Versão preliminar (rascunho) de trabalho apresentado no 29º Encontro Nacional da ANPOLL (Associação Nacionalde pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística), realizado realizdo de 9 a 11 de junho de 2014 naUniversidade Ferderal de Santa Catarina, Florianópolis – SC.
Três concepções teóricas de rede e suasimplicações particulares para o estudo de redes
sociais online
Marcelo El Khouri Buzato
Introdução
A polissemia da palavra rede se revela, atualmente, em discursos
variados e, por vezes, desconexos, acerca do que chamamos de
“realidade”. Relativamente subestimada no passado, serve hoje a uma
multiplicidade de discursos que vão do científico ao estético, passando
pelo técnico, pelo político, pelo psicológico, e pelo social. Não bastasse a
proliferação dos quadros temáticos, há ainda os diferentes graus de rigor
e nuances de sentido implicados no uso de “rede” ora como metáfora, ora
como forma simbólica (no sentido de Panofsky, 1999), ora como conceito
científico, caso do presente capítulo.
Um conceito científico corresponde à soma de todos os enunciados
verdadeiros sobre um objeto, do ponto de vista de uma comunidade
científica (Dalberg, 1978). Na sua extensão mais estreita, constitui um
objeto singular; na mais ampla, uma categoria. Tratar rede como
conceito, portanto, equivale a uma dupla operação: limitar a polissemia
da palavra para multiplicar, com rigor, seu conjunto de referentes. Para
os propósitos deste trabalho, chamo o resultado dessa dupla operação de
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“concepção” e, isto posto, trago para o leitor três concepções de rede que
evidenciam propiciações e restrições teóricas e metodológicas específicas
para o estudo de Redes Sociais Online (doravante RSO): uma técnica
(rede como uma entidade material inserida no espaço e produtora de
território), uma epistemológica (rede como topologia de laços entre
atores), e uma ontológica (rede como natureza do ser).
Para tanto, como convém a um linguista aplicado (Signorini e Cavalcanti,
2009), tomo meu objeto, i.e. o conceito de rede, como ponto de partida de
um percurso transdisciplinar que busca aportes na Geografia, Sociologia,
Filosofia e Semiótica.
O capítulo inicia-se com a caracterização das referidas concepções,
seguidas de considerações sobre facetas das RSO que parecem ser mais
acessíveis em cada caso. Em seguida, ofereço um sumário com critérios
distintivos que julgo útil para o planejamento de pesquisas sobre RSO
afinadas com cada concepção. Nas considerações finais, abordo um
exemplo de RSO especialmente desafiador para a presente linha de
investigação, no sentido de que tende gerar paradoxos no seio de cada
uma das concepções.
Redes Técnicas
Pode-se definir como rede técnica
toda infraestrutura que permita o transporte de
matéria, de energia ou de informação e que se inscreve
sobre um território onde se caracteriza pela topologia
dos seus pontos de acesso ou pontos terminais, seus
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arcos de transmissão, seus nós de bifurcação ou de
comunicação (Curien, 1988, p.212).
Trata-se de uma concepção de cunho geográfico, originada, supõe-se, na
antiguidade, como metáfora de labirinto, e que passa, na idade média, a
denotar um tipo de produção material, com o desenvolvimento das
práticas de tecelagem, para, finalmente, na Europa ocidental, ao longo
do Século XVIII, converter-se em reificação da lógica espaciotemporal
capitalista (Costa e Ueda, 2007).
O estudo desse tipo de rede tem, em geral, um foco econômico,
interessando sobremaneira os estudiosos de estratégias de
desenvolvimento econômico dos Estados modernos. Isso porque redes
técnicas propiciam a criação paralela e eficaz da ordem e da desordem,
isto é, constituem um recurso técnico para a destruição de certos
recortes espaciais e criação de outros, de modo a fomentar a constituição
de solidariedades (políticas e econômicas), mas também de isolamentos e
exclusões, produzindo, no entanto, um aspecto geral de homogeneização
(Santos, 1996).
Por conta dessa propriedade, as redes técnicas sugerem um vínculo
entre escolhas particulares de governos e empresas e interesses gerais da
população, não por acaso sendo atualmente atreladas a discursos sobre
'‘inclusão’' social e/ou digital (Buzato, 2008). Existe, dessa forma, uma
relação inequívoca entre redes técnicas e poder, traduzida em disputas,
por parte grupos de interesses (Bijker, 2006), sobre a organização dos
fluxos materiais e não materiais que tornarão certos atores econômicos
centrais ou periféricos, de saída, de chegada, de passagem, ou isolados
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(virtualmente, não atores). Tais fluxos, explica Raffestin (1993, apud
Costa e Ueda, 2007), são constituídos de energia (ou circulação) e
comunicação (ou informação), elementos básicos de organização da
relação poder-saber, constitutiva de toda relação social, como já
apontava Foucault (1995).
