Tudo por Ordem, Com Exceções

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João Luís Leite Pinho Leituras da Teoria I Maria de Lurdes Morgado Sampaio [Mestrado em Teoria da Literatura] Ano letivo: 2013/14 [Docente] 1Tradução portuguesa do título de uma exposição de Nedko Solakov intitulada “All in order, with exceptions” exibida em Serralves entre Julho e Outubro de 2012. Ver anexos onde consta uma imagem do cartaz, recordou-me um cavaleiro que poderia ter sido idealizado por Eco, ou aparecido nos seus livros. TUDO POR ORDEM COM EXCEÇÕES 1 Leitura interpretativa experimental de O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco Ele diz que a escrita é uma actividade menor, uma actividade ambígua passível de interpretações. Gonçalo M. Tavares Introduzir diversas frases numa máquina que estaria próxima ao computador, e das combinações tremendamente aleatórias gerar infinitas possibilidade interpretativas, e uma sucessão de factos em cadeia todos relacionados entre si, parece ser o fio quebrado por Umberto Eco, nesta obra de avultadas convulsões teóricas, na qual à primeira vista tudo parece obedecer a uma determinada ordem, a que não escapam certas intrigas e romances, enfartados de ocultismo e seitas cabalistas, e explicações teóricas para os atos mais simples e banais como a reprodução humana; com exceções no que toca ao endeusamento do próprio leitor, na constatação de que por vezes a realidade é capaz de ser mais eficaz que a ficção ao colmatar antecipadamente os danos por ela causados. No fundo como se tudo oscilasse entre esse dois extremos opostos a realidade e a ficção, engendrando-se mutuamente, o pêndulo tanto pende para um lado, como para o outro, da esquerda para direita, de cima para baixo, de norte para sul. Tudo está no seu devido lugar, até que há um detalhe que se oculta, um segredo por desvendar, e somos lançados para novas tentativas, novas pesquisas, novas teorias. Ciclicamente e circularmente emersos e dispersos nesse complexo universo constituído por múltiplas teias de conexões históricas e fictícias, dados concretos e até teorias da conspiração. Quase tudo se apreende mas muito pouco se compreende. Numa nota preliminar ao trabalho desenvolvido por Eco nessa obra, é evidente a necessidade que tem de se afirmar, como o perito dos peritos no sentido enciclopédico do termo, no que respeita a crenças ocultas e a doutrinas históricas sobre sociedades secretas, que se esmiuçam com uma cuidada erudição, que pode não satisfazer o leitor mais superficial, que facilmente se cansa com o floreado textual e os excessivos dados pelo autor facultados, sem deixar de lado a ideia, de que na sua maioria exigem uma competência específica para serem decifrados e os leitores nem sempre estão plenamente sintonizados.

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João Luís Leite Pinho Leituras da Teoria I Maria de Lurdes Morgado Sampaio

[Mestrado em Teoria da Literatura] Ano letivo: 2013/14 [Docente]

1Tradução portuguesa do título de uma exposição de Nedko Solakov intitulada “All in order, with

exceptions” exibida em Serralves entre Julho e Outubro de 2012. Ver anexos onde consta uma imagem do

cartaz, recordou-me um cavaleiro que poderia ter sido idealizado por Eco, ou aparecido nos seus livros.

TUDO POR ORDEM

COM EXCEÇÕES1 Leitura interpretativa experimental

de O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco

Ele diz que a escrita é uma actividade menor, uma actividade ambígua passível

de interpretações. Gonçalo M. Tavares

Introduzir diversas frases numa máquina que estaria próxima ao computador, e

das combinações tremendamente aleatórias gerar infinitas possibilidade interpretativas,

e uma sucessão de factos em cadeia todos relacionados entre si, parece ser o fio

quebrado por Umberto Eco, nesta obra de avultadas convulsões teóricas, na qual à

primeira vista tudo parece obedecer a uma determinada ordem, a que não escapam

certas intrigas e romances, enfartados de ocultismo e seitas cabalistas, e explicações

teóricas para os atos mais simples e banais como a reprodução humana; com exceções

no que toca ao endeusamento do próprio leitor, na constatação de que por vezes a

realidade é capaz de ser mais eficaz que a ficção ao colmatar antecipadamente os danos

por ela causados.

