Post on 16-Jan-2023
Uma “biografia” intelectual da Matemática brasileira: Da Colônia ao fim do Estado Novo
Raquel Anna Sapunaru-Professora de Filosofia da Ciência-ICT-UFVJM
Stéphany S. P. S. Souza-Graduanda em Engenharia Civil-ICT-UFVJM
Douglas F. G. Santiago-Professor de Matemática-ICT-UFVJM
Resumo: O presente artigo visa contar a história da Matemática no Brasil da Colônia ao Estado Novo.
Para tal, utilizamos as ideias do livro Uma História Concisa da Matemática no Brasil de D’Ambrosio.
Outras propostas contribuíram para que nossa visão da história da Matemática se tornasse uma
“biografia” da Matemática brasileira. Somado a isso, optamos por investigar de forma mais acurada
alguns tópicos da Matemática colonial como, a “Projeção de Mercator”, da obra do matemático português
Pedro Nunes e alguns tópicos dos Elementos de Euclides.
Palavras-chave: Matemática, Mercator, Euclides, história.
Abstract: This article aims to tell the history of mathematics in Brazil from colony to the New State. For
this purpose, we use the ideas from the book “A Concise History of Mathematics in Brazil”, written by
D'Ambrosio. Further proposals have contributed to make our vision of the history of mathematics
becoming a "biography" of Brazilian Mathematics. In addition to this, we decided to investigate more
accurately some topics of colonial’s mathematics as the "Mercator Projection", the work of the
Portuguese mathematician Pedro Nunes and some topics of Euclid's Elements.
Keywords: Mathematics, Mercator, Euclid, history.
“A matemática é a honra do espírito humano.” (Leibniz)
Introdução:
A história da Matemática se confunde com a própria história das pessoas que a fizeram e das
nações as quais estas pertenciam. Neste sentido, tomamos a licença poética de tentar descrever neste
artigo uma curta história, biográfica, por assim dizer, da Matemática em um jovem país, o nosso Brasil.
Ao ser descoberto pelo glorioso Portugal, logo passou à condição de colônia, explorada impiedosamente
em seus subterrâneos. A Matemática dessa ocasião, na colônia, estava restrita a da construção civil e a
astronomia, mas, no colonizador a Matemática crescia de vento em popa. Lá, a Matemática era abstrata,
filosófica; Mercantil como a boa combinação entre geometria, geografia, astronomia e cartografia
revelada na “Projeção de Mercator”; Comercial; aplicada à Arquitetura e as Artes, não restrita a
construção de casas, abrigos, pontes de sustentação e aparatos de garimpo como na colônia. Porém, mais
cedo ou mais tarde a Matemática do colonizador chegou à colônia e com ela a colônia deixou de existir.
Daí por diante, entre altos e baixos, longos e curtos, a Matemática brasileira cresceu. Alguns afirmam não
haver a existência de uma Matemática com “a cara do Brasil”. Porém, há; e esta “cara” merece uma
biografia.
Neste contexto, o objetivo principal do presente artigo resume-se a contar a história da
Matemática no Brasil, da colônia ao estado novo, a partir da leitura do etnomatemático Ubiratan
D’Ambrosio em seu livro Uma História Concisa da Matemática no Brasil, de 2008. Mesmo não
concordando com algumas análises proferidas pelo autor, não discutimos os fatos histórico-matemáticos
por ele apresentados, pelo contrário: norteamos nossa trajetória biográfica pela sequência proposta por
D’Ambrosio. Porém, nossa parecer vai além dos fatos, visto que nos interessa mostrar também a
Matemática em si, ou o fato puramente matemático relacionado ao fato histórico-matemático. Por essa
razão, nos momentos que consideramos historicamente especiais no que tange ao perfil brasileiro,
interrompemos a narrativa histórica da Matemática e damos lugar à Matemática propriamente dita. Isso
ocorre quando tratamos da “Projeção de Mercator” e da obra do matemático Pedro Nunes. Sem dúvida,
há outros tantos fatos matemáticos interessantes na história da Matemática do Brasil, mas estes são dois
dos menos explorados, tanto pela história, quanto pela Matemática em si, seja porque são antigos demais
ou obscuros o suficientes para causar um certo desinteresse.
Assim sendo, para levarmos à cabo nosso objetivo principal, selecionamos cuidadosamente os
fatos histórico-matemáticos narrados pelo pesquisador D’Ambrósio que auxiliados por grandes
historiadores da Matemática, historiadores e matemáticos, como, por exemplo, Victor Katz, Leo
Huberman e Nokolai Piskunov, respectivamente, dão o corpo necessário ao nosso discurso. Além disso,
outras obras de suma importância foram consultadas a fim de garantir uma integridade e uma identidade
metodológica própria a nossa linha argumentativa. É possível observar alguns desvios no discurso que,
em um primeiro momento, podem aparentar um certo desleixo por parte autores para com os leitores, mas
trata-se apenas de um recurso narrativo que ao mesmo tempo procura se comprometer, em igual
proporção, com a história e com a Matemática.
Sob essa luz, dividimos o artigo em três partes distintas e despretensiosas, a saber: a primeira
discorre sobre o descobrimento do Brasil, seguido pela Colônia e terminando no Império; a segunda
percorre a República desde sua proclamação até o fim do Estado Novo e, finalmente, a terceira nada mais
é do que a Conclusão que se presta a fazer um resumo das principais “sub-narrativas” dentro da grande
narrativa biográfica da Matemática brasileira, este quasi-ser cheio de vidas e encantamentos.
A Colônia e o Império:
A história da Matemática brasileira iniciou-se com a colonização portuguesa. A aquisição de uma
Matemática com identidade brasileira só começaria no século XVII. A história é antiga: nos séculos XV e
XVI, desenvolveram-se em Portugal importantes estudos sobre navegação que culminaram com as
viagens de Vasco da Gama e Cristóvão Colombo (D'AMBROSIO, 2011, p. 29). Lembramos que nessa
época, a Renascença tomava conta da Europa, minando lentamente os resquícios de um longo inverno
medieval e, com os novos ventos, Portugal liderava a exploração marítima deste continente
(HUBERMAN, 1977, p. 99-101).
