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SÍTIOS GENÉRICOS / SÍTIOS ESPECÍFICOS INTERVENÇÕES PARA NÃO-LUGARES TERESA LIMA BARBOSA DE CARVALHO ORIENTAÇÃO DE GUILHERME WISNIK

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SÍTIOS GENÉRICOS /SÍTIOS ESPECÍFICOSINTERVENÇÕES PARA NÃO-LUGARES

TERESA LIMA BARBOSA DE CARVALHOORIENTAÇÃO DE GUILHERME WISNIK

TERESA LIMA BARBOSA DE CARVALHOORIENTAÇÃO: PROF. DR. GUILHERME TEIXEIRA WISNIK

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

SÃO PAULO, 2021.

SÍTIOS GENÉRICOS /SÍTIOS ESPECÍFICOSINTERVENÇÕES PARA NÃO-LUGARES

Escrever esse trabalho em isolamento me fez diversas vezes afundar no mundo da memória e da saudade, de tantos lugares e pessoas queridas que fizeram parte desse processo de formar- -se arquiteta. Por isso, primeiramente agradeço à FAUUSP, espaço que me ensinou tanto, congregou tanta alegria e me fez quem sou hoje.

Dentre todos os seus professores e funcionários incríveis, agradeço especialmente ao Guilherme Wisnik, que me orientou com generosidade e inspiração, levando-me a pensar sempre além.

Aos grandes amigos que partilharam comigo essa experiência de faculdade, sobretudo ao Arthur, Ana, Bárbara, Camila, Carol, Greta, Lara e Luiza. À Maria Isabel, Laura, Henrique e Jayne, queridos companheiros à distância que se formam juntos a mim.

Aos meus amigos da vida toda, presenças fundamentais nesse período tão difícil. Felipe, agradeço pelo seu conhecimento e interesse, por me ajudar a materializar as ideias impossíveis. Clara, agradeço o seu olhar sensível e seguro, que produziu as fotografias do trabalho. Bárbara, te agradeço pela segunda vez, agora pela sua preciosa colaboração nos desenhos isométricos de projeto.

Agradeço à oportunidade de realizar um intercâmbio na graduação que mudou minha forma de ver e viver o mundo, e cuja influência nesse trabalho é astronômica. Às preciosas amigas que fiz na França e hoje conto para toda a vida. À Miriam, Wassim e Elisa, que foram minha casa por um ano.

A minha família tão querida. A minhas inspiradoras avós e meus amorosos avôs, cada um com a sua história. A minha tia Márjori, que batalhou tanto pela saúde de todos. À Marli e todo o seu cuidado.

A todos aqueles que, de alguma maneira, se fizeram presentes nesse momento solitário.

Aos artistas que me inspiraram a pensar esse trabalho; aos músicos que me fizeram campanhia durante todo o processo.

À base de tudo: Didi, Jero, Tarsila e Antonio. Agradeço a minha mãe pela experiência, carinho e empolgação que foram essenciais ao trabalho; a meu pai, pelas conversas inspiradoras e afetuosas; a minha irmã, pelas trocas infinitas; a meu irmão, pelo companheirismo de todos os dias. Obrigada pela vida compartilhada, pelo apoio e pelo amor que é pedra firme na corredeira, rede de pesca e linha de pipa.

AGRADECIMENTOS

O trabalho realiza uma leitura da condição de “cidade genérica” de São Paulo, investigando como ela se expressa em seus sítios urbanos, de maneira a atrofiá-los de conexões e significados. Busca possibilidades de questionar e reverter esse processo, através de três propostas de intervenção site-specific na região do Parque Dom Pedro II. A partir de uma contextualização histórica e crítica, somada a leituras empíricas desses espaços, propõe-se a procura da especificidade que pode existir em cada sítio genérico, trabalhando na chave da criação de referências e conexões, que podem surgir tanto das suas camadas físicas ocultas, quanto das memórias de práticas do passado, quanto ainda de usos potenciais desses sítios na atualidade.

cidade, memória, intervenção artística, site specific.

The work studies the condition of "generic city" of São Paulo, investigating how it is expressed in its urban sites, in order to weaken any connections and meanings. It searches the possibilities to question and reverse this process, through three site-specific intervention proposals, in the region of Dom Pedro II Park. Through historical context and empirical readings of these three spaces, The work proposes a quest for the specificity that can exist in each generic site, working on the creation of references and connections. Those can arise both from the hidden physical layers of the territory, as from the memories of past practices, as well as potential uses happening today.

city, memory, artistic intervention, site specific.

RESUMO

ABSTRACT

PALAVRAS-CHAVE

KEY-WORDS

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PRELÚDIO - DERIVA............................................................................................................

0. INTRODUÇÃO...................................................................................................................

1. ENTROPIA DA PAISAGEM PAULISTANA ....................................................................

DA REALIDADE NATURAL À MODERNIZAÇÃO ESPETACULAR...............................

SÃO PAULO GENÉRICA E SEUS NÃO-LUGARES........................................................

2. SÍTIOS GENÉRICOS, SÍTIOS ESPECÍFICOS...............................................................

ESCOLHA DE SÍTIOS E PARTIDO DAS INTERVENÇÕES...........................................

INTERLÚDIO - DERIVA........................................................................................................

3. BUSCAR O AVESSO DA CIDADE...................................................................................

3 – 01. TRAVESSIA SOBRE O RIO TAMANDUATEÍ......................................................

3 – 02. MEMORIAL NA PRAÇA SÃO VITO.....................................................................

3 – 03. SUBIDA NA COLINA HISTÓRICA.....................................................................

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................

EPÍLOGO - DERIVA.............................................................................................................

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................

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OS que passam voando entre vocês, também repararam nessa última

placa. É inegável a beleza da pintura na parede no túnel sob a linha

férrea. Ao ler ‘MERGULHO”, logo no começo da descida, você imaginou que seria isso que a placa comunicava? Dá vontade de descer do carro e tirar uma foto. Será que há tempo? Não há, e você se afasta depressa. Não se pode parar num lugar desses. Independente disso, há gente parada lá, você repara? Enquanto sobe de volta à superfície, será que nota as pessoas apoiadas na mureta, ou dormindo na calçada apertada? “SONHO”, diz a próxima placa. Você lembra do compromisso ao qual se dirige. Espera que chegue a tempo, que não tenha confusão por causa dessa nova sinalização. Fica ansioso? Ou confiante? No cruzamento travado, repara nos lojistas que passam correndo, cheios de sacolas. O sinal nem fechado está, mas eles também têm pressa. Precisam estar em algum lugar.

“SUOR”, você lê. A Avenida do Estado é sempre um calor desgraçado, mesmo com o ar condicionado ligado. O sol entra pela janela e queima seus braços e seu pescoço. Impossível evitar, não tem uma sombra nessa avenida. Você olha ao redor, procura alguma árvore. Lembra que já vai cruzar um viaduto, pensa na sombra que ele faz na pista. Você sente alívio? Lá embaixo, uma placa vermelha diz “FALTA”. Será que você repara nos barracos que se apoiam naquele pilar gigantesco? Ou ainda está a pensar em árvores?

Está quase chegando. A placa indica “VAZIO” e você olha para o terminal de ônibus lotado, procurando. Não vê mais o rio à sua esquerda, isso é fato. Tampouco vê ilha nenhuma. Você se irrita com a sinalização? Só falta ter mal-compreendido e levar uma multa por isso. Dá seta para a direita, fica atento para não perder a saída. Você se tranquiliza ao afastar-se da avenida, ver a confusão de prédios do centro? Ou tem vontade de desviar e continuar a seguir essas placas? Você pensa se elas não te levariam para algum outro lugar, só um pouco diferente do que já conhece. Se você mudaria um tanto, se a cidade pareceria vagamente diferente. Questiona se o tempo e o espaço foram alterados, de alguma maneira, na Avenida do Estado; se o presente ficou mais extenso, mais profundo, e o passado mais próximo. Teve momentos que pareceu estar ao alcance da mão, assim como a avenida pareceu estar ao alcance do corpo. Pareceu um espaço em que coisas acontecem. Você não sabe dizer o que acontece, em termos factuais nada. Mas pode voltar a acontecer novamente. E você atenta para isso.

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OS “Porque os nomes das ruas devem soar ao ouvido do errabundo

como o ranger de ramos secos”. Walter Benjamin.

Essa é a nossa proposta. Se os nomes das ruas não nos significam mais nada; se os códigos não servem para a comunicação como troca de ideias, mas sim para o isolamento de cada um; se palavras, nomes e idiomas misturam-se e sucedem- -se numa confusão ignorada e sem sentido; se setas, curvas e linhas no chão não falam do território e seus volumes; se placas indicativas não nos comunicam nada sobre a realidade que estamos vivendo, sobre a geografia que estamos atravessando.

Ou ainda, se indicam tudo, cada curva ou pedra ou medida de distância percorrida, de maneira tão completa, extensa e sufocante que você passa a não mais apreender o caminho; passa a ver pelas placas, viver pelo texto. A paisagem fica à distância, o espaço se torna uma sequência de superfícies com informações, quase um cinema, imagens em movimento. Você esquece que é seu corpo que se movimenta, que percorre quilômetros do território; ignora que avança ao longo da várzea de um rio, que se afasta de sua foz e se aproxima de sua nascente – corredeiras, você não as vê. Ignora as vidas que cruza em alta velocidade, centenas delas, algumas tão próximas que te lembram de apertar um botão automático e fechar a janela. Pessoa, pessoas, grupos, famílias, casas, bairros, vidas são atravessadas por você todo dia.

E se uma noite tudo mudar e, para cada suporte, surgir uma nova comunicação? Uma tentativa de comunicação, com cada um. Quem tenta? Não se sabe, surgiu da noite para o dia. Talvez seja uma ação da prefeitura. Talvez seja uma campanha publicitária. Talvez seja um protesto. Talvez seja um poema. Depois de quanto tempo você perceberia a mudança? Só quando se confundisse e perdesse a saída? Ou desde a primeira placa você já veria a diferença? As cores, o formato, os signos – tudo parece quase familiar, porém você não se lembra dessas combinações e considera estranhas as palavras escritas.

Você olha ao redor, após passar por uma placa, e busca o objeto que ela indica? “SEDE”, saída à 300m. Sede de que? Seria a sede de uma empresa ou a de um indivíduo? E a sua própria sede, você a percebe? Talvez, no próximo sinal vermelho, possa abrir a janela e comprar uma garrafa d’água do ambulante. “RISCO DE ENCHENTE” indica uma próxima superfície azul e verde; isso qualquer idiota sabe, não se deve pegar a Avenida do Estado em dia de chuva, é trânsito e risco de acidente na certa. Você só não entende por que lê depois “CHORO, permitido 15 minutos”. Você se pergunta se o motorista da perua ao lado, ou os motoqueiros

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INTRODUÇÃO

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Citação da página 10:BENJAMIN, Walter. “O corcundinha (infância em Berlim por volta de 1900). In Obras Escolhidas II: Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 141.

Este trabalho propõe-se a pensar São Paulo em sua contempora-neidade, tendo, no entanto, a escala local como foco de atuação. Busca construir, de maneira experimental, reflexões, leituras e possibilidades acerca de seus espaços, elencando três localida-des como objeto de estudo. Trata-se de um trabalho subjetivo, que não visa a resolução de problemas, mas sim a proposição de situações e experiências relativas aos sítios. Para tal, expressa--se, através de múltiplas linguagens: projetual, textual e imagé-tica; poética, técnica e teórica.

O trabalho condensa diversas inquietações e vivências em minha formação. De um lado, um interesse pelo campo ampliado da arte, entrelaçado na arquitetura e na paisagem. Sobretudo as expressões que, recebendo o cunho de site-speci-fic, se propõem a trabalhar sobre um lugar particular, admitin-do esse entorno específico como integral à expressão, desde a concepção até sua forma final lá instalada. Para além de teóri-ca, minha curiosidade no tema era propositiva: interessava-me desenvolver um projeto que seguisse as preocupações caracte-rísticas ao site-specific, situando-se em um espaço real e tendo como única função predeterminada a leitura, interpretação e expressão desse lugar.

A esse interesse propositivo, somou-se uma sensibilidade particular pela questão da memória – mais especificamente, pelos processos de esquecimento e desconexão atuantes nos es-paços urbanos. Buscava estudar como o desenvolvimento de São Paulo apoia-se no apagamento do existente para a construção do novo, quais são os espaços resultantes dessa dinâmica, e como ela se situa na contemporaneidade, com as escalas do global e do virtual impondo-se sobre a realidade urbana.

Assim, utilizo esse enfoque para aproximar-se dos objetos de estudo do trabalho: três localidades que, mesmo situadas no centro da cidade, entre importantes eixos de transporte, cultu-ra e comércio, num terreno marcado por grandes referências geográficas, encontram-se esvaziadas de qualquer identidade ou possibilidade de vínculo; são espaços genéricos, que servem atualmente apenas como passagem, quando não são totalmente inutilizados. Em cada um deles, investigo as camadas de signi-ficado que carregam intrínsecos a si, trabalhando-as na forma de intervenções que tensionem a realidade e criem situações de conexão e sensibilização com o território.

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2 Ver ensaio “Outros Espaços”, de Michel Foucault, in FOUCAULT, Michel, Ditos e Escritos III, Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Forense Universitária, 2001, p. 415.

parte do trabalho, nomeada “Buscar o avesso da cidade”, reú-ne as três propostas de intervenção site-specific. Em cada uma, trago um texto conceitual que apresenta o sítio e as principais questões nele contidas, expondo em seguida a proposta de inter-venção, suas justificativas e referências. Desenhos arquitetôni-cos em várias escalas e ilustrações livres somam-se para expres-sar cada proposta. Ao longo de todo o caderno, fotografias da cidade de São Paulo e imagens de trabalhos artísticos somam-se ao texto na expressão total do trabalho. Aquelas que não apre-sentam créditos são todas de autoria da fotógrafa Clara Dias, tiradas em julho de 2021.

É evidente que esse tipo de investigação, que busca divergir do genérico e aprofundar no específico, apoia-se na vivência dos espaços, no contato com o real, no diálogo com pessoas, na experiência corporal. Essas são premissas fundamentais para um trabalho como esse. Realizá-las durante um ano de pandemia e isolamento, portanto, trouxe inúmeros desafios, impedimentos e decisões a serem tomadas, que moldaram o curso do trabalho. Por um lado, as dificuldades e riscos que envolviam uma simples visita a campo rapidamente evidencia-ram a impossibilidade de levar uma proposta site-specific até as consequências finais, com a execução e instalação no sítio urbano. Por outro lado, essa certeza me permitiu uma abertura no campo projetual, permitindo-me desenvolver o trabalho com uma grande liberdade criativa, explorando amplamente as pos-sibilidades intrínsecas a cada sítio, de sensibilizar, tensionar, mover, transformar e sonhar.

Reconheço nessa experimentação a potência de se pensar vastamente a cidade, sem os entraves que frequentemente de-limitam a atividade da arquitetura, sejam eles programáticos, financeiros, normativos, etc. As intervenções que apresento são totalmente baseadas na realidade contemporânea de cada sítio, e todas possíveis de serem realizadas. Porém, não têm sua exis-tência baseada na veracidade. Utilizam-se também da fantasia, do sonho. Propõem uma outra realidade, possível, porém diver-sa da real, e também da ideal. Pode-se dizer que elas existem na dobra do Real, assim como os próprios sítios em que atuam, de certa maneira, existem hoje nas dobras entre a cidade planejada e a inventada; entre o formal e o informal.

Dessa maneira, faço uso da ficção em meu trabalho, em três pequenos textos ilustrados, como o que precede essa introdu-ção. A ficção contribui na expressão do teor experimental e heterotópico2 do trabalho, situando a leitura nessa realidade possível. Ela conduz o leitor através de derivas pela Avenida do Estado, relatos de viagem que constroem as camadas de um lugar, onde podem situar-se as propostas de intervenção, assim como diversas outras situações e acontecimentos.

As derivas ocupam os interstícios do texto formal do traba-lho, que organiza-se em dois capítulos. O primeiro apresenta a fundamentação teórica que embasa o projeto. O segundo realiza uma exposição da proposta projetual, indicando suas intenções e motivações, revelando o processo de determinação dos sítios e as premissas projetuais que guiam as propostas. A terceira

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ENTROPIA DA PAISAGEM PAULISTANA

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3 SEVCENKO,Nicolau. De mameluca, mulata e gótica a moderna, cosmopolita e caótica: as metamorfoses de Piratininga. In São Paulo 450 anos. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004, p. 316.

4 Ibid., p. 317.

“A ecologia da junção das amplas planícies do Tietê, do Pinheiros e do Tamanduateí era prodigiosa já que seus cursos, assinalados por uma sucessão contínua de intri-cadas reentrâncias, provocavam o alagamento das várze-as no período de cheia ou após as chuvas constantes” 4

Os alagamentos traziam inúmeros cardumes para perto da terra, que por sua vez atraíam uma rica fauna de aves e mamí-feros, fazendo do sítio um local de extremo valor para a caça e coleta que realizavam os povos da região. Por outro lado, a ca-racterística singular das águas do Tietê, que nascem a poucos quilômetros do mar, mas correm para o interior do continente, fazia o domínio desse povoado à beira da hidrovia ser disputa-do pelos europeus. É a partir deste eixo de entrada aos sertões que ele se desenvolve ao longo dos séculos. Com a descoberta do ouro, a vila até então ignorada pela Coroa ganha uma importân-cia administrativa, novamente devido à sua posição estratégica de parada entre as Minas Gerais e o litoral. É nomeada capital da província de São Vicente, depois capital da nova capitania de São Paulo e das Minas de Ouro e fi nalmente sede do bispado de São Paulo. Com esse processo, forma-se uma elite administrativa e econômica frequentadora da cidade, que não por acaso é palco da Independência. Porém, essa crescente relevância administrativa não se expressa na paisagem urbana, que segue provinciana e

Antes de realizar qualquer refl exão, crítica ou proposição que se apoie na condição contemporânea de São Paulo para existir, pro-ponho um recuo temporal, visando uma melhor leitura e interpre-tação dessa paisagem urbana, a qual ousamos viver e constituir a prática da arquitetura no entremear de suas inúmeras camadas.

