Tempus Fugit: o mecânico e o orgânico no Manifesto Futurista

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nº1 arcádia revista de literatura e crítica literária

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Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária

Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP

Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária é uma revista-laboratório do curso de Estudos Literários do Instituto de Estudos da

Linguagem da UNICAMP. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada anualmente pelos alunos de graduação do

Departamento de Teoria Literária, mas aceita contribuições de toda a comunidade, independente de filiação institucional ou formação

acadêmica. Arcádia publica textos de criação literária (prosa ou poesia), textos críticos (resenhas, artigos ou ensaios) sobre obras literárias

ou relacionadas à teoria, à crítica e à história literária, e traduções em uma dessas áreas.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Reitor: José Tadeu Jorge

Vice-Reitor: Alvaro Penteado Crósta

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

Diretora: Matilde Virgínia R. Scaramucci

Diretor-Associado: Flávio Ribeiro de Oliveira

COORDENAÇÃO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Marcos Aparecido Lopes

Jefferson Cano

COMISSÃO EDITORIAL

Ana Maria Côrtes

Elisa Pagan

Jessica Sallasa

Júlia Mota

Laís Calusni

Luísa Alvarenga

Thaís Soranzo

Índice | 2014

A vingança de Diónysos: uma análise do

prólogo d’As Bacantes Lidiane Garcia

Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo

ambivalente Marcella Abboud Tempus

fugit: o mecânico e o orgânico no Manifesto

Futurista Matheus Romanetto O conceito

de Kleos em Ilíada e Os Lusíadas Odorico

Leal Prosa, poesia e linguagem em Giorgio

Agamben Fernanda Valim Na contramão:

Toda Poesia - Paulo Leminski Ricardo

Gessner Jogos Vorazes e a romantização

do universo distópico Ana Maria Côrtes

Romances expressos e amores em Ithaca

Road Elisa Pagan A reelaboração dos

jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita

Jessica Sallasa

crítica literária

O Truque do grilo [Das Grillesnpiel], de Gustave Meyrink, traduzido

por Júlia Ciasca

Os Mendigos [The beggars], de Lord Dunsany, traduzido por

Thiago Andreuzzi

tradução

A existência não vence em teu peito Rogério Sáber Alquimia,

Criação, Vermelho Victor Simões Cantador, Rugas João Miguel

Moreira Empresa Laníficios Tejo LDA Daniel Serrano Finalmente

me tornei um poeta contemporâneo, Triângulo de Acrílico sobre

Praia João Gabriel Mostazo Hábito Tiago Donoso Humanizador

Thiago Andreuzzi In Memorian Matuyama Noite Quente Pedro

Couto Quatro Ventas Suene Honorato Tempo no Espelho Rodrigo

de Faria Travessia Fábio Mariano

criação literária

Matheus Romanetto

Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP.

Contato: [email protected]

Tempus fugit: o Mecânico e o Orgânico no Manifesto Futurista

ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 119

A publicação do opúsculo “Le Futurisme”, de F. T.

Marinetti, no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro

de 1909, é tradicionalmente considerada importante por no

mínimo dois motivos. Do ponto de vista da historiografia da

arte moderna, trata-se do momento fundador de um dos

movimentos de maior proeminência do começo do século XX.

Do ponto de vista dos estudos literários, o texto amplifica um

dos embates (ou acordos) que percorriam as vanguardas de

então – aquele entre política e estética –, valendo-se de um

gênero que suas edições posteriores fariam questão de

assinalar no título: o manifesto. O impacto da obra chegou a

tal ponto que, já na época de sua primeira aparição, essa

opção ajudou a redefinir o destino da arte europeia que

estava por vir:

Movimentos subsequentes, como o vorticismo, dadaísmo, surrealismo, ou os situacionistas, produziram diferentes combinações de manifestos e obras de arte, mas todos eles partilham com o futurismo o que deveria ser considerada a sua herança: a centralidade do manifesto (tradução nossa).1

De fato, não só o futurismo é lançado ao público por

meio de um manifesto, como boa parte da produção de seus

principais artistas – Marinetti, Carrà, Boccioni, dentre outros

– consiste em uma sucessão de textos trabalhados dentro

deess

Por meio da análise das teses, narrativas e jogos metafóricos contidos

no “Manifesto Futurista”, busca-se delimitar a relação que se

estabelece entre as figuras da máquina, do homem e da natureza,

tomadas como sujeitos com funções e atributos diferentes, dentro da

poética do texto. Construídas a partir da oposição entre três

qualidades diferenciais – vida, energia, poder –, elas reúnem traços

fundamentais do pensamento estético e político de Marinetti,

tornando-se subsequentemente disponíveis para elaborações e

desconstruções, na continuidade do movimento futurista.