Nesse contexto, o calígrafo e cartógrafo belga Gerardus Mercator aparece como um dos pioneiros
na história da Matemática do Brasil, uma vez que letrado pelo matemático holandês Gemma Frisius
dedicou-se a criar um conjunto de instrumentos matemáticos adequados à construção de mapas. Um
destes instrumentos ficou conhecido como “A Projeção de Mercator”, um importante caso de extensão da
Geometria Euclidiana (D'AMBROSIO, 2011, p. 29-30). Ressaltamos que a invenção de Mercator trata de
um importante caso de aplicação estendida da geometria euclidiana. Segundo a pesquisadora Maria Lúcia
Torelli Dória de Andrade, em sua dissertação de mestrado intitulada “Geometria Esférica: Uma sequência
didática para a aprendizagem de conceitos elementares no Ensino Básico”, de 2011, Mercator
desenvolveu um mapa da Europa que reduziu o mar Mediterrâneo para 53o de comprimento e uma
projeção cartográfica com meridianos retos e equidistantes e paralelos também retos, mas gradativamente
espaçados entre si na direção dos pólos (TORELLI, 2011, p. 53). Estes trabalhos facilitaram não só a
navegação européia, mas também a entrada da geometria euclidiana no Brasil. Somente após a
consolidação do modelo geométrico associado ao instrumental das navegações que a álgebra ganhou as
cortes brasileiras1. Contudo, antes de esmiuçarmos a álgebra no Brasil, cabe-nos explorar um pouco mais
a relação entre “Projeção de Mercator” e a geometria de Euclides. Figura 1: ”Projeção de Mercator”
Fonte: < http://www.educacional.com.br/home/home.asp >
Tudo indica que Euclides foi o criador da famosa e duradoura escola de Matemática de Alexandria
da qual, sem dúvida, foi professor. Embora Euclides fosse autor de pelo menos dez trabalhos, sua fama
está concentrada principalmente sobre seus Elementos. Assim que este trabalho veio a público, ganhou
seu devido respeito. Nenhum outro trabalho, exceto a Bíblia, foi tão largamente usado ou estudado e,
provavelmente, nenhum exerceu influência maior no pensamento científico. A primeira edição impressa
dos Elementos foi feita no ano de 1482, em Veneza, e apresentava a tradução latina. Esse livro raríssimo
foi composto de modo primoroso, tornando-se a primeira obra de Matemática a ser impressa. Estima-se
1 A passagem da geometria para a álgebra pode ser comparada a de um Deus natural para outro, abstrato e inteligente, que habita nossas mentes. (Professora Raquel Anna Sapunaru em comunicação oral).
que mais de mil edições impressas desta obra já apareceram desde a edição veneziana e, por mais de dois
milênios, ela dominou o ensino da geometria (EVES, 2004, p. 129).
Infelizmente, não foi descoberta nenhuma cópia dos Elementos de Euclides que date
verdadeiramente da época de seu autor. No entanto, um estudo da edição mais antiga e uma triagem
cuidadosa de citações e notas feitas por comentadores antigos indicam que o material introdutório do
trabalho original de Euclides sofreu alterações nas revisões que se seguiram, mas os teoremas e
demonstrações, salvo acréscimos e supressões pequenas, permaneceram em essência como Euclides os
escreveu (EVES, 2004, p. 130). Este mesmo fato ocorreu com as obras de Platão e Aristóteles.
Na verdade, existiam outros ‘Elementos’ anteriores ao de Euclides, mas isto não denigre em nada
o trabalho deste matemático. De acordo com o Sumário eudemiano, de Proclus, houve várias tentativas
para a construção de elementos geométricos, mas o melhor deles foi o apresentado por Euclides, devido a
sua abrangência. Assim, é provável que os Elementos de Euclides sejam, na sua maior parte, uma
compilação altamente bem sucedida e um arranjo sistemático de trabalhos anteriores. Certamente,
Euclides teve que incluir muitas demonstrações e aperfeiçoar outras tantas, mas o grande mérito de seu
trabalho reside na seleção feliz de proposições e no seu arranjo numa sequência lógica, a partir de umas
poucas suposições iniciais (EVES, 2004, p.131-132). Enfim, a obra de Euclides é um marco da
axiomática. Sob a luz que acabamos de expor, segue-se a relação entre a geometria euclidiana e o modelo
mercatoriano.
A “Projeção de Mercator” é uma projeção cilíndrica. Nestas projeções, a Terra é representada por
uma esfera ou elipsoide e cada ponto de sua superfície é projetado em um cilindro que a envolve. Este
cilindro é posteriormente planificado e obtemos então um mapa. Segundo (BUGAYEVSKIY, 2002,
p.49), considerando e ângulos representando respectivamente a longitude e latitude, projeções deste
tipo tem a fórmula geral,
na qual é uma constante.
Como já mencionado, nos mapas oriundos de projeções cilíndricas, as latitudes e longitudes são
representadas perpendicularmente. Há várias formas de projeções cilíndricas. Na projeção cilíndrica mais
intuitiva, a Terra é uma esfera de raio um e o cilindro a envolve pelo equador. A projeção se dá através de
uma reta que passa pelo centro da esfera, intersecta o ponto na superfície e encontra o cilindro. Fazendo
desta forma, nosso mapa tem o meridiano de Greenwich e o equador representando respectivamente a
ordenada e a abscissa do plano cartesiano. Os pontos da esfera são representados pelos pares ordenados
satisfazendo,
sendo que a expressão para a coordenada pode ser obtida através de uma análise da Figura 2 e fazendo
uso apenas da geometria Euclidiana presente no livro Os Elementos de Euclides. De acordo com a
proposição 29 do livro I (EUCLIDES, 2009, p. 120), como as retas AB e CD são paralelas, os ângulos
A O e C O são congruentes assim como os ângulos B O e D O. Como, além disto, os triângulos ABO
e CDO tem um ângulo em comum, pela proposição 4 do livro VI (EUCLIDES, 2009, p. 235-236), estes
são equivalentes e há uma proporção entre seus lados, fazendo com que
como representa a coordenada da projeção e , temos que . Pela proposição 18 do
Livro III (EUCLIDES, 2009, p. 168), o ângulo é reto logo o também. Sabemos então que
é definido justamente como a tangente trigonométrica do ângulo .
Figura 2: Exemplo de uma projeção cilíndrica simples.
