Revisitando a aplicação da pena sob o prisma do Modelo Constitucional de Processo
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Revisitando a aplicação da pena sob o prisma do Modelo Constitucional de
Processo
José de Assis Santiago Neto1
A parte geral do Código Penal Brasileiro completou seus 30 anos de
existência no último dia 11 de julho de 20142, enquanto, nosso Código Penal já caminha
para completar seus 74 anos no próximo dia 7 de dezembro de 2014. Assim, vivemos a
dicotomia de uma parte geral 44 anos mais nova que a parte especial, já que a reforma
da parte especial, anunciada na época jamais foi efetivamente implementada, preferindo
o legislador pátrio por reformas pontuais que fizeram dos crimes em espécie verdadeira
colcha de retalhos muitas vezes com punições desproporcionais se comparadas entre si.
Contudo, em que pese a reforma da Parte Geral, esta ocorreu sob o
regime constitucional anterior, Constituição de 1967/1969, e não sob o prisma da
Constituição promulgada sob o apelido de Constituição Cidadã em 5 de outubro de
1988. Ou seja, carece de ser reinterpretada sob o prisma da ordem constitucional
vigente.
A Constituição de 1988 provocou verdadeira ruptura com o modelo
constitucional anterior, eis que enquanto a constituição anterior fora outorgada por um
regime de exceção e forjada para atender aos anseios daqueles que ocupavam o poder de
maneira ilegítima e mantida através da força e da repressão, a denominada Constituição
Cidadã foi elaborada por uma assembleia nacional constituinte visando atender aos
anseios do Povo, a quem foi restituído o poder com a adoção do Estado Democrático de
Direito. Porém, democracia não se impõe, se conquista, não basta que a Constituição
diga que estamos sob o Estado Democrático de Direito, é necessário que busquemos a
efetivação desse modelo a cada dia, buscando implementar a participação na tomada das
decisões do Estado e a implementação dos direitos fundamentais, marcas estas
indeléveis do regime adotado. É a participação na construção do espaço público que
marcará o Estado Democrático de Direito (HABERMAS, 1997).
1 Professor de Direito Penal e Processual Penal da PUC/MG, campus Betim, Mestre em Direito
Processual (PUC MG), advogado criminalista sócio da Santiago Associados Advocacia, 2º Diretor Secretário do Instituto de Ciências Penais (ICP), Coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Minas Gerais. 2 Como é sabido a parte geral foi integralmente reformulada pela Lei 7.209/1984.
Nesse prisma, carecem algumas reflexões sobre a aplicação da pena no
código penal brasileiro para fazê-la em consonância com as disposições constitucionais.
Atualmente, a aplicação de pena vem sendo vista como mera atividade do julgador,
cabendo às partes apenas a discussão sobre a existência do crime e sua autoria, devendo
o juiz na sentença, a teor do art. 387 do Código de Processo Penal, aplicar a pena
segundo as normas estabelecidas pelo art. 68 do Código Penal brasileiro.
Assim, não se verifica em relação à aplicação da pena a indispensável
participação das partes. Contudo, a aplicação da pena é parte fundamental do
provimento, determinando, sobretudo, por quanto tempo o Estado se apossará do corpo
do condenado (FOUCAUT, 1987). A pena, sobretudo a privativa de liberdade, atinge
aquilo que é mais vulnerável do sujeito, seu tempo de vida (MESSUTI, 2003). Assim,
se o Estado deseja se apossar daquilo que muitas vezes é o que resta ao indivíduo, ou
aquilo que ele tem de mais importante, que é seu tempo de vida, sua liberdade, deve
permitir que o sujeito possa ao menos participar de forma dialógica da construção e
definição do tempo que lhe será tomado.
Dessa forma, a reflexão que faremos nas próximas linhas refere-se à
forma pela qual é aplicada a pena privativa de liberdade, normalmente desprovida de
contraditório, sem qualquer debate entre as partes. Ao final, procuraremos propor
soluções para a implementação do contraditório nessa importante fase procedimental,
eis que é nela que será definida e individualizada a consequência jurídica do fato
praticado criminal.
