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O Corpo
Página 1
04.08.2013
ISSN: 2236-8221
Edição n. 32, de Maio Vitória da Conquista
ocorpoediscurso@gmail.com http://www.marcadefantasia.com/o-corpo-e-discurso.htm
O corpo é discurso
Nesta edição, O Corpo é discurso traz a cobertura do evento ―(RE)VISÕES DO FANTÁSTI-
CO: DO CENTRO ÀS MARGENS, CAMINHOS CRUZADOS‖, acontecido durante os dias 28 a 30
de abril de 2014. Além disso, o Corpo traz um artigo de Ederson Luís Silveira, da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, um artigo de Nirvana Ferraz Santos Sampaio, profes-
sora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB e notícias
ligadas ao universo acadêmico e da Análise do Discurso, no Brasil.
ISSN: 2236-8221
EXPEDIENTE DE O CORPO
Editores
George Lima
Nilton Milanez
Tyrone Chaves Filho
Organizadores
George Lima
Tyrone Chaves Filho
Editoração eletrônica
(MARCA DE FANTASIA)
Henrique Magalhães
CONSELHO EDITORIAL
Dr. Elmo José dos Santos
(UFBA)
Dra. Flávia Zanutto (UEM)
Dra. Ivânia Neves
(UFPA)
Dra. Ivone Tavares Lucena (UFPB)
Dra. Mônica da Silva Cruz
(UFMA)
Dr. Nilton Milanez
(UESB)
Dra. Simone Hashiguti
Jornal de popularização científica
Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco
COBERTURA DO EVENTO ―(RE)VISÕES DO FANTÁSTICO: DO CENTRO ÀS MARGENS, CAMINHOS CRUZADOS‖
Tendo como temática central
(Re)Visões do Fantástico: do centro às
margens, caminhos cruzados, o “II Con-
gresso Internacional Vertentes do Insólito
Ficcional‖, o ―V Encontro Nacional O Insóli-
to como Questão na Narrativa Ficcional‖ e
o ―XIII Painel Reflexões sobre o insólito na
narrativa ficcional‖ foram eventos aconte-
cidos concomitantemente que procuraram
discutir visões e revisões de abordagens
do e a respeito do discurso fantástico e
outros discursos adjacentes na literatura,
no cinema, no teatro, nas artes plásticas,
nos videojogos etc., cuja adjacência é
caracterizada pela presença do insólito
ficcional: fantástico(s), maravilhoso, es-
tranho(s), sobrenatural, absurdo, realismo
-Fantástico, realismo-Mágico, realismo-
maravilhoso, realismo-animista, ficção
científica, romance policial, romance de
mistério, horror, terror, pavor, etc.
(Re)Visões do Fantástico acon-
teceu do dia 28 a 30
de abril de 2014, no
Instituto de Letras da
Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, no
qual foram realizadas
conferencias, sessões
de comunicações e
lançamentos de livros
que configuraram
reflexões e discussões sobre o universo
fantásticos em diversas linguagens.
Entre comunicações em simpósio
apresentadas durante o evento (Re)
Visões do Fantástico, destacamos aqui as
ocorridas em Espaços, corpos e subjetivi-
dades insólitas e hor-
ríficas na literatura e
no cinema coordenado
por Marisa Martins
Gama-Khalil (UFU),
Nilton Milanez (UESB –
Vitória da Conquista) e
Cecília Barros-Cairo
(UESB – Vitória da
Conquista). Este sim-
pósio teve a finalidade de reunir pesquisas
que refletiram a respeito das formas como
o espaço e/ou os corpos figurativizados
nas narrativas fantásticas - literárias ou
fílmicas - agregados a um trabalho com a
subjetividade são capazes de fazer irrom-
per uma ambientação insólita. Neste sim-
pósio, ocorreram quatro sessões de co-
municação, as quais foram divididas entre
os dias 28/04/14 (segunda-feira) e
29/04/14 (terça-feira).
Em meio às comunicações das
sessões I e II, acontecidas na segunda-
feira, foram comunicadas Sanidade ou
loucura? O caso do finado Mr. El-
vesham, de H. G. Wells, apresentada por
Adilson dos Santos (UEL), A memória do
rosto criminoso no cinema e o discur-
so jurídico-biológico: mecanismos e
estratégias de controle na constitui-
ção de uma subjetividade infame, por
Cecília Barros-Cairo (UESB), Monstros
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de cima e de baixo: uma análise do cor-
po monstruoso nos filmes da Xuxa, co-
municada por Ceres Alves Luz (UESB), A
memória dos sujeitos em O Drácula, por
Jamille da Silva Santos (UESB), Corpo,
espaço e transgressão: o discurso do
horror na pornochanchada brasileira
dos anos 1980, exposta por Tyrone Couti-
nho Chaves Filho (UESB), O corpo do zum-
bi no cinema e o que essa produção
discursiva de horror fala sobre nós
na atualidade, por Renata Celina Brasil
Maciel (UESB) e Dor, horror e cruel-
dade no insólito ficcional: a abjeção
no conto A causa secreta de Macha-
do de Assis, apresentada por Mariana
Silva Franzim (UEL).
Referente às comunicações
das sessões III e IV, ocorridas na terça-
feira, foram transmitidas Corpo, sub-
jetividade e monstruosidade: a cons-
tituição da criança no filme O Orfanato,
apresentada por Aliúd Almeida (UESB),
Corpo, subjetividade e as possibilidades
discursivas no Gore: Análise de Two
thousand maniacs, de Herschell Gordon
Lewis de 1964, por Ueslei Pereira de Je-
sus (UESB), Discurso e sujeito de sexua-
lidade na materialidade fílmica de Mata-
dores de vampiras lésbicas, comunicada
por Mirtes Ingred Tavares Marinho (UESB),
Processos de virilização do corpo da
mulher violência e horror urbanos do
programa jornalístico baiano Na Mira,
por Bianca Santos Anjos de Oliveira
(UESB) e Medo líquido e crise de segu-
rança pública: o (re)orquestrar dos
corpos no videomonitoramento ostensi-
vo, exposta por Analyz Pessoa-Braz
(UESB).
Toda a programação ocorrida, a
arquitetura do evento, a equipe organiza-
dora e os resumos referentes aos traba-
lhos comunicados durante o evento (Re)
Visões do Fantástico podem ser acessa-
dos na versão digital do ―Caderno de Resu-
mos e Programação‖ do evento, o qual
encontra-se disponível ao clicar aqui.
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ENTRE SELFIES, CURTIDAS E SUBJETIVIDADES: SOBRE OS SUJEITOS CONTEMPORÂNEOS E O CUIDADO DE SI
Ederson Luís Silveira *
Michel Foucault é um pensador
cuja influência se expande cada vez mais
em diversas áreas do saber e isso talvez
se deva em grande parte ao fato de que os
textos do autor permitem olhares múlti-
plos e redirecionamentos que podem ser-
vir como ponto de partida para diversas
problematizações. Sua obra aponta para
modos de perceber diversos conceitos
como a história, o sujeito, a modernidade e
a questão do poder, entre outros. Seja a
partir da investigação do que torna possí-
veis os enunciados em determinada con-
juntura histórica ao invés de outros ou a
desnaturalização dos saberes sobre o
corpo, o direito e a vida dos seres huma-
nos em sociedade, suas obras trazem pro-
vocações que ampliam horizontes e mos-
tram que a reordenação dos saberes é um
processo de abertura para novos proble-
mas, novas perspectivas que leva a consti-
tuição de diferentes objetos e diferentes
saberes.
Em certo sentido, ler os livros de Foucault
é como passear pelo deserto. Paisagem
ora desoladora, ora magnífica, na qual nenhuma trilha se desenha a não ser aque-
la que o próprio caminhante cunha com
seus passos; lugar sem lugar onde nada
permanece. Mas não se trata do deserto
conceitual da fenomenologia, no qual toda
exuberância é miragem; trata-se de um
espaço à primeira vista monótono, onde a
ausência de marcas familiares nos faz,
muitas vezes, andar em círculos. No entan-
to, o deserto é a apoteose da luz: onde
tudo é visível e não há como se esconder.
