guerra. De 1945 até o final da

Guerra Fria, o mundo viveu em bipolaridade estrita; mas de 1947 a 1972, a tensão situou-

se em níveis elevados, começando pelo conflito em torno de Berlim, a guerra da Coréia

(1950-53) e o problema de Cuba (1962), que levou a uma “quase-confrontação” nuclear

entre as duas superpotências. Durante os anos 1950, após a conquista da paridade nuclear

(1949) e termo-nuclear (1954) pela União Soviética, as relações estratégicas entre as duas

potências inimigas foram enfeixadas sob a doutrina MAD, Mutually Assured Destruction,

o que significa que, em caso de escalada, a confrontação poderia levar à aniquilação total

dos dois contendores. Nesse período, o alinhamento do Brasil aos EUA e ao “Ocidente”

de modo geral, foi indefectível, mesmo se no final dessa fase (1961-64) o crescimento do

movimento neutralista e não-alinhado tenha contribuído para criar no país propostas de

uma diplomacia alternativa, materializada na chamada Política Externa Independente.

Desde a crise dos mísseis russos em Cuba (1962), mais concretamente a partir da

presidência Nixon (1969-1974), ensaios de coexistência pacífica foram feitos, levando à

distensão nuclear e à negociação de diferentes acordos de controle de armas entre os

EUA e a URSS, com o aprofundamento do processo nos anos 1980 e a conclusão de

alguns tratados de redução de mísseis balísticos. O Brasil, ao longo do período, bateu-se

pela chamada agenda dos três “d” que, nos anos 1960, equivaliam à descolonização,

15

desarmamento e desenvolvimento, tendo sido o primeiro “d” substituído, nos anos 1990,

pelos direitos humanos. O Brasil esperava que, com o ocaso do socialismo e o surgimento

de uma nova ordem mundial, nos anos 1990, da nova distensão criada entre as grandes

potências emergiriam os chamados “dividendos da paz” para o desenvolvimento; mas

não foi exatamente o que ocorreu. A ordem política mundial, depois do desaparecimento

da URSS, passou a ser caracterizada pela assim designada “unipolaridade imperial”, com

o domínio dos EUA sobre os problemas mundiais desde 1992 e durante a maior parte da

década, enquanto a Rússia atravessa uma das maiores crises de sua história. A lacuna

política criada nas relações entre as grandes potências persistiu até que novos desafiantes

surgissem no jogo imperial, na figura da China.

Persiste, em todo caso, um equilíbrio instável entre os objetivos econômicos e os

políticos da nova ordem; os primeiros orientados para a interdependência econômica, nos

quadros da globalização; os segundos sempre marcados pela rivalidade implícita entre os

interesses nacionais das grandes potências. Para o Brasil, os desafios agora colocados são

os da sua adequação à nova ordem da globalização, que são todos derivados de reformas

internas nos aspectos fiscais e no sistema educacional. No que se refere à construção de

cenários externos para a atuação de uma potência média como o Brasil, não existem,

propriamente, novos desafios para o país, senão aqueles derivados de uma diplomacia

presidencial especialmente ativa, feita de novas orientações e novos parceiros, todos eles

situados na direção do Sul e da América do Sul. Não há, contudo, obstáculos estruturais à

ascensão do Brasil na ordem econômica mundial, uma vez que o sistema globalizado se

apresenta como essencialmente aberto a novos participantes, o que não é exatamente o

caso da ordem política, cujos requisitos de ingresso dependem de capacitação específica

no plano estratégico e militar, o que ainda parece distante de ser atingido pelo Brasil.

1.3. Conflitos regionais

O que há de novo no atual cenário da ordem política internacional é que a antiga

confrontação global deixa de ser dominante, subsistindo focos de conflito potencial; bem

mais em âmbito local ou regional do que em escala continental, ou entre alianças

militares (de resto, quase nenhuma conserva importância, sendo que a mais relevante, a

OTAN, transcende agora seu antigo âmbito geográfico de atuação). A organização mais

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recente no plano da estabilidade e da segurança estratégica, a OSCE, derivada da antiga

Conferência sobre segurança e cooperação na Europa, do tempo da Guerra Fria, tem hoje

uma agenda de trabalho bem mais voltada para construção democrática do que para

dissuasão de conflitos militares, embora o aspecto de confidence building continue

relevante, em vista do novo endurecimento político-militar registrado na Rússia. De fato,

a Rússia pós-Ieltsin (ou seja, de Putin) vem dando sinais crescentes de retomada de suas

antigas pretensões a “redistribuidora de cartas” na Europa sul-oriental e na Ásia central,

numa tendência à crescente afirmação de sua preeminência militar, que ela vê, em

essência, como um projeto anti-hegemônico aos EUA.

Já no período anterior ao final do comunismo, os conflitos inter-estatais também

eram predominantemente regionais, e não globais; mas mesmo esses conflitos regionais,

agora mais freqüentes, perdem o vetor ideológico da época da Guerra Fria, para adquirir

contornos de guerras civis ou de conflitos de natureza étnica. Na verdade, os principais

focos de tensão continuam inter-estatais: Israel-países árabes, conflito indo-paquistanês

em torno da Cachemira, as duas Coréias. Mas são os conflitos internos aos Estados que

provocam atualmente o maior número de mortos, de deslocamento de populações e de

violações de toda ordem aos direitos humanos: a África, obviamente, continua a oferecer

vários exemplos do gênero, mas em regiões da Ásia Pacífico, na Ásia do sul e central são

constantes, igualmente, as erupções de violência com grandes perdas humanas. Na

América Latina, a despeito de uma ou outra questão de fronteiras ainda não resolvida –

Guiana-Venezuela, Chile-Peru-Bolívia e outras menores –, a única situação militar que

ainda cobra um preço em termos de vidas humanas é a anacrônica “guerra civil” da

Colômbia, que já descambou, na verdade, para o crime organizado em torno das drogas e

a indústria de seqüestros.

Para o Brasil a diminuição dos focos de tensão e o desaparecimento do

maniqueísmo da Guerra Fria são pontos positivos e bem-vindos, na medida em que

alinhamentos daquela época se tornam anacrônicos. Um ponto preocupante, para países

ciosos de seus direitos soberanos sobre os recursos naturais com impacto global, como é

o caso da Amazônia brasileira, é o desenvolvimento de um novo tipo de intervencionismo

de feição humanitária, mas também ecológica, que tem suscitado preocupações – e

também alguma paranóia – em setores nacionalistas temerosos de que o princípio possa

17

vir a ser algum dia aplicado no sentido da “internacionalização” dos recursos da

biodiversidade amazônica. Não parece credível, contudo, que esse novo intervencionismo

venha se estender para as vertentes política ou militar, com implicações para a soberania

do Brasil, que de resto possui, como observado várias vezes, poucos “excedentes de

poder”, isto é, capacidade de ação e meios militares compatíveis com suas dimensões e

importância regional.

1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots;

Um dos temas mais debatidos, logo no início dos anos 1990, em torno da ordem

política internacional que teria emergido com o fim da Guerra Fria, foi o de saber se o

colapso dos países socialistas representava algo como o “fim da História”. O “introdutor”

do conceito foi um cientista social americano que durante certo tempo trabalhou para o

Departamento de Estado, mas que já vinha observando os desenvolvimentos políticos na

União Soviética desde o início dos anos 1980, pelo menos. A esquerda marxista, ou o que

restou dela, fez pesadas críticas a essa “tese”, de vaga inspiração hegeliana, sem ter

aparentemente registrado que o artigo original – publicado em meados de 1989 na revista

The National Interest – comportava um significativo “?” em seu título, e que as menções

à URSS não previam, em absoluto, seu desaparecimento ou mesmo a derrocada completa

do socialismo de tipo autoritário. As críticas foram, em sua maior parte, superficiais, e se

contentaram em “desmentir” Fukuyama por meio do “contra-argumento” banal de que a

história não poderia, obviamente, ter terminado, aduzindo esses críticos, então,

inumeráveis “exemplos” sobre a “crise” do capitalismo e da própria globalização.

O fato é que Fukuyama, em nenhum momento, pretendia “decretar” o fim da

História como tal. O que ele fez, apenas, foi consolidar seu entendimento conceitual de

que, depois da adesão de Gorbatchev a valores democráticos universais e a princípios da

economia de mercado, e depois da conversão dos comunistas chineses em aprendizes de

capitalistas, não havia mais sentido considerar que pudesse haver, no sentido teórico ou

mesmo prático, alternativas credíveis às democracias liberais de mercado (haveria, em

suas palavras, “total exhaustion of viable systematic alternatives to Western liberalism”).

Seu argumento “filosófico” não foi, até agora, desmentido no plano da racionalidade

instrumental. Isso não impede, obviamente, que continuem existir ditaduras, autocracias

18

ou outras formas de regimes autoritários, assim como sistemas econômicos nacionais que

se distanciam consideravelmente dos mecanismos de mercado. Isso tampouco elimina o

fato de que os mercados mundiais funcionam, em grande medida, de modo relativamente

uniforme (ou seja, segundo a velha lei da oferta e da procura, a despeito mesmo de alguns

cartéis que se empenham em manipular os preços de algumas commodities).

A maior relevância da “tese” de Fukuyama, porém, seria, teoricamente, no plano

dos conflitos globais, que segundo seu argumento tenderiam a perder sua roupagem

ideológica, abrindo caminho a uma cooperação cada vez maior entre as grandes potências

e os países responsáveis no plano da política mundial pela manutenção da paz, da

segurança, isolando ditadores e outros “vilões” do status quo. Não foi obviamente o que

ocorreu – nem mesmo depois da implosão da URSS – e os processos sob exame do

Conselho de Segurança continuaram a ter uma tramitação tão complicada quanto antes,

ainda que o “cálculo” quanto ao “enfraquecimento” do “império opositor” não mais se

aplique no caso das duas grandes superpotências. Em outros termos, se acreditava que,

com o “fim da história”, conflitos como os do Oriente Médio ou de outros pontos quentes

do planeta poderiam conhecer uma negociação “abreviada” ou, até mesmo, ter uma

“solução” à vista em questão de meses, senão de semanas.

Na verdade, a tese sobre o fim da história não requer que todos os países se

convertam em democracias liberais, com o que, supostamente, nenhum conflito mais

seria possível entre eles; apenas que não exista mais, no plano das sociedades, pretensões

à existência de formas de organização política e social superiores à democracia liberal.

