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Virginia Maria Fontes Gonçalves
DO RACIONALISMO CRÍTICO AO ANARQUISMO PLURALISTA:
uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa de Pós-graduação em Filosofia
Rio de Janeiro, março de 2003
Virginia Maria Fontes Gonçalves
DO RACIONALISMO CRÍTICO AO ANARQUISMO PLURALISTA:
uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Orientador : Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos Co-orientador: Prof. Sérgio Luiz de Castilhos Fernandes
Rio de Janeiro, março de 2003
Virginia Maria Fontes Gonçalves
Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura na transformação do pensamento de
Paul Feyerabend
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos Orientador
Departamento de Filosofia PUC-Rio
Prof. Sérgio Luiz de Castilho Fernandes Co-orientador
Departamento de Filosofia PUC-Rio
Prof. Edgard José Jorge Filho Departamento de Filosofia PUC-Rio
Prof. Jürgen Heye Coordenador Setorial do Centro
De Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 4 de março de 2003
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da autora, dos orientadores e da Universidade.
Virginia Maria Fontes Gonçalves
Graduou-se em Estatística pela Universidade de Brasília – UnB em 1985. Especializou-se em Análise de Sistemas pela UERJ em 1989 e em Educação Especial – Altas Habilidades em 2001 pela mesma Universidade. Obteve o grau de Mestre em Ciência – Lógica e Metodologia Científica pela Universidade de Londres – London School of Economics and Political Science-LSE em 1995. Desenvolveu projetos de planejamento de experimentos e análise estatística de dados, coordenou projetos de desenvolvimento e implantação de sistemas computacionais, lecionou em cursos de capacitação profissional, graduação e pós-graduação lato senso. Participou de projeto de pesquisa acadêmica em educação especial-altas habilidades bem como de diversos congressos, seminários e encontros nas áreas de educação e filosofia no Brasil e no exterior. Atualmente inicia curso de doutoramento no Programa de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia na UFRJ, participa de dois grupos de pesquisa acadêmica (epistemologia da psicologia e estudos sócio-técnicos) e oferece consultoria em educação especial.
Gonçalves, Virgínia Maria Fontes Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend / Virginia Maria Fontes Gonçalves ; orientador: Carlos Alberto Gomes dos Santos ; co-orientador: Sérgio Luiz de Castilhos Fernandes – Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2004. 82 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui referências bibliográficas 1. Filosofia – Teses. 2. Epistemologia. 3. Pluralismo metodológico. 4. Incomensurabilidade. 5. Relativismo. I. Santos, Carlos Alberto Gomes. II. Fernandes, Sérgio Luiz de Castilhos. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. IV. Título.
Agradecimentos Aos professores orientadores Sérgio Fernandes e Carlos Alberto, pela inspirada
participação na escolha do tema de pesquisa, pela maneira atenciosa e gentil com
que sempre atenderam às minhas solicitações e, finalmente, por todo o seu
empenho na revisão criteriosa e cuidadosa desta dissertação.
Aos meus professores, colegas e amigos do curso de filosofia e de outros grupos
de estudos e pesquisa que comigo discutiram e trocaram idéias sobre os mais
variados temas e que muito contribuíram para a realização instigante e prazerosa
deste trabalho.
À minha mãe e irmã, por sua paciência em me ouvir, por seu amor e carinho ao
me apoiar e aconselhar quando eu me sentia diante de algum impasse, por terem
vibrado comigo diante de mais este desafio, pelo sentimento de felicidade que
partilhamos quando um novo desafio se apresenta.
Ao meu companheiro amigo e amoroso, também por sua paciência em me ouvir,
por sua participação efetiva no caminho aberto do qual este trabalho faz parte e
por estar reiteradamente sugerindo alternativas que ampliam os horizontes de
realização e aplicação das minhas possibilidades.
Resumo
Gonçalves, Virginia Maria Fontes, Carlos Alberto Gomes (orientador), Fernandes, Sérgio Luiz de Castilho (co-orientador), Do Racionalismo Crítico ao Anarquismo Pluralista: uma ruptura no pensamento de Paul Feyerabend. Rio de Janeiro, 2004, 82 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Paul Karl Feyerabend é geralmente conhecido como o filósofo da ciência
contrário à idéia de um método científico único, à racionalidade e à ciência
enquanto conhecimento privilegiado. Defendendo o anarquismo epistemológico,
Feyerabend afirmou que, em se tratando de regras metodológicas para a ciência, a
única regra possível é “tudo vale”. Por entendermos que essa imagem é
excessivamente simplificadora da epistemologia proposta por Feyerabend,
pretendemos mostrar que este filósofo foi muito mais um ardoroso crítico da
uniformidade e defensor da diversidade quanto às formas de conhecimento e
visões de mundo, do que um opositor da ciência per se. Sob esse enfoque, a obra
feyerabendiana ocupa uma posição diferenciada no debate sobre a racionalidade
ou não da ciência, uma vez que sua abordagem vai além das propostas
irracionalistas relativistas que afirmam a influência de fatores não racionais no
desenvolvimento do conhecimento dito científico. Nesta pesquisa, daremos ênfase
às teses feyerabendianas que trazem um alerta quanto à falta de crítica aos
cânones científicos – Objetividade, Razão e Verdade – enquanto legitimadores da
primazia da ciência sobre outras formas de conhecimento. Além disso, iremos
discutir as conseqüências indesejáveis que a ausência dessa crítica traz, não
apenas no âmbito da filosofia da ciência como também ao desenvolvimento desse
conhecimento e, principalmente, à realização da individualidade, da liberdade e
das potencialidades humanas.
Palavras-chave
Epistemologia; pluralismo metodológico; incomensurabilidade; relativismo.
Abstract
Gonçalves, Virginia Maria Fontes, Santos, Carlos Alberto Gomes (advisor), Fernandes, Sérgio Luiz de Castilho (co-advisor), From Critical Rationalism to Pluralistic Anarchism: a breakaway in Paul Feyerabend’s philosophy. Rio de Janeiro, 2004, 82 p. MSc. Dissertation- Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Paul Karl Feyerabend is generally known as the philosopher of science against the
idea of a unique scientific method, rationality and the view that science is a
privileged form of knowledge. He proposed and defended epistemological
anarchism and argued that, regarding scientific methodological rules, the only
possible rule is “anything goes”. Since we consider this general image a
simplification of Feyerabend’s epistemology, we intend to show that this
philosopher was much more a critic of uniformity and a defender of diversity,
when it comes to different forms of knowledge and worldviews, than an opponent
of science per se. From this point of view, Feyerabend’s writings occupy a special
standing in the rationality of science debate, since his approach goes beyond the
irrationalist relativist positions that state the influence of irrational factors in the
development of so called scientific knowledge. In this research, we shall
emphasize those feyerabendian arguments that constitute an alert towards the lack
of a critical attitude regarding scientific standards – Objectivity, Reason and Truth
– as providers of a legitimate privilege of science in relation to other forms of
knowledge. In addition, we shall also discuss the undesirable consequences of this
lack of criticism not only within the philosophy of science but also for the
development of scientific knowledge itself and, over all, for the accomplishment
of individuality, of liberty and of the human potential.
Keywords
Epistemology; methodological pluralism; incommensurability; relativism.
Sumário
1. Introdução
10
2. A atitude pluralista e o humanismo em Paul Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
16
2.1. Uma trajetória na epistemologia feyerabendiana 17 2.2 Argumentos racionalistas críticos em defesa do pluralismo teórico e de uma base ética humanista para a epistemologia
21
2.2.1. Crítica ao indutivismo positivista e o Princípio de Proliferação Teórica
21
2.2.2. A normatividade e a base ética da epistemologia
26
3. A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend 30 3.1. Algumas constâncias “catalisando” a ruptura 31 3.2. A ruptura vem à tona 33 3.2.1. O anarquismo dadaísta enquanto pluralismo tolerante 34 3.2.2. O “vale tudo” em ciência 39 3.2.3. Incomensurabilidade 42 3.2.4. Anarquismo epistemológico e Educação
48
4. Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho 56 4.1. Hipóteses de números 01 e 02 57 4.2. Hipótese de número 03
62
5. Conclusão 65 5.1. Conclusões desta pesquisa 65 5.2. Delineamento preliminar de uma nova hipótese para pesquisa 68 futura 5.2.1. A falta de unidade da ciência, os agrupamentos dos sistemas 68 complexos em sub-sistemas e as interações entre as diversas disciplinas científicas 5.2.2. As interações entre ciência e sociedade e as interações entre 71 sistemas complexos e o seu meio ambiente 5.2.3. Critérios de demarcação e o seu paralelo hipotético com o reflexo dos fluxos de informação na estrutura dos sistemas complexos
72
5.2.4. A contra indicação de hegemonias no anarquismo e nos sistemas complexos
74
5.2.5. Irracionalidade, emergência e representação
75
6. Referências Bibliográficas 79
1 Introdução
O intenso e reconhecido debate Popper-Kuhn-Lakatos-Feyerabend ocupou uma
posição central na filosofia da ciência nas décadas de ´60 a ´80, reunindo na
publicação Criticism and the growth of knowledge, editada por Lakatos e Musgrave
em 1970, uma série de artigos representativos desse debate. Diversas questões foram
intensamente discutidas, levando a uma série de indagações sobre a natureza e os
limites do conhecimento científico, abordando, entre outros, os seguintes problemas:
a) da objetividade e racionalidade ou não da ciência; b) da existência de um método
único que garanta a racionalidade e cumulatividade do conhecimento científico; c) do
caráter progressivo ou apenas de mudança desse conhecimento, d) dos objetivos da
ciência e, e) dos critérios de demarcação entre ciência e outras formas de
conhecimento. A apresentação de soluções ou respostas a esses problemas, a partir
desse debate, proporcionou a formação de diversas posições epistêmicas, com
respectivas implicações ontológicas, acerca da possibilidade e condições de
conhecimento da realidade por parte do ser humano.
Apesar da variedade e riqueza no detalhamento de argumentos e propostas
epistemológicas e metodológicas desde então, o referido debate continua em aberto.
A despeito das inúmeras tentativas mais recentes de superação dos impasses gerados
por esse debate (Santos, 1993), buscando alternativas que escapem ao irracionalismo
(Miller, 1994) e ao relativismo (Laudan, 1996), percebemos uma crescente tendência
à conclusão pela aporia de toda essa discussão, bem como pela denúncia dos supostos
fundamentos empíricos e justificação racional do conhecimento científico (Fernandes,
1995 e 2002). Há, inclusive, quem proclame a fim da ciência, dada a sua
incapacidade em tornar-se um corpo unificado, objetivo e universal de conhecimento.
(Horgan, 1996).
Contudo, a ciência permanece na cultura ocidental como a forma privilegiada
de conhecimento, reconhecida e aceita como o meio ou instrumento mais adequado
tanto para a interpretação da realidade quanto para a formulação do conceito de ser
humano. Por um lado, a ciência se impõe na prática pelos avanços tecnológicos que
Introdução
11
conferem ao homem de ciência um crescente domínio e manipulação da natureza; por
outro, a ciência busca uma justificativa epistemológica para essa primazia,
declarando-se fundamentada e orientada pela Razão.
A caracterização da ciência como conhecimento justificado pelo uso da Razão
remonta à origem da filosofia ocidental (Platão, 1921), porém, esta origem não será
discutida aqui por fugir ao objetivo desta pesquisa. Entretanto, nossa discussão
abrange os desdobramentos dessa origem, os quais resultaram numa variedade de
correntes epistemológicas, ora em busca de justificação racional para o conhecimento
legítimo [científico], ora argumentando pela inexistência de tal justificativa e até pela
sua desnecessidade.
A partir da era moderna (séculos XVI e XVII), racionalismo e empirismo
constituem as duas grandes correntes na epistemologia. Divergindo quanto aos
fundamentos para a obtenção do conhecimento legítimo sobre a realidade - idéias
claras e distintas para o racionalismo e impressões claramente manifestas pelos
sentidos para o empirismo - ambas reiteram o uso da Razão para atingir-se esse
conhecimento.
Hume, tal como Descartes, deseja distinguir o que podemos genuinamente conhecer do que não podemos.[...] Há um aspecto importante em que Hume não é nada racionalista: é convencionalmente classificado como empirista, e enquanto tal, como pensador em oposição ao racionalismo. Não obstante, os termos chave de referência do esforço cartesiano são mantidos. Hume é racionalista num sentido crucial: vamos nele uma tentativa individualista de determinar racionalmente os limites e a natureza do mundo genuinamente cognoscível.
(Gellner, 1992: pp. 27 e 28, grifo nosso).
E desse esforço de delimitação pela Razão das possibilidades de conhecimento,
dentro da tradição guiada pela Razão e, a partir da oposição epistêmica entre
racionalismo e empirismo, Immanuel Kant1 apresenta uma teoria do conhecimento
1 Na Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant formula uma teoria do conhecimento que busca, em última análise, compor os impasses existentes entre o empirismo e o racionalismo. Na Analítica Transcendental, avalia a contribuição dos conceitos puros do entendimento — as categorias — para o conhecimento, além de investigar, nas páginas relativas à unidade sintética de apercepção e ao esquematismo da razão pura, como o engendramento da sensibilidade com o entendimento se compõem para fornecer a experiência cognitiva. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Mereja. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966 in Siqueira-Batista, R, 2003 – artigo para Revista Episteme, em fase de publicação.
Introdução
12
que articula a experiência sensorial com o entendimento para a realização da
experiência cognitiva.
A partir desse ponto, o papel a ser desempenhado por cada um dos elementos
constitutivos da cognição - sensação e entendimento - e a projeção desses papéis no
nível metodológico para a obtenção de um conhecimento científico, resultaram em
variadas teorias de conhecimento, tais como: positivismo, racionalismo crítico,
fenomenologia, pragmatismo e instrumentalismo. Todavia, tais teorias apresentam
dificuldades, tanto na proposição de um método científico universal e racional que
corresponda aos fatos da história da ciência, quanto na justificação da racionalidade
científica. Dadas essas dificuldades, surgem alternativas irracionalistas e relativistas
para o conhecimento. Assim, o debate entre o empirismo e o racionalismo foi, por
assim dizer, transformado num debate entre dois grupos antagônicos de teorias do
conhecimento: um postulando regras e buscando evidencias do uso da Razão na
construção do conhecimento legítimo e, o outro, afirmando a falta ou a não
exclusividade do uso da Razão no desenvolvimento do conhecimento.
O foco desta pesquisa, a epistemologia anarquista de natureza relativista e
irracionalista de Paul Feyerabend (1924-1994), o qual afirma a falta de um método
único no desenvolvimento do conhecimento e sugere objetivos humanistas para a
ciência, se insere justamente nesse cenário, onde se contrapõem: o racionalismo
crítico de Karl Popper, representado pelo falsificacionismo metodológico (Popper,
1968); um racionalismo “flexibilizado” de Imre Lakatos, representado pela
metodologia dos programas de pesquisa (Lakatos, 1978); e o relativismo
irracionalista, porém, paradigmático de Thomas Kuhn, representado pelo ciclo
[período pré-paradigmático – formação de um paradigma - ciência normal – acúmulo
de anomalias - revolução] (Kuhn, 1970).
Cabe lembrar que Feyerabend iniciou sua carreira filosófica na década de ’50,
quando o debate epistemológico girava em torno dos postulados do positivismo do
Círculo de Viena. O verificacionismo positivista foi contundentemente rechaçado por
Karl Popper, e Feyerabend, que foi seu aluno, adotou o falsificacionismo racionalista
crítico como alternativa ao positivismo. Contudo, ao longo dos 40 anos de sua
Introdução
13
produção intelectual, Feyerabend apresentou uma marcante transformação do seu
pensamento, realizando uma ruptura entre o racionalismo crítico, de um lado, e o
relativismo pluralista “anarquista”2 de outro.
A epistemologia que, a meu ver, melhor expressa as concepções
feyerabendianas, ocorre após essa ruptura, porém, ainda inserida num contexto
epistemológico que tradicionalmente valoriza o método universal, a ordem e a Razão.
Nesse contexto, a visão feyerabendiana de conhecimento traz uma imagem de
desordem, de oposição ao método e à ciência, de ausência de critérios e princípios, de
uma verdadeira “anarquia”, tendo sido considerada alheia à filosofia por uma grande
parte de epistemólogos à época (décadas de ’70 e ’80). (Preston, 1997: p.7). Vista
pelo enfoque acima descrito, tanto a crítica feyerabendiana à discriminação pejorativa
de formas não científicas de conhecimento - e correspondentes visões de mundo –
quanto as idéias desse epistemólogo em prol do reconhecimento e valorização dessas
formas não científicas de conhecimento, não receberam uma maior atenção no debate
filosófico. Retomar essa crítica e, em especial, essas idéias, constituem as principais
motivações para a realização desta pesquisa.
Pretendemos, então, mostrar que Feyerabend foi muito mais um ardoroso
crítico da uniformidade e defensor da diversidade quanto às visões de mundo, do que
um opositor da ciência per se, afirmando na Introdução de seu Farewell to Reason,
edição de 1994, p. 12: “.... entendemos que não há nada na natureza da ciência que
exclua a variedade cultural” (minha tradução, itálicos no original).
Prosseguindo nessa linha de raciocínio, entendemos que a obra feyerabendiana
ocupa uma posição diferenciada no debate sobre a racionalidade ou não da ciência,
uma vez que sua abordagem vai além das propostas relativistas que afirmam a
influência de fatores não racionais no desenvolvimento do conhecimento dito
científico. Para defender nosso ponto de vista, daremos ênfase às teses
feyerabendianas que trazem um alerta quanto à falta de crítica aos cânones científicos
- Objetividade, Razão e Verdade – enquanto legitimadores da primazia da ciência
sobre outras formas de conhecimento e quanto às conseqüências indesejáveis que a
2 Anarquismo entendido como dadaísmo, e não como anarquismo político. Para um melhor detalhamento desta distinção ver Capítulo II desta dissertação e Feyerabend, P.K., 1975: Against Method, p. 21-rodapé e pp. 189-190.
Introdução
14
ausência dessa crítica traz, não apenas no âmbito da filosofia da ciência como
também no desenvolvimento desse conhecimento e, principalmente, na realização da
liberdade individual e das potencialidades humanas.