Nem todo mundo está disposto a passeios tão inóspitos. Nenhuma reconciliação, ape-
nas batalhas: entre a palavra e a coisa, entre a história e a filosofia, entre o pen-
samento e o seu lado de fora, entre pode-
res e resistências, entre sujeito e si. Ne-
nhuma promessa, nenhuma redenção: ape-
nas perigos. [...] Nenhuma teleologia, ne-nhum otimismo: apenas desafios sempre
renovados. (MENDES JÚNIOR, 2008, p. 75)
No presente trabalho, pretende-
mos lançar luzes para algumas reflexões a
partir dos (possíveis) modos de subjetiva-
ção na atualidade a partir de Foucault. O
diálogo com outros autores, seja partindo
do autor mencionado, seja ampliando o
campo de análise será estabelecido no
sentido de somar considerações que ilu-
minem questões referentes ao campo
mencionado. Desse modo, atentando para
o estudo dos ―cuidados de si‖ em Fou-
cault, levaremos em consideração a
questão de que os comportamentos e
saberes referentes aos sujeitos advêm de
um poder disciplinar. Por isso, em Fou-
cault, os sujeitos podem ser dóceis ao
poder, assim como servir de instrumento.
Assim como o cuidado de si apareceria
como uma forma de conversão ao poder e
como uma forma ter controle sobre ele.
Neste contexto, a vida enquanto
objeto de cuidado aponta para uma
―operação‖ do sujeito em relação a ela,
em que se torna possível colocar à prova,
transformar-se, tornar-se outro. É a par-
tir destas técnicas de si que se torna
possível inferir como os sujeitos são pro-
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*Mestrando de Linguística pela Universida-
de Federal de Santa Catarina—UFSC, E-
mail: ediliteratus@gmail.com .
duzidos por um poder disciplinar, através
da nomeação daquilo sobre o qual as disci-
plinas investem: o desejo, o corpo os pen-
samentos, etc. De acordo com Muriel Com-
bes (2011), não existe nem alma nem corpo,
apesar das divisões operadas em diferen-
tes momentos da história, mas, condutas
subjetivas. Neste sentido que as técnicas
de dominação por si só não bastam para
constituir sujeitos, porque falta a conside-
ração, para o autor, das técnicas de si, e é
também a partir deste nível que se torna
possível perceber as relações entre poder
e a vida.
Dessa forma, em Combes (2011), a
análise do biopoder aponta para as técni-
cas de si, a mediação do sujeito, porque a
vida não é apenas alma ou apenas corpo, já
que é uma vida passível de condutas sus-
cetível de adotar práticas e direcionamen-
tos diferentes. O próprio Foucault reco-
nhece, a certa altura
talvez eu tenha insistido demais, quando
estudei os manicômios, as prisões, etc. nas técnicas de dominação. É verdade que
o que chamamos de ‗disciplina‘ é algo que
tem uma importância real nesse tipo de instituições. Mas não é senão um aspecto
da arte de governar em nossas socieda-des. (FOUCAULT, 2003, p. 171).
Estas questões destacadas por
Foucault merecem atenção sobretudo em
relação a forma como são constituídas as
subjetividades. Dessa forma, podemos
pensar que um cuidado de si revela, con-
forme já mencionamos, modos de olhar
para si e operar sobre sua vida na possibi-
lidade de transformá-la. Sendo a discipli-
narização dos corpos um tema recorrente
em Foucault aqui se pode destacar que ela
parte tanto de fora (governo dos outros –
e/ou efeito de uma contingência histórico-
social - sobre o sujeito e o sujeito enquan-
to efeito das relações de poder enquanto
feixe de relações) quanto do sujeito em
relação a si mesmo.
Assim, não se pode deixar de lado
a questão disciplinar, mesmo quando esta
passa a ser considerada um dos fatores
que nos permitem perceber a arte de go-
vernar. Se a disciplina sanciona atos,
―avalia os indivíduos com a verdade, a pe-
nalidade que ela põe em execução se inte-
gra no ciclo de conhecimentos dos indiví-
duos‖ (FOUCAULT, 2004. P. 162). É este
conhecimento que possibilita a exposição
dos indivíduos, o que os torna, ―fiscais de
si mesmos‖. Os comportamentos e sabe-
res referentes aos corpos, neste sentido,
advêm dessa produção do poder discipli-
nar. Algumas vezes, o poder disciplinar
está tão atrelado à vida social que se torna
difícil conhecer sua ordem de aparecimen-
to, porém, ele passa a ser percebido a
partir de seus efeitos nos corpos discipli-
nados.
Aqui se torna relevante destacar
que estamos em busca de provocações
que considerem uma ―história do presen-
te‖ tal como aquela sob a qual se assen-
tam os estudos de Piovezani (2004), Sar-
gentini (2004) e Milanez (2009), em que o
discurso é percebido a partir de seus fun-
cionamentos e seus efeitos na constituição
dos sujeitos. Dessa forma, partiremos aqui
do princípio norteador de que ―os modos
de subjetivação produzem sujeitos singula-
res e, portanto, mostram, por meio de
análises de discursos, os procedimentos
mobilizados para a produção dos sujei-
tos‖ (FERNANDES, 2012, p. 86).
Para Fernandes (2014), uma his-
tória crítica da subjetividade a partir dos
textos de Foucault aponta para subjetivida-
des que são determinadas pela exteriori-
dade assinalando assim transformações
históricas, sociais e culturais. Neste senti-
do, para o autor, o discurso passa a ser
percebido enquanto prática, já que provo-
ca, incita deslocamentos e nas materializa-
ções discursivas ocorre a mostra do outro
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―Os comportamentos e
saberes referentes aos
corpos, neste sentido,
advêm dessa produção
do poder disciplinar‖
enquanto exterior na produção da subjeti-
vidade. De acordo com Fernandes (2012, p.
85), portanto, os cuidados que recaem
sobre o corpo, os exercícios físicos, as
leituras, os ambientes de interação social
―constituem produções discursivas que,
sob a égide do cuidado de si, atuam na
produção da subjetividade‖. Como diversos
discursos apontam para (re)configurações
de saber sobre os sujeitos que incidem em
formas de subjetivação que apontam para
a exterioridade constitutiva das subjetivi-
dades, é preciso perceber o discurso co-
mo algo inteiramente distinto do lugar ―em
que vêm se depositar a se superpor, como
em uma espécie de inscrição, objetos que
teriam sido instaurados anteriormente. Os
objetos são construídos no discurso, não
preexistem à fala‖ (FOUCAULT, 1995, p.50).
Por isso, aqui cabe uma ressalva a que
―espécie‖ de história procuraremos mobi-
lizar: a história como terreno de desconti-
nuidades, não aquele ―conceito de História
que implica procedimentos envelhecidos e
cristalizadores, presos à ideia da continui-
dade, necessidade e totalidade e à figura
do sujeito fundador.‖ (RAGO, 2002, p. 2).
Podemos acentuar, assim, a im-
portância de recuperar o olhar de Foucault
que advertiu sobre a perda das multiplici-
dades, que encerra a História em concei-
tos prontos, eliminando a historicidade dos
fenômenos, que aponta para a ilusão dos
que a tem como objeto de saber, em que
parecia estar ligada a um contato com os
mortos, acreditando revelar o que ―de
fato‖ aconteceu (RAGO, 2002).
Inscrevemo-nos, portanto, levan-
do em consideração as ressalvas de Fou-
cault sobre o olhar para a história, no ter-
reno das descontinuidades. Pensar assim
implica entender que não existe ―a‖ histó-
ria, ou ―a‖ sociedade, mas uma multiplici-
dade de discursos enquanto práticas em
que o exterior constitui a subjetividade e
combater a noção de ―origem‖ porque
pensar na ―origem‖ seria sustentar a ver-
dade em solo firme, originário, linear e
inequívoco. Cabe lembrar a partir de Fou-
cault e de sua intervenção no debate com
o historiador Jacques Léonard, em 1980, a
necessidade de refletir sobre estas ques-
tões, pois
É preciso desmistificar a instância global
do real como totalidade a ser reconstruí-
da. Não existe ―o‖ real que nós reencon-traríamos se falássemos de tudo ou de
certas coisas mais ―reais‖ do que outras, e que nos faltaria em proveito de abstra-
ções inconsequentes, se nos limitássemos a fazer aparecer elementos e outras rela-
ções. Deveríamos talvez interrogar o prin-
cípio, frequentemente implicitamente acei-
to, de que a única realidade à qual a histó-
ria deveria pretender, é a própria socieda-
de. Um tipo de racionalidade, uma maneira
de pensar, um programa, uma técnica, um
conjunto de esforços racionais e coorde-
nados, objetivos definidos e perseguidos,
instrumentos para atingi-lo, etc., tudo isso é o real, mesmo se não pretende ser a
própria ―realidade‖, nem ―a‖ sociedade
inteira. E a gênese dessa realidade, desde
que se faça intervir os elementos perti-
nentes, é perfeitamente legítima. (...) Isto é
o que o historiador construído pelo senhor
Léonard [denominado por Foucault de ca-
valeiro da exatidão] não entende (escuta),
no sentido estrito do termo. Para ele, não
há senão uma realidade que é, ao mesmo
tempo, ―a‖ realidade e ―a‖ sociedade.
