O Hospital Militar de São Paulo: Ocupações, Práticas e Saberes na Transição da Colônia ao...

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1 O Hospital Militar de São Paulo: Ocupações, Práticas e Saberes na Transição da Colônia ao Império (1802-1829) Maria Gabriela S.M.C. Marinho (Universidade Federal do ABC) Cristina de Campos (Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp) Prepared for delivery at the 2013 Congress of the Latin American Studies Association, Washington, DC May 29- June 1, 2013

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O Hospital Militar de São Paulo: Ocupações, Práticas e Saberes na Transição da Colônia ao Império (1802-1829)

Maria Gabriela S.M.C. Marinho (Universidade Federal do ABC)

Cristina de Campos (Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da

Unicamp)

Prepared for delivery at the 2013 Congress of the Latin American Studies Association, Washington, DC May 29- June 1, 2013

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Curar e prevenir sob a benção da Coroa e da Ilustração

A trajetória do médico português Justiniano de Melo Franco, que dividiu sua

formação e atuação entre cidades européias e a América Portuguesa no período

compreendido pelo final do século XVIII e meados do XIX, pode ser vista como

expressão das tensões e contradições daquele contexto, no qual se intensificaram os

empreendimentos científicos e urdiram-se as tramas de uma nova relação entre o poder

da Coroa e as práticas médicas e sanitárias. Nascido em Lisboa em 1783, Justiniano era

filho do também médico Francisco de Melo Franco, diplomado pela Universidade de

Coimbra em 1786. Ambos, pai e filho, envolveram-se muito de perto com duas

dimensões intrinsecamente associadas: o exercício da chamada medicina erudita, ou

medicina acadêmica, e as malhas do poder real que assegurava o funcionamento das

instituições régias na metrópole e nas colônias e no interior das quais essas práticas

eram desenvolvidas.1

A experiência de cada um deles, tomadas individualmente ou em sua

correlação, indica a presença decisiva da Coroa como garantidora no antigo território

colonial das práticas médicas regradas pelos preceitos acadêmicos, ainda que este

exercício se caracterizasse como instável, tortuoso, assistemático e carregado de

infortúnios. Quase no final de sua vida, ao publicar um anúncio em 1837 no jornal

Farol Paulistano, primeiro periódico impresso a circular de forma mais ampla na

cidade de São Paulo, Justiniano deixa entrever em parte a instabilidade de sua atuação

profissional. Ali, os seus serviços profissionais são oferecidos diretamente:

(...) ”agora restituído ao meu antigo emprego, e tendo de permanecer na cidade, participo aos seus habitantes que estou pronto para lhes prestar os socorros da minha profissão, assim como também visitar qualquer doente fora da cidade, devendo prevenir que sendo para mais de 5 ou 6 léguas deverão mandar cavalgadura competente”. (MARQUES, 2003:176)

1 A trajetória de Francisco de Melo (1757-1823) igualmente atravessada por glórias e infortúnios é mais conhecida. Nascido em Paracatu, na Capitania das Minas Gerais, foi considerado um expoente da Corte em Lisboa e é reconhecido como o fundador da Pediatria em Portugal. Morreu esquecido no Brasil por volta de 1823. Contudo, entre o final do século XVIII e as décadas iniciais do século XIX, Francisco esteve intensamente articulado a José Bonifacio de Andrada e Silva, de quem fora amigo e contemporâneo na Universidade de Coimbra entre 1776 e 1786, onde estudou, atuou, casou-se e foi processado pela Inquisição portuguesa. A proximidade com José Bonifácio assegurou à família Melo Franco trânsito privilegiado nas estruturas da ciência e da política luso-brasileira no período. Para mais detalhes, consultar MARINHO (2011).

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Os registros indicam a chegada de Justiniano a São Paulo em meados de

1819, como profissional experiente, tendo exercido a medicina em Hamm, logo após a

dissolução do Império Romano Germânico, e mais tarde em Lisboa. Enviado para

estudar em Göttingen, na Universidade George Augusto, entre 1804 e 1805, num

período extremamente conturbado da vida européia em razão das guerras napoleônicas,

Justiniano teria ali se formado em 1808. Uma vez diplomado, instalou-se na cidade de

Hamm, que se tornaria parte da Prússia, depois Alemanha. Na cidade de Hamm, além

de clinicar, se casou com Anna Carolina Overbeck.2

Em Lisboa Justiniano, teria se estabelecido entre 1814 e 1819. Ali, assim

como o pai, tornou-se membro da Academia Real de Ciências de Lisboa. Nas

“Memórias da Academia” relatou em 1816 os resultados de estudos detalhados sobre a

varíola, além de defender a superioridade da vacinação jenneriana sobre a variolização

obtida pela técnica da vacinação 'braço a braço'. É provável que a vinda de Justiniano

para São Paulo, a convite do nobre e militar português João Carlos Augusto de

Oeyenhausen-Gravenburg3, tenha se dado em razão de seu estreito envolvimento com a

difusão das práticas de vacinação e pela experiência acumulada em Portugal.

Possivelmente, os fortes vínculos de seu pai com a Corte tenham também contribuído

para essa transferência4

De modo ainda preliminar, pode-se supor que o período mais favorável para

a atuação de Justiniano em São Paulo tenha sido o curto tempo em que a administração

da província5 esteve sob o controle de Oeyenhausen, entre 1819 e 1822. João Carlos

Augusto de Oeyenhausen-Gravenburg foi o último governador de São Paulo antes da

emancipação e se envolveu intensamente nas disputas políticas que ali foram travadas

2 O casal teve dez filhos, uma das quais, Elisa, se tornaria “Viscondessa de Rio Claro”. Anna Carolina

faleceu em 1872, na cidade de Rio Claro, com quase 93 anos, três décadas depois da morte de Justiniano, ocorrida em 1839. As informações aqui utilizadas procedem de Sacramento Blake e Duílio Crispim. 3 João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg é um personagem pouco estudado pela historiografia.

