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Habitar a “real Praça do Comércio”. Casas pombalinas do eixo alfândega/arsenal*
MARIA HELENA BARREIROS
O desenho da cidade
Contrariando o lugar ‑comum há muito estabelecido de uma uniformidade desinteressante pairando sobre a ge‑neralidade da habitação pombalina corrente, este texto funda‑senahipótesedequeexistem,esãoidentificáveis,famílias tipológicas distintas de interiores pombalinos e que uma delas — de maior representação — se concen‑traria ao longo do eixo rua da alfândega/rua do arsenal. trata ‑se da primeira frente urbana nascente ‑poente da CidadeNovapós‑1755(fig.1),que incluíaa “vastamole”
da alfândega pombalina, a ala norte da Praça do Comér‑cio, o senado da Câmara e o arsenal.
Exteriormente, a dignidade das novas funções pú‑blicasdequeoantigoTerreirodoPaçofoiinvestidopelareconstrução pombalina — e, certamente, a memória da arquitectura áulica que aí existira antes — transmitiu ‑se aoseixosqueoprolongamalesteeaocidente,atravésdeuma série de refinamentos de desenho 1 que dão conti‑nuidade à escala e à linguagem arquitectónica da própria Praça.Umdelesé,semdúvida,apresençadeentablamen‑tos simplificados 2 de remate das janelas de sacada desde
* O trabalho que aqui se apresenta decorre da linha de investigação Urbanismo e Monumentos Públicos, que integra
o Centro de Estudos de Arquitectura, Cidade e Território, da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), sob
coordenação do Prof. Miguel Figueira de Faria. Insere ‑se, ainda, em processo de investigação de doutoramento em curso
sobre o tema da habitação plurifamiliar em Portugal no Antigo Regime.1 Maria Helena Ribeiro dos Santos observa ‑os demoradamente em “Arquitectura pombalina, temas e variações”, in M. H.
Barreiros coord., Lisboa. Conhecer, Pensar, Fazer Cidade, Lisboa, CML, 2001 (catálogo de exposição), pp. 38 ‑49.2 Obtidos pela sobreposição arquitrave ‑friso ‑cornija rematando o vão, seguindo a definição deste elemento compositivo
clássico proposta, com acerto, por João Vieira Caldas em “O estilo micaelense”, Inventário do Património Imóvel dos
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a rua dos arameiros/Campo das Cebolas até ao Cais do sodré, que surge enunciado no extenso alçado lateral dos paços do concelho pombalinos entre a rua do ouro e a PraçadoMunicípio(fig.2).Percorreigualmenteasduasfrentes residenciais desta praça — como aliás acontecia coma fachada daCâmara pombalina, ardida em1863.
esta marcação superior das sacadas dos andares nobres, que ocorre tendencialmente à mesma cota in‑serida no friso contínuo de cantaria — outro elemento compositivodatradiçãoclássicaqueassinalaopavimen‑
to do andar superior —, determina a leitura ad infinitum das frentes de quarteirão, acentuando a linearidade da perspectivaurbana(fig.3).Surgeainda,comasnecessá‑rias adaptações, no desenho do Largo do Corpo Santo,a segunda praça aberta ao arsenal depois do município, que reedita princípios de composição dos alçados do ros‑sio, como a alternância janela de peito/janela de sacada — estas,comonoRossio,rematadaspelomesmoentabla‑mentosimplificado 3.Umsegundodispositivodedesenho,comummente associado ao nome de Carlos mardel, sa‑
Açores. São Miguel, Ribeira Grande, Angra do Heroísmo, DRC/IAC/CMRG, 2007. José ‑Augusto França refere ‑se ‑lhes,
impropriamente, como “frontões direitos (...) das sacadas”, cuja fonte próxima faz implicitamente remontar à arquitectura
palaciana portuguesa do século xvii, cf. José ‑Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand, 1977,
p. 109. No mesmo trecho, o autor reconhece nas ruas da Alfândega e do Arsenal, entre outras, a introdução de variantes
“ricas” ao desenho pombalino de base, tal como Eugénio dos Santos o delineou para a retícula da Baixa.3 A propósito da relação de desenho entre os alçados da Praça do Município e do Corpo Santo com o Rossio, cf. José
Eduardo Capa Horta Correia, Vila Real de Santo António, Urbanismo e Poder na Política Pombalina, Porto, FAUP, 1997
(1.a ed. polic. 1984), pp. 200 ‑203 e respectivas notas. Cf. ainda M.a Helena Ribeiro dos Santos, op. cit.
Fig. 1 — Enfiamento Terreiro do Paço/Rua do Arsenal no fim do séc. xix. AML/Núcleo Fotográfico, A12938.
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Fig. 2 — Prospecto do Edifício do Senado da Câmara na Rua Direita do Arsenal, c. 1760. AHMOPTC, D32 ‑4C.
Fig. 3 — Joshua Benoliel, Largo do Corpo Santo e Rua do Arsenal, início do século xx. AML/Núcleo Fotográfico, A8656.
lienta este quase decumanusdanovaLisboadePombal:ostelhadosduplos,outrainvarianteaolongodopercurso,de que restam ainda alguns testemunhos.
Passando das questões de desenho para a suama‑terialização, sabemos que a rua augusta e a face norte alfândega/arsenal constituíram — com as ruas do Co‑mércio e de são Julião — como que a cruz de eixos por ondeareconstruçãodacidadeprivadaarrancou,fazendofénosróisdoimpostodaDécimaquedatamorespectivoedificadodasduasdécadasiniciaisdahistóriadopróprioimposto,osanos60e70doséculo xviii 4.
4 Esclareça ‑se, no entanto, que os dados sistemáticos disponíveis integram a
totalidade da Rua Augusta, mas quanto ao eixo Alfândega/Arsenal, contemplam
apenas o edificado entre a Igreja da Conceição Velha e a Praça do Município,
inclusive. V. Ana Rita Reis et alii, “A Décima da Cidade: contributo para a datação do
edificado da Baixa”, Monumentos, n.o 21, Lisboa, DGEMN, 2004, pp. 58 ‑65 (sobretudo
cartografia temática, figs. 1 e 6).
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5 O Cartulário Pombalino regista apenas mais dois casos de utilização contínua deste tipo de remate das janelas de sacada
nos andares nobres dos prédios de habitação: a frente nascente do Passeio Público, de dois pisos, telhados duplos ditos
mardelianos e trapeiras, em desenho assinado pelo Marquês de Pombal, destinado a uma zona de actuação do arquitecto
Reinaldo Manuel dos Santos, cf. José Eduardo Capa Horta Correia, Vila Real de Santo António…, op. cit., pp. 199‑200; e
a frente poente da Rua das Duas Igrejas, ou das Portas de Santa Catarina (actual Garrett), igualmente com dois pisos,
telhados duplos e trapeiras de vão arqueado, composta de 4 edifícios de rigorosa modulação geométrica nunca construídos.
Cf. Cartulário Pombalino, Lisboa, CML, 1999, pp. 27, 39.6 Foram então publicitadas razões de saúde para que os soberanos voltassem a habitar no terreiro que foi do paço dos seus
“maiores”, designadamente a frequência dos banhos termais ‑ as alcaçarias ‑ de Alfama.