(FOUCAULT, 2003, p. 15)
Marcados por esta perspectiva,
de que não há ―a‖ história, ―a‖ realidade,
mas subjetividades produzidas pelo exteri-
or, em que os enunciados em circulação na
sociedade vão inscrevendo-os nas rela-
ções de poder e vão sendo discursivamen-
te produzidos, revelando posições–sujeito
que integram práticas de exercício de po-
der inseridas em ambientes de tensão.
Estas relações implicam na produção das
subjetividades. Cabe aqui destacar que em
Foucault, o poder ―está em toda parte, não
porque englobe tudo e sim porque provém
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de todos os lugares‖ (FOUCAULT, 1985, p.
89). As formações e transformações his-
tóricas podem ser reveladas através da
análise da dispersão dos discursos que
implicam e determinam a produção das
subjetividades. Estamos no terreno das
movências e descontinuidades. Por isso,
antes de prosseguir aqui vai uma ressalva:
não se trata de apontar para contextos
fixos de subjetivação, mas para possibili-
dades de análises a partir da conjuntura
social, histórico e cultural em que nos
encontramos.
Após estas reflexões anterior-
mente mencionadas, cabe aqui destacar as
redes sociais enquanto lugares de entrete-
nimento, em que os sujeitos falam de si
para o outro e constituem identidades num
tempo marcado prioritariamente pela
cultura da imagem, em que todos são
transformados ―em platéia ou em multidão
de consumidores da (aparente)
subjetividade alheia‖ (KEHL, 2004, p.66).
Neste contexto, os discursos também
passam a ser considerados ―enquanto
enunciados materialmente existentes (...)
proposições verdadeiras e constituem
princípios aceitáveis de
comportamento.‖ (FOUCAULT, 2004, p. 389
-390). Assim,
na tentativa de discutir essas questões, os
estudos alicerçados no solo
epistemológico da análise de discursos
tem-se voltado de forma constante para o
exame de diversos enunciados que
circulam socialmente e integram-se a
outros enunciados, (nas palavras de
Foucault) como um nó em uma rede [...]
erigidos por meio dos discursos na
superfície instável da língua(gem).
Esquadrinhar esses discursos pode ser de
utilidade para interrogarmos sobre quem
somos nós hoje, de acordo com o que já
inquietava as teorizações foucaultianas,
perscrutando genealogicamente a
preocupação nietzschiana do como se
chega a ser o que é. (VIEIRA & SILVEIRA,
2014, no prelo, grifo dos autores).
Chama atenção, no contexto
mencionado, a emergência de dois
fenômenos. A presença frequênte dos
chamados selfies na cultura
contemporânea e a obsseção de muitos
usuários em conquistar seguidores e
sujeitos caracterizados a partir de uma
função: curtir postagens. Somando a isso
um olhar mais atento para outras redes
como o twitter (em que a popularidade de
um membro se estabelece a partir da
frequência das retwittadas de suas
postagens ou do número de seguidores)
podemos perceber outros modos de
constituir subjetividades: através da
alteridade. Em entrevista a revista
eletrônica ―Trópico‖ (FELDMAN, 2007), a
antropóloga argentina Paula Sibilia
defende que na atualidade haveria um
deslocamento dos eixos em torno dos
quais as subjetividades são construídas, as
quais tenderiam a uma gradativa
exteriorização do eu e a uma construção
de si alterdirigida. De acordo com a
autora, proliferara-se cada vez mais um
tipo de subjetividade que parece carecer
da confirmação do olhar alheio para
consumar a sua existência: um eu que
precisa aparecer para ser.
Para a autora, temos na contem-
poraneidade a presença de relações entre
as novas formas de interação a partir da
web que apontam não para a propagação
de uma obra de si através do reconheci-
mento das singularidades dos sujeitos,
mas estar ali, onde outros podem reconhe-
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“A presença frequênte
dos chamados selfies na
cultura contemporânea e
a obsseção de muitos
usuários em conquistar
seguidores e sujeitos
caracterizados a partir de
uma função: curtir
postagens”
cer e legitimar a existência daquele que se
exibe. A internet hoje, sobretudo as redes
sócias, para a autora, atuariam como fer-
ramentas auxiliares na recriação de si
mesmo. Desse modo, personalidades di-
versas podem ser criadas a disseminadas
a espera da legitimação dos comentários-
resposta aos enunciados verbais e imagé-
ticos ou sincréticos que são apresentados
online nas postagens. Para ela, a persona-
lidade subjetiva construída na net objetiva
a exposição direcionada à visibilidade dos
outros usuários. Dessa forma, em seu
livro ―O show do eu‖ (SIBILIA, 2008a), a
presença do eu se dá a partir da busca
incessante por tentar ―ser alguém‖ em
relação à alteridade legitimadora.
Assim, para Riesmam (1995) essa
transformação de caráter – do que se é
para o que se quer ser – ocorre no entor-
no da influência dos meios de comunicação
de massa e do consumismo mercadológico
atual. Há uma mudança de eixo na constru-
ção de quem se é de introdirigido para
alterdirigido. Se antes a subjetividade foi
percebida a partir de uma solidez interna
pessoal e privada, o que vale para ela (e
para Foucault, diga-se de passagem) são
os efeitos do exterior sobre a produção de
subjetividades. Para ela, valem os efeitos
que esta personalidade criada são capazes
de provocar no outro ―pois sob o império
das subjetividades alterdirigidas, o que se
é deve ser visto – e cada um é aquilo que
mostra de si‖. (SIBILIA, 2008a, p.235). Por
isso que para a autora, os modos de cons-
trução do ―eu‖ e as bases sobre os quais
se sustenta este edifício mudaram pela
necessidade de tornar público algo que
deveria ser privado.
Nessa nova perspectiva, a vida e as rela-
ções ganham um novo sentido e a pessoa
só existe se aparece para alguém. ―Uma
das principais manifestações dessa virada é um crescente desejo de ser visto, uma
vontade de se construir como um eu visí-
vel, como um personagem que os outros
podem ver e, graças a esse olhar recon-
fortante, confirmam a
existência de quem se
exibe‖, analisa. Assim,
o homem moderno tem uma personalidade
alterdirigida ou orien-
tada para o olhar dos
outros. ―Isto não acon-tece apenas na Inter-
net, é claro, mas nas
diversas práticas con-temporâneas onde
impera esse desejo
desesperado de que os demais nos enxerguem
e nos observem para que possamos exis-
tir‖, explica. (SIBILIA, 2008b, p.10)
Parece que na constituição das
subjetividades nos tempos de hoje cabe a
consideração de Mick Jagger (1993, p.36):
―Desde que minha foto esteja na primeira
página, não quero saber o que escreveram
sobre mim na página noventa e seis‖. Isso
aponta para a questão do cuidado de si, já
que o sujeito age adotando parâmetros de
comportamento já estabelecidos pela
exterioridade de si, copiando-os. Assim, os
selfies, o twitter e a busca por seguidores
se naturalizam enquanto indícios de
comportamento e a enunciação do sujeito
sobre si passa a ser vista com as vestes
de uma espécie de ―confissão‖, em que se
diz ou age de acordo com os
comportamentos previstos, visando a
aprovação do grupo. Max Weber em algum
momento mencionou que o homem está
preso a uma teia de significações que ele
mesmo teceu. Foucault pode servir para
Página 8 O Corpo
“[...] Assim, os selfies, o
twitter e a busca por
seguidores se naturalizam
enquanto indícios de
comportamento e a
enunciação do sujeito
sobre si passa a ser vista
com as vestes de uma
espécie de
„confissão‟ [...]”
lançar luzes a esta situação, incentivando
com seus escritos a tessitura de novos
olhares sobre os modos de subjetivação na
contemporaneidade, em que se percebam
os sujeitos e sua relação com o poder, a
possibilidade de dizer não à lei disciplinar
que torna os corpos dóceis e como os
feixes de poder vão se instaurando
enquanto normas de comportamento na
sociedade a partir de atos repetidos (e
repetíveis).