Um primeiro ponto fundamental para esse trabalho é a im-possibilidade de dissociar a origem da cidade de seus atributos físicos, características do sítio no qual se implantou. Se conside-rarmos a estrutura topográfi ca desses atributos, há muito des-confi gurados, podemos considerar que ela pouco se alterou no decorrer de quatro séculos, embora a cobertura infraestrutural e arquitetônica que se formou sobre ela tenha há muito se desas-sociado desta: estendeu-se por sobre os vales, retifi cou e tampo-nou rios antes de difícil atravessamento, tornou-se uma mancha difusa que ocupa milhares de quilômetros quadrados, espraiada por diversos bairros que pouco compartilham alguma identida-de ou conexão – exceto pelas inúmeras vias rodoviárias e ferro-viárias que tecem e simultaneamente retalham esses espaços fragmentados.

Essas características físicas foram valorizadas desde a pri-meira subida estrangeira da Serra do Mar, como relata Nicolau Sevcenko:

“Assim que estabeleceram os primeiros contatos com o ajuntamento Piratininga, se deram conta de seu valor estratégico. A partir da saliência a leste do promontório central, protegida pelos desvãos escarpados do vale dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, se avistava toda a ex-tensão do Vale do Tietê, serpenteando como um caminho prateado em direção ao coração dos sertões”.3

Neste sítio é construído, em janeiro de 1554, o colégio jesuíta que demarca a fundação da cidade, e que atualmente abriga um edifício neocolonial que faz as vezes de cartão-postal e monu-mento, simulando o marco fundador. Ao redor dele, ocupando a colina, desenvolve-se a vila, que se aproveita da topografi a escar-pada e acidentada como elemento defensivo, ensimesmada como estava em meio a um território cobiçado por múltiplos inimigos. Cobiça que, mais uma vez, dialoga-se com a localização privilegia-da sobre a hidrografi a:

IMAGEM Debret. Entrada de São Paulo pelo caminho do Rio de Janeiro, 1827, aquarela, 10,8 x 21,9cm. Coleção João da Cruz Vicente de Azevedo. Segundo Berta Melo, “Do alto da colina a várzea mostra-se com toda a graciosidade dos meandros, que acentuados na tela de Debret, chegam a formar arabescos. (...) Fica evidente que Debret prioriza a criação de uma narrativa: as tropas que entram e saem são o grande destaque da composição que exagera no declive, nas curvas do rio e alonga o convento"In MELO, Berta de Oliveira. Águas errantes: uma narrativa sobre o rio Tamanduateí, a cidade e a arte. 2017. Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Paisagem e Ambiente) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

DA REALIDADE NATURAL À MODERNIZAÇÃO ESPETACULAR

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5 SEVCENKO, op. cit., 2004, p. 328.

6 Ver BUCCI, Angelo. São Paulo : quatro imagens para quatro operações [da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes]. Tese - FAUUSP. São Paulo, 2005. O doutorado trata das infraestruturas horizontais e verticais de São Paulo, que para o autor são singularidades que simbolizam o desenvolvimento urbano dessa cidade.

7 SEVCENKO, op. cit., 2004, p. 327

8 SEVCENKO, op. cit., 2004, p. 329.

9 WISNIK, Guilherme. Rio e Marginal Tietê, terra de quem?. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 24 de abril de 2006, s/n.

10 SMITHSON, Robert. A tour of the monuments of Passaic, New Jersey, 1967. In CARERI, Francesco. Walkscapes : o caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013, p.146.

11 WISNIK, Guilherme. Não-lugar, cidade genérica, planeta favela, cidade post-it. In NOVAES, Adauto (org.). Mutações: dissonâncias do progresso. São Paulo: Edições Sesc SP, 2019, p. 263.

12 SEVCENKO,Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. In REVISTA USP, São Paulo, n.63, setembro/novembro 2004, p. 31.

anteriores, frente à nova centralidade. A urbanização que se realizará daí em diante, por todo o

século XX, será pautada por esse padrão, de crescente obras de intervenção na paisagem, para possibilitar o espraiamento das atividades urbanas e o escoamento de mercadorias produ-zidas. Se o modelo urbano do início do século é europeu e seu eixo estruturante ferroviário, na década de 1930 “a metrópole já tem uma propensão verticalizante, cortada de fluxos expres-sos e crescimento ultra-acelerado, apontando para as cidades americanas polarizadas pela economia industrial.”8 Para ambos os eixos de transporte, ferroviários e rodoviários, a necessida-de de um relevo plano fez das áreas de várzea dos rios Tietê e Tamanduateí sítios ideais para a instalação das infraestruturas, trazendo extremas transformações na paisagem natural tão marcante na história e geografia de São Paulo, a ponto desses espaços tornarem-se totalmente descaracterizados, desterri-torializados, alienados dessa realidade física. São, atualmente, verdadeiras paisagens genéricas e artificiais, “locais de passa-gem, com ocupações provisórias, e cuja desertificação apaga qualquer vínculo com a história e com comunidades humanas.”9

Pode-se utilizar o conceito antropológico de Entropia, como é pensado pelo artista norte-americano Robert Smithson em relação às paisagens urbanas dos subúrbios de Nova York, para ler o processo de urbanização da cidade de São Paulo. Smithson observa, na década de 1960, a trilha de desintegração e obsoles-cência que segue o desenvolvimento urbano, as grandes obras de infraestrutura que têm como pares os espaços residuais, os canteiros de obras abandonados, as ruínas industriais. “É o contrário da ruína romântica: essas obras não se arruinaram após a sua construção; tendem à ruína ainda antes de serem construídas”10. Esse processo é visível nas constantes obras de melhorias urbanas (em sua grande maioria, rodoviárias), que demonstram essa instabilidade entrópica, na medida que exi-gem a “desativação de edifícios – fábricas, penitenciárias, quar-téis – e conjuntos urbanos – centros históricos, portos, leitos e pátios ferroviários –, desterritorializando atividades e criando novas centralidades que desfazem as antigas hierarquias es-paciais.”11 Dessas intervenções urbanas, que Sevcenko aponta como soluções cenográficas vindas da engenharia, “preponde-ram o quantitativo, o superlativo, o monumental, o acelerado, o maciço, o concentrado, o volátil e, como é inevitável para essas instâncias, o descartável.”12

espremida entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú.Apenas em meados do século XIX, com a instalação da pri-

meira estrada de ferro do Brasil ligando o interior de São Paulo ao porto de Santos, que se inicia o processo de crescimento e transformação da cidade, refletindo a prosperidade trazida pela economia cafeeira.Tal processo se dá de maneira extremamente acelerada e com ares de espetáculo: em algumas décadas, toda a arquitetura da cidade seria posta abaixo, destruída para a cons-trução de novos edifícios comerciais, palacetes residenciais e edifícios-monumento administrativos e culturais, seguindo o mo-delo das cidades européias, “assumidas como paradigma de uma modernidade universal, sem identidade e sem raiz.”5 Segundo Sevcenko, essa é a mentalidade das elites que empreendem na atividade que se torna, ainda no século XIX, a mais lucrativa da cidade – a especulação imobiliária; também é o raciocínio dos órgãos de administração pública e infraestrutura, como a compa-nhia Light.

Pode-se já enxergar, nesse momento histórico, pontos-chave que revelam as características pelas quais seriam pautadas es-sas transformações, cuja crescente aceleração e complexidade resultaria na cidade contemporânea atual, principal objeto de interesse deste trabalho. Destaca-se, evidentemente, o descaso e violência com que a modernidade atropela a realidade construti-va e urbana até então vigente, destruindo o existente através de modelos visuais e construtivos vindos do centro do capitalismo, que pouco têm a ver com a realidade local (cabe mencionar que as edificações da São Paulo pré-industrial eram, em sua maioria, feitas de taipa de pilão e taipa de mão, técnicas que estruturam as construções com a própria terra do solo).

No fim do século XIX, também se revela o primeiro grande passo de afastamento da cidade de seu sítio natural, com a inau-guração do Viaduto do Chá, em 1892. Uma das primeiras grandes obras de infraestrutura municipal, com sua engenharia européia de perfis metálicos modulares, percorre numa linha reta horizon-tal6 o grande desnível do vale do rio Anhangabaú, indicando o fim “da arquitetura integrada às anfractuosidades do terreno, das descontinuidades urbanísticas e dos desníveis extravagantes.”7

Com essa obra infraestrutural, consolida-se um novo centro econômico para a cidade, o primeiro de muitos novos-centros, que invariavelmente indicam uma tentativa de alinhar-se ao capi-talismo global com a construção de novas sedes para os poderes locais, e uma inevitável obsolescência e abandono dos espaços

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O fenômeno entrópico somou-se, nas últimas décadas do sé-culo XX, a mudanças econômicas e sociais que atuaram de manei-ra global no funcionamento das cidades, produzindo os espaços contemporâneos que vivenciamos em São Paulo. Com o advento da financeirização dos mercados e da migração dos fluxos econô-micos para o mundo da internet, surgem novas escalas de ope-ração do capital, atuando em redes globalizadas e pouquíssimo conectadas com o território real. Somadas à informatização dos trabalhos, essas escalas produzem um esvaziamento de sentido da vida em sociedade nos espaços públicos, que tornam-se uma das duas opções: ou resíduos genéricos reservados ao transporte, ou então cenografias da identidade cultural espetacular que essas novas “Cidades Globais” necessitam, para manter-se atraentes nessa nova ordem mundial.

Martí Peran afirma, sobre essa nova realidade urbana:

“O capital reconfigura o espaço, constantemente, a fim de flexibilizar a localização de ativos e de recursos e, dentro desta dinâmica, o cenário geral da cidade é sujeito a uma especialização radical que, inevitavelmente, aca-ba também por provocar uma multiplicação de resíduos condenados ao risco e à marginalização.”13

Essa especialização se expressa em um espaço urbano mar-cado por enclaves, ilhas ensimesmadas e fortificadas com esque-mas de segurança e controle, em que funções de trabalho e lazer ocorrem sem o menor contato com o contexto imediatamente ao seu redor. São locais como centros corporativos, shopping cen-ters, hotéis, complexos esportivos, condomínios residenciais. Dispersos na mancha urbana de maneira cada vez mais espraiada, graças às infraestruturas de transporte automobilístico (no caso de São Paulo e de várias cidades da América) ou ferroviário, eles se assemelham em arquitetura, programa e práticas de uso em qualquer lugar do mundo. Além disso, fora dos enclaves há uma descaracterização total dos antigos usos e significados, um esva-ziamento do “sentido historicamente herdado do espaço urbano como ambiente de encontro, conflito, choque de diferenças e produção de contrastes e riquezas culturais.”14 Ele se converte em lugar de passagem, um território que exclui a ação espontânea e só permite o movimento necessário, um território cada vez mais

IMAGEMRobert Smithson, fotografia do conjunto A tour of the monuments of Passaic New Jersey, 1967. Disponível em https://holtsmithsonfoundation.org/monuments-passaic. Acesso em 25 jul. 2021.

SÃO PAULO GENÉRICA E SEUS NÃO-LUGARES

13 PERAN. Martí [dir]. Post-It City, Ciudades Ocasionales. Madri: SEACEX; Barcelona: Centre de Cultura Contemporània de Barcelona; Madrid: Turner, 2009.

14 WISNIK, op. cit., 2019, p. 266.

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15 KOOLHAAS, Rem. A Cidade Genérica. In Rem Koolhaas : três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010, p. 31.

16 Ibid., p.42.

17 PEIXOTO, Nelson Brissac. Informes. In Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo 2009, p. 435.

18 AUGÉ, Marc. Dos lugares aos não-lugares. In Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2013, p. 73.

descrito pela mídia como perigoso. Assim formula-se um padrão urbano global, que varia do precário ao tedioso e ao espetacular, no que que Rem Koolhaas nomeou como Cidade Genérica.15

Koolhaas descreve-a como a cidade que perde ou abre mão de sua identidade, de tudo que deriva da substância física, do contexto histórico, do contato com o real. Adentra-se, assim, no território do artificial, e, como apontou Sevcenko anteriormente, porém de maneira ainda mais intensa, do descartável. Afinal, os agentes de produção do espaço,segundo o arquiteto holandês, são sempre pessoas (ou instituições) em trânsito, determinadas a seguir adiante e que jamais vão vivenciar o local que criaram. “A grande originalidade da cidade genérica é simplesmente a de abandonar o que não funciona”16, seguindo no espraiamento sem limites de um planeta que segue em vias de tornar-se quase total-mente urbano. As obras de infraestrutura escalam exponencial-mente seguindo a lógica do descartável, não mais respondendo a necessidades locais, mas servindo como arma estratégica na competição entre cidades globais. “Um novo sistema de metrô é implantado em determinada área para fazer outra parecer antiga e congestionada.”17

Nessa aceleração da entropia urbana, os espaços residuais surgem abundantes, vários onde antes localizavam-se importan-tes sítios urbanos - alguns, agora, fragmentados pela passagem de novas vias de transporte; outros, apenas esvaziados de qualquer memória, identidade ou relação antropológica de troca ou perten-cimento. Podemos considerar que esses sítios são exemplos de Não-Lugar18, termo cunhado por Marc Augé para descrever esses espaços característicos da contemporaneidade. Segundo o autor, o tempo atual é produtor de não-lugares, seja em modalidades luxuosas ou desumanas (o autor apresenta exemplos dicotômicos de não-lugares, como cadeias de hotéis vs. terrenos invadidos, ou clubes de férias vs. acampamentos de refugiados). Em todos os casos, reinam a transitoriedade e o consumo.

Além disso, mesmo nos poucos espaços públicos que parecem resistir à rarefacção e à fragmentação, espaços aparentemente portadores de uma forte identidade, pode-se estar em jogo uma outra engenhosa faceta da Cidade Global. Ela se dá justamente na seleção desses certos sítios, que recebem esforços de diversos agentes do poder e estão constantemente em melhoria e expan-são, por serem lugares do espetáculo, seja ele a História oficial da nação ou a manifestação cultural em voga na cena internacional. O sistema econômico contemporâneo faz da cultura um bem va-

19 WISNIK, op. cit., 2019, p. 267.

20 KOOLHAAS, op. cit., 2010, p. 52.

21 Idem.

IMAGEMTatewaly Nio, Escultura do Inconsciente. Disponível em https://tatewakinio.com/Escultura-do-Inconsciente. Acesso em 25 jul. 2021.

lioso no mercado global, e nesse processo a memória de um sítio é substituída por uma imagem publicitária, “conversão da reali-dade em simulacro.”19 O turismo torna-se uma força estruturante do espaço urbano, criando uma ponte cenográfica entre passado e presente, entre o que é de real interesse público e o que serve a interesses específicos. “A história regressa não como uma farsa mas como um serviço”20, afirma Koolhaas, que observa a ironia presente nessa mercantilização da história e da cultura de um povo para consumidores genéricos globais, onde por vezes a face-ta colonial “parece ser a única fonte inesgotável do autêntico.” 21

A meu ver, essa característica da cidade contemporânea ecoa na realidade de São Paulo de maneira não tão óbvia – por não se tratar de uma cidade turística padrão, que tem a atividade como principal sustento – , mas incisiva, quando se considera a constru-ção de uma identidade midiática da cidade como grande destino cultural ,e a transformação que sofrem os espaços em prol disso

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22 A mais recente obra a qual foi submetido o Vale do Anhangabaú é exemplo dessa espetacularização genérica dos espaços públicos: sem entrar no mérito do projeto (que pode ser conferido em https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/centro-dialogo-aberto/o-vale-do-anhangabau/), nem relevar todas as difi culdades e abandonos que o espaço apresentava anteriormente, parece evidente que o novo espaço adequa-se mais à realização de grandes eventos do que à cotidianidade da vida urbana, como se observou na megaperformance – exibida exclusivamente em vídeo na internet – lá realizada em novembro de 2020, antes mesmo da conclusão das obras e abertura ao público, celebrando a abertura da 25 edição de São Paulo Fashion Week

23 KOOLHAAS, op. cit., 2010, p. 47.

IMAGENSperformance de abertura dp SPFW. Disponíveis em https://fotografi a.folha.uol.com.br/galerias/16825407 3586\5812-veja-fotos-da-abertura-da-25-edicao-da-sao-paulo-fashion-week. Acesso em 25 jul. 2021.

tudo, principalmente na área central da cidade.22 Porém, a reali-dade dos não-lugares em sua forma de abandono e precariedade é, certamente, a face mais evidente que a cidade genérica assume na metrópole paulistana. Koolhaas afi rma que a cidade genéri-ca revela o fi m do Planejamento Urbano. Segundo o arquiteto, nossas metrópoles continuam a receber investimentos milioná-rios para o campo do planejamento, tentativas que vêm tanto do Estado burocrata quanto do mercado imobiliário, porém essas tentativas não fazem a menor diferença. “A paisagem urbana genérica é geralmente uma amálgama de setores excessivamente ordenados - que datam do início de seu desenvolvimento (...) - e soluções cada vez mais livres por toda a parte.”23 Soluções estas que, se de um lado representam uma libertação de lógicas enri-jecidas do urbanismo moderno e revelam novas possibilidades criativas, por outro lado evidenciam a segregação e a exclusão existente nessa realidade voltada para o Global, na qual popula-ções cada vez maiores se veem privadas de fontes de renda fi xa, de moradia permanente, de qualquer estabilidade numa socieda-de que prega, acima de tudo, os fl uxos constantes. A solução da informalidade é uma forte característica da Cidade Genérica em seus moldes de periferia do capitalismo, na qual São Paulo insere--se com perfeição.