Sobre o tema do paço mariano da Praça do Comércio, ver Francisco Santana, “Locais de funcionamento da Aula do
Comércio”, Revista Municipal (sep.), n.o 126‑127, 1970, pp. 23‑34, e também a série de três artigos do mesmo olisipógrafo,
“O Paço da Praça do Comércio”, “O Paço da Praça do Comércio de 1769 a 1780” e “O Paço da Praça do Comércio
(1780‑1821)”, publicados na revista Olisipo, n.os 139/140, 141 e 142‑143, entre 1977 e 1980. Ver ainda, Luís Pastor de Macedo
e Norberto de Araújo, Casas da Câmara de Lisboa, Lisboa, CML, 1951, pp. 117‑126.7 Podem retirar ‑se deste “regresso ao passado” várias ilações sobre a conjuntura política mariana face ao governo
pombalino — nomeadamente a sua leitura como uma das manifestações arquitectónicas do que, em termos políticos, a
historiografia designa habitualmente por “Viradeira”. O tema, no exacto cruzamento entre urbanismo, arquitectura e política,
transcende no entanto o objectivo mais circunscrito deste estudo.8 Assim é, por exemplo, em 1813, a propósito da cedência de espaços habitacionais “nos baixos do Palacio do Terreiro do
Paço”, e em 1814, sobre a demolição do passadiço “dos Reaes Palacios da Praça do Commercio” que existiu sobre a Rua do
Ouro, cf. Francisco Santana, “O Paço da Praça do Comércio (1780 ‑1821)”, Olisipo, n.os 142 ‑143, 1979 ‑1980, pp. 162 e 164.
Este passadiço permitiu ampliar a área reservada à Corte na ala norte da Praça do Comércio, entre as ruas Augusta e do
Ouro — antes ocupada pela Junta e Aula do Comércio e pelo Conselho da Fazenda —, ao edifício do Senado da Câmara.
a distinção das fachadas urbanas ao longo deste eixo atravésdodispositivodedesenhoqueacabámosderefe‑renciar 5, a organização do espaço interior habitacional e oseuprogramasocialteriamassimconvergidoparaumanobilitação da arquitectura das imediações da Praça doComércio — sempre dentro do paradigma pombalino. Um pombalino de primeira classe, condição certamente avi‑vadapelapresençadacortedarainhaMariaI,entre1780e1792,no“PaláciodaPraçadoComércio”,“doTerreirodoPaço” ou “de lisboa”, como é designado na imprensa da época 6.
Do ponto de vista arquitectónico, o regresso epi‑sódicodacorteaoTerreirodoPaçotraduziu‑se,naver‑dade, numa mera inserção de aposentos para uso régio em espaços originalmente destinados a dois organismos caros à administração pombalina, nacional e “local”: a Junta do Comércio e respectiva Escola, e o Senado daCâmara de lisboa 7 (fig.4).Estautilizaçãohabitacionalde excepçãomanter‑se‑á vivanamemória administra‑tivadoreino—ecertamentenadasgeraçõesquecomelaconviveram— anosdepoisdeaCorteseterretiradopara o brasil 8.
“(...) A todos os homens de negocio he muito conveniente terem as suas habitaçoens proximas aos Tribunais de que dependem”
O programa social para a habitação nas imediações daPraçadoComércioéManueldaMaiaquemodefineemtotal articulação com o plano urbanístico da reconstru‑ção.EscreveoEngenheiro‑MordoReinona1.a Parte da sua celebrada Dissertação, datadade4deDezembrode1755,parágrafo15.o:
“(...) determinado e escolhido este local d’entreS. JoãodosBemcasados eo conventodeN. Sra. daEstrella para o novo e real Palacio, me parece se deve principiar a renovação de Lisboa pelos edificios publicos, que são fabricados por conta da real fazenda, por serem os proprios fundamentos dos reais subsidios quase todos na marinha, para o que largará S. Magestade o seu palacio antigo(...):epoderá também formar ‑se a casa da bolça do negocio e tudo com as direcçoens, e formalidades
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9 Manuel da Maia, Dissertação, 1.a parte, apud José ‑Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand,
1977, pp. 294. Termos em bold e transcrição, com abreviaturas desenvolvidas, da minha responsabilidade.10 Sobre o urbanismo pombalino, consultar a última e mais actualizada publicação de referência consagrada a esta
temática: W. Rossa e A. Tostões ed., Lisboa, 1758. O Plano da Baixa Hoje, Lisboa, CML, 2008 (catálogo + DVD da exposição,
existe em versão inglesa).11 Manuel da Maia, Dissertação, 2.a Parte, apud José ‑Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand,
1977, p. 299. Termos em bold e transcrição, com abreviaturas desenvolvidas, da minha responsabilidade.
não só segundo as noticias das outras Cortes, mas com as melhoras que ocorrerem, e o bom discurso alcançar” 9.
EmFevereirode1756,na2.a parte da Dissertação, parágra‑fo7.o,ManueldaMaiaretomaedesenvolveotema,reflec‑tindopragmaticamentenassinergiasentreobrapúblicaeiniciativaprivadanaconcretizaçãodeumplanourbanodaescalaecomplexidadedode1756‑1758paraLisboa 10:
“e para vencer o receyo de faltar quem queira comprar algumas areas,(...)me ocorre respon‑der que como a todos os homens de negocio he muito conveniente terem a suas habitaço‑ens proximas aos Tribunais de que dependem,
aprincipiarS.MagestadearenovaçãodeLisboa(...)pelos edificiospublicos, (...) comeste atractivopro‑curarãotodososquetiveremdependenciadostaestribunaisalcançarsitioseareasparaedificar,nãore‑parandoemdarporhumavezhumasóquantiaain‑da que grande em esperança de que com o tempo recuperarão abundantemente nas habitações proximas aos Tribunais de que quotidiana‑mente dependem para os seus interesses, e que com hum tal atractivo se facilitará muito a re‑edificação de Lisboa baixacomasventagenspre‑meditadasnoditomododearenovar,arrazando‑a” 11.
entre estes “tribunais” contam ‑se, naturalmente, a bolsa e a alfândega.
Fig. 4 — Planta do Pavimento nobre do Edificio do Senado da Câmara, e Depozito público (...) e hoje serve de Real Paço de Lisboa, assinado Conde de Oeiras. O desenho e a legenda originais foram actualizados depois de 1780. MC, Des. 1140.
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12 O tema da relação do plano da reconstrução pós‑terramoto com as pré‑existências tem sido acentuado e desenvolvido
pela produção historiográfica mais recente sobre a Lisboa pombalina.13 O portal actual constituía o acesso lateral sul da igreja manuelina antes do terramoto. Foi também seu acesso principal,
uma vez que a igreja tinha entretanto sido flanqueada de construções a nascente e poente. Cf. Manuel da Maia, Carta
topographica da parte mais arruinada de Lisboa na forma, em que se achava antes da sua destruição para sobre ella se
observarem os melhoramentos necessários, Arquivo dos Serviços de Fortificações e Obras do Exército, 2342‑2‑16‑22 e SIPA,
“Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha”, registo n.o PT031106190008, www.monumentos.pt, ac. 17.06.2011. Quando
a igreja se reconstrói pós‑1755, a implantação original nascente/poente roda para norte/sul, passando o primitivo portal
lateral a uma posição axial face ao interior do templo. A Igreja da Misericórdia parece um dado adquirido para os arquitectos
da reconstrução — ela surge em todos os desenhos da nova capital, designadamente nas três plantas‑síntese conhecidas do
plano aprovado: Instituto Geográfico Português, des. n.os 0354 e 0355; J. P. Ribeiro, “Planta topográfica da Cidade de Lisboa
arruinada também segundo o novo Alinhamento dos Architectos Eugénio dos Santos e Carvalho e Carlos Mardel”, s.d., cópia,
in A. Vieira da Silva, Plantas topográficas de Lisboa, Lisboa, CML, Lisboa, 1950.14 No caso do lote do gaveto poente, Rua da Alfândega, 128 a 148/Rua da Madalena, 1 a 23, é possível fornecer o nome
do promotor e a data de construção exacta (1770) a partir dos Livros da Décima da Cidade, Arquivo Histórico do Ministério
das Finanças. Cf. Joana R. G. da Mota Fernandes Alegria, A Arquitectura Pombalina na Rua da Madalena, dissertação de
mestrado em Recuperação e Conservação do Património Construído, Lisboa, Instituto Superior Técnico, 2007 (polic.).15 Ver Nuno Gonçalo Monteiro, “Sebastião José e o terramoto: entre o governo da casa e o governo do reino”, in Ana Cristina
Araújo et alii, O Terramoto de 1755. Impactos Históricos, Lisboa, L. Horizonte, 2007, p. 233 (actas de colóquio).16 Aos irmãos Cruz foi sucessiva e insistentemente confiado o desempenho de postos ‑chave do governo pombalino, como
a Provedoria da Junta do Comércio, a Tesouraria ‑Mor do Erário Régio, a Inspecção das Obras Públicas, a Administração
das Alfândegas e a lucrativa Contratadoria Geral do Tabaco. Alguns dos cargos e comendas transitarão e frutificarão ainda
durante o reinado de Maria I: 4.o irmão Anselmo da Cruz Sobral (1728 ‑1802) manter ‑se ‑á como contratador do Tabaco até
A Rua da Alfândega, uma criação dos capitais pombalinos
AoinvésdoqueseverificacomaRuadoArsenal,aRuadaAlfândegainflecteapartirdoencontrocomosFanqueiros,acomodando‑seàconfiguraçãourbanadacidadeantigaa nascente, quase intocada pelo plano da reconstrução 12. Trata‑se de uma das soluções de desenho urbano queinvalidaahipótesedatabula rasa como a opção absolu‑tamentedeterminantedoPlanode1756‑1758.Ainflexãoda rua da alfândega em direcção ao rio obedeceu ainda aoutro imperativo:avontadede integraraantiga IgrejamanuelinadaMisericórdia(depoisdaConceiçãoVelha),cujo portal parece ditar a implantação da rua a partir do cruzamento com os fanqueiros, formando uma frente de quarteirãoquecoincidecomaqueaíexistiaantesde1deNovembrode1755 13 (fig.5).