resumo

desse gênero, que se consolidou gradualmente como um

distintivo do movimento. O desenvolvimento do futurismo

integrou sua elaboração massiva de manifestos a um sistema

de performances, em que as obras eram espalhadas na forma

de panfletos ou declamadas publicamente. Nesse contexto,

os dois olhares que transformam “Le Futurisme” em um

marco da mentalidade artística moderna são, na verdade,

polos de uma cisão mais ampla na produção teórica que se

defronta com essa estruturação da prática futurista, e de

modo geral com a de todos os grupos do mesmo período. As

abordagens historiográficas tomam o texto como documento

nu dos projetos motrizes do movimento; garantem a

validade da análise enfatizando seu caráter diretivo, “na

medid ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ¹ PUCHNER, Martin. Poetry of the revolution: Marx, manifestoes and the avant-garde. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 93.

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Medida em que, na práxis escrituária vanguardista,

manifesto e programa se articulam, na maioria dos casos,

indissoluvelmente”2. As abordagens literárias, preocupadas

não só com o conteúdo exposto, mas também com a forma

em que ele é expresso, e a maneira como ela participa da

constituição histórica do gênero em questão, definem como

leitura mais apropriada aquela que trata o texto como objeto

em si, e não meramente como antecipação da produção de

outras obras, na medida em que, segundo uma

metalinguagem particular, a forma textual reproduz aquilo

que se proclama ou defende:

O manifesto constitui-se em obra de vanguarda por excelência

na medida em que articula uma proposta estética crítica (a

antiarte) e, ao mesmo tempo, é sua práxis (gesto polêmico e

contestatário)3.

Tamanha é a proeminência dessa estratégia no

futurismo que o formato do gênero é assimilado por alguns

autores como equivalente da própria proposta do

movimento: “a forma do manifesto se torna o próprio

conteúdo do futurismo”4; “o gênero central futurista

transforma a arte, então, em uma mistura de arte e

manifesto, que poderia ser chamada arte-manifesto”

(traduções nossas)5. Assim, qualquer análise que se debruce

sobre

sobre o “Manifesto Futurista” (título que substituirá

doravante o original) insere-se em um contexto maior de

significação, em que as obras individuais se entrelaçam em

um todo cuja coerência não pode ser garantida a princípio,

mas que estabelece relações de continuidade e

descontinuidade sensíveis entre elas. Abrem-se inúmeras

questões sobre as operações textuais que garantem a

constituição do grupo, a teatralidade futurista, seu

imaginário e suas relações com a política europeia do início

do século passado.

O que aqui se propõe é avaliar o texto de Marinetti de

um ponto intermediário entre as concepções historiográfica

e literária da teoria, tratando-o como de natureza artística e

tendo em mente a maneira complexa como se integra, tanto

aos outros escritos do autor, quanto à própria formação do

gênero que ajudou a consolidar como momento essencial da

modernidade artística, mas sem desprezar o modo como é

possível enxergar, no caráter programático com que se

apresenta, um caminho específico para essa própria

integração. Trata-se, em outras palavras, de avaliar o

conteúdo que ali se apresenta, não como pura norma de toda

a produção futurista, mas como arcabouço de imagens, temas

e teses que se acumulam, disponibilizando-se na

continuidade ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 2 GELADO, Viviane. Poéticas da transgressão. São Paulo: EdUFSCar, 2006. p. 38. 3 Ibidem, p. 39. 4 PUCHNER, op. cit., p. 75. 5 Ibidem, p. 93

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continuidade do movimento como fonte de

desenvolvimentos possíveis, que podem reafirmar, adaptar

ou negar suas versões originais.

Esse processo se justifica pela presença,

particularmente na obra de Marinetti, de constantes

reutilizações e reelaborações de ideias que já haviam surgido

em momentos anteriores, com a liberdade típica daquilo que

Marjorie Perloff aponta como “a ênfase no artista como

improvisatore” (tradução nossa)6. Assim, a título de exemplo,

uma das teses do manifesto de 1909 – “Nós queremos

glorificar a guerra – única higiene do mundo”7 – torna-se

título de um texto publicado posteriormente, “Guerra, a única

higiene do mundo”8.

Como objeto de estudo particular, propõe-se

esclarecer a relação que o “Manifesto Futurista” estabelece

entre tecnologia, homem e natureza. Ao longo do texto,

surgem imagens e metáforas envolvendo a máquina, nunca

como ser isolado, mas como corpo que interage com os

mundos animal e humano, em última instância com o

desenvolvimento da história como fruto de determinadas

disposições de força. Essa interação se dá em meio a uma

lmfrfr

sobrecarga simbólica sensível, que deve ser compreendida

caso desejemos atingir uma leitura clara dos traços acima

apontados.