Sobre essa construção de gestos
e rostos, podemos afirmar que se pode
perceber nela algo de vivo, vibrante e
fecundo, guiado pela utilidade de
legitimização de corpos para que por
debaixo das camadas das linhas
descontínuas dessas subjetividades
alterdirigidas se possa ver a relação do
pesquisador com seu objeto de estudo tal
qual menciona Antoine de Baecque (2014)
sobre a relação de Foucault com a pintura:
O que me agrada com a pintura, reconhece
ele, é que se é verdadeiramente obrigado a vê-la. Então aí, é o meu descanso. É uma
das raras coisas sobre as quais escrevo
com prazer (...). (BAECQUE, 2014, p. 269) E um dos mais belos textos de Foucault, ―La
pensée du Dehors‖ sobre Maurice Blanchot, publicado em Critique, em 1966
(...) [ele diz]: “Ser atraído não é ser convidado pela atração do exterior; é
antes experimentar no vazio e na
necessidade, a presença visual do exterior. Como esta, pura atração aberta aos
sentidos, não seria essencialmente negligente – deixando as coisas serem o
que elas são, deixando o tempo passar e
voltar, deixando os homens avançarem
para ela – visto que ela é o exterior infinito, visto que nao há nada que caia fora
dela, visto que ela desliga na pura dispersão todas as figuras da
interioridade? (BAECQUE, 2014, p. 275)
A partir das palavras de Foucault,
que sejamos instigados a olhar para essas
novas configurações de subjetividades
(com matizes de cor tal qual a pintura)
constituídas na relação com a
exterioridade e que sejamos afetados
pelos caminhos investigativos em busca da
escavação das descontinuidades que
possam emergir. Dessa forma, não se
trata de fixar os sujeitos, mas em partir
das movências de sua constituição e da
subjetividade pelos discursos através das
formações e transformações históricas
bem como as implicações e determinações
da produção das subjetividades.
Que tal aproximarmos as lentes
de nossas câmeras para podermos
fotografar também o que está por trás
deste voyeurismo desmedido, em que a
proliferação de discursos sobre a vida
privada articula-se com o reconhecimento
de confidências e revelações como
mecanismos inequívocos de constituição
dos sujeitos? Entre o dizer de si, sobre si e
o olhar do outro sobre mim está um
terreno de investigações que podem
―levantar o tapete‖ do que está por trás da
naturalização dos saberes sobre si. Se o
cuidado aparece como alternativa ao
poder que incinde sobre os corpos e dos
corpos em relação aos outros e a si,
porque há tantos indícios, nas redes
sociais de práticas que visem a
reprodutibilidade de comportamentos
naturalizados ao invés do cuidado de si
situado enquanto oposição ao controle ?
Por trás do apareço, logo existo se
escondem camadas de descontinuidades a
espera de um investigador atento que
esteja disposto a correr o risco de andar
em círculos no deserto, sem conforto ou
redenção. Apesar disso, poder-se-á sair
enriquecido, já que o deserto é a apoteose
da luz: onde tudo é visível e não há como
se esconder.
Referências:
ALMEIDA, F. Q. Pedagogia Crítica da Educa-
ção Física no Jogo das Relações de Poder.
In: Revista Movimento, Porto Alegre; v. 12,
n. 3, p. 141-64, set./dez. 2006.
BAECQUE, A. ―As palavras e as imagens‖.
Página 9 O Corpo
“Entre o dizer de si,
sobre si e o olhar do
outro sobre mim es-
tá um terreno de in-
vestigações [...]”
In: ARTIÈRES, P. et. al. (orgs.) Michel Fou-
cault. Tradução: Abner Chiquieri. Rio de
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Página 10 O Corpo
PALAVRAS COM EFEITO NEOLÓGICO NA PARANOIA: O CASO SCHREBER (FREUD, 1911)
Nirvana Ferraz Santos Sampaio *
1 Introdução
Este artigo apresenta consider-
ações sobre o efeito neológico que deter-
minadas palavras apresentam em
―Memórias de um doente dos nervos‖,
Schreber (1903). Para tanto, diferen-
ciamos o estatuto que o neologismo rece-
be em lexicologia nas formações oníricas
etc. do estatuto que o neologismo recebe
no âmbito da escrita delirante. Dessa for-
ma, questionamos: Qual o papel do neolo-
gismo na escrita delirante de Shreber?
Uma possível resposta: sintoma/suporte -
o neologismo acontece no delírio e tem
relação com a ideia delirante em desenvol-
vimento. Dessa forma, os ―neologismos‖
circundam as representações delirantes e
significantes em trânsito no delírio, ameni-
zando a angústia de Shreber.
2 Percurso teórico Metodológico
Para a realização deste estudo,
consideramos como ponto de partida o
texto, de Freud (1911), ―Notas psicanalíticas
sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranóia‖ (dementia paranoids). Freud
(1911) demonstra que não há distúrbio ou
déficit de inteligência na psicose. Dessa
forma, ele considera o delírio como uma
tentativa de cura, uma reconstrução, cujo
objetivo é o de organizar uma defesa con-
tra o que pode suscitar a angústia. Freud,
em 1915, no texto ―O inconsciente‖, formula
que o psicótico toma as palavras como
coisas. Assim, compreende-se o delirante
como um sujeito habitado possuído pela
linguagem1. O Outro2 do psicótico, por não
conter o Nome-do-Pai, a lei, ―apresenta-se
como a figura que dele goza como de um
objeto que lhe pertence. Tal é o caso do
Deus de Shreber.‖ (cf. Quinet, 1990, p. 21).
Assim, na psicose acontece o mecanismo
que Lacan chamou de foraclusão do Nome
-do-Pai, sendo este anterior a qualquer
possibilidade de recalque, que, para se
realizar, exige que antes tenha havido um
reconhecimento do elemento a ser recal-
cado.
Ao retomar Freud (1911), verifi-
camos que a
investigação psicanalítica da paranoia não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar, ainda que de forma distorcida, justamente o que os demais neoróticos escondem como seg-redo. Dado que os paranoicos não podem
ser impelidos a vencer suas resistências
internas e, de toda forma, dizem apenas o
que querem dizer, precisamente no caso
dessa afecção o relato escrito ou a histó-
ria clínica impressa pode funcionar como
substituto do conhecimento pessoal do
doente. (itálico nosso)
Dessa forma, ao revelar em
dizeres, em alucinações psicóticas, é
possível tecer, tal como Quinét (1990),
que se pode acentuar a psicose como
uma estrutura clínica, uma ―estrutura
que se revela no dizer do sujeito […]
acentuar que na psicose, assim como na
neurose, trata-se da estrutura da lin-
Página 12 O Corpo
* Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas; professora titular de Linguística na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-
UESB; professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UESB. Lider do Grupo de Pesquisa e Estudo em Neurolinguística
CNPq/UESB. E-mail: nirvanafs@terra.com.br 1 Visto que, segundo Quinet (1990), na psicose ―o Outro fala, aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror, pânico, exaltação‖. 2 O Outro (Autre, em francês) é o termo utilizado por Lacan para definir um lugar simbólico, o tesouro dos significantes, o campo da linguagem. O Outro
não é o semelhante, distinguindo-se do parceiro imaginário, ou seja, o outro. Esse termo foi usado pela primeira vez no Seminário 2, o eu na teoria de
Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955), distinguindo-o do outro.