Não à toa, pesquisas acerca das redes técnicas buscam, em geral,
mensurar a eficiência de seu funcionamento em vista do seu objetivo
econômico, o qual, por sua vez, volta-se para uma realidade exterior (por
exemplo, o mercado internacional, ou a defesa militar). Tais
mensurações, por serem quantitativas, sugerem objetividade e
neutralidade. É, contudo, na definição dos critérios quantitativos para a
aferição de qualidades de redes técnicas que se faz política de modo mais
eficiente, porque dissimulado como inevitabilidade técnica ou da
natureza, isto é, por fazer passar como “dado” aquilo que é “escolha”. Daí
a necessidade, numa sociedade democrática, de um esforço permanente
de regulamentação dessas redes (Lorrain, 1995).
Pereira (2012) ilustra com clareza o modo como esse jogo de quantidades
e qualidades promove isolamentos e exclusões sob um manto de
homogeneização, ao comentar discussões em torno da regulamentação
da banda larga no Brasil. O autor explica que a velocidade (medida em
bits por segundo) tem sido o elemento de referência mais comum para
classificar-se uma conexão como sendo “banda larga”. A velocidade é,
sendo, o critério mais enganoso, a depender dos usos da rede que são
levados em conta. Uma velocidade adequada em determinado quadro de
uso (por exemplo, quando o cidadão brasileiro usava a Internet
basicamente para transferir texto via e-mail, websites e salas de chat)
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torna-se uma velocidade baixa (e, portanto, a banda larga torna-se
estreita) num quadro seguinte (por exemplo, quando passamos a fazer
downloads de multimídia e streaming de vídeo constantemente, e a
armazenar nossos arquivos pessoais na nuvem). Não bastasse a questão
numérica, o escopo da medição é também um fator que deve ser revisto,
pois quando se toma como referência apenas a velocidade de download,
tem-se em mente um usuário ”consumidor”, algo que, obviamente, não
corresponde ao perfil do consumidor atual de banda larga, que faz tantos
downloads quando uploads de produções multimídia (um “produsuário”,
nos termos de Bruns, 2008). A quem interessa hoje, podemos perguntar,
blindar desse modo sutil a tradicional fronteira política entre produtor e
consumidor de mídias? E que maneira mais eficaz e silenciosa de fazê-lo
haveria do que simplesmente medindo a velocidade dos fluxos
unidirecionalmente?
Pereira (2012) mostra que a própria tradução de velocidade em
“qualidade de serviço”, ainda que a mesma fosse medida
bidirecionalmente, cai por terra quando se consideram critérios
alternativos, como a latência, por exemplo. A latência corresponde ao
tempo gasto por um pacote de dados para viajar entre dois pontos da
rede. Quando pensamos em pessoas que conversam quotidianamente
utilizando voz sobre IP (caso do Skype), por exemplo, fica muito claro sua
influência na qualidade da comunicação, já que o prolongamento
artificial de uma pausa, ou a quebra indevida de um turno
conversacional pode ter consequências semânticas e pragmáticas
severas, afetando, portanto, relações de poder-saber entre os usuários
(Buzato e Severo, 2010).
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Em vista dessas características, é uma pena que a concepção de rede
técnica (sobretudo de comunicação) seja normalmente pouco explorada
nas pesquisas sobre linguagem nas RSO. Isso porque somos,
especialmente no campo aplicado, particularmente interessados em
processos de exclusão e inclusão vinculados às práticas discursivas do
quotidiano do cidadão. De modo geral, porque exercem uma função
inegavelmente importante no estabelecimento e rompimento de
solidariedades sociais em diversas escalas de atividade hoje, as RSO
representam um cenário em que a atuação dos estudos da linguagem se
faz necessária. Há questões de linguagem, por exemplo, que devem ser
consideradas na discussão sobre critérios de regulamentação, tendo em
vista o direito de expressão e participação do cidadão na sociedade
democrática. Sobretudo, há um desafio, e, ao mesmo tempo, uma
oportunidade, para que possamos sofisticar nosso universo de análise
sobre as dinâmicas do poder-saber em práticas de linguagem situadas e
circuladas.
Além disso, o modo como as redes técnicas articulam
espaciotemporalidades por meio de uma semiótica material (Law, 2006) é
certamente instigante para um campo que se identifica perante os
estudos da linguagem ditos “teóricos” por insistir na necessidade de
estudar interações (textos, aprendizagens, identidades etc.) “em
contexto”. Tomemos como exemplo, para citar o caso notório vinculado
às RSO, a tragédia da dona de casa doente mental da cidade de Guarujá-
SP, linchada pela população de uma comunidade periférica, em maio de
2014, por ter sido erroneamente identificada como a personagem de um
retrato falado utilizado, anos antes, pela polícia de outro estado.
Circulado via Facebook, esse texto ganhou um sentido situado trágico,
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ao que tudo indica, não por “falta de informação”, mas porque aquele
lugar conectado ao Facebook era um ponto desconectado dos fluxos de
energia da polícia local (Campanha, 2014).