No fundo como se tudo oscilasse entre esse dois extremos opostos a realidade e

a ficção, engendrando-se mutuamente, o pêndulo tanto pende para um lado, como para o

outro, da esquerda para direita, de cima para baixo, de norte para sul. Tudo está no seu

devido lugar, até que há um detalhe que se oculta, um segredo por desvendar, e somos

lançados para novas tentativas, novas pesquisas, novas teorias. Ciclicamente e

circularmente emersos e dispersos nesse complexo universo constituído por múltiplas

teias de conexões históricas e fictícias, dados concretos e até teorias da conspiração.

Quase tudo se apreende mas muito pouco se compreende.

Numa nota preliminar ao trabalho desenvolvido por Eco nessa obra, é evidente a

necessidade que tem de se afirmar, como o perito dos peritos no sentido enciclopédico

do termo, no que respeita a crenças ocultas e a doutrinas históricas sobre sociedades

secretas, que se esmiuçam com uma cuidada erudição, que pode não satisfazer o leitor

mais superficial, que facilmente se cansa com o floreado textual e os excessivos dados

pelo autor facultados, sem deixar de lado a ideia, de que na sua maioria exigem uma

competência específica para serem decifrados e os leitores nem sempre estão

plenamente sintonizados.

JOÃO PINHO Tudo por ordem, com Exceções. JANEIRO 2014

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Esse detalhe aparentemente banal, pode ser o motivo principal que conduz

muitas pessoas a fugirem desta obra a sete pés. De facto é indubitável a preocupação no

que concerne à problemática da interpretação, mesmo imbuída na própria matéria

textual se não foi o autor, digamos que foi a linguagem que criou esse efeito de eco.

[Eco, 1932: p.72], esses mecanismos acabam por passar despercebidos, justamente para

causar essa sensação de paranoia, experimentada pelo leitor mas impulsionada pela obra.

Integrando a premissa: Estas pessoas têm prazer intenso ao descobri que a sua chave

abriu mais uma fechadura, que mais uma mensagem cifrada cedeu às suas insinuações

e revelou seus segredos. [ibidem: p.108]

Outro dos dados interessantes ao qual a semiótica econiana não é alheia é a

possibilidade de significação social, ou seja, a aceitabilidade de uma mensagem

depende de sua relevância dentro de uma enciclopédia cultural compartilhada pelos

indivíduos de uma sociedade. Esse caso poderia simplificadamente ser traduzido pela

aceitação do livro no seio das comunidades mais letradas sendo desprestigiado pelas

menos informadas, ou pelas forças tentadoras que atiram os protagonistas do romance

para diversas discussões em torno de personalidades históricas, e indivíduos cultos, que

revelam segredos a fim de descobrir uma verdade última, que se crê ser a maior de todas.

Invenção que percorre o romance de lés-a-lés, aliás o Plano nada mais é que um

devaneio articulatório e conspiratório dessa consciência da impossibilidade de alcançar

o conhecimento absoluto, projetado como a Torre de Babel ou corporalizado na figura

do Graal. Quando a religião cede, a arte toma o seu lugar. O Plano pode-se inventá-lo,

metáfora do inconhecível. Até uma conspiração humana pode preencher o vazio.

Questionando a nossa capacidade racional em detrimento de termos a

necessidade de enfrentar algo grandioso e oculto. Esse poder de intervir no que à partida

não conseguimos compreender responde às preces inexplicáveis pela ciência resultantes

dessa inoperância mística. Tentativa de achar uma explicação racional para tudo sai

defraudada, no momento em que a realidade ultrapassa a ficção e engendra os meios

extremamente complexos de “verosimilhança” para que o que se passe fique preservado

para a posteridade. Prevalecem os acontecimentos ainda que irrisórios, concretos,

espacial e temporalmente marcados que atestam uma fidelidade sem precedentes ao

enredo da narrativa. Entre a história misteriosa de uma produção textual e o curso

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incontrolável de suas interpretações futuras, o texto enquanto tal representa uma

presença confortável, o ponto ao qual nos agarramos. [ibidem:p.104]

E é desse texto que podem surgir múltiplas interpretações já que afinal um texto

é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas interconexões.

