Aquisição da escrita em sociedades com predomínio da oralidade: narrativas guaranis
Um caso de preferência do arrendatário de prédio urbano na aquisição do locado
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José Alberto Rodríguez Lorenzo González
Doutor em Direito
Membro da Unidade de Investigação em Direito Privado da
Universidade Lusíada de Lisboa
Sumário
Nota Prévia
1. Dos factos.
1.1. Do trato sucessivo.
1.2. Do arrendamento.
2. Do Direito.
2.1. Do arrendamento. Legitimidade dos senhorios.
2.2. Do direito de preferência do arrendatário.
2.3. Eficácia externa da obrigação.
2
2.4. Desconsideração da personalidade colectiva.
3. Conclusões.
Nota prévia
Contrariando uma prática pouco usual entre nós,
adopta-se na sistematização deste artigo uma metodologia
que se aproxima do chamado case method. Metodologia essa que,
na tradição jurídica, surge tipicamente associada, não só
mas também do ponto de vista expositivo, aos sistemas da
Common Law. É uma experiência que se faz essencialmente
para testar um procedimento que, muito provavelmente, será
necessário introduzir no ensino jurídico nacional para dar
3
aplicação a alguns dos princípios contidos na (já) afamada
Declaração de Bolonha.
Nesta conformidade, o artigo estrutura-se do seguinte
modo.
Exceptuando alguns poucos factos que apenas mais
adiante se discriminam no contexto adequado, descrevem-se
em primeiro lugar aqueles que caracterizam o case, a
hipótese, que se pretende considerar, identificando-se,
desde logo, os juridicamente relevantes para o efeito. A
referida hipótese, na essência, é real, mas os factos que a
compõem foram objecto de algumas adaptações para o fim aqui
em causa.
Procede-se depois à exploração das diversas
aproximações que o caso é susceptível de receber ainda que,
para fazer jus ao título, se dê particular desenvolvimento
à questão relacionada com o exercício do direito de
preferência pelo arrendatário.
Finaliza-se com a formulação de umas breves
conclusões.
4
1. Dos factos.
1.1. Do trato sucessivo.
I) A história registal conhecida do prédio situado em S.
Jorge de Arroios, na Travessa Francisco Lourenço, nºs 1, 1-
A e 1-B, Lisboa, é a seguinte:
Em 1966/01/28 foi inscrita uma hipoteca voluntária a
favor da Caixa Geral de Depósitos (C19660128001).
Em 1970/03/11 foi inscrita uma segunda hipoteca
voluntária a favor do Banco Totta & Açores (C19700311001).
Em 1975/04/03 foi inscrita uma terceira hipoteca
voluntária a favor da Tango – Sociedade de Construções Lda
(C19750403001).
Em 1976/02/03 foi inscrita provisoriamente por dúvidas
a aquisição de propriedade (por arrematação) a favor de
António Ferrão e mulher (Livro G, nº 51.761), convertida em
definitiva em 1976/02/13 1 .1 As inscrições hipotecárias anteriores deveriam ter sido
canceladas (já que os bens objecto da execução “são transmitidos
livres dos direitos de garantia que os onerarem” – art. 824º/nº2,
Código Civil). A falta de cancelamento dever-se-á, provavelmente, ao
facto de na decisão de arrematação o tribunal o não ter ordenado.
Isto ainda que em 1999, data em que a Espaço Chelas – Sociedade
Imobiliária Lda inscreveu a sua aquisição, os referidos registos de
hipoteca já pudessem muito provavelmente ter cessado os seus efeitos
5
Em 1994/09/20 foi lavrada inscrição de aquisição de
propriedade provisória por dúvidas (por compra) a favor de
Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda (Livro G, nº
65.879), convertida em definitiva em 1994/11/15.
Em 1999/06/25 foi inscrita aquisição de propriedade a
favor da Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária Lda
(G19990625021) por compra.
Em 2004/01/06 foi inscrita aquisição de propriedade a
favor da ImoParis – Sociedade Imobiliária Lda
(G20040106022) também por compra.
Entre 1999 e 2004 produziu-se a inscrição de uma
aquisição provisória por natureza (G20000830015), renovada
por duas vezes (AP. 5 de 2001/02/23 e AP. 3 de 2001/08/27),
mas cuja caducidade foi oficiosamente anotada em
2003/12/22.
II) Extra-registalmente, deve deixar-se referido, desde
já, que o imóvel em causa foi dado de arrendamento à Ávila
Lda em 11/08/1992.
III) Em toda a narração que antecede, há dois aspectos
a assinalar:
1º: Quem vende à Parlamento – Sociedade Imobiliária
Lda são Olívia Ferrão, viúva de António Ferrão, José
nos termos do art. 730º/b) do Código Civil. Contudo, como a
prescrição, para produzir os seus efeitos, depende de invocação (art.
303º, Código Civil), o Conservador não as poderia cancelar de ofício
(como, de facto, não fez).
6
Ferrão, Fernanda Ferrão Marques c.c. Luís Marques e Paulo
Ferrão. Mas quem dá de arrendamento à Ávila Lda é apenas a
Fernanda Ferrão Marques c.c. Luís Marques.
Se houve partilha por sucessão mortis causa e o prédio
em causa coube a estes dois é facto que não está registado.
Porém, é praticamente certo que a referida partilha
não tenha ocorrido uma vez que a venda realizada a favor da
Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda é outorgada por
todos os herdeiros e não apenas por estes dois últimos 2.
2º: Na Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária Lda há
uma sócia com o apelido Vieira Marques (a Carmen), que é
gerente, e na ImoParis – Sociedade Imobiliária Lda, o Luís
Marques (entretanto já divorciado) era sócio com um irmão
da Fernanda Ferrão na altura em que foi celebrada a compra
e venda com a Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária Lda.
Actualmente, esta é gerente e os sócios são os seus filhos
(sendo um deles menor).
2 Se não houve partilha da herança, deveria ter sido registada, a
favor dos herdeiros, a aquisição por sucessão mortis causa da herança
indivisa.
Todavia, mesmo que na realidade assim seja, afigura-se que,
nesta altura, isso não passará de uma mera irregularidade formal:
determinaria a nulidade dos registos posteriores por aplicação do
disposto no art. 16º/e) do Código do Registo Predial, mas os
respectivos efeitos dificilmente poderiam ser tirados por a Espaço
Chelas – Sociedade Imobiliária Lda estar, quase com certeza, em
condições de invocar a seu favor o disposto no nº2 do art. 17º do
mesmo diploma.
7
1.2. Do arrendamento.
Como já se relatou, em 11/08/1992 foi lavrado, sobre o
imóvel em questão, um contrato de arrendamento pelo qual a
Fernanda Ferrão Marques c.c. Luís Marques o deram em
locação à Ávila Lda representada por Ana Abreu.
Apesar de todas as transmissões entretanto ocorridas a
partir daquela que foi lavrada a favor de António Ferrão e
mulher (Livro G, nº 51.761), os recibos do arrendamento em
causa continuam a ser emitidos pela Fernanda Ferrão. E esta
persiste em intitular-se senhoria na comunicação que
efectuou à Ávila Lda para a actualização da renda.
2. Do Direito.
2.1. Do arrendamento. Legitimidade dos senhorios.
I) O arrendamento é, para o senhorio, acto de
administração ordinária 3. Mas, tratando-se de prédio
3 Actos de administração ordinária são (Mota Pinto, Teoria Geral do
Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 4ª edição, pág. 407) os
“correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão
afastados os actos arriscados, susceptíveis de proporcionar grandes
lucros, mas também de causar prejuízos elevados” – são, pois, os actos
8
indiviso, o arrendamento celebrado pelo comproprietário
administrador somente vincula os demais comproprietários se
estes, a priori ou a posteriori, derem a sua anuência para o
efeito (art. 1024º/ nº1 e nº2, Código Civil). E o
assentimento em causa deve ser dado por escrito, ou seja,
por documento particular.
É discutida na doutrina, porém, a consequência
proveniente da falta do aludido assentimento.
II) Efectivamente, esta questão é susceptível de, no
mínimo, duas respostas:
1ª – a que parte da consideração segundo a qual dar de
arrendamento é (ou equivale a) um acto de oneração 4, pelo
que a falta de assentimento para o efeito prestado pelos
consortes não administradores equipara tal arrendamento à
oneração de bens alheios (art. 1408º/nº2, Código Civil) com
a consequente nulidade determinada por causa da conjugação
entre os arts. 939º e 892º, ambos do Código Civil;
2ª – a que, partindo da mesma consideração (embora
esta concepção surja habitualmente associada a uma clara
qualificação do direito do locatário como direito de
destinados a prover à conservação dos bens administrados e a promover
a sua normal frutificação (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica,
vol.II, Almedina, Coimbra, 7ª reimpressão, pág. 62).4 Onerar é criar uma sobreposição de direitos reais sobre a mesma
coisa, seja ela hierárquica, prevalente ou paralela (Oliveira
Ascensão, Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 5ª edição, pág.
280).
9
natureza pessoal, o que envolve, portanto, que o
arrendamento não seja havido como um puro acto de oneração5), entende que a locação de bens alheios está subordinada
a um regime característico (especial, dir-se-ia) contido
nos arts. 1032º a 1034º do Código Civil segundo o qual a
locação de bens (total ou parcialmente) alheios é válida
mas ineficaz em relação ao(s) legítimo(s) titular(es), o
que afasta a aplicação das disposições incluídas nos supra
citados arts. 939º e 892º do mesmo diploma 6.
III) Em geral, perante actos de transmissão, de
oneração ou de natureza equiparável sobre bens alheios ao
disponente, a lei dá protecção fundamentalmente (e é justo
que o faça) ao adquirente.
Mesmo quando se estabeleceu a nulidade como
consequência da falta de legitimidade do disponente, criou-
se igualmente um regime de responsabilidade pelos eventuais
danos daí advenientes para o adquirente (ao menos, o de boa
fé) análogo, no essencial, àquele que se criou para o caso
em que tal ilegitimidade não invalida o acto antes o torna
não cumprido. Veja-se, designadamente, o que se dispõe nos
5 A associação entre estas duas ideias não é, todavia, forçosa.
Confira-se, por exemplo, o entendimento de Pereira Coelho, Arrendamento,
policopiado, Coimbra, 1987, págs. 16 a 21, por um lado, e págs.