Redes Sociais
A segunda concepção de rede aqui abordada é, possivelmente, a mais
conhecida no âmbito dos estudos da linguagem, já que adotada há
décadas por sociolinguistas variacionistas (Bortoni Ricardo,1985 e
Milroy, 1987, entre outros). Como explica Recuero (2009, p. 24), as RSO
trouxeram novo fôlego a essa abordagem da sociologia pois, entre outros
motivos, seus usuários produzem uma grande quantidade de “rastros” de
interações entre atores sociais (pessoas, instituições, grupos) que, no
passado, não se podia obter em tamanha quantidade, nem com a mesma
facilidade. De alguma maneira, nesse sentido, as RSO cumprem, para os
estudos da linguagem, um papel semelhante ao cumprido, a partir dos
anos 1990, especialmente, pelos primeiros hipertextos online, isto é, em
ambos os casos, o digital trouxe para o pesquisador uma manifestação
empírica em grande escala de algo que antes constituía basicamente
num argumento teórico (no caso do hipertexto, as teorias pós-
estruturalistas sobre texto; no caso das RSO, teorias sociointeracionistas
do social e abordagem dos sistemas complexos).
Na concepção de redes sociais, a ideia de rede está atrelada ao
paradigma sistêmico nas ciências naturais, assim como aos trabalhos do
matemático Leonard Euler sobre Grafos1, tendo ganhado repercussão
duradoura nas ciências humanas por meio de trabalhos de sociólogos
1 Grafos são representações estruturais de relações entre elementos de um determinado conjunto. Há também abordagens algébricas e espaciais para redes sociais, porém a abordagem de grafos parece ser a mais frequente dos trabalhos em Comunicação e Estudos da Linguagem no Brasil.
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norte-americanos proponentes da abordagem interacionista do social, na
década de 1930 (Scott, 2012).
Se no caso das redes técnicas focaliza-se a reificação geográfica da
racionalidade capitalista, aqui o foco é basicamente epistemológico: redes
sociais são ferramentas de modelagem para o funcionamento estrutural
(global) de um conjunto social a partir de interações locais. Mais do que
isso, é uma maneira do analista viajar do todo (agregado, grupo) à parte
(indivíduo, ator), e vice-versa, vinculando um raciocínio analítico
cartesiano a uma abordagem topológica (relacional), em que todo e
parte são identidades contingentes, dependentes da escala de observação
escolhida (Latour et al., 2012).
O processo de investigação via redes sociais visa, em geral, explicar a
estabilidade de determinado ordenamento social a partir de regras locais
de interação. Isso é possível a partir da identificação de regras formais
vinculadas às relações topológicas e quantitativas entre atores. A força e
a vantagem dessa concepção de rede estão, portanto, na sua capacidade
de oferecer previsões relativamente precisas sobre fenômenos coletivos a
partir de comportamentos individuais, independentemente de influências
contextuais, em sentido geográfico-material. Em compensação, como em
toda abordagem sistêmica, há um limite para o que se pode prever em
diferentes escalas, pois a precisão de uma previsão será tanto maior
quanto mais afeitas a regras simples (ou simplificáveis) forem as
interações, isto é, serão mais previsíveis justamente as ações menos
dependentes de contexto, caso raro, como sabemos, na maioria das
sociedades humanas (Latour et al., 2012)..
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Enquanto no caso das redes técnicas os atores podem ser divididos em
usuários e instituições, sendo que as instituições usam as redes técnicas
para gerenciar fluxos de energia, matéria e informação com vistas à
dominação dos indivíduos (usuários) no território (Cunha, 2002), no caso
das redes sociais entende-se os atores institucionais como “emergentes”
de microinterações. É essa, justamente, uma das grandes contribuições
da abordagem para os estudos sociológicos modernos: contestar a noção
durkheimiana de que instituições (a família, a empresa, a igreja, o
estado, a escola etc) são entidades sui generis que determinam papéis e
funções de entidades subordinadas, ou seja, instituições como corpos
sociais dos quais indivíduos seriam membros funcionais (Latour et al.,
2012).
Apesar de partilharem com a abordagem das redes técnicas o princípio
de integração de quantitativo e qualitativo, no caso das redes sociais
quantidade e qualidade se relacionam a partir de um raciocínio
topológico-funcional. Por exemplo, pode-se estimar a força do laço
existente entre diversas empresas de um mesmo país levando-se em
conta o valor monetário negociado entre elas (peso ou força do laço
traduzindo solidariedade), mas também quem vende mais e quem
compra mais (graus de entrada e saída, traduzindo poder), quem recebe
mais vínculos (centralidade, traduzindo prestígio), quem conecta dois ou
mais grupos densamente conectados (intermediação, traduzindo
dependência), e assim por diante.
No entanto, assim como no caso das redes técnicas, a abordagem de
redes sociais não é isenta do “preconceito” decorrente de tomar atores
atomizados a priori, sejam eles pessoas, instituições, grupos, formigas,
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cidades ou usuários de uma RSO. Isso, como veremos adiante, pode ser
visto como uma limitação ontológica que restringe nossa “imaginação
sociológica” (Knorr-Cetina, 2005) no momento de fazer a modelagem.
