A cultura da participação sob a ótica dos fansubbers:convergências e divergências no fandom de animês 1
Krystal Cortez Luz Urbano2
Resumo
O presente artigo explora o universo do fandom de animês,dando enfoque particular à prática fansubber que consiste natradução, legendagem e distribuição informal de sériesjaponesas no meio on-line. Fundamentalmente, o trabalhoapresenta um contraponto à idéia da cultura de fãs de animêsrepresentada por esses grupos como uma comunidade homogênea,com motivações e condutas em comum partilhadas. Os primeirosresultados da pesquisa apontam para a idéia de que osfansubbers vêm operando cada vez mais num ambientecompetitivo, baseado em disputas por capital subcultural aoinvés de mutuamente solidário ou afetivo.
Palavras-chave: capital subcultural; divergência; cultura
participativa; fandom; fansubbers.
1 – Introdução
1 Artigo apresentado no Eixo 7 – Redes sociais na Internet e Sociabilidade online do VI Simpósio Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura realizado de 06 a 08 de novembro de 2012.2 Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (PPGCOM - UFF).Linha de pesquisa: Estéticas e Tecnologias da Informação. Email:[email protected].
1
Acessar
e consumir produtos midiáticos através da internet já se
tornou uma atividade constante entre muitos consumidores
culturais de diversas partes do globo. A apenas um clique do
mouse pode se chegar a um vasto repertório de produções
midiáticas – filmes, séries de TV, programas de auditório
etc. - incluindo desde obras populares no mercado global
tais como as clássicas sitcoms americanas até produções mais
singularizadas pensadas a principio para uma distribuição
local, como, por exemplo, os produtos de mídia indiana,
chinesa e sul-coreana dentre outras produções de mais de
diversas línguas que não figuram no mainstream da mídia
global. Por intermédio de certas atividades colaborativas
engendradas nos seio de “comunidades de conhecimento”
(JENKINS, 2006; HILLS, 2002) espalhadas no ciberespaço,
esses mesmos produtos que também traduzem as irregularidades
das operações das indústrias culturais globais (APPADURAI,
1990, 1996; LEE; 2011) são apropriados, re-significados e
compartilhados com outros fãs no ambiente on-line.
Objetivamente, esses conteúdos de mídia são traduzidos,
legendados e livremente distribuídos - de fã para fã - no
ciberespaço, sem a permissão das holdings responsáveis pelo
fluxo oficial desses bens no mercado.
A tal atividade, de caráter “voluntário, não-remunerado
e descentralizado” (LEE, 2011) convencionou-se chamar de
prática fansubber, junção das palavras inglesas “fan” (“fã”) e2
“subtitle”
(“legenda”), designando suas principais características: a
tradução e a legendagem de textos de mídia asiática,
geralmente, desenhos animados japoneses – conhecidos
popularmente como animês. A palavra “fansubber” refere-se
tanto as pessoas que realizam a atividade - os fãs-
legendadores - quanto designa a prática em si. Surgida do
intuito dos fãs em promover e divulgar animês e demais
textos de mídia asiática em seus países3 num período
fortemente marcado pela escassez dessas produções no mercado
mundial (HILLS, 2005, JENKINS, 2006; LEONARD, 2005), a
prática fansubber veio evoluindo nas últimas décadas
acompanhando a esteira do desenvolvimento das tecnologias de
reprodução e compartilhamento de arquivos. A princípio,
utilizando-se da tecnologia VHS, que permitiu as primeiras
produções de legendas e, posteriormente, lançando mão das
facilidades da internet e da comunicação P2P4, a atividade
de fã-legendagem se expandiu consideravelmente e ganhou
novos contornos. Atualmente existem muitos fansubs que
traduzem animês para diversas línguas, sendo difícil
precisar, quantitativamente, o número de grupos em atuação
na rede. Versões de animês legendados em inglês, italiano,
3 As origens dessa atividade colaborativa encontram-se na década de 1980,período no qual emerge um grande interesse dos estudantes estadunidenses sobreanimação japonesa. No Brasil, a atividade de fã-legendagem começou a serrealizada entre o final da década de 1990 e início do ano 2000, período quecoincide com a popularização da internet no país. 4 Peer-to-Peer: Usuário a usuário.
3
chinês,
espanhol e taiwanês dentre outras línguas são
disponibilizadas para outros fãs numa rapidez e velocidade
que sugere a atuação desses grupos em escala global.
