Restauro: questões de cor

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RESTAURO: QUESTÕES DE COR

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RESTAURO: QUESTÕES DE COR

A cor como construção do espaço

A cor é, por excelência, a parte da arte que possui o dom mágico.

Enquanto o tema, a forma, a linha dirigem-se, sobretudo, ao

pensamento, a cor não tem qualquer sentido para a inteligência, mas

detém todos os poderes sobre a sensibilidade.

Delacroix

INTRODUÇÃO

A preocupação com o patrimônio histórico e o legado deixado por gerações anteriores

à nossa tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas. Isso se deu por conta

de várias destruições de obras do passado levadas a cabo em nome do progresso.

Mudanças bruscas na paisagem urbana levaram a um interesse maior sobre os

monumentos, obras de arte e de arquitetura que são testemunhos da história. Quais

são os elementos que nos definem? Quais são os elementos artísticos que nos são

característicos? De que cores vestimos nossas casas e nossas cidades?

Daí a crescente necessidade de recuperação dessas obras e consequentemente, a

maior quantidade e visibilidade das obras de restauro. Ao mesmo tempo, essa

chamada “era da informação” em que vivemos, que se utiliza cada vez mais do visual,

valoriza crescentemente o papel da cor em todos os aspectos de nossas vidas.

Assim, este trabalho busca refletir um pouco sobre a disciplina de restauro e as

questões inerentes à cor e suas derivações que se colocam nos processos de

recuperação do espaço construído, analisando, posteriormente os casos de

restauração de três coloridas igrejas barrocas no Estado de São Paulo.

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O INÍCIO: A FORMAÇÃO DA DISCIPLINA DE RESTAURO

A restauração, entendida no sentido mais abrangente, como ato de recuperação de

edifícios e de requalificação de seus usos, existe desde os tempos mais antigos; a

necessidade humana de adaptar uma edificação a novos programas e, especialmente,

de manter seu uso por várias gerações, remonta aos longínquos períodos em que o ser

humano deixou a vida nômade e passou a se fixar por mais tempo em um mesmo

local. Manter sua estabilidade em um mesmo locus passava por garantir a durabilidade

da habitação e substituir elementos desgastados pelo correr dos anos, pelo uso

constante e pelas intempéries impostas pelo ambiente. Dessa forma, ao longo dos

séculos, incontáveis foram as recuperações de edifícios, sem que o termo

restauro/restauração estivesse bem estabelecido.

O restauro como metodologia científica começa a ser formulado em fins do século

XVIII e início do século XIX. É certo que já no barroco surge o profissional denominado

restaurador, mas as suas atividades ainda se baseavam muito mais em atualizar

estilisticamente as edificações e obras de arte do que recuperá-las mantendo suas

características.

Com o Iluminismo, outras preocupações surgem e é nesse período que se formulam os

ideais de nação e de pertencimento: para formar a imagem do que caracteriza

determinado povo e o diferencia de outro, é preciso que sejam percebidas

características comuns, a mesma formação, costumes iguais, um passado comum. Essa

construção de um ideal coletivo de nacionalidade passa aí, necessariamente, por

eleger fatos importantes, heróis nacionais que lutaram pelo povo e também, de

marcos físicos que testemunharam e, mais que isso, provam essa história comum.

Surge, por isso, no Iluminismo, a noção de monumento, de uma obra humana que

remete a algum personagem ou fato relevante para a coletividade. Também se criam

museus e coleções são abertas ao público. Os museus são os locais por excelência

onde se custodiam os objetos pertencentes às ciências, letras e artes de um povo.

É desse período a construção da ideia de que existem patrimônios da cultura coletiva:

surge a noção de patrimônio histórico, vários países europeus organizam comissões

nacionais de história e de monumentos; são elaborados também os primeiros

inventários de bens patrimoniais, através de pessoas ou órgãos oficiais que buscam

catalogar o que há de importante e que deve ser preservado.

Ao mesmo tempo em que cresce o interesse pela preservação, a Europa passa pela

Revolução Industrial, que está modificando completamente a feição das cidades, numa

nova e acelerada dinâmica que impõe a demolição de muitas construções centenárias

e a adaptação de várias outras. À medida que a necessidade de intervir no bem

patrimonial cresce, o mesmo ocorre com a discussão de que postura tomar diante do

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mesmo. A discussão é capitaneada pelos países que estavam sofrendo as mais bruscas

transformações nos modos de vida e, por conseguinte, nas cidades, por conta de

revoluções políticas, filosóficas e industriais: por Inglaterra e França, inicialmente,

depois por Áustria e Itália.

Já na primeira metade do século XIX, o grande debate que tratava da preservação

opunha a postura de restauração do bem à de conservação e criava grande oposição

entre restauradores e conservadores. A primeira corrente era capitaneada pelo

arquiteto francês Eugène Viollet-le-Duc e a segunda, pelo seu colega inglês, John

Ruskin.

Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) e

os restauradores.

Viollet-le-Duc nasceu, cresceu e estudou

arquitetura em um país que tinha visto muitos

de seus monumentos serem destruídos ou

mutilados pela Revolução Francesa, com um

forte sentimento de perda da história e num

momento em que muito se tentava reconstruir

dessas edificações.

Ao mesmo tempo, os arquitetos que se

formavam, muitos em outros países como a

Itália, tinham uma carga de seu ensino baseada

no estudo das construções clássicas e na

reconstrução hipotética de ruínas.

Os primeiros preceitos genéricos sobre a restauração de monumentos

apareceram na França já no século XVIII. O exercício teórico da

reconstituição, por sua vez, era algo com tradição, fazendo parte dos

trabalhos dos pensionistas na Academia de França em Roma, que

tinham que estudar monumentos da Antiguidade Clássica, fazer seu

levantamento e realizar reconstituições hipotéticas (KÜHL, 2000: 18).

Formado em um ambiente em que se aprendia a tentar pensar como o autor do

projeto original de uma obra e se incentivavam as reconstituições, Le-Duc transportou

para seu país essa forma de ver a arquitetura e desenvolveu todo um estudo sobre o

gótico, que predominava na França, com diferenças marcantes em relação ao

classicismo que imperava na Itália. Assim, sua orientação era para que o profissional

encarregado de uma restauração possuísse um profundo conhecimento daquele estilo,

Fig.01: Viollet-le-Duc aos 60 anos.

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de suas características construtivas para ter a clareza de propor os complementos,

enxertos, reconstruções e preenchimentos necessários.

Se o arquiteto encarregado da restauração de um edifício deve

conhecer as formas, os estilos pertencentes a esse edifício e à escola

da qual proveio, deve ainda mais, se for possível, conhecer sua

estrutura, sua anatomia, seu temperamento, pois antes de tudo é

necessário que ele o faça viver. É necessário que tenha entrado em

todas as partes dessa estrutura, como se ele mesmo a tivesse

dirigido, e adquirido esse conhecimento, deve ter à sua disposição

vários meios para empreender um trabalho de recuperação (VIOLET-

LE-DUC, 2000: 56-7).

Mais do que completar o edifício, o arquiteto

deveria, para Le-Duc, ter a percepção de como o

autor original conceberia a obra caso voltasse à

vida naqueles tempos e tivesse as novas

tecnologias da construção à disposição. Dentro

dessas posturas, ele removeu acréscimos (que

falseavam a ideia original da edificação),

acresceu partes conforme supunha que

deveriam ter sido concebidas e realizou

reformas, corrigindo aspectos arquitetônicos

que julgava errôneos nas obras.