a construção da rua da alfândega fez ‑se com o con‑curso da fazenda do próprio marquês de Pombal e dos ne‑gociantes da Praça de lisboa, com quem instaurou uma novacapitaleumanovaordempolítica.SebastiãoJosédeCarvalhoeMelo,paraalémdecondutorpolíticodoplano
deLisboade1756‑1758, foi,comosesabe,seupromotordirecto. existe hoje ainda cerca de uma dezena de prédios, situados sobretudo nas franjas da baixa, que integraram, ou integram ainda, o património do primeiro marquês de Pombal e seus descendentes: em são Paulo e no Cais do sodré, no Carmo, na rua de santo antónio à sé — e no quarteirão que dobra duplamente a rua da alfândega, para os fanqueiros e para a madalena 14. não se tratou de investimentosimobiliáriospontuais,masdeumaestraté‑gia concertada de garantir os fundos necessários a uma casa nobiliárquica em construção: estudos realizados so‑breas receitaspatrimoniaisdaCasaPombalnofinaldoséculo xviiirevelaramquemaisdemetadetinhaorigemem propriedades urbanas em lisboa 15. tudo indica que o mesmo sucedia com os rendimentos da família Cruz sobral, uma das mais poderosas dinastias de negociantes pombalinos, com raízes no comércio colonial, e que mais activamenteseenvolveunareconstruçãopós‑terramoto.deparamos constantemente com a sua marca na refun‑daçãodacidade,entreobraspúblicaseprivadasquevãodo lançamento do arco da rua augusta à basílica da es‑trela, passando pelo teatro de são Carlos 16.
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ao fim da vida e desempenhará com grande êxito as funções de inspector da obra da Basílica da Estrela. Cf. Mário Eurico
Lisboa, O solar do Morgado de Alagoa: os Irmãos Cruz e os Significados de um Património Construído (Segunda Metade
do Século XVIII), dissertação de mestrado, Universidade Aberta, 2007, e ainda Luís Miguel P. G. Cardoso de Menezes,
Os Capitalistas Cruzes Alagoa ‑Sobral e a (Re)Construção de Lisboa, Lisboa, 2009. Os Cruz (Sobral) surgem amiúde ao longo
do texto fundador de José ‑Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertand, 1977 (1.a ed. 1966), a par
com outras famílias de grandes negociantes que emergem no período pombalino.
Fig. 5 — Sobreposição do traçado urbano anterior ao terramoto ao plano de recosntrução. Em vermelho orce, a arquitectura religiosa e monumental ante‑1755, Instituto Geográfico Português, des. n.o 0354.
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17 O patronímico Sobral surgirá apenas com o processo de nobilitação. Joaquim Inácio (1725 ‑1781), o terceiro dos irmãos
Cruz, é nomeado fidalgo da Casa Real em 1769, sendo ‑lhe atribuído o senhorio honorífico da vila do Sobral de Monte ‑Agraço
em 1771. Títulos e mercês transitarão para o irmão mais novo, Anselmo José, e sua descendência. Cf. diplomas régios
conservados no Arquivo da Casa Sobral e na Academia de Ciências de Lisboa (cópia) transcritos por Mário Eurico Lisboa
em O Solar do Morgado de Alagoa: os Irmãos Cruz e os Significados de um Património Construído (Segunda Metade do
Século XVIII), dissertação de mestrado, Universidade Aberta, 2007 (policopiado), vol. ii — anexos, pp. 151 ‑152.18 Ver os dados referentes ao inventário dos bens de Joaquim Inácio da Cruz Sobral (1725‑1781) e ao mapa de partilhas
dos bens de Anselmo José da Cruz Sobral (1728‑1802) com base em documentação do Arquivo da Casa Sobral, publicados
por Mário Eurico Lisboa em O Solar do Morgado de Alagoa…, op. cit., vol. i, pp. 28 e 33. Da herança de Anselmo José,
avaliada em c. de 850 mil réis, metade dizia respeito a prédios urbanos. 19 Cf. M. Eurico Lisboa, O Solar do Morgado de Alagoa..., op. cit., p. 80. O autor utiliza como fonte uma pesquisa de Ana Rita
Reis, Maria José Simões e Susana Rodrigues, Décima da Cidade, datada de 2006, que não nos foi possível localizar.20 Dados referentes ao mapa de partilhas dos bens de Anselmo José da Cruz Sobral. Cf. Mário Eurico Lisboa, O Solar do
Morgado de Alagoa..., op. cit., p. 33. Por seu lado, as Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências do seu tempo em
Portugal de Maio 1747 a Setembro de 1810, Lisboa, Fenda, 2007 (1.a ed., Londres, 1813), p. 274, identificam o quarteirão —
“o grande quadrado insolado” — delimitado pelas actuais ruas Ivens, Garrett, Nova do Almada e Trav. Nova de S. Francisco
como fruto da iniciativa deste Cruz Sobral. Raquel Henriques da Silva confirmou a notícia através do imprescindível fundo
arquivístico dos Livros da Décima da Cidade, Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, tendo datado a construção entre
1791 e 1795, in Lisboa Romântica. Urbanismo e Arquitectura, 1777 ‑1874, Universidade Nova de Lisboa, 1997 (polic.), p. 40.
O mesmo fundo permitiu identificar com segurança outro prédio construído por Anselmo José na Baixa: o actual n.o 199‑
‑209 da Rua da Madalena, nas imediações do Largo do Caldas, construído em 1783, cf. Joana R. G. da Mota Fernandes
Alegria, A Arquitectura Pombalina na Rua da Madalena, op. cit.21 Cf. M. Eurico Lisboa, O Solar do Morgado de Alagoa..., op. cit., p. 84. O autor utiliza a mesma fonte referida na nota 20:
Ana Rita Reis et alii, Décima da Cidade, 2006. A associação do prédio a Anselmo José da Cruz Sobral permaneceu viva na
memória colectiva, como parece atestar a notícia “O Martinho da Arcada vai acabar? Tudo leva a crêr que não, e abaixo se
diz porquê”, Diário de Lisboa, 25.11.1943, onde se lê: “O prédio, construído, é claro, depois do Terramoto, pelo barão de Sobral
[sic], fidalgo muito ligado á reedificação de Lisboa, passou depois aos Braamcamps — apelidos da política e das letras
—, dêstes á firma de navegação Ernesto George e depois a Carlos George, e, finalmente [em], 1939 ao falecido industrial
Alfredo da Silva, que, em 1942 facilitou a sua venda ao Estado pois aquele imovel era o único edificio da praça que não
constituia patrimonio nacional. Em 1943 passaram todos os inquilinos a pagar renda ao Estado, por intermédio da Direcção
Geral da Fazenda Pública, que há meses notificou a todos os inquilinos (lojas, escritórios e particulares) para se irem
a análise da composição da fortuna dos “Cruzes” 17 natransiçãodoséculo xviii para xixcomprovaopesoes‑magador dos seus bens imobiliários na lisboa reconstruí‑da 18. registe ‑se, a propósito, a construção da totalidade dos prédios de rendimento do largo do município entre 1769e1778,recentementeatribuídaaJoaquimInáciodaCruzSobral(1725‑1781)apartirdoconteúdodosLivros da Décima da Cidade 19.