Quando da publicação do manifesto no Le Figaro, a

carreira de Marinetti encontrava-se em um período de

transição, tanto política quanto esteticamente. De particular

relevância é que sua produção poética concentrava-se ainda

sobre os mesmos paradigmas simbolistas que o futurismo

viria a negar mais tarde, com as propostas da parole in

libertà e outros recursos textuais. “[Marinetti] estava

escrevendo, ainda em 1909, versões decadentes de lírica

Baudelairiana” (tradução nossa)9. A densidade

surpreendente de imagens que se sobrepõem e encadeiam

em “Le Futurisme” pode ser, portanto, remetida aos

mecanismos propostos pelos próprios simbolistas e ao seu

louvor da obscuridade e da sugestão. Não se deve daí

depreender, entretanto, que a escrita de Marinetti possa ser

reduzida a uma atualização de velhas metas estéticas. Pelo

contrário: aqui, o jogo imagético é reapropriado objetivando

uma redação que produza impacto forte: para que um texto

se torne um manifesto, “é necessário violência e precisão”

(trad

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6 PERLOFF, Marjorie. The futurist moment: avant-garde, avant guerre, and the new language of rupture. Chicago: The University Of Chicago Press, 2003. p. 81. 7 MARINETTI, Filippo Tommaso. O manifesto futurista. In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas metalinguísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 92. 8 Ver PERLOFF, op. cit. 9 PERLOFF, op. cit., p. 67.

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(tradução nossa)10, diz o autor a Henri Maasen, em uma carta

enviada ainda naquele ano. As metáforas, metonímias e jogos

que preenchem o manifesto operam sempre ao lado de outra

figura de linguagem, qual seja, a hipérbole. É o constante

exagero do que se diz ou descreve que dá ao texto sua

potência primária, sua velocidade.

É nesse quadro, aliás, que surge uma de suas

qualidades mais interessantes: um elemento plástico muito

presente nas descrições. O vermelho e o negro, em particular,

saltam à vista se nos permitirmos alguma sinestesia. Há o

“ferro vermelho da alegria”11, “caldeiras infernais”, “negros

fantasmas que se mexem no ventre vermelho”12, o Sol que

surge de posse de uma “espada vermelha”13 em oposição à

noite que se passava em vigília. Surge gradualmente por trás

dessa coloração forte a ideia de fervor, calor, de fogo. Aqui é

Hjartarson quem dá uma primeira direção à análise, ao

sugerir que “Marinetti se apropria de teorias ocultistas

contemporâneas, integrando seus elementos mágicos e

proféticos ao projeto futurista e à sua concepção estética de

eleme

externalização da vontade” (tradução nossa).14 Os quatro

elementos naturais, figuras presentes no ideário ocultista,

surgem no “Manifesto Futurista” como significantes bem

delimitados por um código de oposições mútuas.

As menções ao fogo são inúmeras, passando, além dos

exemplos que já demos, pelas imagens de “frutos

apimentados”15, “violência (...) incendiária”16, pela

denominação dos futuristas como “incendiários de dedos

carbonizados”, e até pela concreta aparição de um “fogo nas

prateleiras das bibliotecas”17. De modo geral, esse elemento

está associado à impetuosidade criativa. A água, em oposição,

determina eventos destrutivos: são as “corredeiras e

redemoinhos de um dilúvio”, que levam os lugarejos festivos

“até o mar”; é o velho canal”18 que abaterá as bibliotecas; é a

morte que “escorre olhares veludosos do fundo das poças”19;

a sensibilidade que se verte na “urna funerária”20; o tubarão-

automóvel cuja destruição os pescadores assistem perplexos.

À terra, liga-se um gênero mais passivo de dano,

quando não uma conservação mumificante. Quando os

futuristas

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 10 HJARTARSON, Benedikt. Myths of rupture. In: Modernism: volume 1. Philadelphia: John Benjamin’s Publishing Company, 2007. p. 182. 11 MARINETTI, op. cit., p. 91. 12 Ibidem, p. 89. 13Ibidem, p. 90. 14HJARTARSON, op. cit., p. 187. 15 MARINETTI, op. cit., p. 90. 16 Ibidem, p. 92. 17 Ibidem, p. 93. 18 Ibidem, p. 89. 19 Ibidem, p. 90. 20 Ibidem, p. 93.

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futuristas sofrem seu acidente, a “lama” é “fortificante”21; nas

enchentes, é o Pó, conteúdo que a água carrega, aquilo que

destrói; dão-se aos opositores do movimento picaretas e

martelos para que escavem “os fundamentos das cidades

veneráveis”22. O ar é, enfim, símbolo de um estado de

transição, que compreenderemos mais adiante. Marinetti

quer ver os Anjos primeiros voarem, cantar o “voo deslizante

dos aeroplanos”23, e mesmo estar ao lado de seu aeroplano

quando seus herdeiros matarem-no, sucedendo o “voo

brilhante de suas imagens”24. É às “estrelas inimigas”25, para

o “céu violeta”26, para o alto, enfim, que se lança seu

movimento e desafio.