O restauro era, assim, um momento também de

criatividade, onde o profissional poderia e

deveria propor uma completude às edificações

incompletas ou desfalcadas de partes. No caso

das cores, que não foram diretamente

mencionadas por ele em seu tratado, seus seguidores buscaram recuperar a paleta

original dos edifícios, mantendo a postura de tentar se colocar no lugar do autor da

obra, mas ainda sem métodos científicos que fornecessem provas concretas de quais

cores eram essas.

A tese de Viollet-Le-Duc era a de que o restauro deveria proceder

estabelecendo um estado completo à obra que na verdade poderia

nunca ter existido. Essa postura despertou o repúdio de alguns

críticos por ser considerada uma postura invasiva sobre o

monumento, apesar disso foi um teórico muito importante e de

reconhecido valor (SILVA, 2010: s.p.).

O passado, para Viollet-le-Duc, não deveria ser apenas contemplado, mas para servir

como estímulo ou inspiração, o que permitiu o desenvolvimento de uma arquitetura

historicista. Sua forma de pensar a recuperação ficou posteriormente conhecida como

Figs.02 e 03: Castelo de Pierrefonds antes de depois do restauro comandado por Viollet-le-Duc em 1862.

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Restauro Estilístico, que teve grande força, mas não foi unanimidade entre os

profissionais contemporâneos na França.

Bastante oposta a essa concepção era a do crítico de arte inglês John Ruskin, para

quem o passado possuía um ar de santidade, de sublimação, e deveria ser

meticulosamente mantido.

John Ruskin (1819-1900) e os conservadores.

Ruskin defendia que o edifício apenas adquiria

valor com o decorrer dos anos, após ser

testemunha da vida e da morte de várias

gerações, de resistir às modificações do

ambiente urbano e, enfim, ser abençoado com a

pátina do tempo (OLIVEIRA, 2008: s.p.): é naquela

mancha dourada do tempo que devemos

procurar a verdadeira luz, a cor e o valor da

arquitetura (RUSKIN, 2008: 68). Essa visão

romântica se aproximava bastante de ideais de

beleza do período anterior, do barroco, quando

pintores eram contratados para conferir um

caráter de envelhecimento (de pátina) em

afrescos e estátuas: a passagem do tempo e a

ancianidade carregavam uma poesia pelo

testemunho de vivência desses objetos.

Assim também ocorria aos edifícios que, para Ruskin, adquiriam uma carga simbólica e

histórica maior à medida que o tempo passava. O fato de uma construção ser

arruinada por guerras ou cair pela falta de manutenção era também parte de sua

história e reconstruir/recuperar trechos destruídos seria uma negação da vida do

edifício: a ruína é o testemunho da idade, do envelhecimento e da memória, podendo

nela estar expressa a essência do monumento (OLIVEIRA, 2008: s.p.). As cores, por

conseguinte, deveriam aceitar a pátina que o tempo lhes impusesse: nada mais falso

para os conservadores do que um edifício antigo com uma pintura reluzentemente

nova.

Na visão ruskiniana, a obra arquitetônica, assim como a de arte, tem seu tempo e

envelhecimento natural, como um ser vivente, chegando um dia inevitavelmente à

ruína.

Fig.04: Ruskin por volta de 1890.

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Mas para que o uso dos prédios continue se

mantendo, são necessárias manutenções

periódicas. O cuidado constante evitaria a

necessidade de restaurações: o princípio vigente

nos tempos modernos (...) é o de descurar dos

edifícios primeiro e restaurá-los depois. Cuide

bem de seus edifícios e monumentos e não

precisará restaurá-los (RUSKIN, 2008: 81-2).

Ainda, as restaurações acarretariam

inevitavelmente em falseamentos da história do

edifício, negando-a em cada elemento antigo

que fosse substituído por um novo e negando,

inclusive, o processo natural de degradação de

qualquer material e da construção como um

todo, que, como um ser vivo, também passa por

um processo de envelhecimento e morte. Ruskin

seguia o mesmo pensamento que vários pintores românticos e percebia grande beleza

nas ruínas. Por isso, para ele o restauro era a maneira mais cruel de destruição, por

mutilar o bem patrimonial e negar-lhe o que carregava de mais importante: a sua

essência.

Nem pelo público, nem por aqueles encarregados dos monumentos

públicos, o verdadeiro significado da palavra restauração é

compreendido. Ela significa a mais total destruição que um edifício

pode sofrer: uma destruição da qual não se salva nenhum vestígio:

uma destruição acompanhada da falsa descrição da coisa destruída

(RUSKIN, 2008: 79).

A restauração era uma grande mentira, a grande negação do bem. Era preferível que a

construção fosse demolida para dar lugar a algo novo a ser falseada em uma

intervenção de restauro.

Mas, diz-se, que pode ser necessária a restauração! Que seja. (...) é

uma necessidade de destruição. Aceite-a como tal, arrase o edifício,

amontoe suas pedras em cantos esquecidos, transforme-as em

cascalho, ou argamassa, se você quiser, mas o faça francamente, e

não coloque um a Mentira em seu lugar (RUSKIN, 2008: 81).

Para Ruskin, o edifício era mais importante em seu aspecto histórico e simbólico que

em seu estado físico, da mesma forma, as características estilísticas de todas as épocas

da construção e os acréscimos sofridos também eram importantes porque eram

testemunhos da trajetória da edificação: a originalidade não era o aspecto mais

importante a ser valorizado. Sua posição era diametralmente oposta ao pensamento

de Le-Duc, para quem o gênio criador da obra, a ideia original, a concepção do projeto

Fig.05: Ruínas do Interior do Priorado de

Lindsfarne, de C. Thomas, 1797.

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estavam na base do pensar o restauro e os acréscimos se tornavam elementos

espúrios.

Já no último quartel do século XIX, quando as posturas dos seguidores de Ruskin e de

Viollet-le-Duc se exacerbavam, os primeiros por não admitir qualquer intervenção no

bem histórico, os segundos por recriarem cada vez mais desavisadamente acréscimos

às edificações patrimoniais, surgem novos pensadores que procurarão organizar e

uniformizar os procedimentos de restauro: Camillo Boito e Gustavo Giovannoni, na

Itália, e Alöis Riegl e Max Dvořák, na Áustria.

A Sistematização da Disciplina de Restauro:

Camillo Boito (1836-1914), Alöis Riegl (1858-

1906), Max Dvořák (1874-1921) e Gustavo

Giovannoni (1873-1947).

Os técnicos que se debruçam sobre o restauro

em fins do século XIX buscam, primeiramente,

unificar as posturas dos conservadores à dos

restauradores, partindo do princípio de que o

ato de conservação/manutenção não deixa de

ser uma forma de restauro. Sendo assim, haveria

um caminho que, despossuído dos excessos

cometidos por ambas as correntes, poderia

tornar a ação ante um bem patrimonial

uniforme.

Camillo Boito coloca em pauta que a

controvérsia entre conservação e reconstituição

nas obras de restauro deveria ser resolvida por

meio de maior clareza nas intervenções: as

partes construídas, que o seriam somente se

indispensáveis, deveriam ser claramente

diferenciadas, e todo o processo fielmente

documentado e exposto (SILVA, 2010: s.p.).

Aumenta-se muito, sob Boito, a preocupação

com a autenticidade e há o deslocamento da

análise da visão puramente estilística (de qual

estilo seria o mais adequado para se completar

uma obra) para o valor intrínseco do bem e sua

verdade histórica, tomando redobrados cuidados

para que não se produzissem falseamentos

Fig.06: Boito na década de 1910.

Fig.07: Riegl por volta de 1900.

Fig.08: Giovannoni aos 60 anos.

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históricos.