104/105, por outro; ou de Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª
edição, Almedina, Coimbra, pág. 387.6 Sobre toda a questão de saber se a falta de assentimento dos
demais consortes gera nulidade do arrendamento ou antes a sua
ineficácia perante os que não assentiram ver, por exemplo, Pinto
Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, págs. 385 a 388.
10
arts. 897º a 900º do Código Civil, compare-se com o
disposto nos acima referidos arts. 1032º a 1034º do mesmo
Código e veja-se como ao comprador de bens alheios falta
apenas, coerentemente, a possibilidade de obter a
indemnização pelo interesse contratual positivo.
Levando isto em conta, e no que toca ao aspecto ora em
causa, pode verificar-se existir a necessidade de
conciliação entre duas ordens de considerações: por um
lado, deve certamente entender-se que a necessidade de
assentimento dos consortes não administradores se destina,
claro, a proteger os seus interesses, tornando o
arrendamento ineficaz perante estes na sua falta. Mas, por
outro lado, há que, em contrapartida, atender a outra
necessidade: a de protecção do locatário (no mínimo,
repete-se, o de boa fé).
A conciliação em causa demanda uma óbvia solução:
desde que o referido assentimento seja conferido tanto deve
importar a forma a que o mesmo tenha obedecido 7. Assim se
conjugam os interesses dos consortes não administradores
com os interesses do locatário 8. Era este, de resto, o
entendimento predominante perante a anterior matiz do art.
1024º/nº2 do Código Civil 9. 7 Neste sentido, Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado,
vol.II, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 367, nota2 ao art. 1024º.8 Por isso, mesmo que a falta de assentimento dos consortes não
administradores acarrete a nulidade da locação, afigura-se que esta
“só pode ser invocada pelos outros comproprietários” (Pereira Coelho,
Arrendamento, pág. 104, nota2).9 De acordo com o que então se dispunha, certo era que, quando o
arrendamento devesse constar de escritura pública, tal assentimento
11
IV) O qual, todavia, agora se não pode manter, ao
menos sempre que o contrato de arrendamento urbano deva ser
celebrado por documento escrito (art. 1069º, Código Civil).
Uma coisa, no entanto, é certa: se o assentimento dos
consortes tem carácter formal ou solene, não se vê razão
para que o disposto no art. 217º/nº2 do Código Civil não
funcione no âmbito da disposição contida no art. 1024º/nº2
do mesmo diploma. Ou seja, apesar de a anuência dos
consortes dever constar de documento particular não se
vislumbra obstáculo a que ela seja tacitamente proferida
“desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos
de que a declaração se deduz”.
V) No caso concreto, os comproprietários não
administradores não deram o seu assentimento para a
deveria ser incluído na mesma.
Poderia, caso contrário, aquele assentimento ser dado por
qualquer forma, inclusive por declaração tácita, nos termos dos arts.
219º e 217º, respectivamente, do Código Civil, ou, ao invés, deveria
revestir a mesma forma que a lei, no caso, exigisse para o próprio
arrendamento? Ou, por outras palavras, teria a norma contida no art.
1024º/nº1/in fine carácter excepcional ou não passaria a mesma de um mero
afloramento de uma regra geral?
Atendendo à necessidade de conciliar o interesse dos consortes
não administradores com o interesse do arrendatário a que se aludiu,
fazia mais sentido entender o disposto no art. 1024º/nº1/in fine do
Código Civil na anterior versão como norma excepcional – como o são,
perante o disposto no art. 219º do mesmo diploma, todas as normas
legais que imponham a observância de certa forma para a celebração de
algum negócio jurídico.
12
celebração do arrendamento em apreço 10 ou, ao menos, não o
deram de modo formalmente válido. Acontece, de qualquer
maneira, que o facto de todos os comproprietários,
administradores e não administradores, terem outorgado na
venda à Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda torna o
vício irrelevante.
VI) Já quanto ao outro lado da questão se não pode
dizer o mesmo.
Na verdade, permanece a conjuntura básica: com ou sem
o assentimento válido dos comproprietários não
administradores, a verdade é que a Fernanda Ferrão se
assumiu desde a data da celebração do arrendamento com a
Ávila Lda até hoje como proprietária exclusiva do locado.
Ou, pelo menos, nunca deu a entender, primeiro, que não era
proprietária exclusiva, nem, segundo, que desde 14/07/1994
até à actualidade já nem proprietária era.
Este circunstancialismo autoriza uma conclusão: aquela
segundo a qual a sociedade arrendatária desconhecia, no
momento da celebração do arrendamento, a falta de
legitimidade da Fernanda Ferrão, pelo que estaria,
portanto, em erro sobre a pessoa do declaratário (arts.
251º e 247º, Código Civil). Ora, como resulta do art. 1035º
do Código Civil e como não podia deixar de ser, “o disposto
10 Todavia, “o recebimento das rendas pelos outros
comproprietários significará normalmente o seu assentimento” (Pereira
Coelho, Arrendamento, pág. 104, nota4) e, desde que haja recibo assinado
por estes, a irregularidade formal estará sanada (art. 217º, Código
Civil).
13
nos artigos 1032º e 1034º não obsta à anulação do contrato
por erro ou dolo, nos termos gerais”.
VII) O erro sobre a pessoa do declaratário é
juridicamente atendível, ou seja, permite a anulação do
contrato em cujo processo de motivação e formação tenha
surgido provando-se (art. 247º, Código Civil):
1 – “a essencialidade, para o declarante, do elemento
sobre que incidiu o erro” desde que
2 – “o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar”
tal causa (subjectiva).
Quer dizer, é necessário demonstrar, antes de mais,
que o declarante (a parte que está em erro – isto é, no
caso, a sociedade Ávila Lda) se soubesse, no momento da
celebração do contrato, aquilo que na realidade não sabia –
no caso, que a Fernanda Ferrão e o respectivo marido não
eram proprietários exclusivos do locado – não o teria
celebrado ou, ao menos, não o teria celebrado nos termos em
que o fez.
Mas, é necessário demonstrar ainda que o declaratário
– no caso, a Fernanda Ferrão e marido – estavam cientes ou
deviam estar cientes que para o declarante o elemento sobre
o qual incidiu o erro – no caso, a legitimidade dos
senhorios – era motivo relevante. VIII) Crê-se que, na normalidade, a legitimidade do
senhorio para dar de arrendamento é um aspecto essencial do
mesmo: tipicamente, não haverá arrendatário que arrisque
tomar de arrendamento se o senhorio “não tiver a faculdade”
14
(ou acrescente-se, o que vale o mesmo, não tiver a
faculdade exclusiva) “de proporcionar a outrem o gozo da
coisa locada” (art. 1034º/nº1/a), Código Civil) – nisto
consiste a essencialidade dentro deste circunstancialismo.
Deveras, a referida falta de legitimidade, num caso
como este, projectar-se-á negativamente sobre o
arrendatário, no mínimo, a dois níveis potenciais:
i) primeiro, na possibilidade de os consortes não
administradores poderem provocar a privação do gozo da
coisa locada se o seu assentimento para a celebração do
arrendamento não tiver sido dado ou não o tiver sido
validamente;
ii) segundo, na possibilidade de as rendas até agora
pagas terem ficado “mal pagas”, correndo o arrendatário o
(sério) risco (a Ávila Lda, designadamente) de ser obrigado
a pagar segunda vez, pois, havendo pluralidade de credores
ou de devedores, a regra é a da conjunção e, no caso, não
se descortina norma legal nem convencional que estabeleça o
regime da solidariedade 11.
IX) Por outro lado, e igualmente na normalidade, não
deixará de ser exigível ao senhorio que reconheça
objectivamente a referida essencialidade. Não pode o declaratário
11 Pelo que, formalmente, tanto os consortes não administradores,
como a Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda, como a Espaço Chelas –
Sociedade Imobiliária Lda, como, por fim, a ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda, poderiam vir exigir à Ávila Lda, o montante que
proporcionalmente lhes cabia ou cabe nas rendas que não lhes foram
pagas em devido tempo.
15
normal (art. 236º/nº1, Código Civil) deixar de entender que
a legitimidade do senhorio é um aspecto decisivo que
determinará qualquer virtual arrendatário à celebração ou à
não celebração do arrendamento.
Quer isto dizer que os requisitos de relevância
anulatória do erro sobre a pessoa do declaratário estarão
preenchidos a favor da Ávila Lda, a qual poderá, por isso,
com este fundamento, anular o contrato de arrendamento.
X) É altamente provável, não obstante o que antecede,
que o caso seja até mesmo de erro qualificado por dolo
omissivo do declaratário.
Na verdade, no processo de formação de qualquer
contrato, devem os contraentes “proceder segundo as regras
da boa fé” (art. 227º, Código Civil): é o reconhecimento
daquilo que se convencionou chamar responsabilidade por
culpa in contrahendo 12. E, como tem sido quase unanimemente
reconhecido, esta directriz vincula os contraentes a
deveres de lealdade, honestidade e lisura.
Aplicando o instituto da culpa in contrahendo ao caso em
apreço, afigura-se incontestável que a Fernanda Ferrão e
marido tinham, pelas regras da boa fé, no momento da
celebração do arrendamento, o dever de esclarecer a Ávila
Lda sobre o facto de o locado lhes não pertencer
exclusivamente. Não o fazendo, usaram de dolo omissivo nos
termos do nº2/2ª parte do art. 253º do Código Civil para
obterem a celebração do arrendamento com a Ávila Lda.12 Ver, por exemplo, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português,
Almedina, Coimbra, págs. 336 a 341.
16
Assim sendo, a Ávila Lda poderá anular dito
arrendamento com fundamento no disposto no art. 254º do
Código Civil.
E como, além disso, não se trata de uma hipótese de
dolus (activo ou omissivo) bonus (na medida em que se não
verifica nenhuma das eventualidades previstas pelo nº2/1ª
parte do art. 253º do Código Civil), a Fernanda Ferrão e
ex-marido incorrem ainda em responsabilidade civil
aquiliana nos termos gerais do art. 483º/nº1 do mesmo
diploma.