Mas como adverte o próprio Fukuyama, o nacionalismo e a religião são forças bem mais

consistentes – e, portanto, difíceis de serem “diluídas” no cadinho comum das sociedades

– do que o foram, em suas épocas, o fascismo e o comunismo, que atuaram bem mais na

superfície das coisas, algo como a superestrutura das sociedades, em termos marxistas.

Por isso mesmo é tão difícil conseguir a eliminação dos conflitos entre sociedades ou a

cooperação entre algumas delas para diminuir, ou mesmo suprimir, alguns dos conflitos

mais deletérios em termos de violações dos direitos humanos e de perda de vidas.

Uma cooperação política e militar entre as principais potências nos hot-spots do

mundo implicaria, antes mesmo de algum entendimento sobre a forma de resolver um

conflito em especial, uma visão comum quanto aos seus interesses nacionais, o que não

19

parece fácil conseguir no horizonte previsível. Não foi assim no decorrer do século XX,

ainda que os sessenta anos depois da conclusão da Segunda Guerra Mundial não mais

assistiram às terríveis mortandades de sua primeira metade (ver Niall Ferguson, The War

of the World), quase tanto quanto o período de paz relativa que dominou o cenário

europeu desde o fim das guerras napoleônicas até a Primeira Guerra Mundial. Algumas

interpretações pretensamente marxistas sobre os dois conflitos mundiais do século XX

colocam suas raízes em supostas “contradições interimperialistas” entre as principais

potências européias, que teriam subido aos extremos pela disputa por mercados coloniais

e o acesso a matérias-primas. Na verdade, os conflitos entre Estados, antes de se tornarem

globais, são sempre regionais como demonstrado, justamente, pelos conflitos europeus do

terrível século XX (ver Arno Mayer, The Persistence of the Old Régime).

Tampouco tem sido assim no pós-comunismo. Os conflitos continuam regionais,

ou mesmo nacionais, e não há concordância entre as grandes potências para diminuir ou

eliminar seu caráter destruidor. A convergência de “opiniões”, não sendo possível no

plano regional, seria ao menos presumível no âmbito do sistema de segurança mundial,

ou seja, nas competências e atribuições do órgão encarregado, por excelência, da paz

internacional? Tal possibilidade passa, eventualmente, pela reforma da Carta da ONU e

uma hipotética ampliação de seu Conselho de Segurança, o que tem se revelado uma

missão impossível.

A despeito de declarações favoráveis à reforma por parte dos atuais membros

permanentes do CSNU, provavelmente hipócritas, o fato é que nenhum deles está

verdadeiramente interessado na reforma e na ampliação do número desses membros

permanentes. Em primeiro lugar, porque qualquer expansão do órgão significaria a

diluição do seu próprio poder; em segundo lugar porque as potências não se entendem,

justamente, sobre o equilíbrio regional da nova composição, tanto no plano de seus

interesses nacionais, quanto no âmbito da representação política das próprias potências

regionais. Várias delas têm enormes problemas com o ingresso de um ou outro dos

candidatos regionais, sejam eles amigos ou “inimigos”, assim como os candidatos podem

ter vizinhos recalcitrantes em relação à sua admissão. A China, por exemplo, não

considera que o Japão tenha feito o seu dever de casa no que se refere ao reconhecimento

dos crimes de guerra (e contra a humanidade) cometidos desde as primeiras invasões da

20

Manchúria e depois da própria China nos anos 1930. França e Grã-Bretanha têm

resistências em ver admitido mais um europeu, no caso a Alemanha, uma vez que a

pressão para uma representação da UE, em lugar desses países, individualmente, se

tornaria irresistível. A Índia tem contra si o Paquistão, assim como o Brasil não conta

com a boa-vontade – para dizer o mínimo – da Argentina para sua candidatura. Os

africanos, por sua vez, não se entendem sobre quais seriam os possíveis dois candidatos

do continente, que para a União Africana deveriam ser três, todos dispondo do direito de

veto. Nem os EUA, nem a Rússia, a despeito das tergiversações habituais, apreciariam,

na verdade, qualquer ampliação do CSNU, embora os EUA afirmem apoiar o Japão e

mais uma candidatura – possivelmente a Índia, ambos potencialmente para diluir o poder

da China – num processo de ampliação limitado.

Em outros termos, o imbróglio não parece perto de uma solução viável e aceitável

para todos, e o mais provável é que simplesmente não ocorra nenhuma reforma da Carta

– pelo menos para a ampliação do seu Conselho de Segurança – e que o impasse sobre o

número exato de “mais iguais” permaneça não resolvido pelo futuro previsível. Isto não

impede, obviamente, cooperação no CSNU – entre os permanentes e os rotativos – para o

encaminhamento de diversas questões atinentes à paz e à estabilidade mundial. Grandes

potências tendem ao conservadorismo, uma vez que elas assumem a liderança de alguns

processos e não pretendem colocar em risco situações consolidadas em suas próprias

regiões. Também parece haver entre elas a consciência – e nisso vai toda a diferença com

os impérios do passado e com os candidatos a novos hegemons ainda no século XX – de

que não existem ganhos garantidos no enfrentamento direto com as outras potências.

Mas a cooperação entre as grandes potências para a solução de conflitos regionais

nem sempre é garantida, tampouco, tudo dependendo de como elas mesmas percebem

seus interesses vitais no problema em questão: o oportunismo é de rigor e diversos fatores

entram na equação complexa que traça cada uma para si mesma na consideração de uma

questão específica vis-à-vis as estratégias que podem ser mobilizadas para defender os

seus interesses. Alguns problemas regionais são percebidos como ameaça para todos, daí

as possibilidades de cooperação entre eles; outros problemas os colocam em posições

opostas, daí os impasses prováveis; outros problemas sequer os atingem, diretamente, daí

a indiferença relativa com que esses problemas se arrastam sem solução aparente durante

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longos anos, com o “desengajamento ativo” – se a expressão é aceitável – das grandes

potências, salvo forte movimento de pressão da opinião pública para fazê-las mover-se.

Alguns exemplos, nessas diversas categorias, podem ilustrar as possibilidades de

cooperação, ou não, entre as grandes potências no tratamento de conflitos regionais. A

primeira guerra do Golfo, em janeiro de 1991, por exemplo, apresentou-se quase como

uma “cruzada” de liberação do pequeno Kuwait, invadido pelo vilão Saddam Hussein em

agosto do ano anterior. Foi possível ter o acordo de todas as potências do CSNU para a

aprovação de uma resolução que demandava a retirada sem condições do Iraque do país

invadido, sob pena dessa retirada ter de ser efetuada por todos os meios adequados, isto é,

pela força, se necessário. Curioso que a coalizão de “willing nations” que participou da

operação não o fez sob comando de uma força onusiana de “imposição de paz”, mas sim

sob o comando exclusivo das forças militares dos EUA, que estabeleceram sua própria

estratégia e linhas de atuação para essa “expulsão” do vilão do território de um membro

da ONU. Na verdade, esse é o padrão das forças de “imposição” de paz – em oposição às

operações de peace keeping, apenas, na quais o comando onusiano é possível – que ficam

sob o controle da potência interessada, que obviamente não abdica do comando militar (a

guerra da Coréia é o exemplo típico dessa situação, que confirma a quase impossibilidade

de a ONU vir a dispor de forças armadas próprias).

Já o quadro de massacres interétnicos ocorridos em Ruanda pouco tempo depois,

com milhares de mortos antes de qualquer intervenção humanitária, bem como as guerras

civis e a situação deplorável dos direitos humanos em diversos países africanos, arrasados

em conflitos que se arrastam durante meses e anos, ilustra perfeitamente a “negligência

irresponsável” – se o termo também se aplica – da comunidade internacional no caso de

problemas que não afetam nenhum dos interesses vitais das grandes potências. A ação

multilateral para pacificar o país dos tutsis e hutus demorou enormemente, assim como

outras guerras civis se prolongam na quase indiferença de grandes e médias potências. A

ONU não pode ser considerada responsável por essas lamentáveis situações, pois não

dispõe de autonomia sequer para decidir qualquer tipo de intervenção e, ainda que

dispusesse, não teria condições efetivas – ou seja, tropas próprias – para fazê-lo.

A mesma impotência involuntária da ONU revelou-se nos diversos conflitos dos

Bálcãs, ao longo dos anos 1990, desde as primeiras separações traumáticas – Eslovênia e

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Croácia – até o caso ainda não resolvido do Kossovo, passando, obviamente, pela terrível

fragmentação da Bósnia-Herzegovina, onde foram perpetrados os piores massacres vistos

na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, geralmente da população islâmica pelos

sérvios. A ONU e os próprios europeus da UE se revelaram incapazes de pacificar os

contendores ou de evitar as piores violações humanitárias, que ocorreram no caso da

capital da Bósnia, Sarajevo, e de alguns outros enclaves de composição mista, nos quais

os sérvios passaram à ofensiva. Nos Bálcãs, a Europa se revelou uma anã militar; não

fosse pelo forte clamor da opinião pública, não teria havido envolvimento da OTAN, sob

a forte liderança militar americana, para terminar com a terrível situação da população

civil. A mesma situação se colocou no Kossovo, embora por razões e circunstâncias

diferentes. Mais uma vez as exações sérvias permaneceram impunes pelos europeus e

pela ONU até que o poderio aéreo americano, sob a bandeira da OTAN, conseguiu

pacificar a província rebelde, criando uma situação de autonomia de fato em relação à

República iugoslava da Sérvia e do Montenegro. Esta última república, por fim, também

se declarou autônoma, em janeiro de 2006, confirmando a vocação histórica daquela

região e fechando um ciclo que trouxe os Bálcãs de volta ao sentido original de província

fragmentada entre impérios.

A segunda guerra do Golfo, envolvendo novamente o Iraque, trouxe um elemento

novo no que se refere ao papel da ONU. Chamado a endossar uma decisão que já estava

tomada pela cúpula conservadora americana – o presidente Bush e seus neocons –, o

CSNU, depois de longos debates de procedimento e de substância, recusou-se a se curvar

às exigências dos EUA no sentido de obter uma autorização para o uso da força contra o

regime de Saddam Hussein, sob o pretexto – que depois se revelou falso – de que ele

estaria desenvolvendo armas de destruição em massa, que poderiam, segundo alegou a

administração americana, ser colocadas à disposição de grupos terroristas. A invasão do

Iraque, já decidida desde o dia seguinte aos ataques terroristas contra alvos nos EUA, em

11 de setembro de 2001, deu-se de qualquer forma em março de 2003, e o governo e o

exército iraquianos foram efetivamente aniquilados em questão de dias pelo ataque

maciço do maior poder militar existente no mundo contemporâneo.

