ARTAUD, Antonin. Para Acabar de Vez com o juízo de Deus & O Teatro da Crueldade
Rene Girard - O Bode Expiatorio e Deus
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O BODE EXPIATRIOE DEUS
Ren GIRARD
Tradutor:Mrcio Meruje
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Covilh, 2008
FICHA TCNICA
Ttulo: O Bode Expiatrio e DeusAutor: Ren GirardTradutor: Mrcio Meruje
Coleco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco: Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2009
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Ren Girard
Deus uma inveno? uma pergunta a que respondo de imedi-ato: No.
Entre as diversas concepes de Deus nas sociedades arcaicas,por mais numerosas que elas sejam, existem demasiadas semelhan-as para que a hiptese de uma inveno possa ter a menor hip-tese de ser verdadeira.
Deus , primeiro, a personalizao do que se chama o sagrado.E o sagrado uma experincia da violncia de tal modo repen-
tina, temvel e constrangedora no interior das comunidades que oshomens acreditam e reconhecem nela um poder que os ultrapassa,um poder literalmente transcendente, perante tm demasiado medopara que possa desobedecer-lhe, a fortiori para negar a sua existn-cia.
Deus esta experincia personalizada, repito-o. Os deuses ar-caicos no so o verdadeiro Deus, evidentemente; esses deusestambm no so invenes gratuitas, mas interpretaes inexactas,ainda que necessrias, de violncias sociais, interpretaes sem asquais, na minha opinio, nunca teria havido humanidade. So elas,com efeito, que durante muito tempo mantiveram em respeito a vi-
olncia que nos ameaa, a violncia que ns prprios produzimos.Destas interpretaes de Deus, creio eu, podemos dizer legitima-mente que so inseparveis do verdadeiro Deus, do Deus que no
In GIRARD, R., GOUNELLE, A., HOUZIAUX, A., Dieu, une invention?, LesEditions de LAtelier, Paris, 2007, pp. 55-76
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de qualquer modo inventado, mas tremendamente real e que, pe-rante os meus olhos, o Deus judaico e cristo. Vou tentar explicaro meu pensamento.
Para detrs das constantes da presena de deus que a antropo-logia observa, tm de existir obrigaes de ordem social. O maiorsocilogo francs, mile Durkheim, disse O social e o religioso a mesma coisa. Esta frase frequentemente muito mal interpre-tada: os crentes, no mbito francs, tendem a ver em Durkheim um
ateu que reduziu a religio ao social, enquanto os anglo-saxnicos,curiosamente, o consideram uma espcie de mstico que reduziua sociedade ao religioso. Na realidade, penso que nem uma nemoutra destas vises verdadeira. Para compreender o religioso, sese moderno e se se acredita na cincia e, em certa medida, preciso crer nela; de resto, tento tornar o meu trabalho cientfico preciso admitir que o religioso comea com a prpria Humani-dade. Penso at que, em certa maneira, a Humanidade a filha doreligioso: no existiria sem ele.
O Homem evolui num meio social que lhe impe constrangi-
mentos particulares que no esto presentes ao nvel animal, mesmose para os animais, na actualidade, falamos de sociedades. Ana-liso estes constrangimentos a partir da noo de mimetismo queos gregos denominam mimesis e que dava razo a Aristteles aodizer que o Homem o animal mais mimtico de todos. Isto querdizer que se os animais so mimticos, os homens so-no aindamais. A imitao deve conceber-se no apenas ao nvel das ma-neiras de falar e de se comportar, mas tambm ao nvel do desejo.Os homens imitam os desejos uns dos outros e, por esta razo,esto inclinados para o que eu apelido de rivalidade mimtica, pro-
cesso que existe entre parceiros sociais e que tende a agravar-seconstantemente pelo facto de a imitao ricocheteia entre os doisparceiros. Quanto mais eu desejo este objecto que tu j desejas,mais ele se te apresentar desejvel e, em contrapartida, mais eleme parecer desejvel para mim. Assim sabemos que todas as riva-
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lidades tm tendncia a exacerbar-se. Nos animais, as rivalidadesmanifestam-se nos combates, em particular nos combates pelas f-meas. Contudo, tais combates no so mortais. O mimetismo no to poderoso que no pre antes da morte de um dos combaten-tes. O combatente mais fraco submete-se ao seu vencedor, o qualse abstm de o matar. H muito poucas mortes intra-especficasentre as espcies animais, mesmo as mais mimticas. No homem diferente, pois sabemos que o combate mimtico pode tornar-se
infinito e chegar a esta primeira inveno humana: a vingana.Vingar-se devolver ao adversrio a violncia que ele j nos
prodigalizou. , portanto, o assassinato. A vingana transcende osindivduos uma vez que os parentes, os familiares a retomam. Decerto modo, a vingana transcende o tempo e o espao o que j lhed, de alguma maneira, qualquer coisa de religioso.