No que se refere à arquitetura, Boito se coloca de forma crítica em

relação às propostas de Viollet-le-Duc e às de Ruskin. Quanto às

posturas de Ruskin, Boito as considera de uma lógica impiedosa, por

interpretar que o edifício deveria ser deixado à própria sorte e cair em

ruínas (...). No que tange a Viollet-le-Duc, aponta os perigos de se

querer alcançar um estado completo que pode não ter existido nunca,

devendo o arquiteto restaurador, para tal, colocar-se na posição do

arquiteto inicial. Indica a consequente e inevitável arbitrariedade que

resulta dessa postura e enfatiza ainda os riscos de falsificação desse

tipo de restauro (KÜHL, 2002: 24).

Boito denuncia que havia muita inventividade nas reconstituições de partes de obras

feitas pelos restauradores: O restaurador, no fim das contas, oferece-me a fisionomia

que lhe agrada, o que eu quero mesmo é a antiga, a genuína, aquela que saiu do

artista grego ou romano, sem acréscimos nem embelezamentos (BOITO, 2002: 44). O

arquiteto defendia ainda que não se tentasse imitar o antigo, não se buscasse copiar

determinado estilo, pois é impossível reproduzir fielmente o trabalho do artista e a

tentativa de completar a obra desfalcada ou inacabada terminaria apenas em

conjecturas, nunca em certezas. Por esse motivo, é uma das primeiras vozes a destoar

do conjunto e defender que os complementos não imitem o estilo da obra

intervencionada, mas sejam mínimos e tenham a marca do presente: é necessário que

os complementos, se indispensáveis, e as adições, se não podem ser evitadas,

demonstrem não ser obras antigas, mas obras de hoje (BOITO, 2002: 61-2).

Na virada do século XIX para o XX cresce a preocupação pelo valor artístico e histórico

do objeto em si e diminui a importância do estilo, pois as novas posturas vão repudiar

o complemento da obra. E se o objeto é valorizado, todas as fases de intervenção

passam a ser consideradas como fatos históricos relevantes. O ato de limpar o edifício

e remover acréscimos posteriores também passa a ser visto como uma outra forma de

falsear o elemento histórico, negando sua trajetória. Outros pensadores, como Riegl e

Dvořák vão compartilhar dessa visão com Boito e procurar disseminar esses preceitos.

[Riegl] procurou estabelecer a conservação baseada no respeito ao

‘valor de antigo’, como um modo de embasar a tutela dos

monumentos, que não teria mais objetivo, como predominara até

então a práxis austríaca, a unidade de estilo. Ou seja, a tutela não se

volta à retomada de ‘formas’ antigas, nem desconsidera as várias

faces do edifício; tem por objetivo respeitar escrupulosamente o bem

e os próprios traços de antiguidade (KÜHL, 2008: 39-40).

Assim, passam a serem valorizadas todas as fases do edifício, pois todas fazem parte

da história do mesmo e, da mesma forma, a original não é necessariamente a fase

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mais importante, pois o bem somente em seu estado inicial não consegue contar toda

a sua história. É preciso que o bem, como documento, mantenha as marcas da

passagem do tempo e, nesse ponto seguindo preceitos ruskinianos, mantenha a pátina

do tempo.

Quando se pensa em cor, portanto, a original pode não ser a mais importante e o

retorno da cor ao estado original, reluzente, também é uma forma de falsear o bem e

fingi-lo novo:

Uma antiga igreja acinzentada pelo tempo, que tenha sido

restaurada a ponto de parecer nova em folha, adquirindo

internamente um novo e excessivo brilho dourado e uma decoração

muitas vezes exagerada, onde as paredes resplandecem com a

limpeza ou foram repintadas, acaba perdendo tudo que lhe garantia

o aspecto caro e precioso. Ela se assemelha, depois da restauração, a

uma construção nova e sem interesse, da qual desaparecem a poesia,

a atmosfera e o fascínio pitoresco que a envolviam (DVOŘÁK, 2008:

98-9).

Percebendo que restauradores e conservadores careciam de meios científicos para

estabelecer critérios de intervenção nas obras, Boito, Riegl, Dvořák e especialmente

Giovannoni formularam metodologias para análise e documentação do processo de

restauro para torná-lo mais preciso e menos arbitrário. Técnicas e experimentos de

outras ciências passaram a fazer parte do cotidiano do restaurador: análises químicas,

documentação fotográfica, levantamentos estratigráficos, etc. Todos esses

profissionais procuraram uniformizar os procedimentos da restauração.

Também a problemática das cores e da cor original, praticamente negligenciada nos

primeiros discursos de Ruskin e Le-Duc, se torna alvo de maior preocupação no debate

sobre a restauração: ao invés de tentar imaginar qual seria a tonalidade ideal para

determinado estilo (Viollet-le-Duc) ou manter a cor que chegou aos dias atuais

(Ruskin), passa-se a fazer prospecções nas paredes para saber, com certeza, quais

foram as camadas de pintura que a edificação ou obra de arte recebeu, tornando a

informação sobre a mesma muito mais precisa.

Com as discussões colocadas por Boito, Riegl, Dvořák e Giovannoni no último quartel

do século XIX, o restauro chega ao século XX já estabelecido como uma disciplina e

com posturas ante o bem histórico mais ou menos padronizadas e compartilhadas por

uma grande gama de países, especialmente os europeus, onde se centraliza o debate

mundial. Desaparece a divisão entre conservadores e restauradores: ambas as formas

de atuação são restauro.

Nesse período, a maioria dos países do continente já possuía comissões nacionais de

patrimônio e associações organizadas de restauradores, sendo possível organizar

grandes eventos para debater a área.

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Cesare Brandi (1906-1988) e o restauro crítico

Já no século XX, com a disciplina de restauro

bem definida, a contribuição de Cesare Brandi

seria decisiva para ampliar e aprofundar a

percepção sobre o bem histórico. Crítico de arte,

Brandi não formula seu pensamento direcionado

para a arquitetura, mas para obras de arte,

porém, suas colocações são transportadas

rapidamente e facilmente aplicadas na

arquitetura, e consideradas obras arquitetônicas

como obras de arte. Ele coloca que o restauro

não deve se basear apenas no aspecto histórico

da obra, mas que o aspecto estético é

primordial. Por tratar de obras de arte, a

restauração deve privilegiar a instância estética

(que corresponde ao fato basilar da artisticidade

pela qual a obra de arte é obra de arte)

(CARBONARA, 2004: 12).

A noção do bem patrimonial se amplia e analisa-se também o ambiente. Assim, o

entendimento da obra/edificação, passa necessariamente pela apreensão do contexto

em que ela se insere: o bem não pode ser analisado isoladamente sem que se avalie

também suas características ambientais e de contexto. Se o espaço no qual a obra está

inserido transformou-se radicalmente com o passar dos anos, também a forma de

intervenção não poderá ser a mesma do que para o caso de um objeto situado em um

ambiente que se manteve íntegro:

O restauro é considerado como intervenção sobre a matéria, mas

também como salvaguarda das condições ambientais que assegurem

a melhor fruição do objeto e, quando necessário, como forma de

resolver a ligação entre o espaço físico, em que tanto o observador

como a obra se inserem, e a espacialidade própria da obra

(CARBONARA, 2004: 13).

Mais do que analisar a obra e seu contexto, o restaurador, para Brandi, deve fazer a

análise crítica da mesma, o que significa compreendê-la profundamente e interpretá-la

para, apenas depois disso, intervir.

O restauro é um ato crítico, dirigido ao reconhecimento da obra de

arte (sem o que a restauração não é o que deve ser); voltado à

reconstituição do texto autêntico da obra; atento ao ‘juízo de valor’

necessário para superar, frente ao problema específico das adições, a

Fig.09: Giovannoni aos 56 anos.

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dialética das duas instâncias, a histórica e a estética (CARBONARA,

2004: 12).

