Tradução: "Do fim da escravidão ao fim do Apartheid: rumo a um rompimento radical na história...

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Jacques Depelchin Do fim da escravidão ao fim do Apartheid: rumo a um rompimento radical na história africana? 1 Original: “From the end of slavery to the end of Apartheid: toward a radical break in African History?”, in: DEPELCHIN, Jacques. Silences in african history: Between the syndromes of discovery and abolition. Dar Es Salaam (Tanzania): Mkuki na Nyota Publishers, 2004. Tradução: Tomaz Amorim Izabel Érica Alves Åshild Svensson “O Terceiro Mundo surge hoje diante da Europa como uma massa colossal cujo projeto deve ser o de tentar resolver os problemas aos quais essa mesma Europa não soube oferecer soluções. Mas, então, convém não falar em rendimento, não falar em intensificação, não falar em ritmos. Não, não se trata de retorno à Natureza. Trata-se, de modo bastante concreto, de não impelir os homens em direções que os mutilam, de não impor ao cérebro ritmos que rapidamente o obliteram e desarranjam. Não é necessário, a pretexto de recuperar o perdido, pôr o homem de pernas para o ar, arrancá-lo de si mesmo, de sua intimidade, quebrantá-lo, matá-lo. Não, não queremos alcançar ninguém. Queremos, isto sim, marchar o tempo todo, noite e dia, em companhia do homem, de todos os homens. Não se trata de alongar a caravana, porque então cada fila percebe apenas a que a precede, e os homens que não se reconhecem mais encontram-se cada vez menos, falam-se cada vez menos”. Os Condenados da Terra. Frantz Fanon. (Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 274). O que está em jogo? Durante o processo de desmantelamento do Apartheid na África do Sul, esperanças e expectativas de uma 1 Gostaria de agradecer as seguintes pessoas por terem lido, comentado e criticado os esboços deste trabalho: Bridgei o'Laughlin, Ernest Wamba-dia-Wamba, Olabiyi Yai, Pauline Wynter, Paul Harvey, Ula Iaylor, Lawrence Levine, Dona Jones, Rakesh Bandhari. Eles não são, contudo, responsáveis por essa versão final.

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Jacques DepelchinDo fim da escravidão ao fim do Apartheid: rumo a umrompimento radical na história africana?1

Original: “From the end of slavery to the end of Apartheid:toward a radical break in African History?”, in: DEPELCHIN,Jacques. Silences in african history: Between the syndromes of discovery andabolition. Dar Es Salaam (Tanzania): Mkuki na NyotaPublishers, 2004. Tradução: Tomaz Amorim IzabelÉrica Alves Åshild Svensson

“O Terceiro Mundo surge hoje diante da Europa como uma massa colossalcujo projeto deve ser o de tentar resolver os problemas aos quais essa

mesma Europa não soube oferecer soluções.Mas, então, convém não falar em rendimento, não falar em

intensificação, não falar em ritmos. Não, não se trata de retorno àNatureza. Trata-se, de modo bastante concreto, de não impelir os

homens em direções que os mutilam, de não impor ao cérebro ritmos querapidamente o obliteram e desarranjam. Não é necessário, a pretexto derecuperar o perdido, pôr o homem de pernas para o ar, arrancá-lo de si

mesmo, de sua intimidade, quebrantá-lo, matá-lo.Não, não queremos alcançar ninguém. Queremos, isto sim, marchar o

tempo todo, noite e dia, em companhia do homem, de todos os homens.Não se trata de alongar a caravana, porque então cada fila percebe

apenas a que a precede, e os homens que não se reconhecem maisencontram-se cada vez menos, falam-se cada vez menos”.

Os Condenados da Terra. Frantz Fanon. (Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1968, p. 274).

O que está em jogo?

Durante o processo de desmantelamento do Apartheid naÁfrica do Sul, esperanças e expectativas de uma

1 Gostaria de agradecer as seguintes pessoas por terem lido, comentadoe criticado os esboços deste trabalho: Bridgei o'Laughlin, ErnestWamba-dia-Wamba, Olabiyi Yai, Pauline Wynter, Paul Harvey, Ula Iaylor,Lawrence Levine, Dona Jones, Rakesh Bandhari. Eles não são, contudo,responsáveis por essa versão final.

transformação radical chegaram ao ponto em que uma dasquestões inevitáveis é levantada: a transição do Apartheidpara o pós-Apartheid produzirá resultados diferentesdaqueles de outros países africanos, de Gana ao Zimbábue,passando pela Argélia e Moçambique2? As mudanças quepoderiam acontecer na África do Sul são tão importantes quenão seria sem propósito fazer perguntas e verificações dotipo que vai além da história da África do Sul e envolve ahistória inteira dos africanos e seu lugar na reprodução dosistema capitalista como o conhecemos hoje.

As lições vindas de transições comparáveis no passadonão garantem grande otimismo. Na verdade, alguns foramrápidos (rápidos demais?) em prever que o que iriaacontecer na África do Sul nos próximos anos faria osAcordos de Lancaster House, que levaram à independência doZimbábue, parecerem muito mais radicais, senãocompletamente revolucionários (Southern Africa Political and EconomicMonthly, Special Issue on CODESA, Fevereiro de 1992). Alguns,no entanto, podem rebater e dizer que as condições são tãodiferentes hoje, que é difícil prever o que acontecerá naÁfrica do Sul. Outros, ainda, especialmente os economistas(Gelb 1991), estão discutindo a transição através dopressuposto de que ela só pode ser feita sem dizer nada quepossa assustar os donos do capital3. Esta última abordagem,com algumas exceções, dominou a transição dos domínioscoloniais para domínio pós-colonial, de Gana ao Zimbábue.Portanto, embora possa ser facilmente previsto que oApartheid, como foi conhecido na África do Sul, serádesmantelado, pode-se também ver um processo de colocar emseu lugar novas estruturas de repressão e exploração quenão são específicas da África do Sul. O assim chamadomercado global (ou aldeia global) está sendo construído2 Uma versão levemente diferente deste texto foi preparada para osimpósio de memorial a Ruth First na Western Cape University (Agosto17-17, 1992), África do Sul, celebrando o décimo aniversário de suamorte por uma carta-bomba no Centro de Estudos Africanos, naUniversidade de Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique (Agosto 17-18,1992). A eleição presidencial ainda não tinha ocorrido. Atransferência de poder político não significa necessariamente atransformação das relações sociais e econômicas profundamenteenraizadas.3 Exceções notáveis a esta tendência podem ser encontradas (em 1992),entre outros lugares, nos debates e artigos que apareceram no Work inProgess (por exemplo, Nos. 77, 78) e no South African Labour Bulletin.

(com regras e regulações) de uma forma que lembra muitomais uma versão modernizada do Apartheid, do que umatentativa de criar um rompimento completo com ele. Antesque tal rompimento aconteça, a África do Sul bem que poderáexperienciar um neo-Apartheid, da mesma maneira que ascolônias europeias passaram por um processo deneocolonialismo4.

Para compreender melhor o que está em jogo, pode serútil reexaminar e comparar (de uma perspectiva estrutural)as transições históricas da escravidão e aquela que estáocorrendo neste momento na África do Sul. Em termospolíticos, quando as mudanças na África da escravidão,passando pelo domínio colonial, até o fim do Apartheid, sãoconsideradas, o balanço final pode ser visto por algunscomo (em última análise) positivo. No entanto, em termossocioeconômicos, esta imagem muda quando os donos docapital tendem a compensar suas perdas. Mudanças políticasforam conduzidas como válvulas de escape para que adoutrina do sistema socioeconômico pudesse permanecer emseu lugar. O objetivo crucial foi assegurar que os donos docapital continuassem a determinar os parâmetros de seurelacionamento com o trabalho. De tal perspectiva, ahistória daquele relacionamento poderia ser visto como a deuma modernização infindável na qual as relações estruturaisde exploração não mudaram, mas as suas formas sim. Noentanto, o valor da transição atual - da qual se poderiadizer: “O Apartheid morreu, vida longa ao Apartheid!” -fornece a possibilidade de uma reexaminação crítica de comohistoriadores contribuíram com a reprodução de silênciosque foram primeiro gerados por aqueles que mais lucraram dosistema. Dito de outra forma, o que a escravidão atlânticainaugurou foi o começo de um processo de escravização paraum sistema socioeconômico que aumentou e intensificou oalcance de suas garras, mesmo que os aspectos formais e4 Ver o artigo de Susan George “Un apartheid planétaire (1993). Sobrecomo Apartheid está sendo modernizado na França, ver Sami Naïr, La lettreà Charles Pasqua de la part de ceux qui ne sont pas bien nés (Paris: Seuil, 1994). Semusar a palavra, Serge Latouche descreve o mesmo fenômeno numa escalaglobal em La Planète des naufragés, (Paris: La Dicouverte, 1991). Embora,desta vez, muito mais do que sob o “Apartheid clássico”, o poder seráconcentrado nas mãos de corporações globais e, inicialmente, com menosvias para recursos políticos. Ver Richard Barnet e John Cavanagh, GlobalDreams: Imperial Corporations and the New World Order (New York: Simon andSchuster, 1994).

visíveis daquela escravização tenham se transformado e setornado menos visíveis. Comparado com os tempos daescravidão atlântica, a situação piorou porque aescravização agora aprisionou aqueles que deveriam estar nocontrole do processo. Os donos do capital se tornaramprisioneiros dos ciclos de acumulação e reprodução docapital de uma forma e em um grau que os donos de escravosnão estavam. A submissão às regras ditadas pelo capital nofim do século XX provavelmente é mais total do que nunca. Amelhor prova empírica a esta tendência pode ser observada apartir da crescente consciência da capacidade destrutiva dosistema. Isto é particularmente evidente para aqueles quetêm estado na linha de frente do movimento ambientalista.

