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Representações de África e dos Africanos na História e Cultura - Séculos XV a XXI Edição de José Damião Rodrigues e Casimiro Rodrigues CENTRO DE HISTÓRIA DE ALÉM-MAR FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA UNIVERSIDADE DOS AÇORES 10

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Representações de África e dos Africanos

na História e Cultura - Séculos XV a XXI

Edição de José Damião Rodrigues

e Casimiro Rodrigues

Representações de África e dos Africanos

na História e Cultura Séculos XV a XXI

Edição de José Damião Rodriguese Casimiro Rodrigues

CENTRO DE HISTÓRIA DE ALÉM-MARFACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANASUNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA UNIVERSIDADE DOS AÇORES

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Edição de José Damião

Rodrigues e Casimiro Rodrigues

A globalização que marca a contemporaneidade realça a urgência de promover o conhecimento entre os povos. Trocam-se olhares e, com eles, permutam-se ideias e imagens que concebemos do mundo e dos outros, construídas mediante informações – reais ou fantasiadas, abundantes ou escassas –; através de manifestações artísticas, simbólicas e culturais; e, também, pelos relatos, escritos ou orais, vestígios dos homens e do mundo que pensamos conhecer. Figuras, formas, visões mais ou menos completas, elaboradas em cada época, em contextos específicos. Símbolos, narrativas, documentos que marcam as relações dos povos com os seus aparatos, exibições, manifestações de poder, conflitos e permutas culturais e identitárias, num jogo de reconhecimento, familiaridade, cumplicidades, que comporta, igualmente, tantas outras formas de dissimulação, equívocos, enganos e confrontos.

As representações erigidas resultam do conhecimento, interpretação e comparação da história, cultura, vida material e organização das diversas gentes em cada local, a começar, desde logo, pela imagem que fazem de si próprias e que exibem para os outros. O passado lá está. Belo, enigmático, generoso, mas também horrível e cruel. Para os construtores de ilusões, ele pode ser simples, reconfortante, imaculado; para o investigador, ele é, no entanto, o olhar em esforço de imparcialidade. A utopia de o penetrar, não pretendendo apagá-lo, diminuí-lo, esbatê-lo. Não há nada a mitificar, manipular. A esquecer. A distorcer. O olhar sobre África e dela sobre o mundo, nos dias de hoje, em contexto de globalização e de intensificação dos fluxos de gentes, bens e ideias, com relevo para as migrações transnacionais, exige um renovado esforço de compreensão.

Apoio:

RepResentações de ÁfRica e dos afRicanos na HistóRia e cultuRa

séculos XV a XXi

RepResentações de ÁfRica e dos afRicanos na HistóRia e cultuRa

séculos XV a XXi

edição de

José Damião RoDRigues e CasimiRo RoDRigues

ponta delgada2011

FICHA TÉCNICA

Titulo RepReseNTAções de ÁFRICA e dos AFRICANos NA HIsTóRIA e CulTuRA – séculos XV a XXI

Autores Vários

NotaIntrodutória JoséDamiãoRodrigues&CasimiroRodrigues

Edição Centro de História de além-mar

faCuldade de CiênCias soCiais e Humanas / universidade nova de lisboa

universidade dos açores

Capa Trono do Chefe Tchokwe MuseuCarlosMachadoInv.N.º88 A.115xL.47xP.44cm

Design: SantaComunicaçãoePublicidade,Lda. RuaActrizAdelinaFernandes,7B 2795-005Linda-a-Velha

Depósitolegal 327876/11

ISBN 978-989-8492-02-9

Datadesaída Julhode2011

Tiragem 500exemplares

Execuçãográfica NovaGráfica,Lda. RuadaEncarnação,21–Pastinhos,FajãdeBaixo 9500-513PontaDelgada Açores

Apoios:

ÍNDICE

NoTA INTRoduTóRIA................................................................................... 11

OS AFRICANOS NA SOCIEDADE PORTUGUESA: FORMAS DEINTEGRAÇÃOECONSTRUÇÃODEIMAGINÁRIOS(SÉCULOSXV--XX).INVENTÁRIODEPROBLEMÁTICAS........................................... 13isabel Castro Henriques

AFRICANOS NOS AÇORES: INFORMES SOBRE UMA PRESENÇAqUINhENTISTA......................................................................................... 33rute dias GreGório

REPRESENTAÇõESDEÁFRICANAIMPRENSAAÇORIANA(MICAELENSE) DEFINAISDOSÉCULOXIX(1880-1900)............................................... 47

susana serpa silva

OCONhECIMENTOETNOLóGICODAGUINÉ-BISSAU.UMAPERSPEC-TIVADEGÉNERO...................................................................................... 65manuela borGes

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI:DAIMAGEMDADIFERENÇAAOREFORÇODAPROXIMIDADE.... 89ana Cristina roque

PORTUGUESES E AFRICANOS EM ANGOLA NO SÉCULO XVII:PROBLEMAS DE REPRESENTAÇÃO E DE COMUNICAÇÃO APARTIRDA HisTória Geral das Guerras anGolanas................ 107matHieu moGo demaret

DESPOJOSDODEMóNIONACASADA IGREJA–CURIOSIDADESDEUMMISSIONÁRIOCAPUChINhONOKONGO(1692)........................ 131Carlos almeida

IMAGENS DA ÁFRICA ORIENTAL NA ÉPOCA DA ILUSTRAÇÃO: ASCOLECÇõES DE hISTóRIA NATURAL DO GOVERNADOR DOSRIOSDESENAANTóNIODEMELOECASTRO(1780-1786)............. 153euGénia rodriGues

A SOCIEDADE COLONIAL: ESTILOS DE VIDA EUROPEUS EMMOÇAMBIqUESETECENTISTA............................................................. 181luís frederiCo dias antunes

O ISLÃO E A CONSTRUÇÃO DO «ESPAÇO CULTURAL E SOCIALMACUA»...................................................................................................... 195eduardo medeiros

NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA(OUALGUNSDILEMASDAhISTORIOGRAFIAAFRICANA).................... 281João paulo borGes CoelHo

VÁRIASEDUCAÇõES,MúLTIPLASREPRESENTAÇõES........................... 291Casimiro JorGe simões rodriGues

riTos que separam, elos que unem:PRÁTICASMÁGICASENEGO-CIAÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL COLONIAL (AFRICANOS EAFRODESCENDENTES NO BISPADO DO RIO DE JANEIRO, SÉC.XVIII)........................................................................................................... 309ana marGarida santos pereira

TIMORLESTETAMÉNÉÁFRICA.ONACEMENTODUNhANACIóNNOCONTEXTOSIMBóLICODALUSOFONÍA............................................ 329alberto pena

ÁFRICANAOBRADEANTóNIOLOBOANTUNES...................................... 343ana Cristina Correia Gil

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereia DEMIACOUTO.... 351sónia miCeli

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE............. 371teresa matos pereira

ACOLECÇÃOAFRICANADOMUSEUCARLOSMAChADO..................... 389sílvia fonseCa e sousa

qUANDO A LENTE TRESPASSA O CORPO: REPRESENTAÇõES DEAFRICANOSNAFOTOGRAFIAOCIDENTAL(1870-1920)................... 395leonor sampaio da silva

PERSPECTIVASPARAOESTUDODAEVOLUÇÃODASREPRESENTA-ÇõES DOS AFRICANOS NAS ESCRITAS PORTUGUESAS DEVIAGEM: O CASO DA “GUINÉ DO CABO VERDE” (SÉCS. XV--XVII)........................................................................................................... 409José da silva Horta

NOTAINTRODUTóRIA

Aglobalização que marca a contemporaneidade realça a urgência depromoveroconhecimentoentreospovos.Trocam-seolharese,comeles,permutam-seideiaseimagensqueconcebemosdomundoedos

outros,construídasmedianteinformações–reaisoufantasiadas,abundantesouescassas–;atravésdemanifestaçõesartísticas,simbólicaseculturais;e,também,pelosrelatos,escritosouorais,vestígiosdoshomensedomundoquepensamosconhecer. Figuras, formas, visões mais ou menos completas, elaboradas emcada época, em contextos específicos. Símbolos, narrativas, documentos quemarcamasrelaçõesdospovoscomosseusaparatos,exibições,manifestaçõesdepoder,conflitosepermutasculturaiseidentitárias,numjogodereconhecimento,familiaridade,cumplicidades,quecomporta,igualmente,tantasoutrasformasdedissimulação,equívocos,enganoseconfrontos.

As representações erigidas resultam do conhecimento, interpretação ecomparaçãodahistória,cultura,vidamaterialeorganizaçãodasdiversasgentesemcadalocal,acomeçar,desdelogo,pelaimagemquefazemdesiprópriasequeexibemparaosoutros.

Opassadoláestá.Belo,enigmático,generoso,mastambémhorrívelecruel.Paraosconstrutoresdeilusões,elepodesersimples,reconfortante,imaculado;paraoinvestigador,eleé,noentanto,oolharemesforçodeimparcialidade.Autopia de o penetrar, nãopretendendo apagá-lo, diminuí-lo, esbatê-lo.Nãohánadaamitificar,manipular.Aesquecer.Adistorcer.

OolharsobreÁfricaedelasobreomundo,nosdiasdehoje,emcontextode globalização e de intensificação dos fluxos de gentes, bens e ideias, comrelevo para as migrações transnacionais, exige pois um renovado esforço decompreensão.Foiprecisamenteapartirdestaconstataçãoquenasceuoprojectodeorganizarumcolóquio amúltiplasvozes, quepretendeu ser umcontributoparaestemovimento.AcargodoCentrodehistóriadeAlém-Mar(ChAM)daUniversidadeNovadeLisboaedaUniversidadedosAçores,oencontrocientíficoque estánagénesedo livroque agora editamos teve lugar emPontaDelgadaentreosdias26e28deNovembrode2009.Reunindoespecialistasnacionaise

estrangeirosdoscamposdisciplinaresdaAntropologia,dahistória,daCulturaedaLiteratura,constituiu-secomoummomentodediálogo,detrocadesaberese de olhares sobre um continente e, em particular, sobre os espaços onde osPortuguesestiveramumapresençamaisforte.

Renovamos os nossos agradecimentos às instituições que apoiaram arealizaçãodocolóquio,comdestaqueparaaFundaçãoparaaCiênciaeTecnologia(FCT), a Direcção Regional da Ciência e Tecnologia (DRCT) do GovernoRegionaldosAçores,aSatãInternacional,aComissãoNacionaldaUnesco,quepermitiuaapresentaçãodaexposição“ARotadoEscravo”,e,porfim,oMuseuCarlosMachado,depositáriodapeçaqueconstituiuosímbolodocolóquioeque,denovo,figuracomorostodapresenteedição.

Estelivronãoseapresentacomoas“Actas”doevento,poisincluitextosrevistos eoutrosquenão foram inicialmente apresentadosnocolóquio, sendodelamentar,ainda,quenemtodososparticipantes,porrazõesdediversaordem,tenhampodido dar o seu contributo para este volume, que esperamosmereçaumbomacolhimentoporpartedosinteressados.Osorganizadoresdocolóquioedesta ediçãoestão certosdequemuitohá aindapordebater e investigarnoque respeitaaos temasaqui tratados.Nessesentido,podemapenas formularodesejodequenovasrealizaçõesvenhamcontribuirparaabrirnovasperspectivasefomentardebatescientíficosquealimentemocaudaldosnossosconhecimentossobreocontinenteafricano,osseuspovoseasrespectivasculturas.OChAMestará,porcerto,nalinhadafrentedessadinâmica.

PontaDelgada,Abrilde2011

JoséDamiãoRodriguesCasimiroRodrigues

OSAFRICANOSNASOCIEDADEPORTUGUESA 13

OSAFRICANOSNASOCIEDADEPORTUGUESA:FORMASDEINTEGRAÇÃOECONSTRUÇÃODE

IMAGINÁRIOS(SÉCULOSXV-XX)INVENTÁRIODEPROBLEMÁTICAS*

isabel Castro Henriques**

AscomplexasrelaçõesdePortugalcomoutroshomens,comoutrasculturas,com outros mundos, constituem uma questão indispensável para o estudo daestruturaçãodanação,daconstruçãodasidentidades,dacompreensãodoquesomosenquantoportugueses,deontemedehoje.AÁfricaeosafricanosocupamumlugarprimacialnestaproblemática,pelalongaduraçãodoscontactos,pelanaturezadasformasrelacionais,pelaforçadasuapresençanoimaginárioportuguês.

Secabeàhistóriaforneceroselementosindispensáveisàcompreensãodopassado,permitindonãosóorganizaramemóriadoshomensedassociedades,masdefinireidentificarassucessivasherançasqueseforamconsolidandoaolongodostemposequeformamhojeosmuitospatrimóniosdasmuitashumanidades,édeverdetodosnósreflectirsobreasmaneirascomofomosaceitando,integrando,recusando,refazendo,mestiçando,emfunçãodonossoquadrosocialecultural,aquiloqueosOutrosnosdeixaram,directaou indirectamente,comovestígiosmateriais,culturais,espirituais,ounaimaterialidadedosnossosquotidianos.

* Este textoéumasíntesedaConferênciadeAberturaqueproferinoColóquiorepresentações de África e dos africanos na História e Cultura (séculos XV-XX). Asuadimensão,estruturaediversidadededocumentosiconográficosentãoapresentadoseinterpretadossãoincompatíveiscomanaturezaeoequilíbriodestapublicação.Sobreestaquestão,veromeuestudoa Herança africana em portugal – séculos XV- XX,Lisboa,EdiçõesCTT,2009.

**DepartamentodehistóriadaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa.

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quandopensamosonossopatrimónio temospresentea ideiadeumbemvivoedinâmico,quegaranteaautonomiadeumaidentidadeprópria.ConheceressepatrimónioimplicaoestudodasmuitasherançasquenosforamdeixadasportodosaquelesqueseinstalaramemPortugal.Implicatambémanalisaramaneiracomoasvimosevemos,asquisemosequeremos,asintegrámoseintegramos.A herança não é apenas aquilo que os outros nos transmitem,mas o que nóselaboramosapartirdoselementosquerecebemosoujulgamosreceber,istoé,daformacomoosinterpretamos.

Nós e os outros: presenças valorizadas, presenças esquecidas

Comecemosporsublinharaexistênciadeváriaspresençaseanecessidadededefinirasmuitasheranças,umasmaisvigorosasdoqueoutras,queseforamsedimentandoaolongodosséculos,registadasnumagrandevariedadedefontesescritasecartográficas,mastambémemdocumentosmateriaiseiconográficos,como a pintura, a escultura, o desenho, a gravura, a litografia, o azulejo, acerâmica:ahistóriarevela-nosassuasmarcas,contidas,deformaestruturante,naorganizaçãodasociedadeportuguesa[Figura1].

Éhojerelativamentefácilproporumateoriadaspopulaçõesquechegaramà Península Ibérica, por terra ou por mar, registando-se duas colonizaçõessignificativas como a romana e a árabe, que deixaram inúmeras marcas pelopaísfora,incluindoponteseestradas,edifíciospúblicosevilasprivadas,formaslinguísticas e artísticas, religiões, formas de organização social, sistemas deproduçãoetécnicasdenaturezadiversa(comoasagrícolas).Ambososgruposocuparam o espaço peninsular utilizando os seus exércitos, assegurando acolonizaçãodosterritóriosecumprindoprojectospolíticosprópriosecomplexos.Se as contribuições de romanos e de árabes para a construção do patrimónioportuguêssãoo resultadodessasoperaçõescolectivaspensadaseorganizadas,a herança africana emPortugal diferiudequalqueroutra.A longaduraçãodapresençadeafricanosnopaísconstituiuumelementodiferenciadorfundamental,os processos que geraram essa presença inscrevendo-se numa lógica não sódiferente,masantagónica:namaioriadoscasos,oshomens,mulheresecriançasde África não vieram de livre vontade, mas foram capturados ou compradosno litoral do continente africano, para serem desembarcados como escravosnoextremoocidentaldofragmentoibéricodaEuropa.Despojadosde tudo,osafricanosmarcaramfortementeasociedadeportuguesa,mesmoseessasmarcassãofrequentementepoucovisíveis:nãoconstruíramestradasnemmonumentos,masosquotidianosportuguesesrevelamapresençaconstantedosafricanoslivresouescravos[Figura2].

herançainvisível,herançafragilmentematerializada,estáelapresente,deformaconscienteouinconsciente,nummundodeimagensedeideiasfeitasquesefoilentamenteconsolidandonoespíritodosportugueses.

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Aintegraçãodemilhõesdeafricanosnopaísdeixouinexoravelmentesinaisdirectosouindirectosnamemória,noimaginário,noslugaresportugueses:seavisibilidadedessapresençanemsempreaparececlaramentedelineada,umaanálisemaissistemática,revelaadensidadedaherançaafricananaorganizaçãodopaís:notrabalhoenaprodução,nalíngua,nareligião,nafesta,namúsicaenadança,nocorpoenasexualidade,natoponímia.

Estudar a singularidade desta presença e desta herança, que modelou opatrimónioculturalehistóricoportuguês,obrigaaumaanálisetãoamplaquantorigorosadopercursomultifacetadodosafricanosemPortugal.Mobilizandoahistóriaeamemória,estareflexãodevecontribuirparadaraconheceroteordeumaherançamuitodiversaepoucoestudada,marcadapelacriaçãodeformassincréticasinéditasedeuma“contra-herança”-queétambémumaherança-,quesetraduziunaconsolidaçãodeimagens,deestereótiposedepreconceitosresultantes da natureza das relações seculares entre portugueses e africanos.Seadificuldadeementenderoafricanonãopôdedeixardeseregistar,dadasas diferenças civilizacionais, podemos verificar, através dos documentos, acomplexidadedosprocessosdeintegração/rejeiçãodesteOutro,queparticipoude maneira constante nas inevitáveis dinâmicas de mudança da sociedadeportuguesa.

historicamente, a memória da presença africana ter-se-á começado aorganizarnoséculoXIII,quandoencontramosreferênciasaestapopulaçãonaPenínsulaIbéricaemaisparticularmentenoterritóriogalego.Trata-sedeumamemóriaescrita,quepossuiaqualidadededefinirascondiçõesemquenasceramalguns preconceitos que tanto evocam a estrutura física dos homens, cujoscorpos sãodesvalorizadosdevido,primeiro, àcorditanegraoupreta,depoisaosoutroscaracteressomáticosconsideradosnegativosqueosaproximamdosanimais,opondo-osàsuperioridadedocorpodanormaquesópodeserbranco.Esta lógicadocorpoedacor, sepermitequeosafricanosorganizemassuasvidas,nãodeixaporissodeconstituirumobstáculoàsuaplenaintegraçãonasociedadedoshomens[Figura3].

Estespreconceitospertencemàcriaçãodeumimaginárioaplicadoduranteséculosaosafricanosequeaindanãodesapareceuinteiramente,reactualizadopeladominaçãoepelasguerrascoloniaisdosfinaisdoséculoXIXedoséculoXX. A memória gráfica dos portugueses do século passado, marcada pelaviolência da exclusão por via de anedotas, de caricaturas, de contos infantise juvenis, de histórias grotescas e monstruosas, de ideias absurdas comoa da antropofagia e da inadequação aos valores da civilização, ainda nãoeliminou totalmente esta grelha classificatória, para aceitar representar osafricanoscomo“homensnormais”:ascoisaspassam-secomoseainteligênciaestivesse inscrita no próprio corpo, o dos africanos, não favorecendo a suaafirmação[Figura4].

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A desvalorização do africano e a revisão das grelhas classificatórias

PresençamultissecularemPortugal,osafricanos,assuasculturaseassuasformasdeparticipaçãonasociedadeportuguesaconstituemumalacunasingularnocampodeconhecimentohistóricoportuguês,omesmopodendodizer-senoquerespeitaàEuropaocidental,cujasrelaçõescomÁfricaseinscrevemtambémnumquadrodelongaduração.Trata-sedeumasituaçãoreveladoradeumaausênciadeinteresseedevalorizaçãodosafricanos,queexigereflexãoesobretudoarevisãodasoperaçõesclassificatóriasquemarcaramehierarquizaramashumanidadesapartirdoséculoXIX.

SituaroproblemaclassificatóriodoMesmoedoOutronahistória,istoé,extraí-lodatramahistóricaqueodiluiousilencia,tornando-oobjectoautónomodeestudo,constituiaprimeiraoperaçãoindispensávelaoreforçodoconhecimento,impondoaanálise rigorosadasgrelhasclassificatóriaselaboradaspelaEuropaparadefinirasrealidadesoutras.Setodososactosclassificatóriosvisamreduziradiferençaparapodercompreender, integraroudominaroOutro,nocasodaEuropa–oexemploportuguêsdevendoaquiserentendidocomoametonímiadoseuropeus–edoOutroafricano,asoperaçõesdeclassificaçãonãosópretendemeliminarasdistânciassocio-culturais,integrandooOutronosistemadevalores,de crenças e de ideias, depráticas culturais e sociais ocidentais,mas tambémprocederaumaamputaçãodasuaoriginalidadecultural,dasuaidentidadesocialepolítica,rejeitandoqualquerautonomiahistórica[Figura5].

Estespressupostosteóricosexigemumaleituraatentadaarticulaçãoentrea fabricaçãoeuropeiade categorias classificatórias e asdiferentes conjunturashistóricas, portadoras de projectos e de experiências diversas, que incluíam aÁfricaeosafricanos.

Adimensãohistóricadoprocessodeconstrução,consolidação,renovação,recuperação, eliminação, modificação de grelhas classificatórias permite-noscompreenderomodocomosefoisedimentandonoimaginárioeuropeu/português,desde o séculoXV e sobretudo nos séculosXIX eXX, a desvalorização dosafricanos.

Esteselementospretendemsobretudoporemevidênciaanecessidadedepensaroprocessoclassificatóriodasorganizaçõeshumanascomoumpercursoeuropeuestruturado,masondesecruzamideias,mitos,sabereseexperiências,deorigemdiferente,queconfluíramaolongodosséculos,propiciandofrequentementeresultadossurpreendentesedramáticos:quem,háumséculoatrás–excluindoos fundadoresafro-americanosdopan-africanismocomoBlyden (1832-1912),MarcusGarvey(1885-1940)ouDuBois(1868-1963)–pensariaoEgiptocomoparte integrante da África, valorizando assim as civilizações africanas e não,comoaconteceu,considerandoocontinente“negro”comooespaçoabsolutodanegatividade,comoodefiniuhegelnasprimeirasdécadasdoséculoXIX:semDeus,semlei,semescrita,semhistória?

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Se,porumlado,oprocessoclassificatórioapresentalinhasdecontinuidadequeseprendemcomoprópriodesenvolvimentodaciênciaeuropeia,poroutro,reflecteeleasdiferentesconjunturasresultantesdasmodificaçõesquemarcaramas relações entre europeus e africanos. Estas modificações, aparentementeprofundas,inscrevem-senumalinhaestruturantedelongaduração,confluindonomesmosentidoemborademaneirasdiferentes,levandoaoreforçodadensidadeda valorização do Mesmo (europeu) e da desvalorização do Outro (africano),fixandocódigosnegativosdeleituradoafricanonegro,atravésdosséculosatéaosdiasdehoje.

estratégias de integração e marcadores culturais africanos na sociedade portuguesa

A visão redutora do homem negro, o preconceito, essa “contra-herança”robusta,queconstruímosedeixámosconsolidar,nãoimpediuqueosafricanos,escravos ou livres, oriundos de regiões e de culturas africanas diversas, setornassemumapresençaestruturantedasociedadeportuguesa,integrando-senasmaisvariadasesferasdavidasocialeculturaldopaís[Figura6].

Presentesemtodoopaís,denorteasul,nolitoralenointerior,osafricanosdesempenhamumnúmeroamplodetarefasdiversaseindispensáveisàorganizaçãoe à gestão da sociedade portuguesa, quer nos campos, quer nas cidades, queraindanosempreendimentosmarítimo-coloniaisdesenvolvidospelosportugueses,emparticularcomomarinheirosnascaravelasportuguesas.Seagrandemaioriadas actividades domésticas lhes é atribuída, também os trabalhos agrícolas episcatórios,asactividadesartesanaiseastarefascomerciais,comoavendadosprodutosessenciaisàspopulações,caracterizamassuasesferasdeintegraçãoedeparticipaçãonavidadascomunidadesondeseinserem.Registe-se,porexemplo,a sua intervenção constante e essencial namanutenção das estruturas urbanas-comoofornecimentodeágua,aeliminaçãodosdetritos,alimpezadasruas,otransporte-,dasquaisdependiamascidadesevilasportuguesas.

MasdesdeoséculoXV,quandocomeçamachegaremmassaaopaís,trazidosnos barcos da escravatura, os africanos procuraram também aderir às formassociais e religiosasportuguesas, aceitandonomecristão, corpovestido, línguaportuguesa(mesmoserotuladade“línguadepreto”),casamentocristão,relaçõesafectivas,organizações,práticasefestascatólicas[Figura7],eventoslúdicosepolíticos, participando mesmo nos exércitos portugueses, como aconteceu, noséculoXVII,comoexércitodoPriordoCratocontraoscastelhanos,introduzindomarcasdasuasingularidadeculturalnavidaportuguesa.

Esta adesão, estratégica à sua sobrevivência, não os impediu de criar osmecanismosdestinadosapreservarosvalores fundamentaisda sua identidadeafricanaedasuamemóriahistórica,atravésdasfestas,dasdanças,dasmúsicas[Figura 8], das suas “magias”, que suscitavam a adesão e o entusiasmo dos

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portugueses, conduzindo à criação e à consolidação de formas sincréticas,religiosas e culturais, que persistiram nos imaginários e nas práticas dosportugueses[Figura9].

Aintegraçãonãoeliminacontudoaviolência:arepressãoeadesumanizaçãodeafricanos-escravos,animalizados–a“criaçãodeescravos”comosedeanimaissetratasse,práticaquesetraduzianaproduçãoecomercializaçãodeafricanos–,constituemtambémelementosmarcantesdestaherança,quedeixouvestígiosatéaoséculoXIX[Figura10].

Nesteinventáriodasherançasafricanas,éconvenientereterocarácterinédito,eprovavelmenteúniconaEuropa,domocambodeLisboa,hojeaMadragoa.Bairrodacidade–poralvarárégiode1593–,cujadesignaçãoremeteparaumalínguadeAngola(oumbundo),é,desdeosfinaisdequinhentos,umespaçourbanoondeosafricanos,livreseescravosseinstalam,eonde,apartirdoséculoXVII,coabitamcomportugueses,sobretudogenteligadaàsactividadesdomar[Figura11].

Poucoapouco,osafricanosabandonamesseespaçourbano,apósasmedidasdoMarquêsdePombalqueproíbemaimportaçãodeescravosafricanosnopaíseabolemaescravaturaemPortugal(1773).AdesapariçãodomocambodeLisboaéprogressivae rápida, transformando-seemTravessadoMocambono séculoXIXedesaparecendonasegundametadedeOitocentos[Figura12].

Um dos problemas menos tratados, mas muito significativo, reside naprodução de mulatos. Semelhante questão irrompera em S. Tomé, quando ospaisdosmulatossedirigiramaoreiparaqueosseusfilhosfossemlibertosdaescravidão.D.JoãoIIlibertou-os,assimcomoàsmães,quepuderamtrabalharcomoregateiras.Aquestãonãoficouentãoresolvidaesóapartirdosfinaisdoséculo XVIII se verificam algumas operações que permitem aos mulatos, tãoportuguesescomoosoutros,venceradurezadospreconceitos[Figura13].

Mas os caracteres somáticos davam origem a um estatuto de manifestae constante inferioridade, reforçada no século XIX pela ciência, isto é, pelodesenvolvimentodaantropologiafísica,dacraniologiaedahierarquizaçãodas“raças”,dequeOliveiraMartinsé,emPortugal,opensadormaisrepresentativo.

OséculoXXeadominaçãocolonial,sobretudoapartirde1926,impuserama necessidade de levar a cabo operações destinadas a desvalorizar o africano,assim como as suas práticas civilizacionais, organizando exposições coloniais–umaespéciede“jardinszoológicos”humanos-,comoaconteceunoPorto,em1934eemLisboa,em1940.Mostrava-se,assim,ocarácterprimitivodosafricanose,naturalmente,asvantagensdacolonizaçãoportuguesa.Talsituaçãotraduziu-senoreforçodasideiassecularmenteenraizadasnoimaginárioportuguês,emqueo somático, “o preto”, e o social, “o escravo”, se articulavam para definir oafricano.Asguerrascoloniaisreforçaramaideiadasuaselvajaria,transformandooantropófagoemterrorista[Figura14].

Ofimdadominaçãocolonialtrouxenovasformasderelacionamentoqueatoponímiadopaísinteirolembradeformainequívoca.EmLisboa,porexemplo,

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osnomesdasantigascolóniasedascidadescoloniaisvivemhoje,ladoalado,comasreferênciasdoschefesafricanos,inimigosdeumpassadomuitorecente,ecomasmarcasdapresençahistóricaafricana,reveladorasdasmuitasconjunturasquedefiniramasrelaçõessecularesentreportugueseseafricanos[Figura15].

Também as operações de autonomia identitária de todos os falantes deportuguês,aspolíticasmaisinovadorasdeumPortugaldemocráticoalteraramdemaneiraconstanteedefinitivaoshomenseassociedades.Sealgunspreconceitoseestereótiposorganizamaindaamaneiraportuguesadeolharohomem“negro”,estãoelesemvia–lentamente–desedissolvernumaculturadeadesãoaformasafricanizadas.

AnossaatençãodecidadãosdoséculoXXIdeveestarsempreactivaperanteaactualidade,masdevemostambémconsultaranossahistóriaeanossamemóriaindividual e colectivapara aí encontrar o inventário dasmuitas heranças que,demaneirasilenciosa,osafricanosnosdeixaram,frequentementesoba formadesincretismos,quepõememevidênciaasestratégiasafricanasdeadequaçãoàrealidadeportuguesa,mastambémaadesãodosportuguesesàspráticasafricanas[Figura16].

Eporque,comodizEdgarMorin,“ohomeméumfabricantedemudança”,um criador constante, “a mudança (sendo) indispensável à sobrevivência dassociedades”,osportuguesesforamreconstruindoasuaidentidadeeestruturandoasociedade,recorrendoeintegrandoosmuitosmarcadoresculturaisdosOutros.Seosafricanosprocuraram“africanizar”aspropostasportuguesasparamelhoraspoderemviver,osportugueses“portugalizaram”singularidadesculturaisafricanasquelhespermitiraminovarosespaçosfísicoseosimaginários,oresultadosendoa criaçãode formasculturais inovadoras,gozandodeumaautonomiaprópria,específica,original,quemarcamhojeopatrimónioportuguês.

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Figura 2 –Grilhetasdeferro..

FIGuRAs

Figura 1 –o Chafariz d’el-reinoséculoXVI.

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Figura 3 –Cabeçadeafricano.

Figura 4 –PublicidadedosabonetoArêgos.

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Figura 6 –PeditórionafestadeNossaSenhoradaAtalaia.

Figura 5 –OspretosdeSãoJorge

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Figura 8 –BailedaRainhadoCongo(anúncio).

Figura 7 –Altardossantospretinhos,SédeBraga.

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Figura 9 –Astrologiaafricana(anúncios).

Figura 10 –Coleirasdeescravos.

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Figura 11 –Grande Vista de lisboa–BairrodoMocambo.

Figura 12 –TravessadoMocambo(1844).

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Figura 13 –OmédicoportuguêsSousaMartins.

Figura 14 –Oalmoçodoantropófago.

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Figura 15 –AsÁfricasnatoponímialisboeta.

Figura 16 –OLargodeSãoDomingos,emLisboa.

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leGeNdAs ANeXAs Às FIGuRAs

Figura 1Estequadro,quesesupõedatarde1570-1580, inscreve-sena linhagemdapinturadoNorte

daEuropadasegundametadedoséculoXVIconsagradaacenasurbanas.Sedopontodevistadaqualidade pictórica se revela algo medíocre, em contrapartida põe em evidência a integração dosafricanos na vida da cidade, desempenhando tarefas de naturezamuito diversa.A flexibilidade dacomposição permite proceder ao inventário das práticas lisboetas, inscritas num espaço limitadoatráspelasconstruçõesnavelhaRibeiradasNaus,sendooprimeiroplanoconsagradoàsactividadesmarítimas.Algumascenassãoinusitadascomo,semprenoprimeiroplano,umafricanoaolemedeumapequenaembarcação,enquantoocolegatocapandeiretaparatornarmaisdocearelaçãoamorosadosdoispassageirosbrancos.Oquadroconcentraumamultidãomisturandováriosgrupossociais,ondesedestacaumagrandequantidadedeafricanosdesempenhandoasmaisdiversas tarefas.Àcabeçade muitos deles vemos as famosas calhandras cheias de detritos, mas também podemos observarafricanosquecarregamáguaparaosseussenhores,outrosdescarregandoasembarcaçõeseumoutroainda,bêbado(?),sendolevadoparaacadeia.Saliente-seafiguradeumescravonegrocarregandoumacorrentedeferroqueoprendedopescoçoaospés.Duasimagenssurpreendentesintegramestacomposição:noprimeiroplano,masemterra,émostradoumafricanoacavalocomohábitodaOrdemdeSantiago;nosegundoplano,nobaile,podemosverumpardançanteformadoporumhomempretoeumamulherbranca!Àsjanelas,asburguesascontemplamacena,quedeviaserbarulhenta,muito“perfumada”,marcadapelamúsicaepeladança.

o Chafariz d’el-rei no séc. XVi. Pintura de autor desconhecido, Países Baixos. ColecçãoBerardo,Lisboa

Figura 2Esta“grilhetadeferrocomduasargolasligadasporumacorrentedeferro”,permiteimpedirque

oescravopossasequertentarumafuga,poisumpéficaligadoouàmãoouaopescoço,atravésdasduasargolasexistentes.PeçaoferecidaporJoãoPintoSimõesaJoséLeitedeVasconcelos,em1914.

IMC,MuseuNacionaldeArqueologia,Lisboa.

Figura 3Integrada na decoração do Claustro do Mosteiro dos Jerónimos, esta modelagem mostra

apenasobusto,vistodeperfil,deumafricanocujaidentificaçãosetornapossívelgraçasaocabelorevolto, ao nariz achatado e aos lábios espessos. Esta maneira de ver os africanos, que aposta naleitura fisionómica da figura, permitindo também a enumeração das suas actividades e do seuestatuto, começou a organizar-se no século XIII, prolongando-se praticamente até aos dias dehoje.

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Figura 4Ochoqueprincipalentreeuropeuseafricanosésomático:apelenegraremeteparaasfiguras

diabólicas,emborapossasernãosóatenuada,masmodificadagraçasàutilizaçãodeumbomsaboneteeuropeu. A ingenuidade carinhosa de uma criança branca e loira, utilizando o sabonete Aregos,permitedissolverumaboapartedanegruradoafricano,utilizandoumacartolaeumlaço.Osonhodoembranquecimento,jápresentenoséculoXVInaspeçasdeGilVicente,éassimreactualizadonestapublicidadecorrentenaEuropadaprimeirametadedoséculoXX.

CartazporETP–EmpresaTécnicaPublicitáriaFilmGráficaCaldevilla,c.1917.BibliotecaNacionaldePortugal,Lisboa.

Figura 5NoséculoXIX,dandocontinuidadeaumalongatradiçãosecular,osafricanoscontinuavama

serconsideradoscomoparticularmentedotadosparaamúsica.EstaorquestradoscincomúsicosnegrosdeSãoJorge,talhadosemmadeira,associandoosinstrumentosdesoproaosderufo-duastrombetas,umaflautaedoistambores-,mostraaintegraçãodosafricanos,envergandoostrajestradicionais,nafestadoCorpus Christi. Estaparticipação,marcadapelaexuberânciacromáticadovestuário,assimcomooflorãoazulebranco–coresnacionaisdeentão–edosbicórniosdosmúsicos,fizeramdos“PretosdeSãoJorge”,umdosatractivosmaisconhecidosdestacerimóniacatólica.

MuseudaCidade,CâmaraMunicipaldeLisboa.

Figura 6Osafricanoslisboetasnãodesconheciamastécnicasdapublicidade,organizandoopeditório

para a festa de Nossa Senhora da Atalaia. A gravura concentrou muito habilmente os quatroaspectos mais relevantes (da esquerda para a direita): o encarregado de abordar os transeuntesparaobteraesmola;oportadorda imagemdaSenhora,quedeveserbeijadapeloscrentes,quesãotambémoscontribuintesparaafesta;otocadordotambor(zé-pereira),acompanhadoporumtocadorde rabeca;oquartogrupoé formadopordoisdançarinos,vendo-seosseiosvolumososdamulher.Acenaestáenquadrada,àesquerda,pordoiscãesque,degoelaaberta,ameaçamosafricanos;àdireita, instaladosnasvarandas,hávárioseuropeusque,aparentementecomprazer,observamacena.Registem-seascensurasredigidasporautoresestrangeirosescandalizadospelasfestasafricanas,massobretudopelaadesãoportuguesa.UmanónimoinglêsdosprimeirosanosdoséculoXIXdescreviaumpeditóriodeNossaSenhoradaAtalaiadizendoqueosafricanos“tocamotamborearabeca(para)chamaraatençãodosmoradores,queacorremàsjanelasevarandasparagozaroespectáculodolascivoemesmofrenéticolundum,dançadoporumnegroeumanegracommovimentosecorpoque[…]deixariamconstrangidaspessoasmaissensíveis;osportugueses,noentanto, são tão fanáticospor essadança […]quenão resistemaoprazerdeadmirá-la,mesmoquando levadaa extremospor seus curiosos criadores”.Estadescriçãoé completadaporoutra,também inglesa, do mesmo período, que critica a participação activa dos “portugueses (que)costumavamentregar-seaessadançaemclimadetalfrenesi,quechegavamaofinalemclimadepossessão…”.

Litografiacoloridadesketches of portuguese life..., Londres,1826.BibliotecaNacionaldePortugal,Lisboa.

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Figura 7Noaltardedicadoaos“santospretinhos”,nacapeladeNossaSenhoradaPiedade,situadanos

claustrosdaSédeBraga,podemver-se,ladeandoaSanta,osquatrosantosnegrosqueseencontramemaltaresdediversasigrejasportuguesas,veneradosporafricanos,mastambémporportugueses:SãoBenedicto,SantaIfigénia,SantoElesbãoeSantoAntóniodeNoto.

Figura 8FolhavolantequecirculouemLisboa,anunciandomaisuma“assombrosafesta”,duranteaqual

seprocederiaàaclamaçãoecoroaçãodanovaRainhadoCongo,MariaAmáliaI,salientandotratar-sedegrandefestadacortedoCongo.JoãoJardimdeVilhena,muitonovo,assistiuaessa“festarégia,comentradaspagaseaconcessão,pelaRainha,demercêshonoríficasaquemprovasseserfilhodasuagente,medianteespórtulagrandeequeodiplomadesenhadoporManueldeMacedofossepagoporbompreço”.

Publicadoemo antónio maria, de21deSetembrode1882.hemerotecaMunicipal,CâmaraMunicipaldeLisboa.

Figura 9háséculosqueentrenós,tantoemLisboacomonoutrascidades,seregistaumaforteadesão

dosportugueses,mesmocatólicos,àspráticasdefeitiçariaedeadivinhaçãorealizadaspelos“sábios”africanos. Os jornais diários não recusam esta publicidade, mesmo que possa aparecer comoenganadora,eosespecialistasdoAlém,homensemulheresmarcadospororigensereligiõesdiferentesintegramestaprofissãocontinuaflorescenteemPortugal.Adistribuiçãode“cartões”depublicidadeaquemcirculanoRossio,anunciandoassuascompetências,fazpartedoquotidianolisboeta,comoéocasodaMãeCongaedoProfessorMamadu.

PáginadedicadaaanúnciosdeastrologiadojornalCorreio da manhã(09.07.1997)epublicidadedaastróloga mãe Conga.

Figura 10Estasduascoleiras,provavelmentedoséculoXVIII,recolhidasporLeitedeVasconcelos,são

portuguesas. Uma, originária de Benavente, liga directamente o escravo ao seu proprietário, LuísCardozodeMello,eaolugar,“moradoremBenavente”.Aoutraexplicita,atravésdacor,aorigemafricanadoescravo,emboraasinonímiaentrepretoeescravosejabemconhecida:“estepretoédeAgostinho de Lafetá do Carvalhal de óbidos”. Sendo embora raras, estas coleiras animalizam osescravos,amaioriadelesafricanosnegrosoumulatos,assimmarcadoscomobjectosutilizadosparaosmanternaesferaanimal.Estacoleiramostra,atravésdagrafia,ocuidadoqueoproprietáriopunhanestesobjectos,nãosesabendoseasuautilizaçãosemantevenoséculoXIX.

IMC,MuseuNacionaldeArqueologia,Lisboa.

Figura 11Ospainéisdeazulejos,destinadosaocuparsuperfíciesconsideráveis,mostramamaneiracomo

apaisageméconstruída,deformaapermitira identificaçãodosblocoshabitacionais, incluindoaszonasverdes, semcasarioecomashortasque forneciampartedaalimentaçãodos lisboetas.Este

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pormenorpertenceaumvastíssimopaineldeazulejos,fabricadoentre1700e1725,apresentandoacidadedeLisboaantesdoterramoto.Arepresentaçãodacidadefaz-seumavezmaisapartirdorio,praticamentenaoutramargem,oquepermiteinventariarasembarcaçõesquesemoviamnoTejo.Opintoracrescentaumaparticularidadesignificativanoprimeiroplano:abandeiradaCoroa.OMocambointegra-senarededasruas,largos,becosecaminhos,assinaladostambémpelascolunasdefumodasolariasquealiteriamfuncionado,segundoPaulohenriquesqueprocedeuaoestudominuciosodestepainel.Sublinhe-seograndenúmerodeconventos–deNossaSenhoradaSoledadeoudasTrinas,deSantaBrígida,doSantoCrucifixo,deSãoBento,daEstrela,deSantoAlberto,deNossaSenhoradaPorciúncula,dasBernardas,deNossaSenhoradaEsperança–,grandesconsumidoresemão-de-obraescrava.ObairrodoMocamboestavaporissointegradonumespaçoparticularmentemarcadopelasconcentraçõesdereligiosos,homensemulheres.

Grande Vista de lisboa,debarrovidrado,majólica,atribuídoaGabrieldelBarco,Lisboa.IMC,MuseuNacionaldoAzulejo,Lisboa.

Figura 12Pormenordeummapaalemãodatadode1844,quesegueamatrizdeumacartainglesade1833,

quepermiteavisãoplenadaTravessadoMocambo,integradanoespaçodasTrinas.ApassagemdoMocambodebairro a travessapõeemevidência aperdada sua importânciaurbana,oque traduztambémadesqualificaçãodosafricanos,cadavezmenosnumerososnaszonascentraisdacidade.

GravuradeJosephMeyer.DavidRumseyMapCollection,E.U.A.

Figura 13OmédicoportuguêsSousaMartins,mulato,alcançoureputaçãodecuradordasferidas,tantoas

psíquicascomoasfísicas,oquedeuorigemarituaisdestinadosapedir-lheouaagradecer-lheacuraparaosseusmales.Adiversidadedeobjectosquesãodiariamentecolocadosaospésdasuaestátua,entreosquaisvasosdeflores,traduzem,emplenocentrodeLisboa,umagrandedevoçãoeasingularreligiosidadedosportugueses,queoconsideramumtaumaturgo.

EsculturadeCostaMota(tio),noCampoSantana,Lisboa.

Figura 14Este“almoçodoantropófago”adquire todooseusentidograçasaocomentárioescrito.Mas

saliente-searepresentaçãocaricaturaldoafricanonegroeuropeizado,atravésdovestuárioedaformadegestãodocorpo:mesmoassimilado,nãoperdeuosseuscaracterescongénitosde“selvagem”ede“antropófago”.Aridicularizaçãodosafricanosconstituiumdosmarcadoresviolentosdocolonialismoportuguês,tambémamplamentedifundidonascolónias,comoemAngola,ondeeramdesignadospor“calcinhas”.Bandadesenhadapublicadaemo senhor doutor, AI,n.º46,27.01.1934,Lisboa.

BibliotecaNacionaldePortugal,Lisboa.

Figura 15SeumprimeiroblocodeimagensassinalaalgumasruasdeLisboaquefazemreferênciaexplícita

àhistóriadosafricanosnegrosnacidade,osegundorepresentaumconjuntodetopónimosintegrados

ISABELCASTROhENRIqUES32

numaespéciede“urbanismocolonial”lisboeta:lugaresdememóriadahistóriadosportuguesesemÁfrica.Finalmente,oterceiroblocodácontadosantigoschefes“terroristas”,agoraheróisaquemacidadedeLisboaprestahomenagem.EstestopónimosqueassinalamamudançadoPortugaldeAbrilde1974,mostrambemaimportânciadarenovaçãopolítico-ideológicadopaísnareorganizaçãodamemória.

Figura 16OLargodeSãoDomingos, na relação comoRossio, continua, emLisboa, a constituir um

localpreferencialdeencontrodosafricanos,homensemulheres,qualquerquesejaosexo,aidade,aorigem,areligião,comosepodeverpelapresençadeislamizados.Assinale-se,porumlado,aIgrejadeS.Domingosque,desdeasprimeirasdécadasdoséculoXVI,abriuasportasaosafricanosepermitiuainstalaçãodaprimeiraConfrariadeNossaSenhoradoRosáriodoshomensPretos,queseviriaaexpandir por todoopaís; por outro, as árvores, que, aqui comoemÁfrica, constituem lugaresdeatracção,jáquecontinuamaserformasvegetaisqueabrigameconcentramosespíritos.Trata-sedeumadaspermanênciasmaissingularesdocomportamentodosafricanos,poisoRossioeoLargodeS.Domingosmantêm-secomooterritórioescolhidoparaseconcentrarem.Talsituaçãodecontinuidadepermitepensarqueaescolhadeste localdeencontrodosafricanos,ao longodosséculos,maisdoqueumamemóriahistóricadaimportânciareligiosaesocialdesteespaçonopassado,resulta,hoje,sobretudodeumatradiçãooraltransmitidadegeraçãoemgeração.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 33

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA

rute dias GreGório*

Sumário:Compondominoriasétnicas,maioritariamentedeestatutoescravo,africanosditos

mouriscos ou pretos detectam-se nas fontes açorianas do século XVI. Ora presentesnos inventáriosdebens,antesdovaliosogado,oraconstantesdos testamentosqueosalforriam,dotamoucondenam,orapresentesnosregistossacramentais,numaintegraçãoreligiosa e social queseriamobrigadosa aceitar, diferentes protagonistas e tambémimagensparecememergirdestespovoadoresforçadosdasilhasaçorianas.

Palavras-chave:Açores,africanos,escravos,libertos

Africans in Azores: reports on a sixteenth-century presence

Abstract:Aspartofethnicminorities,mostlyfromslavestatus,Africannamedbymouricosor

blackaredetectedinthesixteenthcenturyAzoreansources.Emergingintheinventoriesofgoodsbeforethevaluablecattle,listedintheownerswillsformanumission,donationorcensure,presentinthesacramentalrecordsinacontextofreligiousandsocialintegrationobligedtoaccept,differentprotagonistsaswellimagesseemtoemergefromtheseforcedsettlersofAzoresislands.

Key-words:Azores,Africans,slaves,freedslaves

* ChAM (Centro de história de Além-Mar), Faculdade de Ciências Sociais e humanas,UniversidadeNovadeLisboaeUniversidadedosAçores.

RUTEDIASGREGóRIO34

…em nome de deus amem aos que esta sedula de manda e testamento virem digo eu Branca Gonçalves mulher preta moradora nesta cidade de Angra da jlha Terceira que estando sã e em todo meu perfeito juizo entendimento ordenei e mandei fazer esta sedula1…

Oprotocolo inicial,notificaçãoe iníciododispositivodo testamentoqueseacabadecitar(naturalmenteinterpolado),datadode6deAgostode1556,dáavozpossívelàvontadedeBrancaGonçalves,ditamulher preta2.Alémdela,aindaMarçalÁlvares,homem preto que foy d’eytor aluarez homem, em15513eAntónioRodrigues, pretto que foy de rodrigo anes, em15844,dãoexpressãoconcretaamuitasdasfigurasanónimasdahistóriadosAçores.

Está-se perante os testamentos de três personagens da sociedadequinhentistadasilhas,osquaissobressaemporduasrazõesprincipais:

1. Aprimeira,pelocaráctermenosvulgardarespectiva identificaçãoétnica.Mesmosemdetalhessobreolocaldenascimento,elatornainquestionávelarespectivaproveniência5,trate-sedeumaprimeiraou segunda geração de homens e mulheres que o comércio dosescravostrouxeatéàsilhas,bemcomodeseusdescendentesnaturaisdasilhas.

2. Asegundarazãopelaqualsesalientamtemavercomoseuestatutolivre.É que, na documentaçãoquinhentista dosAçores, o comumdas referências relativas a africanos associam-nos naturalmente àcondiçãodeescravatura6.

1 BibliotecaPúblicaeArquivoRegionaldeAngradoheroísmo[BPARAh].Judiciais:ProvedoriadosResíduoseCapelas[PRC],fls.15vº-21vº.

2 TestavaemAngra,noanode1556.BPARAh.Judiciais:PRC,fls.15vº-21vº.3 TestavaemVilaNova,noanode1551,–“TombodaIgrejaParoquialdoEspíritoSantodaVila

Nova”[TESVN]. LeiturapaleográficadeJoanadeMenesesPintoMachado.Boletim do instituto Histórico da ilha Terceira,vol.XLVII(1989)479-481.

4 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.181,n.º26,comcópiamaisrecentenomç.120,n.º1.5 Sobreaorigemgeográficadosescravos,entreoutros,destaque-seotrabalhodeJorgeFonseca

–escravos do sul de portugal, séculos XVi-XVii.PrefáciodeIsabelCastrohenriques.Lisboa:EditoraVulgata,2002,pp.29-34.Colecção“RotadosEscravo/estudos”n.º2;RuteDiasGregório–“EscravoselibertosdailhaTerceiranaprimeirametadedoséculoXVI”.InAvelinodeFreitasdeMeneseseJoãoPauloOliveiraeCosta(coord.)–o reino, as ilhas e o mar oceano: estudos em homenagem a artur Teodoro de matos. Lisboa/Ponta Delgada: Universidade dosAçores/UniversidadeNovadeLisboa:FaculdadedeCiênciasSociaisehumanas:CentrodehistóriadeAlém-Mar,2007,pp.447-448.

6 Cf. Os estudos já publicados para a região dos Açores: Maria hermínia Morais Mesquita– “Escravos emAngra no século XVII: uma abordagem a partir dos registos paroquiais”. Inarquipélago. história.2ªsérie,vol.IX-X(2005-2006)209-230;RuteDiasGregório–“Escravoselibertos…”,vol.II,pp.443-459.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 35

Defacto,deformacomprovadaostrêsforamantigosescravos.BrancateveporsenhorJoãoGonçalvespiloto7,Marçalfoiescravodeumconhecidopovoadorterceirense,heitorÁlvareshomem8,AntóniopertenceuaRodrigoAnes.

Natentativadeconstruçãodassuasbiografias9possíveis,pelostestamentosse sabe tambémqueAntónioeMarçalnão têmdescendentesdirectos.Marçalconstituiufamílianãoconsanguíneapelauniãoquemantevecomsuadesignadaparçeyra,MariaAfonso,ecomosfilhosdesta,DomingasGileRoqueAfonso10.Estes, por sua vez, são nomeados herdeiros dos bens, constituídos por casa,quintale2maroens(leitões).

Já António, morador na freguesia de Santa Bárbara às Cinco Ribeiras,dispõe e enumera alguns bensmóveis, entre vestuário e umacaixa, e declaraterumasearaemseisalqueiresdeterra.Imóveistambémpossuiemalqueiredeterra compradaaBaltasarGonçalves, aindanoutroalqueirede terra comumacasadepalha(queigualmenteobtiveraporcompra),estaúltimaquehá4ou5anosarrendavaaDiogoBalieiro[sic].Forma-se,destemodo,oquadroessencialdaformadevidaesustentaçãoeconómicadovisado,dasactividadesaquesededicavaeque,emtudo,éidênticoaodequalquerpequenoproprietáriodoséculoXVIaçoriano.ParaherdarpartedosbensdeAntónio,eigualmenteosadministrarnaobrigaçãodemissaselegados,foinomeadaMadalenaPires,mulher basa que foi de amador pires.Talherançajustifica-sepordeletercuidado,emsuaprópriacasa,nosúltimostemposdevida,jádoenteeacamado.AlémdeMadalenaPires,paraafamíliadeAntónioCostasedetermina irousufrutoeadministraçãodaoutrapartedosbens.Não fica clara a ligação entre ambos,mas constituía-se,destemodo,oquadrodasligaçõesmaisíntimasefirmesdotestador11.

7 BPARAh.Judiciais:PRC,fls.15vº-21vº.8 TESVN,p.474.9 Emtermosteóricos,aconstruçãobiográficadestesedequaisquerelementoshumanosinscreve-se

naconvicçãodaimportânciadaprosopografiaparaahistóriasocialeenquadra-senacorrentehistoriográfica, (re)nascidano iníciodosanos80do séculoXX,que recuperaabiografia eoestudodosindivíduos,oumelhordizendo,deváriosindivíduos.Entreoutros,videGiovanniLevi–“Lesusagesdelabiographie”.Inannales. economies. sociétés. Civilisations.N.º6(Nov-Dec.1989) 1325-1336; JoséAmadoMendes – “O contributo da biografia para o estudo das eliteslocais:algunsexemplos”.análise social. 4ªsérie,vol.XXVII,2ºe3º(1992);RuteDiasGregório – Terra e fortuna nos primórdios da humanização da ilha Terceira (1450?-1550).PontaDelgada:ChAM,2007,p.40,nt.89,entreoutros. Igualmente,apresenteabordagemvemaindaaoencontrodeactuaispreocupaçõeseenfoquesnoâmbitodahistóriadaescravatura.Nesteconcernente,entreoutrosregiste-seaquia iniciativadaUniversidadedaCarolinadoNorte(2004),EUA(Chapelhill),nosítiodocumenting american south,comumaáreaespecíficadeapoioàconstruçãodebiografiasdeescravose libertos (north american slave narratives),disponívelemWWW:<http://docsouth.unc.edu/neh/biblintro.html>;ouoprojectoemcurso,Biographical database of enslaved africans, doharrietTubman Institute forResearchonGlobalMigrationsofAfricanPeoples(http://tubman.apps01.yorku.ca/biographies).

10 TESVN.Boletim do instituto Histórico da ilha Terceira,vol.XLVII(1989)480.11 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.mç.181,n.º26emç120,n.º1.

RUTEDIASGREGóRIO36

quantoaBranca,estageroupelomenosquatrofilhosdeseuantigosenhor,entreoscincoqueteve.Jáentãofalecidoseramdois(JoãoeAna)esobreviventestinha três:AntónioRodrigues,DiogoGonçalveseLeonorGonçalves.Osbenserecursosquediscrimina,vestuário,casasedinheiro,talcomoosrecursosquedespendeuemdemandaseembargosnajustiça,apresentam-nacomoaproprietáriademaiorrelevodentrodogrupodelibertossobreosquaissevemdiscorrendo.Todosestesbensterárecebidoporviadaligaçãocomopaidosseusfilhos,oqualestavaenterradonoprestigiantemosteirodeS.Francisco(defrontedacapeladosFiéisdeDeus)deAngra, ilhaTerceira.Nocontextodoagregado familiarqueconstituiupelaligaçãocomJoãoGonçalvespiloto,BrancaaindacriouumajovempornomeIsabel,queaserviueàqualpagouosrespectivosserviços.Comestacriadaestaria, semdúvida,numpatamardiferenciadonoseiodosgrupospopulares.

Alémdaliberdadeedaconstituiçãodeumpatrimónio,comumatodosvisados(Branca,MarçaleAntónio),igualmentenelesemergeavontadedeinstituiçãodeobrigaçõesperpétuasdemissas,tornandoosherdeirosadministradoresdosbensvinculados às obrigações.Branca vai mais longe: na fórmula usual da época,explicitaasucessãonasuadescendênciaathe o fim do mundo por linha direita.

Noquadrodaspráticassucessórias,dagestãodosbensedasdisposiçõescom o fito na salvação da alma12, tanto quanto se pode alcançar, todos elesse vislumbram, pois, ajustados e integrados na sociedade açoriana de então.Comexcepçãodoestadocivil,noqualocasamentoconsagradopareceficaràmargem13,assuasdisposiçõesconferemcomaimagemdeumqualquerpequenoproprietáriodasilhas.

Noentanto,pelocontextoétnicoecorrelaçãocomoestatuto jurídico,noarquipélago de quinhentos estes casos afiguram-se como excepcionais. Nãoobstante, e como se dizia, o comum dos registos açóricos concernentes aosprovindosdeÁfrica,oudescendentesdeAfricanos,apresentacomopanoramageralumafaixapopulacionalreduzidaàescravatura.

Os escravos africanos, nos termos habituais da época, na documentaçãocompulsadasãoclassificadoscomobrancos,negros,pretosemulatosnotocanteàpigmentaçãodapele.Jánoquediz respeitoàproveniência,especificamente

12 Entre outros estudos, remete-se para Danièle Alexandre-Bidou – la mort au moyen age, Xiiie-XVie siècles. Paris: hachette Littératures, 1998, pp. 71-73, 76-77 e passim; hermíniaVasconcelosVilar eMaria JoãoMarquesdaSilva– “Morrer e testar na IdadeMédia: algunsaspectos da testamentária dos séculos XIV e XV”. In lusitania sacra. 2ª série, t. IV (1992)39-59.

13 Apesar de possíveis, o n.º dos registos de casamentos envolvendo escravos ficam abaixo dosexpectáveisfaceaosquantitativosglobaisdestapopulação.Sobreesteassuntocf.A.C.deC.M.Saunders–História social dos escravos e libertos negros em portugal (1441-1555)…,principalmenteàspp.141-142.SobreaposiçãodaIgrejaemrelaçãoaomatrimónioenvolvendoescravoseaatitudedossenhorescf.JorgeFonseca–escravos do sul de portugal…,pp.156ess.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 37

–enãoseconfundacomnaturalidade–,sãoessencialmentereferenciadoscomoda Guiné,menosdeSãoToméeigualmenteserecorreaoétnicomouriscosoumouros14(entreestesumdadopornaturaldeSafim15),parareferenciarasáreasnorte-africanas. Detectamos também algumas especificações menos comunscomomulato preto,negro fulo,negro preto,mourisca Índiaounegrita16.

Perante tais dados, confirma-se a situação das ilhas como receptoras deescravosprovenientesdoNortedeÁfricaedaÁfricasubsaariana.Receptorasedemodonenhumentrepostodedistribuiçãoesclavagista, apesarde tambémpossuirmos indícios de transacções de “frequência irregular” no arquipélago,paraparafrasearMariaOlímpiadaRochaGileArturTeodorodeMatos17.

A chegada destes grupos humanos associa-se, confirmadamente, ao tratodaCosta eGolfodaGuinéeprovavelmente tambémsepoderávir a articularde formacomprovadacomademais costa africana fornecedoradeescravos18.Osinteressesdas ilhasnessetratoestãoatestadosemvários testamentosesãoigualmentetestemunhadospeloalvarádoalmoxarifedeSãoMiguel,de152719eaindapelasalvaguardadosdireitosrégiossobreentradasesaídasdeescravosemSãoMigueleSantaMaria(anteriora1578)20.Naarticulaçãocomosmercadoseasfontesdotrato,pode-seentreoutrosdestacarafiguradeManuelPachecode

14 Uma escrava moura, depois alforriada, tinha ConstançaAfonso de Ponta Delgada em 1536.BibliotecaPúblicaeArquivoRegionaldePontaDelgada[BPARPD].FundoErnestodoCanto[FEC]:TombodostestamentosdaProvedoriadosResíduosdePontaDelgada[TPRPDL],fl.45.

15 FranciscoMachado,comosechamavajáalforriado,em1557.16 RuteDiasGregório–“Escravoselibertos…”,pp.447-448.17 Maria Olímpia da Rocha Gil - “O porto de Ponta Delgada e o comércio açoriano do século

XVII(elementosparaoestudodoseumovimento)”.Indo tempo e da história[Emlinha],vol.III(1970)74-75.[Consult.em2009.10.01].DisponívelemWWW:<http://www.fl.ul.pt/unidades/centros/c_historia/Biblioteca/III/4-%20O%20Porto%20de%20Ponta%20Delgada%20e%20o%20Comercio%20Acoriano.pdf>;ArturTeodorodeMatos–escala atlântica de referência. entre a atalaia do oceano e a opressão dos naturais.InArturTeodorodeMatos,AvelinodeFreitasdeMeneseseJoséGuilhermeReisLeite(dir.científica)–História dos açores: do descobrimento ao século XX.Angradoheroísmo:InstitutoAçorianodeCultura,2008,vol.I,p.216.

18 Ocomérciodeescravostemosseusautoresdereferênciaecontinuaaserobjectodeinovadoresestudoseconclusões.Semseintentarserexaustivonamatéria,saliente-seVitorinoMagalhãesGodinho – “O mercado da mão-de-obra e os escravos”. In os descobrimentos e a economia mundial. 2ª ed. correcta e ampliada. Lisboa: Editorial Presença, 1983, vol. IV, pp. 151-223(1ªed.de1963-1971);o tráfico de escravos negros, séculos XV-XiX. DocumentosdetrabalhoeRelatórioda reuniãodeperitosemPort-au-Prince,haiti,de31de Janeiroa4deFevereirode1978.Lisboa:Edições70,imp.1981;trabalhosdeherbertS.Klein–o comércio atlântico de escravos: quatro séculos de comércio esclavagista. S.l.: EditoraReplicação, 2002.EdiçãooriginalemInglêsde1999;MariadaGraçaA.MateusVentura–negreiros portugueses na rota das Índias de Castela (1541-1556).Lisboa:EdiçõesColibri/InstitutodeCulturaIbero-Atlântica,1999.

19 ARqUIVO dos Açores [AA]. Reedição fac-similada da edição de 1883. Ponta Delgada:UniversidadedosAçores,1981,vol.V,pp.142-144.

20 MariaOlímpiadaRochaGil–“OportodePontaDelgadaeocomércioaçoriano…,p.78.

RUTEDIASGREGóRIO38

Lima,residentenailhaTerceira,fidalgorégio,proprietárioderelevo,nomeadoembaixadorjuntodoReidoCongo.Noseutestamento,de1557efeitoemSãoToméondeacabariaporfalecer,háreferênciasexplícitasalicençasdetratadoresparaacompradepeças21.Paramais,acédulatestamentaldesuamãe,de1532,já registava essa ligaçãoaSãoTomée ao investimentoque elaprópria fizeranasactividadesdofilhoparaserressarcidoemescravos22.TambémMestreRato,moradoremAngra,em1540tinhaencargosnailhaTerceiracomotratantedeescravosnaGuiné,ofalecidoRuiGois23.

quantoaosmouros,mouriscosoubrancos,cujasdesignaçõeschegampelomenosaosfinaisdoséculoXVI,terãoorigemnoscativosdeguerraresultantesdaconquistaedefesadaspraçasafricanas24.SãoconhecidosváriosprotagonistasinsularesnestasacçõeseoregistodeFrutuososobreachegadadeconsideráveiscontingenteshumanoscomtalproveniênciaaSãoMiguel,noanode1521,nãopodeaquideixardeserinvocado25.

Já por levantamentos concretizados em estudo anterior, com base nostestamentos, inventários e autos de partilha da ilha Terceira da 1ª metade doséculo XVI, entre os grupos escravos tornou-se evidente a predominânciados ditos negros com o valor de 51,55%, existir ainda alguma margem paraos mouriscos, 11,34%, e podermos atestar uma significativa presença, de35%, de escravos resultantes das ligações entre os diversos grupos humanosempresença.

Nesteúltimoconspecto,importarelevarqueamiscigenação,quedáorigemaos designados mulatos, atesta-se por vir do cruzamento entre os própriosescravos,negrosemouriscos,eentreeuropeusesuasescravase/ouescravasdeseussenhores.Tambémépossívelqueestamiscigenaçãotenhaorigensexternas– faltam os dados das entradas e, até, o cabal levantamento dos registos debaptismodos recém-chegadospara o elucidar –,mas, semquaisquer dúvidas,resultaigualmentedeligaçõesinter-étnicas26.

Avindadestescontingenteshumanosparaoarquipélago,paraalémdeseconstituir em importante factordeprestígioparaquemospossui27, conecta-senaturalmenteàforçadetrabalhoimplícita.Notocanteàsocupaçõeseactividadesquelhesatribuídas,oselementosescravizadosdogénerofemininoparecemestar,

21 BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VI,n.º178.22 BPARAh.Monásticos:TSFA,fls.369-371.23 BPARAh.Famílias:BarceloseCoelhoBorges,mç.1,n.º8,fl.6vº.24 Cf.açorianos em África (documentos).InAA.Reediçãofac-similadadaediçãode1882.Ponta

Delgada:InstitutoUniversitáriodosAçores,1981,vol.III,pp.434,436-437,438-444(PeroAnesdoCanto,FernãoLourençoRamos,ManuelPachecoeSebastiãoTomé).

25 GasparFrutuoso–livro quarto das saudades da terra.PontaDelgada:InstitutoCulturaldePontaDelgada,1981,vol.II,p.337.TranscriçãoeediçãodomanuscritodefinaisdoséculoXVI.

26 RuteDiasGregório–escravos e libertos…,pp.449-450.27 A.C.deC.M.Saunders–História social de escravos e libertos…,pp.97ess.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 39

deformageral,dentroounasproximidadesdacasadoproprietário.Pode-seesperardestasmulheres:quetratemseussenhoresnadoença28,quecriemecuidemdascriançaspequenas29,quevarramelimpem30,quefiemolinho31,mastambémquelavremecosampeçasdetecido32.Nãoobstante,aintervençãofemininaescravaaoníveldopequenocomérciodevitualhas,jádetectadanoutrascidadesportuguesasenãosó33, igualmentese registaapropósitodeumcertohomemconhecidoereferenciadocomoaqueleque tem a negra que uende uinho nas cazas […] ao portodeAngra34.Igualmenteficouatestadaaparticipaçãodestasmulheresnasactividades agrícolas35, o que, no quadro das respectivas origens, constituirámesmoumelementodecontinuidade36.Porfim,emsituaçãodereconhecimentopoucocomum,saliente-seIsabel,pretadaGuiné,escravadeBrígidaPires,viúva(deVascoFernandes[Rodovalho]),sobrequemaproprietáriaafirmava:sempre teue cargo de minha caza e fazenda e por sua astuçia e trabalho sempre [a dita casa] sustentou37.

Jáquanto aos elementosdogéneromasculino, atestamo-losocupadosnacriação do gado38, no serviço de recolha das searas, na sementeira39, em todo o necessário ao corregimento dafazendadoproprietário40,inclusiveatravessar

28 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.6,n.º2,fl.2;eRuteDiasGregório–pero anes do Canto…,pp.83-84e88.

29 BPARAh.Famílias:BCB,mç.1,n.º7,fls.10vº-11vºe13vº-14vº(1537).30 BPARAh. Judiciais:AAAh, mç. 87, n.º 2, fl. 252 (1539). Se esta era a condição imposta à

alforria, no caso da escrava viver naTerceira,muito naturalmente seria função esperada delaaindaenquantoescrava.

31 Em1548.BPARAh.CIM:MP,fls.38vº-39.32 BPARPDL.FEC:MCMCC,vo.IX,n.º262,fls.3vº-4e8.33 Porexemplo,emLisboa.Cf.A.C.deC.M.Saunders–História social dos escravos e libertos…,

p.110.VidetambémVitorinoMagalhãesGodinho–os descobrimentos e a economia mundial...,vol.IV,p.200.

34 BPARAh.CIM:ThSEA,fl.205vº.35 Em1559,aosnegros,e preta,quePedroCotadeMalhadesignaparafuturaalforria,manda-se

recolher a seara, o pedaço de meloal e o mais semeado que elles mesmo [sic] ssemearam.BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198,fls.11vº-12.

36 IsabelCastrohenriques–“OciclodoaçúcaremSãoToménosséculosXVeXVI”.Inportugal no mundo.Dir.deLuísdeAlbuquerque.Lisboa:PublicaçõesAlfa,1989,p.274.

37 Em1549.BPARAh.CIM:SFA,fl.116vº.38 RuteDiasGregório–o Tombo de pero anes do Canto (1482-1515)[TPAC].Boletim do instituto

Histórico da ilha Terceira,vol.LX(2002)185(1512);BPARAh.CIM:MP,fl.298(1550);RuteDiasGregório– pero anes do Canto…,pp.86-87.

39 Entreoutros,BIhIT,I,n.º1(1943),p.23(1507);BPARAh.Judiciais:PRC,fls.95e97(1534);BPARAh.Judiciais:AAAh,mç248,n.º8,fl.9v(1442);RuteDiasGregório– pero anes do Canto…,pp.86-87.

40 Em1525,BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.146,n.º28;1534,Judiciais:PRC,fls.95e97;eem1559,BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198,fls.11vº-12.

RUTEDIASGREGóRIO40

ooceanocomcartasepapéisemnomedeseusenhor41;nogerironegóciododono,comoFrancisco,aquemoproprietáriomandapedirconta da mercadoria que tras em minha tenda e das pessoas que […] tem fiado minha fazenda sem lho eu mandar42;aindaajudaracriarosfilhosdosenhor43,independentementedosignificadorealdesta“criação”;e,porfim,namarinharia,actividadenaqualemPortugalsedetectamhabitualmenteescravos,pelomenosdesdeasegundametadedoséculoXIII44:PeromarinheiroeraumdosescravosdePeroAnesdoCanto45.