Se, nas sociedades, a vingana fosse tolerada, bem evidenteque a espcie humana se destruiria rapidamente. Na nossa poca,os instrumentos da vingana tornaram-se extremamente poderosose a destruio da vida no planeta tornou-se possvel. Quer quei-
ramos quer no, estamos hoje numa situao propriamente apoca-lptica, no sentido da revelao violenta da violncia humana. Aviolncia do homem revelada pelo que se passa hoje, e, uma vezque transcende as possibilidades humanas, coloca ao mesmo tempoa espcie em perigo. Sabemos agora que a nossa espcie mais an-tiga do que pensmos no passado, mesmo se ainda muito recenteem comparao com a durao cosmolgica.
Se a humanidade se perpetua porque um qualquer procedi-mento interrompeu a vingana, impedindo os homens de se ma-tarem uns aos outros. Ento, coloca-se a questo: O que impediu
os homens de se massacrarem completamente, uma vez que a vin-gana infinita?. Esta vingana sem fim uma contradio vivapois proibida em toda a parte devido a poder destruir a sociedade,e a vingana um esforo para pr fim vingana. de resto por
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mente. De certo modo, este entendimento aquilo a que chama-mos a poltica! por isso que eu chamo ao mecanismo da vtimaunitria, o mecanismo do bode expiatrio.
Quando os indivduos so contaminados pelo contgio do ad-versrio, isto , quando esquecem o seu prprio adversrio paraadoptar o adversrio do seu vizinho, que parece mais interessantecomo adversrio, chegar um momento em que toda a comunidadeestar do mesmo lado contra um nico indivduo, do qual, no fim
de contas, no se sabe porque foi escolhido. Se estudarmos os mi-tos, o de dipo, por exemplo, vemos que esta passagem se produzno exacto momento em que se cr descobrir o culpado da crise:dipo. Mas este, entre outras coisas, um defeituoso, um ho-mem diferente dos outros. No se sabe de onde vm os seus pais,a sua famlia, etc..
Finalmente, o heri mtico uma vtima unnime: ele sermorto por todos. Todos esto contra ele, todos transferiram a vi-olncia e utilizo a palavra transfert com conhecimento de causa ao ponto de toda a sociedade, em conjunto, mata este indivduo.
Tal fenmeno existe e tem um nome, o chamado linchamentounnime. Nos grandes textos sagrados, incluindo, alis, os textosbblicos, vemos que o linchamento joga um papel extraordinrio:nos mitos, na Bblia, e finalmente nos prprios Evangelhos, de umaforma dificilmente atenuada. Por outras palavras: o assassnio co-lectivo desempenha em todos os textos religiosos um papel de talimportncia que suscita uma explicao, e tal explicao o mi-metismo e no a culpabilidade real da vtima.
O linchamento, pela sua unanimidade, reconcilia a comuni-dade, e a personagem que foi linchada passa por ser muito m pois
causou a violncia na comunidade. Pode ter causado um parricdioe um incesto, segundo a tese edipiana, muito frequente nos mi-tos, contrariamente ao que imaginou Freud, mas parece muito boma partir do momento em que a sua morte reconcilia a comunidade.
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tal verdade, e que esteve quase a compreender a infinita superio-ridade do bblico e do cristo a partir do momento em que se via,nos dois casos, os mecanismos enganadores do bode expiatrio emaco.
O que as pessoas no vem, e que, todavia, de uma simplici-dade desconcertante, a importante diferena que existe entre osmitos e os evangelhos: nos mitos, a vtima de facto culpvel, en-quanto na Bblia, e sobretudo no cristianismo, a mesma vtima
inocente. Deste modo, os textos evanglicos dizem-nos a verdadee [revelam-nos] o funcionamento do mecanismo, em vez de nosdarem uma mentira.
a coisa mais simples que existe e, contudo, a mais difcilde compreender na minha tese. Se a compreendermos verdadeira-mente, entenderemos que a bblia e o cristianismo possuem umadimenso de verdade que nenhuma outra religio pode ter, porqueambos retomam o mesmo fenmeno, e, em vez de irem at ao fimda mentira, contradizem-na e revelam-lhe a verdade.