Considerando o exposto, o objetivo principal desse
artigo é enriquecer os debates sobre as interações que
ocorrem no interior do fandom de animês, ao explorar as
disputas sociais recorrentes entre os fansubbers em suas
comunidades, intensificadas nos últimos tempos pelo
crescimento considerável de grupos em atuação na rede. A
pesquisa evidencia que a transnacionalização da prática da
fã-legendagem, com a adição de softwares de fonte aberta nos
processos de produção bem como a chegada de novos atores na
cena fansubber fez vir à tona tensões e disputas no interior
do fandom de animês. Nossa aposta é que cada vez mais os
grupos vêm operando num ambiente competitivo, em vez de
mutuamente solidário ou afetivo, enfrentando por um lado a
pressão de sua exigente audiência e dos demais mediadores do
mundo animê e, por outro lado, as contestações da indústria
dos animês quanto à legitimidade da prática. Com base em
dados iniciais coletados em entrevistas com fansubbers
brasileiros5, discussões em blogs de opinião relacionados ao
universo animê e alguns escritos acadêmicos recentes acerca
5 Este trabalho expõe as reflexões da dissertação de mestrado em desenvolvimentojunto ao PPGCOM-UFF (RJ), e traz alguns dos resultados correspondentes à fase deentrevistas e tratamento de dados da referida pesquisa com os membros dos fansubsbrasileiros no ambiente on-line.
4
da
tradução e distribuição fansubber (DENISON, 2011; DIAZ E
SÁNCHEZ, 2006; JENKINS; 2006, 2009; LEE, 2011; LEONARD,
2005) o artigo pretende também reforçar as discussões sobre
o potencial da mediação desses produsers6 (BRUNS, 2008) no
tocante às práticas engendradas no ambiente da cibercultura.
2 - A prática fansubber: das competências e tecnologias de
distribuição
A prática fansubber se configura num processo altamente
especializado e diversificado. Sua dinâmica segue uma lógica
compartilhada entre grupos que atuam em diversos países. Em
seu estudo, Cintas e Sánchez (2006) descrevem sete etapas de
produção que se traduzem nas seguintes tarefas: aquisição de
fonte (raw), tradução, sincronismo, typesetting, edição,
codificação, distribuição e karaokê para as seqüências de
aberturas e encerramento dos animês (DIAZ E SÁNCHEZ, 2006,
p. 40-42). Outros adereços, além da própria legenda das
falas, são criados pelos fansubbers como é o caso das notas
explicativas, dos logotipos dos grupos e das assinaturas
eletrônicas dos membros do projeto. Este excesso de
intervenções divide as opiniões dos diversos fãs espalhados6 Esse novo conceito tenta dar conta de uma realidade em que a palavra produçãonão é capaz de representar com precisão o contexto atual onde os papéis deprodutor e usuário se confundem (BRUNS, 2008).
5
pelo globo7.
Em resposta a alguns dos meus questionamentos, o fansubber Jihox
comenta sobre as funções que lhe são atribuídas na produção
do seu coletivo:
Basicamente eu tenho um ou mais projetos de tradução e souresponsável por baixar o episódio, conseguir um script(arquivo com a legenda) no qual será baseada a minhatradução, traduzir o script, revisar a minha tradução,identificar os typesets (textos na tela que precisam sertraduzidos, como placas, mensagens de celular e outros)necessários e deixá-los indicados no script para outromembro da equipe tratar. É trabalho meu ainda reassistir oepisódio com a minha tradução para identificar possíveisfalhas que tenham passado e erros de timing (sincronizaçãoentre fala e legenda), falas faltando, linhas com tamanhoinadequado para as falas, pontuação incorreta, etc. (Jihox,ANSK)
O processo de legendagem também requer etapas
organizadas de trabalho; começando com a obtenção dos vídeos
originais (ou 'raws') em sites P2P8. A próxima etapa
consiste na tradução e sincronismo que são seguidos pela
edição e editoração. Em seguida, o vídeo original é
codificado e funde-se com as legendas. Após a revisão
textual, o grupo disponibiliza na rede. Essas tarefas são
divididas entre membros do grupo e por muitas vezes um
7 No Youtube é possível ter acesso ao documentário “The Rise and Fall of Anime Fansubs –a documentary”. Produzido por um fã que atende por OtaKing, o documentárioapresenta uma crítica em torno do excesso gerado pela demasia de legendas eefeitos nos animês produzidos por fansubs.