Mais do que isso, a atomização teria sido não um pressuposto ontológico,
mas manobra analítica herdada de uma sociologia sujeita a limitações
empíricas que hoje, supostamente, estariam superadas, ou ao menos,
bastante enfraquecidas (Latour et al., 2012).
Não é à toa que essa abordagem venha sendo tão produtiva para o
estudo das RSO, uma vez que Facebook, Twitter, Instagram, e serviços
digitais afins combinam uma multiplicidade de microinterações locais
com conjuntos de regras de interação simplificáveis (já que limitadas por
opções de design do sistema) e formas relativamente simples e diretas de
acesso a datasets, a partir dos quais se pode fazer as modelagens.
Graças a novas e instigantes aplicações tecnológicas (por exemplo, Smith
et al., 2009), pode-se vincular a produção discursiva de grupos de
usuários em determinada escala à emergência de fenômenos sociais que
passariam despercebidos em face de análises tradicionais. Dito de outra
forma, uma das propriedades interessantes dessa concepção do ponto de
vista dos Estudos da Linguagem é que ela pode, de alguma forma,
ampliar nossa “imaginação linguística” para diversas escalas de
interação, diversos graus intermediários entre o local e o global, entre o
enunciado situado e a língua como conjunto de todos os enunciados a
cada momento, se vale a analogia (ver por exemplo, Recuero, 2011).
Redes monádicas (atores-redes)
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As concepções de rede abordadas anteriormente têm três características
em comum que as distinguem das redes monádicas ou atores-redes.
Primeiramente, tanto redes sociais como redes técnicas são redes
homogêneas, isto é, dizem respeito a atores que compartilham uma
mesma substância (ou “natureza”) presumida, a despeito de podem
variar quanto ao tipo (pontos no território, pessoas, instituições,
websites, etc.). A segunda semelhança entre redes técnicas e sociais,
que, ao mesmo tempo, as distingue das redes monádicas, está em que
ambas pressupõem atores atomizados. Dito de outra forma, ambas
partilham de uma “aposta ontológica” pela qual sujeito, objeto e contexto
são elementos discretos, sendo que sujeitos interagem entre si e com
objetos para produzir uma estrutura (“um contexto social”) que, por sua
vez, condiciona também as interações locais2. Isso significa que ambos
os tipos de rede adotam o assim chamado “modelo de dois níveis” do
social (Latour, 2012).
Nesta terceira concepção, a rede é do tipo heterogêneo, isto é, a
substância dos atores não é presumida nem necessariamente partilhada,
tampouco é critério pertinente para a constituição de agregados/grupos.
Assim sendo, não há uma aposta ontológica que precede o movimento de
traçar a rede, mas a rede é em si um tecido ontológico constituído de
atributos ou vínculos que “geram” os atores em diferentes escalas.
Assim, não só fica abolida a separação entre sujeito e objeto, como
coloca-se ator e contexto em um mesmo e único nível ou plano de
organização. Isso significa, entre outras coisas, que não há indivíduos
versus agregados , mas atores que são coletivos (enquanto conjuntos de
2 São diversas as tentativas nas ciências sociais de explicar-se como decisões individuais (agência) afetam o comportamento coletivo (estrutura) e vice-versa. Para um panorama geral dessas formulações, vinculado ao tema dos novos letramentos, ver Buzato (2013).
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atributos) em sua singularidade, gerada por algum ponto de vista
particular.
Na base dessa formulação estão as ideias do sociólogo francês Gabriel
Tarde (1843-1904), contemporâneo e grande adversário intelectual de
Émile Durkheim (1858-1917), cujas ideias sobre consciência coletiva e
corpo social são, assim como redes sociais e redes técnicas, correlatas ao
modelo de dois níveis.
Diferentemente de Durkheim (e de algum modo, também dos
sistemistas), Tarde não imaginava a sociedade em termos de todo e
parte, mas como um conjunto de elementos infinitesimais3 em constante
transformação. Para tanto, Tarde vai buscar na filosofia de Gottfried
Leibniz (2009) o conceito de mônada como fundamento ontológico
aplicável ao que chamamos de “o social”.
Mônadas são, para Leibniz (2009), “átomos da natureza” ou “elementos
das coisas” , isto é, são pura qualidade, sem substância. Por não terem
partes, mônadas não têm extensão, nem figura, nem divisibilidade. Ainda
assim, são entes reconhecíveis como tal, porque têm atributos. Nesse
sentido, são como signos em um sistema semiótico qualquer, vale
acrescentar. Como explica Vargas (2004), mônadas são ao mesmo
tempo diferenciadas – dotadas de qualidades que as singularizam – e
diferenciantes – pois são animadas por uma potência imanente de
mudança. Tais mudanças, contudo, não acontecem como “saltos” entre
níveis (como nos modelos sistemistas), tampouco são influenciadas
externamente (causalidade entre corpo e membros), mas de acordo com
3 Em matemática, um infinitesimal equivale a um número infinitamente menor que qualquer quantidade concebível, mas, ainda assim, maior do que zero.