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SÍTIOS GENÉRICOS, SÍTIOS ESPECÍFICOS

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25 PERAN, op. cit., 2009, p. 44

26 IS. Sobre o Urbanismo Unitário. [org. Paola Berestein]. In JACQUES, Paola Berenstein [org]. Apologia da Deriva. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 15.

24 PEIXOTO, op. cit., 2009, p. 15.

Exposta a escala pretendida, é necessário esclarecer que o trabalho também não tem a ambição de propor estratégias de micro-urbanismo, urbanismo tátil ou outras modalidades atuais que buscam realizar melhorias urbanas de maneira mais horizon-tal, dialogando com o entorno direto. Não ousarei propor soluções para os problemas existentes nesses sítios genéricos, num pensa-mento arquitetônico típico. A real intenção da minha atuação nos sítios está na criação de situações e na transformação de percep-ções, a partir do regresso da subjetividade como “semente de uma prática revolucionária”.25 Esse tipo de atuação baseia-se em parte nas teorias situacionistas, que pregam uma constante pro-cura, dentro da realidade existente, por frestas, em que situações possam tocar e transformar a vida cotidiana, numa eterna luta contra a alienação e a passividade da sociedade.

Num dos textos da Internacional Situacionista, atuante nas décadas de 1950 e 1960, especialmente no contexto de Maio de 68 em Paris, descreve-se a proposta do grupo para a atuação nas cidades:

“O urbanismo unitário não está idealmente separado do atual terreno das cidades. É formado a partir da experi-ência desse terreno e a partir das construções existen-tes. Deve tentar explorar os cenários atuais, pela afir-mação de um espaço urbano lúdico tal como a deriva o reconhece.”26

O nome Urbanismo Unitário revela um interesse em contra-por-se ao urbanismo moderno, que atuava de maneira setorizada sobre as cidades, já criando, segundo o grupo, resultados frag-mentados e alienantes. Este trabalho procura ler e atuar no espa-ço seguindo essa premissa da exploração sensível dos cenários reais, buscando propor experiências heterotópicas no meio urba-no existente, e não um novo modelo urbano.

Na realidade paulistana , essa proposição situacionista encon-tra possibilidades reais e de interessante atuação na exploração das infraestruturas urbanas existentes. Grandes símbolos da cidade genérica, fixos num mar de fluxos que se tornam rapi-damente obsoletos na lógica do capital global, são criadoras de não-lugares, e tanto suas superfícies quando os seus entornos residuais podem ser cenários para a criação de situações que trabalhem na tentativa de ressignificar esses sítios genéricos. No Guia de lugares difíceis de São Paulo (2019), coordenado por

Considerando a afirmação de Koolhaas sobre a morte do plane-jamento urbano, e tendo em mente a fundamentação teórica que descreve a realidade contemporânea na qual São Paulo inscre-ve-se, parece impossível realizar um trabalho que gere algum impacto real e positivo nessa cidade, que não seja abandonado e sucateado antes mesmo de ser concluído, que não sirva para lógicas de exclusão ou, ainda, que não seja tomado como capi-tal cultural e apropriado por discursos que visam o lucro, cujas realidades se encontram totalmente descoladas do local de intervenção, qualquer que seja esta. Porém, julgo que os espa-ços genéricos da nossa cidade guardam em si possibilidades de rememoração, de re-caracterização, de reapropriação por usos e práticas, de identidades escondidas ou rarefeitas que podem ser cultivadas, se observadas com atenção. Há vida incrusta-da nesses sítios, e acredito ser possível retomar experiências, subjetividades, e mesmo novos momentos de encontro, troca, conflito e pertencimento neles. Longe da lógica do planejamento urbano e afastando-se também da midiatização e espetaculariza-ção da cultura, proponho com esse trabalho uma observação do lugar, pensando atuações propositivas que deem vazão à sensibi-lidade, que busquem traçar uma ponte, mesmo que passageira, de sítios genéricos para sítios específicos.

Antes de tudo, cabe definir que, para trabalhar na aproxi-mação de vivências reais, em detrimento das experiências alie-nadas e artificiais que majoritariamente ocupam esses sítios urbanos, é importante considerar a escala local e as vivências cotidianas. Tal posicionamento vai contra as escalas tradicionais do Planejamento Urbano, atuantes em Macrozonas; também busca um contraponto às vivências virtuais contemporâneas, que utilizam-se das vistas de satélite e de câmeras de rua para observar a realidade. Sobre isso, Nelson Brissac é categórico: “Quando parecíamos condenados às imagens uniformemente aceleradas e sem espessura, típicas da mídia atual, reinventar a localização e a permanência.”24 No contexto pandêmico, esses instrumentos virtuais fizeram-se necessários para o desenvolvi-mento do trabalho, porém as visitas a campo, mesmo reduzidas, mantiveram-se um ponto essencial. Acredito ser fundamental, para reverter a lógica atual de rarefacção dos espaços urbanos de São Paulo, atentar-se à proposição de experiências que se passem nos próprios sítios, que façam uso do corpo e dos senti-dos para se apreender a realidade e, possivelmente, questioná-la e transformá-la.

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27 CYMBALISTA, Renato. Guia de lugares difíceis de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2019, p. 87.

28 PEIXOTO, op. cit., 2009, p. 420.

29 PERAN, op. cit., 2009, p. 43.

Renato Cymbalista, sinaliza-se esse potencial de locais como nós viários e terminais infra-estruturais, de difícil permanência e identifi cação.

“Os urbanismos difíceis podem ser também abordados sob a perspectiva da resistência: vários dos espaços difí-ceis vêm sendo assumidos como desafi os por diferentes grupos, que vêm tomando para si a responsabilidade de transformar lugares difíceis em lugares de usos e sociabi-lidades possíveis, em um dos processos mais interessan-tes da cidade nos últimos anos.”27

Não se pode falar da apropriação de infraestruturas sem reconhecer que, em São Paulo, esse tipo de movimento já ocorre há décadas, de maneira autônoma e informal, pouco reconhecida pela prática vigente do planejamento urbano e da arquitetura, e constantemente combatida pelo poder público. Conjuntos de moradia precária e temporária instalam-se nesses espaços inters-ticiais, assim como mercados efêmeros de comércio ilegal. Em seu texto Informes, Nelson Brissac observa com interesse essas ocupações e intervenções de caráter quase nômade, na medida que elas questionam o modelo de cidade atual, fragmentado e segregador: “As autopistas tornam-se acessos para confi gurações locais. Os elementos disfuncionais da infra-estrutura de transpor-te da cidade, que agora difi cultam a circulação, são recuperados como interstícios programados”.28

A exposição Post-It City: Cidades Ocasionais (2009), com di-reção de Martí Peran, também reconhece, nessas apropriações temporárias que apoiam-se e ativam com novos programas es-truturas obsoletas da cidade, uma importância tanto como refe-rências projetuais quanto como “práticas subjetivas de renovado potencial político”.29 Porém, discute também a legitimidade desse fascínio pelo informal, reconhecendo que, em muitos dos exem-plos expostos na mostra, a ocupação ocasional do espaço público é mera tentativa de sobrevivência, e que a inspiração projetual para ações divergentes a serem pensadas deve somar-se à denún-cia e à reivindicação por cidades mais justas.

Como já mencionado, esse trabalho não pretende propor uma tentativa de plano para erradicação dessas situações de vulnera-bilidade, nem melhorias estruturais via intervenção projetual. Mas tampouco trabalha sobre sítios existentes ignorando esses fenômenos, como se não fossem já uma realidade extremamente

IMAGENSSPAMarq, Balneário Mapocho River, Chile, 2006-2007. Projeto selecionado para a exposição Post-It City: Cidades Ocasionais:

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30 WISNIK, op. cit., 2019, p. 268.

relevante. Para além de reconhecer as estratégias de apropriação e transformação da realidade construtiva dos espaços intersti-ciais, cabe ao trabalho observar, nessas práticas, as que já subver-tem a lógica do não-lugar e permitem situações de troca, encontro e pertencimento, propondo caminhos possíveis para a ponte de sítio genérico ao sítio específi co. Especialmente, o trabalho ins-pira-se na potencialidade do acaso e do improviso observada nos chamados fenômenos Post-It, reconhecendo a potencialidade de acontecimentos como geradores de hibridizações e manipulações dos sítios genéricos.

Por fi m, uma estratégia fundamental para o trabalho, na bus-ca pela especifi cidade que pode ser construída ou retomada em cada não-lugar, é a tentativa de reterritorialização, da reconexão do sítio com sua realidade física, sua topografi a e hidrografi a, suas referências primordiais, que carregam ligações profundas com os acontecimentos históricos da cidade. Wisnik defi ne lugar como “uma entidade física e cultural enraizada historicamente, e constantemente ressignifi cada pela apropriação das pessoas”.30 Acredito que, em São Paulo, como exposto no capítulo anterior, a reconexão dos sítios urbanos com sua entidade física, que lhes dá forma e sustenta, possui uma força remetente à séculos de

IMAGENSProjetos selecionados para a exposição Post-It City: Cidades Ocasionais:

Pedro Sepúlveda , Jugar contra la corriente (Ocupações recreativas do espaço público de Valparaiso (Chile), 2007

Francisca Benítez, Prótesis del Nuevo Exodo (Nova York), 2003-2006

Na página ao lado, M. Paz Contreras, Virginia Errázuriz, Christian Galaz, Isidora Gálvez, Valentina Meneses, Andrés Peña, Angelitos (Memória, celebração e mercado imobiliário. Santiago do Chile), 2008-2009

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31 KOOLHAAS,op. cit., 2010, p. 61.

32 AUGÉ, op. cit., 2013, p. 100.

IMAGENSSequência de mapas representando a área da Várzea do Carmo:

Planta Imperial da Cidade de São Paulo,autor desconhecido. Metade do séc. XVIII (entre 1765-1774).

Mappa da cidade de São Paulo off erecido a sua Majestade, engenheiro Carlos Bresser. 1844/1847.

Mappa Topográphico do Município de São Paulo, por Società Anonima de RilevamentiAerofotogrammetrici (Sara), “Sara Brasil S/A”, 1930.

ocupação e, por isso, é um fator chave na tentativa de construção de sítios específi cos.

Koolhaas afi rma que uma das características com maior po-tencial da Cidade Genérica é a estabilidade do tempo31, querendo dizer que, nessa cidade, não há grande diferenciação entres as estações, não há presença relevante de ciclos naturais, nem ne-nhum fenômeno do tempo que cause algum impacto às atividades urbanas, que se dão majoritariamente em ambientes fechados com controle artifi cial do clima. De fato, sabe-se que ao longo dos séculos a engenharia e a arquitetura atuaram sobre a paisagem paulistana na busca por essa estabilidade, pela planifi cação das curvas e desníveis, pela aniquilação dos efeitos da chuva sobre a geografi a, embora seja evidente que todas as obras realizadas não conseguiram ainda lidar com as enchentes que se repetem ano após ano, muito menos com os deslizamentos que ocorrem em áreas de encosta ocupadas ilegalmente pelos excluídos da lógica imobiliária formal. Nesse processo, importantes referên-cias geográfi cas, que pautavam localidades e práticas urbanas no passado, foram escondidas, senão destruídas. Porém, sua reme-moração é possível, junto com a de passados não-hegemônicos que questionam a história-simulacro, legitimadora de discursos opressores.

Expostas as motivações e estratégias que baseiam a formu-lação do trabalho, assim como a intenção de atuar, de forma propositiva experimental, sobre sítios urbanos numa escala apro-ximada, é necessário realizar um recorte no amplo universo de situações que podem ser lidas como espaços genéricos da cidade. Buscou-se uma área da cidade que contivesse as diversas questões de interesse elencadas, situações que são fruto da supermoder-nidade 32, somadas ao desenvolvimento entrópico da urbanidade paulistana. Que pudesse ser percorrida e vivenciada de maneira empírica, mas que também possuísse bases teóricas e de pesquisa aplicada, para fortalecer a experimentação prática a qual se pro-põe o trabalho. Principalmente, uma área em que se observasse a condição da cidade genérica, e que fosse possível identifi car não--lugares que valessem um trabalho sensível de ressignifi cação.

Após meses de pesquisa, decidiu-se por trabalhar no centro antigo da cidade, na região conhecida no passado como Várzea do Carmo, e atualmente como Parque Dom Pedro II e arredores.

ESCOLHA DE SÍTIOS E PARTIDO DAS INTERVENÇÕES

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33 SMITHSON, op. cit., 2013, p. 141.

te desenvolvidas para eles, do genérico em direção ao específico. Além disso, procurava vivenciar no corpo e na percepção pessoal o que até então havia apenas estudado, para compreender que tipo de atuação poderia ser proposta nessa área da cidade, seguin-do os preceitos de Robert Smithson:

“A busca de um sítio específico permite que se extraiam conceitos do existente, a partir dos dados sensíveis, por meio da percepção direta. A percepção precede a concep-ção quando se trata de selecionar ou de definir um sítio. Não se deve impor, mas expor um sítio - ser dentro e fora dele. O seu interior pode ser tratado como exterior, e vice-versa. São os artistas que podem explorar os lugares desconhecidos melhor que ninguém.”33

Enfim, foram escolhidos três sítios, próximos entre si e na bei-ra da Avenida do Estado: uma ponte sobre o rio Tamanduateí, um terreno de demolição que será transformado em Sesc e a encosta vazia atrás de um monumento histórico. Cada um carrega em si diversas possibilidades de atuação, e coube à autora, numa soma de pesquisa teórica, subjetividade pessoal e interesse propositivo, entender o que deveria ser trabalhado em cada um deles na forma de intervenção – o que era importante de se trazer à tona, para melhor afetar o presente e permitir situações específicas daquele lugar.

Há um conceito, porém, que baseia todas as propostas, ser-vindo de partido para as três intervenções: trata-se da diferença de alturas, e do movimento que pode ser gerado a partir disso. Seja algo já existente no sítio, ou vindo diretamente do projeto, a questão de subidas e descidas, dos diferentes pontos de vista e da ativação corporal pelo movimento é uma ideia-força do trabalho, presente em todas as propostas de atuação. Trabalhar com a cria-ção de deslocamentos visa afetar diretamente os corpos e buscar uma compreensão e sensibilização ativa, que possa romper com as experiências genéricas que, em maioria, imperam nos sítios escolhidos. Por sua complexidade de camadas e significados, cada um dos locais de trabalho exige uma apresentação própria, uma leitura de entorno e uma justificativa de intervenção, além da des-crição da intervenção experimental ali proposta, o que será feito no capítulo seguinte.

A escolha se justifica em diversos pontos de interesse que a área apresenta em relação às intenções do trabalho, a primeira sen-do, sem dúvida, a questão dúbia de sua geografia, extremamente marcante do ponto de vista físico e histórico, mas fortemente descaracterizada na urbanidade atual. A presença ignorada do histórico rio Tamanduateí, assim como a relação de topografia que sua várzea estabelece com o declive, são potentes elementos que podem relevar memórias, práticas divergentes e situações a serem exploradas.

Um segundo ponto foi, justamente, a disputa de passados que se coloca em jogo nesses locais, que inclui o apagamento total das camadas de significação histórica, mas também os usos de sítios e edifícios chave, como o Pateo do Collegio, o Mercado Municipal, o Palácio das Indústrias ou, até mesmo, o futuro Sesc previsto na área, para legitimar discursos oficiais sobre o passado, presente e futuro de São Paulo. Por se tratar, desde sua fundação, de uma área bastante popular, principalmente nas várzeas dos rios, ela carrega também diversas outras vivências e discursos sobre o passado, que precisam ser investigados e trabalhados. A isso, soma-se a multiplicidade atual de usos e práticas existentes nos sítios dessa região, que mesclam administração pública, turis-mo, moradia precária em situação de rua, simbologia histórica, grandes eventos culturais e centralidade de comércio popular de quase qualquer mercadoria.

Por fim, a massiva presença de infraestruturas de transporte na região faz dela local de passagem diário para milhares de indi-víduos, conectando as zonas leste e oeste, norte e sul da cidade. Há grandes avenidas nas margens dos rios, como a Avenida do Estado e a Marginal Tietê, um enorme terminal de ônibus, pontes e viadutos para todos os lados, estações de metrô e trem, inúme-ras vias férreas. Essa quantidade de infraestruturas, que, pelo processo entrópico, também aporta uma gama de espaços inters-ticiais e residuais, é um dos grandes motivos de escolha dessa região como objeto de estudo.

A partir da delimitação dessa área da cidade como objeto de estudo, foram realizadas algumas visitas a campo, nas quais pro-curou-se uma aproximação com lugares da região a partir de di-versas experiências: a área foi percorrida de automóvel, a pé, de metrô, registrada por fotografia, escritos e desenhos… O objetivo dessa aproximação era identificar esses pontos de interesse para o trabalho, acima citados, na escala do local; buscavam-se espaços para situar as propostas de intervenção que seriam especialmen-

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ÁREA DE ESTUDO

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OS é qualquer outra coisa. O asfalto é democrático, é o destino

final de qualquer entulho que exista. Um destino nobre, facilitar a vida de quem circula de carro ou de ônibus. Quem faz a cidade funcionar, todos os dias. Por isso, uma boa gestão do asfalto pode eleger ou derrubar uma carreira política.

O asfalto é preto e brilhante. O asfalto é quente e seco. O asfalto é duro como aço. Como concreto.

O asfalto é um lugar de muitas regras. Tem um sentido permitido e muitas ações proibidas. Não se pode parar no meio do asfalto, essa é a maior das regras. No asfalto, segue-se sempre adiante, em linha reta. Não se pode voltar atrás, no asfalto, isso é impossível. Deve-se manter à direita, pegar a alça que leva ao viaduto, elevar-se dezenas de metros, descer à direita, contornar o quarteirão e, agora sim, seguir numa outra linha reta, em sentido contrário. Esse é o único jeito.