Nascido em Lisboa em 1776, era filho ilegítimo do conde de Oyenhausen-Gravenburg, oficial alemão radicado em Portugal. Afilhado de D. Maria I, João Carlos ingressou como aspirante na Marinha Real Portuguesa em 1793 e dez anos depois, em 1803, foi enviado para o Brasil, primeiro como governador do Pará, em seguida da capitania do Ceará (1803/1807), Mato Grosso (1807/1819) e por fim São Paulo (1819/1822). Em seu livro Monções (1989:121), Sérgio Buarque de Holanda reproduz um interessante oficio encaminhado por Oyenhausen ao Conde de Linhares, onde entre outras questões trata da extração da quina em Mato Grosso. A quina é uma substância indicada no tratamento da malária, entre outras enfermidades. 4 Médico da Corte, Francisco de Melo Franco acompanhou a princesa Leopoldina em sua viagem da Europa par ao Brasil, a partir de Trieste. 5 As capitanias ascenderam à condição de províncias em 1815, quando da elevação do Brasil a Reino

Unido de Portugal e Algarves. Contudo, anteriormente, recebiam a denominação de províncias regiões como Santa Catarina cujas dimensões eram inferiores às capitanias, tais como as de Pernambuco, São Paulo ou Minas Gerais.

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no contexto da Independência6. Um aspecto interessante na trajetória de Oeyenhausen

refere-se ao seu envolvimento anterior nas questões relativas às práticas médicas e

hospitalares. Antes de ocupar o seu posto em São Paulo, Oeyenhausen foi governador

do Pará, Ceará e Mato Grosso e chama atenção seu interesse na instalação do Hospital

Real Militar de Vila Bela, onde logo no início de sua administração determinou que

fossem iniciadas aulas de cirurgia.

As conexões entre estes três elementos – o médico Justiniano de Melo

Franco, o governador João Carlos Augusto de Oeyenhausen-Gravenburg e a atuação de

ambos em torno do Hospital Real Militar de São Paulo – compõem o cerne de interesse

deste artigo. Consideramos que as articulações levadas adiante pela conjunção destas

três variáveis permitem entrever um conjunto de mudanças em curso na transição da

Colônia para o Império.

Nesse sentido, o Hospital Real Militar de São Paulo é percebido como parte

de uma rede de trocas no interior das províncias, e para além de suas fronteiras, uma vez

que no antigo território colonial foram instalados outros hospitais militares como o Real

e Ultramar do Rio de Janeiro (1768) – mais tarde denominado Hospital Militar da Corte

do Rio de Janeiro (1832) -, assim como o de Villa Rica (1781), o da Bahia (1799), e o

de Vila Bela (Mato Grosso, 1808). A instalação desse conjunto de hospitais militares a

partir de meados do século XVIII foi uma decorrência das políticas pombalinas,

conforme aponta Lycurgo Santos:

Instalaram-se alguns nos edifícios outrora pertencentes à Companhia de Jesus, expulsa do Reino e Domínios pelo marquês, e onde funcionavam os colégios jesuítas. Assim aconteceu no Rio de Janeiro, na Bahia, em São Luis do Maranhão e em Santos, ao passo que os colégios de outras cidades – São Paulo, Recife, Paraíba, Vitoria e Belém do Pará – foram aproveitados para residência dos governadores ou dos bispos diocesanos. Além dos estabelecidos no Rio de janeiro, São Luís, Salvador, e Santos, outros nosocômios reais criaram-se em meados do século XVIII, nas cidades sedes de importantes forças militares, em Vila Rica, Desterro, Porto Alegre, Belém do Pará e também em pequenas vilas guarnecidas por fortes destacamentos, como na de Barcelos, na capitania de São José do Rio Negro, enquanto que outras, como Oeiras, no Piauí, foram contempladas com enfermarias. (SANTOS FILHO, 1977:300)

6 Em maio de 1822, Oeyenhausen esteve diretamente vinculado ao motim que ficou conhecido como “A Bernarda de Francisco Ignacio” e que resultou em sua destituição do posto de governador. O motim expressou a cisão do governo provisório de São Paulo, tendo de um lado o governador Oeyenhausen e de outro os irmãos Andrada e seus aliados. “A Bernarda” é um dos episódios que compõe a serie eventos associados à presença de São Paulo no processo da Independência.

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Especificamente, em relação ao Hospital Militar de Vila Bela, no Mato Grosso,

na condição de governador da província, Oeyenhausen determinou em 1808 que ali

fossem instaladas as aulas de cirurgia7. Acerca do poder dos governadores gerais sobre

os hospitais militares Lycurgo aponta:

O Hospital Real Militar era dirigido pela mais alta autoridade local, o capitão-general e governador da capitania, que delegava alguns poderes administrativos ao físico-mor e ao almoxarife. Compunham o quadro de funcionários um físico-mor, um ou dois e até três cirurgiões, um ou dois boticários, um a três enfermeiros – o “enfermeiro-mor” e seus ajudantes -, serventes, denominados “moços” de serviço, almoxarife, um oficial e soldados da guarda. Regulamentos especiais, praticamente inoperantes no Brasil, foram expedidos em várias épocas em Lisboa, para uso dos hospitais reais da metrópole, enquanto que aqui, por ordem dos capitães generais, outros tantos foram elaborados pelos físicos-mores, revelando-se alguns deles de singular mérito para o tempo, como os destinados aos nosocômios de São Paulo e de Santos, mas que não chegaram à execução por absoluta falta de meios. (SANTOS FILHO, 1977:301)

Apresentamos a seguir uma análise preliminar acerca do Hospital Militar de

São Paulo e do contexto de sua criação.