[ibidem:p.45] Ou como o próprio autor alude em O Pêndulo de Foucault: quando se

quer descobrir conexões descobrem-se sempre, em toda a parte e no meio de tudo, o

mundo explode numa rede, num turbilhão de parentescos e tudo remonta a tudo, tudo

explica tudo...

Em certa medida o problema da sobreinterpretação ou das “interpretações

aberrantes” reside exatamente aí nesse infinito. Colmatar os espaços em branco de uma

forma tão difusa e aberta acarreta sempre uma margem ilimitada de possibilidades que

podem denegrir o sentido inicial do texto ou até atraiçoar a própria mensagem a

transmitir. Nesse descampado propositado as escolhas mais duras recaem sempre sobre

o leitor: Abstenho-me de impor uma escolha entre elas não porque não queira escolher,

mas porque a tarefa de um texto criativo é mostrar a pluralidade contraditória de suas

conclusões, deixando os leitores livres para escolher – ou para decidir que não há

escolha possível. Neste sentido, um texto criativo é sempre uma Obra Aberta.

[ibidem:p.165]; que não se deve cingir a uma leitura corrida, às escuras do texto mas

acender a luz para iluminar os seus significados mais ocultos… Ler textos é uma

questão de lê-los à luz de outros textos, pessoas, obsessões, informações, ou o que for, e

depois ver o que acontece. [ibidem:p.124] Isso poderá elucidar quanto ao carácter

subversivo e aparentemente espontâneo do seu arriscado pensamento quando em

páginas posteriores afirma que pelo menos no mundo acadêmico, com as coisas como

são, suspeito que um pouco de paranoia seja essencial para a apreciação correta das

coisas. [ibidem:p.134] Foi através dessa facada final, que pude consolidar a minha

apreciação e reflexão em torno do trabalho de Eco, ele próprio diz que compreende as

leituras que os críticos fazem da sua obra, respeitando-as, mas tecendo rasgados elogios

talhados de desconstruções, ou simbólicos desvios que os levem a meditar, ou a

repensar as suas premissas iniciais. Esse jogo de diálogo interno “o texto consigo

mesmo” e externo “com outros textos” capta magistralmente um dos pressupostos

dialéticos de uma Obra Aberta, como assim a entende o autor.

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Permito-me agora evocar uma passagem de um dos últimos escritos de Gonçalo

M. Tavares para a segunda edição da revista GRANTA:

Toda a interpretação é uma forma de poder. Olho para isto e digo isto significa aquilo. E

olho depois para aquilo que acabei de colocar no mundo através da minha interpretação

e chamo a esse aquilo, isto. E isto ou seja, o antigo aquilo, passa a ser um objeto

passível de interpretação. E eu interpreto. Continuo, portanto.

Mecanismo aparentemente involuntário mas bastante eficaz sobretudo quando se

trata de abordar temáticas ligadas por fios ínfimos como as questões herméticas

analisadas por Umberto Eco, essa transferência do outrora “aquilo” a um “isto” explica-

se segundo as palavras do mago italiano pela versatilidade da nossa língua, quanto mais

é ambígua e polivalente, e quanto mais usa símbolos e metáforas, tanto mais é

particularmente adequada para nomear a Unidade onde ocorre a coincidência de

opostos. [ibidem:p.37] Repesco exemplificando com uma citação essa ideia que

considero estar demasiado explícita quando a uma determinada altura do livro se pode

ler: Um fármaco – diziam os gregos – veneno e medicamento. Não me serve de muito

usar uma leitura meramente dicotómica aqui nem ser excessivamente rígido com o texto,

mas importa recordar que de facto, qualquer fármaco, texto ou num sentido mais amplo,

objeto seja este qual for, serve-nos, mediante a utilidade que lhe atribuímos ou o modo