Note-se que a forma de conhecimento do bem histórico a que Brandi se refere

distancia-se bastante da compreensão imaginada por Viollet-le-Duc quase uma

centena de anos antes: este último procura perceber todos os traços do estilo para

complementar a obra da forma que mais se aproximasse da sua concepção original,

enquanto o primeiro busca um conhecimento mais profundo, de entender a essência

da obra artística (e arquitetônica, por conseguinte) e contextualizá-la no ambiente em

que ela se insere, resultando em uma postura crítica do restaurador e embasada em

questões mais filosóficas de autenticidade, ambiência e valor estético.

Para Brandi, o restauro passa necessariamente por três fases: a de reconhecimento (na

qual se inserem os levantamentos que dão suporte ao conhecimento científico sobre o

bem), a de análise crítica (com a necessária interpretação da obra, do seu estado atual,

do contexto em que ela se coloca, de suas características e peculiaridades) e,

finalmente, a de revelação, ou seja, a fase de intervenção física que revelará

características importantes perdidas da obra artística/arquitetônica.

A teoria de Brandi passou a ser a mais aceita pelos estudiosos e profissionais ligados à

atividade do restauro e por técnicos interessados pelas questões da cidade. Ao mesmo

tempo em que propõe uma ação intervencionista, se respeita a história do

monumento e as características originais da edificação, propondo um uso racional e

adequado para as necessidades contemporâneas. Ele respeita o passado, é coerente

com o presente e projeta o monumento saudavelmente para o futuro. (SILVA, 2011,

s.p.).

Os Restauradores se Reúnem: As orientações das Cartas Patrimoniais.

No século XX, a profissão de restaurador se firma e se estabelece com mais clareza,

ligando-se diretamente aos cursos de arquitetura e de artes plásticas. Comitês

nacionais e internacionais são compostos e convenções mundiais são organizadas com

a finalidade de se debater a profissão, as posturas e de uniformizar a forma de intervir

nos monumentos, buscando-se consolidar alguns sensos comuns (TARALI, CAMPÊLO,

2007). Desses encontros resultaram resoluções que servem até os dias atuais para

guiar os procedimentos de restauro em todo o mundo. Essas resoluções, as chamadas

cartas patrimoniais, são reconhecidas pelos profissionais do restauro como normas

internacionais.

É bastante perceptível que, com o transcurso do século, o conceito do que é

monumento (e, portanto, deve ser preservado) foi se modificando nas reuniões dos

restauradores, conforme se pode ver nos conteúdos das cartas patrimoniais. Dos 41

documentos dessa categoria reconhecidos pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio

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Histórico e Artístico Nacional), destacamos os quatro textos mais relevantes que

tratam do assunto do monumento:

• Carta de Atenas (CIAM, 1933): Escrita em meio às movimentações e organização

dos arquitetos do movimento moderno, que repudiavam a arquitetura do

movimento predecessor (o ecletismo), o documento reconhece que existe a

necessidade de restauração de alguns monumentos e marcas do passado nas

localidades. Como os modernistas apregoavam a remoção dos ornamentos e a

limpeza da arquitetura isso se refletiu também na concepção do monumento, que

deveria ser isolado para ser mais bem valorizado.

• Carta de Veneza (ICOMOS, 1964): primeiro escrito importante sobre patrimônio

após a Segunda Guerra, momento em que a Europa se encontrava arrasada e tinha

perdido muitos de seus marcos históricos. A discussão sobre o monumento se

aprofunda e a noção sobre o mesmo se amplia, passando a considerar a ambiência

do mesmo, como preconizava Brandi. Assim, o monumento não deve mais ser

isolado, mas, na medida do possível, o contexto em que ele se insere deve ser

mantido para garantir uma fiel leitura. Outro conceito, defendido anteriormente

por Riegl, se firma: monumentos não são apenas obras notáveis, mas as que têm

significância para uma comunidade.

• Recomendações de Paris (ONU, 1968): Essas recomendações vêm para referendar

e documentar a preocupação que já se tinha com a salvaguarda de grandes

conjuntos históricos. Começa a se estabelecer com mais vigor a noção de sítios

históricos.

• Declaração de Estocolmo (UNEP, 1972): quatro anos depois das Recomendações de

Paris, o documento de Estocolmo reforça a importância dos conjuntos urbanos

para as nações e amplia ainda mais a noção do monumento, pois declara a

necessidade de se preservar as paisagens que aninham e emolduram conjuntos

urbanos e monumentos.

Nos anos seguintes, novas cartas patrimoniais continuaram a ser produzidas, passando

a tratar de patrimônios ambientais e imateriais da cultura humana. Nas quatro que

vemos aqui analisadas, que abrangem um período de quase quarenta anos, a noção de

monumento, nos consensos declarados pelos arquitetos, historiadores e

restauradores, amplia-se consideravelmente, partido do monumento isolado até

atingir a compreensão de grandes conjuntos históricos e sua paisagem circundante.

Dessa forma, ao intervir em qualquer obra arquitetônica ou de arte atualmente, o

profissional deve, necessariamente, considerar todo o contexto em que o bem se

insere: no caso de uma edificação, o gabarito da vizinhança, letreiros, fiação elétrica,

vegetação, os pontos visuais, a paisagem geral e as cores predominantes no entorno

são fatores de essencial importância que não pertencem diretamente à obra, mas que

influenciarão os resultados num projeto de restauro.

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ETAPAS DA RECUPERAÇÃO DE PINTURAS

Com as formulações relativas à teoria do restauro e a evolução conceitual postas, é-

nos importante agora discutir as questões da cor na restauração.

Assim, seguiremos colocando as indagações que surgem em relação à camada

pictórica nas edificações conforme as três fases do processo de restauro: o

reconhecimento, a análise e a intervenção.

Primeira Fase: o Reconhecimento

Esta fase se baseia em levantar informações sobre a edificação e sua trajetória para

posterior análise e intervenção. Documentos, imagens, fotografias e relatos contam

um pouco sobre o bem arquitetônico, mais que estes, o próprio edifício fornece

informações sobre todas as intervenções ocorridas: sua matéria física, em si, é o

grande documento que conta toda a história através das tantas camadas de tintas e

materiais construtivos:

O reconhecimento de cronologias arquitetônicas requer avaliações

múltiplas e imbricadas. No aspecto da análise histórica, contam os

documentos textuais e iconográficos (sempre raros, escassos), como

também o entendimento das alterações estruturais, morfológicas,

programáticas e ambientais havidas ao longo da vida dos edifícios, e

que nem sempre são tão evidentes e lógicas quanto se desejaria. Se

as lacunas documentais são uma constância – bem o sabem os

profissionais que atuam na área – grande utilidade e valia adquire o

testemunho dado pelos próprios materiais constitutivos de um

edifício estudado. A matéria é, por excelência, o suporte do tempo.

Resta a nós interpretá-la corretamente (TIRELLO, 2006: 148).

A documentação sobre o imóvel deve ser meticulosamente analisada: plantas,

desenhos técnicos, fotografias antigas, recibos de serviço, transferência de

propriedade podem indicar com bastante segurança quem viveu na residência ou era

usuário que frequentava a instituição, quais, quantas e em que datas foram as

reformas, ampliações e repinturas e que materiais foram utilizados em paredes,

rebocos, emboços e esquadrias, além dos tipos de tintas e técnicas de pintura. Tal

documentação é, em geral, muito escassa, por esse motivo muitas lacunas surgem e,

com elas, inúmeras dúvidas sobre algumas fases da construção.