Que atribuamos à aparição do céu e das estrelas a

presença do elemento aéreo, justifica-se por uma outra

característica desse conjunto semântico: os elementos

definem, além de princípios ativos, uma topologia própria,

que liga determinados tipos de ocorrência dos fenômenos

naturais a posições diferentes no espaço. Assim, a chama é

fenômeno interior, e a água destrói exteriormente; o ar situa-

se acima, a terra situa-se abaixo.

Ao longo de nossa análise, surgirão os usos dessa

estrutura. Esboçamo-la adiante, num diagrama composto de

dois eixos: um vertical, que se poderia chamar transitivo, e

outro horizontal, que se poderia chamar criativo. O círculo

denota a interioridade do corpo que engendra a criação, seja

ele o do futurista ou o da máquina. Os pontos extremos do

espaço cartesiano assim obtido corresponderão a momentos

futuros da interpretação: as combinações entre conservação

e destruição (terra + água), transitividade e destruição (ar +

água), entendidas como representantes de maneiras

diferentes de arruinar, antecipam já o que diremos do

maquinismo, posteriormente.

___________________________________________________________________________________ 21 Ibidem, p. 91. 22 Ibidem, p. 93. 23 Ibidem, p. 92. 24 Ibidem, p. 93. 25Ibidem, p. 89. 26 Ibidem, p. 90.

Figura 1: Estruturação dos quatro elementos

ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 124

Para começar a sondar o sentido do “Manifesto

Futurista”, é preciso situar esse imaginário natural em relação

a outros recursos de que Marinetti se vale ao longo da obra. A

oposição (grosso modo) entre elementos criativos e

destrutivos, encontra um primeiro eco interessante na relação

que o autor estabelece entre biologia e tecnologia. Aqui, a

natureza e os frutos da sociedade não se dividem. Pelo

contrário, confundem-se forçosamente: “a ênfase na matéria e

sua interpenetração com o sujeito humano equivale à fusão

dos mundos orgânico e inorgânico” (tradução nossa)27. As

máquinas despontam, tanto como agentes, quanto como

objetos de fascínio. Mas ao mesmo tempo em que ajudam os

homens a dominar o mundo anímico (“nós íamos esmagando

sobre o umbral das casas os cães de guarda”28), elas guardam

aspectos animais: acariciam-se seus peitos, e é afinal em um

“tubarão atolado”29 que culmina o acidente de Marinetti. São

as locomotivas como “enormes cavalos de aço”30 e os

automóveis com “grossos tubos como serpentes de fôlego

explosivo”31 que ele quer cantar. A natureza (que compreende

os quatro elementos e o reino animal) é signo de energia e

descontrole, especialmente quando assimilada (sob a forma da

metáfora ou da analogia) pela tecnologia e pelos homens.

Estes, nos momentos em que se confundem com o

maquinário, fazem-no por outro caminho, compondo-se em

uma associação concreta, que não confunde suas

individualidades (o futurista sobre o veículo, por exemplo).

Daí a ambiguidade de uma poética que, como veremos,

procura promover “um assalto violento contra as forças

desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante dos

homens”32, mas que em última instância subjuga os próprios

humanos.

A relação entre os três componentes que aparecem

nas citações acima pode ser compreendida a partir de um

conjunto mais amplo de oposições permutáveis, em que os

termos em questão associam-se em duplas opostas ao

elemento restante, a partir de um traço discriminante,

producente de hierarquia. Quando máquina e animal se

assimilam, ganham controle sobre o fator humano. Quando

máquina e homem se compõem, ganham controle sobre o

fator natural. Mas homem e animal nunca se unem em um

combate contra a máquina. Neste caso, a assimilação permite

que os futuristas cacem como “novos leões”33 a própria

Morte, porém nada mais.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 27 WELGE, op. cit., p. 550. 28 MARINETTI, op. cit., p. 90. 29 Ibidem, p. 91. 30 Ibidem, p. 92. 31 Ibidem, p. 91. 32 Ibidem, p. 91. 33 Ibidem, p. 90.