Como Toni Morrison mostra em Beloved, re-lembrar5 ossessenta milhões de des-membrados deve ser cultivadoindependente da violência/dor/silêncio porque apenas umatal “rememoração” pode criar a base para erradicar ador/medo/silêncio. A história deve ter a ver com memória, ecomo ela se conecta com o passado, o presente e o futuro.Ela deve ter a ver com como e quem organiza e prepara aordem na qual se conectam todos esses diferentes períodosde tempo, para quem, por quem e para quais objetivosindividuais e políticos. A história, portanto, não pode sersingularmente reduzida a nenhum destes anteriores, mas osistema capitalista de dominação atual tentou padronizar os“comos” e “quems” de se pensar a história. A partir de suauniversalidade pressuposta, o capitalismo ou, maisprecisamente, seus mais ricos promotores, parecem estaragora à beira de proclamar a imortalidade do sistema.

Não obstante, por trás do triunfalismo ostentador,vociferante e regozijante dos zeladores do sistema, há apreocupação de que o colapso do socialismo de estadoatualmente existente foi tão grave que transformou o solono qual o capitalismo se sustenta em areia movediça. Emoutras palavras, com o desaparecimento de seus antagonistasmortais, os capitalistas finalmente podem começar a verque, agora, eles mesmos é que podem ser seus pioresinimigos. Durante transições anteriores, o sistema sempre

5 Nota da tradução: o autor se utiliza de um trocadilho impossível em português. As palavras “remember” (relembrar) e “dismembered” (desmembrados) ambas possuem o radical “member” que significa membro. Assim, re-lembrar em inglês também é literalmente re-membrar.

conseguiu se reformar alijando suas partes apodrecidas: aescravidão, o comércio de escravos, o domínio colonial e,mais recentemente, o Apartheid. O que se deve fazer quandoas partes apodrecidas se foram, mas o apodrecimentocontinua a se alastrar?

A similaridade com as transições anteriores está nofato de que alguns - muito poucos - dos beneficiários dosistema estão dispostos a reconhecer que, mesmo dentro deseus próprios termos de referência (análise de custo ebenefício?), a manutenção do sistema é muito dispendiosa(Frum 1994). Este é o tipo de conclusão que levou ao fim deeras anteriores do capitalismo. Quando os donos de escravosaceitaram que a escravidão era insustentável, a escravidãofoi condenada definitivamente. O mesmo com o regimecolonial e também com o Apartheid.

Abolição da escravidão e a criação da síndromeabolicionista6

A historiografia da abolição da escravidão tem sidodominada pelo modo abolicionista (ou filosofista). Istoiria se repetir depois durante a era da descolonização eestá se repetindo agora quando o Apartheid é desmanteladona África do Sul, mas modernizado para sua aplicaçãoglobal7. O que todos estes modos tem em comum é que as

6 A síndrome abolicionista é uma manifestação da síndrome dadescoberta. Escravos tinham se revoltado contra a instituição muitotempo antes que os abolicionistas (não escravos) tivessem pedido seufim e ficado consagrados na literatura como aqueles que acabaram com aescravidão. A lição: escravos não poderiam ter “inventado” o fim daescravidão. Estas síndromes também são produto das relações de poder,e são mantidas vivas através destas relações de poder. A revista Slaveryand Abolition exemplifica como os historiadores preferiam a perspectivados donos de escravos, ao invés de, por exemplo, revoltas de escravosou resistência à escravidão. A abolição não abrange as revoltas deescravos, mas estas abrangem a primeira e, mais importante, de acordocom os termos daqueles que foram escravizados e lutaram para acabarcom ela.7 Abolicionismo está sendo usado aqui num sentido amplo, não levando emconta a distinção entre, por exemplo, William Lloyd Garrison queadvogava pela emancipação total, completa e imediata, sem compensação,e alguém como Jefferson que desejava vagamente alguma emancipaçãodefinitiva e com compensação. O primeiro seria chamado “abolicionista”e o último “emancipacionista”. No entanto, para os fins deste artigoos dois seriam abolicionistas. Free Soil, Free Labor, Free Men: The Ideology of the

forças que têm lucrado com a escravidão, o domínio coloniale o Apartheid, querem manter seu controle. No processo detentar manter seu controle, eles também parecem ter impostonos historiadores as questões a serem postas. O principalaqui não é se é possível demonstrar e documentar como oshistoriadores conseguiram suas pistas a partir das forçasque guiaram esses processos. O que deve ser enfrentado épor que algumas questões são preferíveis ao invés deoutras, e, quando as questões adequadas são perguntadas,por que as respostas sempre tendem a cair em réplicas pré-condicionadas. Esta é a abordagem dos historiadores e elatem que ser enfrentada por historiadores.

Então, da escravidão, passando pela descolonização,até o fim do Apartheid, pode-se dizer que a historiografiadominante tem se afinado com o modo abolicionista. Quer sedizer com isso que a escravidão é vista como o problema -uma aberração - mas não o sistema socioeconômico que estavasendo construído sobre ela. Portanto, enquanto se tornouaceitável condenar a escravidão, o capitalismo por si sónunca foi questionado. A escravidão foi/é condenada comomoralmente inaceitável (assim como o Apartheid). Algunstambém poderiam argumentar sobre seu valor não-econômico.Quaisquer que sejam os argumentos, a condenação raramenteserá redigida nos termos que as vítimas do sistema poderiamter concebido. A história das vítimas, conceitualizada eproduzida por aqueles que nunca foram vítimas, deve servista com suspeita. Ela será, na melhor das hipóteses,paternalista e condescendente, e, na pior, deliberadamentedesviará a atenção das questões que poderiam enfraquecer ou

Repúblican Party Before the Civil War do Eric Foner (New York: Oxford UniversityPress, 1970) mostra como os parâmetros daqueles que controlam o podereconômico e politico também podem limitar os parâmetros e questões doshistoriadores. Como os historiadores podem se libertar de taislimitações é mostrado, entre outros, nos trabalhos de Eugene D.Genovese (1976, 11979), Merton L. Dillon (1990), Jaqueline Jones(1985), Sylvia R. Frey (1991), e Barabara J. Fields (1982). Mas isto ésomente um resumo de uma amostra de literatura que tem explodido eque, em parte, presta contas ao espanto daqueles que continuam a acharque a história pode ser escrita apenas por quem controlava a palavraescrita e os arquivos. Como Grethchen Gerzina (1995:2) apontou no quediz respeito a uma outra figura emblemática do movimentoabolicionista, Granville Sharp, advogar por justiça racial nuncasignificou exigir igualdade racial, algo que até hoje continua a serproblemático.

desafiar a posição dominante. Conforme a mudança avança,aqueles que controlam o poder econômico e político sãoforçados a mudar: sua estratégia será deslocar a linha dedemarcação entre eles e aqueles que estão lutando pormudanças. Da perspectiva deles, a melhor maneira deproteger seus privilégios é compartilhá-los com o mínimopossível de outros, apenas o bastante para garantir algumaestabilidade política e econômica.

Os limites do modo abolicionista são revelados damelhor maneira quando se examina a posição tomada porThomas Jefferson no assunto. Ele se viu como umabolicionista, mas também ansiava por “uma emancipaçãototal, e isto posto, na ordem dos eventos que seja com oconsentimento dos senhores, ao invés de por extirpação” (Nash1990, 17; ênfase adicionada).

No caso da escravidão, David Brion Davis concluiu que“um consenso geral emergiu nas três décadas depois de 1760de que ‘a escravidão negra era uma anomalia histórica quepoderia sobreviver por algum tempo apenas nas sociedades deplantation, onde se tornou o modo de produção principal’”.