Mas, para além das funções referidas, também encontramos o escravoacompanhante de viagem de seu senhor ou familiares46; aquele que serve deintermediário, inclusivenaalçadada justiçaquando, em1529, éhum mollato de diogo pajmqueapresentaeindicaosrepresentantesdodonoparaoalvedriodo rendimento das respectivas terras47. Excepcionalmente, e no quadro deoutrasactividadesquepodeexerceremtrocadesoldoafavordeseusenhor48,destaque-seaindaoescravodojuizdeforadePontaDelgada,licenciadoJoãoUsadomar, por alvará régio de 1566 instituído de ordenado49. Por fim, outrassituaçõesdequase improvávelocorrência:Jordão,escravodeBartolomeuVazmoradoremVilaNova(Terceira),noanode1535étestemunhadotestamentode JorgeAnes eMaria Fernandes50; JoãoMartins, mulato, escravo de SusanaMartinsfalecidaem1598naRibeiraGrande(SãoMiguel),terásidoincumbidodafunçãodetestamenteirodaditasuasenhora51.

Todos estes dados (que não passíveis de análise estatística nem serial),servemparadizerqueosescravosafricanossãodetectadosnodesempenhodemúltiplasfunçõesetarefas,asquaisnãosão,demodonenhum,exclusivasaestafaixapopulacional.Defacto,agrandemaioriadasgentes,osgruposmaisbaixosda sociedade, incluindo os vários servidores livres dos senhores, realizariam

41 PeroAnesdoCantomandouaquele,queapelidaho meu pero negro,numnaviodaGuiné,aoReino,noâmbitodoprocessocomocapitãoevedorVascoAnesCorteReal,em1517.BPARPD.FEC:CPPAC,n.º6,fl.11vº.

42 BPARAh.CIM:ThSEA,fl.247vº(1545).43 ComoéocasodeBartolomeu,escravodeGonçaloFerreira,viúvo.Cf.BPARPD.FEC:MCMCC,

vol.III,fl.6vº.44 A.C.deC.M.Saunders– História social…,pp.105-107.45 RuteDiasGregório–pero anes do Canto…,p.84,quadroIII.46 BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198,fl.5vº;47 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.423,n.º6,fl.108.48 A. C. de C. M. Saunders – História social…, p. 101; Jorge Fonseca – escravos no sul de

portugal…,p.83;RuteDiasGregório–Terra e fortuna nos primórdios da humanização da ilha Terceira (1450?-1550).PontaDelgada:CentrodehistóriadeAlém-Mar,pp.327-328.

49 AA,vol.VIII(1982)145.50 TESVN,p.483.51 BPARPD.Paroquiais:FreguesiadeNossaSenhoradaEstrela,RibeiraGrande,Livro2deóbitos,

fl.135v.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 41

actividades idênticas, pesasse embora o seu estatuto jurídico de natureza bemdiversa.Adiferença,nãodepoucamonta,équeosnossoshomensemulhereseram tidosporpropriedade, arroladoscomobens,geralmenteantesdogadoedemais património móvel. Possibilidades de alteração da respectiva condiçãoexistiameperspectivavam-senafugaoupelaalforria.

Sobrefugas,logoàpartidadeduvidososresultados,encontram-seregistosreferentes a Junho de 1500, no qual 2 escravos deambularam pelas serras daTerceira sem resultados que não fossem o cansaço, a fome e uma morte pordesfecho52.EmSãoMiguel,maisdoquefugas,GasparFrutuosorelataosmotinsdosmourosnoanode1521,cujoepílogofoiadecapitaçãodoseulíderBadaíl53.henrique,escravomulatotambémfoidadoporfugido,masem1530eapesardetudoouporissomesmo,foioúnicoqueosproprietáriosmandaramlibertar54.

quantoàsalforrias,nãosãopoucoreferenciadasnostestamentosterceirensese,agoraquesecomeçaaalargaroâmbitogeográficodaanálise,tambémaparecemconsignadasemcélulasquinhentistasdemoradoresemS.Miguel.

Entre os escravos identificados por esta tipologia documental, cerca demetadeestáindicadaparaalforriaapósamortedo/sproprietário/s.Noentanto,tallibertaçãosujeita-seavariadíssimascontingências.

Ameiaalforriaeasituaçãodemeio forrosãocomunseprevisíveisemmuitoscasos. NaTerceira, Isabel, Pero Fernandes,António do Canto e Pero ficaramforrosnametadepertencenteaumdoscomponentesdocasalseuproprietário55.EmSãoMiguel,DuarteVazenunciaportestamentoqueBeatrizseriaalforriadana minha metade della[sic]56.NaGraciosa,antesde1542,amulherdePerodeEspínolaalforriarametadedeBárbara57.Dequemodoseteriamalteradoasvidasdestes homens e mulheres com “semi-liberdade”? Tendemos a pensar que osresultadosnãoseriammuitopromissores.Oadiamentodaliberdadeparaaoutrametadepodialevaranoseatéumavidainteiradesujeição,comoficarápatentenaspalavrasdeumproprietáriode1559,quandodiziaqueosseusmeiosforrosjnda ate hora sam catiuos58.

Paramais,aliberdadecontinuaadependerdavontadedosherdeirose,noscasosatrás,davontadedoco-proprietáriodoescravo:ouseja,ooutroelementodo casal. O problema é que a outra metade, ainda sujeita, na expressão dosdocumentos o cônjuge alforriará apenas sse qujsser59. Ou seja, a expectativa

52 AA/TT.ChancelariadeD.Manuel,lº45,doc.440,fl.115vº.53 GasparFrutoso–livro quarto…, tomoII,pp.338-339.54 BPARAh.CIM:ThSEA,fls.173vº-174.55 BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198,fl.7vº;BPARPD.FEC:SFA,fl.116vº;BPARAh.

Judiciais:AAAh,mç.6,n.º2,fl.25.56 BPARPD.FEC:TombodostestamentosdaProvedoriadosResíduosdePontaDelgada,fl.95vº.57 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.248,n.º8,fl.9.58 BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198,fl.7vº.59 BPARAh.Famílias:BCB,mç.1,n.º8,fls.4-4vº.

RUTEDIASGREGóRIO42

desfaz-se e pode-se morrer meio forro, o que parece significar o mesmo queescravo.

Outracondiçãodeliberdadeconstitui,muitasvezes,oencargodecontinuarprovisoriamenteaservirasoldo,familiaresdosenhorououtremporeleindicado.Écomumdeterminar-seumcertoperíodo,entre2a6anos,peloqualoescravotrabalharáporsoldadaatéobterumaquantiapredeterminada.Aliás,rentabilizaramão-de-obra escrava, assoldadando-a, é prática documentada nesta época, tantonas ilhascomonoutrosespaçosnacionais60.Por isso,este tipodecláusulacomocondição de alforria mais não faz do que prolongar o sistema de rentabilizaçãoeconómicadoescravoemviasde libertação,pelomenospormaisalgumtempoapósamortedoproprietário.Jáquantoaosproventosdosoldo,naturalmenteafavordotestamenteiroouherdeiros,oraseresumemnumaquantiaemdinheiroquemaisnãoédoqueopagamento,pelomenosemparte,darespectivaalforria–emboraosvaloresvariembastantes,4$000,6$000e10$00061–ou,então,sãovaloresquesedestinamaseraplicadosnacelebraçãodemissasporalmadodono62,afavordacriaçãodeórfãos63,emobraspiasounaaquisiçãodedeterminadoparamento64.

Emsuma,osobstáculosàliberdadedefinitivasãomuitos.Eseváriosestudosnosmostramquenãoseriaincomumoincumprimentodavontadedostestadorespelos herdeiros, tal não acontecia apenas por questões de propriedade, mastambémporqueaatituderelativaàlibertaçãodosescravostinhaentendimentosdiversos65.

Para os Açores apresentemos dois exemplos extremos e ilustrativos dasituação. Simão Pires alforria os seus escravos porque, como diz, eles farão como eu espero que farão bem66.JáJoanaCorteReal,filhaeirmãdoscapitãesdeAngra,declara-secontraalibertaçãodosseus,pelarazãodequeuem a ser ladrões e ter outros uicios com que os emforquem67.

Defacto,oresultadodaalforrianãoésucessogarantidoepodeser,demasiadasvezes,umaformadevidagravosamentedificultada68.Aliás,nãosóasexpressões

60 A.C.deC.M.Saunders,– História social dos escravos e libertos…,pp.101,107,112-113epassim.

61 Respectivamente,BPARAh.Paroquiais:TSCP,lº1,fl.171vº;CIM:MP,fl.28vº(1547);Judiciais:AAAh,mç.146,n.º4,fls.3,12e13vº.

62 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.444,n.º8,fls.9-9vº.63 BPARAh.Monásticos:SFA,fl.116vº.64 BPARAh.Paroquiais:TSCP,lº1,fl.171vº(1545).65 ParaaMadeira, sebemmaiscombaseemdocumentaçãoposterior,videAlbertoVieira–os

AlbertoVieira–os escravos no arquipélago da madeira. séculos XV a XViii.Funchal:SecretariaRegionaldoTurismo,CulturaeEmigração/CentrodeEstudosdehistóriadoAtlântico,1991,pp.180-182.

66 BPARAh.CIM:MP.fl.34.67 BPARAh.Monásticos:SFA,fl.4.68 Sobreasdificuldadesdeintegraçãodoliberto,emPortugal,cf.A.C.deC.M.Saunders–História

social dos escravos e libertos…,pp.192-198.Paraoestatutodoliberto,entreescravoehomem

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 43

que citámos o evidenciam à saciedade, como muitas outras admoestações ecuidados dos testadores o expressam.Apenas mais dois exemplos.Beatriz dehorta, segundamulhereviúvade JoãodeTeiveoVelho, em1539determinaqueseusescravossejamforros,pormortedofilho,easescravas,pormortedafilha.Mas,seestasentãovivessempublicamenteumasituaçãoquedesignadepeccado,ofilhoteriaautoridadeparaassujeitar,dando-lhescasamentoou uida per que se nam perquam69.quanto aos escravos, omesmopoder teria a filhaporque,diziaatestadora,quero que uivão bem cada hum a seu officio e estadoparase nam emfforquarem pella[s] justiças70.

EseéinvocadaaviúvadeJoãodeTeive,tambémomesmosepodefazeremrelaçãoaPedroCotadeMalha,queaseuslibertosrecomendaque sempre uiuam bem e debajxo de todo o temor de nosso senhor e da manejra que eu os criej e doutrinej71 ou então a Afonso Anes de Nossa Senhora da Graça,e mulher, que determinam sustento dos seus pela própria fortuna, no caso dedoençae incapacidade,eparaqueemnenhumacondiçãovenhama recorreràMisericórdia72.

Ouseja,mendicidade,prostituição,ociosidade,crimeemuita,muitapobrezaque alguns até registosdeóbito invocam73, são cenáriospossíveisde futuro econstituemformasdevidatrilhadaspormuitosalforriados.

OprópriosucessodeBrancaGonçalves,comqueseiniciaestaapresentação,nãodeixadesermanchadopela“máreputação”,endividamentoeproblemasnajustiçadeumdosfilhosedogenro.Excluídaestasituaçãoconcreta,confirmamostambémos riscosdaalforriapelos receios e cuidadosdealgunsalforriadores.Estes são motivados por atitudes e formas de pensar que fazem incidir asresponsabilidadessobreospróprioslibertos,enuncanosantigosproprietáriosounaincapacidadedasociedade,verdadeiramente,osassimilar.Etentandoevitaro cenáriomaisnegativo,oquemostraumcerto sentidode responsabilização,alguns amos legam-lhes bens que podem ser constituídos por roupa74, trigo75,

livre,enocontextogeográficoesocialdasilhasCanárias,remeta-separaoestudodeManuelLoboCabrera–los libertos en la sociedad Canaria del siglo XVi.Madrid/Tenerife:ConsejoSuperiordeInvestigacionesCientificas/InstitutodeEstudiosCanarios,1983,pp.9ess.

69 BPARAh.Judicias:AAAh,mç.87,n.º2,fl.252.70 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.87,n.º2,fl.252vº.71 BPARPD.FEC:MCMCC,vol.VII,n.º198.72 BPARAh.CIM:MP,fl.109.73 BPARPD.Paroquiais:RegistodeóbitosdeNossaSenhoradaEstrela,Liv.2,fl.28vº,50vº,76vº,

114vº,165vº.74 BPARAh.CIM:MP,fl.93(1534);ThSEA,fl.209vº(1534);Famílias:BCB,mç.1,n.º6,fls.

3-3vº(1537);dinheiroparaadquirirumvestido,5$000:Monásticos:SFA,fls.56-56vº(Publ.porPierluigiBragaglia– lucas e os Cacenas…,p.52);Judiciais:AAAh,mç.6,n.º2,fl.25(1547);CIM:MP,fls.38vº-39(1548);MP,fl.109(1550);ThSEA,fl.177vº(1552).

75 Umsacodetrigoeroupa:BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.6,n.º2,fl.25(1547);umsacodetrigoeoutrosbens:CIM:MP,fls.38vº-39(1548).

RUTEDIASGREGóRIO44

alfaiasdomésticas76e,quandoosdonossãomaismagnânimes77,atécasasemquevivamatéfalecerem78,rendimentosvitalíciosdetrigo79,alfaiasagrícolas80–pera com icco [sic] comessar a ganhar uida81 –,gado82,somasdedinheiroquepodemserconsideráveis83,casamentoe,até,dinheiroparacomprarumaescrava84.Emsuma,haviaquelhesdarabertura de vida,comoregistavaAntóniodeEspínoladaGraciosa,norespectivotestamento85.

Semdúvidaque tal dotaçãopoderia fazer adiferença,principalmentenoquadrodanãoespecializaçãonotrabalho86edocrescendopopulacionalqueseverificouaolongodoséculoXVI.

quando se fala de Branca Gonçalves, Marçal Álvares,António Rodriguese aindaoutroqueagora importa relevar,ManueldeVilhegas–umhomemcujaprimeira documentação que se lhe refere nada fazia indiciar a sua condição dealforriado-todosdetentoresdecasa,pequenasterraserendimentos,está-secertodosucessodeintegração.quandoaconfrontaçãosefazcomoutroshomensemulheresditospreto/a,mouro,mourinho,baço/aemulato,gentelivrequeconstróigranéis87,

76 BPARAh.Famílias:BCB,mç.1,n.º6,fls.3-3vº(1537);CIM:MP,fls.38vº-39(1548).77 Ouquandooslaçoscomoescravo/aerammaisprofundos.quedizerdeSimãoPiresqueasua

escravaAndresaeàrespectivafilha,Iria,determinaportestamento,de1554:queherdemtodoomóveldecasa,comexcepçãodoouroedaprata;queIriasejadotadaemcasamentocom10$000,mais o referido móvel; que ambas sejam suas “merceeiras” enquanto vivas forem, lograndoumacasaeummoiodetrigo,bomeenxuto,recebidoemcadaverão.BPARAh.CIM:MP,fls.33vº-34.

78 BPARAh.Famílias:BCB,mç.1,n.º6,fls.3-3vº(1537);CIM:MP,fl.109(1550).79 BPARAh.Judiciais:PRC,fl.95(1534);BPARPD.FEC:MCMCC,vol.III,fl.6vº(1547).80 Umajuntadeboiscomcarro,cangaetamoeiro:BPARAh.CIM:MP,fl.44(1534).81 Dois novilhos e o carro aparelhado, se bem que na condição de, durante 5 anos, dar 1$000

por cada ano à sobrinha do alforriador. BPARPD. FEC: MCMCC, vol. VII, n.º 198, fl. 8(1559).

82 Videnotaanterior.83 A quantia de 3$000: BPARAh. CIM: MP, fl. 93 (1534); 1$000: ThSEA, fl. 209vº (1534);

10$000:Monásticos:SFA,fls.56-56vº(Publ.porPierluigiBragaglia– lucas e os Cacenas…,p.52);4$000:CIM:ThSEA,fl.247vº(1545);2$000paraajudadarespectivaalforria:MP,fl.28vº(1547);12$000paradoteemcasamento:MP,fl.109(1550).

84 BPARAh.Monásticos:SFA,fls.56-56vº(Publ.porPierluigiBragaglia– lucas e os Cacenas…,p.52).

85 BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.248,n.º8,fl.9vº.86 Ou melhor, no quadro do não exercício de uma actividade profissional especializada e mais

lucrativa.Cf.A.C.deC.M.Saunders–História social dos escravos e libertos…,p.192.Dequalquermodo,em1554,DomingosFernandes,homem preto,édadoporcarpinteiro.Videnotainfra.

87 DomingosFernandes,homem preto, referidoporPeroAnesdoCantoem1554.Cf.RuteDiasGregório–pero anes do Canto: um homem e um património.PontaDelgada:InstitutoCulturaldePontaDelgada,2001,p.88.

AFRICANOSNOSAÇORES:INFORMESSOBREUMAPRESENÇAqUINhENTISTA 45

recolheupastel88,negoceiavinhos89,testemunhaescrituras90eusufruidoestatutodecriado91,sabe-sequeestesconseguiramconstruirumavida,naaparência,etantoquantosepodecomprovar–porqueesta tambéméuma imagem- igualà dos demais seus contemporâneos livres, de estado e condição económicaidênticos.Depoisévertrêsdelestestar,comaspreocupaçõesreligiosasefúnebresmaiscomuns92,legandoparaacelebraçãodemissasperpétuaseobraspias93,eprescrevendoqueosbensnuncasevendam94.

Noextremooposto a estes casospode-se ainda invocaro escravo Joane,vítimadeagressãoinvoluntáriadodono(obacharelPerodeLinhares),quandoemplenanoiteambosprotegiamacriaçãodeporcosdoataquedecãesvadios95emaisdramática,ainda,ajáreferidaaventurade2escravosdeNunoCardoso.Na tentativade fugaqueos levoupara a serra, foramencontrados emestadodebilitadoquinzediasdepoiseaindarecebidoscomcastigoscorporais.Vítimado látegoumveioafalecer, razãopelaqualodonoporfioueconseguiuobterperdãorégio96.

88 AntónioPireso mourinho.Cf.BPARAh.Judiciais:PRC,fl.219.89 AndréRodriguesmulato, que teveosditosnegócioscomVascoÁlvares,morador emAngra,

vinhosqueforampagosnoTopo,S.Jorge.Cf.BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.394,n.º1,fl.7.90 Belchior de Sousa, homem basso, testemunha testamento deGonçaloÁlvares Pamplona, nos

Altares,em1547.Cf.BPARAh.Judiciais:RV,lº9,reg.23,fl.61;AntónioMartins,homem baço,em1555testemunhaaberturadotestamentodeAfonsoLopes,escrivãodosórfãosnaPraia.Cf.BPARAh.Judiciais:AAAh,mç.23,n.º11,fl.26vº.

91 CriadadePedroGonçalves,vigáriovelhodeAgualva,eraIsabela preta,em1547.Cf.TESVN,p.490.

92 Marçal Álvares, homem preto que foy d’eytor alluarez homem, em 1551 determina e missasrezadaseumacantada,aoenterramento,ofertadascom2alqueiresdetrigo,seiscanadasdevinhoeumadúziadepeixe.Omesmomandacelebrarpormêseano.BrancaGonçalves,mulherpreta,escravaquefoideJoãoGonçalvespiloto,em1556determinaexéquiascomoacompanhamentodabandeiradaMisericórdiaeduasmissasrezadaseofertadas.Cf.,respectivamente,TESVN,pp.479-481eBPARAh.Judiciais:PRC,fl.15vº.Vide,também,notainfra.

93 Em1551,1552e1553,GasparValadão,testamenteiro,quitavaManuelFernandes,homem baço,doaluguerdascasasemquevivia,ecujorendimentoseaplicavaemmissasporalmadeCatarinaMartins,molher preta. Cf.BPARAh:Judiciais:AAAh,mç.82,n.º9,fls.1-3;MarçalÁlvaresmandacelebrar(1551)anualeperpetuamentetrêsmissasrezadas;BrancaGonçalvesdetermina3missasrezadaseofertadas,perpétuas,pordiadeFinados.Cf.,respectivamente,TESVN,pp.479-481eBPARAh.Judiciais:PRC,fls.15vºess.

94 Explicitamente no testamento de Branca Gonçalves, mas muito naturalmente a determinaçãorepetir-se-ianoscasosdeCatarinaMartinseMarçalÁlvares.Videnota supra.Cf.BPARAh.Judiciais:PRC,fl.21vº.

95 TT.ChancelariadeD.Manuel,liv.46,doc.175,fl.63vº.96 Se o rei lhe perdoou a culpa que teve na morte do escravo, a verdade é que o dono não

deixou de insistir e justificar a morte do mesmo pela água sobeja que o mesmo bebera pormão de outros escravos, pouco adequada ao estado de fraqueza que se encontrava quandotrazido de novo a casa. Torre do Tombo [TT]. Chancelaria de D. Manuel, lº 45, doc. 440,fl.115vº.

RUTEDIASGREGóRIO46

Nestesextremos,pois,entreumaduracondiçãodesujeiçãoeapossibilidadedeafirmaçãonacondiçãodealforriados,umaplêiadedecondições,estatutosematizespoderiaocorrer.

Desvendarosprocessosdedefiniçãoecomposiçãodogrupohumanoinicialdas ilhas, nos quais interferiram elementos étnicos e culturais compósitos97,uns claramente mais predominantes do que outros, tornou-se um dos nossosobjectos de estudo. Esclarecer os termos da presença destes grupos humanosminoritários,relevarasuaparticipaçãonacondiçãodepovoadoreseimigrantesforçados, apreender as suas condiçõesdevida, osmodos como seviame eravistoscontinuamaconstituirtemáticasdeestudoaliciantes.

Aatestá-lo,ecomomotivodeestudoaconcretizarnofuturo, ficaaquiaestátuaembasaltodopretodotanqueconventualdeSãoFrancisco,emAngra– imagemqueémotemotedoprojectosobreescravose libertosnosAçores98–eprovavelmentedoséculoXVII/iníciosdoXVIII,emquefeiçõesecabelorepresentativos da África subsaariana se conjugam com o cocar de tribosameríndias99.Narelaçãocomooutropodemosconstatar,eapesardetudo,comoconfusaseexóticasimagensdooutronãosedeixoudecriarnosAçoresfaceàdiferença.

Figura 1:FonteouTanquedoPreto,Angradoheroísmo(ilhaTerceira).

97 Cf.ArturTeodorodeMatos– povoamento e Colonização dos açores.InLuísdeAlbuquerque(dir.)–portugal no mundo.Lisboa:PublicaçõesAlfa,1989,vol.I,p.188.

98 ProjectofinanciadopelaDirecçãoRegionaldeCiência,TecnologiaeComunicações(Açores),entre 2006 e 2009, e que continua a permitir a construção de novas conclusões.Vide http://escravoselibertos.wordpress.com/.

99 Isto, apesar e no quadro dos estereótipos nas representações dos africanos. Cf. Isabel Castrohenriques–os pilares da diferença: relações portugal - África, séculos XV-XX,comumarecolhadeimagenscomentadas,muitosugestivas,àspp.469-484.

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REPRESENTAÇõESDEÁFRICANAIMPRENSAAÇORIANA(MICAELENSE)

DEFINAISDOSÉCULOXIX(1880-1900)

susana serpa silva*

Introdução

Nãoobstantea relevânciado“Terceiro ImpérioPortuguês”,numcenáriodecrescentesdisputasinternacionaisemtornodocontinenteafricano1,poderiapensar-seque, em finais deoitocentos, as referências aÁfricanaspáginasdaimprensa micaelense fossem pouco significativas, uma vez que os açorianosviviamde“costasvoltadas”paraoUltramarportuguês,comosecomprova,aliás,pelasopções tomadasquantoaosdestinosdos intensos fluxosemigratóriosdeentão2. Todavia, ainda que o avultado número de periódicos existentes tenhacondicionado e obrigado a limitar a nossa pesquisa, podemos afirmar que asquestões africanas não estavamarredadas dos interesses dos jornalistas e, porinerência,dopúblicoleitorinsular,apesardemuitorestrito.

Acontece, obviamente, que os assuntos locais e os de política nacionalsobressaíamentreamultiplicidadedetemáticasaqueosjornaisnãoeramalheios

* ChAM (Centro de história de Além-Mar), Faculdade de Ciências Sociais e humanas,UniversidadeNovadeLisboaeUniversidadedosAçores.

1 Veja-se,porexemplo,ValentimAlexandre,“OImpérioAfricano(séculosXIX-XX).As linhasgerais”,inValentimAlexandre,coord.,o império africano: séculos XiX e XX,Lisboa,Colibri,2000,pp.11-28ouGervaseClarence-Smith,o Terceiro império português (1825-1975),Lisboa,Teorema,1990(ed.original:1985).

2 Aemigraçãoaçoriana,aolongodoséculoXIX,fez-sepreferencialmente,emtermosgeraiseporordemcronológica,comdestinoaoBrasil,havaíeEUA.Cf.SacuntaladeMiranda,a emigração portuguesa e o atlântico, 1870-1930,Lisboa,EdiçõesSalamandra,1999.

SUSANASERPASILVA48

noseuafãdeinformarecultivar.Mas,seeramfrequentesnotíciasrelativasaoestrangeiro – comdestaquepara aEuropa –, também surgiamaquelas que sedebruçavamsobreasprovínciasultramarinasouapolíticacolonial.

Notíciasavulsas,naesteiradosfactosconjunturaisdecorrentesdapolíticainternacional,curiosidadesounotassobreconflitosdesencadeadosentreeuropeuseafricanos3,pequenasrubricasespecíficas4,algumascrónicasouestudospontilhamaimprensainsular,podendosalientar-seatéumfolhetimintitulado“Aexploraçãoportuguesa emÁfrica”,dadoaoprelo entre1880e1881,porFranciscoMariaSupico, n’a persuasão. Vindo a propósito, numa época de emergente corridaimperialistaaterrasafricanas,noiníciodasegundapartedomesmopodialer-se:

“AÁfricaviráaserpoisnofuturo,umempóriodecivilizaçãoederiqueza.TodasasnaçõesdaEuropalançamosolhossobreaquelecontinente,trêsvezesmaiordoqueonosso,evintevezesmaisrico,queumaimperdoávelincúriatemabandonadoatéhojeaosselvagens”5.

Destaca-se,assim,osentimentodequeeranecessárioinvestirnascolóniasultramarinas,comvistaacimentaraposiçãoportuguesaeafomentarodevidodesenvolvimento propiciador de lucros para a nação. Acreditava-se que osnegros,aptosparaotrabalhodaagriculturaedaindústria,careciamapenasdeinstruçãoedecontroloparaproduzirememlargaescala.Porisso,nageneralidade,a imprensa não se coibia de tomar uma posição de vivo patriotismo semprequeaintegridadeeasoberanianacionaiserampostasemcausa,cientes,comoestavam,osredactoresdaimportânciaqueascolóniasassumiamparaPortugal.Nestas casos, a notícia avultava na primeira página, fazendo manchete, comumsentidocríticomaisacutilante,senosreportarmos,obviamente,àimprensarepublicana.

Era,acimade tudo,nopalcodadiplomaciaedas relações internacionaisqueaspossessõesportuguesasemÁfricaalcançavamconsiderávelprotagonismoe significado, especialmente nos finais de oitocentos, por força da conjunturapolítico-económicaeuropeia,ondeaemergênciadoneo-colonialismosefezsentirdeformaavassaladoraporpartedaspotenciaseuropeias,commanifestoprejuízo

3 Em1880,apareceadescriçãodosviolentosconfrontosentreosindígenasdeBatanga,naÁfricaOcidental,eumnavioinglês,nasequênciadoraptoecativeirodeumsúbditodeSuaMajestade.o açoriano oriental,n.º2.355,29deMaiode1880.Noanoseguinte,pequenosrelatosdaguerradosBoers contra os ingleses aparecem tambémna imprensa local, sob o título “questões naÁfrica”eigualmentea“questãodeTunis”éreportadaporestarcorrelacionadacominteressesfranceseseitalianosemArgel.o açoriano oriental,n.º2.395,5deMarçode1881en.º2.404,7deMaiode1881.

4 Nosanos80operiódicoa persuasãoincluía,naspáginascentrais,umarubricaintitulada“CoisasAfricanas”ondeerampublicadascartasenotíciasdeLuanda.

5 Folhetim,a persuasão,n.º998,2deMarçode1881.

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paraPortugal.Osapelosàcriaçãode“novosBrasis”emÁfricaeo sonhodeampliarodomínioportuguêsnasregiõescentraisdestecontinentefoirapidamenteaniquilado pelas fragilidades militares nacionais em relação às soberaniaseuropeiasepelasdificuldadesdepenetraçãono interior,operandoapartirdosarquipélagosdeCaboVerdeeS.ToméePríncipe,contrapoderososadversáriosafricanos6.Porconsequência,delimitamosonossobreveestudoprecisamenteàsdécadasde80e90,deoitocentos,nasquaissobrelevaramrazõesdefundoparaque,mesmonaimprensainsular,fossemabordadosassuntosafricanos.Ademais,interessou-nostambémverificarquaisasprincipaistemáticasemtornodeÁfricaabordadaspelosperiódicosdeentão.Assim,alémdasquestõesdeforopolíticoediplomático,deparamoscomoutrasdecarizsocial,humanitárioeatécultural.

África na imprensa micaelense de finais de oitocentos

1. Uma das problemáticas em relevo, nos inícios dos anos 80, prendia-se como crescente fenómeno emigratório insular que teimava emprivilegiarasAméricas, em detrimento dos destinos africanos. Neste desiderato, algunsperiódicos passaram a defender a urgente criação de condições, na Áfricaportuguesa,comvistaacanalizarparaláosmovimentosmigratóriosinstigadospeloagravamentodacriseeporalgunsanúnciospublicitários.Porseuturno,aJuntaGeraldoDistritodePontaDelgadadefendiaamesmatese,considerandoum desperdício não utilizar em benefício nacional toda a força braçal quedemandava outras paragens, concorrendo para o desenvolvimento de paísesestrangeiros.Porisso,afigurava-sefundamentalfacilitarosmeiosdetransporte,comescalanasilhasecomdestinoàsregiõesmaissalubresdosnossosdomíniosafricanos7.

Jáaleide28deMarçode1877autorizaraosgovernosadespenderemassomasnecessáriasparatransportarparaaspossessõesdeÁfricatodososemigrantesqueparaláquisessemir,eisto,noseguimentododecretode30deDezembrode1852quemandoucriarnestasprovíncias,apartirdostributosaduaneiros,um“fundo especial de colonização” que, todavia, não chegara a ser devidamenteimplementado.Faceaestasituação,oprogressistao Correio micaelensetrouxeapúblicoumconjuntodeartigosdefundointitulados“AEmigraçãoparaÁfrica”,pelosquaisnãosósalientavaaimportânciadacolonizaçãoafricana,destacandoocasoparticulardeAngola,comoseserviadotemaparafazeroposiçãopolítica8.Assimapelava:

6 Cf.GervaseClarence-Smith,o Terceiro império..., ob. cit.,pp.10-11.7 Cf.SusanaSerpaSilva,Violência, desvio e exclusão na sociedade micaelense oitocentista, 1842-

1910,PontaDelgada,UniversidadedosAçores,2006, (tesededoutoramentopolicop.),vol. I,p.170.

8 “AEmigraçãoparaÁfrica”,o Correio micaelense,n.º117,22deOutubrode1880;“AEmigraçãoparaÁfrica-V”,o Correio micaelense,n.º124,10deDezembrode1880.

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“Unam-senestasantacruzada,aumtempohumanitáriaeeconómica,todosos que, não podendo evitar essa lei social da emigração, devem envidaresforçosparaaencaminharracionalmentesegundoospreceitosdaciênciaeasimposiçõesdafilantropia”9.

Poroutrolado,lançou-setambémomesmoperiódiconumacampanhadedescredibilizaçãodaemigraçãoparaaAméricadoSul,ondeoBrasileradestinopreferencial dos açorianos. Desemprego, falecimentos e privações de toda aespéciepassaramaserdivulgadoscomoelementosdissuasoresdestascorrentesemigratórias.OdestinoÁfricaeoseuengrandecimentoera,paraosrespectivosredactores, não só um objectivo de Portugal, mas de toda a Europa culta,constituindoaalternativa idealparaaemigraçãoaçoriana.Asdescobertasdosexploradoresnãodeviamrepresentarapenasvictóriascientíficas,masoensejoeamotivaçãodosemigrantes10,demodoatirarodevidopartidodaspotencialidadesatéentãonegligenciadas.EmNovembrode1880,oViscondedeS.Januário,nosentido de facilitar a emigração paraÁfrica, decretou nova portaria favorávelaesteramodoserviçocolonialaqueaimprensamicaelensedeuprontoeco11.Enquantoadvogadodestacausa,o Correio micaelenseconsideravaprestarumaltoserviçoàpátriae tambémàdefesados futuros interessesdosaçorianos12.Contudo,nosiníciosdoséculoXX,continuavamareconhecerasautoridadescivisque,debaldealgunsesforçosnestesentido,osemigrantesmicaelensespersistiamna recusa das possessões africanas, como destino de emigração, preferindo oel doradonorte-americano13.

Emcontrapartida,ainsistênciadealgunsjornaislocaisnacolonizaçãodeÁfricaenoenviodeemigrantesparaaquelesterritórios,contrasta,vivamente,comareacçãomanifestada,em1889,naprimeirapáginadea persuasão,faceà notícia avançada pela imprensa da horta, de que seriam contratados 100trabalhadores negros, oriundos deCaboVerde, para trabalharemnas obras dadocafaialense.Criticandoofactodeasobraspúblicas(alimentadaspelosrivaisprogressistas) já não fomentarem emprego, não obstando, por esse modo, àvolumosaemigraçãoquesefaziasentir,oeditorialescritoporummaçoncultoevanguardista,acrescentaemtom,quehoje,nomínimo,diríamosxenófobo:

“Epararematedestamisériaaquenosreduziuestebomgovernoprogressistaqueaítemostido,vemagoraaimportaçãodenegrosafricanosparajornaleirosnadocadoFaial!AmanhãosempreiteirosdeS.Miguelfazemomesmo,oumandamvir japonesesouchinesespara se serviremcomeles!Equandoo

9 “AEmigraçãoparaÁfrica”,o Correio micaelense,n.º117,22deOutubrode1880.10 “AEmigraçãoparaÁfrica-II”,o Correio micaelense,n.º119,5deNovembrode1880.11 “AEmigraçãoparaÁfrica-V”,o Correio micaelense,n.º124,10deDezembrode1880.12 “AEmigraçãoparaÁfrica-III”,o Correio micaelense,n.º120,12deNovembrode1880.13 Cf.SusanaSerpaSilva,Violência, desvio e exclusão..., ob. cit.,vol.I,p.171.

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Brasilnãoquernegros,quandoàsraçasasiáticastodososestadosdaEuropaedaAméricaestãoproibindoaentrada,peloqueelastêmdenocivoetnográficaeeconomicamente,équeoarquipélagoaçorianovaiserexpostoamaisestacalamidade”14.

Parecia irónico, àquele redactor, que a sangria de gentes açorianas paralongínquasparagensestrangeirassetraduzissenavindadeafricanosparaosAçores,provocandoumverdadeiro choque étnico.Osmitos raciais e as consequentesformas de descriminação avolumavam-se nesta época, pois “as doutrinasantroporraciaisdoséc.XVIIIeXIXnãoselimitamaproporasupremaciadosarianosoudosteutõesmas,adeestabelecerpreconceitosraciaiscontraamaioriadas diferenças étnico-antropológicas”15. Ademais, os preconceitos contra osnegrossobressaíam,comtodaaprimazia,suportadosporumabaseeconómica,jurídica,mentalereligiosa.

África assumia assim o perfil de continente colonizável, passível deexploração, mas nunca de território colonizador ou povoador. Pelo mesmodiapasãoafinavaosatíricojornaldemocratarepublicanoque,emnotíciademenordestaque, intitulada depreciativamente “Pretalhada para os Açores”, tambémcriticavaamesmamedida,aindaquepormotivosdenaturezapolítica.Sejásesentiaodesempregoentreas“classesoperárias”–quetantomotivavaaemigração– a vinda de mão-de-obra cabo-verdiana só iria agravar as circunstâncias,parecendoqueosprogressistassemostravam“apostadosemreduziresteformosoarquipélagoaomaisdeplorávelestado”16.

2.Assuntoquemereceugrandedestaqueporpartedaimprensamicaelensefoi, sem dúvida, a travessia de África pelos exploradores Roberto Ivens ehermenegildoCapelo.Ivens,filhodaterra,concitou,em1885,amaiscalorosahomenagem, por iniciativa dos sócios correspondentes da Sociedade deGeografiadeLisboa,residentesemPontaDelgada17.Emconviteabertoatodososconcidadãos,osreferidossócios–dosquaissedestacavamErnestodoCanto,CarlosGomesMachadoeFranciscoMariaSupico–exortavamauma“solenemanifestação dos sentimentos de admiração e entusiasmo a favor do ilustre ecorajosoexploradordeÁfrica”18.Paraoefeito,realizou-seumaconcorridareunião

14 “Importaçãodegentenegra”,a persuasão,n.º1.419,27deMarçode1889.15 AntóniodeSousaLara,Colonização moderna e descolonização (sumários para o estudo da sua

história),Lisboa,InstitutoSuperiordeciênciasSociaisePolíticas,2000,p.27.16 a Ventosa sarjada,n.º440,4deMaiode1889.17 De ummodo geral, a exploração do continente africano, nomeadamente as viagens de Serpa

Pinto, mereceram algum destaque da imprensa local. Por exemplo: “A exploração africana”,artigode1ªpáginadodiário dos açores,n.º1.950,2deJunhode1881.

18 Ossóciossignatárioseram:ErnestodoCanto,Caetanod’AndradeAlbuquerque,FranciscoMariaSupico,CondedaSilvã,AugustoCésarSupico,CarlosMariaGomesMachado,BarãodaFonte

SUSANASERPASILVA52

nosPaçosdoConcelhoparadelinearoprogramafestivo,abrindo-se,emváriosjornais, uma subscrição para recolha de fundos19. Do referido programa faziaparteaorganizaçãodeumgrandiosocortejocívico(combandasfilarmónicas,carrostriunfais,autoridadesegrupossócio-profissionais),acelebraçãodeumasessãosolenenaCâmaraMunicipal,bemcomoumsarauteatraleacolocaçãodeummonumentocomemorativodaauspiciosatravessia,encimadopelobustodo explorador, a erguer na avenida lateral direita da projectada Alameda daExpediçãoLiberal20.

Apesar do mau tempo, os festejos ocorreram com muito público, numaautêntica manifestação da simbiose entre o regozijo local pelos feitos de umheróicoconterrâneoeoorgulhonacionalpelosaltosserviçosprestadosaPortugalem terras africanas.quase uma década depois destas celebrações, a imprensamicaelense continuava a exaltar – por via da correspondência com outrosperiódicos nacionais – a coragem, já não dos exploradores, mas dos oficiaisportugueses que “deixaramvoluntariamente o seu país para irem expor a suavidaederramaroseusanguenaslutascontraastribosnãoavassaladas,quenosimped[iam]apassagematravésdaÁfrica”21.

3.Desde1885queoréguloGungunhana,porexemplo,setornaraalvodaatençãodosjornalistasmicaelenses.Entreeles,FranciscoMariaSupico.Apardaalusãoaos“heróisdodia”,istoé,CapeloeIvens,umaminuciosadescriçãodavisitaamigável,aLisboa,dosemissáriosdoguerreiroafricanopodeencontrar--se nas páginas centrais de a persuasão22. À descrição dos ocidentalizadosemissários“trajandojaquetãoecalçadeflanelaazul,camisadechitaelençonopescoço,ecalçadoscomunsbotinsque(...)malpod[iam]aturar”,comacaraeacabeçarapadas,comumapequenaporçãodecarapinhaencimadaporumarodeladeresina,distintivodeser grande,acresciatodooespíritodecuriosidademediantetãoexóticasdiferenças.Salientava-sequeambosseriamrecebidospeloreiemtrajesguerreirosqueconstavamde“umsaiotedepeles,enfeitesdecrinaparaosbraçosepernas,turbantesdepenas,azagaiaeescudodecourodeboi”.Felizmente–dizemosnós–passeavamosforasteirosdecarruagem,poissempre

Bela(Jacinto),VicenteMachadodeFariaeMaia,JoãoBernardinodeSenaehenriquedasNeves.“RobertoIvens”,o açoriano oriental,n.º2.634,10deOutubrode1885.Sobreoexploradorafricano, veja-se:Miguel Soares da Silva, roberto ivens: o homem e a vida, PontaDelgada,EdiçãodoAutor,1995.

19 “RobertoIvens”,o açoriano oriental,n.º2.635,17deOutubrode1885.20 o açoriano oriental,n.º2.637,31deOutubrode1885.ObustodeRobertoIvensacabouporser

colocadonaAvenidacomomesmonome.21 “AprovínciadeAngolanassuasrelaçõescomametrópole”,o açoriano oriental,n.º3.107,10

deNovembrode1894.22 a persuasão,n.º1.238,7deOutubrode1885.

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quesaiamàruaouentravamnumaloja,aglomerava-semuitopovoqueosolhavaincréduloeatónito23.

Cercadeumanodepois,em1886,aguerraemMoçambiqueerajánoticiadanaimprensamicaelense.Emtermospoucolisonjeirosfalava-seentãodosataquesdoréguloGungunhana,“àfrentede30.000pretos”,masqueogovernadordaprovíncia,AugustoCastilhoconseguiradesbaratar,apesardadesvantagemdosseus16.000“vatuas”.Noentanto,a instabilidadepersistiaobrigandoaoenviodepraçasearmamento24,quedecorreuaolongodaprimeirametadedadécadade90.Amiúde,surgiamnotíciassobreoembarquedetropasparaMoçambique– levando a considerar-se África como “uma escola proveitosa para a nossaoficialidadeeparaosnossos soldados”,porvezesexcedentáriosemrelaçãoàexiguidademetropolitana25.

quando as vitórias dos militares lusitanos se tornaram significativas naslutas contra o afamado régulo26, ganharam lugar de destaque nas páginas dosjornais, sobressaindo “relatos minuciosos dos actos heróicos praticados pelasnossasforçasnoúltimoencontrocomapretalhadarebelde”27.AguerracontraMondugaz,filhodeMuzilla,maisconhecidoporGungunhana,equeastropasportuguesaslevaramdevencidaem1895,nãosóvinhacomprovarodestemordosoficiaisesoldadoslusosque–contraosdesígniosmaispessimistas–desalojaramotemidochefedasuaposiçãofortificada,comorestituiuaoPortugalhumilhado,desde1890,ojúbilodavitóriaedaafirmaçãonacionalemterrasdeÁfrica.o açoriano oriental transcreveu, a propósito, o telegrama do rei D. Carlos aoPresidentedoConselho:

“Meucarohintze–hápoucorecebiotelegrama,aqueserefereequemeencheudejubiloportodososmotivos.Felicito-mecomoportuguês,ecomochefedoexército,efelicitoopaíseogovernoporestebrilhantíssimoresultado,obtido pelos nossos heróicos e leais soldados.Agradeço-lhe do coração assuasfelicitações.–Seuamigoverdadeiro–ElRei”28.

23 “EmissáriosemLisboadumréguloafricano”,a persuasão,n.º1.238,7deOutubrode1885.24 “GuerraemMoçambique”,o açoriano oriental,n.º2.691,13deNovembrode1886.25 “AquestãodeLourençoMarques”,a persuasão,n.º1.711,31deOutubrode1894.26 “NoúltimoquarteldoséculoXIX,nasterrasdosuldeMoçambique,entreosriosIncomatie

Zambeze,Gugunhanaimpunha-secomoomaiorpotentadoafricano.EraosenhordoreinodeGaza, tinhamais de uma centena de vassalos e possuía uma enorme riqueza, constituída porouro,marfimerebanhosdegado.Oseuprestígiopolíticoesocialvinha-lheaindadofactodepossuirentre200a300esposas:40viviamjuntodacorteeasrestanteshabitavamnasaldeiascircunvizinhas”.MariadaConceiçãoVilhena,“AsMulheresdoGungunhana”,inarquipélago-História,2ªsérie,UniversidadedosAçores,1999,vol.III,p.407.

27 “AsnossasforçasemLourençoMarques”,o açoriano oriental,n.º3.132,11deMaiode1895.28 “AGuerracontraoGungunhana”,o açoriano oriental,n.º3.161,30deNovembrode1895.

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DafugadeGungunhana,daperdadoseuprestígioàsuacapturaeprisão,depoisdasubmissãoecativeirodeoutroschefestribais,tudofoiretratadonosjornais,comenormeregozijo29.PorCartadeLisboa,de9deJaneirode1896,a persuasãodavaaconheceraosseusleitoresasrecentesnotíciasdeÁfrica:

“UmfactodamaisextraordináriaimportânciaacabadesertelegrafadoparaLisboa–aprisãodocélebrepotentadoafricano,oGungunhanaquedurantetantosanosfoiopesadelodosnossosgovernosequetudofaziarecearqueaindamuitonosdariaquefazersenãolhedeitassemamão”30.

Além do régulo e de seu filho Godide, das suas sete mulheres e do tioMonbungo,foramcapturadosochefeZixaxa(tiodeGungunhana)eassuastrêsesposas31.EstesprisioneirosseguiramviagemparaLisboa,enquantooutros,demenor condição, rumaram a Cabo Verde, após o fuzilamento de guerreiros ecurandeirosrebeldes.Porcoincidência,outalveznão,nachegadaàmetrópole,estavaemcenanoTeatroS.Carlos apeça“Africana”– evocaçãodaepopéiaultramarina portuguesa32. Por fim, seguiram os prisioneiros de guerra para odegredo em Angra do heroísmo, nos Açores, onde, em 1907, Gungunhanafaleceu.Poressaocasião,arevista de manica e sofalaassimoretratou:faleceu“este célebrepotentadovatua,quedurantemaisdeumquartode século foioterrordospovosestabelecidosasuldoZambeze,enomeadamentenoterritórioconcedidoàCompanhiadeMoçambique”33.Aosactosdecrueldadesomaram-seastentativasdepazeacimadetudoasuacompletasubmissãoaquandodapartidaparaailhaTerceira.Aíviveu:

“quasesempreapreensivoetriste,monologandoàsvezes,passeandoabsortonãoraro,via-se,notava-se,sentia-se,quenaalmadaquelenegro,outroratãopoderosoeopulento,seerguiaumatempestadequeelemalabafavaeamuitocustoreprimia!Masquemconheceocarácterdosnegroseoseuamoràterraondenasceram,podebemcalcularcomoseriacrucianteeverdadeiramentehorrorosaahoratrágicadaeternaseparação(...)”34.

4.Nãoobstantetersidoabolidaaescravaturaemtodosascolóniasportuguesascom a promulgação do decreto de 23 de Fevereiro de 1869, na sequência demuitas outras leis nesse sentido, a questãoda escravidão, aindaquede formapontual,continuouafigurarnaspáginasdealgumaimprensamicaelense,dado

29 “Guerrad’África”,a persuasão,n.º1.769,11deDezembrode1895.30 “CartadeLisboa”,a persuasão,n.º1.775,22deJaneirode1896.31 Veja-seMariadaConceiçãoVilhena,“AsMulheres...”,ob.cit”,p.408.32 “CartadeLisboa”,a persuasão,n.º1.775,22deJaneirode1896.33 revista manica e sofala,3ªsérie,n.º36,Fevereirode1907,p.136.34 Idem,pp.137-138.

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que,narealidade,eraminúmerasasdificuldadesparaerradicarotráficoilícitoeaspráticasancestraisque,porquestõesdementalidade,eraminquebrantáveisporforçadasleis.

JáoTratadodoZaire,em1884,haviarecolocadoestaquestãoaodeterminarquea InglaterraePortugal secomprometiamaempregar todososmeiosparaextinguiraescravaturanacostaoriental africana,eximindo-seaGrã-Bretanhade exercer qualquer fiscalização no território do Congo, continuando com avigilânciaapenasnascostasdeMoçambique35.

Todavia,comapersistênciadeste flagelocontinuarama levantar-sevozesde que os periódicos locais fizeram eco.A extinção da escravatura, enquantoprincípio moralizador e civilizacional, foi tema de um dos artigos centrais deo recreio das salas, dirigido porAlice Moderno36. Neste periódico que tinhapor ambição a instrução, a moralização e o entretenimento, a “CruzadaAnti--Esclavagista”,redigidaporManuelVicente,foiumanotadealertaparaaurgentenecessidade de combater eficazmente a escravatura “que a despeito da teoriafilosóficadosdireitosabsolutosdohomemedoprincípiodafraternidadehumana,selevantaforteepoderosa”novastocontinenteafricanopara“devastaçãodasraçasautóctones”37.Ora,noséculoXIX,eraporexcelênciadoprogressoedaevolução,tornara-seintolerávelestaprática,contraaqualPortugaljásemovimentara38.

Tambémo açoriano orientaldeudestaqueà“Cruzadacontraaescravatura”,emcolunadaresponsabilidadedomesmoarticulista.Afinal,concorrerparaestaobrahumanitáriasignificavapraticarumbemduplo:alibertaçãodosescravoseaampliaçãodasnossascolónias.Destafeita,alutacontraaexploraçãodemão--de-obraafricanapassavaagorapelocombateaoréguloslocaiscujotronotinhaporpedestal“montõesdeescravosulcerosos”,cujosangueeraservido“emtaçasfumegantesnosfestinssenhoriais”39.Apesardosinsularesestaremdistantesdoshorroresdaescravatura,eraderecentememóriaarepresentaçãododramamãe dos escravos, testemunhodo sofrimento africano e que tantas lágrimas fizeraderramaràsdamasmicaelenses40.

Emsentidaprosadefeiçãopoética,oescravofoitemadeoutroartigodefundodeo açoriano oriental,pelamãodeAlvesMendes.Percorrendoolongo

35 “OTratadodoZaire”,a persuasão,n.º1.156,12deMarçode1884.36 o recreio das salas,n.º1,Novembrode1888.37 TestemunhandoosdiscursosproferidosnoCongressodosCatólicosAlemãesdeFriburgo,Manuel

Vicenteincluía-seentreosdefensoresdaliberdade,darazãoedajustiça,quetinhampordevercombaterasformasdeopressão,sendoumadasmaioresaexercidaentre“senhoreescravo”,ouseja,entrealgozevitima.ManuelVicente,“CruzadaAnti-Esclavagista”,ino recreio das salas,n.º4,Fevereirode1889.

38 ManuelVicente,“CruzadaAnti-Esclavagista”,o recreio das salas,n.º4,Fevereirode1889.39 ManoelVicente,“Cruzadacontraaescravatura”,o açoriano oriental,n.º2.810,23deFevereiro

de1889.40 Idem.

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percursodahistória,marcadopeladistinçãoentreosquenasciamparamandareosquenasciamparaaservidão,consideravaoautorqueumavezchegadooséculodasluzesdarazãoedajustiça,daafirmaçãodaliberdadeedacidadania,embreveseriaderrubada,porcompleto,qualquerformadeescravatura41.Entre,pois,odiscursoidealistaearealidadedosfactos,transcritadoscorrespondentesnacionais ou estrangeiros, a imprensa micaelense entrou, modestamente, nosmeandrosdocombateanti-esclavagista.

Nadécadade90,esporádicaeirregularmente,davacontadaspreocupaçõesemergentesnoscírculosmaisinfluentesdaEuropa,combasenosdepoimentosdeexploradores(comoStanley),contradoisfenómenosquepareciamincontroláveisemterrasafricanas:acaçaaosescravoseacaçaaomarfim.Segundorelatosdaépoca esta segunda cobiça “custa[va] dezvezesmais sangue e lágrimas.Paraapanharem esta mercadoria, tão apreciada na Europa, não há crime diante doqualrecuem:descememcaravanassucessivas(...)saqueandotudo,incendiandotudo,matandopor todosos lados,paraseapoderaremdosdentesdeelefantesrecolhidospelosindígenasnassuascaçadasàqueleanimal”.Aocontráriodacaçaaosescravos,emqueapreocupaçãoeraadepouparvidas,comvistaàexportaçãodemão-de-obrasobretudoparaosreinosotomanos,ondeosnegrossetornavamcarregadores;acaçaaomarfimdesprezavaessasvidas,motivando, seprecisofosse,situaçõesdecompletodespovoamento42.

Poroutrolado,reconhecia-sefrontalmentequeaescravidãoaindaeraumarealidade nas então designadas “província de Angola” e na “grande colóniaafricanadeMoçambique”.Abertaouclandestina,noseiodetribosavassaladase não avassaladas, as práticas de escravatura foram observadas pelo JuizTávora enquanto corregedor nos julgados das comarcas da África Ocidental.Segundo crónica que publicou em o açoriano oriental, fez a comparaçãoentreaescravaturaafricanaenovasformasdeescravidãoprotagonizadaspelosinsulares.“Tem-sefeitoaescravidãoe,faz-seainda,comoentrenós[ilhéus]sefazaemigraçãoclandestina,aocontráriodaemigração legalqueconstituiumdireitoinauferível”.Defensordeumaforterepressãodaemigraçãoclandestinaquetendiaaagravar-se;acreditava,poroutrolado,queaescravidãoiriaacabar,decerto,quandoentrasseoséculoXXesepusesseempráticaoqueeleprópriopropusera,em1875,emcartadirigidaaoMarquêsdeSádaBandeira.Deacordocomestemagistrado,oafricanodeixariadeserescravoquandoseeducasseasuaraça,quandoseimplantasseminstituiçõesdecréditoparagarantiraprosperidadedoNovoMundo;esemultiplicassemasviasdecomunicação,asescolas,liceuseuniversidades,bemcomoapropagandadareligiãocatólica.Contudo,emvésperasdonovoséculo, longeestavaa realidadedecontemplar tais investimentosemterrasdeÁfrica.Algunspassoshaviamsidodadoscomaconstruçãodoinacabado

41 “OEscravo”,o açoriano oriental,n.º2.841,5deOutubrode1889.42 “Stanleyeacaçaaomarfim”,o açoriano oriental,n.º2.873,17deMaiode1890.

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caminhodeferroentreLuandaeAmbacaoucomacriaçãodoBancoNacionalUltramarino,masmuitohaviaaindaporfazer.Porisso“aescravidãofinalmentehá-determinarquandoàignorâncianãosódospoderesdirigentes,masàdaraçapretaseimpuserumaforçainvencível:adacivilização”43.

5. Porfim,masnãoporúltimo,sobrelevavam,naimprensalocal,asquestõespolíticasediplomáticas.

Enquanto o Tratado de Lourenço Marques44 merecia ainda os irónicos eacutilantesreparosdojornalismoinsular,nosiníciosdadécadade80,devidoàsvantajosasconcessõesfeitasaosaliadosingleses,emdetrimentodonossopodercolonial45,aquestãodoZaire46revestiu-sedeparticularinteresseepreocupação,servindomesmoocontinenteafricanodepretextoearmadearremessonasdisputasdepolíticainterna.Nãohaviajornaldacorteoudaprovínciaquenãotangesse“ohinonacionalapropósitodaquestãodoZaire”.Muitosmergulhavamnaaridezda intrigaenanarraçãodavãdiscussãodiplomática,dadoqueasnegociaçõesemtornodaafirmaçãodosdireitosinalienáveisdePortugal,sobreasmargensdoZaireedosterritóriosdeCabindaeMolembo,jásearrastavamhámuitotempo47.Ojornala persuasãochegouapublicarumresumodoTratadodoZaire,celebradoentrePortugaleaInglaterra,ondesedefiniamoslimitesdasoberaniaportuguesanoCongo,ficando,porém,omesmoterritóriolivre“atodasasnaçõesparafinscomerciaisedecolonização.AregiãosituadaentreoZambezeeoCongoestaráfrancaeabertaaocomércioeànavegaçãodetodasasnações”48.

Segundoeditorialdeo açoriano oriental,nãosepodiadeixardeimputarsérias responsabilidades à inércia dos nossos governantes e fraqueza dosdeputados,urgindoquerespeitassemPortugalcomonaçãocolonialdeprimeiraordem.Paraissotínhamosque“empenhartodasasnossasforçasnoarroteamento,na exploração e na colonização dos vastíssimos territórios inexplorados daÁfricaorientaleocidental”49.Aobraeragigantescaenãofaltavamsugestõesde

43 “AprovínciadeAngolanassuasrelaçõescomametrópole”,o açoriano oriental,n.º3.118,2deFevereirode1895.

44 Assinadoa30deMaiode1878.45 “OTratadodeLourençoMarques”,o Correio micaelense,n.º104,23deJulhode1880.Segundo

oTratadodeLourençoMarquesficavamabertoslivrementeaocomércioenavegaçãoinglesestodososportos,ancoradouros,estaleiroseriosdascolóniasportuguesasemÁfrica,ganhando,osingleses,entreoutrasvantagens,odireitodelivrecirculaçãopelosdomíniosportugueses.a persuasão,n.º955,5deMaiode1880en.º957,19deMaiode1880.Narealidade,Portugalnãodispunhademeiosparadesbravarecolonizartamanhosterritóriossemoauxílioouaaliançainglesa.

46 SobreaquestãodoZaireveja-seoscapítulosIVeVdeA.FarinhadeCarvalho,org.,luciano Cordeiro. questões Coloniais,“Documentahistórica”,Lisboa,Vega,1993.

47 a persuasão,n.º1.096,17deJaneirode1883.48 “OTratadodoZaire”,a persuasão,n.º1.156,12deMarçode1884.49 “AquestãodoDia”,o açoriano oriental,n.º2.508,12deMaiode1883.

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investimentoeiniciativas50.Mas,acimadetudoteriadeexistirumapolíticahábil,firmeepragmáticadeformaatornarincontestávelopapeldePortugalenquantonaçãocommaioresaptidõesparaconservar,sobasuaalçada,regiõestropicais51.

O periódico a persuasão fazendo eco das palavras de Pinheiro Chagasinsistia:

“ocuparmo-nos seriamente da África é uma necessidade urgente eindispensável;tornaronossodomínioalicivilizadorebenéficoérespondervitoriosamenteatodasascalúnias,éarredartodasascomplicações,émalogrartodasasesperançasdosquepretendemvalorizaremproveitopróprioosoloquedesbravamos”52.AcomplexaquestãodoZairelevoumesmoàintervençãodaSociedadedeGeografiadeLisboa,atravésdaComissãoNacionalAfricana,enquantoseencontravapendenteanegociaçãodiplomáticaentrePortugaleaInglaterra.Oobjectivofoiodedenunciara“campanhaviolenta”econspirativa“dediversosinteressesilegítimoseobscuros”,comointuito,porumlado,deiludiraopiniãodospovose,poroutro,deimpediroestabelecimentodeumregimedeordemederegularadministraçãoecomércio,porpartedePortugal,naquelaregião53.

Contra as manobras desleais e os interesses ilegítimos de outros paises,PortugalreuniaumavultadonúmerodeargumentosaseufavorparareclamarasoberanianosterritóriosdoZaire:oteresmagadoaescravidãoeotráficonassuaspossessões,contrariando,assim,a“opressãoaventureiradoafricano”;oterabertoÁfricaàexploraçãocultadetodos;oterpromovidoacivilizaçãoeaassimilaçãocristã no continente africano; o ter descoberto e ocupado, antes de qualqueroutropovo,umaboapartedaquelesterritóriosaosquaislevaramocomércioeainstrução54.Seesteeraoauto-retratoportuguês,paraalgunspolíticosbritânicoseraumfactointolerávelqueosvastosterritóriosdoCongopermanecessemsobaalçadadeumpequenoedesprovidopaís,àbeiradabancarrota55.

50 Sugeria-se,entreoutrascoisas: levantarcartas topográficasehidrográficas;escreverahistóriados nossos domínios coloniais, desde o período das descobertas; delimitar os territórios quenosrestavam;participaremtodasasexposiçõescoloniaisimportantes;reorganizaroMinistériodaMarinha,amarinhadeguerraeaadministraçãoultramarina;aumentarosvencimentosdosfuncionários enviados para as colónias; criar uma escola politécnica do Ultramar; protegercompanhias exploradoras a quem se fizessemconcessões territoriais; desenvolver o comérciomarítimoe,porfim,criarumplanodeconduta,baseadonumapolíticaderigorepragmatismo.

51 “AquestãodoDia”,o açoriano oriental,nº2.508,12deMaiode1883.52 “ColóniasAfricanas”,a persuasão,n.º1.163,30deAbrilde1884.53 a questão do Zaire. portugal e a escravatura. Carta da Comissão nacional africana da sociedade

de Geografia de lisboa a todos os institutos e sociedades em relação com esta,Lisboa,CasadaSociedadedeGeographia,1883,p.5.

54 Idem,p.7.55 o açoriano oriental,n.º2.507,5deMaiode1883.

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AtímidaocupaçãoportuguesadamargemesquerdadoZaire,istoé,doreinodoCongo,semdireitosgarantidosquenãoosdapresençahistóricajácontestadaemBerlim,representaria,aindaassim,paraosapoiantesdoPartidoRegenerador,umagrandiosavitória56,poisdesdeoséculoXVIqueosportuguesesexploraramaliminasde cobre e chumbo, fundaramum seminário e igrejas, difundindo alínguamaterna57.

A27deDezembrode1884,paraassinalaro244ªaniversáriodaRestauraçãodaIndependêncianacional,o açoriano orientalnoticiou,naprimeirapágina,como demonstração de vigor e patriotismo, a reunião de vários capitalistasda praça deLisboa, – comdestaque paraAbraãoBensaúde e o visconde daGandarinha–comointuitodefundarumagrandecompanhia,comcapitaldemeiomilhãodelibras,paraoestabelecimentodefeitoriasportuguesasnoZaireeexploraçãodeprodutosafricanos.AfirmaBensaúde&Companhiaera,porsisó,umponderosoexemplodequeocomércio,aindústriaeanavegaçãoerammeios imprescindíveis ao enriquecimento de um país, quer através das suasCasasdeLisboa,deBenguelaedasilhasdeS.MigueledoFaial,quernasuaempresadevaporesparaaÁfrica,MadeiraeAçores,queraindanasindústriascomas fábricas dedestilaçãoda ilhadeS.Miguel e dasLagesdeLisboa ea fábrica de tabacos da Regalia58. Era, pois, com rigozijo que o periódicoaçorianoavançavaestaboanovatãoimportanteparaosinteresseseosnegóciosnacionais.

Em1885,a persuasãoavançavaaconcessãode4.000hectaresdeterrenosincultosemAngolaàcompanhiaBensaúdeparaplantaçãodebatatadoce,nabos,mandiocaebeterraba59.Dezanosdepois,ascrónicasdojuizTávora60,exaltavamaindaoarrojodaCasaBensaúde–aprimeiraCasacomercialdosAçores–porfazer convergir capitais e iniciativa para a África Oriental, beneficiando dadescentralizaçãoautónomaconcedidaàscompanhias61.

Porém, estas breves réstias de esperança rapidamente se esfumaram.Aolongode1890,oultimatumeasrelaçõesentrePortugaleaInglaterraconstituíramofocodetodasasatenções.NaspalavrasdeValentimAlexandree“comoébemsabido,oultimatumprovocouemPortugalumafortereacção,abrindoumacrisenacional que marcou o país, deixando um rasto duradouro na geração que aviveue ficando registadanamemória colectiva comoumahumilhaçãoeumaespoliação”62.

56 “AocupaçãodoZaire”,a persuasão,n.º1.207,4deMarçode1885.57 “ÁfricaPortuguesa”,a persuasão,n.º1.210,25deMarçode1885.58 “OComérciodoZaire”,o açoriano oriental,n.º2.593,27deDezembrode1884.59 “ExploraçõesagrícolasemÁfrica”,a persuasão,n.º1.234,9deSetembrode1885.60 JuizquetambémforacorregedoredesembargadornaprovínciadeAngola.61 “AprovínciadeAngolanassuasrelaçõescomaMetrópole”,o açoriano oriental,n.º3.119,9de

Fevereirode1895.62 ValentimAlexandre,“OImpérioAfricano...”,ob.cit.,p.19.

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As ameaças da Inglaterra sobre Portugal já provinhamde 1887 aquandodosconflitosentreas forçasnacionaiseosultãodeZanzibar63.Todavia,nadase comparouaoofensivodespautério encabeçadoporLordSalisbury.Algumaimprensa reservou lugar de destaque para noticiar, com natural atraso, “estaarrogante insolência e ganância revoltanteda Inglaterra para connosco (...)”64.Mais inadmissívelseafiguravaaatitudebritânicamedianteaclaraposiçãodeinferioridade económica ebélicadePortugal, vítimadeumavelha aliadaqueassaltavabrutalmenteosseus terrenosemÁfrica.Paraalgunsarticulistas,estasituaçãodevia-seàcomplacênciadosportuguesesque,conformecomprovavaahistória,emnadabeneficiaramda“celebraçãodepactoscomosavarospiratasdonorte.Fomossempreexpoliadosemtudoeportudo”porque“sempreaGrã--Bretanhacuidoudeempeceranossaprosperidadeeengrandecimento”.ApesardeodireitoearazãoestaremaoladodePortugal,venciaoargumentodaforçaedaprepotênciaquefeztransbordar–semefeitospráticos–aindignaçãodaalmanacional.Auguravam-setemposperniciososeavultava,cadavezmais,aideia,deque“Portugalnãopodeviversemassuascolónias.SeasroubamemÁfrica,estamosporassimdizerperdidos”65.

A transcrição de algumas notícias estrangeiras veiculadas pela imprensabritânica e francesa também permite descortinar a radical clivagem entre asposições. Enquanto jornais como o standard ou o daily Telegraph declaravamairreversibilidadeeoplenodireitodaposiçãoinglesa,garantindoqueD.Carlosnãopoderiacederàimprudênciadosseusministrose,mais,quenenhumpaísseriacapazdesustentarPortugalcontraaInglaterra;le Figaroela republique Françaisedenunciavam, respectivamente, o pedido da Inglaterra ao Czar para arbitrar oconflito e a sua incredulidade pelo Foreign office ter afrontado o “sentimentonacionalde todoumpovo,pequenoe fraco, éverdade,mas fortepormemóriasgloriosasepordireitossecularesincontestáveis,ouqueelejulgacomotais”66.

A par de pequenas notícias, algumas delas de pouco fundamento, iamsobrelevandoosartigosdecontestaçãoerepulsacontraosbritânicos,sugerindoestratégias de retaliação (bloqueio a importações) e rematados por “Morra aInglaterra!”67.Odecanodojornalismoportuguês,emconformidadecomoseuprogramagizadonosalvoresdaeraliberal,marcouvincadamenteasuaposição,protestando durante vários números, contra “o procedimento brutal da naçãobritânica”68. Mas, na prática, a maioria dos micaelenses quedou-se silenciosa

63 “Tungue”,o açoriano oriental,n.º2.708,12deMarçode1887.64 “NóseaInglaterra”,o açoriano oriental,n.º2.857,25deJaneirode1890.65 “NóseaInglaterra”,o açoriano oriental,n.º2.857,25deJaneirode1890.66 “PortugaleaInglaterra”,Gazeta de notícias,n.º108,19deJaneirode1890.67 ManuelVicente,“AInglaterra”in“NóseaInglaterra”,o açoriano oriental,n.º2.861,22de

Fevereirode1890.68 “Onossolugar”,o açoriano oriental,n.º2.863,8deMarçode1890.Veja-seosnúmerosrelativos

aoanode1890,incluindoasdesfavoráveisapreciaçõesdossubsequentestratadoscomaInglaterra.

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e indiferente perante a prepotência inglesa.Apenas os estudantes doLiceu semanifestaram,porduasvezes,nasruasdePontaDelgada.Pelocontrário,faialensese terceirenses promoveram manifestações, protestos e subscrições (com vistaà aquisição dematerial de guerra), expressando um sentimento patriótico quepareciafaltaremS.Miguel69.

Na óptica de Francisco Maria Supico, a sentimentalidade micaelensenão olhava com indiferença os insultos da Inglaterra, quer à nação, quer aodireitointernacional.Aliás,aprópriahistóriaabonavaafavordeS.Miguelnoempenhamento em torno de grandes causas nacionais. Portanto, esta aparentefrieza não era mais do que o resultado das circunstâncias e de uma prudentee pragmática cautela atendendo às relações especiais que a ilha mantinha, dehámuito,comaqueleportentosopaís70.DeacordocomMariaIsabelJoão,paraalémdasmotivaçõessocio-económicasqueimpediramasociedademicaelensedeaderiràvagadeanglo-fobismodeentão,afracaimplantaçãodosrepublicanosnasilhastambémterácontribuídoparaesterefreamento71.

Não obstante, alguma imprensa nunca se coibiu.Ao lado dos ataques àGrã-Bretanha pela sua prepotência emá-fé72 e da contestação à subserviênciaportuguesa, impunha-seumaprioritáriapreocupação:aurgentenecessidadedeuma “expansãometódica e segura dos nossos domínios naÁfrica”, associadaè conveniência da evangelização dos gentios, reconhecida na Conferência deBerlimquevotoualivreacçãodasdiversasreligiões73.Finalmente,aimprensaregeneradoraacabaria,emdefesadogoverno,porentenderquenadamaishaviaafazercontraopoderoso“leopardoinglês”74.

