Servidão predial e caminho público (um caso concreto)
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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZDOUTOR EM DIREITOPROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA
Servidão predial e caminho público
(memorando)
A: Da servidão predial
I. Sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do
Registo Predial de Vila do Bispo sob o n.º 6138, a fls. 156
do Livro B-16, e mediante a AP. 27 de 1981/05/28, está
lavrada e em vigor inscrição de aquisição de propriedade a
favor de JSC.
Encontra-se também lavrado o seguinte registo de
constituição de servidão predial, fruto da AP. 4 de
1966/03/14, que ora se reproduz: «fica inscrita a favor dos
prédios descritos sob os números 12691, a fls. 151 do Livro
B-33, e 12878, a fls. 48 verso do Livro B-34, a servidão de
passagem de pé e de carro, com cerca de 900 metros de
comprimento e 10 metros de largura, entre o quilómetro 35
da estrada nacional n.º 268, imposta no prédio descrito sob
o número 6138, a fls. 156 do Livro B-16, que, pela quantia
de 5000$00 foi constituída entre a “SG – Sociedade
Agrícola, Limitada”, com sede em Lisboa, Travessa do
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Pinheiro, n.º 11, cave esquerdo, e MTC, casada, doméstica,
residente em Lisboa».
II. Nos termos do artigo 7.º do Código do Registo
Predial, “o registo definitivo constitui presunção de que:
– o direito existe e
– pertence ao titular inscrito,
– nos precisos termos em que o registo o define”.
Da transcrição deste preceito legal, extrai-se,
aplicando-o à citada inscrição, que:
1º - a servidão de passagem em causa presumivelmente
existe;
2º - ela está, também presumivelmente, na titularidade
da “SG – Sociedade Agrícola, Limitada”;
3º - e, por fim, que é uma servidão “de pé e de
carro”.
III. Nos termos do n.º 1 do artigo 342º do Código
Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova
dos factos constitutivos do direito alegado”. E, nos termos
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do n.º 1 do artigo 344º do mesmo diploma, esta regra
inverte-se “quando haja presunção legal”; o que significa
que a quem pretender negar a existência do direito alegado
cabe demonstrar que os referidos factos não ocorreram.
Acresce que, agora por força do disposto no artigo
347º, ainda do Código Civil, “a prova legal plena só pode
ser contrariada por meio de prova que mostre não ser
verdadeiro o facto que dela for objecto”.
Tudo isto conjugado dá o seguinte resultado: estando
contida no mencionado artigo 7º do Código do Registo
Predial a referida presunção, daí resulta que a ilação que
a lei tira, no caso concreto, a partir do extracto de
inscrição reproduzido em I. é no sentido de existir uma
“servidão de passagem de pé e de carro” a onerar o prédio
rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de
Vila do Bispo sob o n.º 6138, a fls. 156 do Livro B-16.
IV. No artigo 1543º do Código Civil, “servidão predial
é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de
outro prédio pertencente a dono diferente”.
Extrai-se, a partir da definição dada, que a servidão
impõe um certo encargo ao prédio serviente ou, que é o
mesmo mas visto pelo outro lado da relação imobiliária
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subjacente, concede um determinado benefício ao prédio
dominante. A servidão predial não concede poderes de gozo
indeterminados (como sucede v.g. com o usufruto), mas, ao
invés, atribui, ao dono do prédio dominante, uma única
utilidade (v.g. tirar água de um poço, transportá-la, passar
a pé, passar de carro, passar a pé e de carro, instalar um
aqueduto, etc.); tudo depende do que tiver sido
especificado no respectivo título constitutivo (artigos
1547º e 1544º, Código Civil). Justamente por isso é que na
correspondente inscrição predial se deve fazer menção
precisa do “encargo imposto” [artigo 95º, n.º 1, alínea c),
Código do Registo Predial]
Aplicada esta ideia ao caso concreto, ela significa
que a servidão (originalmente) constituída por contrato
celebrado «entre a “SG – Sociedade Agrícola, Limitada”, e
MTC », é de “passagem de pé e de carro” e nada mais do que
isso.