como interagimos com ele. O medicamento serve à partida um propósito bom, a cura. O

veneno (ou o excesso de medicamento) serve um mau, a morte. Se transpusermos essa

conceção essencialista para a interpretação de um texto, somos conduzidos a inferir que

qualquer texto, pode ser alvo de um excesso de interpretação ou de uma carência de

interpretação, mas a verdade é que não é possível definir na sua completude a natureza

amoral ou não desse objeto, sem que existam marcas exteriores a este, que o valorem

como tal. E esse conceito também não será muito relevante para uma interpretação

correta do texto. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura

sobre a intenção do texto. Que pode ser por um lado fruto das expetativas do leitor

depositadas no texto, ou por outro estar subjacente num sistema de significação original.

Daí todo o processo interpretativo ser circular e repetitivo até se alcançar o devido

resultado. Valendo a pena salvaguardar que é por isso que o círculo e o movimento

rotativo e o retorno cíclico são fundamentais em todos os cultos e em todos os ritos. (Cf.

Figura 2, nos anexos). A essa afirmação não é contraproducente a seguinte passagem

logo no início do Discurso Sagrado de Hermes, no Corpus Hermeticum:

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E viu-se o céu em sete círculos e os deuses apareceram sobre a forma de astros com

todas suas constelações; a natureza do alto foi ajustada segundo suas articulações com

os deuses que continha em si. E o círculo envolvente movimenta-se circularmente no ar,

veiculado no seu curso circular pelo sopro divino.

Para um leitor minimamente atento e inteligente, é absurda a “para-leitura” e a

descolagem de certos fragmentos de outros textos que Umberto Eco finge ou sabe (até

um certo ponto) dominar, para nutrir as suas obras de um requinte esotérico formidável.

É inconcebível ler uma obra como O Pêndulo de Foucault sem uma noção histórica das

teorias herméticas, e da história (ainda que efabulada) de algumas das mais importantes

sociedades secretas. Não sei se esse pressuposto é totalmente válido ou deveras infalível.

Duvido até da minha própria interpretação.

Ainda há quem sugira a abertura de um livro que esteja mais próximo de si, na

página 45, e a primeira linha que se ler, resume o estado da sua vida amorosa. Vejamos

o que acontece se eu quiser considerar o livro de Umberto Eco o meu visado:

“camponeses lascivos que nem cabras”. Não creio ser necessário se quer comentar o

aberrante e paranoico momento que fiz questão de evocar, para provar que as

interpretações são sempre subjetivas, e implicam um acordo tácito entre o leitor, o texto

e em última análise o autor. Se fosse o mesmo livro escrito noutra língua, ou até mesmo

uma outra edição em língua portuguesa seguramente que obteria um resultado

diferenciado. Daí se tratar também de uma forma de poder, ainda que mediado. Eu não

posso fazer o texto dizer aquilo que ele não diz. Mas situando-me na referida página

desta edição a primeira frase que consigo ler é essa, e isso poderia hipoteticamente

desencadear em mim uma série de reflexões, pensamentos abstratos, explicações,

ilações e precipitadas conclusões. Todavia é esse género de interpretações que Eco

condena determinantemente. A obra não pode ser entendida como uma cratera que cada

um explora à sua maneira, e tenta reconstituir os fragmentos a seu livre e espontâneo

proveito. Se tanto seria uma no sentido em que se tenta aprofundar o saber através dela,

escavando com uma pá, mas sem contudo conseguir chegar ao núcleo ao cerne. Caso

essa tentativa fosse bem-sucedida não seria literatura. Seria outra coisa qualquer telúrica.

Por mais imbricada que (essa dimensão) também estivesse à própria obra, esta

nunca iria revelar os seus mais profundos segredos. Ela sugere e os leitores são seres

sugestionáveis. Não a leem numa tábua rasa, nem evitam que esta de alguma forma os

afete para o bem e para o mal. Condicionados pela sensibilidade e pela sua

predisposição, uma leitura nunca é a mesma, e uma interpretação, por implicar esse

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processo de mastigação para o interior, ainda menos, ela deglute sempre mais do que

aquilo que devia, e por norma não sofre de azia, está sempre apta a descobrir mais,

desvendar um detalhe subliminar muito bem ocultado enfim, deambulações paranoides.

