Servidão predial e caminho público (um caso concreto)

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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZ DOUTOR EM DIREITO PROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA Servidão predial e caminho público (memorando) A: Da servidão predial I. Sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Bispo sob o n.º 6138, a fls. 156 do Livro B-16, e mediante a AP. 27 de 1981/05/28, está lavrada e em vigor inscrição de aquisição de propriedade a favor de JSC. Encontra-se também lavrado o seguinte registo de constituição de servidão predial, fruto da AP. 4 de 1966/03/14, que ora se reproduz: «fica inscrita a favor dos prédios descritos sob os números 12691, a fls. 151 do Livro B-33, e 12878, a fls. 48 verso do Livro B-34, a servidão de passagem de pé e de carro, com cerca de 900 metros de comprimento e 10 metros de largura, entre o quilómetro 35 da estrada nacional n.º 268, imposta no prédio descrito sob o número 6138, a fls. 156 do Livro B-16, que, pela quantia de 5000$00 foi constituída entre a “SG – Sociedade Agrícola, Limitada”, com sede em Lisboa, Travessa do 1

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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZDOUTOR EM DIREITOPROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA

Servidão predial e caminho público

(memorando)

A: Da servidão predial

I. Sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do

Registo Predial de Vila do Bispo sob o n.º 6138, a fls. 156

do Livro B-16, e mediante a AP. 27 de 1981/05/28, está

lavrada e em vigor inscrição de aquisição de propriedade a

favor de JSC.

Encontra-se também lavrado o seguinte registo de

constituição de servidão predial, fruto da AP. 4 de

1966/03/14, que ora se reproduz: «fica inscrita a favor dos

prédios descritos sob os números 12691, a fls. 151 do Livro

B-33, e 12878, a fls. 48 verso do Livro B-34, a servidão de

passagem de pé e de carro, com cerca de 900 metros de

comprimento e 10 metros de largura, entre o quilómetro 35

da estrada nacional n.º 268, imposta no prédio descrito sob

o número 6138, a fls. 156 do Livro B-16, que, pela quantia

de 5000$00 foi constituída entre a “SG – Sociedade

Agrícola, Limitada”, com sede em Lisboa, Travessa do

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Pinheiro, n.º 11, cave esquerdo, e MTC, casada, doméstica,

residente em Lisboa».

II. Nos termos do artigo 7.º do Código do Registo

Predial, “o registo definitivo constitui presunção de que:

– o direito existe e

– pertence ao titular inscrito,

– nos precisos termos em que o registo o define”.

Da transcrição deste preceito legal, extrai-se,

aplicando-o à citada inscrição, que:

1º - a servidão de passagem em causa presumivelmente

existe;

2º - ela está, também presumivelmente, na titularidade

da “SG – Sociedade Agrícola, Limitada”;

3º - e, por fim, que é uma servidão “de pé e de

carro”.

III. Nos termos do n.º 1 do artigo 342º do Código

Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova

dos factos constitutivos do direito alegado”. E, nos termos

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do n.º 1 do artigo 344º do mesmo diploma, esta regra

inverte-se “quando haja presunção legal”; o que significa

que a quem pretender negar a existência do direito alegado

cabe demonstrar que os referidos factos não ocorreram.

Acresce que, agora por força do disposto no artigo

347º, ainda do Código Civil, “a prova legal plena só pode

ser contrariada por meio de prova que mostre não ser

verdadeiro o facto que dela for objecto”.

Tudo isto conjugado dá o seguinte resultado: estando

contida no mencionado artigo 7º do Código do Registo

Predial a referida presunção, daí resulta que a ilação que

a lei tira, no caso concreto, a partir do extracto de

inscrição reproduzido em I. é no sentido de existir uma

“servidão de passagem de pé e de carro” a onerar o prédio

rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de

Vila do Bispo sob o n.º 6138, a fls. 156 do Livro B-16.

IV. No artigo 1543º do Código Civil, “servidão predial

é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de

outro prédio pertencente a dono diferente”.