E para o efeito torna-se indiferente que a servidão
tenha índole legal ou voluntária (artigo 1547º, Código Civil),
pois o respectivo modelo, tal como surge definido no artigo
1543º do Código Civil, não muda em função disso.
V. É no seguimento desta ideia que se deve entender o
disposto no artigo 1565º do Código Civil: “o direito de
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servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso
e conservação”.
Nos termos deste preceito, o exercício da servidão
abarca o que revestir carácter indispensável:
– para a sua utilização e
– para a sua manutenção.
V.I. O segundo aspecto relaciona-se, sobretudo, com a
realização de obras no prédio serviente destinadas a
assegurar o normal exercício da servidão. Tais obras:
– “são feitas à custa do proprietário do prédio
dominante” (artigo 1567º, n.º 1, Código Civil);
– “devem ser feitas no tempo e pela forma que sejam
mais convenientes para o proprietário do prédio serviente”
(artigo 1566º, n.º 2, Código Civil);
– desde que não tornem a servidão mais onerosa para o
prédio serviente (artigo 1566º, n.º 1, in fine, Código
Civil).
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V.II. O primeiro aspecto referido – a utilização –
está ligado ao modo de exercício da servidão: de acordo com
o artigo 1564º do Código Civil, ela é regulada, “no que
respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo
título”; e só perante a exiguidade deste se recorrerá ao
que se estabelece entre os artigos 1564º e 1568º do Código
Civil.
Ora, no caso concreto, a extensão da servidão está
perfeitamente definida: passar “de pé e de carro”.
Quanto ao seu modo de exercício, nada se estabelecendo
em sentido diverso, cabe deduzir que ela abrange qualquer
pessoa ou qualquer carro que queira aceder aos prédios
dominantes.
O disposto no n.º 2 do artigo 1565º do Código Civil –
“em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício,
entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer
as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante
com o menor prejuízo para o prédio serviente” – é, por
isso, inaplicável; na verdade, inexistem dúvidas sobre a
extensão e o modo de exercício da servidão.
VI. O momento relevante para aferir, porém, acerca das
necessidades do prédio dominante e que serve para definir o
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conteúdo da servidão – ou seja, para individualizar o
conjunto de poderes e deveres que conformam o direito do
titular do prédio dominante – é o que corresponde à data da
sua constituição (independentemente da suficiência do
título constitutivo). Não pode ser de outro modo, sob pena
de o titular do prédio serviente nunca poder saber com
exactidão aquilo com que deve contar: se v.g. o prédio
dominante destinado a alguma cultura se transforma num
empreendimento turístico, a necessidade de fazer passar uma
dúzia de pessoas na época dos trabalhos agrícolas converte-
se na indispensabilidade de fazer passar dezenas ou
centenas de pessoas diariamente; ora, decerto não é
exigível que, no momento de constituição da servidão, o
dono do prédio serviente devesse contar com uma alteração
quantitativa desta natureza para pretender impor-lhe o
dever de a ela se submeter. Acresce, em hipóteses do género
daquela que aqui se considera, que a contrapartida pactuada
pela instituição da servidão (5000$00, nas presentes
circunstâncias) tem obviamente em conta a dimensão do
encargo; o que significa, por outras palavras, não se poder
conjecturar que o preço devido pelo estabelecimento do
encargo tivesse sido precisamente o mesmo se fosse
conhecido, logo de início, que um empreendimento da
dimensão v.g. do Resort agora ali instalado – com as
implicações daí decorrentes em termos de utilização – iria
ficar instalado nos prédios dominantes.
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VII. Por outro lado, a servidão constituída, qualquer
que seja o conteúdo exacto de que está dotada, é só “de pé
e de carro”; o que de imediato explica que ela não possa
envolver “as infra-estruturas indispensáveis de
abastecimento de água, gás, electricidade, telecomunicações
e drenagem de águas residuais”; isto poderia, na melhor das
hipóteses, ser objecto de outra servidão.