Em1897,oconflitoanglo-lusovoltouareacender-seemtornodaconstruçãoda linha de caminho de ferro em Moçambique, assunto este habilmenteaproveitado pela oposição republicana75. No mesmo ano, o periódico a ilha,anunciavaemcolunadeprimeirapágina,apropagaçãodosboatosdevendadeLourençoMarquesà Inglaterra, insistentementeapregoadosna imprensadestepaís.CientesdasdificuldadesfinanceirasdePortugaledavaliosaposiçãodesteportomoçambicano,osinglesespareciamperscrutaraopiniãopúblicanacionale,nestedesiderato,algumaimprensamicaelensemostravaumconformismofatalistatestemunhadonosseguintestermos:“oqueaesterespeito,narealidadesepassa,nãoosabemos.Aintegridadedoterritório,odestinodanação,estãonasmãosdodesconhecido.Deumdiaparaooutro,podemosperdertudo.Étalvezistoo

69 “NosAçores”,o açoriano oriental,n.º2.861,22deFevereirode1890.70 “Emfacedaluta”a persuasão,n.º1.466,19deFevereiode1890.71 Maria Isabel João, “As reacções ao ultimatum nosAçores” in arquipélago-História, 2ª série,

UniversidadedosAçores,1995,vol.I–2,p.254.72 a persuasão,n.º1.466,19deFevereiode1890.73 “Anossapropaganda”,o açoriano oriental,n.º2.868,12deAbrilde1890.74 “Conflitoluso-britânico”,a persuasão,n.º1.471,26deMarçode1890.75 “CaminhodeferrodeLourençoMarques”,a persuasão,n.º1.853,21deJulhode1897.

SUSANASERPASILVA62

queesperamosparasalvaroresto”76.Propostasidênticasjáprovinhamde1890,aquandodoultimatum.Paraalgumaopiniãopúblicanacional,maisvaliaperderMoçambique,quenãopodíamosdesenvolver,nemcolonizar,doquehipotecarasnossasboasrelaçõesdepazcomaInglaterra77.

Posiçãocontráriamanifestoulogoorepórter, jornaldependorrepublicano,queveioaterreirocontestarapresunçãodevendadeLourençoMarques,aindaqueasnotíciasnãofossemdadascomocertas.AMonarquiapodiatentar,masdecertonão teria o arrojo de o levar a cabo78.Contudo, quando, anosmais tarde, ecoamnotíciasdequeoCondedeBurnayestariaemParisaprepararterrenoparaavendadeLourençoMarques79–assuntogravequeogovernonãodesmentia–oeditorialdea ilharevelaumintransigentepatriotismo,tomandomesmoumaposiçãodeanunciadoprotestocontraqualquergovernoque,por inviabilizaçãodeaumentode impostosou de obtenção de empréstimos, procurasse alienar “as nossasmelhores colóniasafricanas”.Umacoisaeraoconstantesobressaltocomaideiadeperda;outraeraapossibilidadeconcretadeperda eminente, afigurando-sequeosmaiores inimigosdapátriaseencontravamnoseiodela80,dispostosadelapidaraherançadenossosavós,entregando-aàpilhageminglesacomoúnicaformadesaldarasnossasdívidas.“Vender!Tristepaliativoparaumadoençaquesereproduziriaamanhã”81.

Assumindo uma posição de clara contestação às posições inglesasrelativamenteaodomínioportuguêsemÁfrica,osresponsáveispelojornala ilhaenalteceramasdeclaraçõesdeMouzinhodeAlbuquerque,peranteosalemães,aoinsistirqueoúnicoobjectivodogovernoportuguêsera“odemanteremtodaaplenitudeonossodomínionaÁfrica”82.Namesma linhadepensamento,osredactoresdoditojornalrepudiaramastentativasdeaproximaçãoerestaurodaaliançaluso-britânica,bemcomoasconsequências,paraMoçambique,doconflitoanglo-boer83,tomandopartenacorrentenacionalqueasconsideravamlesivasaosnossosinteressesedignidade,lamentando,porfim,aprofundaapatiadopovoportuguês,emgeral,eacimadetudo,dosparlamentares,emparticular84.

76 “BoatosdevendadeLourençoMarques”,a ilha,n.º20,17deAbrilde1897.77 “VendadeMoçambique”,a persuasão,n.º1.502,29deOutubrode1890.78 “AVendadeLourençoMarques”,o repórter,n.º28,13deJunhode1897.79 Veja-se,também,o repórter,n.º50,14deNovembrode1897.80 “LourençoMarques”,a ilha,n.º67,2deOutubrode1897,combaseemnotíciasaventadaspelo

le Figaro.81 “Asvendasdascolónias”,a ilha,n.º38,9deAgostode1899.82 “AInglaterra”,a ilha,n.º125,7deMaiode1898.83 A guerra anglo-boer mereceu o mais vivo repúdio por parte dos responsáveis pelo jornal a

ilha,considerando-acomoumsinaldacaducidadedaEuropaedavoracidade,semlimites,daInglaterra,quehámuitotemiaperderaÍndia,sonhando,porisso,ergueroutraidênticaemÁfrica.EsmagaroTransvalafigurava-se,assim,aalternativaparagarantirahegemoniainglesa,doCaboaoCairo,contrapondoodomíniofrancêsnaArgéliaeMarrocos.a ilha,n.º52,23deNovembrode1899en.º57,20deDezembrode1899.

84 “AAliançacomaInglaterra”,a ilha,n.º36,26deJulhode1899.

REPRESENTAÇõESDEÁFRICANAIMPRENSAAÇORIANA(MICAELENSE) 63

Em1900,osassuntosafricanosnaimprensamicaelensecircunscreviam-seà guerra na África do Sul85, entre ingleses e boers, destacando-se novamentea situaçãodocontinenteafricanoenquantopalcodasdisputaseuropeiasedosímpetos imperialistas e neo-colonialistas de então86.Apesar de aparentementePortugal estar arredado da contenda, uma vez mais a sombra inglesa pairavasobreMoçambique,porondeastropasbritânicasdesembarcavamepassavam,atravésdoportodaBeira,comdestinoàRodésia87.

Concluindo

Nasfolhasdaimprensainsular,ondeasquestõeslocais,porrazõesóbvias,eramprioritárias, surgia tantoquantopossível, aexposiçãoeaapreciaçãodasquestões africanas, emespecialquandoas intromissões estrangeiras se faziamsentir acintosamente e em detrimento dos interesses nacionais. Por isso, nãodeixoudeecoarosentimentoderevoltacontraasingerênciais–especialmenteinglesas–nascolóniasultramarinasportuguesas.Poroutro lado,osfeitosdosportugueses em África também não passavam despercebidos, bem como anoçãodequeourgentedesenvolvimentodessaspossessões,paraafirmaçãodasoberaniaouparaaerradicaçãodefenómenosperniciososcomoaescravatura,– cada vez mais mergulhada nas peias da clandestinidade –, passava pelaconjugaçãoeaplicaçãode3factoresessenciais:capital,braçoseadministraçãodescentralizadora.Ademais,osfluxosimigratórios,imprescindíveis,resultariamapenascomboavigilânciaeorientaçãogovernamental.Aexperiênciadehuíla,em1884, comacriaçãodeumacolóniademadeirenses,nãoderaosdevidosfrutosprecisamenteporfaltadefiscalização.SemcapitaisesemcolonosAngolae Moçambique persistiriam sub-aproveitadas88. Nas palavras do editorial dorepórter, emJaneirode1897eemconformidadecomaética republicana,osafricanosnãodeviamsersubmetidospelaforça,maspelapersuasãoepelobomexemplo89:

“AÁfricaportuguesaéaindaumgrandemundoemuitopoderiaengrandecer--nos,masnão temosfénoseufuturo,comrespeitoaPortugal,porquenosfaltaomelhor–homenspúblicos,bomsensoedinheiro”90.

85 Veja-se,porexemplo,a persuasãoapartirdon.º1.982,10deJaneirode1900.86 Veja-se o açoriano oriental, n.º 3.380, 10 de Fevereiro de 1900 e números seguintes, com

longas crónicasdeprimeira e segunda folha, relatandoepisódios,derrotas evitórias, batalhasmaisrelevantes.

87 “AGuerra”,o açoriano oriental,n.º3.390,21deAbrilde1900.88 “AprovínciadeAngolanassuasrelaçõescomaMetrópole”,o açoriano oriental,n.º3.119,9de

Fevereirode1895.89 repórter,n.º39,29deAgostode1897.90 repórter,n.º5,4deJaneirode1897.

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OCONhECIMENTOETNOLóGICODAGUINÉ-BISSAU.UMAPERSPECTIVADEGÉNERO

manuela borGes*

Introdução

Ascondiçõesdapesquisaantropológicainfluenciamquerarecolhadosdadosempíricoscomoasuaposterioranálise.DestemodoprincipiamosporcaracterizarocontextoemquefoiproduzidooconhecimentoetnológicoacercadasmulhereserelaçõesdegéneronaGuiné-Bissau,naúltimaeradocolonialismo,desdeofimda2ªGrandeGuerraatéáindependência.Avitóriadacausaaliadana2ªGrandeGuerra tornou a situação colonial portuguesa ideologicamente insustentável. NaCartadasNaçõesUnidas,pelaqualsefundouaONUem1945,estabelecia-se,noseuartigo73º,oprincípioanticolonial.Eraocomeçodoisolamentoportuguêsdoconcertodasnações,queoconfrontavamcomacontinuidadedapolíticacolonial.Umadécadadepois,aConferênciadeBandungviriaaconsagrarareivindicaçãodaindependênciaincondicionaldosterritórioscoloniais.Ocontextointernacionaladversoàdominaçãocolonialtornounecessáriorenovaraimagemdapolíticacolonialportuguesa1,queprocuroulegitimar-secientificamente,atravésdeumaantropologiaqueprivilegiavaoexotismo,emquesebaseouadominaçãocolonial2.

∗ InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,Lisboa,Portugal.1 Énestaconjunturaqueem1951foipromulgadaumanovaConstituiçãoPoliticadaRepublicaque

reformulouoActoColonialde1930,estabelecendooprincipiodaunidadepolítico-administrativa,quedeterminavaqueosterritóriosultramarinospassassemadenominar-seprovínciasultramarinas,eaconstituíremparteintegrantedoEstadoPortuguês.

2 RuiPEREIRA,“AntropologiaAplicadanaPolíticaColonialPortuguesadoEstadoNovo”,revista internacional de estudos africanos n.º 4/5(1986),p.196.

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No caso específico da Guiné-Bissau, a antropologia desenvolveu-se deformapeculiar,nocontextodasoutras«provínciasultramarinas»3,emresultadodefactoresambientaiseprincipalmentehistóricos,quelevaramaque,paraestacolónia, nunca fosse preconizada uma colonização de povoamento,mas antesuma colonização de exploração, baseada nas plantações4.. De nada valia umacolóniadeexploraçãosemaforçadetrabalhonecessáriaparaproduzirariquezamercantil. Consequentemente, a necessidade de gestão dos recursos humanosfez com que o conhecimento intensivo das populações fosse indispensável:«AGuiné,dessemodo,originouumaconstanteeprofícuaproduçãocientificaexpressanoelevadonúmerodepublicaçõesconsagradasaoconhecimentodasquestõesculturaisesociais,comooBoletimCulturaldaGuinéPortuguesa,equemesmonosnossosdiasconstituemfontesdeapreciávelvalorcientífico»5.

O Boletim Cultural da Guiné portuguesa (doravante designado comoBCGP),definidocomo«órgãodeinformaçãodaculturadacolónia»6écriadoem1945,peloentãoGovernadorComandanteManuelMariaSarmentoRodrigues,epublicou,durante28anos,entre1946e19737,110númerosnormaiseumnúmeroespecial, além de 24 monografias, com trabalhos inéditos de investigações,emmúltiplasdisciplinas8, comênfasenaetnografiaehistória.Estaorientaçãoeditorialéenunciadalogonoprimeironúmeropublicadoondesedescrevemasnormasde colaboração, dizendoque«(…)especial atençãomerecerá o que serefereàetnografia,procurandodesenvolveraomáximoosconhecimentossobreos povos indígenas», e reafirmada após 25 anos de publicação: «Os aspectoshistóricoseetnográficosdestaprovínciatêmsidotalvezosmaisexplorados».»9.

Noseuprimeirovolume,opróprioministrodascolónias,MarceloCaetano,exprimiaaideiadeum«colonialismocientífico»,sublinhandoaimportânciadoBCGPrecolheredivulgarestudoscientíficos,queconsideraimprescindíveisparaa intervenção colonial: «Cinco séculos depois de aqui chegaremos primeirosnavegadoresportuguesesétempoqueosportuguesesfaçamonovodescobrimentodaGuinéPortuguesadescobrimentodependente,sobretudo,detrabalhocientifico

3 VeraestepropósitoRuiPEREIRA,“AntropologiaAplicada...”,cit.,pp.205-206.4 António Carreira caracterizava a colónia como «...uma possessão caracterizadamente de

exploração agrícola do nativo» (António CARREIRA “Problemas do Trabalho Indígena naColóniadaGuiné”inBoletimGeraldasColónias,vol.24,n.º282(1948),pp.36-37.

5 RuiPEREIRA,“AntropologiaAplicada...”,cit.,p.205.6 Boletim Cultural da Guiné-portuguesa,vol.In.º1-4,(1946).7 quandoaindependênciafoireconhecidaporPortugalem10Setembro1974estavanatipografia

on.º111doBoletimCulturaldaGuinéPortuguesa,quenãochegouaserpublicado(henriquePintoREMA“A.Teixeirada mota e o Centro de estudos da Guiné» inVice-almirante a. Teixeira da mota inmemoriam,vol.II,Lisboa,IICTeAcademiadaMarinha,1989,p.315.

8 Seriam publicados estudos de demografia, linguística, geografia, agricultura e silvicultura,economia, indústria, pesca, pecuária, climatologia, botânica, nutrição, medicina tropical,parasitologiaveterinária,administraçãocolonial,etnografiaeantropologiafísica,entreoutros.

9 henriquePintoREMA,“OCentrodeEstudos...”,cit.,p.56.

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quecomosseusmétodosrigorososreveleanaturezaparaadominar,descrevaohomemparaomelhoraredêbalançoaosrecursoseconómicosaproveitáveisparaqueariquezaseproduza».Nomesmoartigorefereexpressamenteaimportânciadaantropologiaeetnografiaparainformaremapoliticacolonial,quandopergunta,retoricamente,se«acasosepodefazersériapoliticaindígenaantesdesesaberoqueaantropologiaeaetnografiaestãoemcondiçõesdenosensinarsobreosnaturaisdaterra?»E,porfim,preconiza«queestarevistasejaapartirdehoje,oregistofieldeumprogressoincessante,acrónicanovadaconquistadaGuinéparaacivilizaçãoeparaaciência,sempredentrodasconcepçõestradicionaisdapoliticacolonialquesoubecasaraféeoimpério-anecessidadedomandocomafraternidadecristã»10.

Destemodo,aetnologiadesenvolveu-senoquadrodocolonialismo,afimde se chegar a umacolonizaçãomais racional e, simultaneamente, contribuirpara uma política colonial mais aberta, mais humana, e mais compreensiva,legitimando a continuação da dominação colonial portuguesa, num contextointernacional favorável ao fim do colonialismo. É nesta conjuntura que em1946 foi criado, por Portaria assinada pelo então Governador da Colónia, oCentrodeEstudosdaGuinéPortuguesa(doravantereferidocomoCEGP),quesepropunhapromoveracultura,organizarumabibliotecaeummuseu, alémdepublicarumarevistaperiódicavocacionadaparaadivulgaçãodetrabalhosoriginais de investigação sobre temas guineenses. Estes objectivos seriamalcançados.NoCEGPconstitui-seumabibliotecapública,foicriadoummuseupluridisciplinar11epassou-seaeditaroBCGP.OCEGPfinanciariaamaioriadainvestigaçãoposterior,atravésdeconcursosebolsas,easuarevista,oBCGP,tornar-se-iaoprincipalmeiodedivulgaçãoda investigaçãocientificadaenacolónia12.

AligaçãoentreainvestigaçãocientíficaeocolonialismonaGuiné-Bissau,é reveladadesde logo,nacriaçãoporportariasoficiaisdogovernodacolóniaquerdoBCGP,comodoCEGPque,mesmosenãoeraumorganismopúblico,era tutelado pelo Governo da Guiné Portuguesa, quer financeiramente, comoporquantoosmembros eramnomeadosporportariadoGoverno, e recrutadospreferencialmenteentreosfuncionáriosdaadministraçãocolonialeosoficiaisdasinstituiçõesmilitares13.Poroutrolado,naPortariacriandooBCGPestipula-se,noartigo5ª,queaComissãodeRedacçãosujeitaráàapreciaçãodoGovernador

10 MarceloCAETANO,“UmaCrónicaNovadaConquistadaGuiné”,Boletim Cultural da Guiné portuguesa,vol.In.º1,(1946),pp.1-3.

11 O Museu reiterou o modelo pluridisciplinar dos museus locais vigente à época em Portugal,procurando representar de forma global um dado território com fins desenvolvimentistas,organizando-seseemquatrosecções(história,Etnografia,CiênciasNaturaiseEconomia).

12 henriquePintoREMA,“OCentrodeEstudos...”,cit.,pp.22segs.13 henriquePintoREMA,“OCentrodeEstudos...”,cit.,pp.29-33.

MANUELABORGES68

cadanúmerodarevista,instaurando-seassimumacensurapolíticaaosconteúdosveiculados14.

Apesar desta intima relação entre a prática antropológica e o regimecolonial, a concepção dos objectivos da investigação científica no âmbito doCEGP, foi temadeacesosdebates, comodemonstraanecessidadedeAvelinoTeixeira daMota defender o interesse da investigação pura: «A crise estalounoCentrodeEstudosemmeadosde1956precisamenteporqueseentendianãoestarocentroadesenvolverumaacçãoemprofundidade(…),comapublicaçãode estudosquedessemosprincípiosdeterminantesda acçãodosgovernantes.TeixeiradaMotarespondeuclaramenteàobjecção,indicandoostemasteóricosventiladosnoBoletimCulturalsusceptíveisdeseremexploradospeloshomensdeacçãoimediata»15.OdesideratodeumainvestigaçãocientificaaplicadaafinsadministrativosnaGuiné-Bissau foi uma constante ao longodo tempo, o quelevariaAvelinoTeixeiradaMota a reiterar a defesada investigação científica«pura»,argumentandoque,«OCentrodeEstudosnãoéumserviçopúblico»16,e propondo compatibilizar, na senda do funcionalismo britânico, o papel daantropologia,enquantodisciplinaauxiliardaspráticasadministrativascoloniais,comaliberdadedeinvestigaçãocientíficadoantropólogo17.

Édesublinharque,nestedebate,entredefensoresdaciênciaaplicadaedaantropologiacientificamenteorientada,ambasaspartesconcordamempartirdopressupostodequeapráticaantropológicarespeitanteàGuinéBissau,teriadeser«útil»paraumpoderpolítico,quepropagandeavaumaideologiabaseadaumaversão portuguesa do luso-tropicalismo de Freyre, (uma aparente contradiçãoentreapropagandadeumaideologiahumanistarealizadaporumaditadura),deformaamanterocolonialismoportuguês,mesmoseatravésdeumisolamentopoliticonaconjunturainternacionalfavorávelaofimdosregimescoloniais.

Neste sentido, a prática etnológica na Guiné caracterizou-se como umtrabalhopráticodocolonialismo18,fundamentando-senumdiscursomoderno,queconcebeospovosparticulares(ouraças,ouculturas)comoespéciesportadorasdecaracteres(físicos,mentaisesociais)particulares,aidentificaresistematizar,emvistadaeficáciadasuaadministração.Destemodo,oconhecimentopressupõe-sevirtualmente ao serviço da prática, e a etnologia é concebida comodisciplina

14 JoyeBROWNAN,“Guiné-Bissau:Ensaiohistoriográficosobreasobraspublicadasdesde69”,revista internacional de estudos africanos,n.º1(1984),p.219.

15 henriquePintoREMA,“OCentrodeEstudos...”,cit.,p.56.16 AvelinoTeixeiradaMOTA,citadoporhenriquePintoREMA,“OCentrodeEstudos...”,cit.,p.24.17 JamesWendydenominariade«profundoparadoxo».estaconciliaçãodoantropólogoaoserviço

docolonialismomantendoaindependênciacientífica(JamesWENDY,“TheAnthropologistasareluctantimperialist”,inTalalAsad(ed.), anthropology and the Colonial encounter,Londres,Ithaca,1973,p.45).

18 NicholasThOMAS,Colonialism’s Culture. anthropology, Travel and Government,Cambridge,PolityPress,1994,p.6.

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auxiliar,imprescindívelaumaboaadministração,oqueécorroboradopelofactodaetnologiaafricanistasurgiremPortugal,comodisciplinaacadémica,naantigaEscolaColonial19

A antropologia colonial na Guiné-Bissau e as representações das mulheres indígenas

Arepresentaçãodamulher,nostextospublicadosnoBCGP,foiconstruídamaioritariamente, por agentes da administração colonial, que era constituídaexclusivamente por homens. Estas metodologia e ideologia essencialmentemasculinasecolonizadoras,tiveramconsequênciasimportantesnoconhecimentoda realidade da vida das mulheres autóctones. Para contextualizar esteconhecimentodasmulheresguineensesretomamosadescriçãodascircunstânciasemquefoiproduzidooconhecimentoetnológiconaGuiné-Bissau.EnquantoaantropobiologiaeradominanteemPortugal,comoinstrumentodeconhecimentodospovoscolonizados,atéquaseàdécadade6020doséculoXX21,naentãoGuinéPortuguesa aspesquisasde antropologia cultural e social tinham já começadono iníciodoséculo,coma iniciativagovernamentalde realizarum«InquéritoEtnográfico» em 191822, que tinha como objectivo proceder à preparação doCódigode Justiça Indígena, e cujaexecução foi atribuídaaosadministradoresdecircunscriçãoecomandantesmilitares23.Pretendia-se,atravésdesteinquérito,sistematizarumavastainformação,queextravasavalargamenteaesferajurídica,tendo por unidade de aplicação a «raça», como se designavam os gruposétnicos,estabelecendo-seque,por«cadaraça»,presenteemcadacircunscrição,fosse preenchido um inquérito24. Este primeiro «Inquérito Etnográfico» foi,

19 J.POIRIER,“histoiredelaPenséeEthnologique”, inJeanPoirier(dir.)ethnologie Générale,Paris,Gallimard,1968,p.111.

20 RuiPEREIRA,“AntropologiaAplicada...”,cit.,pp.191-192e217-218.21 Os Anais da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar publicavam,

anacronicamente,nosanos50doséculoXX,oresultadodeumaMissãoAntropológicaàGuiné,realizadacomoobjectivode,pormeiodetestespsicológicos,classificarhierarquicamente,quantoaonívelmentalecapacidadedetrabalho,osdiversospovos(AlfredoAThAYDE,“ContribuiçãoparaoEstudoPsicológicodosIndígenasdoUltramarPortuguês”inanais da Junta das missões Geográficas e de investigações do ultramar,VIII(III).Lisboa,(1953),pp.76-78).

22 Portarian.º95de12deAbril,publicadanoBoletimOficialde28deAbril1918.23 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico organizado pelo Governo da Colónia no ano

de 1946. publicação Comemorativa do V Centenário da descoberta da Guiné, Bissau,CEGP,1947,pp.5-6.

24 TeixeiradaMota,nadécadade40doséculopassado,nãoencontrouregistosreferentesaesteinquéritonosarquivosoficiais:«Ignoramosograuemquefoicumpridaaportaria,noentantofoi-nos dito que tanto a este como a outros inquéritos seguintes, poucas respostas foramapresentadas.(…),lamentandoaperdaderesultadosquepoderiarevelar«(…)graudeevoluçãodaspopulaçõesnativas,incontestavelmentegrandenoperíododecorrido.»(AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,cit.,p.6).

MANUELABORGES70

significativamente,aprovadoepostoemvigor,peloGovernadorInterinoCarlosFerreira,poucodepoisdasdificuldadesencontradaspelasautoridadesportuguesesnacolectadoimpostodepalhotaentreaspopulaçõesautóctones,quederamlugararevoltasarmadas,combatidaspelascampanhasmilitaresdocapitãoeChefedoEstadoMaiordaGuinéJoãoTeixeiradaRochaPinto(1912-1915).25O«impostodepalhota»,alémdeseraprincipalreceitadaadministraçãocolonial,significavasobretudoumactode submissãoàdominaçãocolonial, dizendo JoãoTeixeiraPinto ser umdesrespeito pela soberania e o governo da colónia, a resistênciadas populações ao seu pagamento26. De facto, antes da implantação efectivadoregimecolonial,nasprimeirasdécadasdoséculoXX,muitosdospovosdaGuiné responderam violentamente à imposição do regime colonial português.A última campanha militar portuguesa de grande envergadura realizou-se em1915, e três anosdepois,ogovernocolonial tomaráa iniciativadeelaborar eordenarexecutaruminquéritoetnológico.Umavezqueocódigoindígenanuncachegou a ser executado, e o momento político em que foi lançado, derrotadaaresistênciaarmadaeinstaurando-seautoridadessubmissasaopodercolonial,permite interpretar o lançamento deste inquérito como a forma de prevenirnovasrevoltas,edotaraadministraçãocolonialdedadosparaagovernaçãodaspopulaçõesindígenas.Oconhecimentoetnológicocolonialfoipois,numprimeiromomento, produto do sentimento de insegurança face aos «nativos», e tomouaformadeumconhecimentopanóplicoeenciclopédicoacercadaspopulaçõesindígenas.Asautoridadescoloniaisproduziriammaisinquéritos,umem192727.,comafinalidadedepromulgaroscódigospenalecivildosindígenas,eo«melhorconhecimentodaspopulaçõesnativasporpartedasautoridadesadministrativasa fim de promover o desenvolvimento daquelas»28, e outro em 1934, com amesmafinalidadedecodificarosusosecostumesdosindígenas29.Noentanto,oobjectivoreiteradodeelaborarum«códigoindígena»nuncaseráconcretizado,oquepermiteespecularsobreointeresseefectivodestes«inquéritosetnográficos»,de iniciativa do governo da colónia e de execução pelos agentes coloniais, epressuporque,procurandoidentificarpopulaçõesparticulares,estesinquéritos,contribuíam para elaborar informações, sobretudo históricas, linguísticas e

25 Estas campanhas denominadas de «pacificação» pelas autoridades portuguesas, ocorreram nasequencia do ditame da Conferencia de Berlim de «ocupação efectiva do território» e foramlevadasacabopelocomandanteTeixeiraPintocomoauxiliodasmiliciasgentílicascomandadasporAbdoulInjai.

26 CitadoemAlmeidaBELO,meio século de lutas no ultramar,Lisboa,SociedadedeGeografiadeLisboa,1937.

27 Este «questionário de Inquérito sobre as Raças da Guiné e os seus Caracteres Étnicos» foipromulgadopelaPortariade12deAbrilpublicadanosuplemento do Boletim oficialde26deAbrilde1927.

28 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,cit.,p.7.29 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.8.

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culturais,criandomapasparaa intervençãosocial, respondendoànecessidadeda administração colonial de gerir a diversidade, de outra forma inteligível eincontrolável.

Oúltimo«InquéritoEtnográfico»foilançado,maisumavez,poriniciativado governo da colónia em 1946, e tornar-se-á um paradigma para a futurapesquisaetnográficanaentãoGuinéPortuguesa.PorincumbênciadoGovernador,Comandante Sarmento Rodrigues, Avelino Teixeira da Mota organizará um«InquéritoEtnográfico»30,extensoeabrangente31, tendoporunidadea inquirira tribo, e por área de aplicação as unidades administrativas.AvelinoTeixeirada Mota dirá que o desiderato de cobrir a colónia posto por posto, não foitotalmenteconseguido,maspoucasregiõesescaparamaoinquérito32.Aexecuçãodoinquéritoficavaacargo, talcomonosanterioresquestionários,dosagentescoloniais, administradores, secretários e chefes de posto. Pretendia-se coligiruma vasta informação que deveria «Não descurando a parte da organizaçãofamiliar, económica e social que mais pode interessar a uma codificação dosusosecostumes,incluirnoinquéritooutroselementosque,emborapossamtermenosinteressedopontodevistaadministrativo,sejamderealimportâncianoaspectopuramenteetnográfico,sobretudoosquepermitamestabelecerograudeparentescoentreasdiversastribos»33.Destemodo,seoinquéritovisavacoligirinformações pertinentes para a governação das populações indígenas, incluíatambémobjectivospuramentecientíficos,nomeadamente,«procurarrecolheraslendasetradiçõesquedigamrespeitoàsorigensemigraçõesdastribos,ebemassiminvestigarantigosusosdesaparecidosereferirasmodificaçõesecostumesintroduzidos pela acção civilizadora»34. Os dados recolhidos tinham ainda afinalidadedeservir«(…)paraaorganizaçãodasecçãoetnográfica35doMuseudaGuiné-Portuguesa.»36.

30 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico…, cit.,p.5.31 AvelinoTeixeiradaMotautilizouparaaelaboraçãodesteinquéritograndepartedosinquéritos

anterioreseaesquematizaçãopropostanaobradeDeniker«LesRaceselesPeuplesdelaTerre».Apósasuaelaboraçãoapresentou-oàEscolaSuperiorColonialparaapreciaçãoerevisão(AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.13).Oresultadoseráuminquéritoexaustivo,organizadoemduaspartes,caractereslinguísticosecaracteressociológicos,subdividindo-seesteúltimo,emcapítulos(vidamaterial,psíquica,familiaresocial).

32 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico…, cit.,p.11.33 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico…, cit.,p.9.34 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico…, cit.,p.11.35 Esta secção etnográfica permitiria conservar o registo da «essência» e da «autenticidade» de

culturasepovos,quesepensavamestarememprocessoderápidodesaparecimento,podendopoisserconsideradacomoumaacçãocivilizadoradacolonização.NoperíodoapósaindependênciaaMuseuseráabandonadoeassuascolecçõesextraviadas.quando14anosdepoissecriaráoMuseuNacionaldaGuiné-BissausómeiadúziadepeçasdoanteriormuseutransitaramparaonovoMuseu,criadoderaiz(museu nacional da Guiné-Bissau.Guião,Bissau1988,p.4).

36 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico…, cit.,p.12.

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Ilustração 1–EdifícioondefuncionouoMuseuEtnográficodaGuinéPortuguesaaté1974.Foto:ManuelaBorges,1996

Concomitantemente, Avelino Teixeira da Mota ambicionava, com esteinquérito, introduzir a etnologia na prática da administração colonial, o queo levou a incluir neste inquérito «(…) a terminologia etnográfica, demodo aqueos funcionáriosadministrativos se familiarizaremcomelaeautilizem»37,procurandomotivarointeressedosfuncionáriosadministrativospelainvestigaçãoetnográfica,paraoquesepropunhatambém.divulgarasrespostas,seleccionandoamelhores,atravésdasuapublicação,nomeadamentenoBCGP38.Asuaintençãoeradeque«Nesteaspectooinquéritodeveriaseropontodepartidaparaulterioresdesenvolvimentos,querorientadossuperiormente,querdeiniciativaprópria.»39.

Nafaltadeespecialistasemetnologia,recorria-seaosfuncionárioscoloniaise á elaboração de indicações sobre como executar a investigação etnológica,atravésdeuma sériede consideraçõesmetodológicas e ainda anotações sobreconceitoseterminologiaetnológicos,deformaafornecer«(...)pontosdeapoiomaissegurosparaodesenvolvimentodasrespostas»40,aosfuncionárioscoloniais,a quem incumbia aplicar o inquérito, transformados, administrativamente, emetnólogosimprovisados.

A leitura dos tópicos e indicações etnológicas, incluídos neste inquéritocharneiradasposterioresinvestigaçõesetnológicasnaentãoGuinéPortuguesa,evidencia a sua perspectiva e uso da terminologia da teoria antropológicaevolucionista, que tinha preponderado no século XIX, particularmente nodesígniodeprocurar«sobrevivências»deformasdeprimitivismomaisremotas;

37 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,pp.10-11.38 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,pp.11-12.39 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.12.40 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p20.

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nasexplanaçõesacerca«(...)dasformasmaisconhecidasdasreligiõesdospovosincultos,formasdecasamentoeorganizaçõessociaisprimitivas»41,nasdescriçõespormenorizadas acercadas«modalidadesde animismo», a identificar entre aspráticas religiosas, onde inclui o «culto dos antepassados», o «feiticismo», a«idolatria»,epor fim,o«cultodos fenómenosedascoisasnaturais»,quedizconstituiruma«evoluçãodoanimismomaisprimitivo»42.Porsuavez,oconceitodetotemismoéintroduzidonasindicaçõesparaasrespostassobreaorganizaçãosocial,caracterizando-ocomoumaformadeorganizaçãosocialhorizontal,geridapelosmaisvelhosmembrosdosclãs(totémicos),emquea tribosesubdivide,quandoexisteum«(…)regimedecasamentosporgruposederivados»43,dondea necessidade de procurar «sobrevivências» deste tipo de culto e organizaçãosocial, que resultariamda evoluçãodoprimitivo totemismo, eque«permitemconcluirpelasuaexistênciaintegralemtemposidos»44.

Comoerausualnaépoca,esteinventárioetnológicofoiconcebidolargamentenumaperspectivamasculina, isto é, as questões sobre asmulheres são postasemtermosdassuasrelaçõescomoshomens,apropósitodocasamentoouvidafamiliar.quandoraramentesãoapresentadascomo indivíduos,éemrelaçãoacostumes«primitivos»(comoatatuagem,escarificações,mutilaçõessexuais,eoutraspráticasexóticas).

TrintaeumadasrespostasobtidasaoinquéritosãosumarizadasporAvelinoTeixeiradaMotaem194745.Nasinformaçõesrecolhidas,emordemdecrescente,porchefesdeposto,administradores,eumsecretário,TeixeiradaMotaencontrapredominantemente informações sobre a história das origens e migrações dastribos,relaçõesdesimilitudeoudeguerrasentretribos,factosrelativosàestrutura,religiãoeorganizaçãodasociedade,edadosacercadasobrevivênciaouexistênciaremotaderegimesmatriarcais,casamentosporgruposoutotemismo.Nagrandemaioriadasrespostas,TeixeiradaMotanãoregistaqualquerinformaçãosobreasmulheres e, nas outras poucas respostas emque asmulheres são referidas,as informações são exíguas e erráticas, anotando costumes como a geofagia,osofíciosexclusivamentefemininos(oleiras,parteiras,tintureiras),ovestuárioreduzido,asuadominaçãopeloshomens,aexistênciadesacerdotisaseregentesentreosBijagós,edeumamulherdirigentedereguladoentreosManjacos,queémencionadapeloadministradorAntónioCarreira,porser,nasuainterpretação,uma«sobrevivência»deumremotoregimedematriarcado46.Destemodo,das31respostasreferidasacima,sónasduasrespostassobreosBijagósédadaespecialatençãoàmulher,aosseuscostumes,funçõeseestatutosociais,correspondendo

41 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..,cit.,p.20.42 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,cit.,pp.76-79.43 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,cit.,p.98.44 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,cit.,p.99.45 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,pp.111-163.46 CitadoporAvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.123.

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àopiniãogeneralizadaepredominantementeespalhadadeque,entreosBijagós,amatriarcadoeraoregimefamiliar,easmulheresdetinhammaispoderqueoshomens.OchefedepostoAdolfoRamosindica,apropósitodosBijagósdeUno,a liderança religiosa das mulheres, a escolha dos parceiros masculinos pelasmulheres, a existência de duas fases na organização familiar (amancebia e ocasamento),eafacilidadedamulherabandonarohomemecasar-secomoutro47.Recolhe pois, selectivamente, os costumes que, nas relações de género, erammaisexóticosecontráriosaosdasuaprópriasociedade.Nãoprocurainterpretarestesdados, limitando-seaapresentá-loscomo“curiosidades”destaetnia.Porseulado,oadministradorAugustoSantosLimarelataasfunçõesdasmulheresenquantosacerdotisasecomoregentes,no interregnoentreamortedeumreie a eleiçãodo seu sucessor.Noentanto, estespoderes religiosoepoliticodasmulheressãoporeledesvalorizados,einterpretadoscomotestemunhodaprópriasubordinaçãodasmulheresaoshomens.As funçõesde regente,masnuncaderainha, demonstravam, segundo este autor, a sua exclusão da realeza, e logodopoderpolitico,alémdequecorrespondiamaos interessesdoConselhodosGrandesquecoadjuvavaolíderpolitico,poisqueumaregênciafemininaeraumaoportunidadedeaumentaroseuprópriopoderpolitico.Porsuavez,asfunçõesdelíderreligiosaeramdenomeaçãodoreieconferiammenorpoderqueodesteúltimo,easuaexistênciaeraumaformadoshomensseeximiremàsdificuldadesesacrifíciospessoaisqueosacerdócioimpunha,determinandooshomensquefossemasmulheresaencarregarem-sedestasfunçõespenosas.«Aímesmoondesepoderiaverfraqueza,nãohásenãoaforçadohomemque,porsipróprio,sealheoude tãopesadoencargoedeterminouqueessamissão fosseconferidaamulheres»48 .Alémdisso,contrariaa ideiadaexistência,presenteoupassada,domatriarcado,enegaapretensaliberdadedamulherBijagó.49.Destemodo,oadministradorSantosLima revela-se incapazde re-conhecerpoderpolíticooureligiosoàsmulheres,interpretandoassuasfunçõesreligiosasepoliticascomoformasdesubordinaçãodestasaoshomens.Emambososcasos,osautores«vêm»asmulheres,porcontrasteouanalogiacomoparadigmadasrelaçõesdegénerodassuasprópriassociedadesenumaperspectivamasculina,querporquantoeramhomensquerosinvestigadores,comoosseusinformantesindígenas.

DocomputogeraldaleituradasrespostasregistadasporTeixeiradaMota,revela-se a procura de um «indígena autentico», e da identidade essencial ásdiversas «tribos». Em consequência representam-se as sociedades indígenasnumaperspectivaestática,semdarcontadassuasdinâmicasinternas.Restringia-seapossibilidadedemudança,entreospovosautóctones,àacçãocivilizadorado colonialismo De acordo com esta perspectiva antropológica, os projectos

47 CitadoporAvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,pp.111-115.48 CitadoporAvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., p.132.49 CitadoporAvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico...,pp.129-135.

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intervencionistasdedesenvolvimentocolonialeramjustificadospelarepresentaçãodo«outro»,ocolonizado,como«selvagem»,«primitivo»,«atrasado»e«exótico».Defacto,oevolucionismoimbuiuaetnologiacolonialportuguesaatébastantetarde. Se o evolucionismopressupõe a similitude da espécie humana, implicaigualmente uma diferenciação hierárquica, e o discurso colonial baseou-se noreconhecimento e depreciação destas diferenças, biológicas, sociais, culturaise históricas, consoante os tempos e as teorias, cuja função estratégica para apráticadasautoridadescoloniais, foi adecriarumobjectode intervenção,ospovos «indígenas», e uma legitimidade de intervir, a civilização europeia. «Theobserverorobservingcolonizercommandsaknowledgeofgroupssuchasinstitutional imamates,welfare recipients, and the colonized that is intimatelylinkedwithaclassificationanddiagnosisoftheinferiorityorinadequacyofthelatter,thatestablishestheneedformanagement.»50.Ocolonialismoencontrounateoriaevolucionistaalegitimaçãoda«missãocivilizadora»dopovoportuguês.Estaideologiaerajáantiganapolíticacolonialportuguesa.NoséculoXIX,em1878,aPortaria97de8deAbril,referenteaoensinonascolónias,nasuaNotaJustificativapropunha«(...)educarumindígena,ignorante,rudeeasselvajado,despi-lodetodosospreconceitoseviciososhábitos,(...),depurá-loaocrisoldeumregimecivilizadorehumanitário,parafazerdeleumcidadãoprestável(...),paraoquepropunha«...cortartodaacomunicaçãodeideias,hábitosecostumesradicadosnoespíritoenocorpodosindígenas,isolandodoconvíviocomumosquesepretendemeducar».

A administração colonial, cientificamente informada, permitiria, naperspectiva evolucionista, proceder a um processo progressivo e harmonioso,onde os grupos dominados, e desvalorizados, seriam submergidos pelo grupodominante,querepresentavaopadrãodereferênciaparaaassimilaçãocultural:.«...a etnologia jánão serveapenasparaconstatar factosconsumados, antes setornouumpoderosomeiodeauxiliarosagentesdeadministraçãonasuafunçãodeencaminharaqueleprogressoenãodeixarqueelesefaçaaoacaso.»51.

Naproduçãoantropológicaposterior,noqueserefereespecificamenteaoconhecimento etnológico das mulheres, na maioria dos textos publicados noBCGP,asrelaçõesdegéneroousãoomitidas(comoaconteceuigualmentecomoutrasdiferençasinternasetransversaisàssociedadesparticulares)ou,amulheraparecereferidaapropósitodossistemasfamiliaresedareprodução(casamento,fertilidade,trabalhodoméstico),identificandoasmulherescomomães,esposasoufilhas,papéiscentradosnoshomens,cujasactividadespolíticaseeconómicaseramoobjectodeestudo.

50 NicholasThOMAS,Colonialism’s Culture..., cit., p.41.51 Avelino Teixeira da MOTA, «Classificação e Evolução da Casa e Povoamento Indígena» in

TeixeiradaMota,Avelino&Neves,Mário(eds.),a Habitação indígena na Guiné portuguesa.Bissau,CentrodeEstudosdaGuinéPortuguesa,1948,p.136.

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Emparteestefactoresultoudeumproblemametodológico,porquantoasactividadesdoshomensforamdefinidascomoosobjectossobinvestigação,querpelosinformantesmasculinosindígenas,comopelosinvestigadorescolonialistasmasculinos. Deste modo as mulheres foram descritas sob as categorias decasamentoefamília.

Estaconcentraçãonavidadasmulheresafricanascomomulheres,amantesemães, resultounumaatençãodesproporcionaldadaaosaspectos sexuaisdassuasvidas,emdetrimentodassuasactividadesnavidasocialeeconómica,oquecontribuiu para representar amulher africana de uma forma derrogatória52:«Amulheréobjectodeprazeredetrabalho,eportantotratadacomoqualqueroutrapropriedade»53;«Amulherrepresentaumcapital–pelotrabalhoqueproduzepelosfilhosquedá»54;«Asmulherescasadasacompanhamosmaridos,fazendoa vida doméstica normal, e as solteiras procuram as concentrações urbanas(...), onde se dedicam à prostituição»55. No entanto, simultaneamente, estasrepresentações depreciativas, denotam uma certa «fascinação sexual», onde o«outro»africano,representavaoinversodamoralsexualrepressivaOcidental.Aconstruçãodahipersexualidadedoshomensemulheresafricanoséummitopersistente,nostextosetnológicoscoloniais,ondesurgemasreferênciasao«amorlivre»56,à«libertinagemsexual»57,à«desvalorizaçãodavirgindadefeminina»58,eàprostituição59.Apresumidaamoralidadedasmulheresindígenas,eaexistênciademulheresindependentesdeumhomem,sãoconsideradascomoresultadododesregramentosexualinato,ou/edasinstituiçõesnativas,queopromovem(porexemplooadultériofemininogeneralizado,éimputadoàexistênciadecasamentosimpostos com homens muito mais velhos que, devido à idade, não poderiamsatisfazeras«necessidadescarnais»60,dassuasesposas,easraparigassolteiras,queemigramparaacidade,fazem-no,noimagináriocolonialista,expressamente,para sededicaremàprostituição.Este imaginárionãoera inocente,mas antes

52 A invisibilidade da mulher na produção etnológica colonial relaciona-se com a forma comoa informação, era selectivamente recolhida e interpretada, de acordo com o ponto de vistaandrocêntricoocidental.

53 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.87.54 FernandoqUINTINO,“OsPovosdaGuinéII”,Boletim Cultural da Guiné portuguesa,n.º96,

(1969),p.897.55 AntónioCARREIRA,“GuinéPortuguesa:RegiãodosManjacosedosBrames”,Boletim Cultural

da Guiné portuguesa, vol.XV,n.º60(1960),p.781.56 FernandoqUINTINO,“OTotemismonaGuinéPortuguesa”,separata do Boletim Cultural da

Guiné portuguesa,n.º74,(1964),p.901.57 António CARREIRA, “Organização Social e Económica dos Povos da Guiné Portuguesa”,

Boletim Cultural da Guiné portuguesa, vol.XVI,n.º64(1961),p.667.58 FernandoqUINTINO,“OTotemismona...”,cit.,p.902.59 AntónioCARREIRA,“GuinéPortuguesa...”,cit.,p.781.60 FernandoqUINTINO,“OTotemismonaGuiné...”,cit.,p.900.

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coniventecomapromiscuidadedealgunscolonosbrancosnassuasrelaçõescomasmulheresafricanas.

As representações das mulheres africanas foram não só elaboradas apartir das perspectivasmetodológicas e ideológicas androcentricas,mas aindapor comparação com o paradigma da mulher civilizada ocidental, em que seconsideravaamulherafricananumaposiçãoinferior,comoétípiconascitações,emquesãodescritascomoanimaisde trabalhoe reprodução, semcapacidadecivil61.Afirma-sesumariamentequeamulher«(...)adespeitodedesempenharimportantepapelnodireitocostumeiro–seroinstrumentodegarantiadovínculodeconsanguinidade–nãoadquirecapacidadecivil.Emsolteira,ficasobatuteladopai,oudoherdeiro(tioousobrinho);casada,sobatuteladomarido;viúva,sob a do herdeiro domarido»62, sempre tuteladas por umhomemou, quandoindependentes,sãosumariamenteconsideradaspromíscuas.

Destemodoasreferênciasàsmulheres,sãoerráticasesumárias,surgindoapropósito,essencialmente,de«costumes»indígenasconsideradosselvagenseprimitivos, como o infanticídio ritual, a excisão clitoridiana, o matriarcado, olevirato,ocasamentoporcompra63.

Pode-seaindaespecularsobrearelaçãoentreaspercepçõesacercadoestatutodasmulhereseaclassificaçãodassociedades.Segundooesquemaevolucionista,a degradação social e moral da mulher era, muitas vezes, relacionada com aprópria degradação da sociedade64, e frequentemente as percepções de género«..encodeideasofracialdifference,andthatisoftentheseoverlaidconstructionsthatdisplaythecomplexityanddistinctivenessofparticularmodesofcolonialrepresentation»65 .Nomesmosentido,aideiaconstruídapelocolonialismo,damulher indígena explorada sexual e economicamente, justificou a intervençãocolonial:«Importapromoveraeducaçãodamulherdeformaaelevá-laàdignidadedamulhercristã,integrando-anosdevereseresponsabilidades,assimcomonos

61 Amais recenteproduçãoantropológicasobreasmulheresemÁfrica, temvindoademonstrarque nas relações de género africanas muitas vezes as mulheres tem autonomia financeira nagestãodos seusnegóciosouprodução, em relaçãoaomarido, a instabilidadenocasamentoérelativamente elevada, e são participantes activas de associações de solidariedade, o que lhespermiteumarelativaliberdadeeestatutopoliticoesocial.VeraestepropósitoMariaManuelaBorgesDOMINGUES,estratégias femininas entre as bideiras de Bissau,(tesedout.AntropologiaCulturaleSocial,UniversidadeNovadeLisboa,669pp.(emlinha)DisponívelemURL:<http://www.iict.pt/tdd/bdtddol/TDD0100111.pdf>(Consult.25Setembro2009).

62 FernandoqUINTINO,“OsPovosdaGuinéII”,Boletim Cultural da Guiné portuguesa,n.º96(1969),p.897.

63 Realizaram-se também estudos de fenómenos demográficos como as taxas de natalidade,fecundidadeemortalidade.

64 NicholasThOMAS,“Anthropology...”,cit.,p102.65 NicholasThOMAS,“Anthropology...”,cit.,p.67.

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direitos reconhecidosàmulhernas sociedadesevoluídas»66 .Aestepropósito,Evans-PrichardalertaparafactodequemuitasdasafirmaçõeseavaliaçõessobreassociedadeseasmulheresemÁfricaforamrealizadasemfunçãodoshomensouemfunçãodeideiaspreconcebidassobreasrelaçõesdegénerodassuasprópriassociedades.Nestaperspectiva,sublinhaomesmoautor,estasfontesconsideravamacondiçãofemininageralmenteinferioremrelaçãocomasociedadevitoriana67.

OutracircunstânciaquedeterminouoconhecimentoetnológicodasmulheresnaGuiné-Bissaudizrespeitoàquestãodamedidaemqueosinvestigadoresforamcolaborantescomaadministraçãocolonial68.NaGuiné-Bissauaconivênciaentreaantropologia(chamadaetnologia)eaadministraçãoeratotal,poisqueforamosadministradorescoloniaisqueproduziramamaioriadosestudosaindahojeutilizados sobre as populações guineenses.A relação íntima entre as práticasetnográficaeadministrativa,concretizadanafigurado«administrador-etnólogo»,casavaosinteressescientíficoseospolíticos.

Estaacumulaçãodainvestigaçãoantropológicaedastarefasdeadministraçãocolonial resultou numa prática antropológica comprometida com o projectocolonialistaeassimrealizou-senocontextodocompromissopráticoe relaçãodesigualentreaspartes.AesterespeitoAnnStolereFredCooperalertamque,porumlado,estascondiçõesdaproduçãodaantropologiacolonial,obscurecemasmultiplicasinteracçõesentreraçaeetnicidade,géneroeclasse,enquantoporoutroladosãousadasparaorganizaressasrelações69.

Osadministradores-etnólogos,produziriamtrabalhosimprescindíveis,comofontesetnográficas,masque,querquantoaosfinsexpressos,quernosconceitosutilizados,enainterpretaçãoantropológica,revelamasuaformaçãobásica,comofuncionárioscoloniais,eainfluênciadagrelhadeanáliseevolucionistaenunciadano inquéritode1946,alémdosseus trabalhos teremquesersancionadospelogovernadordacolónia,oquelimitavaasuaindependênciacientífica.Setivermosem conta estas limitações, muitos dos trabalhos produzidos pelos etnólogoscoloniais,fornecemdadosmuitoúteissobreascrenças,línguas,estruturassociaise costumesque fora deles não se encontram.No entanto, temde se levar emcontaqueasuaformaçãocientificaeralimitada,eactuavamcomosensocomumdospreconceitoseelementosdaculturaportuguesa.Muitasvezes,especialmentetratando-sedeaspectosdavidasocialdosnativosquecolidiamcomacultura

66 JoséMendesMOREIRA,“EstruturadasComunidadesRuraisnaGuinéPortuguesa.SuaPromoçãoeIntegraçãonoComplexoSocialPortuguês” inBoletim Cultural da Guiné portuguesa,XVIIn.º67,(1962),p.470.

67 E.EVANS-PRIChARD,la femme dans les sociétés primitives,Paris,PressesUniversitairesdeFrance,(1ªed.1965),1971,p.45.

68 PeterOscarSaleminkPELS‘Five thesesonethnographyascolonialpractice’, inHistory and anthropologyvol.8n.º1-4,(1994),pp.1–34.

69 FrederickCOOPEReAnnLauraSTOLER(eds.),Tensions of empire. Colonial Cultures in a Bourgeois World,Berkeley,:UniversityofCaliforniaPress,1989.

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dosadministradores,nomeadamentecrençasmágico-religiosas,poligamia,vidasexual,relaçõesdegénero,assuasopiniõessãotendenciosas.

Concordantemente,Evans-Prichardsublinhouoscuidadosaternaavaliaçãodas representaçõesdasmulheres africanas, sobretudo aquela realizada a partirdos dados deixados pelos viajantes, administradores e missionários70. Por suavez, Santa Rita é particularmente crítico das condições científicas da práticaantropológicadosadministrativos71.Segundoesteautor,osdeveresprofissionaisdos administrativos não lhes deixava tempo para se dedicarem a estudospuramentecientíficos,osseuspreconceitosprofissionaisinfluenciavamassuasapreciações, seriamnaturalmente levados a concentrar a atençãonos aspectosdavidasocialcomaqualosdeveresdoseucargoospõemmaisemcontacto,eparticularmente os que lhe originampreocupações, desprezandoos problemasdavidaindígenamaisdifíceisdeobservar.Alémdissooadministradorteriaumanaturaldificuldadeemtratarosindígenasempédeigualdadeesemcerimonia,deformaaquepossaadoptarumafeiçãoobjectivadeobservaravidaindígena»72.

Semnenhumaoucomumalimitadaformaçãoacadémicaemetnologiaouantropologiaculturalesocial,a«autoridadecientífica»73,dosadministradores-etnólogos,advinhadas suaspróprias funções.TeixeiradaMotaafirmaqueosfuncionários administrativos são implicitamente os que mais sabem sobre arealidade local afirmando, a propósito dos antecedentes da investigação sobrea habitação indígena, que «A ideia para vingar, precisava naturalmente dacolaboraçãodemuitaspessoas.Sucessivamenteelasforamsendoreunidas,quasetotalmente entre os funcionários do quadro administrativo, indiscutivelmentequemmaissabiadoassunto»74.Presumia-sepoisqueosfuncionárioscoloniaistinhaminteresse,econhecimentoetnológicos,emconsequênciadasfacilidadesque o exercício das funções administrativas facultavam ao conhecimento e áinvestigação antropológicas. Concordantemente, António Carreira legitimaa sua autoridade antropológica acerca da vida indígena, explicitamente pelodesempenhodassuasfunçõesadministrativasjuntodestes:«De1945a1952(…)administreiaregiãodosManjacosedosBrames(…).Ocontactofrequentecomumapopulaçãotãolaboriosaedinâmicapermitiuqueconhecesse(…)osmaisvariadosaspectosdavidadosManjacoseBrames.Percorrioterritórioemdiversossentidos,apé,aoexecutaroarrolamentodepalhotas,assistidepertoaodesenrolardascerimóniasdo«fanado»,dos«choros»(…)dasmutilaçõespigmentares,dos

70 E.E.EVANS-PRIChARD,la femme dans les sociétés… cit.71 SANTARITA,“NotasCriticasdeIntroduçãoaoEstudodaEtnosociologia”,inestudos sobre a

etnologia do ultramar n.º84,1961,p.1.72 SANTARITA,“Notas...”,cit.,p.14673 Ver,apropósitodoproblemada«autoridadeetnográfica»JamesCLIFFORDeGeorgeMARCUS,

(eds.),Writing culture. The poetics and politics of ethnography, Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1986.

74 AvelinoTeixeiradaMOTA,“ClassificaçãoeEvoluçãodaCasa...”,cit.,p.12.

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casamentos(…)dasconsultasde«irã».Resolvipleitoscomplicados,morosos,depropriedades,de«reinanças»dearrendamentode«canaques»(…)depalmeiras.Vi nascer e morrer muita criança de mama e enterrar adolescentes, adultos evelhos.Sentiosproblemasprementesdapopulaçãoeemgrandemedidaauxilieiouprocureiasoluçãomaisjustaparaosinteressados.Pustermoamuitaexacçãode agentes subalternos da autoridade e julgo que fui sempre justo (…).Tudoissomeauxiliouaconhecerecompreenderaterraeosseushabitantes»75.Nestaconcepçãootrabalhopráticodaadministraçãocolonialsubstituíaouequivaliaàobservaçãoparticipante,queMalinovskiintroduziucomométodoespecificodaantropologia76.

Alémdestasrazõesacimareferidas,ofactodesteconhecimentocientíficoserproduzidoessencialmentepelosadministradorescoloniais,todoseleshomens,condicionouasuaperspectivaandrocêntrica,naselecçãodainformaçãoarecolherenasuaposteriorinterpretação.Nestesentido,apropósitodaNigériaColonial,Callawayafirmaque«Formedforthepurposeofgoverningsubjectpeoples,theColonialServicewasamaleinstitutioninallaspects:its‘masculineideology”,its military organization and processes, its rituals of power and hierarchy,itsstrong boundaries between the sexes»77. Os agentes coloniais projectaram assuas perspectivas androcênticas das representações das relações de género dasua própria sociedade, na percepção das relações de género africanas, o quetevesignificantesrepercussõesnaproduçãoetnológicacolonial,assimcomonaconstruçãodanovaordemsocial,económicaepoliticacolonial.

Este facto relaciona-secomapráticademesmoquandoasmulheres, emalgumassociedadespré-coloniais, teremexercidoimportantespapeispolíticos,religiososerituais,eassuasactividadeseconómicas,nomeadamentenocomércio,serempatentes, a administração colonial, assumirque aposiçãodasmulhereseradependenteesubordinadaaoshomens.Assimasautoridadesadministrativascoloniais dirigiam-se maioritariamente aos homens78 e, em alguns casos, estaestratégia reduziuopodereconómicoepoliticodasmulheresduranteaépocacolonial.

Procurando caracterizar as relações de género especificamente africanas,abstraindo os particularismos, alguns autores invocam as característicasde participação pública das mulheres nas esferas económica e religiosa e,essencialmente, a autonomiadamulhernaproduçãoegestãode rendimentos,associadaàdivisãodotrabalhoeaosdireitosedeveresdasmulheresenquanto

75 AntónioCARREIRA,“GuinéPortuguesa...”,cit.,pp.735-736.76 BronislawMALINOVSKI,“OsArgonautasdoPacificoOcidental”,ethnologia, n.º6-7(1997),

pp.17-38.77 helenCALLAWAY,Gender, Culture and impire european Womem in Colonial nigeria,Oxford,

McmilionPress,1987.78 helenCALLAWAY,Gender, Culture…, cit., pp.51-52.

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mães. Segundo Diop79 é o estatuto estrutural acordado à «maternidade» emÁfrica,queéoprincipalfactordediferenciaçãoentreasvivênciashistóricasdasmulheresafricanaseeuropeias,namedidaemqueentreestasúltimasimplicaasuadependênciadoshomensenquantoemÁfricaéacondiçãomesmadoseupodereestatuto.Porsuavez,Amadiume80consideraqueosistemaderelaçõesdegéneroafricanassebaseianumalimitaçãodasideologiasdegénero,emqueosvaloresmatriarcais epatriarcais coexistem, justapondo-se, sendoaunidadebásicadereproduçãoeproduçãoa«unidadematricêntrica»,enquantoqueaníveldaorganizaçãodeparentescoosistemapatriarcaldomina81.Estacoexistência,adiferentesníveisdaorganizaçãosocial,deideologiasdegéneroantagonistas,engendraumpotencialparaconflitos,masproporcionaigualmenteumpotencialendógenoparaaobtençãodepoderdasmulheresnassuasprópriassociedades82.

Em síntese, a etnologia colonial, negligenciou a realidade e vivênciasfemininas,assimcomoosseuspapeissociaisepolíticosnassuascomunidades,eignorouasrelaçõesdegéneroquediferiamdasdasuaprópriasociedade,paraprivilegiar a descrição do exotismo e «primitivismo» da condição femininaindígena. hoje é consensual entre os estudiosos da questão das mulheresafricanas que, estas têmdiversos níveis de independência económica, emboraestejamsubmetidasàautoridadedopaioumarido.EsposasemaridosemÁfricageralmentetêmrendimentosseparados,comclarasobrigaçõesfinanceirasparacomosseusfilhos,oseuesposo,ealinhagemdeste.Asmulherescasadastêmodireitodeadquirirpropriedadesquesãoseparadasdasdosmaridos,emuitasvezesdesconhecidasdoscônjuges,eosnegócioscomerciaiserendimentosforadas obrigações maritais são considerados assuntos privados das mulheres. ArecenteproduçãocientificasobreasmulheresemÁfricasublinhaestesaspectose o impacto das associações de mulheres, assim como as suas actividadespoliticasereligiosaserituais,nasuaposiçãosocialnassociedadespré-coloniaisafricanas.83

79 CheickhAnta DIOP, The Cultural unity of Black africa: The domains of matriarchy and of patriarchy in Classical antiquity.London,Karnackhouse,1989.

80 IfiAMADIUME,male daughters, Female Husbands. Gender and sex in an african society,LondonandNewJersey,ZedBooks,1987.

81 IfiAMADIUME,male daughters...,cit.,pp.21,22,83,115.82 KameneOKONJO,“TheDual-SexPoliticalSysteminOperation:IgboWomenandCommunity

Politics inMidwesternNigeria”, inhafkin&Bay (eds.), Women in africa: studies in social and economic change.Stanford,StanfordUniversityPress,pp.45-58,1976;AprilGORDON,Transforming Capitalism and patriarchy.Gender and development in africa,London,LynneRiennerPublishers,1996,pp.85-86;PatriciaSTAMP,Technology, Gender and power in africa,Ottawa,InternationalDevelopmentResearchCenter,1989(textopolicopiado),p.84.

83 Ver a este propósito, Maria Manuela Borges DOMINGUES, estratégias femininas entre as bideiras de Bissau,(tesedout.AntropologiaCulturaleSocial,UniversidadeNovadeLisboa,669pp.(emlinha)DisponívelemURL:<http://www.iict.pt/tdd/bdtddol/TDD0100111.pdf>(Consult.25Setembro2009).

MANUELABORGES82

Emsíntese,aantropologiaproduzidapelosagentescoloniaisnãoreconheceuasmulhereseasrelaçõesdegéneroafricanas.EstaconclusãoécorroboradaporCallowayquandoafirmaque‘itwasasthoughwomenhadbeeninvisibletotheexclusivelymalecolonialadministrators84‘

Conclusão

Portugal foi o país europeu pioneiro no estabelecimento de relaçõescomerciaiscomaactualregiãodaGuiné-BissaumascedofoiultrapassadopelaconcorrênciadeoutraspotenciaseuropeiasincentivadaspelaprocuradeescravosparaaAméricaeAntilhas.SónoúltimoquarteldoséculoXIX,emrespostaàpressãoquelevariaàpartilhadocontinenteafricanonaConferenciadeBerlim(1884-1851), Portugal iniciaria uma politica de colonização efectiva. Datadesta época a independência administrativa da Guiné-Bissau de Cabo-Verde.Uma estrutura administrativa desenvolvida apareceria muito mais tarde, emconsequênciadeumanovapoliticacolonialelaboradapeloEstadoNovo(1927),quefariaquintuplicarem20anosonúmerodefuncionáriosnacolónia85.

Após assegurar o domínio do território, era necessário gerir eficazmenteoprincipalrecursoeconómico,aspopulações.Se,em1936,comaderrotadosBijagósdeCanhanbaque,temlugaraúltimarevoltaarmadapré-colonialcontraos Portugueses, marcando o início da efectiva dominação política portuguesasobre a Guiné86, logo uma década depois, tem lugar o último «InquéritoEtnográfico»»eépublicadooprimeironúmerodoBoletimCulturaldaGuinéPortuguesa inaugurando, «(...)um novo e fecundo período na investigaçãoetnográfica»,naspalavrasdeAvelinoTeixeiradaMota87.Noprimeironúmerodo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, o próprio Ministro das Colónias,ProfessorMarceloCaetano, traça o enquadramento da pesquisa antropológicanaGuiné,sublinhandooseupapelnoâmbitoda«colonizaçãocientífica»,quetinha,porfinalidade,«(…)civilizar,melhorarohomem,valorizaroterritório.»88,

84 E.N.MBA,nigerian Women mobilized.Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1982,p.38.85 RosemaryGALLIeJocelynJONES,Guinea-Bissau. politics, economics and society,London,

Frances Pinter Publishers e Lynne Rienner Publishers, 1987, p. 34. Estes funcionários eramrecrutadosmaioritariamente emCabo-Verde o que levaria á constituição de uma elite crioulacabo-verdianaqueteriaumpapel importantenasociedadedaGuiné-Bissau,antesedepoisdaindependência.

86 ApósaúltimagrandecampanhamilitarlideradaporTeixeiraPintoem1915,continuaramahaverbolsasderesistência,comoasrevoltasdosBijagósem1917-1918e1924e1936,anoemqueailhadeCanhambaquefoifinalmente«pacificada»,parautilizaraterminologiadoregimecolonialportuguês.

87 AvelinoTeixeiradaMOTA,inquérito etnográfico..., cit.,p.16.88 Vero Boletim...,cit..

OCONhECIMENTOETNOLóGICODAGUINÉ-BISSAU.UMAPERSPECTIVADEGÉNERO 83

institucionalizandoaciênciaantropológicanaGuiné,eligandoassuasorigensàpolíticacolonialista89.

Esta relação intima entre a etnologia e a administração colonial, viria adarlugaràfiguradoadministrador-etnólogoque,nasegundametadedoséculoXX,produziriaogrossodadocumentaçãoetnológicasobreaGuiné,segundooparadigmadaadministraçãoinformadapelaantropologia90.AvelinoTeixeiradaMota,umdosmentoresdainvestigaçãocientíficanaGuiné,etambémumdosmaisimportantesautoresdetrabalhossobreaGuiné-Bissau,concebiaotrabalhodoinvestigadorsocial,comoumaprática«humanista»91,reiterandoaconcepçãode Malinowski, sobre o papel filantrópico do antropólogo, que orientava aadministraçãocolonial,emdefesadaspopulaçõesdominadas92.

. A aplicabilidade e utilidade prática da antropologia, privilegiando asdiferenças, instrumentalizava o próprio processo epistémico da antropologia,fraccionando a espécie humana, e descrevendo e identificando populaçõesparticulares, e problemas sociais específicos, criando pontos de referênciapara a intervenção administrativa, tornando exequíveis uma série deprojectosintervencionistas. A Antropologia será politicamente usada enquanto«legitimaçãocientífica»ejustificaçãofilantrópicadoempreendimentocolonialeuropeu.O evolucionismo antropológico subjacente à produção antropológicacolonial,pressupunhatodasassociedadeshumanassubsumidasacertasleisdedesenvolvimento, que destinavam estas sociedades a atingir as condições dacivilizaçãoocidental93.Entreestateoria,eapolíticaassimilacionista,elaboradapelo Estado Novo, existem muitas semelhanças. Ambas denigrem os usos ecostumes indígenas,epressupõemasuaprogressivaeliminaçãoesubstituiçãopelasnormasmoraisesociais«civilizadas».Acolonizaçãoerapoisaextensãoplanetáriadacivilização,eaadministraçãocolonial,o instrumentodapartilhadosbenefíciosdaciênciaedoprogresso,comaspopulações«atrasadas».

Decorredoquefoiditoqueaantropologiacolonialfoiproduzidanumcontexto assimétrico de relações de dominação entre os colonizadores e oscolonizados,sendopoisasrepresentaçõesproduzidaspelosprimeirosdeformahegemónicaeetnocêntrica.

89 OBoletim Cultural da Guiné portuguesacomooCentrodeEstudosdaGuinéPortuguesa,dequeoprimeirodependia,contaram,entreosseusmentoresecriadores,comopróprioGovernadordaGuiné,ComandanteSarmentoRodriguesedo2ºTenenteAvelinoTeixeiradaMota.

90 Mesmo,seestateve,defacto,poucoimpactonaspolíticascoloniais,permitiuaopodercolonialreivindicarumasuperioridadeepistémica.

91 GilbertoFREYRE,«homenagemàObradeAvelinoTeixeiradaMota»,inVice-almirante a.a Teixeira da mota, in memorium.Lisboa,IICP/AcademiadeMarinha.vol.II,1989,p.188.

92 Bronislaw MALINOWSKI, les dynamiques de l’evolution Culturelle. recherche sur les relations raciales en afrique,Paris(1.ªedição1961)1970,pp.20-21.

93 hilary CALLAN, ethnology and society Towards anthropological View, Oxford, ClarendonPress&Cambridge,CambridgeUniversityPress,1970,p.19.

MANUELABORGES84

É neste contexto, das relações de poder assimétricas entre colonizados ecolonizadores, que foi elaborada a representaçãodamulher autóctone, onde amulherafricanaeraduplamentedesvalorizada,nabasedaraçaedogénero.

Amaioriadasmulhereséexcluídaàpartidadosobjectivosfundamentaisda prática etnológica colonial, aparecendo aqui e além em situações quepontualmente

lhes conferem maior visibilidade. As tarefas consideradas adequadas àsmulheres, isto é, conformes aos papéis da mulher ocidental, consistiam nastarefasdomésticasedaesferaprivada.Asrestantesparticipaçõesnavidapolitica,religiosaeeconómicadasmulheres,sãoconsideradas,«exóticas»namedidaemqueeramdissemelhantesdoparadigmadasrelaçõesdegéneroocidental.Édesalientarqueaproblemáticafemininaeraestranhaàépoca,eparticularmenteaosadministrativoscoloniais,funçõesexclusivasdehomensdeculturaocidentale,porconseguintealheiaàspreocupaçõesdaetnologiacolonial.Deacordocomoexposto,ocontributodasfontesbibliográficasemreferência,noqueconcerneàparticipaçãodasmulheresnavidaeconómica,social, religiosaepoliticadasmulheresdassociedadesautóctones,emtemosdeaprofundamento,édiminuta.

A reflexão da antropologia, após a segunda guerra mundial, sobre o seupróprio percurso científico, elaborando a sua própria crítica epistemológica,produziutrabalhossobreosefeitosdacolaboração,práticaentreantropologiaecolonialismo.Progressivamente,temvindoasofisticarassuasanálises,centrando--senaquestãodasassimetriasdarepresentação,presunçãodeautoridade,enosmodos como as construções antropológicas das diferenças culturais, podemeliminarasdiferençassexuaiseoutras,e«fetichizar»certostiposdeautenticidadeexótica94.