Poder e práticas de cura em São Paulo: final do século XVIII e início do XIX

As forças políticas, os saberes mobilizados e as práticas médicas comprometidas

na criação do Hospital Real Militar de São Paulo em torno de 1802 ainda são dimensões

pouco conhecidas pela produção acadêmica. Instalado em uma conjuntura histórica na

qual a dinâmica econômica e territorial da capitania exprimia sinais de aceleração

consistente, o hospital esteve inserido no processo de intensificação das trocas e da

circulação de bens e mercadorias promovida pela Coroa portuguesa em suas colônias no

final do século XVIII.

A decisão da Coroa de intensificar as ações e a presença nos territórios coloniais

vinha sendo implementada desde meados do século XVIII, a partir das reformas

pombalinas. O reformismo ilustrado que se difundiu como política de intervenção na

metrópole, e seletivamente pelas colônias, permaneceu mesmo após a queda do 7 Há registros de que essa experiência tenha sido tentada também no Hospital Militar de São Paulo, como será visto mais adiante.

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Marquês de Pombal em 1777. Em decorrência, projetos e propostas com esse caráter

tornaram-se frequentes no final do século XVIII, entre as quais a tentativa de criação do

Jardim Botânico de São Paulo em 1799. Embora associada ao projeto de instalação do

Hospital Real Militar, efetivamente implantado em torno de 1802, a criação do Jardim

Botânico não se consumou.

No final do século XVIII, os últimos governadores da capitania, Bernardo José

Maria de Lorena e Silveira e Antonio Manoel de Melo Castro e Mendonça, entregaram

a engenheiros militares a tarefa de realizar um conjunto de melhoramentos urbanos que

facilitassem a circulação de pessoas e o escoamento da produção colonial8. O plantio da

cana e a produção de açúcar vinham crescendo de modo sistemático no território, assim

como a população, inclusive a escrava. Para a historiografia acerca do período, a

renovação da dinâmica econômica, populacional e de infraestrutura da capitania teria

sido, em boa medida, o resultado das políticas implementadas no governo do Morgado

de Mateus (1765-1775), conforme apontaram os trabalhos referenciais de Belotto

(2007), Petrone (1968) e Marcílio ( 2000)9.

O incremento da produção e da população implicou também na expansão da

agricultura de abastecimento que redundava, uma vez mais, na intensificação da

circulação de pessoas e produtos, com repercussões no comércio e no trânsito de

tropeiros. Associada a essa nova dinâmica populacional e econômica, a capitania - e

também a cidade de São Paulo - concentravam desde meados do século XVIII um

grande contingente de tropas que se deslocava constantemente pelo interior do vasto

território - sobretudo em direção ao sul, tendo em vista a defesa das fronteiras sob a

ameaça permanente das hostes espanholas10.

8 Entre as obras do período, destacam-se o melhoramento das vias de circulação na vila de São Paulo e nas principais vilas e povoações do interior. Entre 1797 e 1819, seis mandatários foram respectivamente governadores gerais de São Paulo. Dois deles ocuparam o cargo no final do século XVIII: Bernardo José Maria de Lorena e Silveira, quinto conde de Sarzedas, governou a Capitania entre 1788 e 1797. Antonio Manoel de Melo Castro e Mendonça ocupou a posição no período seguinte, entre 1797 a 1802. 9 Teses e dissertações recentes têm contribuído para expandir essas interpretações. Conferir, por exemplo, Ricardo Felipe Di Carlo: Exportar e Abastecer: população e comercio em Santos, 1775-1836, mestrado, FFCLH USP, DH, 2011. Ver também, de Pablo Oller Mont Serrath, Dilemas e Conflitos na

São Paulo Restaurada. Formação e Consolidação da Agricultura Exportadora (1765-1802), Mestrado DH FFLCU USP, 2007. 10 Miriam Ellis aborda a questão da seguinte forma: A Capitania de São Paulo restaurada [em 1765] seria um baluarte defensivo contra as pretensões castelhanas no extremo sul do Brasil, até o Prata, podendo ser aproveitada a ‘a natural inclinação’ dos paulistas – que foram sempre o flagelo dos

Castelhanos e os que com muita utilidade dilatarão os domínios de Sua Magestade... até a margem Setentrional do Rio da Prata...’ (81) - para repelir o invasor e recuperar as terras usurpadas. E prossegue, mais adiante: É o que explica o excesso de recrutamentos forçados, verdadeira calamidade

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O crescimento da população, das trocas comerciais e os deslocamentos

constantes tornavam ainda mais delicado o equilíbrio entre saúde e enfermidade no

interior de um território marcado pelo caráter privado das práticas de cura e em larga

medida associado aos saberes nativos11. Observa-se no período uma relação tensa e

difusa entre a população e os poderes instituídos, da qual emergem enfrentamentos em

torno das diferentes tentativas de regramento. Dois trechos selecionados e reproduzidos

a seguir são elucidativos acerca destes embates, o primeiro relativo ao recrutamento

militar, o segundo em torno de medidas sanitárias.

No ambiente militarizado da capitania, como apontado anteriormente, ao

recrutamento forçado contrapunham-se estratégias de evasão, como indica Toledo Piza:

(...) Para subtrahirem os seus filhos à voragem do militarismo, as classes pobres e plebeas fugiam para as mattas, longe dos povoados , preferindo luctar com as febres palustres, com os índios, com as feras e com a miséria a se haverem com os delegados do governo colonial \portuguez.12

Contudo, a ação dos governadores poderia se tornar ainda mais arbitrária,

conforme indica a narrativa a seguir, extraída de Sérgio Buarque de Holanda:

(...) Tornou-se singularmente célebre o caso ocorrido na capital sob sua administração [no caso, do governador Antonio José da Franca e Horta]13, durante as celebrações do Corpus Christi de 1808: ao fim dos festejos realizados no Pátio do Colégio, defronte ao Palácio, contingentes armados tomaram de súbito as bocas das ruas e as portas das casas, enquanto outros envolviam a considerável massa popular que fora assistir à formatura da tropa - e seria praticamente toda a gente válida da cidade – para conduzi-la afinal, em desordem, ao quartel, dentro de um grande circulo de soldados. Aqui, depois de

que por mais de um século atormentou os paulistas, cuja capitania “quando não estava envolvida em

guerra aberta contra os hespanhoes nas fronteiras do sul ou contra os índios do interior, era sempre mantida em pé de guerra e vivia sob o regime de paz armada. (82). As citações em negrito são de Antonio Toledo Piza reproduzidas por Miram Ellis no corpo do artigo. Em nota de rodapé as afirmações e Piza informam que na capitania e “todos os homens válidos eram militares e por isso, com quando a população da capitania fosse pequena e muito esparsa, a força armada tornou-se enorme no século XVIII e esteve sempre muito acima das necessidades da segurança publica e dos recursos financeiros da capitania” ( op. cit., p. 299). 11 Consultar por exemplo Márcia Moisés Ribeiro (2003) e Betânia Gonçalves Figueiredo (2011). 12 Antonio de Toledo Piza “Chronicas dos tempos coloniaes. O militarismo em São Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. IV p. 296, 298 e segs. Apud Miriam Ellis 13 Para o período analisado no escopo deste texto, os demais governadores foram: Antônio José de Franca e Horta, que governou São Paulo entre 1802 e 1811. Luis Teles da Silva Caminha e Meneses, marquês de Alegrete, assumiu entre 1811 e 1813. Francisco de Assis Mascarenhas Castelo Branco da Costa Lencastre, conde da Palma, cumpriu o mandato entre 1814 e 1817. Por fim, João Carlos Augusto de Oeynhausen-Gravenburg respondeu pelo cargo no período de 1817 a 1819.

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permanecerem o resto do dia e a noite sem abrigo ou provimento, passaram a ser inscritos no alistamento dos recrutas da legião, excetuados apenas aqueles que, por motivo de idade, estado ou profissão, estivessem isentos de serviço militar.

O mesmo sistema e com igual êxito foi simultaneamente praticado nas diferentes vilas do interior em todas as partes onde houvesse moradores.14

Por outro lado, o agravamento das condições sanitárias no final do século XVIII

se traduziu na capitania pela eclosão de duas epidemias de varíola no curto espaço de

tempo entre 1796 e 1798. A prática de isolar os enfermos ou banir os infetados

provocou o enfrentamento dos poderes entre si, dado o clamor da população, como

assinala Bertolli

(...) A inconsistência das medidas possíveis de serem tomadas para deter a disseminação da peste fazia de São Paulo, Santos, Taubaté, Guaratinguetá e uns poucos outros núcleos urbanos paulistas os principais centros difusores da varíola para todas as partes do sul e do centro-oeste da colônia. O deslocamento das tropas que partiam do Campo de Piratininga para se defrontar com as forças espanholas, em defesa dos limites territoriais da América Portuguesa, resultava na disseminação da enfermidade por uma vasta área, causando severa sangria de gente não só entre os soldados, mas também entre a população das vilas e povoados arduamente estabelecidos pelos colonizadores ibéricos e, sobretudo, entre os agrupamentos indígenas (Documentos Interessantes, vol. 42, p. 37). Apesar da continuidade da presença das bexigas no cotidiano bandeirante, o reforço oficial das disposições isolacionistas em locais afastados das áreas urbanas tornou-se alvo de críticas cada vez mais severas, inclusive sob a alegação de que tais medidas criavam obstáculos permanentes para a continuidade das atividades econômicas (...). O isolamento dos enfermos em áreas distantes de suas residências sempre foi uma questão delicada. Apesar de compor uma estratégia preventivista que buscava minimizar os receios alimentados pela coletividade, as autoridades coloniais acabavam conflituando com os interesses privados, sobretudo das famílias da elite local, que se mostravam temerosas em perder seus escravos infectados e relutantes em se afastarem de seus queridos entes. (BERTOLLI, 2008)

14 Sergio Buarque de Holanda, em Historia Geral da Civilização Brasileira (pp 434-435), aponta que as arbitrariedades não eram exclusividade da colônia ocorrendo no mesmo grau e intensidade com a população rural da metrópole.

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É nesse quadro, portanto, de uma nova dinâmica econômica e populacional,

de intensificação das trocas comerciais, militarização crescente e acirramento das

tensões que se instalou em torno de 1802 o Hospital Real Militar de São Paulo, sob o

governo de Antonio José de Franca e Horta.

Da capitania militarizada emerge uma província

convulsionada e em transformação

A implantação do Hospital Real Militar de São Paulo iria se tornar, portanto,

peça central no projeto político que pretendia dotar a sede da capitania de um aparato de

instituições e melhoramentos capazes de enfrentar as demandas que se impunham.

Naquele contexto, igualmente importante foi a atuação do Corpo de Engenheiros

Militares, responsáveis por executar um expressivo conjunto das obras na região15.

O Hospital Real Militar era, então, uma das poucas instituições providas pelo

poder régio na cidade de São Paulo. Em 1803, ano subsequente ao início de suas

atividades, o Hospital Militar acolheria a iniciativa, logo frustrada, de abertura das

“Aulas de Cirurgia”. Embora registrasse a necessidade, o interesse e a demanda, pois o

hospital “contava com seis estudantes inscritos” em 1803, o curso foi extinto pouco

depois, em 1806, permanecendo apenas a instituição hospital, ainda assim em condições

bastante precárias (SANTOS FILHO, 1977:295-6).

Instalado na Freguesia de Santa Ifigênia e localizado entre a esquina da Ladeira

de São João e a Ladeira do Açu, em frente à Ponte do Marechal - uma ponte de pedra

construída em arco que permitia o cruzamento do rio Anhangabaú -, o hospital ocupava

uma área estratégica na sede da antiga capitania16. Construído em 1802, por subscrição

pública, a mando do governador geral Franca e Horta, o edifício, embora generoso para

os padrões locais, estava muito aquém do portentoso projeto original de 1797.