De tal modo Eco considera que basta falar de algo para esse algo passar a

existir. Isso permite-lhe duas coisas, por um lado atestar a fidelidade dos seus relatos,

que têm geralmente um fundamento histórico antigo (medieval), por outro garantir que

o leitor possa construir nexos relevantes sobre feitos que o autor assegura terem

acontecido. Algo que implica um labor pessoal exigente pois o visível é apenas uma

pequena parte do amplo rastro invisível contido em todas as coisas. Nesse sentido, a

linguagem e em particular a semiótica, desempenham um papel fulcral nessas

construções abstratas de sentido e significação. O leitor nunca se afasta do texto e por

norma tende a seguir à risca as orientações facultadas pelo autor. Que pode à primeira

vista parecer uma voz imparcial, mas na realidade não é, deixando escapar sempre um

resquício de subjetividade. A missão do leitor é então deparar-se com o texto, e

procedendo a uma “análise seletiva” escolher a informação que mais lhe importa reter, e

ir avançando, mediante o poder (ou os conhecimentos que detiver). O espanto do leitor,

e a admiração do autor, conformam-se quando o primeiro descobre alguma mensagem

subliminar no texto, da qual o próprio autor não tinha conscientemente se apercebido,

ou nem se quer imaginado tal conexão a priori. Umberto Eco e Gonçalo M. Tavares

chamam atenção para esses deslizes potenciados pela linguagem, por algum acaso

imprevisto ou equívoco, como a paginação, o número de imagens, que sugerem algo de

premeditado, mas que ultrapassa num primeiro momento a consciência dos autores

empíricos para emergir como uma das descobertas dos leitores compenetrados. Por

exemplo o nome de uma determinada personagem evocar uma figura histórica

reconhecida, as páginas/imagens serem 100 e não 99. Pergunto-me como se deveriam

designar essas fortuitas ilações, descobertas à margem da obra, mas apontando para algo

de indecifrável ou oculto no seu interior. Estariam essas ordenadas na obra de forma a

serem posteriormente decifradas, ou corresponderiam apenas a uma das suas variadas

facetas propositadamente disfarçadas. Agora ao ler no penúltimo capítulo, ele estava

finalmente a levar a bom termo a Grande Obra. Consiga perceber que esta só se

concretiza plenamente no momento derradeiro, no término de uma vida. Serão todas as

verdades reveladas, na hora final? Em linhas subsequentes a ilação de Casaubon vai

precisamente nesse sentido quando diz que é preciso que o autor morra para que o

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leitor se dê conta da sua verdade. Mas qual verdade? A sua, ou a do autor?

Possivelmente ambas e nenhuma, sem exceções. O autor estatui algo como verdadeiro,

e só dá por validado o seu postulado, quando já se terá reformado, ou quando percebe de

forma mais dura que a sua ideia implicava uma criação, um conhecimento mais

desenvolvido, e não estando isso ao seu alcance, sucumbe sem saber a sua verdade. O

leitor passivamente acolhe a verdade fornecida pelo autor, mas não a questiona a não ser

que seja arguto a tal ponto de levantar dúvidas que depois da morte do autor, jamais

poderão obter respostas, a não ser que estejam contempladas no objeto, textual ou não,

em que o autor as terá referenciado. A verdade acaba sendo legitimada pela morte, mas

não se traduz como algo palpável, ou surtindo os efeitos desejados. Assim ela existe

apenas num plano abstrato, ou se crê, ou não se crê, parece simples. Mas nada me

impede então de considerar que Casaubon estaria sobre o efeito de anfetaminas no ritual

fatal que balançou Belbo até à morte, sendo isso apenas mais um delírio exaltado da sua

mente perturbada pelo uso dessas substâncias. Pode ser a verdade em que eu gostaria de

acreditar, mas infelizmente não existe no texto nenhum indício que prove que Casaubon

usasse drogas ou estivesse sedado naquele momento, ou noutro qualquer em outro

período da obra. Atirando por terra a minha teoria, que não deixa de ser isso mesmo,

uma dedução, uma interpretação aberrante, exagerada, que facilitaria ou complicaria o

engagement com a dita obra. Há uma convenção pouco tácita entre o autor e o leitor

segundo a qual o primeiro se intitula doente e aceita o segundo como enfermeiro.