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=IUYlqLlbix0 8 No decorrer das entrevistas com Aracraud, do Ryussei Fansub cheguei a esses doissites que disponibilizam raws: http://leopard.raw-providers.net/ ehttp://yousei-raws.org/
6
membro pode
fazer várias tarefas. Quanto ao tempo requerido, há que se
dizer que depende deveras das habilidades das pessoas
envolvidas. Normalmente, o processo se dá entre 8 e 20
horas, mas há grupos que visam lançar mais rapidamente os
episódios na rede, utilizando-se de cerca de 3 a 5 horas
para legendar um episódio de 25 minutos.
Quanto às tecnologias utilizadas no processo merece
destaque os programas Adobe After Effects, Aegisub, MeGUI, MKV tools.
Atualmente, a difusão do soft subbing9 (que permite re-
codificações de novas legendas e retraduções) vem
permitindo repetidas reproduções, com novas mediações que
se materializam ao longo do tempo em um número crescente de
animês traduzidos em línguas e versões diferentes. Já que a
legenda não está fixa no vídeo, é possível editá-las como
quiser (mudar cor, tamanho, fonte ou mesmo mudar o time ou
frases) usando players que permitem essa interação. Também é
possível desativá-las e inserir diversas legendas
diferentes no vídeo. Um ponto forte do soft subbing é que ele
preserva mais a qualidade do vídeo ao contrário do hard
subbing que exige mais espaço, mais bitrate no vídeo e,
conseqüentemente, possui maior tamanho. Um exemplo de
fansub brasileiro que adotou softsub é o grupo Eternal
9Significa o contrário do hardsub. No hardsub a legenda é “presa” ao vídeo,enquanto a legenda softsub está “solta” dentro do contêiner (nesse caso, noprograma MKV).
7
Animes (EA)10,
que desde 2008 adotou o padrão para seus lançamentos.
Apesar de o softsub ser comum em fansubs estrangeiros
(principalmente estadunidenses), ainda é pouco usado entre
os grupos no Brasil. Muitos ainda preferem legendar em
hardsub onde a legenda é fixada no vídeo, o que dificulta
sua recodificação, ainda que possível nesse padrão.
Ainda é preciso lembrar que os processos inerentes à
prática fansubber também exigem de seus membros conhecimentos
lingüísticos para se obter um resultado final satisfatório.
Dentre essas competências, o domínio do japonês se
sobressai, sobretudo por ser um dos principais meios de
distinção dos grupos no fandom de animês. No entanto, boa
parte dos fansubs brasileiros que atuam na rede re-traduzem
os scripts do inglês. De todo o modo, a tradução se
configura, sobremaneira, como importante função no
estabelecimento de padrões de qualidade, tornando-se uma das
principais habilidades requeridas quando se observa esses
grupos:
Na minha ótica de tradutor, o que difere o bom do maltradutor é o uso correto do português e saber interpretarbem o inglês [...]Reparo que muitas traduções possuem tantoserros de português que claramente são reflexo do tradutornão dominar o idioma, e um texto mal escrito pode acabarestragando a experiência de quem o lê. Muitos textos tambémsão "pobres" do ponto de vista de uso do vocabulário porfalta de conhecimento de sinônimos para variar e até melhor
10 Disponível em: http://eternalanimes.org/
8
traduziruma idéia. [...] Porém muitos tradutores não sabem inferir osignificado de uma sentença como um todo e acabam portraduzir errado, fugindo do significado original da frase ecasos assim são pouco ajudados pelos dicionários. Outrostradutores são só preguiçosos demais para buscar traduções esinônimos na internet e melhorar a qualidade do própriotrabalho (Jihox, ANSK).
Entende-se, portanto, que a prática fansubber toma forma
a partir da junção dos saberes específicos de cada membro do
grupo, dando origem a algo que Pierre Lévy (1999a) define
como “inteligência coletiva”, que se constituiria em “uma
inteligência distribuída por toda parte, incessantemente
valorizada, coordenada em tempo real, que resulta uma
mobilização efetiva das competências” (LÉVY, 1999a, p. 28).