15 Décadas mais tarde, no final do século XIX, a inserção da Engenharia como campo de conhecimento institucionalizado em São Paulo na Escola Politécnica, criada em 1894 seria parte importante do processo de afirmação da nova elite republicana. Consultar NADAI e CAMPOS 16

Lycurgo assim descreve a instituição: Hospital Militar de São Paulo - Um novo edifício para sediá-lo foi construído por subscrição pública, por determinação do capitão general Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça, que governou São Paulo de 1797 a 1802. Localizou-se no ponto onde se situa o atual Edifício dos Correios e Telégrafos, junto à avenida São João, no vale do Anhangabaú. Era de grande porte, com três enfermarias de dezesseis camas cada uma e um quarto para os presos da cadeia, quando enfermos. Havia uma espaçosa botica. (SANTOS FILHO, 1977:590).

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Destinado a ocupar inicialmente os terrenos do que muito futuramente seria a

Pinacoteca do Estado, nas proximidades do Jardim da Luz, o projeto original do

engenheiro militar João da Costa Ferreira havia sido elaborado por encomenda do

governador anterior, Antonio Manoel de Melo Castro e Mendonça, que chegou a

determinar o início das obras jamais concluídas.

No final do século XVIII, as disputas territoriais com os espanhóis ainda

provocavam intensa movimentação de tropas pela vasta capitania - e o único hospital

existente, a Santa Casa de Misericórdia, não comportava as exigências crescentes de

atendimento e assistência. As epidemias eram frequentes e o processo de recrutamento,

mobilização e movimentação das tropas militares, assim como o escoamento das

mercadorias, intensificava o trânsito de pessoas e moléstias.

Como apontado anteriormente, a estrutura de poder vigente concedia amplos

poderes ao capitão-general e governador das capitanias que dirigia os hospitais militares

e delegava algumas atribuições aos físicos-mores. O quadro de servidores era, em

termos ideais, composto por dois ou três cirurgiões, um ou dois boticários, o

enfermeiro-mor e seus ajudantes, serventes, almoxarife, um oficial e soldados da

guarda. Em São Paulo, registra Lycurgo,

“em princípios do século XIX era de extrema penúria a situação de São Paulo, inexistindo medicamentos, instrumentos cirúrgicos e roupa de cama para os quarenta catres. Havia, então, uma única medida de lata pela qual os enfermos sorviam as poções. O físico-mor que tais fatos relatou queixou-se ainda do mau-cheiro exalado pelos urinóis de barro não vidrado, os quais absorviam a urina excretada (SANTOS FILHO, 1977:300).

Desse modo, quanto Justiniano se instalou em São Paulo designado por

Oeyenhausen Físico-Mor da Legião das Tropas Ligeiras e do Hospital Real Militar

encontrou o conturbado cenário político do processo de independência. Apesar do

ambiente tenso, Justiniano pôde, ainda assim, atuar diretamente nas instituições

vacínicas e de algum modo assegurar condições mais aceitáveis na assistência

hospitalar, como atesta o relato do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire:

(...) Ao tempo de minha viagem [1819], o hospital militar era situado no bairro de Santa Ifigênia. Atinge-se o edifício por uma escadaria, e, ao centro do mesmo, encontra-se uma área quadrada. Na farmácia, uma de cujas portas abre-se para a parte exterior do prédio, eram vendidos remédios ao público, por conta do estabelecimento. Essa farmácia era espaçosa, muito asseada, perfeitamente instalada, dispondo de completo sortimento. (SAINT-HILAIRE, 1972:159)

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Se a descrição do naturalista é favorável ao Hospital Militar, o mesmo não se

confirma em relação a outras instituições hospitalares da cidade:

(...) é com profunda tristeza que passo a falar dos asilos destinados a alojar as misérias de nossa espécie (...). Existe em São Paulo um hospício (lazareto) para o recolhimento dos infelizes atingidos pela morféia, horrorosa enfermidade, que só a caridade pode impedir de ser olhada com enorme repugnância. Mas se bem que essa doença seja muito comum (...), o lazareto pode abrigar apenas quatro pessoas, pelo que um número enorme de leprosos erra de localidade em localidade, vivendo da caridade pública. Esse lazareto depende da Irmandade da Misericórdia (...) que tem por fim socorrer os indigentes e, principalmente os doentes pobres (...). Em 1819 (...), época de minha viagem (...) ela fazia tratar os doentes no hospital militar, pagando determinada soma por dia à administração do referido estabelecimento. (SAINT-HILAIRE, 1972:159-60)

As precárias condições apontadas por Saint-Hilaire se agravaram no começo do

século XIX em razão do surto de crescimento de São Paulo que, nas palavras de Maria

Beatriz Nizza da Silva, provocaram “uma explosão do negócio açucareiro” (SILVA,

2008:160). A atividade continuaria “provocando a expansão colonizadora em busca de

terras” (Idem, ibidem). Em decorrência, a fronteira agrícola expandira-se, provocando

grande demanda por novos escravos. As condições de sobrevivência dos novos

contingentes africanos pressionavam ainda mais a salubridade do território. Sob tais

circunstâncias, o Hospital Militar havia se tornado um dos poucos locais de atendimento

da população de cativos e ex-cativos que se expandia. Em 1825, Justiniano escreveria

ao então governador Lucas Monteiro de Barros nos seguintes termos:

(...) Em cumprimento do que V. Exª. ontem me ordenou remeto o Escravo Domingos, pertencente à Fábrica de Ferro ao Capitão Abreu, para lhe dar o destino que quisesse, visto ser o dito negro incurável, e estar no estado de não servir para nada. O mesmo Capitão Abreu o tornou a remeter, e eu não o posso admitir no Hospital sem Ordem de V. Exª visto ser em prejuízo da real Fazenda e ter me V. Exª ontem ordenado o contrário (HERSON, 1996:315).17

A centralização do poder político vigente e o descompasso em relação à

17 Como lembra Bella Herson, os poderes do físico-mor haviam sido pesadamente reduzidos pelo alvará de 22 de janeiro de 1810, após a supressão da Real Junta do Proto-Medicato (HERSON, 1996:315), impedindo o administrador do hospital decidir sobre o ingresso de um escravo sem ordens expressas do governador.