À luz dessa atitude crítica, Feyerabend defende uma “ciência” ou um
conhecimento sob a forma de investigação criativa e livre de restrições
metodológicas, argumentando que tais restrições repousam sobre a idéia equivocada
da existência de um método científico universal - que suscita a rejeição de outras
formas de conhecimento - e cujo emprego levaria a teorias científicas gradativamente
mais próximas à Verdade. Para Feyerabend, tal método único não existe e a
conseqüente rejeição a formas diferentes de conhecimento não se justifica. Em
primeiro lugar, o progresso do conhecimento científico resulta da repetida
transgressão de regras metodológicas, da atitude pluralista e antidogmática dos
grandes cientistas, bem como da interação e integração da ciência com outros saberes.
Em segundo, no tocante à idéia de uma teoria ser considerada como a mais próxima à
Verdade, Feyerabend aponta para o perigo de tal teoria na prática tornar-se imune à
crítica e à comparação com outras alternativas teóricas, transformando-se num
dogma, dificultando ou até impedindo as possibilidades de desenvolvimento do
conhecimento humano.
Ante o exposto, com o propósito de estabelecer fios condutores para esta
pesquisa, que visa explicitar alguns aspectos que distinguem e caracterizam a
epistemologia feyerabendiana retomando a discussão sobre os princípios que
fundamentam o relativismo anarquista, foram delineadas as seguintes hipóteses de
trabalho:
• Hipótese no. 1: O estilo panfletário do filósofo Paul Feyerabend,
principalmente na sua obra “Contra o Método” editada em 1975, levou a uma
tendência para uma interpretação parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a
mesma como descrevendo ou sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa
dita científica.
• Hipótese no. 2: Uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de
Feyerabend nos indicia que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico
com total ausência de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade
Introdução
15
de método científico pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal
método único, defendendo a maior plausibilidade e desejabilidade tanto do pluralismo
metodológico quanto de seus fundamentos.
• Hipótese no. 3: O desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos
cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da sociedade
cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas de
conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a
desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento
pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais.
O corpo do relatório que resultará da pesquisa irá constituir uma dissertação de
mestrado, cujos capítulos são sucintamente descritos a seguir.
O primeiro capítulo apresentará uma apreciação da obra feyerabendiana a partir
do enfoque dado por Preston (1997) o qual divide essa obra em duas fases:
racionalista crítica e anarquista. Sob esse enfoque, serão destacados aspectos
marcantes de sua fase racionalista crítica, a saber, o pluralismo teórico e a defesa de
uma base ética humanista para a epistemologia, os quais já apontavam para
determinadas características de seu pensamento posterior.
No segundo capítulo, abordaremos o anarquismo epistemológico, em especial
no tocante à sua inspiração no humanismo liberal de John Stuart Mill, à valorização
da diversidade, à interação entre a ciência, outras formas de conhecimento e a
sociedade, às implicações dessa epistemologia para a educação e ao papel da
educação na criação da imagem objetiva e racional conferida à ciência.
Em seguida, no terceiro capítulo, retomaremos cada uma das hipóteses de
trabalho, as quais serão avaliadas quanto à sua plausibilidade, ou não, frente aos
capítulos anteriores, e apreciadas quanto a eventuais complementações, substituições
ou ajustes em seus termos.
Encerrando a dissertação, será apresentada uma Conclusão que trará uma
exposição de idéias e comentários não previstos no projeto da pesquisa porém
intimamente relacionados à mesma por terem surgido ao longo do seu
desenvolvimento, bem como as impressões finais relativas à totalidade da pesquisa.
2 A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
Pretendemos, neste capítulo, discutir princípios característicos da epistemologia
de Paul Feyerabend, utilizando como principal referência John Preston (1997), o qual
apresenta uma análise crítica de toda a sua obra e não apenas das posições
epistemológicas anarquistas pelas quais Feyerabend tornou-se mais conhecido, tanto
no meio filosófico quanto fora dele.
Nessa análise, identificam-se duas grandes fases da obra feyerabendiana: a
primeira das décadas de ’50 a ’70 e a segunda de ’70 a ’90, as quais delineamos no
item 2.1 a seguir. A partir desse apanhado inicial, trataremos no item 2.2 dos
argumentos compatíveis com o racionalismo crítico utilizados por Feyerabend para a
defesa de uma atitude pluralista e de uma ética humanista - já presentes na sua
primeira fase – e cujo acirramento levou ao anarquismo epistemológico dadaísta na
segunda fase. Embora haja uma evidente ruptura entre as duas fases na posição
epistêmica e metodológica, ruptura essa refletida na natureza das teses propostas por
Feyerabend, acreditamos que a identificação dos aspectos comuns às duas fases
favorece um entendimento mais aprofundado da proposta epistemológica
feyerabendiana na fase anarquista.
A ênfase na presença de elementos comuns às duas fases, tem como objetivo
uma tentativa de explicitação do processo pelo qual a inspiração pluralista da
argumentação contrária ao positivismo na epistemologia feyerabendiana transformou-
se num relativismo extremo, batizado como “anarquismo” pelo próprio autor.
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
17
2.1 Uma trajetória pelas fases da epistemologia feyerabendiana
Ao iniciarmos, deixamos claro que nosso entendimento das fases acima
referidas não assume a existência de fronteiras precisas que determinem o final e o
início de cada fase no tocante às idéias de Paul Feyerabend em cada uma delas,
conforme afirmação do próprio autor da principal referência desta análise (Preston,
1997: p. 7). A transformação do Feyerabend racionalista crítico no Feyerabend
anarquista epistêmico consistiu, como vemos em sua produção escrita, de um
processo gradual cujo início não caberia identificar pontualmente. Contudo, devido
ao impacto de determinadas posições epistemológicas defendidas pela primeira vez
em artigos e livros específicos, e que serão discutidas a seguir, pode-se estabelecer o
limite entre as duas fases de maneira aproximada. Passamos então a um breve relato
histórico de alguns fatos biográficos que marcaram essa passagem de fases na
epistemologia de Paul Feyerabend.
Após o final da II Guerra, em 1947, Feyerabend volta a Viena com intenção de
estudar Sociologia, porém, transfere-se para o curso de Física, ingressando também
na Sociedade Universitária Austríaca. Numa das reuniões da Sociedade em Alpbach,
veio a conhecer Karl Popper em 1948, o qual o apresentou a “Bertalanffy, Karl
Rahner, von Hayek e outros dignatários” (Feyrabend, 1994: p. 80). No ano seguinte,
passa a ocupar a liderança do Círculo Kraft – formado por alunos de filosofia para
discussão da existência de um mundo exterior - organizado em torno de Victor Kraft,
ex-integrante do Círculo de Viena, onde tal questão foi considerada metafísica e,
portanto, sem sentido. Em 1951, Feyerabend recebe o título de doutor, orientado por
Kraft, com uma tese sobre sentenças protocolares. Após o término do curso, iria
tornar-se aluno bolsista de Wittgenstein em Cambridge. Entretanto, dado o
falecimento de Wittgenstein, Feyerabend assumiu a condição de aluno bolsista junto
a Popper em Londres.
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
18
Em 1953, de volta a Viena, traduziu A sociedade aberta e seus inimigos de Karl
Popper para o alemão, fez um resumo das Investigações Filosóficas de Wittgenstein,
estudou e publicou artigos sobre mecânica quântica, tendo conhecido e sido
influenciado pelas idéias do físico quântico David Bohm e também por Herbert Feigl,
o qual acreditava “na possibilidade de se superar sistemas altamente formalizados
com a ajuda de um pouco de bom senso.” (Preston, 1997: p.4, minha tradução).
Nessa época, seus artigos apresentavam críticas ao positivismo - especialmente no
que se refere ao conhecimento progredir indutivamente a partir de generalizações de
sentenças protocolares - e em favor de um realismo científico alinhado com o
falsificacionismo de Karl Popper.
Com a visão epistemológica racionalista crítica, Feyerabend se empenha na
construção de um “modelo abstrato para aquisição de conhecimento”, sendo este
conhecimento aquele contido nas “proposições científicas”, uma vez que estas
constituem um “excelente exemplo de conhecimento de fato” (Feyerabend, 1965a: p.
217 in Preston, 1997: p. 13). Feyerabend privilegia, então, o conhecimento científico
sobre os demais, em pleno acordo com Popper.
[...] o conhecimento científico pode ser mais facilmente estudado do que o conhecimento de senso comum, por ser o conhecimento de senso comum posto de maneira inequívoca. Seus próprios problemas são uma expansão dos problemas do conhecimento de senso comum.
(Popper, 1968: p. 22, minha tradução)
Coerente com essa posição epistêmica sobre o conhecimento e com o
falsificacionismo enquanto método, Feyerabend sai em busca de um modelo abstrato
- único e racional - para construção do conhecimento [científico]. Nesse esforço,
desenvolve uma metodologia pluralista a partir de uma expansão do conceito de
“experimento crucial”, o dispositivo metodológico falsificacionista para teste e
eventual refutação de uma teoria. Segundo a metodologia pluralista, a proliferação de
teorias rivais – mesmo que sejam incompatíveis entre si e/ou com teorias bem
corroboradas até o momento - torna o experimento crucial metodologicamente mais
eficiente porque favorece a comparação entre teorias rivais além de oferecer subsídios
para o desenvolvimento de novas teorias. (Preston, 1997: p. 137). Na base da
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
19
metodologia pluralista está o pluralismo teórico1 que resulta do Princípio de
Proliferação, como se pode ver pela formulação geral desse Princípio, apresentada
abaixo. Esta formulação geral resultou de uma compilação feita por Preston de
diversas referências ao Princípio de Proliferação, encontradas em publicações de
Feyerabend, e reflete a forte tendência ao pluralismo teórico bastante presente nessa
primeira fase da epistemologia feyerabendiana:
Invente, e elabore, teorias que são inconsistentes com o ponto de vista aceito, mesmo que esse último esteja altamente confirmado e aceito de maneira generalizada.
(Preston, 1997: p. 138, minha tradução)
Ao final da década de ’50, Feyerabend assume uma posição na Universidade de
Berkeley, naturalizando-se cidadão americano. A partir daí e por toda a década de
‘60, aparecem os primeiros prenúncios de sua segunda fase, uma vez que seus artigos
e inúmeras palestras numa grande variedade de universidades começam a apresentar
uma tendência de afastamento em relação aos ideais falsificacionistas e, em especial,
ao que Feyerabend considera como cerne do racionalismo: a existência e a busca por
um padrão único de racionalidade científica. (Preston, 1997: p.4). Além disso,
Feyerabend foi gradualmente influenciado pela abordagem histórica da ciência
proposta por Thomas Kuhn - seu colega de departamento em Berkeley no início da
década de ’60, de quem tornou-se fervoroso crítico posteriormente2. Além de voltar-
se contra o racionalismo, a partir do início da década de ’70, percebe-se o seu
“desencantamento” pelos tradicionais ideais epistêmicos – em especial a Verdade - e,
posteriormente, a Razão, a Honestidade e a Justiça, que passam a ser grafados com as
iniciais em letras maiúsculas, o que foi interpretado por muitos como um “sinal de
desdém e deboche” (Preston, 1997:p. 192) .
1 Note-se que o pluralismo teórico (recomendação para a elaboração e teste de várias teorias) não deve ser confundido com o pluralismo metodológico (recomendação para o uso de diversas alternativas metodológicas), o qual só foi defendido por Feyerabend como parte integrante do anarquismo epistemológico, a partir da publicação de “Contra o Método” em forma de artigo em 1970, marcando o início da segunda fase de sua epistemologia. Maiores detalhes sobre essa distinção serão discutidos no Capítulo II. 2 Para um exemplo dessa crítica ver FEYERABEND, P. K., Consolations for the specialist, in Criticism and the Growth of knowledge, Lakatos, I and Musgrave, A (eds), Cambridge, Cambridge University Press, 1970
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
20
Assim revela-se o processo de passagem da primeira para a segunda fase da
epistemologia feyerabendiana, caracterizando-se essa passagem pelo abandono da
concepção de um método racional único como viabilizador de conhecimento
legítimo, a crítica à ciência como forma privilegiada de conhecimento sobre as
demais e, um estilo cada vez mais agressivo na sua argumentação.
Não obstante, o que também parece conduzir Feyerabend para sua segunda fase
são os desdobramentos da atitude pluralista e da ética humanista, somadas a
influências do movimento da contra-cultura e da revolução estudantil ao longo da
década de ’60. Em sua autobiografia, Feyerabend cita essa influência e descreve
alguns episódios representativos dessa época, bem como os resultados, que ele
considera benéficos, daquele movimento estudantil:
Os estudantes que participavam do Movimento de Liberdade de Expressão queriam mudar radicalmente aquele estado de coisas. Eles queriam transformar a universidade de uma fábrica de conhecimento (como a definira Clark Kerr, o presidente) em uma comunidade e um instrumento para o aprimoramento social. Suas ações afetavam até os mais tímidos, que se inflamavam, começavam a falar e tornava-se claro que todos tinham idéias interessantes que valiam a pena. Foi uma grande conquista quando a faculdade apoiou a posição dos líderes estudantis e forçou a administração a recuar. O movimento aparentemente alcançara seus objetivos.
(Feyerabend, 1996: p. 132)
A tendência à liberalização de critérios, sejam eles epistemológicos,
acadêmicos ou sociais, passa a exercer cada vez mais influência sobre Feyerabend e
suas idéias sobre o conhecimento passam a não mais caber num contexto
falsificacionista e racionalista crítico; a ruptura com essa epistemologia torna-se,
então, iminente, gerando espaço para o surgimento do anarquismo epistemológico.
No item a seguir, abordaremos esse caminho pelas fases da epistemologia
feyerabendiana a partir das teses e idéias defendidas pelo epistemólogo na sua
primeira fase, indicando os possíveis desdobramentos dessas teses no processo de
transformação e ruptura para sua segunda fase.
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
21
2.2 Argumentos racionalistas críticos em defesa do pluralismo teórico e da base ética humanista para a epistemologia
Com o objetivo de tornar essa exposição o mais clara possível, optamos por
dividir o texto em itens, embora os argumentos que compõem cada item estejam
relacionados entre si.
2.2.1 Crítica ao indutivismo positivista e o Princípio de Proliferação Teórica
Na crítica feyerabendiana ao indutivismo positivista, ao invés de se enfatizar os
aspectos da estrutura lógica da indução - o fato de não ser logicamente válida a
generalização do particular para o geral – ou, ainda, os problemas referentes à
matematização probabilística dessa generalização, Feyerabend utiliza uma outra linha
de argumento, focada na aplicação prática do raciocínio indutivo em procedimentos
de teste de teorias. Segundo ele, na prática, a “indução” não parte das instâncias
particulares para a generalização. Ao contrário, admite-se a generalização como
verdadeira e parte-se em busca de argumentos para dar suporte à crença na
propriedade (verdade) da generalização. Dessa forma, a busca pela justificação da
inferência indutiva resulta numa restrição das conclusões (tiradas a partir dos testes) a
serem levadas em consideração, negligenciando aquelas teorias alternativas que
estejam em desacordo com a generalização previamente aceita. (Feyerabend 1964b in
Preston, 1997: p.19).
Para Feyerabend, esse procedimento “indutivo” parte de e leva a dois
equívocos. O primeiro: a atitude de adotar a crença de que uma única generalização
(teoria) pode explicar todos os fatos, seguida da realização de testes na tentativa de
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
22
comprovar empiricamente essa generalização, previamente assumida. O segundo: a
condução de testes adotando o que ele chamou de “modelo de teste ortodoxo”, onde
apenas uma generalização (teoria) é utilizada para a interpretação dos fatos. Dessa
forma, a indução torna-se perniciosa pelo que ela assume – a generalização única, um
monismo teórico – e pelo que ela gera – um procedimento restritivo sob a forma de
um “modelo ortodoxo de teste”. Vejamos em detalhe por quê.
Para tanto, lembremo-nos que, nesse momento, Feyerabend ainda é
falsificacionista e, portanto, assume a falibilidade das teorias bem como a realização
de testes, ou experimentos cruciais, visando a sua refutação. O valor de uma teoria
(falível) está no seu conteúdo empírico (ou informativo), o qual consiste do conjunto
de proposições que potencialmente a refutariam. Este é o rigoroso critério de
demarcação que, além de separar a ciência de outras formas de conhecimento – e da
metafísica - também define a honestidade do cientista, o qual somente propõe teorias
passíveis de refutação.3 Nesse contexto epistemológico e metodológico, o prejuízo
potencial do monismo teórico está no fato que, quando uma teoria é considerada
única em dado contexto, ela acaba por orientar nossa capacidade cognitiva, tornando-
se uma teoria virtualmente não refutável, assumindo o status “mítico” de uma teoria
hegemônica. Pior do que isso, sob determinadas condições, tal situação poderia levar
à estagnação da ciência, uma vez que, enquanto conhecimento falível, esta necessita
de uma atitude crítica constante para que possa progredir.
[A] influência sobre nosso pensamento de uma teoria científica abrangente ou de qualquer outro ponto de vista geral, tem profundidade bem maior do que admitem aqueles que a consideram um esquema conveniente apenas para a ordenação dos fatos. [T]eorias científicas são formas de olhar o mundo, e sua adoção afeta nossas crenças e expectativas e, portanto, nossas experiências e concepções da realidade.
(Feyerabend, 1962a in Preston, 1997: p.75, minha tradução)
3 A honestidade científica constitui um outro cânone epistêmico falsificacionista que Feyerabend virá a recusar na sua epistemologia posterior, argumentando que o cientista é muito mais um “oportunista do que um fiel seguidor de regras metodológicas. (Preston, 1997: p. 172 e Feyerabend, 1975, p: 179). O sentido da palavra “oportunista” aqui se opõe ao sentido de “fiel cumpridor de regras metodológicas”, sem possuir outras eventuais implicações morais associadas `a palavra “oportunista”. Sobre esta questão, veja também pp. 22 – 23 e 27 do Capítulo 3.
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
23
Assim, o pluralismo teórico se faz necessário como um elemento que amplia as
possibilidades da atitude crítica na ciência e promove, na prática, condições
adicionais para o eventual falseamento das teorias científicas sob teste. Em suma, o
pluralismo teórico reforça e enriquece o exercício da aplicação do Princípio da
Falseabilidade. Trata-se aqui de uma justificação racionalista crítica para a
diversidade teórica a qual, em última instância, possibilita também a diversidade nas
formas de ver o mundo. Esta defesa será marcante na epistemologia anarquista,
contudo, utilizando outros argumentos para a sua sustentação como veremos no
próximo Capítulo.