Deve-se obedecer sempre às placas de trânsito. Hoje em dia, pode-se também obedecer aos celulares que transportam as placas para dentro de cada carro, assim não há necessidade de olhar pela janela.

Você circula assim sobre o asfalto. Nessa avenida ele está ótimo, é novo e não se vêem os buracos. Por isso gosta de quando o aplicativo te manda para a Avenida do Estado. O trânsito é igual por toda parte, mas o asfalto não é. Você determina os ajustes do celular para te levarem sempre pelo trajeto mais direto possível. Odeia os desvios por ruazinhas estreitas e cheias de pedestres. Configura a voz feminina para falar apenas o mínimo necessário, só as direções, de resto escuta a rádio. Assim é mais fácil.

Às vezes você olha pela janela e fica atrapalhado com algumas indicações. É normal isso? Essa placa verde dizendo PRESSA? O que ela quer dizer? Além do óbvio. Não sabe o que significa, então melhor não seguir, apesar de estar, sim, com pressa. Uma vez viu uma que indicava RESPIRO. Vinha logo depois do túnel todo grafitado, e te fez lembrar da brincadeira das crianças que prendem o ar.

Você não entende o sentido dessa sinalização que não tem nada a ver com o caminho. Parece mais confundir do que guiar. Tem umas setas que apontam para lugar nenhum, para o meio do canal. O que é que pode haver lá? A placa diz ENCANTO. Mas o aplicativo não fala nada, então você segue adiante e pega o sinal aberto. Confia no sistema de satélites para chegar aonde precisa, ao local de destino. Até lá, não há lugar, só caminho, só asfalto, e algumas placas que insistem em indicar a terra logo abaixo.

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"Há uma cordilheira sob o asfalto". Caetano Veloso.

O asfalto alisa; o asfalto nivela; o asfalto faz a roda girar plena. O asfalto veda, impermeabiliza. Não deixa entrar água nenhuma, nadinha de terra, barro, poças de lama, nada, olha que beleza. No asfalto não se atola! O asfalto é ideal para as altas velocidades. No asfalto, você corre como se voasse sobre o território.

O asfalto é civilizatório. Demarca as grandes cidades do mundo. O que não está asfaltado, pode muito bem ser considerado como não pertencente à cidade. Não é cidade,

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BUSCAR O AVESSO DA CIDADE

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TRAVESSIA SOBRE O RIO TAMANDUATEÍ

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35 SMITHSON, op. cit., 2013, p. 143.

Citação da página 51:VELOSO, Caetano. Enquanto seu lobo não vem. Universal Music, 1968.

34 MELO, Berta de Oliveira. Águas errantes: uma narrativa sobre o rio Tamanduateí, a cidade e a arte. 2017. Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Paisagem e Ambiente) - FAUUSP, São Paulo, 2017, p. 9.

e impressionante. Junto com o rio Anhangabaú, as águas do Tamanduateí definiram a fundação e desenvolvimento da cidade e de todo o planalto, e se tornaram objeto de constantes obras urbanas, sejam elas de infraestrutura, saneamento e embele-zamento. Toda essa energia de transformação, porém, resul-tou numa paisagem que Smithson apontaria como entrópica: "genérica e obsoleta, na qual não habitam presente, passado e futuro, mas diversas temporalidades suspensas”.35 Interessa ao trabalho, portanto, trabalhar esse encontro dos rios e o signifi-cado histórico e simbólico que eles carregam de maneira oculta, mas que pode ser explorada na construção de novas paisagens temporárias. A ponte da av. Paula Sousa fica a alguns metros da entrada que escoa as águas do canal do Anhangabaú, numa cas-cata artificial facilmente confundida com qualquer escoamento pluvial ou de esgoto. É a única vista que se tem das águas desse córrego, completamente tamponado e ocultado. Esse potencial de vitalidade, tanto humana quanto natural, justifica a escolha do sítio.

Acredito que explorar essa vitalidade presente nos corpos, e propor uma aproximação e sensibilização destes com a força reprimida do Tamanduateí, passa pela chave do movimento: primeiramente, propor um rompimento com os movimentos automáticos e passivos da circulação cotidiana pelo sítio. Num segundo momento, evocar nesses corpos uma memória de movimentos outros, de descida até as águas, de contato com a natureza oculta e não totalmente sepultada na cidade de São Paulo. Afinal, o rio, assim como a terra, é uma presença inegá-vel. Nesse movimento proposto, traça-se um desvio do caminho direto que cruza o leito do rio, numa estrutura definida como lugar de passagem, e nunca de parada.

Para além do desvio, propõe-se que os corpos presentes tenham contato com a memória de outras experiências que vi-venciaram o sítio. Esse movimento ancestral de descida à beira do rio, e a prática desse espaço como lugar de encontros e acon-tecimentos, era realizado diariamente ao longo do século XIX e início do século XX. A principal saída da cidade se dava na ladei-ra do Carmo, que levava ao caminho do Rio de Janeiro. Além da estrada de terra, havia também a navegação pelo Tamanduateí, que gerava um movimento frequente de descida aos portos flu-

Este sítio caracteriza-se inicialmente como uma ponte que cruza a Avenida do Estado, num ponto de grande fluxo de ve-ículos e transeuntes, devido à proximidade dos armazéns da zona cerealista e do centro de compras conhecido como Feira da Madrugada. Em minha primeira visita ao local, de carro, surpreendeu-me essa presença humana, num cenário tão árido como o percurso que realizava pela Avenida do Estado, ante-cedido pela Marginal Tietê. Observei que, se a avenida era um espaço dominado e sufocado pelos automóveis, as pontes eram o reino dos pedestres, que circulavam rapidamente, desviando uns dos outros, numa coreografia apressada e um tanto mecâ-nica para o cumprimento de seus afazeres cotidianos; também nelas os diversos ambulantes da avenida escolhiam instalar seus pontos de apoio, encostados nas muretas.

Com o recorrente travamento e falta de mobilidade das vias de carro, a impressão é de que, nesses espaços de passagem, há uma espécie de liberdade possível nos movimentos dos corpos, algo que foge à norma das estruturas de circulação para pedestre. Na própria avenida, essas estruturas são praticamente inexistentes, sendo o caminhar extremamente desconfortável e desencorajado, mas inevitavelmente resistente. Por causa disso, pareceu-me que, na ponte Paula Sousa, existia uma brecha para a espontaneidade, na qual acontecimentos inesperados e improvisados teriam espa-ço para ocorrer, caso houvesse uma provocação para tal.

Além de espaço de passagem, trata-se dum lugar de atraves-samento: essa via atravessa o que já foi um grande e relevante rio. Não se dá a devida importância, atualmente, no fato do corpo humano poder ultrapassar a pé um vasto corpo d’água, trazendo junto de si seus bens, suas mercadorias, suas roupas secas. Até mesmo ignora-se a presença desse corpo d’água, mesmo estando ele, na maior parte do tempo, totalmente visível e a alguns metros de distância. “(...) Talvez a maioria das pesso-as não saibam ao certo quem é ou onde está o rio Tamanduateí. É necessário localizá-lo como canal em meio à avenida do Estado, para que um reconhecimento surja mais facilmente”34, constata Berta de Melo em sua dissertação sobre o rio e suas suas representações na arte ao logo dos séculos.

A autora afirma que o Tamanduateí funciona como me-tonímia para a situação de todos os cursos d’água da cidade de São Paulo, porém em escala mais intensa, documentada

PONTE DA RUA PAULA SOUSA

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39 SESSO JUNIOR, Geraldo. Retalhos da velha São Paulo. São Paulo: Gráfi ca Municipal,1983, p. 79.

40 MELO, op. cit., 2017, p. 72.

IMAGEMVicenzo Pastore, fotografi a. 1910 circa. Acervo IMS.

36 BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. In MELO, op. cit., 2017, p. 39.

37 BARTALINI, Vladimir. Paisagens surgentes. 2018. Tese (Livre Docência em Paisagem e Ambiente) - FAUUSP, São Paulo, 2018, p. 160

38 SEVCENKO, op. cit., 2004., p. 323.

viais e aos mercados populares lá instalados.

“No extremo do beco dos Barbas (ladeira Porto Geral) havia um porto onde atracavam as canoas que condu-ziam mercadorias das roças ribeirinhas e das olarias das roças de São Bernardo. Era o porto mais importante do Tamanduateí, e vivia por isso cheio de tropas, de merca-dores e de escravos.”36

Toda uma variedade de corpos trabalhadores, escravizados ou não, frequentava a área da várzea. Escolheu-se, porém, trabalhar com um recorte memorial específi co, e por isso mais potente em alcançar e sensibilizar o sítio presente: trata-se da memória das lavadeiras, personagens extremamente marcantes na paisagem do Tamanduateí.

Lavadeiras estão presentes em diversas imagens que re-tratam a cidade e, mais especifi camente, a Várzea do Carmo, seja nas aquarelas dos artistas viajantes ou nas fotografi as de Militão de Azevedo e Vicenzo Pastore. “As pinturas e fotografi as oitocentistas ou do início do novecentos atestam as margens do Tamanduateí fl ocadas de roupas e espumas”.37 Nicolau Sevcenko atesta a grande importância dessas fi guras na paisagem urbana do século XIX, numa cidade em que predominavam, nas áreas públicas, “uma população sobretudo feminina, de negras e mu-latas cabeças de famílias, sobrevivendo de expedientes, de seus tabuleiros de quitutes, como lavadeiras ou como fornecedoras dos tropeiros e dos caixeiros”.38

Para além dos registros visuais, há diversos escritos que rela-tam a presença marcante das lavadeiras para a paisagem sonora do antigo sítio.

O memorialista Geraldo Sesso Junior escreve:

“Numerosos grupos de mulheres apressadas se dirigiam em direção à Várzea do Carmo. A maioria era ex-escravas e mamelucas, sendo poucas as mulheres brancas. [...] Acontecia que muito antes de se acomodarem, cada qual em seus lugares, já se iniciava a discussão que era acom-panhada de impropérios e palavrões e terminava em brigas - tudo isso para a disputa de melhores lugares. A algazarra e os gritos histéricos das mulheres eram ouvi-dos à distância; todas as vezes que tal acontecia, podia-se notar enorme aglomeração de populares e curiosos, que,

dos outeiros do Carmo e do Largo das Casinhas [Largo do Tesouro], se divertiam gostosamente, presenciando, lá em baixo, na Várzea do Carmo, a já costumeira e tradicio-nal ‘briga de lavadeiras’.”39

Esse relato evoca uma ludicidade cotidiana, uma vitalidade de relações então possível na beira do Tamanduateí, algo que parece inalcançável no sítio atual. Uma segunda leitura, porém, também indica uma certa visão sobre a população que frequentava a beira do rio, que tornou-se dominante em meados do século XIX: com o veloz desenvolvimento econômico e a crescente infl uência das elites de São Paulo, as fi guras pobres e insubordinadas da Várzea são percebidas como ameaças ao ideal de metrópole modernizada que se buscava elaborar.

Essa visão comprova-se em ação, através de uma sequência de projetos de engenharia e embelezamento. O rio meândrico é transformado em canal e, através do Parque Dom Pedro II, a região torna-se “cartão postal da Belle Époque burguesa paulista-na”40, já não havendo espaço para as lavadeiras, que desaparecem

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41 MELO, op. cit., 2017, p. 80.

IMAGENS Vicenzo Pastore, fotografia. 1910 circa. Acervo IMS.

Christo e Jeanne-Claude.Ocean Front, em Newport, 1974. Foto de Gianfranco Gorgoni, disponível em https://christojeanneclaude.net/artworks/ocean-front/. Acesso em 25 jul. 2021.

sem deixar vestígio. Algumas décadas mais tarde, porém, nem mesmo o Parque pode ser reconhecido na paisagem, tamanho emaranhado de vias expressas e obras de infraestrutura lá ins-taladas, que relegaram o sítio às sobras do rodoviarismo, onde a lembrança de canoas, pescadores, animais e lavadeiras torna-se uma alucinação distante.

“Aquelas mulheres continuaram a existir, tiveram que mudar de profissão ou foram para regiões mais distan-tes, num longo fluxo que continua até hoje na metrópole de São Paulo, vagando de periferia em periferia cada vez mais afastadas do centro."41

Berta de Melo reforça a importância simbólica de escolher essas figuras do passado como objeto de projeto, reconhecendo que sua memória ecoa em processos contemporâneos da cida-de. A rememoração também significa uma aproximação de suas sabedorias e práticas de espaço, que servirão de apoio para essa criação de um lugar alternativo e sensível, na ponte Paula Sousa sobre o Tamanduateí.

Assim, escolheu-se trabalhar com uma estrutura simples que, além de ampliar o espaço pietonal da ponte, convida à descida, com uma rampa que apoia-se nas paredes de contenção do canal e leva até um novo espaço, uma plataforma à beira do rio. Cria-se esse lugar temporário, de estar, à semelhança das fotos de Pastore, em que os diversos lençóis estendidos na relva formam um espaço afetivo, ou das instalações em tecido flutuante de Christo e Jeanne-Claude. Elemento marcante dos registros dessa atividade, o tecido branco é explorado na intervenção como com-ponente de vedação da estrutura, como uma barreira visual que impede a vista do rio, tornando física a já mental inviabilização das águas e, por isso, produzindo tanto um estranhamento inicial, quando uma imersão no percurso da intervenção, que cerra-se de influências externas da avenida e finalmente apresenta novas ma-neiras de enxergar o Tamanduateí, através de poucos e certeiros recortes, que enquadram o olhar.

Nessa rampa fechada pelo tecido, proponho uma atmosfera que evoque, de maneira ainda mais potente, a memória das lava-deiras, intrínseca a essa descida. Além do registro de gritarias, condizente com o discurso da administração elitista, há inúmeras

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43 MELO, op. cit.,2017, p. 95.

42 SESC TV. Direção geral de Belisario França, 2008. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=X5qxLb-tbCg4&t=680s. Acesso 25/04/2021.

“A calha do Tamanduateí foi rebaixada, na tentativa de se evitar enchentes no início da década de 1970. O rio ficou bem mais baixo do que seus afluentes. A água se molda, vence alturas criando cascatas. Ainda que poluída, conti-nua a ter seus encantos, como o barulho da água que cai sobre a água.” 43

Esse ponto da intervenção busca voltar a atenção para o presente, para o que ainda existe, mesmo que oculto, ignorado e mal-cheiroso: o rio Anhangabaú, o Tamanduateí, as águas e a natureza como um todo, são elementos vivos de nossa cidade, que têm em si o poder de recriar referências e conexões, mesmo nos espaços mais rarefeitos e genéricos.

menções aos cantos de trabalho que realizavam essas mulheres durante sua atividade à beira-rio. Canções cantadas coletivamen-te e acompanhadas pelos ruídos de seus próprios afazeres e movi-mentos gestuais na água. Para fazer ressoar essa memória, uma instalação sonora soma-se à construtiva, criando um convite au-ditivo ao desvio e a imersão no que foi esse sítio em seu passado: lugar de trabalho e encontro de mulheres pobres, na beira do rio.

Atualmente, pode-se apenas imaginar essas cantorias, pois não há registro gravado ou escrito das canções específicas das la-vadeiras do Tamanduateí, uma vez que sua presença foi fortemen-te repelida e desvalorizada. Há, porém, grupos de lavadeiras de outras partes do Brasil que, resistindo até hoje no ofício, mantêm viva a tradição de suas antepassadas e gravam em estúdio suas canções ancestrais. O Projeto Cantos de Trabalho, do Sesc/SP42, produziu um documentário sobre um grupo de lavadeiras do Rio Jequitinhonha (MG), mulheres idosas que organizam-se em coral e cantam tanto durante o ofício, à beira do rio, quanto em shows pelo Brasil afora. Pela origem social dessas cantoras – de baixa renda e escolaridade formal, e majoritariamente racializada; pela tradição oral de suas mães, avós e bisavós presente na seleção das músicas; pelo convívio diário e afetuoso com as águas de um rio; pelos depoimentos sensíveis sobre o trabalho e a arte que reali-zam; por esses motivos, acredito que faça sentido trazer fragmen-tos de suas canções, falas e sons de trabalho para a intervenção na Várzea do Carmo, para criar essa reconexão temporária entre o sítio presente e suas referências passadas e suprimidas, evocando também uma ponte com outras práticas que ocorrem nas mar-gens de rios como esse, e que podem indicar possibilidades de afeto e identidade com suas águas.

O fim do percurso de descida se dá numa plataforma também fechada em si pelo tecido branco, que é instalado, em alguns pon-tos, na forma de cortinas móveis. Nesse espaço cessa-se a canto-ria das lavadeiras e passamos a um segundo momento da instala-ção sonora, no qual se entoa um ruído contínuo de queda d’água. As aberturas estratégicas da cortina revelam, com seu enquadra-mento, onde nos situamos e do que se trata esse som: a platafor-ma fica lado a lado ao deságue do rio Anhangabaú, numa distância que permite o toque, caso estenda-se a mão. Uma aparelhagem de captação sonora registra o som do deságue, que é amplificado nas caixas que formam a instalação.

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INSTALAÇÃO SONORA. TECIDO PERCAL BRANCO 100% ALGODÃO COMPRADO NO BRÁS, ALTO-FALANTES CONECTADOS COM REPRODUTOR STEREO, MICROFONES SEM FIO. ESTRUTURA METÁLICA EM PERFIS TUBULARES 3MM, ENGASTADA NO CONCRETO DA PAREDE DE CONTENÇÃO. PISO EM COMPENSADO NAVAL PINTADO DE BRANCO.

INTERVENÇÃO

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OS píer no nível d’água

original do Tamanduateí: instalação sonora com captação live da queda d’água do Anhangabaú, que deságua logo à frente.