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algum princípio interno (como no caso de partículas e átomos). Nas
palavras de Leibniz (1999, p. 26), “é necessário que, além do princípio da
mudança, haja um detalhe daquilo que muda, que produza, por assim
dizer, a especificação e a variedade das substâncias simples”. “Este
detalhe”, continua o filósofo, “deve envolver uma multiplicidade na
unidade” (grifo meu).
Conforme explica Vargas (2004), a hipótese das mônadas implica a
afirmação da diferença como fundamento da existência e,
consequentemente, a renúncia ao dualismo cartesiano que sustenta o
modelo de dois níveis. A “essência” de uma mônada não é substância,
mas atividade, algo que confronta diretamente nossa tendência
(preconceituosa, na visão tardiana) a pensar o desconhecido como
homogêneo, e de supor que os resultados dos processos sociais sejam
sempre mais complexos do que suas condições de partida (ou que o todo
seja sempre maior do que a parte). Assim, para Tarde, indivíduo e
sociedade são ambos compostos relacionais, toda coisa é sociedade, no
sentido de que tudo que existe só existe enquanto associação. O que faz
os seres singulares (diferentes entre si) não é seu suposto estatuto
ontológico, aquilo que (supomos) que são, mas uma sua capacidade de
produzir diferença, aquilo que têm. Como quer Latour (2001, p. 128),
“ter ou não ter, esta é a questão”.
Reside nessa “ontologia do ter”, exatamente, o ponto nevrálgico de uma
conexão possível entre conceito de mônada (ator-rede) e a semiótica
estrutural (francesa), que serve de ponte para os estudos da linguagem, e
que nos anima a explorar a ideia de uma semiótica material (Law, 2008).
O que Tarde propõe como natureza das coisas, afinal, não é diferente do
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que a semiótica propõe como natureza do signo, isto é, o signo como um
ente para qual a identidade e existência é atribuída exclusivamente a
partir de seus atributos e/ou vínculos relacionais.
Essa conexão epistemológica com os estudos da linguagem fica mais
explícita no termo “semiótica material”, cunhado por Law (2008) e
adotado por alguns outros autores dessa vertente, também referida como
Teoria Ator-Rede (doravante TAR). Tributária declarada da sociologia de
Tarde, a TAR parte do pressuposto de que todo ator social
(independentemente de sua substância) é uma rede (de outros atores,
vistos como atributos), ou, dito de outra forma, o que há não são atores
em rede, nem redes de atores, mas atores-redes e redes-atores, os
“indivíduos compostos” de que já falavam Leibniz e Tarde.
Intencionalmente ou não, a concepção monádica-tardiana-latouriana de
rede sugere um redirecionamento das ênfases possíveis em estudos
envolvendo RSO. Da ênfase utilitário-metrológica , vigente no enfoque
das redes técnicas, e/ou da ênfase preditiva, vigente no enfoque das
redes sociais, para uma ênfase exploratória, voltada para uma abertura
radical da nossa imaginação sobre a realidade sociológica.
A principal vantagem dessa concepção é que ela permite particularizar os
agentes independentemente de sua substância ou identidade,
oferecendo ao pesquisador, dessa forma, uma alternativa a construtos
potencialmente homogeneizadores ou “preconceituosos” (já que
atomizadores e apriorísticos) tais como gênero, classe, etnia e mesmo
humanidade. De certa forma, torna-se especialmente atraente para o
estudioso da relação entre linguagem, tecnologia e sociedade porque
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reconhece na linguagem “o único lugar onde podemos nos refugiar dos
perigos gêmeos do naturalismo e da ideia de contexto social” (HØstaker,
2005, p.6), outorgando-nos, dessa forma, o máximo de liberdade para
pesquisar (Latour, 2005, p.55).
Obviamente, essa mesma característica de abertura da imaginação
sociológica trazida pela referida abordagem pode sugerir um
enfraquecimento de representações do social relativamente cristalizadas
que, para o bem o para o mal, desempenham, e continuam
desempenando, um papel instrumental importante em lutas políticas por
direitos sociais nas sociedades democráticas. Mesmo descrente dessas
representações e/ou discordando dessas críticas, o pesquisador filiado à
abordagem monádica não pode negligenciá-las (ver, por exemplo,
Mendes, 2010).
Além disso, a independência em relação aos construtos tradicionais não
implica, necessariamente, algum tipo de “neutralidade”. Todo conjunto
de atributos considerados, convenhamos, terá que ser limitado de
alguma forma, para que seja empiricamente viável. Logo, qualquer que
seja o dataset escolhido, sua construção implicará escolhas do
pesquisador, assim como herdará, em alguma medida, no caso das RSO,
visões particulares de sociedade implicadas implicadas nos designs das
interfaces e dos bancos de dados envolvidos.