Conforme o modelo constitucional de processo, o processo deve ser
percebido como um procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes, sendo
certo que o provimento (decisão) deve ser fruto da construção das partes em
contraditório (GONÇALVES, 2012). Por sua vez, tal construção não é realizada apenas
por uma das partes, mas por todas, de forma comparticipada (NUNES, 2009), onde as
partes atuam em conjunto, de forma a construir a decisão através do diálogo, enfim, o
processo penal democrático deve ser formado pelo constante diálogo entre as partes e o
julgador, em um palco imaginário onde os sujeitos processuais possam atuar em
igualdade de condições (SANTIAGO NETO, 2012). Por fim, as regras em que se
desenvolve o processo deve ser clara a todos, possibilitando que todos tracem suas
estratégias de atuação visando buscar os resultados desejados (ROSA, 2014).
Assim, para que o processo penal não permita a vitória do mais forte
sobre o mais fraco, garantindo-se o diálogo endoprocessual entre as partes e julgador,
deve-se constituir segundo uma base principiológica uníssona consolidada pelo
contraditório, ampla argumentação, fundamentação da decisão e terceiro imparcial
(BARROS, 2009).
Nesse diapasão, as tarefas de acusar, defender e julgar jamais podem ser
colocadas nas mãos do mesmo sujeito, sendo, portanto, necessário que cada uma das
tarefas seja desenvolvida por um sujeito específico do processo: Julgador, Ministério
Público e Defesa. Somente através de tal separação é que teríamos um modelo
realmente acusatório. Contudo, o ordenamento processual-penal brasileiro vive uma
constante dicotomia, enquanto possuímos uma constituição que separa as funções de
acusar (art. 129), defender (arts. 133 e 134) e julgar (arts. 92 e seguintes), adotando um
modelo nitidamente acusatório, o Código de Processo Penal, cópia do Código de
Processo Penal italiano de 1930, feito sob a batuta do fascismo, coloca nas mãos do
julgador as funções de produzir provas e julgar, permitindo ao juiz o controle da gestão
da prova e, consequentemente, adotando o modelo inquisitório (SANTIAGO NETO,
2012).
Nesse contexto, o maior problema do processo penal brasileiro hoje,
entre os vários problemas que um código produzido sob uma ditadura, copiado de um
regime totalitário, e que serviu a várias outras ditaduras (por isso não poderia servir à
Democracia!) (COUTINHO, 2009), é que foram criadas mentalidades e práticas
inquisitórias, logo, autoritárias (SANTIAGO NETO, 2012). Assim, além de uma
legislação inquisitorial, temos também uma prática inquisitória proporcionada por
mentes que não conseguiram abandonar o inquisitorialismo, mesmo após mais de vinte
e cinco anos de vigência da Constituição da República. Desde a concepção do vigente
Código de Processo Penal, de 1941, até hoje nosso sistema processual penal sofreu
inúmeras alterações pontuais, que, contudo, não são e nem serão capazes de alterar sua
concepção autoritária, mantendo-se sempre o modelo inquisitório incompatível com a
Constituição, é preciso saber quando levaremos a Carta Política devidamente à sério
(COUTINHO, 2006).
Nesse contexto, é o Ministério Público uma parte criada pelo Direito
afim de possibilitar a efetivação do modelo acusatório e a completa separação das
funções de acusar, julgar e defender (AROCA, 1997).
Dessa forma todo o processo penal deve desenvolver-se em contraditório
entre as partes, Ministério Público e Defesa, e o julgador. Ou seja, toda a sentença deve
ser precedida do debate endoprocessual formado pelo contraditório e pela ampla
argumentação entre as partes. O que se verifica no procedimento penal brasileiro é que a
sentença, quando muito, é debatida apenas no que tange ao crime, pouco (ou quase
nunca) debatida em relação à pena.
Segundo as normas do Código Penal Brasileiro, art. 68 do Código Penal,
o ordenamento pátrio adotou o critério trifásico para a aplicação da pena, ou seja,
primeiro o julgador verifica as circunstâncias judiciais (art. 59), em segundo lugar
verifica as agravantes (art. 61 e 62) e atenuantes (art. 65 e 66), nessa ordem, para ao
final na terceira fase verificar as majorantes e minorantes (que se encontram espalhadas
por todo texto do código, tanto na parte geral como na parte especial).