Vejamos, agora, por que o monismo teórico também é indesejável no tocante à
condução de testes ou experimentos cruciais. Segundo Feyerabend, a testabilidade de
uma teoria – o seu conteúdo empírico – depende não apenas da relação entre a
negação de suas conseqüências com fatos observáveis, mas também com o estado de
desenvolvimento de teorias rivais no mesmo domínio. Assim, para maximizar o
conteúdo empírico de uma dada teoria, além de ela dever possuir uma certa classe de
instâncias falseadoras, também é necessário o desenvolvimento de teorias alternativas
no mesmo domínio. Como se vê, esse argumento pressupõe a desejabilidade de
maximização de conteúdo empírico sob a forma de maximização de potenciais
instâncias falseadoras de uma dada teoria – critério tipicamente falsificacionista. A
defesa de teorias alternativas para essa finalidade se dá através de um argumento
negativo. Feyerabend argumenta que, ao não serem consideradas teorias alternativas,
somente os fatos interpretados pela (única) teoria sob teste são colhidos como
observações. Não obstante, caso outras teorias estivessem desenvolvidas e também
fossem consideradas no teste, os fatos que estas interpretam também seriam levados
em conta no teste, maximizando o seu poder de refutação e, simultaneamente, as
instancias falseadoras da teoria e seu conteúdo empírico, através de uma refutação
indireta.
Embora nossa exposição não vise primordialmente verificar a validade dos
argumentos feyerabendianos e sim os indícios de projeção de elementos de seu
pensamento do período falsificacionista na sua epistemologia anarquista, aqui cabe
um breve comentário sobre esse argumento. Para exemplificar um procedimento
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
24
pluralista de teste – em oposição ao modelo ortodoxo – Feyerabend cita o caso do
movimento browniano (Preston, 1997: pp.126 – 130), em que a teoria principal sob
teste era a teoria fenomenológica do calor (TFC) e a teoria alternativa no mesmo
domínio era o que viria a ser a futura teoria de movimento molecular (TMM).
Quando num experimento foi observado um fato inexplicável (não interpretável) pela
TFC e sim pela TMM, Feyerabend sugere que houve uma refutação indireta de TFC a
partir de uma corroboração de TMM, uma vez que as teorias são incompatíveis. Além
disso, ele afirma que uma refutação ortodoxa da TFC não seria possível (pelo menos
não nesse teste conduzido de forma ortodoxa) pois, o fato que levou à refutação
indireta não teria sido sequer percebido (interpretado) caso a teoria alternativa
(TMM) não estivesse sendo considerada durante o teste.
Contudo, há controvérsias quanto a esse conceito de “refutação indireta”, uma
vez que, por definição, o conteúdo empírico de uma teoria refere-se à classe das suas
próprias conseqüências empíricas, e não à classe de conseqüências empíricas de
teorias incompatíveis com esta primeira.4 Assim sendo, uma teoria é refutada pela
observação da negação de qualquer proposição que pertença à classe de suas próprias
conseqüências empíricas e não pela observação de uma proposição que pertença à
classe de conseqüências empíricas de uma outra teoria. Não nos aprofundaremos aqui
nesta questão porque esta discussão foge ao objetivo da nossa pesquisa, entretanto,
julgamos interessante apontar para um possível contra-argumento à tese
feyerabendiana em defesa do pluralismo teórico.
Dessa forma, pretendemos enfatizar que Feyerabend argumenta a favor do
pluralismo teórico com finalidades metodológicas no tocante à condução de testes,
utilizando-se de pressupostos falsificacionistas. Esse pluralismo consiste na utilização
de teorias alternativas e explicativas relativas a um mesmo domínio, ainda que tais
alternativas ainda não possuam nenhuma comprovação empírica.
Embora o pluralismo teórico (primeira fase) seja distinto do pluralismo
metodológico (segunda fase), onde a recomendação é o uso de qualquer método ou de
nenhum método conforme as circunstâncias, há um mesmo Princípio de Proliferação
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
25
invocado por Feyerabend em ambos os casos, qual seja: o de considerar o eventual
uso de alternativas. Aplicando-se este princípio, o pluralismo metodológico pode ser
visto como uma projeção da atitude pluralista do nível teórico para o nível da
metodologia. No entanto, a realização de uma tal projeção exige uma transformação
radical – ou uma ruptura – ao nível epistemológico. Isto porque, embora o
racionalismo crítico seja compatível com uma atitude pluralista em relação a teorias –
que nada mais são do que conjecturas – tal liberalidade não é aceitável ao nível
metodológico, o qual está restrito pelos ideais de um método único orientado para a
busca objetiva e racional pela verdade. Para acomodar o pluralismo metodológico
epistemicamente, torna-se necessária uma outra epistemologia, que na segunda fase
aparece como a epistemologia anarquista.
Não nos cabe afirmar que a projeção acima descrita de fato ocorreu e, caso
tenha ocorrido, que tenha adotado precisamente esta forma no pensamento
feyerabendiano. A “subordinação” da metodologia frente à epistemologia pode muito
bem ser uma exigência de eventual justificação e não de descoberta, criação ou
intuição de uma metodologia nova. Contudo, não se pode negar que a epistemologia
anarquista é compatível com o pluralismo metodológico enquanto o racionalismo
crítico não o é. Além disso, Feyerabend só passou a advogar o pluralismo
metodológico dentro do contexto epistemológico anarquista. Portanto, parece
razoável cogitar que a atitude pluralista presente no racionalismo crítico ao nível
teórico pode ser entendida como uma projeção ao nível metodológico no anarquismo
relativista, evidenciando uma espécie de continuidade – e também uma ruptura –
entre as duas fases da epistemologia feyerabendiana.
Prosseguimos, então, com a exposição de teses de primeira fase racionalista
crítica do pensamento de Paul Feyerabend apresentando os possíveis caminhos que
tais teses percorreram na formação da segunda fase anarquista.
4 Para um detalhamento dessa questão, ver: Laudan, Larry, For method, Or against Feyerabend, in An Intimate Relation, R. Brown & J. Mittlestrass (eds), Dodrecht, Kluwer, (1989) e Preston (1997, p. 132-136)
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
26
2.2.2 A normatividade e a base ética da epistemologia
Conforme mencionamos acima (p. 18), Feyerabend marca a primeira fase de
sua carreira na filosofia em busca de um “modelo racional para aquisição do
conhecimento”, supondo que, para tanto, poderia-se ater apenas à aquisição do
conhecimento científico. Subjacente a este objetivo e às formas pelas quais pretende
atingi-lo, encontramos sua forte identificação com a epistemologia popperiana.
(Preston, 1997: p. 11) Além de ambos considerarem válido estudar o conhecimento –
suas condições de possibilidade, maneiras de alcançá-lo, formas de fazê-lo progredir -
via conhecimento científico, concordavam também quanto à maneira como se deve
fazer epistemologia. Esta deve tratar do conhecimento “sem sujeito conhecedor”
apresentado por Popper em seu Conhecimento Objetivo (Popper, 1972a), em oposição
à abordagem tradicional dos empiristas ingleses, Kant, Mill, Russel e Husserl, que
partem do sujeito conhecedor e buscam qual seria a sua relação cognitiva com o
mundo exterior. A epistemologia partilhada, na época, por Popper e Feyerabend,
voltava-se para os produtos do conhecimento, as afirmações científicas, leis e
asserções que resultam da atividade cognitiva.
Além da influência popperiana no tocante à natureza normativa da
epistemologia, Feyerabend também partilha essa concepção com seu ex-professor,
Victor Kraft, para quem:
A teoria do conhecimento deve ser algo muito diferente das ciências factuais; ela não lida com algo que exista na realidade, porém, estabelece objetivos e normas para nossa atividade intelectual.
(Kraft, 1960: p.32 in Preston, 1997:p.14, minha tradução)
Embora Feyerabend tenha vindo a suprimir em edições posteriores aquelas
passagens de suas publicações onde está explícito seu compromisso com essa visão
normativa da epistemologia, ela esteve presente nas versões originais de seus artigos
até 1968. (Preston, 1997: p. 213, n.10). Contudo, o ponto sobre o qual desejamos
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
27
chamar atenção é que a concepção normativa ao nível epistemológico corresponde,
ao nível do conhecimento (científico) e da metodologia, a uma concepção
convencionalista. Com isso, os “fatos” científicos (teorias) e os “fatos”
metodológicos (regras) poderão ser vistos de formas diferentes em função dos ideais
epistemológicos prescritos para tal exame. Em outras palavras, o que é e como deve
ser atingido o conhecimento passam a ser questões de norma e não de fato5. Resta
então determinar quais os critérios para a adoção de determinados ideais epistêmicos
em detrimento de outros. A resposta para essa questão, segundo Feyerabend, deve ser
ética, com base nas conseqüências das decisões metodológicas que esses ideais
epistemológicos venham a implicar. A fundamentação ética da epistemologia
feyerabendiana fica bem clara na seguinte passagem:
O seguinte problema fundamental: qual atitude deveremos adotar e qual tipo de vida iremos levar.... é o mais fundamental de todos os problemas da epistemologia.[...] (a) epistemologia, ou a estrutura de conhecimento que aceitarmos, repousa sobre uma decisão ética.
(Feyerabend,1961a:pp. 55-56 in Preston, 1997: p.21, tradução e grifos meus)
Entretanto, resta saber quais critérios deverão pautar a desejabilidade ética das
conseqüências das decisões metodológicas. Referindo-se às regras que pautam tais
decisões, Feyerabend recomenda:
....Reunir tais regras, eliminar delas qualquer traço remanescente de dogmatismo e cegueira ideológica, seria um ponto de partida para um tipo de conhecimento que é aberto ao progresso e, portanto, humanisado.
(Feyerabend, 1965a: p. 217 in Preston, 1997: p. 21)
Mas o que quer dizer “conhecimento aberto ao progresso e humanisado” para
Feyerabend em 1965? No trecho acima, o epistemólogo faz uma associação direta
entre tal conhecimento e aquele livre de “dogmatismo e cegueira ideológica”. Vimos
acima (pp. 21 – 25), na argumentação pela pluralidade teórica, um forte elemento
5 Esta posição cria um forte impasse com o realismo científico que Feyerabend também defende nessa época. Para uma crítica a essa inconsistência da epistemologia feyerabendiana ver: Preston, 1997: p. 22)
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
28
contra a hegemonia teórica, especialmente no tocante às potenciais limitações que tal
hegemonia poderia impor tanto sobre a habilidade crítica quanto sobre a percepção da
realidade pela cognição humana. Não parece absurdo cogitar então que, o
conhecimento – no contexto de uma epistemologia normativa - será tanto mais aberto
ao progresso e humanisado, quanto mais estiver livre da possibilidade de
dogmatismo, enquanto conseqüência potencial da hegemonia teórica.
Outro aspecto que talvez esclareça o que Feyerabend entende por um
conhecimento aberto ao progresso e humanisado está no seguinte trecho:
O fato que praticamente qualquer doutrina filosófica pode encontrar sua realização tanto numa cosmologia... e/ou numa teoria do homem... torna muito claro que o procedimento que leva à adoção de uma posição filosófica não pode ser a prova ... mas precisa ser uma decisão com base em preferências.... Filósofos têm habitualmente julgado a situação de modo bem diferente. Para eles, somente uma dentre as diversas posições existentes era verdadeira e, portanto, possível. Essa atitude, naturalmente, restringe consideravelmente as possibilidades de escolha responsável... [O] problema da escolha responsável permeia até mesmo as questões mais abstratas da filosofia e... a ética é, portanto, a base de todo o resto.
(Feyerabend, 1965a: p. 219, n.5 in Preston 1996, p: 21, minha tradução)
Ao criticar a atitude de aceitar (como verdadeira) somente uma posição
filosófica, novamente aparece a rejeição à hegemonia, desta feita como elemento
restritivo das possibilidades de uma “escolha responsável”. Há uma mudança de foco
nesse argumento se comparado com aquele que advoga a pluralidade teórica.
Naquele, a pluralidade teórica é posta como condição para o avanço do conhecimento
científico. Neste, a pluralidade de posições filosóficas favorece a escolha responsável.
Hegemonias, cada uma em seu âmbito, são apontadas como elementos limitadores,
sempre incompatíveis com a idéia de progresso e humanização.
Tal associação parece refletir a forte influência que o humanismo liberal de
John Stuart Mill exerce sobre Feyerabend. Embora nos limites desta pesquisa a
primeira citação de Feyerabend a Mill ocorra já em sua segunda fase (Feyerabend,
1975), os trechos que acabamos de comentar são de sua fase anterior.
O que nos parece é que, na região fronteiriça entre as fases do pensamento
feyerabendiano, os fundamentos da epistemologia normativa e da metodologia
falsificacionista usados contra a hegemonia (seja ela teórica ou de posição filosófica)
começam gradualmente a ser acompanhados de argumentos que apelam a valores
humanistas. E esse humanismo liberal é fundamentalmente marcado pela oposição ao
A atitude pluralista e o humanismo em Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico
29
ponto de vista absoluto, que transforma-se num dogma, e pela valorização do
desenvolvimento de pontos de vista alternativos, da liberdade de escolha e de respeito
à individualidade enquanto manifestação da diversidade humana.
Quando Feyerabend privilegia Mill, ao invés de Popper, a constatação da
falibilidade do conhecimento (científico) é ampliada para a questão da falibilidade
humana de uma forma geral, a qual assume uma dimensão mais abrangente como
argumento contra qualquer forma de certeza absoluta.
Recusar-se a ouvir uma opinião por ter certeza que ela é falsa é assumir a sua certeza de forma absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma assunção de infalibilidade.
(Mill, 1961: p. 77, minha tradução)
Se toda a humanidade a menos de uma pessoa tivesse uma mesma opinião, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar este único homem do que ele, caso tivesse esse poder, de silenciar toda a humanidade. [...]. A crueldade peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é a de que ela subtrai da raça humana, da posteridade e da geração atual – daqueles que discordam da opinião suprimida mais do que daqueles que a defendem.
(Mill, 1961: p.76, tradução e grifos meus)
Para fins de nossa exposição - que pretende identificar ligações entre a primeira
e a segunda fases do pensamento de Feyerabend - ressaltamos que toda a
argumentação feyerabendiana contrária à hegemonia de uma teoria, idéia ou posição,
bem como o seu apelo a uma fundamentação humanista para a epistemologia já
estavam presentes em sua primeira fase, apoiados em idéias racionalistas críticas e
regras falsificacionistas.
Na segunda fase, Feyerabend dá continuidade à negação de quaisquer ideais
hegmônicos bem como à inspiração humanista em suas teses, enfatizando a presença
e influência desses dois eixos norteadores (diversidade e humanismo) na sua
epistemologia anarquista, como veremos no Capítulo 3 a seguir.
3 A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
Para a exposição e discussão sobre o anarquismo epistemológico neste capítulo,
iremos nos concentrar nas questões que compõem o cerne das hipóteses da pesquisa,
a saber, os argumentos feyerabendianos contra o monismo metodológico
(identificado por Feyerabend com o racionalismo) e a primazia do conhecimento
científico sobre as demais formas de conhecimento ou visões de mundo, ressaltando
os prejuízos que a falta de tal atitude crítica traz tanto para o progresso da ciência
quanto para a realização da liberdade individual e da potencialidade humana, sob um
prisma humanista. Por este motivo, não iremos explorar detalhadamente as
contradições e inconsistências dessa epistemologia, embora venhamos a pontuar
alguns de seus problemas mais marcantes.
No capítulo anterior, pretendemos mostrar como Feyerabend, ainda dentro de
um contexto que valoriza o conhecimento científico sobre os demais e busca um
método racional único que resulte em tal conhecimento, utilizou fundamentos
racionalistas críticos para defender uma atitude pluralista e uma base ética humanista
para a epistemologia. Discutiremos, então, como, ao formular os argumentos que
caracterizam a epistemologia anarquista, Feyerabend rompeu com esse contexto
epistemológico e metodológico, porém, manteve como fios condutores de suas idéias
a crítica à hegemonia e o humanismo liberal de John Stuart Mill.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
31
3.1 Algumas constâncias “catalisando” a ruptura
Embora a obra feyerabendiana seja primordialmente reconhecida pela ruptura
entre o racionalismo crítico e o irracionalismo anarquista, pretendemos apresentar
uma breve discussão quanto à constância na inspiração em ideais pluralistas e
humanistas ao longo de suas duas fases. Paradoxalmente, foi talvez por manter e
reafirmar esses ideais ao extremo que Feyerabend acabou por romper com sua origem
racionalista crítica, criando toda uma “nova” base de argumentos [anarquistas] para
defendê-los.
Como evidência dessa constância, apontamos para a sua crítica permanente ao
monismo teórico, na primeira fase; metodológico e epistemológico na segunda fase.
Em ambas as fases, Feyerabend realiza essa crítica por entender que o monismo pode
levar à hegemonia, que por sua vez tende a estabelecer-se como Verdade, inibindo o
desenvolvimento da variedade inerente ao potencial humano e o exercício da
liberdade de escolha. Além disso, Feyerabend também argumenta que a tendência das
idéias hegemônicas assumirem o valor de Verdade equivocadamente desconsidera
uma questão crucial: a falibilidade humana.
Seguindo essa linha de raciocínio relativamente ao racionalismo crítico, embora
este acomode a pluralidade teórica e uma base ética humanista para a epistemologia,
nele ainda subsiste uma série de ideais hegemônicos interligados, quais sejam: a
Honestidade do cientista, que o leva à busca desinteressada pela Verdade (embora
talvez nunca a atinja e, se o fizer, não terá meios para sabê-lo); a mesma Honestidade
que o leva a formular somente aquelas teorias que possam ser empiricamente
refutadas; o emprego constante da Razão, da Objetividade e do método científico,
desconsiderando quaisquer outras vias ou formas alternativas em sua atividade
científica.