Pode-se considerar o episódio como um “fracasso” da ONU no sentido de evitar

ou prevenir o uso da força fora das situações previstas no direito internacional, ou seja, a

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própria Carta da ONU e as decisões do CSNU (que são, obviamente, eminentemente

políticas e não necessariamente a expressão do direito internacional, pelo menos não no

sentido estrito da palavra). De fato, a ONU não tem esse poder de evitar o recurso à força

por parte de Estados que se colocam à margem do direito internacional, pelo menos não

num caso como este, envolvendo uma grande potência. Mas, pode-se também interpretar

o evento como uma confirmação da vontade da comunidade internacional no sentido de

não se dobrar à vontade dos poderosos em quaisquer circunstâncias. Pouco mais adiante,

incapaz de administrar a situação caótica que ele mesmo criou no país ao desmantelar

todas as estruturas de Estado existentes no Iraque, o governo americano foi obrigado a

novamente fazer apelo à ONU, para tentar criar uma aparência de normalidade no país,

sem que a pacificação tenha tido êxito e sem que os grupos terroristas fossem intimidados

em sua vertigem assassina (ao contrário). A lição a ser tirada de todo esse doloroso

processo é, ao mesmo tempo, de uma constatação de relativa impotência da ONU e de

seus órgãos nas tarefas de prevenção de conflitos e de manutenção da paz e da segurança,

conjugada, no plano conceitual pelo menos, ao reconhecimento de sua legitimidade para

a tomada de decisões em todas as questões que envolvem o uso da força nas relações

internacionais.

Quanto ao Brasil, quais seriam as implicações desses episódios no que se refere

aos seus interesses nacionais, bem como à expressão desses interesses no plano regional e

no contexto internacional? Candidato a ingressar no CSNU desde a formatação original

da estrutura das Nações Unidas, sem ter logrado tal ambição à época da discussão da

Carta, em 1945 (de forma algo similar à candidatura frustrada ao Conselho da Liga das

Nações, em 1926), o Brasil sempre teve uma participação ativa nas deliberações do

Conselho, tendo sido um dos países que mais vezes figurou naquele órgão na condição de

membro temporário, não se eximindo, em várias oportunidades, de participar, com forças

de interposição ou com observadores militares, de operações de manutenção da paz.

Nunca houve, por razões de ordem política e constitucional, decisão em favor da

participação do Brasil em operações de imposição da paz (peace making). Mas não está

excluída tal evolução conceitual se a opinião interna no país se manifesta claramente em

favor da assunção de um maior protagonismo mundial para o Brasil.

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A candidatura ao CSNU ganhou novo alento depois da redemocratização do país

em 1985, mais concretamente quando o presidente Sarney, em pronunciamento feito na

Assembléia Geral em 1989, postulou essa pretensão, então apresentada como o desejo de

o país assumir maiores responsabilidades com a cooperação e a manutenção da paz no

âmbito internacional, sem que tal postulação significasse a exigência de concessão do

direito de veto no CSNU. O Brasil se apresentava, então, como uma espécie de candidato

“natural” a essa elevação de status no plano mundial, em função de seu papel positivo no

contexto regional e internacional, como aderente estrito às regras do direito internacional

e seu respeito às normas da convivência pacífica, do respeito à soberania e aos princípios

da não interferência nos assuntos internos e da solução pacífica de controvérsias políticas

entre os Estados. Tendo em vista objeções previsíveis, já manifestadas no passado, entre

alguns vizinhos, a essa pretensão, o Brasil não colocava sua candidatura como uma

expressão da vontade “regional”, mas seria inevitável que a questão da representação em

nível regional fosse colocada durante os debates em torno da reforma da Carta. Mesmo

tendo feito intensa campanha em favor de sua candidatura, na nova administração surgida

em 2003, o Brasil não viu ainda contemplada sua aspiração. Quando ela o seria? Difícil

dizer, em vista do quadro complicado não apenas em torno das representações regionais,

mas igualmente em função de visões divergentes entre os cinco membros permanentes –

talvez, convergentes, todos eles, em uma única consideração: a do desinteresse completo

pela ampliação do CSNU a novos membros permanentes –, o que torna essa questão uma

das incógnitas mais evidentes de toda a agenda internacional da atualidade.

Concluindo esta seção sobre a ordem política mundial, a questão que se coloca é a

de saber se poderia ser confirmado o diagnóstico feito ao início, de que se trata de novos

problemas e de velhas soluções. Provavelmente sim, no sentido em que o mundo já não

parece mais enfrentar o terrível espectro de um holocausto militar global, que seria desta

vez “definitivo”, a partir dos novos instrumentos de morte e de destruição maciços

trazidos pelos artefatos nucleares e termonucleares, “refugiando-se” agora em conflitos

de mais baixa intensidade, mas continua a ser regido pelo direito dos mais fortes e pela

imposição da vontade das grandes potências sobre a maioria, numa reprodução das velhas

vocações imperiais do passado. A situação atual não é, obviamente, similar à sucessão de

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impérios e de hegemonias como no passado, uma vez que o mundo caminhou para a

gradual afirmação da força do direito sobre o direito da força e, mesmo que a ONU não

seja, ainda, o “Parlamento da Humanidade” – como pretenderia Paul Kennedy –, ela, sem

dúvida, está mais próxima de atingir o objetivo de aumentar o grau de cooperação

voluntária entre os Estados membros da comunidade internacional do que jamais esteve,

em qualquer época, a Liga das Nações ou esquemas similares de equilíbrio de poderes. A

paz e a concórdia universal ainda não estão plenamente asseguradas, mas a guerra e o uso

ilegítimo da força tendem a se tornar cada vez mais raros no cenário contemporâneo. Esta

é, talvez, mais a manifestação de uma aspiração do que a expressão concreta da situação

real nas relações internacionais contemporâneas; mas há fortes razões para acreditar que

as bases para tal desejo estejam efetivamente se consolidando no cenário mundial.

Seria esta uma situação “definitiva” ou incontornável? Difícil dizer, uma vez que

nos assuntos humanos o imponderável sempre está presente. Mas existem fortes chances

de que, pelo menos entre os dirigentes atuais (e supostamente entre os futuros, também)

das grandes potências, a racionalidade instrumental tenda a se impor sobre os velhos

impulsos guerreiros que levaram seus antecessores a se enfrentar nos campos de batalha.

Finalmente, das cinco grandes potências que existiam um século atrás – Reino Unido,

França, Alemanha imperial, Rússia e Áustria-Hungria –, duas já deixaram de existir em

seu formato original (Alemanha imperial, liderada pela Prússia, e a Áustria-Hungria);

uma (Rússia) ascendeu, decaiu e viu seu império ser reduzido consideravelmente, e as

duas primeiras (Reino Unido e França) deixaram, efetivamente, de contar entre as mais

fortes do globo, amputadas que foram de seus vastos domínios coloniais e de sua vocação

imperial, para assumirem papéis mais modestos no atual cenário estratégico. As duas

potências então “periféricas” – Rússia e EUA – ascenderam no domínio global durante

cerca de duas gerações a partir do final da Segunda Guerra Mundial, ao cabo da qual elas,

de certo modo, “partilharam” o mundo (tendo Ialta representado uma espécie de tratado

de Tordesilhas da modernidade).

O fato dominante em nossa época é que os EUA “reinam” quase “incontestáveis”

no cenário estratégico contemporâneo, mas a China vem emergindo paulatinamente em

seu encalce. Pretende ela forçar a porta do clube dos “mais iguais”? De certa forma, ela já

faz parte desse conselho de poderosos, mesmo ainda mantida formalmente à margem do

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G-8. Duvidoso que a China, mesmo militarmente mais forte, se lance em uma corrida

para a “conquista” de poder político e de hegemonia estratégica sobre seus competidores

atuais, como o fizeram dirigentes imperiais de um passado não muito distante. A razão

não está tanto em que a natureza humana mudou sensivelmente nas últimas décadas (ou

séculos), mas em que a nova ordem econômica, caracterizada pela interdependência

efetiva entre as nações, impõe limites às vocações imperiais. É o que caberia examinar a

partir de agora.

2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções?

Em que sentido, a ordem econômica é caracterizada por velhos problemas e novas

soluções? Os velhos problemas são, indiscutivelmente: os da miséria e da prosperidade; o

da manutenção do crescimento econômico com estabilidade (isto é, sem inflação e com o

máximo de pleno emprego possível); o da repartição social das riquezas assim criadas; o

do acesso às matérias-primas e aos recursos essenciais aos processos produtivos, entre os

quais as fontes de energia e de água são estratégicos; os da abertura de mercados aos bens

e serviços em condições de livre concorrência; enfim, o da manutenção da dinâmica

econômica com transparência nas regras do jogo, de maneira a oferecer oportunidades

mais ou menos iguais para todos os agentes econômicos.

Sobre esses “velhos” problemas, que já ocupavam os “pais” da economia política

antes mesmo da formulação dessa disciplina, nos quadros do Iluminismo escocês, alguns

novos problemas vieram se agregar às preocupações dos estadistas contemporâneos: o da

transformação estrutural dos sistemas produtivos (inovação tecnológica) com garantia de

preservação da riqueza proprietária; o acesso a fontes de informação em condições

igualitárias; os efeitos ambientais nefastos das atividades produtivas humanas; a escassez

crescente de fontes de energia não renovável e da própria água; a pressão humana sobre

os recursos da biodiversidade e os desequilíbrios constantemente criados pela dinâmica

econômica em condições de assimetria de informação (fluxos de capitais não controlados,

crises de oferta ou de demanda de determinados insumos), para não se referir ao

crescimento do crime transnacional estimulado pela própria globalização capitalista.

E quais seriam as “novas” soluções que são mencionadas no título da seção? São

de duas ordens: uma geográfica, a outra institucional. A primeira é mais geopolítica, do

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que propriamente geográfica, mas vale aqui o contraste com a história. Não é verdade,

obviamente, que a história tenha terminado; tal compreensão restrita do processo

histórico jamais passou pela mente do formulador original desta “tese”, Fukuyama. O que

ele considerou, como já se mencionou, seria a inexistência prática de alternativas viáveis

aos sistemas democráticos de mercado, o que nos parece ser uma “tese” basicamente

correta, nas condições atuais da economia e da política internacional. Ocorre que, se o

processo histórico continua a sua dinâmica de poderes ascensionais e outros em declínio,

com conflitos residuais ou remanescentes entre muitos deles, a geografia, por seu lado,

parece ter alcançado seus limites propriamente “geográficos”. Vejamos isto com maior

grau de detalhe.