Perturbado pelas vacilações históricas, Nash, uma dasvozes radicais neste assunto, pergunta: “Por que houve taisrecuos em relação à escravidão na Convenção Constitucionalem 1787 e novamente na última década do século XVIII?”(1990, 25). Vale a pena citar integralmente como eleexplica as falhas dos historiadores em lidar com a questãoem outros termos que não aqueles adotados pelos líderesrevolucionários que cederam:

“Assim, eles [os historiadores] tomaram como pressuposto que aescravidão não poderia ter sido abolida e justificaram o que nãoaconteceu. Suas explicações exalam inevitabilidade, quase sempre emescrita histórica que usa argumentos colocados por aqueles cujos errosestão sendo desculpados e virtualmente nunca por aqueles vitimadospelos erros. (1990, 26; ênfase no original)".

A inevitabilidade da posição dos que cederam vinha dainterpretação dada à posição militante dos estados maisresistentes: Geórgia e Carolina do Sul. O principalobjetivo dos líderes “revolucionários” era forjar umanação, e a ameaça da Geórgia e da Carolina do Sul foi obastante para oferecer espaço para ceder. O papel daminoria em forçar a maioria a ceder também está sendo

repetido hoje na África do Sul, mesmo que os líderes damaioria estejam se inclinando para trás para mostrar que aminoria também está cedendo. A questão é: nos termos dequem? Além disso, em termos econômicos, a “minoria” nãoestá em uma posição subserviente, pois seu controle decapital lhes permite ditar seus termos de transição. Nashsugere que um exame mais próximo da situação na Geórgia ena Carolina do Sul indicaria que estes dois estados estavamem uma posição bastante precária e que “tinham umanecessidade muito maior de um governo federal forte do queos outros estados precisavam deles” (1990, 33).

Depois de mostrar o quão inapropriadamente oshistoriadores lidaram com o papel da Geórgia e da Carolinado Sul no enfraquecimento das posições do abolicionistas,Nash foca na questão corolária: o que os estados do Nortefazem em relação à escravidão? O Norte pode ter gritadoalto e claro contra a escravidão, mas se realmente tratoude apressar sua morte, isso foi outra história. Eleexemplifica seu argumento destacando o comportamentocontraditório de proeminentes indivíduos do Norte que nãoconseguiam conciliar seu chamado ao fim da escravidão com amanutenção de seus próprios escravos. Nash cita um novo-inglês que descreve fielmente a fonte da contradição: “Aescravidão era ‘um daqueles males que será muito difícil decorrigir. De todas as Reformas, as mais difíceis sãoaquelas que amadurecem onde as Raízes crescem como seestivessem nos bolsos dos homens”’ (Duncan J. McLeod,citado em Nash 1990, 33)8. Em outras palavras, os custoseconômicos de manutenção da escravidão sofriam resistênciapor uma minoria que se tornou cada vez menor quando aresistência por escravos, personalidades motivadasreligiosa ou moralmente, e mudanças tecnológicas fizeramcom que a manutenção daquela forma de força detrabalho/relacionamento de capital se tornasse cada vezmais difícil de defender econômica e politicamente.  O quenunca esteve em dúvida foi a força do capital. A questãocrucial sempre se resumiu a como preservar, no processodestas transições, seus privilégios9.

8 Ver também A. Leon Higginbotham, In the matter of Color, Race and the AmericanLegal Process. The Colonial Period (New York: Oxford University Press, 1978),que documenta a velocidade lenta, se não recalcitrante, para aabolição do escravidão.

Escravidão na África: borrando as fases do sistemacapitalista

A abordagem dominante sobre a escravidão dentro daÁfrica por historiadores africanistas, em particular entreaqueles que focaram na escravidão, é a de dissociá-la daescravidão atlântica de tal forma que ela ganha umahistória que parece ter poucas conexões com o tráfico deescravos atlântico. O exercício de abstrair a escravidãoafricana do tráfico de escravos e da expansão do sistemacapitalista dá base para especulações comparativas10.Também não é diferente daqueles que delimitaram o estudo daviolência na África do Sul nos termos daqueles que, naverdade, foram os responsáveis pelo seu tipo mais letal.

Miers e Roberts (1988) parecem sugerir que a escrivãodoméstica na África tinha sua própria dinâmica dereprodução, completamente separada de sua formaindustrializada que foi introduzida com a invasão e a trocade escravos através do Oceano Atlântico. Tal distinção éindefensável dado o fato de que a escravidão doméstica

9 No seu Water from the Rock: Black Resistance in a Revolutionary Age (Princeton, NJ:Princeton University Press, 1991), Sylvia R. Frey mostra como oradicalismo anti-escravidão específico dos próprios escravos forçoudonos de escravos a descobrirem os horrores do sistema que eles tinhamcriado, mas também como, segundo um pesquisador, donos de escravospressionaram instituições mediadoras com as igrejas a se retirarem desua “aberta oposição à escravidão” (James Oakes, The Ruling Race: A History ofthe American Slaveholders [New York: Alfred A. Knopf, 1982], p. 108, comocitado por Sylvia Frey, 1991:243).10 Do qual Way of Death: Mechant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830(1998) de J.C. Miller é exemplar. E esta falsificação que primeirolevou Philip D. Curtin (1969) a focar no jogo dos números, e depois P.Lovejoy (1983) a reivindicar que o Califado de Sokoto foi o maiorcativeiro de escravos da historia do mundo. Um dos críticos maispersistentes e aguçado dessas abordagens tem sido J. Inikori (1992a,1992v, 1992c). O esforço comum por detrás das demografias dominantesda área acadêmica do comércio de escravos é por fim semelhante àquelespesquisadores que têm tentado discutir (para baixo) os números dejudeus que foram assassinados durante a Segunda Guerra Mundial. ComoUmberto Eco tem apontado (a respeito dos judeus), o problema não é quenão vale a pena ter dados mais precisos, mas “o que é intolerável équando algo que poderia ter sido um trabalho de pesquisa, não tem maissentido e valor, e se torna uma mensagem sugerindo que “se um poucomenos de judeus do que nós achamos tivessem sido mortos, não teriahavido crime” (citação de Umberto Eco, “Tolerance and theintolerable,” Index on Censorship, ½ 1994, p.53).

acabou se tornando parte das partes subordinadas eexploradas que abasteceram a expansão do capitalismo. Acomparação, portanto, não é válida pois está comparandoduas entidades que, na realidade, cresceram para se tornarparte de um mundo. Tal visão do fim da escravidão domésticana África retira sua plausibilidade da visão ficcionalizadada história colonial na África da qual se diz que começa naépoca em que os poderes europeus a esculpiram entre si.

Evidentemente, a base sobre a qual a escravidão naÁfrica foi reproduzida não poderia ser outra coisa quedoméstica. No entanto, a natureza e o caráter daquela basedoméstica foi transformada pela escravidão atlântica muitoantes dos poderes europeus decidirem ocupar o continente. Éesta transformação que é omitida ou minimizada. Isto foiposteriormente reforçado pela introdução da problemáticaantropológica dos tempos coloniais que buscaram congelar ospovos coloniais em uma “presente histórico” abstrato paraque eles pudessem ser olhados “como eles eram antes docontato europeu”.

A tomada militar e política do continente criou umambiente intelectual que levou depois à dissecação de povosem categorias e conceitos semelhante a canibalizaçãointelectual. Dividir e governar não foi apenas um lemapolítico e militar: começou como receita de como digeriracademicamente sociedades estrangeiras11. Os conceitos ecategorias eram para os cientistas sociais o que estradas,rodovias e portos eram para administradores e homens denegócios - puxadores e alças para facilitar o objetivo maisimportante: hegemonia imperial.

Como Nash mesmo mostrou, acadêmicos que conseguem veratravés da síndrome abolicionista podem não conseguir, elesmesmos, necessariamente se desprender de seus legadoshistóricos. Um dos ingredientes mais salientes do modoabolicionista é que argumentos sobre a abolição (daescravidão, do domínio colonial, do Apartheid) ficam maisconvincentes na medida em que nos distanciamos do que tevede ser abolido. Por exemplo, não é por acidente quecríticas à Antropologia ou ao domínio colonial sedesenvolveram depois do fim do domínio colonial. O outro

11 No seu Logiques Métisses (1990), Jean-Loup Amselle mantém bem sua posiçãoe é muito mais crítico da problemática antropológica do que ele estavadisposto a ser mais cedo em Au coeur de l´ethnie (com E. M´Bokolo, 1985).

ingrediente importante do modo colonialista é que osargumentos têm mais chance de ganhar proeminência se elesvierem de intelectuais cujas práticas os identificamclaramente como “membros”. O melhor e mais recente exemplodisso é a recepção relativamente calorosa do Black Athenade Martin Bernal em comparação com a hostilidade implacávele condescendente que cercou a aparição de qualquer trabalhode Cheikh Anta Diop entre egiptólogos europeus12.