Graas Paixo, Cristo quer que os homens reconheam o seu
papel de fazedores de vtimas, de perseguidores. porque pro-clama as regras do reino e renuncia totalmente violncia sacrifi-cial, que o prprio Cristo sacrificado.
O que importa compreender ento, esta absoluta inverso dosacrifcio que faz de Cristo uma pessoa absolutamente nica. E,por outro lado, a Paixo envolta em frmulas que nos dizem exac-tamente isto: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se apedra angular. O que que isto quer dizer? Cristo pergunta-oaos seus ouvintes e no h um nico que responda. Poderamoscrer que os telogos medievais e os modernos retomaram a ques-
to colocada por Cristo para lhe tentar responder. Mas alguma vezviram um telogo interessar-se por esta questo posta pelo prprioCristo? Nunca! O telogo interessa-se pela filosofia grega e portodas as espcies de coisas estranhas aos Evangelhos, mas nuncapela questo posta por Cristo.
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melhor que um s homem morra e que o povo seja salvo.Ser que isto quer dizer que Cristo o bode expiatrio? Com cer-teza: ele prprio aceita tornar-se [bode expiatrio] e mostrar-nos oque todos ns fazemos. Olhai, por exemplo, como ns nos tratamosentre naes. Isto impressiona-me muito porque, quando volto dosEstados Unidos, encontro exactamente a mesma coisa: os culpa-dos so os americanos em vez dos franceses. sempre igual dosdois lados e raros so aqueles que compreendem esta igualdade na
responsabilidade e na culpabilidade.Tentei at agora explicar-vos, de modo muito sumrio e desa-
jeitadamente, porque que penso que os deuses arcaicos, mesmoque no sejam reais, no so de modo nenhum inventados. Eles soa interpretao deficiente, mas inevitvel, da nossa prpria violn-cia, durante muito tempo indispensvel humanidade, pois per-mitiu que os indivduos e as comunidades coexistissem com essaviolncia que no cessamos de produzir e de reprimir. O fenmenodo bode expiatrio unnime pe fim s crises violentas das socieda-des arcaicas e estabelece a ordem sacrificial destas sociedades, a
ordem que consiste em repetir o fenmeno catrtico dos sacrifciosrituais.
O cristianismo, e a Bblia antes dele, so ao mesmo tempomuito semelhantes e muito diferentes. A Paixo um fenmenode bode expiatrio quase unnime, mas os Evangelhos, em vez dese deixarem intrujar por esta mentira, tal como o fazem os mitos eas religies arcaicas, denunciam na crucificao o que , na reali-dade, ela : uma odiosa injustia que a partir de agora os homensdevem evitar, pois jamais ser payante.
A crise do mundo moderno vem da nossa recusa desta men-
sagem; recusamos compreend-la e, sobretudo, segui-la. Somos,pois, cada vez mais ameaados pela nossa prpria violncia e nofazemos nada de razovel ou de eficaz para escutar a mensagem b-blica e evanglica e, sobretudo, para nos adequarmos com ela. Estamensagem excede-nos to infinitamente que deveramos reconhe-
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cer nela a palavra do verdadeiro Deus que nos ensina a renncia atoda a violncia.
* * *
Alain Houziaux
O seu discurso extremamente desconcertante para um telogocomo eu, pois tanto apresenta Deus como uma personagem, comofaz dele um qualificativo que outorga s diversas funes de algunsseres, como Jesus Cristo.
Rne Girard
Sim, a teologia actualmente recusa levar Deus a srio. Mas noser este medo ridculo?
Alain Houziaux
Ah sim? De qualquer maneira elas so muito significativas. . . Assim,para si, Deus intervm como uma personagem no jogo social, nofuncionamento o Senhor descreve de uma maneira bastante con-vincente. Mas Deus existe independentemente dos homens?
Ren Girard
Certamente, mas, claro, para intervir na situao a que me re-firo, necessrio que se torne num homem a fim de se expor aosmeus perigos que os homens e reagir de maneira diferente. Quer
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dizer que ele no reage nem de maneira defensiva, nem usa a vio-lncia que todos ns utilizamos, uma vez que ns no somos cru-cificados.
H aqui uma relao directa com a pregao do Reino de Deus,hoje, quer dizer, com a ausncia de quaisquer represlias que fazcom que Jesus no jogue o jogo da cultura, um jogo defensivo eofensivo num sistema em que a violncia rainha.