Extrai-se, a partir da definição dada, que a servidão

impõe um certo encargo ao prédio serviente ou, que é o

mesmo mas visto pelo outro lado da relação imobiliária

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subjacente, concede um determinado benefício ao prédio

dominante. A servidão predial não concede poderes de gozo

indeterminados (como sucede v.g. com o usufruto), mas, ao

invés, atribui, ao dono do prédio dominante, uma única

utilidade (v.g. tirar água de um poço, transportá-la, passar

a pé, passar de carro, passar a pé e de carro, instalar um

aqueduto, etc.); tudo depende do que tiver sido

especificado no respectivo título constitutivo (artigos

1547º e 1544º, Código Civil). Justamente por isso é que na

correspondente inscrição predial se deve fazer menção

precisa do “encargo imposto” [artigo 95º, n.º 1, alínea c),

Código do Registo Predial]

Aplicada esta ideia ao caso concreto, ela significa

que a servidão (originalmente) constituída por contrato

celebrado «entre a “SG – Sociedade Agrícola, Limitada”, e

MTC », é de “passagem de pé e de carro” e nada mais do que

isso.

E para o efeito torna-se indiferente que a servidão

tenha índole legal ou voluntária (artigo 1547º, Código Civil),

pois o respectivo modelo, tal como surge definido no artigo

1543º do Código Civil, não muda em função disso.

V. É no seguimento desta ideia que se deve entender o

disposto no artigo 1565º do Código Civil: “o direito de

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servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso

e conservação”.

Nos termos deste preceito, o exercício da servidão

abarca o que revestir carácter indispensável:

– para a sua utilização e

– para a sua manutenção.

V.I. O segundo aspecto relaciona-se, sobretudo, com a

realização de obras no prédio serviente destinadas a

assegurar o normal exercício da servidão. Tais obras:

– “são feitas à custa do proprietário do prédio

dominante” (artigo 1567º, n.º 1, Código Civil);

– “devem ser feitas no tempo e pela forma que sejam

mais convenientes para o proprietário do prédio serviente”

(artigo 1566º, n.º 2, Código Civil);

– desde que não tornem a servidão mais onerosa para o

prédio serviente (artigo 1566º, n.º 1, in fine, Código

Civil).

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V.II. O primeiro aspecto referido – a utilização –

está ligado ao modo de exercício da servidão: de acordo com

o artigo 1564º do Código Civil, ela é regulada, “no que

respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo

título”; e só perante a exiguidade deste se recorrerá ao

que se estabelece entre os artigos 1564º e 1568º do Código

Civil.

Ora, no caso concreto, a extensão da servidão está

perfeitamente definida: passar “de pé e de carro”.

Quanto ao seu modo de exercício, nada se estabelecendo

em sentido diverso, cabe deduzir que ela abrange qualquer

pessoa ou qualquer carro que queira aceder aos prédios

dominantes.

O disposto no n.º 2 do artigo 1565º do Código Civil –

“em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício,

entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer

as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante

com o menor prejuízo para o prédio serviente” – é, por

isso, inaplicável; na verdade, inexistem dúvidas sobre a

extensão e o modo de exercício da servidão.

VI. O momento relevante para aferir, porém, acerca das

necessidades do prédio dominante e que serve para definir o

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conteúdo da servidão – ou seja, para individualizar o

conjunto de poderes e deveres que conformam o direito do

titular do prédio dominante – é o que corresponde à data da

sua constituição (independentemente da suficiência do

título constitutivo). Não pode ser de outro modo, sob pena

de o titular do prédio serviente nunca poder saber com

exactidão aquilo com que deve contar: se v.g. o prédio

dominante destinado a alguma cultura se transforma num

empreendimento turístico, a necessidade de fazer passar uma

dúzia de pessoas na época dos trabalhos agrícolas converte-

se na indispensabilidade de fazer passar dezenas ou

centenas de pessoas diariamente; ora, decerto não é

exigível que, no momento de constituição da servidão, o

dono do prédio serviente devesse contar com uma alteração

quantitativa desta natureza para pretender impor-lhe o

dever de a ela se submeter. Acresce, em hipóteses do género

daquela que aqui se considera, que a contrapartida pactuada

pela instituição da servidão (5000$00, nas presentes

circunstâncias) tem obviamente em conta a dimensão do

encargo; o que significa, por outras palavras, não se poder

conjecturar que o preço devido pelo estabelecimento do

encargo tivesse sido precisamente o mesmo se fosse

conhecido, logo de início, que um empreendimento da

dimensão v.g. do Resort agora ali instalado – com as

implicações daí decorrentes em termos de utilização – iria

ficar instalado nos prédios dominantes.