Da incompatibilidade entre esses ideais hegemônicos e a necessária liberdade e
variedade preconizadas pelo humanismo, decorre, possivelmente, o que Preston
chamou de “desencantamento com os tradicionais ideais epistêmicos” (Preston, 1997:
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
32
p.192) nos textos feyerabendianos produzidos em torno do ano de 1970 e daí em
diante. Esse “desencantamento”, provocado, talvez, pela exacerbação do ideal maior
do humanismo de John Stuart Mill – a liberdade de expressão e de pensamento -
conduz à primeira apresentação da epistemologia anarquista, no artigo Against
Method – Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge (Feyerabend, 1970b), cinco
anos antes da edição de Against Method (Feyerabend, 1975).
Cogitamos, então, que os eixos norteadores do pensamento feyerabendiano vêm
a ser a pluralidade epistemológica e o humanismo que, reunidos, constituem um
“humanismo liberal e pluralista”, presente em ambas as fases da sua obra, porém,
mais radical e, portanto, mais claramente identificável, na segunda fase. O que se
transforma, constituindo a ruptura da primeira para a segunda fase, não parece atingir
esses eixos, restringindo-se aos argumentos que compõem a defesa e manutenção dos
mesmos.
Sob essa perspectiva, o anarquismo surge como uma alternativa ao
racionalismo crítico, por ser capaz de abrigar todo a liberalidade do humanismo de
Mill e todo o pluralismo da visão epistemológica feyerabendiana. Contudo, há outro
enfoque para explicar por que a alternativa anarquista teve que adotar posições tão
extremadas. Sob esse segundo enfoque, Feyerabend ainda mantinha resquícios
racionalistas críticos na epistemologia de sua segunda fase e, por esse motivo, foi
levado a uma posição extrema, propondo o anarquismo.
Apresentamos a seguir uma discussão do processo da passagem da primeira
fase para a segunda considerando primordialmente o primeiro enfoque (o da
manutenção dos eixos norteadores na passagem entre as fases), realizando ao longo
do texto um contraponto deste enfoque com o enfoque alternativo que descrevemos
acima.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
33
3.2 A ruptura vem à tona
O ataque ao monismo metodológico constitui o cerne do anarquismo
epistemológico e do livro Against Method (Feyerabend, 1975), onde essa posição
epistêmica foi veementemente apresentada pelo autor. Ao dizer que não existe um
método único para chegar-se ao conhecimento científico e que, além disso, tal
conhecimento só atingiu seu estado atual porque nos momentos de grandes mudanças
- que resultaram em avanços nesse conhecimento - os cientistas utilizaram uma
atitude pluralista, Feyerabend faz uma oposição direta ao monismo metodológico e
rompe definitivamente com o racionalismo crítico. A partir daí, a oposição se estende
à racionalidade da ciência – cujas garantias seriam o monismo e a racionalidade
metodológicos – bem como ao “racionalismo” de modo geral, entendido como a
posição que privilegia a Razão e o conhecimento racional científico sobre as demais
formas de conhecimento (religioso, místico, ou estético). Na epistemologia
anarquista, a Razão é apenas uma “tradição” entre tantas outras (magia, ocultismo,
revelação, entre outras) e, como tal, deve ser considerada.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
34
3.2.1 O anarquismo dadaísta enquanto pluralismo liberal e tolerante
O termo “anarquismo”, utilizado por Feyerabend em Against Method, vem
carregado do significado “contrário à ordem estabelecida”, subjacente ao estilo
panfletário que tanto caracteriza sua obra na segunda fase. Contudo, pretendemos
“filtrar” – sem ignorar - essa carga panfletária, na tentativa de alcançar um melhor
entendimento do que efetivamente constitui o anarquismo na epistemologia
feyerabendiana.
Já na introdução de Against Method, Feyerabend fala em “metodologia
anarquista” e “ciência anarquista” (Feyerabend 1975:p. 21, minha tradução), o que
nos leva a pensar na possibilidade de algum nível de correspondência, ou
equivalência, no uso dos termos pluralismo e anarquismo, como se o anarquismo
surgisse da situação pluralista resultante da constatação da ausência do monismo
[metodológico] – enquanto uma lei e uma ordem - na ciência.
Para distinguir o seu anarquismo epistemológico do anarquismo político bem
como do ceticismo, Feyerabend faz um paralelo do primeiro com o Dadaísmo,
descrevendo o verdadeiro dadaísta como aquele que também é um anti-dadaísta,
sendo capaz de vigorosamente defender posições diferentes e contraditórias entre si
em momentos distintos. A motivação do dadaísta para essa mudança de posição, tanto
pode ser por força de argumento, quanto por qualquer disposição eventual e
circunstancial, ou seja, por motivos não racionalmente justificáveis. Além de adotar a
inconstância como possibilidade a qualquer momento, o dadaísta também respeita e
leva em consideração outros pontos de vista, mesmo os radicalmente diferentes dos
seus, sem distinção ou pré-julgamento. A única idéia a que o dadaísta se opõe é à
idéia da universalidade de leis, ideais ou padrões, embora não se furte a agir como se
tais universais existissem, quando as circunstâncias assim o exigirem. (Feyerabend,
1975: p. 189). Em resumo, o dadaísta é um relativista liberal, tolerante e pluralista
opondo-se apenas a pontos de vista hegemônicos. Esta é a “anarquia dadaísta”
proposta por Feyerabend, inspirada no humanismo de John Stuart Mill, e que ao nível
metodológico se traduz em pluralismo, aceitando a possibilidade de empregar-se
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
35
qualquer método, contanto que este não seja considerado como o único método
válido.
Como fica, então, essa “anarquia” sob a forma de pluralismo metodológico,
quando aplicada à prática científica, na interpretação feyerabendiana?
Enquanto pluralistas metodológicos, os grandes cientistas não se prendem a
nenhum método específico, agem de maneira “oportunista” e empregam estratégias
de convencimento além da argumentação racional para exposição de suas idéias ou
teorias bem como dos resultados de seus testes e observações. (Feyerabend, 1975: p.
81). Seu exemplo clássico é Galileu, sobre o qual discorre a partir do Capítulo 5 de
Against Method. O “oportunismo” científico consiste em relacionar teorias já
conhecidas, outras ainda em desenvolvimento, observações, hipóteses auxiliares e
hipóteses ad hoc de acordo com as circunstâncias do momento, ao invés de seguir
regras metodológicas fixas e pré-estabelecidas. Além disso, a apresentação de novas
teorias e fatos científicos ocorre com recurso à propaganda, manipulações e induções
de natureza psicológica, e não apenas à argumentação racional. Em suma, a ciência,
segundo Feyerabend, progrediu no passado e progride hoje porque o cientista é um
pluralista e não um seguidor de regras.
O uso de termos como “oportunista” para referir-se ao “homem de ciência” e
como “propaganda” para descrever a forma de apresentação de descobertas
científicas, chocaram – e ainda chocam - os leitores, gerando uma enxurrada de
críticas “...bem além do que normalmente se espera para considerar uma publicação
de má qualidade nos círculos acadêmicos.” (Preston, 1997: p. 170, minha tradução).
Feyerabend havia previsto uma rejeição às suas idéias, porém, não imaginou que
fosse ser tão forte e chegou até a arrepender-se de ter escrito Against Method, como
descreve na sua autobiografia:
Num certo momento, em meio à comoção, adquiri uma depressão que me acompanhou por mais de um ano. [...] agora estava sozinho, presa de um tipo desconhecido de aflição, minha vida privada estava uma confusão e eu estava sem defesas. Muitas vezes desejei nunca ter escrito a p... daquele livro.
(Feyerabend, 1996: p. 155)
Entretanto, abstraindo-se os motivos para a escolha de termos tão
flagrantemente ácidos contra os ideais de correção, objetividade e honestidade dos
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
36
grandes cientistas, ideais estes bastante prevalentes à época e, especialmente, entre os
racionalistas críticos, sob o ponto de vista estritamente metodológico, o
reconhecimento da atitude “oportunista” em ciência quer dizer apenas que não é
somente por cumprimento de regras pré-estabelecidas que: a) de fato a ciência
progride (aspecto descritivo), e b) pode-se atingir grandes avanços científicos
(aspecto prescritivo).
Neste ponto, cabem duas considerações. A primeira, diz respeito ao
rompimento feyerabendiano com a normatividade na epistemologia, uma vez que
seus argumentos passam a conter constantes descrições de fatos da história da ciência
como justificativas, o que não faria sentido no contexto epistêmico normativo de sua
primeira fase. Isso indica a influência das tentativas de reconstrução histórica da
ciência sobre Feyerabend, presentes tanto em Kuhn (1970) quanto em Lakatos
(1970), e que desempenham um papel importante na ruptura entre a primeira e
segunda fase da epistemologia feyerabendiana. Embora haja controvérsias quanto à
fidedignidade da interpretação feyerabendiana dos fatos históricos referentes a
Galileu, (Agassi, 1976 in Preston, 1997: p. 170), a forte presença dessa reconstrução
histórica nos argumentos favoráveis ao pluralismo metodológico não deixa dúvidas
de que a visão normativa ficou definitivamente para trás.
A segunda consideração refere-se ao caráter “prescritivo” do pluralismo, o qual,
segundo Preston, constitui a parte mais fraca de toda a argumentação feyerabendiana,
possuindo resquícios popperianos funcionando como premissas não declaradas
(Preston, 1997: pp. 173-175). O termo “prescritivo” vem entre aspas porque
Feyerabend não parece ter pretendido apresentar uma nova metodologia com regras
liberais e pluralistas ao delinear o anarquismo epistemológico e o pluralismo
metodológico. Ambos parecem compor mais uma constatação a partir da história da
ciência do que uma epistemologia ou um conjunto de regras a ser seguido. (Preston,
1966: p. 172).
Vejamos, sucintamente, de que maneira se desenvolve o argumento da
existência de premissas popperianas não declaradas na “prescritividade” de natureza
não normativa na epistemologia feyerabendiana.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
37
Ao tentar mostrar que Galileu desrespeitou praticamente todas as regras
associadas ao monismo metodológico (seja ele positivista ou racionalista crítico),
Feyerabend pretendeu mostrar também que, se Galileu não o tivesse feito, a
revolução científica da qual foi principal ator não teria acontecido. Assim sendo,
Feyerabend conclui que Galileu agiu como um pluralista metodológico e não como
um monista porque, ora adotou procedimentos indutivos, ora contra-indutivos, ora
rejeitou ora introduziu hipóteses ad hoc. Entretanto, tal conclusão só pode ser tirada –
argumenta Preston - sob a premissa não declarada que o uso de um dado método (no
caso, indutivo), só pode ser legitimamente considerado como tal no caso de não
serem possíveis exceções às suas regras. Nessa mesma linha de pensamento, a busca
por um método infalível na epistemologia popperiana – ainda à inspiração cartesiana
– teria gerado o falsificacionismo, o método que pretende nunca falhar. Uma vez que
nem o positivismo nem o falsificacionismo estão imunes a falhas, Feyerabend teria
concluído que o pluralismo seria a única alternativa, por afirmar a inexistência de um
conjunto de regras metodológicas [infalíveis]. Contudo, se essa premissa não
declarada - de que um método precisa ser infalível e seu uso legítimo somente ocorre
se não forem permitidas exceções às suas regras – for suprimida, tanto o indutivismo
quanto o falsificacionismo podem ser mantidos e nenhuma alternativa pluralista se
torna necessária. Nas palavras de Newton-Smith, ao referir-se às regras do método
indutivo “[...]Talvez seja o caso de, a despeito dessas exceções, as chances de
progresso a longo prazo serem maiores se nós empregarmos a regra [indutiva].”
(Newton-Smith, 1981: p. 129 in Preston, 1997: p. 175).
Ante esse argumento, é possível dizer-se que Feyerabend recusou o indutivismo
e posterioirmente o falsificacionismo e a idéia de qualquer metodologia fixa por ter
uma visão excessivamente rigorosa (de inspiração popperiana) para a aplicação de
regras metodológicas, não admitindo nenhuma exceção. Entretanto, também é
possível argumentar que Feyerabend não considerava como meras “exceções” o não
cumprimento das regras de uma dada metodologia (seja ela indutiva ou
falsificacionista) na prática científica. Como se vê especialmente nos Capítulos de
Against Method dedicados a Galileu, o emprego de regras características de
metodologias distintas e até contraditórias, longe de ser uma “exceção”- como diz
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
38
Newton Smith - foi uma prática bastante freqüente no trabalho daquele cientista. Um
outro aspecto que Feyerabend aponta e que enfraquece o argumento de Newton
Smith, é que o progresso científico atingido por Galileu foi devido a essa pluralidade
metodológica e não ao cumprimento das regras de uma metodologia única (indutiva),
entremeada por eventuais “exceções”. Em suma, para Feyerabend a ciência não
progride pela aplicação de um método único para o qual são permitidas exceções,
mas pela aplicação de uma variedade de regras de diversas metodologias de maneira
imprevisível conforme a circunstância da prática científica e a inventividade do
cientista. Assim, a dimensão “prescritiva” de caráter não normativo do pluralismo
metodológico seria uma espécie de sugestão a partir da identificação desse pluralismo
na prática científica de sucesso, exemplificada por Galileu.
Em que pese esse argumento, a “prescritividade” de caráter não normativo que
Feyerabend tenha eventualmente sugerido para sua metodologia pluralista, não se
restringiu à inspiração em exemplos da história da ciência. Como dissemos
anteriormente, a ética humanista liberal continua presente e de maneira marcante em
sua segunda fase, e nela reside outro argumento forte para uma possível dimensão
“prescritiva” do anarquismo. Embora esta não seja uma prescritividade decorrente de
uma visão normativa da epistemologia, ela pode ser entendida a partir de uma base
ética humanista liberal, como veremos adiante no sub-item referente à educação
cientificista. Para fins deste sub-item, pretendemos discutir o anarquismo enquanto
“resultante” da rejeição ao monismo, combinado a uma atitude liberal e tolerante
frente a alternativas, bem como ao “oportunismo”, enquanto uma liberdade para o
eventual não cumprimento de regras – em oposição ao metódico e rigoroso
cumprimento das mesmas - para relacionar teorias, observações e hipóteses auxiliares
na prática científica. Nossa próxima discussão abordará uma outra expressão
polêmica da epistemologia feyerabendiana: o “vale tudo”, intimamente ligada à
abordagem que utilizamos neste sub-item e que acabamos de descrever.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
39
3.2.2 O “vale tudo” em ciência
Embora em Against Method o autor faça referência ao princípio “vale tudo”
como sendo o único “[...] defensável em todas as circunstâncias e estágios do
desenvolvimento humano” (Feyerabend, 1975: p. 28), Preston alerta que, na 3a.
edição de 1993, Feyerabend afirma que:
[...] vale tudo não é um princípio que eu defendo – eu não acredito que princípios possam ser usados ou discutidos eficientemente fora da situação concreta de pesquisa à qual eles devem supostamente ser aplicados – mas a exclamação horrorizada do racionalista que olhar a história mais de perto.
(Feyerabend, 1993: p. vii in Preston, 1997:p. 172)
Assim, entendemos que Feyerabend esclarece que não pretendeu postular
princípios metodológicos, mas constatar a maneira pela qual a ciência se deu através
de sua história. Além disso, afirma que eventuais princípios somente podem ser
discutidos dentro da situação de pesquisa a que se referem, sugerindo assim que tais
princípios existem – ao contrário do que afirmam diversas interpretações de sua obra
- porém, são imanentes à pesquisa e não regras abstratas estabelecidas a priori fora
da situação prática a que se referem. Talvez aqui esteja mais um esclarecimento do
que quer dizer o “oportunismo” do cientista, no que tange à qual regra irá empregar
em cada situação de pesquisa. Para ilustrar essa discussão, cito: As observações feitas até aqui não significam que a pesquisa é arbitrária e sem orientação. Os padrões existem, porém, eles surgem do próprio processo de pesquisa e não de pontos de vista abstratos sobre a racionalidade..
(Feyerabend, 1978: p. 99 in Preston, 1997:p. 172)
Entendido dessa forma, o “vale tudo” não significa a total desordem na prática
científica, mas, uma contínua busca de “regras” para relacionar teorias, observações e
hipóteses de modo que seja atendida a situação de pesquisa no momento, dentro do
respectivo contexto histórico e do conhecimento disponível. Nessa perspectiva, a
proposta metodológica monista é simplória por não levar em consideração a
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
40
complexidade histórica da ciência e suas constantes mudanças. Para atender às
necessidades advindas destas constantes mudanças, as regras precisam ser
“reinventadas”, às vezes até em “contra-regras”, ou seja, ditando procedimentos
diametralmente contrários às regras metodológicas anteriormente empregadas.
Como exemplos de “contra-regras” que surgem na prática científica da atitude
“oportunista” dos grandes cientistas, temos a contra-indução e a introdução de
hipóteses ad hoc, respectivamente contrárias às regras metodológicas do indutivismo
positivista e do racionalismo crítico, bem como o não cumprimento da regra de
consistência, em conseqüência do princípio de proliferação teórica estabelecida ainda
na primeira fase do autor.
Uma vez que o próprio Feyerabend atesta que boa parte de Against Method
constitui uma “colagem” de pequenas modificações em artigos escritos até vinte anos
antes de sua publicação, os argumentos que ele apresenta para sustentar essas “contra-
regras”1 mesclam conceitos e princípios de sua fase anterior, algumas vezes
confundindo o leitor. (Preston, 1997: p. 171). Possivelmente visando evitar essa
confusão, Feyerabend chama a atenção que o seu uso de termos como “progresso” ou
“avanço” ao referir-se à ciência não possuem uma definição rigorosa ou um
significado único, ou seja, cada um poderá interpretar progresso à sua maneira, de
acordo com sua própria visão epistêmica. Contudo, o autor afirma que, para qualquer
entendimento do que seja progresso ou avanço, a epistemologia anarquista será a
melhor alternativa para a sua obtenção (Feyerabend, 1975: p. 27). Tal afirmação
parece estar pautada no fato de que somente o anarquismo permite o eventual recurso
oportunista às “contra-regras”, ao contrário das metodologias monistas, evidenciando
que o anarquismo pode “mesclar” critérios monistas a uma aplicação pluralista de
regras, sem, contudo, constituir-se num método. Na citação a seguir, vemos o quanto
Feyerabend expõe sua “estratégia de convencimento” baseada na seguinte
argumentação:
1 O procedimento a que se refere a expressão “contra-regra” no Against Method (Feyerabend, 1975), é o da atitude adotada por um cientista que seja contrária a alguma regra metodológica característica do empirismo e/ou do racionalismo crítico, como, por exemplo, a ação contra-indutiva, descrita especialmente nos Capítulos II e III.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
41
Alguém pode ter a impressão de que eu estou recomendando uma nova metodologia que substitui a indução pela contra-indução e que utiliza uma multiplicidade de tórias, pontos de vista metafísicos, contos de fada ao invés de o costumeiro par teoria/observação. Essa impressão seria equivocada, com certeza. Minha intenção não é de substituir um conjunto de regras gerais por outro; minha intenção é, ao invés disso, convencer o leitor que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de mostrar isto é demonstrar os limites e até a irracionalidade de algumas regras que todos consideram básicas. No caso da indução (incluindo a indução por falsificação) isso significa demonstrar quanto suporte argumental pode ser dado a um procedimento contra-indutivo.