A conotação da antropologia com o colonialismo, enquanto discursoconstruído pelos europeus e para o mundo Ocidental, poder e discurso sendopossuídosexclusivamentepelocolonizador,levouaque,apósaindependênciadaGuiné-Bissau,todaaestruturacientíficacriadaduranteocolonialismo,fosseabandonadaevotadaàextinção.OsacervosdoMuseueBibliotecaextraviaram--se,peranteodesinteressedopoderpolítico, eoCentrodeEstudosdaGuinéPortuguesaextinguiu-senaturalmente,naausênciadosmembros,queserefugiaramnoutrospaíses.quandoem1984,apósumadécadadeindependência,écriadooInstitutoNacionaldeEstudosePesquisas(INEP),enquadrandoapolíticadeinvestigaçãocientíficadonovoEstadoindependente,«...ainvestigaçãocientíficanaGuiné-Bissauentrounumafaseinteiramentenova.»95

94 NicholasThOMAS,Colonialism’s Culture...,citp.19.95 INEP,Catálogo de publicações: 1985-1990s/d,p.4.

OCONhECIMENTOETNOLóGICODAGUINÉ-BISSAU.UMAPERSPECTIVADEGÉNERO 85

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PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI 89

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI:DAIMAGEMDADIFERENÇAAO

REFORÇODAPROXIMIDADE

ana Cristina roque*

“quilloa e cittade in arabia in una insuleta giuncta a terra ferma ben populata de buomini negri e mercadanti, edificata al modo ñro. (...) abundantia de ouro, argento, ambre, muschio, e perle (...) vesteno panni de fera; e bambari fini...

(sofala) ..e una insula alla bocca dum fiume habitata da molti mercadari dove e ouro infinito qle gli vien portato da le mediterranee parte de la aphrica ha buomini picoli de corpo e forte; e molti monstruosi; quali mangiano carne humana...”

Copia de una lettera del rei di portugallo al re di Castella(1497/1500),ImprensaNacional,Lisboa,1906.

AssimapresentouD.ManuelacostaOrientaldeÁfricaaosReisdeCastela,na viragem do século XVI, e na sequência das informações decorrentes dasprimeirasincursõesportuguesasnoÍndicoAfricano.

ÀimagemdomundourbanoecivilizadodacostaNorte,emqueascidadesislâmicasdequíloa,MombaçaeMelindesurgiamcomoverdadeirasmetrópoleseosseushabitantes,postoquenegrosemouros,seenquadravamnosestereótiposdefinidos e aceitespeloOcidente como“civilização”,D.Manuel contrapunhaainda a imagem dos negros monstruosos e antropófagos das terras do Sul,

* InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical.DepartamentodeCiênciashumanas/ProgramadeDesenvolvimentoGlobal.

ANACRISTINAROqUE90

persistindonumaapresentaçãomíticae fantasmagóricadosafricanos,criadaeacarinhadaduranteséculospeloimaginárioocidentalequetem,nasdescriçõesdeLeãooAfricano,umdosseusmelhoresexemplos.

“quei della Terranegra sono uomini bestialissimi, uomini senza ragione, senza ingegno, e senza pratica:...e vivono pure a guisa di bestie, senza regola e senza legge, le meretrici tra loro sono molte; e per conseguente i becchi, sennon se alcumi che abitano nella città grandi. elli infine ánno poco più del sentimento umano.”1

Por sua vez, e inerente a este mesmo conhecimento, os contactos comos vários povos africanos, tanto naCostaAtlântica quanto naCostaOriental,deixavamsemfundamentoateoriadaszonasinahabitáveisdaterraque,emboraremontandoaoséculoVAC,havia sidoamplamentedifundidanaEuropaporSacrobosconoseuTratado da esfera2.Nãosóaszonastemperadasofereciamcondiçõesparaoestabelecimentodaspopulações,comooequadoreazonatórridaestavamlongedeserinóspitoseintransponíveis.Aliomarnãoferviae,nassuasmargens,homenscomonósprovavam-nosoquantoestávamosenganados.

Lançadosnaaventuradaexpansãoedosdescobrimentos,osportuguesesvieram,deformadecisiva,contribuirparaumanovavisãodohomemedomundo.Bordejandoambasascostasdocontinenteafricano,asviagenseasnavegaçõesdosportuguesesnosséculosXVeXVI,obrigaramaumarupturadefinitivacomumaimagemdomundoedosseushabitantesqueoOcidentetinhaconstruídoealimentadoaolongodeséculos.

Apesardasevidênciasrelevantesde taisviagens,muitosforamosqueserevelaramincapazesdeadmitirumaalteraçãotãoprofundaeque,continuandoagarradosà imagemdeummundonoqual“...para além da terra, das ilhas e dos desertos [do] preste João, dirigindo-nos para oriente, nada se encontra, à excepção de montanhas e grandes rochedos e a região tenebrosa onde nem se podia ver nem o dia nem a noite, como os habitantes da região testemunham”3,perpetuaram,noretratodoshabitantesdetaisregiões,osvelhosmitosdeseressemi-humanossemi-animais,cujoscostumesselváticosebestiaisestavamlongedepoderenquadrá-losnoconceitode“homemcivilizado”,dequeoOcidenteseconsideravaexemploúnico.

1 “Descrizione dell’e Affrica per Giovan Leone Affricano”, in Giovanni Battista RAMúSIOViaggio (il) di Giovan leone e le navigazioni,Veneza,1837,p.30.

2 Vd.LynnThORNDIKE,The sphere of sacrobosco and its Commentators,UniversityofChicagoPress,1949.

3 MalcolmLETTS,“Mandeville’sTravels,TextsandTranslations,Londres,hayluytSociety,1967(reed.),cit. inW.G.L.RANDLES,da Terra plana ao Globo Terrestre,Lisboa,Gradiva,1990,p21.

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI 91

Aosolhosdoseuropeus,osusosecostumesdesseshomens,esobretudooseuaspectofísico,colocavam-nosnoúltimodegraudaescaladoshumanos.Asuaapresentaçãoexploravaadiferençaeadissemelhançaparasublinhar,deformaintencional,nãooquepodiasertidocomo“anormal”porreferênciaaomodeloeuropeu,masoqueseconsideravacomo“animal”e“selvagem”,poroposiçãoao“humano”e“civilizado”.

“la più parte di questo non sono nè maumettani, nè Guidei, nem men credono in Cristo; ma sono senza fede e senza non pur religione, ma ombra de religione alcuna: dimodochè nè fanno orazione, nè tengono chiesa; ma vivono a guisa di bestie (...) quegli di libia sono bestiali, ignoranti, senza lettere di niuna sorte, ladri e assassini; e vivono come fanno gli animali salvatiche: sono eziandio senza fede e senza regola;(...) tutto il tempo della vita loro consumano, o in far male, o in cacciare, o in far tra lor guerra, o in pascer le bestie per il deserti: e sempre vanno scalzi e nudi”.4

Nestecontexto,aideiaquepresideaestetrabalhoéjustamenteadesublinharque, pese embora o perpetuar destes escritos e de toda a conceptualização efilosofiaqueosenvolve,adocumentaçãoportuguesadoiníciodoséculoXVI,testemunha,deformaclaraeinequívoca,aconsciênciadeumarealidadediferente.Eaindaquepersistamconsideraçõesquecontinuamadeixartransparecerestaideiados“negrosbestiais”,aexperiência,que é madre de todalas cousas,tendeacorrigi-las,aafeiçoa-las,conferindo-lhesprogressivamenteuma“humanidade”que resulta não tanto do reconhecimento da diferença quanto, sobretudo, daconstataçãodeumaproximidade.

Talnãosignificaqueodiscursooficiallhesconfiraestatutodecivilizadoou lhes reconheça o direito à sua individualidade histórica, baseada empadrões culturais e de comportamento diferentes dos valores ocidentaispersistindoainda,emmeadosdoséculoXVI,emesmoquandoemcausaestãoas gentes do Mwenemotapa “de maior entendimento que a outra que corre contra moçambique”5,uma imagemdegentenegra, idólatra, acreditandoemagouros e feitiços, alarves, bárbaros como a própria região em que vivem,gente que come carne humana e que sangra ao animais para lhes beber osangue6.

Porém,eestaéumaquestãoqueultrapassaemmuitoatemáticaespecíficaaqui tratada e que respeita a toda a problemática da história da Expansão edosDescobrimentos, este insistir no perpetuar de uma imagemdo selvagem,

4 “Descrizionedell’eAffricaperGiovanLeoneAffricano...”,p.30.5 João deBARROS, Ásia – década i, LivroX,Cap. 1, ImprensaNacional –Casa daMoeda,

Lisboa,1988(reed.),p.376.6 Idem,Caps.1e2.

ANACRISTINAROqUE92

serinferior,quiçáanimalimpossívelmesmodefazeraceitarapalavradivina,perpassa as linhasmestras queorientama expansão inicial, contribuindoparaalimentaraprópria“políticadesigilo”e,posteriormenteparaodesenvolvimentode políticas de exclusão e de marginalização, de que a prática esclavagista éexemplobemconhecidodetodos.

Àépoca,talcomohoje,opoderdainformação,impunha-sepelorecursoàdicotomiaentresaberenãosaber,expressanopermanentetraçardafronteiraentre oque se conhece e oque é dado a conhecer, e legitimadapela própriainiciativadequem,aventureirooujáconscientedoqueahistóriairiaconfirmar,se lançou pelo Oceano em busca de outros mares, outros espaços, gentes ecredos,dequeapenassepressentiaaexistênciaequeurgiaanecessidadedeconfirmar.

Conseguirchegaraoâmagodestaquestão,serátalvezumdostemasmaisfascinantesda“nossa”históriadaExpansãoedosDescobrimentosjáquenelaseinscreveaideologiaqueasustentaedeladepende,emúltimainstância,opoderdecontrolaroqueseconhece,abrindoapenaseeventualmenteumaligeirabrechaquepermitaaosoutrosparticipardeumconhecimento,depuradoefiltrado,queterádepresumir-secomo real. JoãodeBarros foi,nestecontextoeenquanto“cronistaoficialdoreino”,umdosmelhorespaladinosdestaconstrução7.

Porsuavez,todaequalquerreflexãoquesefaçaemtornodestaquestãonãopode,oupelomenosnãodeve,marginalizaroutrasquelhesãoinerentes,designadamente, asque se referemà escolhapréviada informaçãoautilizar,ao testemunho directo e vivenciado de quem informa ou naturalmente, aotestemunho,porvezestambémdirectoevivenciadomasquecorrespondenãoexactamenteàrealidademasaoqueosPortuguesespretendiamquefosseessarealidadeou,emúltimainstância,aoqueoficialmentedeveriaserdito.

Todasestasquestõesinterferemdirectamente,tantonaimagemconstruídaequesedáaconhecer,quantonumaimagemmaispróximadoreal,apoiadanosrelatosenasdescriçõesdequem,nãotendosobresiaresponsabilidadeoficialdoconhecimentoé,de facto,oprincipal responsávelpelodiálogoquotidianocomasgentesda terraeque,por isso,detémaposiçãoprivilegiadadepoderrelatar a “realidade”. Ainda que, naturalmente, a “realidade” não possa serconsideradaemabsoluto,comoúnica,verdadeiraeindiscutívelpelacomponentede subjectividadeque encerra epelasmúltiplas leiturasque, por essamesmarazão,delasepodefazer.

Aobjectividadeque seganhacomadistânciapermiteumaanálisemaisracional, expurgada das emoções que envolvem o relato de quem vive o

7 AnaCristinaROqUE,“ACostaOrientaldeÁfricana1ªmetadedoséculoXVIsegundoJoãodeBarrosoudolugardaCostaOrientalAfricananahistoriografiaImperial”,d. João iii e o império – actas do Congresso internacional Comemorativo do seu nascimento,Lisboa-Tomar,4-8deJunhode2002,Lisboa,2004,pp.121-137.

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI 93

momento. Porém, ainda que não possam ser recuperadas para a história, asemoções constituemuma componente fundamental na relação comos outrose o mundo que nos rodeia e sem elas, a história, perderia uma componenteessencial:asuahumanidade.

Na miríade de documentos do século XVI, os relatos de naufrágiosconstituemumcampoprivilegiado para a compreensão desta componente dahistória,perceptívelnumregistomarcadosobretudopeladimensãodamemóriae da sobrevivência. Escritos a posteriori, e preservando quase à flor da peleasemoçõesdosmomentosdadesgraçaeda tragédia, estes textosconstituemaindaassimexemploparadigmáticodeumregistominuciosoedetalhadoquenos permite hoje refazer percursos e precisar informações sobre as gentescontactadas e as regiões percorridas. Embora quase sempre abordados numaperspectivadehistóriatrágico-marítimaindissociáveldaexpansãoportuguesa,estesrelatosconstituem,defacto,osprimeiros itinerários terrestresfeitosporeuropeusnaÁfricaAustraledeles resultouocorpusdocumentalmaisantigosobre o hinterland da costa Sul Oriental de África. Um corpus documentalriquíssimoequeconstituihoje,também,umtestemunhopreciosoparaperceberadesconstruçãodosmitosemque,noiníciodoséculoXVI,seenvolviaaindaaapresentaçãodoshomensedasterrasdetodaaregiãoaustraldocontinenteafricano.

Aindaquenãosejanossa intençãoexploraraquiomundodosrelatos de naufrágiosnãopodemosdeixardereferirasuaimportânciaparaoconhecimentodas terras e gentes das zonas atravessadas pelos sobreviventes, sobretudo dasáreasinterioresconfinantescomolitoralentreaAngradeSãoBráseSofala.Esseconhecimentoereconhecimentoexpressaaformacomoessassociedadesforampercebidas pelos europeus permitindo-nos hoje recuperar aspectos particularesque contribuempara uma representação e conceptualização doOutro à “nossaimagemesemelhança”,porcontrapontoàimagemoficialdos“negrosselvagensebestiais”.

Jávimosque,naviragemdoséculoXV,acartadeD.Manueléclaraquantoàquestãodoquesedeveriadaraconhecere,defacto,seránecessárioesperarmaisdeumséculoparaque,oficialmente, se assumaoutra atitude.Contudo,olhandodepertooutradocumentaçãodomesmoperíodo,constatamosqueoqueseconheciadefacto,nemsemprecorrespondiaaoqueeradadoaconhecer.

De um modo geral, as informações do primeiro quartel do século XVI,apontam para uma progressiva desmitificação que decorre e acompanha oreconhecimentodo litoral africano,dos seus recursos epotencialidades edascomunidadesquealihabitameosaproveitam.

Note-sequeestamudançanapercepçãoeapreciaçãodoOutrotransparecelogonosprimeirosdocumentos,designadamentenosrelatosdaprimeiraviagem

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deVascodaGamaàÍndia8edaviagemdePedroÁlvaresCabral9,aindaqueoprimeiroestejanabasedajáreferidacartadeD.Manuel.

Emqualquerdestesdoistextos,aimagemdoOutrosurpreendesobretudopelos aspectos em que reflecte não tanto a diferença mas a proximidade esemelhança.Levandona cabeça a imagemdosnegrosbestiaisquepovoariamas regiõesaté aí tidaspor inóspitas e inabitáveis, e apesardenuncadeixaremde sublinharoqueos separadestasgentes, oque surpreende esteshomens é,principalmente,ofactodesereconheceremasiprópriosnooutro.Expressando-seessereconhecimentonãosónaapreciaçãodasgentescomotambémnaprópriapaisagemquereplicaambientesehabitatsquelhessãofamiliaresemPortugalenabaciadoMediterrâneo.

ÉassimqueaimagemdoshomensbaçosdaAngradeS.BrássevêafeiçoadaporÁlvaroVelho.OsmesmosnegrosquehaviamapedrejadooshomensdeBartolomeuDiasenquantoalifaziamaguada,apesardetraiçoeiros10edecontinuaremamostrarumacertahostilidadeedesconfiançarelativamenteaoestrangeiroque lhes tiraaágua, revelam-se sensíveis porque conhecedores e amantes da música, pois “...começaram logo de tanger quatro ou cinco flautas, e uns tangiam alto e outros baixo, em maneira que consertavam muito bem para negros, de que se não espera música”11.Depois,maisaNorte,omesmoautorinformadecomoaMartimAfonso,queVascodaGamamandou sair em terra, osnegrosdoRiodoCobre “fizeramgazalhado”eda recepçãosimpáticaeamistosaqueapopulação indígenaali fezaosportuguesesque,porisso,chamaramàquelaterraaTerradaBoaGente.Destaforma,eaindaquemuitotimidamente,sevaireconhecendonoOutroostraçosdeumahumanidadeque,àpartida,lheeranegada.

Emseguida,oolhardoobservadoratentoquefoiÁlvaroVelhooumesmodo anónimo autor que relata a viagem de Cabral, vai registando que tambémaqueleshomenssão,comoosocidentais,agricultores,pastoresecomerciantes,reconhecendo-lhesprocedimentossemelhantesaosusadosnaPenínsulaIbéricaehabitandoumaregiãoqueemtudolheeratambémmuitosemelhante.NaAngradeSãoBrás,porexemplo,marca-seogadoparavendaealbardam-seosboisàmodadeCastela12,apaisagempontua-sedeespéciesvegetaisquelembramasestevaseoszambujeirosdabaciadoMediterrâneo13e,entrea faunamarinha,

8 ANóNIMO, relação da 1ª Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-98 Álvaro Velho?),BibliotecadaExpansãoPortuguesa,vol.I,Lisboa,Alfa,1989(apresentaçãoecomentáriodeLuísdeAlbuquerque)

9 “RelaçãodoPilotoAnónimo(1500)”,publicada in JaimeCORTESÃO,a expedição de pedro Álvares Cabral e a descoberta do Brasil, ObrasCompletas,vol.XII,Lisboa,Portugália,1967.

10 ANóNIMO,relação da 1ª Viagem de Vasco da Gama à Índia..., p.27.11 Id.ibidem.12 ANóNIMO,relação da 1ª Viagem de Vasco da Gama à Índia..., p.14.13 RaphaelEduardodeAzevedoBASTO,esmeraldo de situ orbis por duarte pacheco pereira

(1505-1508),Lisboa,1892,p.91.

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enumeram-se desde logo as aves conhecidas dos marinheiros e as que, emmovimentossazonais,usamasrotasquepassampelaPenínsula14.

Prosseguindonumregistomarcadopelaobservaçãoepelodetalhe,indica-sequetambémnestasterras,homensemulherestêmfunçõesdiferentesnasociedade,equeestassociedadessãoigualmentemarcadasporumaestratificaçãosocialemqueariquezaseexpressaporváriosindicadoresprecisos,nomeadamentesinaisexteriores que, como por exemplo, o vestuário, permitem perceber a posiçãodecadaumnasociedade.Eaindaque,talcomonoOcidente,grandescidadesflorescem ligadas à actividade comercial e que, em muitas delas, o luxo e ariquezaemquevivemosseusdirigentesrivalizacomasmaisfaustosascorteseuropeiasdaépoca.

Emquíloa“...habitam...mercadores ricos...(e) os da terra andão vestidos de panos de algodão finos, e de sedas e brocados finíssimos, e são negros”15eemMelinde,quandoosportuguesesseencaminharamparaoPaláciodorei.“...lhes vierão ao encontro muitas mulheres com perfumedores cheios de brazas, deitando-lhes tantos perfumes, que toda a terra estava embalsamada; e assim entraram onde o rei estavam assentado em huma cadeira...”16

Neste contexto, como continuar a sustentar a imagem do selvagem e donegrobestial?Maugradoapersistênciadeumdiscursooficialquecontinuaamarginalizarestassociedades,equeemsimultâneosustentaesublinhaopapel“civilizador”queparece reservadoaosPortugueses,adocumentaçãodaépocatestemunhaafragilidadedesta imagemaocontraporumquotidianoemqueseevidenciam,sobretudo,ostraçosdeumaproximidadequenosenvolveenosfaz“sentiremcasa”.

Naturalmentequetudooquesedesconheceeseobservaeapresentapelaprimeiravez,édescritonãosócomminúciamas,sobretudo,tendocomotermodecomparaçãoumreferencialconhecido,mesmoquandosecontinuaadarespaçoàimaginaçãoeàfantasia.Sóassimadescriçãosetornaperceptívelecredívelparaquemrecebeainformaçãosemterpresenciadonenhumadassituaçõesdescritas,maspodendodoravanteconstruiroutrasrepresentaçõesdestasemfunçãonãosódoqueseouviucomotambémdosreferenciaisespecíficosrelevantesdoshorizontesprópriosdecadaum.Aprogressivaconstruçãoderepresentações,eventualmenteatécadavezmaiselaboradas,reproduzassimformasdiferenciadasdetransmitiruma informaçãoque se assumiu como real, podendodar espaço, dopontodevistaconceptual,àelaboraçãodeimagensquecombinamrealidade,imaginação,fantasiaecriatividadecomoadofamosorinoceronteafricanodeAlbertDürerou

14 Ana Cristina ROqUE, a Costa oriental de África na 1ª metade do século XVi segundo as fontes portuguesas da época-Anexo5,TesedeMestradoemhistóriadosDescobrimentosedaExpansão,apresentadaem1995àFaculdadedeCiênciasSociaisehumanasdaUniversidadedeLisboa.(Documentonãoeditado).

15 “RelaçãodoPilotoAnónimo(1500)”,op. cit.,p.112.16 ibidem.

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donãomenosconhecidoMapa-mundideFraMauro,queouvindoatentamenteosrelatosdeviajantes,mercadores,aventureirosemissionários,sequestionavaempermanênciasobreoqueincluirounãonoseumapa–“How was i to inscribe what he told me onto my map?”17

Deste modo, expurgadas as fantasias e ao invés de se insistir na tónicade uma representação anquilosada, que sabemos ter sido a oficial, e dasconsequências,acurtoprazo,dapersistênciadessamesmarepresentação,dequetodosconhecemososfunestosresultados,consideramosquevaleráapenaapostarnumaleituradadocumentaçãoportuguesaprivilegiandoascomponentesligadasaoreconhecimento.Nãosódasgentes,usos,costumesesaberes,mastambémdoterritório,recursosepotencialidades.

Porsuavez,enãomenosinteressantedeanalisar,umadasconsequênciasdeste reconhecimento revela-se também na tentativa de hierarquizar epadronizarosafricanosdeacordocomoumaescaladeaproximaçãoaoconceitode“civilizado”eondeseposicionamemprimeirolugaraselitesdemercadoresnegros islamizados e emúltimo, os negros de cabelo revolto que tapam “aspartesvergonhosas”compequenas tangas tecidasapartirde fibrasvegetais,tendo de permeio inúmeras variantes que tendem a identificar os diferentesindivíduoscomogruposocialaquepertencem.E,nestecaso,comdestaqueespecialparaumasituaçãoque,aoOcidental,pareceestranhaeque respeitaaos negros sumariamente vestidos apenas da cintura para baixo, e por issosocialmenteposicionadosnosescalõesinferiores,mascompanosdealgodãoesedavindosdoOriente,oquecorrespondeaumestatutoque,noimaginárioocidental,nãosecompadececomaimagemdehomensemulheresqueandamparcialmentenus.Sentindo-semesmoalgumdesconfortocomestasituaçãoqueescapa à lógica de um modelo ocidental em que escassez se identifica compobreza.

Nestecontexto,esemqueporummomentoquesejaoregistocautelosoeminuciosodestesdadostenhadeixadodeservirosobjectivosespecíficosqueorientaram estas missões de reconhecimento, o empenho que nelas foi postoimpôsqueseolhasseaterraeoshomensdeumaformamaisobjectiva,oqueconfereaestetipoderegistosumlugarparticularsobretudoquandosepretendeabordar o “mundo” da representação dos africanos no Ocidente, no séculoXVI.

Nãopodendo,naturalmente,fazeraquiumaanáliseexaustivadestaquestãoem toda a documentação do século XVI, escolhemos alguns exemplos, daprimeirametadedoséculoquepodem,deper si,constituirumabasedereflexãosobreestaproblemática,designadamente,asinformaçõesprovenientesviagensdeAntónioFernandes(1511-1515),dadasaconhecerporviadosapontamentos

17 JamesCOWAN,a mapmaker’s dream – The meditations of Fra mauro, Cartographer to the Court of Venice,Shambala,Boston–London,1996,p.19.

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de Gaspar Veloso (1512)18 e da Carta de João Vaz de almada para el-rei(1516)19, e os textos de Duarte Barbosa (1516)20 e de Martim Fernandes deFigueiroa (1505-1511)21. Em qualquer dos casos, a tónica das missões dereconhecimento é posta na relação homem / território, seja na vertente deidentificação dos recursos e potencialidades do território e a forma como osmesmossãolocalmenteaproveitados,sejanadaeventualpossibilidadedeacederebeneficiardessesmesmosrecursos;sendoque,tantoostextosquesereferemaFernandesquantoosdeBarbosasão,porexcelência,paradigmáticos,naformacomotransmitemassuasobservações.

Instalados os portugueses em Sofala e após uma apreciação mínima dascondiçõesquepodiaofereceraregiãorefereMartimFernandezdeFigueiroaque,“Elcapitãenbioporprovisioneselrioarribacincuentaleguas”22,provavelmentenasterrasdoreideMexandira23,earestantedocumentaçãodesteperíodoevidenciaque, com o mesmo objectivo, o bergantim de Sofala, realizava regularmenteviagensaolongodacostaousubindoorio.Destemodo,apesardaprocuradealimentos constituir o objectivo fundamental destas deslocações, estas terãoigualmentefuncionandocomoasprimeirasviagensdereconhecimentodafaixalitoral e sublitoral apartir da feitoria, estendendo-seprogressivamente a áreasmaisdistantes,querporpenetraçãonohinterlandquerpornavegaçãoaolongodacosta,paraNorteouSuldeSofala,eilhascosteiras.

A sua realização permitiu recolher informações não só sobre o que seproduzia,ondeequando,comotambémsobreoquesepodiacomprareatrocode quê, adquirindo estas informações uma importância especial no contexto

18 “ApontamentosdeGasparVeloso,escrivãodafeitoriadeMoçambique,enviadosael-rei(1512)”,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol. III,Doc.29,1964,pp.180-189.

19 “CartadeJoãoVazdeAlmada,CapitãodeSofala,parael-Rei.Sofala,26deJunhode1516”,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol. IV,Doc.16,1965,pp.274-295.

20 DuarteBARBOSA,“DescriçãodasTerrasda ÍndiaOrientaledosseususosecostumes, ritoseleis(LivrodeDuarteBarbosa,1516),Colecção de notícias para a História e Geografia das nações ultramarinas, TomoII,Lisboa,1867.

21 Relação deMartimFernández de Figueiroa (1505-1511)”, documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol.III,Doc106–Apêndice,Lisboa,1964,pp.587-633.

22 “RelaçãodeMartimFernándezdeFigueiroa(1505-1511)”,op.cit....,Lisboa,1964,p.601.23 As terrasdeMycamdira(MexandiraouMaxamdyra),ondeépossívelencontrarmantimentos,

são, segundoAntónioFernandes, asque confinamcomSofala embora estenão especifique aquedistânciaficariamdaFeitoria.“ApontamentosdeGasparVeloso...”,(1512),op.cit., p.180.DepoisdoreideSofala,oreideMexandiraéoprimeiroaserreferenciadopelosportugueses.Seriaprovavelmenteachefaturamaispróximada feitoriaepor isso tambémaprimeiraa serreferidanadocumentaçãoportuguesa.“MandadodeManuelFernandes,CapitãodeSofala,paraos contadoresde el-rei.Sofala, 25deAgostode1506,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol.I,Doc84,Lisboa,1962,p.614.

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do reconhecimento e do conhecimento efectivo, progressivo, da região edos seushabitantes, edecorrendodaíuma imagemdosmesmosqueosafastaprogressivamente da condição de animal predador inerente à qualificação deselvagem.

Uma das principais manifestações da “humanidade” destas gentes é,justamente, o reconhecimento do seu estatuto de produtores, sendo que apercepçãodestasituaçãorelevasobretudodaindicaçãoeidentificaçãodoqueseproduz,tendocomoreferênciaolequedeprodutosjá“domesticados”eaceitescomoparteintegrantedadietaalimentardequemseconsidera“civilizado”.

Referenciam-seassimaproduçãolocaldecereais24edecana-de-açúcar25,acriaçãodegado26edeavesdecapoeira27,deparcomaidentificaçãoelocalizaçãodasáreasondesepodeprocederàsuaaquisição,eaindicaçãodosperíodosemqueamesmasenãopodefazer28,numquadroregionalque,nofinaldaprimeiradécadade500abarcajátodaafaixalitoraleilhasentreafozdoPunguéeadoSave, e para onde as populações passam, por isso, a ser descritas em funçãodecomportamentosmenosselváticos,porqueafeiçoadospelasuacondiçãodeprodutoreseconhecedoresdossaberesetécnicasinerentesaessacondição.

Conjugando informações resultantes de percursos terrestres, fluviais emarítimos,oconjuntodosdadospresentesnestesrelatospermite,jánoprimeiroquarteldoséculoXVI,umesboçodascaracterísticasdaregiãoedassuasgentesapartirdoqualsetrabalharádoravantenosentidodasuaconfirmaçãoe,sobretudo,da sua definição em termos de delimitação espacial e caracterização cultural,contribuindotambémestesparamoldarumaimagemdoOutro,cadavezmaispróximadarealidade.

DaíaimportânciaquesetemdadoparticularmenteaAntónioFernandes29,pioneiroque foidapenetraçãonosertãoafricano informando,porexperiência

24 Destaqueparaosorgo(sorghum sp.),amexoeira(pennisetum glaucum,) eoarroz(oryza sp.).25 “RelaçãodeMartimFernándezdeFigueiroa(1505-1511)”,op.cit...,p.598.26 Referem-seabundânciadegadovacumecaprino.“MandadodePerodeAnhaia,Capitão-mór

deSofala,paraoFeitorManuelFernandes,Sofala,2deDezembrode1505”,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol.I,Doc.28,Lisboa,1962,p.316.

27 “RelaçãodeMartimFernándezdeFigueiroa(1505-1511)”,op. cit..., p.598.28 Logoem1511,aparecemasprimeirasreferênciasaosperíodosdoanoemque,emsituaçãonormal,

escasseiamosmantimentose,porissonãoépossívelasuaaquisição.Veja-se,porexemplo,o“RoldePagamentodoMantimentodeJunhode1511naFortalezadeSofala,1deJunhode1511”,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol. III,Doc.17,Lisboa,1964,p.90ouo“MandadodeJoãoVazdeAlmada,Alcaide-mórdeSofala,paraoFeitorCristovãoSalema,Sofala,15deOutubrode1516”,documentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central (1497-1840),vol.IV,Doc.24,1965,p.548.

29 AsviagensdeAntónioFernandesforamobjectodeestudoespecíficooudecapítulosprópriosem obras dedicadas ao estudo da região. Vejam-se, entre outros, hugh TRACEY, antónio Fernandes, descobridor do monomotapa (1514-1516),LourençoMarques,Arquivohistóricode

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própria,sobreessemundosertanejopovoadodepequenosreinosligadosentresi,cujasrelaçõesseapresentavamporvezestensas,marcadopelarivalidadepolítico-económicadosgrandessenhoresdosertão,dequemsedizseremdependentes,edeentreosquaissedestacavaodomwenemotapa30.

Todavia, e apesar desta rivalidadequenão cabe aqui analisar, Fernandestestemunha que, entre as gentes do sertão, existe uma unidade cultural quese manifesta num conjunto de costumes comuns a todos os povos por elecontactados.

Asfestas,emparticularasfestividadesligadasàluanova31,ascaracterísticasgeraisdapopulação32,osistemadereciprocidadededádivaseousodomesmotipodearmas33sãoalgunsdosaspectosreferidoscomoevidênciadessaunidadecultural;umaunidadequesemanifestatambém,deformaclaraeprecisa,numaformadeorganizaçãoparticulardoespaçoque tem,nasgrandes fortalezasdepedrasoltadointerior-osZimbabwe -,oseuexemplomaisacabado.

Neste contexto, ao reconhecer-lhes esta unidade cultural e a sua ligaçãodirecta à construção dos Zimbabwe do interior, António Fernandes contribuidesde logo,não sópara contrariar as ideiasde todosquantosdefendemcomoexógenaaculturaeoshomensqueaelasseencontravamligadas,comotambémparaprecisarumaimagemdonegroafricanoondeseevidenciamsobretudoasafinidades,numcontextoemqueadiferençaseesbateapenasnumcertoexotismoquenãofoiaindapossívelerradicar.

Deste modo, num momento em que ainda se olhava a populaçãoindígenaafricanacomoalgode intermédioentreo civilizadoeo selvagem,oreconhecimentodaexistênciadeumaunidadeculturalentreospovosdosertão,confere às informações deFernandes uma importância capital no contexto daproblemáticadarepresentaçãodosafricanos.Percorrendoumvastoterritórioondenemsemprenosépossívelidentificarelocalizarossítiosreferidos34Fernandes

Moçambique,1940,AlexandreLOBATO,a expansão portuguesa em moçambique, de 1498 a 1530,3vols.,Lisboa,AgênciaGeraldoUltramar–CentrodeEstudoshistóricosUltramarinos,1954-60 e R. W. DICKINSON, report on sofala investigations (26 may -11 Junho, 1970).DocumentopolicopiadodisponívelnaBibliotecadoDepartamentodeArqueologiaeAntropologiadaUniversidadeEduardoMondlane,Maputo,Moçambique.

30 “CartadeJoãoVazdeAlmada...”,1516,op.cit....,p.290¸“ApontamentosdeGasparVeloso...”,(1512),op.cit....,p.184.

31 Id.,p.188.Sobreasfestividadesdaluanovaeasuapossívelfiliaçãonaculturaislâmicaveja-se,entre outros,António RITA-FERREIRA, african Kingdoms and alien settlements in Central mozambique (c.15th-17th centuries), Coimbra,DepartamentodeAntropologiadaUniversidadedeCoimbra,1999,p.27.

32 “ApontamentosdeGasparVeloso...(1512)”,op.cit., p.188.33 Idem,p.184.34 CasosdoReinodeMycamdiraequytomgue,nasimediaçõesdeSofala,mascujasreferências

nãopermitemapossibilidadedeumalocalizaçãoprecisa.OmesmoparaoreinodeYnhacouce,jámaisafastado.“ApontamentosdeGasparVeloso...(1512)”,op.cit., p.180–182.

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providenciainformaçõesfundamentaissobreassociedadesafricanas,osrecursosdisponíveis no espaçoque estas partilhameos princípios quepresidemà suagestão,contribuindoparaconcretizarumaimagemdonegroafricanoquenãoseenquadranaclassificaçãode“selvagembestial”,marginalaomundocivilizado.

OtestemunhodeDuarteBarbosa35,aquemsenãotemdadotantaatenção,prosseguenumalinhadeanálisesemelhanteàdeAntónioFernandes.Oseutextoinforma,paraocontinenteafricano,sobreasterrasqueocupamafaixacosteira– litoral e ilhas– aNortedoCabodeS.Sebastião, esclarece aspectosmenosprecisosoudetalhesqueumaestadiacurtanãopoderiaevidenciare, talcomoodeFernandes,reflecteaexperiênciapessoaldequemviveunaregiãoepoderevelá-laexpurgadadosexagerosefantasiasdosrelatosedescriçõesanteriores

Neste sentido, eparaalgunsaspectos,podemesmodizer-sequeBarbosaexcedeFernandes,sendoparticularmenterelevantesosdadossobreapopulaçãoe o seu quotidiano36 mesmo quando referentes a áreas onde ele não estevemas que teve o cuidado de compilar informação, como no caso do Reino doMwenemotapa.

Em qualquer dos casos, a tónica de Barbosa assenta na constatação daexistênciadetraçoscomunsàspopulaçõesdafaixacosteiraedohinterlanddeSofalaquepartilhamdeumhorizontehistórico-culturalemqueasmesmasseidentificam.AssimsedepreendepelascaracterísticascomunsatodaapopulaçãoaolongodafaixalitoralesublitoraldocontinentedeBazarutoaAngocheeàfozdoCuama.Sãopretosbaçosquefalam“aravia”elínguadaterraesealimentamdecereais,carneepescado.homensemulheresquesevestemsumariamente,dacinturaparabaixo,companosdealgodãoesedanasuamaioriavindosdoOriente,eoseuquotidianorevelasenãoprosperidadepelomenosumaconfortávelsituaçãodebem-estar.

Produtores, mercadores e intermediários comerciais, as suas principaispovoaçõesidentificam-secomasmaisconhecidaseprósperasfeitoriascomerciais

35 DuarteBarbosaacaboudeescreverotextonoanode1516.AsuadifusãoeaceitaçãonaEuropadevetersidomuitorápidaumavezque,naBibliotecaNacionaldeMadridexisteumtextosemelhante,datadodecercade1518- BNMMs.1016,descrição da situação, costumes e produtos de alguns lugares de África [Ca. 1518],fls.1-6-e,naBibliotecaNacionaldeParis,ummanuscritofrancêsquepareceserdamesmadataeque,naessência,emboracomligeirasalterações,seapresentacomosendotambémomesmotextoqueseencontranaBibliotecaNacionaldeMadrid-BNPAncienfondn.º6116,descrição da situação, costumes e produtos de alguns lugares de África [Ca. 1518],fls.238-240.Estesdoistextosencontram-sereproduzidosemdocumentos sobre os portugueses em moçambique e na África Central,vol.IV,1965,respectivamenteDoc.48,pp.354-370eDoc.49,pp.372-380.Paraalémdestascópias,naediçãocríticaeanotadaque,em1996,foipublicadapeloIICT,identificam-semais10manuscritos,todosdoséculoXVI,comosendocópiasoutraduções,maisoumenosparciais,domesmotexto.Vd. M.A.daV.SOUSA,o livro de duarte Barbosa(ediçãocríticaeanotada),vol.I,Lisboa,CentrodeEstudosdehistóriaeCartografiaAntiga–InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,1996.

36 DuarteBARBOSA,“DescriçãodasTerrasdaÍndiaOriental...”,op.cit., pp.18-19.

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queserelacionavamentresi,noquadrodeumvastocomplexocomercialque,velhodemuitosséculos,articulavaocontinenteafricanoàÍndiaeaoOrienteporviadoÍndico.

Tendoessecomplexocomoreferência,podemesmodizer-sequeoseutextocontrariaemtudoaideiadepersistirnumaimagempejorativadestassociedades.AestruturaemqueestassealicerçameasuaformadeactuaçãorevelamprincípiosdeorganizaçãoerelacionamentocomoOutroemtudosemelhantesaospadrõesocidentaisconhecidose,nãoforaumououtropequenodetalheasugerirligeirasalterações,edir-se-iamesmonãoteremsidosequerafectadospelapresençadosPortugueses.

Curiosamente, é justamente ao referir uma dessas alterações que DuarteBarbosanosintroduznomundodossaberesedastecnologiastradicionaislocais,confrontando-nos comconhecimentos eprocedimentosquenão se ajustamaomodelode“bestaselvagem”queseriaonegroafricano.

Referindo-seaSofala,Barbosaconsideraqueachegadadosportugueseseasuapolíticademonopóliofezreanimarnaregiãoaculturadoalgodão37einovara indústria da tecelagemdos panos38, depreendendo-se do seu texto que estasactividades,emboratradicionaisnaregião,nãotinhamgrandepesonaeconomialocal jáqueonegóciodospanosse identificavasobretudocomosalgodõesesedasdoOriente.

Contudo,evidenciandosobretudocondicionanteselimitaçõesaodesenvolvi-mentodestasactividades,Barbosa,quiçáinvoluntariamente,forneceumconjuntodedadosquenos remetempara a importância que estas teriamna regiãobemcomoparaosconhecimentosenvolvidosnatecnologiadasuaprodução.

Oseutextoinformasobresabereslocaisdatecnologiaartesanaldatecelagemdos panos de algodão, sobre actividades económicas, supostamente de menorimportânciadopontodevistadosportuguesesequeporissonãotinhamaindadespertadoasuaatençãoe,sobretudo,sobreaimensacapacidadedeadaptaçãoeinovaçãodascomunidadeslocaisnosentidodeincorporarmodelosexterioresedeultrapassardificuldadesquepodemameaçaroseuquotidiano.

Nestecontexto,refere-seomuitoalgodãoqueseproduz,ospanosbrancosquesefaziamnaterraedecomodebrancospassaramacoloridospararemediar

37 Gossypium herbaceum da família das malvaceae. A variedade africanum, ocorre, na formaespontâneaesilvestrenaÁfricaAustral.hARLANet al., origins of african plant domestication,Mouton,1976,p.299.MANDALAcit.inAlanISAACMAN,“Theprazosdacoroa1752-1830:afunctionalanalysisofthepoliticalsystem”,studia26,Lisboa,1969,p.20,referencia-oparao Vale do Shire, R.W. DICKINSON, “The Archaeology of the Sofala Coast”, south africa archaeology Bulletin, 30, 1975, p. 84-104 evidencia que, do ponto de vista arqueológico, atecelagemdo algodão é atestada na região do Save durante a Idade do Ferro e John ILIFFE(1997),les africains, Histoire d’un continent,Paris,Aubier,p.173,precisaqueamesmaerapraticadaemMapungubwedesdeoséculoXII.

38 DuarteBARBOSA,“DescriçãodasTerrasdaÍndiaOrienal...”,op.cit., p.18.

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o muito dano e prejuízo que os portugueses fizeram aos mercadores locaise explica-se que, desfiar panos pintados de Cambaia para aproveitar os fioscoloridoseincorporá-losnospanosbrancoslocais,seafigurouentãoasoluçãoparamuitosdosque,directamenteligadosàindústriadatecelagemeaocomérciodospanos,tentaramultrapassarasimposiçõesdosportugueses39.

Porém,nãoédeumdiaparaooutroqueseaprendemadesfiarospanoscoloridosdaÍndiadeformaapodercombinarosseusfioscomofiodealgodãolocal,quesedizmaisgrosseiro,evoltaratecê-losdenovo,segundomodelosepadrõescomprocuragarantidanomercadoe,principalmente,comacertezadeoscontinuarapoderresgatarcontraoouro.

Por outro lado, o trabalho implícito neste processo não é fácil e exigeumaestruturaorganizada,complexa,quecontemplequerastarefasespecíficasdos diversos estádios de produção, quer as tarefas relacionadas com a suaorganização, com a aquisição de panos orientais a ser usados como matéria-primaenãocomomercadoriae,finalmente,comasuaposteriorintegraçãonoscircuitoscomerciais40.Ese,estesdoisúltimosaspectossepoderiamenquadrarcomrelativafacilidadenoâmbitodasredescomerciaistradicionaisqueoperavamnaregião,osaspectosrelacionadoscomasuaproduçãoeadisponibilidadedemão-de-obratinhamdeserorganizadosegeridospelosgruposmaisdirectamenteenvolvidos nas diferentes actividades produtivas e, eventualmente, no quadrodeumacomplementaridade regionalque tinhaemcontaaspotencialidadesdeproduçãoespecíficasdasváriaszonasqueaintegram.

Se considerarmos todo o historial das relações entre Sofala e o Reino dosMutapa, queAntónioFernandes referira já, bemcomo a produção específica dealgodãoeodesenvolvimentodatecelagemnosreinosdeMozambiaeMoziba41comvistaaocomérciocomaquelereino42equeopróprioMwenemotapa,porprotecção,apenasusavasobresipanosdealgodãodefabricolocal43,torna-sedifícilaceitaraideiadeBarbosasobreasrazõesdodesenvolvimentodatecelagememSofala.

39 Idem,,ibidem.40 Devidoaoimensotrabalhoexigidopeloseufabricoestespanos,deproduçãolocal,podiamser

tãovaliososeprestigiadoscomoospanosde importação.Vd. AntónioRITA–FERREIRA–“AlgunsdocumentosinéditossobreosbenssequestradosaBaltasarManuelPereiradeLago”,Factos e ideias: revista do Centro de estudos de relações internacionais, Ano3,(4–5),1987,p.68.

41 Provavelmente na margem norte do Zambeze, nas imediações de Sena. R.W. DICKINSON,“SofalaandtheriversofCuama:CrusadeandcommerceinS.E.Africa(1505-1595),DissertaçãodeDoutoramento,1971,p.63.Documentopolicopiado,disponívelnaBibliotecadoDepartamentodeArqueologiaeAntropologiadaUniversidadeEduardoMondalane,Maputo,Moçambique.

42 Pe.FranciscoMONCLARO,“RelaçãodaviagemquefizeramosPadresdaCompanhiadeJesuscomFranciscoBarretonaconquistadoMonomotapanoanode1569,feitapeloPadreMonclarodamesmaCompanhia”Cód.BNPcopiadopelaSociedadedeGeografiadeLisboaeimpressoepublicadonoBoletimdaSociedadedeGeografiadeLisboa,Lisboa,sérieIV,1883,p.547.

43 JoãodeBARROS,Ásia – década i...,p.377.

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI 103

Maisdoqueumadasrespostasdosmourosàacçãodefiscalizaçãolevadaacabopelosportugueses,aproduçãoetecelagemdealgodãoparecemdeternãosóumpapelimportantenoquadrodaeconomiaregionalcomotambémaonívelda cosmologia destas sociedades.O uso exclusivo dos panos de fabrico localpela autoridade máxima, neste caso o Mwenemotapa, pode ter funcionado, anívelinterno,comoumdosfactoresdeprotecçãocontraainfluênciadeforçasexternas,porventuraocultas,equepudessemconstituirumaameaçaàharmoniaeequilíbrionaturaisquedevempresidiraomundoeàsociedade44.

Deste modo, ao informar e testemunhar práticas comuns ao mundo“civilizado”, Barbosa fornece mais um contributo para desconstruir os mitossobreosnegrosafricanos,aproximando-osdosmodelosdomundoocidental.

No mesmo sentido devem ser encaradas as suas observações sobre ascomunidadesdasHúcicas grandes(arquipélagodeBazaruto).Precisandoaposiçãodeentrepostocomercialdestasilhaseoseupapelnaarticulaçãocomocomérciodas terras firmes fronteiras, Barbosa refere que as gentes da ilha procedem,embora de forma moderada, à exploração dos recursos silvestres, marinhos -âmbar, pérolas e aljôfar miúdo -, eventualmente objecto de comercialização45embora não seja este o objectivo principal da sua exploração.As pérolas e oaljôfarmiúdonãosãomaisdoqueumsubproduto,comercializável,deumadasespéciesdebivalves–aostraperlífera46, localmentedesignadapormapalo47 -quefazpartedadietaalimentarlocal.

Nestecontexto,sublinhandoaimportânciadosrecursosmarinhosregionaise sobretudo do desconhecimento local de processos de extracção das pérolasque protejam e privilegiamo valor comercial destas,DuarteBarbosa informasobrecomponentesdadietaalimentarlocal(ostras),sobregestoseprocessosdoquotidianodaspopulaçõescomvistaàsuasubsistência(apanhadeostraseformadeasabrir)e,finalmente,sobreconceitosevaloresprópriosaouniversodestascomunidades(sobrevivência/subsistência;equilíbrio/sustentabilidade/lucro).

44 J.K.RENNIE, “Ideology and state formation: political and communal ideologies among thesouth-eastern Shona, 1500-1890”, state formation in eastern africa, Nairobi, heinemanEducationBooks,1984,pp.162-193.

45 DuarteBARBOSA,“DescriçãodasTerrasdaÍndiaOriental...”,op.cit., p.16.46 pinctada capensis da família daspteriidae,Ocorre na zona infralitoral, emareia lodosa com

conchas.W.FIShERet al(eds.),Guia de Campo das espécies comerciais marinhas e de águas salobras de moçambique – Fichas da Fao de identificação das espécies para actividades de pesca. ProjectoPNUD/FAO/MOZ/86/030,FAO,Roma,1990,p.320e326.

47 Avariedadedeostralocaléapinctada imbricata,decascamuitofina,localmentedesignadapormapalo.GuilhermeS.RUPPeEdsonAnselmoJOSÉ,relatório de actividades desenvolvidas em moçambique. prospecção de viabilidade de cultivo de moluscos bivalves nas províncias de inhambane e de Gaza, ProjectoSOED /CIDA,Maputo, 23/09/2009, p. 3. [em linha][últimoacessoemMaiode2010].

Disponívelhttp://web.uvic.ca/~soed/documents/relatorio%20atividades%20mocambique%202009.pdf

ANACRISTINAROqUE104

Enquantoapontaaignorância,afaltadeambição,odesapegopelascoisasmateriaiseaausênciadeperspectivasdestagente,parecendoassimevidenciarolongocaminhoqueaindatêmdepercorreratéà“civilização”,Barbosainforma,aindaquenãointencionalmente,sobretodoumconjuntodesaberesetécnicasqueintegramummodeloculturalecivilizacionalpróprioqueascaracterizaelhespermitemesmogozardealgumprestígio,prosperidadeebem-estarquenãosecompadececomanoçãodeselvagem.

Destemodo,aformacomonosédadaestainformação,permitindoníveisdeleiturasdiferenciadosquetornamdifícilprecisarolugardosnegrosdestasilhas no quadro do binómio selvagem / civilizado, torna-a particularmentesignificativanocontextodarepresentaçãodosafricanos.

DostestemunhosdehomenscomoAntónioFernandeseDuarteBarbosaedasmuitasobservaçõeseregistosqueacompanharamainstalaçãodosportuguesesnaCostaOrientaldeÁfrica,comoodeMartimFérnandezFigueiros,sefoiassimconstruindoumaimagemmenosfantasiosadaterraedassuasgentesenquantoseprovidenciavaoreconhecimentoindispensávelàlogísticadosportuguesesnaregiãoeseidentificavamrecursosepotencialidades.

Comosereferiuinicialmente,nãosepretendeaqui,procederaumaanáliseexaustivadasdiferentesfontesdaépocacomrelevânciaparaestaproblemáticamasapenasevidenciarqueadocumentaçãodoséculoXVI,eemparticularadaprimeirametadedoséculo,testemunhadeformaclaraeinequívocaaexistênciadediscursosparalelosnoquerespeitaàrepresentaçãodosafricanosnoOcidente,quesecrêtersidodemonstradopelosexemplosdados.

Reproduzindo concepções, experiências, interesses e posicionamentosdiversos, esses discursos coexistem, dissonantes, perpetuando uns, imagenspré-concebidas que justificam e suportam a missão civilizadora do ocidentalesclarecido nomundo selvagemafricano, enquanto outros atentam sobretudonassemelhançasenoreconhecernoOutroosseusprópriosreferenciais.

Independentementedaimportânciadasrazõesdestadiscrepância,quenoslevam a domínios específico da história e da Filosofia fundamentais para acompreensãodadinâmicaprópriadoprocessoderelacionamentocomoOutro,estesdiscursosperpassamosmilharesdepáginasdadocumentaçãoportuguesadoséculoXVI,deixandobemclaroquenãoépossívelfalardeumarepresentação/imagemdosafricanos,amenosquesepretendaatenderapenasaodiscursodopoderoudosseusrepresentantes“oficiais”.

Daíaimportânciade“reler”asfontesnumaperspectivamenoslimitativaemqueseconsideremosvárioselementosque,nosdiferentestextos,concretizamumaimagemmenosconceptualizadaemenosfabricadadoafricano,eemqueesteseapresentadefactocomoéepeloé,peloquefazecomofaz.

Estaabordagemconstituiumelementofundamentalparaadesconstruçãodo mito dos “selvagens” africanos que dominava o imaginário europeu e osdiscursos oficiais de 500 contribuindo, de forma significativa, seja para uma

PORTUGUESESEAFRICANOSNAÁFRICAAUSTRALNOSÉCULOXVI 105

outra percepção da imagem do africano no mundo do século XVI, seja paraconsubstanciar a relação entre as expedições de reconhecimento do territórioe o precisar da imagem do negro africano, despido dos atributos de animalselvagem.

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PORTUGUESESEAFRICANOSEMANGOLANOSÉCULOXVII:

PROBLEMASDEREPRESENTAÇÃOEDECOMUNICAÇÃOAPARTIRDA

HisTória Geral das Guerras anGolanas*

matHieu moGo demaret**

1 Introdução

ApartirdofinaldoséculoXVI,Luandaeoseuhinterland encontraram-sena confluênciadas rotascomerciais africanasedas rotasmarítimasatlânticas.Consequentemente, teceu-se nessa zona geográfica um complexo jogo derelaçõesedeinteracçõesquerepresentouumexemplosingulardecontinuidadedecontactosentrepopulaçõesafricanaseeuropeias.

AomesmotempoqueapopulaçãovindadaEuropasefoifixandoequeoscolonosforamprogredindonosertão,ocorreuumfenómenodeacumulaçãodeexperiência e de conhecimentonoque concerne às relações comas entidadespolíticas africanas. À medida que iam acumulando saberes sobreAngola, osportuguesesiamefectuandoconstantesajustesestratégicos.Parasatisfazeremosseusobjectivospolíticosecomerciais,tantoosrepresentantesdopodercentral,nomeadosporLisboa,comooscolonos,foramobrigadosaexperimentarsoluçõesparaentrarememcontactoedepoiscomunicaremcomosafricanosdaquelazona.Se é certo quemuitas vezes as relações luso-africanas se situaramno terrenomilitar,tambémsesabequeexistiuumdeterminadoespaçoparaanegociação.

** EcolePratiquedeshautesEtudes–Paris,bolseiroFCT.* Nestetexto,nãoutilizamosotermoAngolanasuaacepçãocontemporânea.Angoladesignaaqui

aregiãoque,abrangeLuandaeovaledoCuanzaatéCambambe.EsteterritórioédelimitadoaNortepelorioDande,eaSulpelorioCuanza.

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Nesta perspectiva, História Geral das Guerras angolanas, da autoria deAntóniodeOliveiradeCadornega,constituiumtestemunhofundamentalsobrearealidadeangolanadoséculoXVII.Nestetexto,emquesãorelatadososfeitosmilitares dos portugueses no início do processo de colonização de Angola,predominaaideiadeconquista.Intimamenteligadaasnoçõesdereconquistaedeevangelização1ecaracterísticadodiscursopolíticodoAntigoRegime,estaideiacoabitacomacriaçãodumsistemacoerentededesignaçãodosafricanos,aoqualoautorrecorreparaprocederàdescriçãodosencontrosedasembaixadaspolíticas e comerciais entre portugueses e africanos. Dispomos assim de umconjuntodeinformaçõessobreaformaeasmediaçõesqueestesdoismundos,tãodiferentes em termosde representações simbólicas, políticas e comerciais,utilizaramparacomunicar.

ApartirdainterpretaçãododiscursoproduzidoporCadorneganaHistória Geral das Guerras angolanas,pretendemosconfrontaraconstruçãodaimagemdoafricanocomaexperiênciaconcretadocontactoentreeuropeuseafricanosnoterreno.

Passamos,numaprimeiraparte,aapresentaroautordeHistória... eafazerumabreve introduçãoàobra.Desta forma,procuraremosenquadraraobranoseu contexto histórico e literário, e apontar algumas das suas características.Numasegundaparte,pretendemosanalisarosistemaderepresentaçãoutilizadopara designar os africanos. Por fim, estudaremos o significado dos encontrosdiplomáticosecomerciaisentreeuropeuseafricanos.

1.1 o autor

ParamelhorseentenderosignificadoeanaturezadaHistória Geral das Guerras angolanas2, convémtraçarsucintamenteoperfildoseuautor.Importasaber quem era e o que representava social e ideologicamente no panoramacolonialangolanodoséculoXVII.

AntónioOliveiraCadorneganasceuprovavelmenteem16243.ChegouaAngolaem1639comogovernadorPedroCésardeMeneses4.Supõe-seque

1 Sobreesteassunto,verporexemploCharlesRalphBOXER,o império marítimo português, 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 1981 ou Luís Filipe ThOMAZ, Jorge Santos ALVES “DaCruzada aoquinto Império”, ina memória da nação,Lisboa,LivrariaSádaCostaEditora,1991,pp.81-164.

2 Esta obra não foi publicada antes de 1902 e nesse ano só o foi parcialmente.A sua primeirapublicação integral datade1940-1941.houveuma segundaediçãoem1972, fac-similadadaediçãode1940.

3 AntónioOliveiradeCADORNEGA,descrição de Vila Viçosa,Lisboa,ImprensaNacional–CasadaMoeda,1983,p.I.

4 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História Geral das Guerras angolanas,Lisboa,AgênciaGeraldoUltramar,1972,3vols.,1ºtomo,p.7.

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teriaosseus15anos.EranaturaldeVilaViçosa,noAlentejo.Nadedicatóriaque,noiníciodoseurelato,dirigeaD.PedroII,reidePortugal5,relembraqueseubisavôpaternoforacriadodacasareal,queseuavôforacavaleirofidalgodacasareal,queoseutio-avôforacativoemÁfrica6edepoisnomeadovigáriogeraldaviladeOlinda.AcrescentaaindaqueseupaidesempenharaocargodeoficialmaiordafazendarealemBuenosAires,tendosidopresoaolargodascostasangolanasquandodasuaviagemderegressoaPortugal.Atravésdestasinformações,destaca,porumlado,asualigaçãoaosduquesdeBragançapelafamíliadeseupaie,poroutroaexistênciadeumacertaexperiênciaultramarinanestemesmo ramoda sua família.Foramcertamenteestesantepassadosquepermitiram que António de Cadornega e o seu irmão, Manuel Correia deCadornega,embarcassemcomPedroCésardeMenesesparaAngola.Desuamãe,AntóniaSimõesCorreia,nãofazmenção. Issoexplicar-se-ácertamentepelo facto de o tribunal da Inquisição a ter acusado de ser de ascendênciacristã-nova,nofinalde1661enoiníciode16627,tendoelavindoamorrernacadeiaem1665.IlídiodoAmaral8adiantaaorigemcristã-novadeCadornegaparaexplicaro factodeeste ter ido tãonovoparaAngola,quandooseupaitencionavaqueelefizesseestudossuperiores.TalescolhateriasidomotivadapelavontadepaternadeoajudaraescapardeumaeventualperseguiçãoporpartedotribunaldaInquisição.Aindanadedicatória,CadornegamencionaasambiçõesdopaiaseurespeitomasalegaqueasuaidaparaAngolafoimotivadapelafaltaderecursosfamiliares9.

Durante a sua vida emAngola, Cadornega desempenhou várias funçõesmilitares e administrativas de destaque. Viveu e participou na luta que osportuguesestravaramcontraaocupaçãoholandesadeLuanda,entre1641e1648.EmAgostode1641,quandoaCompanhiadasÍndiasOcidentaisneerlandesa10seapoderoudeLuanda,fugiuparaosertãocomogovernadorPedroCésardeMeneseseosdemaiscolonosportuguesesqueseencontravamnaquelacidade.Durante

5 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.4segs.6 No discurso de Cadornega, o termo África designa a actual África do norte.Ao continente

africano,chamaEtiópia.7 AntónioOliveiradeCADORNEGA,descrição...,cit.,pp.IIsegs.8 IlídiodoAMARAL,o rio Cuanza(Angola),dabarraaCambambe:reconstituiçãodeaspectos

geográficoseacontecimentoshistóricosdosséculosXVIeXVII,Lisboa,InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,2000.

9 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,hGGA1,p.8.10 A partir de agora, passaremos a designar esta companhia pela sigla WIC. A Westindische

Compagnie (WIC) foi uma companhia comercial neerlandesa criada em 1621. Os EstadosGeraisdasProvíncias-Unidastinham-lheconcedidoomonopóliodanavegaçãoedocomércionaAméricaenacostaocidentalafricana.CharlesRalphBOXER,The dutch seaborne empire,Londres, Pelican Books, 1988, p.27. Sobre este assunto ver também henk den hEIJER, de Geschiedenis van de WiC,Zutphen,WalburgPers,2002.

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a ocupação neerlandesa de Luanda, permaneceu no sertão, em Massangano11.Depois da tomada de Luanda por Salvador Correia de Sá e Benevides e daexpulsãodaWICdeLuanda,aindaalipermaneceuduranteváriosanos.Segundoafirma, morou cerca de trinta anos em Massangano12 onde ocupou cargos nacâmara daquela vila, tendo assim tido acesso à documentação administrativadaquelazona.Duranteesteperíodo,tambémparticipouactivamentenocomérciode escravos. Nos anos 1670, mudou-se para Luanda, onde ocupou funçõesadministrativasnacâmaraMunicipal.NuncavoltouaPortugalesupõe-sequemorreuemAngola,porvoltade1690.

1.2 A obra

AHistória Geral das Guerras angolanasfoiescritanofinaldosanos1670eno iníciodosanos1680.ComeçaporumadedicatóriaaoreidePortugal13.Destinava-se também a leitores portugueses, como consta da dedicatóriadirigida ao leitor, e como nos levam a pensar as descrições extremamentedetalhadasdoslugares,daspessoasedoscostumesafricanos.Aolongodaobra,são relatados essencialmente os feitos militares dos portugueses deAngola,desdeachegadadePauloDiasdeNovaisaLuanda,em1575,atéaogovernodeAiresdeSaldanhadeMeneseseSousa,quedesempenhouassuasfunçõesde1676a1679.

AHistória...encontra-seorganizada em3tomos.Osdoisprimeirosestãodivididos empartes, e essas partes em capítulos.O terceiro tomo está apenasdivididoempartes,supondo-sequeaausênciadedivisãoemcapítulosédevidaaofactodeoautornãoterterminadoaobra14.

Osdoisprimeirostomosseguemodesenrolarcronológicodascampanhasmilitaresportuguesas,noperíodoacimareferido.Noprimeiro tomoédescritooperíodo1575-1639,anterioràchegadadeCadornega aAngola.Asdescriçõesdestetemposãonaturalmentemenosdesenvolvidasdoqueasquesereferemaorestanteperíodoabrangidopelorelato.Alémdisso,estapartecontémnumerososerrosfactuaisecronológicos,quesepodemexplicarpelofactodeosarquivosdacâmaradeLuandateremdesaparecidoduranteafugadosportuguesesdepoisda ocupaçãodeLuandapelos neerlandeses, emAgostode164115.Oprimeiro

11 Massanganoeraumpresídioportuguêssituadoacercade150kmdeLuanda(40léguas,segundoestimativasdaépoca),naconfluênciadosriosCuanzaeLucala.EraumpontochavedacolóniadeAngola,porqueasseguravaaligaçãoentreasrotascomerciaisdosertãoeLuanda.

12 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.121.13 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.3.14 Beatrixheintzetambémformulaahipótesedehaverexistidoumquartotomoquedesapareceuou

quenãochegouaserescrito.BeatrixhEINTZE,studien zur Geschichte angolas im 16. und 17. Jahrhundert,Colónia,RüdigerKöppeVerlag,1996,pp.48-58.

15 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.IX,p.73,p.272.

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tomo também contém a descrição do período de ocupação neerlandesa deLuanda.Estelongotrecho,elaboradoapartirdopontodevistadosportuguesesque se encontravam no sertão angolano, constitui um dos raros testemunhos,emprimeiramão,sobreesteepisódiohistórico.Dá-nosumaideiarelativamentepormenorizadada condiçãoportuguesa emAngolanaquela época, eda formacomosecoabitavaousecombatiaasestruturasafricanas.

O segundo tomo começa com a descrição da retomada de Luanda pelosportugueses, abordada a partir do ponto de vista de um observador que seencontrassenafrotadeSalvadorCorreiadeSáeBenevides.Abrangeoperíodoqueseestendede1648a1676.SãorelatadasasacçõesdenumerososgovernadoresoriundosdoBrasil,ouquedesempenharamumpapelpolíticoimportantenaqueleterritório, nomeadamente Salvador Correia de Sá e Benevides, Luís Martinsde Sousa Chichorro, João Fernandes Vieira,André de Vidal Negreiros. Comefeito, o facto não é de admirar visto ser este períododominadopelo reforçodasrelaçõesentreasduascolóniasportuguesasdoAtlânticosul.Deumpontode vista das interacções com os poderes africanos, importa destacar algunselementossignificativosmencionadosnanarrativa:as relaçõescomoCongo,queculminaramcomaderrotaeamortedeD.AntónioIdoCongoemAmbuílaem1665;asrelaçõescomNzinga,marcadaspelasuaconversãoaocatolicismoem1655easuamorteem1663;etambémascrescentesrelaçõescomCassanji,intermediárioessencialnocomérciodeescravos,apartirdasegundametadedoséculo XVII. Este segundo tomo menciona igualmente encontros com chefesafricanosdemenorimportância.

Oterceirotomonãoobedeceaomesmopadrãodeorganização.Nãosegueassimumalógicacronológica,massimgeográfica.PartindodeLuanda,Cadornegasobe o rio Cuanza, fornecendo uma descrição pormenorizada dos lugares,nomeadamentedosriosedospresídiosportuguesesdosertão,assimcomodospovosmaisimportantesdeLuandaedoseuhinterland.Importasublinharque,porcontertambémreferênciasaembaixadasedescriçõesdospovosafricanos,estetomoétãoimportantecomoosdoisrestantesparaoestudodaquestãodasrelaçõesentreportugueseseentidadesafricanas.

ParaaconstruçãodoseurelatoCadornegaapelaparaváriasfontes:asuaprópria experiência, as narrações dos chamados “conquistadores antigos”16,nomeadamentedoseusogroFernãoGuerreiro,capitãodoCuanza,etambémdosmissionáriosqueiamparaosertãoangolano17.Podemosigualmentesuporque

16 Ao longo dos séculos XVI e XVII, o termo de conquistador antigo, conheceu uma evoluçãosemântica. Os primeiros conquistadores antigos eram os colonos que tinham vindo aAngolacomPauloDiasdeNovaisnofinaldoséculoXVI,eque tinhamparticipadonaprimeirafasede conquistado território.Na segundametadedo séculoXVII, o termopassouadesignaroscolonosquetinhamcombatidoaWICequetinhamcontribuídoparaexpulsarosneerlandesesdeLuanda.

17 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.9.

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algumasinformaçõesterãosidoobtidasatravésdaretranscriçãodatradiçãooraldecertospovosafricanos.

1.3 o discurso de Cadornega

Depois de termos apresentado o autor e a obra dum ponto vista factual,convém que nos debrucemos sobre o discurso produzido por Cadornega.Pretendemosdestaformafornecerelementossobreoobjectivoeosignificadodessediscursoesobreoseuenquadramentoideológico.

NadedicatóriadirigidaaD.PedroII,éafirmadaaintençãodefornecerumadescriçãodasbatalhastravadaspelosgovernadoresecapitãesgeraisportuguesesemAngola18.Nadedicatóriadirigidaaoleitor,é tambémlembradoqueaindanãoexistenenhumrelatosobreaconquistadeAngolapelosportugueses:“(…) só dos reinos de angola e suas Conquistas onde havia tanto que escrever, onde não houve menos successos prosperos e adversos, despois que foi descuberto e se começou a Conquistar até o presente, sem haver quem tomasse esta empresa a sua conta, e por não ficarem cousas de tanta consideração em esquecimento, o que obrárão os portugueses em o serviço da Coroa de portugal, e exaltação da santa Fé Catholica entre tantos barbaros idolatras inimigos de sua santa lei me dispuz a fazer este compendio que assim se pode chamar pello muito que se podia escrever (...)”19.

EstacitaçãosintetizaopapelqueCadornegaentendeconferiràsuaobra.AoescreverHistória Geral das Guerras angolanas,oautorpretendepoispreencherumvazioepõeemevidênciaodesejodecriarumaobraépicapararelatarosfactoseenaltecerosfeitosdosportuguesesemAngola,fornecendoaesteterritórioumaobraque lembre as que já existem relativamente à Índia e aoBrasil.Aoatribuirumadimensãopioneiraaoseutrabalho,Cadornegaaspiraainserir-senopanoramaliteráriodaExpansãoportuguesa.Ointentodedesempenharopapeldecronistaedehistoriadorevidencia-senoprópriotítulodaobraenasnumerosasreferênciasàscrónicasdosreisdePortugaledeEspanha.

Do ponto de vista do enquadramento ideológico, Cadornega refere autilizaçãodeobrasdediferentesnaturezas.Doconjuntodorelatosobressaiumdiscursopolíticoestruturadoporduasideiaspredominantes:emprimeirolugara ideia de conquista, que se situa na continuidade do discurso da reconquistada península ibérica e que está associada à ideia de evangelização do gentio,nomeadamente através da utilização de conceitos característicos da épocamedieval e renascentista; em segundo lugar, a afirmaçãoda independênciadePortugalemrelaçãoaEspanha.

18 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.3.19 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.9.

PORTUGUESESEAFRICANOSEMANGOLANOSÉCULOXVII 113

Ao longo do texto, surgem referências a obras da Antiguidade, doRenascimentoespanhol,portuguêseitaliano,eaobrasdaliteraturaportuguesadaExpansão.AquantidadeconsideráveldereferênciasaobraseruditasdestacacontradiçõesnaformacomocirculavamasideiaseasinformaçõesemAngola:seporumladotemosaprovadequeumnúmeroimportantedeobrasliteráriasepolíticaslácirculavam,poroutroficamostambémasaberqueaproduçãoliteráriaeraextremamentelimitada,sobretudoseconsiderarmosqueaHistória Geral da Guerras angolanas éumdos raros relatosdequedispomossobrea realidadeangolanadoséculoXVII.