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realidade sanitária da antiga capitania continuava incidindo dramaticamente sobre a vida

da população, como lembra Bertolli:

(...) O certo é que a presença do negro na Capitania ampliava as possibilidades de crises bexiguentas. A vila e posterior cidade de São Paulo, as vilas portuárias e o Vale do Paraíba tornaram-se os principais núcleos disseminadores da doença, tanto por serem pontos de passagem para a hinterlândia quanto por abrigarem significativo contingente humano, especialmente durante os períodos de cumprimento das obrigações políticas e religiosas e também durante a realização das feiras comerciais. Frente aos riscos de contágio coletivo, os capitães-generais passaram a avaliar a ameaça epidêmica como uma questão sócio-econômica que extrapolava em muito os limites da responsabilidade e da prática médica. (...) as autoridades paulistas enquadraram as crises sanitárias como uma problemática pertinente aos interesses da administração pública, relegando os raros médicos que atuavam na região a uma posição que lhes permitia usufruir de quase nenhuma interferência nas decisões tomadas pelos governantes. (BERTOLLI FILHO, 1996).

Administrar o hospital e ampliar as práticas de vacinação

Como mencionado anteriormente, a experiência e o otimismo de Justiniano em

relação às práticas da vacinação certamente contribuíram para sua transferência da

Corte a São Paulo. Desse modo, confiava na adesão da população, alegando que a

'docilidade portuguesa' seria reproduzida em São Paulo, não permitindo a ocorrência

de reações agressivas à prática médica da 'verdadeira vaccinação’ (FRANCO, 1817,

apud BERTOLLI, 2008:90).

Ao mesmo tempo, amparado pela experiência acumulada em Portugal, onde

havia realizado estudos detalhados sobre a varíola, conforme relatos na Academia de

Ciências de Lisboa em 1816, o médico defendia a superioridade da vacinação como

retoma Bertolli:

Melo Franco mostrava-se otimista inclusive sobre a acolhida popular do novo método, afirmando que por ordem do governador José Carlos Augusto Oeynhausen, elaborou em pouco tempo o regulamento da Instituição Vacínica paulista, o qual foi apresentado oficialmente em 28 de novembro de 1819, revelando clara semelhança com o da instituição portuguesa.

Estabelecendo como objetivo básico a imunização de toda a população bandeirante no decurso de poucos anos, a Instituição Vacínica teria como membros um presidente (que deveria ser o governador provincial), um diretor, que ocuparia concomitantemente

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o cargo de inspetor-geral da vacinação e dois inspetores convocados dentre os funcionários do Hospital Militar local.

Apesar de o governador presidir a entidade, suas tarefas seriam bem restritas, todas elas definidas por quatro dos dezenove artigos que compunham o regulamento elaborado por Melo Franco: convocar sessões extraordinárias, oficiar aos capitães-mores das vilas a ordem de preparo da população para a inoculação e fiscalização dos vacinadores, recebimento de mapas mensais de imunização e do relatório dos trabalhos efetuados e, finalmente, sancionar ou não as providências sugeridas pelo inspetor-geral (Documentos Interessantes, vol. 31, p. 211-223). (BERTOLLI FILHO, 2008)

A experiência acumulada em Portugal permitia também estabelecer um

contraponto direto entre os distintos territórios nos lados opostos do Atlântico Sul:

(...) o empenho desse médico em criar uma [instituição vacínica], deveu-se sobretudo à boa impressão que lhe causara os resultados benéficos da vacinação jenneriana na saúde pública européia. Sobre o instituto sanitário lusitano, Melo Franco informou que o mesmo fora criado pela Academia Real de Ciências de Lisboa em julho de 1812 e que, do ano de seu estabelecimento até 1816 havia realizado 42.266 vacinações, não contabilizando o grande número de amostras de linfa que foram cedidas para outras nações – sem que nenhum acidente tenha sido notificado. Em conseqüência de suas observações, o clínico tornou-se um fervoroso defensor da introdução da nova estratégia imunizadora nas áreas dominadas por Portugal, criticando os médicos que se opunham ao uso da vacina jenneriana e acusando-os de quererem continuar lucrando monetariamente com a persistência das epidemias de bexigas. (BERTOLLI, 2008:90)

Amparado no saber técnico, Justiniano optou por ampliar o espaço de atuação do

médico. Distinto de um hospital, mas decisivo em termos de assegurar melhores

condições de salubridade, o regulamento em torno das práticas de vacinação buscava

ampliar os poderes do diretor, necessariamente um médico, no interior de uma das

primeiras instituições públicas de apoio e prevenção sanitária em São Paulo:

A estreita delimitação do poder do governador no âmbito da Instituição Vacínica e a ausência no regimento de explicitação dos encargos dos dois inspetores faziam com que todo poder decisório ficasse, de fato, concentrado nas mãos do diretor do estabelecimento, aliás o único membro da equipe principal que obrigatoriamente deveria ser diplomado em medicina. O grupo de apoio, ainda segundo o regulamento proposto por Mello Franco, seria composto de um cirurgião, alguns ajudantes de cirurgia e um escrevente. A tarefa do cirurgião seria a de fiscalização dos trabalhos efetuados pelos seus

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ajudantes, enquanto que o escrevente deveria organizar os mapas de atividades e expedir a correspondência. Usufruindo de grande liberdade de comando, o diretor tinha como atribuições a responsabilidade de administrar a Instituição Vacínica paulista e ditar as diretrizes a serem obedecidas pelos capitães-mores, funções que também caberiam ao governador, mas apenas como reforço e legitimação das medidas tomadas pelo diretor. Cabia também ao médico-chefe selecionar os funcionários que desempenhariam funções no órgão, autorizar o trabalho da equipe de vacinadores e assinar os mapas referentes ao número de inoculações realizadas mensalmente.