Momento de reconexão e percepção da realidade física do rio que existe sobre nossos pés.

Deságue do córrego Anhangabaú, com captação sonora simultânea do ruído da queda d’água construída artifi cialmente.

Descida: Instalação sonora com o canto das lavadeiras de Almenara,MG. O usuário percorre uma rampa engastada e parafusada na superfície inclunada da base da contenção, vedada nas superfícies com tecido branco translúcido.

Momento de imersão na memória dos usos populares das águas no rio.

Nível térreo: expansão da calçada sobre estrutura de antiga ponte inulizada

Lençois fi xados no topo de estrutura metálica, escondendo a ignorada vista do rio

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OS Mas cadê meu lenço branco...

/ô lavadeiraQue eu lhe dei para lavar... ô lavadeiraMadrugada madrugou ... ô lavadeiraE o sereno serenou ... ô lavadeira

Não tenho culpa do que se passouDeu uma chuva muito forteE o lenço carregou

Morena você se lembra... ô lavadeiraDa noite que se passou... ô lavadeiraMadrugada madrugou... ô lavadeiraE o sereno serenou... ô lavadeira

Fui descendo rio abaixo...oi lavadeiraComo desce o lambari... ô lavadeiraProcurando amor de longe... ô lavadeiraQue o de perto eu já perdi... ô lavadeira

Fui descendo rio abaixo...oi lavadeiraNuma canoa furada...oi lavadeiraArriscando a minha vida... oi lavadeiraPor uma coisa de nada... oi lavadeira.

“Eu lavava roupa num córrego que chamava Córrego dos Brejos. Água boa. alí nós ainda tomava um banho, lavava o cabelo e já saía dali tudo limpinho. Sempre vinha da água, trabalhando com água.”

“Eu gosto de cantar porque quem canta, seus males espanta.Eu canto a música que era minha mãe que cantava, a mãe de Teresa ensinara duas pra ela também, então o que uma começa a cantar a outra continua cantando também.”

Depoimentos e letras das canções recolhidos e mixados para a instalação.Acesso ao áudio em:https://www.teresalbc.com/tfg-audio

Senhora Santana ao redor do mundoAonde ela passava deixava uma fonte

Quando os anjos passa bebe água delaÓ que água tão doce, ó Senhora tão /bela!

Encontrei Maria na beira do riLavano os paninho do seu bento fi

Maria lavava, José estendiaO menino chorava do fri que sentia

Calai meu menino, calai meu amorQue a faca que corta não dá tái/sem dor [14]

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O sítio é um enorme terreno, contornado por cercas e com algumas estruturas provisórias no seu interior, bem como pinturas coloridas no chão. Tratam-se de demarcações de uso para o que seria, de outra forma, um grande terreno vago, cujo futuro é tornar-se canteiro de obras e, posteriormente, equi-pamento cultural de grande escala, do selo Sesc-SP. No início dessa pesquisa, a quadra de quase 60 mil m2, na esquina da avenida Mercúrio com a avenida do Estado,recebia a realização de algumas atividades propostas pelo Sesc, mas a aparência de desocupado já predominava. Hoje os portões encontram-se fe-chados para atividades e visitantes, com data de início das obras próxima.

Esse grande vazio urbano representa um recente exemplo de entropia urbana paulistana. Em outras palavras: esse sítio não é apenas um vazio, mas sim uma ausência, uma tábula rasa, terra arrasada, o chão que restou após a retirada dos escombros de demolição do edifício habitacional São Vito – e de seu geminado Edifício Mercúrio. Posta abaixo em 2011, essa arquitetura “lan-çada como símbolo do progresso e, depois de meio século, como símbolo de arruinamento urbano (e social)”44 foi apagada do en-torno, em que monumentos oficiais como o Mercado Municipal e o Palácio das indústrias dividem e disputam a narrativa da pai-sagem com o comércio popular e irregular da rua 25 de Março e do Brás, com moradores de rua e coletores de lixo reciclável, com grandes avenidas, alças viárias, pontes e viadutos, com um rio canalizado que cheira e se assemelha a um esgoto aberto.

Assim, o sítio oscila entre não-lugar completo e, apenas du-rante os momentos de abertura dos portões para atividades do Sesc, espaço de convivência e lazer. Porém, uma coisa é certa: em nenhuma das situações, há alguma experiência de recone-xão entre o grande quarteirão plano, cimentado e gradeado, e sua ocupação anterior, pelo único arranha-céu moderno da Zona Leste, local de morada para mais de 3 mil pessoas de baixa renda45, cujo destino foi a desapropriação, com falsas promessas de retorno, e consequente expulsão do sítio, de maneira higie-nista, negligente e sem responsabilidade social. Com a futura construção do novo prédio do Sesc Parque Dom Pedro II, projeto do escritório UNA Arquitetos, é possível que essa desconexão e apagamento do passado conflituoso fique ainda maior, o que me motiva a produzir uma intervenção que tensione esse processo

44 DUARTE, Nicolie de Brito. Por uma Arquitetura: Cenário, Transformação e Manifesto na Arquitetura Arruinada. Dissertação (Mestrado - Área de concentração: História da Arte) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 2021, p. 32.

45 3.094, na conta da antiga síndica do prédio, Tânia Maria Torrico. A Secretaria da Habitação contabilizou 1.200 moradores na época da desapropriação. Fonte: Folha de S. Paulo, 2003. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1408200319.htm. Acesso em 5 abr. 2021

TABULA RASA E FUTURO SESC NA AVENIDA MERCÚRIO

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OS e trabalhe na rememoração do que a cidade genérica tanto se

esforça a esquecer.

Rem Koolhaas enxerga uma obsessão das cidades com o seu “centro” (muitas vezes mais simbólico do que realmente geográ-fi co, conforme a expansão da mancha urbana), constantemente submetido a planos urbanos de manutenção ou renovação, pois “paradoxalmente tem que ser, ao mesmo tempo, o mais antigo e o mais novo, o mais fi xo e o mais dinâmico”.46 As dinâmicas que operaram no processo de eliminação do edifício São Vito e seus moradores da paisagem central seguem a lógica descrita por Koolhaas, buscando construir uma imagem de centro da cidade em que monumentos da história ofi cial, sejam arquitetônicos como o Mercado Municipal e o Palácio das Indústrias, ou paisa-gísticos como o sofrido Parque Dom Pedro II, convivam em har-monia e funcionalidade com as infraestruturas de uma metrópole do século XXI, ou seja, com os diversos eixos de transporte que se encontram em estruturas mais ou menos conectadas na região, projetadas por arquitetos célebres como Paulo Mendes da Rocha e Ruy Ohtake.47

É claro, basta uma visita à região para verifi car que esse ideal não se sustenta, e que a presença da cidade informal e margina-lizada, representada pelo comércio irregular ou pelas estruturas de moradia improvisada na rua, mantém-se elemento defi nidor dessa paisagem. Isso não signifi ca, porém, que a face violenta do poder público não esteja constantemente atuando para efetivar e explorar a imagem de cartão postal do local, unida aos interes-ses da elite econômica em escala local e global. Nicolie de Brito Duarte, em sua dissertação sobre o edifício São Vito, afi rma que, ao longo das décadas, governo municipal e imprensa atuaram ati-vamente na caracterização do prédio e de seus moradores como perigosos para o bem comum, como “prostitutas, travestis, de-sempregados, degenerados, bandidos, desocupados e loucos”48, responsáveis pelos crimes que ocorriam nos arredores, cons-truindo assim uma estigmatização que justifi cou intervenções da prefeitura num edifício privado, que sofria simplesmente das difi culdades de administração condominial de um grande conjun-to residencial de baixa renda.

“A estigmatização feita pela mídia com sensacionalismo

AVESSO DO CARTÃO POSTAL

46 KOOLHAAS, op. cit., 2010, p. 34.

47 respectivamente o projeto para o terminal de ônibus Parque Dom Pedro II, parceria de Pau-lo Mendes da Rocha com o escritório MMBB (dis-ponível em https://www.mmbb.com.br/projects/view/37. Acesso em 23 jul. 2021), e o projeto para os terminais de transporte do Expresso Tiradentes (disponível em https://revistapro-jeto.com.br/acervo/ruy-ohtake-arquitetura--e-urbanismo-terminais--de-12-06-2007/. Acesso em 23 jul. 2021)

48 DUARTE, op. cit., 2021, p. 41.

IMAGENSFotografi a de Ignacio Aronovich, disponível em arqivop.arq.br. Acesso em 25 jul. 2021.

Captura de reportagem da Folha TV, 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UvM3xVSWOGU. Acesso em 25. jul. 2021.

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sa demanda para um concurso em nível nacional, já nos mostra que a reforma não seria democrática, muito me-nos inclusiva ou justa com os moradores ou transparente com a sociedade. (...) A reforma aparece como transfor-mação cênica no sentido de maquiagem urbana. O surgi-mento do novo, com o projeto de reforma nesses moldes, representa a ilusão do progresso pela remoção do aspecto de pobreza e arruinamento, pela remoção da ruína.”51

O croqui apresentado no site do arquiteto Loeb mostra os novos elementos propostos para o prédio: uma escola priva-da de gastronomia no térreo, ligada ao monumental Mercado Municipal por uma passarela que atravessaria o rio e a Avenida do Estado; um elevador panorâmico que levaria ao mirante na co-bertura, em que desenharam a bandeira da cidade; uma pintura mural na empena do edifício, de autoria do artista Eduardo Sued. Nessa proposta de embelezamento, os arquitetos reorganizaram as unidades habitacionais, reduzindo-as à metade, que teriam agora uma área de 35 a 60m². Fica claro que os antigos morado-res, uma vez destituídos de suas garantias de proprietários (in-justamente, teriam que recomprar uma unidade, quando finali-zada a reforma) e retirados do edifício com uma Bolsa Aluguel de 300 reais, enfrentariam todo tipo de dificuldade para manterem-

sobre fatos ocorridos ou não dentro do São Vito corrobo-rava com uma imagem desgastada de um edifício visto como problema da região. Eleger o São Vito como vilão isentaria a prefeitura do “peso” de ter de lidar com os problemas da região central, bem como desigualdades estruturais, violência. Além do interesse em manter a re-gião atraente economicamente, o projeto de remoção da “aparência de pobreza”, seja removendo seus moradores ou o edifício por completo, além de mostrar serviço para eleitores de classe média-alta, vinha carregado de ideolo-gias progressistas para a região central.”49

Desde os anos 1980 houveram propostas de demolição do edi-fício, sendo a primeira encabeçada pelo prefeito Jânio Quadros, sempre apoiando-se nas nomeações errôneas e preconceituosas de “favela vertical”, “cortiço” etc. Em 2002, o São Vito volta a estar no centro do debate público, com a gestão da prefeita Marta Suplicy, que levava a cabo a “Operação Belezura”, literalmente um programa de embelezamento urbano. A região do Parque Dom Pedro II era contemplada nessa operação, visando a “re-cuperação ambiental e urbana” dos arredores e o estímulo ao turismo, e nesse contexto realizaram-se reformas no Palácio das Indústrias e no Mercado Municipal, que passou a abrigar uma nova área de restaurantes típicos. Assim, o vizinho São Vito res-surge como problemática pública, necessitada de uma interven-ção para ornar com as intenções turísticas da área.

A pressão de setores influentes contrários à demolição resul-tou na decisão de uma reforma total do edifício, proposta que “foi conduzida no âmbito do órgão habitacional da prefeitura e inclu-ída no Programa de Arrendamento Residencial do governo fede-ral, voltado a famílias a partir de três salários mínimos.”50 Trata-se, portanto, de uma proposta de Habitação de Interesse Social, que deveria simultaneamente reassegurar a moradia dos proprie-tários vivendo no São Vito e contribuir para o déficit habitacional da região central. Porém, uma análise do projeto, de autoria dos arquitetos Roberto Loeb e Helena Saia, evidencia que a questão da moradia é definitivamente colocada em segundo plano:

“Elementos desse projeto indicam sua sincronia com o projeto de valorização urbana e de promoção do turismo para a área, no entanto reforçam a falta de interesse real no destino dos moradores. A ausência de abertura des-

51 DUARTE, op. cit., 2021, p. 43.

IMAGEMCroqui do projeto, LOEB, 2003. Disponível em http://www.loebcapote.com/projetos/20/imagens?by_image_type=6. Acesso em 4 abr. 2021.

49 DUARTE, op. cit., 2021, p. 41.

50 Ibid., p. 47.

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52 DUARTE, op. cit., 2021, p. 51.

53 Veja São Paulo, 2010. Disponível em https://vejasp.abril.com.br/cidades/edifi cio-sao-vito-demolicao/ . Acesso em 5 abr. 2021

54 SIQUEIRA, Renata Monteiro. Edifício São Vito: poder público, imprensa e estigmatização. São Paulo, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, V. 20 N. 2 (2018): Maio-Agosto, p. 283.

55 Ver memorial descritivo do projeto, disponível no site do escritório UNA bv. http://unabv.com.br/projetos-urbanos/plano-urbanistico-parque-dom-pedro-ii/. Acesso em 5 abr. 2021.

IMAGENSFotografi as de Hélvio Romero/AE - Estado de São Paulo, 2011. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/blogs/olhar-sobre-o-mundo/demolicao-do-treme-treme/. Acesso em 25 abr. 2021.

-se nesse novo prédio, cujo custo dos aluguéis e condomínio certa-mente aumentaria.

A realidade, porém, foi ainda mais cruel. Com a mudança de gestão na prefeitura, o projeto foi declarado inviável pelos novos prefeitos, José Serra e Gilberto Kassab, que decidiram pela demo-lição do edifício, já esvaziado de seus habitantes para o início das obras de renovação. Cabe dizer que, segundo Duarte, o custo so-mado da demolição com a desapropriação de 3 mil famílias ultra-passa em muito o valor previsto pelo projeto de reforma, mesmo havendo diversos depoimentos de moradores sobre o não-recebi-mento da indenização, o que mais uma vez reforça o argumento de ação cenográfi ca, pautada na imagem de cartão-postal que se visava construir na área, e não em dados econômicos ou sociais. “A remoção do prédio, do estigma e dos estigmatizados é uma manobra articulada de apagamento”.52

Num violento simbolismo, que pretendo explorar no projeto para o sítio atual, não foi permitida a implosão do São Vito, uma maneira fácil e espetacular de pôr um fi m à mácula da paisagem que tanto desagradava a opinião pública. Ao contrário, foi reali-zada uma demolição manual e mecanizada, que realizou-se por seis meses seguidos num ritmo descendente, quebrando o prédio andar a andar, sendo registrada em diversas fotografi as da área durante o período. As montanhas de entulho geradas foram uti-lizadas para asfaltamento de ruas na periferia da cidade53, onde provavelmente a maior parte de seus moradores também se retirou.

Segundo Siqueira, “a proposta de intervenção no edifício teve um fi m em si mesma. (...) O projeto não era de construção de algo novo, mas apenas de destruição do que existia. Esse comporta-mento tampouco é inédito e deve ser entendido como uma marca da prática urbanística paulistana”.54 Tal afi rmação contesta o discurso elaborado pela prefeitura de São Paulo, que contratou, logo após a decisão de demolição, o intitulado “Plano Urbanístico Parque Dom Pedro II”, no qual a retirada dos edifícios São Vito e Mercúrio consta como fase inicial de projeto.55

Tal plano foi elaborado sem consulta popular ou abertura de concurso público, e o foco do projeto voltou-se para a revitaliza-ção da área através do reordenamento dos eixos de transporte e do urbanismo ecológico, sendo parte importante da proposta uma

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56 DUARTE, op. cit., 2021, p. 56.

57 Ver DAVIS, Mark. Cidade de quartzo : escavando o futuro em Los Angeles / Mike Davis. São Paulo : Página Aberta, 1993.

58 DUARTE, op. cit., 2021, p. 57.

59 Como conta Giselle Beiguelman, em palestra para o projeto demonumenta: do Monumento ao Monumento Negativo, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8MlipEcCsdk. Transcrevo parte de sua fala: “Esta correlação entre estética da memória e estratégias para perpetuar a imagem de alguns indivíduos do poder para a posteridade, no meio das artes, vai se manter ao longo do século XIX, nas cidades europeias e americanas, conforme as independências nacionais eram conquistadas. Mas com uma diferença essencial: elas se expandem para a escala urbana; as artes passam a se misturar com a arquitetura e com o próprio planejamento urbano; elas adquirem novas funções, como se tornarem referências na paisagem para orientar o deslocamento e a memória coletiva. (…)É só no campo da arte contemporânea que estéticas da memória alternativas às obras de arte produzidas a partir das demandas do Estado vão se consolidar, e assumir uma série de linguagens.”

60 Documentário SÃO VITO. Camila Mouri e Pedro Caldas/Pedro Caldas. São Paulo: Taturana Mobi, 2017.

61 DUARTE, op. cit., 2021, p. 41.

IMAGENS DA PÁGINA DUPLA ANTERIOR Comparação de duas fotos aéreas: Ortofoto de 2017 (direita) e Ortofoto de 2004 (esquerda), onde se vê o São Vito e o Mercúrio como os únicos edifícios altos da região, lançando sua grande sombra sobre a cidade. Disponível em http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx#

chave: os signos familiares, que reconhecemos como domésticos, e a sensação física de instabilidade. Da união dos dois elementos, busco produzir um estranhamento no espectador, uma sensibili-dade de que algo conhecido não está como deveria, uma inquietu-de angustiante.

Um dos pontos mais importantes que o trabalho pretende levan-tar é a lembrança de que esse sítio já foi casa. Esse vazio foi mora-da de milhares de pessoas, e cada uma das unidades habitacionais continha em si um universo de vida, como se observa no sensível documentário São Vito60, de 2017. O filme, gravado às vésperas do es-vaziamento forçado do prédio, acompanha a rotina de seus diversos moradores, exibindo uma versão muito diferente daquela explorada pela imprensa e reproduzida pelo poder público.