Porém, como o próprio edifício conta muito sobre si mesmo, realiza-se, sempre que

possível, a estratigrafia/prospecção, para observação das camadas de pintura e

pinturas decorativas, que consiste na remoção mecânica (manual, com bisturi

cirúrgico) de cada camada, abrindo as chamadas janelas que mostram as pinturas mais

antigas.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

14

Fig.10: (acima) Camadas de uma pintura a seco, técnica mais comum encontrada nas edificações. (TIRELLO, 2001: s.p.)

Fig.11: (ao lado) Faixa estratigráfica aberta na residência de João de Oliveira, São Carlos, 2009.

Fig.12: (abaixo) Pintura decorativa encontrada sob a camada atual de pintura, também decorativa, da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, Limeira, 2010.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

15

Nesta etapa de reconhecimento, também são realizados levantamentos fotográficos,

para o registro de detalhes e detecção das várias patologias que podem ocorrer em

uma edificação, como a presença de limo, fungos ou vegetação, surgimento de trincas,

fendas ou mesmo rachaduras mais severas, infiltração de águas pluviais ou percolação

da água proveniente do solo, salinização com consequente desagregação do reboco e

argamassa de assentamento dos tijolos, ataques de formigas ou infestação por insetos

xilófagos (cupins).

A maioria dessas patologias altera não só o estado físico da construção com o também

o aspecto visual, alterando padrões de cores (escurecimento, embranquecimento por

fungos) ou provocando mesmo a perda de camadas pictóricas pelas rachaduras ou

desagregação dos componentes.

Fig.13: Detalhe de uma das torres da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, Limeira, evidenciando algumas patologias que alteraram os padrões de cor: fissuras de reboco, descascamentos de tinta e a presença de limo. 2011.

Fig.14: Base da porta lateral da mesma igreja atacada por cupins, com grande perda de material. 2011.

Para isso também são realizados levantamentos métricos para elaboração de desenhos

técnicos com plantas, cortes, fachadas e detalhes construtivos, de esquadrias,

elementos metálicos e de madeira. As patologias são geralmente marcadas e indicadas

nesses desenhos para, com a visão de toda a edificação, facilitar a percepção das

origens desses problemas e possibilitar melhor análise e propor a intervenção mais

adequada. Somente através da observação da planta completa com o mapeamento

das áreas onde estão ocorrendo salinizações, por exemplo, é possível se ter uma ideia

correta de qual é a possível fonte dessa patologia.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

16

Segunda Fase: a Análise Crítica

Lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas, os museus;

lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas, lugares

simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários

ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as

autobiografias ou as associações: estes memoriais têm sua história

(LE GOFF, 1986: 473).

Quando se tem todos os dados sobre a edificação, inicia-se a fase mais difícil: a análise

crítica, pois, sua realização passa por unir o material técnico, frio, aos fatores de

representatividade e de memória, bastante difíceis de mensurar. Aqui que se tomam

as decisões que poderão muitas vezes alterar substancialmente o aspecto atual do

bem, às vezes criando algum choque nos usuários do imóvel. Em se tratando de cores,

o tratamento deve ser ainda mais cuidadoso, pois se está intervindo no aspecto visível

do prédio e o que será mais notado, elogiado, ou criticado entre tudo o que se

restaurou.

Inicialmente, deve-se ter a informação de quais as cores que pintaram a fachada ou o

interior do edifício e por quanto tempo a obra esteve sob o domínio de cada cor: um

esquema cromático que tenha permanecido por mais tempo é provavelmente o que as

pessoas que se utilizam da edificação estariam mais acostumadas, salvo em casos em

que um esquema muito duradouro já não é o utilizado há várias décadas.

É necessário que o profissional tenha em mente para quem se restaura, ou seja, quais

são os usuários da edificação e, no caso aqui discutido, com que tonalidades eles se

acostumaram a ver o prédio. Indagações sobre a memória coletiva, sobre as

lembranças que a população tem do edifício são muito importantes ao se analisar os

dados coletados nos levantamentos. Alterações muito bruscas do bem podem afetar a

noção de pertencimento dos frequentadores do prédio, enfraquecendo-a, e é

justamente o contrário desse resultado, a valorização e revitalização local, que se

busca em um restauro.

[A memória] constrói laços de pertencimento e amarramento dos indivíduos ao seu passado. A memória, no caso, patrimonializa as lembranças, levando os grupos à coesão social e a uma comunidade simbólica de sentido partilhada. Cria identidades, enfim, atividades de referência imaginária que situam os indivíduos no mundo. Construídas. Inventadas sem serem necessariamente falsas. Desejáveis e confortantes, porque positivadas. Ou incômodas e mobilizadoras de ação reivindicatória, revanchista e punitiva, porque vivenciadas como injustas e negativas (PESAVENTO, 2006: s.p.).

Muitas vezes é preferível que se mantenha a cor atual a recuperar uma composição de

cores antiga, evitando-se causar o choque dos usuários.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

17

No caso de ser possível e palpável recuperar alguma antiga camada de cor, outro fator

que deve ser levado em conta é a presença de pinturas murais ou afrescos. No Estado

de São Paulo, o costume de se fazer pinturas decorativas internas foi bastante

corriqueiro até os anos 1940 e muitas construções, até mesmo residências pequenas

para a classe média, foram decoradas internamente com repetitivos motivos feitos em

estêncil; as mais nobres recebiam desenhos marmorizados (faux marble) e

amadeirados. Se nas prospecções se encontrar alguma camada decorativa, a

recuperação desta se torna prioritária, pois se recupera, antes de mais nada, uma

camada que tem uma qualidade artística que diferencia e a torna mais interessante em

relação às outras, pela atribuição de valor que lhe conferimos.

Elementos como pinturas murais podem estar encobertos por

camadas recentes de pintura. Geralmente, não se tem dado

importância para a questão, que pode acarretar em perda

significativa do ponto de vista artístico-cultural para o futuro. A

recomposição de pinturas murais pode ser simples, barata e no final

da obra, pode valorizar muito a edificação (PIRACICABA, 2006: 16).

Há casos, e não são poucos, das prospecções revelarem mais de uma camada de

pintura decorativa. Nesse caso, é necessária uma análise bastante cuidadosa para se

eleger uma delas para ser recuperada. Pode-se optar pela camada com os desenhos

mais elaborados (e, portando, de maior qualidade artística) ou a que possua uma

linguagem mais próxima do estilo arquitetônico da construção e, por isso, confira mais

unidade ao conjunto. Nesse caso, deixa-se uma janela de testemunho expondo parte

do desenho tanto das camadas decorativas não recuperadas como da reconstituída.

Fig.15: Durante as prospecções do Centro de Preservação Cultural da USP (Casa de Dona Yayá), dentre as sete camadas de tinta, foram encontradas três com desenhos. (TIRELLO, 2006-07: 157).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

18

Fig.16, 17 e 18: Na mesma restauração, camadas artísticas foram encontradas em quase todos os ambientes. Um recurso utilizado para decidir-se qual camada reconstituir foi a computação gráfica, através da confecção de maquetes eletrônicas para simular como eram os ambientes em cada uma das pinturas. (TIRELLO, 2006-07: 162).

A técnica de se realizar a estratigrafia das paredes leva o restaurador a conhecer todas

as pinturas que ela recebeu (casas e igrejas centenárias costumam ter em torno de

sete camadas sobrepostas) e a ter a tentação de recuperar a cor original, esquecendo-

se que as demais colorações que pintaram as paredes da edificação possuem, quase

sempre, o mesmo valor histórico e artístico.

Fazer prospecções para reconhecer potenciais ‘cores originais’

(original em relação a quê? a quando?) de ambientes ou fachadas de

edifícios antigos? É oportuno refletir um pouco sobre essa questão.