Dessa forma, cada uma das fases de aplicação da pena devem ser
debatidas em contraditório, não bastando mais no Estado Democrático de Direito, o
simples pedido de condenação “nas penas que lhe couber” formulado em sede de
alegações finais. Deve a acusação explicitar todas as agravantes e causas de aumento de
pena que entende cabíveis, e, como o Ministério Público está vinculado ao principio da
legalidade, deve-se pronunciar também sobre as atenuantes e minorantes que entender
existentes. Já à defesa deve(ria) explicitar as atenuantes e minorantes que entender
cabíveis, buscando ainda desconstruir as agravantes e majorantes apontadas pelo órgão
acusador.
O processo penal acusatório exige a completa separação das funções de
acusar, julgar e defender (SANTIAGO NETO, 2012; ROSA, 2014; COUTINHO,2009b,
entre outros) e isso não se aplica apenas à discussão do crime, é necessário que exista tal
separação também no momento de aplicar a pena. A aplicação da pena sem pedido
fomenta o juiz ator, o juiz paranoico na expressão de Franco Cordero (1986), aquele que
decide primeiro para justificar depois. Assim, o juiz, no Estado Democrático de Direito
não pode simplesmente aplicar a pena de modo solitário, solipsista, deve abrir a
aplicação de pena ao contraditório entre as partes. Reconhecer agravantes e majorantes
sem pedido significa ultrapassar os limites da própria ação penal, condenar sem pedido,
afinal condena-se o individuo a passar uma temporada maior no cárcere.
Dessa forma, a Constituição não permite, ao contrário do que dispõe o
art. 385 do Código de Processo Penal, que o juiz condene o acusado sem pedido
expresso ou que reconheça agravantes não alegadas pelas partes, mesmo que se trate de
ação penal pública. O juiz que condena sem pedido e aquele que reconhece agravantes
sem que tenha existido pedido não é julgador, mas um inquisidor em busca da “bruxa”
para queimar na fogueira, trata-se do reflexo do quadro mental paranoico apontado por
Cordero (CORDERO, 1986), que não se desenvolve apenas quando o juiz vai em busca
de provas, mas também no juiz que busca a qualquer preço a condenação do acusado ou
a majoração desnecessária e não buscada por quem deve acusar e buscar a condenação,
o Ministério Público.
Devemos ressaltar aqui que não basta ainda o singelo pedido do
ministério público pela pena cabível, deve o Ministério Público alegar e comprovar
todas as circunstâncias que qualifiquem, agravem ou majorem a pena privativa de
liberdade, bem como a não incidência das minorantes e atenuantes, eis que a dúvida
deve ser levada em favor do acusado, devendo o juiz julgá-las favoráveis ao condenado
ao aplicar a pena.
A própria leitura do art. 59, denominado de circunstâncias judiciais, dá a
entender que sua aplicação seria tarefa do juiz. Contudo, em um processo democrático
não há espaço para a atividade jurisdicional independente das partes, afinal, são elas que
sofrerão os efeitos da decisão. Assim, em que pese a locução “o juiz”, na forma do art.
59, o princípio do contraditório exige a efetiva participação das partes em todos os
momentos da construção da decisão, consequentemente, também devem participar da
aplicação da pena.
À título de mera sugestão legislativa, cremos que a cisão entre a fase de
condenação e fixação da pena seria de grande valor democrático, passando, após a
condenação do individuo à fase de aplicação da pena, necessária e suficiente (art. 59,
CPB) a ser aplicada de modo individual (art. 5º, XLVI, CR/88). Nessa fase do
procedimento ganhariam relevo as testemunhas de conduta social e a produção de
provas quanto à reparação do dano causado. Dessa forma, ganharia corpo o
contraditório e o debate endoprocessual em relação à pena a ser imposta, abrindo-se
margem ao debate e à participação do próprio condenado na fixação da reprimenda que
lhe será imposta. Ou, mantendo-se a forma de fixação de pena como se encontra, que as
partes participem efetivamente da fixação da pena privativa de liberdade, eis que esta
faz parte da sentença e, por isso, deve ser objeto de construção endoprocessual pelas
partes e não apenas pelo julgador.
Porém, no atual procedimento penal, na forma adotada pelo Código de
Processo Penal vigente, as partes devem debater, em alegações finais (orais ou escritas)
sobre a aplicação da pena. Devendo a acusação (via de regra o Ministério Público)
fundamentar e demonstrar a prova da presença das agravantes e majorantes (gerais ou
especiais) e se manifestando sobre o quanto de agravamento, e a defesa refutar tais teses
e demonstrar a existência das atenuantes e minorantes. Assim sendo, a decisão da pena
não passa mais apenas pela “consciência do juiz”, deve ser construída em contraditório,
sob o debate coparticipativo das partes.