“O Apartheid está morrendo na África do Sul. Longavida ao Apartheid”

Por toda sua crítica a historiadores anteriores, Nash,no entanto, está aquém de si mesmo. Em seu ponto de vista,aqueles que queriam o fim da escravidão se confrontaram comduas questões, econômica e social, respectivamente:

1. Como os donos de escravo seriam compensados?2. Como os escravos libertos se encaixariam no tecido

social da nova nação?

A primeira, segundo Nash, só poderia ter sido tratadarealmente se houvesse a disposição de se fazer sacrifícioseconômicos, e, a segunda teria dependido de “uma habilidadede vislumbrar uma sociedade republicana verdadeiramentebirracial” (Nash 1990, 35).

Se o fim da escravidão é apresentado como uma perdaeconômica para o dono do escravo, é lógico imaginar que,automaticamente, isto significaria um ganho econômico paraos escravos? Se a escravidão terminasse porque ela eraexploratória demais, não se deveria então esperar que aquestão da compensação econômica também tivesse sidolevantada em relação a eles13? Ao invés disso, o problemada escravidão é visto como de adaptação social ao seu novostatus. Uma das razões pelas quais Nash fica aquém de si

12 O mais recente sendo um artigo de revisão de W. MacGaffey no Journal ofAfrican History, 32 (1991), p. 515-519 intitulado “Who owns Egypt”. Vertambém a descrição das reações de R. Mauny a uma das palestras de C.A. Diop, The Cultural Unity of Black África (1988:231-2).13 Como as lutas pelos Direitos Civis dos anos sessenta mostrariam, acompensação econômica nunca se materializou, e mesmo se tivesse, elafoi claramente planejada como meio de subjugação ao invés de promoçãode emancipação verdadeira.

mesmo surge da maneira ambivalente com que ele lida comescravos e donos de escravos. Os últimos falam diretamentepor si mesmos, enquanto que os primeiros precisam que sefale por eles, mesmo que eles possam ter suas própriasideias sobre como gostariam que as mudanças ocorressem.

Em todas estas transições, a questão central a serperguntada historicamente por aqueles que sofreramobviamente não era a mesma que vinha daqueles que haviam,diretamente ou não, lucrado com o sistema, que tenderiam acolocar questões que minimizavam seus aspectos maisabomináveis. Para os anteriores, o desejo de fundo eratrazer uma transformação radical e eles formulariam asquestão de forma a trazer à tona a inaceitabilidade dosistema. Claro, isto será rebatido por aqueles queargumentam que em virtude do mundo em que eles viviam,escravos não poderiam abrigar uma visão tão radical quantoa de liberdade total (John Edward Mason 1990, 431).Baseando seu argumento em um incidente do século XIX, entreum detentor de escravos sul-africano e um escravo que foiliberado - Mey -, Mason conclui:

“Quando Mey acusou Hendrik Albertus de ter injusta e ilegalmentelhe espancado, foi, certamente, um ato de resistência contra oespancamento. Mas foi uma forma curiosa de resistência. Ela nãoenvolveu atingir diretamente seu senhor ou tentar escapar, por umtempo ou para sempre, das amarras da escravidão. Ela foi uma formalegal e institucionalizada de resistência, dirigida especificamente aouso inapropriado do chicote por Hendrik Albertus.   O esforço de Meyfoi uma tentativa de melhorar sua vida como um escravo, não de acabarcom a servidão. Ao recorrer ao Protetor, ele não esperava ser liberto,já que algo assim, em circunstâncias semelhantes, nunca haviaacontecido antes. Ele buscava uma medida de vingança e alguma garantiade que, no futuro, seu senhor respeitaria a economia moral do açoite”.

Há pelo menos dois problemas principais neste tipo dereconstrução do que se passava na mente dos escravos. Aprimeira, de forma interessante, é reconhecida por Masonquando ele admite que há muito pouco “conhecido sobre osfatos materiais da vida de Mey. Não há registro de suafamília, se ele tinha uma, de seu sobrenome, do nome ou doendereço do homem que o empregou depois que ele foiliberto, ou sobre sua morte (1990, 426). Portanto, oargumento de Mason se baseia em informações coletadas

inteiramente do Livro de Registros do Protetor dos Escravospara Cape Town.

O segundo problema está relacionado à questão dasfontes, mas também ao problema sobre como se reconstrói econceitualiza a consciência de um membro das “classes maisdistantes” (Mason 1990, 426, citando Lady Anne Barnard).Para um único Mey que esteve apto a, digamos, formular suaresposta com alguma chance de sobrevivência física, quantosnão viveram e, mais seriamente, quantos estavam aptos aarticular aquilo contra o que eles realmente se colocavam?Mason procura um meio termo afirmando que “o comportamentode escravos não pode ‘ser encaixado nitidamente emcategorias como acomodação e resistência’” (Mason 1990,431, citando R. J. Scott).

Mason reconhece todos os problemas relacionados aosvários filtros que borraram o “Mey que existe no Livro deRegistros”. O exercício de Mason de reconstruir amentalidade da narrativa é comparável ao que osantropólogos fizeram posteriormente durante a ocupaçãocolonial. Também é comparável, de forma geral, a respostamasculina às narrativas femininas de estrupo, indo daafirmação extrema de que mulheres estupradas pediram porisso (culpar a vítima) até variações da pressuposição deque as vítimas (quase por definição) não são capazes deentender por que foram estupradas. Isto não significa quehomens são por definição incapazes de compreender o estuprocomo as vítimas o compreendem. O argumento ao redor de umacompreensão histórica do estupro pode ser formulado deforma igualmente forte, mesmo sem o uso de gêneros, mascertamente é possível declarar que a maior parte dasvítimas de estupro são mulheres e a maior parte dostransgressores são homens. Os parâmetros dentro dos quaisMason escolhe interpretar as ações de Mey - sem se utilizarde muitas provas - também lembra as reações doscolonizadores às lutas por independência nacional que forammais ou menos assim: os nativos são muito primitivos paraentender conceitos de liberdade e liberação. Se eles nãotivessem lido sobre estas ideias em Rousseau e Voltaire,eles nem estariam gritando por independência. Outravariação desta linha era de atribuir o desejo de luta porindependência ou a “agitadores externos” ou a alguns poucosdescontentes.

Todas as extrapolações são reconstruídas dentro dalógica da visão do mundo dominante que pressupõe, pordefinição, que ele é o único capaz de avançar rumo aexplicação racional. A visão de mundo do escravo só podeser aquela de um escravo, independente da visão de mundoque ele ou ela podem ter tido antes de serem escravizadosjá que, nos é dito, “a escravidão, para a maior parte dosescravos, era inescapável” (Mason 1990 428). A outra visão,fornecida pelos filósofos do Iluminismo - “o que significaliberdade e liberação?” -, se torna, portanto, parte doarsenal da descoberta. A menos que tenha sido articuladae/ou teorizada por uma voz da visão dominante (ou uma assimaceita pelos guardiões dos portões), uma ideia, um conceitoou mesmo uma história simplesmente não existe.

A reconstrução de Mason fornece uma outra ilustraçãoútil sobre como os paradigmas e os silêncios paradigmáticossão construídos na história africana. Um sistema destrutivocomo a escravidão não poderia senão silenciar a todos osseus oponentes. Aquele que sobreviveram e foramescravizados conheciam todos os seus custos, assim como avítima do estupro sabe o que significou ser violentada.Como vítimas de estupro, os escravos não viviam em umasociedade “amigável a escravos”. Em ambos os casos, elesestão/estavam operando em um ambiente que é/era hostil àsdenúncias e aos ataques contra o sistema.

Por que não se pode contemplar a possibilidade de queMey execrou não apenas a escravidão, mas também tudo o queestava junto com ela? Já que, por falta de evidências,somos forçados a especular, por que não se pode especularque as mudanças que Mey queria não iam, na verdade, paraalém da escravidão? Mesmo que Mey tenha nascido comoescravo, certamente ele precisa também ter sabido que,antes dele, ele teve ancestrais que viveram em um mundodiferente onde a terra não era propriedade de pessoasbrancas. “Além da escravidão” não pode ser pressuposto comouma representação apenas, como é obviamente sugerido porMason, do mundo de acordo com os donos de escravos. Verdadeque, para escravos que foram enviados de navio para o outrolado do Oceano Atlântico, a inelutabilidade da escravidãoera muito mais real do que na África do Sul; mas mesmo lá,nós conhecemos insurreições que levaram às comunidadesquilombolas. É, portanto, falacioso prosseguir com a noção,

como Mason sugere, de que a libertação da escravidão sópoderia vir dos próprios donos de escravos. O fato de quefugas alternativas à libertação eram extremamente difíceisde alcançar não as fez impossíveis.