“[…] os “neologismos”
circundam as repre-
sentações delirantes e
significantes em trânsi-
to no delírio, amenizan-
do a angústia de
Shreber”
guagem, ou melhor, da relação do sujeito
com o significante‖. As alucinações são
intensificadas no verbo e não somente de
um distúrbio dos órgãos do sentido. As-
sim, a cadeia significante se impõe ao
sujeito em sua dimensão de voz, as aluci-
nações na psicose podem acontecer,
segundo Lacan3, em duas ordens: (i) na
ordem do código e (ii) na ordem da men-
sagem. Em (ii), há o destaque das men-
sagens interrompidas que revelam a
quebra de cadeias significantes e, dentre
os fenômenos que ocorrem em (i), en-
contram-se:
1 - Os neologismos – não apenas de for-
ma, palaras novas, mas também de em-
prego, isto é, palavras do código em-
pregadas de forma particular.
2 - Fenômenos em que o vazio da signifi-
cação predomina, ou seja, em que o sig-
nificante aparece monotonamente sem
sentido algum.
3 – A intuição – que é um efeito de signif-
icante em que o vazio linguístico da sig-nificação é substituído por uma certeza.
(QUINET, 1990, p. 20)
Esses fenômenos de código
testemunham, segundo Quinet (1990), a
separação entre o significante e o signifi-
cado por falta do ponto-de-basta, o Nome
-do-Pai. Lacan apresenta o esquema L,
que é uma forma simplificada do estádio
do espelho, e a partir do qual podemos
inferir que o psicótico estaria numa ten-
tativa de constituição do eixo a-a‘, que é
um eixo do imaginário, em uma identifi-
cação imediata com o outro, sem a me-
diação de um Outro, barrado, o qual apon-
taria para um sujeito dividido.
Uma identificação imediata, que
em nível imaginário, vai sustentando o
sujeito na sua realidade, evitando, dessa
forma, que ele surte. Nesse sentido, Quinet
(1990) faz referência às bengalas
imaginárias, afirmando que
Por falta de referência simbólica o sujeito psicótico funciona no registro imaginário,
onde o outro é tomado como espelho e
modelo de identificação imediata. [...] O
psicótico encontra-se, muitas vezes, antes
de um primeiro surto, numa relação dual
com o duplo imaginário. [...] O sujeito
psicótico é, pois, levado a servir- se de
bengalas imaginárias que não lhe dão apoio
quando ele tropeça no buraco da signifi-
cação ausente. (QUINET, 1990, p. 21-22).
Dessa maneira, o que mantém o
psicótico estabilizado, ou pelo menos fora
da crise, são as bengalas imaginárias,
sustentadas no eixo narcísico, bengalas
das quais ele se dispõe como uma forma
de se relacionar consigo mesmo e com o
mundo. Na medida em que há uma dis-
solução imaginária, onde essas bengalas
não mais servem de sustentação para o
sujeito, tem-se a presentificação do real e
consequentemente o desencadeamento da
crise psicótica.
Observarmos que o que auxilia o
sujeito para que ele não se descompense e
o que o estabiliza na ―pós- crise‖ são os
manejos, antes de uma crise, e o rema-
nejo, após a crise, em nível imaginário que
são feitos pelo sujeito restabelecendo o
duplo especular do estádio do espelho.
Compreendemos que, para
discutir a elaboração de neologismos na
escrita de Schreber, o que nos conduz
neste trabalho, é necessário considerer
que o estatuto que a palavra com efeito
neológico (PINCERATI, 2009) tem não é o
mesmo estatuto que recebe em lexicolo-
gia. Segundo Dubois (1973:430), a neologia
é o processo de formação de novas uni-
dades léxicas. O neologismo ―é toda pa-
lavra de criação recente ou emprestada
há pouco de outra língua, ou toda acepção
de uma palavra já antiga‖. Por certo, o
termo "neologismo" vem de neologia, do
grego: ne(o)- = novo + -logia = ciência e
significa palavra recém-criada ou palavra
com um novo significado. Desse modo,
pode-se dizer que a língua está sempre
em processo de mudança linguística: al-
Página 13 O Corpo
3 Conferir Quinet (1990, p.19).
“As alucinações são
intensificadas no
verbo e não somente
de um distúrbio dos
órgãos do sentido”
gumas palavras caem em desuso, assim
como novas unidades léxicas vão sendo
incorporadas no léxico. No texto de
Schreber, os neologismos não podem ser
isolados do delírio em que ocorre, ou
seja, são circunscritos a fala/escrita de
Shreber, em meio ao quadro delirante e
só podem ser encontradas a partir da
análise dos significantes e das ideias
delirantes em trânsito no delírio, não
sendo (necessariamente) passíveis de
serem incorporados a um sistema
linguístico. Visto que se trata de um meio
do psicótico habitar a linguagem
(PINCERATI, 2013).
Em se tratando da escrita de
Shreber, verifica-se a tentativa de recon-
strução do laço social e remissão do
sintoma, ele escreve e, em sua escrita,
surgem os significantes com efeitos neo-
lógicos.
Para a realização deste estudo,
partimos da leitura das traduções de 1)
―Memórias de um doente dos nervos‖,
Schreber (1903), e 2) ―Notas
psicanalíticas sobre um relato autobi-
o g r á f i c o d e u m c a s o d e
paranóia‖ (dementia paranoides), Freud
(1911). Dessa forma, há, de um lado, a
recuperação do conhecimento de Freud
sobre sobre a psicose, e, de outro lado, a
busca dos efeitos neológicos de signifi-
cantes usados por Schreber. Assim, o nos-
so material primordial foi a consulta, a
leitura e o resumo desses textos que per-
mitiram a construção do trabalho que deu
origem a este artigo.
3 Três significates: alguns resultados e
discussão
Nesta sessão, apresentaremos o
caso Schreber, a biografia e a história
clínica, a partir do olhar de Freud, e
discutiremos a partir de três significantes
presentes no seu delírio a diferença entre
neologismo e efeito neológico.
4.1 Sobre Shreber
Daniel Paul Schreber, nasceu em
25 de julho de 1842, em Leipzig, Alemanha.
Schereber é acometido por três crises, ao
longo da sua vida e morre em 14 de abril de
1911, perturbado e intratável, apresentando
sintomas de insuficiência cardíaca.
Schreber considera que seus
dois primeiros internamentos ocorreram
por ―excessiva tensão mental‖, resultante
do ―fardo muito pesado de trabalho‖ (esta
queixa está associada ao segundo inter-
namento) que carregava sobre os om-
bros. Entretanto, antes de assumir a re-
sponsabilidade do cargo de Presidente de
uma Divisão da Corte de Apelação, relata
que já havia tido sonhos relevantes, como
aquele que teve, segundo Freud (1911, p.
18), no qual lhe ocorreu ― ‗a ideia de que
deveria ser realmente bom ser uma mul-
her se submentendo ao coito no ato da
cópula‘ (p.36)‖. Esse sonho é determinan-
te na análise de Freud sobre o caso.O
Dr. Flechsig redigiu, após o primeiro in-
ternamento, um relatório considerando
que Schreber possuía quadro grave de
hipocondria. Schreber relatou nas Memó-
rias que, nesse momento, não houve
qualquer contato com o sobrenatural.
Shreber acusa Flechsig de ―assassino da
alma‖ e inúmeras vezes gritou ―pequeno
Flechsin‖. Em seguida se agravou, tor-
nando-se mais próximo da maneira como
ficou por mais tempo (delírios engenho-
sos envolvendo religião e questões sex-
uais). Esse desenvolvimento do quadro
clínico foi consolidado em relatórios do
Dr. Weber (diretor do Asilo de Sonnen-
stein).
No final do segundo internamen-
to, a partir do início de 1899, os relatórios
asseveravam melhora, indicando que o
paciente tinha condições de se relacionar
normalmente em sociedade e de existir de
Página 14 O Corpo
“[…] ele escreve e,
em sua escrita,
surgem os signifi-
cantes com efeitos
neológicos”
forma autônoma. Quando Schreber
moveu ação judicial para recobrar sua
capacidade civil, Dr. Weber posicionou-se
contra (embora reconhecendo as quali-
dades acima mencionadas). Em 1902, e
apesar de que nunca haja negado o
conteúdo de suas ideias principais (ele
negava a condição de doente mental),
Schreber obteve êxito no Judiciário.
O delírio fundamental de
Shreber era a emasculação (transformar
-se em mulher). Para Freud, deve-se
investigar os impulsos da mente que
causam o delírio, bem como a história de
seu desenvolvimento4 e não somente o
que se exaure no produto do delírio.