XI) A “anulação do negócio tem efeito retroactivo,
devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado”
(art. 289º/nº1, Código Civil).
Porém, “nos contratos de execução continuada ou
periódica” (justamente como o arrendamento), “a resolução”
(no caso, por analogia, a anulação) “não abrange as
prestações já efectuadas” (art. 434º/nº2/1ª parte, Código
Civil).
Significa isto, para o caso concreto, que a Ávila Lda
não terá presumivelmente interesse prático em pretender a
anulação do arrendamento.
A menos que o montante de prejuízos que a conduta da
Fernanda Ferrão lhe possa ter causado e que sejam
ressarcíveis a título de indemnização pelo interesse contratual
negativo com fundamento em responsabilidade civil se possa
revelar compensador.
17
2.2. Do direito de preferência do arrendatário na
aquisição do locado.
I) Nos termos do art. 1091º/nº1/a) do Código Civil, “o
arrendatário tem direito de preferência na compra e venda
ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de
três anos”. E, nos termos do art. 47º do Regime do
Arrendamento Urbano, “o arrendatário de prédio urbano ou de
sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra
e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há
mais de um ano”.
O direito legal de preferência (ou o direito de
preferência de origem negocial mas com eficácia real – art.
421º, Código Civil), apesar da nominação unívoca a que
obedece, tem diferentes naturezas 13 consoante a fase do
processo negocial em que esteja a relação entre o
preferente e o obrigado à preferência.
De facto, as respectivas situações jurídicas não são
as mesmas:
a) logo após a verificação do facto que origina o
surgimento do preferente;
b) após passar a existir um projecto de venda;
c) após a comunicação do mesmo ao preferente;
d) após a sua rejeição ou caducidade;
e) após a sua aceitação por parte do preferente;
13 Ver, por todos, Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais,
Almedina, Coimbra, págs. 202 a 225.
18
f) ou, por fim, em todas as hipóteses anteriores, salvo
na de rejeição ou caducidade, após a alienação/oneração
efectuada em benefício de terceiro.
II) Ocorrido o facto que origina a preferência –
arrendamento com uma determinada duração temporal, no caso
concreto – o obrigado à preferência fica condicionalmente
vinculado a comunicar ao preferente o chamado projecto de
venda e as cláusulas do respectivo contrato, caso entenda
alienar (vender, tipicamente) e no suposto óbvio de algum
terceiro pretender negociar consigo.
Se o que se comunica é um projecto de contrato, isso
pressupõe a existência, entre o obrigado à preferência e o
terceiro, de um pré-acordo ou, inclusivamente, de um acordo
já concluído cuja eficácia e validade apenas estão
dependentes da reacção que o preferente possa ter, desde
que o obrigado à preferência cumpra a adstrição a que se
encontra vinculado pelo disposto no nº1 do art. 416º do
Código Civil.
19
Por conseguinte, nesta fase, o obrigado à preferência
está adstrito em potência 14: está na situação de poder
ficar obrigado à referida comunicação.
III) Entrando o obrigado à preferência em negociação
com terceiro e chegando estes a um acordo, no mínimo quanto
aos aspectos essenciais 15 do contrato projectado (art.14 Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
15/01/2004: I - Concebido para determinada situação de facto, e conquanto, assim, só
realmente possa considerar-se adquirido quando efectivamente ocorra a situação prevista, o
direito de preferência existe já virtualmente na titularidade de quem, concretamente, estiver em
condições de poder vir a encontrar-se nessa situação. II - O direito de preferência do
arrendatário, que efectivamente nasce, e lhe assiste, no caso de venda do local arrendado,
resulta directamente da lei. III - O arrendatário há mais de um ano é, assim, consoante art. 47º,
nº 1, RAU, um preferente virtual. IV - O contrato de cessão da posição contratual tem como
principal efeito a substituição do cedente pelo cessionário como a contraparte do cedido na
relação contratual básica, tal como esta existia à data da cessão. V - Tal assim também em
termos de antiguidade do arrendamento para o efeito da preferência em eventual venda ou
dação em pagamento, para o que releva a data do contrato-base (de arrendamento) e não a
do contrato-instrumento (de cessão da posição contratual firmada naquele primeiro). VI - A
exigência temporal - aliás expressa, objectivamente, referida ao local arrendado - exarada na
parte final do nº 1 do art. 47º RAU não pode deixar de interpretar-se como relativa à duração
do contrato-base, e, assim, como reportada à data do início do arrendamento, e não à de
eventual sucessão no mesmo quando transmitido, sendo, para esse efeito, irrelevantes
eventuais modificações subjectivas. VII - A natureza intuitu personae do arrendamento tem sido
afirmada em relação ao arrendamento para habitação, e não quando se destine a qualquer
outro fim.15 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/12/2001: 1. Nos
termos do n. 1 do artigo 1410 do C Civil, a acção de preferência tem de ser proposta dentro do
prazo de seis meses a contar da data em que o preferente teve conhecimento dos elementos
essenciais da alienação. 2. A comunicação imposta pelo artigo 416 do C. Civil deve conter todos
os elementos susceptíveis de influir decisivamente sobre a formação da vontade do preferente,
de tal modo que, faltando algum deles, a comunicação não tem relevância, por não ser o
20
1410º/nº1, Código Civil), deve o primeiro comunicá-lo ao
preferente. A primazia deste na aquisição do direito sobre
o qual tem preferência fundamenta a necessidade de
instituir semelhante obrigação.
Nesta fase, o direito de preferência é assim um puro
de direito de crédito: direito de exigir uma prestação
consistente, no caso, na comunicação devida por força do
disposto no nº1 do art. 416º do Código Civil seja
realizada.
IV) Segundo a doutrina e a jurisprudência dominante,
recebida a comunicação em causa, o preferente fica colocado
na situação jurídica de qualquer destinatário de uma
proposta contratual: adquire o direito potestativo de a
aceitar. Daí que em contrapartida o obrigado à preferência
fique na situação de qualquer proponente: sujeita-se à
aceitação deste.
Quer isto dizer que a comunicação a que o nº1 do art.
416º do Código Civil alude é, neste entendimento,
qualificável como proposta contratual 16 e não como
(simples) convite a contratar. Razão pela qual fica
preferente colocado em posição de dever tomar uma decisão. 3. Nesses elementos
compreendem-se o preço e as condições de pagamento e, em certas condições, v.g. nos casos
de o preferente ser comproprietário ou arrendatário, também a pessoa do adquirente. 4. Não
tem que constar da escritura o fim da aquisição, embora seja necessária a possibilidade ou
admissibilidade legal da afectação a fim diferente do da cultura, impendendo sobre os réus
adquirentes a prova dessa possibilidade.16 Qualificação de cuja justeza se duvida, no entanto, por se
afigurar difícil entender que a mesma revista os caracteres da firmeza e
da completude que identificam a proposta contratual.
21
(também) sujeita, como qualquer proposta contratual, a
regras de duração. Sucede, no entanto, que aqui, em vez de
se observarem as regras gerais estabelecidas pelo art.
228º, se devem acatar antes aquelas que resultam do
disposto art. 416º/nº2º, ambos do Código Civil.
V) Se o preferente rejeitar 17 18 a proposta ou se a
deixar caducar, o obrigado à preferência ficará livre para
negociar e concluir a contratação com terceiro nos exactos
termos propostos ao preferente. Em geral, com qualquer
terceiro, excepto nos casos em que a identidade deste seja
um motivo fundamental para poder levar o preferente a
decidir contratar. Nesta última hipótese, da qual é
precisamente exemplo paradigmático o da preferência do
locatário 19, o obrigado à preferência ficará, nestas
circunstâncias, liberto para contratar apenas com o
terceiro com o qual em concreto chegou a concluir o
projecto de venda que comunicou ao preferente.
17 Incluindo a hipótese em que a aceita com modificações
suficientemente precisas para que possa ser havida como contra-
proposta (art. 233º, Código Civil). 18 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/1999: I- A
renúncia ao exercício de um direito de preferência não exige forma especialmente solene,
encontrando-se pois sujeita ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade
consagrado no artigo 219 do CCIV. 19 Ainda que alguns acrescentem que só no arrendamento para
habitação é a identidade do potencial adquirente relevante para
motivar a decisão de contratar do preferente.
22
VI) Se, ao invés, o preferente aceitar a proposta
ínsita na comunicação recebida, forma-se entre este e o
obrigado à preferência um contrato.
Mas, a partir daqui, torna-se indispensável
distinguir.
Se o contrato para o qual se concedeu a preferência
(na situação prototípica, o de compra e venda) não
depender, para ser válido, da observância de qualquer forma
solene, a referida aceitação originará, de imediato, a sua
conclusão.
Diversamente, se tal forma solene for exigida, uma
coisa é certa: o contrato para o qual se deu preferência
não ficou concluído com a aceitação do preferente. Resta
então, como se faz no entendimento em análise, caracterizar
o acordo a que a referida aceitação dá origem como um
contrato-promessa (tipicamente de compra e venda) ou, ao
menos, como um contrato profundamente análogo ao de
promessa bilateral 20. Pelo que preferente e obrigado à
preferência ficam submetidos ao regime do contrato-promessa
e, muito particularmente (dado que o funcionamento do
disposto no art. 442º do Código Civil não é, em geral,
concebível neste contexto), ao regime da acção de execução
específica (art. 830º, Código Civil). O que importa
assinalar, todavia, é que o preferente passa, nesta
eventualidade, a ter, na medida do possível, os direitos
que a lei reconhecer ao promitente-adquirente.
20 Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 213.
23
VII) Por último, se o obrigado à preferência não
efectuar a comunicação a que está adstrito pelo nº1 do art.