Alain Houziaux
Direis que Cristo Deus?
Ren Girard
Evidentemente. Mas existem etapas intermedirias entre o queeu disse e essa concluso. No existe outro Deus seno em Cristo.Os outros deuses so deuses falsos, assentes sobre esse mecanismono resolvido e no cumprido.
O que eu digo que existe uma via de acesso, nas reflexesantropolgicas profundas, para mostrar que o cristianismo nos trazuma viso absolutamente diferente da nossa, e que nos conduz auma certa noo do divino que corresponde perfeitamente aquelaque os Evangelhos descrevem. No tenho, pois, nenhuma querelacom a teologia. O que h de milagroso na teologia que ela dizmuitas coisas verdadeiras a partir de raciocnios que, de certa ma-neira, so falsos, a partir de um tipo de pensamento frequentementeincompreensvel, sem olhar os textos da forma mais simples, nemver que existe no cristianismo uma singularidade absoluta, de que
ningum se apercebe porque demasiado fcil de ver.Alain Houziaux
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A singularidade do cristianismo assentaria, pois, no seu carc-ter verdadeiro e portanto divino. Andr Gounelle, o Senhor pensaque Deus existe independentemente dos homens?
Andr Gounelle
No retomarei, neste contexto, a palavra existir, mas antes, como risco de que Ren Girard me diga que fao filosofia grega, em-
pregarei antes a palavra ser. Existir quer dizer situar-se (sistere)fora de si (ex). Existimos sempre em funo de uma exterioridadee de uma alteridade, quando ela em si. Deus independentedos homens, ele no existe independentemente de ns.
Depois de ter lido Ren Girard e mais agora ainda, depois deo ter escutado, tenho desejo de lhe pr uma pergunta: na sua pers-pectiva, podemos ns, ns humanos, pensar ou perceber algumacoisa de Deus fora da humanidade? Eu sei bem que antroplogoe que, a este ttulo, investiga e tenta perceber o rasto de Deus no ho-mem e na sociedade humana. Recoloco pois a questo de maneira
diferente: considera a sua abordagem exclusiva e englobante?
Ren Girard
As minhas prprias tendncias pessoais empurram-me para otipo de raciocnio que sustentei esta noite. Restam-me algumas ra-ciocnios anlogos. . . A partir deles, os aspectos directamente trans-cendentes da metafsica e da teologia tornam-se-me ou pouco maisacessveis. Mas, ao mesmo tempo, tenho a impresso de no serdotado para tal. Isto no quer dizer que outros no o sejam ou que
a sua postura no legtima. Mas o que eu constato, que vivemosnum mundo onde, precisamente, a velha metafsica e a teologiano tm qualquer aco sobre os homens. E tenho a impresso deque uma abordagem antropolgica prefervel na medida em que compreensvel.
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Para falar num plano cientifico, e creio que a cincia muitoimportante na nossa poca, o que se passou nestes ltimos temposfoi que todas as cincias se historicizaram. As cincias, que eramcompletamente imveis e estticas, como a astronomia, so dora-vante astrofsicas. . . de certa maneira, quero dizer a mesma coisa:entre o mundo arcaico, onde se faz religio do bode expiatrio, e omundo judaico-cristo existe uma ascenso histrica, de que, alis,os Evangelhos e Paulo, do conta pois dizem-nos que tempo de
passar de um alimento para bebs para algo mais forte e mais di-fcil. um tema constante em Paulo: que o valor educativo doreligioso chegar a um mundo em que esta comida de maior sus-tncia se tornou necessria e, de certa maneira, inevitvel.
Alain Houziaux
Andr Gounelle, para si, uma boa religio uma religio edu-cativa ou antes uma religio que conduz ao bem, ou ainda umareligio que ensina a verdade? Qual seria o verdadeiro critrio de
uma religio autenticamente divina?
Andr Gounelle
Cada uma das palavras da sua questo exigiria longas defini-es! Penso, com efeito, que uma religio se avalia pela sua capa-cidade de melhorar a sorte do homem, de melhorar a sociedade ede conduzir ao bem.
Dou razo ao Senhor Girard num ponto: penso, tal como ele,que a teologia clssica utiliza categorias e frmulas de outra poca.