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VII. Por outro lado, a servidão constituída, qualquer

que seja o conteúdo exacto de que está dotada, é só “de pé

e de carro”; o que de imediato explica que ela não possa

envolver “as infra-estruturas indispensáveis de

abastecimento de água, gás, electricidade, telecomunicações

e drenagem de águas residuais”; isto poderia, na melhor das

hipóteses, ser objecto de outra servidão.

B: Do caminho público

I. Um caminho público não pode ser qualificado, em

simultâneo, como uma servidão predial de passagem e vice-

versa: ou se trata de uma realidade ou de outra, porque a

primeira consome a segunda. Na verdade, um caminho público

permite, por definição, o trânsito de qualquer pessoa,

enquanto a servidão predial de passagem apenas autoriza a

comunicação viária aos utentes do prédio dominante. Se,

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eventualmente, outras pessoas se servem do acesso, isso não

lhes concede qualquer particular direito: limitam-se a

tirar proveito da inércia ou da tolerância do dono do

prédio dominante [artigo 1253º, alínea b), Código Civil].

Ora, no caso concreto, como o que está inscrito no

registo predial é a existência da servidão, é esta que se

presume até que se faça prova do contrário (artigo 347º,

Código Civil).

II. Admitindo, porém, a tese segundo a qual é um

caminho público que está em causa, torna-se indispensável

verificar se os respectivos requisitos de existência

estarão presentes.

Para o efeito, torna-se necessário, antes de mais,

distinguir atravessadouro de caminho público propriamente dito.

Isto porque diz o artigo 1383º do Código Civil que se

consideram “abolidos os atravessadouros, por mais antigos

que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em

proveito de prédios determinados, constituindo servidões”.

Os atravessadouros (qualquer que seja a sua antiguidade) só

podem subsistir, pois, na medida em que observem o modelo

da servidão predial tal qual este surge descrito pelo

disposto no artigo 1543º.

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Nesta medida, “os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos

quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim

essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus

leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos

destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre

povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público” (acórdão

do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/2008, Proc. n.º

08A542). E, por isso, “VII – O terreno dos atravessadouros pertence

aos prédios onerados com os mesmos, por se incorporarem numa espécie de

servidão” (acórdão da Relação do Porto de 21/03/1991, Proc.

n.º 0409990).

III. “São, porém, reconhecidos os atravessadouros com

posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de

manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas

destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra,

bem como os admitidos em legislação especial” (artigo

1384º, Código Civil).

Os atravessadouros que, excepcionalmente, nos termos

da presente disposição, podem permanecer mesmo não

respeitando o esquema da servidão predial, ficam

dependentes do acatamento de dois requisitos:

– que assentem numa posse imemorial (v.g. acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/1992, Proc. n.º

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80.324, Bol. do Min. da Just., 422, 355: “IV – O tempo

imemorial é aquele tão antigo que o seu início se perde na memória dos

homens ou, dito de outro modo, aquele cujo início se perdeu da memória dos

homens pela sua antiguidade. V – O conceito de «tempo imemorial» não fica

preenchido com a prova de que o caminho existe há cerca de 120 anos, desde

então vindo a passar pessoas até há cerca de 50 anos a pé, com veículos e

animais, e desde esta última data, a pé”);

– e que se “dirijam a ponte ou fonte de manifesta

utilidade”.

Ainda assim, a sua sobrevivência fica sujeita à

verificação de uma condição legal resolutiva: manter-se-ão

“enquanto não existirem vias públicas destinadas à

utilização ou aproveitamento” da referida ponte ou fonte.

Neste contexto, o atravessadouro assemelha-se ao

caminho público; dele se distingue, contudo, em virtude de

a sua subsistência se fundar numa finalidade específica que

a existência do caminho público não pressupõe

necessariamente.

Atendendo ao que fica exposto, pode afirmar-se, com

segurança, que no caso concreto não se está perante um

atravessadouro.