416º do Código Civil, ou se a efectuar mas não esperar pela
resposta, ou, por fim, se a efectuar e o preferente
aceitar, mas, mesmo assim, em qualquer das sub-hipóteses,
alienar 21 (caracteristicamente, vender) a terceiro, o
preferente pode reagir por uma de duas vias:
– pela via da responsabilidade civil (em regra,
exclusivamente dirigida contra o obrigado à preferência);
ou,
– intentando acção de preferência para se sub-rogar na
posição contratual do terceiro adquirente 22 (nos termos do
art. 1410º do Código Civil) quando o direito de preferência
tenha origem legal ou quando, tendo origem num negócio,
este esteja dotado de eficácia real, desde que em qualquer
caso deposite o preço pago pelo terceiro adquirente dentro
21 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2004: A promessa
de venda de prédio rústico a um terceiro não confiante não integra o pressuposto do exercício
do direito legal de preferência, mesmo havendo procuração irrevogável a favor do promitente-
comprador, pois o representado mantém a titularidade da posição jurídica.22 Haverá, em tese, uma outra circunstância em que o preferente
poderá fazer valer a sua situação contra o terceiro adquirente: se
tiver aceite a proposta ínsita na comunicação efectuada pelo obrigado
à preferência que determina, em correspondência, o surgimento de um
contrato-promessa entre ambos, poderá o preferente recorrer à acção de
execução específica, no caso de aquele ter entrado em mora, desde que,
no mínimo, a registe (nos termos gerais do art. 3º do Código do
Registo Predial) antes de o negócio entre o obrigado à preferência e
terceiro ter sido celebrado.
24
do prazo exigido pelo nº1/in fine do art. 1410º do Código
Civil 23.
É somente nesta composição e por esta última via que
se pode dizer que o direito do preferente tem a natureza de
direito real de aquisição 24.
23 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2002: I - O
depósito do preço correspondente à compra e venda, objecto da preferência, deve considerar-
se tempestivo se efectuado nos oito dias seguintes à notificação do despacho que ordene a
citação dos Réus. II - Tal prazo de oito dias, é de caducidade e portanto, de direito substantivo,
pelo que o seu cômputo se exprime na regra da alínea b), do artigo 279, do C.C..24 Há quem entenda que a própria categoria do direito real de
aquisição deve ser recusada. É uma concepção admissível como qualquer
outra.
Sublinha-se, no entanto, o seguinte: não se pode esquecer que
quando se diz que um direito incide sobre uma coisa, daí resulta que
os benefícios que essa coisa é susceptível de proporcionar estão (no
todo ou em parte) reservados ao respectivo titular. É a consequência
do reconhecimento de um direito sobre uma coisa: somente o seu titular
poderá proceder ao aproveitamento das utilidades (ou de certas das
utilidades) que essa coisa é apta a fornecer. Nesse âmbito, todas as
demais pessoas estão excluídas. Os direitos sobre coisas são, por
isso, uma espécie dos chamados direitos de afectação, de soberania ou
de exclusivo (como se preferir).
Ora, mesmo quando um direito (apenas) permita a aquisição de
outro direito sobre determinada coisa, haverá uma reserva, ainda que
indirecta e condicional, das utilidades dessa coisa (através, como é
óbvio, deste outro direito) a favor do titular do direito de
aquisição.
Não será isto suficiente para que se possa dizer que, em casos
deste género, o direito (de aquisição) é relativo a uma coisa, muito
especialmente a partir do momento em que se aceita que o valor
económico de certa coisa ainda constitui uma utilidade da mesma (que é
25
VIII) Efectivamente, tanto quando a preferência é
legal como quando é negocial com eficácia real, o direito
real de aquisição a favor do preferente somente se
constitui quando:
i) ocorra a violação da preferência nos termos acima
enunciados;
ii) através da alienação a terceiro do direito sujeito à
preferência 25 26.
Antes disso, recapitula-se, apenas existe a favor do
preferente, grosso modo, um poder de exigir um comportamento
a utilidade da coisa atribuída pelos direitos reais de garantia –
note-se, de resto, que nestes, em geral, a reserva dessa utilidade
também é condicional: só pode ser obtida se o crédito garantido não
for satisfeito)?
Quanto mais não seja, deve ao menos levar-se em conta o
seguinte: a recondução dos direitos de aquisição relativos a uma coisa
à categoria geral dos direitos potestativos, não é capaz de realçar a
individualidade que aqueles representam dentro destes.
Além disso, também não se pode esquecer que a generalidade dos
autores que nega a inserção dos direitos de aquisição potestativa
dentro da categoria dos direitos reais, fá-lo por entender a imediação
característica dos direitos reais no sentido, muito materialista, do
domínio de facto sobre a coisa. Sendo um entendimento legítimo, também
é verdade que, assim, uma grande parte dos direitos de garantia tão-
pouco terá natureza real (por exemplo, a hipoteca ou os privilégios
creditórios especiais). 25 Na medida em que então o devedor (ou seja, o obrigado à
preferência) torna impossível o cumprimento.26 Se ocorre antes a oneração desse direito o devedor já não pode
cumprir perfeitamente. O credor (preferente) mantém a prioridade, mas
já não se torna então necessário recorrer a qualquer direito real de
aquisição.
26
alheio – a prestação de facere que é imposta pelo art.
416º/nº1 27 do Código Civil – ou o poder potestativo de
aceitar a proposta, se o obrigado à preferência efectuar a
comunicação que se lhe exige (art. 416º/nº1, Código Civil),
27 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2005: 1. Pacto de
preferência é o contrato pelo qual alguém assume a obrigação de, em igualdade de condições,
escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu contraente, no caso de se
decidir a celebrar certo negócio. 2. No pacto de preferência o obrigado à preferência está
adstrito a uma prestação que consiste em escolher o titular do direito de preferência para
contraparte, caso decida efectuar o contrato a que a relação de preferência se reporta (e o
preferente se disponha a contratar nos termos em que terceiro o faria). 3. Sendo o contrato de
preferência limitado à celebração pelo obrigado de determinado negócio jurídico com relação
a certos bens ou interesses - aqueles que constam do pacto - não existe a obrigação de
comunicar à contraparte o projecto de negócio, nem se o contrato que o obrigado realizar for
outro que não o constante do contrato de preferência, nem se os bens forem diversos dos
contratualmente definidos. 4. Na interpretação normativa e na qualificação dos negócios
jurídicos o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação
e aplicação das regras de direito, não se lhe impondo, designadamente, a designação ou
nomen juris que as partes atribuam a um acordo negocial. 5. Todavia, quanto ao nomen juris
do negócio, não pode esquecer-se que a declaração dirigida ao surgimento de consequências
jurídicas (declaração jurídico-negocial) indica, segundo o seu próprio conteúdo, que deve ter
lugar esta ou aquela consequência jurídica, pelo que quando as partes num negócio declaram
respectivamente que vendem e compram não podem deixar, em princípio, de o fazer com o
sentido que objectivamente a aparente declaração revela face ao significado que lhe é dado
pela comunidade mais ou menos ampla em que se integram. 6. E isto mais se justifica no caso
dos negócios formais, como a compra e venda de imóveis - que é um negócio solene, sujeito a
escritura pública, formalidade ad substantiam de cuja omissão advém a respectiva nulidade -
em que outro sentido interpretativo só podia ser eleito se tivesse um mínimo de
correspondência no texto do documento por meio do qual o contrato foi celebrado. 7. Pode
admitir-se que o negócio em que uma sociedade destaca uma parte do seu património e o
transfere para outra sociedade, integrante de Grupo dominado pela primeira, é um negócio de
27
desde que se entenda que esta comunicação é ou pode ser
equiparada a uma proposta contratual 28.
IX) O referido direito real de aquisição faz-se valer
através da acção de preferência 29 (arts. 421º/nº2 e 1410º)
tanto no caso da preferência legal como no caso de
cisão, na modalidade de cisão-fusão, prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 118º do Código das
Sociedades Comerciais. 8. A pretender-se que tal negócio - realmente querido pelas partes - foi
dissimulado por um contrato de compra e venda, alega-se a ocorrência de uma simulação
relativa, sendo a quem arguir a seu favor a simulação que incumbe, nos termos gerais,
demonstrar os respectivos elementos: intencionalidade da divergência entre a vontade e a
declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros. 9. A nulidade proveniente da
simulação não pode ser arguida pelos simuladores contra terceiros de boa fé nos casos, quer
de simulação absoluta, quer relativa. 10. Se as partes declararam simuladamente querer
realizar uma compra e venda, mas quiseram realizar um negócio de outro tipo - uma cisão-
fusão - a simulação não pode ser oposta a um terceiro que, face ao negócio simulado, gozava
de direito de preferência, e perante o negócio dissimulado já não teria esse direito. 11. No
pacto de preferência sem eficácia real o incumprimento apenas obriga o obrigado à
preferência a indemnizar o preferente pelos prejuízos que lhe advierem da violação do pacto. 28 Qualificando a comunicação para preferir como proposta
contratual, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/1998:
I - Para efeitos de direito de preferência, interessa a natureza do prédio no momento em que é
oferecido à preferência ou em que esta é exercida e não a sua sorte futura. II - A situação de
prédio encravado é essencial para a constituição de uma servidão legal de passagem mas não
no que respeita à constituição de uma servidão de passagem por usucapião; esta pode suprir a
falta daquela mas isso não lhe confere a natureza de servidão legal. III - A
notificação/comunicação prevista no n. 1 do artigo 416 do CC (constitui uma verdadeira
declaração negocial, traduzindo a proposta contratual correspondente ao projecto de venda
que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente) tanto vale para os pactos de
preferência como para as preferências legais. IV - Essa comunicação assume o carácter de uma
proposta, revestindo a declaração de preferência o significado de uma aceitação; assim, pode o
contrato ficar desde logo concluído se as partes manifestam a vontade de uma vinculação
definitiva, com observância da forma legal para aquele necessária; quando assim não
28
preferência negocial com eficácia real. E do seu exercício
com êxito, ou seja, da procedência da acção, resulta uma
sub-rogação pessoal ou, como se quiser perspectivar, uma
modificação subjectiva na compra e venda celebrada em violação
da preferência entre o obrigado a esta e terceiro, por
força da qual o preferente ingressa na situação jurídica
(paradigmaticamente, na posição contratual) deste terceiro.