Nela vemos a vitalidade e a diversidade que existia nos cor-redores de apartamentos, vemos o esforço diário para a manu-tenção do prédio, bem como a preocupação geral com o destino incerto ao qual todos foram relegados. “Locatários, proprietários, sublocatários, idosos solitários, casais e até famílias com mais de cinco pessoas”61 tiveram suas vidas reduzidas à estigmatização. Por isso, entende-se a importância de reforçar a memória dessa vida doméstica, talvez porque, de todos os elementos do São Vito, esse seja desde o início o mais ignorado e combatido. Fotos pa-norâmicas de alguns anos atrás podem comprovar a existência dessa grande ruína modernista, mas não a vida que ocorria den-tro dela.

Outra questão fundamental para o trabalho foi a demolição em si, a maneira pela qual o prédio foi posto abaixo. Lenta e ritma-damente, ela realizou, passo a passo, o desaparecimento de uma estrutura, de um edifício inteiro, em uma descida destrutiva. Há um movimento claro, que pode ser referenciado e transformado na intervenção. Assim, baseio o trabalho numa proposta de mo-vimento oposto ao violento descendente, e trabalho com escadas e subidas. Essas escadas estão moldadas em três blocos de con-creto, mas ao invés da solidez e robustez esperada do material, a subida é instável e cheia de desequilíbrios, pois a base do projeto é convexa e não possui ponto de apoio fixo.

A intenção de trabalhar com concreto moldado parte de uma provocação dos simbolismos intrínsecos ao material. Ele repre-senta a utopia da arquitetura moderna brasileira, que acreditava poder resolver a questão habitacional do país com suas estrutu-ras, transformar a sociedade com seus projetos. O edifício São Vito era construído quase inteiramente em concreto armado, e

área alagável drenante para conter as cheias do rio Tamanduateí. Independentemente das qualidades urbanísticas do projeto e das melhorias que ele poderá trazer quando (se) implementado, fica evidente que há um apagamento de toda a discussão sobre a memória do edifício São Vito e a demanda habitacional de seus moradores.

De acordo com Duarte, que entrevistou diversos arquitetos colaboradores do projeto, a concessão do terreno dos edifícios demolidos para o Sesc-SP – chamado por um deles de “saída pela cultura” – surge como solução posterior ao início do Plano Urbanístico e à demolição. Assim, não justificaria a destruição do São Vito e Mercúrio. Siqueira complementa a argumentação, afirmando que os lotes ficaram vazios e foram transformados em estacionamento por vários anos antes de instalar-se alguma programação de uso para o terreno. No contexto em que se inse-re, o novo Sesc contribuirá de maneira definitiva para o tampo-namento dessa cicatriz urbana, uma vez que, segundo Duarte, “investimentos culturais têm o poder de forjar consensos sociais com muito mais força do que qualquer outra iniciativa”.56 De fato, uma arquitetura cultural de altíssimo padrão fertiliza a proprie-dade imobiliária57 e contribui para o consumo turístico da área, ao mesmo tempo que a ampla acessibilidade e diversidade de pro-gramação do Sesc é vista como positiva e bem querida pela varia-da população que frequenta a região. Nesse consenso, só fica de fora a memória da violência ali cometida, bem como a demanda de habitação como direito.

Uma vez que, nesse sítio, “as forças do silêncio e do apaga-mento falaram mais alto do que as marcas físicas do presente”58, esse trabalho pretende atuar na construção de situações que demarquem a presença dessa grande ausência no território. Nomeando-o como memorial, busco questionar e, ao mesmo tempo, tensionar esse termo da produção arquitetônica e artísti-ca, que tradicionalmente opera de acordo com a agenda oficial, monopolizada pelo Estado59, e apresenta-se em linguagens e temáticas um tanto padronizadas. Sendo assim, proponho esgar-çar a expressão para questionar o discurso oficial, para consta-tar a violência e a destruição, para tentar reverter o processo de apagamento.

Para tal, proponho um projeto que explora dois elementos

MEMORIAL PARA UMA RUÍNA INSIVÍVEL

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62 Projeto disponível em http://unabv.com.br/cultural/sesc-parque-dom-pedro-ii/. Acesso em 25 jul. 2021.

IMAGENS Gordon Matta-Clark: Walls. Nova York, 1972. Disponível em https://www.nytimes.com/2018/01/11/arts/gordon-matta-clark-bronx-museum.html. Acesso em 25 jul. 2021.

Rachel Whiteread: The House. Londres, 1994. Disponível em https://www.artangel.org.uk/project/house/. Acesso em 25 jul. 2021.

representava, em sua inauguração, o progresso, o novo padrão de produto imobiliário de massa. O material tem ainda um grande peso simbólico na formação de qualquer estudante de arquitetura na FAUUSP, que vivencia por anos um espaço em que as mara-vilhas formais e estruturais do concreto são exacerbadas e, sem falsidade, criam um universo mágico e transformador, sem, com isso, afastar-se muito dos cânones ultrapassados do projeto mo-dernista. Por esse motivo, considero relevante para o trabalho de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo tensionar esse fetiche para com o material, utilizando-o em meu projeto fi nal, como o fi z em diversos outros projetos ao longo dos anos. Mas, ao invés de edifícios, projetar estruturas instáveis, que não obe-decem à função, que buscam refl etir criticamente sobre o sobre o papel da arquitetura como ferramenta de exclusão e apagamento.

Acima de tudo, a escolha do concreto tem o objetivo de causar inquietação e questionamento no nível individual, uma vez que as experiências corporais normalmente associadas ao material são postas em cheque pelas estruturas em equilíbrio estático, que movem-se constantemente de acordo com o equilíbrio de pesos que a solicita, e questionam assim algumas características ideo-logicamente associadas ao concreto. Uma delas, a durabilidade, também é aqui fator de confl ito: a proposta é pensada para o sítio presente, e cobra uma decisão dos arquitetos e administradores do novo edifício previsto: ou será mantida, como escultura expos-ta no vasto espaço livre previsto no térreo do projeto62, ou será também demolida, nesse caso em forma de performance a ser documentada em vídeo.

Assim, constitui-se um percurso de degraus, que convida o indivíduo a subir e verifi car o que se encontra na plataforma no topo da escada. A ideia é propor um movimento de instabilidade que leve a lugar nenhum, ou quase isso. No topo de cada estrutu-ra, proponho um espaço plano e vazio, em que apenas um vestígio possa permitir a associação dessa ausência com um ambiente do-méstico: o revestimento de piso. Cerâmico, de taco e de caquinhos, pisos típicos de tantas moradias no Brasil, cada um reveste uma das lajes. Com eles, evoca-se uma sensação de estranhamento e perda, de um espaço desolado, a exemplo das fotografi as de demo-lição de Gordon Matta-Clark, nas quais só se vê vestígios do que já foi uma parede. Acredito que trabalhar com esses sentimentos pode contribuir de maneira interessante para a vivência e a leitura do sítio em questão. Mais do que denunciar a violência nele ocorri-da, resgatar a memória das suas milhares de vidas domésticas.

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IMAGENSCapturas de tela do documentário São Vito, 2017.

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TRÊS ESCULTURAS PARA SUBIR. CONCRETO ARMADO, PISOS REVESTIDOS EM TACO, AZULEJO E CAQUINHO. BASE CONVEXA DE CONCRETO SÓLIDO E REVESTIDA EM AÇO, SOBRE DEPRESSÃO CÔNCAVA EM CONCRETO.

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TRÊS ESCULTURAS PARA SUBIR. CONCRETO ARMADO, PISOS REVESTIDOS EM TACO, AZULEJO E CAQUINHO. BASE CONVEXA DE CONCRETO SÓLIDO E REVESTIDA EM AÇO, SOBRE DEPRESSÃO CÔNCAVA EM CONCRETO.

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63 PEIXOTO, Nelson Brissac. Arte/cidade - um balanço. In ARS (São Paulo), v. 4, n. 7, 2006, p. 84-89,

64 Os fluxos verticais do edifício contavam apenas com um antigo e precário ascensor, que causava grandes filas entre os moradores e insegurança nos poucos visitantes.

IMAGENS Laura Vinci. Sem Título, 1997. Instalação para Arte/Cidade III. Dispo-nível em https://www.lauravinci.com.br/expo-sicoes#/1997semtitulo/ , Acesso 25/04/2021. Rem Koolhaas, proposta de intervenção para o edifício São Vito. Dis-ponível em http://www.artecidade.org.br/novo/koolhaas_outline.htm , acesso 25/04/2021.

Cabe, por fim, expressar, nessa escolha de sítio e objeto para o projeto, uma homenagem a diversos trabalhos artísticos que entrei em contato ao longo de minha trajetória, e que tiveram, em algum nível, o edifício São Vito também como objeto ou cenário. A influência desses trabalhos foi fundamental para a realização do meu, e a inspiração e provocação ressoou de diversas fontes até minha proposta final.

Uma primeira menção vai para o ambicioso projeto Arte/Cidade, umas das bases iniciais de referência, quando ainda buscava entender o que pretendia realizar como Trabalho Final de Graduação. Idealizada e com curadoria de Nelson Brissac, a iniciativa de propostas artísticas em sítios urbanos, com uma vasta pesquisa de localidades, suas potencialidades e significa-dos, busca produzir “intervenções que levem em consideração os processos de reestruturação metropolitana e global, mas que se contraponham à apropriação institucional e corporativa dos espaços urbanos e das práticas artísticas”, segundo o curador. A apropriação de infraestruturas urbanas como ponto definidor de cada edição do projeto – como o Matadouro desativado, da edição de 1994, ou o trecho ferroviário e seus edifícios de apoio fabril, de 1997 – é, em si, uma referência fundamental, e algumas obras específicas, que trabalham o sítio em que se instalam sob uma no-ção de entropia, também marcaram a direção a qual levei o meu projeto de conclusão de curso.

Mais especificamente, é a edição de 2002 do Arte/Cidade que busco referenciar nessa intervenção. Tomando uma ampla área da Zona Leste como local de projeto, essa edição contou com gran-des nomes que abordaram questões urbanas das mais diversas e complexas, como falta de moradia, desindustrialização, pobreza e violência urbana. Sobre o edifício São Vito, debruçou-se ninguém menos que Rem Koolhaas, cuja proposta não realizada de inter-venção chamou a atenção pela simplicidade minimalista e pela crítica propositiva e dialética. Elegendo o único edifício moder-nista da Zona Leste, nessa época já completamente estigmatizado e ensimesmado, propõe a instalação de um elevador de última geração, num poço projetado, mas que nunca recebeu o aparelho de circulação vertical.64

“É um modo de incrementar a conexão da edificação com a área urbana. (...) Não se trata de retomar as estratégias

MÚLTIPLAS VISÕES SOBRE SÃO VITO

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65 Texto crítico sobre a intervenção, disponível em https://www.pucsp.br/artecidade/novo/txcurador_koolhaas.htm Acesso em 26 abr. 2021

66 MELO, op. cit., 2017, p. 121..67 TV Cultura, 2007. direção de Laura Faerman e Marília Scharlach. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ympQeVlR0p-Q&t=2116s . Acesso em 25 abr. 2021.

IMAGENS Hector Zamora. Souvenir São Vito, 2010, proposta de intervenção urbana. In MELO, 2017.

Hector Zamora, Errante, 2010. Cortesia do curador.

de revitalização de áreas centrais, em voga nos anos 80. Essas políticas, essencialmente preservacionistas, tende-riam a enforcar o edifício do ponto de vista do patrimô-nio, como um monumento. Associadas às políticas assis-tencialistas, visando a melhoria das condições de vida no prédio, elas pouco contribuiriam para as mudanças estruturais impostas pela extensão e complexidade da situação. Trata-se de instaurar um outro processo.”65

Outro proposta site-specifi c tomou o edifício como objeto, explorando suas contradições como marco modernista e anti-mo-numento, numa região que se busca cartão-postal. Trata-se de uma das propostas, não realizada, do artista Héctor Zamora para o projeto Margem, com curadoria de Guilherme Wisnik. Nela, Zamora propunha distribuir pequenas estatuetas do São Vito, no formato clássico de souvenirs vendido mundo afora, para serem comercializadas entre os ambulantes dos arredores, como lem-brancinhas turísticas de São Paulo.

“Apresentar um edifício condenado à demolição como símbolo da cidade, justo essa que Lévi-Strauss comenta que está sempre se refazendo e se tornando ruína antes que envelheça (1996, pp. 102-103), é um movimento muito perspicaz do artista. Ainda mais por mobilizar na sua dis-tribuição os trabalhadores de classe baixa, que vivem à mercê da informalidade do camelô e tantas outras, como a moradia, uma das questões primordiais.” 66

O Itaú Cultural, instituição responsável pelo projeto, não se-guiu com essa intervenção, optando por outra proposta igualmen-te interessante, chamada Errante: intervinha ao longo do leito canalizado do Tamanduateí, com a instalação de árvores suspen-sas por cabos de aço acima da água. Ainda que se tenha desviado da temática do São Vito, trata-se de uma presença incontornável, que se mostra presente ao fundo de quase todos os registros da obra executada.

Além dessas duas intervenções, também deparei-me com o edifício durante o estudo do grafi teiro Zezão, referência essencial pelo seu trabalho sintético e potente de arte site-specifi c, na qual expressa, com suas formas fl uidas e azuis, as águas ocultas da ci-dade. O documentário “No Traço do Invisível”67, de 2007, registra o artista em sua atividade, explorando os sítios urbanos como um

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“O nome da exposição (...) surge do próprio contexto da demolição, em que via-se em meio aos escombros e remanescentes da subtração do edifício, itens pessoais, azulejos coloridos, texturas diversas de paredes e pisos. (...) Num sentido quase arqueológico de minúcia e estudo de restos materiais a exposição foi idealizada como uma linha do tempo que acompanha a cronologia da região, desde fatos históricos sobre o Parque Dom Pedro II até o declínio do São Vito.”

Assim, parto de uma homenagem a ideias de intervenção do passado, para colocar a minha proposta junto a esse movimen-to recente, que pensa sobre a memória do que não existe mais. Abordando a história da demolição e a tábula rasa do sítio de maneira diversa, busco trabalhar de outra forma sobre a temáti-ca, somando esforços com a exposição e com o que mais for rea-lizado, para evitar o esquecimento programado que rege nossa cidade.

68 SMITHSON, op. cit., 2013, p. 143.

IMAGEM Captura de tela do documentário No traço do Invisível, 2007

69 DUARTE, op. cit., 2021, p. 66.

IMAGENS Fotografi as de escombros da demolição do São Vito e Mercúrio; Fotografi a parte do acervo da exposição (Grifo Projetos Históricos e Editoriais, ano a confi rmar) - Exposição São Vito: Uma Escavação.In DUARTE, 2021.

verdadeiro “arqueólogo de futuros abandonados”68, em busca de lugares ignorados e apagados para deixar sua marca. Nesse senti-do, é muito expressiva a escolha da direção do fi lme, em utilizar o edifício São Vito como importante elemento da narrativa. Ele apa-rece em cenas externas, como cenário caótico do que é a cidade de São Paulo. Também é objeto direto da ação do grafi teiro, que é levado de plataforma mecanizada até uma janela, pela qual entra no prédio abandonado, realizando uma vasta exploração do inte-rior: sobe vários lances de escada, entra em apartamentos vazios, repara em objetos deixados pelos moradores, e conclui fi nalmen-te que o sítio é mal assombrado, carregado demais para servir de suporte para suas marcas.

Pareceu-me interessante que o São Vito tenha sido referenciado e trabalhado em tantos meios artísticos enquanto símbolo de comple-xidade urbana (no projeto de Koolhaas e de Héctor Zamora), e tam-bém enquanto ruína arquitetônica (caso do No Traço do Invisível), mas que sua demolição e desaparecimento forçado ainda não tenham sido exploradas em sua total potencialidade em propostas artísticas. Realizou-se, uma vez instalado o Sesc provisório, uma exposição sobre a história do edifício, chamada de “São Vito: Uma escavação”. Em sua dissertação, Nicolie Duarte descreve e apresenta fotos dessa mostra de 2019, que explora com sensibilidade tanto estudos urba-nísticos quanto depoimentos e fotos de moradores.

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SUBIDA NA COLINA HISTÓRICA

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Este sítio está ao lado de um dos mais importantes pontos turís-ticos da cidade, monumento que pretende ser o marco fundador de São Paulo. Encontra-se, porém, cercado e gradeado, com o acesso impedido e completamente inutilizado. Poderia ele mes-mo ser marcado como patrimônio, pois é muito mais antigo que a construção em si, que leva toda a fama. Trata-se dos fundos do Pateo do Collegio, ou Pátio do Colégio, como irei tratá-lo, com a grafia atual. Uma encosta que destaca-se por apresentar uma grande área descoberta de qualquer camada construída, uma rara presença de terra exposta e permeável no centro da cida-de. Justamente por essa condição despida de asfaltamento ou prédios, nela enxerga-se com maior evidência a topografia do território, os declives tão fundamentais para a paisagem de São Paulo, embora muitas vezes ignorados (ou ainda apagados). Essa encosta, sabe-se, não é a mesma formação geológica que existia na fundação da vila de São Paulo e da criação do primeiro colégio jesuíta em 1554; ela passou por inúmeras transformações, como quase tudo no centro antigo, tendo sido taludada em meados do século XX para a expansão do complexo religioso-turístico, que ampliou e aplainou o topo da colina, onde agora há um estaciona-mento privado.