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IV. “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão

no uso directo e imediato do público” (assento – com valor actual de

acórdão uniformizador – do Supremo Tribunal de Justiça n.º

7/89 de 19/04/1989, Proc. n.º 073284).

“2. Atravessadouros são caminhos de passagem de pessoas

implantados em prédios de particulares que não constituem servidões ou

caminhos públicos. 3. Caminhos públicos são os que, desde tempos

imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, caracterizando-se a

envolvente de utilidade pública pelo destino de satisfação de interesses

colectivos relevantes” (acórdão da Relação de Coimbra de

12/01/2010, Apelação n.º 2963/05.0TBPBL.C1).

“I – Por força do assento de 19 de Abril de 1989 «são públicos os

caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do

público». II – Este assento admite porém o afastamento da presunção que está

na sua base. III – Deve além disso ser interpretado no sentido (restritivo) de o

«uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou

relevância sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade

pública». IV – Por outro lado mesmo que se considere revogado o artigo 380º

do Código Civil de 1867 deve ainda hoje ter-se por relevante a definição de

coisas públicas dele constante a saber: «as apropriadas ou produzidas pelo

Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração». V –

A qualificação dum caminho como público pode, pois, basear-se: – Ou no facto

de ele ser propriedade de entidade de direito público e estar afecto à utilidade

pública; – Ou no seu uso directo e imediato pelo público desde tempos

imemoriais de acordo com o assento de 19 de Abril de 1989 interpretado nos

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termos acima indicados. VI – Os atravessadouros ou atalhos por seu turno são

caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares

com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais sendo os

seus leitos parte integrante desses prédios. VII – Assim, constitui mero

atravessadouro o caminho através de prédio particular no uso directo e

imediato do público desde tempos imemoriais mas que não esteja afecto à

satisfação de relevantes interesses públicos. VIII – Segundo os artigos 1383º e

1384º do Código Civil vigente consideram-se abolidos os atravessadouros salvo

os que «com posse imemorial» se dirijam a ponte ou fonte de manifesta

utilidade. IX – No caso dos autos dois caminhos carrais existentes num terreno

particular e que apenas proporcionam um pouco relevante encurtamento da

distância entre dois caminhos públicos têm a natureza de simples

atravessadouros pelo que podem os proprietários daquele proceder à

respectiva vedação ou tapagem” (acórdão do Supremo Tribunal de

Justiça de 10/11/1993, 84.192, Bol. do Min. da Just., 431,

300).

“I – O Código Civil não define «coisa pública». II – Deve entender-se por

«coisa pública» não só aquela que assim é qualificada por lei como aquela que

está afecta ao uso directo e imediato do público. III – Um caminho deve ser

considerado como público, se desde tempos imemoriais está afecto ao uso

directo e imediato do público, satisfazendo interesses relevantes, não estando

o seu assento integrado em qualquer prédio privado. IV – Tendo sido dado

como provado «há mais de 300 anos» há que entender-se tal facto como toda

uma imensidade temporal anterior, cujo início se desconhece e,

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consequentemente, desde tempo imemorial” (acórdão da Relação de

Évora de 01/04/2004, Proc. n.º 2527/03-2).

“I – A caracterização de um caminho como público sofreu, ao menos a

nível jurisprudencial, alguma flutuação de posições, de que emergiram as

patenteadas nos acórdãos em confronto no Assento do STJ de 19/04/1989 (DR

de 2/06/1989), hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência.

II – Na opção doutrinal desse Assento decidiu-se que “são públicos os caminhos

que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. III

– A jurisprudência do STJ, no entanto, passou a interpretar restritivamente o

mencionado Assento, exigindo que, além da afectação ao trânsito das pessoas

com imemorialidade, essa utilização corresponda a satisfação de interesses

colectivos com atendível grau e relevância, numa clara adesão aos critérios do

destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente da

afectação. IV – Donde que se deva entender que, por muitas que sejam as

pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá

sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de

caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à

generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a

satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”

(acórdão da Relação de Coimbra de 20/04/2010, Proc. n.º

261/06.1TBSRT.C1).