No início do século XX, as cartas da África e de certas partes da Ásia (para nada

dizer do imenso espaço amazônico) registravam grandes manchas brancas, as chamadas

terras incógnitas (rios, seus afluentes e mesmo cadeias inteiras de montanhas). Tudo isso

foi sendo incorporado aos domínios imperiais e objeto de cartografias mais ou menos

confiáveis, com a ajuda de aventureiros, exploradores, missionários e soldados. Mapeada

a superfície da Terra, o mundo permaneceu, entretanto, dividido e fragmentado, tanto

pela existência de projetos “imperiais” rivais – como podem ser classificados o mundo

capitalista e seu contestador socialista – como pela própria irrelevância de certas áreas

para fins de “exploração” capitalista, ou para sua “conquista” pelo sistema socialista.

Aliás, o próprio socialismo era “irrelevante” – salvo em poucas matérias primas – em

termos de mercados de bens, serviços, capitais, tecnologia, enfim, em produtos

inovadores e desejados pelos consumidores. Como diria Marx, as relações socialistas de

produção tinham se tornado anacrônicas e prejudiciais ao desenvolvimento das forças

produtivas; tinham de ser abolidas, pois representavam grilhões para o desenvolvimento

econômico. Foram abolidas e, com isso, a globalização retomou a marcha triunfal que

tinha começado com Marco Pólo e Colombo, vários séculos antes.

O que assistimos, portanto, na década final do século XX, foi um verdadeiro “fim

da geografia”, com o desaparecimento do socialismo – para todos os efeitos práticos, a

China não mais pode ser contada com um representante da espécie – e a unificação do

mundo conhecido em torno de regimes mais ou menos abertos ao sistema de mercados

capitalistas: com exceção daqueles poucos países auto-excluídos das trocas mundiais –

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como podem ser Cuba, Coréia do Norte e alguns poucos territórios africanos –, já não

mais existem “terras incógnitas” para fins dos mercados capitalistas. Trata-se, portanto,

de uma “solução geográfica” (ou geopolítica) ao problema do acesso desimpedido às

fontes de matérias primas e recursos naturais: com exceção de alguns poucos setores

ainda oligopolizados ou cartelizados – como é o da produção de petróleo, por exemplo –

a maior parte das commodities (inclusive algumas industriais, como são os circuitos

integrados) tem os seus preços fixados nos mercados de futuros, pelo livre jogo das leis

da oferta e da procura. Um problema, portanto, que conduziu alguns impérios do passado

às guerras de conquista e a conflitos por garantia de acesso a insumos e mercados, já está

praticamente resolvido com a unificação capitalista do mundo (ainda incompleta, por

certo, mas cada vez mais “global”).

A nova solução “institucional” aos velhos problemas da ordem econômica está,

justamente, na existência de organismos intergovernamentais que regulam a cooperação

entre Estados de uma forma como nunca foi possível em épocas anteriores à unificação

capitalista do mundo. Não pretendo aprofundar-me na exposição sobre a emergência e o

desenvolvimento do multilateralismo econômico, já tratado em alguns dos meus livros

(ver P. R. Almeida, O Brasil e o multilateralismo econômico). Bastaria dizer que esse

movimento também foi irregular e submetido às injunções políticas do cenário mundial

nos últimos 150 anos. Surgidas desde meados do século XIX, para responder aos desafios

da ampliação dos mercados (patentes ou padronização de produtos) e da conexão

transfronteiriça de meios de transportes e de comunicações (ferrovias e fios telegráficos),

as “uniões” ou “associações internacionais” logo se desenvolveram a partir dos núcleos

originais europeus, para alcançar virtualmente todo o “mundo civilizado” (e regiões então

inóspitas também). A cooperação intergovernamental – algumas vezes puramente privada

– implicava, de certo modo, a uniformização dos meios de pagamento (como o franco-

ouro, por exemplo) ou o estabelecimento de um padrão comum para as compensações

internacionais (daí a aceitação rápida do padrão-ouro no final do século XIX).

Após uma breve interrupção por ocasião da Primeira Guerra Mundial e sua

retomada pela Liga das Nações, no entre-guerras, o movimento “cooperativo” mundial

ganhou impulso com a ONU e a criação de suas muitas agências especializadas no pós-

Segunda Guerra. Especial preeminência para o tema que agora nos ocupa tiveram as

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chamadas instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional e o Banco

Mundial –, que deveriam ter sido complementadas, logo em seguida, por uma entidade

especialmente dedicada ao intercâmbio comercial, a Organização Internacional do

Comércio, efetivamente criada na conferência de Havana de 1947-48, mas que não

logrou entrar em vigor por falta de ratificações dos Estados membros. O GATT, acordo

geral sobre tarifas, cumprindo algumas das funções concebidas para a OIC, permaneceu

provisoriamente em vigor durante 50 anos, até finalmente ser incorporado à OMC, criada

ao final da Rodada Uruguai (1986-1993) do GATT.

Este é, portanto, o quadro jurídico através do qual se desenvolvem as relações

econômicas internacionais, objeto da digressão que segue abaixo. É importante registrar,

desde logo, que nem todos os países membros da ONU foram membros ou afiliados às

suas muitas agências reguladoras, sobretudo as de caráter econômico e financeiro, uma

vez que a maior parte dos países socialistas – estes, durante algumas décadas, estavam

representados por dezenas de países, cobrindo boa parte da superfície geográfica do

globo e quase 2/3 da população mundial – se manteve a margem dos mercados

capitalistas de bens, serviços e capitais, que por sua vez representavam o grosso dos

intercâmbios mundiais. Com o fim do socialismo, e dos exageros nacionalistas em outros

países protecionistas (geralmente em desenvolvimento), o quadro de membros de órgãos

como o FMI tende por vezes a superar o próprio número de países membros da ONU.

2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais

O “mundo” de Bretton Woods – isto é, o do gerenciamento das taxas de câmbio

pelo FMI e da adoção de um padrão de câmbio ouro-dólar, fixado como obrigação do

governo dos EUA em 1944 – funcionou, se tanto, durante cerca de dez anos, em sua

forma clássica, isto é, depois da conversibilidade das moedas européias, no final dos anos

1950 até o final dos anos 1960, quando a inflação americana, o déficit comercial dos

EUA e o excesso de dólares circulando nos mercados internacionais foram responsáveis,

conjuntamente, pela decisão do governo daquele país de suspender unilateralmente esse

regime. Entre 1971 – quando o governo Nixon anuncia que não mais converteria dólares

em ouro, como estipulado na convenção original – e 1973, quando o FMI finalmente

emenda seu instrumento constitutivo para dele não mais constar a supervisão sobre a taxa

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de câmbio das moedas nacionais, o mundo de Bretton Woods viveu o que poderia ser

chamado de end of illusions, isto é, a crença – economicamente irracional – de que as

economias poderiam conviver indefinidamente com taxas cambiais mais ou menos

estáveis e a promessa de um padrão fixo para o ouro.

A conseqüência, simplesmente, foi a flutuação generalizada das moedas, a queda

imediata do valor do dólar nos mercados internacionais – e, portanto, do valor de todas as

commodities cotadas nessa moeda, entre elas o petróleo – e o recrudescimento da inflação

(combinada ao crescimento do desemprego, que gerou a keynesianamente impossível

stagflation). O aumento brutal dos preços do petróleo em 1973 e o choque de oferta que

seguiu imediatamente após, foram os impactos mais visíveis do “fim” de Bretton Woods.

A repercussão mais importante, porém, foi o estabelecimento de um novo regime

cambial, no quadro de um “não-sistema” financeiro internacional, cujos resultados, no

médio e longo prazo, seriam a suspensão dos controles sobre os movimentos de capitais e

o aumento da volatilidade financeira nos mercados internacionais. Datam dessa época as

propostas de uma taxa sobre os movimentos de capitais puramente especulativos, algo

inaplicável, na prática, pois suporia uma coordenação de políticas macroeconômicas e

uma convergência de interesses fundamentais das economias nacionais que nem mesmo o

G-7, depois de trinta anos de experiências, é capaz atualmente de assegurar.

Essa “regulação cooperativa” das relações econômicas internacionais é, portanto,

sempre tentativa e sujeita às “chuvas e trovoadas” do sistema financeiro internacional. No

plano do comércio internacional, a forte expansão dos intercâmbios nos primeiros trinta

anos do pós-guerra não impediu o recrudescimento de sentimentos protecionistas nos

países desenvolvidos, à medida que mais e mais países em desenvolvimento ascendiam

na escala do desenvolvimento industrial, passando a oferecer produtos manufaturados a

preços competitivos nos mercados desenvolvidos. Esse neoprotecionismo gerou, como

era previsível, novos desafios ao sistema multilateral de comércio, até então regido

exclusivamente pelo GATT e por arranjos ad hoc que tendiam a segmentar e a proteger

determinados mercados segundo critérios claramente mercantilistas (têxteis e confecções,

produtos siderúrgicos, mercados agrícolas em geral).

Depois de várias rodadas de negociações comerciais preferencialmente voltadas

para tarifas e acesso a mercados, o regime multilateral de comércio embarcou no mais

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ambicioso ciclo de negociações, a Rodada Uruguai (1986-1993), da qual resultou a então

criada OMC, no quadro de um sistema mais previsível e também mais amplo do que o

GATT, inclusive por incluir arranjos específicos para serviços (GATS), para propriedade

intelectual (TRIPs), para investimentos (TRIMs) e um acordo sobre agricultura,

basicamente insatisfatório do ponto de vista dos países em desenvolvimento e dos países

exportadores agrícolas não subvencionistas (como Brasil, Argentina e vários outros). Por

outro lado, a dificuldade de se lograr acordos multilaterais abrangentes, com o elevado

número de participantes do sistema de comércio – que passou de duas dezenas, em 1947,

a mais de 150, atualmente, sendo o mais recente a Ucrânia, depois de 14 anos de

negociações –, levou vários membros a traçar estratégias “minilateralistas”, que

contornam as regras multilaterais existentes e redundam no elevado número de exceções

ao princípio básico da “nação-mais-favorecida”, sob a forma dos acordos regionais. Os

perdedores são todos os excluídos desses instrumentos de liberalização do comércio em

escala restrita, em geral países em desenvolvimento com volume reduzido de comércio.

Da mesma forma, não há dúvida sobre a questão de saber quem perde mais, com os

impasses da atual rodada Doha da OMC.