Através das particularidades das redes digitais, é permitido
aos membros de um grupo social (como é o caso dos
fansubbers) que “se coordenem, cooperem, alimentem e
consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real,
apesar da distribuição geográfica e da diferença de
horários” (LÉVY, 1999b, p. 49). Assim, a concepção de um
novo espaço antropológico11, o “espaço do saber” tal qual
preconizado por Lévy se concretizaria. É no bojo desse
pensamento que o pesquisador Henry Jenkins (2009) apóia seu
argumento sobre a constituição real de uma “inteligência
coletiva” no tocante às práticas colaborativas que emergem11 Lévy (1999a) propõe a existência de quatro espaços antropológicos: Terra,Território, Mercadorias e Espaço do Saber. Este último espaço, para o autor, não existiria:seria uma “utopia”. Contudo, estaria sempre se configurando, na expectativa deum vir-a-ser.
9
na era da
“convergência tecnológica”:
O que consolida uma inteligência coletiva não é aposse do conhecimento – que é relativamente estática-, mas o processo social de aquisição do conhecimento– que é dinâmico e participativo -, continuamentetestando e reafirmando os laços sociais do gruposocial (JENKINS, 2009, p. 88).
Para Jenkins (2009), essas “novas comunidades são
definidas por afiliações voluntárias, temporárias e táticas,
e reafirmadas através de investimentos emocionais e
empreendimentos intelectuais comuns” (JENKINS, 2009, p. 57).
No entanto, há que se assinalar a existência de práticas
plurais no fandom digital que nos propomos a refletir nesse
paper. Em outras palavras, sugere-se que a cena fansubber12
atual não comporta unicamente membros ligados por um
interesse comum, dentro de um espaço ideal, isento das
tensões sociais.
3 – Das práticas à cena fansubber: disputas e renovação no
fandom online de animês12 Acredita-se que o gênero animê constitui nichos de mercado e comunidades deimaginação que possuem afinidades em comum, aproximando-se do que o pesquisadorWill Straw (1991) vair chamar de cenas, espaços específicos, onde “uma série depráticas culturais coexistem, interagindo entre si dentro de uma variedade deprocessos de diferenciação, e de acordo com trajetórias amplamente variadas”(STRAW, 1991, p. 373). No sentido que o temo é adotado aqui, trata-se, dacriação de novas “comunidades imaginadas”, cujas formações permite um senso decomunidade, a qual não necessita de interação face a face.
10
Ao longo da pesquisa foi possível notar que a
comunidade fansubber é fortemente atravessada por um processo
permanente de articulação de hierarquias, alianças,
rivalidades, baseado em disputas por “capital subcultural”.
Tal noção postulada por Sarah Thorthon (1996, p.11) em seu
estudo sobre a cena clubber inglesa nos parece ser um bom
ponto de partida para se pensar as disputas que se
estabelecem no interior do fandom de animês. Nas palavras da
autora:
[o] capital subcultural confere status para o seu possuidor,aos olhos daquelas pessoas que importam. [...] Assim comolivros ou pinturas são demonstrações de capital culturaldentro da casa de uma família, o capital subcultural éobjetificado na forma de cortes de cabelo da moda, e decoleções de discos bem construídas (THORNTON, 1996, p. 11).
Essa definição é pertinente para a nossa análise uma
vez que os fansubbers desenvolvem suas atividades em um
constante processo de acúmulo de conhecimento e informações,
ampliando suas habilidades num ambiente em constante
negociação e bastante competitivo. Alguns grupos proclamam
que há um desgaste generalizado na cena fansubber ocasionado
pela popularização da prática entre os demais fãs, o que vem
promovendo a entrada de novos tradutores e mediadores que
não comungam dos mesmos códigos tradicionais que compõem a
cena fansubber desde seu surgimento. Em outras palavras,
11
nota-se que há
uma discussão em torno da legitimidade das práticas dos
grupos no fandom on-line de animês:
Hoje em dia é muito fácil legendar, não precisa ser nenhumespecialista, são pouquíssimos os fansubs que prezam aqualidade dos animes e cada vez esses fansubs lançamentos[...] Talvez, o grande problema da legendagem hoje, seja acompetição dos fansub. Hoje os fansubs lançam para teremmais downloads, e não por que gostam, fazem projetos que nemgostam, só pq são famosos e para terem mais de cemcomentários no post. Não encodam, nem fazem type, karaokes eetc, só pegam a raw e muxa a legenda traduzida, sem serrevisada e adaptada. Quando eu comecei a legendar, euassumo, eu era completamente noob no aspecto, aí eu fui meaprimorando e hoje já consigo fazer um trabalho bem legal13.