Para alguns pode parecer que esta crítica está apenasfazendo falsas polarizações. Não está porque busca chamaratenção para uma prática profundamente incorporada entrehistoriadores que lidam com o capitalismo tomando por certaa inevitabilidade do seu triunfo. Através desta lógica eargumento autocentrados, o capitalismo é apresentado como omelhor sistema possível já concebido por seres humanos14.Uma vez que se toma esta inevitabilidade como dada,historiadores falharão em levantar questões ou pensar emrespostas para as questões que não tomam estainevitabilidade como dada.

Durante a descolonização, as vozes mais radicaisavisam que não era apenas o colonialismo que estava emjulgamento, mas o capitalismo15. Vozes semelhantes foramouvidas na África do Sul, mas, assim como durante atransição do domínio colonial ao pós-colonial, apreocupação principal do governo no poder é forçar seusplanos nos adversários. O governo no poder colocará seusadversários em um processo de peneira no fim do qual“líderes responsáveis” surgirão para negociar a transição.Em outras palavras, há limites para a universalidadeideológica a liberdade, especialmente se seus advogadosbuscam romper com as amarras socioeconômicas e não apenasda dominação política.

Sobre os limites e restrições do Iluminismo

Como já foi apontado por acadêmicos que analisaram oimpacto da Revolução Francesa na escravidão e nocolonialismo, um discurso contra o tráfico de escravos não

14 Para uma boa discussão da questão da inevitabilidade ver La résistiblefatalité de l´histoire (Paris: J.-E. Hallier; A. Michel, 1982) de PierreRaymond.15 Além das vozes usuais de Fanon, Cabral, Rodney, deveria se notartambém as menos conhecidas de Osende Afana (1966), Ruben Um Nyobe e osdiversos resistentes anônimos (na África, assim como fora dela) quetalvez não conhecessem o monstro pelo nome, mas que vivenciaram emprimeira mão seus poderes letais. Ver Fredi Perlman, Against His-story,Against Leviathan! (Detroit: Black and Red Press, 1983).

coincidia necessariamente com um discurso antiescravista e,finalmente, um discurso antiescravista não necessariamentese traduzia em um discurso anticolonialista. Na verdade,como regra geral, os filósofos do Iluminismo queargumentaram contra o tráfico de escravos e a escravidão(com a possível exceção de Rousseau e Diderot) só o fizeramporque estas práticas desonravam a civilização europeia(Bénot 1981, 1987). O único pensador (mas, também, ele nãopertencia aos iluministas do século XVII) que manteve umaposição relativamente de princípio foi Las Casas, cujaoposição à escravidão significou oposição ao colonialismo(Galeano 1985; Orhant 1991)16.

O anticolonialismo dos filósofos do Iluminismo não foibaseado em um princípio de oposição, mas contra as maneirascom que o colonialismo estava sendo realizado (Guy Vermée1990, 40-41). Para eles, a ideologia da liberdade universalfomentada por pessoas como Diderot foi entendida de forma asignificar a disseminação desta ideologia sob tutelagem daEuropa.

Obstáculos à transição radical também vieram damanutenção de um conceito de lei e ordem enraizado na ordemantiga. Para Condorcet, por exemplo, seus argumentosentusiasmados pela abolição da escravidão sãodramaticamente moderados por sua insistência nasmodalidades: a transição tem que ser ordenada. Bem, alguémpoderia perguntar, ordenada por quem? (Joseph Jurt 1990,49).

O problema do fim da escravidão também é de seu modode representação; para desviar a atenção da questãoprincipal que é: se a história - das lutas - é pensada eescrita da perspectiva daqueles que lutaram para mudá-laradicalmente ou daqueles que lutaram para manter suadominação. Então, um proeminente historiador do sul dosEstados Unidos como C. Vann Woodward, olhando para Harper’sFerry, um dos conflitos mais sangrentos daquele período,que levou à Guerra Civil, o descreve como representante de

16 É interessante notar que a aproximação de Las Casas com os índiosfoi histórica e não etnográfica, como bem pontuado por A. Pagden em“Ilus et Factum: Text and Experience in the Writings og Bartolomé deLas Casas,” Representations, #33 (Winter 1991), p.157. Tem sido argumentadoque a atuação exemplar de Las Casas não foi totalmente pura, já queele mostrou maior sensitividade à condição da população nativo-americana do que com a dos escravos da África.

um “confronto entre duas Américas, cada uma lutando pelodomínio. Cada um dos sistemas antagônicos tem seu próprioconjunto de interesses, instituições e valores e, na longaperspectiva de quase um século, o confronto entre elesassume aspectos típicos de outras lutas históricas porpoder” (Woodward 1970, 221). Ele não está se referindo aescravos contra donos de escravos, mas, em uma aproximaçãopaternalista típica, aos lados ideológicos acerca dodestino dos escravos que estavam sendo debatidos. Osescravos são reduzidos a expectadores.

De forma interessante, esta perspectiva é semelhante àmaneira na qual as lutas pelo fim do domínio colonial eApartheid são subsumidas aos “maiores perigos dahumanidade”, i.e., o confronto ideológico entre comunismo ecapitalismo. Em ambos os casos, força-se o confronto dosprincipais protagonistas (escravo contra dono de escravos;colonizadores contra colonizados; brancos contra não-brancos na África do Sul) a um pano de fundo em que ele ésubstituído com o que é percebido como uma crise maior. Osabolicionistas eram a favor da abolição do trabalhoescravo, mas não pela abolição da exploração do trabalhopelo capital, que é contra o que os escravos mais radicaislutavam. Cavar um abismo entre duas América, uma contra aoutra, significava que o capitalismo ele mesmo não seriacolocado em questão já que a questão se transformou em comohumanizá-lo. Porque a atenção estava toda concentrada naGuerra Civil, a batalha entre escravos e donos de escravosfoi ignorada e o comércio de escravos nunca foi reconhecidocomo base para o sucesso do capitalismo.

Transições, lei e ordem e definições de violência

Durante os últimos anos do Apartheid oficial na Áfricado Sul, um fenômeno parecido com a 'autonomia da escravidão(doméstica) africana' mencionado acima pode ser observadona transformação da violência do Apartheid como 'violênciade negros contra negros'. Uma vez que o fenômeno criouraízes, e foi alimentado pelo Apartheid, ele pôde tomarvida própria. Portanto, as peculiaridades do sistema doApartheid foram analisadas não muito nos termos danecessidade de se desenraizar a fonte de sua brutalização edesumanização, mas nos termos de por um fim à brutalização

e desumanização. Por exemplo, quando os Frontline Statesbuscaram descrever o Apartheid como o Nazismo dos anosoitenta foram em geral ignorados, e nos casos em que não oforam, alguns acadêmicos se apressaram em apontar que assemelhanças que poderia haver entre o sistema de Apartheide o fascismo hitlerista não eram suficientes para servircomo base de comparação.

As razões para se descrever o Apartheid como o Nazismodos anos oitenta foram diretamente relacionadas aosesforços dos Líderes do Frontline States para pôr um fim aosofrimento dos povos da região. Foi uma tentativa parafazer os aliados ocidentais do regime do Apartheidentenderem que a magnitude da destruição realmente seassemelhava ao que aconteceu no regime de Hitler. Foi umatentativa de provocar uma resposta moral e política. Opressuposto oculto era de que se a comparação fosse válida,então a resposta lógica dos líderes Ocidentais deveria serditada pelos princípios estabelecidos nos Julgamentos deNuremberg17. No entanto, esses princípios podem ser lidosde formas bastante diferentes, principalmente setransformações de relações de poder estão em jogo; porém,para os poderes ocidentais, os resultados dos Julgamentosde Nuremberg só provam que eles são os únicos capazes dedistinguir entre o bem e o mal. Eles não se deram conta deque os julgamentos paradoxalmente abrem um precedenteperigoso: os ganhadores nunca podem estar errados.

A resposta dos estados do Ocidente confirmaram um doscânones da história colonial: apenas o poder dominante temo direito de decidir o que tem aplicabilidade universal e oque não tem. Mesmo que um dos objetivos dos Julgamentos deNuremberg tenham sido prevenir qualquer recorrência doHolocausto, aqueles que assinaram os Princípios deNuremberg, pode se dizer, foram os primeiros a violar estesprincípios quando os Estados Unidos lançaram a bombaatômica sobre Hiroshima e combinaram a este crime olançamento de outra sobre Nagasaki.