(TIRELLO, 2006-07: 149)

O costume de se restaurar para que tudo volte a ser igual ao original ainda é muito

arraigado em nossa cultura. Mas corre-se o risco de se fazer um restauro pictórico

seguindo os preceitos de Viollet-le-Duc, descartando toda a discussão posterior

ocorrida no campo do restauro e até mesmo as recomendações expressas nas cartas

patrimoniais: As contribuições válidas de todas as épocas para a edificação do

monumento devem ser respeitadas, visto que a unidade de estilo não é a finalidade a

alcançar no curso de uma restauração (ICOMOS, 1964, artigo 11º). Ainda assim, o

retorno à cor original é indicado nas cartilhas dos órgãos oficiais de preservação do

patrimônio, como o IPHAN e o Condephaat (KÜHL in IAU, 2011: palestra, apresentação

oral).

Essa atitude, além de negar as fases posteriores do edifício, incorre na presunção de

que há uma cor original ainda perfeitamente preservada, conceito bastante

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

19

questionável. Para muitos estudiosos, não se pode falar que exista uma cor original da

edificação (KÜHL in IAU, 2011), pois as cores podem desbotar ou escurecer, se oxidam,

se impregnam de pigmentos que migram de camadas superiores, se alteram com a

incidência de luz, entre outros fatores, por exemplo:

Os pigmentos azuis utilizados nos séculos XVIII e XIX, passam por um

processo de oxidação, transformam-se e mesmo se desprendem,

ocasionando uma descoloração, uma mudança na cor dos tecidos.

Uma série de têxteis hoje aceitos como amarelos, por exemplo, eram

originalmente verdes. E assim por diante, com muitas outras

colorações (PAULA, 2003: 150).

Era relativamente comum em construções antigas se aplicar uma camada

regularizadora para facilitar a impregnação da tinta na parede. Tal camada muitas

vezes não é branca e acaba sendo confundida como uma pintura e tida por

profissionais menos esclarecidos, mesmo com análise de prospecções, como a cor

original.

Fig.19: (acima) Fachada da Casa Rosada, em Buenos Aires, em 2006: foi renovada apenas a pintura frontal com a mesma coloração de tinta aplicada anteriormente. Repare na diferença de tonalidade entre a cor nova, viva, e a coloração antiga, que desbotou e se tornou cinza.

Fig.20: (ao lado) Pintura decorativa em um ambiente da Fazenda Resgate, em São José do Barreiro. Nas partes onde houve perda da única camada pictórica percebe-se a coloração alaranjada do fundo regularizador aplicado que, para um restaurador desavisado, poderia ser interpretado como a cor original. (TIRELLO, 1999: 306).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

20

No caso específico das fachadas do edifício, há outro fator que deve ser avaliado: o

contexto urbano. Uma obra arquitetônica dificilmente se encontra em situação de

isolamento, ela está geralmente inserida em uma situação urbana e isso não pode ser

desconsiderado. Uma edificação com um determinado padrão de cores inserida em

um ambiente de baixa densidade de ocupação, com a maioria edificações seguindo um

mesmo estilo possui certa presença perante o entorno. Se a mesma edificação, com o

mesmo padrão de cores, se encontrar situada em uma rua movimentada, com muita

vegetação, postes, fiação elétrica, letreiros, poluição visual e edificações circundantes

mais altas e de estilos diferentes, terá, com certeza, outra presença na cidade (LYNCH,

1999: 93), muito mais acanhada e aquelas cores aplicadas em um ambiente calmo não

produzirão o mesmo efeito visual em outro poluído.

Por esse motivo, uma análise crítica deve considerar, ainda, antes de proceder a

repintura do edifício, a questão do ambiente urbano:

A análise da edificação deverá ser complementada por um estudo da

paisagem urbana da vizinhança imediata da edificação, para tentar

integrar as propostas de intervenção ao contexto. As características

arquitetônicas do entorno deverão ser analisadas levando-se em

consideração a volumetria, simetria, escala, proporção, cores, além

da relação do conjunto com a arborização, mobiliário e equipamento

urbano. (PIRACICABA, 2006: 19)

Conjuntos urbanos que pouco se alteraram nos últimos 50, 60 anos são poucos. As

cidades, como que ocorre de forma mais comum, geralmente sofreram grandes

transformações nas últimas cinco décadas e, dessa maneira, também a situação de

entorno das edificações hoje consideradas históricas é bastante diferente da original

na maioria maciça dos casos. Esses edifícios convivem hoje com uma poluição visual

que não existia quando foram construídos: árvores cresceram, instalaram-se postes e

fiação aérea e, especialmente, a cidade se verticalizou, alterando a escala dos edifícios.

Os antigos sobrados, que em boa parte dos casos eram as maiores edificações em seu

entorno, agora se tornaram diminutos. Uma avaliação criteriosa, nessa situação,

concluirá que, se o ambiente muda, a inserção do edifício nesse local também deve

mudar, e uma das formas de fazê-lo é alterando os esquemas cromáticos aplicados a

ele.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

21

Figs.21, 22 e 23: A Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, no início do século XX possuía os edifícios mais altos da capital mineira, rodeados por residências assobradas. No fim do século, os antigos ministérios já estavam emparedados por altos edifícios de muitos pavimentos. Optou-se, então, por pintá-los de cores mais vivas do que as que tinham anteriormente, para dar-lhes maior destaque na paisagem.

Felizmente, existe atualmente, disponível no mercado, uma paleta de cores muito

maior do que na época que se construíram os edifícios hoje considerados históricos, o

que possibilita organizar esquemas cromáticos os mais variados e que nos leva a

indagar novamente sobre a importância da cor original: caso houvesse maiores

possibilidades de cor na época da construção do edifício histórico, não teriam o

construtor ou os proprietários optado por cores diferentes? Novas proposições

cromáticas são uma alternativa possível e, muitas vezes, necessária, conforme a

situação urbana do bem em questão. As recomendações de órgãos de preservação

municipais não se opõem a que se alterem as cores dos edifícios, ressalvando apenas

que se tome cuidado com excessos:

Com relação à pintura da fachada, deve-se evitar o uso de cores

excessivamente chamativas, como vem ocorrendo com algumas

edificações utilizadas para fins comerciais ou de serviços, que, sem

critério, impõem à paisagem urbana tons ou esquemas cromáticos

excessivamente contrastantes, com o fim único de sobressair no

contexto urbano no qual se inserem, contribuindo negativamente

para a fruição do conjunto de interesse histórico. (...) Para definir a

pintura de uma fachada, pode-se procurar determinar suas cores

originais e adaptá-las às paletas de tintas existentes no mercado,

facilitando um pequeno retoque ou uma futura pintura geral, porém,

novos esquemas cromáticos podem apresentar excelentes resultados.

(SÃO CARLOS, 2010: 9-10).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

22

Fig.24: Sorveteria no centro de Limeira com excesso de cores chamativas, 2011.

Fig.25: Comércio com cores berrantes e grande contraste no esquema cromático em Piracicaba (PIRACICABA, 2006: 25).