Apesar dessa terra urbana não ser uma formação intocada, acredito que ela carrega, intrínseca a sua declividade, diversas simbologias e memórias, que podem relatar muito mais sobre o passado e a dinâmica da cidade do que o monumento arquitetônico lá erguido. Primeiramente porque, como já foi descrito no primeiro capítulo, a própria existência de aldeamentos humanos na região deve-se fundamentalmente à topografia e consequente hidrografia, que atraiu desde gerações de povoamentos temporários tupi-gua-rani até os primeiros portugueses que, temerosos, subiram o pla-nalto. As origens da cidade de São Paulo se dão sobre essa colina, protegida por declives escarpados em cada lado. E as dinâmicas que pautaram o desenvolvimento dessa vida urbana nos séculos seguintes também revelam-se igualmente nesse terreno. A relação entre cidade alta e cidade baixa, com as construções-símbolos do poder e da elite instaladas no topo (protegidas de possíveis ataques e afastados da várzea frequentemente alagada), e os locais de tra-balho, comércio e moradia popular instalados no nível mais baixo, evidencia-se no sítio atual – embora talvez possa ser melhor descri-ta, hoje, pela oposição Cidade Formal x Cidade Informal.

TERRENO VAZIO NA ENCOSTA DA COLINA

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da Cidade Genérica. Parece importante ressaltar a configuração atual do local: um conjunto de prédios construídos na década de 70, que buscam replicar a arquitetura colonial do Colégio existen-te no século XVII, há séculos desaparecida numa sucessão de de-molições e novas obras públicas no local. Não apenas a arquitetu-ra antiga foi reconstruída, mas o próprio uso religioso (e privado) foi retomado, já que o local havia se tornado propriedade pública há séculos, servindo de sede do Palácio do Governo de 1765 a 1912 e abrigando outros usos estatais até 1953, passando por inúmeras reformas. A página oficial do Pátio do Colégio assim relata a reto-mada do sítio:

“IV Centenário da Cidade de São Paulo. Em 21/01/1954 o governador Lucas Garcez promulgou a lei nº2658 trans-ferindo a Companhia de Jesus o domínio pleno do ter-reno situado no Pátio do Colégio com área de 2.805 m2 destinada à construção do Colégio e da Igreja “a fim de perpetuar a mais cara tradição do povo paulista”. (...) Foi reconstruído com rigorosa fidelidade arquitetônica ao prédio terminado em 1681, utilizando de base a imagem iconográfica dos remanescentes do antigo colégio dos

A altitude da colina separa esses dois mundos, que não po-deriam ser mais distintos: logo em sua base, na praça Fernando Costa, há uma enorme feira irregular de camelôs, onde se con-centra uma profusão de gente, entre compradores, vendedores e uma grande comunidade de moradores de rua. Esse movimento logo abaixo do sítio é amplificado pela rua paralela que circunda a praça, simplesmente o maior símbolo da cidade para comércio barato, informal e de todo o tipo imaginável: a rua 25 de Março, com sua confusão de ambulantes, lojas, inúmeras barracas, bici-cletas, carrinhos, anunciantes em caixas de som, carros entrando e saindo dos diversos estacionamentos. Todo o barulho e a ener-gia da 25 de Março soma-se, ainda por cima, ao fluxo constante de pessoas que entram e saem do terminal rodoviário, cuja passarela de acesso encontra-se logo em frente.

Assim, o contraste com o topo da colina é evidente e impres-sionante: um silêncio quase sepulcral envolve o Pátio do Colégio. Segundo o site da instituição, o “complexo histórico- cultural- re-ligioso”70, que pertence à ordem religiosa dos Jesuítas, conta com uma igreja, biblioteca privada e o Museu Anchieta, que expõe peças de arte sacra remetentes à vida paulistana nos primórdios da cidade. Lá também estão expostas as ruínas arqueológicas de uma parede de taipa de pilão do antigo colégio e das fundações da antiga igreja, únicos elementos originais segundo a resolução patrimonial do COMPRESP71, já que os prédios foram todos inau-gurados em 1979. O silêncio que lá impera não se justifica apenas pelo uso religioso do local: há pouquíssimas pessoas circulando pelo conjunto. Mesmo sendo cartão postal da cidade, não recebe muitos visitantes, com a exceção dos passeios escolares; o tal es-tacionamento atende apenas aos padres que frequentam a missa ou as instalações exclusivas aos religiosos; o simpático jardim sombreado no pátio central não alivia o calor de nenhum pedestre de passagem na rua de baixo; em suma, há uma certa impressão de que o monumento, reconhecido como patrimônio histórico e cultural da cidade, existe numa realidade tão afastada de seu en-torno imediatamente abaixo, que parece “flutuar no ar sem sus-tentação”72, longe da realidade material e da vida cotidiana, sem encostar na terra, que parece não ter nada a ver.

Cabe ao trabalho refletir de que maneira um espaço como tal, ainda que considerado possuidor de identidade e significado úni-co na história da cidade, serve de instrumento para as dinâmicas

70 https://www.pateodocollegio.com.br/quem-somos/ . Acesso em 23 jun. 2021.

71 Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Resolução disponível em http://www.ipatrimonio.org/wp-content/uploads/2017/04/patio-do-colegio-conpresp.pdf acesso 23 jun 2021.

72 “Os picos das montanhas não flutuam no ar sem sustentação, tampouco apenas se apoiam na terra. Eles são a terra, em uma de suas operações manifestas.” DEWEY, John. Arte como Experiência. Martins Fontes. São Paulo, 2010. p.61.

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73 Disponível em http://www.pateodocollegio.com.br/pateo-do-collegio-linha-do-tempo/ Acesso em 23 jul. 2021.

74 CANADO JUNIOR, Roberto dos Santos. Embates pela memória: a reconstrução do conjunto jesuítico do Pátio do Colégio (1941-1979). Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) – FAUUSP. São Paulo, 2014, p. 18.

75 “Com mais de 460 anos de muita história pra contar, o Pateo abriga o Museu, a cripta de José de Anchieta, a igreja onde foi realizada a primeira missa da cidade e uma biblioteca temática.” Informa, erroneamente o guia turístico Boraí, vinculada ao jornal Estado de São Paulo. Disponível em https://bora.ai/sp/passeios/pateo-do-collegio . Acesso em 24 jun. 2021.

76 CANADO JUNIOR, op. cit., 2014, p. 13.

77 JACQUES, op. cit., 2003, p. 13.

78 SEVCENKO, op. cit, 2004, p. 30.

IMAGENSMilitão de Azevedo, 1887.Acervo Digital da Prefeitura de São Paulo

Pedro Pinto, 2018. Disponível em fotospublicas.com. Acesso em 25 jul. 2021.

jesuítas, pintada por Thomas Ender e duas fotografias de Augusto Militão”73

Segundo Roberto dos Santos Canado Junior, em sua disserta-ção de mestrado sobre o tema, “as obras de reconstrução do Pátio do Colégio nunca foram unânimes. (...) Da doação da área até a conclusão do conjunto, a reconstrução enfrentou críticas e entra-ves de diferentes matizes.”74 Apesar do debate político e intelectu-al, demoliu-se o edifício eclético do governo e edificou-se a réplica setecentista jesuíta, que é tomada por muitos como original.75 Canado aponta a instrumentalização do passado presente na re-construção, na qual revela-se “o seu potencial de orientar condu-tas, definir identidades e, invariavelmente, perpetuar o momento histórico que representam como o mais significativo e formador dessas sociedades.”76

Tal afirmação faz coro ao pensamento já citado de Rem Koolhaas, que descreve como a busca das cidades por uma iden-tidade a ser mercantilizada em escala global apoia-se de frequen-temente (e de maneira genérica) no passado colonial, como forma inesgotável de autenticidade. Paola Jacques Berenstein também interpreta a instrumentalização do passado como uma face da ci-dade genérica, que “preconiza a petrificação ou pastiche do espa-ço urbano, principalmente de centros históricos, provocando uma museificação e patrimonialização”77 da vida urbana, onde não há lugar para o espontâneo ou fora da norma, e visa-se somente a espetacularização.

Essa leitura, portanto, adiciona mais uma camada à observa-ção empírica do completo distanciamento entre as atmosferas de cima e de baixo da encosta do sítio. Um monumento cívico--religioso que serve como simulacro do passado para os olhares da mercantilização e do turismo não pode, de fato, ser fonte de conexão ou reconhecimento da população, mesmo tratando-se do sítio de origem da cidade em que ela vive. Sevcenko reconhece em São Paulo a “impossibilidade da consolidação de qualquer confi-guração de memória capaz de gerar algum sentido de identidade comum”78, e essa condição evidencia-se no Pátio do Colégio com a intervenção anônima realizada em 2018: uma grande pixação em sua fachada, em que escreveu-se “Olhai por Nóis”. O considerado vandalismo sobre o patrimônio me parece exprimir essa desco-nexão. A mensagem carrega um tanto de provocação e desafio às hegemonias que regem autoritariamente a cidade, mas também um tanto de melancolia e desespero em frente à falta de repre-

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79 KRENAK, Ailton. In ESCOLA DA CIDADE. XV Seminário Internacional | Ailton Krenak e Wellington Cançado, 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qS7JidpuN2st=7701s . Acesso em 10 de julho de 2021.

IMAGEM Walter De Maria, The Vertical Earth Kilometer, 1977. Disponível em https://www.diaart.org/visit/visit-our-locations-sites/walter-de-maria-the-vertical-earth-kilometer-kassel-germany. Acesso em 25 jul. 2021.

sentação, seja do Estado, da Igreja, de alguma instituição ou de um grupo social: a impressão que não há quem cuide ou olhe por você.

Se cidade formal e informal encontram-se totalmente separa-das nesse sítio, acredito que a encosta vazia e permeável da colina possui um grande potencial de fazer a conexão entre os dois mun-dos. Acredito que estabelecer ligações entre essas topografias e atmosferas contribui para a interrupção de vivências urbanas alienadas, para o rompimento da máscara genérica que impera no sítio atual e para o aprofundamento da complexidade deste, explorando todos os seus potenciais para a criação de um espaço público por excelência, de alteridade e convivência e trocas de experiência e possibilidades de acontecimentos.

Acima de tudo, busco uma possibilidade de reconhecimento e sensibilização das pessoas com a história e a memória da ci-dade em que vivem, fugindo do simulacro para explorar outras conexões, que podem ser muito mais plurais e intensas do que o monumento branco que ocupa o topo da colina. O significado que proponho ser partilhado com quem adentrar o sítio não é com a arquitetura ou o uso que se fez nela, mas sim com o território em si, com a realidade física que, desde o início, originou qualquer ideia de assentamento, e hoje, mais do que nunca, pode criar vín-culos: falo da conexão com a terra em que passamos nossa vida, a geografia sobre a qual pisamos e nem nos damos conta. O escri-tor e ativista indígena Ailton Krenak, refletindo sobre o presente das cidades em palestra do XV Seminário Internacional da Escola da Cidade, reflete que “é como se o cimento das calçadas causasse um isolamento também da capacidade de entender que você está no mundo - no mundo, no planeta. E que aquele território que você compartilha tem uma identidade.”79 O contato com o terri-tório e a identificação de suas peculiaridades, algo que que já foi tão imperativo, a ponto de definir a sobrevivência de um povo, foi excluído da vida urbana, e seus milhões de moradores possuem essa falta intrínseca. São Paulo é, antes de tudo, antes mesmo des-se nome, uma forma física desenhada pelas intempéries, e acredi-to que criar conexões com essa forma sempre presente pode ser uma experiência emocionante de pertencimento, de perspectiva sobre o local que vivemos.

Assim, proponho uma subida pela encosta que revele toda a

A TERRA COMO CONTADORA DE HISTÓRIAS

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IMAGENSAcima: Carmela Gross, Escada/Stairs, 1968. Disponível em https://carmelagross.com/portfolio/escada/. Acesso em 25 jul. 2021.

À direita: Cildo Meireles, Missão/ Missões, como construir catedrais, 1987.

dramaticidade dessa topografia, que sensibilize o corpo de quem realizá-la, evidenciando o esforço desse movimento de escalar o morro. Que traga ares rituais para essa conexão de mundos. Uma subida estreita, incrustada na terra, realizando um corte e mol-dando ligeiramente sua superfície, apenas para facilitar o passo humano, trazendo a familiaridade do formato de uma escada na terra prensada.

E, se o piso dessa subida é de terra batida, que pode ser mais ou menos firme, mais ou menos úmida, a depender das intempé-ries, as paredes desse corte, necessariamente grandes estruturas de contenção do solo, são revestidas em folhas de ouro. A inten-ção de unir as materialidades de barro e ouro – extremamente contrastantes em sua aparência e valor, porém fortemente rela-cionados em diversos níveis de significação80 – visa proporcionar uma experiência de maravilhamento com o ato radical de aden-trar-se na terra. Juntar o barro maleável com as paredes duras e preciosas, permitir que ele suje e manche o imaculado, ao mesmo tempo que o ouro evidencia a sacralidade e a riqueza dessa terra em que se pisa. Riqueza essa que não se expressa na mentalidade do extrativismo e da monetização de tudo que existe no planeta, mas justamente na na conexão com o território, na sensação de

80 Ambas as materialidades vêm do solo, são parte do solo, se formam a partir dos processos milenares de reações químicas e físicas que ocorrem dentro da terra. Também é obviamente forte o significado que o ouro encontrado dentro da terra colonial, como ocorrido em diversos sítios Brasil adentro (inclusive no que atualmente considera-se parte da cidade de São Paulo) carrega para a escalada radical de violência da ocupação e exploração portuguesa da terra e das pessoas que aqui vieram a habitar, a grande maioria trazida à força e escravizada.

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81 ANDRÉ, Monica Bertoldi. Ruínas do Abarebebê: um olhar etnobotânico para a decolonização da paisagem. Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo. FAUUSP. São Paulo, 2019, p. vi.

82 Ver http://jardinoaxaca.mx/historia/. Acesso em 24 jul. 2021.

83 http://cargocollective.com/fernandolimberger/Relicto. Acesso em 24 jul. 2021.

84 GALANTE, Luciana. Investigação etnobotânica na comunidade Guarani Mbya de Tekoa Pyau. Mestrado em Ciências Sociais. PUC-SP. São Paulo, 2011.

IMAGENS:Jardín Etnobotánico de Oaxaca e Relicto, de Fernando Limberger.

pertencimento, na lembrança do real. O espaço projetado é aper-tado, úmido, silencioso e arrebatador; é uma passagem íngreme e percorrê-la envolve o aguçamento no presente, nos sentidos.

No fim dessa subida, chega-se à esplanada detrás do Pátio do Colégio, atualmente totalmente asfaltada e ocupada pelo estacio-namento. Nesse espaço, proponho a escavação de todo o cimento e o tratamento da terra logo abaixo. Após a apreensão da geogra-fia física como marco fundamental de nossa cidade, a intervenção apresenta a terra também como meio que permite o relato de me-mórias e histórias centenárias, através da agricultura e da flores-ta. Na área atrás do monumento, portanto, proponho uma com-plementação da narrativa das origens de São Paulo, para além da contada pelo colégio de catequização jesuítica, com a experiência de um jardim etnobotânico da cultura paulista.

Tal proposta baseia-se no conceito de etnobotânica como “ci-ência que se debruça sobre a relação entre as plantas e as diver-sas culturas humanas, compreendendo seus significados e usos de acordo com os diferentes contextos ambientais, materiais e cosmológicos de cada povo.”81 Interessa-me instalar no sítio um estudo vivo sobre a cultura paisagística que existiu por séculos na Piratininga, que envolve a floresta nativa, em todas as suas especificidades, e também a botânica produzida pelo ser huma-no – trazendo principalmente as espécies e o conhecimento tupi--guarani, tanto de agricultura quanto de cultivos medicinais ou sagrados, além das culturas trazidas pelos europeus que vieram a tornarem-se típicas da vida paulistana. A intenção é criar uma ex-periência de aproximação e aprendizado com a terra e a natureza, que se instale num espaço público acessível e agradável, onde descanso, passeio, passagem, reflexão e conhecimento possam ocorrer simultaneamente, em toda a sua diversidade.

Para desenvolver esse projeto, baseei-me em experiências existentes de jardins que possuem semelhante abordagem cul-tural, como o Jardín Etnobotánico de Oaxaca - México82, ou o trabalho “Relicto” de Fernando Limberger83, instalado no quin-tal da Casa da Imagem em São Paulo, terreno vizinho ao sítio. Principalmente, vali-me das pesquisas de Mônica Bertoldi André e Luciana Galante84, que realizam um precioso estudo de etnobo-tânica aplicada à cosmologia Guarani, respectivamente nas rea-lidades do município litorâneo de Peruíbe - SP e da aldeia Tekoa Pyau no Jaraguá, São Paulo. Através das autoras, fundamentou-se a organização de temas relevantes a serem expressos por meio do jardim, definindo-se um conjunto de espécies vegetais e a sua

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87 DEAN, Warren. A ferro e fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.44.

88 ANDRÉ, op. cit., 2019, p. 50.

85 Disponível em https://cpisp.org.br/indios-em-sao-paulo/povos-indigenas/guarani-e-tupi/. Acesso em 10 jul. 2021

86 Tal denominação não é utilizada pelos próprios, que se autodenominam, como já mencionado, tupis, ou tupi-guaranis. ANDRÉ, op. cit., 2019, p. 27.

ria da cidade, e considerando a diferença menor de língua, costu-mes e crenças existente em cada povo e mesmo aldeia dentro da grande nação Guarani, considerou-se válida a utilização de uma bibliografia que, embora não aborde diretamente os tupiniquim do planalto paulista, tenha uma profunda reflexão da etnobotâni-ca Guarani Mbyá, da sua cosmovisão e como ela se expressa na relação com a natureza.