Para Dr. Weber, o delírio teve como mo-
tor a ambição, do paciente, de ser o Re-
dentor da humanidade, e que o meio, para
isso, era a sua emasculação. E essa
análise pareceu ser conclusiva sobre o
caso.Entretanto, o estudo das Memórias
aponta também para a fantasia de se
transformar em mulher (inclusive em um
sonho que teve antes do primeiro interna-
mento), e o papel de Redentor ficaria em
plano secundário. Dessa forma, o delírio de
emasculação tinha como propósito
(contrário à Ordem das Coisas) o seu
abuso sexual por outras pessoas e apenas
depois veio relacionar-se com a sua fe-
cundação por Deus e com a subsequente
criação de uma ―supercivilização‖ humana
em harmonia com a Ordem das Coisas.
4.2 Sobre o delírio e os efeitos neológi-
cos de três significantes
De acordo com Freud (1911), o
sistema delirante exposto nas Memórias de
Shreber não segue uma ordem clara, o que
exige certo esforço para organizar as
ideias. Dessa forma, é necessário achar
‗método‘ nessa ‗loucura‘ (Freud, 1911, p. 29),
apresentar os pontos de vista de Schreber
sobre ―os nervos, a beatitude, a hierarquia
divina e os atributos de Deus, em sua
aparente (delirante) conexão‖ (FREUD, 1911,
p.29). Os nervos do corpo – estruturas
extraordinariamente finas – contêm a al-
ma humana. Homens são compostos de
corpos e nervos finitos, ao passo em que
Deus é formado apenas por nervos infini-
tos e eternos. Quando os nervos de Deus
assumem qualquer outra forma material,
são chamados de raios.Quando um
homem morre, seus nervos sofrem a be-
atificação (processo de purificação que
consiste em uma sensação de voluptuo-
sidade sexual) antes de se reunirem nova-
mente com Deus. Nessa purificação, as
almas aprendem a língua básica, que é
falada por Deus: um alemão vigoroso e um
tanto arcaico.
Para Schreber havia, também,
um Deus superior e outro inferior (Ariman
e Ormuzd) ambos independentes e em
conflito. O primeiro era mais ligado aos
povos da raça ariana, e o segundo, aos
povos semitas.Schreber afirma que, até
antes do segundo episódio, nunca se havia
convencido plenamente da existência de
Deus. Com base nisso, ele sustenta que
não poderia ter delírios de que se comuni-
cava com Deus quem não tinha firme
crença nele.
Sigmund Freud conclui que,
mesmo após sua redefinição religiosa,
ainda existia o Schreber de crença incer-
ta.Para Freud, Schreber explicou que um
homem com intensa atividade nervosa
pode atrair os nervos de Deus, dos quais
não se pode libertar facilmente, e que foi
isso que ocorreu no seu caso. Confirmou
que, como Deus lidou por muito tempo
apenas como os mortos, deixou de com-
preender os homens vivos. Dessa forma,
foi por essa incompreensão que Deus
Página 15 O Corpo
4 Há, dessa forma, um delírio de perseguiçãoo sexual transformado em um delírio de grandeza religiosa. Nesse delírio, o perseguidor, primeiramente,
era o Dr. Flechsig e, posteriormente, substituído pelo próprio Deus. (cf. FREUD, 1911, p.25)
“Homens são compos-
tos de corpos e nervos
finitos, ao passo em que
Deus é formado apenas
por nervos infinitos e
eternos”
tomou Schreber por idiota e lhe subme-
teu a severas provações.
Freud demonstra que esse Deus
parecia incapaz de aprender qualquer
coisa por experiência. A indignação de
Schreber era tanta, que se punha a ridic-
ularizar Deus, ressaltando que ele era o
único que tinha tal prerrogativa. Dessa
maneira, Schreber encara seu problema
como a luta entre ele e Deus. Schreber
lhe demonstrava reverência, eviden-
ciando uma relação bastante conturbada
entre os dois, contraditoriamente.O
estado de beatitude, para Schreber, está
em estreita vinculação à voluptuosidade.
Se os raios de Deus, ao invadirem o cor-
po de Schreber, perceberem que ele está
experimentando voluptuosidade, toda a
hostilidade cessará. Tem-se, como re-
sultado das alterações em Schreber após
o segundo internamento, que, de homem
sexualmente ascético e ―descrente com
referência a Deus‖ (Freud, p. 43), passou
a demonstrar inabalável crença e
devoção à voluptuosidade. Contudo, não
apenas sua crença era específica, mas
sua sexualidade era, acreditava
Schreber, a de uma mulher, mulher de
Deus. No sistema de Schreber, sua trans-
formação em mulher e sua relação fa-
vorecida com Deus são absolutamente
dependentes de sua atitude feminina para
com Deus.
No delírio de Schreber, há a
presença da ambivalência diante do Deus
Pai, o que pode confirmar a ideia freudiana
de que Deus seria o representante do pai,
no caso Schreber. Visto que Schreber, ao
mesmo tempo em que descreve atributos
excepcionais de Deus e sua hierarquia
divina, afirma que todo o seu poder pode
ser abalado por uma falha na Ordem das
Coisas. Deus, dessa forma, é enfraquecido
quando homens especiais, como o próprio
Schreber, exercem poder atrativo sobre
os raios divinos. Devido a essa atração,
Deus perde os raios dos quais é con-
stituído e se enfraquece. Outra fraqueza de
Deus é não compreender os homens vivos,
pois apenas se comunica com os mortos.
Dessa forma, chega-se a hipótese de que
Deus, no delírio, representava o pai de
Schreber.
A fantasia feminina, que desper-
tou uma oposição tão violenta no paciente,
tinha as suas raízes num anseio, intensifi-
cado até um tom erótico, pelo pai e pelo
irmão. Esse sentimento, na medida em que
se referia ao irmão, passou, por um pro-
cesso de transferência, para o médico,
Flechsig; e quando foi devolvido ao pai,
chegou-se a uma estabilização do conflito.
(FREUD, 1911). Assim, Freud conclui que o
delírio de se haver transformado em mul-
her (desejo homosexual) nada mais era do
que a realização do sonho que teve antes
de mudar-se para Dresden, apesar de ter
lutado contra essa ideia no início. Abaixo,
apresentamos, como amostra, três neol-
ogismos retirados do texto de Schreber,
vejamos:
―Neologismo‖ 1. Nervo5
Deus é, desde o princípio, apenas nervo e
não corpo, portanto algo aparentado à alma humana. Os nervos de Deus, contudo, não existem em número limitado,
como no corpo humano, mas são infinitos
ou eternos. Possuem as propriedades
inerentes aos nervos humanos elevadas a uma potência que ultrapassa tudo o que o
Página 16 O Corpo
5 Ao examinar o dicionário Aurélio (2003), um dos dicionários de uso da língua portuguesa mais consultados, pode-se verificar abalizadas as seguintes
acepções para Nervo - s.m 1. Cada um dos filamentos que servem de órgãos à sensação e ao movimento animal; 2. Tecido fibroso e esbranquiçado,
situado na extremidade dos músculos; 3. Nome dado a vários ornatos e molduras; 4. Cada uma das fibras ou veios das folhas e das pétalas; 5. Cada uma
das tiras de pele, correias, tripas enroladas ou cordas transversais ao dorso, em volta das quais passa o fio da cosedura e que asseguram, assim, a
solidariedade entre o corpo do livro e os planos na encadernação clássica; 6. Cada uma das saliências que se encontram na lombada da cobertura; 7.
Principal agente; coisa essencial; Robustez; energia; 9.Pênis.
Visto que Schreber, ao
mesmo tempo em que
descreve atributos ex-
cepcionais de Deus e
sua hierarquia divina,
afirma que todo o seu
poder pode ser abalado
por uma falha na Ordem
das Coisas
homem possa conceber. Têm, em particu-
lar, a capacidade de se transformar em
todas as coisas possíveis do mundo cri-ado; nesta função chamam-se raios e
nisto consiste a essência da criação divina. Entre Deus e o firmamento existe
uma relação íntima. Não me atrevo a decidir se se deve afirmar diretamente
que Deus e o firmamento são uma e a
mesma coisa ou se é necessário repre-
sentar o conjunto dos nervos de Deus
como algo situado além e aquém das
estrelas e por conseguinte as nossas
estrelas e em particular o nosso Sol co-
mo meras estações através das quais o poder criador milagroso de Deus percor-
re o caminho até a nossa Terra (eventualmente até outros planetas hab-
itados). (SCHREBER, 1903, p. 29. Itálico
nosso.)