Quando se opta pela repintura da fachada e do interior do edifício, além dos fatores

descritos anteriormente, é importante também que seja considerado o padrão

arquitetônico do imóvel. Edificações do período colonial, por exemplo, eram pintadas

com tintas à base de cal e as esquadrias, com tintas a óleo, do que resultavam

esquemas cromáticos que pouco variavam: branco, amarelo ou rosa nas paredes e

cores escuras: azul, verde, vinho ou até mesmo preto, nas esquadrias. No caso paulista

houve grande transformação das cidades no século XIX e início do XX, de modo que a

arquitetura colonial quase desapareceu dos centros urbanos. O padrão predominante

das construções históricas que temos hoje é o ecletismo, período em que se utilizavam

outras cores, geralmente em tons pastéis e numa esquema de dois ou três matizes

dentro da mesma coloração para pintar, respectivamente, paredes, ornamentos e

esquadrias/ferragens num padrão tono sul tono. Há relatos antigos que tratam da

pintura de residências:

As janelas persianas e os postigos pintam-se geralmente em tons

pálidos, em cinzento-claro. Quase sempre, em certas terras, são

pintados a branco, contudo exceptuam-se os rez-do-chão que quase

sempre se pintam em tons relativamente escuros. As portas, do

mesmo modo, pintam-se me tons de madeira, verde-escuro,

castanho-amarelo, castanho-vermelho, cinzento muito carregado ou

até mesmo em preto. Se as portas exteriores não são da cor de

madeira natural, é comum pintá-las com os mesmos cuidados que a s

fachadas e sempre em tons escuros. Nunca admitem filetes (FLEURY,

1903).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

23

Fig.26: “Casario de Santa Teresa” (Rio do Janeiro), tela de Gustavo Dall’Ara que mostra algumas das cores utilizadas em um casario predominantemente eclético (RIO DE JANEIRO, 1990: s.p.).

Com base em documentação histórica e na experiência, as cartilhas municipais

também tecem orientações quanto à pintura de fachadas ecléticas:

Nas edificações Ecléticas eram utilizadas originalmente cores claras a

base de cal, misturadas a pigmentos terrosos, vermelhos ou ocres,

caracterizando principalmente as fachadas com tons rosados ou

amarelos, com algumas exceções em tons de azul. (...). Um esquema

simples pode ser útil na escolha das cores: Ornamentos e frisos

devem ser pintados de cor mais clara que a parede de fundo; as

esquadrias podem ser pintadas de tons contrastantes, ou seguir o

tom mais claro dos frisos e ornamentos; As peças metálicas, como

grades, guarda-corpos e portões devem-se pintar com cores mais

escuras que as empregadas nas esquadrias, ou seguir o esquema

tradicional com grafite, verde-musgo ou marrom e no caso de

edifícios comerciais, as portas de enrolar devem ser pintadas com a

cor usada nas esquadrias (PIRACICABA, 2006: 16).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

24

Fig.27: (ao lado) Propostas de cores para imóvel em Piracicaba (o mesmo da fig.25) seguindo a padronagem característica do estilo arquitetônico do mesmo (PIRACICABA, 2006: 25).

Com essas questões postas, vê-se que não são poucos os aspectos a serem

considerados para se fazer uma “simples” pintura de uma edificação histórica, pois

fatoras de autenticidade, historicidade, artisticidade, uso, desgaste, contexto urbano e

estilo estão envolvidas, tornando a análise crítica de uma edificação histórica sob

restauro um processo bastante complexo para que se chegue a intervenções pictóricas

de qualidade e que respeitem e valorizem o bem.

Terceira Parte: Intervenção (ou Repintura)

Dessa forma, após extensa análise e com as resposta aos questionamentos (que não

são fáceis) de quais foram as cores/composições de cores do edifício em sua história,

para quem se está restaurando (é residência, edifício público ou religioso), com que

paleta de cores esse público conheceu o edifício, de se há pinturas

decorativas/artísticas e de como o bem se insere atualmente na paisagem, se o

contexto se alterou, pode-se chegar a conclusões para a intervenção.

Nessa terceira e última fase, pode-se, então, optar por recuperar alguma das camadas

pictóricas do edifício fazendo-se uma nova pintura com a mesma padronagem, que é o

caso mais comum, por ser menos trabalhoso e mais econômico, e em caso de pinturas

decorativas, se refazem os moldes vazados de estêncil para reconstituir os desenhos

das mesmas. Outra forma, mais correta, porém menos usual, por ser mais dispendiosa,

trabalhosa e demorada, é a remoção das camadas superiores até a exposição da

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

25

pintura antiga com o preenchimento das lacunas. Geralmente, o segundo método é

utilizado apenas para pinturas murais e afrescos.

Existe a opção de não se recuperar as pinturas antigas e se fazer uma nova com nova

cor, de modo a ressignificar o imóvel no ambiente em que ele está inserido, seguindo,

para isso, as recomendações de esquemas de cores acompanhando o estilo

arquitetônico da edificação.

Para a escolha das cores que serão empregadas na fachada do

imóvel, é importante analisar o espaço onde está inserido. Existem

duas opções: harmonizá-lo com o conjunto, elegendo cores que não

contrastem e se compatibilizem, ou contrastá-lo utilizando cores que

o destaquem do conjunto. Para as duas opções deve-se usar o bom-

senso e cores compatíveis com o estilo e a época do imóvel. (...) Se

seu imóvel está inserido num conjunto preservado, procure

harmonizar o conjunto com a repetição de tonalidades de um mesmo

grupo de cores. Em esquinas é recomendável o uso de tons mais

realçados, dentro do grupo de cores escolhido, causando um efeito de

destaque que poderá valorizar o quarteirão (PIRACICABA, 2006: 16).

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

26

ESTUDOS DE CASO: REPINTURAS DE IGREJAS BARROCAS PAULISTAS

As regras de restauro deveriam, em tese, ser aplicadas em toda e qualquer obra

arquitetônica, fosse ela moderna ou antiga, mas o que se vê, em geral, é que muitas

restaurações são feitas sem o acompanhamento de profissionais habilitados e sem a

devida análise do bem para que sejam tomadas decisões de repintura mais acertadas.

Analisaremos aqui, brevemente, o caso de três igrejas barrocas, alvo de nossa pesquisa

de doutorado (Arquitetura Religiosa Barroca Paulista, iniciada em 2011), que sofreram

recentes intervenções que alteraram seus padrões de cores.

Cabe ressaltar, antes, que os três casos analisados são de templos barrocos que

receberam pinturas decorativas em seus interiores no período eclético, modificando a

suas cores e alterando percepção do espaço construído. Essa característica (de igrejas

barrocas com pinturas ecléticas) é quase que exclusiva do Estado de São Paulo: são

quinze os exemplares, quase um quarto dos remanescentes, número bastante

expressivo.

Matriz Basílica de Nossa Senhora Aparecida (Matriz Velha), em Aparecida.

A Basílica Velha de Aparecida é, segundo Percival Tirapelli (2003), o exemplar mais

tardio do barroco no Estado de São Paulo: suas obras iniciaram-se em 1780, e houve

reformas em 1845-52, 1878-80 e a última em 1882-88, quando se instalou o último

altar (TIRAPELLI, 2003: 292-5). As pinturas do forro foram feitas pelo alemão Thomas

Driendl na reforma de 1878, já os motivos verdes e dourados das paredes são mais

recentes, sem identificação de autoria, realizados para a cerimônia de coroação da

Imagem de Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil, em 1931.

Em 2004, iniciou-se o processo de restauração da Basílica, que optou por recuperar os

barrados imitando madeira da pintura de 1931, mas remover toda a pintura mural

verde da nave, acima desse barrado, e provavelmente do mesmo período:

Os trabalhos de restauração da Matriz-Basílica de Aparecida, mais

conhecida como Basílica Velha estão a todo vapor, procurando

devolver à Igreja suas feições originais. A restauração teve início em

fevereiro de 2004, com a recuperação da Capela do Santíssimo,

acometida por infiltrações no teto e nas paredes, num trabalho que

consumiu oito meses. O presbitério e o altar-mor foram os alvos da

etapa seguinte. (...) A recuperação da pintura original da Matriz

Basílica foi a maior dificuldade encontrada pelos restauradores.