Finalmente, com a presença de duas terras indígenas Guarani demarcadas no município de São Paulo, reforça-se o interesse em dialogar a proposta de jardim no centro com os conhecimentos e a produção agrícola e cultural existente nessas aldeias, localiza-das no Jaraguá e em Parelheiros. Reconhecê-las e fortalecer esse diálogo, na medida do possível e desejável pelos líderes indígenas, é uma forma de ajudar a resistência dessas aldeias frente à violên-cia, à pressão imobiliária e ao preconceito que enfrentam.

Esclarecida essa questão, voltemos à proposta de jardim. A seleção das espécies vegetais utilizou-se do critério cultural característico à etnobotânica, mas também das características naturais típicas da paisagem local, nos primórdios da fundação da cidade. Assim, optou-se por espécies nativas da Mata Atlântica, em sua maioria, assim como do Cerrado, considerando a análise de Warren Dean sobre a ocupação do território, segundo qual “os povos nativos privilegiaram a ocupação de ecótonos, áreas de transição entre diferentes comunidades ecológicas, valendo-se, dessa forma, de uma maior oferta de recursos.”87 Além das plan-tas nativas, o projeto faz uso de plantas exóticas cuja importância para a cultura local seja reconhecida, como a bananeira ou a cana de açúcar.

A disposição espacial do jardim segue a organização de univer-sos botânicos observada por André, que traça uma distinção entre Quintal, Roça e Floresta, “cada um abrigando uma diversidade peculiar de espécies e se caracterizando pela realização de dife-rentes atividades e o estabelecimento de diferentes relações.”88 O quintal refere-se ao espaço que existe em proximidade à residên-cia, na qual realiza-se o cultivo de plantas especiais, em pequena escala, com um foco principalmente medicinal ou ritual, além do cultivo alimentício que complementa os produtos da agricultura por excelência, realizada na roça. Determinou-se uma grande área para o cultivo de espécies consideradas de quintal, logo ao lado da construção, que será dividida em alguns ambientes: pro-ponho uma área dedicada às plantas medicinais, especificando-se se o uso originou-se dos indígenas, portugueses ou africanos; um

disposição pelo sítio, em diferentes ambientes e experiências. O interesse em colocar estudos da cultura indígena no centro

da proposta é de assumir uma postura crítica sobre o mito ori-ginário da cidade, admitindo as experiências dos diversos povos nativos do Planalto como origens fundamentais que, por toda a violência e extermínio enfrentada ao longo dos séculos, e por divergirem do discurso oficial paulista posteriormente elaborado, são excluídas da História, necessitando de veículos para serem relatadas. Dito isso, cabe fazer um esclarecimento acerca da am-plitude do termo Guarani e de que maneira o estudo de seus cos-tumes e cosmovisões é utilizado no trabalho. Galante afirma que o povo Guarani habita desde muitos séculos uma ampla região da América Latina, parte dos atuais territórios do Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai, Guiana, Bolívia, Peru e Equador. Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo:

“Os Guarani que vivem no Brasil se dividem em três subgrupos: Ñandeva, Kaiowá e Mbya. Tal classificação foi adotada nos anos 1950 pelo antropólogo Egon Schaden e está pautada, sobretudo, em suas observações sobre as diferenças no dialeto, nos costumes e nas práticas rituais entre este povo. Tal classificação é, atualmente, a mais adotada, embora em muitos casos não corresponda aos etnônimos utilizados pelos próprios Guarani para se autodefinirem. Assim, por exemplo, na região da trípli-ce fronteira entre Brasil (oeste paranaense), Paraguai e Argentina, há grupos que se autodenominam Avá-Guarani e, em São Paulo, existem grupos que se definem como Tupi."85

A partir dessa leitura, entende-se que o maior povo a habitar o planalto paulista, nos registros da época da conquista portuguesa, pode-se enquadrar, atualmente, como subgrupo pertencente aos Guarani Mbya, se autodenominando Tupi, ou Tupiniquim. André apresenta também a identificação de uma denominação desse subgrupo dos Tupi-guarani, chamada de Guarani Nhandeva86. Cabe ressaltar que existiram diversos outros povos na região, que não se enquadram no povo Guarani e nem mesmo na família linguística tupi-guarani: são tanto grupos nômades que instala-ram-se temporariamente, quanto habitantes de outras regiões trazidos, escravizados, pela ação dos bandeirantes.

Apesar da presença dessas outras culturas ao longo da histó-

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89 Disponível em https://tenondepora.org.br/aldeias/tekoa-kalipety/ . Acesso em 11 jul. 2021

90 ANDRÉ, op. cit.,2019, p 68.

plantio de espécies de floresta. Tratam-se, originalmente, das plantas não-cultivadas pelas populações que habitavam o planalto. Para os guarani, a floresta é um espaço conhecido, embora não dominado, onde é realizada a coleta de diversas espécies, utiliza-das para os mais diversos fins. No jardim etnobotânico, proponho evidenciar essas espécies e seus fins, num ambiente adjacente ao pomar, porém na área de declive.

Além desse espaço, proponho também uma área exclusiva de espécies nativas da Mata Atlântica, e uma outra exclusiva do Cerrado. A intenção por trás dessa separação é pedagógica, na descrição dos dois biomas existentes na paisagem nativa de São Paulo. Porém, como esse tipo de divisão cartesiana não se aplica na realidade de espaços ecótonos, já que a dispersão de espécies não obedece fronteiras, a maior área de floresta do projeto é uma mata mista. Inclusive, aproveita-se de espécies já existentes no sítio atual, considerando-as, em sua maioria, exemplares da flora nativa ou tipicamente adaptada à paisagem paulista. Essa consi-deração foi feita após visitas ao local, embora não tenha sido pos-sível realizar um levantamento preciso de todos os exemplares botânicos existentes, já que o sítio encontra-se gradeado e com acesso impedido. Assim, fica a diretriz de manter as espécies pré--existentes, retirando unicamente possíveis exemplares exóticos que não tenham significado etnográfico relevante, para a repre-sentação da cultura botânica paulista. Além disso, deve-se retirar exemplares que não estiverem em boa saúde.

outro canteiro dedicado às plantas da ritualística guarani, cuja variedade de utilização vai desde a cuité, cujo fruto seco torna-se uma cabaça que serve como recipiente e instrumento musical, até o urucum, cujas sementes vermelhas são trituradas e trans-formadas em tinta corporal, até o tabaco, cujas folhas secas são queimadas em fumos rituais. Por fim, na extremidade do terreno, proponho um ambiente mais fechado e sombreado de quintal, um pomar com espécies de árvores e arbustos frutíferos, numa dispo-sição mista, sem distinção de origem.

A roça trata do espaço vegetal produzido pelo homem, fora da aldeia, longe da casa e no limite da floresta. As espécies são exclusivamente alimentícias, em sua maioria tubérculos e legu-minosas de alto teor nutritivo. Na proposta, segue-se o teor de subsistência que foi característico tanto das aldeias indígenas da região, quanto das primeiras gerações de moradores da vila de São Paulo. Assim, o foco é em apresentar a maior variedade de plantas, dispostas no plano ao lado do museu e descendo o de-clive abaixo, em terraços de cultivo que obedecem as curvas de nível de acordo com as preferências de cada espécie.

Além da mandioca, o cultivo indígena mais conhecido e consumido pelos paulistas, busca-se resgatar diversas outras espécies típicas do cultivo Guarani, muitas colocadas em se-gundo plano pela historiografia, e apenas recentemente reco-nhecidas, principalmente pelas resistências da terra indígena Tenondé Porã, que realizam um trabalho de resgate de espécies tradicionais, através de “uma série de viagens de intercâm-bio em aldeias guarani de diversas regiões do Brasil e até da Argentina”.89 São espécies específicas de batata-doce (jety), milho (avaxi), feijão (kumanda), entre outras. Somam-se a elas outras plantas que tornaram-se típicas dos roçados paulistas, como o algodão, introduzido pelos portugueses.

É importante ressaltar que o projeto inspira-se na coivara, prática indígena de agricultura itinerante. A roça guarani utili-za um espaço por um período de tempo e depois o abandona e parte para outro, permitindo a recuperação do solo e o renasci-mento espontâneo da mata. Utilizo esse conceito na disposição do jardim, posicionando o espaço de roça entre duas áreas de floresta, seguindo a ideia de que “os domínios da roça e da flo-resta estão em permanente transformação, a mata virando roça, a roça voltando a ser mata. (...) É inerente ao domínio das flores-tas a permanente transformação.”90

Assim, propõe-se, para a grande área de declive do sítio, o

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OS INTERVENÇÃO

ESCADARIA DE TERRA COMPACTADA, CONTENÇÃO DE SOLO LATERAL POR GRAMPEAMENTO (BARRAS DE AÇO E CONCRETAGEM), REVESTIMENTO EM FOLHAS DE OURO.

JARDIM DE ESPÉCIES TÍPICAS DA MATA ATLÂNTICA, CERRADO E DE ROÇAS TRADICIONAIS.

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QUINTAL - POMAR

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FLORESTA - CERRADO

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FLORESTA - MATA ATLÂNTICA

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ESCALA 1:250

ESQUEMA ILUSTRATIVO DA CONTENÇÃO DO SOLO POR GRAMPEAMENTO E REVESTIMENTO EM FOLHA DE OURO

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OS LISTA DE ESPÉCIES

DO JARDIM ETNOBOTÂNICO:

1. ROÇA milho guarani (avaxi)mandioca guarani (mandi’o)batata-doce guarani (jety)feijão guarani (kumanda) abóbora guarani (anda’i)caráamendoimtabacoabacaxicana de açucaralgodão

2. QUINTALingá Abacaxi Mamão Timbó Guaco MaracujáCopaíba CajuCuité (cabaça)Tabaco JenipapoAroeiraUrucumAraçáTucumGuaimbé BananeiraCipó ImbéCaraguatáGravatáGuaviraLimãoLaranjinha do matoGoiabaPitanga

3. FLORESTAÁRVORES:Ipê - Amarelo Ipê RosaIpê Roxo - Handroanthus heptaphyllusPitangueira CambucizeiroTaquaral – existem várias espécies de taquara nativas da região de SP. Proponho: Nastus barbatus (conhecido como Caratuva), Taboca, Merostachys skvortzovii Guaviju (G) AcaiacáPeroba -Caneleira CabreúvaCanelinhatapiá EmbaúbaGabirobaJacarandá-paulistaPau BrasilCagaiteira Pau-Santo Aroeira-pimenteira PALMEIRAS:Jerivá Juçara Tucum BuritiARBUSTOS/PLANTAS BAIXAS/TREPADEIRAS:Guaimbé Heliconia vellozianaHeliconia angustaGravatáBromélia Nidularium innocentii, Nidularium procerumCamboatá Taboa

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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91 CERTEAU, Michel de. “Relato de Espaço” in: A invenção do cotidiano: artes de fazer. 4 ed. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 205

92 DUARTE, Luisa. Um outro lugar: arte nos anos 2000 sob um ponto de vista pós-utópico. MAM-SP. São Paulo, 2011, p. 15.

93 AUGÉ, op. cit., 2013, p. 98.

Citação presente no Epílogo a seguir: CERTEAU, op. cit., 1999, p. 205.

de um urbanismo entrópico; suas configurações não convidam à permanência, servindo unicamente ao uso de local de passagem; não possibilitam o encontro, apenas a alienação individual; não apresentam qualquer enraizamento na realidade física ou histó-rica, apenas um presente contínuo e imutável. Isso tudo é sentido na pele, ao percorrê-los.

Por outro lado, estar presente nesses locais, colocando corpo e alma disponíveis a jogo; desafiar a lógica dos usos e dinâmicas estabelecidos; forçar a permanência, apesar do desconforto; atentar-se ao que se passa ao redor, para além das impressões pré-concebidas – tudo isso faz abrir um campo de situações e pos-sibilidades de troca e conexão. Percebe-se a potência que esses três sítios carregam em si, a dinamicidade, a riqueza de circuns-tâncias, de brechas que existem e podem existir neles. Marc Augé afirma que “o lugar e o não lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente”93, e essa condição é visível e latente nos três locais escolhidos. Os sítios genéricos existem por um triz, da mesma maneira que os sítios específicos existem por um instante, e considero relevante pensar as possibilidades que permitam esse movimento.

Encerro o trabalho com uma última visita aos sítios, com o pre-texto de fazer as fotos que ilustram esse caderno. Uma última deriva pela avenida do Estado, pelos espaços fragmentados sobre os quais me debrucei e busquei compreender, traduzir, tensionar e sensibilizar ao longo dos meses de feitura desse projeto. Cada proposta de intervenção acaba por resumir o sítio, em toda a sua pluralidade, a um relato de espaço específico. “Um fazer permi-te um ver”91, afirma Michel De Certeau, e as minhas propostas permitem certas visões e reflexões, enquanto omitem outras. Por muitas vezes, precisei optar por uma expressão pessoal ou sensibilidade própria para guiar os caminhos do desenvolvimento das propostas , uma vez que a rica encruzilhada de referências e impressões sobre cada sítio era infinita em suas possibilidades.

É impossível afirmar que essas escolhas de projeto sejam in-falíveis na criação de situações, conexões e pontes do genérico ao específico, justamente pelo caráter experimental e de base teóri-ca do trabalho, ao invés da ação direta sobre os sítios, sobre a qual rapidamente obteriam-se os resultados da intervenção. De fato, por seguirem esse caráter e localizaram-se no interstício do real, do possível e do sonhado, as propostas apresentam uma escala de difícil aplicação na realidade material dos locais, embora, ao longo do trabalho, tenha apresentado diversos exemplos de obras de arte e arquitetura que, com escalas e objetivos semelhantes ao que ousei propor, foram postas em prática no espaço urbano e criaram situações interessantíssimas.

Assim, as três propostas de intervenção, sobre o terreno vazio na encosta da colina histórica, a travessia do rio Tamanduateí na ponte Paula Sousa e a tábula rasa e futuro Sesc na avenida Mercúrio, expressam um relato de espaço, dos muitos possíveis, e direcionam o olhar de quem as vê para uma possibilidade de “terceiro lugar, diverso do ideal, e também diverso do real.”92 Existem no mundo do pensamento livre e da experimentação, procurando nunca perder o pé da base material da cidade, mas re-conhecendo suas limitações, que vêm da condição pandêmica em que foi realizado o trabalho, do curto período de tempo disponível para tal, e das próprias escolhas e consequentes renúncias que um projeto como esse exige.

O reencontro com os sítios, porém, me faz concluir que, seja qual for a proposta, o objetivo fundamental desse trabalho final de graduação encontra força e justificativa no real. Esses três espaços têm todas as características que permitem identificá-los sob a alcunha de não-lugares: são espaços residuais resultantes

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OS “Onde o mapa demarca, o relato faz uma travessia.”

Michel de Certeau.

Os últimos cinco anos da vida passados no ir e vir dessa avenida. Quase nada para contar. É o caminho do trabalho, só isso. Até com o trânsito infernal você se acostumou, depois de uns meses viu que era assim e não tinha jeito. Sair cedo, levar a mercadoria até as lojas, voltar com matéria-prima para a fábrica. Todo dia.

Aquela história das placas foi algo diferente. Se lembra de quando trocaram as placas da avenida do Estado? Quando você pensa, fica difícil saber se não foi um sonho. Às vezes sonhava com o trabalho. Mas não deve ter sido o único que reparou, lembra de algum colega do transporte comentar. A sinalização ficou diferente por alguns dias, desenhos e palavras fora do normal, setas apontando para coisas que ele não entendia. E depois voltou ao que era antes. Como se nunca tivesse acontecido.

Algumas das placas eram engraçadas. Outras falavam de coisas tristes. Você se constrangeu na primeira vez que viu a que dizia ILHA DOS AMORES? Ou deu risada? Ficou pensando o que mulher pelada tinha a ver com o Terminal de ônibus. Depois pensou se foi por causa dessa baixaria que removeram as placas, porque algumas até que eram boas.

Você gostou de uma que colocaram no canteiro em frente ao Mercadão. Dizia FALTA. Às vezes você se irrita com os turistas que entram e saem do mercado, dos ônibus fretados e carros de aplicativo que travam o sinal aberto. Entram e saem sem dar uma mínima olhada no que está em volta. Não vêem a pobreza, a fome, as pessoas que não têm onde morar. Se empanturram de comer, acham linda a arquitetura do centro e compram castanhas, sem saber que, caso atravessassem a avenida, pagariam a metade do preço.

Retiraram até mesmo as placas coladas dentro do túnel. Eram várias que formavam um desenho azul, cheio de curvas. RIO QUE DANÇA, diziam. Você é caminhoneiro, sabe do que elas falam. Vê o rio do alto no trajeto inteiro, diferente dos carros que passam pela avenida sem perceber que ele existe. O túnel é o único momento em que você não o enxerga. Coisa engraçada. Já tinha ouvido falar que o rio cantava antigamente, mas dançar? Você não sabia que essa água tão parada e suja de merda dançava. Pensa nisso até hoje, quando passa por lá.

Às vezes você se pega procurando por alguma diferença nas placas. Ou nas faixas pintadas na via, mesmo alguma mudança

no caminho. Não sabe porque faz isso. Se visse um atalho, você pegaria? mesmo que tivesse que segui-lo à pé? A verdade é que encontra tudo sempre violentamente normal. Nessas horas você tem a impressão de que imaginou tudo aquilo. Todas as cores e palavras e desenhos sobre as placas de todo dia. Parece incabível na realidade desta avenida. Na sua própria realidade. Às vezes pensa que é melhor nem falar disso. Guardar para si, como lembrança de uma viagem que se fez há muito tempo. Conforme se afasta da Avenida do Estado em direção ao seu destino, você se cala, mas não esquece. Nem do que viveu, nem da impressão de que, bastando uma curva ou parada inesperada, essa outra realidade viria à tona, ligeiramente diferente.

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UM GUIA QUE CONVIDA A PERDER-SE.OU: PROPOSTA ALTERNATIVA DE SINALIZAÇÃO NA AVENIDA DO ESTADO.

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