Central nesse pensamento é a crença que o surgimento de
novos grupos no fandom de animês que traduzem e legendam
animês num curto período (entre 3 e 5 horas após transmissão
oficial) - os denominados speed subs - acompanham uma
tendência cada vez mais crescente à velocidade, o que vem
modificando as bases artesanais que guiaram a prática até
pouco tempo atrás. Primordialmente, observa-se que a geração
que atua há mais tempo como fansubber é propensa a desprezar
as práticas dos grupos de velocidade, que cada vez mais
crescem em amplitude e visibilidade na rede. Entendendo que
a prática fansubber é orientada pela afeição aos animês; a
atividade é vista pelos próprios membros dos grupos como um
tempo de lazer, um hobby organizado, guiado pela devoção13 Trecho do post publicado em 30/07/2011 no site do Hacchi fansubs. Disponível em:http://www.hacchifansub.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1104:fim-dos-fansubs-no-brasil-post-random&catid=1:postagens
12
(FISKE, 1992)
ao produto cultural em questão, a chegada dos grupos de
velocidade traz consigo outra dinâmica, mais competitiva e
entranhada nos ritmos da economia do mercado. Mais do que
produzir novas demandas de títulos, a velocidade
possibilitada pelos speed subs parece alterar,
significativamente, os códigos norteadores próprios à
atividade. Alguns fansubbers, por exemplo, proclamam que grupos
de velocidade possuem uma ética ambígua em suas operações
que divergem dos ideais norteadores que acompanham a
atividade desde seu surgimento. Os relatos dos fansubbers,
alguns deles reproduzidos neste artigo, sugerem que as
práticas de produção e distribuição encerradas nos grupos
não devem ser influenciadas por um desejo de aumentar o
número de downloads, nem mesmo aspirar eventuais lucros
financeiros provenientes do sucesso dos espaços em questão
O lema “De fã para fã” é uma pratica que é seguido pelamaioria dos fansubs sérios, que visam apenas a distribuiçãodos animes para todos sem visar lucro, mas nesse meio temalgum fansubs que comercializam isso, vendendo animes,camisetas, e todo tipo de coisas que possam mais sercaracterizados como Pirataria do que como fansub.Nesse ponto quem mais faz isso são os speedsubs, fansubs quenão se preocupam com qualidade e sim com velocidade. [...]São a meu ver um exemplo de quem não segue esse lema(Aracraud, Ryussei Fansub)
É importante salientar, entretanto, que o objetivo
principal de boa parte desses grupos (sejam eles speeds ou
13
não) está em
promover o interesse de distribuidoras locais na aquisição
dos direitos dessas obras junto às produtoras no Japão.
Tendo como justificativa o trânsito ainda escasso de animês
no mercado global, essas versões disponibilizadas pelos fãs-
legendadores atuariam na divulgação de títulos inéditos de
animês (não-licenciados). Entretanto, são muitos os motivos
que levam os fansubs a iniciarem ou darem fim a um projeto e,
não necessariamente, a aquisição dos direitos por
distribuidoras locais se impõem enquanto empecilho para as
atividades dos grupos. Cabe ressaltar que os membros dos
fansubs investem não só o seu tempo livre, mas muitas vezes
dinheiro para produzir e distribuir títulos, manter o
funcionamento dos seus links, sites, portais, etc. Dessa
forma, promovem uma nova forma econômica, na qual Paul Booth
(2010, p. 24) argumenta ter características da junção da
“economia de mercado” com a “economia da dádiva”, denominada
pelo autor como economia Digi-Gratis. Na visão de Booth, o
termo
[...] indica uma estrutura econômica onde não há trocamonetária, mas que retém elemento de estrutura de mercado.Em uma economia “grátis”, pessoas criam e compartilhamconteúdo sem recompensas ou cobranças, ou, pelo menos,cobrando uma taxa variável determinada pelo usuário. Emmuitos sentidos, esta troca está relacionada à economia dadádiva descrita por Mauss como sendo nas quais “trocas econtratos acontecem na forma de presentes...” A economia dadádiva constrói laços sociais. Esta estrutura econômica, emmuitos aspectos, difere de nossa idéia contemporânea de
14
economiade mercado, na qual produtos e serviços são trocados porrecompensa monetária, e na qual o propósito é construirriqueza.