No início do primeiro tomo20, no final do mesmo tomo21 e na primeirametade do terceiro tomo22, Cadornega faz uma lista das obras e dos autoresemque se baseoupara redigir o seu relato.Textos de cariz político,militar ereligiososãoassimnomeados.EntreosescritoseosautoresmaissignificativosdaAntiguidadeaque fazalusão,podemoscitarSéneca23eosComentários deJúlioCésar24.SãotambémreferidosautoresdecrónicashistóricasereligiosastaiscomoFr.BernardoBritoeFr.AntónioBrandão,autoresdamonarquia lusitanaedaCrónica de Cister,ouaindaDuarteNunesdeLeão,PedroMaris,Antóniodeherrera,MarianaeGarivay,autoresourecompiladoresdecrónicasdosreisdePortugaledeEspanha.CadornegatambémsereportouaautoressignificativosdaliteraturadoRenascimentoportuguês,taiscomoLuísdeCamões,SádeMirandaeFernãoMendesPinto,oudoSéculodeOuroespanholtalcomoLopedeVega25.quanto à literatura portuguesa da época da Expansão, existem referências àsobrasdePedroMarisparaaÁfricadoNorte,DiogodoCouto,JoãodeBarros,AfonsodeAlbuquerqueeManueldeFariaeSouzasobreaÍndiaeFranciscodeBritoFreireparaoBrasil.

A despeito das informações aproximativas nela contidas, tanto a nívelcronológicocomoanívelespacial,éfactoaceitequeHistória Geral da Guerras angolanas constitui um trabalho de grande valor histórico. O seu interesseresideno seu carácterduplo: porum lado, é umaobra singularnopanoramaliterárioangolanodoséculoXVII;poroutrolado,éumtrabalhoemblemáticoesignificativodarealidadepolíticaeideológicadaqueleterritório.

Asuasingularidadeestápatenteemváriosaspectos.Ésingularporqueépraticamenteoúnicodocumentohistóricodaquelaépocaanãotersidoredigidopormissionários.Ésingularpelaerudiçãodoseuautorepelacoerênciadodiscursoproduzido.Ésingularaindaquantoàcapacidadedeadaptaçãodeelementosdo

20 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.8-11.21 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.539-545.22 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,pp.109-110.23 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.4.24 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.9.25 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.539-541.

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discursopolíticoportuguêsdaépoca, istoé,namanifesta lealdadeparacomacasadeBragançaenajustificaçãodacolonizaçãoatravésdautilizaçãodaideiadereconquistanocontextoangolano.

O seu carácter emblemático no que toca à realidade colonial daAngoladessaépoca,procededaprópriaexperiênciadequemaredige.Oslongosanosque Cadornega passou no sertão, em Massangano, como militar, funcionárioda administração colonial e como comerciante, modelaram o seu sistema depensamento.OCadornegade1680,éum“conquistador antigo”,“o mais antigo que [neste reinos] hay”26.quandoescreve,temcercadequarentaanosdepresençanacolónia,muitosdelespassadosemcontactocomestruturasafricanas.Nãonosforneceapenasdescriçõesdefactoshistóricosedelugares.Transmite-nosumaacumulaçãoindividualecolectivadeconhecimentosedesaberessobreaÁfricaCentral Ocidental, adquiridos uns através da sua experiência pessoal, outrosatravésda transmissãodossaberesdeoutroscolonos.Podemos legitimamentepensar que exprime não só a sua própria opinião mas também uma opiniãorepresentativadademuitosdosmoradoresportuguesesdeAngola.

Aacumulaçãodesaberesémuitovisívelnãosónapormenorizaçãodassuasdescriçõesmas tambémnas inúmeraspalavrasafricanasqueemprega.Énestaperspectiva quepropomos analisar o sistemade representações produzidoporCadornegaacercadosafricanos.

2 A questão da representação dos africanosDepois de termos tentado determinar a singularidade e o significado da

obra,passamosaabordaraquestãodarepresentaçãodosafricanos.Ofactodecolocarmosoproblemanestestermosexigequesedefinaoqueentendemospelasnoçõesderepresentaçãoedeafricanos.

Porrepresentação,entendemosaformacomooautorpretendecaracterizaraspopulaçõesafricanas,paratransmitirasuapercepçãodarealidadeangolanaaoleitoreuropeuaquemsedirige.Arepresentaçãocorrespondeàcombinaçãodefactoresmentais,sociaisepolíticos.

Apartirdacombinaçãodeumdiscursocoerenteedaexperiênciaacumuladano terreno, o autor fabrica uma ideia da realidade que o rodeia e dos povosafricanoscomquemcomunica.Oselementos“objectivamente”observadoseasuapercepção“subjectiva”,conduzemàelaboraçãodeumsistemarepresentativo,compostopor ideiase imagenscoerentes.Trata-sedeumdiscursoestruturadoem torno de objectivos claros, em adequação com o discurso político queanteriormenteevocámos.

26 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.10.

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A noção de africano é mais problemática. Antes de mais, convémesclarecer que este termo, tal como o de África, não aparece no relato deCadornega para designar um conceito relativo a Angola, mas sim à actualÁfrica do Norte. No século XVII, a parte negra do continente africano eradesignadapelotermoetiópia27,earegiãodoCongoedeAngolaeradesignadamaisparticularmentepelaexpressãoetiópia ocidental.quando,neste texto,empregamosostermosÁfricaouafricanos,referimo-nospoisàssuasacepçõescontemporâneas.

Depois de termos esclarecido este possível equívoco em relação aoempregodestes termos,permaneceanecessidadede interrogarodiscursodeCadornegarespeitanteàrepresentaçãodosafricanos.Podemosneledistinguirdoisníveis.Umprimeironível,quetransmiteumaimagemglobaldoafricano,e um segundo nível, onde estão patentes as caracterizações elaboradas porCadornegagraçasaoseuconhecimentodoterreno.Nasegundapartedestetexto,pretendemosconfrontarosdoisníveisdestediscurso, interrogarosconceitosneledesenvolvidoseemseguidaverparaquesistemasreferenciaisideológicosremetem.

2.1 A imagem global do africano

Paranomearoafricano,istoé,o“outro”o“extra-europeu”,deparamoscomumasériededesignaçõesdeordemgeral,quenãoescapam,emcertosaspectos,aos estereótipos próprios daquele tempo. Refere-se nomeadamente a alegadapreguiça ou falta de lealdade dos africanos. As qualidades objectivamentereconhecidas podem ser mencionadas, mas são atenuadas por uma expressãoconcessiva,reveladoradeumamentalidadequeconsideraquecertasqualidadessãoantinómicascomanaturezadosafricanos.Podemoscitaralgunsexemplossignificativos:emreferênciaaumafricanoquecombatedoladodosportugueses,encontramos“valente homem ainda que de cores pretas”28.Refere-se tambémum“negro inteligente”29,“bons negros”30.Nestesdoisexemplos,asassociaçõessurgem com valor de oxímoros, porque evidentemente quem na época dizianegronãopodiadizerinteligentenembom !Escritorclaramenteinfluenciadopor

27 AapelaçãodeEtiópiaparadesignaroquehojeéfrequentementedenominadoporÁfricanegraeracomumnoséculoXVII.Aesterespeito,oRafaelBluteaudáaseguintedefiniçãodeEtiópia:“Ethiópia.RegiaõdaAfricadebaixodaZonatorrida,entreaArabia,&oEgypto,alemdorioNiger,dehumaoutroOceano”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario portuguez & latino,Coimbra,CollegiodasArtesdaCompanhiadeJesu,1712-1728,10vols.,3ºtomo,p.354.

28 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.134.29 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.309.30 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.311.

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valoresmilitares,Cadornegareconhece,noentanto,acoragemdosseusinimigosafricanos:“valoroso gentio”31,“valorosos e difformidaveis Jagas”32.

A ideia de “multidão” para designar o africano encontra-se com certafrequência, nomeadamente nos relatos dos combates. São recorrentes asexpressõesdotipo“multidão de gente”33; “gentio numeroso”34; “immensidade de Gentio”35; “tanta multidão”36,“innumeravel gentio, o que he cousa impossivel numeralo”37,“multidão do gentio da terra”38.

Estaideiaserveparapôremrealceoméritomilitardoscolonos,que,sendopoucos,conseguiamcombaterevencer“inúmerosgentios”.Emcontrapartida,mostraasdificuldadescomqueosportuguesessedeparavamparacontrolaremoespaçoeaspopulaçõesdaquelaregião.Revela,naverdade,osentimentodoautordequeosportuguesesnãodominavamespacialmentearegião,masapenasalgumas rotas comerciais, e mesmo assim unicamente graças a alianças comestruturasafricanas.

Estesconceitosrevestemumforteteorideológicoeservemparadepreciarosafricanosejustificaraconquistaterritorialeaevangelização39.Masestatentativadeuniformizaçãoedesimplificação40doafricanoécontrabalançadapelousodeumamplolequelexicalparaodescrever.

Obrevelevantamentoaqueaquiprocedemos,mostraqueamultiplicidadedetermosusadosporCadornegaremetetantoparanoçõessociaiscomopolíticas,étnicas,militaresouaindaculturais.Poroutrolado,ossistemasreferenciaisaquepertencemostermosutilizadossãotantooeuropeucomooafricano.

2.2 o léxico e a delimitação dos grupos

Comecemosporprocederaumlevantamentonãoexaustivoenãoordenadodosprincipaistermosutilizadosnaobra:

31 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.94.32 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.104.33 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.93.34 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.95.35 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.98.36 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.106.37 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.51.38 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.137.39 CarmenBernandestabeleceumarelaçãoentreaideiadeconquistaterritorialeaideiadeconquista

espiritual.CarmenBERNAND,SergeGRUZINSKI,Del’idolatrie:une archéologie des sciences religieuses,Paris,Seuil,1988,p.6.

40 Joséhortaobservaqueoscronistasportuguesesnãodescreveremas feiçõesdosafricanosnocontextodaSenegâmbianosséculosXVeXVI.JoséhORTA,“PrimeirosolharessobreoafricanosdoSaraOcidentalàSerraLeoa(meadosdoséculoXV– iníciosdoséculoXVI)”, inAntónioLuís FERRONhA, o Confronto do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas séculos XV e XVi,Lisboa,Caminho,1991,pp.41-126.

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“ambundainha, angolambole, bárbaros, cangoandas, crioulo, dembos, embululo, empacaceiros, emvala inene, escravos, fidalgos, filhos da terra, ganga, gente forra, gentio, gingo, guerra preta, idolatras, inimigos, jagas, lingoa, macotas, mani, mixilunda, monambios, mucama, mucunzes, mukuluntu, mulatos, muto aita, naturaes da terra, negros, pardo, peça, pombeiro, pombo, pretos, punga, quiambole, quijico, quilambas, quimbares, quimpaco, quissamas, samba enzila, sambatandala, sova, tandala, vassalos” 41.

Esta multiplicidade de termos patenteia uma grande complexidade nadesignaçãoenacategorizaçãodosafricanos.Constatamostambémquesurgemimbricadostermosquepertencemtantoaosistemareferencialeuropeucomoaosistemareferencialafricano.Osdiversoscritériosutilizadospermitem-nosefectuardiferentesníveisdeanálisedodiscurso.Asprincipaisideiasdesenvolvidasdizemrespeitoanoçõessociais,religiosas,étnico-políticas,étnico-raciais,políticasouaindamilitares.

Cadornega emprega várias palavras para distinguir o estatuto social deindivíduosoudegrupos.Nestacategoriapodemosincluir,peças42 eescravos43,forros44,fidalgos45 evassalos46.EstaspalavrasremetemparaconceitosexistentesnaEuropa,emboraeventualmentecomsignificadosdiferentes.Osgruposassim

41 ConvémmencionarqueCadornegatambémutilizaumamultiplicidadedepalavrasparadesignarosdiferentestiposdeagentescoloniais.Refereassim:“conquistadores,moradores,portugueses,filhosdaterra,holandeses,belgas,flamengos,espanhois,gentedenação,filhosdaterra,baquianoetc.”. Esta lista, não exaustiva, mostra a multiplicidade de grupos existentes emAngola e avariedadedeníveisdedesignação,oquetornaaquestãodacaracterizaçãomuitocomplexa.

42 Apeça,tambémpeçadaíndia,eraotermoquedesignavaumescravoadultomasculino.AdrianoPARREIRA, dicionário glossográfico e toponímico da documentação sobre angola séculos XV-XVii,Lisboa,Estampa,1990,p.94.

43 OsentidodeescravonoséculoXVIIerapróximodosentidoquetemhoje.NoVocabularioPortuguez&LatinotemosaseguinteentradaparaEscravo:“Aquelle,quenaceocativo,oufoivendido,&estàdebaixodopoderdeSenhor”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,3ºtomo,p.225

44 Agenteforra,ouosforroseramosescravoslivresoulibertados.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,4ºtomo,p.182.

45 Nocontextoibérico,estetermocorrespondiaaumestatutosocialdefinidoerelacionadocomaideiadenobreza.CertosfidalgoseramnomeadosparadesempenharemcargosadministrativosemAngola,nomeadamenteoscargosmaisaltos.Noentanto,nocontextoangolano,apalavrafidalgotambémerautilizadaparadesignarosmaisaltosrepresentantesdasestruturaspolíticasafricanas.Por exemplo, encontramos frequentemente a expressão “sova fidalgo”. Nesta expressão sãoassociadasduaspalavrasqueremetemparadoissistemasreferenciaisdistintos.Anoçãodesova,istoéchefeafricano,éassociadaànoçãodefidalgo,istoénobre.Noentanto,estes“fidalgos”nãotinhamomesmoestatutoqueosfidalgosportugueses.

46 No Vocabulario portuguez & latino, R. Bluteau diz-nos que vassalo significa o mesmo quesúbdito.RafaelBLUTEAU, Vocabulario..., cit., 8º tomo,p.373-374.Nocontextoangolano,otermovassaloerarelativonãosóaosportuguesesqueestavamemAngola,deformadefinitivaounão,comotambémaoschefesafricanosreconhecidoscomovassalosdoreidePortugal.

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designadosdesempenhamumafunçãosocialdefinidanoespaçocolonial,eosseuscontornos jurídicossãorelativamenteclaros.Aspeças eosescravos, quesesituavamnabasedaescalasocial,eramconsideradospeloscolonosepeloscomerciantescomoumprodutodeexportaçãooucomomãodeobra.Osforros representavamumamassadeescravoslibertosqueconstituíamumaimportantereservademãodeobraparaosportugueses.Notopodaescalasocialencontravam-se os fidalgos, que constituíam, em princípio, os responsáveis políticos dasestruturasafricanas.Otermovassalo implicaaexistênciadeumaaliançaentreafricanoseportugueses.NoséculoXVIIemAngola,estetermodesignavaumchefe africano que reconhecera a autoridade do rei de Portugal47. Devemosmencionar, todavia, que o estatuto de vassalo tinha um carácter aleatório namedidaemqueasaliançasentreportugueseseafricanoserammuitoflutuantes.Para designar a hierarquia política doCongo, também são usados termos queremetemparaarealidadeeuropeia:osprincipaischefesconguesessãodesignadoscomoduquesecondes.Oestatutodeescravoemcontextoafricanoénomeadopelas palavras quijico48 e mucama49, embora sejam empregadas muito menosfrequentemente.

Já mencionámos que uma das ideias centrais da obra é a noção deconquista, associada à de evangelização. Este aspecto ideológico expressa-seatravésdaspalavrasbárbaro50,gentio51,idolatra52,quedesempenhamumpapelparticularmente importante no esquema representativo de Cadornega. Embora

47 Sobreoconceitodevassalosedevassalagem emAngolanoséculoXVII,verBeatrixhEINTZE,“TheAngolanVassalTributesofthe17thCentury”,inrevista de História económica e social,n.°6(1980),p.57-78;eBeatrixhEINTZE,“Luso-africanfeudalism?Thevassaltreatiesofthe16thtothe18thcentury”,inrevista internacional de História de África,n.°18(1980),pp.111-131.

48 JoséMatiasDelgado,oanotadordehistóriaGeraldasGuerrasAngolanasdiz-nosque“filhodekijukueramchamadososescravos,ouprisioneirosdeguerra”.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.620.

49 SegundoJoséMatiasDelgado,erauma“escravaaserviçointernodacasa”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.618.

50 Apropósitodosubstantivobárbaro,RafaelBluteaudáaseguintedefinição:“AssimchamaraõosGregos,&edespoisdellesosRomanos,atodososquenaõeraõdasuanaçaõ,&quenaõfallavaõasualingoa,comohojeopovodePortugalchamaatodososEstrangeiros”.RafaelBLUTEAU, Vocabulario..., cit.,2ºtomo,p.46.

51 Otermogentiosignificaomesmoquepagão,RafaelBLUTEAU, Vocabulario..., cit., 4ºtomo,p.57. Na entrada adicional do mesmo dicionário, é-nos dada a seguinte definição: “(...) porestapalavra(...),entendemosChristãosaGente,queficanamesmafórma,quefoyGerada;eassimnaõfoycircuncidada,comosaõosJudeos,nemhebautizada,comosaõosChristãos;maspermanecendoInpurisnaturalibus,estácomosahiodoventredamãy,enaõconheceaDeos,nemcousasua”,RafaelBLUTEAU, Vocabulario...,cit.,9ºtomo,p.455.Paraumacontribuiçãorecente sobre a noção de gentio ver JoséhORTA, “A categoria deGentio emDiogo deSá:funçõeseníveisdesignificação”,inClio,vol.10(2004),pp.135-156.

52 O termo de idolatra, remete para a noção de adoração das imagens pelos gentios. RafaelBLUTEAU, Vocabulario..., cit., 4ºtomo,pp.31-34.

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nãotenhamosfeitoumlevantamentoquantitativodasocorrências,parecequesãosubstancialmentemaisusadasdoqueoutraspalavras.Asuafrequenteutilizaçãoimpregnaotextodaideiadeevangelização.Deformaquasesistemática,otermogentio, ou seja, aquele que não é católico, é conotado negativamente: podeser diabólico, inimigo, traidor, desleal, idólatra, belicoso ou ainda bárbaro.Aspalavrassupracitadastêmasuacontrapartida:osbárbaros,osgentios eosidólatras designamoafricanosemreligião,queaindanãofoievangelizado,poroposiçãoaoafricanobautizado.

A ideia de conquista também remete para a dimensão militar, presenteno próprio título da obra. Para designar as estruturas militares africanas,utiliza-seumagrandevariedade lexical.Graçasao seugrandeconhecimentodo sertão, Cadornega relata em pormenor a organização e hierarqui-zação destas estruturas militares. Entre outras palavras podemos citar:angolambole53,cangoandas54,embululo55,empacaceiros56,guerra preta57,jagas58,

53 OanotadordaHistória...,dá-nosaseguintedefinição:“Eraentreospretosocargoequivalenteaonossocapitãogeraldegentedeguerra”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.611.SegundoAdrianoParreira,NgolaAmboleéum“títulomilitarnoNdongo”,AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.85.

54 A propósito desta palavra, José Matias Delgado diz-nos “Eram assim chamados os soldadoscrioulosdeS.ThoméedeLoandaoudeAngolaosquaeseramvestidosàportuguesa”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.612.

55 SegundoAdrianoParreira,Embululoerao“corpomilitardarainhaJingaconstituídoporjovensrapazescapturadosnasguerras,equeformavampartedoseukilombo”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.41.

56 DeEmpacasseiros,oanotadordaHistória...,dáaseguintedefinição:“Eramoscaçadoresdos“empacassos”;empacassas(entãompakasa,hoje–pakasa)éoboiselvagem.Paraestesanimaisseremcaçadoseramnecessárioshomensvalentesdestemidosebonsatiradores”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.613.ParaAdrianoParreira,otermoempacaceirotinhadoissignificados:emprimeirolugareram“tropasregularesqueusavamarmasdefogo,e que acompanhavam o exército português nas campanhas militares no interior deAngola”;emsegundolugarera“omesmoqueKilamba”,istoé“capitãesassalariadosdeguerrapreta”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,pp.41-42.

57 EstetermoerautilizadoparadesignarastropasafricanasqueauxiliavamosPortuguesesduranteassuascampanhasmilitares.

58 OtermoJagaéproblemáticoenãoexisteconsensocientíficosobreoseusignificado.AdrianoParreira, dá-nosvários sentidospara estapalavra.Podecorresponder aumadesignaçãoparao grupo dos Imbangalas; pode significar “Grupo multi-étnicos de guerreiros, que foramo eixo das alianças entre todas as principais autoridades da região, durante o séculoXVII”;podeaindadesignaruma“PessoaprincipalnaprovínciadeGuenguela”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.53.NocontextodaHistória...,otermoJagadesignamuitasvezesumtipodeorganizaçãosocialemilitar,quecorrespondeaosegundosentidodadoporAdrianoParreira.Em várias ocasiões, os Jagas foram auxiliares militares africanos dos portugueses, contraoutras estruturas africanas ou contra os neerlandeses, quando estes ocuparamLuanda.Sobreesteassunto,ver tambémapolémicaentre JosephMillere JohnThornton. JosephMILLER,“Requiemfor theJagas”, inCahiers d’etudes africaines,n.°13 (1973),pp.121-149;eJohn

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muto aita59, pombo60, quiambole61, quilambas62, sambatandala63, tandala64.Reparamos na clara predominância dos termos africanos neste domínio.Isto indica-nos, por um lado, a apropriação, por parte dos portugueses, dosconceitosveiculadosporestaspalavras,eporoutro,aimbricaçãodasestruturasmilitares portuguesas e africanas.Comefeito, para poderem levar a cabo assuas campanhasmilitares, os portugueses recorriamconstantemente a tropasauxiliares, chamadas ora guerra preta, ora jagas. Se estas tropas auxiliaresagiam segundo os interesses dos portugueses, mantinham, no entanto, a suaprópriahierarquiamilitar.

Noquedizrespeitoàsestruturasehierarquiaspolíticasdasentidadesafricanas,Cadornegafornece-nosinformaçõesimportantesedetalhadas,recorrendo,tambémnestecaso,exclusivamenteapalavrasafricanas:emvala inene65,ganga66,gingo67,

ThORTON, “A Resurrection for the Jaga”, in Cahiers d’Etudes Africaines, n.° 18 (1978),pp.223-227.

59 SegundoCadornega,estapalavra“querdizerCabeçadaguerra,MutoheCabeça,Itaaguerra”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,1ºtomo,p.458.

60 Estapalavraéutilizadaparadesignara“gentequeianavanguardadeumexercitoparadescobrirterreno”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.619.

61 Segundo José Matias Delgado, “era o capitão mor da gente preta”, António Oliveira deCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.620.SegundoCadornega,“valetantocomocapitãogeral”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.229.

62 Para este termo, Adriano Parreira dá-nos diferentes significados. quilamba pode designar“capitãesassalariadosdeguerrapreta”,“sobasaliadosdosportugueses,comquemcolaboravamno comércio de escravos”.Adriano PARREIRA, dicionário..., cit., p.58. Diz-nos ainda quesignificaomesmoqueempacaceiro.

63 Termo para designar “a segunda pessoa do governo ou comando da guerra preta”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.620.

64 SegundoCadornega,estapalavradesignavao“capitãomórdaguerrapreta”,masotandalatambémpodiaservirdeintérprete.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.185

65 Apropósitodeste termo,JoséMatiasDelgadodiz-nos“mvalaera(eé)aprimeiramulherdosoba;mvalainene,concubinagrande,principal”.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.614.

66 OanotadordaHistória...,explica-nosqueganga“eraoadivinho,feiticeiro,medicoecurandeiro.Aos padres católicos chamavam – nganga ia missa”, António Oliveira de CADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.615.Cadornegadiz-nos:“chamãoaosseusMedicoseSurgioens;EgangaAmiçachamãoaosnossoSacerdotes”.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.423.Arespeitodestapalavra,AdrianoParreiradiz-nosquesetratadeum“ritualistaquecomaajudadosnkisi,restituiaintegridadedohomemedasociedade”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.84.

67 Sobreestapalavra,JoséMatiasDelgadoescreve:“Dizoautorqueeramosherdeirosousucessorespresuntivosdossobas.Nãoseiseeranguingu(ngingu)ounjingu;comooautornãoescrevebemokimbundu,nãosepodesaberistoetambém,nãoseisequalquerdasformaséhojeusadacomestesentido”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.615.

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macotas68, mani69, mucunzes70, mukuluntu71,punga72, quimpaco73, samba enzila74,sova75.

Estestermoscomportaminformaçõespormenorizadassobreaorganizaçãodopodernoseiodasentidadescomquemosportuguesescomunicavam.Temosdestaformaideiadecomoeramtomadasasdecisõespolíticas,comosetransmitiao poder ou como circulavam as informações. O termo sova, que designa umconceitopolíticoobjectivo,podeserconotadoorapositivamente,seoditosova forvassalo dosportugueses,oranegativamente,quandoérebelde oualevantado,eportantoinimigodosportugueses.

quanto aos critérios étnico-políticos, Cadornega utiliza as palavras:ambundainha76,dembo77,mixilunda78,nambios79 (oumonambios),quissamas80.Trata-sedetermosdeorigemafricana,tendoalgunsdelessidoaportuguesadas.Correspondem a grupos consolidados, embora com graus de centralizaçãodo poder mais ou menos importantes. Estes grupos, que ocupam territórios

68 Makotaé“pluraldedikota;omaisvelho,conselheirodesoba.Significahomensvelhos”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1º tomo,p616.AdrianoParreira,apoiando-seemvárias fontes, dá-nos diferentes sentidos desta palavra: “indivíduo importante num sobado”,“conselheirodos sobas”, um títuloLundado séculoXVI, “umcidadãodo conselhodepaz eguerra de uma autoridade” ou ainda um “indivíduo mais idoso de uma linhagem mbundu”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.67.Deformagenérica,osmacotaeramosconselheirospolíticosnumaestruturaafricana.

69 OtermoManisignificachefenaáreambundu.70 Mucunze signficava“embaixador, enviado”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,

cit.,1ºtomo,p618.71 Mukuluntu é uma “palavra do Congo que quer dizer – chefe superior”,António Oliveira de

CADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p372.72 Pungaera“conselheiro”.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2º tomo,p433.

ParaAdrianaParreira,significava,noCongo“umfuncionárioenviadoparaexigiraentregadeumacriminoso”,ouainda“pagem”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.96.

73 SegundoCadornega,quimpaco“nalinguaMuxicomgaquerdizerfeiticeiro”,AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.217.

74 Esta palavra significava “segunda mulher do soba”, António Oliveira de CADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.620.

75 Noespaçoangolano,eraotermomaisfrequenteparadesignaroschefespolíticosafricanos.EstapalavraaparecenodicionárioorganizadopoeRafaelBluteau.RafaelBLUTEAU,Vocubulario...,cit.,7ºtomo,p.741.

76 José Matias Delgado diz-nos que a ambundainha é “gente ambunda”, António Oliveira deCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.99.

77 Eramoshabitantesdaregiãodomesmonome,situadaentreosreinosdoNdongoedoCongo.78 AssimeramdesignadososhabitantesdaIlhadeLuanda.79 SegundoAdrianoParreiraeram“marinheiros,pilotosepescadoresquehabitavamomorrocomo

mesmonomesobreabarradorioKwanza.EramelesquemanobravamasembarcaçõesportuguesasnaentradaesaídadabarradorioKwanza”.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.96.

80 Palavra para designar a população quemora na região domesmonome, situada a sul do rioCuanza.

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determinados e que têmcaracterísticas linguísticas e culturais identificáveis,sãoosprincipaisinterlocutoresdosportugueses.Asuadescriçãofornece-nosumanoçãorelativamenteprecisadaorganizaçãoedosequilíbriospolíticosdaregiãodeLuandaedoseusertão,quepassamosaenumerar.Aambundainha,isto é, os mbundu, cuja principal estrutura política é o reino do Ndongo, éo grupo populacional mais importante naquela região. Os mbundu falamquimbundue constituemumdosgruposque tiverammais contactos comosportuguesesnoprocessodecolonizaçãodeAngola.Osmixilunda,habitantesdaIlhadeLuanda,eram,noséculoXVII,súbditosdoreiCongo.Oseupapeleconómico era importante, dado que na ilha de Luanda eram apanhadosos zimbos, conchas que serviam de moeda no reino do Congo. Os demboconstituem um grupo que se situa entre os reinos do Congo e do Ndongo.AtéaoséculoXVI,dependeramdoreinodoCongo,emancipando-sedaquelatutelanoséculoseguinte.Desempenharamumpapelimportante,deumpontode vista económico emilitar, sendo alternadamente aliados ou inimigos dosPortugueses.Nãoconstituíamumaestruturapolíticacentralizada.Osquissama,quenoséculoXVIInãoforamvencidospelosportugueses,situavam-seasuldo território onde os portugueses tinham os seus presídios ocupando umaposiçãoestratégica importante.Nassuas terrasencontravam-seminasdesal,queosportuguesescobiçavam,nomeadamenteparapoderemfinanciaro seuprojectocolonial.Osnambios situavam-senabarradorioCuanza.Emboraasua implantação territorial fosse reduzida, eramutilizados pelos portuguesesparaentrarousairdorioCuanza,principaleixodenavegaçãodohinterlanddeLuanda.

No registo étnico-racial, encontramos ora palavras relativas ao lugar denascimentoorarelativasàcordapele.Filhos da terra81enaturais da terra,sãoexpressõescomomesmosignificadoquecolocamolugardenascimentocomoelemento distintivo.Este elemento irredutível serve para designar o grupo dosque nasceram em África, por oposição aos europeus. Se esta categoria estáassentenumcritérioclaramentedefinível,omesmonãosepodedizerdaquestãoda cor da pele, que merece uma atenção particular pelo peso que ocupa naquestãocolonial.AolongodostrêstomosdaHistória..., encontramoscrioulos82,

81 Eramconsiderados filhosda terra aquelesque tinhamnascidoemAngola.Aexpressão filhosda terra tinha um significado próximo da expressão naturais da terra, também utilizada porCadornega.Aplicava-setantoanegros,queabrancosouamestiçosnascidosemAngola.

82 ParaAdriano Parreira, o crioulo emAngola era no século XVII “um indivíduo mestiço, deascendência europeia a africana”, Adriano PARREIRA, dicionário..., cit., p.38. No seudicionário,RafaelBluteaudá-nosumsentidodiferenteàpalavracrioulo:“Crioulo.Escravo,quenasceonacasadoseuSenhor”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,2ºtomo,p.613.

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mulatos83,negros84, pardos85epretos86.Todosestestermosconstituemelementosde identificação por oposição aos brancos. Entre os dois extremos do lequede cores, branco e negro, existem vários vocábulos cujo significado não estáclaramente diferenciado. As três palavras citadas contêm a ideia de sanguemisturado,semteremtodaviacontornosherméticos.Convémmencionarqueaspalavrasrelativasacritériosdecorsãomenosempregadas,porexemplo,doqueaspalavrasrespeitantesaoestatutoreligioso.Podemosreferirtambémquenegroémuitasvezesassociadoatermospositivos,inteligente,bom,ouneutros,quandose refere a pessoasgeralmentebaptizadasque se situamportantodo ladodosPortuguesesefazempartedoespaçocolonial.

Porfim,éimportantemencionaraspalavrasquedesignamestatutosougrupossocio-económicosfrutodas interacçõesentreportugueseseafricanos.Entreasmaissignificativasdestacategoria,destacamos:lingoa87, pombeiro88, quimbares89.Estesgrupossãofundamentaisporsesituaremnofulcrodacomunicaçãoentreportugueseseafricanosepermitiremofuncionamentoeconómicodacolóniaedasredescomerciasdosertãoangolano.

Na sua obra, Cadornega não nos dá uma imagem binária dos gruposafricanos residindo apenas numa oposiçãoAfricano/Europeu.A sobreposiçãode níveis discursivos gerais, de teormais ideológico e subjectivo, e de níveisdiscursivos pormenorizados, de teor mais descritivo e objectivo, proporcionaumacaracterizaçãovariadadosafricanos.Dá-noscontadagrandecomplexidadede grupos existentes no espaço colonial angolano em formação. Através daidentificaçãodestesgrupos,Cadornegacriaecristalizaconceitosnumsistema

83 No séculoXVII, era consideradomulato “filhode branca,&negra [sic.], ou de negro,&demulherbranca.”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,5ºtomo,p.628.

84 NoiníciodoséculoXVIII,eraconsideradonegroum“homemdaterradosnegros,oufilhodepaysnegros”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,5ºtomo,p.703.Estanoçãotinhaportantoumaconotaçãoterritorialeétnica.

85 NoVocabulario...,o termopardoédefinidocomoequivalentedemulato.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,6ºtomo,p.165.

86 NoVocabulario...,apalavrapretoéassociadaàideiadeescravo.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,6ºtomo,p.727.

87 “Lingoa”significavaintérprete.88 Esta palavra que remete para uma realidade exclusivamente angolana, está presente no

Vocabulario..., :“EmAngolaosPortuguezeschamãopombeyrosaosseusescravoscrioulos,aquemensinàrão a ler, escrever,& contar, os quaes vão tratar comos negros,& comprallos”.RafaelBLUTEAU,Vocabulario...,cit.,6ºtomo,p.588.

89 Cadornegadiz-nosqueé“genteforra,osmaisdelleslavradores,hunsqueassistememestavillaeoutrosporseusarredoresehetantooseunumeroquecomfacilidadesenãopodemnumerar,mascomserdospretosegentebrancaepardossãoosqueservemsuasconfrarias,comoheaSenhoradosRemedios,edasAlmaseadoSantonegronascôres,enasobrasesantidademuitobranco”;AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.122.A.Parreiradiz-nostambémqueéomesmoquepumbeiro.AdrianoPARREIRA,dicionário...,cit.,p.58.

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coerente de representações e de imagens. Reparamos que, em determinadoscasos,existealgumaporosidadenoslimitesdosgrupos.Devemosatribuirestasflutuaçõessemânticasaofactodeostermosutilizadosremeterempararealidadesaindanãocristalizadas.Écertoqueacaracterizaçãodestacomplexa realidadeafricanadeve ser encaradacomouma ferramentapolítica, fundamentalparaoconhecimentodo“outro”,eporconseguinteparalevaracabonegociaçõescomasestruturaspolíticaslocais.

3 os encontros diplomáticos e comerciais

As descrições dos encontros diplomáticos e comerciais revestem umaimportância capital pela quantidade de informações nelas contidas. Tendo orelato a função concreta de identificação dos interlocutores dos portuguesesno sertão angolano, o autor não se limita todavia a categorizar as populaçõeslocais.Baseando-senasuaprópriavivência,descrevepormenorizadamentetodosos encontros, fornecendo desta forma uma espécie de guia das relações entreportugueseseafricanos.

Comefeito,estasdescriçõessão fundamentaisparaentendermosa formacomo europeus, maioritariamente portugueses, e africanos comunicavam.Estesencontrosconstituíamlugaresdenegociação,espaçosdeinteracçãoedeintercâmbioeconómico,políticoouaindacultural.

Nestaterceirapartedebruçar-nos-emossobrediferentesaspectosrelativosaosencontrosentreportugueseseafricanos,comoobjectivodemelhorentendermoso seu funcionamento e as suas dinâmicas.Começaremos por reflectir sobre aimportânciadoprocessonegocialnoconjuntodasrelaçõesluso-africanas.Trata-sedeumareflexãorelevanteseconsiderarmosqueocontextoangolanodoséculoXVIIerafortementemarcadoporumacoabitaçãoconflituosa.Emsegundolugar,pretendemosdebruçar-nossobreaconfiguraçãoeaorganizaçãodasembaixadas,para fornecermos uma sucinta descrição destes encontros. Em terceiro lugarparece-nos importante tentarsaberquemodelo jurídicoregiaasnegociaçõeseosacordosdiplomáticos.Porfim,propomo-nosestudarsucintamenteodecorrerdas negociações, para tentar determinar que pessoas ou grupos levavam asnegociaçõesacabo.

3.1 A importância do processo negocial

Antes de mais, convém esclarecer que as negociações não eram umprocesso hermeticamente delimitado.Constituía umdos aspectos das relaçõesluso-africanas, que se imbricava e se articulava com as relaçõesmilitares.Asnegociaçõeseram,aliásintrinsecamentevinculadasaoprocessodecolonização.ParaesclareceroleitorsobreagénesedoprocessonegocialnaregiãodoCongoedeAngola,Cadornegarelembra-nosaformacomoosportuguesescomunicavam

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comosAfricanosquandoDiogoCãochegouàbarradorioZaireem1483:“o nosso descobridor achou gentio de huma parte e outra, de lingoa que se não entendia; e só por senhas soube delles que tinhão rei”90.

Aspalavrasembaixada, embaixador, enviado sãorecorrentesparadesignarascomitivasenviadasdeumpoderpolíticoaooutrocomoobjectivodenegociarquestõesdiplomáticasoucomerciais.Constatamosousodepalavrasafricanas,como por exemplo “mucunze”, que significa “enviado”. Ao longo dos trêstomos da História Geral das Guerras angolanas existem pouco menos decinquentaexcertosemquesãoreferidasembaixadas.Noentanto,asembaixadasmencionadasnãobeneficiamtodasdamesmaatençãoporpartedoautor.Algumassãoapenasreferidas;deoutras,sóconhecemosospormenoresdepreparaçãoeeventualmenteosseusresultados;apropósitodeoutras,enfim,temosumrelatopormenorizado.

A recorrênciade termos relativosà ideiadenegociaçãodemonstraqueaacçãodiplomáticaenegocialentresociedadesdeculturaportuguesaesociedadesdeculturaafricanaeraumapráticafortementeinteriorizadanocontextoangolanodo séculoXVII.Alémdisso, amençãodestes encontros, quemuitas vezes seconcluíampela assinatura de um tratado, implica que portugueses e africanossereconheçammutuamentecomointerlocutoresdoprocessonegocial.Apráticadiplomática parece assim tão importante quanto a práticamilitar nas relaçõesluso-africanas.

3.2 A configuração e a composição das embaixadas

Asembaixadaspodiamobedeceraváriospadrõesquantoaosinterlocutoresnelasenvolvidos.Cadornegamencionaembaixadasportuguesasquesedeslocavamparaosertãoparanegociaremcomospoderesafricanos;embaixadasafricanasque iam até Luanda, ou até um presídio para encontrarem os representantesportugueses; embaixadas africanas que encontravam outra estrutura políticaafricana;porfim,trocasdeenviadosentreospoderesafricanoseosrepresentantesdaWIC,quandoestacompanhiaseapoderoudeLuanda,de1641a1648.Nestetrabalho, apenas consideraremos as embaixadas trocadas entre os poderesportugueseseafricanos.

As embaixadas portuguesas eram comitivas compostas por numerosase variadas pessoas. Eram compostas por brancos, nomeadamente colonosexperimentados,oschamados“conquistadores antigos” ou“gente práctica da terra”,ouaindaossoldados“baquianos”,e,àsvezes,osmissionários;crioulos,nomeadamenteintérpretes,oschamadoslingoa; eafricanos,queeramescravose

90 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,pp.285-286.

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“guerra preta”,istoé,tropasauxiliaresafricanas.Nestasembaixadas,adimensãomilitarnãodeixavadeserimportantenumcontextoemqueosportuguesesnãodominavam o espaço. Precisavam portanto de se deslocar com um númeroimportante de soldados para poderem resistir aos eventuais ataques dos seusadversários.Além disso, a presença dos soldados era importante no processonegocial,dadoque,aomostraremasuaforçamilitar,tentavamcriarumarelaçãodeforçaquelhesfossefavoráveleosdignificasseperanteosseusinterlocutores.Cadornegadá-nosumaideiadacomposiçãodeumaembaixadaportuguesanoseguinteexemplo:“[Gaspar Borges madureira] partio para aquella embaixada com grande apparato, levando dous Cavallos que tinha seus, (...) levando também alguns homens brancos para o assistirem, e muita sua escravaria de que era abundozo”91.

É importante salientar que os governadores portugueses raramenteparticipavamdestasembaixadas.Efizeram-nocadavezmenoscomoavançardotempo,preferindopermaneceremLuanda.Noentanto,participavamdoprocessonegocialaoreceberemasembaixadasafricanasquevinhamaLuanda.

Dispomosdealgumasdescriçõesdeembaixadasafricanasquesedeslocaramatéaoscentrosdepoderportugueses.Asmaisfiáveissão,naturalmente,asquesereferemaacontecimentosqueCadornegapresenciou.Estasembaixadaspodiamsercompostasporalgunsenviadosafricanos,quetraziamumamensagemoralouumacartaescritapeloseuchefepolítico.Nocasodosestadosmaispoderosos,nomeadamentequandosetratavadoreinodoCongo,osembaixadorespodiamsermissionários.

3.3 o sistema jurídico adoptado

Osencontrosentreportugueseseafricanoscolocamlogicamenteoproblemadesaberquais,dasnormasjurídicasafricanasoueuropeias,eramaplicadasparacomunicar e celebrar acordos políticos.A resposta não pode ser simples nemcategórica.EmhistóriaGeraldasGuerrasAngolanas temosnotíciadequeoseuropeusseapropriaramdenormasafricanasedequeomesmoaconteceucomosafricanosemrelaçãoanormaseuropeias.

SãoreferidosváriosexemplosdemissivasenviadaspelospoderesafricanosaopodercolonialdeLuanda92,quandoésabidoqueosafricanosnãoutilizavama escrita.As missivas explicam-se pela presença, junto dos chefes africanos,de missionários católicos, que lhes serviam de conselheiros e de escrivães,nomeadamentenoquedizrespeitoàsuacorrespondênciacomoutrasentidades

91 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.211.92 OfenómenodepenetraçãodaescritaemAngolafoianalisadoemCatarinaMADEIRASANTOS,

AnaPaulaTAVARES,africae monumenta : a apropriação da escrita pelos africanos,Lisboa,InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,2002.

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políticas. Isto demonstra que os representantes católicos foram importantesvectoresdapenetraçãodaescritanassociedadesafricanas.Noqueconcerneaoespaçoétnico-linguísticombundu,observa-sequeautilizaçãodaescritapelosafricanossurgiusobretudoapartirdasegundametadedoséculoXVII,masnoCongoesteprocessoébastantemaisantigo.

Éimportantesalientarque,apesardestascartasseremescritasemportuguês,as negociações decorriam muitas vezes na língua utilizada pelo interlocutorafricano.Porexemplo,assimsepassounaocasiãodasnegociaçõesrelativasàratificaçãodapazcomosportuguesesnosanos1650pela rainhaNzinga:“e como ella mandava embaixadores, alem da Carta de Crença fallarão e derão sua embaixada na sua propria lingoa ambunda, que por interprete se explicava ao governador e mais Circumstantes”93.

No sertão angolano, observamos uma interpenetração dos sistemasjurídicos africanos e europeus. No caso dos baptismos dos sovas, os chefesafricanosescolhiamumpadrinhoportuguêseumnomecristão.Estascerimóniascorrespondiam à celebração de um acordo de paz. Para além de se tornaremcatólicos,os sovasbaptizadospassavama serconsideradosvassalosdo reidePortugal.Noentantoaformacomoeramcelebradososacordosinscrevia-senumsistemanormativoafricano:“aquelles sovas que se achavão presentes baterão todas as palmas, pondo as mãos na terra, e despois nos peitos, Ceremonia entre elles de sugeição e agradecimento, promettendo de serem leaes e Vassallos a el rey de portugal, e á nação portugueza”94.Deumaformageral,asnormasque regiamas relaçõesentreportuguesese africanospermaneciamfortementeimpregnadaspelasnormasafricanas.Oexemplomaiscaracterísticodestarealidadeéosistemadetributação.Cadornegadesigna-opelaspalavrasdebaculamento95epezo96ouaindapeloverboundar97oquemostraque,nasrelaçõesdepoderquetinhamcomasestruturaslocaisdosertãodeLuanda,osportuguesesutilizavamnormasqueexistiamnaquelaregiãoantesdasuachegada.

Acoexistênciadosdoissistemaspodiaseraindamaisexplícita,comoatestao seguinte exemplo, no qual Cadornega refere que um capitão português era

93 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.131.94 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.452.95 Baculamentovemdoverbokubakula,quesignificatributar,AntónioOliveiradeCADORNEGA,

História...,cit.,1ºtomo,p.611.96 José Matias Delgado diz-nos “Parece que era um acto de vassalagem”,António Oliveira de

CADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.619.97 Apropósitodestetermo,JoséMatiasDelgadoescreve:“Éoverbokuunda,queosportugueses

traduziramporundarequesignificaprestarvassalagem;masoautoremprega-onosentidoderecebervassalagem.-Paraqueoundasse–paraquelherecebesseavassalagemelhepuzessoopezo”.AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,p.621.

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responsável tantopelajustiçaafricana“fazendo mocanos”98, comopelajustiçaeuropeia:“Capitão mor [...] que [assiste] na bamza e povoação do dito sova; administrando justiça e fazendo mocanos99 ou averiguando contendas, assim entre os sovas daquelle partido, como aos brancos e pombeiros Commerciantes”100.

3.4 As negociações

Nos encontros diplomáticos de que temos notícia, a capacidade denegociaçãodosportuguesesédevidamentedestacada:“para este Gentio todo o apparato e imperio he necessario, e isto he o que respeitão”101.Apropósitode embaixadores portugueses, Cadornega acrescenta: “e levava muito fausto e aparato como se requeria a hum embaixador portugues”102.Asnegociaçõesdiplomáticasdependiamdaimposiçãodumarelaçãodeforçaquepassavapelaostentaçãomilitar,comojávimosquandofizemosreferênciaàsembaixadas.Paratentaremimpressionarosafricanos,osportuguesestambémrecorriamaoartificiodoaparatodostrajoseadornosdosemissários,recorrendoaumatécnicaantiga,utilizadadesdeoiníciodaExpansãosemprequesetratavadeseapresentaremaumnovopovooudenegociar.Noentanto,cabemencionarqueosexemplosacimareferidoscorrespondem,emcertamedida,aprojecçõeseaimagenscriadaspelosautor.Aoquereremutilizar faustoeaparato,osportuguesesaceitavamadimensãocerimonialdosencontrosimpostapelosafricanos.Nestascerimónias,os africanos utilizavam instrumentos de música e simulavam batalhas, paraconferirumadimensãopolíticaemilitar,comointuitodeimpressionarosseusinterlocutores,fossemelesportuguesesouoriundosdeoutraestruturaafricana.

Comefeito,acapacidadeetécnicadenegociaçãonãoseencontravamapenasdoladodosportugueses.Cadornegarefere,porexemplo,queogovernadorPedroCésar deMenezes enviou, em1639, GasparBorges deMadureira, experienteconhecedordosertãoangolanoericocomerciantedeescravos,paranegociarumacordopolíticocoma rainhaNzinga,porquea rainhaafricanaexigiraque lhefossemandadoum“morador dos principaes”paraefectuaresteencontro103.

98 Cadornega também refere a existência de um “juiz dos mocanos”, António Oliveira deCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.51.

99 Apropósitodestapalavra,Cadornegadiz-nos:“Mocanohefazerpleitoeouviraspartesdepéa pé, e ouvidas dar sentença”,António Oliveira de CADORNEGA, História..., 2º tomo, cit.,p.305.SobreanoçãomucanovertambémCatarinaMADEIRASANTOS,“Entredeuxdroits:lesLumières enAngola (1750-v. 1800)”, inannales. Histoire, sciences sociales, n.° 4–60eannée(2005),pp.817-848.

100 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.61.101 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.209-210.102 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.35.103 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.211.

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Aostentaçãodesinaisdepodercomoarmanegocialepolítica,eracomumentreosresponsáveispolíticosafricanos.OautorsalientaofaustodosítioondearainhaNzingarecebiaosembaixadoresdosoutrospoderespolíticosafricanos:“em aquella grande caza recebia embaixadores, principalmente os del rey de Congo, (...) para o que tinha hum assento muito alto encostado á parede, que mandava cubrir de Veludos e sedas, assim o assento como as paredes, vestida ella de riquissimos pannos, ornada de muitas Joyas de ouro e pedras, e chão cuberto de muitas peças de londres vermelho de inglaterra, com suas ricas alcatifas em que se assentavão a infanta sua irmãa dona Barbora, e a rainha de matamba”104.

3.5 os mediadores

Por fim, cremos que é importante mencionarmos, mesmo sucintamente,outro aspecto relevante.Aquestãoda negociação, e de formamais geral dasinteracções entre portugueses e africanos, não pode ser encarada fazendoabstracçãodaquelesquepermitiamacomunicaçãoentreosdoisuniversos.Aolongo de toda a obra,Cadornegamenciona estes intermediários, que podiamsercolonosportugueses,agente experimentada, a gente práctica da terra, ossoldados baquianos105, os conquistadores antigos, os velhos sertanejos106, ouainda os missionários. Estes agentes coloniais tinham acumulado uma vastaexperiência e um grande conhecimento do terreno, depois de largos anospassadosnosertão.Muitosdelesfalavamaslínguasafricanas.Masacategoriadosintermediárioserapolimorfa,etambémtinhaasuavertente“africana”.OsLuso-africanos107,os“mulatos e pardos”108,os“freguezes (...) pardos e pretos, que vestem á portugueza”109,os“negros (…) que nos servião de guias versados naquella terra”110eramquemfundamentalmentepermitiaofuncionamentodasredes comerciais, aqueles por quem passavam as negociações entre colonosportuguesesepoderesafricanos.

104 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,1ºtomo,pp.413-414.105 Apropósitodeste termoJoséMatiasDelgadodiz-nos“(...)gente jáacostumadaaoSertão; já

aclimadoaoSertão,ouquetemacostumadooseuorganismoàscondiçõesdoclimadoSertão”,António Oliveira de CADORNEGA, História..., cit., 1º tomo, p.600. Este termo também seempregavanocontextobrasileiro.

106 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.101.107 Apropósitodanoçãodeluso-africanoverJosephMILLER,Way of death : merchant capitalism

and the angolan slave trade, 1730-1830,Madison,TheUniversityofWisconsinPress,1988;ePeterMARK,“portuguese” style and luso-african identity : precolonial senegambia, sixteenth--nineteenth centuries,Bloomington,IndianaUniversityPress,2002.

108 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.30.109 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,3ºtomo,p.50.110 AntónioOliveiradeCADORNEGA,História...,cit.,2ºtomo,p.96.

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4 À guisa de conclusão

Ocotejododiscursopolíticode justificaçãodacolonizaçãocomorelatodosencontrosentreportugueseseafricanos,colocaemdestaqueumaevidentetensão,que,dealgummodotraduzaestreitaligaçãoentreosuniversosafricanoeportuguês,emAngolanoséculoXVII.Odiscursoideológicoconfronta-secomadescriçãodoterrenoedoespaçogeográficodequeosportuguesessepretendemapropriar.Aacumulaçãodossaberes,aaprendizagemdeAngolatraduzem-senaelaboraçãodeumdiscursoanalíticoquedácontadacomplexarealidadedoterreno.Acaracterizaçãodosgrupospolíticos,sociaiseétnicoscontribuiparadelimitaroscontornosdosagentescoloniais,dosseusinterlocutoresedosintermediáriosentre o mundo europeu e o mundo africano. As categorias identificadas sãorelevantesparaentendermosnãosóarealidadeangolanadoséculoXVII,comotambémoconjuntodoperíodocolonial.

No que diz respeito à comunicação, observamos que tanto africanoscomoeuropeusmostramumagrandecapacidadedeapropriaçãodoselementosculturais, políticos e jurídicos recíprocos. A adaptação dos portugueses aossistemaspolíticos,comerciaisenegociaisafricanos,queé,antesdemais,ditadapelasnecessidadesdoterreno,traduz-senaimpregnaçãodossistemaspolítico--jurídicoserevelaumgrandepragmatismoporpartedoscolonos.Nestalógicade comunicação, são imprescindíveis as categoriasde “intermediários”, entresoutros, colonos sertanejos ou mestiços, porque servem de mediadores entreas diferentes estruturas políticas.É tambémgraças a estesmediadores que osportuguesesconseguematingirosseusobjectivosdiplomáticosecomerciais.

Nocontextodasrelaçõescomosportugueses,osafricanosmostramumafaculdadeidênticadeabsorverpráticassociaisepolíticas.Osencontrostambémevidenciamasuagrandecapacidadedenegociação.

Oselementosestudadosnestetextonãopodemconduziraumaconclusãodefinitiva.As ideiasaquiapresentadasmerecemcontinuaraserdesenvolvidase confrontadas comas evoluções edinâmicashistóricasda regiãodeLuanda.Nesta perspectiva, deve aproveitar-se a imensa riqueza documental de quedispomosrelativamenteaAngola.OsdocumentosportuguesesqueseencontramnomeadamentenoArquivohistóricoUltramarinoenaBibliotecadaAjudaemLisboa, os documentos das missões jesuítas e capuchinhas, que se encontramessencialmenteemRoma,ouaindaasfontesneerlandesasqueseencontramnoArquivoNacionaldehaia,constituemumconjuntodocumentalinestimávelparao conhecimentodas relações interculturais.Aanálise comparadae sistemáticadestasfontesdocumentaispermitirãocertamenteterumavisãomaisabrangentesobreosproblemasderepresentaçãoedecomunicaçãoemAngola.

DESPOJOSDODEMóNIONACASADAIGREJA 131

DESPOJOSDODEMóNIONACASADAIGREJACURIOSIDADESDEUMMISSIONÁRIO

CAPUChINhONOKONGO(1692)

Carlos almeida*

NumamanhãfriadeInverno,nofinalde1692,emRoma,ummissionáriocapuchinho atravessa, apressado, os portões do Colégio da Propaganda Fide.Daliapouco,osseuspéscansadosecalejadosportantasjornadasnossertõesafricanospisariamos aposentosdoSecretáriodaCongregaçãodaPropagandaFide, monsenhor Edoardo Cibo, que o receberia em audiência. havia cercadeumanoqueabandonaraaPrefeituradoKongo,nacostaocidentalasuldorioZaire,paraondeforaenviadoemmissão,nos idosde1685.Asaúdedébilobrigara-oainterromperoseuapostoladoearegressaraosarestemperadosdaEuropa. Restabelecera-se em Lisboa, durante alguns meses, no hospício quea Ordem mantinha na cidade, e sem mais demoras dirigira-se a Roma. Numprimeiroencontro,diasantes,omissionáriojustificaraasrazõesparaoabandonodamissãoeprestarauma informaçãocircunstanciada sobreo trabalhoquealirealizara,oestadodaquelacristandade,easnecessidadesquepadeciamosirmãosqueládeixaraeaqueurgiaacorrerparaquepudessemlograrofrutoquedelesseesperava.OsecretáriodaCongregaçãoencarregara-odepassaraescritooregistoda suaactividade,assimcomoo roldasprincipaisnecessidadesdamissão.OpadreAndreadaPaviaassentiu,nãoseminformarque,desdequerecuperaradosachaquesqueohaviamacometido,iniciaraaredacçãodeumanarrativasobreasuaviagemeosparticularesdaquelesreinos,comintençãodeafazerimprimir

* InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical–ArquivohistóricoUltramarino

CARLOSALMEIDA132

comdedicatóriaespecialparaaquelepreladoque,tãodedicadamente,zelavapelasaúdefísicaeespiritualdosmissionários1.

Eraoutro,agora,omotivodaaudiênciaparaqueforaconvocado.Depoisdoencontroanterior,maisformal,monsenhorEdoardoCiborecebeu-o,agora,com“affettononordinário”.Tambémeletinhaexpectativasparticularesparaaquelecolóquio que fora agendado a seu pedido. Sobre os seus ombros repousava agestãodoesforçoqueaIgrejaempreendiaparaprojectarocristianismonosquatrocantos do mundo. Na sua secretária amontoavam-se cartas e relatos das maisdistantesproveniências,láondereligiososporinteirodevotadosàpropagandadafé,reinventandoosentidoprofundodochamamentoapostólico,arrostavamcomtodaasortedesacrifíciosparaanunciaraverdadedapalavraqueCristorevelaraaoshomensepelaqualpadeceranacruz.Atravésdelasconheceraestranhosedesconhecidos costumes, torpes e repugnantes hábitos comque o demónio sedissimulava,divertindoohomemdocaminhodafé,inomináveismaravilhasquese ofereciam, como um livro, para que na sua contemplação se reverenciassenelas o autor de todas as coisas. Conhecia bem a missão espinhosa a que oscapuchinhossehaviamdedicadonaquelasterraslongínquasdaEtiópiainferiorocidental.Ainda assim, algodeparticular espicaçara a sua curiosidadeparaoencontrocomomissionárioqueagora,àentradadoseugabinete,seinclinava,saudando-odeformareverente.Mesesantes,AndreadaPaviaexpediradeGénova,aoseucuidado,umbaúdenãopequenadimensão,eoseuconteúdoseria,comprobabilidade,arazãoparaaatençãocomqueacolhiaaquelereligioso.

Aolongodosescassostrêsanosemquepermaneceunamissão,realizadanoNsoyo,namargemsuldorioZaire,apardaactividadeespiritualmaisdirecta,AndreadaPaviaevidenciouuminteresseparticularnacontemplaçãodasformasnaturais,queéperceptívelnostextosquedeixouescritos.Nainsistentereferênciaaos campos férteis eornadosde frutosque encontra emAlicante,Lisboa,nasilhasCanárias,noNsoyo,ounoBrasil,nalongaexegesesobreapassagemdalinhadoEquador,emparticular,acercadossupostosefeitosdaquelelugarsobreafisiologiadoscorpos,ounainquiriçãosobreasqualidadesatribuídasaoafamado

1 OstextosconhecidosdopadreAndreadaPaviaestãopublicados,nalínguaoriginal,porCarloTOSO,“Viaggio apostolico” in africa di andrea da pavia (inédito del sec. XVii),Roma,L’ItaliaFrancescana,2000.Asreferênciasaosseustrabalhosaquifeitasreportam-seaestaedição.Sobreopercursoeaactividadedestereligioso,devever-se,também,aediçãofrancesadosseustextosporLouisJADIN,“VoyagesApostoliquesauxMissionsd’AfriqueduP.AndreadePavia,PrédicateurCapucin,1685-1702”, inBulletin de l’institut Historique Belge de rome,Bruxelas,1970,pp.375-592.A recriaçãodo encontro entreEdoardoCibo eomissionário escuda-seno relatodosegundo,Viaggio apostolico alle missione dell’africa dal padre andrea da pavia predicatore Cappuccino, 1685, inBibliotecaNacional deEspanha,Ms. 3165, emparticular, ff. 126rv, inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,pp.198/199.

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peixe-mulher, no encantamento que exibe com a plumagem dos pássaros queencontraouailimitadacapacidadedospapagaiosparaaprenderemtodaasortedepalavras,revela-seumhomemgenuinamenteatentoaomundoqueseabriaaoseuolhar,empenhadoemperscrutarasvirtudesocultassobaaparênciadascoisaseque,longedelimitar-seàemulaçãoretóricadaerudiçãodosantigos,valorizavasobremaneiraoconhecimentodospráticoseosaberqueresultavadaexperiênciavivida.OinteressedeAndreadaPaviapelasformasnaturais levou-o,alémdaobservaçãoedescriçãodassuasparticularidades,arecolheretransportarparaaEuropaalgunsespécimesquelhedespertaramaatenção,emparticularpássaros,acujaplumagemeraparticularmentesensível.Omissionáriotrouxe,igualmente,ossosdepeixe-mulherque,apósoregressoàEuropa,enviouparaumgabinetedecuriosidadesemMilão,paraqueaífossemexperimentadasassuaspropaladaspropriedadescoagulanteseoseuefeitolenitivonashorasdoparto2.

Nãoseconhecedasuavidasecularosuficienteparaperceber,comprecisão,

as razões para esta atitude. O seu alistamento na ordem dos capuchinhos e acondiçãodepregadorqueaíalcançara–oestatutomaiselevadoqueumreligiosodaordempodiaambicionar–indiciamumaorigemaristocrática3.Maisdoqueoestatutosocio-económico,entretanto,éaquelamesmaatençãodeAndreadaPaviaàsqualidadesdomundo,reforçadapelasrelaçõesquemantinhacomgabinetesde curiosidades em Milão, que sugerem o seu imbricamento no ambiente danobrezailustradadascidadesitalianas.Nãoseriaestranho,aliás,queointeressecom as formas naturais, até a colecção de espécies e de objectos que trouxeconsigodeÁfrica,obedecesseaumroteiroque lhe tivessesidoencomendadoporumacadémicoouestudiosoligadoaalgumdessescentros.Naquelesmeios,achamadaculturadacuriosidadeconstituíaumatributosocialdistintivo,comoumcódigodecomportamento,queidentificavaomundocortesão,urbanoecivil,faceàquelequeonãoera4.Ospatronosdosgabinetesdecuriosidades,osestudiososque zelavam pela organização das colecções, os que atravessavam as quatropartidasdomundoeque,apardasuaactividadeparticularcomocomerciantes,militaresoumissionários,carreavamparaessescentrosobjectoseinformações

2 ANDREADAPAVIA,“ViaggioApostolicoalleMissione…”,ff.80v,inCarloToso,“Viaggio apostolico...”,p.117.OpadreAndreadaPavianãoidentificaemnenhummomentoogabinetedecuriosidadescomoqualserelacionavaeparaondeteráenviadoosossosdopeixe-mulher.ÉbempossívelquesetratassedaGaleriadeManfredoSettala,semdúvidaamaisimportantedacidadeeumadasmaisfamosasnaEuropailustrada,expoentedaculturaexperimentaldaépoca;veja-se,aestepropósito,PaulaFINDLEN,possessing nature. museums, Collecting, and scientific Culture in early modern italy,BerkelyandlosAngeles,UniversityofCaliforniaPress,1996,pp.34,207eseguintes.

3 Emregra,osneófitosdoOrdemdosFradesMenoreseramoriundosdasfamíliasnobresitalianas,factoquecontribuiriaparaencaminharparaaregraesmolaseoferendasavultadas.

4 Veja-se,aestepropósito,GiuseppeOLMI,l’inventario del mondo. Catalogazione della natura e luoghi del sapere nella prima età moderna,Bologna,SocietàeditriceilMulino,1992,p.179.

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sobreosmundosnovosqueaEuropadescobria, estavamunidospor redesdecomunicaçãointensaque,damesmaformaqueasseguravamatrocaeapartilhadeconhecimentos,construíamentreosseusmembrosummesmosentidodepertençaqueosidentificavaemrelaçãoàmolerústicaebrutal,supersticiosaeignorante,queenchiaoscamposouasvielasdascidadeseuropeias.Acuriosidadeeratantoumaatitudefilosófica,comoumamarcadedistinçãosocial,enocontextodosespaçosultramarinos,emparticularnasAméricaseemÁfrica,ondeoconfrontoentreacivilidadeeabarbáriesurgiamaisevidenteechocante,essefactoadquiriaumduplosignificado.

Não há, neste particular, nada de singular na curiosidade deAndrea daPavia.Antes de si e logo após,muitosmissionários, capuchinhos ou jesuítas,portugueses,italianosouespanhóis,haveriamderevelaromesmofascíniopelanaturezaexuberanteediversaquepontuavaapaisagemafricana.Comoele,outrosreligiosostrouxeramconsigoobjectosnaturais,pelesouplumagensdeanimais,ossosouchifres,sementes,plantas.Alguns,comoocapuchinhoMichelAngelodaReggio,mantiveramrelaçõesestreitascomoscírculosligadosaosgabinetesdecuriosidadeseenviaramparaaEuropaobjectosnaturaisrecolhidosduranteas suas viagens, seguindo questionários e prescrições rigorosas estabelecidasporestudiosossedeadosnessescentros5.Ilustrativodomundosocialeculturalemqueesteshomenssemovimentavame,atécertoponto,danaturezaamplaecomplexadoolharqueomissionáriolançavasobreoespaçoqueforachamadoaarrotear,aquelaqualidadedeobjectosdificilmentesuscitariainteressebastantepara justificar a realização de uma segunda audiência com o Secretário daCongregação.

Eraoutro,naverdade,oconteúdodobaúqueambosseaprestavamagoraarevelar.Umapósoutro,AndreadaPaviadispôs,sobreumbanco,osestranhos

5 OpadreMichelAngeldaReggiochegouaLuandanosprimeirosdiasdeJaneirode1668.AocabodepoucosmesesdeactividadeemMbambaeMpemba,nocoraçãodoKongo, adoeceugravementeeacaboupormorrer.OriundodaprovínciadeBolonha,AmbrogioGuattini,assimsechamavanoséculo,manteverelaçõescomGiacomoZanoni,conservadordohortodeBolonha,aquemenviouamostrasdeplantasrecolhidasnoBrasil,duranteaviagemdeida.Anosmaistarde,comrecursoaotestemunho,nãoapenasdeGuattinimasdemuitosoutrosinformantes,GiacomoZANONIpublicariaasuaenciclopédicaistorica Botânica … nella quale si descrivono alcune plante de gl’antichi, da moderni com altri nomi proposte, inBologna, perG.Longhi, 1675.Sobre o interesse naturalista dos missionários europeus que atravessaram a região do KongoeAngola,eo lugare funçãoqueadescriçãodanaturezaocupanaescritadamissão,veja-se,CarlosALMEIDA,uma infelicidade feliz. a imagem de África e dos africanos na literatura missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVi – primeiro quartel do séc. XViii),DissertaçãodeDoutoramentoemAntropologia,ramoEtnologia,orientadapelaProfessoraJillDias,eco-orientadapelaProf.MariaCardeiradaSilva,Lisboa,FaculdadedeCiênciasSociaisehumanasdaUniversidadeNovadeLisboa,2009(defendidaemMarçode2010),pp.209-317.

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objectosqueretiravadoseuinterior,amaiorpartedeaspectogrosseiroeimundo,pedaços demadeira que um rude artífice transformara em toscas figuras commedonhascarantonhas,umasdotamanhodeumrapazdedezanos,outraspoucomaioresqueamãoabertadeumhomem,todasadornadasdeenfeitesbizarrosehorrendos, trapos,dentes,pedras,conchas,oufolhasdeárvores,algunscomcoroasdevistosaspenas,vasilhasecabaçasigualmentedecoradascommotivosgrotescos em que dominavam as cores vermelha ou branca, pequenas bolsasempeledeanimais,contendomatériasputredinosas,simplespedrasoupausdeformascaprichosas,cordõesecontasdepedra6.Enquantoexpunhaosobjectos,Andrea da Pavia descrevia, com pormenor, as superstições e crenças vãs querodeavamasuautilização,eascerimóniasbizarras,tantasvezesvisitadaspelapresençaexplícitaou invocadadodemoníaco,comqueogentiooscelebrava.Nãodeixoudereferir,naocasião,ograndetemorqueaquelasimagensgrotescasinfundiamentreasgenteseosmileumardisaquerecorriamparaosocultardoolhardoshomensbrancos.Aessepropósito,salientouosincómodosecanseirasqueosmissionáriospadeciam,emnãopoucasocasiõescomoriscodaprópriavida,paraperseguiraqueles rituais, investigarecapturarosqueosoficiavam,eos esforços aque se entregavampara subtrair tais objectos àveneraçãodaspopulaçõesnasaldeiasdosertãoafricano.Nessasequência,relatouahistóriadeumamulher,conhecidaentreosreligiososdamissãocomo“bruxa”,queAndreadaPavia tinhadescobertocertodia,numaaldeia,equeescondiaconsigoumamultidãodepequenosegrandesobjectossupersticiosos7.Muitosdelesaliestavamagora,reduzidosàsuavacuidade,exibindo,naqueleespaçorequintado,povoadodeinúmerosobjectosdamaisfinaarteeuropeia,quecelebravamoesplendordaféeapuraverdadedapalavrarevelada,anaturezabrutal,idólatraecrueldaquelemundoemqueosafricanosviviammergulhados.

Entre a curiosidade e a aversão, Edoardo Cibo assistia atento àquelaexposição. Ler os relatos dos missionários, perceber, nos silêncios que a suamodéstiaimprimianodiscursoepistolar,ohorrorquetantasvezesexperimentavam

6 Nãoseconhece,comdetalhe,oconteúdoprecisodaquelebaú.NaspalavrasdeAndreadaPavia,elecontinha“Idoliconaltrivarij instrumentisuperstitiosi”.Nodiscursodosmissionários, taisexpressõesrecobriam,emregra,apanópliavariadadeobjectosrituaisafricanos,entreosquaisavultavamosminkisi.Écrível,portanto,queaaparênciadosobjectosqueopadreAndreadaPaviarevelavaàatençãodeEdoardoCibocorrespondesseaestaqueaquiseapresentaenaqualse incorporamalgunsdosseuselementosmaisnotórios.Parauma introduçãoàcomposiçãoesignificadodestesartefactosnocontextodacosmologiabakongosugere-seaconsultadeWyattMACGAFFEY,“Complexity,astonishmentandpower:thevisualvocabulayofKongominkisi”,Journal of southern african studies,vol.14,n.º2(1988),pp.188-203,eZdenkaVOLAVKOVA,“Nkisi figures of the Lower Congo”, acessível no endereço http://randafricanart.com/Nkisi_Figures_of_the_Lower_Congo.html,em19deNovembrode2010.

7 No texto original “una Fatuciera da noi chiamata Strega“; ANDREA DA PAVIA, “ViaggioApostolicoalleMissione…”,ff.88v,inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,p.131/132.

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noconfrontocomtaisencenaçõesera,jáporsi,matériadebastanteedificação.Mas estar na própria presença dessas imagens ultrapassava toda a consolaçãoquepodiaalcançarnostextosdaquelesreligiosos.OsecretáriodaCongregaçãolouvouadiligênciadomissionáriopoisgraçasa ela,pelaprimeiravez,podiaobservaroquenasmissivasque lhechegavammalpodiaentrever.Propôs-lhequepassasseaescritotudoquantoaprenderasobreassuperstições,crençasvãse invocaçõesdemoníacaspraticadasporaquelasgentesnasdistantesparagensafricanas. Partilhou, com o missionário, a sua intenção de promover umasessãodoColégioCardinalíciodaPropagandaFidecomoobjectivodeexporomiserávelestadoespiritualaqueaqueleshomensestavamreduzidos,paramaisresolutamentemoveroespíritodaCongregaçãoaquepromovesseoenviodemaisreligiososparaoamanhodaquelanecessitadatãonecessitadavinha8.