Problemas poderiam surgir em casos de crimes meramente tentados, que
não se consumam por circunstâncias alheias à vontade de seu autor, art. 14, II, do
Código Penal, eis que o crime tentado configura uma minorante, a última a ser aplicada
na aplicação de pena. Porém, nada impede que a tentativa (fática) que pertence à análise
da conduta e, consequentemente, da própria tipicidade, seja avaliada na primeira fase,
sendo que, na segunda fase seja, após a sentença condenatória seja debatido o quanto de
diminuição da pena se de um ou dois terços (art. 14, parágrafo único).
Em relação às demais minorantes e majorantes, sejam elas gerais ou
especiais, nada impede de ser feito o mesmo, a discussão de fato na primeira fase, onde
se produzirá a prova de sua existência e, na segunda fase o debate em contraditório do
quanto de pena a ser reduzido ou majorado.
Assim, o processo passaria a possibilitar a construção pelo debate
endoprocessual travado entre seus principais interessados, possibilitando, sobretudo, a
participação daquele que sofrerá na pele suas principais consequências, o acusado.
Assim sendo, vejamos a aplicação de pena como se daria, ainda que em
brevíssimas linhas gerais.
A pena privativa de liberdade deve ser aplicada de forma individual, art.
5º XLVI, da CR/88, sendo assim, deve ser individualizada em três fases distintas:
legislativa (fixação de máximo e mínimo em conformidade com a conduta punida);
judiciária (fixação da pena ao caso concreto) e executória (individualização da execução
penal). Assim sendo, a discussão que estamos travando restringe-se apenas à aplicação
da pena.
A teor do disposto no art. 68 do Código Penal Brasileiro, a fixação da
pena deve levar em conta três fases bem definidas: primeiro as circunstâncias judiciais,
depois as circunstâncias atenuantes e agravantes e, ao final as causas de aumento
(majorantes) e de diminuição de pena (minorantes). Para finalizar, vamos voltar os
olhos à aplicação de pena afim de demonstrar que para uma aplicação de pena
condizente com o atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de Direito
deve-se rever, ou reler, as três fases pelas quais se deve passar para se determinar a
aplicação da pena.
No que tange à primeira fase da aplicação da pena, verifica-se no teor do
art. 59 do Código Penal que esta deve ser calcada nos seguintes elementos:
culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente e motivos,
circunstâncias e consequências do crime. Contudo, percebe-se que as circunstâncias
referentes aos antecedentes e à conduta social e personalidade do agente referem-se aos
modos de vida do autor do fato criminoso e não ao fato praticado, configurando face do
odioso direito penal do autor e estando, em contradição com os postulados do Direito
Penal do Fato. Não se condena o sujeito, mas o fato por ele praticado, o sujeito é punido
pelo que fez, não por aquilo que é. Tais causas acabam por justificar abusos de toda
sorte, desde agravamentos de pena à fixação de regimes mais gravosos, sendo usadas
como sinônimo de condenações que não se prestariam para configurar reincidência3,
acusações em outros processos criminais e até ser apontado como autor de outros delitos
em Registros Policiais antigos (mesmo sem condenação!)4. Tais fatos além de violarem
o princípio da presunção de não culpabilidade, também acabam por serem realizados
sem qualquer critério científico, eis que por personalidade entende-se “a síntese das
3 Adiante demonstraremos que a reincidência também não pode ser tida como agravante no Estado
Democrático de Direito. 4 V.g. “Nota-se da CAC, de fls. 82/83, que a apelante possui uma condenação transitada em julgado
posteriormente à data do fato que se examina, (autos nº 0212949-66.2010.8.13.0525) evidenciando-se que a sua personalidade é voltada para o crime, fazendo com que os antecedentes sejam considerados desfavoráveis, assim, como demonstra a sentença de fls. 85/91.” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 3ª Câmara Criminal, Apelação Criminal 1.0525.08.152949-3/001, rel. Des. Antônio Cruvinel, j. 29/07/2014, p. 06/08/2014).