Possivelmente, muitas dessas divergências encontradas
entre os fansubbers têm origem nas formas distintas com que
os fãs absorveram a rápida popularização dos principais
meios de produção e distribuição utilizados no processo de
legendagem. Como vimos, os últimos anos testemunharam a
transnacionalização da prática fansubber. Objetivamente, isto
significa que está se tornando bastante difícil para os
fansubbers regularem as práticas no fandom bem como a
distribuição de seu trabalho na rede. No Brasil, por
exemplo, a atividade confinava-se em plataformas de
comunicação como o MIRC, principal meio de distribuição
utilizado por esses grupos e que, curiosamente, ainda abriga
alguns grupos tidos como mais “tradicionais” em suas
práticas. No entanto, a chegada e a adição de novas
tecnologias de produção e distribuição, tais como o Torrent e
o Aegisub (programa de software de fonte aberta) trouxeram
mais flexibilidade para a atividade permitindo a outros
usuários alterarem livremente os textos, fontes, cores e
sincronismos das legendas. Devido a esse desenvolvimento, o
trabalho dos fansubs pode ser facilmente modificado, refeito
e retrabalhado por outros grupos no ciberespaço.
15
De acordo
com essa perspectiva, presume-se que os grupos de fã-
legendagem vêm enfrentando cada vez mais o imediatismo das
demandas de sua “fã-audiência”. O aumento significativo dos
grupos que disponibilizam animês na rede acompanhou a
tendência à instantaneidade das audiências que estão cada
vez mais interessadas em acompanhar os ritmos da
temporalidade de difusão de seus produtos favoritos. Matt
Hills (2002), por exemplo, argumenta que as interações dos
fãs uns com os outros são organizadas cada vez mais em torno
de agendas de difusão para esses textos:
[…] práticas de fandom tornaram-se cada vez mais entranhadasnos ritmos e temporalidades de transmissão; os fãs vão agoraon-line para discutir novos episódios logo depois detransmitidos - ou mesmo durante os intervalos comerciais -talvez para demonstrarem na oportunidade, a capacidade deresposta de sua devoção (HILLS, 2002, p. 178).
Nossa aposta é que um novo tipo de comunidade fansubber
está se formando atualmente. Em termos comportamentais,
observa-se que as dinâmicas dessas comunidades assemelham-se
bastante àquelas encontradas no universo dos Multiuser Massive
Online Role Playing Games (MMORPG). No entanto, uma diferença
substancial aí se impõe: apesar de se constituírem
socialmente como as comunidades de MMORPG, os membros dos
fansubbers criam produtos finais que podem ser utilizados,
reutilizados e re-produzidos ao fim do “jogo” para além de
16
fronteiras
lingüísticas e nacionais (DENISON, 2011). Entretanto, essa
flexibilidade trazida pela inserção das novas tecnologias
nos processos de produção e distribuição e, conseqüente,
popularização dessas ferramentas entres os demais fãs vem
adicionando ao “jogo” novas formas de participação, não
planejadas de antemão: os chamados sites de reencodes que,
por vezes, distribuem títulos lançados por esses grupos sem
autorização prévia.
Existe um tópico que transcende as brigas entre fansubs poródio comum a um mal maior: os grupos de reencode. São gruposque simplesmente pegam os nossos trabalhos, fazem algunsreencodes (transformam nossos arquivos de alguma forma) eredistribuem como se fosse deles, muita das vezes sem dar oscréditos. Pior, alguns ainda precisam de ajuda (doações)para sobreviver, usando serviços gratuitos de webhosting efilehosting (e tem gente que acredita, infelizmente). Essesgrupos têm todo o nosso desprezo porque muita gente queprocura os animes para baixar vão nesses sites e não nafonte que somos nós, os grupos de tradução. Não é queprocuramos reconhecimento, é que a maioria desses gruposlucram em cima do nosso trabalho gratuito e absorvem umaparte do dinheiro "bem intencionado" que serviria paramelhorar o nosso serviço (Jihox, ANSK).
O fato é que as práticas dos grupos fansubs – desde seu
surgimento em VHS até chegar ao universo digital - reduziram
a barreira de acesso ao fandom de animês. Atualmente, o
usuário comum pode acessar facilmente os últimos lançamentos
em matéria de animês, participar de fóruns de discussão
localizados nas páginas desses grupos e, até mesmo se
envolver de maneira mais comprometida no fandom com a
17
manutenção de
blogs, podcasts dentre outros.