o “mapa de partilhas” de anselmo José da Cruz so‑bral (1728‑1802)—o quarto e omais destacadodos ir‑mãos Cruz — atribui ‑lhe a “paternidade” de pelo menos 19 prédios na nova Lisboa 20. Um desses prédios consti‑tuiu, nada menos, que o remate nascente da Praça do Co‑mércio, articulando a praça com as ruas bela da rainha (actualRuadaPrata)edaAlfândega 21 (fig.6),ondeesteramodos“Cruzes”teveresidência.
Fig. 6 — Praça do Comércio, ângulo nascente. Foto António Sachetti.
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embora”. Agradeço a José de Monterroso Teixeira o conhecimento e o acesso a este recorte de jornal. Mais recentemente,
António Valdemar refere ‑se ‑lhe em termos semelhantes: “de todas as arcadas do Terreiro do Paço, a que faz esquina
com as ruas da Prata e da Alfândega, ficou perpetuada com dois nomes. Para nós é a do Martinho, mas durante o fim do
século xviii e grande parte do século xix era a do Anselmo. Isto porque incluía o único prédio ali existente que pertencia
a um particular — Anselmo José da Cruz, protegido do Marquês de Pombal, senhor do Sobral (de Monte Agraço) e fiscal
de Obras Públicas”, in “Martinho da Arcada: tradições literárias”, Diário de Notícias, 28.9.1997, apud Luís Miguel P. G. Cardoso
de Menezes, Os Capitalistas Cruzes Alagoa ‑Sobral..., op. cit, p. 28.22 Luís Miguel P. G. Cardoso de Menezes, Os Capitalistas Cruzes Alagoa ‑Sobral..., op. cit., ibidem.23 Anselmo José era seu proprietário em 1780, uma vez mais segundo a Décima da Cidade, livro 708, Arruamentos,
freguesia da Madalena, 30.o registo da Rua Bela da Rainha. Trata‑se da actual Rua da Prata, por onde se fazia o acesso
aos pisos habitacionais do prédio. O 2.o andar “é nobre ocupado pelo senhorio”, e nele habitava o desembargador António
da Cruz Sobral e cinco serviçais, com toda a probabilidade, o filho primogénito de Anselmo, Sebastião António da
Cruz Sobral (1757‑1805) que morreu solteiro. Cf. Raquel Henriques da Silva, Lisboa romântica…, op. cit, p. 136, nota 2.
A autora não identifica este n.o 30 da Rua Bela da Rainha como o prédio do “Martinho da Arcada”, embora a fórmula
“é nobre”, aplicada a um 2.o andar que abre janelas de peito para a rua — situação anómala, devida ao particularismo da
tanto Pombal como anselmo José surgem, pois, entre os edificadores do trecho Praça do Comércio/rua da alfândega, numa opção em que ecoa a Dissertação de manuel da maia, mais ainda no caso de Cruz sobral que, paraalémdoinvestimentoimobiliáriopromissor,foicer‑tamente seduzido pelo grandioso cenário da praça em
execução, sede da sua actividade enquanto negociantee alto funcionário da governação. A iniciativa da cons‑trução do ângulo nascente da Praça do Comércio por anselmo José da Cruz sobral explica por que razão este únicolotedapraçasemantevenapossedeparticularesaté à década de 40 do século xx . Conheceu modos de utilização em conformidade, patentes ainda hoje numa arquitecturainteriordefeiçãoquaseostensivamentepa‑laciana (fig.7).Apermanêncianopisotérreodomultis‑secular estabelecimento de restauração conhecido como “martinho da arcada” acrescenta significado cultural ao edifício.
A “Casa do Terreiro do Paço”
assim se refere luís Cardoso de menezes ao ângulo nas‑centedaPraçadoComércio,namonografiaquededicouà família Cruz e aos seus dois ramos, alagoa e sobral 22.
nela habitaram certamente pelo menos duas geraçõesdeCruzesSobral:afamíliadeAnselmoJoséea de JoanaMaria (1760‑1812), sua filha e herdeira, ca‑sadacomGeraldoV.BraamcampdeAlmeidaCastelo‑‑Branco (1752‑1828), barão de Sobral em 1813 23. a descendência participará com galhardia e empenho na construção da monarquia constitucional — e do Portu‑gal oitocentista.
Fig. 7 — “A Casa do Terreiro do Paço”, Rua da Prata, 8, vestíbulo e caixa de escadas. Foto João Caldas.
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situação do prédio, e talvez por isso assinalada pelos inquiridores —, possa permitir esta identificação.
Outros dados biográficos sobre as duas famílias — a de Anselmo José da Cruz Sobral e a de sua filha, casada em 1773 —,
coligidos por Eurico Lisboa e Luís Cardoso de Menezes nas obras que vimos citando fazem supor que ambas habitaram
o “Terreiro do Paço”. Os filhos de Anselmo José nascem na freguesia de Santa Isabel entre 1757 e 1763, quando aquele
vivia com a mulher nas casas nobres do irmão José Francisco da Cruz, futuro morgado de Alagoa (1717‑1768), na actual
Rua da Escola Politécnica. Leonor Clara (m. 1786) e Joana Maria (m. 1812), suas filhas, morrem ambas na freguesia de
São Julião, que abrange o quarteirão do “Martinho da Arcada” segundo a reforma das freguesias lançada a partir de 1777,
cf. F. Santana (ed.), Lisboa na Segunda Metade do Século XVIII (Plantas e Descrições das Suas Freguesias), Lisboa, CML,
s/d. Anselmo José mudar‑se‑á entretanto para o palácio Sobral, no Largo do Calhariz, construído e habitado pelo irmão
Joaquim Inácio (1725‑1781) de quem foi herdeiro. Em 1775, dois anos depois da união com Joana Maria da Cruz Sobral,
Geraldo V. Braamcamp tem casa na Rua Bela da Rainha, actual Rua da Prata, onde, em 1828, fará aprovar o seu testamento
(cf. L.M. Cardoso de Menezes, op. cit, pp. 32 e 94). O mesmo Geraldo V. Braamcamp seguirá o exemplo do sogro na
condução dos seus negócios: surge como um dos últimos construtores da Rua Augusta, fazendo levantar o lote no gaveto
nascente com a Rua Nova d’El‑Rei (actual Comércio) nos primeiros anos do século xix (cf. Ana Rita Reis et alii, “A Décima
da Cidade…”, Monumentos, n.o 21, 2004, op. cit., fig. 4 — Baixa Pombalina: proprietários da Rua Augusta entre 1762‑1809,
segundo os Livros da Décima, p. 61).24 Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Intermédio, obra n.o 10550, proc. 747/1903, fl. 3. Esclareça ‑se que um provável
lapso levou a que as janelas de sacada não tenham sido representadas na planta, como se pode comprovar pelo
confronto com o levantamento do mesmo andar de 1938, Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Intermédio, obra n.o 8937,
proc. 42390/1938, fl. 22. O primeiro andar, de menor área e pé ‑direito — uma sobreloja, na verdade —, abre através de
janelas de peito para a arcada da Praça do Comércio.25 Sobre esta matéria, ver a última e a mais abrangente síntese publicada por Raquel Henriques da Silva, que lhe dedicou
parte significativa dos seus estudos sobre a história do urbanismo de Lisboa: “Lisboa reconstruída e ampliada (1758 ‑1903)”,
in W. Rossa e A. Tostões ed., Lisboa, 1758. O Plano da Baixa Hoje, Lisboa, CML, 2008 (catálogo + DVD da exposição, existe
em versão inglesa).