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Essa súbita emergência de uma figura antes estranha,

que impede que completemos um círculo de rivalidades

perfeito com a tríade já conhecida, é sintoma de uma fratura

mais profunda. Hewitt já a delineia ao reconhecer, como

oposição primordial na obra de Marinetti, a própria luta

entre o natural (como força de discórdia, particularmente na

figura do corpo biológico) e o humano (como polo de

concordância, particularmente na figura do Estado). A

máquina aparece como síntese desses dois potenciais:

É nos trabalhos iniciais que a máquina representa todas as

energias que tornam o capitalismo tão curiosamente

autotransgressor e produtivo. Ela é o símbolo dos antagonismos

produtivos que confrontam Homem e Natureza e alimentam a

produtividade histórica, por meio de sua regeneração dos

recursos naturais e energias, e dos objetos materiais que produz

(tradução nossa).34

Eis o “nascimento do Centauro”35: compósito de

homem e animal, a máquina executa essa mediação, no

caminho do texto, justamente com a predicação da

tecnologia, ora como potência semelhante à do mundo

animal, ora como extensão do movimento humano. Aqui, vale

a máxima de Lefebvre hhuhu

a máxima de Lefebvre segundo a qual “[a] história desdobra-

se em ‘natureza’ e ‘humano’. O homem desdobra-se em

‘natureza’ e ‘história’”36. Por um lado, a continuação da

história se dá com a união da energia animal com as

qualidades políticas (dominadoras) humanas na forma da

máquina; por outro, o homem é ser vivo que se contrapõe

aos frutos mecânicos de sua história. De fato, tudo que é

louvado no homem é, no “Manifesto Futurista”, remetido

àquilo que acentua a vida. Ele é proclamado perante os

“homens vivos da terra”37 pelos “jovens, fortes e vivos

futuristas”38, em oposição àqueles que “não se lembra[m]

mesmo de ter vivido”39. Aqui, o tema da força biológica

cruza-se com o da juventude, do novo. Em nosso tratamento,

optamos por pensar sua construção investigando os motivos

que o transformam em um traço pertinente da identidade do

grupo artístico.

O “Manifesto Futurista” pode ser encarado como um

grito de independência, um esforço de afirmação contrário

aos velhos. O plano pronominal é particularmente revelador

quanto a isso. Durante a primeira metade do texto, há uma

divisão entre “eu e meus amigos”40, e Marinetti lidera seus

companheiros. A partir do momento em que a declaração do

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________34 HEWITT, op. cit., p. 147. 35 MARINETTI, op. cit., p. 89. 36 LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 158. 37 MARINETTI, op. cit., p. 91. 38 Ibidem, p. 93. 39 Ibidem, p. 94. 40 Ibidem, p. 89.

ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 126

manifesto se anuncia explicitamente, porém, o texto se cinde

entre um “nós” – os futuristas – e um “você”, cisão que

introduz uma rica ambiguidade. Sempre que o “você” é

evocado, não se lhe dá a voz (“Suas objeções? Basta!”41), ou

fala-se por ele (“Você quer portanto apodrecer?”42). O

diálogo nunca é permitido, e inclusive o grupo ou indivíduo

representado por esse pronome é excluído do público alvo

do texto. Os futuristas surgem já como autoridade – “ditamos

nossas primeiras vontades”43 –, mas falam exclusivamente

para os “homens vivos”44, não para o interlocutor a quem

negam participação.

Mas se “você” não é alguém “vivo”, quem é ele?

Poderíamos pensá-lo como o próprio leitor, caso em que o

texto estabeleceria uma relação belicosa com ele desde o

início. Há, entretanto, mais a ser dito. O elemento bélico está

certamente presente, mas sua aparição no plano da

interlocução resolve-se no da nacionalidade e temporalidade.

Embora seja possível ver aí uma apologia do conflito entre

nações, prefigurando a retórica que faz do movimento “ao

mesmo tempo expansivo e centrado nacionalmente”

(tradução nossa)45, a briga principal do futurismo é da Itália

contra ela mesma, contra seu passado, mais especificamente.

Historicamente, podemos identificar esse conflito como uma

característica da nação recém-unificada, ambiciosa de

fortalecer-se e criar uma face que lhe seja própria. Assim,

Marinetti lança-se em uma discussão contra o acúmulo das

coisas velhas em seu país. Os alvos diretos da polêmica

pertencem à materialidade estética: põem-se em questão os

museus, os quadros, as esculturas, tomados como

instituições ou objetos cuja função principal é conservar. Não

obstante, o tema nacional revela-se subjacente a várias das

imagens que já mencionamos, completando a polissemia do

texto. Falar em canais ou em urnas funerárias é, sem sombra

de dúvidas, falar da herança romana da Itália. O futurismo

quer uma nação desembaraçada de si mesma, de tudo que é

idoso (na classificação de Marinetti, as coisas com mais de 40

anos de idade, e lembrando que a unificação completou 39

anos em 1909). Nesse sentido, pedir que “desviem o curso

dos canais para inundar as sepulturas dos museus” é pedir

que mudem o curso da história, da velharia romana, por

assim dizer.