Se e representam respectivamente a longitude e latitude de uma curva na superfície
terrestre que depende de um parâmetro , então podemos mostrar que o ângulo β que esta curva faz com
os meridianos é dado pela expressão
Curvas na superfície terrestre recebem diversos nomes, em particular, para a navegação, uma delas é de
extrema importância, a Loxodrômica (GASPAR, 2000). Esta curva tem a propriedade sempre fazer um
ângulo β, constante com os meridianos, desta forma, se o navegante segue em um sentido sempre fazendo
um ângulo constante com o pólo Norte, ele está percorrendo o caminho de uma Loxodrômica. Figura 3: Loxodrômica.
Fonte: < http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/d6/Loxodrome.png/180px-Loxodrome.png>
Em toda projeção há deformações, desta forma, em geral, ângulos representados em um mapa são
diferentes dos ângulos medidos na superfície que está sendo representada, além disto, esta deformação
pode depender da latitude , e da longitude . Uma propriedade muito útil para a navegação seria um
mapa onde retas estivessem representando Loxodrômica na superfície terrestre, pois assim, para o
navegador que quisesse ir de um ponto para um ponto , bastaria que ele descobrisse a qual
loxodrômica corresponde a reta que liga A a B no mapa e seguir sempre em uma direção fazendo um
mesmo ângulo com o Norte. Podemos verificar que para a projeção cilíndrica discutida anteriormente
isto não ocorre. A grande importância da “Projeção de Mercator” para a navegação está justamente no
fato de que nesta projeção as retas são representadas por Loxodrômica. Na época em que primeiramente
esta projeção foi apresentada, acredita-se que por falta de instrumentos matemáticos adequados, esta
propriedade foi obtida de forma gráfica, ajustando o espaçamento das paralelas no mapa até que as
Loxodrômica se tornassem retas. Atualmente, com o uso de ferramentas de cálculo e geometria
diferencial, encontramos fórmulas explícitas para projeções com esta importante propriedade.
Considerando uma esfera unitária como modelo para a Terra e um cilindro a envolvendo pelo equador,
estas fórmulas são (GASPAR, 2000, p. 69):
(7)
Contudo, para provar que retas na “Projeção de Mercator” realmente são Loxodrômica no globo
terrestre, partimos das duas equações anteriores que representam tal projeção e também das equações de
uma reta qualquer no mapa, que pode ser expressa pelas equações:
(9)
esta reta é representada por uma curva no globo terrestre, a qual é construída a partir das variações de
e , latitude e longitude respectivamente. Em seguida, estabelecemos algumas relações para
e , concluímos que e .
Por fim, substituindo estes últimos valores na expressão (6), podemos mostrar que uma reta
representada pela expressão no mapa, é representada na superfície terrestre por uma
loxodrômica na qual o ângulo é dado pela expressão constante
A partir deste resultado, podemos afirmar que não só as retas são representadas por Loxodrômica,
mas também os ângulos são preservados, o que faz com que a “Projeção de Mercator” seja conforme e,
portanto, para ir do ponto A até o ponto B basta seguir a mesma orientação dada pela reta e o meridiano
no mapa.
Retomando a importância e a influência de Portugal no estabelecimento da Matemática no Brasil,
vamos agora falar brevemente da vocação marítima europeia e de Pedro Nunes, um renomado
matemático português renascentista que participou, mesmo que a distância, da gênese do pensamento
matemático brasileiro.
Pedro Nunes se destacou como o mais importante matemático e uma das figuras mais interessantes do
renascentismo português. Trabalhou na Universidade de Évora como tutor na corte de Dom João III.
Nessa época escreveu notas para um curso de álgebra a ser ministrado aos seus alunos, dentre os quais
João de Castro e Martins Afonso de Sousa, que vieram para o Brasil. Ainda em Évora, tornou-se
cosmógrafo real, cargo que manteve até a sua morte em 1572. Logo após Évora, foi nomeado catedrático
de Matemática da Universidade de Coimbra e onde lecionou até a sua aposentadoria em 1562. Contudo, a
importante e variada obra matemática de Nunes está incompleta. Sabe-se que uma de suas obras que foi
perdida é o Tratado da proporção ao livro V de Euclides (D'AMBROSIO, 2011, p. 33). O livro V de
Euclides expõe a teoria das proporções de Eudoxo, por meio da qual se resolveu o “escândalo lógico”
decorrente da descoberta, pelos pitagóricos, dos números irracionais. De fato, esta teoria é aplicável tanto
a grandezas comensuráveis2 como a grandezas incomensuráveis (EVES, 2004, p. 173). Esta definição
pode ser feita da seguinte forma: segundo Euclides, dadas quatro magnitudes, A, B, C e D, entende-se que
A e B estão na mesma razão que C e D, isto é se existem K e K’ tal que, multiplicando A e C por K
(KA e KC) e B e D por K’(K’B e K’D), ao mesmo tempo (para as mesmas constantes K e K’) que KA é
menor (maior, igual) que K’B, KC é menor (maior, igual) que K’D. Esta definição de razão vale tanto se
lidamos com magnitudes (grandezas) racionais ou irracionais.
Ainda sobre as variadas obras de matemática de Pedro Nunes, as conhecidas foram publicadas em
uma edição feita pela Academia de Ciências de Lisboa, dentre elas estão o Tratado da Sphera, de 1953, e
o De Crepusculis, de1542. O Tratado da Sphera é considerado uma referencia importante quando se fala
da “Projeção de Mercator”. O Libro de Álgebra enarithmetica y geometria é uma elaboração e
organização das lições que ele ministrou quando lecionou em Évora e em Coimbra, mas ao ser impressa,
a obra já era obsoleta (D'AMBROSIO, 2011, p. 33).
Ainda sobre a época das navegações, existiam algumas grandes aplicações para a Matemática.
Cada uma delas tinha estilo, objetivo e métodos próprios, por isso, até a segunda metade do século XVI,
as relações entre as diversas Matemáticas eram raras. Por essa razão, ficou difícil para as colônias
estabelecerem uma afinidade entre as diversas faces das Matemáticas e suas respectivas aplicações.
Assim, as Matemáticas dessa época resumem-se na seguinte lista:
1. Abstrata: aplicável às dúvidas religiosas e aos fenômenos naturais (movimento planetário);
2. A Matemática aplicada à arquitetura e às artes em geral;
2 Duas grandezas são comensuráveis quando a razão entre elas é uma fração. Logo, elas são incomensuráveis quando se dá o contrário.
3. A principal delas, a Matemática aplicada às navegações, mercantil e contábil, aplicável ao
comércio que envolvia também a astronomia e a geografia;
4. Por fim, a Matemática dos povos conquistados, estrangeira, aplicável à construção civil e à
astronomia, mas não muito reconhecida como uma Matemática (D'AMBROSIO, 2011, p. 30).