Estava encoberta por diversas camadas de tinta aplicadas sem

critério ao longo de sua história (...). Foram descobertas sete

camadas diferentes de tinta até finalmente ser encontrada a pintura

interna original.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

27

No texto fica clara a intenção de se voltar a nave para a coloração original, embora o

esverdeado das paredes da nave já estivesse incorporado à memória dos fiéis que

visitam periodicamente a igreja. Isso alterou consideravelmente o aspecto interior do

templo e apagou desenhos artísticos das paredes.

É muito difícil saber qual foi a recepção dessa mudança pelos frequentadores, pois a

cidade tem um fluxo muito sazonal de pessoas e os fiéis não vivem em Aparecida,

apenas a visitam algumas vezes na vida.

Fig.28: (acima) Basílica Velha de Aparecida em

2011, após concluídos os trabalhos de restauro,

com a nave branca.

Fig.29: (ao lado ) a mesma Basílica em 2004, antes

da restauração, possuía uma pintura decorativa

verde de alta qualidade artística, que foi

encoberta pela nova pintura.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

28

Igreja Matriz do Bom Jesus do Livramento, em Bananal.

A Matriz de Bananal é um bom exemplo de como é importante a consulta à população

que se utiliza do templo para se tomar as posturas de restauro. Aqui, a memória local

foi decisiva nas atitudes que seriam tomadas.

Dessa igreja, não sabe a data da construção. Sabe-se que, quando o pintor Thomas

Ender retrata a cidade em 1817, a igreja atual já aparece na paisagem (TIRAPELLI,

2003: 296-7). É bastante provável que ela date do fim do século XVIII. No início do

século XX, o templo, até então branco, recebeu a pintura com pequenas flores em

fundo rosa, que foi mantida ou refeita na repintura de 1979, esta, porém, encobriu

alguns marmorizados cinzas existentes nos altares desde a primeira decoração

pictórica do início do século.

Seguindo o apelo dos fiéis, a igreja está passando por obras de restauro que

pretendem recuperar o aspecto anterior dos altares, cuja pintura deve estar

preservada sob a camada atual. Não sabemos se esta restauração preservará os

desenho de estêncil das paredes da igreja.

Fig.30: (ao lado) Interior da Matriz

de Bananal, durante o restauro, em

2011.

Fig.31: (abaixo, à esquerda) Aspecto

do altar-mor anterior ao restauro,

resultado da pintura de 1979.

Fig.32: (abaixo, à direita) O mesmo

altar antes da repintura de 1979,

aspecto que se pretende recuperar.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

29

Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, em Limeira.

A igreja da irmandade da Boa Morte, em Limeira, passou recentemente por duas

repinturas, uma externa, que agradou à população, e uma interna, que provocou

celeumas na comunidade local.

A Boa Morte foi edificada em 1858-1867 e recebeu melhorias no frontispício em 1893

e no piso em 1925 (CARITÀ, 1998). De igreja de interior branco, passou por três

pinturas decorativas: uma em 1903, realizada por Joaquim Miguel Dutra (filho do

famoso pintor homônimo), outra em 1938, realizada por Angelo Perillo, bastante

semelhante à atual, de 1973, esta por Ângelo Perillo e Tertuliano Pazelli, que

procuraram recuperar a anterior, modificando apenas os motivos azuis das paredes e

do forro da nave. A pintura bastante forte, baseada em azuis e tons de marrom, dotou

a igreja de um colorido inusitado para um templo barroco. As pinturas murais do arco

cruzeiro e do teto a capela mor são também de Perillo (ROSADA, 2010: 131-5).

Em 2007, foi realizada uma nova pintura externa com o acompanhamento de uma

arquiteta-restauradora. Como a existente até então (realizada na década de 1970) era

de látex e vinha sofrendo perdas pela umidade transportada pelas paredes de taipa de

pilão, optou-se por fazer a nova camada pictórica com tinta à base de terra, que

permitisse às paredes respirarem. Por isso, não foi possível manter a coloração que a

igreja possuía até então, optando-se por se aplicar uma pintura mais escura e mais

vibrante, mas ainda dentro da tonalidade existente. Contribuiu para a decisão de se

realçarem as cores do templo o fato de o entorno ser bastante poluído visualmente e a

igreja ter uma presença acanhada no ambiente.

A nova cor agradou tanto aos fiéis frequentadores como à população em geral, por ter

dado mais visibilidade à Boa Morte e a valorizado como patrimônio.

Fig.33: Fachada da Igreja da Boa Morte em 2005. Fig.34: Aspecto externo do mesmo templo logo

depois da pintura realizada, em 2007.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

30

Em 2009, durante o período em que o templo estava interditado (a Defesa Civil fechou

a igreja de 2008 a 2010 por haver risco do forro da nave se desprender e cair: a igreja

foi reaberta após os reparos no forro), o sacerdote local refez, inspirado em livros de

arquitetura, a pintura do altar e da capela-mor, sem consultar a maior parte da

comunidade e sem o auxílio de profissionais, alterando o esquema de cores de areia e

azul para branco e azul. Essa atitude gerou reações adversas tanto dos fiéis como do

órgão de preservação local.

O altar, nos dias atuais, mantém-se branco, diferente de toda a coloração da igreja. A

Irmandade proprietária do templo pretende devolvê-lo a cor anterior num futuro

restauro, em planejamento.

Fig.35: Altar-mor da Igreja da Boa Morte antes da

repintura realizada em 2009.

Fig.36: O altar atualmente, foto de 2011.

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

31

CONSIDERAÇÕES

Após mais de um século de discussões e de aprofundamento sobre as questões da

restauração, a disciplina do restauro se estabilizou e procedimentos de recuperação de

informações e de intervenção nas obras de arte e de arquitetura foram padronizados,

ainda assim, as decisões tomadas durante uma restauração ainda são passíveis de

muitos questionamentos, pois vários dos conceitos com os quais se lida em uma

recuperação não são absolutos, como a atribuição de valor, a inserção em um contexto

e a memória local. Da mesma forma, em cada obra há inúmeros fatores únicos e que

faz com que cada caso deva ser analisado em particular e não se possam padronizar os

procedimentos para toda e qualquer situação.

Os mesmos fatores elencados acima, além de não serem absolutos, são mutáveis: em

um prazo de cinco anos, uma edificação pode ter o seu entorno totalmente alterado,

assim como sua relação com o ambiente no qual está inserida e com a comunidade

que a utiliza, alterando, com isso, inclusive as lembranças que se tem dela.

A essas dificuldades que advém de aspectos subjetivos do restauro, outras, de aspecto

técnico e, portanto, prático, também se somam, como a dificuldade em se realizar

levantamentos completos de fontes documentais e a falta de profissionais na área, o

que leva, muitas vezes, a se realizarem restaurações equivocadas, com leituras e

interpretações lacunares e com profissionais pouco ou nada capacitados para esse

trabalho tão minucioso.

A cor, como aspecto mais sensível aos usuários do edifício ou contumazes transeuntes

que passam por ele todos os dias, pode ser a matéria, por fim, que causará indignações

à população que convive com um prédio cuja restauração não tenha sido bem

sucedida, ou o motivo que reforçará os laços de pertencimento ao local e ao bem que

foi valorizado por um processo de restauro sensato. De qualquer forma, a cor é um

tópico que está no topo das discussões da disciplina de restauração, pois a partir dela

se tem a primeira impressão, o primeiro impacto com ambiente construído. Os

elementos pictóricos podem ser os principais responsáveis por manter, destacar,

renovar ou modificar um bem histórico, reforçando a ligação de identidade da

população com o patrimônio de sua cultura.

A intimidade entre cor e genius loci incute na imagem urbana valores

culturais próprios a esse território e enquanto reflexo da sociedade

que o habitou ao longo da história, tornando-se assim a cor um

importante legado identitário e antropológico!

(AGUIAR, 2007: 23)

RESTAURO: QUESTÕES DE COR

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