qualidades morais e sociais do indivíduo” (BITENCOURT, 2009, p. 629), afinal para a
avaliação da personalidade do indivíduo seria necessário profundo estudo psiquiátrico
do mesmo, não podendo o juiz, por seus critérios subjetivos determinar quem tem boa
ou má personalidade. Com a conduta social, entendida como o “conjunto do
comportamento do agente em seu meio social” (BITENCOURT, 2009, p. 629) ocorre o
mesmo, se julga o individuo por suas origens, por aquilo que é na comunidade onde
vive, não por aquilo que efetivamente fez5, vê-se que se julga, mais uma vez se o
acusado possui histórico de envolvimento com fatos criminais e não o que ele
efetivamente teria feito no caso em julgamento. Com os antecedentes, “fatos anteriores
praticados pelo réu” (BITENCOURT, 2009, p. 627) não é diferente, também acabam
sendo vistos como condenações criminais antigas, inaptas à gerarem reincidência6. Vê-
se, portanto, que tais circunstâncias, além de restarem confundidas, acabam por levar ao
agravamento da pena apenas pelo que o acusado é, não por aquilo que efetivamente fez,
configurando nítida face do Direito Penal do Autor e abrindo portas para um discurso de
punição ao inimigo como sendo aquele que comete crimes, em claro descompasso com
as garantias constitucionais.
Com as agravantes o mesmo se dá, em relação à reincidência, eis que, se
o fim da pena, nos termos apregoados no art. 1º da LEP (Lei 7.210/1984) – que entrou
em vigor juntamente com a “Nova” Parte Geral do Código Penal -, é a ressocialização7,
bem como insiste em afirmar a jurisprudência8 de forma a crítica, a reincidência
representaria a falência da própria finalidade da pena, ou a falência do Estado em
conseguir o objetivo que declarou para justificar a punição. Assim, a reincidência jamais
poderia configurar em agravante, já que representa a morte do Estado ao não conseguir
5 V.g. “A aferição da ruim personalidade do agente prescinde de prova técnica. Para que seja
considerada desfavoravelmente ao agente, assim como sua conduta social, basta que o conjunto probatório angariado pela acusação, especialmente a Certidão de Antecedentes Criminais, comprove que aquele tem especial afeição à criminalidade, sendo assíduo frequentador de delegacias de polícia e varas criminais, na condição de investigado e acusado.” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 7ª Câmara Criminal, Apelação Criminal 1.0112.13.004005-1/001, rel. Des. Marcílio Eustáquio Santos, j. 28/08/2014, p. 05/09/2014). 6 Vg. “Os maus antecedentes são reconhecidos quando o acusado registrar condenação por crime
anterior, não caracterizadora da reincidência.” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 7ª Câmara Criminal, Apelação Criminal 1.0024.11.190254-0/001, rel. Des. Cássio Salomé, j. 28/08/2014, p. 05/09/2014). 7 Em texto publicado na internet já nos posicionamos contrários à ideia de ressocialização, como o tema
foge ao escopo do presente estudo, remetemos o leitor ao texto que encontra-se disponível no seguinte endereço eletrônico: http://justificando.com/2014/08/27/o-tarja-preta-para-dormir-e-o-direito-penal-penazil/ 8 Vide STJ HC 220392 / RJ; HC 208369 / SP, entre outros.