Aorganizaçãointernadacasaé‑nosreveladaatravésde um projecto de alteração interior do andar nobre, de‑signadocomo2.o,datadode1903 24. insere ‑se numa série demodificaçõesdirigidasàtotalidadedolote,queincluíaos n.os170e172daRuadaAlfândega.Entreostécnicosres‑ponsáveispelodossierdealteraçõesde1903,surgeonomede nicola bigaglia, um dos arquitectos que deixou marca naAvenidadaLiberdadeenosEstoris.EstavaentãoemconstruçãoumaoutraLisboa:aLisboaviária,emquesetraduziu o legado urbanístico de ressano garcia ao sécu‑lo xx 25. as áreas residenciais de médio ‑alto standing migra‑vamparaoeixoAvenida‑AvenidasNovas,enquantoaBai‑xaseguiaasuavocaçãodesempre,produtivaemercantil.
Justamente,entreoutrasalterações,aproprietáriadoantigoprédiodosSobraispretendeem1903transformaragrandechaminédacozinhado2.o andar em armário, con‑sumando o processo de terciarização do andar nobre da única“casa”quealgumavezexistiunaPraçadoComércio,para além do chamado “Palácio de lisboa” da rainha maria i.
OandarhabitadopelafamíliaCruzSobralnoúltimoquarteldoséculo xviii surpreende pela geometria rigoro‑
sa do desenho e pelo acerto da distribuição dos interiores, sobretudo quando comparados com outros da mesma época (fig. 8).Énotável a relaçãodo lotecomo saguão,
Fig. 8 — Modificações a fazer no 2.o andar no prédio da Ex.ma Sr.a D.a Emilia George, Rua da Prata, 8, 1903. AML/Núcleo Intermédio, Ob. 10550, proc. 747/1903, Fl. 3.
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Habitar a “real Praça do ComérCio”. Casas Pombalinas do eixo alfândega/arsenal | 147
26 J. B.Carrère, Panorama de Lisboa no Ano de 1796, com tradução, prefácio e notas de Castelo Branco Chaves, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 1989, p. 28.27 Cf. Maria Helena Barreiros, “‘Casas em cima de casas’. Apontamentos sobre o espaço doméstico da Baixa Pombalina”,
in Monumentos, n.o 21, Lisboa, DGEMN, 2004, pp. 88 ‑97, e “Prédios de rendimento entre o joanino e o tardopombalino”,
in Património Arquitectónico. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, SCML, vol. ii, tomo 1, 2010, pp. 16 ‑39.28 Ressalve ‑se a imprecisão: o termo aplica ‑se, de facto, à sequência das portas destas salas intercomunicantes ao longo
de um mesmo eixo junto às janelas, característica da habitação nobre de influência francesa dos séculos xvii e xviii.29 No caso de Lisboa, até aos meados do século xix são raríssimos os exemplares conhecidos de plantas de interiores
habitacionais correntes. No que respeita ao período pombalino e mariano, os desenhos que se conhecem constituem uma ínfima
parte do que terá sido produzido, a julgar pelo teor de alguns contratos de obra revelados pela investigação. Cf., a propósito,
R. Henriques da Silva, Lisboa Romântica. Urbanismo e Arquitectura, 1777 ‑1874, 1997, op. cit., e ainda M. H. Barreiros, “‘Casas
em cima de casas’...”, 2004 e “Prédios de rendimento entre o joanino e o tardopombalino”, 2010, op. cit. Só com a reforma dos
serviços municipais levada a cabo por Frederico Ressano Garcia a partir de 1874, o licenciamento de todas as obras particulares
passou a exigir a apresentação do respectivo dossier de projecto, incluindo plantas, cortes e alçados. Esta norma manteve ‑se
em vigor até muito recentemente e dela decorre a extraordinária riqueza documental das chamadas “Obras” conservadas no
Arquivo Municipal de Lisboa — Arquivo Intermédio, que conjugam documentação gráfica e administrativa.30 Passaria por uma mera solução de recurso, imposta por carência de espaços de privacidade na habitação, verificada a
dado momento da sua história, se não tivesse sido replicada no andar superior, o 3.o, como se verifica na respectiva planta
de alterações (obra n.o 10550, proc. 1314/1903, Fl. 2).31 A “invenção” da clarabóia libertará a caixa de escadas dos edifícios de apartamentos da parede de tardoz, permitindo a
sua colocação no centro do lote.
que recorta um quadrado a meio do lado maior a tardoz. em cada uma das suas três paredes abrem ‑se três jane‑las fundamentais para o bom funcionamento do prédio e da casa: a do patim das escadas, a da passagem para a cozinha e a da cozinha em posição fronteira à chaminé. Estaúltimadisposiçãoatenuaacríticaàsituaçãohabitualdas chaminés dos andares pombalinos formulada por um atento emigrado francês, médico e publicista, que passou porLisboanofimdoséculo xviii:
“a maior parte das cozinhas tem pouca luz, princi‑palmente ao pé das chaminés, por má traça dos ar‑quitectos, que as constroem sempre nas paredes em que se abrem as janelas, contra a luz, portanto, o que obrigamuitas vezes a ter que se cozinhar à luz decandeeiros” 26.
a regra da organização do espaço doméstico é idêntica àque conhecemosnoutras situações 27: os vãos abertosà rua mapeiam a sucessão das salas en enfilade 28 no in‑terior, junto à fachada. Correspondem ‑lhes as câmaras, ou as alcovas, nomiolo da habitação, abertas sobre assalas. o percurso desde a entrada define uma hierarquia de espaços: entre a primeira sala, vaga ou de espera, com
acessodirectodesdeopatamardasescadas,eaúltima,um possível gabinete ou toucador, perfilam ‑se as áreas simultaneamente de recepção e representação da casa. A segunda porta de entrada, à esquerda de quem sobeas escadas, serve habitantes, serviçais e certamente asvisitasmais frequentes.Abre‑seaumvestíbulodeondese pode passar à cozinha, seguido, a eixo, de uma ante‑câmaradeacessoàssalas.Aactividadenacozinha,queé ampla e luminosa, conta com uma generosa despensa, paredes‑meiascomaalcovaviradaaoprováveltoucador.a cozinha e esta hipotética caza do toucador estão liga‑dasporumaestreitapassagemdeserviço,queconstituiuma solução corrente em desenhos de projecto e em in‑teriores da época 29 — distante ainda do corredor clara‑mente assumido, que irá estruturar o andar “burguês” de oitocentos.
apenas duas notas dissonantes perturbam a leitura da planta deste interior de grande racionalidade e equíli‑brio,dentrodospadrõesdacasaurbanadealtostanding vigentes na época. Refiro‑me à inesperada alcova ocu‑pando parte da sala de espera 30 e à bomba da caixa de escadas,dispositivoemprincípiomaistardio,associadoàexistência de uma clarabóia na cobertura 31 e ausente em qualquerdosdesenhosdeinterioresdadécadade70do
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32 Cf. sobre o tema o trabalho de investigação desenvolvido por Maria Alexandre Lousada, entre outros títulos, a sua
tese de doutoramento Espaços de sociabilidade em Lisboa, finais do século xviii a 1834, Lisboa, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 1995 (polic.). Note ‑se que, neste período, as categorias “estrangeiro” e “comerciante” coincidem
com frequência.33 Cf. Recordações de Jacome Ratton..., op. cit., pp. 275 ‑276.34 O prédio é inteiramente merecedor de um estudo monográfico exaustivo, impondo ‑se a sua inclusão em roteiros
organizados de visita à Lisboa pombalina.
século xviii, quando anselmo José da Cruz sobral cons‑trói a sua casa da Praça do Comércio.