Em seu artigo bastante inteligente não fosse aseguinte falha, Allister Sparks pode ter enganado seusleitores sem intenção quando aplaudiu o governo17 Isso aconteceu especialmente entre 1981 e 1984. Em Moçambique foramproduzidos cartazes com a legenda: “Apartheid é crime”. Curiosamente,um acadêmico sul-africano branco que visitou Moçambique na épocaalegou não entender o cartaz.

estadunidense por ter prezado os princípios de Nuremberg aocompensar os japoneses que foram cativos em campos deconcentração durante a Segunda Guerra (Sparks 1992). Ogoverno estadunidense nunca chegou perto de pedirdesculpas, muito menos de reparar e recompensar a terraroubada dos indígenas ou a escravização de milhões deafricanos. Sparks estava correto em sua crítica a como oslíderes do Apartheid fugiram da 'confissão e reparação',porém reproduziu este mesmo pensamento quando falhou emcompreender que o passado estadunidense vai mais longe doque a Segunda Guerra Mundial. Começa com uma constituiçãoescrita por donos de escravos, por pessoas que pegaramemprestado o modelo de constituição das pessoas cuja terratinham roubaram (Mander 1991).

Não é difícil de imaginar por que De Klerk nãoalimentaria uma situação parecida com os Julgamentos deNuremberg, já que corria o risco de erodir qualquer ar delegitimidade que o governo ainda tinha. O equivalenteestadunidense ao que Allister Sparks estava cobrando dogoverno sul-africano deveria ter sido confissão e reparaçãoaos indígenas norte-americanos e afro-americanos, e, entreoutras coisas, a abertura dos arquivos da CIA às vítimasdas guerras patrocinadas pelos Estados Unidos em paísesestrangeiros18.

Em seu ensaio 'Na face humana da violência' (1992),Lauren Segal abordou a violência em albergues da mesmaforma com que antropólogos, durante o regime colonial,abordaram os confrontos violentos que precediamimediatamente a independência. Segal tentou abordar aviolência de maneira “objetiva”, porém assim como osantropólogos que estudavam a vida nas aldeias sob regimecolonial falharam em conectar as situações descritas nasaldeias à situação colonial, Segal abstrai a violência do18 “Razões de estado” continuam sendo os meios mais poderosos desilenciamento, mas até aqui, um tratamento diferente pode ocorrerdependendo da classe e origem nacional dos requerentes, como o casodos assassinos de um cidadão americano e o marido guatemalo de umcidadão americano nas mãos de um coronel guatemalo empregado pela CIAmostrou (New York Times, primeira semana de Abril 1994). Claramente, paraa reparação ser significativa e duradoura para as vítimas e/oudescendentes, seu critério teria que ser definido e determinado daperspectiva deles e em termos que evitem as armadilhas de recompensasrelacionadas aos sinais atualmente dominantes e aos selos da riquezaeconômica e financeira.

contexto histórico do Apartheid, cuja premissa primeira éfomentar o confronto violento entre vítimas do Apartheid. Édifícil aceitar a premissa de que quanto mais detalhadassão as provas coletadas daqueles diretamente envolvidos coma violência, melhor se entenderá a violência. No estudoantropológico da violência tem se dado mais atenção àsvítimas da violência do que àqueles que estão na raiz dela.Por que foi mais fácil se chocar com a violência praticadanas cidades do que com as atividades 'não violentas'daqueles que não pegaram fisicamente em armas? Será que oestudo da violência está sendo deturpada por que é maisfácil estudar suas vítimas que seus planejadores einstigadores? Tal aceitação das situações que sãonaturalizadas automaticamente significa que cientistassociais não terão o trabalho de fazer as perguntasnecessárias. E afastar-se dessas perguntas só pode servisto como reação óbvia de autoproteção daqueles que estãono poder.

Violência e a definição de poder: transição para oque?

A definição da violência carrega consigo a definiçãode poder. Mike Morris e Doug Hindson (1992) buscaram traçara origem da violência dos anos oitenta na África do Sul atéo desaparecimento do Estado de Apartheid: “'As raízes daviolência devem ser buscadas não na implementação dasformas do Apartheid de controle social, mas no colapsodessas formas; não na continuada manutenção do Apartheid,mas na tentativa de se institucionalizar uma nova basesocial na fundação de uma sociedade racialmente dividida'(1992, 45-6). Essa avaliação está apenas parcialmentecorreta. É verdade que no processo de redesenhar as linhasde batalha, o racismo continuará a ser um ingredientepoderoso, mas o que foi reafirmado na África do Sul é quejá que raça não deveria ser mais o critério dominante,classe o será. Morris e Hindson, após declarar sua oposiçãoà 'reconstrução que acentua distinções de classe',concordaram em sua discussão com as soluções nas quais taisdivisões de classe terão de ser aceitas.

Em seu discurso, há um eco do modo abolicionista tãobem criticado por Nash: é mais fácil enxergar a história

através dos olhos dos prováveis vitimizadores do que dasvítimas. Além disso, há uma semelhança mais profunda: asdistinções de classe e raça que foram forjadas sob aescravidão e o Apartheid tiveram de ser mantidas. Somenteos aspectos mais ofensivos tiveram de ser removidos. Aquestão mais espinhosa de como se deve abordar e reparar asdivisões e distinções criadas e aprofundadas pelo Apartheidfoi debatida entre parâmetros construídos de forma abstrataao invés de se basear nas demandas específicas feitas pelosgrupos que mais sofreram com isso.

Apesar de Morris e Hindson tentarem distinguir suaposição da dos neoliberais, eles chegaram bastante próximosquando sugeriram uma abordagem que 'reconhece a existênciacontinuada de contradições de classe mas que tenta conteros excessos do mercado/sistema de propriedade privada, emvez de eliminá-los' (1992, 56). Em outras palavras, estavamdispostos à mudança, mas as mudanças não poderiam ser tãodrásticas a ponto de ameaçar ou causar dano ao mundo deprivilégios acumulados. Como poderiam fazer um chamado àdesracialização quando estavam chamando ao mesmo tempo pelaimplementação de impostos e sistemas de gastos que, em seuspontos de vista, iriam reduzir 'diferenças residenciais declasse, sem modificar radicalmente as configurações residenciaisexistentes' (Morris e Hindson 1992, 57; grifo do autor)?19

Essa é uma reformulação da síndrome abolicionista naqual os produtores da riqueza não tiveram a possibilidadede especificarem como queriam ser recompensados. Umaabordagem alternativa começaria da premissa de que um dospossíveis resultados de todo o processo será o infortúniode um sistema que se reproduziu através da constantereforma e reestruturação dos mecanismos de repressão eexploração. Essa abordagem, contudo, poderia somente serarticulada a partir de uma posição que não vê o poderestatal como objetivo final. A força de tal posicionamentoviria da recusa em entrar no terreno onde as regras

19 Para uma boa resposta a Morris e Hindson, ver Rok Ajulu, “PoliticalViolence in South África: A Rejoinder to Morris and Hindson”, Review ofAfrican Political Economy, 55, (1992):67-83, onde o escritor aponta como osgovernantes do Apartheid procuravam prejudicar a transição seconvertendo subitamente à privatização depois de 40 anos de políticaintervencionista intensa. Ver também M. Szeftel, “Manoeuvres of War inSouth Africa”, Review of African Political Economy, 51, (1991).

continuam a ser escritas pelos beneficiados do atualsistema socioeconômico dominante.

A linha de argumento propagada por Morris e Hindsontinha claramente como objetivo demonstrar que as forçasprogressistas da África do Sul tinham algo de razoável:“Devemos partir do ponto de que, até certo grau, a divisãode classe tomará o lugar da divisão de raça, em vez de teras divisões de raça substituídas por uma sociedade semclasses” (1992, 57). Admitindo isso ou não, estavamengajados na mesma tarefa que todas as forçasnacionalistas, de Nkrumah a Mugabe, estavam sendo forçadosmostrar que Mandela e sua equipe seriam líderesresponsáveis. E devemos entender responsabilidade emrelação aos líderes anteriores (com quem a transição aopoder foi negociada) e não à coalizão de forças que oshavia empurrado às linhas de frente da batalha. Já em 1961,Fanon analisou esse mesmo processo em que intelectuaisnativos trocavam seus papéis de líderes dos miseráveis pelode intermediários e pacificadores20.

Até o começo do processo de negociação, havia indíciosna África do Sul de que a relação de forças havia mudado deforma tão dramática que erros anteriores seriam evitados.Em histórias passadas de libertação nacional, sempre vinhaum momento quando o movimento de libertação tinha quedeixar de construir uma poder alternativo para tomar opoder. Em todos os casos, esse é o momento mais difícil dequalquer transição, porque apesar dos argumentoscontrários, isso levou à transformação da luta e, claro, àtransformação do estado colonial. Resumindo, o movimento delibertação foi desde o chamado pelo desmantelamento doestado colonial ou de Apartheid até a negociação da formaque iria tomar controle de um estado que ainda eracolonial. Não importa o quanto isso foi racionalizado, écontraditório: leva à tomada de controle de estruturasalienadas e alienantes de poderes econômicos,administrativos e políticos que não poderiam se nãodesacelerar automaticamente, ou, em alguns casos, parar oureverter o processo de transformação.