Do ponto de vista do Brasil, pode-se dizer que ele é um “usuário” modesto das

organizações econômicas internacionais, sobre as quais seu poder normativo é pequeno,

muito embora se tenha beneficiado, de modo satisfatório, com as regras relativamente

abertas que presidiram – de certa forma ainda presidem – às relações econômicas

internacionais no último meio século. A participação do Brasil nas trocas internacionais

sempre foi modesta, tendo ele se beneficiado como free-rider de alguns dos mecanismos

existentes, tanto no plano do comércio – acesso aos mercados desenvolvidos, sem

necessariamente conceder abertura equivalente – como no financeiro, tendo absorvido a

poupança externa, mas mantido estrito controle de capitais, para fins de equilíbrio do

balanço de pagamentos. A abertura econômica e a liberalização comercial conduzidas nos

anos 1990 – parcialmente revertidas desde então – fizeram mais pela modernização de

seu sistema produtivo do que décadas anteriores de projetos desenvolvimentistas; mas o

país ainda hesita entre as estratégias regionais e multilaterais de inserção econômica

internacional, pois cada uma tem custos diferenciados e oportunidades específicas, em

função das políticas que as acompanham. O Brasil é ofensivo em agricultura e defensivo

32

em bens e serviços, como corresponde às suas vantagens comparativas aparentes; mas

hesita ainda quanto à abertura de seu sistema produtivo nacional, pois mantém a idéia de

que, na era da globalização, deveria continuar a lutar por “políticas de desenvolvimento

nacional”, segundo os cânones de um passado julgado positivo no plano industrial.

No período recente, o Brasil aumentou seu grau de envolvimento na regulação

cooperativa das relações econômicas internacionais, assumindo um maior poder sobre os

mecanismos decisórios, mesmo se a sua participação nos fluxos de comércio continua

modesta (com maior interface de absorção no que se refere aos investimentos diretos

estrangeiros, em função da dimensão do seu mercado interno e do esquema de integração

no Mercosul). Essa responsabilidade acrescida – através do G-20, nas negociações

comerciais da OMC, por exemplo – ou a pretensão de vir a ser o centro focal de um

espaço econômico integrado na América do Sul, significam novos desafios para sua elite

diplomática, na medida em que a noção restrita de interesse nacional – isto é, projetos

puramente nacionais de desenvolvimento – tem de ser compatibilizada com essas novas

missões assumidas no plano regional ou mundial (o que significa maior dispêndio externo

ou maior abertura de sua economia).

2.2. Assimetrias de desenvolvimento

A ordem econômica internacional é certamente caracterizada pelas chamadas

assimetrias de desenvolvimento entre os países que a compõem, processo resultante da

“grande divergência” ocorrida nos últimos dois ou três séculos entre economias de alta e

de baixa produtividade. Atualmente, quando as teorias da “exploração” ou as teses sobre

o “intercâmbio desigual” já estão completamente desacreditadas – por sua inconsistência

teórica ou total contradição com a própria realidade histórica –, o que se requer é que os

países em desenvolvimento se insiram nessa nova ordem econômica internacional do

capitalismo globalizado sem qualquer camisa de força ideológica, como as do passado,

que os faziam tratar as multinacionais como ameaça à soberania estatal, impondo-lhes,

em conseqüência, controles e restrições que não mais se justificam nestes tempos de “fim

da história” e de globalização como oportunidade, não como risco.

Não obstante os notáveis progressos registrados nas últimas duas décadas, em

termos de avanços na interdependência econômica mundial, não seria supérfluo recordar

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que continua inexistente qualquer regulação multilateral dos investimentos estrangeiros, o

que constitui, sem dúvida, uma das mais notórias falhas do sistema econômico

multilateral. Os países recorrem aos famosos acordos bilaterais de proteção e de

promoção dos investimentos estrangeiros (APPIs) ou dispõem, entre eles, de regras de

adesão voluntária que liberalizam amplamente esses fluxos, de acordo com a cláusula do

tratamento nacional (como nos códigos existentes na OCDE). O Brasil, que sempre disse

sim aos capitais estrangeiros – mas não aos capitalistas, propriamente –, assinou mais de

uma dúzia desses instrumentos bilaterais, mas não colocou nenhum em vigor, por temor

de que eles diminuíssem sua capacidade de regular políticas públicas num sentido

“desenvolvimentista”, sempre privilegiado. Assim, a despeito das novas configurações da

economia mundial, com o surgimento de emergentes dinâmicos – como os BRICs, entre

os quais o próprio Brasil é colocado – a diplomacia econômica do país continua a

ostentar pouca disposição em prol de maior liberalização no âmbito da OMC, sobretudo

naqueles setores nos quais supõe ser sua baixa capacidade competidora (serviços, ramos

industriais de ponta, investimentos e propriedade intelectual).

A razão das hesitações do Brasil (e de outros países em desenvolvimento) em face

de maiores propostas de abertura é o temor que esta possa resultar no aprofundamento

dessas assimetrias; sobretudo porque a agenda da “graduação”, tal como colocada pelos

países ricos, vem condicionada à contrapartida de que os emergentes devem pagar um

preço pela redução do protecionismo agrícola e a maior abertura dos mercados

avançados, com a redução de suas próprias barreiras ao comércio de produtos industriais,

aos serviços e aos investimentos. Para muitos países em desenvolvimento, as assimetrias

são típicas distorções derivadas dos mercados livres, que só podem ser corrigidas por

“adequadas políticas públicas”, de tipo setorial (geralmente industrial, mas também

apoiadas em uma política comercial de tipo protecionista). O Brasil teve relativo sucesso

em suas políticas “substitutivas”, que mobilizaram, justamente, esse tipo de instrumento;

mas a partir de certa etapa do seu processo de desenvolvimento, as mesmas políticas que

tinham sido responsáveis pela ascensão de sua capacitação industrial, levaram, em

combinação com choques externos e com graves descontroles no plano fiscal, à

estagnação do seu crescimento econômico: o protecionismo exacerbado gerou distorções

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no perfil distributivo da população e várias debilidades na competitividade externa da

indústria brasileira.

Não deveria haver, a rigor, nenhuma razão para insistir em políticas de claros

efeitos distorcivos no plano industrial e em seu impacto social; mas persiste uma adesão

política a velhas práticas do passado, como, no âmbito multilateral, a defesa acirrada da

manutenção, para o país, do tratamento preferencial para países em desenvolvimento, de

nítida feição oportunista. As chamadas assimetrias estruturais poderiam ser vistas, nessa

perspectiva, mais como uma oportunidade para uma maior inserção desses países no

sistema internacional, do que como um impedimento a essa integração, na medida em

que elas são, de certo modo, “vantagens comparativas” que podem ser mobilizadas em

seu favor num mundo caracterizado pela alta mobilidade de fatores de produção, em

todos os níveis e direções. Os fenômenos de “out-sourcing” e de “off-shoring”

representam dois aspectos, justamente, desses processos de intensa deslocalização da

produção que estão beneficiando intensamente países como China e Índia, que decidiram

se inserir de modo mais ativo nas correntes dinâmicas da globalização capitalista.

2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio

A ordem internacional compreende, também, projetos e programas de cooperação

econômica multilateral que todos eles visam reduzir os imensos gaps de desenvolvimento

que ainda caracterizam o mundo. Existem dúvidas fundadas, explicitadas ainda nos anos

1950 por economistas como Peter Bauer, sobre se a ajuda externa promove, de fato, o

desenvolvimento; ou se ela, ao contrário, diminui as chances de um país pobre alcançar

seu próprio estilo de crescimento e de inserção econômica internacional, com base em

estímulos de mercado, geralmente baseados no comércio, mais do que com base em (ou

em substituição a) programas de ajuda externa. O Brasil, por exemplo, tornou-se uma

potência industrial graças às iniciativas de seus empreendedores nativos, aos aportes

voluntários de investimentos estrangeiros e ao papel indutor do Estado; os dois primeiros

basicamente guiados pelos retornos de mercado, tendo a cooperação bilateral com países

avançados se dado essencialmente no capítulo da formação de recursos humanos.

Não se quer, com isto, dizer que a crença na cooperação internacional seja uma

ilusão completa – uma vez que a cooperação técnica pode representar uma contribuição

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extremamente benéfica, justamente, para os países menos capacitados; mas o fato é que o

processo de desenvolvimento precisa ter bases genuinamente endógenas, do contrário ele

não seria capaz de gerar efeitos indutores extensivos para o resto da economia e para a

sociedade como um todo. Uma demonstração prática do caráter meramente subsidiário –

e alguns críticos diriam até nefasto – da ajuda oficial ao desenvolvimento seria o fato de

que, após várias “décadas do desenvolvimento” oficialmente patrocinadas pela ONU,

ademais dos imensos aportes financeiros transferidos para países africanos ao longo

dessas décadas, muito poucos países em desenvolvimento conseguiram efetivamente

alçar-se de sua antiga condição “subdesenvolvida” para manter um processo sustentado

de crescimento econômico e de transformação estrutural, com distribuição social desses

benefícios do crescimento. Aqueles que o fizeram – muito poucos, na verdade –, em

absoluto deveram seu desenvolvimento à cooperação externa.

Qualquer que seja o julgamento intelectual – e prático – que se possa ter sobre os

modestos resultados (se algum) da ajuda ao desenvolvimento, o fato é que a comunidade

internacional firmou, em 2000, um compromisso formal com as “Metas do Milênio”, um

conjunto de oito grupos de objetivos a serem alcançados até 2015, no sentido da redução

da pobreza, das desigualdades sociais e de gênero, de acesso a meios básicos de vida e de

saúde e educação. Não é seguro que as metas do milênio sejam alcançadas pela maioria

dos países a que elas se destinam. O problema maior não está exatamente na falta de

financiamento para se atingir essas metas, embora este possa ser também um problema no

provimento de medicamentos básicos e serviços essenciais em países que carecem das

mais elementares estruturas de Estado. A questão é justamente esta: vários dos países-

alvo das metas entraram numa linha de desestruturação dos serviços públicos essenciais

que os qualificam para figurar na categoria dos “Estados falidos”, num momento em que

vários dos países doadores podem estar passando por uma situação de retração que já foi

identificada como donors fatigue. Em outros termos, a questão da crise da ajuda oficial

pode não ser mais uma simples questão de dinheiro – embora isto também possa estar em

causa – ou de recursos materiais vindos de fora; mas de uma avaliação realista quanto às

carências de governança nos próprios países objeto da ajuda. Muito deles, em especial os

africanos, estão praticamente vivendo de assistência pública internacional, quando não

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ocorre desses recursos serem em parte desviados por elites pouco comprometidas com a

causa do desenvolvimento nacional.