A autonomia da Instituição frente a outros órgãos oficiais era ampla, mesmo em relação à esfera militar. Assim, no regulamento de Mello Franco constava que, se os vacinadores ocupassem postos militares, eles estariam subordinados à cúpula do serviço vacínico e não ao comandante das tropas paulistas. Por fim, o documento estabelecia a especificidade da atuação dos vacinadores durante quadras epidêmicas e ainda certificava os equipamentos e materiais necessários para o pleno desempenho do órgão. Por todos esses cuidados, Mello Franco reiterou por diversas vezes, explícita ou implicitamente, que a vacinação na província se constituiria basicamente como uma questão médica e, por conseguinte, deveria ser um clínico o comandante de todo o processo. (BERTOLLI, 2008:91)

As tensões decorrentes de tais opções não foram escamoteadas, assim

como as prerrogativas formuladas no texto do Regulamento se tornaram alvo

de críticas e recusas:

Elaborado o regulamento, este foi imediatamente remetido às autoridades do Rio de Janeiro para ser avaliado. Coube ao cirurgião da Câmara carioca, Theodoro Ferreira de Aguiar, a responsabilidade de preparar um parecer sobre o texto. Após a análise oficial, a qual certamente comparou a proposta paulista com o regimento da Junta Vacínica do Rio de Janeiro, a conclusão foi a seguinte: "O Plano proposto pelo Capitão General da Capitania de S. Paulo hé muito bem combinado, e he o que se acha praticado em muitos Estados da Europa com pequenas alterações, que procedem das differentes formas de administração publica. Entendo porem, que hé por ora inadequado para o Brazil; pois hé precizo que em Estados nascentes os principios de todas as couzas sejão simples, para serem faceis na sua execução; alias os pequenos obstaculos aniquilão os mais uteis designios" (Documentos Interessantes, vol. 36, p. 100-101).

Assim, o posicionamento de Ferreira de Aguiar foi contrário à criação da Instituição Vacínica nos moldes propostos por Melo Franco. O cirurgião carioca defendia a instalação de um órgão com estrutura simplificada e com poderes e autonomia extremamente limitados, alterando a denominação da entidade para Casa do

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Estabelecimento Vacínico. Para tanto, em janeiro de 1820, Ferreira de Aguiar apresentou um plano substitutivo, destinado a ser implantado não só na Província de São Paulo, mas também em Minas Gerais e no Rio Grande de São Pedro do Sul (Documentos Interessantes, vol. 36, p. 98-100). (BERTOLLI, 2008:95)

Embora recusado pelas autoridades do Rio de Janeiro, a Instituição

Vacínica começou a funcionar em São Paulo em dezembro de 1819, ainda que

provisoriamente, nos moldes propostos por Justiniano e sob a alegação de que

uma nova epidemia de varíola poderia eclodir. A decisão de colocá-la em

funcionamento, mesmo que por pouco tempo, indica a relativa autonomia de

Oeyenhausen para administrar São Paulo,

(...) assim, em 14 de abril de 1820, portanto dois meses antes de ser sancionado o regulamento vacínico, o governo de São Paulo informou ter inoculado com o líquido antivariólico 1.270 moradores de Santos, Atibaia, Bragança, Parnaíba, Itu, Sorocaba e Porto Feliz (Documentos Interessantes, vol. 36, p. 110-111).

Finalmente, em meados de 1820, o órgão vacínico foi oficialmente inaugurado na Província de São Paulo, segundo a estrutura constante no regulamento preparado por Ferreira de Aguiar. Apesar disto, foi mantida a designação de Instituição Vacínica, assim como Mello Franco permaneceu na direção do estabelecimento. O trabalho de imunização coletiva continuou a ser executado e a localização de alguns mapas referentes às atividades da Instituição no decorrer dos meses de junho e julho de 1821 permite a avaliação da eficiência das vacinações efetuadas no norte do território bandeirante. Consta em tais mapas um total de 105 imunizações realizadas, sendo que 26 delas ocorreram na vila de São José do Paraíba (atual São José dos Campos), 60 em Taubaté e 19 em Pindamonhangaba. Deste total, 89 vacinações (84,7%) foram consideradas 'verdadeiras', isto é, ocorreu a pretendida imunização; 10 casos (9,5%) constituíram-se em vacinações 'falsas', pois se deu a inflamação na área escarificada, mas não foi constatada a formação de pústula; 5 casos (4,7%) corresponderam a vacinações 'não pegas', fato denunciado pela ausência de inflamação e, apenas um caso (0,9%) correspondeu a vacinação duvidosa. A ausência de registros sobre casos inobservados denuncia o empenho oficial no controle dos trabalhos e da qualidade das vacinações. (BERTOLLI, 2008:99)

Um aspecto relevante na atuação de Justiniano refere-se à existência de fluxos

de informação provenientes de Lisboa que vinculam diretamente a experiência de São

Paulo às práticas e orientações metropolitanas, sem que se observe a mediação do Rio

de Janeiro. Conforme aponta Bertolli na passagem sobre a organização da instituição

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vacínica, cuja organização em São Paulo esteve a cargo de Justiniano:

(...) revelando clara semelhança com o da instituição similar que funcionava em Lisboa e, ao mesmo tempo, destoando do regimento da Junta Vacínica do Rio de Janeiro, instituída em abril de 1811. Estabelecendo como objetivo básico a imunização de toda a população bandeirante no decurso de poucos anos, a Instituição Vacínica teria como membros um presidente (que deveria ser o governador provincial), um diretor, que ocuparia concomitantemente o cargo de inspetor-geral da vacinação e dois inspetores convocados dentre os funcionários do Hospital Militar local. Apesar de o governador presidir a entidade, suas tarefas seriam bem restritas, todas elas definidas por quatro dos dezenove artigos que compunham o regulamento elaborado por Melo Franco: convocar sessões extraordinárias, oficiar aos capitães-mores das vilas a ordem de preparo da população para a inoculação e fiscalização dos vacinadores, recebimento de mapas mensais de imunização e do relatório dos trabalhos efetuados e, finalmente, sancionar ou não as providências sugeridas pelo inspetor-geral. (Documentos Interessantes, vol. 31, p. 211-223 apud BERTOLLI, 2008)

A nomeação de Justiniano como Juiz Delegado Comissário do Físico-Mor do

Reino em São Paulo, no começo do século XIX por designação do príncipe regente,

havia imposto ao médico o convívio com uma realidade adversa. Ao que tudo indica,

porém, a perda de apoio com a destituição de Oeyenhausen em 1822, tornaria as

relações mais tensas e protocolares. Mantido como administrador do Hospital Militar,

Justiniano escreveria sucessivas cartas e relatórios ao então governador Lucas Antonio

Monteiro de Barros acerca do estado geral e das condições precárias com as quais tinha

que se defrontar e combater. Entre os relatos, a constatação de penúria e abandono:

(...) tendo acontecido que os doentes a que se dá Alta, não têm podido sair e ficam retidos no Hospital em detrimento do Serviço [...] por se achar a roupa muito suja (...) um deles teve sarna, e vi ainda hoje a roupa toda suja de matéria e sangue, o que infalivelmente o tornaria a pôr no antigo estado. (HERSON, 1996:314)

Vínculos enraizados na aristocracia nativa

Como assinalado anteriormente, as informações em torno da trajetória de

Justiniano são freqüentes, porém muito fragmentadas. Os vínculos com a cultura alemã,

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seja pelos anos de estudo em Göttingen, ou em razão do casamento com Anna Carolina

Overbeck, certamente favoreceram o contato com o governador Oeyenhausen-

Gravenburg e com outros grupos sociais oriundos da mesma região européia.

Anos depois de instalado em São Paulo, Justiniano manteria contato intenso

com o primeiro núcleo de imigrantes alemães que se fixou na região de Santo Amaro na

segunda década do século XIX. Em virtude do domínio da língua, foi designado o

administrador geral da primeira colônia de origem alemã na cidade de São Paulo. Dos

926 imigrantes, 336 se estruturaram no território que lhes foi destinado, depois de

inicialmente acolhidos nas dependências do hospital militar. A partir de 1828, novos

imigrantes alemães teriam sido encaminhados por Justiniano para formar um núcleo

agrícola na cidade de Rio Claro, sem que a iniciativa tenha prosperado.

Justiniano de Mello Franco morreu em São Paulo em 1839. Contudo, suas

relações familiares se desdobraram e se ramificaram, consolidando a inserção local e os

vínculos com os grupos encapsulados no poder político, médico e científico. Por volta

de 1834, mudou-se para Campinas, importante pólo da política regional. Segundo

Lycurgo, Justiniano teria sido o primeiro médico diplomado a exercer a profissão

naquela localidade (Idem, p.518). Em Campinas, foi eleito vereador para a Câmara

Municipal no triênio 1837-1840. Sem completar o mandato, licenciou-se em 1837, sob

alegação de “mudança para outro lugar” da Província e, supostamente, teria voltado

para a capital (Idem, ibidem).

A descendência de Justiniano enraizou-se na aristocracia paulista. A filha Elisa

Justina de Melo Franco casou-se com o primeiro barão de Araraquara, José Estanislau

de Oliveira, e se tornou, além de baronesa de Araraquara, também viscondessa do Rio

Claro. Outros descendentes compuseram também a nobreza local, como o segundo

barão de Araraquara, o barão Mello Oliveira, a condessa do Pinhal, a baronesa de

Dourados e a segunda baronesa de Piracicaba.

No final do século XIX, sua bisneta Constança de Mello e Oliveira viria a se

casar com o médico Arnaldo Vieira de Carvalho, uma das figuras-chave da medicina

paulista no período republicano. A descendência de Arnaldo e Constança, por sua vez,

deu prosseguimento a um dos poderosos clãs político-intelectuais de São Paulo,

representados pela família Mesquita, longevos proprietários do influente e conservador

jornal O Estado de São Paulo que sucedeu a publicação A Província de São Paulo,

fundada no final do século XIX (MARINHO, 2003), (MOTA, 2005), (MOTA e

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MARINHO, 2009).

Posto em perspectiva, o evento aparentemente de âmbito privado revela uma

complexa urdidura de relações sociais que entrelaçam política, poder econômico e

captura de posições na estrutura do estado, de modo a assegurar ao longo do tempo a

tessitura de sustentação para o exercício da chamada medicina científica.

Considerações finais

A experiência dos hospitais militares, assim como as práticas médicas e de

saúde na transição da Colônia ao Império, particularmente em São Paulo, ainda são

temas pouco estudados e carecem de uma perspectiva de análise capaz de reconhecer e

compreender os processos pelos quais estas instituições se articularam no interior do

vasto território do continente americano. Igualmente escassa é a bibliografia acerca das

relações de poder que se urdiram a partir entre as políticas pombalinas e as práticas

sanitárias do espaço colonial e o modo pelo qual estendiam seus vínculos na direção da

metrópole.

A temática reveste-se ainda de especial interesse por deixar entrever

inúmeras possibilidades de análise em relação às instituições que seriam erigidas, ao

longo do século XIX, em torno processo de construção do Estado brasileiro. Outro

dado de interesse refere-se ao contexto de crescente aproximação das formações sociais

locais com os eruditos e ilustrados que, com frequência cada vez maior, se lançaram em

expedições pelo território então desconhecido da América Portuguesa.

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