Na escrita de Schreber,
cerca de 400 ocorrências da forma ner-
vo aparecem em 424 páginas do livro. Em
muitas dessas ocorrências o significante
nervo é usado como sinônimo de alma
ou raio, na medida em que estes são os
‗nervos de Deus‘ e Deus é puro nervo e
não corpo. Os nervos do homem sobre-
vivem à sua morte e são o substrato das
almas, como se verifica no excerto aci-
ma. O uso desse significante com esses
sentidos não são abalizados nos
dicionários de uso da língua portuguesa,
como pode ser observado, por exemplo,
nas acepções apresentadas no dicionário
Aurélio, na nota 7, deste artigo. Esse signif-
icante é utilizado também em outras ex-
pressões neológicas como ―Neologismo‖
2: ―língua dos nervos (vozes interior-
es)‖ (SCHREBER,1903, p. 51), ou como se
observa no fragmento abaixo:
Além da língua humana habitual há ainda
uma espécie de língua dos nervos, da qual, via de regra, o homem não é consciente.
Em minha opinião, a melhor maneira de ter uma idéia disto é recordar os procedimen-
tos pelos quais o homem tenta gravar na memória certas palavras numa determina-
da seqüência, como por exemplo quando
um estudante decora uma poesia que pre-
cisa recitar na escola ou um padre decora
o sermão que tem de dizer na igreja. As
palavras em questão são então repetidas
cm silêncio (como em uma oração silenci-
osa que do púlpito se exorta os fiéis a
fazerem), isto é, o homem incita seus ner-
vos a induzirem as freqüências vibratórias
correspondentes ao uso das palavras em
questão, ao passo que os instrumentos
próprios da linguagem (lábios, língua,
dentes, etc.) não são postos em movimento
ou o são apenas casualmente.
O uso desta língua dos nervos, em con-
dições normais (de acordo com a Ordem
do Mundo), depende naturalmente apenas
da vontade das pessoas de cujos nervos se
trata; ninguém pode por si obrigar um homem a se utilizar desta língua dos ner-vos. Mas no meu caso, desde a mencionada
reviravolta crítica em minha doença ner-
vosa, ocorre que meus nervos são postos em movimento a partir do exterior, e isto incessantemente, sem interrupção.
(SCHREBER, 1903, p. 29. Itálico nosso.)
Na escrita de Schreber, a
língua dos nervos6 (língua fundamental e
língua dos raios) é a língua falada por
Deus e suas instâncias intermediárias
(em especial pelas vozes). O autor con-
sidera essa língua como um alemão arcai-
co, mas vigoroso, elegante e simples, que
se caracteriza por uma grande riqueza de
eufemismos e pelo hábito de usar ex-
pressões com o sentido oposto ao da
língua humana. Essa língua tem uma sin-
taxe própria, ou seja, utiliza expressões
gramaticais incompletas, omite palavras e
deixa frases interrompidas. Para o autor,
com o passar do tempo, ela sofre um
processo de decadência, com perda de
autenticidade e de inteligência, passando
a consistir numa sequência empobrecida
de frases decoradas e repetitivas.
Segundo Schreber (1903, p.130),
―na relação das almas entre si, a língua
dos nervos, derivada da vibração dos
nervos (e por isso na forma de um leve
sussurro), era de fato a única forma de
comunicação ou de intercâmbio de pen-
samentos‖. Dessa forma ele exemplifica:
Os enfermeiros eram chamados de ‗vigias
de cães‘ pelas vozes devo deduzir que possuíam a qualidade de ‗homens feitos
às pressas‘ a partir do fato de que manti-
veram comigo uma conexão nervosa, na
qual eu freqüentemente os ouvia falarem
expressões da língua fundamental; em particular, ouvi o enfermeiro Sch., que
como pessoa ficava em um outro quarto, emitir exclamações que na língua funda-
mental servem para expressar o pasmo:
‗caramba‘ e ‗mil vezes caramba‘ (não em
voz alta, mas na língua dos nervos).
(SCHREBER, 1903, p.130)
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6 Essa formação neológica tem um número menor de ocorrências, aparecendo 37 vezes.
“Os nervos do
homem sobre-
vivem à sua morte
e são o substrato das almas […]”
Isso nos leva ao ―neologismo‖
3: Vozes7. Na escrita de Schreber, vozes
são: Almas, raios ou nervos, na sua con-
dição de seres falantes. As vozes falam
ininterruptamente com Schreber, sempre
na língua fundamental. Seu som é como o
de um sussurro ou de um cochicho. ―A
fala das vozes passa por uma evolução:
no início é perceptível e clara, decaindo
aos poucos para um zumbido incom-
preensível, comparável ao som que faz a
areia numa ampulheta‖ (Cf o glossário
elaborado por Carone, 1995). Schereber
observa, no capítulo IX, que
a conversa das vozes consistia predom-
inantemente de um fraseado vazio, feito
de expressões monótonas, que se
repetiam de modo cansativo, que além
disso traziam cada vez mais a marca da
falta de acabamento gramatical, devido à
omissão de palavras e até mesmo de
sílabas. No entanto, havia então ainda um
certo número de locuções das quais vale
a pena falar em detalhe, porque lançam
uma luz interessante sobre todo o modo
de representação das almas, sobre sua
concepção da vida e do pensamento hu-
manos. Dessas locuções faziam parte. em
particular, aquelas que — aproximad-amente, desde a época da minha estada na clínica de Pierson — me conferiam a
denominação de ‗príncipe dos infernos‘.
Inúmeras vezes, por exemplo, se disse: ‗A
onipotência de Deus decidiu que o príncipe
dos infernos deve ser queimado vivo‘, ‗O príncipe dos infernos é responsável pela
perda de raios‘, ‗Proclamemos vitória so-bre o príncipe dos infernos vencido‘, mas
depois uma parte das vozes dizia: ‗É Schreber, não Flechsig o verdadeiro prín-
cipe dos infernos‘, etc. (SCHREBER, 1903,
p. 117. Itálico nosso.)
Ao comparar a acepção de
vozes na escrita de Schreber com as pos-
sibilidades encontradas no dicionário de
uso da língua Portuguesa, verificamos que
almas, raios e nervos não constam no rol
de possibilidades. Além do aqui exposto,
podemos verificar palavras ou grupos de
palavras que recebem efeitos neológicos
nas conexões delirantes de Schreber. As-
sim, os nervos, a beatitude, a hierarquia
divina (Ariman e Ormuzd) e os atributos de
Deus estabelecem em meio a uma cadeia
de significantes o valor linguístico em con-
texto, um é aquilo que o outro não pode
ser.
Saussure (1916, p. 134) afirma
que o conceito de uma palavra somente é
determinado pelo ―concurso do que existe
fora dela‖. Sendo parte de um sistema, a
palavra ―está revestida de uma signifi-
cação e de um valor e isso é coisa muito
diferente‖.