Sobre esta última face da Matemática, embora a filosofia árabe fosse herdeira da grega, visto que
foram os árabes que reintroduziram os Elementos de Euclides no seio europeu, havia na Matemática árabe
um componente fortemente pragmático, como a dos romanos. Desta forma, o conhecimento técnico-
matemático disponível na época das navegações era uma herança dos romanos, acrescida pelo
conhecimento dos árabes3. No final das contas, foi a mistura destes saberes que permitiu o grande
desenvolvimento da navegação europeia, particularmente a de Portugal. (EVES, 2004, p.132). Grosso
modo, temos duas vertentes de conhecimento matemático na Europa renascentista do final do século XV.
Uma praticada de raízes europeias, responsável pelas bases da ciência moderna e outra, praticada em
somente em Portugal que repousa essencialmente nos trabalhos de Ptolomeu e no Tratado da Esfera, de
João Sacrobosco4.
De modo geral, o grande centro de pesquisa que se formou em Portugal atraía europeus de várias
nações. Dentre este, destacamos o alemão Martin Behaim, possivelmente um discípulo de Johannes
Müller, conhecido como Regiomontanus, considerado o criador da trigonometria moderna. Os métodos
da trigonometria foram assim introduzidos em Portugal, criando as condições necessárias para a
construção do globo terrestre (D'AMBROSIO, 2011, p. 32).
Da proclamação da República ao fim do Estado Novo:
Do ponto de vista matemático, a proclamação da república pelo Marechal Deodoro da Fonseca
trouxe pouca inovação ao país. O império havia visto o florescimento do positivismo de Auguste Comte e
a república foi, efetivamente, proclamada sob um paradigma comteano. Segundo o dicionário de filosofia
de Nicola Abbagnano, positivismo designa o método exato das ciências e sua extensão para a filosofia. A
seu turno, Comte romantizou a ciência tornando-a o único guia da vida privada e social do homem. Ele
tornou transformou a ciência no único conhecimento, a única moral e a única religião possível
(ABBAGNANO, 2003, p. 776). O Apostolado Positivista no Brasil era uma força dominante.
Matematicamente, isto significou a consolidação das propostas positivistas, já em vigor nas Escolas de
Engenharia5. Um excelente indicador da força do positivismo está no livro: Mathematica ou Lógica-
3 Sugerindo uma linha do tempo, após as Cruzadas, a cultura muçulmana mais avançada penetrou nas universidades europeias com preocupações especiais sobre o movimento, o que marcou o início de reflexões científicas e teóricas. Associou-se a isso a introdução do sistema de numeração hindu-arábico, com a finalidade principal de satisfazer as necessidades do comércio que se intensificava. 4 “Eram por este nome designadas as obras referentes à cosmografia datadas, sobretudo de entre os séculos XIII e XV. Nestas obras constavam elementos relativos à esfera celeste (que lhes deu o nome), como os círculos que a compunham, tais como a eclíptica, o equador e o horizonte, à astrologia e aos eclipses, entre outros. A mais conhecida destas obras é o Tratado da Esfera escrita pelo inglês João de Sacrobosco no século XIII, tendo sido de tal forma importante que teve um profundo ascendente sobre as ciências que lhe eram relativas até ao século XVIII em Portugal. Este Tratado foi lecionado em cátedras específicas em conceituados colégios, traduzido por Pedro Nunes (1537) e comentado pelo matemático seiscentista André de Avelar.” Ver: <URL: http://www.infopedia.pt/$tratado-da-esfera> 5 Se considerarmos a Engenharia como o emprego de métodos e técnicas para construir, transformar materiais e fabricar ferramentas, sua origem pode ser confundida com a própria origem da civilização. Porém, se a considerarmos como um conhecimento organizado e estruturado em bases cientificas, sua origem é recente principalmente dentro do contexto da educação superior. O primeiro estabelecimento destinado ao ensino de engenharia com características mais semelhantes aos de hoje foi a École Nationale des Ponts et Chausseés, fundada em 1747 na França. Esta instituição de ensino foi considerada a primeira escola
Apontamentos de Arithmetica, de Manoel de Almeida Cavalcanti. A obra é um livro de filosofia que usa a
aritmética como imagem de uma postura filosófica. Todas as operações são amplamente explicadas,
teorizadas e comentadas, diferindo dos livros contemporâneos. Outro exemplo é o livro Elementos de
Arithmetica, de João José Luiz Vianna. Este é um livro técnico que fornece as definições e as regras de
como fazer as operações, justificadas teoricamente e um modelo copiado ao longo da primeira metade do
século XX (D'AMBROSIO, 2011, p. 59-60). Recentemente, foi publicada uma edição do manuscrito de
um curso de álgebra, em forma de um caderno, escrito em 1897 por J. C. Leal de Barros. Embora nesta
época tenha havido alguns estudos matemáticos originais, predomina a produção de textos. Assim, as
traduções foram muito importantes para a composição de uma Matemática brasileira. Como exemplo, os
livros de Geometria, de Adrien-Marie Legendre, e de Álgebra, de Alexis Clairaut (D'AMBROSIO, 2011,
p. 60).
Inspirados nessa influência francesa surgiram alguns autores brasileiros e portugueses cujos livros
tornaram-se conhecido. Entre eles, destacamos os cursos de Álgebra e Geometria Analítica e Exercícios
de Análise Combinatória, de 1903, de autoria do Coronel Trompowski e o Tratado de Álgebra Elementar
de José Adelino Serrasqueiro, de 1906, já citado. Na transição do século XIX para o XX, notamos
algumas tentativas de quebrar a rigidez do positivismo. Lembramos que o século XIX é visto como o
século da consolidação da Matemática ocidental, desenvolvida desde a antiguidade, pois os padrões de
rigor que prevalecem na Matemática atual se consolidaram nesse século. Outrossim, se o século XIX
pode ser visto como o século de ouro da Matemática, o final dele marca a emergência de reflexões
teóricas sobre o ensino da Matemática6. A consolidação da educação matemática como uma subárea tanto
da Matemática, quanto da educação, de natureza interdisciplinar, ocorre com a fundação da Comissão
Internacional de Instrução Matemática, sob liderança do prestigioso Felix Klein, durante o Congresso
Internacional de Matemáticos, realizado em Roma, em 1908 (D'AMBROSIO, 2011, p. 63-64).