Finalmente, a concepção do “ser” como “ter” implica uma formulação
diferente da relação entre fluxos, atores e saber. O que se busca aqui não
é medir nem prever, mas visualizar4, pelo rastreamento de atributos
4 Existe aqui uma escolha lexical sutil, mas de grande relevância metodológica, quando, seguindo Latour (1986) opto por “visualizável” em lugar de “visível”. Isso porque tornar visível é uma operação da ordem da percepção, e
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infinitesimais, aquilo que é algo ou alguém para outro ou outrem. Nesse
sentido, nessa terceira concepção, não faz sentido falar em “interação”,
pois o que chamamos de interação se daria entre atores finitos e
discretos. Sendo os atores infinitos, e tão mais complexos quanto mais se
focaliza a observação, tratar de interações seria basicamente um modo
de aceitar a falta de acesso aos intermináveis atributos infinitesimais
envolvidos (Latour et al., 2012).
Traçar uma mônada difere de fazer um projeto de rede técnica ou uma
modelagem de rede social no sentido de que se escolhe um ponto de
partida tomado não como ponto, mas como determinado diâmetro ou
escopo de associações (derivado das limitações do dataset). A partir
desse diâmetro, seguem-se os vínculos (atributos compartilhados) até
que se tenha uma lista suficientemente extensa que permita singularizar
determinado agregado que, só então, será tratado como uma unidade e
“envelopado” com um nome de ator. Quanto mais se quiser singularizar
um ator, mais associações será preciso considerar, ou seja, quanto mais
definido, mais heterogêneo o ator será (a parte será sempre maior do que
o todo, como querem Latour et al., 2012).
Se o que se deseja é, por exemplo, estudar “poder institucional” em
determinado agregado social, deve-se encontrar as instituições a partir
da superposição de mônadas, e não pressupor que tais e quais atores
sejam instituições. Será instituição, naquele estudo, o ator que tiver mais
atributos recorrentes, consideradas todas as mônadas sobrepostas,
portanto, implica tornar algo preexistente acessível ao sentido da visão, enquanto tornar visualizável é uma operação ontológica correspondente a tornar inteligível (porque representável) algo que não está imediatamente acessível aos sentidos, tampouco preexiste ao processo semiótico. Se ver é perceber, visualizar é desde sempre uma maneira de compreender.
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sendo essa lista de atributos, e não um estatuto particular, que o
diferenciará inequivocamente dos demais atores.
Por exemplo, se procuro saber, a partir dos dados da Plataforma Lattes,
quem é o professor X com quem farei uma mesa redonda no próximo
ENAMPOLL, o nome próprio “X” não me dirá praticamente nada em
comparação com o que me informará a lista de vínculos/atributos
registrados em seu currículo. Tal nome próprio seria apenas um
“envelope” para o conteúdo do currículo (a mônada), esse agregado que
constitui de fato o professor X. Supondo que o professor X trabalhe na
universidade Y, publique artigos com a palavra-chave Z e tenha sido
citado no artigo T, terei agora mais três mônadas (ou atores-redes) que
posso sobrepor para defini-lo de modo inequívoco.
Porém, isso valerá para um determinado ponto de vista ontológico:
aquele oferecido pelo currículo Lattes do professor X. Há outros pontos
de vista. Para o ponto de vista da universidade Y, por exemplo, teremos
uma lista de professores funcionando como atributos; para a palavra-
chave Z, uma lista de artigos e autores; para o artigo T, um autor, uma
lista de outros artigos citados na bibliografia, uma lista de palavras-
chave, citações que recebeu e assim por diante. Cada atributo/vínculo de
cada ator é, novamente, uma rede de outros atributos e, desde que se
disponha dos datasets pertinentes, pode-se sobrepor tantas mônadas
quando se quiser, até que se chegue a uma ou mais instituições,
definidas inequivocamente. No presente exemplo, poderíamos envelopar
esse agregado, por exemplo, como área de investigação científica na
CAPES. Supondo, porém, que o professor X apareça em mais mônadas e
mais frequentemente do que universidade Y, ele será mais “instituído” do
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que a própria instituição em que trabalha. Supondo que o artigo T
apareça em mais mônadas do que a palavra-chave Z, ele será mais
chave para o campo do que a referida palavra, e assim por diante. Logo,
o único modo de garantir totalmente que a área de investigação seja
uma instituição mais “instituída” do que autores, universidades, artigos
ou palavras-chaves, seria defini-la, a priori, como atributo dos demais
atores.
Comparando essas listas de atributos em uma sequência temporal
(digamos, agregando as mônadas conforme a data de publicação dos
artigos em fatias de cinco em cinco ou dez em dez anos), poderíamos
visualizar quais desses atores (professores, instituições, palavras-chave,
artigos etc.) permaneceram, quais deixaram de ter vínculos entre si e
quais novos atores e vínculos apareceram. Dessa forma, talvez se
tornasse reconhecível como entidade uma outra área de investigação,
passível de ser “envelopada” com outro nome5.