B: Do caminho público
I. Um caminho público não pode ser qualificado, em
simultâneo, como uma servidão predial de passagem e vice-
versa: ou se trata de uma realidade ou de outra, porque a
primeira consome a segunda. Na verdade, um caminho público
permite, por definição, o trânsito de qualquer pessoa,
enquanto a servidão predial de passagem apenas autoriza a
comunicação viária aos utentes do prédio dominante. Se,
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eventualmente, outras pessoas se servem do acesso, isso não
lhes concede qualquer particular direito: limitam-se a
tirar proveito da inércia ou da tolerância do dono do
prédio dominante [artigo 1253º, alínea b), Código Civil].
Ora, no caso concreto, como o que está inscrito no
registo predial é a existência da servidão, é esta que se
presume até que se faça prova do contrário (artigo 347º,
Código Civil).
II. Admitindo, porém, a tese segundo a qual é um
caminho público que está em causa, torna-se indispensável
verificar se os respectivos requisitos de existência
estarão presentes.
Para o efeito, torna-se necessário, antes de mais,
distinguir atravessadouro de caminho público propriamente dito.
Isto porque diz o artigo 1383º do Código Civil que se
consideram “abolidos os atravessadouros, por mais antigos
que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em
proveito de prédios determinados, constituindo servidões”.
Os atravessadouros (qualquer que seja a sua antiguidade) só
podem subsistir, pois, na medida em que observem o modelo
da servidão predial tal qual este surge descrito pelo
disposto no artigo 1543º.
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Nesta medida, “os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos
quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim
essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus
leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos
destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre
povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público” (acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/2008, Proc. n.º
08A542). E, por isso, “VII – O terreno dos atravessadouros pertence
aos prédios onerados com os mesmos, por se incorporarem numa espécie de
servidão” (acórdão da Relação do Porto de 21/03/1991, Proc.
n.º 0409990).
III. “São, porém, reconhecidos os atravessadouros com
posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de
manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas
destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra,
bem como os admitidos em legislação especial” (artigo
1384º, Código Civil).
Os atravessadouros que, excepcionalmente, nos termos
da presente disposição, podem permanecer mesmo não
respeitando o esquema da servidão predial, ficam
dependentes do acatamento de dois requisitos:
– que assentem numa posse imemorial (v.g. acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/1992, Proc. n.º
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80.324, Bol. do Min. da Just., 422, 355: “IV – O tempo
imemorial é aquele tão antigo que o seu início se perde na memória dos
homens ou, dito de outro modo, aquele cujo início se perdeu da memória dos
homens pela sua antiguidade. V – O conceito de «tempo imemorial» não fica
preenchido com a prova de que o caminho existe há cerca de 120 anos, desde
então vindo a passar pessoas até há cerca de 50 anos a pé, com veículos e
animais, e desde esta última data, a pé”);
– e que se “dirijam a ponte ou fonte de manifesta
utilidade”.
Ainda assim, a sua sobrevivência fica sujeita à
verificação de uma condição legal resolutiva: manter-se-ão
“enquanto não existirem vias públicas destinadas à
utilização ou aproveitamento” da referida ponte ou fonte.
Neste contexto, o atravessadouro assemelha-se ao
caminho público; dele se distingue, contudo, em virtude de
a sua subsistência se fundar numa finalidade específica que
a existência do caminho público não pressupõe
necessariamente.
Atendendo ao que fica exposto, pode afirmar-se, com
segurança, que no caso concreto não se está perante um
atravessadouro.
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IV. “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão
no uso directo e imediato do público” (assento – com valor actual de
acórdão uniformizador – do Supremo Tribunal de Justiça n.º
7/89 de 19/04/1989, Proc. n.º 073284).
“2. Atravessadouros são caminhos de passagem de pessoas
implantados em prédios de particulares que não constituem servidões ou
caminhos públicos. 3. Caminhos públicos são os que, desde tempos
imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, caracterizando-se a
envolvente de utilidade pública pelo destino de satisfação de interesses
colectivos relevantes” (acórdão da Relação de Coimbra de
12/01/2010, Apelação n.º 2963/05.0TBPBL.C1).