Quantoàsvivênciasdestacasa,valeapenaevocarotestemunhomuitoglosadodeJácomeRatton(1736‑1820)sobre o papel destacado da “familia dos Cruzes” — e de Pombal—nadifusãodehábitosdeurbanidadeeconví‑viomundanonasociedadelisboetadeentão.Confirmaopapel da tríade ‘terramoto, comerciantes e estrangeiros’— ou estrangeirados — na profunda alteração dos com‑portamentossociaisemLisboa,nofimdoséculo xviii 32, partedosquais tiveramas casas abastadaspor cenário:
“EstafamiliadosCruzes(...)concorreomuito(...)parase introduzir entre as familias do commercio, e pes‑soas limpas, huma certa sociabilidade e polidez que dantes naõ havia, franqueando a sua casa ao con‑cursodefamiliasconhecidas,ouporoutraspalavras
introduzindo o uso das partidas, que se foi estenden‑doaquasitodoocorpodocommercio,eáimitaçaõdeste ás outras classes, o que tem contribuido muito o desterrar o resto de costumes mouriscos, que ain‑daseconservavaõ,eapôranaçaõaoniveldasmaispolidasdaEuropa;enistoseguiaõosCruzesoexem‑plodoMarquezdePombal,quepromoveoamesmasociabilidadenaordemsuperior,naõesquecendoaeste grande homem cousa alguma, que podesse con‑correrparageneralisaroespiritodeconvivencia,quetinhaobservadonospaizesestrangeiros” 33.
É até possível ler o comentário de Ratton em contextopróprio. miraculosamente, a compartimentação da casa —comexcepçãodas áreasde serviço—,portas, porta‑das, caixilharias e serralharia, assim como a decoração pictórica dos interiores, mantêm ‑se ainda muito próxi‑mas da “Casa do terreiro do Paço” original 34. na sala de recepção dos Cruz sobral, generosamente aberta à Praça doComércioqueajudaramaconstruireadignificar,reú‑nehojeumdosgabinetesdoMinistériodasObrasPúbli‑cas(fig. 10).AsuaescalaéadaPraça,nãoadahabitaçãopombalina corrente que eugénio dos santos também di‑mensionou.
o lote estreito e atípico a nascente, estabelecendo a articulação entre a Praça do Comércio e o início da rua da alfândega, terá desde cedo integrado a propriedade, garantindo a área entendida necessária à cozinha dos Sobrais,queparaeletransborda(verfig.8).Talveztenhatambémasseguradofunçõescomplementaresdahabita‑ção—arrumos,armazenamento,acomodaçõesdeservi‑çais—,apardeoutraseventualmenterelacionadascomaactividadeprofissionaldestanotávelfamíliadenegocian‑tes da praça de lisboa, a caminho do pariato.
Fig. 9 — Rua da Prata, 8, 2.o andar, sala. Foto António Sachetti.
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35 Como apontou Walter Rossa na bibliografia em que trata este último tema, inaugurada com Além da Baixa. Indícios de
Planeamento Urbano na Lisboa Setecentista, Lisboa, IPPAR, 1998 (1.a ed. 1990, polic.).36 O número de polícia 17 perdeu significado quando, na primeira metade do século xx, o Banco Burnay procedeu ao
emparcelamento de cinco dos prédios deste quarteirão para constituição da sua sede (ver adiante). A data de construção foi
estabelecida por Joana Alegria, com recurso aos Livros da Décima da Cidade, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças.
Cf. Joana R. G. da Mota Fernandes Alegria, A Arquitectura Pombalina na Rua da Madalena, op. cit., anexo 9.1. Quadro de
Caracterização dos Edifícios da Rua da Madalena.37 Cf. Joana R. G. da Mota Fernandes Alegria, A Arquitectura Pombalina na Rua da Madalena, op. cit.38 Inventário de Conjuntos Urbanos. Baixa Pomabalina (M. H. Barreiros, coord. geral), Cartas temáticas — número de
módulos por lote, Monumentos, n.o 21, Lisboa, DGEMN, 2004, p. 64 (disponível em SIPA, www.monumentos.pt). Joana
Alegria, em A Arquitectura Pombalina na Rua da Madalena, op. cit., indica apenas três módulos sobre a Rua da Alfândega,
E as outras...
OMarquêsdePombal,porseulado,promoveaconstru‑çãodosdois lotesdegavetoentreas ruasdaAlfândega,fanqueiros e madalena, inseridos num quarteirão irregu‑lar claramente de transição entre a lisboa “moderna” de então e a lisboa oriental, secundarizada tanto pela urba‑nística joanina como pombalina 35.
dispomos da data de construção exacta para o ga‑vetoentreaRuadaAlfândega,128a148,eMadalena,1a17:1770 36(fig.11).Denotarqueestelotecompleta,físicae cronologicamente, o lado nascente do quarteirão, uma vez que foi levantado cinco anos depois dos restantes
dois 37—Sebastião Joséperseguiria talvezoconsertodasua casa, tanto como o da cidade que urgia reconstruir.
Oprédioabria9 janelasparaaRuadaMadalenae6paraaAlfândega—comoseriadeesperar, trata‑sedeum lotededimensões acimadamédia 38 —, tinha origi‑nalmente 4 pisos e águas‑furtadas como os demais emtoda a Baixa da cidade e, como os outros, destinava‑seao arrendamento comercial ou artesão no piso térreo, e habitacional nos andares. Nestes, comportava apenasumfogo,quepassavaadoisnaságuas‑furtadas,oquepo‑derá apontar para um entendimento inicial da partição dos pisos em esquerdo ‑direito como mera operação de rentabilização, apenas aceitável em espaços de menor
Fig. 10 — Rua da Prata, 8, 2.o andar, sala de recepção. Foto António Sachetti.
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número pouco compatível com um empreendimento imobiliário do Marquês de Pombal, para além do desequílbrio
que assim resultaria da existência de uma segunda frente para a Rua da Madalena, que apresenta de facto 9 módulos.
Os levantamentos existentes no livro de Obra n.o 33979, vol. 1, Arquivo Municipal de Lisboa, esclarecem a questão: o prédio
tinha 6 módulos para a Rua da Alfândega (cf. proc. 514/1926, fl. 3).39 No entanto, há que ter também em conta a dificuldade de compartimentação dos interiores deste lote de gaveto e
configuração irregular, cujo acesso surge justamente lateralizado, encostado ao prédio confinante da Rua da Madalena.40 Cf. Joana R. G. da Mota Fernandes Alegria, A arquitectura pombalina na Rua da Madalena, op. cit.41 AML, Obra n.o 33979, vol. 1, Proc. 514/1926.42 Idibem.
qualidade 39. a décima da Cidade, fonte de mais esta ra‑diografiaarquitectónica,socialeeconómicadahabitaçãoemLisboaentrePombaleoliberalismo,revelaaindaumespectroalargadoedinâmicodeactividadescomerciaiseoficinaisnorés‑do‑chão:doissapateiros,trêsmercearias,um capelista, um confeiteiro, uma “loja de bacalhau” e ou‑tras duas lojas 40.
a organização do interior do andar nobre — e, por extensão, dos restantes dois abaixo do beirado — é par‑cialmentelegívelnumprojectodealteraçõesde1926,as‑sinado pelo arquitecto antónio do Couto e apresentado àCâmarapeloproprietário(fig.12):oBancoBurnay,queentretanto adquirira uma parte significativa do quartei‑rão e constituíra a sua sede no n.o10daRuadosFanquei‑ros, “tornejando”paraas ruasdaAlfândega, 128a148, eMadalena,1a23 41.Oandarapresentavaasequênciaca‑racterísticadassalasdafrente,cujageometriatevequesesubmeteràformairregulardolote.Asprimitivascâmaraseacozinha, jámuitoalteradasem1926,tornam‑semaisdifíceis de identificar na planta. O desenho documentaainda as transformações então projectadas e outras, jáconsumadas, como as diferentes modalidades de interli‑gaçãoentreossucessivosprédioscontíguosdequeHenryBurnay,ofundador,setornaproprietáriopelomenosdes‑deoiníciodoséculo xx:vãodesdeaspasserelles metálicas, transpondoosaguão,àaberturadevãosnasespessaspa‑redes de meação entre os lotes.