Como sugere tal exemplo, em que tomo a plataforma Lattes como uma
RSO, há aqui uma inversão de papéis com relação às outras duas
concepções: trata-se menos de usar uma concepção de rede para
iluminar as RSO enquanto objeto de pesquisa do que reconhecer nas
RSO um recurso empírico inestimável para o desenvolvimento dessa
concepção em particular de rede. Isto porque, conforme notam Latour et
al. (2012), as RSO viabilizam empiricamente aquilo que Gabriel Tarde
apenas poderia imaginar, dados os instrumentos empíricos de sua época
(Latour et al, 2012, p. 590).
5 Adapto, aqui, um exemplo ilustrativo de Latour et al. (2012) para, incidentalmente, aproveitar uma discussão corrente, à época da elaboração deste capítulo, sobre os nomes utilizados atualmente pela CAPES para identificar aprodução acadêmica dos pesquisadores participantes da ANPOLL.
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Em verdade, qualquer cidadão hoje pode navegar de perfil em perfil por
RSO variadas, angariando atributos/conexões de outros atores, a partir
de seu ponto de vista, definindo e redefinindo é e quem são os outros a
partir de atributos como “amigos”, o que “curtem”, seus posts, o que
compram, o que leem, o que ouvem, o que assistem etc. Do mesmo
modo, cada dono de perfil numa RSO “desatomiza-se” constantemente,
aparentemente, numa luta para singularizar-se, multiplicando seus
atributos infinitesimais.
É claro que, da mesma forma, todo e cada cidadão deve também se
preocupar com essa nova e eficiente, porque silenciosa, maneira de
traçar mônadas para homogeneizar, solidarizar, envelopar, prever,
manipular etc. Deve compreender o valor de cada um de seus rastros e
vínculos que compõem gigantescos datasets à disposição de
anunciantes, provedores de Internet, sites de RSO, governos antiéticos,
entre outros interessados em ontologias sociais. Mais importante ainda,
deve fazê-lo contornando a ilusão de uma suposta ampliação das
liberdades individuais num aparente (porém improvável) vácuo de poder
(Buzato e Severo, 2010).
Síntese das três concepções
Tanto como objetos quanto como instrumentos, como vimos, as RSO
tornam possivelmente mais necessário e pertinente o refinamento
teórico-metodológico em torno do conceito de rede para o qual o presente
trabalho pretende constituir uma pequena contribuição. Sumarizando tal
contribuição, apresento o Quadro 1.
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Redes Técnicas Redes Sociais Mônadas (Atores-Redes)
Foco Poder e espaço Epistemologia Ontologia
Concepção de “ser” subjacente
Ser é estar (circulação)
Ser é ser (atomização)
Ser é ter (diferenciação com continuidade)
Relação entre entidade e contexto (e/ou estrutura)
Inclusão e exclusão Descontinuidade, interação (dois níveis, causalidade)
Continuidade, navegação (um nível,multiplicação)
Relação entre sujeito, objeto e agência
Sujeito e objeto sãoseparados e possuem identidades fixas que precedem sua ação.
Sujeito e objeto são separados e têm identidades posicionais que condicionam sua ação.
A agência precede a existência e a distinção entre sujeito e objeto não se aplica.
Tipos de relações entre atores
Dominação. Interações locais que geram efeitos globais.
Compartilhamento (ou não) de atributos.
Estratificação do “real”
Internalidade (materialidade espacial) e externalidade (finalidade econômica)
Ponto de vista do analista: individual e coletivo (micro e macro, local e global)
Não há estratificação, mas multiplicação de pontos de vista para todos os atores.
Organicidade
O todo é a soma das partes, mas uma parte pode pertencer a mais
Todo e parte são constitutivos. O todo é sempre maior e mais
Todo e parte são contingentes. O todoé sempre menor e menos complexo do
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de um todo (redes locais, redes translocais).
complexo do que aspartes.
que as partes.
Percurso usual de investigação
Ciclos iterativos (mensuração e qualificação).
Do mais simples para o mais complexo.
Do mais complexo para o mais simples.
Método Regulamentação Modelagem Navegação e sobreposição.
Quadro 1 – Sumário comparativo das propiciações metodológicas dastrês concepções de rede
Considerações finais
Nestas considerações finais, julgo pertinente sinalizar para a
insuficiência do presente quadro para dar conta de um tipo específico de
RSO considerado the next big thing na sociedade digital: a “internet das
coisas” (ITU, 2005). Basicamente, trata-se da integração da tecnologia
RFID (radio frequency identification) aos objetos do cotidiano por meio de
etiquetas (tags) que podem guardar e enviar sinais de sensoriamento (de
condições do entorno) via Internet, os quais, por sua vez, podem ser
recombinados para gerar ações programadas dos referidos objetos, bem
como interações deles com pessoas e outros objetos. Isso corresponde a
atribuir aos objetos algo como uma “inteligência embutida” que lhes
outorgará um papel agentivo mais visível no cotidiano social.