Observando a relevância dos fansubbers no mundo animê,
algumas discussões encontradas em sites, blogs e fóruns de
discussão foram coletadas para uma melhor compreensão das
interações que se estabelecem entre esses fãs em suas
comunidades de conhecimento. As ambigüidades observadas
brevemente no interior da comunidade fansubber parecem
suscitar opiniões divergentes dentre os demais mediadores do
mundo animê. Alguns blogueiros, por exemplo, são
comentadores afiados de práticas tal como o fansubber e o
scanlation14, justamente por perceberem na atividade um entrave
para a criação de um mercado oficial de distribuição em seus
países, como é o caso do Brasil15:
O que penso dos fansubbers e sites de scans? Bem, quemacompanha o Papo de Budega desde muito tempo - ou veja em"conscientização" - sabe que eu era terminantemente contraum e outro. Hoje, tenho repensado que há casos e casos. Hásituações que, defitivamente, não devem nunca ser apoiadas,como fansubbers venderem Dragon Ball Kai, sendo que estetítulo já tem representante legal e emissora legal paraexibir o anime.Mas... há situações que, realmente, pedem uma análise. Videmangás com traduções porcas e DVDs com problemas técnicossérios. Para casos assim, é de ser pensar realmente se asaída são os scans e fansubbers. Mas, não um consumoaleatório, e sim um consumo de protesto. Afinal, é um
14 Em poucas palavras, consiste na tradução e legendagem de mangás para distribuição gratuita na rede.15 Discussões interessantes acerca da legitimidade da prática fansubber podem serencontradas em diversos blogs mantidos por fãs de animês na rede. Taisdiscussões carecem de uma investigação mais aprofundada.
18
absurdoque um mangá, por exemplo, seja lastimavelmente maltraduzido e incompreensível, que ninguém entendi piadaalguma, que o texto é deturpado de forma horrorosa.16
[...] se o “de fã para fã” ainda resiste em alguns pequenospontos de forma genuína e honesta, a verdade é que ele servecomo desculpa aos fãs e aos “fansubs” (que de fãs não temquase nada) para perpetuar um modelo de comportamentocompletamente antropofágico. Se antes o movimento “de fãpara fã” tinha algo a alcançar, o “de fã para fã” atual é omaior perigo e o maior impedimento para que sequer exista ummercado brasileiro de animes [...] Não estou pregando aeliminação de todos os fansubs, mas o modelo que temos hojenão é sustentável se pensarmos de uma maneira mais macrocomo fãs de animes que querem ver o mercado oficial crescer.Fansubs tem seu papel, mesmo que tenham esquecido, e semprevão existir17.
Ao buscar aproximações e afastamentos entre as
dinâmicas estabelecidas entre os grupos fansubs, percebe-se
que há muitas disputas em jogo nos levando a crer que se
trata de uma comunidade plural, dividida entre antigos e
novos membros, com motivações e objetivos distintos entre
grupos. Em um meio caracterizado pela falta de contato face-
a-face o estabelecimento de reputações entre os membros da
comunidade depende, amiúde, do modo como as práticas desses
grupos são conduzidas. Trata-se, pois de uma comunidade
ampla e dividida, não apenas em termos de geração, mas
também em linhas éticas. Colocando de maneira mais enfática,
16 Trecho de post publicado em 07/02/2011 no blog Papo de Budega. Disponível em:http://www.papodebudega.com/2011/02/fansubbers-e-scans-um-mal-necessario.html17 Trecho de post publicado em 26/01/2012 no blog Gyabbo! Disponível em: http://gyabbo.wordpress.com/2012/01/26/o-de-fa-para-fa-criou-e-matou-a-possibilidade-de-um-mercado-de-animes-no-brasil/
19
as
disputas e tensões entre esses grupos sugerem mudanças na
cena fansubber com a chegada de novos atores, formando grupos
que possuem visões distintas acerca da prática da fã-
legendagem que também se refletem, inevitavelmente, nos
negócios da indústria dos animês no mercado global.