No início do século XX, a Escola de Engenharia do Rio de Janeiro começou a receber impulsos de
modernização. Alguns dos jovens estudantes representavam a oposição na escapada ao positivismo.
Merecem destaque quatro engenheiros que foram importantíssimos no surgimento de uma nova
Matemática: Otto de Alencar Silva, Manuel de Amoroso Costa, Theodoro Augusto Ramos e Lélio Gama.
Otto de Alencar preocupou-se com questões ligadas à análise matemática, principalmente com as
equações de Ricatti. Segundo Ildeu de Castro Moreira, no prefácio do livro Teoria da Relatividade, de
Amoroso Costa, ressalta:
para o ensino formal de engenharia do mundo, formando basicamente construtores. Na sequência, em 1783, foi fundada a École des Mines em Paris, especializada no ensino de matérias profissionalizantes. Contudo, era percebida uma grande dificuldade por parte dos alunos em acompanhar o curso devido os diferentes níveis de conhecimento. Para resolver isso, em 1795, foi criada a École Polytechinique considerada um modelo para as outras escolas de Engenharia. Nessa escola eram ensinadas as matérias básicas de Engenharia para que posteriormente os alunos pudessem ser encaminhados às escolas especificas, especializadas em alguma área da Engenharia. A partir desse modelo, vários outros cursos regulares de Engenharia foram fundados mundo afora, como o de Lisboa (1790), Rio de Janeiro (1792), West Point (EUA, 1802), Espanha (1803), Viena (1815) e Berlim (1821). Ver: (<http://www.poli.br/index.php?option=com_content&view=article&id=594&Itemid=270>; VANDERLI; ALMEIDA, 2010, p. 22-23). 6 Outros fatos testemunham a renovação que se fazia da Matemática e de seu ensino no Brasil. A manifestação de um novo pensar em Matemática aconteceu através da Escola Nova em Educação, de influência norte-americana cujo representante foi Euclides Roxo. Na Bahia, a Revista Brasileira de Mathematica Elementar, fundada em 1929, foi a primeira revista brasileira inteiramente dedicada à Matemática, com representantes e agentes em vários estados brasileiros. Ver: D'AMBROSIO, 2011, p. 67.
No terreno filosófico, na esteira de Otto de Alencar, promoveram, especialmente pela pena de
Amoroso Costa, crítica intensa ao positivismo comteano, que exercia profunda influência nas
escolas profissionais e na vida educacional e política brasileira. Constituiram-se, em fim, num
grupo de elite que tinha como estratégia o desenvolvimento da pesquisa científica e a construção
da identidade de um novo tipo de intelectual no Brasil: o cientista puro. (CASTRO apud COSTA,
1995, p.xvii)
O positivismo ainda dominava a Matemática brasileira e Otto de Alencar manifestou-se abertamente
contra essa posição. Na sequência, seu discípulo Manuel de Amoroso Costa fez alguns trabalhos sobre
fundamentos e convergência de séries, além de se dedicar a astronomia (D'AMBROSIO, 2011, p. 65).
Acreditamos ser de suma importância para a Matemática brasileira a visita de Albert Einstein, em
1925. Essa visita representou, efetivamente, um golpe na resistência positivista que ainda existia na
Academia Brasileira de Ciências. A atitude negativa dos cientistas positivistas tentando ridicularizar
Einstein pela imprensa provocou uma reação da corrente modernizadora. Este foi o golpe mortal para a
corrente positivista. Desde a proclamação da república notava-se um esforço para que a ciência brasileira
acompanhasse os avanços internacionais. Apesar de fundadas algumas sociedades e revistas científicas, as
ideias positivistas eram ainda dominantes. A visita de Einstein abriu um novo espaço e, a partir daí,
iniciou-se uma nova era na Matemática brasileira (D'AMBROSIO, 2011, p.66). Dentre os representantes
do novo pensar científico na Escola de Engenharia do Rio de Janeiro está Theodoro Augusto Ramos, que
se doutorou em 1918 com a tese intitulada “Sobre as Funções de Variáveis Reais”. Este trabalho era bem
moderno e se apoiava nas tendências da Matemática europeia. Dentre os colegas de Theodoro Ramos
merece destaque o já mencionado Lélio Gama que teve importante papel nas várias fases de renovação da
Matemática brasileira. Gama foi responsável pela introdução de cursos rigorosos de análise matemática,
partindo da definição de números reais por cortes de Richard Dedekind e de uma definição rigorosa de
limites e continuidade. Dentre seus trabalhos de pesquisa destaca-se a noção de espaços de estrutura
esferoidal, que muito se aproxima dos espaços uniformes.
A influência do positivismo na matemática ainda se fazia notar no início do século XX, sobretudo
na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Observamos que pensamento positivista teve grande influência
em outras escolas superiores do país. Mesmo a chegada de imigrantes europeus ao Brasil, que se
intensificou no final do século XIX e início do século XX, não foi suficiente para derrotar o pensamento
positivista que dominava a Matemática brasileira, embora tenha tido grande influência em outras ciências.
Contudo, novas ideias prepararam o terreno para contestação das ideias positivistas (D'AMBROSIO,
2011, p.69). Em 1919, Theodoro Ramos transferiu-se para a Escola Politécnica de São Paulo, fato que
teve fundamental importância no desenvolvimento da Matemática paulista. Ramos introduziu temas
novos nos currículos e deu início a um curso de cálculo vetorial. A partir de 1920 começaram a surgir em
todo Brasil vários livros sobre o cálculo vetorial e a teoria da relatividade, provavelmente devido ao
esforço dos pesquisadores Otto de Alencar e Manuel Amoroso Costa, na Escola de Engenharia do Rio de
Janeiro (D'AMBROSIO, 2011, p.69). Sobre o livro Teoria da Relatividade de Amoroso Costa,
destacamos algumas características relacionadas por José Leite Lopes no seu prefácio original, a saber:
3) O texto mostra claramente a grande familiaridade do autor com as fontes originais e clássicas da
física e da matemática (Euclides, Newton, Descartes, Riemann, Poincaré, Lie, Minkowski, Gauss,
etc.) [...]
6) Significativa é também a maneira como chega às equações gravitacionais de Einstein. [...] O
objetivo de Amoroso Costa era certamente produzir deduções mais curtas e sem muitos detalhes;
no entanto, elas também refletem sua visão a cerca da forma matemática que devem adquirir os
princípios fundamentais na descrição da natureza; (LOPES apud COSTA, 1995, p.xxiv-xxvi)
Os estudos matemáticos no Brasil entraram numa nova fase. As visitas de Émile Borel e Jacques
Hadamard deram origem a um intenso relacionamento com a França (D'AMBROSIO, 2011, p.69).