(Feyerabend, 1975: p. 32, minha tradução, grifos no original.)
No tocante à questão de progresso ou avanço na ciência num contexto
anarquista pluralista, também há uma espécie de “contra-regra”: a
incomensurabilidade entre teorias. Essa relação entre teorias impede a utilização de
critérios monistas de progresso, uma vez que os referidos critérios metodológicos são
comparativos e exigem comensurabilidade para avaliação do progresso da ciência,
tais como: aumento do conteúdo empírico, maior simplicidade, ampliação na
capacidade de previsão, para citar alguns. Uma vez que a incomensurabilidade entre
teorias caracteriza o processo de revolução científica sob o prisma anarquista, surge
uma espécie de impasse: Como falar de progresso sob critérios monistas num
contexto epistemológico anarquista?
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
42
3.2.3 Incomensurabilidade
O conceito de incomensurabilidade na epistemologia feyerabendiana está
intimamente relacionado à sua crítica à condição positivista de invariância de
significado, que afirma o seguinte: “[..] os termos descritivos de uma teoria científica
podem ser explicitamente definidos com base em termos observacionais [..]”
(Feyerabend, 1962: p.49 in Presotn, 1996: p. 100). Essa crítica ocorre em duas etapas,
ambas pautadas na história da ciência.
Na primeira, Feyerabend mostra que, durante as revoluções científicas,
ocorreram mudanças tão radicais nos termos descritivos entre as teorias anteriores e
posteriores à revolução que estas se tornam incompatíveis quanto à interpretação
realista de seus termos. Um dos exemplos preferidos de Feyerabend para essa
incompatibilidade seria, segundo Preston, a Teoria Medieval do impetus, que consiste
de uma tentativa de remediar um problema da teoria aristotélica do movimento.
Segunda essa teoria, um movimento só poderia surgir e se manter pela ação
continuada de uma força, não explicando como um projétil continua sua trajetória
após cessar a ação da força que deu início ao seu movimento. A Teoria medieval do
impetus introduzia, então, uma hipótese ad hoc segundo a qual o primeiro objeto a se
mover transfere ao projétil uma força interna (impetus), a qual seria a responsável
pela continuidade do movimento. Segundo Feyerabend, essa força interna não cabe
no sistema teórico formado pela mecânica celeste newtoniana, o que não apenas
reflete a incomensurabilidade entre as teorias, como denota também o papel favorável
ao progresso científico, desempenhado pela incomensurabilidade entre teorias,
ocorrido entre a física aristotélica e a newtoniana.
Existe uma série de problemas relativos a uma definição precisa da
incomensurabilidade feyerabendiana envolvendo a sua Teoria Contextual de
Significado, proposta ainda em sua primeira fase, a partir de uma interpretação do
segundo Wittgenstein (Preston, 1997: pp. 25 a 30), que fogem ao escopo de nossa
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
43
pesquisa. Contudo, vale comentar que tais problemas se refletem no teste não
ortodoxo de teorias rivais para um mesmo domínio, conforme apresentamos no
Capítulo I (pp. 12-14), dada a dificuldade em estabelecer-se uma comparação formal
entre teorias estritamente incomensuráveis para fins de teste (Preston, 1997: p. 105).
Especificamente para nossa exposição, dada a valorização da pluralidade teórica e
conceitual na epistemologia anarquista, a incomensurabilidade constitui um
argumento favorável a essa epistemologia e uma crítica ao empirismo, continuamente
presente desde a fase racionalista crítica da epistemologia feyerabendiana.
Um aspecto importante da abordagem à incomensurabilidade em Feyerabend,
diz respeito ao processo de identificação quanto a ter havido ou não uma alteração no
significado dos termos descritivos entre duas teorias.
[...] iremos diagnosticar a mudança de significado [entre teorias] se a nova teoria implicar que todos os conceitos da antiga teoria possuem extensão nula ou se esta introduzir regras que não podem ser aplicadas aos objetos definidos nas classes existentes [na teoria antiga], alterando a próprio sistema de classes [de objetos].
(Feyerabend, 1965b: p. 98 in Preston, 1997: p. 107, minha tradução).
Tal definição formal de incomensurabilidade – proposta ainda na sua primeira
fase - foi criticada por Achinstein e Shapere. O primeiro apontou que somente no
caso das duas teorias adotarem os mesmos significados para seus termos é que seria
possível a implicação de extensão nula que Feyerabend cita. Nesse caso, as teorias
não seriam incomensuráveis e a condição proposta não procede. O segundo alertou
que, a não ser no caso especial de cada teoria ter um sistema de classes totalmente
disjunto entre si, não seria possível distinguir entre uma mudança no sistema de
classes e uma simples mudança na extensão das classes da teoria anterior para a
posterior. Em suma, os critérios formais para incomensurabilidade propostos por
Feyerabend não funcionam.
A despeito desses problemas de natureza formal na definição de mudanças de
significado entre teorias, Feyerabend aponta para mais duas questões envolvendo
incomensurabilidade, com o objetivo de mostrar a relatividade na interpretação de
fatos científicos e a conseqüente relatividade na aplicação de conceitos
metodológicos por meio de suas regras.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
44
A primeira questão refere-se à diagnose pela incomensurabilidade entre teorias.
Esta diagnose, segundo Feyerabend, só pode ser feita após ter sido realizada a escolha
por uma dada interpretação (de nossa preferência) para os fatos a que a teoria se
refere. Isto porque essa interpretação é condição necessária para que os fatos sejam
passíveis de observação. As razões para essa seqüência de condições é a seguinte.
Define-se uma interpretação como a classificação e atribuição de propriedades
específicas a objetos, que são parte constitutiva de fatos. Entretanto, esses fatos só se
tornam interpretáveis dada essa classificação dos objetos neles envolvidos. Assim
sendo, para que um fato seja reconhecido e ‘observado’, ou seja, interpretado
enquanto fato no contexto de uma dada teoria, há que haver a adoção prévia de uma
interpretação para a ‘constituição’ dos objetos que comporão esse fato no escopo da
teoria em foco. A segunda questão é a seguinte: como os objetos que participam dos
fatos a que as teorias se referem podem ser constituídos por diversas interpretações
diferentes, sob determinadas interpretações um dado par de teorias pode ser
considerado incomensurável enquanto, sob outras interpretações, esse mesmo par de
teorias pode vir a ser considerado comensurável! Esse condicionamento da avaliação
de incomensurabilidade entre teorias à interpretação utilizada para a ‘constituição’
dos objetos que compõem os fatos a que as teorias se referem, sugere que a escolha
da interpretação não apenas precede como determina a diagnose quanto à mudança
ou estabilidade de significado dos termos teóricos. Uma vez que Feyerabend
considera que a “escolha” de interpretação relacionada a uma dada teoria ocorre no
momento em que ela é ensinada ao estudante, o futuro cientista usará a teoria sob a
interpretação que lhe foi ensinada (Preston, 1997: pp. 108 e 109). Dessa forma, a
incomensurabilidade entre teorias acaba por transformar-se numa questão relativa,
dependente da formação do cientista. Toda essa explanação feyerabendiana sobre
interpretação dos objetos que constituem os fatos científicos vem fundamentar a sua
tese de variação de significado ao nível da caracterização dos objetos que compõem
os fatos relativos a essa teoria, gerando a incomensurabilidade entre as teorias
científicas quando tal variação de significado ocorre.
Com o objetivo de tornar o conceito de incomensurabilidade menos árido e
prosseguindo na crítica à condição positivista de invariância de significado,
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
45
Feyerabend sugere um critério de diferença intuitivo para o estabelecimento de
mudanças de significado entre teorias – implicando na sua incomensurabilidade -
ilustrado pela recorrente comparação entre a teoria mecânica clássica celeste (TMC) e
a teoria geral da relatividade (TGR). Nesse exemplo, se alterarmos o valor da
constante “g” na TMC, gerando uma TMC*, as previsões geradas por TMC* serão
diferentes daquelas geradas por TMC, caracterizando uma diferença entre ambas.
Temos, então, três teorias diferentes entre si. Contudo, essas “diferenças” não são do
mesmo tipo. Entre TMC e TMC* temos uma diferença quantitativa entre suas
previsões, porém, ambas referem-se ao mesmo conjunto de entidades. Já a diferença
entre TMC e TGR bem como entre TMC* e TGR é de natureza qualitativa, pois, em
cada um desses pares, as teorias referem-se a um tipo diferente de entidade. Esse tipo
de diferença qualitativa entre teorias, envolvendo uma noção intuitiva dos tipos de
entidades a que se referem, constituiria a incomensurabilidade (Preston, 1997: p.
107). Assim, o par (TMC, TMC*) é comensurável, porém, os pares (TMC, TGR) e
(TMC*, TGR) não o são.
Dessa forma, Feyerabend conclui que não há como estabelecer critérios de
“progresso” para passagem de uma teoria para outra nem tampouco justificativas
racionais para essa passagem. Essa é uma das linhas de raciocínio que levam da
incomensurabilidade entre as teorias à irracionalidade nas mudanças entre teorias na
ciência.2
O recurso feyerabendiano à intuição tem como objetivo a apresentação de uma
oposição ao argumento que a diferença entre TMC e TGR é apenas quantitativa e de
escala, não importando questões de significado, mas, apenas a questão relacionada às
previsões de cada teoria. Nessa abordagem, a TMC é uma aproximação numérica da
TGR em determinada faixa de escala de grandeza, o que faria de TMC um “caso
particular” da TGR. Esta última, por sua vez, possui precisão e conteúdo empírico
que inclui e excede o de TMC, caracterizando um progresso no conhecimento
científico e uma justificativa racional para a passagem de uma teoria para a outra,
2 Na Conclusão desta dissertação, será apresentada uma outra argumentação envolvendo a relação entre incomensurabilidade e
irracionalidade no contexto de uma nova hipótese, ainda não completamente formalizada, levantada a partir desta pesquisa.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
46
seguindo os critérios monistas de progresso, desconsiderando-se a
incomensurabilidade qualitativa de significado entre as referidas teorias.
Como sabemos, Feyerabend se opõe a essa linha de pensamento, afirmando que
“... a continuidade de relações formais não implica na continuidade de
interpretações...” (Feyerabend, 1975, p: 283). Aqui voltamos a considerar a
explanação que fizemos acima sobre a ‘constituição’ de objetos a partir de
interpretações, definidas como a classificação e atribuição de propriedades
específicas a objetos, que são parte constitutiva de fatos científicos. De uma maneira
simplificada, Feyerabend utiliza a expressão “interpretação de teorias” para designar
essa interpretação, uma vez que o significado dos termos teóricos está ‘impregnado’
da interpretação que constituiu os objetos que compõem os fatos a que a teoria se
refere. Isto posto, Feyerabend considera que a falta de reconhecimento da alteração
de significado entre teorias ocorre porque se aplica uma interpretação instrumental às
teorias, não permitindo que a diferença de significado – incomensurabilidade - seja
percebida. (Feyerabend, 1975: p. 274). Tal interpretação considera as teorias como
meros instrumentos para a classificação de certos “fatos”, sem, contudo, buscar
entender a teoria em seus próprios termos, levando em conta a interpretação utilizada
para a ‘constituição’ de seus objetos.
Como elemento complicador presente na interpretação instrumental, o autor
refere-se a um “instrumentalismo inconsciente” que provoca uma ilusão de que essa
interpretação instrumental de fato permite a percepção do tipo de objeto, ou entidade,
a que a teoria se refere. Por força desse “instrumentalismo inconsciente”, tem-se a
impressão enganosa de que a correspondência instrumental entre teorias equivale a
uma correspondência também ao nível do tipo das entidades a que cada uma das
teorias se refere, oferecendo assim alguma possibilidade de comparação empírica.
Entretanto, Feyerabend nega veementemente essa correspondência bem como
qualquer possibilidade de ligação entre teorias incomensuráveis por força de sua
diferença interpretativa em relação aos objetos (entidades) que constituem os fatos a
que estas se referem.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
47
Não adianta tentar estabelecer uma ligação entre proposições clássicas e proposições relativistas por meio de uma hipótese empírica. Uma hipótese desse tipo seria tão risível quanto a proposição “sempre que há possessão por um demônio há também uma descarga no cérebro”, que estabelece a ligação entre os termos da teoria da possessão e os mais recentes termos ‘científicos’.
(Feyerabend, 1975: p. 2176, minha tradução, grifos no original)
Finalizando este item, pretendemos ter apresentado os aspectos principais do
papel da incomensurabilidade na epistemologia anarquista pluralista e algumas
críticas aos argumentos feyerabendianos que dão suporte à incomensurabilidade e aos
danos que esta gera às metodologias monistas racionalistas.
Acrescentamos ainda que, a despeito dessas críticas contrárias à
incomensurabilidade, Feyerabend considera que a variação de significado entre
teorias só constitui problema para as metodologias racionalistas, uma vez que
inviabiliza a comparação entre teorias e a utilização dos critérios monistas de
progresso científico. Por meio desse argumento, Feyerabend pretende mostrar que
tais metodologias não se aplicam à ciência por não representarem a prática científica
no tocante à comparação entre teorias ou mesmo entre programas de pesquisa.
Vamos, então, considerar o fenômeno da incomensurabilidade, o qual, no meu ponto de vista, cria problemas para todas as teorias da racionalidade, incluindo a metodologia de programas de pesquisa científica. Essa metodologia assume que teorias rivais de programas de pesquisa rivais podem sempre ser comparadas quanto ao seu conteúdo. O fenômeno de incomensurabilidade implica que este não é o caso.
(Feyerabend, 1975: p. 214)
Por outro lado, na epistemologia anarquista a incomensurabilidade é parte
integrante do processo de desenvolvimento da ciência porque denota a diversificação
dos tipos de entidades a que as novas teorias se referem, resultando numa nova visão
de mundo - ou cosmologia - que tais diversificações teóricas suscitam. Na
perspectiva feyerabendiana, tais desenvolvimentos são a central característica das
grandes revoluções científicas, como as protagonizadas por Galileu e Einstein.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
48
3.2.4 Anarquismo epistemológico e Educação
Enquanto uma epistemologia que considera a plena integração entre ciência,
outras formas de conhecimento e sociedade, o anarquismo pluralista refere-se intensamente à educação. Aqui, tanto ou mais do que na argumentação pela pluralidade teórica, a inspiração no humanismo de John Stuart Mill torna-se fundamental. Reafirmando essa inspiração, Feyerabend cita Mill:
[...] as mudanças que progressivamente ocorrem na sociedade moderna tendem a revelar, com um alívio cada vez mais forte: a importância, para o homem e a sociedade, de uma ampla variedade de tipos e de conferir-se plena liberdade à natureza humana para que esta se expanda em inúmeras e conflitantes direções. [...] as faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo, atividade mental e, até mesmo preferência moral, são exercitados apenas ao realizar-se uma escolha.
(Mill, 1961, p: 65 in Feyerabend, 1986)
Percebe-se como nessa citação a importância central da liberdade e da escolha
entre uma variedade de opções reveladas pela multiplicidade inerente à natureza
humana no humanismo de Mill. Feyerabend incorpora esse humanismo de maneira
muito compromissada em sua epistemologia e, por esse motivo, é tão frontalmente
contrário à educação científica que limita a multiplicidade de abordagens e pontos de
vista para interpretação das nossas percepções às científicas e, além disso, desvaloriza
as demais. Tal atitude ocorre sob a bandeira da racionalidade única, fixa e dogmática,
ao passo que no humanismo aqui descrito, “uma racionalidade fixa repousa sobre
uma visão excessivamente ingênua do que seja o homem e seu contexto social”
(Feyerabend, 1975: p. 6, minha tradução).
Para descrever a educação científica e seus objetivos, Feyerabend recorre à
história da ciência enquanto atividade humana.
[...] a história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos, e interessante quanto as mentes daqueles que a inventaram. Reciprocamente, um pouco de lavagem cerebral terá que seguir um longo caminho para tornar a história da ciência algo mais monótono, simples, mais uniforme, mais ‘objetivo’ e mais facilmente acessível a um tratamento por regras rígidas e imutáveis. [...] A educação científica como a vemos hoje tem precisamente esse objetivo.
(Feyerabend, 1975: p. 19, minha tradução)
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
49
Indo mais além, seguindo-se a esta passagem, o autor afirma que a
simplificação da ciência pela educação científica se dá também através da
simplificação do próprio conteúdo do que seja ciência, estabelecendo um domínio
científico separado dos demais, em particular da sua história. Como exemplo, cita a
física que é ensinada como um domínio totalmente distinto da metafísica e da
teologia, onde estão as suas origens, sendo-lhe conferida uma “lógica própria”. Essa
“lógica” passa então a ser incutida através de extensivo treinamento pela educação
científica e a perspectiva histórica, no que concerne à ligação desse ‘domínio
científico’ - a física - com sua história, perde-se completamente.
Uma outra crítica importante à educação científica está no fato que Feyerbend
vê nessa forma de educação a transmissão da imagem de uma ciência objetiva,
racional, metódica, fiel cumpridora das regras metodológicas, quando, na prática
científica de fato, tais características nem sempre se verificam.
A princípio, não há nada no humanismo que proíba a criação de tradições
definidas por regras rígidas e bem definidas. O que não se recomenda é a hegemonia
dessa tradição sobre as outras, excluindo o que nela não se incluir.