Alguns outros fatores são evocados, ainda que em

vínculo indireto com a nação ou em oposição a ela,

simbolizando o mundo que se quer abandonar. O primeiro

deles é o Oriente, que aparece associado ao marasmo e à

morte nas figuras da mesquita e sua preguiça nativa, e das

huhu

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 41 Ibidem, p. 94. 42 Ibidem, p. 92. 43Ibidem, p. 91. 44Ibidem, p. 91. 45WELGE, op. cit., p. 550.

ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 127

argolas bizantinas que envolvem os cadáveres. O segundo é a

a lógica e a matemática. Enquanto é noite e a vigília

prossegue, os futuristas discutem nas “fronteiras extremas

da lógica”46, mas com o raiar do dia e sua saída alucinada, as

lâmpadas lhes ensinam a menosprezar seus “olhos

matemáticos”. No limite, é a atenção prestada aos

“raciocínios persuasivos”47, representados pela bela imagem

dos ciclistas contra o automóvel, que provoca o acidente. Na

verdade, o uso desse termo não pode passar de uma meia-

verdade: Marinetti não bate o veículo por descontrole, mas

porque fica entediado com as discussões dos dois, e prefere

sair logo delas.

Um terceiro fator é a religião, tema forte pela presença

do Vaticano em solo italiano, e que surge nas imagens dos

sonhos crucificados nos museus, na morte salpicada de

cruzes, na prece extenuada do canal. Pode-se concluir dessa

série que Marinetti rejeita o interesse pelo conhecimento de

suas máquinas ou pela espiritualidade. Propõe uma filosofia

da ação, do movimento de certo modo desprovido de cálculo,

como fica claro na ordem de que ele e os amigos “saiamos da

Sabedoria”, rumando à “embriaguez dos cães raivosos”48.

Essa teoria da pura ação antecipa um dos canais que

tornará posteriormente possível a aliança entre futuristas e

huhu

fascistas. Puchner49 assinala que a ênfase que os partidos

comunistas punham no conhecimento teórico recebia à

direita uma contrapartida que figurava como estímulo à

prática imediata, potente, desimpedida das barreiras do

pensamento. O sujeito futurista é aquele que se entrega à

potência criativa até seus limites, que maximiza sua ação

com doses cada vez maiores de energia. Seu vínculo com a

questão da máquina é o que nos acompanhará até o final da

análise.

A menção à “velha Itália” retoma a questão

vitalista/biológica num terceiro viés. Os museus são

cemitérios, diz-se, e os profissionais que lidam com o

passado, como professores e arqueólogos, são a “gangrena”50

da nação. Aí revela-se um traço fundamental do texto. A

gangrena é a falência por falta de circulação, por falta de

movimento. Na menção a esse detalhe, o manifesto encontra

sua constituição basilar: este é um texto sobre morte, e nele

não se opõem vida e necrose, mas tipos diferentes de morte,

como resultados de vidas distintas.

Pensemos na sequência temporal da obra. Marinetti

abre no presente, falando do que fazia até passar por sua

experiência de quase-morte, que lhe serve de inspiração para

declarar aquilo que quer e fará no futuro. O discurso vai,

entãh

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 46 MARINETTI, op. cit., p. 89. 47 Ibidem, p. 90. 48 Ibidem, p. 90. 49 PUCHNER, op. cit., p. 82. 50 MARINETTI, op. cit., p. 92.

ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 128

então, ao pretérito, falando como a Itália era; volta ao

presente, com a reprovação da contemplação artística atual,

e salta para um futuro ainda mais distante, em que o grupo

futurista é extinto. Uma vez mais, enfim, retorna-se ao

presente para lançar o desafio às estrelas. Nessa sequência,

repete-se duas vezes uma estrutura que parte de um relato

pretérito, passando pelo momento atual e ultrapassando-o.

Mas o futuro aparece, ora como mero projeto, ora como fim

definitivo. O texto não narra o desenvolvimento desse projeto,

que fica, por assim dizer, a ser contado pelos próprios atos

dos artistas. Mas afinal por que isso tudo? Por que lançar um

mito escatológico sem uma gênese?

É que “a Mitologia e o Ideal místico estão

ultrapassados”. Marinetti quer “abalar as portas da vida”51.

Viver, no futurismo, não significa experimentar o mundo tal

qual um plano ótimo, mas esgotar essa própria vida, dar-se

“de comer ao Desconhecido”52. Ora, o desconhecido não é a

própria morte? Mas temos aqui duas mortes diferentes.

Marinetti pretende evitar a morte letárgica, ou seja, a

degenerescência pela imobilidade, pela retenção, pela

atenção ao passado, ou, mais simplesmente, a morte natural:

terra + água, destruição por definhamento. O que os

futuristas

futuristas desejam é a morte por esgotamento, a exaustão de

quem fez muito e se esvaiu: ar + água, destruição pelo

movimento. Se cantam o prazer, o trabalho e a revolta53, é

somente na medida em que eles consomem suas multidões.