No caso de preferência negocial com eficácia real,
como a atribuição desta pressupõe a realização do
aconteça, a notificação e a declaração da preferência consubstanciam um contrato promessa,
desde que satisfeita a forma exigida. V - Enquanto os pactos de preferência têm, em princípio,
apenas eficácia obrigacional, os direitos legais de preferência têm sempre eficácia real (aqui, o
preferente, além de ser titular de um verdadeiro direito de crédito, é titular de um direito real
de aquisição). VI - Constitui orientação do Supremo Tribunal de Justiça a de reconhecer eficácia
real ao direito de preferência e também a de aceitar que, no caso de incumprimento, fica o
devedor vinculado à realização do negócio, e o preferente investido no direito potestativo de
exigir que, por decisão judicial, seja constituído o direito de propriedade sobre a coisa, não
podendo o obrigado retractar-se ou desistir do negócio projectado. VII - O relegar a liquidação
para execução de sentença postula que na acção declarativa seja feita prova da existência dos
danos; a fase preliminar dessa liquidação apenas pode servir para quantificar danos.29 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/1994: I - As
acções em que se pretende exercer o direito de preferência integram-se na categoria das
acções constitutivas, definidas no artigo 4, n. 2, alínea c) do Código de Processo Civil, as quais
têm por fim autorizar uma mudança na ordem jurídica existente. II - Pedindo o preferente que,
na sequência do que nascera, lhe fosse reconhecido o direito de preferência nos prédios em
questão, com as legais consequências, nestas se podem integrar a substituição do adquirente
pelo preferente, a entrega do preço e da sisa, o direito do adquirente revelar o que gastou -
escritura e registo e o anulamento do registo efectuado pelo adquirente, embora o pedido dos
preferentes devesse ter sido mais concreto e alargado, apesar de nas acções constitutivas não
haver pedido de condenação. III - E tendo a sentença nessa acção interpretado essa expressão
"legais consequências" no sentido acima, ele assim transitou em julgado e, por isso, não pode
ser recusado o registo.
29
competente registo predial (arts. 413º/nº1 e 421º/nº1),
qualquer alienação ou oneração, posterior à referida
inscrição, que coloque o devedor em situação de
impossibilidade de cumprimento ou de eventual cumprimento
defeituoso 30 torna-se ineficaz perante o preferente, por
força da entrada em funcionamento da regra da prioridade
registal (art. 6º do Código do Registo Predial). É esta
prioridade que fundamenta o direito de exercer a
preferência mesmo contra quem não se obrigou ou não se
encontra obrigado à mesma.
Na hipótese de preferência legal, é a publicidade
inerente à publicação da própria lei que a reconhece que
justifica a primazia atribuída ao seu titular e fundamenta
a referida ineficácia 31.
30 Ver, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
03/06/1992: Na venda da nua-propriedade de fracção autónoma e constituição de usufruto
a um irmão do adquirente, cabendo ao locatário o direito de preferência, pode este exerce-lo
em acção proposta contra o comprador da nua-propriedade e não também contra o
adquirente do usufruto.31 E por isso é que tanto na preferência legal como na negocial
com eficácia real o terceiro adquirente nunca é terceiro registal: ou
pela própria lei ou pelo registo, respectivamente, o terceiro
adquirente conhecia ou devia conhecer o direito do preferente (logo,
não pode estar de boa fé). Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 09/12/2004: 1. A preferência tem a natureza de um direito real de
aquisição e, pela procedência da acção de preferência, ocorre a substituição do adquirente
pelo preferente "ab initio". 2. Sendo atribuído por lei, o direito de preferência, para ter efeitos
em relação a terceiros, não carece de ser registado. 3. O art. 291.º do CC é uma norma de
carácter excepcional, sendo apenas aplicável à nulidade ou anulabilidade que não aos casos de
ineficácia. 4. O registo predial efectuado pelo comprador preterido pelo preferente não tem
substracto por o adquirente do prédio ser o preferente e não o comprador preterido.
30
Essa ineficácia opera retroactivamente tanto na preferência
legal como na negocial com eficácia real, na medida em que,
com a sentença que sub-roga o preferente na posição do
terceiro adquirente, o primeiro assume a posição deste (e,
portanto, a titularidade do direito em causa) desde a data
da celebração do contrato com o obrigado à preferência 32 33.
Quer dizer, por conseguinte, que, nestas hipóteses, o
preferente tem o direito de adquirir o direito sujeito à
preferência com o exacto conteúdo que este tinha à data do
registo do pacto de preferência ou à data em que nasce o
projecto de venda a celebrar com terceiro, no caso de
preferência legal.
X) Aplicando o que se diz ao caso concreto, verifica-
se que a Ávila Lda é arrendatária desde 11/08/1992 do
prédio situado em S. Jorge de Arroios, na Travessa
Francisco Lourenço, nºs 1, 1-A e 1-B, Lisboa.
32 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2004: I - O
arrendatário comercial, há mais de um ano, de uma parte de um imóvel, que não se encontre
constituído em regime de propriedade horizontal, pode exercer o direito de preferência
relativamente à venda de todo o imóvel. II - Nas acções de preferência, é ao réu que incumbe
provar que o autor teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação há mais de 6
meses. III - A procedência da acção de preferência tem como consequência necessária uma
modificação subjectiva no negócio que justificou o exercício do respectivo direito. IV - Tal
modificação subjectiva tem eficácia ex tunc, por colocar o preferente na posição que
inicialmente detinha o adquirente do prédio preferido.33 Para maiores desenvolvimentos, ver Henrique Mesquita, Obrigações
Reais e Ónus Reais, págs. 187 e segs.
31
Quando é efectuada a venda a favor da Parlamento –
Sociedade Imobiliária Lda, em 14/07/1994, já a Ávila Lda.
era arrendatária há cerca de 23 meses.
Estava verificado, portanto, o pressuposto
estabelecido pelo nº1 do art. 47º do Regime do Arrendamento
Urbano para que pudesse ser titular do direito de
preferência em caso de venda do local arrendado.
Mas não o do art. 1091º/nº1/a) do Código Civil.
De acordo com o disposto no art. 26º/nº1 do Novo
Regime do Arrendamento Urbano (NRAU – Lei nº 6/2006 de 27
de Fevereiro), “os contratos celebrados na vigência do
Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-
Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar
submetidos ao NRAU…”.
Isto significa, aplicado ao caso, que a partir da
entrada em vigor do NRAU o direito de preferência do
arrendatário somente se pode constituir decorridos pelo
menos três anos sobre a data da celebração do arrendamento,
independentemente de isso ter sucedido antes ou depois da
aludida entrada em vigor. Todavia, sob pena de
inconstitucionalidade 34 (art. 18º/nº3, Constituição da
34 O direito de preferência do arrendatário é o instrumento que
lhe permite o acesso à propriedade sobre o locado, que é uma das
vertentes do direito fundamental à propriedade privada protegida pelo
art. 62º da Constituição da República Portuguesa (talvez até aquela
que essencialmente se protege – cfr. José González, Direitos Reais e Direito
Registal Imobiliário, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, págs. 17 a 22). Como o
direito à propriedade privada é reconhecidamente (ver, por exemplo, o
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 273/04, Proc. nº 506/03, e toda
a jurisprudência aí referida) análogo aos direitos, liberdades e garantias, a
32
República Portuguesa), os direitos de preferência já
constituídos à data da entrada em vigor do NRAU não podem
obviamente ser atingidos através da ampliação do lapso de
tempo de que depende a possibilidade do seu surgimento.
Quer dizer isto dizer, por via do disposto no art. 47º
do RAU, que quando a venda à Parlamento – Sociedade
Imobiliária Lda foi realizada deviam Olívia Ferrão, viúva
de António Ferrão, José Ferrão, Fernanda Ferrão Marques
c.c. Luís Marques e Paulo Ferrão, ter comunicado o projecto
de venda e as cláusulas essenciais da mesma à Ávila Lda
(art. 416º/nº1, Código Civil). O que não aconteceu.
O mesmo se diga, mutatis mutandis, para as vendas
subsequentes. A Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda
deveria ter cumprido semelhante obrigação quando decidiu
vender à Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária Lda e esta
estava obrigada nos mesmos exactos termos quando decidiu
vender à ImoParis – Sociedade Imobiliária Lda. O que
igualmente não sucedeu em ambos os casos.
XI) Como, além disso e apesar disso, a Fernanda Ferrão
continuou até hoje a passar os recibos das correspondentes
rendas pagas pela Ávila Lda, esta não só não teve
conhecimento das sucessivas vendas como nem sequer as
poderia ter conhecido uma vez que existiu e subsiste a
(óbvia) intenção de as dissimular.
aplicação do regime de garantia contido no referido art. 18º à
propriedade privada é inquestionável (art. 17º, Constituição da
República Portuguesa).
33
Por outras palavras, a Ávila Lda, apesar de terem
decorrido quase catorze anos desde a realização da primeira
venda após a celebração do arrendamento, pode exercer
preferência, nessa e em todas as vendas subsequentes, dado
que o prazo de caducidade para o seu exercício ainda não
terá corrido para nenhuma 35 (art. 1410º/nº1, Código
Civil).
A Ávila Lda tem na sua titularidade, por conseguinte,
nesta altura, três direitos de preferência, relativos ao
mesmo imóvel. Pode, por isso, escolher qual pretende
exercer (através da acção de preferência), ou seja, pode
escolher em qual das referidas vendas se pretende sub-rogar
à compradora. Evidentemente, uma vez que o preço pago na
primeira venda, a venda feita à Parlamento – Sociedade
Imobiliária Lda, foi o mais baixo de todos, é nesta que
convirá preferir 36.