Lembramos que a influência do pensamento matemático francês já existia nas escolas brasileiras. Na
França do início do século XX, a influência de Henri Poincaré e Jacques Hadamard era enorme7. Mesmo
após escapar da influência positivista, a Matemática brasileira era ensinada seguindo velhos textos.
Notamos que eram modestas as inovações no ensino da disciplina fundamental, a saber: os cálculos
diferencial e integral. No entanto, em 1919, Theodoro Ramos foi admitido como professor substituto da
Escola Politécnica de São Paulo com uma tese sobre “Questões sobre as curvas reversas”, assumindo em
1926, na mesma instituição, a cátedra de mecânica racional. Assim, iniciou-se uma intensa modernização
dos programas de Matemática na Escola Politécnica (D'AMBROSIO, 2011, p.69-70). No que concerne ao
Brasil, vale ressaltar que a década de vinte do século XX caracteriza-se por um intenso movimento
contestatório, de cunho fundamentalmente político, que preparou o terreno para a grande virada da
Matemática brasileira contra o pensamento positivista.
A grande transformação política do Brasil deu-se com a revolução de 1930, liderada por Getúlio
Vargas que possibilitou a entrada do Brasil na modernidade política e cultural. A modernização da
Matemática brasileira viria a reboque dessas transformações políticas. É importante notar que o momento
político que sucedeu a revolução de 1930 que culminou com Getúlio Vargas no poder, criou dois centros
distintos, a saber: o econômico em São Paulo e o político no Rio de Janeiro. As duas cidades passaram a
ser foco de desenvolvimento com características próprias, mas São Paulo concentrou sua energia no
crescimento econômico (D'AMBROSIO, 2011, p.72). Isso se reflete, particularmente, no
desenvolvimento da Matemática. Embora militarmente derrotados na Revolução Constitucionalista, a
intelectualidade e as forças econômicas que dominavam a política paulista conseguiram uma autorização
para criar uma universidade estadual, com autonomia do governo federal. Assim, por Decreto Estadual,
foi criada a Universidade de São Paulo (USP) que administrativamente funcionava nos moldes da
moderna Universidade de Berlim (D'AMBROSIO, 2011, p.72-73). Interessa-nos, particularmente, a
7 O mesmo movimento se repetia na Itália. Lá, Vito Volterra era um grande inovador na análise funcional. De modo geral, todos eles indicavam outras direções para a Matemática (D'AMBROSIO, 2011, p.69).
chamada Subsecção de Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Theodoro
Ramos optou por contratar italianos para as cátedras de Matemática e física. Uma especulação sobre as
razões dessa opção apontam para o fato de estar havendo por parte da importante comunidade italiana de
São Paulo, simpática ao governo fascista, uma pressão para que fossem contratados pensadores italianos
(D'AMBROSIO, 2011, p.73). Para a Matemática, foi contratado na cátedra de geometria superior, Luigi
Fantappiè, um jovem e promissor matemático, aluno do consagrado Vito Volterra. Fantappiè foi
influenciado por seu mestre, dominava as teorias modernas de álgebra e geometria e, naturalmente, de
análise.
Logo, ao chegar ao Brasil, Fantappiè teve a missão de organizar os estudos matemáticos em São
Paulo e sua primeira preocupação foi modernizar os cursos de cálculo diferencial e integral,
transformando-os efetivamente num curso de análise matemática. Estes cursos se iniciaram na então
recém criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (D'AMBROSIO, 2011, p.74). Em 1936,
por sugestão de Fantappiè, o matemático italiano Giàcomo Albanese foi contratado para a cátedra de
análise, pois já havia se projetado internacionalmente pelos seus importantes trabalhos sobre variedades
algébricas. Albanese foi responsável por tratar problemas da geometria algébrica clássica com o novo
instrumental de álgebra que estava sendo desenvolvido na Alemanha e na França. As variedades de
Albanese se tornaram, a partir dos anos 60, um importante elemento no estudo da Geometria Algébrica
Moderna. O contrato de Fantappiè implicava também em dar aulas na Escola Politécnica que havia sido
incorporada à USP (D'AMBROSIO, 2011, p.74). Deste modo, formou-se a primeira turma da recém
criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, isto é, um misto da antiga Escola Politécnica e a
novíssima USP. Todavia, uma velha rixa entre professores da Escola Politécnica separou os
departamentos de Matemática de Escola Politécnica e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Os
dois departamentos só se reaproximaram nos anos 40, quando Benedito Castrucci tornou-se professor de
geometria analítica, projetiva e descritiva de ambas as instituições, promovendo a paz entre os
matemáticos da USP (D'AMBROSIO, 2011, p.75).
Retornando a Fantappièe, no curso por ele administrado estavam refletidas as transformações
europeias dos cursos básicos de Matemática, principalmente nos cálculos. Os italianos, a partir de 1934,
trataram de modernizar os cursos de cálculo e geometria, criando um estilo novo, rigoroso e
extremamente elegante de expor os conteúdos das disciplinas básicas na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras. O curso de Fantappièe foi instituído como um triênio de análise matemática, tornando-se padrão
no país e dando origem ao primeiro livro moderno de análise matemática escrito no Brasil, de autoria de
Omar Catunda (D'AMBROSIO, 2011, p.75-76). No prefácio deste livro lê-se:
[...] O autor preocupou-se, particularmente, em simplificar as demonstrações, sem sacrifício do
rigor matemático, e ao mesmo tempo em manter a constante aproximação da Análise com a
intuição geométrica; neste sentido, este curso vem se afastando pouco a pouco do caráter
excessivamente abstrato que o professor Luigi Fantappiè imprimiu ao seu curso, quando aqui
lecionou de 1934 a 1939 [...]8 (CATUNDA apud D'AMBROSIO, 2011, p. 76)
Infelizmente, o interesse pela Matemática como carreira era diminuto. Assim, a primeira leva de
matemáticos era formada por estudantes de engenharia. A ideia de se fazer um curso que conduzia a uma
profissão socialmente bem reconhecida, como era a engenharia e, ao mesmo tempo, fazer outro curso,
como o de Matemática que poderia servir para aprofundar os conhecimentos matemáticos dos
engenheiros, era atrativa. Muitos faziam os dois cursos. Como havia muitas disciplinas comuns era fácil
frequentar ambos os cursos. Assim, fazer simplesmente um curso de Matemática era algo
profissionalmente pouco atraente, mesmo considerando a opção licenciatura9. Afinal, quem quisesse
lecionar Matemática poderia fazê-lo sendo engenheiro. A exclusividade do licenciado para ser professor
de ensinos anteriores ao universitário só se efetivou em 1950, após uma prolongada greve em envolvendo
todas as faculdades de Filosofia, Ciências e Letras do país. Mesmo assim, por alguns anos, continuou a
ser possível fazer o curso de Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras simultaneamente
com o curso de Engenharia da Escola Politécnica (D'AMBROSIO, 2011, p.76-77).