A diplomacia brasileira recente engajou-se, no mais alto nível, aliás – isto é, com

o envolvimento do próprio presidente –, num ambicioso programa mundial de redução da

fome e da pobreza extrema, com modestos resultados na prática. Na verdade, não existe

propriamente carência de programas oficiais de combate à fome, assim como os meios de

financiamento não são, exatamente, o obstáculo principal a tal programa. O problema

está, justamente, em fazer more of the same, ou seja, tentar tornar factível a mobilização

multilateral em favor dos países mais pobres segundo linhas mais do que tradicionais de

ação, que supõem, de um lado, a coleta de fundos e, de outro, seu direcionamento para os

“necessitados”. Diversos economistas – entre eles William Easterly, que trabalhou muitos

anos para o Banco Mundial, na África – já reduziram as expectativas em relação a esse

tipo de ação que tende a recriar as mesmas estruturas de dependência desses países da

ajuda internacional. O único caminho correto, como já tinha identificado Peter Bauer

bastante tempo antes, seria a mudança estrutural dessas economias e sua integração plena

nos circuitos do comércio internacional, para o que os países desenvolvidos, em primeiro

lugar as ex-potências coloniais européias, deveriam imperativamente abrir seus mercados

e eliminar os aspectos mais nefastos da política agrícola comum: os subsídios à produção

interna e as subvenções às exportações.

3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil

Está na hora de repassar os grandes temas da agenda internacional em relação às

suas implicações para o Brasil, com destaque para os temas econômicos, que compõem o

essencial da agenda do nosso relacionamento externo. O Brasil não tem – parece óbvio,

mas cabe repetir – grandes demandas por segurança que derivem de ameaças externas,

ainda que os próprios militares possam “descobrir” toda uma série de ameaças potenciais

que poderiam fragilizar nosso país, caso surjam “imprevistos” na Amazônia – sempre

ameaçada de “internacionalização”, não se sabe bem por parte de quem, mas se supõe

que seja supostamente do grande império do norte –, nas plataformas de petróleo off

shore, aparentemente ameaçadas por terroristas aquáticos, por parte de guerrilheiros

vizinhos convertidos em narcotraficantes; enfim, não faltariam perigos rondando o Brasil,

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para os quais soluções “tecnologicamente sofisticadas” sempre serão necessárias. À falta

de ameaças credíveis, percebidas ou não, resta o papel acessório que o país poderia

desempenhar nos esquemas de segurança internacional sob a égide da ONU, até aqui de

peace keeping, mas eventualmente também de peace making (para o quê uma evolução

conceitual, e constitucional, seria desejável).

As grandes questões da interface externa do Brasil são, antes de tudo, questões de

economia; e antes de economia interna do que propriamente internacional, como um

simples argumento pode demonstrar. O ambiente econômico internacional, mesmo sem a

continuidade da atual fase de bonança – com o crescimento sustentado de vários países

emergentes, que tendem senão a substituir, pelo menos compensar várias das antigas

locomotivas do crescimento mundial, como os EUA, o Japão ou a Alemanha – ofereceu e

continua a oferecer oportunidades excelentes a um país capitalista como o Brasil (que

nunca foi socialista como a China, tendo, portanto, instituições de mercado plenamente

funcionais, e nem tão nacionalista e estatizante quanto a Índia). O Brasil é um país

notoriamente carente de investimentos, algo que a economia internacional tem de sobra

para economias que se abrem a parceiros estrangeiros. Tampouco existe falta de liquidez

nos mercados financeiros internacionais, onde a captação e os preços se dão em função

dos riscos percebidos pelos provedores, riscos oferecidos por determinadas economias,

algo, portanto, que depende basicamente delas mesmas. Enfim, todas as variáveis que se

possam conceber no plano econômico internacional parecem favoráveis ao Brasil,

cabendo ao próprio país fazer o seu “dever de casa” em termos de preparação para o

crescimento e o desenvolvimento sustentado.

Em uma expressão: todas as questões de economia política internacional do Brasil

são, antes de tudo, problemas de política econômica nacional e é com essa compreensão

que deve ser avaliada a discussão que vem oferecida nesta seção final deste ensaio. Não

obstante, algumas outras questões da agenda internacional que interessam ao Brasil de

perto serão examinadas, independentemente de seu caráter ou interface internacional.

3.1. Crescimento econômico

O problema básico do Brasil, como para a maioria dos paises emergentes, é o do

crescimento econômico, capaz de sustentar um processo de transformação produtiva, com

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vistas a ganhos de produtividade que, por sua vez, contribuirão para a competitividade

dos nossos produtos nos mercados internacionais, produzindo, assim, riquezas e

empregos internos. O mundo está ajudando de maneira excepcional nessa tarefa: pela

primeira vez em 30 anos, é registrado o mais forte crescimento na economia mundial,

com taxas nos países emergentes jamais igualadas por quaisquer outras economias, salvo

em curtos períodos sem continuidade ou consistência. Infelizmente, o Brasil e a América

Latina crescem muito pouco, abaixo da média mundial e três vezes menos que os

emergentes mais dinâmicos. Esta modéstia no ritmo de crescimento se dá a despeito dos

mais altos preços nas commodities exportadas pela região – que é, como se sabe,

abundante em recursos naturais – e da grande demanda externa por esses produtos (o que

confirma, mais uma vez, que pode haver alguma “maldição” na dependência de recursos

naturais).

O baixo crescimento do Brasil e da América Latina também se dá a despeito da

maior disponibilidade de capitais de risco e da menor vulnerabilidade financeira externa

(pelo menos aparentemente): estaria a região, de fato, imune a novas crises? Por um lado,

as reservas internacionais desses países nunca foram tão altas – para algo serviram as

crises financeiras dos anos 1990 – e, por outro, as taxas de juros e spreads cobrados nos

empréstimos e lançamentos de bônus internacionais desses países também se situam em

patamares historicamente baixos, não necessariamente devido à nova onda de “confiança

irracional” dos mercados financeiros nesses países, mas porque há, de fato, abundância

de liquidez nesses mercados.

O que, então, explicaria as baixas taxas de crescimento do Brasil e de grande parte

dos vizinhos? (Alguns dos países que estão crescendo, a exemplo da Argentina e da

Venezuela, o fazem em razão da recuperação e da saída de crises incorridas no período

recente, ou devido à demanda elevada puxada por gastos estatais, no caso das receitas de

petróleo.) Basicamente, em virtude do baixo nível dos investimentos externos, resultado

de uma “despoupança estatal” visível no caso brasileiro – com uma carga fiscal igual à de

países desenvolvidos, para uma renda per capita seis vezes menor – e de desequilíbrios

fiscais que lançam dúvidas aos olhos dos investidores privados, sobre as perspectivas

futuras de crescimento, tendo em vista as trajetórias da dívida interna e dos juros reais.

Ou seja, a despeito de que a estabilidade macroeconômica, duramente conquistada no

39

passado recente, permitiu criar essa sensação de good fundamentals, as percepções de

risco ainda estão presentes, o que limita o volume total de investimentos na economia.

Cabe descartar aqui os fatores tradicionalmente invocados para justificar as baixas

taxas de crescimento na economia brasileira, que seriam a ameaça de estrangulamento

externo em função dos desequilíbrios cambiais e da famosa volatilidade dos capitais

especulativos. Capitais financeiros são, por definição voláteis, e não há nada que se possa

fazer quanto a isso, seja uma grande economia desenvolvida, seja uma pequena economia

em desenvolvimento. Esses capitais se movimentam continuamente, de que são prova os

movimentos cambiais contínuos entre as principais moedas de reserva internacionais. Por

outro lado, o câmbio nunca esteve tão valorizado no Brasil – uma taxa muito superior

àquela registrada nos tempos da banda cambial administrada (1995-1998), que a oposição

atualmente no poder caracterizava como sendo “populismo cambial” – e, no entanto, não

cessam de crescer, ano a ano, as exportações brasileiras. Quanto à volatilidade, uma coisa

precisa ser clarificada: ela é, na verdade, inerente à natureza dos capitais “especulativos”,

mas só produz efeitos nefastos quando a política econômica é, por sua vez, volátil, o que

soe acontecer de maneira muito freqüente nos países latino-americanos, sobretudo em

razão de desequilíbrios orçamentários, que se traduzem em crises fiscais.

Caracterizada, portanto, a natureza inteiramente interna dos problemas brasileiros

de crescimento e de “volatilidade”, caberia examinar quais seriam, dentre os fatores

internos e externos de crescimento dos BRICs – entre os quais o Brasil está incluído,

malgré lui, isto é, a despeito de ser o atrasado do pelotão –, as causas do desempenho

modesto de sua economia. Dentre os fatores endógenos de crescimento sempre podem ser

encontrados: o adequado provimento de insumos básicos, dos quais o Brasil parece

adequadamente bem provido; energia barata e abundante; mão-de-obra suficiente, barata

e adequada, isto é, adestrada; infra-estrutura de transportes e comunicações à altura das

necessidades dos agentes privados; mercado de capitais funcional, líquido e a custos

razoáveis; judiciário expedito ou instrumentos ágeis de solução de disputas (o que pode

significar arbitragem privada), o que representa baixos custos de transação; regras do

jogo estáveis, transparentes e com o mínimo de intrusão possível por parte dos “rentistas”

sempre existentes no setor público, em seus vários níveis. Com relação a esses fatores,

sabemos que o Brasil padece terrivelmente de deficiências notórias em vários deles, a

40

começar pela tributação excessiva e pela intervenção exacerbada do Estado na vida dos

agentes econômicos privados (e não só pelo lado fiscal, mas burocrático também).

Essas deficiências pelo lado regulatório, tributário, burocrático, pelas carências de

infra-estrutura e de mão-de-obra competente e competitiva – seja pelo lado dos salários,

seja pelo lado da produtividade – e por vários outros fatores, que estão, na maior parte,

ligados às responsabilidades governamentais, explicam, provavelmente, a longa e lenta

marcha do Brasil para o investment-grade na classificação de risco das agências mundiais

de rating. Essa classificação será sem dúvida atingida, em prazo intermediário, inclusive

porque o Brasil é uma grande economia em escala mundial e vem consolidando as bases

de sua estabilidade macroeconômica (com algum dever de casa a ser feito no lado fiscal).