35 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/1996: Em acção
de preferência, cabe aos demandantes o ónus da prova da qualidade de arrendatário, e dos
demandados o ónus da prova, ou de que fora tempestivamente feita a comunicação de todo o
projecto de alienação, ou de que, quando foi instaurada a acção, já decorrera todo o prazo em
que ela o podia ter sido.36 Supondo, no entanto, que o preço nela estabelecido não é
simulado, dado que é hoje corrente na jurisprudência o entendimento
segundo o qual, fazendo-se a devida prova, o que vale é o preço
efectivamente acordado e recebido. Neste sentido, por exemplo, o
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2005: 1 - Os factos cobertos
pela força probatória da escritura pública são apenas os consignados no art.º 371, n.° 1, do
Código Civil, ou seja, aqueles que refere como praticados pelo notário e os que nela se atestam
com base nas percepções dele. 2 - Assim, no que toca ao preço da compra e venda, a escritura
pública prova plenamente que os vendedores disseram perante o notário que o preço foi de
500 contos e que já o receberam; mas não prova, nem pode provar, que tal facto corresponde
34
XII) Se, de facto, a preferência for exercida na venda
celebrada a favor da Parlamento – Sociedade Imobiliária
Lda, daí decorre que a Ávila Lda, em caso de procedência da
acção de preferência a intentar, será tida como
proprietária do imóvel situado em S. Jorge de Arroios, na
Travessa Francisco Lourenço, nºs 1, 1-A e 1-B, Lisboa,
desde 14/07/1994 (data em que a referida venda foi
outorgada).
Pelo que, por consequência, todas as vendas ou outros
actos posteriores se tornam ilegítimos por passarem a
incidir sobre bens alheios. E, designadamente, as vendas,
primeiro, à Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária Lda e,
depois, à ImoParis – Sociedade Imobiliária Lda, tornam-se
nulas por passarem a ser havidas como contratos de compra e
venda de bens alheios (art. 892º, Código Civil).
XIII) No que toca às rendas pagas pela Ávila Lda desde
14/07/1994 e no pressuposto que é na venda à Parlamento –
Sociedade Imobiliária Lda que aquela se pretende sub-rogar,
a aplicação da regra de que tal sub-rogação tem carácter
retroactivo, leva a concluir que as referidas rendas
deverão ser restituídas à Ávila Lda.
à realidade, que o conteúdo da declaração é verdadeiro, dado que isso transcende aquilo que
as percepções do notário, enquanto autoridade revestida de fé pública, podem alcançar. 3 -
Portanto, nada impede que mais se tarde se prove, por exemplo, que o preço ainda não foi
efectivamente pago, ou que foi diferente (superior ou inferior). 4 - E tal prova pode ser obtida
quer por testemunhas, quer por presunções, como resulta do disposto no art.º 393, n.° 2, em
conjugação com os art.ºs 351º e 396º do Código Civil.
35
Pelo seguinte:
– porque, para todos os efeitos, em 14/07/1994, Olívia
Ferrão, viúva de António Ferrão, José Ferrão, Fernanda
Ferrão Marques c.c. Luís Marques e Paulo Ferrão, venderam à
Ávila Lda e não à Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda;
– logo, desde essa data, a proprietária do imóvel em
causa é a Ávila Lda, e não faz obviamente sentido que o
proprietário seja arrendatário de si próprio;
– mas, acima de tudo, porque seria até injusto que o
preferente, além de não poder obter a restituição das
rendas pagas, ainda tivesse de pagar o preço devido na
compra e venda sobre a qual exerce a preferência – pagaria,
assim, duas vezes, pelo uso que fez e pela aquisição da
propriedade, quando, se a obrigação de dar preferência
tivesse sido regularmente cumprida, as referidas rendas não
teriam (manifestamente) sido pagas (pois a Ávila Lda
estaria desde então a usar um bem próprio);
– acresce que, a entender-se diversamente, estar-se-ia
a premiar o não cumprimento da obrigação de dar
preferência, ao menos sempre que o preferente fosse
arrendatário, já que, no mínimo, alguém continuaria, mais
ou menos prolongadamente, a receber rendas que não deveria
restituir e que o preferente não pagaria se lhe tivessem
comunicado, no tempo devido, o projecto de venda – pode
dizer-se, na verdade, que, a sustentar-se o entendimento
que se critica, seria muito conveniente não dar cumprimento
à obrigação de dar preferência;
36
- no caso concreto, este argumento sai reforçado
perante a óbvia intenção dos sucessivos obrigados à
preferência de esconderem perante a Ávila Lda as vendas
efectuadas – legitimar-lhes aqui a conservação das rendas
recebidas atentaria inclusivamente contra o sentimento
jurídico.
XIV) No que toca a esta questão da restituição das
rendas pagas poderia, no máximo, adoptar-se um entendimento
corrente na jurisprudência segundo o qual, exercida a
preferência e ficando a posse do terceiro adquirente
desprovida de causa (ou seja, tornando-se, portanto, posse
formal), ainda assim este estaria presumivelmente de boa fé
(art. 1260º/nº2, Código Civil) até ser citado para a acção
de preferência 37 38.
37 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/05/1996: I - A
procedência da acção de preferência tem como resultado a substituição, com eficácia ex tunc,
do adquirente pelo preferente. II - O princípio da retroactivdade dos efeitos do reconhecimento
judicial de preferência não se aplica aos frutos da coisa até á data da citação do adquirente
para a acção de preferência por a sua posse se presumir de boa fé. Ou também o Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/1997: I - O reconhecimento judicial do
direito de preferência tem, em princípio, efeito retroactivo à data da alienação. II - Os frutos da
coisa alienada, em que se incluem as rendas, só pertencem ao adquirente enquanto for
possuidor de boa fé, deixando de lhe pertencer, pelo menos, a partir da data da citação para a
acção de preferência, por passar então a ser possuidor de má fé (artigo 277 n. 3 e 1271 do
CCIV66 e 481 alínea a) do CPC67). III - Assim, julgada procedente acção de preferência
intentada pelo arrendatário rural, este tem direito à restituição das rendas pagas ao preferido
depois daquela data. IV - A essa obrigação, de natureza pecuniária, acrescem juros, à taxa
legal, desde a constituição do devedor em mora (artigo 805 e 806 do CCIV66).38 Coisa diferente é o de contrato de arrendamento ter sido
declarado nulo, anulado ou ineficaz, por aí a posse do senhorio ter
37
No caso concreto isto já seria muito provavelmente
suficiente, dado que tal presunção é nitidamente ilidível
(art. 350º/nº2, Código Civil). E a ilisão, no caso
concreto, não se tornaria de difícil produção uma vez que o
facto de a Fernanda Ferrão continuar a apresentar-se,
durante todos estes anos, como proprietária exclusiva do
imóvel em questão é algo que não poderia ter sido alcançado
sem a cumplicidade de todas as sociedades imobiliárias que,
ao longo do tempo, foram sucessivamente adquirindo a
propriedade respectiva.
Crê-se, porém, que nem mesmo em geral o referido
entendimento se afigura razoável. Por um lado, por a posse
do terceiro adquirente substituído por causa da procedência
da acção de preferência ser necessariamente não titulada
(art. 1259º/nº1, Código Civil), dado que o título que
existia (compra e venda, tipicamente) deixou de o
beneficiar na justa medida em que passou a beneficiar o
preferente. Exercida com êxito a preferência, a posse do
terceiro adquirente fica desprovida de título para todos os
efeitos: logo, por força do nº2 do art. 1260º do Código
Civil deve essa posse ser tida como presumivelmente de má
fé.
estado e continuar a estar em pessoa diferente da do ex-arrendatário.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/04/2002: I - Declarada a
nulidade do arrendamento, a obrigação de restituir as rendas extingue-se, por compensação
com a obrigação de restituir o valor do uso do locado. II - É, pelo art. 289, n. 3, do C.Civil, que
se determina os casos em que o arrendatário, mediante contrato nulo, tem direito a ser
indemnizado por benfeitorias. III - A indemnização é calculada nos termos do enriquecimento
sem causa.
38
Por outro lado, não é só uma razão de índole
essencialmente formal que conduz a concluir pela atribuição
do qualificativo má fé à posse que o terceiro adquirente
manteve medio tempore. É que, como hoje é unanimemente
reconhecido 39, a boa fé subjectiva e, certamente, a boa fé
para efeitos do disposto no art. 1260º do Código Civil,
consistindo basicamente no desconhecimento de algo, obedece a
um critério objectivo de aferição expresso na ideia segundo
a qual só está de boa fé quem ignora sem culpa 40. Ora, a
preferência legal tem, como se disse, a publicidade
inerente à publicação da própria lei e, segundo o velho
aforismo, “a ignorância da lei não aproveita a ninguém”.
Por isso, deve entender-se que o terceiro com quem o
obrigado à preferência projecta contratar, não só conhece a
existência da preferência, como tem também o ónus de se
certificar que o preferente recebeu a comunicação a que
alude o nº1 do art. 416º do Código Civil e que, para poder
contratar, este a rejeitou ou a deixou caducar. Caso assim
não tenha procedido (ou seja, assumindo o risco de o
obrigado à preferência não ter cumprido a prestação a que
se encontra adstrito), o terceiro terá actuado com
suficiente falta de cuidado para se poder dizer, para
efeitos de avaliação do seu conhecimento/desconhecimento,
que está de má fé.
39 Ver, por todos, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol.I,
Almedina, Coimbra, págs. 516 a 526.40 José González, Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário, Lisboa, Quid
Juris, págs. 151/152.
39
Quer dizer que existe, pois, um fundamento material
para sustentar que, em caso de violação da preferência, o
terceiro adquirente está efectivamente de má fé.
Ora, nos termos do art. 1271º do Código Civil, “o
possuidor de má fé deve restituir os frutos que a coisa
produziu até ao termo da posse”.
2.3. Eficácia externa da obrigação.
I) Na concepção mais comum, a relação jurídica
obrigacional, vinculando no lado activo ou no lado passivo,
certas pessoas, só pode, por mera dedução lógica, produzir
efeitos entre essas mesmas pessoas e nunca para ou perante
terceiros. Daí a formulação do princípio da relatividade dos
contratos (art. 406º/nº2, Código Civil), matriz paradigmática
das relações obrigacionais.
É claro que admitindo a lei, com a amplitude com que o
faz, o chamado contrato a favor de terceiro (arts. 443º a 451º,
Código Civil), aquela concepção está essencialmente
referida à proibição de imposição a terceiros (ou seja, a
quem naquela relação não seja parte) de vinculações não
consentidas.
II) Na mesma concepção, é também por simples dedução
lógica que se afirma a impossibilidade de responsabilizar
terceiros pela violação de direito de crédito alheio.