“I – Por força do assento de 19 de Abril de 1989 «são públicos os
caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do
público». II – Este assento admite porém o afastamento da presunção que está
na sua base. III – Deve além disso ser interpretado no sentido (restritivo) de o
«uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou
relevância sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade
pública». IV – Por outro lado mesmo que se considere revogado o artigo 380º
do Código Civil de 1867 deve ainda hoje ter-se por relevante a definição de
coisas públicas dele constante a saber: «as apropriadas ou produzidas pelo
Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração». V –
A qualificação dum caminho como público pode, pois, basear-se: – Ou no facto
de ele ser propriedade de entidade de direito público e estar afecto à utilidade
pública; – Ou no seu uso directo e imediato pelo público desde tempos
imemoriais de acordo com o assento de 19 de Abril de 1989 interpretado nos
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termos acima indicados. VI – Os atravessadouros ou atalhos por seu turno são
caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares
com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais sendo os
seus leitos parte integrante desses prédios. VII – Assim, constitui mero
atravessadouro o caminho através de prédio particular no uso directo e
imediato do público desde tempos imemoriais mas que não esteja afecto à
satisfação de relevantes interesses públicos. VIII – Segundo os artigos 1383º e
1384º do Código Civil vigente consideram-se abolidos os atravessadouros salvo
os que «com posse imemorial» se dirijam a ponte ou fonte de manifesta
utilidade. IX – No caso dos autos dois caminhos carrais existentes num terreno
particular e que apenas proporcionam um pouco relevante encurtamento da
distância entre dois caminhos públicos têm a natureza de simples
atravessadouros pelo que podem os proprietários daquele proceder à
respectiva vedação ou tapagem” (acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 10/11/1993, 84.192, Bol. do Min. da Just., 431,
300).
“I – O Código Civil não define «coisa pública». II – Deve entender-se por
«coisa pública» não só aquela que assim é qualificada por lei como aquela que
está afecta ao uso directo e imediato do público. III – Um caminho deve ser
considerado como público, se desde tempos imemoriais está afecto ao uso
directo e imediato do público, satisfazendo interesses relevantes, não estando
o seu assento integrado em qualquer prédio privado. IV – Tendo sido dado
como provado «há mais de 300 anos» há que entender-se tal facto como toda
uma imensidade temporal anterior, cujo início se desconhece e,
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consequentemente, desde tempo imemorial” (acórdão da Relação de
Évora de 01/04/2004, Proc. n.º 2527/03-2).
“I – A caracterização de um caminho como público sofreu, ao menos a
nível jurisprudencial, alguma flutuação de posições, de que emergiram as
patenteadas nos acórdãos em confronto no Assento do STJ de 19/04/1989 (DR
de 2/06/1989), hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência.
II – Na opção doutrinal desse Assento decidiu-se que “são públicos os caminhos
que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. III
– A jurisprudência do STJ, no entanto, passou a interpretar restritivamente o
mencionado Assento, exigindo que, além da afectação ao trânsito das pessoas
com imemorialidade, essa utilização corresponda a satisfação de interesses
colectivos com atendível grau e relevância, numa clara adesão aos critérios do
destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente da
afectação. IV – Donde que se deva entender que, por muitas que sejam as
pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá
sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de
caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à
generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a
satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”
(acórdão da Relação de Coimbra de 20/04/2010, Proc. n.º
261/06.1TBSRT.C1).
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V. De harmonia com a jurisprudência que fica referida,
pode concluir-se que a natureza pública de um caminho fica
dependente do preenchimento de quatro condições:
– “uso directo e imediato do público”;
– que tal uso perdure desde “desde tempos imemoriais”;
– satisfazendo relevantes interesses públicos;
– desde que o seu leito não faça parte integrante de
qualquer prédio privado.