Por enquanto restritas a utilidades domésticas de luxo, ou então a
máquinas altamente sofisticadas como drones e sondas espaciais, essas
tecnologias trazem consigo um potencial inesgotável de aplicações
práticas no cotidiano. Já é possível, por exemplo, para os poucos que
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têm acesso a esses sistemas, “perguntar” para sua geladeira, via
WhatsApp, o que há dentro dela no momento, e pedir que ela consulte,
num site de culinária, um prato que possa ser preparado com esses
ingredientes para o jantar. Ao desconectar da conversa com seu ”patrão”,
a geladeira poderia, por exemplo, avisar o aparelho de ar condicionado
para regular a temperatura da sala dez minutos antes do horário em que
o GPS do automóvel do seu dono informou como sendo o previsto para a
sua chegada, de modo que o ambiente esteja de acordo para o desfrute
do prato.
É especialmente instigante pensar nas possibilidades dessa tecnologia
quando consideramos dispositivos móveis, que nos acompanhem em
nossas circulações – como já é o caso de nossos smartphones – e que
partilhem nossos percursos espaciotemporais, nossas construções e
representações de contexto, e, especialmente, nossas decisões e
expectativas na interação com outros seres humanos. Certamente,
alguns dos leitores deste capítulo já ouviram falar sobre uma aplicação
do Facebook que utiliza o microfone do tablet do usuário para reconhecer
o programa de TV ou música que está sendo ouvido naquele ambiente
físico e, então, sugerir comentários que o usuário poderia fazer no site a
partir daquele conteúdo!
O que está em jogo, em tese, é mais do que a questão da perda de
privacidade e/ou da vigilância que hoje nos preocupa quando pensamos
em RSO. Trata-se não apenas de uma questão epistemológica, mas
também ontológica, na medida em que as coisas conversarão
silenciosamente sobre nós, e em uma linguagem que não podemos
decifrar a olhos ou ouvidos nus. Mais que isso, os objetos poderão
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conversar à distância, partilhando informação contextual em uma escala
que supera em muito a da cognição e da percepção humanas. Isso
significa que nossas interações “locais” com e por meio das coisas
constituirão uma espécie de mashup semântico (Mitew, 2011), que
tornará saliente na materialidade do espaço aquilo que Manovich (2002)
já apontava como o fenômeno da transcodificação cultural nas interfaces
eletrônicas das novas mídias.
Finalmente, uma vez que serão capazes de registrar suas próprias
circulações e interações, as coisas terão à disposição datasets referentes
a si mesmos, disponíveis para diferentes recortes espaciotemporais, o
que lhes permitirá “reenveloparem-se” ontologicamente de tempos em
tempos, algo comparável, em alguma medida, ao que chamamos de
subjetividade nos seres humanos (Mitew, 2011; Buzato, 2012).
A pergunta que deve nos instigar, nessas considerações finais, a
continuar pensando sobre diferentes concepções de redes é: qual das
três concepções mencionadas aqui seria apropriada para estudar a
Internet das coisas? Enquanto rede técnica, ela funde energia e
comunicação, em lugar de separá-las, para produzir territórios. Se a
tomarmos como rede social, admitindo, por um momento, que objetos
são atores sociais, teremos que lidar não só com a dependência de
contexto diante das regras de interação, mas com a influência de regras
de recontextualização nas interações. Tomando a concepção das redes
monádicas para a Internet das coisas, ficaríamos mais à vontade para
ignorar as distinções entre informação e energia, objeto e sujeito,
contextualizante e contextualizado. Por outro lado, sobrepor as mônadas
produzidas a partir do ponto de vista das coisas e das pessoas, em um
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mesmo nível, implicaria transformar em “texto comum” o referido
mashup semântico, e, consequentemente, abrir mão da beleza do seu
efeito metassemiótico (Buzato et al., 2013)6. Por mais metodologicamente
astuta que fosse, essa manobra talvez nos tirasse o que de mais
interessante há em tudo isso para quem estuda linguagem. Assim sendo,
ainda que o Quadro 1 nos seja útil no momento de escolher o que
queremos saber sobre determinada RSO e como fazê-lo, talvez sua maior
utilidade esteja em nos lembrar de que a não totalidade de qualquer
explicação é sempre bem-vinda, porque permite que nos reconheçamos
como agentes ontológicos, tanto quanto nos reconhecemos como agentes
epistemológicos e políticos.
Agradecimento:
Agradeço a Nayara Natalia de Barros, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP, pela valiosa ajuda narevisão linguistica do presente texto e relevantes sugestões de redação.
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6 Um “texto comum” pode ser pensado, a partir do princípio geral da intertextualidade, como um mashup para o qualos textos-fonte perderam suas “auras”, por falta de um vínculo consciente com a memória discursiva do leitor. Num mashup reconhecido como tal, tanto ou mais do que o conteúdo ideacional do texto, importa o efeito metassemióticoda combinação “sem costura” de textos-fonte cujas “auras” permanecem visíveis, sendo esse efeito, justamente, que nos faz admirar mashups realizações autorais, dignas de nota (Buzato et al, 2013).
Versão preliminar (rascunho) de trabalho apresentado no 29º Encontro Nacional da ANPOLL (Associação Nacionalde pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística), realizado realizdo de 9 a 11 de junho de 2014 naUniversidade Ferderal de Santa Catarina, Florianópolis – SC.
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