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V. De harmonia com a jurisprudência que fica referida,

pode concluir-se que a natureza pública de um caminho fica

dependente do preenchimento de quatro condições:

– “uso directo e imediato do público”;

– que tal uso perdure desde “desde tempos imemoriais”;

– satisfazendo relevantes interesses públicos;

– desde que o seu leito não faça parte integrante de

qualquer prédio privado.

Ora, no caso concreto, nenhuma das aludidas condições

se verifica:

A – não é o público em geral que passa pela via em

causa, nem, designadamente, os veraneantes residentes em

Sagres; ao invés, só o fazem, habitualmente, alguns

turistas;

B – esta passagem não dura desde tempos imemoriais,

dado que:

i. por um lado, há memória de ela se ter

iniciado para aceder a uma antiga fábrica de

cerâmica e, posteriormente, ao motel “Os

Gambuzinos” (sendo certo que posse imemorial

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significa, precisamente, aquela de cujo

início não há memória);

ii. e, por outro lado, em virtude de posse

imemorial ser sinónimo de posse com centenas

de anos e não apenas com algumas dezenas,

como é o caso;

C – uma vez que, para o público em geral, existe outro

acesso à Praia do Martinhal, este não serve interesses

públicos primordiais;

D – o terreno pelo qual se faz a passagem é pertença

de José de Sousa Cintra e, portanto, é objecto de direito

de propriedade privada (cf. inscrição de propriedade

referida em I, relativamente à qual, reitera-se, não se faz

referência à existência de qualquer caminho público mas sim

de uma servidão de passagem estabelecida a favor dos

prédios descritos sob os números 12691, a fls. 151 do Livro

B-33, e 12878, a fls. 48 verso do Livro B-34).

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C: Da expropriação

I. Artigo 1º, Código das Expropriações: “Os bens

imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser

expropriados por causa de utilidade pública compreendida

nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante,

mediante o pagamento contemporâneo de uma justa

indemnização nos termos do presente Código”.

Artigo 10º, do mesmo Código: “1 – A resolução de

requerer a declaração de utilidade pública da expropriação

deve ser fundamentada, mencionando expressa e claramente:

a) A causa de utilidade pública a prosseguir e a norma

habilitante; b) Os bens a expropriar, os proprietários e

demais interessados conhecidos; c) A previsão do montante

dos encargos a suportar com a expropriação; d) O previsto

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em instrumento de gestão territorial para os imóveis a

expropriar e para a zona da sua localização”.

II. A expropriação por utilidade pública é o acto,

fundado numa determinada razão de utilidade pública,

através do qual a Administração promove unilateralmente a

constituição de um certo direito, mediante justa compensação

(artigo 1310º do Código Civil; artigo 62º da Constituição).

Pressupõe-se, resumidamente:

– a declaração de utilidade pública (artigos 10º e

segs., Código das Expropriações);

– o pagamento contemporâneo de justa compensação (artigos

23º e segs., do mesmo diploma).

Há, assim, expropriação por utilidade pública quando

se constitui, a favor do seu beneficiário, qualquer direito

real, maxime de propriedade.

III. Somente pode ser expropriado o que for “objecto

de direitos privados” (artigo 203º, n.º 2, Código Civil),

e, designadamente, de propriedade particular. Admite-se, é

verdade, a chamada afectação de bens de domínio público a outros fins

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de utilidade pública (artigo 6º, n.º 1, Código das

Expropriações: “As pessoas colectivas de direito público

têm direito a ser compensadas, em dinheiro ou em espécie,

como melhor convier aos fins públicos em causa, dos

prejuízos efectivos que resultarem da afectação definitiva

dos seus bens de domínio público a outros fins de utilidade

pública”); mas esta hipótese, nem é de expropriação

propriamente dita, nem quadra obviamente à situação.

Logo, suscita-se de imediato a questão: se o acesso em

causa deve ser configurado como um caminho público, a que

título, com que fundamento e como pode ele ser objecto de

expropriação por utilidade pública promovida pela autarquia

se já faz parte do domínio público autárquico?