Em outras palavras, é a mesma questão que Lêninabordou em Estado e Revolução. Em quase todos os casos daÁfrica pós-colonial (uma exceção possível seria a Eritreia)

20 Especialmente o capítulo “Concerning Violence” (1991:35-106).

a revolução foi ditada de dentro do estado, o que é análogoa pensar que um navio possa ser construído na água.

Um dos melhores exemplos da impossibilidade de seconstruir uma revolução de dentro de um estado é o caso deMoçambique, onde, entre 1975 (ano da independência depoisde 10 anos de luta armada) e 1980, a Frente de Libertaçãode Moçambique continuava a chamar pela destruição do estadocolonial mesmo com o governo dependendo de estruturas eprocedimentos administrativos (como, por exemplo, do infame‘papel azul’ para ter qualquer permissão para viajar,deixar o país ou ser transferido para um país onde amaioria não falasse português, muito menos ‘portuguêslegalês’).

A questão de um caminho alternativo não pode serevitada mesmo se em seu estupor triunfante, o capitalismonegue tal possibilidade. Terá de vir daqueles que foramsilenciados. Mas o problema não se resolve de forma tãosimples, pois como se pode reparar algo que fora danificadopara além do reparo? Em seu livro Foe, J.M. Coetzeeexemplifica esse caso muito bem com a descrição que ele dáde Friday. Os traficantes de escravos haviam cortado sualíngua para que eu não pudesse mais falar. Quando suasalvadora Susan tenta encontrar maneiras de o levar devolta à África, ela percebe que devido ao estado em que seencontra, tal retorno não seria possível porque o mundoestá dominado por urubus prontos para derrubar Friday nahora que se encontrar em liberdade, e o venderão de volta àescravidão. Apesar de Coetzee não conseguir escrever umromance livre de paternalismo, ele mostra que depois daescravidão, é uma ilusão achar que aqueles que escravizarampudessem devolver a liberdade; a liberdade não pode serdevolvida, só pode ser arrancada. A incapacidade de Coetzeeé depois mais aparente com a imagem de Friday trabalhandoduro para se expressar através da escrita… em inglês, alíngua dos escravizadores, e não a língua de seusancestrais. A interpretação mais positiva que se pode fazerdesse final é que o caminho para a recuperação será mesmomuito longo e tortuoso.

Da escravidão ao Apartheid: genocídio de baixaintensidade

Analogias históricas são mais fáceis de se fazer doque de provar, mas elas podem ajudar a fornecer quadrosconceituais criativos. Referindo-se à parte anterior dadiscussão sobre escravidão, é possível dizer que a África éem escala global o que o Sul dos Estados Unidos é para oNorte, enquanto que o Norte seria representado hoje pelospaíses industrializados do “Ocidente”. Movimentos anti-Apartheid no Norte tiveram um papel importante em forçar ocomeço da transição. Mas quando, para assim dizer, elespensaram que as coisas já estavam andando, os governos doOcidente foram bastante rápidos em rescindir sançõeseconômicas, encorajando assim o governo sul-africano aarrastar seus pés ao fomentar abertamente “violência denegros contra negros” e atribuir suas causas aos conflitosentre os apoiadores da Congresso Nacional Africano (ANC) eos membros do Inkatha. Isto está longe de ser prática nova.Uma estratégia semelhante foi concatenada nos anoscinquenta por John Foster Dulles, então secretário deestados dos Estados Unidos, que argumentava que a melhormaneira de manter o poder estadunidense no pacífico eradeixar os asiáticos lutarem contra os asiáticos. Já nosanos oitenta, esta estratégia tinha adquirido o nome de“conflito de baixa intensidade” (CBI) (Barnet 1988, 207).“Baixa” se referia aos custos financeiros e a visibilidadedo ponto de vista dos principais patrocinadores. De acordocom a definição do Chefe do Estado Maior Conjunto dosEstados Unidos, CBI significa:

“Uma luta político-militar limitada a alcançar objetivospolíticos, sociais, econômicos ou psicológicos. É frequentementeprolongado e se estende a pressões diplomáticas, econômicas epsicossociais, passando por terrorismo e insurgência. Conflitos debaixa intensidade geralmente são confinados a uma área geográfica esão geralmente caracterizados por restrições de armamento, tática enível de violência”. (Comando de Treinamento e Doutrinação do Exércitodos EUA, Conceito operacional de Conflito de Baixa Intensidade doExército dos EUA, Panfleto TRADOC # 525-44 (Fort Monroe, Va. 1986, 2),citado em Klare 1988, 53).

O conceito de crime contra a humanidade e seuscorolários de genocídio e o Holocausto nasceram da históriada Segunda Guerra Mundial. Há uma interpretaçãoexclusivista do Holocausto que argumenta que não há outroevento na história comparável ao que aconteceu com os

judeus sob domínio hitlerista na Alemanha21. Os defensoresdeste ponto de vista estão certos no que concerne àhistória dos judeus, mas à luz dos precedentes advindos dasdeliberações e do julgamento de Nuremberg que definiu oHolocausto como um crime contra a humanidade, ainterpretação exclusivista é contraditória e encoraja opensamento oposto àquilo que o tribunal estava tentandoestabelecer, a saber, o uso de um precedente como meios deprevenir a recorrência de crimes semelhantes e comparáveis.

Desde os Julgamentos de Nuremberg, o medo daqueles queposaram como vitoriosos e juízes era de que eles poderiamser utilizados com precedente contra qualquer um deles.(Minear 1971, 10-14; Arendt 1964, 262; Kuper 1981, 46).Esta é uma das razões utilizadas pelos exclusivistas paraargumentar que é a-histórico olhar para a escravidãoatlântica como um crime contra a humanidade porque, naépoca em que ele aconteceu, não havia tal conceito. Claroque a interpretação exclusivista coincide com o modo depensamento abolicionista quando chega à questão da violaçãode direitos humanos. Os poderes que adquiriram colônias eque pisotearam os direitos humanos para torná-laslucrativas, agora lançaram-se a frente como linha de frentedos advogados dos direitos humanos. Seu sucesso dependerá,entre outras coisas, em seu sucesso em erradicar totalmentea memória popular.

A título de conclusão: notas de um diário

Por volta de 1992, Winnie Mandela foi condenadavirulentamente na imprensa ocidental, especificamente no

21 Sobre como esta interpretação exclusivista está sendo construída,ver Franck Chalk, 1989 e Steven Katz, 1989. Poderia se argumentar queo trabalho de L.Kuper (1981, 1985), especialmente com sua ênfase emusar precedentes históricos como meio de reforçar a prevenção, iriacair na tradição inclusivista, como o trabalho de Yves Theron (1995).No entanto, o assalto atual dos estados-nações pelo capital financeirocomo grilhões à sua expansão global demostra que abordagens que falhamem questionar a natureza e o caráter dos estados também falham emenxergar a relação entre a intensificação de eventos genocidas e anecessidade contínua por capital, sempre procurando recriar condiçõesde acumulação primitiva. De que outra forma se explicaria oressurgimento em (entre outros lugares) Los Angeles e Nova York, dechãos de fábrica semelhantes àqueles descritos em Londres porinspetores do trabalho no século XIX.

New York Times. “De santa a pecadora”, dizia uma dasmanchetes. De acordo com qual sistema jurídico? Aquele queoperava na África do Sul? Se sim, e caso se for tomar omesmo padrão de referência, onde-se se colocaria De Klerk,Buthelezi e companhia? Ou devemos ficar satisfeitos com ofato de que desde que estes foram reconhecidos comopecadores, não precisamos nem mesmo nos dar ao trabalho dejulgá-los? Mas há um problema aí: é justamente porque DeKlerk ainda estava no poder e apoiado pelos poderesocidentais que ele não foi julgado com base nas mesmaspremissas que Winnie Mandela. Buthelezi e De Klerk, parafocar apenas nestes dois, podem se esconder atrás do escudodo estado. Não é necessário ser um apoiador incondicionalde Winnie Mandela para ver que há algo de obscenamenteerrado quando seus supostos crimes fazem dela pária em umpaís que, naquele tempo, ainda estava sendo dirigido por umditador cujos registros criminais ainda cresciam22.

“A lenda da mãe da nação nunca foi verdadeira?”,perguntava o Weekly Mail de 16 a 23 de abril de 1992, e entãoseguia a responder negativamente. No nível político eideológico, não há assunto na África do Sul que hojeilustre melhor as consequências devastadoras do domínio doApartheid do que a aparente perda total da capacidade dejulgar e decidir fora de parâmetros históricosautoderrotados. Este ensaio argumenta que tal exercício setornou quase impossível porque há uma recusa/medo implícitoe às vezes explícito de colocar em julgamento fundaçõeseconômicas e históricas do sistema capitalista e suasvariações coloniais e de Apartheid.