Não obstante esse lado positivo cabe registrar que, no contexto das novas configurações

da economia mundial, com a ascensão fulgurante da China em quase todos os grandes

mercados de importância – produtivo e manufatureiro, por certo; como demandante de

commodities e outras matérias-primas, sobretudo energéticas; financeiro e tecnológico de

modo crescente; sem esquecer o lado militar e político –, seguida de perto pela Índia e

alguns outros parceiros (tanto ricos, como em desenvolvimento), o Brasil aparece como

um small player no cenário econômico e estratégico internacional, em vista de sua

modesta capacidade de influenciar decisivamente qualquer processo ou evento dotado de

impacto mundial. Isso não diminui suas chances de vir a integrar um possível G-13, caso

este seja formado em algum momento nos próximos anos. Mas a pergunta que se coloca

seria: deseja o Brasil realmente vir a integrar tal clube restrito, em vista das mudanças

inevitáveis que isso implicaria para sua atual condição de país em desenvolvimento?

Trata-se de uma questão relevante, que não será respondida nos quadros deste

ensaio, mas que permanece como um dos elementos-chave na conformação presente e

futura da diplomacia econômica brasileira e de sua estratégia de inserção internacional.

3.2. Investimentos

Os investimentos estrangeiros diretos sempre foram parte integrante do cenário

econômico brasileiro, assumindo um papel decisivo em seu processo de industrialização.

De resto, trata-se de fator preponderante em qualquer economia aberta que pretenda obter

ganhos tecnológicos em prazos relativamente curtos, ocorrendo uma contrapartida na

41

balança de serviços pelo fato das remessas das “rendas do capital”, a título de dividendos,

lucros, royalties, pagamentos técnicos de natureza diversa e outras transferências. Seus

efeitos, mesmo com algum peso no balanço de pagamentos, são eminentemente positivos,

em face da incorporação de know-how e dos ganhos de produtividade que ele permite. O

Brasil sempre foi um beneficiário, bastando consultar a lista da Forbes das 500 maiores

empresas mundiais, para constatar que mais de quatro quintos desse número já se

encontram instalados no Brasil, nos diferentes ramos da economia, direta ou

indiretamente. Podem causar estranheza, assim, as reações que o capital estrangeiro

desperta ainda no país.

Não existe, como se sabe, uma regulação multilateral atinente aos investimentos

estrangeiros diretos, assim como não existe um único instrumento mundial disciplinando

as relações entre investidores privados e Estados receptores desses investimentos diretos.

A Carta de Havana (1948), não ratificada, previa algumas poucas regras a esse respeito,

que nunca foram colocadas em vigor, oportunamente implementadas de modo bilateral e

parcialmente nos acordos de promoção e proteção de investimentos negociados entre os

exportadores e os importadores de capitais (os países ricos possuindo, quanto a eles,

regras inscritas no código de liberalização de investimentos da OCDE, que segue, tanto

quanto possível, os princípios de NMF e de tratamento nacional). As lacunas legais e as

carências regulatórias são, assim, supridas de maneira ad hoc por instrumentos diversos,

geralmente seguindo um modelo padrão relativamente uniforme, que sustentou, desde os

anos 1950, a proliferação de acordos bilaterais conhecidos como APPIs. Não obstante ter

assinado mais de uma dúzia, sem ter ratificado nenhum – em virtude de forte oposição

nacionalista interna –, o Brasil possui uma legislação abrangente, que confere relativa

estabilidade e abertura ao capital estrangeiro, estando ela em vigor desde meados dos

anos 1960. Os registros e as autorizações de movimentação são conferidos de modo

praticamente automático pelo Banco Central, e não parecem existir reclamações no plano

puramente instrumental.

Subsistem, contudo, algumas restrições ao investimento estrangeiro na economia

brasileira, assim como permanece certa insegurança jurídica quanto a eventuais disputas

que possam ocorrer entre o investidor estrangeiro e parceiros nacionais ou entre aquele e

o Estado brasileiro. Na segunda metade dos anos 1990, o Brasil participou do exercício

42

do MAI – Multilateral Agreement on Investments – na OCDE, frustrado em sua

conclusão em virtude de desentendimentos entre os próprios países participantes –

notadamente os EUA e a França – e não em função das manifestações dos

antiglobalizadores, como equivocadamente se considera em certos meios. Permanece,

assim, uma situação de impasse quanto ao tema investimentos na agenda multilateral,

uma vez que são poucos e insuficientes os dispositivos existentes no âmbito da OMC

(acordo de TRIMs). O Brasil participa ativamente (ma non troppo) das discussões, mas

não pretende avançar muito no terreno negociador, uma vez que tem restrições

aparentemente “filosóficas” a essa regulação, já que pretende preservar os famosos policy

spaces internamente.

3.3. Acesso a mercados

Acesso a mercados é o grande tema da diplomacia econômica brasileira, que

considera que as promessas da Rodada Uruguai permaneceram sem implementação

prática, em especial no setor agrícola. Tendo concedido sua aprovação a novas regras em

novos campos (serviços, propriedade intelectual, investimentos), e sentindo-se frustrado

pela não-reciprocidade efetiva, o Brasil apreciaria dispor de maior abertura nos mercados

desenvolvidos para seus produtos competitivos. Ele mantém, notoriamente, uma atitude

mais ofensiva do que defensiva em aceso a mercados, em especial na agricultura, tendo

liderado o movimento que resultou na formação do chamado G-20 na reunião de Cancún

da Rodada Doha (2003). Depois disso, e não apenas por sua insistência numa agenda do

desenvolvimento, ocorreram diversos impasses reais e de procedimento em reuniões nas

quais o Brasil sempre foi um protagonista de primeiro plano, junto com a Índia, os EUA e

UE: em Hong-Kong, em Potsdam e em Genebra, não havendo, até o início de 2008,

certeza quanto às possibilidades de conclusão da Rodada nos próximos meses.

As implicações para o Brasil são de ordem não apenas comercial, uma vez que a

diplomacia econômica do país considera que, em função do grau de abertura que ele será

obrigado a conceder nas áreas de forte demanda ofensiva dos desenvolvidos, dependerá o

sucesso, ou, até, a manutenção de seu projeto de desenvolvimento industrial, considerado

em bases essencialmente nacionais. Não se conhecem avaliações independentes quanto

aos custos da liberalização, embora os industriais sejam sempre alarmistas quanto aos

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limites da abertura que eles estão dispostos a conceder. O setor de serviços,

tradicionalmente protegido da concorrência externa, tampouco se mobiliza ativamente

para o sucesso das negociações, ao passo que o agronegócio, exportador competitivo,

parece ser o único a demandar abertura ampliada dos mercados, nos dois sentidos.

O Brasil vem insistindo na estratégia multilateralista e já recusou acordos parciais

de acesso a mercados – como os compromissos em matéria de liberalização de produtos

eletrônicos, firmados no âmbito do Information Technology Agreement, adotado em

Cingapura, em 1996 – que o confrontem diretamente a países mais competitivos no plano

industrial. Tampouco foi possível concluir acordos limitados de acesso a mercados com

países desenvolvidos, a exemplo do projeto hemisférico da Alca – recusada formalmente

por “inconveniente”, no seu modelo americano – e do acordo interregional entre o

Mercosul e a UE, não só por motivo de dificuldades de compatibilização das demandas

ofensivas em matéria agrícola e defensiva na área industrial, mas também porque os

parceiros desenvolvidos pretendem um pouco mais do que o simples acesso a mercados,

adentrando em áreas regulatórias ou sistêmicas que encontram oposição na atual

diplomacia brasileira.

3.4. Integração regional

Trata-se, provavelmente, da prioridade estratégica mais relevante da diplomacia

brasileira, desde o início dos anos 1990, ou talvez até antes, desde as primeiras tentativas

de formação de um mercado comum bilateral com a Argentina, na segunda metade dos

anos 1980. Essa integração das duas grandes economias da América do Sul é vista como

a base indispensável para a conformação de um grande espaço econômico integrado em

todo o continente, havendo, em conseqüência, um enorme investimento diplomático do

Brasil na consecução dessa idéia. Essa prioridade não impede, obviamente, a existência

de disputas comerciais entre os dois países, com cláusulas de salvaguarda aplicadas de

modo aparentemente abusivo pela Argentina contra produtos brasileiros.

Todo o processo do Mercosul – constituído pelo Tratado de Assunção, de março

de 1991, sob a forma de uma união aduaneira em implementação progressiva – vem

sendo apresentado como parte de um esforço de “regionalismo aberto”, ou seja, disposto

a incorporar os vizinhos progressivamente. Mas o fato é que as tentativas de ampliação

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do bloco acabam resultando na criação de novas e crescentes exceções nacionais tanto à

zona de livre-comércio (ZLC) como à união aduaneira (UA). De fato, a primeira funciona

com algumas exceções setoriais, notadamente no setor de açúcar (fortemente protegido

na Argentina) e na indústria automotiva, onde vigora um acordo de compensação baseado

em quotas que vem sendo prolongado com alterações desde o início. Diversos acordos de

liberalização comercial foram concretizados entre o Mercosul e os vizinhos andinos da

CAN, com cláusulas de exceção, dispositivos de origem ou regras de acesso limitado que

muitas vezes se exercem no plano bilateral dos países envolvidos.

Os novos candidatos ao ingresso pleno no Mercosul – sendo que até o momento

três países são associados à sua ZLC: Chile e Bolívia, desde 1996, Peru, desde 2003 –

sempre reivindicam exceções especiais à ZLC e flexibilidade na aplicação da Tarifa

Externa Comum (TEC) da UA. A Bolívia, por exemplo, gostaria de ingressar plenamente

no Mercosul sem ter de adotar a TEC, ao passo que a Venezuela, admitida politicamente

em 2006 na esdrúxula condição de “membro pleno em processo de adesão”, apresenta

notórias dificuldades para aceitar o conjunto de regras já adotas pelo Mercosul, como,

provavelmente, para incorporar a TEC de modo pleno. Não se prevê, no futuro imediato,

progressos sensíveis no capítulo comercial, mas os países vêm expandindo uma agenda

não comercial que envolve, crescentemente, grande número de atores sociais, nas áreas

cultural, educacional, trabalhista e outras.

Conferindo alta prioridade à integração da América do Sul, a diplomacia

brasileira se lançou em iniciativas ambiciosas, como a constituição de uma Comunidade

Sul-Americana de Nações, efetivamente criada em dezembro de 2004, mas substituída,

em abril de 2007, pela União de Nações Sul-Americanas, com um tratado constitutivo

previsto para ser assinado em junho de 2008 e um secretariado a ser instalado em Quito.

Trata-se da recuperação parcial, mas com maior significado político, do projeto lançado

em setembro de 2000, a convite do presidente Fernando Henrique Cardoso, no sentido de

ser constituída a Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), com vistas a

favorecer a vinculação física e grandes obras de infra-estrutura entre os países da região.