Apenas assim se compreende a apologia da violência e da

velocidade. Ambas constituem movimentos centrífugos, que

retiram o homem de si mesmo. De certo modo, retiram-no do

próprio mundo.

Se para Perloff “o manifesto é situacional por operar

no tempo e espaço reais” (tradução nossa)54, a ambição do

documento é justamente abolir essas categorias, levando a

experiência ao absoluto55, onde o ser se esvai; e o meio para

essa superação é a velocidade, que se equivale à beleza56,

assim como a arte se equivale à Injustiça57, no compasso

exato de sua desmedida. Nota-se que o próprio manifesto

perde sua função com a concretização do ideal futurista –

morre, por assim dizer –, na medida em que, se sua

capacidade performativa é o processo de extinção de tudo

aquilo que se situa de maneira estanque em relação a um

referencial temporal ou espacial, o cumprimento de sua meta

nada mais é que a inscrição do caráter “manifestário”

huhuhu

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 51 Ibidem, p. 89. 52 Ibidem, p. 90. 53 Ibidem, p. 92. 54 PERLOFF, op. cit., p. 90. 55 MARINETTI, op. cit., p. 92. 56 Ibidem, p. 91. 57 Ibidem, p. 94.

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na história, que passa a ser eterno movimento e aniquilação,

e elimina a necessidade de um objeto textual que execute

essa tarefa:

[O Futurismo] celebra a emoção não pelo aqui e agora, mas pelo

momento de seu desaparecimento. […] Nada deve ser

transformado em ontologia, nem mesmo a temporalidade que

nega toda ontologia, […] E o Futurismo não odeia nada mais do

que a nostalgia (tradução nossa).58

A oposição dinâmica entre homem, natureza e

máquina retorna, portanto, embasada em um ponto de vista

anterior ao que apresentamos, e que o engloba. Lembremos:

a tecnologia, quando assimilava características animais,

contrapunha-se ao homem na medida em que amplificava a

energia violenta daquilo que não é humano; quando

associada a caracteres humanos, contrapunha-se ao animal

na medida em que potencializava o impulso dominador do

homem. Ora, o esquema faltante, que associaria homem e

animal contra a máquina, pode ser finalmente entendido

como o conflito que torna possível as situações anteriores:

aquele que se dá entre vida e morte.

A máquina surge como aquilo que, não sendo orgânico,

e portanto, do ponto de vista da decomposição natural,

“eterno

“eterno”, supera as limitações da biologia. Sua única fraqueza

é a necessidade do toque humano para que possa ser gerada.

Ambos os princípios podem ser ilustrados com a cena do

acidente de carro: “A gente o acreditava morto, meu bom

tubarão [o automóvel], mas eu o despertei com um só

carinho no seu dorso todo-poderoso, e ei-lo ressuscitado,

correndo a toda velocidade sobre suas barbatanas”59. O

mecânico torna possível aquilo que Marinetti concebe como

a abolição do tempo e do espaço. Tomados como os limites

da própria vida, tempo e espaço são também limites da

criatividade humana; daí o interesse do futurista em

ultrapassá-los. A máquina se lhe afigura, portanto, como

ideal máximo, pois é ser que chega ao topo da ambição do

artista/político: cria incessantemente e exponencialmente.

Mas como para os seres vivos não é possível, apesar de tudo,

superar a mortalidade, resta-lhes apenas a alternativa de

aproximar-se incessantemente da condição maquínica, sem

nunca atingi-la inteiramente. Para o animal, essa não é

realmente uma escolha. Ser irracional, limita-se a viver, na

força de seus impulsos comuns, algo próximo da potência da

tecnologia. Para o homem, há a possibilidade de fazer uso da

máquina como amplificador de suas capacidades reais. É

nesse sentido que a tecnologia aparece no “Manifesto

Futurist

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58 HEWITT, op. cit., p.108-109. 59 MARINETTI, op. cit., p. 91.

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Futurista”, como canal que potencializa a ação. Mas essa

amplificação acarreta, inevitavelmente, uma decomposição

do corpo humano, pois o submete a cargas de energia que ele

não foi concebido para suportar: “em sua economia, o corpo

torna-se um meio, um processo, e entra em um sistema de

troca energética que necessariamente destruirá sua entidade

autônoma” (tradução nossa)60. A caminhada rumo ao ideal

futurista vem à custa do esvaimento do homem. Marinetti

julga isso sem dúvida preferível à alternativa de conservar a

vida, mas torná-la medíocre. Assim chegamos à oposição

entre letargia e esgotamento, e encontramos seu lugar na

estrutura semântica do texto. A morte lenta é característica

do animal, que vive mais intensamente, mas degenera pelas

mãos da própria natureza. O homem está a princípio

submetido ao mesmo processo, sem nem a possibilidade de

viver os ímpetos enérgicos da irracionalidade animal –

quanto mais nos momentos em que se prende à lógica, sem

ultrapassar suas “fronteiras extremas”. É o caso do professor

e do arqueólogo. O sujeito futurista, indo na contramão, é

aquele que deplora essa condição, e incrementa sua vivência

com o uso da tecnologia, dominando o mundo à sua volta

tanto mais criativamente quanto mais acelera a chegada de

seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e

máquina

seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e

máquina geram-se um ao outro em um circuito fechado que

antecipa o desdobramento de uma genealogia linear”