Ora, no caso concreto, nenhuma das aludidas condições
se verifica:
A – não é o público em geral que passa pela via em
causa, nem, designadamente, os veraneantes residentes em
Sagres; ao invés, só o fazem, habitualmente, alguns
turistas;
B – esta passagem não dura desde tempos imemoriais,
dado que:
i. por um lado, há memória de ela se ter
iniciado para aceder a uma antiga fábrica de
cerâmica e, posteriormente, ao motel “Os
Gambuzinos” (sendo certo que posse imemorial
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significa, precisamente, aquela de cujo
início não há memória);
ii. e, por outro lado, em virtude de posse
imemorial ser sinónimo de posse com centenas
de anos e não apenas com algumas dezenas,
como é o caso;
C – uma vez que, para o público em geral, existe outro
acesso à Praia do Martinhal, este não serve interesses
públicos primordiais;
D – o terreno pelo qual se faz a passagem é pertença
de José de Sousa Cintra e, portanto, é objecto de direito
de propriedade privada (cf. inscrição de propriedade
referida em I, relativamente à qual, reitera-se, não se faz
referência à existência de qualquer caminho público mas sim
de uma servidão de passagem estabelecida a favor dos
prédios descritos sob os números 12691, a fls. 151 do Livro
B-33, e 12878, a fls. 48 verso do Livro B-34).
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C: Da expropriação
I. Artigo 1º, Código das Expropriações: “Os bens
imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser
expropriados por causa de utilidade pública compreendida
nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante,
mediante o pagamento contemporâneo de uma justa
indemnização nos termos do presente Código”.
Artigo 10º, do mesmo Código: “1 – A resolução de
requerer a declaração de utilidade pública da expropriação
deve ser fundamentada, mencionando expressa e claramente:
a) A causa de utilidade pública a prosseguir e a norma
habilitante; b) Os bens a expropriar, os proprietários e
demais interessados conhecidos; c) A previsão do montante
dos encargos a suportar com a expropriação; d) O previsto
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em instrumento de gestão territorial para os imóveis a
expropriar e para a zona da sua localização”.
II. A expropriação por utilidade pública é o acto,
fundado numa determinada razão de utilidade pública,
através do qual a Administração promove unilateralmente a
constituição de um certo direito, mediante justa compensação
(artigo 1310º do Código Civil; artigo 62º da Constituição).
Pressupõe-se, resumidamente:
– a declaração de utilidade pública (artigos 10º e
segs., Código das Expropriações);
– o pagamento contemporâneo de justa compensação (artigos
23º e segs., do mesmo diploma).
Há, assim, expropriação por utilidade pública quando
se constitui, a favor do seu beneficiário, qualquer direito
real, maxime de propriedade.
III. Somente pode ser expropriado o que for “objecto
de direitos privados” (artigo 203º, n.º 2, Código Civil),
e, designadamente, de propriedade particular. Admite-se, é
verdade, a chamada afectação de bens de domínio público a outros fins
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de utilidade pública (artigo 6º, n.º 1, Código das
Expropriações: “As pessoas colectivas de direito público
têm direito a ser compensadas, em dinheiro ou em espécie,
como melhor convier aos fins públicos em causa, dos
prejuízos efectivos que resultarem da afectação definitiva
dos seus bens de domínio público a outros fins de utilidade
pública”); mas esta hipótese, nem é de expropriação
propriamente dita, nem quadra obviamente à situação.
Logo, suscita-se de imediato a questão: se o acesso em
causa deve ser configurado como um caminho público, a que
título, com que fundamento e como pode ele ser objecto de
expropriação por utilidade pública promovida pela autarquia
se já faz parte do domínio público autárquico?
Acresce, por outro lado, desconhecer-se a existência
da figura da expropriação por utilidade pública a
requerimento de terceiros (isto é: de quem não seja
beneficiário da expropriação ou expropriado)! Não se
vislumbra, assim, a que título se justifica que seja a “SG
– Empreendimentos Turísticos, SA”, a sugerir, propor,
pretender, solicitar:
– a expropriação por utilidade pública
– de um caminho público (!!!)
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– que, de harmonia com os registos em vigor, é uma
servidão predial (!!!)