Como vimos anteriormente, a hegemonia de uma tradição leva, segundo
Feyerabend, à sua equiparação com a Verdade. Entretanto, essa equiparação
constitui-se num engano, uma vez que não há como testar ou aprimorar uma teoria ou
um princípio sem alternativas. Subjacente a esse argumento está a falibilidade do
conhecimento humano – inerente à epistemologia feyerabendiana – o qual solicita
constante teste e aprimoramento. Sempre contrário a posições hegemônicas, entre
elas, o empirismo positivista no tocante ao monismo indutivo e também à
estabilidade dos fatos e da linguagem de observação, Feyerabend critica não apenas
essa metodologia como também a sua repercussão na educação.
[...] Isso, penso eu, constitui o mais decisivo argumento contra qualquer método que encorage a uniformidade, seja ele empírico ou não. Qualquer método desse tipo, em última análise, é um método que favorece o engano. Ele [o método] reforça um conformismo não esclarecido, e fala de verdade; leva a uma deterioração das capacidades mentais, do poder da imaginação, e fala de profundo “insight”; destrói a talento mais precioso dos jovens – seu tremendo poder de imaginação, e fala de educação.
(Feyerabend, 1975: p. 45, minha tradução)
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
50
Dessa forma, o pluralismo não é apenas uma questão metodológica, mas,
também, humanista e que precisa ser observada na educação. Nesse particular,
Feyerabend identifica-se com correntes da escola nova progressista3, onde o professor
busca o desenvolvimento da individualidade do estudante, seja ele ou ela criança,
jovem ou adulto(a). Tal desenvolvimento se dá através da motivação e criação de
oportunidades para que as habilidades e idéias particulares a esse estudante sejam
exteriorizadas e discutidas com seus pares no ambiente escolar, ou acadêmico, e fora
dele.
O ensino deve ser baseado na curiosidade e não no comando, o ‘professor’ é convidado a promover essa curiosidade a não a confiar em apenas um único método. A espontaneidade reina suprema, no pensamento (percepção) como também na ação.
(Feyerabend, 1975: p. 187, minha tradução)
Contudo, não é essa a situação prevalente na educação, em que pese o fato do
advento da educação progressista, socio-construtivista em oposição à educação
tradicional, calcada na autoridade do professor e na repetição, ao invés da livre
associação, para a memorização da informação transmitida em sala de aula. (Aranha,
2000)
Para Feyerabend, uma possível solução para evitar os efeitos indesejáveis da
educação científica, seria a separação da educação (em geral) da formação
profissional, esta sim mais específica e, talvez, restrita a uma única abordagem teórica
e metodológica, bem como a uma forma específica de perceber o mundo e o ser
humano.
Minha opinião é a de que o primeiro e mais urgente problema é tirar a educação das mãos dos ‘educadores profissionais’. A coação efetuada por notas, competição, exames regulares precisa ser removida e nós precisamos também separar o processo de aprendizagem da preparação para uma profissão particular.
(Feyerabend, 1975: p. 217, minha tradução, itálicos no original)
Contudo, os argumentos para uma modificação drástica na maneira pela qual a
educação institucional se processa não se limitam à apresentação dos benefícios de
uma abordagem humanista pluralista em oposição às restrições da educação
3 Para uma apresentação mais detalhada dessa forma de educação ver capítulos 2 e 3 de ARANHA, M. L. A, Filosofia da Educação, 2a. ed. Revista, São Paulo, Editora Moderna, 2000.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
51
científica. Feyerabend também recorre ao reflexo na sociedade e na maneira pela
qual as pessoas passam a conduzir suas vidas a partir de uma tal educação, dada a
falta de alternativas. Comparando a hegemonia da educação científica à hegemonia
religiosa, ambas viabilizadas - cada uma em seu tempo - pela associação ao estado, o
epistemólogo alerta para o fato que, embora hoje possamos escolher nossa religião,
termos necessariamente uma educação científica na esmagadora maioria das
instituições de ensino4.
Essa questão pode ser considerada absurda fora do contexto da proposta
feyerabendiana para a educação, uma vez que a separação entre ciência e religião é
uma questão ‘resolvida’ na maior parte do ocidente, de modo que a educação
religiosa tem seu lugar, enquanto a educação ‘regular’... esta sim é científica! Não
parece haver dúvidas quanto a isso ser o caso. Não há notícia de reclamações em
massa sobre essa situação. Entretanto, na epistemologia feyerabendiana, há todos os
motivos para duvidar dessa equivalência entre educação ‘regular’ e educação
científica porque, nessa epistemologia, a ciência é uma tradição tão válida quanto a
mágica, o ilusionismo ou a astrologia. Por esse motivo, a educação ‘regular’ deveria
ser uma questão de escolha dos pais, tanto quanto é a educação religiosa.
Essa é uma questão bastante polêmica, tanto no que diz respeito à sua
adequabilidade social quanto às possibilidades de sua aplicação na prática, e não será
aprofundada uma vez que transcende o escopo desta pesquisa. Contudo, vale ser
citada uma vez que mostra o quanto Feyerabend é comprometido com sua visão
pluralista, o quanto é importante a liberdade de escolha em sua epistemologia e o
quanto esta última pretende ser integrada à vida humana e não apenas circunscrita a
ponderações intelectuais e acadêmicas.
Ainda em relação à posição anarquista no que respeita aos prejuízos da
hegemonia da educação científica, Feyerabend alerta para a questão da imagem da
ciência na sociedade.
4 Uma exceção conhecida é de uma recente decisão na justiça norte-americana para o ensino regular do criacionismo religioso ao invés da teoria científica da evolução das espécies, como explicação para a origem da espécie humana. Contudo, tal situação somente constituirá o ideal feyerabendiano se não excluir a possibilidade de haver também o ensino de base científica. Caso contrário, a falta de opção continua prevalecendo.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
52
A imagem da ciência do século XX nas mentes dos cientistas e leigos é determinada pelos milagres tecnológicos tais como a TV a cores, paisagens [da superfície] da lua, o formo de ondas infr-vermelhas, bem como por um influente porém relativamente vago boato relativo à maneira como esses milagres são produzidos. De acordo com o conto de fadas, o sucesso da ciência resulta de uma combinação sutil e cuidadosamente balanceada entre inventividade e controle. Cientistas têm idéias. Eles têm métodos especiais para aprimorar essas idéias. As teorias da ciência foram aprovadas por esse método. Elas oferecem um relato melhor sobre o mundo do que as idéias que não passaram no teste.
(Feyerabend, 1975: p. 300, tradução e grifos meus)
É justamente a última frase da citação, que vem como um fechamento da linha
de raciocínio que a precede, que constitui o grande equívoco proporcionado pela
hegemonia da educação institucional científica. E esse equívoco se espalha por todas
as demais instituições sociais, que passam a privilegiar a tradição científica em
relação às demais, desmerecendo-as por não ‘passarem no teste do método científico’.
Nesse aspecto, o estado moderno deixa de ser ideologicamente neutro e passa a ser
aliado da ideologia científica.
Entre outros desenvolvimentos dessa hegemonia na sociedade, no que tange à
epistemologia, o ‘melhor relato sobre o mundo’, que constitui o único conhecimento
válido e digno de crédito por atender aos rigorosos critérios racionais estabelecidos
no método científico, passa a ser a ciência.
O contínuo ‘ataque’ ao racionalismo científico desferido por Feyerabend vem
justamente no sentido de: a) retirar do conhecimento científico a credencial de
racionalidade – apontando para a falta de racionalidade na ciência e, b) mostrar que a
racionalidade única - que serviria como justificativa para a primazia do conhecimento
científico - não existe, ao contrário, a racionalidade é relativa, condicionada a uma
cosmovisão. Isso sem contar que a racionalidade única seria refletida no método
único, o que não corresponde à riqueza do progresso registrado na história da ciência
e atinge a humanidade (vista como pluralidade) das pessoas nele especializadas.
A Idea de que a ciência pode, e deve, ser conduzida de acordo com um método fixo e regras universais tanto é não realista quanto perniciosa. É não realista porque adota uma visão muito simples dos talentos do homem e das circunstâncias que encorajam, ou causam o seu desenvolvimento. É perniciosa porque a tentativa de impor tais regras resulta num incremento na nossa qualificação profissional às custas da nossa humanidade.
(Feyerabend, 1975: p. 295, minha tradução, grifos no original)
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
53
Para ilustrar a situação a que Feyerabend se refere, trago verbetes de dicionários
para a palavra ‘cientificismo’, no tocante à sua imposição da ciência sobre outras
alternativas de perceber o mundo ao nosso redor:
[...] a idéia de que a ciência faz conhecer as coisas como elas são, resolve todos os problemas reais e é suficiente para satisfazer todas as necessidades legítimas da inteligência humana.
(Lalande, 1996: p. 160) [...]ideologia daqueles que, por deterem o monopólio do saber objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa do saber”.
(Marcondes e Japiassú, 1991: p. 44)
Apesar de todo esse ‘endoutrinamento’ pela educação científica e suas
conseqüências na maneira como nos relacionamos com o mundo e com o nosso
conhecimento, Feyerabend acena com dois motivos que o levam a crer que essa
“confiança ingênua e quase infantil na ciência” (Feyerabend, 1975: p. 188) pode estar
com seus dias contados. Um primeiro motivo é o fato de que as instituições
científicas hoje abandonaram o estudo de questões filosóficas, funcionam como
conglomerados empresariais que ‘moldam a mentalidade’ (ibid.) dos cientistas,
tornando-os ávidos por bons salários, reconhecimento do chefe e dos colegas e
dedicação a problemas cada vez mais restritos e localizados impedindo uma visão
integrada de sues conhecimentos. Além do abandono exercido pela ciência às
questões filosóficas, Feyerabend também denuncia uma atitude restritiva e de
submissão, por parte da comunidade científica, às teorias já propostas e bem
consideradas no meio científico, inibindo a eventual crítica, revisão ou proposição de
alternativas a tais teorias. Como exemplo dessa situação, o epistemólogo cita a
posição ocupada pela Teoria da Evolução, para a qual não são admitidas críticas,
segundo a citação abaixo:
As descobertas mais gloriosas do passado não são usadas como instrumentos para esclarecimento, mas como meios de intimidação, como pode ser visto pelos mais recentes debates envolvendo a teoria da evolução. Basta que alguém dê um passo adiante que a profissão (de cientista) tende a transformar-se num clube para forçar as pessoas à submissão.
(Feyerabend, 1975: p. 188, minha tradução)
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
54
E essa submissão do debate livre ao conhecimento científico arraigado leva
Feyerabend a comparar as instituições científicas a verdadeiros ‘clubes de luta’ onde
pessoas dispostas à uma renovação de idéias são rechaçadas por sua ‘insubordinação’.
Há um outro desenvolvimento que constitui um alerta contrário à “fé cega” na
ciência. Segundo Feyerabend, quando as teorias científicas são apresentadas, passam
a ser consideradas como verdades praticamente absolutas, por terem resultado de um
método racional, objetivo e indubitável. Entretanto, as mudanças nas teorias
científicas ocorrem com cada vez maior velocidade, oferecendo uma oportunidade
para as pessoas refletirem sobre o status das teorias científicas diante da realidade e
da verdade e, em conseqüência disso, de sua superioridade em relação a outras formas
de conhecimento ou de ver o mundo.
Para Feyerabend, essas características da condução e dos resultados obtidos a
partir da pesquisa científica hoje constituem uma possibilidade para que a abordagem
anarquista pluralista seja uma alternativa a essa abordagem monista. Tal alternativa
poderá vir a ser adotada tanto por aqueles que sejam ‘expulsos’ dos centros de
pesquisa, por insistirem em suas idéias genuinamente novas, bem como para os que
passarem a desconfiar do formato rígido que é atribuído à ciência. Essa desconfiança
da rigorosa correção científica talvez venha a surgir da constatação geral de que as
teorias científicas não possuem as características que tal correção conferiria. Contudo,
essas são apenas possibilidades traçadas por um Feyerabend desejoso de mudanças no
próprio conceito do que sejam a ciência, o conhecimento e o papel da educação
institucional. Novamente, a realização na prática dessas possibilidades é problemática
e resvala nos limites de nosso trabalho.
Contudo, podemos discutir qual seria o conceito de conhecimento compatível
com uma epistemologia anarquista. De que maneira os preceitos dessa epistemologia
seriam aplicáveis numa maneira de fazer ciência? Qual seria a atitude do cientista
anarquista em relação ao conhecimento que ele produziria? Deixamos estas perguntas
para o próprio Feyerabend responder.
A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend
55
Nada está definitivamente estabelecido, nenhum ponto de vista pode ser omitido de uma abordagem completa. ... Especialistas e leigos, profissionais e curiosos, aficcionados em Verdade e mentirosos – todos estão convidados a participar na disputa e dar sua contribuição e enriquecer nossa cultura. A tarefa do cientista, entretanto, não á mais a ‘busca pela verdade’ ou a ‘ovação a Deus’ ou ‘a sistematização de observações’ ou ‘a melhoria de previsões. O conhecimento, assim compreendido, não é uma série de consistentes teorias que converge em direção a um ponto de vista ideal; não é uma aproximação gradual em direção à verdade. Ao contrário, é um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e talvez incomensuráveis). Cada teoria, tomada isoladamente, cada conto de fadas, cada mito faz parte do conjunto, forçando os demais para uma maior articulação, todos contribuem através desse processo de competição, ao desenvolvimento de nossa consciência.
(Feyerabend, 1975: p. 30, minha tradução)
4 Uma avaliação crítica das Hipótese de Trabalho
Este capítulo será dedicado à retomada das Hipóteses de Trabalho 01 a 03,
conforme descritas no Projeto de Pesquisa que norteou esta dissertação, para
realização de uma avaliação crítica das mesmas à luz dos Capítulos 2 e 3. As
Hipóteses de números 01 e 02 serão tratadas conjuntamente porque estão muito
intimamente relacionadas e a Hipótese 03 será tratada em separado. Todas serão
analisadas no sentido de verificar-se a sua sustentabilidade e eventuais inadequações,
a partir dos resultados da pesquisa registrados nos capítulos anteriores.
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
57
4.1 Hipóteses de números 01 e 02
• Hipótese no. 01: O estilo panfletário do filósofo Paul Feyerabend,
principalmente na sua obra “Contra o Método” editada em 1975, levou a uma
tendência para uma interpretação parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a
mesma como descrevendo ou sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa
dita científica.
• Hipótese no. 02: Uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de
Feyerabend nos indicia que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico
com total ausência de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade
de método científico pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal
método único, defendendo a maior plausibilidade e desejabilidade tanto da
pluralidade metodológica quanto de seus fundamentos.
Estas hipóteses referem-se basicamente ao conteúdo do Capítulo 3, onde
fazemos referência ao fato que o anarquismo pluralista de Feyerabend não constitui
um vazio de regras e critérios, mas, ao invés disso, propõe uma pluralidade de regras
e critérios rejeitando o monismo metodológico bem como ideais universais tais como
Verdade, Razão, Objetividade, Honestidade, Simplicidade e assim por diante,
associados ao monismo citado.
Em conseqüência disso, o anarquismo pluralista também rejeita a distinção
entre os contextos de descoberta e justificação, história interna e externa à ciência,
questionando também os critérios monistas de progresso científico pautados nessas
distinções, em especial o aumento de conteúdo empírico, uma vez que na
epistemologia feyerabendiana teorias que se sucedem, nos momentos de revolução e
progresso científico, são incomensuráveis, ou seja, incomparáveis quanto ao seu
conteúdo. Essa incomparabilidade é devida ao fato de tais teorias referirem-se a
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
58
entidades de tipos distintos, possuindo significados incomparáveis entre si. Além
disso, o anarquismo pluralista rejeita hegemonias por considerar que estas levam à
inibição da variedade inerente ao potencial humano, impedindo a sua realização,
ferindo um preceito básico do humanismo liberal de John Start Mill, referência
inequívoca e constantemente declarada por Feyerabend.
Vejamos algumas citações referentes a esta questão, que apontam para um
profundo comprometimento da epistemologia anarquista com o humanismo proposto
por Mill, o que vai de encontro às alegações de que essa epistemologia limitou-se à
tentativa de derrubar os cânones existentes sem propor nada em seu lugar.
Recusar-se a ouvir uma opinião por ter certeza que ela é falsa é assumir a sua certeza de forma absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma assunção de infalibilidade [...] Se toda a humanidade a menos de um tivesse uma mesma opinião, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar este único homem do que ele, caso tivesse esse poder, de silenciar toda a humanidade.[...] A crueldade peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é a de que ela subtrai da raça humana, da posteridade e da geração atual – daqueles que discordam da opinião suprimida mais do que daqueles que a defendem.”
(Mill, 1980 p.76-77, minha tradução, grifos no original)
Assim, de nossa pesquisa depreendemos que o anarquismo pluralista não
constitui apenas a rejeição de métodos e critérios. Embora não seja seu objetivo
substituir o monismo metodológico por outra metodologia única, essa epistemologia
considera ser mais benéfico ao desenvolvimento do conhecimento e do potencial
humanos a pluralidade teórica e metodológica, a interação entre o conhecimento
científico com outras formas de conhecimento e com o ambiente sócio-cultural, as
mudanças de significado entre teorias, considerar-se a relação das teorias com a
linguagem utilizada para expressá-las e, finalmente, a maneira como esse conjunto
teoria e linguagem se refletem na forma de ver o mundo e o ser humano, ou seja,
numa cosmologia.
As reações ao anarquismo foram tão contundentes quanto à sua apresentação na
publicação mais bem conhecida de Feyerabend, Contra o Método (doravante CM), a
qual foi planejada para ser escrita com Imre Lakatos com o título A Favor e Contra o
Método, conforme página introdutória assinada pelo próprio Feyerabend. Entretanto,
Lakatos faleceu inesperadamente antes dos planos poderem ser concretizados. Em sua
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
59
autobiografia, Feyerabend comenta, referindo-se à maneira pela qual ‘montou’ o CM,
dado que seu diálogo com Lakatos não seria mais possível:
CM não é um livro, é uma colagem. Contém descrições, análises, descrições que publiquei, quase com as mesmas palavras dez, quinze até vinte anos antes.
(Feyerabend, 1994: p. 147)
Entretanto, a reação ao livro em nada se pareceu às reações às suas publicações
anteriores. Feyerabend estava consciente de que haveria uma forte reação, porém, não
imaginou que seria tão negativa. Nas palavras de Preston:
Muito antes de sua publicação, Feyerabend antecipou que CM a quem ele se referia como “a bomba que produz mau cheiro”, iria enfurecer as pessoas. Ele estava bem consciente de suas inadequações, e da natureza inflamável de alguns dos comentários espalhafatosos que o livro continha.Numa carta de março de 1970, ele confessou a Lakatos que ‘há muitas contradições em toda a coisa’ para que ele [Feyerabend} obtenha ‘o apoio de pessoas sérias’.