Independentemente do maior ou menor êxito de todos esses projetos, o fato é que

os países da região estão quase todos unidos informalmente por uma rede de acordos

comerciais de liberalização econômica que tem no seu centro os EUA, o promotor

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original da idéia da Alca, recusada por Argentina, Brasil e Venezuela. Os EUA, numa

estratégia ofensiva de conquista de mercados, que os levou do antigo multilateralismo ao

minilateralismo de fato, a pretexto de oferecer acesso ao seu enorme mercado a países

que dispõem de pequena base industrial ou até agrícola, acabam patrocinando ampla

discriminação contra os países mais competitivos da região, que são justamente os do

Mercosul. As implicações para o Brasil são importantes, uma vez que a estratégia dos

EUA pode levar o Mercosul a uma maior introversão do que seria recomendável, bem

como ao aumento dos conflitos bilaterais como regra de “convivência”. Não se trata,

obviamente, de cenário desejado pelo Brasil ou pelo Mercosul, que são, assim, obrigados

a empreender uma disputa para o estabelecimento de redes de acordos paralelos.

Com esse tipo de comportamento, os dois mais importantes países do hemisfério,

EUA e Brasil, acabam contribuindo, voluntariamente ou não, para o reforço de uma das

piores deformações do sistema multilateral de comércio na atualidade: o chamado

spaghetti bowl – ou seja, um emaranhado de acordos comerciais não necessariamente

compatíveis entre si, mas convivendo no mesmo “prato” – de que fala o economista

indiano da Columbia University, Jagdish Bhagwati. O cenário previsível é o do aumento

dos conflitos e um stress inevitável no sistema de solução de disputas da OMC, onde

diversos casos têm sido concluídos, sem que os resultados finais tenham sido acatados

pela parte perdedora, geralmente poderosa (como no exemplo do algodão, desrespeitado

solenemente pelos EUA, contra interesses legítimos do Brasil e de muitos outros países

exportadores do produto).

3.5. Recursos energéticos

A economia mundial já sofreu com os “velhos” e volta a conviver com novos

choques do petróleo: as diferenças entre uns e outros podem estar na natureza do

elemento provocador, um choque de oferta, nos anos 1970, um choque de demanda,

atualmente. Mas os impactos para os importadores líqüidos são sempre prejudiciais,

refletindo pressões inflacionárias sobre todos os preços vinculados a essa mercadoria

estratégica e conduzindo a novas transferências líqüidas de renda de consumidores para

produtores. O Brasil dispõe de recursos energéticos diversificados, mas sua dependência

do petróleo, como combustível e insumo industrial, continua significativa, agora

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diminuída em função do aumento da oferta nacional. Subsistem, contudo, fragilidades,

em razão da estrutura industrial do refino (ainda fortemente baseada em petróleo

importado).

A alegada auto-suficiência, na verdade, não é um ganho permanente, mas um

processo que deve ser perseguido constantemente, com base nos investimentos de risco

em exploração – agora compartilhados com o capital estrangeiro – e na diversificação dos

usos industriais, como princípio: tipos e fontes de combustíveis fósseis vêm sendo

ampliados em bases nacionais e até mesmo regionais, não sem riscos de investimentos,

como os casos da Bolívia e do Equador demonstram de maneira eloqüente. De toda

forma, novas alternativas vêm sendo buscadas, não apenas para contemplar nossa própria

matriz energética – com base no consagrado etanol de cana-de-açúcar e em novas fontes

de biocombustível de origens diversas – como também na cooperação com parceiros em

realidades geopolíticas relativamente inéditas do novo mapa petrolífero mundial (Ásia

central e do sul, costas da África, etc.).

A equação energética brasileira dificilmente conseguirá assegurar a autonomia

completa em combustíveis fósseis: a busca constante de fontes internas, de petróleo ou de

gás, terá de ser necessariamente complementada em fontes regionais, e aqui a geopolítica

é bastante complicada pela emergência de forças nacionalistas que colocam em risco os

investimentos já realizados ou planejados da grande estatal brasileira do setor (Petrobras).

O cenário para o Brasil passa a ser o de apostar na boa convivência com vizinhos por

vezes difíceis (como a Bolívia), ao mesmo tempo em que continua a sua busca por fontes

próprias de fósseis ou por soluções tecnológicas eficientes em renováveis. Neste último

terreno, tendo em vista sua dotação favorável de fatores, o Brasil tem todas as condições

de aparecer no mundo como um major player (apenas não se sabe se “politicamente

correto”, em vista dos problemas continuados de devastação ambiental nas fronteiras

agrícolas e pecuárias da Amazônia).

3.6. Segurança e estabilidade

Finalmente, no que se refere aos cenários geopolíticos de possíveis conflitos – e,

talvez, de novas hecatombes humanas, em vista da proliferação nuclear e do terrorismo

fundamentalista –, existem dúvidas sobre se o Brasil será chamado a desempenhar um

47

papel de relevo na segurança internacional, embora ele conserve bastante importância no

plano regional. A América do Sul parece ser uma região relativamente imune aos riscos

mais evidentes de envolvimento em conflitos de grandes proporções; mas ela não pode

ser considerada ao abrigo de seus efeitos indiretos, sobretudo quando esses riscos

assumem novas formas, para as quais não existem fatores credíveis de dissuasão.

O terrorismo de cunho fundamentalista islâmico, que parece ser a fonte mais

provável das novas ameaças às potências ocidentais, não deve fazer da América do Sul

uma base de operações, embora não se possa descartar tanto o proselitismo religioso,

como a mobilização de recursos de tipos diversos entre as comunidades de uma mesma

afinidade religiosa ou étnica. Os riscos de grandes ataques terroristas, no plano mundial,

continuarão a ser combatidos – sobretudo sob comando dos EUA – pela conjunção de

operações de inteligência com a repressão pura e simples, o que promete muitas vítimas

no futuro de médio prazo. A diplomacia brasileira atual tem afirmado sua preferência por

atuar sobre causas das ameaças terroristas, o que pode revelar uma incompreensão quanto

à natureza do fenômeno e as possibilidades de “dissuasão preventiva”, pelo menos no

curto prazo. Não deverá ocorrer evolução significativa no tratamento dessa questão antes

de novos desenvolvimentos, talvez dramáticos, do fenômeno terrorista.

No que se refere à não-proliferação nuclear e aos regimes restritos para o controle

de tecnologias sensíveis, existem novos desafios, igualmente, que tampouco serão

resolvidos com base na pressão pura e simples ou na chantagem econômica, como parece

ser o método habitual das grandes potências. Ao não oferecerem promessas credíveis de

desarmamento efetivo e de não recurso aos artefatos de que dispõem em caso de conflitos

graves, elas deixam aberta a porta para alguns proliferadores estatais. Em todo caso,

existem atores nesse processo, nem todos estatais, que são imunes a quaisquer tipos de

“persuasão” antinuclear: ditadores megalomaníacos e terroristas profissionais estarão

sempre dispostos a enveredar pelo caminho atômico, ainda que de uma “bomba suja”. As

possibilidades que se abrem em alguns países – o Paquistão, desestabilizado pela

anarquia política interna, aparece como um dos “ventres sensíveis” da proliferação

descontrolada, mas a própria Rússia e países da Ásia central podem entrar no jogo

involuntariamente – são por demais preocupantes e fazem com que essa questão se

mantenha no topo da agenda das grandes potências no futuro previsível.

48

O papel do Brasil nesse tipo de questão é propriamente marginal, a não ser como

membro temporário do CSNU ou permanente da Conferência do Desarmamento, se é que

questões desse tipo podem ter tratamento eficaz nesses foros de discussão política. Outras

instâncias podem ser acionadas para o encaminhamento sigiloso de alguns casos; a

participação do Brasil em discussões ou medidas práticas dependerá de quão confiável

ele pode aparecer aos olhos dessas grandes potências para seu envolvimento nesses casos.

Também permanecerá na agenda internacional, durante muitos anos à frente, e na

pauta diplomática brasileira, a questão da reforma do CSNU: quem entraria, exatamente,

e quais seriam as bases de alguns acertos regionais, inevitáveis, realisticamente falando?

O Brasil aparece como um eterno candidato, com os sucessos e frustrações de uma luta

de longo curso, na qual pequenos compromissos táticos são o preço a pagar por alguma

grande vitória estratégica mais à frente. Durante algum tempo, se considerou que sua

participação em missões de paz da ONU, a exemplo da Minustah, no Haiti, poderia

representar uma espécie de bilhete de ingresso no CSNU, o que não é obviamente o caso.

No jogo das grandes potências, boa vontade política e disposição para a cooperação

desinteressada não parecem ser, necessariamente, requisitos qualificadores. Apenas a

manifestação de poder, em bases próprias, qualifica para o exercício de responsabilidades

mundiais, como parece pensar a Índia. Abre-se, aqui, uma possível fonte de

desentendimentos políticos – com conseqüências práticas – entre soldados e diplomatas,

os primeiros, presumivelmente, considerando que a detenção de artefatos nucleares

confere respeitabilidade e, portanto, “aceitabilidade” de candidatos ao clube dos grandes,

os segundos procurando pautar-se pela letra dos tratados e das obrigações internacionais.

De toda forma, a questão parece ter sido definitivamente resolvida pelo pacto

constitucional, que submete todas as atividades nucleares à sua utilização pacífica, o que

veda, em princípio, seu desvio para outras finalidades. Não se vê, de toda forma, em quê

a posse de um artefato nuclear poderia adiantar a causa do Brasil no plano internacional.

Suas causas básicas são as do desenvolvimento econômico, da cooperação técnica, da

luta pelos direitos humanos e, presumivelmente, da democratização do sistema mundial

de poder. A segurança internacional exige um pouco mais do que isso, pois depende,

também, de meios adequados para o exercício da força e de vontade política e capacidade

de decisão para querer e poder utilizá-la, em circunstâncias determinadas, supostamente

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sempre de acordo com as regras do direito internacional e do respeito às instituições que

conferem legitimidade ao seu uso. Em qualquer hipótese, o Brasil precisaria dispor de

condições adequadas e efetivas para entrar nesse “jogo de grandes”: os requisitos

indispensáveis para isso, sem que a ferramenta nuclear entre necessariamente em linha de

conta, seriam soldados e capacidade econômica. O Brasil precisaria se preparar para isso,

consciente de que esses requisitos são construídos inteiramente dentro de sua própria

casa.

Brasília, 11 de fevereiro de 2008

50

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Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico, diplomata de carreira desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do

Centro Universitário de Brasília – Uniceub. ([email protected]; www.pralmeida.org)