Inexistindo, por definição, relação jurídica entre credor e
40
terceiro (por isso é que este é terceiro) não pode o mesmo
violar um direito que não contém uma pretensão dirigida
contra si: somente o devedor está em condições para tal.
Esta construção revela, todavia, uma petição de princípio:
está por demonstrar que o crédito não admita, por natureza,
a possibilidade de violação por terceiro.
III) Por isso, tem surgido modernamente uma corrente
jurisprudencial no sentido de admitir que, ao menos a
propósito da responsabilidade civil, não só é concebível,
como, sobretudo, é útil, produzir a vinculação de terceiro
à obrigação de indemnizar outrem pela violação de um seu
direito de crédito.
De facto, sucede, por vezes, que o devedor é aliciado
por terceiro para não cumprir, ou, outras vezes, que o
próprio terceiro actua com a finalidade de impedir o
cumprimento do devedor, com o intuito de lesar o credor.
Ora, uma hipótese típica, neste contexto, é justamente
aquela que ocorre quando um terceiro, sabedor da existência
de um contrato-promessa de compra e venda ou de um pacto de
preferência ou de uma preferência legal a interligar dois
outros sujeitos, celebra um negócio com aquele que estava
obrigado a transmitir a favor do outro – ou seja, com o
devedor. Situação que coloca dito devedor, perante a
contraparte, em situação de não cumprimento definitivo (ou
de cumprimento defeituoso).
41
IV) Porém, ainda na mesma concepção, somente em casos
extremos se admite a responsabilidade de terceiro pela
violação de direito de crédito alheio: quando a actuação do
terceiro seja de tal modo escandalosa que possa configurar
um caso de abuso de direito 41. É uma tese vulgar tanto na
doutrina 42 como na jurisprudência 43.
41 Julga-se, se bem se entende a construção, que se trata mais
propriamente de abuso de uma liberdade: a de contratar. Nestas
circunstâncias, só esta liberdade e não um direito subjectivo stricto
sensu poderá estar a ser objecto de exercício abusivo.42 Ver, por exemplo, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.I,
Almedina, Coimbra, 6ª edição, pág. 182.43 Cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
21/10/2003: “Mas poderá, pela não execução de um contrato, haver responsabilidade de
um terceiro cúmplice do devedor?
Esta questão coloca-se nos pactos de preferência com eficácia real ou meramente obrigacional.
A problemática desta questão prende-se com os chamados efeitos externos das obrigações.
Não obstante o preceituado no artigo 483 do Código Civil, Vaz Serra (in Obrigação de
Preferência, BMJ, pág. 76) escreve: poder-se-ia dizer que o terceiro, que concorreu
conscientemente para a violação do pacto de preferência se constitui em responsabilidade, pois
infringiu o dever de que nada se deve fazer que impeça o normal cumprimento das obrigações
contratuais, mas isso só será assim quando o terceiro não exerce um direito ou um poder legal,
o que não acontece no caso em questão, pois todas as pessoas não exceptuadas na lei podem
comprar ou vender. Só o terceiro de má fé pode ser responsável pela indemnização. Vaz Serra
continua a ensinar que: em princípio, conquanto possa parecer razoável que se admita um
direito de indemnização do credor da preferência contra o terceiro conhecedor dela, esse
direito não se afigura de aceitar, uma vez que os direitos de crédito só valem, em princípio,
contra o devedor. O credor da preferência só tratou com o devedor dela, não com o terceiro,
estranho à convenção, e a quem os direitos obrigacionais daquele não vinculam. O terceiro
nada tem a ver com o pacto de preferência. Comprando usa da sua liberdade de adquirir, que
esse pacto não limita, por lhe ser alheio. Ainda que ao comprar conhecesse o direito de
preferência, não tinha que se embaraçar com ele, pois só o devedor assumira a obrigação de
respeitar.
42
V) Ao invés, para quem considere genericamente
admissível a responsabilização civil de terceiro por lesão
de direito de crédito alheio, são condições da mesma:
1º – que esse terceiro conheça 44 a existência do
referido crédito; e
2º – a verificação dos requisitos gerais da
responsabilidade civil aquiliana (art. 483º/nº1, Código
Civil) 45.
Por sua vez Manuel de Andrade (Teoria Geral das Obrigações, 3ª edição, pág. 62)
escreve que: a responsabilidade do terceiro comprador só poderia ter justificação aceitável nos
casos em ele tenha procedido de modo particularmente escandaloso para a consciência
jurídica dominante. E o expediente técnico que a poderá legitimar em face do direito positivo
será o abuso de direito.
Parece assim que será de admitir a responsabilidade de terceiro se este adquiriu a coisa
objecto da preferência com a intenção de impedir o exercício daquele direito pelo seu titular,
pois bem se pode dizer que ele procedeu com abuso de direito – artigo 334 do Código Civil”.44 De acordo com Santos Júnior (Da responsabilidade civil de terceiro por
lesão do direito de crédito, Almedina, Coimbra, pág. 485), a simples
cognoscibilidade não será condição suficiente para fundar esta
responsabilidade.
Crê-se, no entanto, que tudo dependerá da forma como se entender
dita cognoscibilidade, na medida em que se a exigência de conhecimento
efectivo for levada à letra não haverá terceiro que não apareça a
pretextar desconhecimento. 45 Todavia,, Santos Júnior (Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do
direito de crédito, pág. 504) entende que ”pelo menos, é difícil ou
raramente configurável uma situação em que a acção interferente de
terceiro, que conheça o crédito, não se assuma como dolosa,
configurando-se como meramente negligente”.
Reconheça-se todavia que, juntando este entendimento com a
necessidade de conhecimento efectivo para que surja a responsabilidade
43
VI) Aplicando o que antecede às pretensões da Ávila
Lda, crê-se que as condições para efectivar a aludida
responsabilidade contra todos os sucessivos adquirentes (as
sociedades imobiliárias Parlamento, Espaço Chelas e
ImoParis) do prédio situado em S. Jorge de Arroios, na
Travessa Francisco Lourenço, nºs 1, 1-A e 1-B, Lisboa,
estarão preenchidas.
Na verdade, como se disse atrás, que terceiros
adquirentes conheciam a existência do direito da preferência
da Ávila Lda deduz-se:
a) por um lado, pelo facto de as preferências legais,
ao estarem dotadas da publicidade própria da lei, se
deverem considerar conhecidas por qualquer terceiro que
pretenda negociar com o obrigado à preferência 46. Ou seja,
no caso, a Parlamento – Sociedade Imobiliária Lda, a Espaço
Chelas – Sociedade Imobiliária Lda e a ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda, conheciam a existência de cada uma das
preferências instituídas a favor da Ávila Lda porque estas
são legais (art. 47º/nº1 do Regime do Arrendamento Urbano);
b) por outro lado, do facto de a Fernanda Ferrão
continuar a “passar” os recibos da rendas pagas pela Ávila
Lda mesmo depois de já não ser proprietária do local
de terceiro por violação de direito de crédito, os resultados a que
conduz esta construção não diferirão grandemente daqueles a que a
concepção tradicional chega por via da aplicação do instituto do abuso
do direito se este não for estreitamente entendido.46 A não se entender assim, não se vislumbra o que significará
pôr o Direito legislado em vigor.
44
arrendado. O que só pode ter sucedido mediante a conivência
daquelas sociedades adquirentes. Ora, o propósito de todos,
obrigados à preferência e terceiros adquirentes, não poderá
ter sido outro a não ser o de ocultar à Ávila Lda as
sucessivas vendas. E se as encobriram foi certamente por
saberem que esta era preferente;
c) e, por fim, do facto de seguramente ter havido
algures simulação de preço: ou na venda à Parlamento –
15.000.000$00 Esc., em 1994 – com preço real superior ao
declarado; ou na venda à Espaço Chelas – 110.000.000$00
Esc., em 1999 – com preço real inferior ao declarado, dado
que não é de crer, qualquer que seja a hipótese, que o
imóvel se tenha valorizado quase sete vezes em cerca de
cinco anos. Se, porém, o preço real foi inferior ao
declarado, a estipulação deste serviu manifestamente para
(tentar) afastar o exercício da preferência (o que
significa, pois, que vendedor e comprador a conheciam).
VII) No que toca aos requisitos de constituição da
obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade civil
(art. 483º/nº1, Código Civil), ao menos dos factos
enumerados em b) e c) pode seguramente inferir-se o dolo
(directo) de cada um dos terceiros adquirentes.
Os restantes quatro requisitos estarão também
preenchidos quase por decorrência (conduta voluntária, ilícita e
nexo de causalidade entre aquela e a lesão provocada), salvo o
requisito do dano, o qual não está (ainda) demonstrado.
45
O que significa que, dependendo desta demonstração, e
em vez da acção de preferência e da obtenção da consequente sub-
rogação pessoal, poderá a Ávila Lda, querendo,
responsabilizar solidariamente 47 (art. 497º, Código Civil)
não só todos os que estavam obrigados a dar-lhe preferência
na venda do imóvel em causa, como também todos os terceiros
adquirentes que contribuíram para que aqueles não tivessem
cumprido as prestações a que estavam vinculados 48.
Como a Ávila Lda ainda é, nesta altura, titular de
três direitos de preferência relativos a três vendas
sucessivas, isso indica que poderá responsabilizar: 1)
Olívia Ferrão, viúva de António Ferrão, José Ferrão,
Fernanda Ferrão Marques c.c. Luís Marques e Paulo Ferrão
(ainda que quem tenha efectivamente dado de arrendamento à
Ávila Lda tenha sido apenas a Fernanda Ferrão Marques, na
altura c.c. Luís Marques); 2) Parlamento – Sociedade
Imobiliária Lda; 3) Espaço Chelas – Sociedade Imobiliária
Lda; e, 4) ImoParis – Sociedade Imobiliária Lda.