Foram pertinentes no seu tempo, mas hoje j no funcionam maise j no nos dizem nada.Em alguns aspectos, o itinerrio do Senhor Girard evoca para
mim o que vemos despontar em Blaise Pascal. Ele pretende chegara Deus no atravs de provas ontolgicas, cosmolgicas ou meta-
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fsicas, mas a partir do funcionamento do ser humano e, em par-ticular, da dualidade entre a sua misria e a sua grandeza. Estaargumentao apologtica, no sc. XVII, era extraordinariamentenova: conseguiu renovar a problemtica, embora isso possa pare-cer chocante para alguns, tal como podero ser chocantes as vossasteses, mas isso foi fecundo.
Se existe uma semelhana na abordagem, no existe parentescona anlise da realidade humana: Pascal no me parece insistir, tal
como o Senhor faz, na crise mimtica. No contesto em absoluto apertinncia das suas anlises que fizeram aparecer algo que nuncatnhamos visto antes. Mas a crise mimtica ser, a seus olhos, achave nica, ou uma chave privilegiada, para compreender as soci-edades humanas, a religio e Deus, ou antes considera que apenasuma chave entre outras? Por outras palavras: acredita que o racio-cnio de Pascal, anlogo ao seu no movimento, mas com um con-tedo diferente, pois funda-se nas contradies e contrariedades n-timas do ser humano grandeza/misria tem sempre pertinnciaou o seu argumento substitui-no?
Ren Girard
A crise mimtica est presente, de certo maneira, em Pascal,mas de uma forma mutilada pelo facto de Pascal nunca ter vividouma certa experincia. Se tomarmos a Frana do sc. XVI e dosc. XVII muito impressionante constatar que, em relao In-glaterra, os dois grandes escritores que se correspondem de certamaneira so Montaigne e Pascal. E ambos tinham uma experinciadiminuta no campo das rivalidades mimticas. Porque para ambos,
e por razes muito diferentes, a sexualidade, por exemplo, no de-sempenhou qualquer papel. Pascal, como sabemos, tornou-se umaespcie de santo e esteve doente ao ponto de se tornar invlido e Montaigne tambm, pela razo inversa, porque, se era um poucomenos pequeno aristocrata do que se diz, era contudo um pri-
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vilegiado que deveria honrar todas as mulheres da vizinhanasem nunca ter de entrar numa relao de rivalidade. , pois, muitoimpressionante notar que estes dois escritores so limitados no do-mnio da rivalidade que Shakespeare ou Cervantes, que tm ambosuma experincia de homens mais completos. Contudo, na anlisede Pascal sobre o divertissement existem aspectos muito fortes decrise mimtica.
Alain Houziaux
Para retomar a noo de sacrifcio, parece-lhe ser algo de espe-cificamente religioso ou antes ter tambm uma existncia profanae, poder-se-ia dizer, laica?
Ren Girard
O sacrifcio o intermedirio entre a religio e todas as cultu-ras, que so sacrificiais num certo plano. Basta vermos instituies
que esto ligadas a formas de hierarquia, exigem formas de dis-ciplinas ou deixam de funcionar: estes so sempre derivados dosacrifcio. Tentei mostrar como que o sacrifcio se transformouem justia. Quando se sacrificou uma vtima qualquer, muitas ve-zes de preferncia um inocente, decide-se sacrificar o culpado,e s uma instituio muito forte pode fazer isto, porque as insti-tuies arcaicas tm medo de sacrificar o culpado; um convite vingana. Pelo contrrio, o sacrifcio dirige-se para o assassniode indivduos que no tm qualquer relao directa com a situaoconsiderada, o que, a nossos olhos, muito mais injusto.
Andr Gounelle
No cristianismo, a eliminao do sacrifcio, ou antes, a inver-so que faz com que no seja o culpado quem sacrificado, ou que
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este j no seja declarado culpado, tem, na sua opinio, um papelessencial e constitui de qualquer forma a especificidade do cristia-nismo. Interrogo-me sobre tal especificidade. No uma crtica, eno sei verdadeiramente a resposta a esta pergunta: o Senhor falade cristianismo e de religies arcaicas. Ora, o mundo religioso mais vasto. No encontramos um igual desaparecimento do sa-crifcio em outras religies penso no budismo, mas tambm umpouco no islo?
Ren Girard
Existe uma ligeira tendncia nas outras religies para o desa-parecimento do sacrifcio, mas s no cristianismo este completa-mente eliminado. No nos damos conta da extraordinria revolu-o que isto representa. O sacrifcio , de modo universal em quasetodas as sociedades, um meio de pacificao amado, querido, emparticular no campo budista. Se for ao Sri Lanka, por exemplo, vaidar-se conta disto.