Lê‑seoseguintenamemóriadescritivadesteprojec‑to de antónio do Couto:
“AsobrasqueesteBancodesejafazer(...)sãoopros‑seguimentodeoutras(...)quesetêmrealisadopara
melhor distribuição de serviços, e compreendem:demolição de tabiques e frontaes, estes substitui‑dosporvigasde ferrodevidamentecalculadas(...),desmancho da escada do numero 23 da Rua damagdalena e sua ampliação com lanternim central, para substituir a do numero 17, que vae ser demolida. outras obras mais pequenas são a se‑quênciadestas,como(...)[o]apeamento de cha‑minés” 42.
Fig. 11 — Enfiamento Rua da Alfândega/Praça do Comércio. A frente de quarteirão construída pelo Marquês de Pombal destaca ‑se pela inflexão face à ala norte da praça e, hoje, pelo andar acrescentado entretanto acima da cornija. Foto Diogo Teixeira/Panoramio, 2007.
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Fig. 12 — António do Couto, projecto de alterações na sede do Banco Burnay, Rua dos Fanqueiros, 10, 1926. AML/Núcleo Intermédio, ob. 33979, vol. 1, proc. 514/1926, fl. 3. A escada do antigo n.o 17 da Rua da Madalena está assinalada a amarelo (a demolir).
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43 Cf. M. H. Barreiros, “‘Casas em cima de casas’. Apontamentos sobre o espaço doméstico da Baixa Pombalina”, op. cit.44 AML, obra n.o 33979, vol. 1, proc. 624/1929, fl. 2.45 AML, obra n.o 24988, proc. 3866/1913, fl. 2.46 Cf. M. H. Barreiros, entre outros, “‘Casas em cima de casas’. Apontamentos sobre o espaço doméstico da Baixa
Pombalina”, op. cit., p. 92.
Justamente, era atravésdestaporta comon.o 17que sefaziaoacessoaoprédioconstruídoporPombalem1770.a sua escada tinha a particularidade de pertencer à mes‑ma tipologia de uma outra, que ainda hoje existe na Cal‑çadadoCorreioVelho,3,àSé,decorrentedeumprojectodeconstruçãodeumquarteirãointeiro,tambémdevidoao futuromarquês e datável da década de 60 do sécu‑lo xviii 43. Comprova‑o umaplanta parcial de alteraçõesde1929, incidindonoantigon.o17daRuadaMadalenajunto à parede meeira, e em que se descortina um lance de
escadas partindo do patim em direcção à zona tardoz 44, istoé,àcozinha.Podemosafirmá‑locomsegurançaporanalogiacomocasodaCalçadadoCorreioVelhoecomoutros,porexemplo,naprópriaRuadaAlfândega,100a120(fig.13),ounaesquinadestacomaRuadosAramei‑ros,1a11(fig.14) 45.
Como já tiveocasiãode referir 46, trata ‑se da incor‑poração, na única caixa de escadas destas habitações“colectivas”doséculo xviii, de um subsistema de comuni‑caçãoverticalconsagradoexclusivamenteaoserviçoda
Fig. 13 — Caixa de escadas, Rua da Conceição Velha, 118. Foto M. H. Barreiros 2007
Fig. 14 — Projecto de alterações na Rua dos Arameiros, 11, 1.o andar, 1913. AML/Núcleo Intermédio, ob. 24988, proc. 3866/1913, fl. 2.
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47 Cf. AML, obra n.o 8937, 3 vols., relativa ao n.o 33 a 55 da Rua do Comércio, a qual integra documentação referente ao
prédio do “Martinho da Arcada” e edifício contíguo na Rua da Alfândega, já aqui tratados.48 AML, obra n.o 8370, relativa aos prédios da Rua da Alfândega, 162 ‑168 e 150 ‑158, com esquina para a Rua dos
Fanqueiros, 1 a 7, vol. 1, proc. 56/1880, fl. 1 e 2.49 Achille Rambois (c. 1810 ‑1888), cenógrafo e arquitecto, sócio de G. Cinatti, responsável pela decoração interior de
diversos palácios em Lisboa e pela tristemente célebre torre de remate da ala conventual do mosteiro dos Jerónimos, que
acabou por ruir em 1878; Nicola Bigaglia (m. Veneza, 1908), primeiro prémio Valmor com o palacete Lima Mayer, na Avenida
da Liberdade, em 1902, assinou vários palacetes e moradias em Lisboa e nos Estoris, assim como decorações interiores e
restauros no Hotel Palace do Buçaco, Burnay na Rua da Junqueira, Centeno no Campo de Santana, etc; António do Couto
Abreu (1874 ‑1946), autor de moradias por todo o país, prémio Valmor em 1907, sucedeu a Fuschini no restauro da Sé de
Lisboa. Cf. J. M. Pedreirinho, Dicionário dos Arquitectos Activos em Portugal do Século I à Actualidade, Porto, Afrontamento,
1994, para além de tabalhos de investigação posteriores que referem estes autores.50 AML, obra n.o 8370, vol. 1.51 Cf. nota 5.52 Prospecto da Rua Direita do Arcenal. Lado Norte, Cartulário Pombalino, Lisboa, op. cit., des. 32. O desenho poderá ser
da autoria de Reinaldo Manuel dos Santos (1731 ‑1791), o arquitecto pombalino de segunda geração, eventual discípulo de
Eugénio dos Santos e Mardel, a quem José Eduardo Horta Correia atribui, entre muitos outros, o projecto final dos Paços do
Concelho primitivos. Sobre a carreira e obra de Reinaldo Manuel, no quadro da Lisboa pombalina, cf. J. E. Horta Correia, Vila
Real de Santo António, Urbanismo e Poder na Política Pombalina, op. cit., pp. 195 ‑218.
“casa”, por necessidade social e funcional de segregação dos percursos: pelo patamar, entram os habitantes e as visitas, do patim inferior sobemos criados e os abaste‑cimentos.
UmanotafinalsobreosprédiosdaRuadaAlfândega:aolongodosrespectivosvolumesdeobradoArquivoMu‑nicipaldeLisboadesfilamnomesdeproprietárioscomoHenriBurnay,osSousaHolsteineaCasaPalmela,AlfredodaSilva e aCUF 47, ou das casas bancárias a que deram origem. Perpassam também nomes de arquitectos como achille rambois 48, nicola bigaglia, antónio do Couto 49. Ambasas séries traduzema inégavel centralidadedestaprimeira frente urbana da cidade pós ‑terramoto, desde aorigemdivididaentrea funçãoresidencialecomercial,queacabaráporlevaramelhor.Umexemplo:em1934,osmoradoresdoprédiodaRuadaAlfândega,150a158,comesquinaparaosFanqueiros,sãoapenasofieleoguardadoedifícioquehabitamo4.oeo5.o andares com as respec‑tivasfamílias.Todososoutrospisosestãoentãotomadospelo armazém de tecidos da firma Guilherme GrahamJúnioreC.a 50
O sector ocidental: Município e Arsenal
Omotivo dos entablamentos simplificados sobre as sa‑cadas, que ocorre raramente nos alçados da reconstru‑ção 51,marcaobsessivamenteo alçadoda extensa frentedequarteirãode45vãosentreaPraçadoMunicípioeaTravessa doCotovelo, assinado peloConde deOeiras eincluído no Cartulário Pombalino 52 (fig. 15). O desenhodatadosanosentre1759e1769—quandoSebastiãoJosésobe, respectivamente, a conde e a marquês —, talvezdo período que se seguiu à morte prematura de eugénio dosSantos(m.1760)quandoaCasadoRiscodasObrasPúblicasfoigovernadaporCarlosMardel(m.1763)e,de‑pois, porMiguel Angelo de Blasco (m. 1770). Assume alinguagem ditada pelo alçado sul do edifício do Senado da Camara e Deposito publico na Rua direita do Arsenal (verfig. 2),amesma que percorre a praça do município e segue até ao Cais do sodré. na fase de execução, este alçado da RuadoArsenalsofreu,noentanto,umaalteraçãosignifi‑cativa:acoberturapassoudeduaságuasatelhadoduplo,na origem, presente em todo o eixo alfândega/arsenal.