2.4. Desconsideração da personalidade colectiva.
47 Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de
crédito, págs. 556 a 558.48 “Sendo a interferência jurídica de terceiro a forma mais comum
(…) de interferência de terceiro sobre o direito de crédito (…) as
mais das vezes ela traduz-se em o devedor incumprir ou deixar de poder
cumprir por celebrar com terceiro um contrato incompatível com o que
havia celebrado com o credor” (Santos Júnior, Da responsabilidade civil de
terceiro por lesão do direito de crédito, págs. 553/554).
46
I) Uma última palavra sobre o possível levantamento,
desconsideração ou superação do véu da personalidade
colectiva, pelo menos em relação à ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda. É matéria que não terá uma importância
transcendental, mas que poderá ter implicações, crê-se, no
mínimo, a propósito da questão da isenção do imposto
municipal de sisa (art. 11º/nº3, Código da Sisa).
II) Sendo a personalidade colectiva um (simples)
instrumento ao serviço de interesses humanos, deve, como
qualquer instrumento, ser usada apenas para certos fins,
isto é, apenas para os fins que levaram a sua utilização a
ser reconhecida ou aceite.
A personalidade jurídica das pessoas colectivas não
tem, pois, o substrato ético e moral da personalidade
jurídica das pessoas singulares 49.
O mau uso da personalidade jurídica colectiva tem sido
equacionado, na jurisprudência 50 e na doutrina, como um49 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição,
Almedina, Coimbra, págs. 11 a 14 e 35 a 37.50 Apesar de alguma existir que recusa a aplicação do instituto
da desconsideração. Neste sentido, ver, por exemplo, o Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 23/05/2002: I - Os Administradores agem nas
relações externas como mandatários da representada, sem prejuízo de a administração
funcionar como órgão da sociedade na deliberação e gestão dos actos a praticar. II - O
mandato conferido aos Administradores tem como fim primeiro a representação da sociedade
("no interesse da sociedade") e como referência o interesse dos sócios e dos trabalhadores, pelo
que o seu dever de diligência, a apreciar em cada caso concreto, se situa acima da exigência
prevista para o bónus paterfamilias. III - A responsabilidade do gerente para com os sócios e
terceiros configura-se como uma responsabilidade delitual, aplicando-se o disposto no art. 483
cc e só nestes casos é que o sócio tem acção individual relativamente aos Administradores de
47
facto susceptível de conduzir à sua desvalorização, ou
seja, à sua desconsideração.
E tal desconsideração consistirá, em traços muito
gerais, em “imputar um efeito jurídico para além do sujeito
a que ele se destine” 51.
III) Segundo uma tipificação usual, os casos de
desconsideração poderão agrupar-se da seguinte forma: confusão
forma directa - os sócios das sociedades anónimas não podem exercer acção individual directa
contra os Administradores quando não haja a possibilidade de usar da acção ut universi ou ut
singu. IV - A teoria da desconsideração ou ficção da pessoa colectiva não é aceite no nosso
Direito.
Não é esse, todavia, o entendimento jurisprudencial
predominante. Neste rumo, cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 20/02/2001: “É sabido que as pessoas colectivas constituem
centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus membros ou
às pessoas que actuam como seus órgãos. Mas é também sabido que hoje a doutrina tende a
considerar que o abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso de
direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do
visado, através duma pessoa colectiva. Quando a personalidade colectiva seja usada de modo
ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou
princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da
personalidade colectiva - Prof. Menezes Cordeiro - "O Levantamento da Personalidade
Colectiva", Almedina, 2000, pág. 122 e segs.; Pedro Cordeiro - "A Desconsideração da
Personalidade Jurídica das Sociedades Comercias", 1989, designadamente pág. 77. Não sendo
no caso necessário ir tão longe, não pode, contudo, deixar de se salientar que um direito justo
significa também uma atenção activa à "confusão" por vezes estabelecida entre a pessoa
singular dos sócios e a Sociedade em si”.51 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, pág. 11.
48
de esferas jurídicas, subcapitalização e atentado a terceiros (e abuso de
personalidade) 52.
Como é próprio das tipificações, os referidos tipos nem
esgotam todas as hipóteses possíveis ou previsíveis, nem
impedem que um determinado caso seja simultaneamente
integrável em mais de um tipo.
IV) No caso concreto, a ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda era, no momento em que comprou à Espaço
Chelas – Sociedade Imobiliária Lda (29/12/2003),
constituída pelo agora ex-marido da Fernanda Ferrão (Luís
Marques) e por um irmão da mesma (Paulo Ferrão).
Para além disso, logo em 13/04/2004, a Fernanda Ferrão
foi registada como gerente da ImoParis e a quota do Luís
Marques (que, entretanto, se havia tornado sócio único por,
na mesma data, ter registado a aquisição da quota que antes
era do Paulo Ferrão) foi cedida, em partes iguais, aos
filhos que teve com a referida Fernanda Ferrão (João Ferrão
Marques e Joana Ferrão Marques, sendo que esta última é
menor de idade).
Tudo isto conjugado, mais o facto de os recibos da
rendas pagas pela Ávila Lda continuarem a ser assinados
pela Fernanda Ferrão permitirão, muito possivelmente,
revelar um plano para defraudar tanto a Ávila Lda, por um
lado, como o Fisco, por outro. O que vale por dizer que,
tudo somado, a obtenção de uma confusão entre a esfera jurídica
da Fernanda Ferrão e a esfera jurídica da ImoParis – Sociedade52 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, págs. 115 a 124.
49
Imobiliária Lda poder-se-á revelar uma conclusão altamente
provável.
V) Não há unanimidade quanto aos requisitos de que
depende, nas referidas situações típicas, a superação da
personalidade colectiva.
Há, no entanto, uma tendência: aplicar o instituto do
abuso do direito 53 (art. 334º, Código Civil) tomando-o
como abuso da personalidade colectiva 54.
Mas pode ser mais simples do que isso, uma vez que há
casos em que se desconsidera a personalidade colectiva
procedendo-se unicamente a uma “interpretação integrada e
melhorada de normas jurídicas” 55. Em circunstâncias deste
género, está em causa (apenas) a “aplicação de diversas
normas jurídicas. Quando, particularmente por via do seu
escopo, elas” tenham “uma pretensão de aplicação absoluta
ou” visem “atingir a realidade subjacente à própria pessoa
colectiva”, aplicam-se. “O detrimento das regras de
personalidade” é “uma mera consequência daí decorrente” 56.
53 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, pág. 152.54 Pedro Cordeiro, A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades
comerciais, 2ª edição, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2005, pág.
102.55 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, pág. 152; Pedro Cordeiro, A desconsideração da personalidade jurídica
das sociedades comerciais, págs. 58 a 61. Embora este último autor entenda
que, neste feitio, já se não está a aplicar o instituto da
desconsideração.
50
VI) Crê-se que é esta última hipótese aquela que
justamente ocorre no caso da ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda.
Por um lado, as normas das quais resulta o
reconhecimento da respectiva personalidade jurídica
pressupõem uma distinção entre a sua esfera jurídica e as
esferas jurídicas da Fernanda Ferrão e dos seus filhos.
Por outro lado, a isenção de sisa que o Código da Sisa
reconhecia àqueles que exercessem a actividade de compra e
venda de imóveis e revenda dos que tivessem sido adquiridos
para esse fim, pressupunha igualmente uma separação de
esferas jurídicas entre a sociedade imobiliária
beneficiária daquela isenção e os respectivos sócios e
gerentes (uma vez que, obviamente, não são estes últimos
que exercem tal actividade).
Nada disto se verificando no caso concreto, julga-se
que, no mínimo, a personalidade da ImoParis – Sociedade
Imobiliária Lda deveria ser levantada para os efeitos
relativos à dita isenção. O que quer dizer que, no fundo,
não havia razão para a conceder pois quem dela beneficiou
não foi a sociedade imobiliária em questão mas antes os
respectivos sócios e a gerente (que, de resto, na altura,
também seria representante legal de um dos sócios) 57.56 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, pág. 129.57 É claro que esta superação da personalidade colectiva, para o
efeito que se considera, ergue o problema da legitimidade para a sua
invocação. É, no entanto, ponto assente em Direito Fiscal que as
infracções fiscais podem ser denunciadas à Administração Tributária, em
princípio, por qualquer contribuinte. E só haverá responsabilidade do
51
O caso sub judice será, por conseguinte, uma
concretização daquelas “situações em que pessoas colectivas
são usadas fora dos objectivos que levaram as normas
constituintes respectivas a estabelecê-las” 58. O que, bem
vistas as coisas, mantém analogia com o abuso de direito na
modalidade de exercício de um direito de forma
(manifestamente) contrária ao “fim social ou económico
desse direito” 59 (art. 334º, Código Civil).
3. Conclusões. 1ª – A senhoria Fernanda Ferrão, não só nunca deu a
conhecer à Ávila Lda que não era proprietária exclusiva do
local arrendado e que, a partir de certa altura, já nem
proprietária era, como, além disso, até dissimulou esse
facto;
2ª – Daqui resulta que, querendo, a Ávila Lda poderá
anular o arrendamento com fundamento em erro-vício sobre a
pessoa do declaratário provocado por dolo (omissivo) da
Fernanda Ferrão;
denunciante se este tiver actuado dolosamente58 Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e
comercial, págs. 147/148.59 Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. IV, Lisboa,
págs. 245 a 248.
52
3ª – Todas as vendas do local arrendado, realizadas
depois de a Ávila Lda ter tomado de arrendamento, foram
realizadas sem que a obrigação estabelecida pelo nº1 do
art. 416º do Código Civil tenha sido cumprida. Daí resulta
que:
– a Ávila Lda está, nesta altura, na titularidade de
três direitos de preferência que poderá exercer, conforme
eleger, através da correspondente acção (art. 1410º, Código
Civil);
– correspondentemente, terá direito à restituição das
rendas pagas até à data de celebração do contrato no qual
pretender e conseguir obter a sua sub-rogação.
4ª – Em vez de optar pelo exercício da acção de
preferência, a Ávila Lda poderá escolher a
responsabilização civil de todos os obrigados à preferência
e de todos os terceiros adquirentes com fundamento na
chamada eficácia externa da obrigação;
5ª – Poderá ainda invocar-se desconsideração da
personalidade colectiva para produzir a declaração de
ilegalidade da obtenção da isenção de sisa.
53