Acresce, por outro lado, desconhecer-se a existência

da figura da expropriação por utilidade pública a

requerimento de terceiros (isto é: de quem não seja

beneficiário da expropriação ou expropriado)! Não se

vislumbra, assim, a que título se justifica que seja a “SG

– Empreendimentos Turísticos, SA”, a sugerir, propor,

pretender, solicitar:

– a expropriação por utilidade pública

– de um caminho público (!!!)

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– que, de harmonia com os registos em vigor, é uma

servidão predial (!!!)

D: Conclusões

1. De acordo com os registos em vigor está

constituída a favor dos prédios onde hoje está

edificado o Resort uma servidão predial “de pé e

de carro”.

2. “O direito de servidão compreende tudo o que é

necessário para o seu uso e conservação”.

3. As obras necessárias à manutenção da passagem:

“são feitas à custa do proprietário do prédio

dominante”; “devem ser feitas no tempo e pela

forma que sejam mais convenientes para o

proprietário do prédio serviente”; desde que não

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tornem a servidão mais onerosa para o prédio

serviente.

4. O disposto no n.º 2 do artigo 1565º do Código

Civil – “em caso de dúvida quanto à extensão ou

modo de exercício, entender-se-á constituída a

servidão por forma a satisfazer as necessidades

normais e previsíveis do prédio dominante com o

menor prejuízo para o prédio serviente” – é

inaplicável ao caso concreto; na verdade,

inexistem dúvidas sobre a extensão e o modo de

exercício da servidão.

5. Porém, o momento relevante para aferir acerca das

necessidades do prédio dominante e que serve para

definir o conteúdo da servidão – ou seja, para

individualizar o conjunto de poderes e deveres

que conformam o direito do titular do prédio

dominante – é o que corresponde à data da sua

constituição (independentemente da suficiência do

título constitutivo).

6. A servidão constituída, qualquer que seja o

conteúdo exacto de que está dotada, é só “de pé e

de carro”; o que de imediato explica que ela não

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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZDOUTOR EM DIREITOPROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA

possa envolver “as infra-estruturas

indispensáveis de abastecimento de água, gás,

electricidade, telecomunicações e drenagem de

águas residuais” – isto poderia, na melhor das

hipóteses, ser objecto de outra servidão.

7. Um caminho público não pode ser qualificado, em

simultâneo, como servidão predial de passagem e

vice-versa: ou se trata de uma realidade ou de

outra, porque a primeira consome a segunda.

8. No caso concreto, como o que está inscrito no

registo predial é a existência da servidão, é

esta que se presume até que se faça prova do

contrário (artigo 347º, Código Civil).

9. Os atravessadouros que, excepcionalmente, nos

termos do artigo 1384º do Código Civil, podem

permanecer mesmo não respeitando o esquema da

servidão predial, ficam dependentes do acatamento

de dois requisitos: que assentem numa posse

imemorial e que se “dirijam a ponte ou fonte de

manifesta utilidade”.

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10. Pode, por isso, afirmar-se, com segurança,

que no caso concreto não existe um

atravessadouro.

11. De harmonia com uma jurisprudência uniforme,

a natureza pública de um caminho fica dependente

do preenchimento de quatro condições: “uso

directo e imediato do público”; que tal uso

perdure desde “desde tempos imemoriais”;

satisfazendo relevantes interesses públicos;

desde que o seu leito não faça parte integrante

de qualquer prédio privado.

12. No caso em apreço, nenhuma das aludidas

condições se verifica:

- não é o público em geral que passa pela via em

causa;

- esta passagem não dura desde tempos imemoriais;

- existe outro acesso à Praia do Martinhal;

- o terreno pelo qual se faz a passagem é objecto

de direito de propriedade privada.

13. Somente pode ser expropriado o que for

“objecto de direitos privados” (artigo 203º, n.º

2, Código Civil), e, designadamente, de

propriedade particular.

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14. A levar-se em conta a tese da “SG –

Empreendimentos Turísticos, SA”, a tratar-se de

um caminho público não se vislumbra como, estando

já no domínio público, poderá ele ser objecto de

expropriação.

15. Mas não se entende, contudo, como pode estar

em causa um caminho público:

- quando do registo predial resulta tratar-se de

servidão predial;

- e quando não estão preenchidos os requisitos de

existência de um caminho público.

José A. R.L. González

Lisboa, 12 de Abril de 2011

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