Comesteencargo,econfortadopelaatençãoqueEdoardoCibolhedispensaranaquelaaudiência,AndreadaPaviaretirou-se.Obaúalificou,denovoencerrandoos objectos que trouxera consigo e que tantos perigos e canseiras lhe tinhamcustado.Nos dias seguintes, pormais que uma vez,monsenhorCibo voltariaareclamarasuapresençaparaqueiluminassealgumaspectoparticulardeumdaquelesobjectosqueteriaficadomenosclaro,tantonasuaexplicaçãoinicial,comonotextoqueposteriormenteteráentregue.Anotíciadaexistênciadaqueleconjunto de objectos espalhara-se, entretanto. De várias partes, chegaram-lhepedidos insistentes para que intercedesse junto do Secretário da Congregaçãoparafacilitaroacessoeobservaçãodaquelacolecção.Chegouapensarentregaraqueles objectos ao gabinete de curiosidades, emMilão, para onde já enviaraosossosdepeixemulher,poucoapósterchegadoaRoma.Naquelamanhãdofinalde1692,enquantoabandonavaopaláciodaCongregaçãoe sedirigiadevolta à igreja de Santa Maria della Concezione, onde se situava o conventodos capuchinhos, em Roma, interiormente confortado pela forma como a suainiciativaforaacolhidaporEdoardoCibo,omissionárionãopodiasaberquenãovoltariaareaverasuainusitadacolecção,equepeseemboraointeressequeela

8 Entreosvários textosdeAndreadaPaviaconta-seum intituladoCerimonie superstitiose che costumano usare que etiopi del africa,ArquivodaSacraeCongregationisdePropagandaFide–ScrittureOriginaliRiferitenelleCongregazioniGenerali, vol.516,ff.62r-63r,inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,pp.250-252.Nãoéclaroqueestebreveelencodepráticasrituaisafricanas,tal como foramobservadas e compreendidas pelomissionário, corresponda à informaçãoqueEdoardoCibolhesolicitaranaquelareunião,tantomaisquenelenãoéfeitaqualquerreferênciaaoroldeobjectosqueteriamsidotransportadosnaquelebaú.Nãosesabe,também,seacolecçãotrazida pelo missionário foi, alguma vez, exposta à curiosidade da Congregação, como Ciboplaneara.Écerto,aindaassim,queaqueledocumentodaautoriadeAndreadaPaviafoiobjectodeapreciaçãopelaPropagandaFide,duranteumasessãoquedecorreunodia5deAbrilde1693;veja-se,“RelationedeMissionariCapuccini”,ArquivodaSacraeCongregationisdePropagandaFide–ScrittureOriginaliRiferitenelleCongregazioniGenerali,ACTA,1693,ff.126v-129r,inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,pp.253-256.

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parecetersuscitadonoscírculoscoleccionistas,oseurastoseperderia,nascavesdoPaláciodoColégiodaPropagandaFide,dispersacomocuriosidadesexóticasporpalácios cortesãosda épocaou, quemsabe, simplesmentedestruída comoobjectosuspeito,danosoecorrupto9.

EsteepisódiodopercursodeAndreadaPavia tempassadorelativamentedesconhecidonaliteraturacríticasobreapresençaeuropeianestaregiãodacostaocidentalafricana.Referidopelosestudiososdamissãodoscapuchinhos–comotestemunhodeumapretensavalorizaçãodaculturadooutro–eleéquaseignoradopelosautoresque,nosúltimosanos, têmrenovadoprofundamenteoestudodahistória e etnografia desses povos, e dos processos complexos de interacçãocomaEuropadesencadeados a partir das viagens deDiogoCão, nos últimosanosdoséculoXV10.Mesmoquemarginal,noentanto,estapetite histoireéaváriostítulossignificativaesusceptíveldesuscitarnovosquestionamentossobreo alcance e natureza da acção missionária naqueles lugares, sobre o discursoetnográfico produzido pelos missionários e sobre o estatuto conferido, nesseâmbito,àscrençaserituaisdaquelespovos.

Um primeiro aspecto que salta à vista tem que ver, desde logo, com asingularidade da história. Na enorme massa documental produzida porgeraçõesdereligiososdediferentesregraseproveniênciasnacionaisque,aolongodemaisdedoisséculos,desdeoiníciodequinhentos,atébemadentrode setecentos, cruzaramesta vasta região compreendida, grossomodo, entreorioZaireeorioKwanza,esteéoúnicoregistoconhecidosobrearecolhaetransporte para aEuropadeobjectos culturais africanos11.Existem inúmerasreferências à circulação de espécimes e artefactos naturais, trazidos pelosmissionários ou enviados a benfeitores, familiares, estudiosos, ou aos seusconventos de origem. Como a experiência de Andrea da Pavia comprova,sobretudonoséculoXVII,masjáantes,esteshomensestavamestreitamenteligadosaoscírculosdosabernaturalistadoseu tempo,easuaexperiênciaeconhecimentoseramobjectodegrandeatençãonessesmeios.havia,alémdisso,umpúblicoávidodasnovidadessobreessasparagenslongínquasqueseabriam

9 Fundada em1626, pelo cardealAntónioBarberini, tambémele capuchinho, e irmão do papaUrbanoVIII,esituadano iníciodaagorafamosaViaVittorioVeneto,aqui funcionoudurantemuitotempooconventodosfradescapuchinhosemRoma.Estaigreja,obradoarquitectoAntonioCasoni,ésobretudofamosapelacriptaornadadeossosdemilharesdefradescapuchinhos.

10 Sobreahistóriadamissãodoscapuchinhose,emgeral,aactividademissionárianaregião,devever-seaobradoP.GrazianoSACCARDO,Congo e angola con la storia dell’antica missione dei Cappuccini,Venezia-Mestre,CuriaProvincialedeiCappuccini,1982.

11 Toma-se,aqui,por referênciaadatadamissãodeAndreadaPavia.Todavia,aactividadedoscapuchinhosnaquelesparagensprolongar-se-ia, ainda,pormaisdeumséculo, extinguindo-seapenasem1835.

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aoconhecimentoeuropeuequeeramdescritasnasrelaçõesedescriçõesqueasdiferentesordensreligiosasenvolvidasnaevangelizaçãoultramarinafaziampublicar,noquadrodeestratégiasconcertadasdepropagandaeafirmaçãodosrespectivosinstitutos.

Contudo,comoahistóriadeAndreadaPaviatambémcomprova,admitindoque fossemenor do que em relação aos espécimes naturais, de todo omodo,o mesmo interesse por objectos provenientes dos novos mundos estendia-se,também,aosartefactosculturaismanufacturadospeloshomensemulheresqueviviamnessesdistanteslugares.Peseemboraumatendênciamarcadanosentidodaespecializaçãoqueénotórianaevoluçãodocoleccionismoeuropeu,duranteacentúriadeseiscentos,eraoecletismoeo fascíniogeralcomoexóticoquenorteavam a construção das colecções dos gabinetes de curiosidades. Assimseexplicaacuriosidadequeoconteúdodaquelebaúterá.Oentusiasmoqueanotíciaparecetergeradoemdiferentescidadesitalianas,eospedidosinstantesque chegaram até Andrea da Pavia para a observação dos objectos parecemconfirmar, tantoa existênciadeumpúblico interessadoneste tipodeobjectoscomo,atécertoponto,anovidadedaqueleempreendimento.OinteresseevidentecomqueEdoardoCiborecebeuaencomendadeAndreadaPavia–queelepróprioteráconfessado,maisdoqueumavez–aopontodepensarexpô-laàapreciaçãodoscardeaissublinhaobomacolhimentoqueainiciativadomissionárioobtiverajuntodaCúriaRomana.

Comoexplicar,então,quenenhumoutroreligiosoantesdeAndreadaPavia–equesesaiba,depoisdele–tenhatomadoainiciativaderecolher,armazenare transportarparaaEuropaobjectosculturaisafricanosoriundosdaregiãoemapreço,oupelomenosdedeixarregistodeumatalactividade12.Seécertoquenãopoucosmissionários,jesuítas,massobretudocapuchinhos,seconfrontaramcomestesobjectosnodecursodasuaacçãopastoral–elesprópriosoreferemdemaneiraporvezesmuitoviva–porquerazãonãoexistenotíciadeiniciativassimilaresàdeAndreadaPavia?Atéquepontoestefactoestádealgummodo

12 AexcepçãoseráojesuítaPedroTavaresquedesenvolveuactividadenaregiãodoBengo,anortedorioKwanza,entreaterceiraeaquartadécadadeseiscentos.EstereligiosoteráenviadoparaPortugal,dirigidoaoprovincialDiogoMonteiroededicadoaoColégiodaCompanhia,emÉvora,“umidoloqueeradotamanhodehummoçodedozeouquinzeaños”,masqueseteráperdidonas operações de desembarque no porto de Lisboa.Veja-se, Carta e uerdadeira relação dos sussesos do pe pedro Tauares da Companhia de Jhs em as suas missoeñs dos reinos de angola, e de Congo…,BibliotecaPúblicaeArquivoDistritaldeÉvora,Cod.CXVI2–4,f.9v.Oautortem,empreparação,umaediçãocríticadestemanuscrito,doqualexisteumacópianoArquivodaCompanhiadeJesusemRomaquefoipublicada,emtraduçãofrancesa,porLouisJADIN,“PêroTavares,missionairejésuite;sestravauxapostoliquesauCongoetAngola(1629-1635)”,inSep.Bulletin de l’institut Historique Belge de rome,Bruxelas,Roma,T.XXXVIII,1967.

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relacionadocomoestatutodessesobjectoscomoexpressãodomundoespiritualdoafricano?

A interrogação é aguçada pelo facto de o encontro com estes objectosconstituirumafacetamarcantedaactividadedomissionário.Longedeconstituiro resultado de um esforço particular deAndrea da Pavia, o inquérito sobre arealizaçãodecerimóniasougestosrituaispraticadosnoquadrodacosmologiadospovosdaregiãoeraumapreocupaçãoconstantedapastoralcatólicanaquelasparagens.Tantoaepistolografiacomoasrelaçõesmaisoumenoscircunstanciadassobreomododevidanestasregiõesproduzidaspelosmissionáriosnoâmbitodasuaactividadedãocontadesseesforçoemostramquealgunsreligiosospossuíamum conhecimento muito apreciável desse universo.A experiência acumuladanasrespectivasordensreligiosaspermitiu,aliás,oapuramentodeestratégiaseprocedimentosdestinadosapenetrarabarreiradesilêncioedissimulaçãoque,emgeral,selevantavamdiantedasinvestidasinspectivasdospadres.

Noentanto,seéverdadequeosrelatossãoabundantesemreferênciasàscerimóniaseàspráticasrituais,eàexaltadaeaventurosaperseguiçãoquelheseramovida,emvãoseprocuraráumadescriçãofísicaprecisadasuaaparência.Os“ídolos”eobjectos“supersticiosos”comoAndreadaPaviaeageneralidadedos seus companheiros os designam são identificados muitas vezes pelonomequelheséatribuído,emalgunscasosassinalam-seosmateriaisqueoscompõem,osespaçosrituaissãoesboçados,osespecialistasnasuamanipulaçãosão apresentados, com frequência, anotando certos adornos ou elementos dasuaindumentáriademodoaorientaroolhardomissionário,masemnenhummomentooautordesses textos seprestaadescreveras suas formas,as suascores,asuaconfiguração.Váriosmissionáriosassinalamqueos“ídolos”erafeitosdemadeira,ealgunsidentificamtraçosdasuaaparênciageral,“feiçõesdehomensoudemulheres;outrasdeanimais,feras,monstrosedemónios”13.Outros fazem referência a “sacos de feitiços” feitos de pele de animais quecontinhamingredientesvários,entreeles,ervaseexcreçõeshumanasouanimais,

13 GiovanniAntonioCAVAZZIDAMONTECUCCOLO,istorica descrizione de’ tre regni Congo, matamba, et angola situati nell’etiopia inferiore occidentale e delle missioni apostoliche esercitatevi da religiosi Capuccini,perGiacomoMonti,Bologna,1687,Liv.I,n.º170(traduçãoportuguesa em descrição Histórica dos Três reinos, Congo, angola e matamba, pelo padre João antónio Cavazzi de montecúccolo, Tradução, Notas e Índices pelo Pe. Graciano Mariade Leguzzano O. M. Cap., Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1965, vol. I,p. 88). Girolamo MEROLLA DA SORRENTO, Breve e succinta relatione del Viaggio nel regno di Congo nell’africa meridionale fatto dal pe. Girolamo merolla da sorrento, sacerdote Cappuccino, missionário apostolico. Continente variati Clima, aria, animali, fiumi, frutti, vestimenti, com proprie figure, diversità di costumi, e di viveri per l’uso humano,Napoli,perFrancescoMollo,1692,p.280.

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emuitosanotamautilizaçãodeobjectosqueeraminvestidosdeumainfluênciaprotectora,pedaçosdemadeira,fragmentosdeosso,dentesdeanimais,colaresepulseiras14.Masestas referências, sumárias, surgememregraemcapítulossinópticosdos respectivos textos,quandosecaracterizam,genericamente, ascrençasdospovosdaregião.Nadescriçãoconcretadosepisódiosdeconfrontocomessascerimónias,norelatodasinvestigaçõeslevadasacaboparadescobrirou identificaros lugaresonde taisobjectos se escondeméquase sempreemtorno da expressão vaga utilizada porAndrea da Pavia – “ídolos e objectos“supersticiosos” – que se desenrola a exposição. Esta espécie de presençasilenciosadosobjectosrituaisafricanosnodiscursomissionário,umaexistênciaconcreta mas ainda assim sem contornos físicos aparentes – e que antecedeo mistério do seu aparente desaparecimento – reflecte uma ambiguidadelatentenarepresentaçãoproduzidapelosmissionáriossobreanaturezadessesartefactose,emgeral,oestatutoconferidoaouniversocosmológicodaquelespovos.

Na língua das gentes do Nsoyo onde Andrea da Pavia desenvolveu asuaactividade,estapanópliamuitovariadadeobjectosédesignadapornkisi(minkisinoplural),masexistemtermosaparentadosnageneralidadedomundobantu.Numcertosentido,podetraduzir-seporespírito,masemboaverdadeosminkisi correspondema receptáculosqueencerramemsiumconjuntodeelementos que evocam, metaforicamente, os espíritos e os poderes que lheestão associados.A sua plena eficácia requer que a manipulação obedeça aritualizaçõesdeterminadasexecutadasporespecialistasnesseofício,osnganga,equesedestinamaconectar,deformametonímica,aorigemfundadoradessespoderescomasuaconvocaçãopresente.Asuaacçãoconcreta tantopodeterumsentidoprotectorebenfazejo,comoconsequênciasagressivasemaléficas.Entende-semelhoracomplexidadedonkisiseeleforpensadocomoumprocessodinâmicodemediaçãoquecolocaemcontacto,porviadopróprioagentequeoconstróiemanipula,doprocessodeescolhaecomposiçãodosseuselementosinterioreseexteriores,edacerimóniaqueconvocaoseupoder,osvivoseomundodosmortos.Estacadeiapodeaindaalargar-se,paraincluirumsepultura

14 AntoniodeTERUEL,DescripcionNarrativadelaMissiónseraficadelosPadresCapuchinos,ysusProgresosenelreynodelCongo...,BibliotecaNacionaldeMadrid,ms.3533,ff.81,84,92,126,porexemplo.AntoniodaGaeta,la maravigliosa Conversione Conversione alla santa Fede di Cristo della regina singa e del svo regno di matamba nell’africa meridionale. descritta con Historico stile dal p.F. Francesco maria Gioia da napoli, detto da posilipo, predicator Capuccino, e lettore vn tenpo di sagra Teologia. e cauata da vna relatione di là mandata dal p. F. antonio da Gaeta predicator parimente Capuccino della prouintia di napoli, missionario apostolico, e prefetto Generale delle missione ne’ regni dell’africa, e di detta regina da lui conuertita,Napoli,GiacintoPassaro,1669,pp.413/414.

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localizadaalguresforadoespaçohabitado,eumoudiversosamuletosdeusoindividual15.

A sua aparência exterior exibe, nos seus diferentes componentes, umagramática visual associada aos poderes invocados.Além do invólucro – quepode ser uma cabaça, umabolsa, uma concha, umpote ouuma estátua–umaglomeradovariadodeelementosinterioresouexterioresevocaospoderesquelhesãoatribuídos,esemosquaisocontentorpoucomaiséqueumacaixavazia.Entre estes, os mais comuns são terra da sepultura, caulim, ossos, dentes ououtroselementosconsideradoscomorelíquiasdoantepassado,penasouunhasdeanimais,elementosnaturaispeculiarescomoraízestorcidas,pedrascomformasexcêntricas, pedaços de quartzo ou âmbar, mas a lista de ingredientes podeestender-seatéàsdezenas.Acoréumelementosignificativoimportante,mesmoqueasuavariaçãosejaescassa.Alémdaaparêncianaturaldorecipiente,osminkisiexibem,emregra,consoanteanaturezadospoderesquelhesãoassociados,acorbrancaevermelha,aprimeiraassociadacomomundodosmortos,asegundacomaintermediaçãocomotempodosvivos,masqueemdeterminadoscircunstânciaspodemtambémrepresentar,respectivamente,oelementofemininoeoelementomasculino. Em paralelo com o efeito visual, o nkisi inclui outros elementosdestinados a produzir ruído, como chocalhos e campainhas. Os processos decomposiçãoeutilizaçãosãoacompanhadosderituaisemqueavozdesempenha,também, um papel importante. Do mesmo modo que os elementos materiais,tambémaqui,cadapalavrapossuiumsentidometafóricoqueevocaospoderesatribuídosaonkisieaongangainiciadonasuamanipulação.

Estesobjectosnãosão,entretanto,asúnicasformasdeevocaçãodopoderdos espíritos. Uma árvore, uma configuração geológica particular, o própriocorpohumano–osalbinos,gémeos,ouascriançasqueseapresentamànascençacom os pés, o nganga ou um velho – podem igualmente ser consideradoscomoreceptáculosdepoderespiritual.Emqualquerdoscasos,osminkisinãosão representações figurativasmas tão só expressões metafóricas dos poderesespirituais que neles se contém. A sua acção é ambivalente. Os minkisi sãoconvocadospara curardoenças, cuidardas sementeiras, favorecer aguerraoua caça, perscrutar o futuro, proporcionar paz e abundância,mas tambémparaprotegerdainvejaedaperfídia.Oseupoderpodeestender-setantoaoconjuntodeumacomunidade,umaaldeia,ouumaformaçãosocialmaisextensa,comoprivilegiarumindivíduoouumaclassedeterminadadeindivíduos,assumindo,

15 WyattMACGAFFEY,“Complexity,astonishmentandpower…”,p.190.Desteautor,eparaumaexplanaçãomaisdetalhadadesteponto,devever-se,religion and society in Central africa. The BaKongo of lower Zaire,ChicagoandLondo,TheUniversityofChicagoPress,1986,pp.14eseguintes.

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neste último caso, uma feição negativa. Por sua vez, a perícia de um ngangana manipulação das forças espirituais convocadas pelo nkisi pode sempre serdisputada,seosfinsdesejadosnãoserealizam,ouseumoutroespecialistanafunção lograproduziraalquimiadeelementosea forma ritual susceptíveldepropiciarresultadosmaisevidentes.Acomunidadequedetiversoboseucontrolea modalidade mais eficaz de convocação dos poderes dos espíritos gere esserecursocomosedeumbemvaliososetratasse,gerindoasuadifusãodeformaaalargar,emseubenefício,asrelaçõesdedependênciadeoutrosgrupos

Afunçãoeopoderdosminkisinãoécompreensívelseisoladadocontextocosmológicoquelhesdásentido.Omundoérepresentadoemduasdimensões,adosvivoseadosmortos.Adistânciaqueseparaosdoismundosémediadapela água, mas ela pode ser ritualmente representada pela sepultura de umantepassado,umcruzamentodecaminhosouamargemdeumrio.Morrernãosignificaofimnemadecadência,nemtãopoucoaseparaçãoirreversível,mastãosóatransferênciadomundovisívelparaomundoinvisível.Ládesseoutrolugarondehabitam,osmortos–queestãoafinal tãovivoscomoosvivos–exercemasuainfluênciasobreaexperiênciadomundosensível,prescrevendoregrasecondutas,favorecendoosquesemostramzelososnasuaobservânciaouprejudicandoosquedelasdivergem16.Esseoutromundoéhabitadoporumavariedadedeentidadesemqueseincluemosantepassados,osespíritoslocaiseosencantamentos.Osentidohierárquicoqueorganizaarelaçãoentreomundodosmortoseomundodosvivosestádecerta formaausentenaorganizaçãodospoderesespirituais.nzambi mpunguédesignadocomooespíritosuperiorpor relação como ser humano que corresponde ao nzambi inferior,mas daínão decorre nenhum estatuto extraordinário atribuído ao primeiro. Todas ascerimónias rituais – sejam elas executadas em favor dos espíritos locaisprotectoresdedeterminadaaldeia,ouembenefíciodeuminteresseparticular,paraobteracuradeumadoençaouofavorecimentonaguerra–constituemmomentosmaisoumenosfugazesemqueomundodosvivos,pelaacçãodonganga ou ngangas que as oficiam, acede ao conhecimento do mundo dosmortos. Mas a comunicação entre essas duas dimensões é mais complexa edifusa.Osonhoéoutromomentoemque,decertaforma,otemposesuspende,eemqueosvivosacedemaosdesejosepoderesdomundodosmortos.Emboaverdade,éoprópriodestinoindividualdohomemqueérepresentadocomoumcircuitoespacio-temporal,emqueapassagempelomundodosvivosconstituiumaetapaintermédiadeumaviagemqueseiniciaesecumprenomundodosmortos.Asconexõesentreosdoismundosrepercutem-se,porisso,emtodos

16 Sobre a noção demorte no contexto da cosmologia bakongo, sugere-se a consulta de SimonBOCKIE, death and the invisible powers. The World of Kongo Belief, Bloomington andIndianapolis,IndianaUniversityPress,1993,pp.83eseguintes.

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osdomíniosdaexistênciasocial,daeconomia,àestruturaçãogenealógicaouàrepresentaçãodopoder.

Oraoaparelhoconceptualdosmissionários,asuaprópriavisãodomundo,nãopodiacaptartodaacomplexidadedarealidadequeserevelavaaoseuolhar.NaspalavrasdeAndreadaPaviaosartefactosquereuniraetrouxeraparaaEuropaeram designados, simplesmente, como “ídolos” e objectos “supersticiosos” e,na verdade, desde muito cedo, é esse par de noções – idolatria e superstição– que resume, para os viajantes europeus, o universo espiritual dos africanos.Valeapenarecordar,aestepropósito,quelogonofinaldadécadade1480,naembaixadaenviadaemnomedeD.JoãoIIaoManiKongo,idolatriaefeitiçaria–implicitamente,asuperstição–sãoostermosjáusadosparadesignarascrençaslocais.Elogoaí,também,ficaclaraairreconciliáveldistânciaqueasseparavadocristianismo.Comefeito,napropostadosoberanoportuguês,convidava-seoManiKongoaaceitarobaptismoeque“arrenegasseosIdollos,efeitiçariasemqueadoravamequenomcreesse,nemconssentisseaalgumseunellescreer”

17.Saltamàvista,assim,doistópicosquecaracterizarãodeformaduradouraaabordagemdosdiferentesactoreseuropeusàrealidadeafricana:porumlado,acatalogaçãodouniversocosmológicodospovosdaquelaregiãosobascategoriasconectadas de idolatria, feitiçaria e superstição, e por outro o postulado daincompatibilidaderadicaldessascrençasepráticasrituaiscomobaptismoeospreceitosquedeviamnortearumavidacristã.

Nãoépossível,noslimitesdestetrabalho,historiarolongoesecularprocessode maturação das noções de idolatria e superstição, tanto na sua dimensãoteológicaedogmáticacomonodomíniojurídicoesocial,e,emparticular,quantoaossentidosqueelasforamtomandoàmedidaqueoseuâmbitodeaplicaçãosealargou,doterritórioeuropeu,cristianizadoounão,atéaosespaçosultramarinos18.Tambémanoçãodefeitiçaria,ouemparticulardefeitiço–deonderesultará,como se sabe, o termo fetiche que polarizará, em dado momento, o discursoeuropeu sobre as religiões africanas – possui umagenealogia cuja exegese se

17 RuidePina,Crónica de d. João ii,inCarmenM.RADULET,o Cronista rui de pina e a “relação do reino do Congo”,Lisboa,ComissãoNacionalparaasComemoraçõesdosDescobrimentosPortugueses, ImprensaNacionalCasadaMoeda,1992,pp.136/137.Vainomesmosentidootextoda“RelazionedelRegnodiCongo”,aindaquecomumaredacçãodiversa:“chedestruessetuttilitemplidell’idoliefalseimmaginede’loroidiiitogliessinoviaogniritoeconsuetudinedisacrificare”;“RelazionedelRegnodiCongo”,inCármenM.RADULET,o Cronista rui de pina…,p.98.

18 Joan-PauRubiéschamouaatençãoparaoefeitocorrosivosobreanoçãodeidolatria–centralnodebatecomomundoprotestante–dasimplicaçõesgeradaspelosrelatosetnográficosdoperíododaexpansãoeuropeiaepelosdesafioscolocadosàacçãoevangelizadoraentrepovosditos“idólatras”;veja-seaestepropósito,Joan-PauRUBIÉS,“Theology,Ethnography,andthehistoricizationofIdolatry”,inJournal of the History of ideas,vol.67,N.º4(Oct.2006),pp.571-596.

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afiguraincomportávelparaoâmbitodesteestudo19.Algumasnotas,noentanto,importaretersobreoconteúdoeaplicaçãodestasnoçõesparasecompreender,aumtempo,oolhardosmissionárioseuropeussobreaspráticasrituaisafricanase a sua relação com o modo como foi perspectivado a evangelização dessaspopulações.

Nocontextocosmológicocristão,estastrêsnoçõessãoatravessadasporumaambiguidadequelheséintrínseca.Comespecificidadespróprias,cadaumadelasimplicaaatribuição,aosobjectosmateriaisouadeterminadaspráticas,devirtudesoupoderesquelhessãoexteriores,equeresidem,ounaordenaçãonaturaldomundo,ounaimperscrutávelesferadavontadedivina.Umatalatitudereflecte,por isso, uma incapacidade de elaboração além das manifestações sensíveisda realidade aparente traduzidana inverãodospapéis entre oobjecto e o ser.Trata-sedeconfundiraalmacomocorpo,amatériacomoespírito,oimanentecomo transcendente.Neste sentido, o idólatra, ou aquele quevive subjugadopela superstição apresenta-se como um ser frágil, prisioneiro damanifestaçãocontingente das coisas, destituído da capacidade de elaboração espiritual quepermita descortinar na expressão transitória da matéria, a razão primeira dascoisas.Contudo,seacondiçãodeexistênciadaidolatriaseprendecomafraquezadoespíritodoshomensqueapraticam,asuageneralizaçãoserveobjectivosqueestãoparaalémdessadimensãoequeremetem,emúltimaanálise,paraodomínioda transcendência. Se ela se define pela inversão dos termos da veneração, acoisaaoinvésdoser,issosópodeserviraqueleque,incessantemente,buscaodescaminhodohomem.Adorarumídolo,ouatribuirumdeterminadofactosocialounatural–quetantopodeseracuradeumadoença,comoosucessonaguerraounacaça–acausasoutrasquenãodecorram,nemdanaturalordemdascoisas,nemdaexpressãodaprovidênciadivina,talequivalesempre,decertamaneira,avenerarodemónio,mesmoqueelenãosejaexpressamenteconvocado.

Esta ambiguidade na apreciação do fenómeno idólatra, formulada desdeos primeiros autores da Igreja, com destaque para S. Paulo, S. Agostinho e

19 Para a noção de fetiche e a sua construção como teoria cultural das sociedades africanas, éfundamentalaconsultadotrabalhodeWilliamPIETZ,“TheProblemoftheFetish,I, inres, anthropology and aesthetics,N.º9(Spring,1985),pp.5-17;“TheProblemoftheFetish,II:TheOriginoftheFetish,”,inres, anthropology and aesthetics,N.º13(Spring,1987),pp.23-45;e“TheProblemoftheFetish,IIIa:Bosman’sGuineaandtheEnlightenmentTheoryofFetishism”,inres, anthropology and aesthetics,N.º16(Autumn,1988),pp.105-124.Paraumaabordagemàdinâmicadoencontroculturaleuro-africanonaregiãocentralafricanaemapreço,comreferênciaao trabalhodePietz,veja-se,WyattMACGAFFEY,“Dialoguesof thedeaf:Europeanson theAtlanticcoastofAfrica”,inStuartB.Schwartz,implicit understandings. observing, reporting, adn reflecting on the encounters Between europeans and other peoples in the early modern era,Cambridge,CambridgeUniversityPress,pp.249-267.

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S.TomásdeAquino,perdurarádurante todooperíodoemapreciação,mesmoquesejavisívelumatendêncialenta,masgradual,paralimitaroalcancedaacçãodemonológicaque,aliás,jáseesboçavanaqueleúltimoautor20.OpadreGiuseppeMonaridaModena,capuchinhocomoAndreadaPavia,quemissionounoKongoduranteoprimeiroquarteldoséc.XVIII,parecereflectirestemovimentonumguia metodológico que elaborou sobre a condução do trabalho missionárionaqueleslugares.quandotrataaspráticasdoscurandeiros,Monaridistinguetrêsgruposqueapreciadeformadiferenciada.Omissionáriocomeçaporidentificaroqueclassificacomoaparte“boa”,ouseja,aquelesque,mesmoqueignorantes,“curono con’alcuna arte, alma naturale, ò di uera esperienza”, com recurso a“bagni,erbe,radici,naturalmenteuirtuose”,esemrecorreremacerimóniavãs,ouapalavrassecretas.Os“Imposteirios”constituíamosegundogrupo,consideradocomomau,“mostronod’esserequellichenonsono,edisaperequello,chenonsano”,dissimulandocomoobrasua,consequênciadegestos,palavrasou“altreattionisuperstitiose”,oqueresultavaoudeefeitonaturaloudevontadedivina.OúltimogrupoeraconstituídoporaquelesaquemMonarichamavapéssimos,eesses,mesmoqueusandodascausasnaturais,procediamcomrecursoà“artediabólica”,mantendo“espresso,ò tacitopattocolDemonio, ilqualepiùuolteinuocanosopraquelleceremonie”.Estesescondiam-senoescurodas florestasprofundas, alimentavam-sedo temordos seus seguidores, emisturavama suadedicaçãoaodemóniocomamaisdesenfreadalicenciosidadedoscostumes.OpadreMonariconcluíaesteexcurso,instandoosseuscompanheirosaempenharem-se,semdescanso,narepressãodestaspráticas–“percheliuniingannanomolti,elialtrisonolapesteditutti”–poisosseusoficianteserammuitoobedecidosporaqueles“ciechinegri”queostratavamcomodivindadesnaterra,atribuindoaoDemónio,poressavia,osefeitossingularesquesópodiamresultardavontadedoDeuscriadordetodasascoisas21.

20 Veja-se,aestepropósito,Joan-PauRUBIÉS,“Theology…”,p.581.21 GiuseppeMONARIDAMODENA,Viaggio al Congo, fatto da me fra Giuseppe da modena

missionário apostolico, e predicatore Capuccino…, Biblioteca Estense de Modena, mss ital.1380(V.A.37)=AlfaN.9.7.,ff.306-308,inCalogeroPIAZZA,“UnarelazioneinéditasulleMissionideiMinoriCappuccininelAfricadegliinizidelSettecento”,inl’italia Francescana,48(1973),p.29.Estereferidoguiametodológico,incluídonocorpogeraldarelação,reproduz,praticamente na íntegra, um outro, escrito pelo padre Giovanni Belotti da Romano no finalda década de 1670, pelo que é plausível afirmar que as orientações aí expressas reflectiriamuma prática já estabelecida na missão. Para uma análise mais geral da obra de missionárioMonari,sugere-seaconsultadeCarlosAlmeida,“Entregente‘aspraedura’–advertênciasdeummissionárionoKongo(1713-1723)”, inPhilipJ.hAVIK,ClaraSARAIVAeJoséAlbertoTAVIM,Caminhos Cruzados em História e antropologia. ensaios de homenagem a Jill dias,Lisboa,ImprensadeCiênciasSociais,2010,pp.71-92.ParaumadescriçãodotextodeBelottidaRomanoemconfrontocomestedeMonari,sugere-seaconsultadeTeobaldoFILESIeIsidoroda VILLAPADIERNA, La “MissioAntiqua” dei cappuccini nel Congo (1645-1835). Studiopreliminareeguidadellefonti,Roma,IstutoStoricodeiCappuccini,1978,pp.66-74.

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EstetrechodorelatodeGiuseppeMonarisintetizaalgunsdoseixoscentraisqueatravessamasnoçõesdeidolatria,feitiçariaesuperstiçãoqueestruturavamanarrativaetnográficaproduzidapelageneralidadedosmissionárioscatólicosquelaboraramnaquela regiãodocontinenteafricano,epermite,aomesmo tempo,anteveroestatutonessecontextoatribuídoaobjectosrituaiscomoaquelesqueAndreadaPaviatrouxeraparaaEuropa.há,desdelogo,umaideiadominantequantoàrepresentaçãodoafricano,equesublinhaasuaignorância,oseuespíritofrágil, a sua inapelável sujeição aos logros e dissimulações encenadas pelasdiferentesclassesdengangas.Essaatitudeeraaliásextensível,comoseviu,aopróprioconhecimentodasvirtudesnaturaisdecertasplantasoufrutosquemuitosreligiososseaplicameminvestigar,anotandodepassagemodesinteresseeafaltadeaplicaçãoque,aessepropósito,osafricanos revelavam22.OpadreCavazzidiriaqueacrendiceemqueaquelasgentesviviammergulhadasdecorriadeumadisposiçãoparticulardoseuespíritoparaconfundirostermos,“deducendovnaconseguenzavniuersaledallepremessed’vnaccidenteparticolare”23.Aosolhosdageneralidadedosmissionários,omundo religiosodosafricanos resumia-seauma infindável listadesuperstiçõesecrençasvãs,praticadasemobediênciaaosimperativosimediatosecontingentesdodesejoedasnecessidadessensíveis,e destituídas de qualquer forma de elaboração espiritual.A sua prática estavasempreassociadaàexaltaçãodesregradadossentidos,sejanaformadamisturacarnalirrestrita–comoassinalaestemissionária–seja,cumulativamente,atravésdeorgiásticosbanquetes.Alémdessenível,apenasexistiaoDemónio,comosseusardisedisfarces,ocultando-sesobasqualidadesnaturais,propondogestosepráticasquefantasiavamaquelesdedicadosaDeus,ouinventandosortilégiosparadivertir,aseucrédito,ospoderesquesóestavamaoalcancedaprovidênciadivina.Ondeterminavaavãsuperstiçãoeseanunciavaapresençademoníaca,invocadaounãoexpressamente,esseeraumterritórioestreitoeindefinido,cujoslimites,porisso,nãoeramfáceisdedecifrar.

Nopensamentodosteólogos,asfronteirasentreaidolatriaeaschamadas“vãsobservâncias”nuncaforamabsolutamenteclaras.Asnarrativasetnográficasdaépocadaexpansãoeuropeia,confrontadasmuitasvezes,comanecessidadededefiniçãodeumhorizontenormativoqueorientasse a acçãopastoral junto

22 Veja-se, a este propósito, CarlosALMEIDA, uma infelicidade feliz…, pp. 220-231. Sobre arepresentaçãodanaturezanodiscursomissionáriosugere-se,ainda,aconsultade“Anaturezaafricana na obra de GiovanniAntónio Cavazzi - Um discurso sobre o homem”, inActas doCongressoInternacional,EspaçoAtlânticodeAntigoRegime:poderesesociedades,Lisboa,2a5deNovembrode2005,FCSh/UNL,acessívelemhttp://cvc.www.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/carlos_almeide.pdf.

23 GiovanniAntonio CAVAZZI DA MONTECUCCOLO, istorica descrizione…, Liv. I, n.º 103(traduçãoportuguesaemdescrição Histórica…,vol.I,p.62).

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dessas populações, não deixou de acentuar essas dificuldades24. O própriopadreAndreadaPavia,comoseviu,elaborou,comoofizerammuitosdosseuscolegas,uma listagemdepráticasconsideradas supersticiosasqueatribuíaaos“etíopesdeÁfrica”,apesarde,comosesabe,asuaexperiênciaseresumir,quaseexclusivamenteàregiãodoNsoyo,vizinhadorioZaire,eaumaestadiadebrevesmeses passada em Luanda.Aí se reencontra a mesma listagem desconexa decrençasrelacionadascomrituaisdemorteoudeiniciaçãofeminina,cerimóniasexecutadas em tempos de sementeiras, observâncias relacionadas com factosquotidianos comuns como o canto dos pássaros, práticas adivinhatórias, e aconstante e sempre presente invocação do Demónio. Cada um desses rituaisé descrito na sequência material dos seus fazeres, e esvaziado do significadocosmológicoquelhesdavasentidoeque,antes,brevementesealudiu25.

O padre Andrea da Pavia, deve dizer-se, é dos missionários que maisfavoravelmenteavaliaareceptividadeeoresultadodaevangelizaçãorealizadanaquelaregião,emespecialpelasuaOrdem.Segundoestereligioso,desdequeali tinham chegado, os capuchinhos haviam reduzido aquelas gentes a “tantadomestichezzachequasepaionohoraEuropeiintuttiiloromodiecostumi”26.Ele próprio não esconde a comoção que sentia, observando as procissõesrealizadasporocasiãododiadetodosossantos,ouaféqueaquelaspopulaçõesexibiamporalturasdaquaresmaounasfestividadesdaPáscoa.Aosseusolhos,“mostranopiùdevotionequepopoliAfricanicheliEuropei”27.Descontadososintuitospropagandísticosevidentes, esta apreciação reflectia a autonomização,nodiscursoetnográficodaépoca–mastambémnapráticamissionáriaconcreta–dedoisregistos,umremetendoparaodomíniodocivil,outroparaodomíniodoreligioso28.Se,noprimeirocaso,astransformaçõespareciamevidentes,tantonodecoroqueexibiamnovestuário,como,sobretudo,nacomposturaeapuro

24 Veja-se,WilliamPIETZ,“TheProblemoftheFetish,II…”,pp.29/30.25 ANDREA DA PAVIA, Cerimonie superstitiose che costumano usare que etiopi del africa,

inArquivo da Sacrae Congregationis de Propaganda Fide – Scritture Originali Riferite nelleCongregazioni Generali, vol. 516, ff. 62r-63r, in Carlo TOSO, “Viaggio apostolico...”, pp.250-252.

26 ANDREA DA PAVIA, Viaggio apostolico..., f. 93r, in CarloTOSO, “Viaggio apostolico...”,p.139.

27 ANDREA DA PAVIA, Viaggio apostolico..., f. 87r, in CarloTOSO, “Viaggio apostolico...”,p.129.UmaleituradaproduçãotextualdeAndreadaPaviaapartirdestasuavisãooptimistasobreosucessodaevangelização,numsentido,diga-se,diversodoqueaquiseexpõepodeencontrar-seemRichardGRAY,“‘ComeVeroPrincipe’.TheCapucinsandtheRulersofNsoyointheLateSeventeenthCentury”,inafrica,53(3),1983,pp.39-54,republicadoemRichardGRAY,Black Cristians and White missionaries,Newhaven,London,YaleUniversityPress,pp.35-56.

28 Elabora-se extensivamente sobre este ponto emCarlosAlmeida,uma infelicidade feliz...,Notrabalho já citado de Joan-Pau Rubiés, este autor considera este aspecto como a marca maispenetrantedaetnografiarenascentista;veja-se,Joan-PauRubiés,“Theology…”,p.585.

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querevelavamàmesa,jánodomíniodoespíritoaquestãoapresentava-semaiscomplexa.

Écertoqueadevoçãodaquelasgentes,asumareverênciacomqueacolhiamapresençaeosensinamentosdosmissionárioserapordemaisevidente,mas,mesmo assim, Andrea da Pavia não deixava de tropeçar, a cada momento,comoquedesignavapor “leggierezadiquepopoli”29.Fruto, justamente,dafraqueza do seu espírito, da sua dependência da experiência sensível e dasua incapacidade de elaboração espiritual, além, claro, da escassez sempresublinhadadopessoalmissionário,osafricanosmostravam-se tãofrequentesnosacramentodamissaedaconfissão,comoassíduosnascerimóniasrituaisprópriasdasuacosmologia.Estainconstânciadehámuitoteorizadaporinúmerosreligiososemváriosespaçosdemissão,equeconstituíaumtraçoestruturantedarepresentaçãodoafricanoentreosmissionários,era,naverdade,oprincipalobstáculoàevangelização.OpadreAntonioZucchellidaGradisca,que,maistarde, desenvolveria a sua actividade naquela mesma região percorrida porAndrea daPavia,masmuitomais pessimista que este quanto ao sucesso damissão,diziadosafricanosqueeramfeitosdeestuqueporquenadaseconseguia“imprimir” no seu espírito, e por isso, recebendo embora sem contestaçãoosmistérios da fé, jamais abandonavam as “cerimónias gentílicas” a que seentregavam30.

Ora,aestepropósito,contaAndreadaPaviaqueosmissionárioscapuchinhospresentes no Nsoyo decidiram, certo dia, promover uma reunião ampla dapopulação–presumivelmentedaquelaqueviveriaemMbanzaNsoyo–ecomopatrocíniodoManiNsoyo.Nessaocasião,ospadresinterrogaramospresentessobre o problema que tanto os apoquentava: “se uoleuano osseruare le LeggidiDioòleloroCerimoniesupertitiose”.Adicotomiaassimformuladareflectiabemumaabordagemdaacçãomissionáriaquepostulavaa impossibilidadedeconciliaçãoentreocristianismoeascrençasafricanas.Ora, a respostaqueosreligiososouviram, equeAndreadaPavia reproduz segundoas suasprópriascategorias,nãopodiasermaisdesconcertante:todosacreditavamemDeuseemtudooqueselhesensinava,mastodosacreditavam,também,aomesmotempo,

29 ANDREADAPAVIA,Viaggio apostolico..., f.106r, inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,pp.198/199.

30 AntonioZUCChELLIDAGRADISCA,relazioni del viaggio, e missione di Congo nell’ etiópia inferiore occidentale, del p. antonio Zucchelli da Gradisca, predicatore Capuccino della província di stiria, e già missionário apostolico in detto regno,InVenezia,PerBartolomeoGiavarina,alPontedelLovo,l’Anno1712,p.121.OtemadainconstânciadoafricanoélargamenteglosadonaproduçãotextualmissionáriasobreoKongoeAngola.Veja-se,sobreesteponto,aconsultadeCarlosALMEIDA,uma infelicidade feliz…,emparticular,pp.481-571.

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nassuascerimóniasevãsobservâncias31.Estaafirmaçãotraduziaumarealidadecomplexa,emdesenvolvimentodesdehámuito,equeconsistianaapropriaçãoeresignificaçãodossímboloserituaiscristãospelosistemacosmológicodaquelaspopulações.Bemaocontráriodapropaladainconstânciaemutabilidade,oqueavidasocialdosafricanosrevelavaeraumaapreciávelestabilidadeepersistênciado seu modo de representação do mundo, ao ponto de incorporar e assimilara mudança e a novidade propostas pelos missionários europeus. Era isso queexplicava, por exemplo, que os padres fossem associados aos ngangas, oscrucifixos fossem vistos como minkisi, e as igrejas fossem associadas, comfrequência,aocultodosantepassados32.

O confronto com o problema da inconstância dos africanos – tãoparadigmática e singelamente reflectido neste episódio – gerava dois tipos derespostadapartedosmissionáriosque,longedeseremcontraditórias,reforçavam-se mutuamente. Ambas, entretanto, envolviam riscos apreciáveis, embora denaturezabastantediversa.há,porumlado,oquepodedesignar-secomoumaestratégia de acomodação que não deve, ainda assim, confundir-se com umaeventualconciliaçãoentreaevangelizaçãocatólicaeumacosmologiaafricanacujaexistência,viu-sejá,erarecusada.DeregressoaRoma,opróprioAndreadaPaviaformulouessapossibilidade,emrepresentaçãodosseuscompanheirosquehaviamficadonoKongo.Dadaadelicadezadoassunto,háboasrazõesparaacreditarqueoassuntotenhasidodiscutidonumdosencontrosquemantevecommonsenhorEdoardoCibo.Assim,peranteacontumazresistênciadosafricanosemabandonarassuascrenças,reiteradadeformatãoclaranaquelareuniãono

31 ANDREADAPAVIA,Compendiosa relatione intorno alla Christianità dell’africa o sai missione del Congo; ed alcune difficoltà che lui uertano necessitose di remédio dalla sacra Congregatione, fata da me Fra andrea da pauia, missionário Capuccino uenuto adetro da quelle parti, e di presente in roma, pronto a dare più distinto raguaglio in uoce,ArquivodaSacraeCongregationisdePropagandaFide–ScrittureOriginaliRiferitenelleCongregazioniGenerali,vol.514,f.471v,inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,p.247.

32 Emboraapartirdepressupostosteóricosemetodológicosdiversos,JohnK.Thorntondocumentoulargamenteoprocessocomplexodesincretizaçãoculturalocorridonestaregiãodesdeofinaldoséc.XV,equeWyattMacGaffeyclassificou,comrecursoaumaexpressãocunhadaporAlbertDoutreloux,como“diálogodesurdos”.DavastaesólidaobradeThorntonpodever-se,sobreesteponto,JohnK.ThORNTON,africa and africans in the making of the atlantic World (1400-1680),Cambridge, Cambridge University Press, 1992, e, com Linda hEYWOOD, Central africans, atlantic Creoles, and the Foundation of the américas 1585-1660, Cambridge, CambridgeUniversity Press, 2007. Sobre o mesmo assunto, mas numa perspective mais próxima da queaqui se sustenta, veja-se James SWEET, recreating africa. Culture, Kinship, and religion in the african-portuguese World (1441-1770),TheUniversityofNorthCarolinaPress,ChapelhillandLondon,2003,pp.112/113;traduçãoportuguesa,Jamesh.Sweet,recriar África. Cultura, parentesco e religião no mundo português (1441-1770),Lisboa,Edições70,2007.Sobreanoçãode“diálogodesurdos”,veja-se,AlbertDOUTRELOUX,l’ ombre dés fetiches,Louvaine,EditionsNauwelaerts,1967,p.261,eWyattMACGAFFEY,“Dialoguesofthedeaf…”,pp.249-267.

CARLOSALMEIDA150

Nsoyo, omissionário coloca à consideração dos cardeais daPropagandaFidea possibilidade de administração dos sacramentos desde que as cerimóniasditas “supersticiosas” não envolvessem “patto alcuno explicite uel implicitecolDemonio”,mas tãosóuma“crençasimples”,esemdeixar,como tempo,de trabalharpara,de todo,aerradicar33.Aconcessãoera, comosevê, táctica,e não alterava a consideraçãogeral sobre o estatuto da religiosidade africana,antes o reforçava. A Congregação, pela pena do cardeal Gaspare Carpegna,sublinhaessaimpressão.Comefeito,oprelado,jáentãoumafiguraproeminentenaCúriaRomana,insistenanecessidadedecombaterascrençasafricanas,emparticular no institutoda confissão, comoaliás osmissionários já o faziam, esugere que o ritual da bênção seja promovido como um substituto eficaz daspráticassuperstições34.Umataloperaçãonãoerapensávelseoafricanonãofosseentendidocomoumaespéciedefolhabrancaonde,depoisdeapagadososritosanteriores,pudesseinscrever-se, livremente,umanovapráticaconsiderada,elasim,verdadeiraeeficaz.

A questão colocada porAndrea da Pavia deixava de fora, no entanto, aarreigada observância, por parte dos africanos, das crenças e rituais idólatrase supersticiosos, envolvendo comércio explícito ou implícito como demónio,e acompanhadas, quase sempre, de grandes festas dedicadas à exaltação dossentidos.Oquefazer,afinal,comamultiplicidadedecerimóniasqueenvolviaa manipulação daqueles objectos que diligentemente o missionário trouxeradoNsoyo?Paraesses,a repressão,violentasemprequenecessárioepossível,afigurava-secomoaúnicarespostapossível.

AabundanteproduçãocríticaapropósitodasrelaçõesculturaisentreeuropeuseafricanosnocontextodaÁfricacentraltem,justamente,sublinhadoafacetadoencontro,domodocomo,daconvivênciaentrevisõesdomundodistintas,mesmoqueemdiálogo,emgrandemedida,consigoprópriasecomasrespectivasfigurasdealteridade–aimagemdo“diálogodesurdos”–teriaresultadoumterritóriosimbólicomaisoumenospartilhado.Contudo,daquitemresultadoadepreciaçãodeumadimensãofundamentaldotrabalhomissionárioqueremeteparaacoerçãoearepressão.Elaocupavaumapartedecisivaefundamentaldoquotidianodomissionário,comoaliásébemvisívelnavastaproduçãotextualdasváriascentenasdereligiososqueporalipassaramnoperíodocompreendidoentrefinaisdoséc.XVeoprimeiroquarteldoséculoXVIII.Elapodiaassumirformasdiversas,mais

33 ANDREADAPAVIA,Compendiosa relatione...,f.471v,inCarloTOSO,“Viaggio apostolico...”,p.247.

34 ArespostadocardealGaspareCarpegnaencontra-seemArquivodaSacraeCongregationisdePropagandaFide–ScrittureOriginaliRiferitenelleCongregazioniGenerali, APF,SRCG,vol.514,ff.472r-472v.

DESPOJOSDODEMóNIONACASADAIGREJA 151

oumenosviolentas.Desdelogo,oinquéritointrusivoemeticulosolevadoacabopelospadressobre todososgestosepráticasquotidianasdaspopulações,edeonderesultou,nocasoAndreadaPavia,acolecçãodeminkisiqueapresentouemRoma.Paraessatarefa,estemissionáriorecrutavainformadoresaquemofereciapagamentosemtrocadadenúnciasobrearealizaçãodetaloutalcerimónia.Emconsequência, a repressão tomava, com frequência, a forma da perseguição eassaltoviolento,semprequepossível,aoslocaisondesereuniamosobservantesdessaspráticas rituais.Tais campanhas contavam,quase sempre, como apoiodeumbraçocoercivo fornecido, sejapelacolóniaportuguesadeLuanda, sejapela elite do Kongo que integrara expressões rituais do cristianismo no seupróprio processo de legitimação.Mas seria errado pensar que dependiam, emabsoluto,dessaforça.Emalgunscasos,osmissionárioscontavamcomoapoiodealgunsseguidores,emparticular,nocasodoscapuchinhos,dosescravosdamissão.Outrasvezes,entretanto,essasacçõesconstituíamverdadeirosexercíciossacrificiais,nosquaisosreligiososseexpunhamàresistênciadaspopulaçõesoudosngangasqueperseguiamarmadostãosócomasuapalavraeasuafé35.

instruções para a perseguição e destruição de minkisi.missione in pratica de p. p. Cappuccini italiani ne regni di Congo, angola, et adiacenti,

brevemente esposta per lume, e guida de missionarj a quelle sante missioni destinati,Torino,Bibliotecacívica,Ms.457,acessívelemhttp://hitchcock.itc.virginia.edu/slavery/details.php?categ

orynum=2&categoryName=Pre-ColonialAfrica:Society,Polity,Culure&theRecord=2ou&recordCount=261.

35 Sobre o lugar da violência e da coerção, nas suas múltiplas componentes, na actividade dosmissionários e na estratégia de conversão dos africanos nesta região sugere-se a consulta deCarlosALMEIDA,uma infelicidade feliz…,emparticular,pp.713-749.

CARLOSALMEIDA152

Eénestepontoquesecolocaaquestãododestinodadopelosmissionáriosaosminkisicapturados.SeescasseiamasreferênciasaobjectosrituaisafricanostrazidosparaaEuropa,sãoabundantes,pelocontrário,asalusõesàsuadestruição,asmaisdasvezesemgrandesfogueirasacesasàvistadaspopulações.Aíresideumaexplicaçãopossívelparaaperguntacomqueseiniciouesteexcurso.Ocultivodeumavinhatãoinconstanterequeriaautilizaçãodeumamedidadecoerção.NocasodoscapuchinhoscomoAndreadaPavia–masomesmosepassavacomosjesuítas–asorientaçõesconstruídasparao trabalhomissionáriopostulavamadestruiçãosistemáticaepúblicadestesobjectos“checosìconuieneperessempio,edetestacionedemedesimi,comeperterroreditutti”36.Aomesmotempoque,poressaforma,seexibiaafalsidadeevacuidadedosminkisi–poroutraspalavrasdos falsos deuses, e dos demónios que se dissimulavam naqueles objectos ecerimóniassupersticiosas–asuadestruiçãoassimcomoocastigodosngangasconstituíaumamanifestaçãodepoderecoerçãoqueseafiguraindispensávelparaqueaevangelizaçãopudesse,enfim,enraizar-se.Destituídosdequalquervalorartístico–asuaestética,seassimsepodedizer,eraemtudodiversadoscânoneseuropeus–asuautilidadeerasobretudoinstrumental.Encenarasuadestruiçãopossuía, na estratégia pastoral em terras africanas, umvalor pedagógico.Paraos espíritos simples daquelas gentes, ela evidenciava o perecimento daquelesfalsosdeusessobopesodosquaisviviamsubjugados,oerrodassuascrençase,sobretudo,opodersuperiordaProvidênciaDivina.Ofogonoqualosminkisiardiam representava, tanto a destruição do Demónio, como a libertação dosafricanosdaescravidãoespiritualeessaespéciedepurificaçãoeraumacondiçãonecessáriaparaoconhecimentodosmistériosdaverdaderevelada.

Lisboa,Janeirode2010

36 GiuseppeMONARIDAMODENA,ViaggioalCongo...,f.321,inCalogeroPiaza,“Unarelazioneinédita...”,p.37.

IMAGENSDAÁFRICAORIENTALNAÉPOCADAILUSTRAÇÃO 153

IMAGENSDAÁFRICAORIENTALNAÉPOCADAILUSTRAÇÃO:ASCOLECÇõESDEhISTóRIA

NATURALDOGOVERNADORDOSRIOSDESENAANTóNIODEMELOECASTRO(1780-1786)

euGénia rodriGues*

IntroduçãoRadicandoemgrelhasde leituramaisantigas,as imagensconstruídasno

SéculodasLuzescontribuírambastanteparaadifusãodaideiadeinferioridadedos africanos, geralmente colocados na escalamais baixa das hierarquias dospovosentãoarquitectadas.Essasrepresentaçõesforamamplamentedivulgadas,e em alguma medida fabricadas, a partir de compilações de narrativas oudicionários,queaoreescreveremrelatosdeviagemdoséculoXVIIIeanteriores,elidiram o olhar antropológico muitas vezes presente nesses textos e fixaramestereótipos negativos1. Entretanto, importa salientar que, conquanto essadepreciação predominasse entre os pensadores do século, não existia umarepresentaçãouníssonadosafricanosnopensamentoeuropeudasLuzes.Comofoisublinhadopordiversosestudos,noquadrodoIluminismoconviveramautores

* InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical.EstetextointegradocumentostranscritosporMariaPaula Pereira Bastião no âmbito da Bolsa de Integração na Investigação representar e agir. moçambique e os portugueses no antigo regime, da Fundação para a Ciência eTecnologia,concurso 2008, ref.ª IICT – DCh 1.2. Agradeço à Maria Bastião a dedicação posta nestetrabalho.

1 Anne-MarieMERCIER-FAIVRE,“Ladanseduhottentot:généalogied’undesastre(ouKolberéécritparl’Encyclopédie,Prévost,Diderotetseques’ensuivit)”,inS.MOUSSA(org.),l’idée de « race » dans les sciences humaines et la littérature (XViiie-XiXe siècles),Paris,L’harmattan,2003,p.85.

EUGÉNIARODRIGUES154

comperspectivasdivergentes,porvezescontraditóriaseatévozesqueviamahumanidadecomoumaunidadecomdiferençasremetidasparacausasdiversas.Noentanto,mesmoasimagensmaisbenignasquesustentavamaideiado“bomselvagem”constituemclichésderivadosdeumeurocentrismopaternalista2.

A expressão multifacetada das ideias da Ilustração nos territórios dosimpérioseuropeus,emresultadodereelaboraçõesdosactorescoloniais,temsidoigualmenteevidenciadaemdistintasáreas3.Deigualmodo,tem-sesalientadoapertinênciadedistinguiroolhardoseuropeussobreosterritóriosultramarinoseaqueledosqueeramoriundosdoimpério4.NocasodeMoçambique,JoséRobertoPortellaexaminoujáadiversidadeecomplexidadedoimaginárioilustradosobreÁfrica presente num conjunto de actores coloniais que viveram na região nasegundametadedoséculoXVIII5.

O objectivo que se propõe aqui é analisar a representação dos africanose da África Oriental partindo das colecções de história Natural e dos textosendereçados aLisboa porAntónio deMelo eCastro, que exerceu o cargo degovernador dos Rios de Sena (1780-1786), a região do vale do Zambeze, nacapitaniadeMoçambique.IntegrandoaelitecolonialdeGoa,AntóniodeMelo

2 Ver,porexemplo,MichèleDUChET,anthropologie et Histoire au siècle des lumières,Paris,Albin Michel, 1995; Emmanuel C. EZE, race and the enlightenment, London, Blackwell,1997; S. MOUSSA(org.), l’idée..., cit.;. Sankar Muthu, entre outros, teoriza mesmo sobreum iluminismo anti-imperialista. Sankar MUThU, enlightenment against empire, Princeton,PrincetonUniversityPress,2003.Sobrea ideiadeÁfrica edos africanos,ver tambémPhilipCURTIN,The image of africa : British ideas and actions, 1780-1850,London,MacMillan,1965;WilliamB.COhEN,Français et africains. les noirs dans le regard des Blancs 1530-1880,Paris,ÉditionsGallimard,1981;MichelBANTON,Racialtheories,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1992.

3 Ver, por exemplo,MichèleDUChET,anthropologie..., cit.;CatarinaMadeiraSANTOS, “De“antigosconquistadores”a“angolenses”.AeliteculturaldeLuandanocontextodaculturadasLuzesentre lugaresdememóriaeconhecimentocientífico”, inCultura. revista de História e Teoria das ideias,vol.24,IISérie(2007),pp.195-222;DanielaBLEIChMAR,PauladeVOS,KristinhUFFINEeKevinShEEhAN(eds.),science in the spanish and portuguese empires: 1500-1800,Stanford,StanfordUniversityPress,2009.

4 Essadistinçãofoienfatizada,nocasodoscientistasoriundosdaAméricaportuguesaqueactuaramnoimpérioportuguêsnosfinaisdoséculoXVIII,porM.R.M.PereiraeAnaL.R.Cruz,quequestionama interpretaçãodos relatosdeviagemapenasassentenumavisão imperialde,porexemplo,MaryLouisePratt.MagnusRobertodeMelloPEREIRAeAnaLúciaRochaCRUZ,“Ahistóriadeumaausência:oscolonoscientistasdaAméricaportuguesanahistoriografiabrasileira”,inJoãoFRAGOSO,ManoloFLORENTINO,AntônioCarlosJUCÁeAdrianaCAMPOS(org.),nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português,VitóriaeLisboa,EDUFESeIICT,2006,pp.357-390;MaryLouisePRATT,os olhos do império: relatos de viagem e transculturação,Bauru,EditoradaUniversidadedoSagradoCoração,1999.

5 José Braga PORTELLA, descripçoens, memmórias, noticias e relaçoens. administração e Ciência na construção de um padrão textual iluminista sobre moçambique, na segunda metade do século XViii,DissertaçãodeDoutoramento emhistória,UniversidadeFederal doParaná,2006.

IMAGENSDAÁFRICAORIENTALNAÉPOCADAILUSTRAÇÃO 155

eCastronãoestevenocentrodosdebateseuropeussobreÁfricaeosafricanos.Procura-se, então, analisar as imagens produzidas por um actor e autor queoperandocomascategoriasmentaiseuropeiaseraeleprópriooriundodoimpérioportuguês. Os escritos que constituem objecto deste capítulo, entre os muitosqueeleescreveu,sãotributáriosdaextensaproduçãodiscursivadomovimentodehistóriaNatural,dequeosrelatosdeviagemconstituíramaproduçãomaismarcante6. Registos escritos e objectos respondiam às demandas da coroaportuguesa para construir um conhecimento sistemático dos territórios e dospovosdoimpério,mastransportavamjuntamenteumarepresentaçãodoespaçoafricanoedassuaspopulações.AsrelaçõeselaboradasporAntóniodeMeloeCastrosobreosRiosdeSenadenotamleiturasadvindasdeideiasdaIlustração,mas também percepções construídas a partir da sua experiência no contextoafricano.Osestudossobreaalteridade,enomeadamentesobreasrepresentaçõesdepovosdoNovoMundo,têm-sevoltadoparaaanálisedoconfrontoentreasgrelhasconceptuaisapriorísticaseasexperiênciasmúltiplasediversificadasdosautoresqueencontraramooutronoseuprópriocontextocultural7.

Este texto divide-se em duas partes.A primeira explora a trajectória deAntóniodeMeloeCastro,nosentidodeosituarcomoactoreautorcolonialnocontextodaIlustração.AsegundatentadesvendararepresentaçãodeÁfricaedosafricanosemergentenosseusescritosecolecçõesdehistóriaNatural,incidindoemduasdimensões,adoconhecimentodeumarealidadesocio-culturaleadosjulgamentosprojectadossobreooutro.

António de Melo e Castro: do degredo ao governo do império

António Manuel de Melo e Castro integrou a elite colonial do impérioportuguês, a doEstado da Índia, não obstante os seus laços familiares com aprincipalnobrezadoreino.NascidoemGoa,cercade1740,foioterceirofilhodeFranciscodeMeloeCastro,porsuavez,filhonaturaldo4ºcondedasGalveias,AndrédeMeloeCastro.Talcomooutrosfilhosnaturaisdanobrezaportuguesa,FranciscoprocuraranoEstadodaÍndiaosmeiosdeassegurarumareproduçãosocialqueprovavelmentenãoencontravanoreino.Tendoembarcadoem1718,desempenhou vários cargos, entre os quais, na África Oriental, o de tenente-generalegovernadordosRiosdeSena(1740-1745)eodegovernadorecapitão-generaldeMoçambique(1750-1758).Foiduranteoseugoverno,em1752,queacapitaniadeixoudeintegraroEstadodaÍndiaetransitouparaadependência

6 MaryLouisePRATT,os olhos...,cit.,p.69.7 Ver,porexemplo,MichèleDUChET,anthropologie...,cit.,maxime,p.131.AnthonyPADGEN,

european encounters with the new World: From renaissance to romanticism,Newhaven,YaleUniversityPress,1993,maxime,p.10;RobertSAYBE,la modernité et son autre. récits de la rencontre avec l’indien en amérique du nord au XViii siècle,Bécherel,LesPerséides, 2008,pp.20-28.

EUGÉNIARODRIGUES156

directadeLisboa.NoOriente,Franciscoaliou-seaumadasmais importantesfamílias de Damão ao consorciar-se com D. MariaAntóniaAlves Pereira deLacerda8.Dadaaimportânciadafamíliadanoiva,essecasamentoconstituiuummeiodealcançarasuainserçãonasociedadedoEstadodaÍndia.

O percurso de António de Melo e Castro foi, em diversos aspectos,semelhanteaodoseuprogenitor.CavaleirofidalgodaCasaReal,desde1749,ingressounaarmadadoEstadodaÍndia,ondeatingiuopostodecapitão-de-mar-e-guerraesedistinguiunosrecontrosmarítimoscomosmaratas,outroracombatidos em terra pelo seu pai9. Tais serviços prestados à coroa foramremunerados,em1762,comohábitodeCristoeumatençade12milreis10.Estatrajectóriasocialfoiabruptamenteinterrompidanasequênciadacontendaqueoopôsaogovernadorecapitão-generaldoEstadodaÍndia,D.JoãoJosédeMelo,talcomoeleummembrodanobrezagoesa11.Comefeito,tendoperdidogrande parte dos bens no naufrágio, em 1767, da nau que comandava, a NªSª da Conceição, ele pediu escusa de alimentar a guarnição, uma obrigaçãodos capitães das embarcações. Essamercê fora concedida a outros capitães,masdeclinada,porrazõesaindapoucoclaras,aAntóniodeMeloeCastro,quecontestouadecisão.Em1769,elefoiacusadode“sedicioso,edezobedienteàsordensregias”eolibeloenviadoparaLisboa,ondeaadministraçãopombalinaescorouaposiçãodogovernodaÍndia.Umbandodocapitão-general,publicadoemGoaem7deNovembrode1770,despojouAntóniodeMeloeCastrodoposto que ocupava, desautorizou-o do foro de nobreza, inabilitou-o para o

8 ElaerafilhadeAntónioCoelhodaCostaedeD.MarianaLuísaÁlvaresPereiradeLacerda.SobreFrancisco deMelo eCastro, verEugéniaRODRIGUES, “Castro, FranciscoManuel deMeloe”, in JoãoPaulodeOliveira eCOSTA(dir.),enciclopédia Virtual da expansão portuguesa,[Consult.15deJunhode2010]Disponívelemhttp://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/index.php?idConceito=897&lang=pt;JorgeFORJAZeJoséFranciscodeNORONhA,os luso-descendentes da Índia portuguesa,Lisboa,FundaçãoOriente,2003,vol.II,p.620.SobreD.MariaAntóniaPereiradeLacerda,verJorgeFORJAZeJoséFranciscodeNORONhA,os luso-descendentes...,cit.,vol.I,p.481.

9 FédeofíciosdeAntónioManueldeMeloeCastro,22deNovembrode1760,TorredoTombo(doravante, TT), Min. Reino, mç. 316, cx. 423. Sobre a sua carreira militar, ver EugéniaRODRIGUES,“Castro,AntónioManueldeMeloe”,inJoãoPaulodeOliveiraeCOSTA(dir.),enciclopédia Virtual da expansão portuguesa,[Consult.15deJunhode2010]Disponívelemhttp://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/index.php?idConceito=957&lang=pt.

10 DespachorégiosobreConsultadoConselhoUltramarino,23deAbrilde1762,TT,Min.Reino,mç.316,cx.423.

11 D.JoãoJosédeMelo,filhodeD.CristóvãodeMeloeD.PascoelaLucréciadeMendonça,nasceuemGoaem1708.Entreosvárioscargosqueocupou,destaquem-seodevedordaFazendaeodemembrodoConselhodeGoverno(1765-1768)quesucedeuaovice-reicondedaEga.Nomeadogovernadorecapitão-generaldoEstadodaÍndiaporcartarégiade14deAbrilde1767,exerceuo cargodesdeMarçode1768 até à suamorte, emFevereirode1774. JorgeFORJAZe JoséFranciscodeNORONhA,os luso-descendentes...,cit.,vol.II,p.577-578.

IMAGENSDAÁFRICAORIENTALNAÉPOCADAILUSTRAÇÃO 157

serviçorealecondenou-oaodegredoparaAngolacompenademortesedeláseausentasse12.

António de Melo e Castro chegou aAngola cerca de 1772, numa alturaemqueváriosmembrosdanobrezado reino se encontravamaí desterrados13.PoucoseconhecesobreasuavidanacostaocidentaldeÁfrica.Instalou-seemLuanda,nafreguesiadaSé,ecertamenteviviaaídeacordocomoseuestatutosocial,sabendo-sequepossuíaváriosescravosaoseuserviço14.EmAngola,foinotadocomo“muitobomofficialdasuaprofição”ede“excellenteconduta”15,uma opinião que corroborava as já expendidas emGoa, quando fora acusadode sedição16. Relacionou-se, seguramente, com as principais famílias da eliteluandense,entreasquaisosqueirósCoutinho.DauniãocomumadasjovensdacasadeD.BeatrizdequeirósCoutinho,IsabelVentura,teveumfilhonatural,baptizadocomoseunomeecujaeducaçãoficouacargodessafamília17.

NonovocontextopolíticodoreinadodeD.MariaI,ejáapósamortedeD.JoãoJosédeMelo,AntóniodeMeloeCastrofoireabilitado,comofundamentodequesempreserviracomhonraefidelidadeeaculpadedesobediênciaforamaliciosamenteengendrada.Apósquaseseteanosdeproscrição,umalvarárégio,de15deMarçode1779,livrou-ododegredo,restituiu-lheopostodecapitão-de-mar-e-guerra e demais honras e devolveu-lhe os vencimentos perdidos18.Apenastrêsdiasdepois,AntóniodeMeloeCastrofoinomeadotenente-generalegovernadordosRiosdeSena19.Nesteprocesso,emqueinterveiooseuparente

12 Bandodogovernador-geraldoEstadodaÍndiaD.JoãoJosédeMelo,de7deNovembrode1770,ArquivohistóricoUltramarino(doravante,AhU),Índia,cx.210.

13 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,16deAgostode1779,AhU,Moç.,cx.32,doc.85.Sobreapresençade nobres degredados emAngola, ver José deAlmeida SANTOS, luanda d’outros tempos,Luanda,s/d,p.75.

14 NumarelaçãodosescravosdeLuandacapazesdepegaremarmas,AntóniodeMeloeCastroeradadocomopossuindotrês,detendocertamenteoutrosincapazesparaesseserviço.“MappadaspessoasquerezidemnestaCidadedeSãoPaulodeAssumpçãoReinodeAngolanasquaessenãocomprehendemMellitares”,31deMarçode1773,AhU,Angola,cx.57,doc.34.