“ressocializar” o indivíduo. Nesse sentido, vale transcrever as palavras de Juarez Cirino
dos Santos, sempre esclarecedoras:
É necessário reconhecer: a) se o novo crime é cometido atos a passagem do
agente pelo sistema formal de controle social, como efetivo cumprimento da
pena criminal, o processo de deformação e embrutecimento pessoal do
sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real
entre as circunstâncias atenuantes, como produto específico da atuação
deficiente e predatória do Estado sobre os sujeitos criminalizados; b) se o
novo crime é cometido após simples formalidade do transito em julgado de
condenação anterior, a reincidência ficta não indica qualquer presunção de
periculosidade capaz de fundamentar circunstância agravante. Em conclusão,
nenhuma das hipóteses de reincidência real ou de reincidência ficta indica
situação de rebeldia contra a ordem social garantida pelo Direito Penal: a
reincidência real deveria ser circunstância atenuante e a reincidência ficta é,
de fato, um indiferente penal. (SANTOS, 2005, p. 120-121)
Vê-se, pois, que a reincidência não pode mais, no atual estágio de
desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, ser tida como circunstância
agravante. E mais, representa claro bis in idem, já que a reprimenda aplicada ao crime
que está em julgamento acaba sendo agravada por uma condenação pretérita e já
cumprida. Sobre isso, à título de conclusão, valem as palavras de Amilton Bueno de
Carvalho que à marteladas aduz:
Desde meu ponto de vista, a agravante não se sustenta no sistema: primeiro,
faz renascer o medieval e superado modelo do direito penal do autor, onde o
cidadão responde pelo que é e não por aquilo que faz – a pena é aumentada
não pelo que o acusado fez, mas sim por sua história; e, segundo, constitui
indisfarçável ‘bis in idem’: recebe pena duas vezes pelo mesmo crime
praticado – ora, o acusado recebe uma pena determinada com base no crime
que no momento é julgado e, a seguir, sofre aumento pela condenação
anterior. (CARVALHO, 2014, p. 156)
Outro relevante ponto que devemos abordar ao tratar da aplicação da pena sob
o paradigma do Estado Democrático de Direito e o modelo constitucional de processo
tange à súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, que veda a incidência de atenuantes
quando a pena for reduzida para aquém do mínimo legal. Consoante dispõe o art. 65 do
Código Penal Brasileiro, as atenuantes sempre atenuam a pena. Em que pese o texto da
súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, entendemos que a incidência de atenuante
pode, e deve, reduzir a pena para aquém do mínimo legal, urgindo a revisão da referida
súmula para possibilitar efetivamente a individualização jurisdicional da pena. E nem se
deve cogitar que, assim agindo, estaria o julgador, no momento de aplicação da pena, a
legislar. Tanto a pena mínima como a atenuante se encontram previstas expressamente
em lei, foi o próprio legislador quem as previu e afirmou no art. 65 que as atenuantes
devem sempre reduzir a pena. Negar a redução da pena aquém do mínimo legal e a
incidência das atenuantes violaria o princípio fundamental da individualização da pena,
art. 5º, XLVI, da CR/88, tanto na vertente legislativa como na fase judicial, bem como
violaria o princípio constitucional da legalidade, art. 5º, XXXIX, CR/88, vez que as
circunstâncias atenuantes sempre deverão atenuar a pena9. Nesse sentido, Cezar
Roberto Bitencourt:
9 Nesse sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL. DISPARO DE ARMA DE FOGO. AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS. INCIDÊNCIA DA ATENUANTE DE CONFISSÃO. REDUÇÃO DA PENA AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. Constatando-se a incidência da atenuante reduz-se a sanção ainda que represente uma redução aquém do mínimo legal previsto. Apelação Criminal conhecida e provida. Por maioria. (Apelação-Crime nº 0147/2011 processo nº 2011302379, Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, j. 28/03/2011, rel. Desembargadora Geni Silveira Schuster) APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO QUALIFICADO - CONCURSO DE AGENTES - APLICAÇÃO DA ATENUANTE PREVISTA NO ART. 65, III, "D", DO CP - REPRIMENDA FIXADA AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL - POSSIBILIDADE - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO - UNÂNIME. (Apelação Criminal nº 0893/09, Relator Des. Edson Ulisses de Melo, Câmara Criminal do TJSE, julgado em 07/12/2009) APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME DE FURTO - ART. 155, § 4º, INCISO I DO CPB. - SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE FIXOU