(Preston, 1997: p. 170, minha tradução)
Assim, além do estilo panfeltário feyerabendiano, também contribuíram para
uma grande rejeição ao anarquismo epistemológico os seguintes fatores: diversos
problemas na estrutura formal tanto nos argumentos contrários ao monismo
metodológico quanto nos de defesa ao anarquismo pluralista; discordâncias de outros
epistemólogos quanto às interpretações de episódios da história da ciência e da
atitude de cientistas a que Feyerabend faz alusão para fundamentar e dar respaldo
histórico à sua epistemologia; e, finalmente, a sua defesa de atitudes ‘politicamente
incorretas’ tais como, a perseguição na China dos envolvidos com a cultura Ocidental
(científica) ou a defesa de uso da violência como parte integrante do anarquismo
(Feyerabend, 1975: p. 187), só para citar alguns. Embora Feyerabend tenha tentado se
justificar dizendo que contra uma força muito intensa, como a cultura científica,
somente outra força contrária de igual ou maior intensidade poderia atuar, tal
justificativa não amenizou as reações a essas declarações.
Os exemplos referentes a Galileu são os que mais geraram reações pois
Feyerabend repetidamente sugere que este grande cientista adotou um
comportamento contra-indutivo e, pior que isso, teria também adotado estratégias de
convencimento retóricas, propaganda e persuasão. Mais do que o desagrado causado
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
60
por Feyerabend afirmar que Galileu utilizou-se e agiu de maneira irracional para
chegar aos seus resultados e apresentar suas descobertas, foi o fato de ter classificado
essas atitudes de ”oportunismo”, insinuando que essa atitude pouco honesta teria feito
parte do ‘sagrado’ contexto científico. Em outros momentos de constrangimento,
Feyerabend compara, por exemplo, o treinamento para a prática profissional
científica com o treinamento para a prática profissional da prostituição (Feyerabend,
1975: p. 217), chocando novamente os seus leitores. Por conta de todos esses fatores,
e não apenas do estilo de escrita, Feyerabend viu-se na situação de escrever inúmeras
réplicas a seus críticos.
Contudo, o epistemólogo concede que ele tinha prazer ao chocar as pessoas. Na
sua autobiografia, novamente ao referir-se como ‘montou’ o CM, ele afirma:
[...] quando comecei a compor minha colagem. Organizei-a numa ordem adequada, acrescentei transcrições, substituí passagens moderadas por mais violentas e chamei o resultado de “anarquismo”. Eu adorava chocar as pessoas e, ademais, Imre queria que o conflito fosse claro, não apenas outra tonalidade de cinza.
(Feyerabend, 1994: p. 150)
Contudo, CM não foi apenas uma brincadeira nem tampouco o exercício de
um estilo mais ousado e chocante de re-escrever artigos e textos apresentados em
seminários anteriores.
Hoje estou convencido de que não há só retórica neste “anarquismo”. O mundo, inclusive o mundo da ciência, é uma entidade complexa e dispersa, que não pode ser capturada por teorias e regras simples.
(Feyerabend, 1994: p. 150)
Feyerabend reafirma suas idéias quase vinte anos após a primeira edição de
CM. A ”bomba de mau cheiro” também possui uma mensagem bem definida, que o
epistemólogo resumiu em palavras simples, mas, significativas, na passagem acima.
Para fins de avaliação das Hipóteses 1 e 2, consideramos que a Hipótese de no.
2 foi plenamente confirmada enquanto a de no. 1 poderia ser reformulada,
acrescentando-se ao estilo panfletário as questões relativas à estrutura formal dos
argumentos bem como à defesa de posições ‘politicamente incorretas’ por
Feyerabend em CM. A interação desses fatores, ao invés de constituir apenas o estilo
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
61
de escrita, nos parecem, hoje, após a pesquisa, serem os responsáveis pela rejeição e
até certo ponto má compreensão do anarquismo epistemológico.
Por esse motivo, entendemos que estudos como este trazem uma nova visão do
anarquismo pluralista, especialmente no que concerne aos Capítulos 2 e 3 , que
apresentam uma espécie de continuidade do pensamento feyerabendiano, sempre em
defesa da pluralidade e de uma ética humanista.
Finalizamos a análise das duas primeiras hipóteses citando Joseph Agassi,
contemporâneo e amigo de Feyerabend, e que chegou a criticar duramente CM. Ao
referir-se ao já falecido colega epistemólogo, Agassi o considera:
[...] um dos filósofos mais bem conhecidos, mais admirados e menos compreendidos da segunda metade do século XX.
(Agassi, in Preston, 1997: contra-capa, tradução e grifos meus)
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
62
4.2 Hipótese de número 03
• Hipótese no. 03: O desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos
cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da sociedade
cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas de
conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a
desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento
pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais.
A recomendação feyerabendiana para uma atitude crítica está presente em toda
sua obra e pode-se dizer que constitui um desdobramento tanto do falibilismo quanto
da orientação humanista do autor. Para argumentar em favor dessa idéia, lembramos
que, mesmo na sua fase racionalista crítica, Feyerabend já defendia uma atitude
crítica ao monismo teórico, típico de uma visão falibilista do conhecimento humano.
Ao reforçar a fundamentação humanista e a rejeição à hegemonia, a crítica
voltou-se também contra a ciência porque Feyerabend identificou a forte presença de
ideais e atitudes hegemônicas nessa atividade humana. No Capítulo II tratamos mais
especificamente desta questão, sob o ponto de vista metodológico, educacional e
social.
No tocante à desqualificação de outras formas de conhecimento, o aspecto
educacional desempenha um papel marcante. Segundo Feyerabend, o preconceito
contra alternativas não científicas de visão de mundo se instala pela impossibilidade
de se optar por uma educação regular não científica. Esta impossibilidade resulta da
associação da ciência ao estado, somada à atitude monista da ciência em relação à
racionalidade e ao método, atitude esta que a destaca e valoriza em relação a outras
formas de conhecimento.
Assim no que diz respeito a formas não científicas de conhecimento, a principal
mensagem de Feyerabend é a criação de uma disposição para uma maneira alternativa
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
63
de conceber o conhecimento em geral. Esta alternativa traria uma conscientização que
integraria as diferentes formas de ver o mundo, ao invés de fazer do conhecimento
um mecanismo excludente em relação a essas alternativas. Nessa perspectiva,
conhecimento é antes de tudo interpretação. A partir de uma inspiração humanista,
esse conhecimento compõe-se de e favorece a integração, troca, inter-relacionamento
e reconhecimento das diferenças interpretativas, e não a sua “pasteurização” numa
busca pela “objetividade”, ou ainda um empreendimento dirigido a uma
“universalidade”. Conhecimento assim concebido é, acima de tudo, pluralidade,
mudança contínua e contexto.
A história da ciência, afinal, não consiste apenas de fatos e conclusões tiradas a partir de fatos. Ela também contém idéias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, enganos, e assim por diante. Numa análise mais profunda nós até podemos achar que a ciência não contém “fatos puros” mas que os “fatos” que compõem nosso conhecimento são previamente vistos de determinadas formas sendo, portanto, essencialmente ideacionais.
(Feyerabend, 1975: p. 19, tradução e grifos meus)
Como se vê, o relativismo em Feyerabend não é visto como um “problema”
indesejável que ameaça a “ordem” no conhecimento, pois a relatividade é inerente
tanto à natureza quanto ao processo da busca pelo conhecimento. Inúmeras vezes
Feyerabend afirma que é ingênuo e simplório tentar reduzir esse processo através de
explicações que objetivam ser simples, práticas, universalmente justificadas e
aplicáveis.
Para que tal concepção de educação seja efetivada, Feyerabend defende uma
proposta educativa que muito se assemelha à proposta progressista e social-
construtivista. Para verificar se tal proposta educativa, com as características
preconizadas pelo anarquismo de fato resultaria nos objetivos tão caros a Feyerabend:
a discussão livre de uma pluralidade de posições, o respeito mútuo às diferenças, o
favorecimento ao progresso do conhecimento sob o ponto de vista dos valores
humanistas, e assim por diante, poderia-se pesquisar trabalhos sobre experiências
nesses ambientes educacionais. Pelo material pesquisado, entendemos que
Feyerabend defende a idéia de que uma educação nesses moldes favoreceria esses
resultados, desejáveis num contexto epistemológico anarquista, porém, não há como
afirmar que de fato eles seriam atingidos. Assim, embora teoricamente uma educação
Uma avaliação crítica das hipóteses de trabalho
64
anarquista venha a gerar na prática uma atitude pluralista, seriam necessárias mais
informações sobre eventuais resultados observados para tirar-se uma conclusão
definitiva.
Dados os aspectos do pensamento feyerabendiano compilados por meio de
leituras ao longo da pesquisa e apresentados nessa breve explanação, consideramos
que a Hipótese de no. 03 tenha sido plenamente confirmada nesta pesquisa.
5 Conclusão
5.1 Conclusões desta pesquisa
Ao término da pesquisa que resultou nesta dissertação, entendo que este estudo
cumpriu seu objetivo e resultou numa análise favorável às hipóteses levantas no
projeto que o orientou.
Dada a avaliação de que as hipóteses da pesquisa foram verificadas, a
epistemologia feyerabendiana de fato ainda não foi plenamente explorada em toda a
sua dimensão. Possíveis razões para essa visão parcial da obra feyerabendiana são: o
estilo panfletário e inflamado de seus textos, os problemas formais em argumentos
contra o monismo metodológico e a favor do anarquismo epistemológico, bem como
a defesa de posições ‘politicamente incorretas’ para oposição à cultura cientificista.
Pelos resultados desta pesquisa, todos esses fatores colaboraram para uma má
compreensão da epistemologia anarquista.
Contudo, ao realizar-se uma leitura através desses elementos, embora sabedores
de sua existência, chega-se aos eixos norteadores do pensamento feyerabendiano: a
defesa da pluralidade em virtude de uma posição humanista que prega o respeito à
respeite a diversidade humana e busca viabilizar a realização das potencialidades do
ser humano.
Conclusão
66
Daí, percebe-se que Feyerabend não era contra o método simplesmente por ser
um relativista que evidencia a irracionalidade da ciência. O “contra o método”
feyerabendiano vem de e atinge a domínios além da metodologia da ciência e suas
eventuais características uma vez que a epistemologia anarquista integra o
conhecimento [científico] a toda uma concepção de mundo. Na concepção
feyerabendiana, o conhecimento não é uma decorrência lógica argumentativa de
algum conjunto de princípios ou constatações de natureza exclusivamente epistêmica,
ou cognitiva. A epistemologia anarquista pluralista assumidamente faz parte de uma
cosmologia.
Nessse particular, Feyerabend é muito intenso, como se vê neste trecho da sua
autobiografia:
Ainda lembro da excitação que senti ao ler Snell sobre a noção homérica do ser humano. Não se tratava de uma teoria formulada para ordenar um material independente, mas, um conjunto de hábitos que permeava tudo – linguagem, percepção, arte, poesia, bem como várias antecipações do pensamento filosófico.
(Feyerabend, 1994: p. 148, minha tradução)
Considero ser esta a principal mensagem da epistemologia feyerabendiana, que
talvez passe despercebida diante de tantas expressões e palavras ‘hostis’ ao status quo
cientificista, diversas incorreções formais e posições socio-políticas publicamente
indefensáveis. Disto tratam as hipóteses que orientaram a pesquisa.
A primeira recomendação desta pesquisa seria, então, que este aspecto da
epistemologia feyerabendiana fosse mais divulgado e discutido, de modo que ao se
falar em Feyerabend não seja feita a descrição simplificadora: aquele que foi ‘contra
o método’.
Uma segunda recomendação desta pesquisa seria um estudo referente à hipótese
levantada ao final de sua realização, o possível paralelo entre o anarquismo pluralista
e as características de sistemas complexos sob a abordagem agregativa.
Naturalmente, essa hipótese teria que ser aprofundada, detalhada e formalizada, até
para uma verificação de sua plausibilidade.
Concluímos, então, com um trecho muito significativo de epistemólogo Paul
Karl Feyerabend, que expressa um sentimento permeado por sua epistemologia, onde
Conclusão
67
interagem conceitos, interpretações e os limites da linguagem bem como elementos
que constituem a sua cosmovisão .
Um dos motivos pelos quais escrevi Contra o Método foi para libertar as pessoas da tirania de obfuscadores filosóficos e conceitos abstratos tais como ‘verdade”, “realidade” ou “objetividade”, que estreitam as visões das pessoas e as formas de ser no mundo. Formulando o que pensei serem minha própria atitude e convicções, eu infelizmente acabei por introduzir conceitos de similar rigidez, tais como “democracia”, tradição ou “verdade relativa”. Agora que estou consciente disso, eu fico imaginando como pode ter acontecido. A determinação para explicar suas próprias idéias, não de maneira simples, não numa estória, mas por meio de um “relato sistemático” é, de fato, poderosa.
(Feyerabend, 1994 pp. 179-180, tradução e grifos meus)
Conclusão
68
5.2 Delineamento preliminar de uma hipótese nova para pesquisas futuras
Além do cumprimento do previsto no projeto, as leituras em referência neste
estudo geraram o levantamento de uma hipótese nova, ainda em processo de
formalização, e que poderá vir a ser objeto de futuras pesquisas. Essa hipótese tem
relação direta com o objeto da pesquisa, a epistemologia anarquista pluralista de Paul
Feyerabend e diz respeito a uma tentativa de aproximação entre essa epistemologia e
as atuais pesquisas em complexidade sob o enfoque agregativo.1
Assim, antes de finalizar esta dissertação, apresento este desdobramento
inesperado da atual pesquisa, apenas como uma contribuição adicional e hipotética.
Esclarecemos que, embora em alguns trechos da obra feyerabendiana, o autor
chega a usar o termo ‘complexidade’, nada indica que ele estivesse se referindo à
complexidade no sentido sistêmico, o qual pretendo utilizar para traçar
hipoteticamente o paralelo acima descrito. Embora estudos em complexidade já
estivessem em andamento à época em que Feyerabend propôs o anarquismo
epistemológico, talvez Feyerabend não tenha feito referência à complexidade sob o
ponto de vista sistêmico porque as origens dessa teoria estão ligadas precisamente na
busca de uma ordem, o que para o autor já estava fora de questão na sua fase
anarquista pluralista. Contudo, como a perspectiva de compreensão da complexidade
hoje está bem mais diversificada, acredito ser possível o levantamento de uma
hipótese para a referida analogia, mesmo que de forma parcial, respeitando o
pluralismo anarquista. Acrescento também que esse paralelo hipotético não surgiu a
partir da leitura da palavra “complexidade”, a qual aparece destituída do seu sentido
sistêmico nos textos de Feyerabend, e sim a partir das semelhanças entre as
características do anarquismo epistemológico e as dos sistemas complexos. Note-se
também que a eventual força dessa hipótese não reside no fato de haver algumas
semelhanças isoladas entre o anarquismo epistemológico e os sistemas complexos
1 Para esta breve apresentação será considerado o estado atual das pesquisas em complexidade agregativa conforme consta em MANSON, S. M.,Simplifying Complexity: A review of Complexity Theory, Geoforum32 (3):405-414, ISSN 0016-7185, Elsevier, 2001.
Conclusão
69
mas no fato de essas semelhanças estarem entrelaçadas ao nível estrutural
(composição das partes), relacional (troca de informação entre as partes) e funcional
(produção de resultados) nos sistemas complexos e no “sistema epistemológico
anarquista”2. Com a finalidade de realizar uma apresentação clara e o mais sucinta
possível, esta será feita sob a forma de itens.
5.2.1 A falta de unidade da ciência, os agrupamentos dos sistemas complexos em sub-sistemas e as interações entre as diversas disciplinas científicas
Para defender a pluralidade metodológica, entre outros argumentos, Feyerabend
menciona a falta de unidade da ciência a qual, de certa forma, resulta de e é reforçada
por uma falta de unidade de método entre as várias disciplinas científicas. Nas
palavras de Feyerabend:
[...] vamos assumir que as expressões ‘psicologia’, ‘antropologia’, ‘história da ciência’, ‘física’ não se referem a fatos e leis mas a certos métodos para montagem de fatos incluindo certas formas de conectar observação, teoria e hipóteses. Ou seja, consideremos a atividade [denominada] ‘ciência’ a suas várias subdivisões.
(Feyerabend, 1975: p. 259, minha tradução, grifos no original)
Nesse trecho, vemos como a pluralidade metodológica gera uma multiplicidade
no conhecimento científico. Para traçarmos o paralelo hipotético, a ciência será
considerada um sub-sistema do sistema complexo ‘conhecimento’. Assim, dentro do
sub-sistema ‘conhecimento científico’ formam-se sub-sistemas científicos de segunda
ordem, ou seja, as diversas disciplinas científicas, tais como, física, psicologia,
antropologia, história etc. Feita essa correspondência, vemos como aparece a
semelhança entre as característica dos sistemas complexos e das disciplinas
científicas. Em ambos os casos, ocorre a tendência à formação de sub-sistemas, que
se formam e se mantêm por meio da troca mais intensa de informação interna do que 2 Por “sistema epistemológico anarquista” entende-se a epistemologia anarquista vista sob uma perspectiva sistêmica complexa de abordagem agregativa.
Conclusão
70
com outros sub-sistemas. É inegável que os elementos que compõem o sub-sistema
de segunda ordem ‘antropologia’ trocam muito mais informação interna do que com
o sub-sistema de segunda ordem ‘psicologia’, e assim por diante. O mais interessante
desta semelhança é que, tanto nos sistemas complexos quanto na visão pluralista, a
estrutura dos subsistemas e das diversas disciplinas se formam a partir dessas
relações mais intensas representadas, na epistemologia pelas regras metodológicas,
comuns a um dado sub-sistema, e que “montam” os “fatos” em cada disciplina
científica, como vemos na citação acima.
Podemos citar ainda que, tal como nos sistemas complexos, há determinados
fluxos de informação que permanecem restritos aos sub-sistemas assim formados.