15 Cartadogovernador-geraldeAngolaAntóniodeLencastreparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,31deMarçode1773,AhU,Angola,cx.57,doc.37-A.

16 VerváriasatestaçõesemAhU,Índia,cx.210.17 JorgeFORJAZeJoséFranciscodeNORONhA,os luso-descendentes...,cit.,vol.II,pp.620-

621.18 Pelomesmodiploma,acoroadeterminouqueobandoqueoproscreverafosseriscadodetodosos

livros.Cartarégiaparaogovernador-geraldoEstadodaÍndiaD.FredericoGuilhermedeSousa,15deMarçode1779,BibliotecaNacionaldePortugal(doravante,BNP),Reservados,ColecçãoPombalina,cód.461,fls.318-319.EmGoa,ogovernador-geralD.FredericoGuilhermedeSousaasseguroutersidoapagadoesseregisto,pondoemlugardelea“regiadeterminação”.Cartadogovernador-geraldoEstadodaÍndiaFredericoGuilhermedeSousaparaoosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,1deJaneirode1780,AhU,Índia,cx.352.

19 Alvarárégio,18deMarçode1779,AhU,Moç.,cx.32,doc.76.

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e secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, MartinhodeMelo eCastro, terá sido relevante o funcionamentode redes familiares decarácterclientelar20.JánaÁfricaOriental,AntóniodeMeloeCastroagradeceuaosecretáriodeEstadoopapeldesempenhadonasuareabilitação,exprimindoadívidapelos“muitos,egrandesfavores”,quereceberadeleepelosqueaindaesperava da “sua poderoza proteção”21. Aparentemente, durante uma brevepassagemporLisboa,eleteveoportunidadedecontactarosecretáriodeEstado,queoinstruiusobrediversasmatériasdogovernoqueiaassumir22.AescolhadeAntóniodeMeloeCastroparaogovernodosRiosdeSena(1780-1786),comoasuaposteriorascensãoaocargodegovernador-geraldeMoçambique(1786-1793),constitui,assim,umadasexcepçõesàtendência,assinaladaparaoséculoXVIII,deexcluirosnaturaisdosdomíniosultramarinosafavordosreinóisnanomeaçãoparaogovernodascapitaniasdoimpério23.Naverdade,AntóniodeMeloeCastronãoeranaturaldeMoçambique,maseraoriundodoEstadodaÍndia,emcujaadministraçãoaquelacapitaniaestiveraintegradaaté1752eque,entreoutrosvínculos,continuavaafornecer-lhefuncionáriosparadiversoscargossubalternos.

No Rios de Sena, António de Melo e Castro mostrou-se voluntarista edispostoainterviremtodoscamposdaadministração.Asuaextensaproduçãodiscursivaatendiaademandasdacorte,particularmentedosecretáriodeEstado,ouasolicitaçõesdogoverno-geraldeMoçambique,masprocediaprincipalmentedasuaprópriainiciativa,porvezes,reelaborandoanterioresordensdaadministraçãodoreinooudacapitania.Taismissivasresultavamdeumaminuciosarecolhade

20 MartinhodeMeloeCastroerafilhodeFranciscodeMeloeCastro,dafamíliadosCastrosdeMelgaço, troncodascasasdoscondesdeGalveiaseResende.Apesardoparentescoafastado,AntóniodeMeloeCastrotratavaosecretárioportio,comoeracomumnasociedadedoAntigoRegime.Note-seque,sucedendoaoirmãodomarquêsdePombal,FranciscoXavierdeMendonçaFurtado, em Janeiro de 1770, a nomeação deMartinho deMelo eCastro, entãoministro emLondres, terá sido uma escolha do monarca e não de Sebastião de Carvalho e Melo. Sobreessa nomeação, ver Nuno Gonçalo MONTEIRO, d. José, s/l, Círculo de Leitores, 2006, pp.217-219.

21 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,16deAgostode1779,AhU,Moç.,cx.32,doc.85.

22 TalésugeridopelacartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,3deJulhode1782,AhU,Moç.,cx.38,doc.47.

23 SobreoslimitesimpostosprogressivamenteàascensãodaseliteslocaisaogovernodasConquistase o preenchimento dos cargos por reinóis, verNunoGonçaloMONTEIRO, “Governadores ecapitães-moresdoImpérioAtlânticoportuguêsnoséculoXVIII”,inMariaFernandaBICALhOe Vera LúciaAmaral FERLINI, modos de Governar. idéias e práticas políticas no império português. séculos XVi a XiX,S.Paulo,Alameda,2005,pp.93-115;MafaldaSoaresdaCUNhAeNunoGonçaloF.MONTEIRO“Governadoresecapitães-moresdoimpérioatlânticoportuguêsnosséculosXVIIeXVIII”,inNunoG.F.MONTEIRO,PedroCARDIMeMafaldaSoaresdaCUNhA(org.),optima pars. elites ibero-americanas do antigo regime,Lisboa,ICS,2005,pp.191-252.

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informaçõeseconstituíammemóriassobrearegião,geralmenteelaboradascomointuitodesugerirreformasàsecretariadeEstadodosNegóciosUltramarinos.Essas propostas, “materiais de uma política”, inserem-no na categoria de“administradores-filósofos”,usadaporMichèleDuchet24.

É notório que, através da acção governativa, ele pretendia igualmentedesfazeraimagemdesediciosoedegredadogravadanoseupercurso.Comesseintuito,distribuiu,aliás,exemplaresimpressosdacartarégiadasua“restituição”,queeleassociouàreabilitaçãodeoutrosbanidosdopombalismo25.Mas,atravésdeumbomdesempenhodocargoestavatambémemcausaofitodeatingirasmercêsrégiasqueprevisivelmenteremunerariamosseusserviçosegarantiriamuma trajectória social ascendente.Nesteprocesso,MartinhodeMeloeCastrosurgiacomoprincipalinterlocutorepatrono,tantopelopapelquetiveranoseulivramentoenomeaçãoparaogovernodosRiosdeSena,comopelasfunçõesqueexercianaadministraçãodosdomíniosultramarinos.AsexpectativascolocadasporMeloeCastronopapeldosecretáriodeEstadocomomediadorentreeleeacoroaparecemexplicarasinúmerascartasquelheendereçoueoseucuidadoemquefossemrecebidas26.

EmboraacorrespondênciadeAntóniodeMeloeCastrodenoteaintegraçãodeideiasdasLuzes,é,porora,inexequíveltraçaroitineráriodoseucontactocomosprincípiosilustrados.Oseuambientefamiliar,mormenteoperfildopai,tidocomo“beminstruido”27,sugerequeelecresceunummeioculto.Provavelmente,foieducadonumdoscolégiosdereligiososregularesexistentesemGoaounoensino particular, muito divulgado na cidade entre as pessoas do seu estatutosocial28.ÉpossívelqueaconvivênciacomasideiasqueirradiavamdaEuropa

24 MichèleDUChET,anthropologie et Histoire au siècle des lumières,cit.,Paris,AlbinMichel,1995, pp.125-136.

25 Esses impressos chegaram à sua posse já nos Rios de Sena, em 1781, como ele explicou aogovernador-geral, quando lhe enviou “os dois exemplares incluzos da Carta Regia da minharestituiçãovistoquemeujrmãoaemitaçãodoquepraticarãoosmaisdesgraçados,quandofoydoseurestabelecimentomandouimprimiralguns,quevierãoaindanestamonção,vistoquenapassadaquandoviemosnãocoubetempo”.CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaogovernador-geraldeMoçambiqueJosédeVasconcelosdeAlmeida,9deMarçode1781,AhU,Moç.,cx.35,doc.54.Ver,também,acarta dogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaotenente-coroneldoregimentodeMoçambiqueVicenteCaetanodaMaiaeVasconcelos,1deMarçode1781,AhU,Moç.,cx.35,doc.44.

26 Ver,porexemplo,cartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,10deMaiode1783,AhU,Moç.,cx.42,doc.6.

27 “MemoriadasPessoasdistinctasqueseachãonaÍndia,dasquaespodeVossaMagestadeescolherparaoConselhodoEstadoouparaEmprego”,Janeirode1746,AhU,cód.1648,fls.480-492.

28 SobreasinstituiçõesdeensinoexistentesemGoa,verMariadeJesusdosMártiresLOPES,Goa setecentista: tradição e modernidade (1750-1800), Lisboa, CEPCEP / Universidade CatólicaPortuguesa,1996,pp.262-285;MariadeJesusdosMártiresLOPES,o império oriental (1660-1820),vol.Vdanova História da expansão portuguesa (1660-1820),dir.deA.h.deOliveiraMARqUESeJoelSERRÃO,Lisboa,Ed.Estampa,2006,tom.II,pp.133-142.

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se tivesse iniciado emGoa,onde, apesarda actividade censória, elasgiravamatravés de livros, de redes sociais, que incluíamgoeses residentes naEuropa,e da actividade dos religiosos do Oratório29.A sua aproximação à Ilustraçãopoderá,noentanto,tertidolugarapenasemLuandaou,dequalquermodo,tersidoreforçadanestacidade.Porestaaltura,acirculaçãodeideiasiluministasemAngolafazia-seatravésdaleituradelivros,panfletosouperiódicosfranceseseingleses,oriundosdoreinoou,particularmente,doBrasil.DeacordocomCatarinaMadeiraSantos,essemovimentofoinotóriosobretudonoquetocaaindivíduosvinculadosaogovernador-geralD.FranciscodeSousaCoutinho(1764-1772)30,estandocertamenteactivoquandoMeloeCastrodesembarcouemLuanda.

ConquantorevelandoainfluênciadeconcepçõesdaIlustração,oolhardeAntóniodeMeloeCastrosobreÁfricaeosafricanosnãopodeserencaradocomoumreflexodasdiscussõesquesedesenrolavamnaEuropa.FoijádestacadoantesqueoIluminismonãoconstituiuumpensamentounívoconocontinenteeuropeuequeasuaapropriaçãoporactorescoloniaisassumiuexpressõesmultifacetadas.Importa,portanto,sublinharque,independentementedacirculaçãodasimagenseuropeias,arepresentaçãodeÁfricaedosafricanosproduzidapelosqueviviamnocontinenteapresentavageralmentedissonânciasemrelaçãoàquelaconstruídapeloseuropeusqueporaítransitavamoupermaneciamapenasporalgumtempo.quandodasuachegadaaosRiosdeSena,ondesedemoroucercadeseisanos,aÁfricanãoeraumterrenodesconhecidoparaAntóniodeMeloeCastro,emboraseja difícil avaliar em que medida a sua experiência social estruturou a suapercepção e o seu julgamento sobre o continente e os seus habitantes.Antesdemais,sublinhe-sequeapenasexcepcionalmenteelesereferiudirectamenteaoseupassadoafricano.Numadessasocasiões,apontouoexemplodaacçãoevangelizadora dos padres capuchinhos em Angola para criticar a omissãodosdominicanosnaÁfricaOriental,sugerindoanecessidadedeentregarestamissãoaosmesmoscapuchinhosouàCongregaçãodoOratóriodeGoa,comprovasdadas emCeilão31. Para alémda sua experiência africana emAngola,a própria África Oriental não era presumivelmente um mundo estranho paraAntóniodeMeloeCastro.Oseupaiviveraaídurantecercadetrezeanoseeraoautordeumadasmaisimportantesrelaçõessetecentistasescritassobreovale

29 Paraumperíodomaistardio,sabe-se,porexemplo,quechegavamaGoaasobrasdeVoltaire,que, como as de Rousseau, estavam proibidas.A conspiração dos Pintos, em 1787, onde eramarcanteadenúnciadadiscriminaçãodosgoesesnoacessoaoscargos religiososemilitares,parece ter sidouma expressãoda apropriaçãodessas ideias.VerMaria de Jesus dosMártiresLOPES,Goa setecentista...,cit.,pp.290-308;AnitaCorreiaLimadeALMEIDA,inconfidência no império: Goa de 1787 e rio de Janeiro de 1794,DissertaçãodedoutoramentoemhistóriaSocial,UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,2001.

30 CatarinaMadeiraSANTOS,“De“antigos...”,cit.31 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstado

MartinhodeMeloeCastro,3deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.36.

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doZambeze32.Portanto,napercepçãodeÁfricadeAntóniodeMeloeCastroestavamcertamenteemcausanãoapenasasideiasdifundidasnosmeioseuropeusecoloniais,comotambémasuaexperiênciapessoalefamiliar.AolongodasuapermanêncianovaledoZambeze,ainteracçãocomomundoafricanofornecer-lhe-iaoutrasperspectivas,porvezes,emconflitocomaquelasqueexprimiunosprimeirostemposnaregião.

A História Natural e a descoberta de África

Os escritos deAntónio de Melo e Castro constituem relatos e reflexõesacercademúltiplos tópicos sobreosRiosdeSena,queecoama suavisãodeÁfricaedosafricanos.AssuascartasecolecçõesrespeitantesàhistóriaNatural,osmateriaisqueaqui interessam, relacionam-secomomovimentopromovidopelacoroaportuguesaparaconhecerecontrolarosrecursosnaturaisdosespaçosultramarinos33.Aactividadecientíficadasinstituiçõeslocalizadasnoreinoexigiaa estruturaçãodeuma redede circulaçãode informações assente na acçãodenaturalistas,funcionárioseoutrosinformadores.Nesseprocesso,LisboatambémenviounaturalistasparaMoçambique,masa equipaqueaí aportou, em1784,rapidamente ficou circunscrita a Manuel Galvão da Silva, cuja actividadeno âmbito da história Natural foi reduzida.A par desta viagem filosófica, asdemandasdenotíciase espécimeschegavamregularmenteàadministraçãodeMoçambique,peloqueosgovernadores recorriamamúltiplosagentesparaassatisfazer.Apartirdadécadade1780,asactividadesemtornodahistóriaNaturalpassaramaintegraraspráticasadministrativasnacolónia34.

32 FranciscodeMeloeCASTRO,descripção dos rios de sena desde a barra de quelimane até ao Zumbo,NovaGoa,ImprensaNacional,1861.

33 Sobreesseprocessono impérioportuguêsexiste jáumavastabibliografiacentradasobretudonaAmérica Portuguesa,mas que aborda outros territórios.Ver, por exemplo,MariaOdila daSilvaDIAS,“AspectosdaIlustraçãonoBrasil”,inrevista do instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 278 (1968), pp. 105-170; William J. SIMON, scientific expeditions in the portuguese overseas Territories(1783-1808) and the role of lisbon in the intellectual-scientific Community of the late eighteenth Century,Lisboa,InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,1983; Ângela DOMINGUES, Viagens de exploração geográfica na amazónia em finais do século XViii: política, Ciência e aventura,Lisboa, InstitutodehistóriadeAlém-MarFCSh-UNL,1991;OswaldoMuntealFILhO,“AAcademiaRealdasCiênciasdeLisboaeoImpérioColonialUltramarino (1779-1808)”, in JúniaFerreiraFURTADO (org.),diálogos oceânicos. minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português,Belohorizonte,EditoraUFMG,2003,pp.483-518;AnaLúciaRochaBarbalhodaCRUZ,Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas. Cientistas brasileiros do setecentos, uma leitura auto-etnográfica,DissertaçãodeDoutoramentoemhistória,UniversidadeFederaldo Paraná, 2004; Ronald Raminelli, Viagens ultramarinas. monarcas, vassalos e governo a distância,S.Paulo,Alameda,2008.

34 EugéniaRODRIGUES,“Nomeseserventia”.AdministraçãoehistóriaNaturalemMoçambiqueemfinaisdeSetecentos(c.1781-1807),inAndréaDORÉeAntonioCesardeAlmeidaSANTOS

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Deacordocomdiversaliteratura,adelimitaçãodahistóriaNaturallevantadificuldades,poisasuaunidadeecoerênciaeramapenasaparentes.Conformeoquadrodosconhecimentoshumanosqueabriaaencyclopédie,ahistóriaNaturaldividia-se em três partes: a que respeitava à uniformidade da natureza, tendocomoobjectoahistóriaceleste,dosmeteoros,daterraedomar,dosminerais,dosvegetais,dosanimaisedoselementos;aquesereportavaaosprodígiosdomundonatural,istoé,aosdesviosdanorma;finalmente,aqueincidiasobreosusosdanatureza,abrangendooqueohomemfabricavapelasuaprópriaarte35.Colocandooacentonadescrição,defendidapelocondedeBuffon,ounosistemadeclassificaçãodeCarlLineu36,ahistóriaNaturalremetiaparaoconhecimentode todo o universo, embora vários dos seus protagonistas a restringissem aoestudodostrêsreinosdanatureza.

EmPortugal,osmanuaiscompostosàrodade1780dirigiamoolhardosviajantes,cientistasouamadores37,paramúltiplostópicosúteisàhistóriaNaturalno intuitode acumular informações capazesde serem reunidas e comparadas.Entre eles, estavam matérias tão diversas como o conhecimento do território,dos reinosdanaturezaedoshabitantes38.ComosalientouAnaLúciaCruzemrelação às viagens filosóficas, verificava-se uma “pretensão enciclopedista deproduzirumconhecimentoextensivoedetalhadosobreo territóriovisitado”39.

(org), Temas setecentistas. Governos e populações no império português, Curitiba, UFPR/CShLA-FundaçãoAraucária,2009,pp.211-232.

35 Pascal DURIS, “histoire Naturelle”, in Michel DELON (dir.), dictionnaire européen des lumières, Paris,quadrige/PUF,2007,pp.627-631.

36 Ver,porexemplo,JamesLARSON,“NotwithoutaPlan:GeographyandNaturalhistoryintheLateEighteenthCentury”,inJournal of the History of Biology,vol.19,n.º3(1986),pp.447-488.

37 Essasituaçãoocorrianageneralidadedospaíseseuropeus,ondeahistóriaNaturalmobilizouindivíduoscomdiversascompetênciasprofissionaiseamadores.VerMarie-NoëlleBOURGUET,“Oexplorador”,inMichelVOVELLE(org),o homem do iluminismo,Lisboa,Presença,1997,pp.224-225.

38 Foram então elaboradas três instruções: uma por DomingosVandelli, Viagens Filosoficas ou dissertação sobre as importantes regras que o Filosofo naturalista nas peregrinações deve principalmente observar,1779;outrapelosnaturalistasquetrabalhavamnaAjuda,méthodo de recolher, preparar, remeter, e Conservar os productos naturais. segundo o plano, que tem concebido, e publicado alguns naturalistas, para o uzo dos Curiozos que visitão os Certoins, e Costas do mar;e,finalmente,asimpressaspelaAcademiadeCiências,Breves instrucçoens aos correspondentes da academia das sciencias de lisboa sobre as remessas dos productos e noticias pertencentes a historia da natureza para formar um museo nacional,Lisboa,RegiaOfficinaTypographica, 1781. Exemplares das duas últimas instruções foram enviados ao governadordosRiosdeSenaeaogovernador-geraldeMoçambique.EugéniaRODRIGUES,“’Nomes...”,cit.,pp.211-232.Sobreoteordessasinstruções,ver,emparticular,MagnusRobertodeMelloPEREIRAeAnaLúciaRochaBarbalhodaCRUZ,“Oviajanteinstruído:osmanuaisportuguesesdoIluminismosobremétodosderecolher,preparar,remeter,econservarproductosnaturais”,inAndréaDORÉeAntonioCesardeAlmeidaSANTOS(org),Temas...,cit.,pp.241-251;RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,pp.229-230.

39 AnaLúciaRochaBarbalhodaCRUZ,Verdades...,cit.,p.123.

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Assim, em África, como noutros espaços do império português, o território,naturezaeospovosconstituíamlugaresobrigatóriosdeobservaçãoeproduçãodeconhecimento,dandoorigemamúltiplostextosetodootipodecolecções.

Nestecontexto,AntóniodeMeloeCastro transformouTete,acapitaldogovernodosRiosdeSena,numdospolosderemessadecolecçõesememóriasdehistóriaNatural,lugarqueavilaocupavaentãoapardaIlhadeMoçambique.Asordensdoreinorevestiam-sedeumcaráctergenérico,apontandocomomodeloosmanuais,cadavezmaisnormativos,elaboradospelosnaturalistasemLisboaeenviadosparaosterritóriosultramarinos,oucircunscreviam-seaalgumpontoespecífico.Dessemodo,osobjectosdahistóriaNaturalpesquisadosporMeloeCastropodiamserenformadospelosseusprópriosinteressesouoportunidades,mesmo atendendo aos manuais preparados no reino, ou dirigidos por ordensparticularesdaadministraçãodoreinooudacapitaniadeMoçambique.

Diferentemente dos naturalistas enviados para o império, o governadordos Rios de Sena não detinha formação científica, o que ele consideravauma limitação para cumprir as solicitações da corte, mesmo na posse dessesmanuais.Frequentemente,elelamentounãopoder“sermaisabundante”,porlhefaltarem “os proprios conhecimentos destas couzas naturaes”40. Ele deparava-se aindacoma ausênciade indivíduos com formaçãoespecializadapara lidarcomasexigênciascolocadaspelahistóriaNatural,designadamentepara fazerasexperiênciasrequeridasoupreparareacomodarconvenientementeositensaenviarparaoreino.Eleasseguroumesmoquea“falta,quehádesugeitos,queseapliquemainvestigaranaturezaporseremdistituidosgeralmentedasluzespara isto necessarias, fáz inuteis asmesmasproducçoens, e baldadas todas asdeligencias,quehumgovernadorpodeempregarparaconseguiralgumfrutodoseu trabalho”41.Defacto,para incluiras investigaçõesdehistóriaNaturalnaspráticasdoseugoverno,AntóniodeMeloeCastroestavadependentedaelitecolonialdovaledoZambeze,aqual,porsuavez,eraobrigadaasocorrer-sedosafricanosqueforneciamosespécimesemuitasdasinformaçõesrecolhidassobreeles. Estas limitações condicionaram o tipo de colecções que ele coligiu, nasquaisosespécimesperecíveis–comoanimaiseplantas-estavampraticamenteausentes42.

40 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,15deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

41 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.Ver,também,cartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42;cartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,15deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

42 EugéniaRODRIGUES,“Nomes...”,cit.,pp.211-232.

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AscolecçõesqueelereuniueostextosqueelaborounocontextodahistóriaNaturaltransmitemumavisãodeÁfricaedosafricanoscomplexaqueestá,porvezes,emconflitocomos julgamentosemitidosporelea respeitodeoutrostópicos.Comefeito,AntóniodeMeloeCastropartilhavamuitasdasideiasquecirculavamnaEuropaeentreaselitescoloniaissobreospovosdeÁfrica,asquais,associadasaestereótiposcomoabarbaridade,aindolênciaeasuperstição,responsabilizavamosafricanospeloatrasodeÁfrica43.Porexemplo,falandodaagricultura,poucodepoisdeterchegadoaTete,eleconcluiuque“nãofaltãoasqualidadesdaterraparaasuaproducção,massimaastucia,edeligencianosnaturaesdella,quesãosummmentefroxos,einimigosdotrabalho”.E,entreasrazõesquedificultavamaconduçãodosafricanosàagricultura,eleconsiderouofactodeserem“summamentebarbaros,esupresticiozos”44.Juízosidênticosformulouem1783,elucidandoque“osnaturaessãogeralmentepreguiçozos,emais facilmente fogem,doque se sugeitãoaalgum trabalho,quenão sejaaquelle,aqueporcriaçãoestãoacostumados”45.Assim,apesardafertilidadedaterra,apreguiça,abarbaridadeeasuperstiçãodosafricanosconstituíamentravesaodesenvolvimentodaagriculturaedaeconomiaemgeral.Anosmaistarde,argumentando sobre a necessidade de uma reforma da justiça, o governadordosRiosdeSenaafiançavaqueosafricanoseram“homensbarbaros,aquemfaltanãosómentealuzdafé,mastambemadarazão,heaondesenãopraticãooslegaescastigossendoinnumeraveisosroubos,ehomicidios,quetodososdiassecometementreosmesmosbarbaros”46.homenssemaluzdarazãoedareligião,quenosprojectoscoloniaiseuropeuseespecificamenteportuguesesandavam de mãos dadas, eram os próprios africanos os responsáveis peloestadodeÁfrica.Mas,amiudadamente,AntóniodeMeloeCastroemitiajuízossobre os africanos para acusar os próprios colonizadores presentes nosRiosdeSena.Deparcomapreciaçõespejorativas,eletambémexprimiaideiasqueatribuíam aos africanos a simplicidade do homem primitivo, que importavapreservardosmausexemplos.Ailustraressaposiçãonote-sequeelecondenavaoenviodedegredadoseuropeusparaosRiosdeSenaporconsiderarqueeles

43 RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,pp.244-245.SobrearepresentaçãodeMoçambiqueedassuaspopulaçõesnasegundametadedoséculoXVIII,verJ.B.PORTELLA,descripçoens...,cit.

44 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,12deMaiode1781,AhU,Moç.,cx.36,doc.17.Odiscursosobrea“cegaesupresticiozagentilidade”dosafricanosestáigualmentepatentenacartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparao secretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,2deJulhode1782,AhU,Moç.,cx.38,doc.45.

45 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,7deMaiode1783,Moç.,cx.42,doc.7.

46 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,10deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.54.

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prevaricavam“comos seusmaoscostumesa simplicidadedosnacionaesdoPaiz”47.

NotocanteàhistóriaNatural,AntóniodeMeloeCastrocomeçouporproferirosmesmosjuízosbaseadosemestereótiposnegativossobreÁfrica.Inicialmente,conformeosinteressesexpressosporMartinhodeMeloeCastro,elebuscounovaledoZambezeasraridadestãoprocuradasparapreencheromuseudarainha:

“Eu desde que cheguei a este paiz lembrado da recomendação, queVossaExcelência me faz a este respeito, tenho procurado com toda a diligencia,e cuidado discobrir algumas raridades da natureza, ou couzas preciozas, epoucoconhecidas[...];poremathéoprezentemenãotemdiscobertocouzaalguma,quenessacortenãosejamuitoconhecida,etrivial,epeloconseguimtedepouca,ounenhumaestimação,poisassim,peloquetocaaosvegetaveis,comoaosanimaes,nãotenhoencontradoemtodaaextençãodestepaizcouza,dequesepossafazerparticularestimaçãoporser tudo jamuitoconhecidodoscuriozosnessacorte,fazendo-seinutilaremessadealgumasplantas,ouanimaes,dequeoGabineteterájagrandeabundancia”48.

De facto, a atenção do governador dosRios de Sena estava à partidadirigidaparaencontrarnanaturezaafricanaespécimesinvulgaresedesconhecidosno reino. E esse fito era gorado pela inexistência de conchas ou búzios, osobjectosmaisdemandados,nasmargensdoZambezeedosseusafluentes,oqueo levouadeclarar“totalmenteesteril esteRioZambeze, e todososmais,quenelle dezaguão”, quer no percurso entre o porto de quelimane e a capital deTete, quermais acima, noZumbo, como lhe certificavamosmoradores destafeira.Emcontraste,olitoralmarítimodeMoçambiqueparecia-lhebastantefértilediversificado,com“humainfenidadedebuzios,eoutrasinnumeraveisconxasdediferentescores,egalantaria”49.Grandepartedacuriosidadesobreasespéciesnomundoultramarinoestavacentradanaobtençãode raridades, sobretudodeconchas,segundoumamodacoleccionistaentãoemvoganaEuropa50.E,nessamedida,todaaregiãodovaledoZambezepareceuaogovernadorabsolutamentefrustrante,poisasuaesterilidadenositensqueinteressavamaoreinoolimitavamnofimdeobteroreconhecimentodacorte.Comofoijádestacado,aprocurade

47 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaMartinhodeMeloeCastro,4deJulhode1782,AhU,Moç.,cx.38,doc.52.

48 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deMaiode1783,AhU,Moç.,cx.42,doc.2.Ver,também,outracartadamesmadata,AhU,Moç.,cx.42,doc.2.

49 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deMaiode1783,AhU,Moç.,cx.42,doc.2.

50 VerMariaOdiladaSilvaDIAS,“Aspectos...”,cit.,p.108;WilliamJ.SIMON,scientific...,cit.,p.16.

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objectos rarose singulares,de fortevalor simbólico,estavamuitoassociadaàbuscadeprestígioepoderpessoaleàafirmaçãopolíticadosimpériosibéricos51.As cartas enviadas por Melo e Castro nos primeiros anos da sua estada emTete, em que não conseguia reunir os desejados espécimes, exprimiam essedesapontamentoetransmitiamaimagemdointeriordaÁfricaOrientalcomoumterritóriodesprovidodeinteresseparaahistóriaNatural.

Àmedidaquefoicontactandoopaís,ointeressedogovernadordosRiosdeSenaevoluiudaatençãofocadasomentenacolectadeconchasparaoempenhono“conhecimentodanatureza,eodaspreciozidadesqueestacostumaproduzirnasdiferentespartesdomundo”,concluindoser“bemcerto,ouaomenosmuitoprovavel,quetodoestecontinenteenserrapelasuagrandeextençãomuitascouzasraras,edemuitaestimação”52.Assim,quatroanosapósasuachegadaaoZambeze,jánãoeramasfugidiasconchasamobilizarasuaatenção,eledispunha-se,antes,aencarartodaanaturezaafricanacomopotencialmenterica,inesgotávele,logo,relevanteparaahistóriaNatural.AsuavisãodeÁfricacaminhavadasapreciaçõessuscitadas pela curiosidade centrada na obtenção de conchas extraordináriasedesconhecidasno reinoparaumaampliaçãodoobjectodahistóriaNatural.Estareorientaçãodosseusinteressesparecepoderexplicar-sepeloaprendizadodecorrentedaleituradasinstruçõeselaboradaspelosnaturalistas,queeleamiúdesequeixavadenãoconseguircumprir.Mas,apardessetirocíniodoscânonesdaciênciaeuropeia,sobressaiumaprogressivaadesãopessoalaomundoafricano,aqualpareceresultardasuainteracçãocomomeio.Emresultado,evidencia-seumaclaraampliaçãodassuasinvestigaçõeseodesenvolvimentodeperspectivasmaispositivas,notadasemrelaçãoàseliteslocaiseaosqueassistiamlongotemponosterritóriosultramarinos53.

A história Natural oferecia, assim, um caminho de descoberta daspotencialidadesdo continente africano edevalorizaçãodos africanos,mesmoqueconducentea imagensambivalentesecontraditórias.EssealargamentodoobjectodahistóriaNaturalresultounaconstruçãodecolecções,acompanhadaspor textos, asquais incluíam tanto espécimesdevalorutilitário commarcadointeresseeconómicooumedicinal,comocuriosidadesligadasàetnografiaeaoconhecimentodoscostumesdospovos.AtendendoàdependênciaemqueAntóniodeMeloeCastroseencontravadaelitecolonialedosafricanos,cabeperguntar,

51 RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,pp.135-176;PauladeVOS,“TheRare,theSingular,andtheExtraordinary:NaturalhistoryandtheCollectionofCuriositiesintheSpanishEmpire”,inDanielaBLEIChMAR,PauladeVOS,KristinhUFFINEeKevinShEEhAN(eds.),science in the spanish and portuguese empires: 1500-1800,Stanford,StanfordUniversityPress,2009,pp.287-289.

52 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

53 Londa SChIEBINGER, plants and empire: colonial bioprospecting in the atlantic World,harvard,harvardUniversityPress,2004,p.23.

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com Mary Louise Pratt, em que medida a sua representação de África e dosafricanosaíemergentefoimoldadanãosópelosprópriosafricanoscomotambémpelaelitecolonial“atravésdaconstruçãodesiprópriosedeseuambiente, talcomoelesosapresentaram”54.

A constituição dessas colecções e das informações que enformavam osseus textosdependeudosmateriaisquelhechegavamatravésdaelitecolonialdo vale do Zambeze, que por sua vez os obtinha dos africanos.As distintasperspectivas sobre as informações que importavam à história Natural e asdinâmicasdeconfrontocomessesactoresfiltraramseguramenteasinformações.AntóniodeMeloeCastro,logoem1783,deplorouosobstáculosàelaboraçãodeumanotíciageográficadaregiãopedidapelosecretáriodeEstado,aqualdeviaincluirtodososaspectosdavidadopaíseuma“relaçãoexacta”dosdomíniosdacoroaportuguesanosRiosdeSena,comosseuslimitescomoschefesafricanosvizinhos.Econsiderouqueatarefaerainviávelpelafaltadeummapafeitoporalguémcomcapacidadeeinstrumentosprópriosparaobservar,jáque:

“osbrancosfalãosemcritica,porquenãoobservãoaquellasmesmasterras,porondepassão,sendo-lhesamayorpartedellasdesconhecidasaindaasmesmas,quepossuem,dequeignorãomuitasvezesoslimites,quantomaisaquellas,quepellasuadistanciaellesmesmosnuncavirão,comosãoasdosregulosvizinhos, aonde elles nunca forão, e se algumdelles por acazopassouporalgumaficoucomtantoconhecimentodella,comotinhadantes,limitando-setodasasnoticias,quetemosdaspropriasterras,emuitoprincipalmentedasalheyas,aoquedellasnosdizemosmesmoscafres,osquaesnãosó,porquesãoacostumadosaconfundirtudo,quantodizem,maspellanaturalinclinação,quetemamintir,nuncafalãoverdade,eficahumapessoasempreduvidando,seoqueellesdizemhecerto,alemdequepelasuaconfuzãosãoinfinitasascontradiçoens”55.

AsdificuldadesrelatadasporAntóniodeMeloeCastroparecemexplicar-se quer por diferentes perspectivas sobre o espaço, quer por estratégias dedesinformação ou de ocultação da informação pelos próprios africanos emoradores dos Rios de Sena, interessados em resguardar da administração asrotascomerciaiseasterraseasgentesquecontrolavamnovaledoZambeze.

OsespécimesenviadosparaLisboaforamrecolhidospredominantementeforadoimensoterritóriodacoroaportuguesanosRiosdeSena.Aparentemente,os indivíduos envolvidos nessas recolhas encontravam nos Estados africanosespécies que lhes erammenos familiares, encarando-as, à partida, comomais

54 MaryLouisePRATT,os olhos...,cit.,p.31.55 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstado

MartinhodeMeloeCastro,8deMaiode1783,AhU,Moç.,cx.42,doc.5.

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raras e singulares.Emdecorrência dessa perspectiva, as colecções provinhamdos territórios das feiras ou das minas de ouro frequentadas pelos moradoresdosRiosdeSenaoudosespaçosinscritosnasrotasmercantisdosseusagentesafricanosqueaídesembocavam.Amaiorpartedosespécimesfoirecolhidanoterritório dos maraves do império Undi, a norte do rio Zambeze, e na regiãodos karangas a sul do rio, no Monomotapa, Manica, Butua e Maungwe. OconhecimentotranspostoparaLisboa,nasequênciadessasdinâmicas,centrava--senosterritóriosaqueaviladeTete,onderesidiaogovernador,estavaligadaporrotasmercantisediplomáticas,ficandoausentesosespaçosdacapitaniadosRiosdeSenamaispróximosdolitoral,osquaiserammaisacessíveiseconhecidosdosportugueses56.

Colecções e interesse económico

Noprocessodeinvestigaçãodomundonatural,partedaactividadedeAntóniode Melo e Castro reportava-se à busca de um conhecimento pragmático, quevisavainquirirasespéciesquedetinhamoupodiamadquirir,convenientementeexploradas,umvaloreconómico57.Assim,omóbildaconstituiçãodealgumasdascolecçõesorganizadasporeleestavarelacionadocomoobjectivodedinamizaraeconomiadacapitaniaoudopróprioimpério.

Entreosprodutosdanaturezaquesuscitavamuminteressecomercialestavamasmadeiras,umamatéria-primadevariadasaplicaçõesquefaltavanolitoraldaIlhadeMoçambique.Nasequênciadeumpedidodogovernador-geralPedroSaldanhadeAlbuquerque58,em1783,oAntóniodeMeloeCastroremeteuparaaIlhadeMoçambiqueamostrasdasmadeiras“milhores,emaisespeciaes”dopaísenoanoseguinteconsiderou-asadequadasparafiguraremnomuseudeLisboa59.Arelaçãodosespécimesdemadeirascolectadosregistava,paracadaamostra,onomeafricanoda respectiva árvore60, distintamente da prática dos naturalistas que tendiam afornecerasdenominaçõesdaciênciaeuropeiaparaasplantas,geralmentesegundoadominanteclassificaçãolineana.AntóniodeMeloeCastronãosepronunciousobre

56 EugéniaRODRIGUES,“Nomes...”,cit.,pp.211-232.57 SobreesseinteresseeconómicoassociadoàhistóriaNaturalemPortugal,ver,porexemplo,José

LuísCARDOSO,“DomingosVandelli,ahistóriaNaturaleaEconomiaPolítica”,inmemórias da academia das Ciências de lisboa. Classe de letras,Tom.XXXV(2002/2003),pp.99-118;JoséLuísCardoso,“Fromnaturalhistorytopoliticaleconomy:theenlightenedmissionofDomenicoVandelliinthelateeighteenth-centuryPortugal”,instudies in History and philosophy of science,n.º34(2003),pp.781-803.

58 Cartadogovernador-geraldeMoçambiquePedroSaldanhadeAlbuquerqueparaogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastro,21deNovembrode1782,AhU,Moç.,cx.40,doc.45.

59 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

60 AntóniodeMeloeCastro,“RelaçãodasamostrasdasMadeiras”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

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odebateeuropeuemtornodanomenclaturabotânicaecertamentedesconheciaosistemalineano.Noentanto,eleestavamaispróximodanomenclaturadeBuffon,queseopunhaàspráticaseuropeiasdeassimilarasplantasexóticasàstaxionomiasdoVelhoMundoeusavaaformatradicionaldecitartodososnomesconhecidosparaumadadaplanta,incluindoosnativos.Aodifundiraterminologialocal,AntóniodeMeloeCastrovalorizouoscontextosculturaisafricanosemqueessasárvoressereproduziameperspectivavaincorporarosnomesafricanosnabotânicaeuropeia.Dessemodo,eleescapavaaoimperialismolinguísticoemergentenoséculoXVIII,associadoapráticasdenomearbaseadasnosistemalineano,asquaispromoveramaexpansãoglobaleacolonizaçãoeuropeia61.

Osentidoutilitárioestavabempresentenestaremessademadeiras.Arelaçãodas amostras que a acompanhava indicava os locais onde se encontravam asárvores,assuasmedidasusuais,asserventiasquetinhamcomummentenopaís,maisparticularmenteentreaelitecolonialdosRiosdeSena,easquepodiamadquirirparaaeconomiadoimpério62.Namemóriaquetambémseguiunamesmaaltura,AntóniodeMelo eCastro feznotar que, apesardagrandevariedade equantidadedeárvoresexistentesnosRiosdeSena,apenasenviavaamostrasdasqueencontravamjuntoaoZambezeepodiam,assim,serconduzidaspeloleitodorioatéaoportodequelimane.Elemapeouadistânciaaqueoslugaresjaziamdamargemdorioeascondiçõesdoscaminhos,sepantanosos(Luabo),secheiosdearvoredopossíveldelimpar(Chupanga)ouseplanosesecos(Sone)63.Tambémdescreveuascondiçõesdetransportenaregião,destacandoassuasdificuldades:os grandes madeiros eram arrastados pelo chão pelos africanos até aos locaisde embarque, enquanto a madeira lavrada (traves, barrotes, vigas, tabuados epequenosfrixais)eraconduzidaàscostasdoscarregadores.Finalmente,norio,asmadeiraseramtransportadasemcanoasdeumsópau–oscochos–amarradasemnúmerosuficienteparaacomodaroslenhos.

Partindo das condições descritas, António de Melo e Castro advogou aconduçãodamadeiraemcarrosderodas,aindaassimpuxadosporhomensporfaltadeanimaisdomesticados.Domesmomodo,discorreusobreaspossibilidadesdetransporteareboquedascanoasouoempregodejangadascomoerausadonaAmérica.Porém,reconheceuqueestemeiodeconduçãoerainexequíveldevidoàviolênciadaságuasnaépocadaschuvaseaosmuitospassossecosqueemergiamnaestiagem.Mas,sobretudo,eleconsideroufaltargenteaptaaoperarestesmeiosdecondução,peloqueseresignouaacomodar-seàstécnicasusadasnopaís.Aexploraçãoflorestalcarecia igualmentedemão-de-obraespecializada,artífices

61 Sobreosdebateseuropeusemtornodanomenclaturabotânicaeoimperialismolinguístico,verLondaSChIEBINGER,plants...,cit.,pp.194-223.

62 AntóniodeMeloeCastro,“RelaçãodasamostrasdasMadeiras”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

63 AntóniodeMeloeCastro,“DetodasasditasMadeirassepodemachar”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

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comassuas ferramentaspara fazeremo trabalhoeoensinaremaosafricanos.AnarraçãodeMeloeCastrosobreoaproveitamentodasmadeirastransmitiaaimagemdeumpaísabundante,masdesprovidodeutilidadepeloestadodasartesdosseushabitantes.Porém,eleconsideravaosafricanosaptosaadquiriressastécnicasejulgavaque“pelotempoadiantesefariãoofficiaescapazesdepoderemsuprirafaltadosquevieremdefora”64.AsreflexõesdeAntóniodeMeloeCastroapontavam,portanto,paraaideiadasuperioridadedacivilizaçãoeuropeia,quedeveriasertransplantadaparaosRiosdeSena.Noentanto,adifusãodastécnicaseuropeiasapareciacomoocaminhoparaainclusãodosafricanosnoprogressouniversal.

No reinomineral, sais, cristais emetaisdetinhampotencialidadeseconó--micas relevantes para a economia do império. Em consonância com ocrescimentodacompetiçãointer-europeia,noséculoXVIIIaumentouaprocurade salitre para o fabrico de pólvora. Os naturalistas a trabalhar no impérioportuguês também receberamda coroa instruções detalhadas quanto ao mododeprocederaodescobrimentodomineralesobreasexperiênciasdestinadasaobtê-lo.Conformeessesmandamentos,asterrasprópriasàextracçãodesalitreeramaquelashúmidasequentes,ondeseriaelevadaacorrupçãodeanimaisevegetais65.

Nessecontexto,aprocuradesalitretornou-seumencargodogovernodosRiosdeSena, cujas terras alagadiçase cheiasdevidaanimal evegetal foramconsideradas propícias à produção do nitrato de potassa66. Porém,António deMelo e Castro não conseguiu corresponder a esse pedido, segundo ele, querporque o salitre não existia na região, quer devido à incapacidade daqueles aquemele incumbiraa tarefadeoencontrarnos locais emque,pelamanhã,osoloapareciacobertodebranco,àmaneiradageadaqueseformavanoreino.Saindofrustradasasexperiências,AntóniodeMeloeCastroenviouparaLisboaumcaixotedessaterra,muitoabundantenopaís,para“sefazeremexperiênciasnecessarias por pessoas instruidas na materia”. Todavia, ao não descobrir osalitre,eleacabouporvalorizaroprocessoafricanodefabricodosalapartirdohúmus.Comoprimeirocaixote,seguiaumoutrodesaleanarraçãodomodocomoosafricanosoproduziam.Aterraeraraspadacomumaenxadaecolocadanumapanelacomfurosnabase,aquesejuntavaágua.Olíquidoquepingavaparaumagamelaouumacanoapequenaerapassadodepoisparaumapanela,queeralevadaaolume.Oprodutoobtidodoprocessodeevaporaçãoconstituíao

64 AntóniodeMeloeCastro,“DetodasasditasMadeirassepodemachar”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

65 ClareteParanhosdaSILVA,“Salitre:indicadoparaexplosivosecurativos”,inÂngelaPÔRTO(org.), enfermidades endêmicas da Capitania de mato Grosso. a memória de alexandre rodrigues Ferreira,RiodeJaneiro,EditoraFiocruz,2008,pp.119-121.

66 Cartadogovernador-geralPedroSaldanhadeAlbuquerqueparaogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastro,21deNovembrode1782,AhU,Moç.,cx.40,doc.45.

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salusadonosRiosdeSenaparatemperaracomidaesalgarascarnes67.EmboraestesaltivessevalorcomercialnovaledoZambeze,àsuaremessaparaLisboanãosubjaziauminteresseeconómico,antescabendonacategoriadecuriosidade.Ela visava divulgar métodos africanos de fabrico, relacionando-se com oprocessodeconhecimentodospovospreconizadopelasinstruçõesnaturalistas.Anarrativasobreaproduçãodesalpelosafricanosatribuía-lhesalgumaindústria,atenuando,emcertamedida,aspropaladasideiassobreaindolênciaeaausênciadedesenvolvimentotécnicoentreospovosdovaledoZambeze.

No conhecimento do reino mineral promovido pela história Natural,estiveram subjacentes quer o interesse comercial dos europeus por pedraspreciosas,queracuriosidadeporexemplaresraros.TambémaadministraçãodosRiosdeSenafoichamadaaaveriguaraexistênciadessaspedras68.EntreasqueseencontravamnaÁfricaOriental,oscristaiscaptaramaatençãodeAntóniodeMeloeCastro,queenviouparaoreino,em1785,algunsespécimes,relatandoasuaabundâncianaregião.Essesexemplaresiamacompanhadosdeinformaçõesque conferiamuma identidade política aos povos daÁfricaOriental e davamcontadascomplexasrelaçõesentreosváriospoderes.Ogovernadorexplicavaqueumaspedras tinham sido recolhidas emMawngue, um reino situadodoisdiasalestedeManica,cujogovernante,makone,erasujeitoaochangamiradeButua,enquantoasoutraseramorigináriasdeMichonga,nasterrasdeChicucura,umchefemaravedoimpérioKalonga.MeloeCastrosalientavaafacilidadedeobter, a trocode presentes, a autorizaçãodos poderes políticos africanos paraa exploração do cristal, que não era valorizado por eles.No entanto, advertiaque “pelo tempo adiante se deve prezumir, que a [facilidade] não haja pelaexperiencia,quetemosdequantoosCafresvemazellaraquillomesmo,queellesnenhumcazofazião, logoquepercebemfazermosnosalgumaestimação,paraaodepoisquereremvenderporexcecivopreço”69.Asapreciaçõesemtornodocomérciodecristaisremetiamparaapercepçãodosafricanosenquantoactoresdomercadocolonial,querapidamenteaprendiamovalordasmercadorias.Porém,asobservaçõessobreasdificuldadestécnicasdeextracçãodoscristaissignificavamumarepresentaçãodosafricanoscomoseresindolentesedesprovidosdastécnicascriadaspelacivilização.Assim,paraAntóniodeMeloeCastroaexploraçãodoscristaissópoderiaserexecutada“porpessoasmaisinteligentes,edeligentes,queosCafres,queporevitarmayortrabalhoapanhãooqueachãomaisáflordaterra,equebrãomuitasvezesosmesmospedaçospormenores,que sejão, se achão

67 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42.

68 Cartadogovernador-geraldeMoçambiquePedroSaldanhadeAlbuquerqueparaogovernadordosRiosdeSenaAntónioManueldeMeloeCastro,19deNovembrode1782,AhU,Moç.,cx.37,doc.49.

69 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,15deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

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qualquerpiquenadificuldadeparaostirarinteiros”70.Tambémnestecaso,osabereuropeueravalorizadoeoseudesconhecimentonestapartedeÁfricareforçavaaimagemdosafricanoscomoseresfalhosdeinteligênciaediligência.

Osmetais,enomeadamenteaquelesdeelevadovalorcomercial,constituíramigualmente um objecto da história Natural e a sua procura nos territóriosultramarinosfoiumdosfitosdacoroaportuguesa.Emrespostaàssolicitaçõesdo governador-geral, para que fosse averiguada a viabilidade económica deos conduzir para a Ilha de Moçambique71,António de Melo e Castro iniciouindagaçõessobreosmetaispresentesnosRiosdeSena,oqueconduziu,comoseveráadiante,aoseuinteressepelosartefactosproduzidospelosafricanosapartirdessematerial.Essapesquisainiciou-seem1783,quandoelerelatouessesmetais,numacartaqueparecetersidoperdida72.Noanoseguinte,enviouváriasamostrasaMartinhodeMeloeCastroparaqueasuaqualidadepudesseserapreciadanoreino,enquantoarelaçãoqueasacompanhavadavacontadascondiçõesdasuacirculaçãocomercial.OcaixoteentãodespachadocontinhaumabarradecobrefundidodeLuenge(Ocuni),dondechegavaàfeiradoZumbo,edoispãesdecobrefundidodasminasdeManica,queproduziamometalemmenorquantidade.Emambasasfeiras,ocobreeraadquiridopor16$000réisparaservendidoa20$000nasvilasdeTeteeSena73.Ointeressepelofuncionamentodomercadocolonialdecobreestavaexplícitonaapreciaçãodaqualidadedestesprodutosedassuascondições de comercialização. O que se pretendia era integrar a produção decobreafricananaeconomiadoimpério.

Paradoxalmente,oouro,queconduziraosportuguesesaointeriordaÁfricaOrientalnoséculoXVI,nãomereceuinicialmenteaatençãodeAntóniodeMeloeCastro,emboraelesetivessepreocupadoemrelataradiminuiçãodaquantidadedemetaltransaccionadonacapitania74.Amineraçãoeacomercializaçãodoouroconstituíamactividadescorrentesebemconhecidas,peloquefoiprovavelmenteporestarazãoqueelenãoseempenhoueminvestigarometaldopontodevistaeconómico, encarando-o apenas como “raridade” da natureza. De facto, foicomocuriosidade,que,em1784,eleincluiunasespéciesencaminhadasparao

70 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,15deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

71 Cartadogovernador-geraldeMoçambiquePedroSaldanhadeAlbuquerqueparaogovernadordosRiosdeSenaAntónioManueldeMeloeCastro,19deNovembrode1782,AhU,Moç.,cx.37,doc.49.

72 Essainformaçãoterásidoincluídanumacartade8deMaiode1783.VercartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42.

73 AntóniodeMeloeCastro,“RellaçãodascouzasquenaprezentemonçãoremeteaoIllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMelloeCastro,oGovernadordosRiosde sennaemocaixoten.º3º”,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42.

74 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntónioManueldeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,6deJunhode1782,AhU,Moç.,cx.38,doc.57.

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museudeLisboa,extraídadaminadeCassunsa,anortedeTete,umapedracujoatractivo radicava em revelar como o ouro estava “formado, ou conglutinadonapedrapelaproprianatureza”75.Noanoseguinte,ecomomesmofito,enviounovapedracrivadadeouro,maiordoqueadirigidanoanoanterior76.Masapenasem1786,Melo eCastrodespachou amostras deouro, relevantes dopontodevistadoconhecimentoeconómicodaregião.Dezfrasquinhosexibiamometalextraídodeváriasminastrabalhadaspelosescravosdosmoradoresportugueses,asquaiseramlocalizadasanortedoZambeze,situaçõesdeCassunsa,Maxinga,Michonga,PembaeCaboraBassa,oufornecidopelosmercadoresafricanosqueviajavamparaasregiõesdoplanaltokaranga,comoeramoscasosdasespéciesobtidasnasminasdeButua,Sanhate(tambémemButua),MuzezuroseManica,aquirecolhidasnasmargensdosriosRevuèeMutare77.Nestaremessa,nota-sejáapreocupaçãoemfornecerumageografiaeconómicadoouroeapurarovalordasdiversasminas,associadoaoobjectivodeexploraropotencialeconómicodeÁfrica.

AimagemdeÁfricaOrientalconstruídaapartirdasreflexõesdeMeloeCastroemtornodosrecursoseconómicosremete,portanto,paraumcontinenterico que interessava aPortugal explorar,mesmoque para o fazer tivesse detransportarparaaíhomensconhecedoresdastécnicasquepermitiamaintegraçãoda regiãonaeconomiado império.De facto, a representaçãodominantedosafricanosrelacionadacomoaproveitamentodessesrecursoseradesfavorável,embora permanecesse uma certa ambivalência acerca das suas capacidadestécnicas.Eleseramcapazesde transformara terraemsaloumineraroouroe o cobre, mas revelavam-se incompetentes para extrair adequadamente oscristais ou trabalhar a madeira. Prevalecia a concepção de que os africanoseram desprovidos de tecnologia ou dominavam apenas os seus rudimentos.Mas, emergia a ideiadequeerapossívelpelo ensinodas técnicas europeiascolocá-losnocaminhodoprogresso.Estaperspectivaaproxima-odoconceitode civilização das Luzes, que implicava a marcha progressiva do génerohumano desde a selvajaria original ao estado de civilizado.Ao colonizador

75 António de Melo e Castro, “Rellação de algumas piquenas produçoens da natureza, que naprezentemonçãoremeteaoIllustrissimo,eExcelentissimoSr.MartinhodeMello,eCastro,oGovernadordosRiosdeSenna”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

76 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,15deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

77 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,3deDezembrode1786,AhU,Moç.,cx.52,doc.60;AntóniodeMeloeCastro,“RelaçãodasdezamostrasdeourodeoutrastantasminasdosRiosdeSenna,queremetteoGovernadoreCapitãoGeneraldeMossambiqueAntonioManueldeMelloeCastroparaoGabinetedahistorianaturaldeSuaMagestadeFidelissima”,3deDezembrode1786,AhU,Moç.,cx.52,doc.60.

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cabia o poder de civilizar os africanos, incapazes de se civilizarem a sipróprios78.

Artefactos humanos e povos africanos

De facto, na sociedade europeia setecentista, o controlo sobre o meio ea capacidade de construir a partir de matérias-primas tornaram-se elementosessenciais para avaliar e classificar os povos. O inventário dos artefactosproduzidos por cadapovo era omodode inserir a suaproduçãono comérciocolonialedeostirardainércia,integrando-osnosrumosdacivilização79.ComoargumentouM-N.Bourguet,atravésdacirculaçãodebenserapossívelàEuropadifundir“omodelouniversaldecivilização”80.

As próprias instruções de viagem preconizavam o “conhecimento físicoe moral dos povos”81, mapeando diversos itens que interessavam à históriaNatural,comoadescriçãodassuasproduções,armas,vestuárioeinstrumentos82.Nessecontexto,AntóniodeMeloeCastroempenhou-seemcolectarartefactosde cobre e ferro, não só, como ficou dito, para o secretário de Estado fazerapuraraqualidadeintrínsecadosmetais,masigualmenteparadaraconheceras“manufacturas,aqueosnacionaesdestecontinenteoscostumãoparaseuuzo,ecomercioreduzir”83.OaperfeiçoamentodospovoserademonstradopeloapurodassuastécnicaseoenviodessasobraspermitiaconferirograudeprogressodosafricanosdovaledoZambezeeavaliarasuainserçãonomercadocolonial.

Todavia,evidencia-setambém,notipodeobjectoscoligidos,acuriosidadepelaculturadassociedadesafricanas.NascolecçõesendereçadasaLisboa,em1784, encontravam-sevários artefactosde carácter etnográfico, cujadescriçãoAntóniodeMeloeCastroalinhoueminventárioscomonomelocal,afunçãoeopovoouregiãoprodutora,preocupaçãoqueradicavanamesmatendênciadeclassificaçãodahistóriaNatural.Nessa remessa,ele incluiuadornosdecobreusadosnaspernasenosbraçospelospovosdosuldoZambeze,osquaisdestrinçoudeoutros,asmanilhasde ferrocaracterísticasdo territóriomarave,anortedorio.Eoseunúmeroera,igualmente,relacionandocomoestatutosocialdecadaindivíduo,comoeleexplicouemrelaçãoàsmanilhas“dequeuzãoemquazitodo

78 Noentanto,opróprioconceitodecivilizaçãoeracheiodeambiguidades.VerMichèleDUChET,anthropologie...,cit.

79 RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,pp.244-245.80 Marie-NoëlleBOURGUET,“Oexplorador”,cit.,pp.214-215.81 Domingos Vandelli, “Viagens Filosoficas ou Dissertação sobre as importantes regras que o

FilosofoNaturalistanasperegrinaçõesdeveprincipalmenteobservar”,1779,ACL,SérieVermelha,n.º405,inAnaLúciaRochaBarbalhodaCRUZ,Verdades...,cit.,Anexos.

82 Ver,porexemplo,Marie-NoëlleBOURGUET,“Oexplorador”,cit.,p.235.83 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstado

MartinhodeMeloeCastro,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42.

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estePais tantoosnegros,comoasnegrasparaornatodaspernasemmais,oumenosquantidade,equantosmaismilhorparaelles,desortequemuitoscobremdestasmanilhasquazitodaapernadesdeojoelhoatheope”.Adiversidadedessesobjectosera, assim,associadaacontextosculturais epolíticosespecíficos.Osinstrumentosagrícolas,aindaconformeasinstruçõesdistribuídasaosnaturalistas,deveriam figurar igualmente no conhecimento dos povos.António de Melo eCastroencaminhoujuntamenteduasenxadasdeferrofabricadaspelosmaraves,destrinçando-as de dois exemplares maiores e de formato bicudo distintivosde Manica84. As remessas de artefactos de produção local para Lisboa e asinformaçõesqueasacompanhavamapontamparaumaimagemdosafricanosqueadmiteanoçãodaespecificidadecultural.Aoidentificarospovosqueproduziameutilizavamessesobjectos,MeloeCastroconferiaaosafricanosumaidentidadeculturalepolítica,distanciando-sedascategoriasde“gentios”ou“bárbaros”comqueosreferianoutrostextos85,bemcomodaamálgamauniformizadoraassociadaaosestereótiposdifundidosporváriosgénerosdiscursivosproduzidosnaEuropadeSetecentos.

Aospoucos,AntóniodeMeloeCastrofoiolhandoparapeçascujointeresseextravasavaofitopuramentecomercial,mesmoseilustrativodeumaeconomiaempotência,eosinteressescoloniaismaisimediatos.Essesprodutoseraminsígniasdepodereartefactosdeguerra,cujarelevânciaeraapresentadacomouminstrumentoparadesvendarospovosafricanosparaoseuropeus.Particularmentesignificativaseafiguraasuajustificaçãoparaaremessa,em1785,deumacaixotecomobjectosmarciais.EleconsideravaquenãoseriadodesagradodosecretáriodeEstado“overaonaturalasarmas,dequeuzãotantonapaz,comonaguerraamayorpartedospovos,quehabitãoestesvastoscertoensdaAfrica”.Eacrescentavaterdecididoincluirmaisalgumascoisas“porachar,queellasdizemrespeitoaomodo,comqueosmesmospovossecostumãoparamentarparaaguerra,ecomoosseusuzos,quevãoexplicadosnamesmarellação,sãototalmentediferentesdoseuropeos,julgoquesempreoseuconhecimentopoderámereceralgumaestimaçãoaomenospelanovidade,quepoderiãoservirostaesistrumentosparaaugmentaracolecçãodoRealMuzeo, vistoque tambemasobrasde semelhantenaturezapodem ternelleoseulugar”86.Longedasconsideraçõespejorativasemrelaçãoaoprogressotécnicodosafricanospresentesnoutrostextosdeíndoleutilitária,AntóniodeMelo

84 AntóniodeMeloeCastro,“RellaçãodascouzasquenaprezentemonçãoremeteaoIllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMelloeCastro,oGovernadordosRiosde sennaemocaixoten.º3º”,7deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.42.

85 Ver,porexemplo,cartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,4deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.38;cartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,10deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.54.

86 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,11deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.56.

EUGÉNIARODRIGUES176

eCastrovalorizavaessesobjectoscomoveículosparaexibirasdiferençasdessespovosemrelaçãoaosconhecidoseuropeus.Nãosetratavaapenasdeconhecerasidentidadeseasdiferençasdeaspectosanatómicoseculturais,capazesdecriaruma taxionomiadospovos87,masde reconhecer aospovosafricanosum lugarno conjunto universal.A interacção comos africanos, emais concretamente oconfrontocomassuasproduçõesqueinteressavamàhistóriaNatural,viabilizavaa formulação de juízos que introduziam descontinuidades na representação deÁfricaedosseuspovos.Esteeraumcaminhoqueosnaturalistasintegradosnasviagensfilosóficasounoutrasexpediçõescientíficastinhammaisdificuldadesempercorrer.Nesse sentido, a remessa de espécimes feita porAntónio deMelo eCastroultrapassavao fitoatribuídoanaturalistascomoaAlexandreRodriguesFerreira, que ao debruçar-se sobre os povos da América pretendia inserir aprodução de artefactos no comércio colonial88. Na sua relação dos artefactosdos“povosdestaAfricaOriental”,AntóniodeMeloeCastroindicavaparacadaobjectoumadesignaçãointeligívelparaoseuropeus(arco,flecha,etc.)ou,nocasodenãoencontrarcategoriaseuropeiasequivalentes,asuadescrição,juntandoemrelaçãoaalgunsdelesoseunomeafricano.Aessaidentificaçãodosespécimes,eleacrescentavaopovoqueoutilizava,omaterialdefabrico,omododeocolocarnocorpoeosseususossociais,incluindoofactode,eventualmente,constituíreminsígniasdepoder89.Aoalinharessesobjectos-imagemeleparticipavanoprocessodeproduçãode“uminventárioeclassificaçãovisualdospovosultramarinos”90,decertomodocomparávelaodofabricodeimagensproduzidaspelosdesenhadoresdasexpediçõesdehistóriaNatural.

A natureza e a medicina africana

Conquanto as reflexões relativas aos artefactos enviados para LisboaapontemparaumarepresentaçãodospovosdaÁfricaOrientalmaisfavoráveldoqueaquelatransmitidanoutrostextos,foinodomíniodamedicinaqueAntóniodeMeloeCastromanifestouumamaioradmiraçãopeloconhecimentoproduzidopelosafricanos.

Aparentemente, as práticas terapêuticas usadas na África Oriental nãodespertaramaatençãodeAntóniodeMeloeCastroquandoelechegouàregião.Mas,em1784,ele recolheuparaenviarparaLisboaumcaixotedeespécimesque lhe pareceram dignos de figurar no museu “não tanto pela sua raridade,

87 Sobre a criação de uma taxionomia dos povos por meio das viagens filosóficas, ver RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,pp.227-257.

88 RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,p.244.89 António deMelo eCastro, “Rellação de algumas armas e ostensilios, de que uzão osCafres

habitantes dos grandes Certoens, que confinão em dilatadas distancias com os districtos doGovernodosRiosdesenna”,11deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.56.

90 RonaldRAMINELLI,Viagens...,cit.,p.219.

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quantopelassuasvirtudesquemuitoslhesatribuem”.Apropósito,ogovernadoropinava existiremno continente dosRios de Sena “muitas couzas raras, e demuita estimação”91. Efectivamente, o recurso aos remédios africanos estavamuitodivulgadonasociedadecoloniale,emboraamedicinaafricanaconstituísseumdomínioreservadoaváriosespecialistas,asvirtudesdosseusmedicamentoscirculavamentreosindivíduosquesesocorriamdela.

O catálogo dos produtos medicinais organizava-se em torno dos “seusnomes, virtudes, e lugares donde se extrahem”.Ao todo, eram apenas cincoembrulhosde“piquenasproducçoensdanatureza”deorigemanimalemineral,num total de sete exemplares. A descrição desses produtos remetia para umjulgamentoabonatóriodassuasqualidadesterapêuticasoupelomenosparaumaatitudedeaceitaçãodaveracidadedaspropriedadesquelheseramatribuídasnopaís.“Dizemquetemparticularvirtude”,“lhedãoavirtude”,“temasmesmasvirtudes” ou “excelente remedio” foram os descritivos então empregues92.Emboraestasapreciaçõesaludissemaumanaturezaafricanacompotencialidadesterapêuticasqueimportavainvestigar,osactoresdosprocessosdecuraestavamquaseausentesdaavaliaçãodogovernadordosRiosdeSena.

O interessedeAntóniodeMeloeCastropelapesquisadaspropriedadescurativasdanaturezadaÁfricaOriental,emconsonânciacomacuriosidadedasLuzesemrelaçãoàsplantasmedicinaiseàsuaaclimataçãonoutrosespaços93,tornou-semaisvincadoem1785.EmnovamissivadirigidaaosecretáriodeEstado,elepassouaenfatizaroconhecimentodas“raizeseoutrascoisasmedicinaes”como uma matéria digna da atenção dos que “se empregão na indagação dascouzasnaturaesparaacolecçãodoRealMuzeo”,justificandoporquedecidiradespachar um caixote com “todas aquellas raizes, e couzas mais virtuozas,emedicinaes”94.OdiscursodogovernadordosRiosdeSenaabrianovasviasde interesse pelas potencialidades do mundo natural da África Oriental, quedeixavadeserencaradocomoestéril,talcomoeleodecretaraquandoasconchasconstituíamocritériopreferencialdeapreciação.Anaturezaafricana,enquantofornecedoraderemédios,passavadecididamenteamerecerfigurarnomuseudeLisboaapardasquerepresentavamoutraspartesdomundoenoqueconcerneàmedicinadeveriamestarrepresentadoselementosdosreinosvegetal,mineraleanimal,talcomoindicavamasconcepçõesdesteperíodo.

91 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

92 António de Melo e Castro, “Rellação de algumas piquenas produçoens da natureza, que naprezentemonçãoremeteaoIllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMello,eCastro,oGovernadordosRiosdesenna”,5deJunhode1784,AhU,Moç.,cx.46,doc.40.

93 Marie-NoëlleBOURGUET,“Oexplorador”,cit.,p.233.94 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstado

MartinhodeMeloeCastro,14deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.59.

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Nocaixotequeeleentãodespachou,estavamencerradostrezeespécimes,onzedeorigemvegetal,comoraízesoucascasdeárvores,ummineral,a“pedraquadrada”,eumúltimoanimal,apontadeabada.Arelaçãodessesitensseguiaoplanodescritivousadoparaoscurativosenviadosumanoantes,sematenderàtaxinomialineana.Todavia,diversamentedosnomesafricanosabonadosparaasamostrasdemadeira,AntóniodeMeloeCastroempregouanomenclaturaemvoganasociedadecolonialdosRiosdeSena,aqualaplicavaàsplantasafricanasos nomes em português, mesmo que eles fossem a tradução de designativosnativosque incorporavamaqualidademedicinaldaplanta.Assim,ele referiu,porexemplo,a“árvoredeparto”,explicandoqueeraonomequetinhaentreosafricanospelassuasvirtudesemfacilitarospartosdifíceis.Emgeral,osnomesportugueses empregues nesta lista traduziam já um longo convívio com essasplantasmedicinaisqueeramencontradasemváriaspartesdomundooucirculavamentreosterritóriosdoimpério.Denovo,paracadaremédio,eleesclareceuonomeporqueeraconhecido,olocalondeseobtinha,omododeoaprontareomalquedeveriacurar.Noentanto,divisa-seuminvestimentoacrescidonainvestigaçãodosmedicamentos,denotadopelasnarrativasmaislongasnoqueconcerneàsuapreparação,incluindoemalgunscasosaindicaçãodasquantidadesadequadas,e as suas diversas propriedades terapêuticas.Em simesmas, essas descrições,conquantopoucoabrangentes,constituemtambémmateriaisimportantesparaahistóriadasdoençasedaspráticasmedicinaisusadasnovaledoZambeze.OsprodutosincluídosnestaremessaeramobtidosnasfeirasdoZumbo,MichongaeManica,cumprindoasrotascomerciais.

Ao proceder à descrição desses produtos, Melo e Castro forneciacomentários que davam visibilidade às práticas de cura locais e sustentavamumarepresentaçãopositivadosafricanos.Emparticular,ele jánãosefirmavatanto em expressões como “dizem”, presentes na relação endereçada no anoanterior,antesevidenciavaocréditoqueatribuíaàspropriedadesimputadaspelosafricanosacadadroga.Porexemplo,sobrearaiz-de-cobra95,eleasseguravaqueeraum“excelentepurgante”;quantoàraizdeAbutua96,afirmavaser“excelentepara todaaqualidadede inflamaçãoseheexterna”;abatatinhadaMichonga,tal como a famosa calumba97, era “grande remedio para febres contínuas”.E,denotandoumaforteconfiançanosconhecimentosafricanos,elecomunicavaquea raiz de esquinência, usada para osmales da garganta, podia ser conservadaporalgumtempoemazeitedeoliveira,masapenasdepoisdeescaldada,comoa

95 Provavelmente, a Trixis ophiorhiza, a arbusto erecto ou trepadeira da família das compostas,nativodoBrasilecujaraízéusadacontraamordeduradecobra.

96 Tiliacora chrysobotrya Welw., planta trepadeira da família das menispermáceas, tambémconhecidaporparreirabrava.Onomepareceadvirdotupi,emboranaÁfricaOrientalexistaaregiãodeAbutua.

97 Jarorrhiza palmata Lam., planta herbácea da família das menispermáceas, nativa deMoçambique.

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enviava.Mais,advertiaque“afirmãoosnaturaesdopais,quetemconhecimentodas virtudes das raizes”, que ela se transmutava emveneno emcontacto comqualqueróleo,senãofossepreviamentefervida98.