PENA AQUÉM DO MÍMINO LEGAL. POSSIBILIDADE DA REDUÇÃO DA PENA NA SEGUNDA FASE DA DOSIMETRIA DA PENA - ENTENDIMENTO FIRMADO PELO CÂMARA CRIMINAL DESTA CORTE DE JUSTIÇA SERGIPANA. - A operação correspondente à segunda fase do sistema - consideração das circunstâncias legais vinculadas ao fato típico - conduzindo à redução da pena-base já encontrada, é possível. Subtrair eventual ocorrência de atenuantes, seria malferir o princípio da individualização da pena. - A súmula 231 do STJ é aplicável somente no momento da fixação da pena-base, sendo inaplicável nas fases posteriores da individualização da pena. - Apelo conhecido e improvido. Decisão unânime. (Apelação Criminal nº 0806/09, Relator Des. Netônio Bezerra Machado, Câmara Criminal do TJSE, julgado em 01/03/2010) RESP - PENAL - PENA - INDIVIDUALIZAÇÃO - ATENUANTE - FIXAÇÃO ABAIXO DO MINIMO LEGAL - O PRINCIPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (CONSTITUIÇÃO, ART. 5º, XLVI) MATERIALMENTE, SIGNIFICA QUE A SANÇÃO DEVE CORRESPONDER AS CARACTERISTICAS DO FATO, DO AGENTE E DA VITIMA, ENFIM, CONSIDERAR TODAS AS CIRCUNSTANCIAS DO DELITO. A COMINAÇÃO, ESTABELECENDO GRAU MINIMO E GRAU MAXIMO, VISA A ESSE FIM, CONFERINDO AO JUIZ, CONFORME O CRITERIO DO ART. 68, CP, FIXAR A PENA "IN CONCRETO". A LEI TRABALHA COM O GENERO. DA ESPECIE, CUIDA O MAGISTRADO. SO ASSIM, TER-SE-A DIREITO DINAMICO E SENSÍVEL A REALIDADE, IMPOSSIVEL DE, FORMALMENTE, SER DESCRITA EM TODOS OS PORMENORES. IMPOSIÇÃO AINDA DA JUSTIÇA DO CASO CONCRETO, BUSCANDO REALIZAR O DIREITO JUSTO. NA ESPECIE "SUB JUDICE", A "PENA BASE" FOI FIXADA NO MINIMO LEGAL. RECONHECIDA, AINDA, A ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTANEA (CP, ART. 65, III, D). TODAVIA, DESCONSIDERADA PORQUE NÃO PODERA SER REDUZIDA. ESSA CONCLUSÃO SIGNIFICARIA DESPREZAR A CIRCUNSTANCIA. EM OUTROS TERMOS, NÃO REPERCUTIR NA SANÇÃO APLICADA. OFENSA
O entendimento contrário à redução da pena para aquém do
mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a
dicção do atual art. 65 do Código Penal não autoriza. Com
efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias
atenuantes ‘sempre atenuam a pena’, independentemente de já
se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de
Carlos Caníbal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que se
trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são
circunstâncias que sempre atenuam a pena’... e – prossegue
Caníbal – norma cogente em direito penal é norma de ordem
pública, máxime quando se trata de individualização
constitucional de pena’. A previsão legal, definitivamente não
deixa qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade, e eventual
interpretação diversa viola não apenas o princípio da
individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto
judicial) como também o princípio da legalidade estrita.
(BITENCOURT, 2009, p. 638-639)
Por fim, vale destacar a atenuante genérica do art. 66, que prevê que o juiz
poderá atenuar a pena por qualquer motivo, ainda que não expresso em lei mas que seja
favorável ao acusado. Vê-se em tal hipótese a possibilidade de ser reconhecida a
(de)mora estatal em punir e que poderá atenuar a pena em razão do sofrimento imposto
por longo período ao acusado. Nesse sentido, é a posição de Aury Lopes Jr., ao afirmar
que a aplicação do art. 66 em casos de demora jurisdicional seria uma medida
compensatória em razão da desnecessária demora do Estado para processar o indivíduo
(LOPES JR., 2013, p. 216).
Concluímos, por fim, que ao completar sua terceira década de vigência a parte
geral do Código Penal carece de uma interpretação segundo as normas da Constituição,
que completou seus vinte e seis anos e merece ser levada a sério. De tal forma, a
aplicação da pena deve ser revista tanto processualmente, para que seja realizada através
AO PRINCIPIO E AO DISPOSTO NO ART. 59, CP, QUE DETERMINA PONDERAR TODAS AS CIRCUNSTANCIAS DO CRIME. (STJ -REsp 151.837/MG - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - 6ª T - julgado em 28/05/1998).
das normas do devido processo constitucional, sendo a decisão que condena e que aplica
a pena fruto do debate endoprocessual e em contraditório das partes e não fruto do
arbítrio jurisdicional. Além disso, é necessário repensar as chamadas circunstâncias
judiciais (art. 59 do Código Penal) e as agravantes/atenuantes para que a aplicação de
pena possa se dar segundo o paradigma do Estado Democrático de Direito e,
principalmente nos termos constitucionais.
Referências Bibliográficas
AROCA, Juan Montero. Principios del Proceso Penal: Uma explicaciòn basada en
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