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53 Entre a Praça do Município e a Travessa do Cotovelo, sucedem ‑se 7 lotes de 9 + 5 + 7 + 6 + 6 + 6 + 6 módulos,
perfazendo os 45 presentes no alçado do Cartulário Pombalino.54 Raquel Henriques da Silva, Lisboa Romântica..., op. cit., p. 39.55 Maior nos quarteirões com orientação nascente ‑poente, a sul da Rua da Conceição.56 Plano de 12 de Junho de 1758 Remetido ao Duque de Lafões, Regedor das Justiças..., paragr. 12 e 13, apud José ‑Augusto
França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, op. cit, p. 232.
o preenchimento dos lotes da rua do arsenal, de modulação assaz regular 53, terá cabido ao intendente Pina manique 54,aindaqueosvaloresdosalugueresnãodevamter sido tão recompensadores como noutros sectores da lisboa restaurada. de facto, o longo alçado do arsenal es‑conde andares de habitação com profundidade irregular c. 7m,contraabitolade11e14mentreas fachadasdafrente e tardoz que regula a baixa 55. Com excepção das esquinas com os largos do município e do Corpo santo, estalimitaçãoépatentenoslevantamentosconservadosnos Livros de ObradoArquivoMunicipal:asplantasdosandares interrompem ‑se abruptamente a tardoz contra a escarpade SãoFrancisco, cercade 20macimada cotada rua do arsenal, e sobre a qual assentam, em parte, a TravessadoFerragialeaRuaVítorCordon(fig.16).Umimperativodeordemnaturalgorouasexpectativasdevol‑
tarmos a encontrar habitação pombalina de excepção no trecho a ocidente da Praça do município.
dir ‑se ‑ia que o alçado pombalino da rua do arse‑nal foi concebido como uma máscara, um cenário que permitisse a continuidade para poente da imagem ur‑bana fixada na Praça do Comércio. não era uma solução estranha ao urbanismo barroco, muito pelo contrário. O Planode12 deMaiode1758,evocandoexemploses‑trangeirosquenãoexplicita,prescreveumremédioden‑tro domesmoprincípio para a conclusão daRuaNovad’el‑Rei (RuadoComércio), juntoàRibeira(CampodasCebolas):“E comoestabellaruanaõdeveterpelabandadoNascente(...)humtermotaõtorpe,comohea(...)pas‑sagem,quevaypordetrasdaMisericordia(...):HeS. Ma‑gestadeservidoquesemascareestapassagemcomumportico(...)” 56.
Fig. 15 — Alçado norte da Rua do Arsenal, AML, Cartulário Pombalino, desenho n.o 32.
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57 AML, obra n.o 25830, vol. 1, proc. 11188/1920, fl. 35.
AshabitaçõesmenosqualificadasdaRuadoArsenalrecuperam a dignidade quando a profundidade dos lotes o permite. é o que acontece na esquina com o largo do Corpo santo, embora se trate aqui de um prédio de esca‑lamodesta,ounogavetocomaPraçadoMunicípio.Esteúltimoconstituiumexemplarnotável,complantaquasequadrada e uma habitação por cada andar abaixo do bei‑
rado.Abre6janelasparaoArsenale7paraoMunicípio,oquepoderátersignificadoumasequênciacontínuadesalas de duas janelas cada (quatro no gaveto), à excep‑çãoda sala central, na facemaior, com três vãos para oexterior. O levantamento do prédio executado em 1920mostra‑nosalgumasdestassalasedeixaadivinharoespa‑ço de outras entretanto já alteradas 57. a caixa de escadas
Fig. 16 — Filipe Folque (dir.), Atlas da Carta Topográfica de Lisboa, 1856 ‑58, esc. 1:1000, extracto 51 (pormenor): Rua do Arsenal entre os largos do Município e do Corpo Santo, onde é visível a reduzida profundidade dos lotes da Rua do Arsenal. AML/Núcleo do Arco do Cego.
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156 | do terreiro do Paço À Praça do ComérCio: HistÓria de Um esPaço Urbano
58 A solução seria análoga no primeiro andar, enquanto que no 3.o e 4.o andares a chaminé encosta na parede de tardoz,
como se tornou mais comum.59 V. supra, nota 19.60 AML, obra n.o 25830, vol. 1, proc. 11188/1920, fl. 18.
generosa, a passagem para a cozinha e a própria cozinha iluminadas por três janelas abertas para o reduzido poço deluz,aocentrodolote,configuramumasoluçãoanálogaà do prédio Cruz sobral do terreiro do Paço — sobretudo no2.o andar, emquea janeladacozinha seopõeà cha‑miné 58 (fig.17).Omesmopartido foi tomadonoedifíciocontíguo. recorde ‑se que todos os prédios da actual Pra‑çadoMunicípioterãosidodainiciativadeJoaquimInáciodaCruzSobral,queos fezconstruirnadécadade70doséculo xviii 59.
Este levantamento, que integra os dois lotes referi‑dos, faz parte de um projecto de gosto eléctico, propon‑do à Câmara o seu emparcelamento e transformação na sede de uma certa “Companhia Comercial Portugueza” 60 (fig. 18).Assinou‑ooarquitectoAntónioRodriquesdaSil‑vaJúnior(1868‑1937),autordosinterioresdaactualCasadoAlentejo,naRuadasPortasdeSantoAntão, talvezasua obra mais conhecida.
A opção de Silva Júnior por uma arquitectura deboulevard no antigo largo do Pelourinho, alheada do
Fig. 17 — Praça do Município, 1 a 13/Rua do Arsenal, 54, plantas, 1920. AML/Núcleo Intermédio, ob. 25830, vol.1, proc. 11188/1920, fl. 35.
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61 Sobre o tema, e sob outra perspectiva, cf. João Paulo Martins, “Arquitectura contemporânea na Baixa de Pombal”,
in Monumentos, n.o 21, Lisboa, DGEMN, 2004, pp. 142 ‑151.62 Cf. Joana Cunha Leal, “Legitimação artística e patrimonial da Baixa Pombalina. Um percurso pela crítica e pela história
da arte portuguesa”, in Monumentos, n.o 21, Lisboa, DGEMN, 2004, pp. 6 ‑17.63 Refiro ‑me às intervenções do arquitecto João Favila Menezes e do Atelier Bugio em andares pombalinos situados,
justamente, na Rua da Alfândega e na Rua do Arsenal.
contexto pombalino assim tornado invisível, integra‑senasériedeintervençõesnotecidodaBaixainauguradascomaconstruçãodosArmazénsGrandella,de1891,edequeoexemplomaisassertivoserátalvezasededoBancoLisboaeAçores,naRuadoOuro,projectadoporVenturaTerraem1905 61.
O espírito de sistema do século xviii presente na novacapital,tantoquantoaengenhariamilitarportugue‑sa,voltariaainformarasgeraçõesmodernasdoséculo xx . Para além dos meios castrenses, foi quem primeiro soube
reconhecerevalorizarolegadourbanísticoearquitectó‑nicopombalinopelavozdePardalMonteiroem1949 62. À pós‑modernidade coube a descoberta do espaço do‑mésticopombalino,virtuosamenteintegradoemprojec‑tosrecentesdeadaptaçãoàvidacontemporâneadequese podem apontar exemplos inspiradores no eixo alfân‑dega/arsenal 63.
Fig. 18 — Praça do Município, 1 a 13/Rua do Arsenal, 54, projecto do novo alçado, 1920. AML/Núcleo Intermédio, ob. 25830, vol. 1, proc. 11188/1920, fl. 18.
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