Embora não seja de forma alguma comparável, oassassinato da Beloved por Seth faz lembrar da ordem deWinnie Mandela e sua participação no assassinato de StompieMoeketsi Seipei. Enquanto se pode ler as razões por trás de22 Desde que este texto foi originalmente escrito, cada vez mais provastêm vindo à tona para mostrar que Winnie Mandela, enquanto procuravarepresentar a voz dos sem voz e dos oprimidos, vinha fazendo isso deformas poderiam acabar prejudicando este intenção. Optei por não mudaro que foi escrito em 1992, não porque eu desculpo as práticas daWinnie Mandela, mas porque, em certo sentido, seu comportamento podeser visto como uma incorporação de uma transição em impasse. Seucomportamento, o que ela fala sobre e pelos sem voz ainda é crívelentre eles. Além disso, assumindo que as acusações de corrupção sejamprovadas, deveria se perguntar de novo: de acordo com qual norma dereferência?

cada ato, o ato de Winnie Mandela parece completamente etotalmente imperdoável, ao passo que a narração de ToniMorrison de como Sethe veio a matar Beloved faz com que oato de Sethe se torne mais problemático de julgar. Oromance de Morrison - Beloved - foi construído ao redor deum incidente da vida real que aconteceu na fuga de umaescrava com o nome de Margaret Garnet. Quando ela viuhomens brancos indo atrás dela, ela matou sua filha nascidana escravidão (Beloved) porque ela não poderia suportar aideia de vê-la retornar àquele estado para o qual era muitonova para entender. Na vida real, Margaret Garner (Sethe)foi julgada não por assassinar sua filha, mas por fugir(Darling 1988).

Se as ações de Sethe e Winnie não são comparáveis, porque então olhar para elas? Há três aspectos cruciais:primeiro a questão de quem é qualificado para estar emjulgamento. Segundo, que critério deve ser utilizado nojulgamento. Terceiro, a questão da cura. Em Beloved, o caso éapresentado pela autora que diz não poder julgar, enquantoo faz claramente colocando em cena um diálogo entre os doisprotagonistas principais, para facilitar julgamento. ComoMorrison expressou:

Cheguei num ponto em que me perguntava quem poderia julgar Setheadequadamente, já que eu não podia, e mais ninguém que a conheciapodia, realmente, senti que a única pessoa que podia julgá-la seria afilha que ela matou (Darling, 1988, 5)

Quem poderia julgar Winnie Mandela, além dos seuspares, dos quais Seipei seria o primeiro,  no topo de umalista que também incluiria mãe, pai, irmãs, irmãos, tios etias de Seipei, e também, entre outros, Ruth First emilhares de vítimas conhecidas e não tão conhecidas doApartheid? Mas dada a especificidade do que Winnie Mandelasofreu, quem são seus pares? Em relação ao segundo ponto arespeito do critério, Morrison pega emprestado da tradiçãoAfricana como pensar e praticar a justiça: ela tem queenvolver não somente a comunidade dos vivos, mas também omundo dos ancestrais (de onde Beloved tinha voltado).Finalmente ao terceiro ponto: cura. Isso, na perspectiva doMorrison, não pode ser separado da justiça: esta última temque andar de mãos dadas com o engendramento de um processo

de cura, tanto no nível do indivíduo, quanto ao nível dacomunidade.

Em comunidades ou vilas africanas que conseguiramsalvaguardar seu sistema de valores, o ato de WinnieMandela não seria julgado apenas da perspectiva doindivíduo culpado, mas também do ponto de vista dacomunidade. Uma vez que um indivíduo cometeu tal crime, oato não pode e não será julgado somente em relação aoindividuo, mas, sobretudo, em relação à comunidade,pressupondo que, para que um indivíduo tenha se desviadopara tão longe, a comunidade deve ter feito algo quecontribuiu para isso de uma forma ou outra. Em que tipo decomunidade Winnie Mandela estava vivendo? Uma quealimentava a humanidade de todos os sul-africanos? Uma quecultivava os princípios de ética e verdade? Ou era aquelacomunidade que tinha o Apartheid por imagem na África doSul? Como ainda estamos aprendendo, a capacidade da Áfricado Sul do Apartheid de destruição da humanidade dos não-brancos alcançou níveis inimagináveis. Ainda não sabemos aextensão e profundidade dessa destruição. No entanto, tendoem conta que eram maus de qualquer forma, os Bothas e seussemelhantes, os juízes no sistema judicial não foramresponsabilizados por seus inúmeros crimes, enquanto WinnieMandela tem sido linchada porque deveria ser a boa pessoa.Numa sociedade cada vez mais impulsionada peloindividualismo, deveríamos nos surpreender que estasociedade tenha perdido sua bússola e sua capacidade deinculcar em seus membros a capacidade de distinguir o maldo bem? Nessas sociedades, o perigo paira - ninguém podeter certeza - pois aqueles achando que não perderam suasbússolas, já a perderam.

Ao ir atrás somente de Winnie Mandela, o ANC, aComissão da Verdade e Reconciliação (TRC), em suma, todasas estruturas de estado - realizaram o que se espera dasestruturas de estado: reprimir, julgar, sancionar e punir.Estruturas de estado não podem curar. Estruturas de estado,especialmente na África do Sul do Apartheid (verdade queagora, lentamente, se movendo para longe disso), eramdestinadas a destruir. Durante o período de transição,severas limitações foram forçadas (do ponto do visto dacura) numa estrutura de estado como a da TRC. A cura sópode ser posta em movimento por estruturas comunitárias que

praticam políticas diferentes daquelas impostas peloestado. É verdade que um dos objetivos da TRC era curar,mas é difícil ver como isso poderia ter sido possível jáque a TRC foi, em grande parte, produto das própriasestruturas do estado que deveriam estar sendo julgadas, masnunca foram. Beloved é um romance que coloca questõeshistóricas e sugere respostas das quais historiadorespreferem ficar longe. Construído em torno de personagensindividuais, ele procura trazer para fora a memóriacoletiva que tinha sido enterrada. O assassinato da filha étão horripilante que ninguém suporta lembrá-lo. ParaMorrison, tal morte que levou ao silêncio é reminiscente daPassagem do Meio. Esse tipo de morte só pode ser julgada emrelação à Passagem (silenciada) do Meio.  

Além disso, em relação ao julgamento, a outra questãoimportante que interessou Morrison não era tanto quem estásendo julgado, mas como está sendo julgado. Ela examinaessa questão através de uma avaliação da escravidão de BabySugg (a mãe de Sethe) "Não tinha azar. Tinha pessoasbrancas. Eles não sabem quando parar” (Morrison 1987, 104).Para Morrison, Baby Sugg age como a consciência/memória dacomunidade Africana quando ela chama seus membros a amarcompletamente cada parte do seu corpo:

“E, ó, meu povo eles não amam suas mãos. Elas eles só usam,amarram com laço, cortam fora e deixam vazio. Amem suas mãos! Ame-as.Levante-as e beije-as. Toquem os outros com elas, esfreguem uma naoutra, acaricie seu rosto com elas “porque eles também não amam isso.Você tem que amá-la, ei, você! E não, eles não estão apaixonados porsua boca. Você tem que amá-la. Além, lá fora, eles vão vê-la quebradae vão quebrá-la de novo. O que você disser para fora dela, eles nãovão ligar. O que você gritar por ela, eles não vão ouvir. O que vocêcolocar dentro dela para nutrir seu corpo, eles vão tirar de você e tedar restinhos de comida. Não, eles não amam a sua boca. Você tem queamá-la. (Morrison 1987, 88).”

Metaforicamente, Winnie Mandela, apesar da gravidadedos seus pecados - e eram graves - era, sem dúvida, partedo corpo que se levantou contra Apartheid. A sobrevivênciade um indivíduo depende dele ou dela amar cada parte do seucorpo independentemente do que pode ser dito sobre ele. Combase no que é conhecido, é justo assumir que esta é aavaliação que levou Mandela a concluir que, na medida emque lhe dizia respeito, ela não era culpada. Re-lembrar os

des-membrados não é uma tarefa fácil, a solução mais fácilé fugir e fingir que episódios horripilantes nãoaconteceram. Uma transformação radical da África do Suldependerá muito mais de como o passado é re-lembrado do quecomo o futuro é planejado. O que Morrison disse sobre aescravidão também pode ser dito sobre o Apartheid: “Há umanecessidade de lembrar o horror, mas claro que há umanecessidade de lembrá-lo de uma maneira com que ele possaser digerido, de uma maneira com que a memória não sejadestrutiva” (Darling 1988, 5)23.

23 “Digerido” talvez não seja o termo mais apropriado já que uma dasquestões mais centrais da memória repousa em como ela é alimentadadentro de um processo reativo de por fim às fontes de sofrimentoinfligido por seres humanos empenhados em impor sua dominação portodos os meios e para sempre. Uma mera digestão da memória não criarianecessariamente as condições de ressurgimento e renascimento.