Quando se diz que o cristianismo sacrificial, bem verdade.Para ver o problema do sacrifcio no seu nvel mais ntido pre-ciso ir a esse texto extraordinrio que o julgamento de Salomo,no Primeiro livro dos Reis. Tendes a duas prostitutas, e as duasquerem a criana viva. Podem talvez ter trocado a criana durantea noite. Salomo escuta-as, Salomo repete as suas palavras, queso exactamente as mesmas de um e de outra: A criana viva minha, a criana morta dela. Salomo disse Que me tragamuma espada, vou cortar a criana em duas. E a m me, isto , asacrificial, considera que est muito bem assim, uma vez que a sua
rival tambm j no ter a criana. A boa me, ao contrrio, aban-dona a criana sua rival para que viva. E Salomo reconhece nelaa verdadeira me. A frase de Salomo vlida mesmo que estasmulheres tenham trocado a criana durante toda a noite, e se nemuma nem outra sabia de quem era a criana viva. A verdadeira me
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aquela que capaz de deixar a criana longe de si para que viva. um texto prodigioso que , tambm, uma metfora da educaocrist, comparada a uma educao egosta.
Alain Houziaux
Opomos muitas vezes o Deus do Antigo Testamento ao Deusdo Novo Testamento. Acontece que se considera o Deus do An-
tigo Testamento como uma inveno da vontade de violncia, umalegitimao da agressividade do povo de Israel para conquistar asua terra. Deste ponto de vista, haveria uma diferena fundamentalentre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento.Que me diz este propsito?
Andr Gounelle
Tornou-se-me impossvel (e no sou o nico neste ponto) falardo Deus do Antigo Testamento (e talvez mesmo tambm do Deus
no Novo Testamento) de maneira unvoca e no singular. O AntigoTestamento compreende um conjunto de escritos redigidos por se-res humanos que exprimem a sua experincia espiritual, por ou-tras palavras, a sua maneira de compreender e de viver Deus. Noexiste uma concepo de Deus ou uma imagem de Deus noAntigo Testamento, existem vrias e, mesmo se se trata do mesmoDeus, essas concepes esto em conflito. verdade que existeno Antigo Testamento a compreenso arcaica de Deus, mas en-contramos igualmente a outras concepes de Deus. O conflitono se situa entre Israel (falo aqui claramente do antigo Israel) e
os outros, mas no seio de Israel, do mesmo modo que h debateno Novo Testamento. Podemos falar massivamente de Deus doAntigo Testamento em oposio ou em continuidade com o Deusdo Novo Testamento? Existem vrias abordagens, vrias vises,vrios procedimentos no mundo bblico, no judasmo, no cristia-
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nismo. a personalidade de Cristo que nos permite ter um critriode discernimento entre eles.
Alain Houziaux
Ren Girard, pode precisar o que entende por: Cristo Deus?
Ren Girard
Vemos bem que Cristo tinha um conhecimento do homem que mais que humano, no sentido quem que nenhuma outra filosofia,qualquer pensamento laico, nenhuma outra religio vira no homemesta violncia que ele percebe e que aceita ele prprio sofrer a fimde a revelar aos homens, para revelar aos homens o que eles so, ede modo nenhum para fazer sacrifcios.
O que faz a grandeza do Antigo Testamento que, enquanto osprimeiros livros so fundados no sacrifcio humano1, ele anuncia amudana para a no-violncia absoluta que vem apenas de Cristo2.
um movimento progressivo: quanto mais se avana no AntigoTestamento, mais avanamos para uma viso proftica. O profeta sempre primeiramente um homem idolatrado pela multido en-tusiasmada pela mensagem que ele traz, mas, aps algum tempo,quando a multido se d+a conta das consequncias temveis do seudiscurso, ela volta-se contra ele. Hoje, toda a nossa sociedade sevolta contra Cristo de uma forma admiravelmente simblica! Emtodos os pases do mundo, basta ler os textos da imprensa ou vir-mos a televiso pode constatar a viragem radical do mundo contraCristo, numa espcie de totalizao dos prprios Evangelhos, os
1 Ver o sacrifcio do primognito que, por outro lado, tem uma relao sim-blica com o sacrifcio de Cristo, porque a histria ela mesma una.
2 Porque a no-violncia absoluta ser destruda por uma sociedade to vio-lenta como a nossa.
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quais nos mostram j o mesmo movimento na existncia de Cristoque vai sempre ao encontro Paixo.
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