No Curso de Linguística Geral,
Saussure (1916) assevera que a signifi-
cação é a contraparte da imagem acústi-
ca (significante). A significação está na
instância da relação interna do signo, na
ordem de tudo aquilo que se passa entre a
imagem acústica e o conceito. Tomando o
exemplo da palavra julgar, Saussure expli-
ca que dizer que um conceito (significado)
julgar está unido à imagem acústica
(significante) julgar, representa a signifi-
cação. Saussure (1916) afirma que na
língua todos os termos são solidários,
então o signo, resultante da união entre
significado e significante, será de igual
modo a contraparte de outros signos da
língua, o valor então resulta da relação
entre signos, emana da presença sim-
ultânea de outros signos. O valor, dessa
forma, é a contraparte dos termos coex-
istentes. De acordo com Saussure (1916,
p. 135) o ―valor de um termo está deter-
minado por aquilo que o rodeia, nem se-
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7 Há ocorrência dessa forma linguística distribuída em 127 páginas. Entretanto, não consta a acepção no dicionário Aurélio, dicionário de uso da língua
portuguesa que escolhemos para comparação por ser o mais consultado. Nele consta: Voz S.f. 1. Som produzido na laringe, pelo ar que sai dos pulmões
e da boca do homem; 2. Qualquer ruído.; 3. Voz modificada pelo canto.;4. Som de certos instrumentos; 5. Parte vocal de um trecho de música; 6. Fac-
uldade de falar; 7. Grito, clamor, queixa; 8. Conselho; 9. Sentimento, opinião; 10. Impulsão; 11. Movimento interior; 12. Intimação, ordem dada em voz alta;
13. Rumor, ruído; 14. Palavra, frase; 15. Categoria associada à descrição de estruturas sintáticas, que faz variar o verbo consoante a ação é exercida ou
sofrida pelo sujeito; 16. Som representado na escrita por uma vogal; 17. a meia voz: em voz baixa; 18. ao alcance da voz: a distância a que se possa
ouvir o som da voz, gritando; 19. a voz do povo: a opinião geral; 20. correr voz: constar, divulgar-se; 21. de viva voz: falando e não por escrito; 22. são
mais as vozes que as nozes: há exageração no que se diz; 23. ter voz no capítulo: direito de dar a sua opinião; 24. voz ativa: ativa voz do verbo em que
o sujeito é também o agente; 25. voz comum: opinião da generalidade das pessoas; 26. voz de comando: ordem militar, dada em voz alta pelo coman-
dante de uma tropa, para esta executar certos movimentos ou evoluções; 27. voz deliberativa: o mesmo que voto deliberativo; 28. voz passiva: voz do
verbo em que o sujeito é interpretado como paciente; 29. voz presa: voz rouca; 30. voz pública: fama, boato; 31. voz surda: voz que se não percebe
claramente, som abafado.
quer da palavra que significa sol se
pode fixar imediatamente o valor sem
levar em conta o que lhe existe em redor,
línguas há em que é impossível dizer
‗sentar-se ao sol‘‖. Dessa forma, o valor
de um termo pode se modificar sem que
se altere a significação, somente pelo
fato de um outro termo com quem se
relacione na cadeia falada tenha sofrido
alguma modificação. Para Saussure
(1916), aquilo que emana do sistema da
língua não são ideias dadas de antemão,
mas sim valores ―puramente diferenciais,
definidos não positivamente por seu
conteúdo, mas negativamente por suas
relações como os outros termos do
sistema. Sua característica é ser o que
os outros não são‖ (SAUSSURE, 1916,
p.136).
Além disso, cabe aqui
ressaltar que, ao ler a escrita de
Schreber, chegamos a uma cadeia de
significantes com efeitos neológicos que
são motivadas pelo delírio psicótico, fi-
cando restritos a sua fala; não es-
tabelece interação, ou seja, cada signifi-
cante com o efeito neológico só recebe
significação (associação entre significan-
te e significado) no interior do delírio de
Schreber. A motivação desses neologis-
mos não é encontrada fora do delírio em
que estão inseridos, ou seja, os signifi-
cantes revestem significados, ideias de-
lirantes, em coerência no delírio, palavras
que, embora possam pertencer a língua,
não são reconhecidas como atualizadas
pelo falante por um outro interlocutor.
Considerações finais
Mediante o exposto, podemos
considerer que o estatuto da palavra de
efeito neológico na construção do delirante
é o de servir como bengala imaginária e
revestir conceitos e significantes no con-
texto do delírio (no circuito da fala/
escrita, verificamos o funcionamento da
língua e o esgarçamento das associações
entre significantes e significados, no con-
texto do delírio), como forma de recon-
strução do laço social, situando o gozo do
delirante (de Schreber) dentro de um lim-
ite suportável, atenuando, conse-
quentemente, sua angústia.
REFERÊNCIAS:
FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o
dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev.
e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999.
FREUD, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre
um relato autobiográfico de um caso de
paranóia (dementia paranoids). In: Freud -
obras completas, v.10 - o caso schreber,
artigos sobre tecnica e outros textos. (1911
-1913). São Paulo. Companhia das Letras,
2010, p. 14 - 221. (Edição consultada: 2010)
LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ri-
beiro. ―De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose‖,
1957/1958. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
PINCERATI, W. D. O estatuto da palavra que
tem efeito neologico na construção de-
lirante. Dissertação (Mestrado em
Linguítica). Instituto de Estudos da Lin-
guagem, Universidade Estadual de Campi-
nas, Campinas, São Paulo. 2009.
___. O delírio do psicótico como fenômeno
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2013.
QUINET, A.L.A. Clínica da Psicose. Salvador:
Fator. 1990.
SAUSSURE, F. Natureza do signo lingüísti-
co. In: Curso de Lingüística Geral. São
Paulo: Cultrix, 1916, pp. 79-84. (Edição
consultada: 1970)
___. O valor lingüístico. In: Curso de
Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1916,
pp. 130-141. (Edição consultada: 1970)
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um
doente dos nervos. Tradução e Organi-
zação de Marilene Carone. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
Página 19 O Corpo
Página 20 O Corpo
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Departamento de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
O grupo de pesquisa A Análise do Discurso e suas Interfaces (FFCLRP-USP – Di-
retório de Grupos de Pesquisa do CNPq) convida:
Ulysses, James Joyce (by John from Yorkshire, England)
Ulisses de James Joyce, publicado em 1922, narra um dia da vida de Leopold Blo-om, que se passa em 16 de junho de 1904. Esse dia tornou-se, tanto na Irlanda quanto mundialmente, uma espécie de data comemorativa de homenagem ao personagem (e ao criador): o Bloomsday. Tendo em vista a importância da obra e o compromisso do grupo AD- Interfaces com a transmissão da Análise do discurso pêcheutiana, da psicanálise la-caniana, da literatura e da filosofia, dando continuidade à sua postura de abrir perspecti-vas para o diálogo, tomamos a iniciativa de comemorar o Bloomsday, como mais uma
oportunidade às interfaces das áreas do conhecimento que definem as ações do grupo.
Data: 16 de junho de 2014
Local: Sala Seminário 2 - bloco 05 da FFCLRP
INSCRIÇÕES GRATUITAS
Programação:
Comissão Organizadora: Profa. Dra. Leda Verdiani Tfouni (Coordenadora), Profa. Dra. Diana Junkes Martha,
Profa. Dra. Dionéia Monte Serrat , Juliana Bartijotto, Verônica Lopes .
Contato: jornadasadinterfaces@gmail.com
Leitura do e-book ―Foucault e Nietzsche - o discurso da tragédia‖ organizado por Cecília Barros-Cairo e Nilton Milanez
Leitura do livro ―Discurso e sujeito em Michel Foucault‖ de Cleudemar Alves Fernandes.
Dica de O Corpo
Dica de O Corpo
O Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo lança o e-book
―Foucault e Nietzsche – o discurso da tragédia‖ organizado pelos
professores Cecília Barros-Cairo e Nilton Milanez. O trabalho é
resultante de uma Jornada de Estudos realizada em 2011 que fo-
mentou muitas discussões, debates e análises entre pesquisado-
res do Laboratório e de outras universidades e grupos de pesqui-
sa, mas que somente encontrou solo fértil para uma produção
textual mais consistente neste momento.
'Michel Foucault, de ideias d’avant-garde, ilumina as reflexões
teóricas e analíticas de diversas áreas do conhecimento (...)
Acompanhar o percurso de M. Foucault, seguindo seus passos
pela leitura de seus textos, é um caminho surpreendente e que
não se faz sem dele sair modificado. Essa foi a escolha de Cleude-
mar Alves Fernandes, que mergulhou, durante um período de sua
madura carreira universitária, nesse labirinto foucaultiano, que
parece jamais poder ser completamente apreendido ou completa-
mente trilhado. E em sua ânsia de flagrar as articulações existen-
tes entre discurso, sujeito, dispositivo, relações de poder e saber
entre tantos outros conceitos que Foucault reúne ao dar consis-
tência ao seu pensamento, Fernandes faz uma trajetória que res-
ponde aos interesses de todos aqueles que veem no discurso,
mais que um conceito, mais que um objeto de estudo - tomam-no
como a constituição do sujeito e sua razão de luta. (...)'
(Vanice Sargentini)
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cimento científico. Para contribuir com esse processo, em sintonia com o espírito
que anima o Comitê de Assessoramento de Divulgação Científica do CNPq, criamos
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