Aqui comparamos a crescente especialização dentro de cada disciplina científica,
mesmo sem haver a necessidade de recorrer à epistemologia anarquista. O que
observamos em nossa realidade acadêmica e nas pesquisas científicas é uma forte
orientação para uma falta de integração entre os sub-sistemas de segunda
ordem/disciplinas científicas, reforçada pela educação científica, e denunciada por
Feyerabend. Entretanto, essa orientação de isolamento entre sub-sistemas não ocorre
nem na teoria dos sistemas complexos nem na recomendação da epistemologia
anarquista. Aliás, a falta de integração é considerada prejudicial nos dois contextos –
complexidade e anarquismo epistemológico – evidenciando um paralelo estrutural,
relacional e funcional entre ambos. Vale lembrar também que Feyerabend tenta
mostrar que nos momentos de progresso científico essa integração de fato ocorreu, e é
desejável que ocorra, a despeito dessa forte orientação contrária.
Vejamos agora um trecho onde Feyerabend emprega o termo complexidade
sem estar-se referindo à complexidade sistêmica, porém, que ilustra de que maneira o
anarquismo considera interessante a interação entre diversas formas de conhecimento,
conforme acabamos de tratar.
[...] Mas a questão não é quais distinções uma mente fértil pode engendrar quando confrontada por um processo complexo ou como um material homogêneo pode ser subdividido por acidentes históricos; a questão é até que ponto a distinção criada reflete uma diferença real e se a ciência pode avançar sem uma forte interação entre domínios distintos.
(Feyerabend, 1975: p. 166, tradução e grifos meus)
Conclusão
71
5.2.2 As interações entre ciência e sociedade e as interações entre sistemas complexos e o seu meio ambiente
Num dos diversos momentos em que Feyerabend faz referência à relação entre
ciência e o contexto sócio-cultural, ele propõe que tal relação deva ser estudada pela
antropologia, fazendo novamente o uso da noção cotidiana – não sistêmcia - de
complexidade.
[...] Tal indagação, por outro lado, terá que explorar a maneira pela qual os cientistas de fato lidam com seus arredores, terá que examinar o efetivo formato de seu produto, ou seja, ‘conhecimento’, e a maneira pela qual esse produto se altera como resultado de decisões e ações em condições sociais e materiais complexas. Numa palavra, tal indagação terá que ser antropológica.
(Feyerabend, 1975: p. 260, minha tradução)
Depreendemos então que Feyerabend tanto considera relações entre as diversas
disciplinas científicas, como vimos no item anterior em termos sistêmicos, como
também considera as relações entre a ciência e seu ambiente externo sócio-cultural.
Em termos sistêmicos tais relações seriam caracterizadas como relações extra-
sistema. Interessantemente, essas relações extra-sistema da ciência com a sociedade,
na recomendação de Feyerabend acima citada, devem ser abordadas via um sub-
sistema de segunda ordem / uma disciplina científica, ou seja, a antropologia. Isto
significa dizer que o sub-sistema científico realiza uma troca informações com a
sociedade de maneira mais intensa por meio de antropologia, na visão feyerabendiana
assumindo a hipótese do paralelo anarquismo-sistema complexo. Ainda no que se
refere a troca de informações do sub-sistema científico com seu meio externo social,
quando ocorre uma intensificação constante de fluxos de informação entre um sub-
sistema e seu ambiente, há uma tendência à ‘fusão’ entre esse sub-sistema e o
elemento externo que pertence ao seu ambiente. Como um exemplo desse tipo de
‘fusão’ na crítica epistemológica feyerabendiana – explorada no final do Capítulo II –
apresentamos os fluxos entre o sub-sistema cientifico e a educação institucional, que
faz parte do meio social externa à ciência. Tais fluxos tornaram-se tão intensas que a
Conclusão
72
educação institucional hoje praticamente faz parte do subsistema científico e vice-
versa. Esse tipo de desdobramento também ocorre nos sistemas complexos,
constituindo mais um paralelo estrutural, relacional e funcional.
5.2.3 Critérios de demarcação e o seu paralelo hipotético com o reflexo dos fluxos de informação na estrutura dos sistemas complexos
Iniciamos este item com uma citação que ser refere à necessidade de interação
entre teorias de domínios distintos para o desenvolvimento da ciência segundo o
pluralismo metodológico, interações estas representáveis por fluxos de informações
internos ao sub-sistema científico (entre as disciplinas científicas), internos ao sistema
conhecimento (entre o sub-sistema científico e outros sub-sistemas do sistema
conhecimento) e por fluxos externos (entre o sub-sistema científico e seu ambiente
social externo).
Uma cientista que .... adotar uma metodologia pluralista, irá comparar teorias com outras teorias ao invés de faze-lo com ‘experiência’, dados’, ou ‘fatos’ e ele tentará aprimorar ao invés de descartar os pontos de vista que parecem estar perdendo na competição. As [teorias] alternativas podem ser buscadas em qualquer parte – de mitos antigos ou preconceitos modernos, de elocubrações de especialistas e de fantasias de excêntricos. Toda a história de uma dada matéria é utilizada na tentativa de melhor aprimorar seu estágio mais recente e mais “avançado”. A separação entre a história da ciência, sua filosofia e a própria ciência dissolvem-se no ar bem como a separação entre ciência e não-ciência.
(Feyerabend, 1975: pp. 47-48, tradução e itálicos meus)
Feyerabend aborda nesse trecho precisamente o que ocorre nos sistemas
complexos quanto aos fluxos de informação internos e externos. Esse paralelo
hipotético ocorre em dois aspectos. O primeiro, quanto à importância desses fluxos na
metodologia pluralista e nos sistemas complexos para a sua funcionalidade. O
segundo, quanto à formação da estrutura dos sistemas complexos e também da
estrutura que separa a ciência da não-ciência. Quando Feyerabend diz que a
comparação entre teorias dos mais variados domínios “dissolve no ar” a demarcação
entre ciência e não-ciência, nos sistemas complexos a intensificação de fluxos de
informação promove um rearranjo na sua estrutura, resultando em eventuais “fusões”
entre pelo menso dois sub-sistemas e entre um ou mais sub-sistemas e elementos do
Conclusão
73
meio externo. Nesse processo, tanto as ‘demarcações’ entre os diversos sub-sistemas
quanto as ‘demarcações’ entre um dado sub-sistemas e seu meio externo são
flutuantes e resultam da existência ou não dos respectivos fluxos informacionais.
Novamente, a semelhança estrutural, relacional e funcional se verifica.
Também a partir da caracterização dos fluxos de informação externos ao
sistema complexo, podemos traçar paralelos com a forma feyerabendiana de tratar os
problemas da distinção entre a historia interna e externa da ciência, associado ao
problema da distinção entre contexto de descoberta (fluxo de informação aberto a
outros sub-sistemas e ao ambiente) e o de justificação (fluxo de informação restrito ao
sub-sistema científico).
Os fluxos de informação e as estruturas (demarcações) deles decorrentes
terminam por atingir o conceito de racionalidade da ciência, dadas as interferências
de fatores (fluxos de informação) não científicos (não racionais) na condução de
pesquisas científicas por meio dos fluxos de informação com o meio ambiente social.
Vale comentar que essa relação fluxo externo – racionalidade é válida apenas no caso
de não haver distinção entre contexto de descoberta e de justificação. Caso contrário,
o fato de haver fluxos de informação entre o sub-sistema científico e o ambiente
externo sócio-cultural não afetaria a racionalidade científica pois o componente
“irracional” ficaria restritos ao contexto de descoberta. É possível que, exatamente
por este motivo, a argumentação feyerabendiana procura eliminar precisamente essa
distinção. O trecho que se segue abarca toda essa linha de raciocínio, onde
Feyerabend responde a uma crítica feita por Herbert Feigl, para quem a distinção
entre os referidos contextos é válida:
[..] na história da ciência, padrões de justificação freqüentemente proíbem passos que são causados por condições psicológicas, sócio-economico-políticas e outras ‘condições’ externas e a ciência sobrevive porque a prevalência dessas passos acaba por ser permitida. Assim sendo, a tentativa ‘de recuperar as origens históricas, a gênese e o desenvolvimento psicológico, as condições sócio-economico-políticas para a aceitação ou rejeição de teorias científicas, longe de ser um empreendimento inteiramente diferente das considerações envolvidas em testes, leva efetivamente a
Conclusão
74
uma crítica dessas considerações – contanto que os dois domínios, pesquisa histórica e a discussão de procedimentos de teste, não sejam mantidos em separado ‘por decreto’. (Feyerabend, 1975:p. 166, minha tradução e grifos no original)
Como dissemos anteriormente, Feyerabend acredita que as interações internas e
externas estejam sempre ocorrendo, que o desenvolvimento científico possui um
componente irracional necessário, a despeito da forte oposição racionalista. Para fins
de nossa hipótese, no que concerne à interação entre ciência e não ciência e
inexistência das distinções entre contexto de descoberta e justificação e história
externa e interna, os fluxos de informação nos sistemas complexos apresentam
semelhanças estruturais, relacionais e funcionais.
5.2.4 A contra indicação de hegemonias no anarquismo e nos sistemas complexos
Como já foi explanado anteriormente, a única restrição imposta pelo pluralismo
anarquista é a recusa a ideais, regras, métodos ou princípios que levem a situações
hegemônicas. Em termos sistêmicos, uma situação hegemônica se constitui por meio
de estruturas rígidas, com raros ou nenhum fluxo de informação, limitadas a
permanecer numa única forma estrutural.
Ao realizarmos o paralelo hipotético, a “recomendação” ou “prescrição’
pluralista de evitar hegemonias se revela de uma maneira bastante pragmática.
Sistemas que “se fecham” em relação ao seu ambiente e que reduzem a sua variedade
e densidade de interação internas através da redução de fluxos entre suas partes
componentes, tendem a perder “capacidades adaptativas” e “resiliência”. Esses
conceitos estão relacionados ao contexto teórico darwiniano, e são compatíveis com a
idéia de “favorecer a multiplicidade para aumentar as chances de adaptar-se para
sobreviver”. Esse não parece ser o contexto feyerabendiano de inspiração humanista
onde o favorecimento da pluralidade justifica-se na criação de condições favoráveis à
realização da variedade do potencial humano. Assim sendo, embora as possíveis
motivações para as transições num sistema complexo na perspectiva dos estudiosos
Conclusão
75
em complexidade agregativa e suas possíveis correspondentes na epistemologia
anarquista apresentam naturezas distintas, a saber, busca pela sobrevivência e
realização da variedade do potencial humano, as características de interação,
relacionamentos e estruturação possuem os paralelos que traçamos acima. Neste caso,
identificamos o paralelo apenas aos níveis estrutural e relacional porém o nível
funcional apresenta uma clara distinção.
5.2.5 Irracionalidade, emergência e representação
A questão da irracionalidade da ciência na epistemologia feyerabendiana, como
já vimos, surge a partir de diversos ângulos: inexistência de um critério de
demarcação que se verifique na prática científica, interação entre os diversos saberes
(científico, místico, religioso, e estético/artístico), falta de distinção entre contexto de
descoberta e de justificação, e incomensurabilidade entre teorias. Também já vimos
acima possibilidades de paralelos hipotéticos entre a essas características da
epistemologia anarquista e os sistemas complexos por meio dos fluxos
informacionais, estruturas e funcionamento desses sistemas.
Netse item, trataremos da uma outra característica dos sistemas complexos, que
consiste no surgimento de uma nova capacidade no sistema e que está além da soma
das capacidades de suas partes componentes. Isso significa dizer que tal sistema
apresentará qualidades emergentes que não são tratáveis analiticamente a partir das
capacidades de suas partes. A emergência surge em função da sinergia, permitindo a
formação de características de todo o sistema, as quais não resultam da superposição
– ou de um efeito aditivo – das características de seus componentes. As
características atingidas por emergência são proporcionadas a partir das interações
entre os componentes. Daí decorre que os fenômenos emergentes estão, via de regra,
além de nossas possibilidades de previsão ou controle. Por esse motivo, ao
provocarmos alterações num componente ou sub-sistema de um sistema complexo, a
previsão do comportamento de todo o sistema a partir dessa alteração só poderá ser
Conclusão
76
feita em curto prazo, uma vez que não há como prever a repercussão da alteração nas
relações entre componentes, entre subsistemas, com o ambiente externo sócio-cultural
e, conseqüentemente, nos fluxos de informação e energia que formam a estrutura
interna do sistema.
Este conceito-chave parece muito relacionado à questão da possível sinergia
entre os diversos sub-sistemas e também entre estes sub-sistemas e o meio ambiente
sócio-cultural. Retomamos aqui a questão do contexto de descoberta, discutido acima,
acrescentando-se que a ‘descoberta’ pode por hipótese ser entendida como uma
qualidade emergente do funcionamento complexo do sistema conhecimento em
interação com seu ambiente. Essa abordagem ao processo de descoberta suscita
paralelos com a questão da irracionalidade da ciência – por resvalar na indistinção
entre o contexto de descoberta e o de justificação – bem como porque nos estudos de
sistemas complexos [...] “as qualidades emergentes... são comumente atribuídas à
irracionalidade ou imperfeição [dos sistemas] porém, de fato são intrínsecas a
interações locais, racionais e suas conseqüências não lineares” (Andreoni e Miller,
1995 in Manson, 2001: p.6, minha tradução). Naturalmente há que se pesquisar e
aprofundar o significado de “racionalidade local”, e como poderia ser feito um
paralelo desse conceito de “imprevisibilidade e conseqüências não lineares”
entendido como aparente irracionalidade. Não pretendemos advogar aqui a existência
de racionalidades locais ou condicionadas a formas vida, como preconizado pelo
segundo Wittgenstein. Limitamo-nos apenas a sugerir uma hipótese sobre a
possibilidade de um paralelo entre a ‘irracionalidade’ da descoberta e a
‘irracionalidade’ no comportamento emergente de sistemas complexos, o que nos
parece ser uma pesquisa promissora.
Ainda com relação à emergência e à sua natureza não reducionista, os estudos
sobre emergência enfrentam hoje um desafio para a representação e expressão
matemática da emergência. Em termos anarquistas pluralistas, os estudos em sistemas
complexos enfrentam hoje o desafio de buscar linguagens alternativas para expressar
a sua busca por uma interpretação alternativa, ou seja, não reducionista.
Quando Feyerabend discorre longamente sobre a transição do universo grego
arcaico, o qual ele denomina de cosmologia ‘A’ formada por coisas, eventos e suas
Conclusão
77
partes, para universo de substância –aparência de seus seguidores, que ele denomina
cosmologia ‘B’, onde inserem-se as aparências e a distinção entre ‘muito saber’ e
‘conhecimento verdadeiro’, ele expõe as dificuldades de Aquiles na Ilíada em falar
sobre uma situação pertencente à cosmologia ‘B’ numa linguagem que faz parte da
cosmologia ‘A’.
[...] Aquiles quer dizer que a honra pode estar ausente mesmo que todas as suas manifestações exteriores estejam presentes. Os termos da linguagem que ele usa são tão intimamente ligados a situações sociais específicas que ele não tem palavras para expressar sua desilusão. Contudo, ele a expressa de uma forma memorável. Ele o faz ao realizar um uso incorreto da linguagem de que ele dispõe. Ele faz perguntas que não podem ser respondidas e faz solicitações que não podem ser atendidas. Ele age de uma forma extremamente “irracional”.
(Feyerabend, 1975: p. 267, minha tradução)
Novamente nos deparamos com um conceito de irracionalidade condicionado a
uma cosmologia ou forma de vida, sobre o qual não nos aprofundaremos aqui.
Contudo, chamamos atenção para a questão das limitações da linguagem, descrita por
Feyerabend na citação acima e suas semelhanças com as dificuldades de
representação dos comportamentos dinâmicos e emergentes dos sistemas complexos
em linguagem matemática orientada ao equilíbrio.
Ambas as situações parecem trazer um problema semelhante, o da inadequação
da linguagem corrente e disponível para expressão de uma nova interpretação, ou
seja, segundo a definição feyerabendiana de interpretação, para a expressão de uma
nova classificação e atribuição de propriedades específicas aos objetos que
constituirão o novo fato observado (emergência).
As semelhanças entre as duas situações de busca por uma linguagem não param
nesse ponto. Vejamos em maior detalhe a caracterização da cosmologia ‘A’: Os elementos de A são partes relativamente independentes de objetos que se inserem em relações externas. Eles participam de agregados sem alterar as suas propriedades intrínsecas. A ‘natureza’ de um agregado particular é determinada por suas partes e pela forma como essas partes se relacionam uma à outra. Enumere as partes na ordem apropriada e você terá o objeto.
Conclusão
78
Isso se aplica a agregados físicos, aos humanos (mentes e corpos), aos animais e também a agregados sociais tais como a honra de um guerreiro.
(Feyerabend, 1995: p. 264, minha tradução)
A cosmologia ‘A’ constitui a visão reducionista que, conforme já
mencionamos, é aquela que os estudos em sistemas complexos pretendem superar.
Feyerabend, com suas idéias “anarquistas”, pretendia superar a visão do monismo
metodológico e dos ideais de racionalidade, verdade, objetividade e honestidade que
compõem a cosmologia monista, expressável na precisão da linguagem lógica.
Na citação que se segue, completamos o quadro do paralelo hipotético que
encontramos entre as dificuldades declaradas por pesquisas em complexidade e as
dificuldades de Feyerabend em lidar com a linguagem lógica reducionista para
descrever o anarquismo pluralista. Novamente aparecem o termo ‘complexo’ e a
referência à abordagem histórico-antropológica que tivemos oportunidade de
mencionar anteriormente neste capítulo.
Meu propósito é encontrar uma terminologia para descrever certos fenômenos histórico-antropológicos complexos, os quais são apenas imperfeitamente compreendidos, e não a definição de propriedades de sistemas lógicos especificados detalhadamente.
(Feyerabend, 1975: p. 269, minha tradução)
Assim, julgamos finalizada esta tentativa inicial de formulação de uma hipótese
preliminar para a realização de uma aproximação entre a epistemologia anarquista
pluralista e as recentes pesquisas em sistemas complexos sob abordagem agregativa,
sugerindo que Feyerabend talvez estivesse buscando interpretar e comunicar algo
semelhante ao que buscam interpretar e comunicar hoje os pesquisadores nessa
abordagem à complexidade.
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