(tradução nossa)61 – no sentido de que a máquina, filha do

homem, altera sua condição, mas no limite o supera em sua

linhagem.

De fato, do ponto de vista político (nacional), como

aponta Welge, “o futurismo vai em geral contra a

descentralização e dissolução do sujeito humano. (…) essas

tendências, em última análise, reforçam, e não debilitam, a

autonomia do sujeito” (tradução nossa)62, pois não se trata

de mergulhar a subjetividade em uma homogeneidade

ideológica, que a extingue como parte do todo. Mas, em todo

âmbito produtivo, o desenvolvimento da criatividade só pode

ser concretizado como pura “dissolução” do sujeito. A morte

violenta é o mais próximo que o homem consegue chegar da

imortalidade, propriedade exclusiva do ser mecânico.

Procuramos sintetizar nossas conclusões na Figura 2.

Os vértices do triângulo maior correspondem aos três polos

de nossa discussão. Cada lado forma uma dupla constituída

pelos elementos em suas extremidades. As alturas partindo

de cada vértice e extrapolando os lados opostos indicam a

oposição que se estabelece entre a dupla correspondente

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 60 HEWITT, op. cit., p. 155. 61 SOMIGLI, Luca. Legitimizing the artist: manifesto writing and European modernism, 1885-1915. Toronto: Toronto University Press, 2003. p. 125. 62 WELGE, op. cit., p. 551.

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oposição que se estabelece entre a dupla correspondente

(lado) e o terceiro elemento (vértice), do ponto de vista

daquilo que é comum à dupla, e que está representado em

itálico no fim das setas. Nos pares de opostos resultantes, o

primeiro termo é sempre aquele equivalente à dupla, e o

segundo o equivalente ao termo restante. O triângulo interno

indica a morte como princípio de uma estruturação mais

básica, que opõe os três termos em função da maneira como

falecem (ou deixam de falecer), e que é indicada nos

parênteses abaixo dos nomes de cada elemento.

Diz Hjartarson: “os manifestos dos movimentos avant-

garde são performances retóricas complexas, visando à

transformação do sujeito moderno” (tradução nossa)63.

Compreende-se assim o espírito antimatemático dos

futuristas, e também o porque de retratarem seu fim. É que a

autodestruição (lembremos que a juventude futura admirará

a atual) é a real concretização do projeto de Marinetti para a

dupla subjetividade político-artística. Esse télos revela-se

mesmo na definição das fronteiras de seu grupo. Não são

todos que chegaram aos 30 anos, mas porque alguns já o

fizeram, Marinetti diz que “nós já dissipamos os tesouros, os

tesouros de força, de amor, de coragem e de áspera vontade

(...) a perder o fôlego”64. Vem então à tona a curiosa geografia

do fim do documento – aquilo que apontamos anteriormente

como uma topologia demarcada segundo os quatro

elementos naturais. Em seus últimos parágrafos, os futuristas

situam-se no cume do mundo. Falam de cima para baixo,

ordenam que seus ouvintes (os homens da “terra”)

“levantem antes a cabeça”65. Falam com o coração nutrido de

fogo, da potência criadora (portanto autodestruidora) do

presente, e lançam seu desafio às estrelas, ao “céu (...)

palpável e vivo”66, aos ares que anunciam a novidade

mortífera.

63 HJARTARSON, op. cit., p. 178. 64 MARINETTI, op. cit., p. 94. 65 Ibidem, p. 94. 66 Ibidem, p. 90.

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Figura 2: Diagrama estrutural do “Manifesto Futurista”.

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Quando já estiverem esgotados, os jovens de hoje

terão seus últimos momentos ao lado de uma fogueira

miserável – e o último som que ouvirão será o da chuva, que

traz em sua monotonia o anúncio do fim. Eis, finalmente, a

natureza “transitória” do ar: ele demarca justamente a

passagem da criação máxima à destruição máxima; o

momento da morte mesma, que, já em suas primeiras

aparições, anunciava-se indiscriminada na “boca imensa e

torta do vento”67.

67Ibidem, p. 90.

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