D: Conclusões
1. De acordo com os registos em vigor está
constituída a favor dos prédios onde hoje está
edificado o Resort uma servidão predial “de pé e
de carro”.
2. “O direito de servidão compreende tudo o que é
necessário para o seu uso e conservação”.
3. As obras necessárias à manutenção da passagem:
“são feitas à custa do proprietário do prédio
dominante”; “devem ser feitas no tempo e pela
forma que sejam mais convenientes para o
proprietário do prédio serviente”; desde que não
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tornem a servidão mais onerosa para o prédio
serviente.
4. O disposto no n.º 2 do artigo 1565º do Código
Civil – “em caso de dúvida quanto à extensão ou
modo de exercício, entender-se-á constituída a
servidão por forma a satisfazer as necessidades
normais e previsíveis do prédio dominante com o
menor prejuízo para o prédio serviente” – é
inaplicável ao caso concreto; na verdade,
inexistem dúvidas sobre a extensão e o modo de
exercício da servidão.
5. Porém, o momento relevante para aferir acerca das
necessidades do prédio dominante e que serve para
definir o conteúdo da servidão – ou seja, para
individualizar o conjunto de poderes e deveres
que conformam o direito do titular do prédio
dominante – é o que corresponde à data da sua
constituição (independentemente da suficiência do
título constitutivo).
6. A servidão constituída, qualquer que seja o
conteúdo exacto de que está dotada, é só “de pé e
de carro”; o que de imediato explica que ela não
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possa envolver “as infra-estruturas
indispensáveis de abastecimento de água, gás,
electricidade, telecomunicações e drenagem de
águas residuais” – isto poderia, na melhor das
hipóteses, ser objecto de outra servidão.
7. Um caminho público não pode ser qualificado, em
simultâneo, como servidão predial de passagem e
vice-versa: ou se trata de uma realidade ou de
outra, porque a primeira consome a segunda.
8. No caso concreto, como o que está inscrito no
registo predial é a existência da servidão, é
esta que se presume até que se faça prova do
contrário (artigo 347º, Código Civil).
9. Os atravessadouros que, excepcionalmente, nos
termos do artigo 1384º do Código Civil, podem
permanecer mesmo não respeitando o esquema da
servidão predial, ficam dependentes do acatamento
de dois requisitos: que assentem numa posse
imemorial e que se “dirijam a ponte ou fonte de
manifesta utilidade”.
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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZDOUTOR EM DIREITOPROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA
10. Pode, por isso, afirmar-se, com segurança,
que no caso concreto não existe um
atravessadouro.
11. De harmonia com uma jurisprudência uniforme,
a natureza pública de um caminho fica dependente
do preenchimento de quatro condições: “uso
directo e imediato do público”; que tal uso
perdure desde “desde tempos imemoriais”;
satisfazendo relevantes interesses públicos;
desde que o seu leito não faça parte integrante
de qualquer prédio privado.
12. No caso em apreço, nenhuma das aludidas
condições se verifica:
- não é o público em geral que passa pela via em
causa;
- esta passagem não dura desde tempos imemoriais;
- existe outro acesso à Praia do Martinhal;
- o terreno pelo qual se faz a passagem é objecto
de direito de propriedade privada.
13. Somente pode ser expropriado o que for
“objecto de direitos privados” (artigo 203º, n.º
2, Código Civil), e, designadamente, de
propriedade particular.
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JOSÉ A. R. LORENZO GONZÁLEZDOUTOR EM DIREITOPROFESSOR ASSOCIADO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA E DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS POLICIAIS E SEGURANÇA INTERNA
14. A levar-se em conta a tese da “SG –
Empreendimentos Turísticos, SA”, a tratar-se de
um caminho público não se vislumbra como, estando
já no domínio público, poderá ele ser objecto de
expropriação.
15. Mas não se entende, contudo, como pode estar
em causa um caminho público:
- quando do registo predial resulta tratar-se de
servidão predial;
- e quando não estão preenchidos os requisitos de
existência de um caminho público.
José A. R.L. González
Lisboa, 12 de Abril de 2011
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