Pouco depois da criação da USP, foi criada, em 1934, a Universidade do Distrito Federal no Rio
de Janeiro. Os estudos de Matemática foram confiados ao competente matemático brasileiro Lélio Gama.
Em consequência, também na Escola de Engenharia do Rio de Janeiro houve uma enorme mudança na
qualidade das disciplinas Matemáticas. Os cursos de análise matemática introduzidos por Lélio Gama
eram modernos e rigorosos, embora numa linha distinta daquela abordada pelos italianos em São Paulo.
A Universidade do Distrito Federal com o advento do Estado Novo em 1937 foi fechada. Em 1938 foi
criada a Universidade do Brasil e nela uma Faculdade Nacional de Filosofia. Nos moldes de São Paulo,
foram contratados para a nova Faculdade Nacional de Filosofia professores italianos para a área de
Matemática. Vieram o analista Gabriele Mammana, o geômetra Achille Bassi e o físico-matemático Luigi
Sobrero. Mammana apresentava-se como um dos mais promissores jovens matemáticos italianos. Foi ele
que introduziu no Brasil a topologia algébrica. Por outro lado, Bassi foi contratado posteriormente pela
Escola de Engenharia de São Carlos da USP para organizar seu Departamento de Matemática
(D'AMBROSIO, 2011, p.78).
A presença dos italianos em São Paulo foi muitíssimo importante para o desenvolvimento da
Matemática no Brasil10. O retorno de Fantappiè e Albanese para a Itália, devido à Segunda Guerra
Mundial, interrompeu o trabalho que estavam realizando em São Paulo. Já organizadas, as cátedras do
Departamento de Matemática eram cinco: análise matemática; análise superior; geometria analítica,
projetiva e descritiva; geometria superior; crítica dos princípios e complementos de matemática. Essas 8 A referência ao “excessivamente abstrato” é curiosa, pois no conjunto das atividades da chamada Subseção de Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras havia uma grande aproximação com a Subseção de Física, cujo responsável era o físico Gleb Wataghin e, paralelamente ao seu curso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Fantappiè oferecia seminários, frequentados por alunos de engenharia e engenheiros profissionais (LATTES, 2000, p. 26-27). 9 Curiosamente, observamos com tristeza que esta realidade não mudou muito. 10 Em setembro de 1939, a invasão da Polônia pela Alemanha precipitou a eclosão da Segunda Guerra Mundial. De súbito, a Europa toda encontrou no conflito e a Itália aliou-se à Alemanha. Alguns italianos, entre eles Luigi Fantappiè, retornaram à Itália. Os matemáticos italianos que estavam no Brasil trataram de sua repatriação.
cátedras eram vitalícias e constituíam o núcleo das universidades. Elas organizavam-se em departamentos
e estes em faculdades ou escolas. A responsabilidade do catedrático era total com relação a sua disciplina.
Com o retorno dos catedráticos para a Itália, foi necessário providenciar substitutos para as cátedras e a
única possibilidade foi confiá-las aos jovens assistentes (D'AMBROSIO, 2011, p.80). Tendo havido um
número razoável de graduados em Matemática, justificava-se retomar a formação de um grupo de
pesquisadores. Logo após o fim da guerra, foi feito um esforço para dar continuidade à cooperação
europeia. Nesse novo contexto, os professores contratados na fundação da USP eram judeus que
obviamente não retornaram aos seus países com a eclosão da Guerra na Europa (D'AMBROSIO, 2011,
p.81).
No esforço de retomar a pesquisa Matemática em São Paulo, foram atraídos para a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP alguns jovens matemáticos franceses. A partir daí, os matemáticos
paulistas retomaram suas pesquisas, sob a influência de André Weil. Logo, sob influência de Weil foi
fundada, em 1946, a Sociedade de Matemática de São Paulo e iniciou-se a publicação do “Boletim da
Sociedade de Matemática de São Paulo”. Esta revista, que se tornou internacionalmente reconhecida,
publicou, em seus 18 fascículos, 77 artigos, alguns sendo traduções de artigos importantes publicados no
exterior. A Sociedade de Matemática de São Paulo foi extinta dando lugar à Sociedade Brasileira de
Matemática (D'AMBROSIO, 2011, p.81-82).
Alguns docentes do Departamento de Matemática passaram uma temporada no exterior, mas os
doutorados eram sempre defendidos na USP. De fato, as áreas de pesquisa eram modernas: Omar Catunda
dedicou-se à teoria dos funcionais analíticos; Candido Lima da Silva Dias obteve resultados importantes
sobre os funcionais num espaço vetorial topológico; Luiz Henrique Jacy Monteiro dedicou-se à Álgebra;
Carlos Benjamim de Lyra à Topologia Algébrica e Chaim Samuel Hönig à Análise Funcional. Outros,
mesmo não indo para o exterior, se encaminharam para importantes ramos de pesquisa. Benedito
Castrucci, por exemplo, estudou a Geometria sobre Corpos Finitos (D'AMBROSIO, 2011, p.82). Por
outro lado, a situação no Rio de Janeiro, desde a fundação da Universidade do Distrito Federal, em 1934
era outra. Enquanto os italianos permaneceram no Rio de Janeiro, dois jovens brasileiros, assistentes de
Gabriele Mammana, se destacaram: José Abdelhay e Leopoldo Nachbin. Ambos publicaram alguns
trabalhos, sob patrocínio de Mammana e de Sobrero. A contribuição matemática de Nachbin, que se
distinguiu internacionalmente, foi bem estudada. Já para a atuação matemática de Abdelhay, foi dada
pouca atenção.