4 – Apontamentos finais
A prática fansubber veio desempenhando, desde seu
surgimento, um papel extremamente importante na formação de
um mercado potencial para a indústria dos animês. Até pouco
tempo vista com tolerância pelas indústrias localizadas no
Japão e distribuidoras, a prática vem sendo encarada
atualmente como de potencial risco para o mercado, sendo
freqüentemente associada à discussão sobre violação dos
direitos autorais. Mesmo não sendo diferente das muitas
práticas que permeia o fandom de animês, como a produção de
fan fiction (“ficção de fã”) e fan arts (“arte de fã”), a
atividade de fã-legendagem se difere num aspecto substancial
que vai orientar os discursos que visam contestar a
legitimidade da prática: as legendas criadas para os animês
são traduzidas e gravadas no vídeo, ao contrário de certos
textos que são exclusivamente criados por fãs (DENISON,
2011; LEE; 2010).
20
Fundamentalmente, se argumenta que quando versões
legendadas por fãs começaram a circular na rede há alguns
anos atrás, a indústria nada fez para impedir ou fornecer
textos substitutos para essas audiências. Enquanto a
indústria deixou de considerar o potencial da distribuição
para os públicos estrangeiros, fansubbers de diversas línguas
adotavam novas tecnologias para trazer o animê para um
público cada vez mais vasto. Ao mesmo tempo, é preciso
considerar que a atividade demonstra claramente um novo
modelo de distribuição de anime, que é inseparável da
produção social do conhecimento coletivo sobre os animês.
Apesar da legitimidade do modelo ser questionada devido à
clara violação dos direitos autorais, é preciso pontuar que
a natureza da atividade tem sido eficaz no cultivo da
cultura anime para além-mar. Mais do que diversificar a
disponibilidade de anime disponível para os fãs com a oferta
de animês desconhecidos, antigos e não-mainstream – assim,
exemplificando a estratégia “cauda longa” tal como descrita
por Chris Anderson (2006) – a prática fansubber também
promoveu a produção e o compartilhamento de conhecimentos
coletivos sobre os animês (DENISON, 2011).
De todo o modo, as renovações ocorridas no interior
desse fandom têm implicações potenciais para as indústrias
japonesas e americanas que, estão tentando vir com modelos
de distribuição que possam competir com a distribuição
21
fansubber.
Enfrentando esses desafios, os editores de animês nos
Estados Unidos começaram a utilizar a internet como meio de
distribuição através dos serviços de streaming de vídeo on-
line. Além de Crunchyroll18, muitos sites de streaming estão
atualmente operando como o Hulu19, NBC.com20, Cartoon Network
Video21 e Funimation vídeos22 dentre outros. Alguns desses sites
são financiados pela publicidade e assim pode oferecer
transmissão gratuita, enquanto outros cobram dos
espectadores uma taxa, como é o caso do Crunchyroll.
Atualmente, o Crunchyroll possui os direitos para exibição
online de mais de 200 animes, incluindo séries como Naruto
Shippuden e Bleach e outros títulos recentes lançados quase
que simultaneamente com o Japão, como Usagi Drop e Nichijou.
Através do site é possível consumir conteúdo fornecido
diretamente por empresas de mídia asiáticas como a TV Tókio,
Gonzo e a Toei Animation.
Em suma, ao testemunhar a onipresença dos fansubbers na
internet, a indústria passou a adotar tecnologias
semelhantes às utilizadas pelos fansubs, promovendo sites de
reencode anteriormente ilegais como o Crunchyroll, em parceiros
reabilitados. Essa resposta dada pelo setor é vista como um
grande salto, porém o impacto de tais ações ainda têm sido18 Disponível em: http://www.crunchyroll.com/videos/anime/simulcasts19 Disponível em: http://www.hulu.com/20 Disponível em: http://www.nbc.com/21 Disponível em: http://www.cartoonnetwork.com22 Disponível em: http://www.funimation.com/videos/simulcast
22
tímido
(DENISON, 2011). No Brasil, por exemplo, vive-se a
expectativa da chegada do mesmo serviço – o streaming - a
partir de uma parceria firmada entre o site Crunchyroll e o
JBGroup anunciada em outubro de 2011. Essas iniciativas,
longe de gerar consenso, vêm arrefecendo as discussões nas
comunidades on-line dos fansubs brasileiros e entre os demais
mediadores do “mundo animê”. Essas e outras questões não
abordadas nesse paper deverão ser averiguadas nas próximas
etapas da pesquisa em curso.
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