[Lautréamont,2009:275] Obscura nota que sucumbiria a minha tentativa, e arrumaria

finalmente a medicina interpretativa, à qual me tenho sujeitado. Se o doente é o autor, a

obra é a receita para a cura, ou uma mera descrição das suas maleitas? O leitor é o

enfermeiro pois só ele consegue efetivar a obra, sorvê-la e administrá-la. Não sei até que

ponto ela lhe servirá de provisória cura, mas estou deveras ciente que ele não se ralaria

minimamente com o estado clínico do autor. Avanço no sentido de excetuar a

interpretação a um ritual terapêutico, como já havia mencionado as doses nem sempre

são as mais adequadas.

Querelas à parte, torna-se veemente encarar a interpretação como uma forma de

poder e ao mesmo tempo de compromisso. Esta consiste em supor (inferir) algo como

explicação de um dado acontecimento, e verificar se essa suposição se encaixa naquele

contexto específico. Perante o poder da ousadia, o compromisso que a este se alia na

verificação desse ato inusitado de interpretação.

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Baixemos agora as armas e tomemos a esse respeito uma perentória decisão.

Sempre existirão várias versões, um manancial repleto de interpretações, porque

existem zonas de indeterminação no interior da obra, que abrem caminho a esses

novelos que cada leitor poderá e nunca cessará de desenrolar. Esta obra em particular

está abastada de fios emaranhados entre si, gritantes aos dedos do leitor, para os puxar, e

tornar viável uma interpretação que até então, parecia estar fora de contexto e invisível.

Isso não significa que toda e qualquer interpretação sejam aceitáveis. Como em tudo,

existem exceções, e o meu esforço foi no sentido de plasmar algumas demasiado

forçadas, que vinham não esclarecer a compreensão da obra, mas estabelecer nexos com

aspetos, realidades, contextos exteriores a ela. Depois de curvas e contracurvas espero

não ter causado demasiadas tonturas.

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Bibliografia

Eco, Umberto (1932) Interpretação e superinterpretação, tradução MF., revisão da tradução e texto final

Monica Stahel, 2ª edição, 2005, São Paulo, Martins Fontes Editora.

____________(1988) O Pêndulo de Foucault, tradução de José Colaço Barreiros, edição de 2008, (sic)

idea y creación editorial, s.l. [Impresso em Espanha]

Lautréamont, Conde de ● Isidore Ducasse (2009) Os Cantos de Maldoror Poesias I e II, tradução Manuel

de Freitas, prefácio Silvana Rodrigues Lopes. Lisboa, Antígona.

Lopes, Marcos Carvalho (2010) “Umberto Eco: da “Obra Aberta” para “Os Limites da Interpretação” ”

Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana, Ano 1,

Número 4. Disponível em URL:

[http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/04/5_lopes.pdf]

Solakov, Nedko Tudo por Ordem, com Excepções. [Documento da exposição] Fundação de Serralves.

Disponível em URL: [http://www.serralves.pt/documentos/exposicoes/NedkoSolakov_Serralves_PT.pdf]

Tavares, Gonçalo M. (2013) “Breves notas sobre o poder”, GRANTA Portugal, Poder, Número 2, Lisboa,

Edições Tinta-da-china. [pp. 285-296]

Trismegisto, Hermes Corpus Hermeticum, Brasil, Instituto Michael. Disponível em URL:

[http://www.astrologiahumana.com/corpushermeticumport.pdf]

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ANEXOS

Figura 1: Cartaz da exposição “All in Order, with Exceptions” de Nedko

Solakov.

Figura 2: Representação de três círculos que se intercetam fundando a

essência do Homem, constituída por espírito, alma e corpo.