Assim como em São Paulo, os então jovens matemáticos do Rio de Janeiro buscaram retomar o
processo de construção de um grupo de pesquisa Matemática. Em 1945, foi contratado para a Faculdade
Nacional de Filosofia o matemático português Antonio Aniceto Monteiro. Ao chegar ao Rio de Janeiro,
Monteiro criou as bases de um ambiente de pesquisa, da qual participaram o próprio Nachbin e Carlos
Alberto Aragão de Carvalho, que foi posteriormente para Paris onde se doutorou com uma tese em
Topologia Algébrica (D'AMBROSIO, 2011, p. 84). É importante notar que Monteiro era da vanguarda na
oposição ao regime de Salazar em Portugal. Uma interferência direta do governo português junto ao
Reitor Pedro Calmon, em 1947, fez com que o contrato de Monteiro na Faculdade Nacional de Filosofia
fosse suspenso. Por iniciativa do físico José Leite Lopes, Monteiro foi contratado para o Centro Brasileiro
de Pesquisas Físicas (CBPF) que havia sido recentemente fundado no Rio de Janeiro. Felizmente,
Nachbin foi contratado para o CBPF nessa mesma época. Assim, no CBPF instalou-se o primeiro centro
de pesquisas matemáticas mantido pelo governo federal. De fato, Weil, em São Paulo, e Monteiro, no Rio
de Janeiro, foram os principais responsáveis pela formação de uma comunidade brasileira de matemáticos
de alto nível. Ambos chegaram em 1945 e imediatamente se dedicaram a completar a formação dos
jovens pesquisadores que haviam sido iniciados pelos italianos e a identificar e atrair novos talentos
(D'AMBROSIO, 2011, p.84-85).
Conclusão:
Podemos considerar duas vertentes distintas que concluem a biografia da Matemática brasileira. A
primeira, diz respeito à evolução histórica do ensino/pesquisa da Matemática em si. Desta perspectiva,
observamos que a Matemática brasileira sempre esteve atrelada a modelos europeus não muito atuais para
os próprios padrões da Europa. Tudo no Brasil que diz respeito a esse assunto caminhou e, infelizmente
ainda caminha lentamente. No entanto, há pontos positivos nestes modelos importados e isto nos leva a
segunda vertente.
Apesar de a “Projeção de Mercator” e a obra de Pedro Nunes serem ambas muito antigas, ou por
não deixarem claro quais foram suas origens, elas se mostraram extremamente importantes para a
navegação européia e também para a entrada da geometria euclidiana no Brasil. De fato, somente após a
consolidação do modelo geométrico associado ao instrumental das navegações que a álgebra ganhou as
cortes brasileiras.
Havia várias tendências matemáticas praticadas na época das navegações, cada uma com sua
própria finalidade e todas, de certa forma presentes e importantes dentro deste contexto, seja por questões
comerciais, artísticas, geográficas, de fenômenos naturais ou até mesmo religiosos. De todas estas
influências a principal estava relacionada com a questão geográfica. Nesta vertente, a “Projeção de
Mercator” merece destaque, pois a partir dela poderia ser possível, para um navegador, “calcular” como
partir de um ponto qualquer do mapa e chegar até outro através de uma Loxodrômica. O ideal seria então
um mapa no qual as Loxodrômica fossem representadas por linhas retas. Esta importante propriedade é
obtida justamente pela “Projeção de Mercator”. Porém, como relatado neste artigo, apesar de haver uma
relação entre a geometria euclidiana e a “Projeção de Mercator”, esta também está relacionada com
cálculos que, na época, eram considerados avançados. Com isso, surge a questão de como foi possível
para Mercator desenvolver tal projeção, sendo que na época não havia fundamentos para tais deduções.
Uma teoria bem aceita é que Mercator tenha obtido sua projeção através de ajustes empíricos, “forçando”
as Loxodrômica a serem projetadas segundo linhas retas. Todavia, com os conhecimentos matemáticos
que temos hoje, mais especificamente, de álgebra, cálculo e geometria diferencial, é possível provar não
só que as retas podem ser representadas por Loxodrômica, mas também que, a “Projeção de Mercator” é
conforme, ou seja, os ângulos formados entre uma curva qualquer e os meridianos se conservam. Isto
significa, então, que a direção que é traçada no mapa da “Projeção de Mercator” é a mesma no globo
terrestre. Desta forma, utilizando esta projeção é possível chegar a qualquer lugar do globo a partir do
momento em que se sabe medir o ângulo com o polo norte geográfico.
Posto, ao mesmo tempo que a Matemática brasileira encontra-se em constante evolução, ela ainda
resguarda os resquícios de outrora, pois sua biografia revela grandes referências a um passado que de
certa forma, invade e domina seu presente. Esperamos que o futuro nos apresente gratas surpresas.
Referências:
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ANDRADE, M. L. T. D. Geometria Esférica: Uma sequência didática para a aprendizagem de conceitos
elementares no Ensino Básico. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Geografia). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2011.
BUGAYEVSKIY, L. M; SNYDER, J. P. Map Projections: A Reference Manual. Londres: Taylor &
Francis, 2002.
COSTA, A. Introdução à teoria da relatividade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
D'AMBROSIO, U. Uma História Concisa da Matemática no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
ESCOLA POLITÉCNICA DE PERNAMBUCO. Disponível em:
<http://www.poli.br/index.php?option=com_content&view=article&id=594&Itemid=270> Último
acesso: 1 de agosto de 2013.
EUCLIDES. Os Elementos. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
EVES, H. Introdução à História da Matemática. Campinas: UNICAMP, 2004.
GASPAR, J. A. Cartas e Projeções Cartográficas. Lisboa: Lidel, 2000.
HISTÓRIA DA ENGENHARIA. Disponível em:
<http://www.poli.br/index.php?option=com_content&view=article&id=594&Itemid=270>. Último
acesso: 25 de maio 2013.
LATTES C. Descobrindo a estrutura do universo. São Paulo: UNESP, 2000.
PORTAL EDUCACIONAL. Disponível em: <http://www.educacional.com.br/home/home.asp> Último
acesso: 1 de agosto de 2013.
TRATADO DA ESFERA. In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2013. Disponível em: <
http://www.infopedia.pt/$tratado-da-esfera>. Último acesso: 25 de maio de 2013.
VANDERLI, F. O.; ALMEIDA, N. N. Trajetória e Estado da Arte da Formação em Engenharia,
Arquitetura e Agronomia. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira; Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, 2010.