ÉpossívelqueaadesãodeAntóniodeMeloeCastroàscurasafricanastivesseresultadodeelepróprioasterexperimentadoduranteasinúmerasmaleitasqueoacometeramnosanosvividosnosRiosdeSena99,ondemédicosemedicamentoseuropeus eram raros e o recurso às terapêuticas africanas estava enraizado nasociedadecolonial.qualquerquetenhasidoasuamotivação,aspráticasmedicinaisdospovosdaÁfricaOrientalconcitaramprogressivamenteasuaaprovação.ÉcertoqueeleesperavaqueasqualidadesapontadasaessesremédiosfossemvalidadasemLisboapara,assim,osconhecimentosdosmédicosafricanosseremincorporadosna ciência europeia100. No entanto, as apreciações que ele emitia não só sobreestesprodutos,masprincipalmentesobreosafricanosque investigavamassuaspropriedades,remetiamparaoacolhimentodamedicinaafricanacomoumsaberlegítimo.Eleconcluíaomemorialescritosobreosprodutosmedicinaisproclamandoa existência de múltiplas ervas usadas no tratamento de enfermidades graves.Mas,alertavaparaofactodeassuas“grandesvirtudes”seremdesconhecidasdoseuropeusdevidoàresistêncialevantadapelosespecialistasafricanosadesvendarossegredosdasuamedicina.Aafirmaçãodaspotencialidadesterapêuticasencerradaspela natureza africana era acompanhada pelo reconhecimento dos especialistasde cura africanos, os n’ganga, que não eram associados à superstição, antesequiparadosaosmédicoseuropeus:“[os]gangas,quesãocomoentrenósmedicos,oucirurgioens,porquesãoosqueoscurão,etemconhecimentodasvirtudesdasditasraizes,eervas”101.MeloeCastropretendia,portantoincorporarnãoapenasosprodutosmasosconhecimentosmédicosproduzidospelosafricanosnamedicinaeuropeia.AadesãoàmedicinaafricanaestavapresentenageneralidadedaelitecolonialdosRiosdeSena,fosseasuaorigemlocal,europeiaoudeoutraspartesdoimpério102.Noentanto,noséculoXVIII,nãoeracomumnoquetocaaosquetransitavam pelos Rios de Sena, nomeadamente os governadores oriundos da

98 AntóniodeMeloeCastro,“RellaçãodevariasRaizes,ealgumascouzasmedicinaes,queremeteaoJllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMello,eCastrooGovernadordosRiosdeSennaAntoniodeMello,eCastro”,14deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

99 Ele queixou-sedas suas contínuasmoléstias, que lhe servirampara, em1783, pedir que fosserendidonocargo.CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,10deMaiode1783,AhU,Moç.,cx.42,doc.6.

100 CartadogovernadordosRiosdeSenaAntóniodeMeloeCastroparaosecretáriodeEstadoMartinhodeMeloeCastro,14deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.59.

101 AntóniodeMeloeCastro,“RellaçãodevariasRaizes,ealgumascouzasmedicinaes,queremeteaoJllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMello,eCastrooGovernadordosRiosdeSennaAntoniodeMello,eCastro”,14deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

102 EugéniaRODRIGUES,“Umacelebradanegra,quesechamavaJoana”.RituaisafricanoseelitecolonialemquelimanenoséculoXVIII”,inpovos e Culturas,n.º11(2007),pp.231-254;EugéniaRODRIGUES,“ColonialSociety,WomenandAfricanCultureinMozambique,c.1750-1850”,

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Europaoudosterritóriosdoimpérioportuguês,manifestaremessaaceitaçãodastradições culturais africanas de cura. Por exemplo, outro governador dos RiosdeSena,FranciscoJosédeLacerdaeAlmeida,oriundodoBrasileformadoemCoimbra,olhousempremuitocriticamenteamedicinaafricanaeasuaadopçãopelosmoradoresdosRiosdeSena,aquemrotuloudesupersticiosos103.

AsinvestigaçõesdeAntóniodeMeloeCastroemtornodamedicinaafricanaintroduziam,portanto,novosrecortesnarepresentaçãodosafricanosemergentenoconjuntodosseusescritos.Mesmoosembrulhosemquedespachouosremédiospara o reino sustentaram a ideia de uma tecnologia equivalente à europeia,conquantopopular,quecontradiziaafugaaotrabalhoeaincompetênciatécnicaque lhesatribuíanoutrasocasiões.Algunsespécimeseramacondicionadosemsacosdeconfecçãolocal,os“quissapos”, fabricadoscomumafibravegetal,o“michéu”,queMeloeCastro informavaservirpara fazerestaeoutrasmuitasmanufacturas,“bemcomonoAlgarvesecostumafazerdasfolhasdapalmeira”104.Acomparaçãocomasproduçõesdoreinotornavaasobrasafricanasinteligíveispara os destinatários das remessas em Lisboa. Mas, essa homologia tambémaproximavaasmanufacturasdosafricanosdasdoseuropeus.

OsescritoseascolecçõesdehistóriaNaturaldovaledoZambezeproduzidosporAntóniodeMeloeCastroremetemparadescontinuidadesqueintroduzemvariantesnasuaimagemdeÁfricaedosafricanos.Partindodasideiasfirmadasna visão deÁfrica e dos africanos comque chegou ao vale doZambeze, elefoireconfigurandoassuasleiturasemfunçãodasrealidadeshumanascomquefoi interagindoe, caminhandopara apreciaçõesmaispositivas.Acoexistênciadas ideiasdequeeraportadoredaquelasquefoiconstruindoconduziaaumarepresentação dos africanos atravessada de contradições e ambivalências.De facto, em diversos textos, ele continuava a qualificar os africanos como“bárbaros”, enquantoa suavivência localo conduzia amanifestar atitudesdesimpatia e até de admiração no contexto das suas investigações relacionadascom a história Natural, nomeadamente no que respeitava aos artefactosculturaise,sobretudo,àmedicina.ImportafrisarqueessasapreciaçõespositivasfundadasnahistóriaNaturalnãoexcluíamprojectosdecolonizaçãodeÁfricae dos africanos, que estavam, aliás, subjacentes a muitas das suas propostasdereforma.

inClaraSARMENTO(dir.),From Here to diversity: Globalization and intercultural dialogues,Newcastle-Upon-Tyne,CambridgeScholarsPublishing,2010,pp.253-274.

103 Francisco JosédeLacerdaeALMEIDA,”DiariodaviagemdeMoçambiqueparaosRiosdeSena. 1797-1798”, in Sérgio Buarque de hOLANDA, diários de Viagem, Rio de Janeiro,ImprensaNacional,1944,p.156.Paraoutrasreferências,verJoséRobertoBragaPORTELLA,descripçoens...,cit.,pp.116-118.

104 AntóniodeMeloeCastro,“RellaçãodevariasRaizes,ealgumascouzasmedicinaes,queremeteaoIllustrissimo,eExcelentissimoSenhorMartinhodeMello,eCastrooGovernadordosRiosdeSennaAntoniodeMello,eCastro”,14deJunhode1785,AhU,Moç.,cx.49,doc.64.

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ASOCIEDADECOLONIAL:ESTILOSDEVIDAEUROPEUSEMMOÇAMBIqUESETECENTISTA

luís frederiCo dias antunes*

quemsedebruçasobreasociedadecolonialnãopodetercomoparâmetroasnormasqueordenavamaestruturasocialvigentenametrópole,namedidaemquearealidadecolonialapresentavaaspectosvisivelmentediferentes,entreosquais, avultavamadivisãodo trabalho eospadrõesde sociabilidade edereligiosidade nos domínios ultramarinos, frequentemente evidenciados pelaprecariedadedaevangelizaçãoeporconcepçõesdedevoçãoedeconvivênciasincréticas.

Obviamente,talnãosignificaqueostraçoscaracterísticosevinculativosàmetrópolefossemnegados,nemquenãoseseguissemasprincipaisorientaçõestraçadas no Antigo Sistema Colonial, patenteadas no capitalismo mercantil,no escravismo como base da sociedade, e ainda, na monocultura, na grandepropriedadeenamiscigenação1.

Noessencial,foiestareciprocidademútua–caráctermarcantenarelaçãoentre a sociedade e a administração colonial -, que determinou as relaçõesentre o público e o privado, e foi, também, sob este modelo interactivo que,progressivamente,seconstruiuoimagináriopolíticodasociedadeedosdiferentescorpossociais.

* InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical–Lisboa.1 CaioC.BOSChI,«Apontamentosparao estudodaeconomia,do trabalhoeda sociedadena

MinasColonial», inanálise e Conjuntura,Belohorizonte,vol.4,n.º2e3,Maio-Dezembro,1989,p.52.

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DeacordocomJúniaFurtado,acolonizaçãodoBrasil-áqualeuacrescentariaadosoutrosdomíniosportuguesesultramarinos-,quefoidaresponsabilidadedoEstado e da Igreja, caracterizava-se, entre outros aspectos, pela instituição desímbolosculturaisqueevidenciasseminequivocamenteaascendênciaeuropeiaediferenciassemopapelculturaldocolonizadoredocolonizado2.

Convém, portanto, ter em conta que a construção da sociedade colonialexigiu a presença de elites abastadas, proprietárias de terras e de escravos,interessadasnoprocessode fixaçãoeque, tornando-severdadeirosagentesdesoberaniadaCoroa,reuniamascondiçõesparapreencherosprincipaisquadrosdaadministraçãonosdiferentesespaçosultramarinos.Noquerespeitaaosaspectossociais e da vida quotidiana, estas elites procuravam impor os seus modelosde sociabilidade, conferindo, assim, uma feição própria e mais complexa àssociedadescoloniais.

O objectivo principal deste breve trabalho é, apenas, fornecer algunsapontamentossobrea formacomoviviamosportuguesesemMoçambiquenoséculoXVIII-notasqueprocuramavaliaremquemedidaoestilodevidaeosvaloresculturaiseuropeusreagiram,porexemplo,aumacerta«cafrealização»decostumes-,paraquepossamosentendercomoéquemuitosdesseseuropeusinteragiramcomÁfricaecomosafricanos.

Vejamos:

1.Nassuasmemórias,osecretáriodaSecretariadeMoçambique,AntónioPintodeMiranda,dáaconhecerdaseguintemaneiraaformacomoviviamoseuropeusemMoçambique,emmeadosdoséculoXVIII:

«OTratamentodosnossosÉropeoshétodoafidalgadodesdeomaisinfimoathéomaisSuperior.DesprezãoosSeusofficiosquandoellespodiãopassarallegrementeavida;(…)quazitodosdizemquedescendemdeprogenitoresillustrese fidalgos tituláres;masSãoasSuasacçoenshumildes.Allemdaspropriasmulheres nãodeixãodeprocuraremoutras.Servemsse algunsdasportas para dentro com100 emaisEscravas, (…). Frequentão os jogos, eosdãoemCazaemdemazia,eexcessoServindolhetaisdeSuatotalruina.AndamdecontinodemanxilasquetemaSemelhançadasRedesdaAmericaeasmaisdasvezesparapartestãopoucodistantes»3.

2 Júnia FURTADO, «O outro lado da Inconfidência Mineira: Pacto Colonial e Elites Locais»,in laboratório de pesquisa Histórica - revista de História, Ouro Preto, v. 4, 1993-1994,pp.74-75.

3 AntónioPintodeMIRANDA,«MemóriasobreacostadeÁfrica(c.1766)»,inAntónioAlberto(Banha)deAndrade(introdução,ediçãoenotas), relações de moçambique setecentista,Lisboa,AgênciaGeraldoUltramar,1955,p.253.

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Outrasfontesmaisfinas,acorrespondênciaoficialquotidianae,sobretudo,ostestamentoseinventáriospost-mortem,dãocontadaprolongadaausênciadafamíliaedocírculodeconvivênciasocialnametrópole,dainadaptaçãoaoclimatropical,daalteraçãodosusosecostumes,dapresençadaescravidão,damudançadehábitosalimentaresedaescassezdebensmateriaisquetornavamavidamaisaprazívelemÁfricaparaosdiferentesagentesegovernantesoriundosdoReino.

Foinaintersecçãodeummundocommarcassenhoriais,feitode«donasedesenhores»,comummundoafricanomarcadopelaescravatura,queseedificou,sobretudonazonadosprazosdaZambézia,asociedadecolonialmoçambicana4.Umasociedade identificadacomuma formadevidahíbridadesenvolvidapordonas,mozungoseprazeiros,umaespéciedearistocraciarurallocal,detentoradelendáriospodereseriquezas,associadosaosextensosterritóriosquepossuíamnaZambézia.

Ahistoriografiaapresentaosprazeiroscomo forçaspolíticascomgrandeautonomia em relação à Coroa, alargando frequentemente os seus domíniosparaalémdasdoaçõesoriginaiseexercendoumpoderpolíticoeadministrativobastantevasto,aocelebraracordoscomasdiferentesautoridadesnativas,fomentarguerrasparticulares,instituiraleieaspuniçõesnassuasterras,muitasvezes,áreveliadosgovernadoresedaadministraçãomoçambicana.

Essa ampla liberdade política e capacidade para traçar as suas própriasnormasdeconduta,foramalgumasdasprincipaiscausasparaodesenvolvimentodeumaelite rural cuja actuaçãoprejudicava, frequentemente,os interessesdaCoroa,salvonamanutençãodasoberaniaportuguesanaregião.

A administração colonial moçambicana procurou, por diversos meioseemváriasocasiões, intervir e cerceara actuaçãodestaselites,naZambézia,delimitandoasdimensõesdassuasfazendas,forçandoaopagamentodosforosestabelecidos, ou pressionando os casamentos entre prazeiras, supostamentebrancas,emozungos5.Convémrelembrarqueotermomozungoincorporou,aolongodostempos,váriasacepções.SecomManuelBarreto(1667)ovocábulodesignavaosportugueses,queeram,genericamenteconsiderados,de«senhores»6,um séculodepois, o termo,não só consideravaosportugueses,mas, também,todososquesevestiameseexibiamcomoeles:mozungo,escreviaFranciscode Mello e Castro, em 1753, «era o nome que tínhamos entre a cafreria nãosóosPortuguezes,porqueaessesosdestiguemporMozungosdaManga,quehédaCorte,oquealudematodooReynodePortugal,mastambémaosmais

4 JoséCAPELA,donas, senhores e escravos,Porto,EdiçõesAfrontamento,1995,pp.67-101.5 CarlosSERRA (dir.),História de moçambique,Maputo,LivrariaUniversitária, 2000,p. 252;

RenéPELISSIER,História de moçambique,Lisboa,EditorialEstampa,1987,p.80.6 P.e Manuel BARRETO, «Informação do estado e conquista dos Rios de Cuama vulgar e

verdadeiramentechamadosRiosdeOuro»,11deDezembrode1667,inBoletim da sociedade de Geografia de lisboa,4ªSérie,1,Lisboa,1883,pp.33-59.

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vassallosqueandãovestidosaindaquesejãopretos»7,ou,ainda,comolembravaomemorialistaPintodeMiranda,porvoltade1766,Mozungossãoos«patrícios,filhosdealgunsportuguesesenaturaisdeGoafeitosemnegras.SãoamaiorpartedacordoscabouclosdoBrazil,eoutrospuramentenegros»8.

Este tipo sistema dominial dá origem ao que José Capela designou de ethos zambeziano,umpadrãosocialespecífico,caracterizadopelamestiçagem,que o autor denominava «por uma miscigenação biológica e cultural semparalelo»9.

NãocabeaquifalarsobrequandoecomosurgemasdonasdaZambézia,mas,apenas, referenciá-lascomoumadaspedrasbasilaresdosistemasocialque se instalou naquela região quando uma conjuntura específica impôs aoficialização do que passaria a ser conhecido como Prazos da Coroa10. AsdonasnaZambéziaeramfrequentementemestiças,filhasdeportuguesesedenegrasougoesas: InêsGraciaCardoso,CatarinadeFariaLeitão,SebastianaFernandes deMoura, InêsPessoadeAlmeidaCastelbranco,AnadeChinde,Macacica,InáciaBeneditadaCruz,foramalgumasdasmaiscélebres«donasda Zambézia», que, durante os séculos XVIII e XIX, herdaram e forjaramenormes fortunas, extensaspropriedades,muitas cabeçasdegadoe centenasdeescravos,acabandopordeterumgrandepodernasuaáreadeinfluência.NailhadeMoçambique,asdonaseramassenhoras,querelasfossembrancasounão.

7 AhU,moçambique,cx.8,doc.42,20deNovembrode1753.8 AntónioPintodeMIRANDA,cit.,p.250.9 JoséCAPELA,cit.,p.12.SobreosprocessosdemestiçagemnoBrasilveja-se,porexemplo,

de Eduardo França PAIVA e Isnara Pereira IVO (orgs.), Escravidão, mestiçagem e históriascomparadas, São Paulo: Annablume; Belo horizonte: PPGh-UFMG; Vitória da Conquista:EdiçõesUESB,2008.

10 JoséCAPELA,cit.,p.72.Sobreasorigenseaevoluçãodosistemadosprazossobodomínioportuguês veja-se entre outros estudos e obras as de Luís Filipe F. R.ThOMAZ, “EstruturapolíticaeadministrativadoEstadodaÍndianoséculoXVI”,inde Ceuta a Timor,Lisboa,Difel,1984,pp.207-245;AlexandreLOBATO,evolução administrativa e económica de moçambique. 1752-1763,Lisboa,AgênciaGeraldoUltramar,1957;Idem,Colonização senhorial da Zambézia e outros estudos,Lisboa,JuntadeInvestigaçõesdoUltramar,1962;Idem,“SobreosPrazosdaÍndia”,inactas do ii seminário internacional de História indo-português,Lisboa,I.I.C.T.,1985,pp.461-466;AllenISAACMAN,mozambique - The africanization of a european institution - The Zambezi prazos, 1750-1902,London,TheUniversityofWisconsinPress,1972;Idem,“TheprazosdaCoroa-1752-1830-afunctionalanalysisofthepoliticalsystem”,instudia,Lisboa,26,1969,pp.149-178;M.D.D.NEWITT,portuguese settlement on the Zambezi. exploration, land Tenure and Colonial rule in east africa,London,Longman,1973;LuísFredericoDiasANTUNES,«AlgumasconsideraçõessobreosPrazosdeBaçaimeDamão»,inanais de História de além-mar, vol. III,Lisboa,ChAM/FCSh/UNL, 2002, pp. 231-257;MariaEugéniaAlvesRODRIGUES,portugueses e africanos nos rios de sena. os prazos da Coroa nos séculos XVii e XViii,FCSh,UNL,2002(dissertaçãodedoutoramento).

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2. Nestadocumentaçãoperpassaaideia,nemsemprecorrecta,dequenãoexistiaquementrasseemMoçambiquepobrequedelánãosaísserico11.

Observemos,então,oquesepassavacomaacumulaçãopatrimonialdosgovernadores Pereira do Lago e Vasconcelos eAlmeida12. Se exceptuarmoso recheiodacasa (móveis, louçaseartigosdadispensa),verificamosqueosmetais preciosos, as patacas e as jóias dopatrimóniodeLago e deAlmeidaestavam avaliados em cerca de 65 contos de réis e em 9 contos de réis,respectivamente13.

ParaseterumaideiadagrandezadasfortunasqueambososgovernadoresdeMoçambiquedeixaramdeherança,compare-se,porexemplo,comareceitada alfândega da Ilha de Moçambique que, em 1777, contabilizou 79 contosderéisoucomareceitadaFazendaRealsobrearemessadefazendasparaosportosdeSena,SofalaeInhambane,em1781,avaliadaem16contosderéis.

Éevidentequeoscasosatrásreferidosconstituemparadigmasdegrandeacumulação de fortuna em África oriental setecentista, e estão longe, muitolonge mesmo, da generalidade dos bens e dos capitais dos que viveram efaleceramemMoçambique,nessaépoca,eaídeixaramregistodasuafazenda.

É,porisso,indispensávelterpresentequeosníveisderiquezadeamaioriadosportuguesesqueviveramemÁfricaestiveramdistantesdealcançaragrandezada fortuna que aqueles governadores deixarampor herança.Opatrimónio dafamíliadosargentodegranadeiros,LuísLopesPestana14,sapateirodeprofissãoenegociantedeescravos,ascendeua531mil réis;osbensdeJoãoBernardohignes15, que foi secretário do governador José de Vasconcelos e Almeida,foramavaliadosemcercade1contoderéis;asfortunasdomestredaRibeira,João Lopes Baguntes16, essencialmente construída no comércio de marfim epanosindianos,eainda,notráficodeescravos,bemcomo,adogovernadorde

11 AhU,moçambique,«ConsultadaJuntaGeraldoComérciodeMoçambiquesobreumacartadoVice-Rei»,cx.4,doc.20,17Outubro1722.

12 AhU,moçambique,«InventáriodosbenspertencentesaodefuntogovernadorBaltazarPereiradoLagoerespectivosleilões»,CaixaBaltazarPereiradoLago(1779-1854);AhU,moçambique,«TresladoempúblicaformadoInventarioeLeilãodosbensdodefuntoGovernadoreCapitãoGeneral,FreiJosédeVasconceloseAlmeida»,cx.36,doc.18,14deMaiode1781.

13 LuísFredericoDiasANTUNES,«ComocontinuaraserportuguêsemterrasdeÁfrica:quotidianoe conforto em Moçambique setecentista», in João FRAGOSO e Maria de Fátima GOUVÊA(orgs.),na trama das redes. política e negócios no império português, séculos XVi-XViii,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,2010,pp.485-524.

14 IANTT,FeitosFindos,JuízodaÍndiaeMina,JustificaçõesUltramarinas,África,mç.13,n.º7,cx.23.

15 IANTT,FeitosFindos,JuízodaÍndiaeMina,JustificaçõesUltramarinas,África,mç.4,n.º14,cx.9.

16 IANTT,FeitosFindos,JuízodaÍndiaeMina,JustificaçõesUltramarinas,África,mç.1,n.º14,cx.3.

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Sena,AntónioJosédeMelo17,encontravam-seestimadasemmaisde3contosderéis.

Muitolongedereflectirosníveisderiquezadametrópole,ageneralidadedasjóiasdosportuguesesqueresidiamnacostaorientalafricanailustrabemasimbioseentreumcertogostopeloestilodevidaepelamodaeuropeiaeorecursoaosbensmateriaisnativoseaumcertogostoexóticocomamarcadoÍndico.Éprovável que algumas destas jóias, frequentemente usadas naEuropa, tenhamsidotrazidasdePortugal.Tudoindicaqueostrémuloseoscordõesentrelaçados–designadosnosinventárioscomotramboladeirasetrasilis,respectivamente-,tenhamvindodoReino,poiseramjóiasmuitousadasemtodaaEuropa.Mas,emmuitosoutroscasos,asjóiaspoderiamperfeitamentetersidoproduzidasnaÍndia,ounoBrasil.Asmanilhasdeouroeasoiramascomseuspendentes,istoé,aspulseiraseasarrecadas,respectivamente,sãoexemplosdejóiasmuitousadaseprocuradasnaÍndia,sobretudonoGuzerate,comoobjectosdeadornoecomoformadeentesouramento.

Oselementosdotopodaelitegovernativanãoforam,noentanto,osúnicosemMoçambiqueausaremjóiaseapossuírempeçasdecorativasdeouroeprata.

SabemosqueJoãoLopesBaguntespodiasairàruavestidocomumacamisalisacompescocinhodeprataebotõesdefileiraedepunho,ambosdeouro.Seestivessefriocobria-secomumcapote,quepodiaserfechadocomumpardefivelasdeprata.Completavaaindumentáriaumamedalha,umrelógiodeprata,quemesmoavariado«faziafigura»,ossapatoseumsombreirodemão.

JoséFranciscodaFonseca,indivíduoquetinhafeitofortunanotráficodeescravosetransportedemarfimdaZambéziaparaacapital,enquantocapitãodascorvetasdaBaíaedeInhambane,e,maistarde,nocargodecapitão-morejuizdeManica,possuíaumpequenoconjuntodejóiasepeçasdeouroepratamuitointeressante e, de certa forma, revelador do gosto emaneira de viver de umasociedade.Paraalémdorelógiodebolsofrancês,daabotoaduradecamisa,dosbotõesdepunhodepedradecristalcomcasquinhadeouro,edatramboladeira,jóias que parecem estar muito na moda na segunda metade do século XVIII,FranciscodaFonsecanãodispensavaossapatoscomfivelasdeprata,nãoobstantevivernosconfinsdaZambézia.DeveriaserumdosbrancosmaisimportantesdaviladeManica.Usavaarmas,desdeasfacasdematoàspistolasdealgibeira,comcabosecoronhasdepratatrabalhadaepossuíatrêselegantesbengalasderotadaÍndia,algumasdasquaisencastoadasaprata.

JoséFranciscodaFonsecaera,também,umcuriosodamedicinae,talvezaté pudesse ter alguns conhecimentos técnicos que o habilitassem a tratar ecuraralgumasdoenças,traumatismoseafecções,pois,entreosvárioslivrosquedispunha, encontrava-se uma das obras do doutor Mirandela, nome pelo qual

17 IANTT,FeitosFindos,JuízodaÍndiaeMina,JustificaçõesUltramarinas,África,mç.19,n.º4,cx.33.

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eraconhecidoomédicodacortedeD. JoãoV18.Paraalémdisso,elepossuíaváriaslimaseferrosdetirardentes,tornosdearmarfixos,estojosdelancetasenavalhas,umaseringa,diversastesouras,e,ainda,trêsesgaravatadoresdeouroeprata:doisdelesparaescabicharosouvidoseooutroparalimpareesgaravatarosdentes.

Narealidade,sofrerdosdentes,noséculoXVIII,passardiasdesuplícioenoitesmaldormidasporcausasdedentespodreseinfecçõesnaboca,eraumadasfatalidadesqueatodospodiaafectar.Porexemplo,ogovernadorD.DiogodeSousaCoutinho(1793-1797)invocoudoresdedentesinsuportáveisparapediroretornoaoReino.Segundoocirurgião-mor,D.Diogosofriade«umaafecçãoescorbútica», uma doença muito vulgar em Moçambique, que lhe originavaa alteração das gengivas e a consequente queda de dentes, para além de lhecausarfebresaltaseprovocarviolentashemorragiasqueodeixavamasangrarconstantemente,oqueteria«degeneradoumalassidão,debilidadenosjoelhos,ocorpocomescamas,sintomasdeafecçãoleprosa»19.Indubitavelmente,oquehojepoderiaserconsideradaumasimplesdordedentes,amesma,séculosatrás,semmédicos conhecedoresda arte, poderia ser perfeitamente insuportável: osmédicosdeLuísXIV,por exemplo,«quebrarama suamandíbulana tentativadeextrairosmolaresapodrecidos»,eoarausteroqueGeorgeWashingtonexibenosseusretratos,dever-se-iaaousodeumadentadurapostiçaqueofaziaviversobdorconstante20.Nãosabemos,noentanto,seosenfermosachavamqueterFranciscodaFonseca,munidocomos seus instrumentosdedentista, erauma«bênçãodivina».EramfrequentesosclamoreselamentospelafaltademédicosemMoçambique, sobretudonaszonas interioresdaZambézia,porqueaqueles

18 Provavelmente,seriaolivrointituladoa Âncora medicinal para Conservar a Vida com saúde,dodr.FranciscodaFonsecahenriques,médicodeD.JoãoV,editadoem1721,e,maistarde,váriasvezesreeditado(1731,1754e1769).EranaturaldeMirandela,eporessarazãoeramaisconhecidopelodr.Mirandela,easuaobra,olivrododr.Mirandela(cf.FranciscodaFonsecahENRIqUES,a Âncora medicinal para Conservar a Vida com saúde,textomodernizadoporManoelMourivaldoSantiagodeAlmeidaeoutros,SãoPaulo,AteliêEditorial,2004.

19 Adelto GONÇALVES, Gonzaga, um poeta do iluminismo: biografia, Rio de Janeiro, NovaFronteira,1999,p.381,veja-seAhU,moçambique,caixa68,doc.69,25deAgostode1794.

20 ParaRobertDARNTON,asdentadurasdeGeorgeWashingtonseriamdemadeira(cf.os dentes falsos de George Washington. um guia não convencional para o século XViii, São Paulo,Companhia das Letra, 2005). Para outros especialistas, George Washington possuía váriosconjuntosdedentadurasqueactualmentefazempartedoacervodauniversity of maryland dental school museum(cf.http://www.virginia.edu/gwpapers/faq/gwteeth.htmlFotodeumconjuntodedentadurasdopresidenteamericano,completoecommolas).Umdasdentaduras, talhadaemmarfimeouro,desapareceuquandoareferidaUniversidadedeBaltimoreaemprestouparaestarpatente numa exposição organizada pelo smithsonian institution, em1976.Até hoje, não foirecuperada.Outrasdentaduraseramfeitasdediferentesmateriais,desdedentesdeporco,devacaedealce(cf.OcapítuloIdolivrodeJohnR.BUMGAMER,The Health of the presidents: The 41 united states presidents Through 1993 From a physician’s point of View,Jefferson,NorthCarolina,Macfarland&Company,1994)

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queexerciamtãonecessáriasecuidadosasfunçõesnãopassavamdeunscuriosossem nenhuma qualidade profissional, uns ignorantes e perigosos medicastros,que, segundo Lacerda eAlmeida, se viam alcandorados aos cargos de físicosmoresporindicaçãoouescolhadosenfermeirosdohospitaldeMoçambique,que,assim,concediamaosseusauxiliaresotítulodedoutores,comaaprovaçãodogovernadordacolónia.Nãoseria,pois,surpreendentequeoúnicomédicodeTete,nofinaldadécadade1770,segabassede«nãotermandadoalgunsenfermosparaooutromundo,porque,vendoqueestãoemperigo,ouquenãohá-desairbemdacura,osentregaánaturezaeàDivinaProvidencia,únicorecursoquetodostemosn’estesRios,arespeitodequasitodasasnossasurgentesnecessidades»21.Nestamatéria,oproblemaeraquemuitosportugueses receavamquenema«DivinaProvidência»estivessemuitoempenhadaemlhesacudir,porqueamaioriaviviamuitoafastadadosprincípiosbásicosdocristianismo.

Um interessante edital da inquisição de Goa contra certos costumes e ritos de África oriental, constitui um repertório precioso sobre os hábitos easpráticas religiosasque,na segundametadedoséculoXVIII, combinavamrituais cristãos e cultos pagãos. Não se trata propriamente de heresias, nosentidodeumaideiaoudeumapráticaquecontrariaadoutrinaestabelecida,masdecerimóniasamplamenteprosseguidaspelaforçadatradição,e,muitasvezes, associadas às práticas de magia e feitiçaria, e ao culto dos espíritosancestrais,quesecrêemestarpresentesnasforçasdanatureza.Entreosactosquemereceram reprovação e censurapor parte dos InquisidoresApostólicossalientam-seaincorporaçãodeactosgentílicosnascerimóniasdosbaptismos;asmanifestaçõesfestivasaCristopeloaparecimentodo«menstruoàsmulheres»;ohábitode,nocasodeumdosfilhosgémeosmorrernoparto,fazerumbonecoamortalhado e ornado com missangas para o enterrar «junto da criança quefalleceo,paraquenãovenhabuscaroditodefuntoaooutroseuirmãogémeoqueficarvivo»;ou,ainda,ocostumede«mandarpelascasasdeoutraspessoasospannos,ouquaesqueroutrossinaesmanifestantesdoprimeirocoitocompletoentreosnoivos»22.

Não surpreende, pois, que, em meados de setecentos, a cafrealização debrancos,indianosemulatosatingisseumelevadograu,etivessetendênciaparaexpandirdeformapraticamenteinevitável,namedidaemque,comosalientouAlexandreLobato,emmuitosaspectosdavidasocial,opadrãodecomportamentodosbrancosnãopodiacontradizerouentraremconflitocomassuperstiçõesdos

21 Francisco José de Lacerda e ALMEIDA, Travessia de África, introdução crítica de ManuelMúrias,ediçãoacrescidadoDiáriodaViagemdeMoçambiqueparaosRiosdeSenaedodiárioderegressoaSenapeloPadreFranciscoJoãoPinto,Lisboa,AgênciaGeraldasColónias,1936,pp.134-135.

22 JoaquimheliodorodaCunhaRIVARA,o Chronista de Tissuary,vol.II,NovaGoa,1867,pp.273-275.

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negros,nomeadamente.quandoosadivinhospressagiavam,pordotesdemagiaemquetodossefiavam,dificuldadesouinsucessosparadeterminadoseventos23.

Narealidade,deacordocominúmerasreferênciasdocumentais,amaioriadosportugueses,apenasquandoviachegarahoradamorte,procuravalevarumavidaemconformidadecomosrituaisepráticascatólicasparapoderentregar-seaoCriadorcoma«almapura».quantoaomais,ocomportamentodosbrancosno seu quotidiano, seguiu os costumes licenciosos e um complexo conjuntodefactoresquecompunhamoambienteeavivênciadosafricanos.PereiradoLago,foiumdosquemaisamargamentecensurouaociosidadeemqueviviameuropeuseindianos,bemcomoaformacomoeducavamosseusfilhos,aquemdenominavade«brutinhos,[criados]navidasencual,edoutrinadoscafres,semoutro préstimo, nem aplicação»24. Do mesmo modo, considerou que uma dasprincipaiscausasdadecadênciadosmoradoresdeMoçambiquefoiadevassidãodesuasvidas licenciosas.Umdosexemplosmais famososfoiodamulherdeMarcoAntónioMontaury,cujaconduta,consideradaindecorosaeobscena,terácontribuídodecisivamenteparaaruínadasuaCasa,umadasmaisimportantesdaZambézia.

«Aqueseseguiologoaoterceirodiadoseufalecimento[deMarcoAntóniodeMontaury]amanhecercazadapellameyanoiteaviuvasuaMolheremactoclandestinocomMiguelJozePereiraGajo,quefoytenentedesteRegimento[deSena];edizemasmáslingoas,jáseentretinhaemvidadeseumaridoemdomesticarestacabrabrabissima,comapecimacriação,eliberdadesinsolentesde todaasuafamília,abominávelemcrimes,absolutos,edezordensqueaV.Exªserãoconstantes,eponderáveisdehumaCaza,quesustentousempreas izençoense temeridadesdeRegula;eproduzioesteMonstroparaquemprevenyOrdensedeterminaçoensemseubeneficio;LogoquesoubedoperigoemqueseachavaMarcoAntónio,afimdequeaquellaCazaseconservasseadministradapornovoMarido,queselheconsiderasseproporcionado.Masestacreaturinhasemmaisrazãoqueoseugosto,nemmaisLey,quedehumavidasempreceitoparaquelhenãoobstassealgumimpedimentosecazoucomhum,emuitos(…)»25.

23 Alexandre LOBATO, evolução administrativa e económica de moçambique 1752-1763, 1ª parte, Fundamentos da Criação do Governo-Geral em 1752,Lisboa,AgênciaGeraldoUltramar,1958,pp.153-154.

24 AhU,moçambique,«CartadogovernadordeMoçambique,BaltazarPereiradoLago,emquedácontadarelaçãodosresidentesemMoçambique,seusofíciosemododevida»,cx.26,doc.82,20deAgostode1766.

25 AhU,moçambique,«CartadogovernadordeMoçambique,BaltazarPereiradoLago,sobreamortedeMarcoAntóniodeAzevedoCoutinhodeMontaury,fidalgodaCasarealegovernadordosRiosdeSena,e,ainda,sobreacondutadesuamulheresituaçãodesuafamília»,cx.27,doc.90,19deAgostode1767.

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Ainda assim, cabe-nos interrogar se estes comentários brutais sobre ocomportamento da mulher de Montaury, seriam válidos para muitas outrassituações,ou,sepelocontrário,diziamrespeitoaumououtrocasoisolado?SeriaPereiradoLago,porexemplo,umpaladinodamoralidadeemterrasafricanas?JoãoNogueiradaCruz,ComissáriodoSantoOfíciodeGoa,apontoucuidadosamentea libertinagem em que viviam muitos dos portugueses residentes na Áfricaoriental,assinalandoqueoprópriogovernador«oprimeirocomprehendidoemnotória,eescandalozamancebiaàvista,efacedetodossemrebuço,enamaiordevassidão, mal poderia sem igoal escândalo»26. Não é seguro, mas, é muitoprovável,queopadreNogueiradaCruzseestivesseareferiraorelacionamentointenso e prolongado que o governador Pereira do Lago manteve com RosaMaria daConceição,mulher de 24 anos de idade e viúvade uma talBasílio.Desta união nasceria Josefa, uma filha considerada espúria. Na realidade, emmatériaderelações,consideradasextraconjugais,ogovernadorerareincidente.Já,anteriormente,emLisboa,tinhavividoamancebadocomInêsLeonor,mulhercasada, cujo marido se ausentara para Espanha, onde vivia homiziado. Destarelaçãonasceria,em1762,GasparManuel,oseufilho«natural»,tornadolegítimoporD.Maria,paraquepudesseviraterdireitoáterçadaherançapaterna27.

Éevidentequeanaturezaeotemperamentodecadaindivíduodeterminavam,porvezes,oseucomportamento,mas,emmuitosoutroscasos,eramasprópriascondiçõesmateriaisdoseuropeusemMoçambiquequecondicionavamascondutaseasformasdeconvívio.Deentreoconjuntodecircunstânciasquecontribuemparadefinirasformas de estar,sobressai,porexemplo,arusticidade,apequeneze a má qualidade de grande parte das casas, porquanto, sendo construídas depedra ebarro (quandoestesmateriais existiamna região,oque,diga-se,nemsempreseverificava),quasetodascobertasdepalha,áexcepçãodeduasoutrêscobertasdetelhavãesemrebocoalgum28,permitiamquemuitosdosactosquesequeriamprivadossetornassempúblicos.Abisbilhoticeeomexericoparecemtersidotraçoscaracterísticos,comamplaaceitação,numasociedadequetinhamuito tempopara o ócio.Muitos dos habitantesmandavamos seus criados acasadosvizinhospara inquiriremoquenelas sepassava, fazendodadevassa

26 AhU,moçambique,«CartadeJoãoNogueiradaCruz,ComissáriodoSantoOfíciodeGoaeProvíncias anexas, e Governador Eclesiástico no território da Administração Episcopal deMoçambique,paraMartinhodeMelloeCastro,sobreavisitaquefezàcolónia,durantetrêsanosemeio»,cx.35,doc.94,27deMarçode1781.

27 LuísFredericoDiasANTUNES,«ComocontinuaraserportuguêsemterrasdeÁfrica...»,(já cit.),p.502.

28 FelipeGastãodeAlmeidadeEÇA,lacerda e almeida. escravo do dever e mártir da ciência (1753-1798. apontamentos históricos, biográficos e genealógicos, com algumas notícias e documentos inéditos..., Lisboa, Tipografia Severo Freitas, 1951, p. 68; António Pinto deMIRANDA, «Memória de África Oriental e da Monarquia Africana», in Luiz Fernando deCarvalhoDias(pref.ecol.),Fontes para a História, Geografia e Comércio de moçambique, (séc. XViii),Lisboa,JuntadeInvestigaçõesdoUltramar,1954,pp.67-79.

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davidaprivadaedadisponibilidadeepreferênciasexualdessesvizinhosedosseusescravos,umatarefadodia-a-dia.TalcomoacontecianoBrasil,muitasdasigrejas de Moçambique eram locais onde se preparavam encontros amorosose seouviamsemomínimodedecoro,mesmoduranteacelebraçãodamissa,«impurasconversas»sobreaqualidadeeodesempenhosexualdedeterminadapessoadesejada.

Um indivíduo, que podia ser europeu ou mestiço, tinha geralmente umamulherprincipal,queatépodiaserlegítimaaosolhosdaigreja,emuitasoutrasescravasquefaziamostrabalhosdomésticosepartilhavamacamadosenhor.

Achegadadeumnavioeuropeuera,muitasvezes,saudadacomapresençadenegras«mundanas»queseamancebavamcomosmembrosda tripulaçãoecom«pemberaçoens»,istoé,comenormesfestividadesnasquaishaviafarturadebebidasalcoólicas,batuques,dançasecantares,quedavamorigemafrequentesdesordensdedifícilcontrolo.

Aindaaestepropósito,asfontessublinhamquenemmesmoumaboapartedocleromoçambicanotinhaumcomportamentocondicentecomoseuestatutoreligioso.MuitosdospadresemissionáriosviviamnaZambéziaenasilhasdeCaboDelgadoumavidadedevassidão.Sabemos,porexemplo,que,no iníciodadécadade1760,odominicanoFreiPedroeraomaiornegociantedeouroemarfimdaregião,bemcomo«humhomemambiciozissimo,e tãoviciadoquemorreuentrehumsarralhodemaisdetrintaconcubinas»29.

3.Talvezsejadifícilatarefadereduziraumasimplesfórmulaascomplexasmotivaçõesquelevavamaoconsumodeartigosrelacionadoscomacomodidadeeobem-estar,nomeadamente,osmóveiseaslouças.

AsprofundasalteraçõeseconómicasesociaisocorridasemMoçambique,na segunda metade do século XVIII, e a efectiva participação dos referidosgovernadoresnotráficodeescravosenaactividademercantildesenvolvidacomaÍndiapermitiramaumpequenonúcleodeportuguesesretomarumcertoestilodevida,delazereconfortoeuropeusealgunsdostradicionaishábitosdeconsumodafidalguiaportuguesa.

Amaioriadosmoradoresportuguesesdemonstravaumquasetotaldesprezoem relação aos ofícios, aos «trabalhos mecânicos» e à agricultura, preferindopassaroseutempona«diverçãodoócio».Afaltadeambição,opoucopréstimo,omaucaráctereapoucainstruçãoforamtraçoscaracterísticosdamaioriadessesindivíduos,devidamenteretratadosnadocumentaçãodemaiorfôlego,sobretudo

29 AhU,moçambique, «Cartadopadrecapelãodequelimane,Domingos JosédosReis,paraogovernadordeMoçambique,JosédeVasconceloseAlmeida,sobreosabusosdastripulaçõesdosbarcosdeviagem»,cx.34,doc.24,30Julho1780;AhU,moçambique,«CartadogovernadordosRiosdeSena,AntóniodeMeloeCastro,paraogovernadordeMoçambique,JosédeVasconceloseAlmeida,sobreassuntosrelativosàvidasocialemSena»,cx.33,doc.92,14Junho1780.

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nasmemórias,notíciaserelações,dasegundametadedoséculoXVIII.EssamatériamereceuespecialatençãodogovernadorPereiradoLago,porquanto,em1766,ordenouoarrolamentodapopulaçãoquevivianaIlhadeMoçambiqueecercanias«nãosóparasaberaquantidadedegentequegovernava,comoparalhe examinarosmodospor queviviam, e a razãoporquenão exercitavamosofícioscomqueforamcriados»30.Ficou,então,asaberque,numtotalde178reinóis,indianosefilhosdaterra,22%erampessoasociosasevadias,pessoasqueviviamdeesmolaouacargodeparentesouamos,ou,puraesimplesmente,indivíduosquesedesconhecemassuasfontesderendimentoeoquefaziamdoseutempo31.

Os europeus mal chegavam a terras de África tomavam os hábitos davadiagememadracicedosnativosedospatrícios,dizia-se.Pareciahavertempoparatudo:«destasorteociozospassãoosdiasdavidaathéqueamortechega».

Umacertalaicizaçãodaspráticasdesociabilidade,osgostospeloconvívioeasnecessidadesdeentretenimentodosindivíduosquepertenciamaogruposocialmais privilegiado, em Moçambique, parecem, salvo as devidas «distâncias»,assemelhar-se aos círculos aristocráticos doReino. Era comum, por exemplo,nasreuniõesefestas,osconvivasrecrearem-secomjogosdedamasedexadrezoucomjogosdecartasque,geralmente,envolviaelevadasapostasemdinheiroebens.Podiam,também,divertir-sedançandoeconversando,enquantocomiamebebiamcaféechá,entreumabaforadadetabacoeumapitadaderapébrasileiro.

É curioso que a falta de algum desses artigos causava grande desânimoaosseusconsumidores.Osportuguesesexasperaram,amiúde,afaltadetabacobrasileiro.EmterrasdeÁfrica,longedoseuambientesocial,aprivaçãodestespequenos «vícios» em horas de lazer, podia tornar a vida ainda mais dura edesumana.

Nos lares de europeus e de «brancos» emMoçambique, encontramos detudoumpouco:

-Umpequenomundodeobjectosocidentais,própriodaselitesque,residindoemÁfrica,viviammuitodeaparênciasedeimagenscoloniaisqueprocuravammanterjanelasabertasparaasmemóriaseparaoshábitoseuropeus:algumtipodemobiliáriodefigurinoportuguêsematerialbrasileiro,asimagensdeartesacra,aspratasantigas,osrelógiosfranceses,osquadros,painéiselivros;

-Ummundode influênciasorientais:mobiliáriodeguardade influênciaindo-portuguesa, tapeçarias e têxteis de casa, colchas de seda que serviamdepanosdearrás,cortinadosindianosqueseparavamespaçosouqueenfeitavamasportas,serviçosdechádeporcelanadaChina,louçasdaÍndia,palanquinscom

30 AhU,moçambique,«CartadogovernadordeMoçambique,BaltazarPereiradoLago,emquedácontadarelaçãodosresidentes...»,cx.26,doc.82,20deAgostode1766.

31 LuísFredericoDiasANTUNES,«ComocontinuaraserportuguêsemterrasdeÁfrica...»,(já cit.),p.506.

ASOCIEDADECOLONIAL:ESTILOSDEVIDAEUROPEUSEMMOÇAMBIqUESETECENTISTA 193

osquaissefaziatransportaràforçadeescravos,bengalasderota,tapa-sóiseascabaiasindianasquelhepermitiam«sentarcomaspernascruzadas».

Nãoqueremosignorarosaspectosdoquotidianodosmaispobres,comosseusgastosnamobília,osseushábitosdehigiene,osseuscomportamentos,mas,narealidade,paraestacategoriasocial,dospoucosinventáriosqueencontrámos,amaioriarestringe-seaosaspectospuramenteeconómicosdasuavida:dívidascontraídas,empréstimos,dinheiroemcarteira32.Aindaassim,encontrámosvárioscasos de indivíduos europeus como, por exemplo,AntónioEntremenesPinto,secretáriodogovernodePereiradoLago,entre1768-1773,quetambémpossuiudiversosrecipientesparaselavar,trêspenteadoresdefazerabarba,e,mesmoumurinol,ou,JoséFranciscodaFonsecaque,nafeiradeManica,tinhaváriasbaciasparalavarasmãoseospés,espelhoseumacaixacomduascabeleiras,outra,compós,doisferrosparaalisarasperucas,e,ainda,dezenasde«pausdesabão».

4.Doqueficaresumidamenteexpostoressaltaqueaproduçãoeutilizaçãode bens culturais da elite administrativa de Moçambique, na segunda metadedo séculoXVIII, evidenciama interacção cultural, política e económica entreeuropeus,africanoseasiáticos.

O tráfico de escravos em larga escala, para alémde ter proporcionado aumapequenaeliteenormesvantagenseconómicasedeterprovocadoprofundasalteraçõesnaestruturasocialmoçambicana,acabouporpropiciarumaredederelaçõesculturaisepolíticascomoBrasil,ecomosfrancesesdasMaurícias.

Constata-sequeàmedidaquesecaminhavaparao finaldesetecentos,areduzidaelitemoçambicanafoiformandoumgostomaiselegantepeloespaçoprivadodavidadoméstica,foisentindonecessidadedemelhoraraeducaçãodosfilhos,enviando-osparacolégiosemGoa,Lisboa,RiodeJaneiroeMontevideu,foi-se tornandomais cosmopolita e receptivaa influênciasdecentrosurbanosestrangeiros.

Muitosdosmembrosdaelitemoçambicanadefinaisdesetecentosjánãoerampropriamenteanalfabetos.Mesmoexcluindoasbibliotecasdosjesuítasquecontava com algunsmilhares de livros, detecta-se quemoradores nos confinsdaZambéziatinhamnasuapossedezenasdeobrasliterárias,algumasdasquaisemlínguafrancesa,nomeadamenteromancessobre«istoriasdepiratas»,livrosde passatempos, diversas qualidades de dicionários, um de geografia, outrodesignado «de Avinhão». Junto aos livros franceses e ingleses encontrámosmuitos outros em língua portuguesa: livros de medicina, tratados filosóficos,livrosdehistóriadePortugaleUniversal,dehistóriadareligião,eumcurioso«TratadoCompendioIstóricodaUniversidadedeCoimbra».

32 LuísFredericoDiasANTUNES,«ComocontinuaraserportuguêsemterrasdeÁfrica...»,(já cit.),pp.510-515.

LUÍSFREDERICODIASANTUNES194

As relações sociais e culturais com brasileiros e, especialmente, comfranceses, foram vigiadas de perto pelas autoridades portuguesas, receosas dequalquer«contágioideológico»pernicioso.Tentava-seimpedirqualquercontactocom as tripulações de navios franceses imbuídas do espírito revolucionário,maçónico, da República Francesa; perseguiam-se os passos dos inconfidentesbrasileirosquechegaramaMoçambique,em179233;evigiava-sealeituradosjovensquetinhamidoestudaremFrança(EleutérioJoséDelfim)eemLisboa(Vicente Guedes da Silva). Sem grande sucesso, diga-se, mas, ainda assim,nada podia travar a euforia do tráfico negreiro, nem mesmo os estudantes deespírito progressista que eram, afinal, os filhos dos grandes comerciantes deMoçambique.

Mas, enfim, ainda estávamosmuito longeda épocade relativa expansãodacolonizaçãobrancaeeuropeia,queseseguiuapósa transferênciadopoderda ilha de Moçambique para Lourenço Marques, e que marcou uma certacontinentalizaçãodaadministraçãoeumanovaformadeviverdosportuguesesemÁfricaoriental.Deixemos,noentanto,estasmatériasparaoutraocasião,pois,sãocontasquepertencemaoutrorosário.

PontaDelgada,27deNovembrode2009

33 AdeltoGONÇALVES,Gonzaga, um poeta do iluminismo(já cit.)

OISLÃOEACONSTRUÇÃODO«ESPAÇOCULTURALESOCIALMACUA» 195

OISLÃOEACONSTRUÇÃODO«ESPAÇOCULTURALESOCIALMACUA»1

eduardo medeiros*

Introdução

Aconstruçãodo«espaçoculturalesocialmacua»ocorreuduranteumlongoprocessodecontactosentregruposhumanosdelínguasbanto2e,naszonascosteiras,entre estes e grupos pendulares de comerciantes, mas também de imigranteschegadospelomar, falando todoseles idiomasdiferentesoudialectosdeumamesma língua3 e portadores de elementos culturais distintos.Dasmestiçagensocorridas, tanto entre os grupos do interior como entre estes e os do litoralresultaramtransformaçõeshíbridas,comfluxoserefluxosdasinstituiçõessociaiseculturais,paraasquais,tantooIslãocosteiro,comomaistardeoCristianismoe esse mesmo Islão, agora nas terras continentais, desempenharam um papel

* NúcleodeEstudos sobreÁfricadoCentro Interdisciplinardehistória,CulturaseSociedades(CIDEhUS) da Universidade de Évora e Centro de Estudos Africanos da Universidade doPorto.

1 EstetextofoielaboradocombasenumaversãoreduzidaquedeveriatersidoapresentadanumencontrosobreÁfricaemPontaDelgada,Açores,nosdias26-29deNovembrode2009.

2 Avançarei infra a hipótese de contactos no território em estudo entre caçadores colectores eprimeirosagricultores.

3 Árabedo Iémen,deOmã,doGolfo;persadeShiraz,etc.E,comoveremosadiante,muitosdosrecém-chegadosjáfalavamdialectoskisuaíli,umalínguabantodacostaorientalafricanae ilhas, com difusão para o interior profundo em certas zonas e com múltiplos dialectosregionais.

EDUARDOMEDEIROS196

relevante4. Neste estudo vou tratar da presença islâmica na territorialidadede identificação que ficou conhecida pela dos «macuas» a fim de estudar asdinâmicas que chamarei «macuanização»5. Uma primeira, a da construção daalteridadesimbólicado«outro»globalizadaporárabesemuçulmanos,masque,de facto, ocultava processos identitários regionais próprios, com construçãoe reconstrução de grupos humanos com idiomas específicos, embora cominstituições aparentadas por que inerentes a ummesmo tipo de agricultura desequeirosobrequeimadas,numaregiãoecológicacomgrandespotencialidadesdecolectadeprodutosdanaturezaetambémdacaçanessestemposremotos6.Umasegunda,adaformaçãoposterioreaindaemcursodaidentificaçãomoçambicana«macua»paraaqualtambémoIslãotemvindoacontribuir.Nãomeocupareiaquidos«empréstimos»daculturamaterialárabeedearabizadosqueforammuitoimportantespara aproduçãoagrícola,navegação,pesca, sistemasalimentares,vestuário,utensílioseinstrumentosvários,incluindomusicais,etc.7Tãopoucotratareidorelacionamentodeste(enãodeoutro)«mundomuçulmano»como«mundocristãonegro»local(desincretismosváriosoudeinculturaçãocatólica)8

4 VideElísioMacanosobre«ainfluênciadareligiãonaformaçãodeidentidadessociaisnosuldeMoçambique»(Macamo,1998:35-69).

5 Diferenteda«makhuwanidade»,termousadoporSerra(1997:120esgs.)nacríticaquefezaopadreLerma(1989)arespeitoda“essência”ou“substância”«macua».

6 Usoopluralpoisveremosaseguiralgunsdessesperíodoshistóricos.7 SobreaculturamaterialsuaíliemMoçambiqueverumasínteseemRita-Ferreira(1992:319-324);

sobreosbarcosdolitoralnortedeMoçambique,lerMoura(1972,1988),sobreaartedapescae respectivosartefactosnomarda IlhadeMoçambique,Medeiros (1978).Emboranãosejamtrabalhosespecíficossobreaculturamaterial,encontraremosalgumasreferênciasnostrabalhosdeConceição,1993(2006)paraolitoraldeCaboDelgado,e2003,paraAngoche/Moma,eemLoforte,2003,paraaIlhadeMoçambique.

8 Estouareferir-meàsigrejasevangélicasepentecostaisnegro-africanaseàdosmazione,assimcomoàcorrenteinculturativadentrodaprópriaigrejacatólica.Acorrenteinculturativavinhadosanos60,depoisdoVaticanoII,masacentuou-senosanos80.Dopontodevistacatólicoconsistenapráticaepensamentodamensagemedoritolitúrgicocristãousandooidiomalocaleelementosdaculturadacomunidade(canto,dançaemúsica)assimcomoreferênciasesímbolosdareligiãotradicional,antepassados,porexemplo.Diferenteportantodaenculturaçãoesocializaçãoquesãoprocessosdeinserçãodeumindivíduonasuaculturaouemgrupossociais.Váriostextosforampublicadosdesdeocomeçodosanos80comvistaàproblemáticacatólicada inculturação.OPe.EziquelGwembe,S.J.eAntropólogoorganizouuma«ColecçãoInculturação»nasEdiçõesPaulistas,emMaputo,ondeforampublicadososseguintesnúmeros:1-AArteNegro-Africana.Umaantropologiareligiosa;2-AMulhernasabedoriabantu.Notasparaumaantropologiabantu;3-O Mistério da sexualidade. Sexo como fonte de vida; 4-IniciaçãoTradicionalAfricana emMoçambique.Tentativadesíntese;5-Cinamwali.Umapsicopedagogiaparaavida;6-Osvaloresafricanosfaceàmodernidade;7-RelaçãoEspíritos-Religião-Cultura;8-ValoresCulturaisfaceàconsagração religiosaafricana.Pobreza-Família-Amizade-Dificuldades;9-MáscarasAfricanas.LiturgiaCósmica;10-OpactodaaliançaemÁfricaenoSinai.Umaleituradoseusimbolismo.Por sua vez, Frei Adriano Langa, OFM, publicou: questões Cristãs à religião Tradicional africana (Braga, Editorial Franciscana, 1984), lançando a seguir uma colecção de opúsculos

OISLÃOEACONSTRUÇÃODO«ESPAÇOCULTURALESOCIALMACUA» 197

emuitomenosdas problemáticas coloniais cristãs e islâmicas de governantesultramarinosemissionários.Deixoissopara«estudospós-coloniais»emLisboa,Londreset d’ailleurs.Porúltimo,umachamadadeatenção:estemeutrabalhonãoésobreoIslãoemMoçambique,issotemsidoobjectodeestudosdeBonate,Bouene, Carvalho, Macagno, Monteiro, Morier-Genoud e Pinto, cada um àsua maneira, com objectivos e metodologias próprias (ver bibliografia). Tãosó vou cartografar algumas coordenadas relativas à «macuanização» naqueleimensoterritórionortenhoemostrarcomooIslãocontribuiuparaelaaquandodos diferentes processos históricos passados e também recentes, acabando nopós-Independênciaporconcorrerparao«projectodaidentidadenacionalcomocomunidadededestino»,naexpressãodeMacamo9.

1. As primeiras etapas da formação do «Mundo Macua»

1.1. povoamento banto na Idade do Ferro Inferior (IFI) (c. II a.C. – XI d.C)

Sabe-semuitopoucosobreoprimitivopovoamentoporagricultoresdasterrasentreorioZambezeeorioRovuma,nonortedeMoçambique.Osarqueólogosapenas nos dizemque a ocupação foi lenta e que se fez através de duas viasdepenetração,umanosentidonorte-sul,costeira,eoutrapelarotainteriordosplanaltos10. Praticavam uma agricultura ainda rudimentar (no sentido de umaprecáriapreparaçãodasmachambas,plantasquecultivavam,tipodeceleirosqueusavam,etc.),masjáconheceriamametalurgiadoferroqueexerciamnalgunslocais ricos em materiais ferrosos à superfície. Falariam idiomas da grandefamílialinguísticabanto.Terãoaindaencontradocaçadorescolectoresnalgumasregiõesdensamentearborizadas,populaçõesdaIdadeSuperiordaPedraquese

sobreCulturaeEvangelho:n.º0:a vida consagrada e a inculturação;1:o “lobolo”;n.º2:Vida Consagrada: acolhimento e partilha;n.º3:o nome na tradição africana.Em1988Frei BentoDomingues,O.P. lançouemLisboaosCadernos de estudos africanos,cujo1ºnúmerofoidedicadoàsReligiõeseTeologiasAfricanas.Em1992,começoua serpublicadanaBeiraarevistarumo novo–revistacatólicadeinculturaçãoereflexãopastoral(Beira,SecretariadoArquidiocesanodeCoordenaçãoPastoral),n.º1,Abril,1992).On.º1deAbrilde1991édedicadointeiramenteàliturgiadainculturação.Em1993,aAssociaçãoInter-regionaldosBisposdaÁfricaAustral(IMBISA)publicouumdocumentodeestudosobreainculturação(AediçãoportuguesadasEdiçõesPaulistas-África,foipublicadaemMaputo,em1994).Porsuavez,oPe.EzequielGwembe.S.J.,publicouem1994,retiros de iniciação. uma experimentação na inculturação(harare,St.IgnatiusCollege,1994);einiciação – um caminho de educação(Beira,ActasdaPrimeiraSemanaTeológicadaBeira,2-7Fevereiro1996,Colecção:TemasdeInvestigação).NoSeminárioMaiordeS.Agostinho,naMatola,oPe.FranciscoLermaMartinez,IMC,publicouem1995,religiões africanas, Hoje.

9 ElísioMacamo(1996:61,nota8).10 ParaumabibliografiadasinvestigaçõesarqueológicasemMoçambiquevideLeonardoAdamowicz

(1985)eJoãoM.F.Morais(1984,1990,1992).

EDUARDOMEDEIROS198

extinguiramentretantoporrazõesnossasdesconhecidas.Eistoaocontráriodoquesepassounaflorestaequatorial,nosuldeAngola,NamíbiaeÁfricadoSul,ondesemantiveramatéaosnossosdiascomunidadesdecaçadoresecolectores.NalgunsmitosdaspopulaçõesdelínguabantodonortedeMoçambiqueficaramalgumasreferênciasaesseshomensdafloresta.Etambémnosvestígiosmateriaisqueosarqueólogos têmvindoaestudar, sobretudona faixacosteira,peloquedesignaram esses grupos de caçadores colectores da praia: “sociedades deconcheiros”.TerãosidoesteshomensqueosprimeirosárabeschegadosàspraiasdonortedeMoçambique encontraram?Não sabemos.Certo équeoprimeiropovoamento por agricultores se fez nessa região a partir da segunda centúriaantesdeCristo.Regiãoqueaindateriaumaflorestaprimitivadevegetaçãodensa,ricaemprodutosnaturaisqueaNaturezapunhadirectamenteàdisposiçãodoshumanos.Talveznãotenhasidoporacasoquetodaagranderegiãoafricana,doÍndicoaoAtlânticodemarcadapeloZambezeepeloCongofoiporexcelênciaa«áreamatrilinearzambeziana»dequenosfalouBaumann(1948,1957).

1.2. povoamento banto na Idade do Ferro superior (IFs) (c. séc. XI - séc. XVI)

Osegundograndeperíododopovoamentodonorte deMoçambiqueporagricultorescomtecnologiasagrícolasedo ferromaisevoluídascomeçouporvolta do ano mil, tendo durado mais de meio milénio. Foi um povoamentoescalonadonotempoenoespaço,masmaisrápidoedemograficamentemuitomais intenso, num processo em que esteve presente a chamada «agriculturaitinerante»sobrequeimadas.EstesegundopovoamentodonortedeMoçambiquefez-sepelasterrasdosvalesdosriosquecorremalideOesteparaLestemarcandovivamenteoterritórionestadirecção.Váriaslínguasbantoaparentadasentresiestiverampresentesnestenovopovoamento.Ecomoaocupaçãose fezsemaeliminaçãodopovoamentoanterior,houvemestiçagensbiológicaseculturais,ereelaboraçõeslinguísticas.Falarde“etnias”11paraestelongoperíodo(comoparaoutros)eparaesteenormeterritóriocomosefossemasqueforamnomeadasapartirdosanos50doséculotransactoéumnon-sens,paranãodizerumaperversaconclusão.Asmicroemacro-identidadesaqueécostumechamaretniastêmumahistória,geralmentecommuitoscondimentosideológicos,masdessepassadosó

11 Sobreasquestões«etnia»e«etnicidade»emMoçambique,relacionadasounãocomaproblemáticado Estado centralizador e da Nação, há já bastante literatura (pós-colonial) no domínio dahistória (António Sopa, 1998; Gerhard Liesegang, 1992, 1998; Michel Cahen, 1987, 1994,1996);Sociologia(CarlosSerra,1997,1998;ElísioMacamo,19956,1998,2006);Antropologia(ChristianGeffray,1987,1990,1991;EduardoMedeiros,1996,1997,2001;IraêBaptistaLundin,1995;Patrickharries,1989,1994);Filosofia(SeverinoNgoenha,1992,1996,1998);Linguística(NELIMO,1989);CiênciaPolítica(JoséMagode,1996;PedroB.Graça,2005);GeografiadoPovoamento(ManuelAraújo,1998).

OISLÃOEACONSTRUÇÃODO«ESPAÇOCULTURALESOCIALMACUA» 199

saberemosalgumacoisaquandoarqueólogos,estudiososdaslínguas,dageografiahistóricaedaterritorialidade,edastransformaçõesdanaturezanestaregiãonosdisseremalgumacoisa.Estudosquefaltam,porenquanto.

Aspopulaçõesdaprimeiraesegundavagasdeocupaçãosãocaracterizadaspor possuírem uma estrutura clânica matrilinear, idêntica em toda a área,fortementesegmentada,daqualresultou,naprática,umaorganizaçãolocalizadadelinhagensdeclãssemprediferentesporcausadaobrigatoriedadeexogâmica.Todasestaspopulaçõesfalavamidiomassemelhantesqueseforamparticularizandolocalmenteequeosprocessoshistóricossubsequentesfixaramoudiluíramemespaços territoriaismaisvastosoumais restritos.As“universalizadas” línguasemakhuwaeelómwèdostemposmodernos,aindanãopadronizadas,queintegramcertamenteaquelasanteriores,sãooresultadodamacuanizaçãoelomuenizaçãorecente,dequeaseguirseapresentarãoalgumasnotas.

Ora,foramgruposhumanosjámiscigenados12queárabespré-muçulmanose depois muçulmanos (a que se juntaram outros muçulmanos não árabes)encontraramnaspraiasdonortedeMoçambique.Comtodaatolerânciaquelheséatribuída,osprimeirosárabes,quejácotejavamafricanosaolongodolitoralparaNortedorioRovuma,tê-los-ãonomeadoàsuamaneira(al-Zanj),masforamos islamizadosdo séculoXII (ou talvezumpouco antes) que, tendo-os comoinfiéis, os designarampor um termo local que remetia toda essa gente para acategoriade«bárbaros»,«infiéis»,etc., representaçãosemânticaqueFreiJoãodosSantosretomariaquasequatroséculosmaistarde(Santos,1609,1891,1999),quandodistinguiaosinfiéis«mouros»detodaaquelagentequenãoera«moura».Para todos os forasteiros chegados pelo mar essas populações eram macuas.Indistintamentemacuas, dorioRovumaaorioZambezeedooceanoÍndicoàsprofundezasdodesconhecidointerior,13numaexo-identificaçãomuçulmana.Mascomo«tudáseudou»,nojogodasalteridades,osdointerior,nummesmotipode

12 NãoháemMoçambique«etnias“puras”eimutáveis»quevieramsei ládeonde!São“todas”processos locais(nossos,poderãodizerosmoçambicanos)ehistoricamentedatados.Vejamos,porexemplo,ocasomaconde.JorgeDias,oantropólogo,nãocompreendeuqueos«macondes»,como entidade própria, são um”produto” de construção social e cultural um, incluindo umaconsequência«kilombista»ou«qilombar»defugidosaotráficodeescravose,quiçá,apróprioscativeiros internos.OpróprioAntónioRita-Ferreira (1982:161)sugere,cautelosamentecomo«mera hipótese», que a retirada maconde (sic) para os planaltos tenha sido «motivada pelaactividade dos caçadores de escravos árabes e afro-islâmicos» e, depois, «pelas implacáveisincursõesdeguerreirosdeorigemheterogéneacomandadosporangónisGuangaraeMaviti».

13 OreverendoAntónioPiresPrataconsideraqueoetnónimomacua(makhuwa)provémdapalavranikhuwa(pluralmakhuwa)quesignifica“grandeextensãodeterra”,“sertão”,“selva”,“deserto”(apudMedeiros,1996:114).ApalavrateveatéaoséculoXXumaacepçãopejorativaquandonãomesmoinjuriosaouofensiva,sendoutilizadapelosislamizadosdolitoralcomosignificadode“rude”,“selvagem”,“atrasado”,“povogritadorebarulhento,massemvalor”(Coutinho,1931:38).

EDUARDOMEDEIROS200

identificaçãoexteriordooutro,passaramadesignargenericamentepormacas14 os muçulmanos vindos pelo mar. E, localmente, por outros etnónimos, comoveremosmaisadiante.

Antes disso vejamos como chegaram árabes, persas e arabizados, todosmuçulmanosapartirdoséculoVII15,eformaramcidades-estadonolitoraleilhasdaSomália,quéniaeTânzania,eentrepostosarabizadosemuçulmanosnolitoraleilhasdeMoçambique,pelomenosdesdeoséculoXII.

OIslãoexpandiu-sepelolitoraleIlhasdaÁfricaorientalatravésdeumarededecomérciojáexistente,queforapromotoradeumaincontestávelarabização16.De facto,desdeoséculo II, senãoantes,aspopulaçõesdo«CornodeÁfrica»emais a sul, do litoral doquénia, passaramaparticipar nas rotas comerciaisporondetransitavacobre,ferro,ouroeoutrosprodutoscomdestinoaosportosdaPenínsulaArábia e doGolfoPérsico.Esta circulação comercial e as redesmercantisqueagarantiaconstituíramoinstrumentofundamentaldeintegraçãodepopulaçõesdaÁfricadoLestenosistemaeconómicodoÍndico,sistemaquesefoiestendendoparaSul,numanavegaçãoàvista,ditadeescalas,atéatingir,noséculoXII(senãoantes),aactualcostanortenhamoçambicana,estendendo-sedepoisatéVilanculo(antigosdocumentosárabesdãocontadaexistênciadeentrepostoscomerciaisdaArábiadoSulnacostadaAzânia),esubindopelorioZambezeatéàs imediaçõesdeCahoraBassa.AspovoaçõesdeSofala,SenaeTeteforamosprincipaiscentrosdestasnavegaçõesoceânicasparasulepelorioZambezeaolongodoVale.

MascomoadventodoIslãonoséculoVII,nãoforamapenascomerciantesque mantiveram os entrepostos e a rede mercantil. Segundo Penrad (2004:183 e sgs.), a agitação no mundo muçulmano do século VIII ao século XV,

14 Atéhámuitopoucotempo,osislamizadosdolitoralnortedeMoçambique,dePembaaoLarde,eramdesignadosmacas pelospovosdointerior,ouseja:partidáriosdeMeca(mahka),masquesedesignavamasimesmoporoutrosetnónimos,nãoseconsiderandomacuas.Ointeressanteéverificarcomohojealgunsdessesmacas-aquelesquequeremepensamquepodemparticiparnobolonacional-começaramafalarcomosendomacuascomoreferênciaaumamacro-identidadedeenormepesodemográficoe territorialnocontextoda«nação».Ao longodo textografareitermos provenientes do árabe, kisuaíli, macua e jaua de acordo com o uso moçambicano daromanizaçãona línguaoficial, oportuguês.Tambémusei termosprovenientesdo árabeou jáarabizadostalcomovêmnasfontesconsultadas.Nãocabeaqui,nemmecompete,discursarsobreavalidadedessasgrafias.Espero simpeladecisãodos especialistasdasquestões linguísticas.EviteifoiousoderomanizaçõesparalínguainglesamuitofrequentesnostextossobreoIslãoemMoçambique.Substitui-asportermos,letradosoupopularesemcursonopaís.Assim,grafeixeque,xeheoucheheparadesignarshaykh, mualimopara mwalimo,caderiaparaqadiriya, etc.

15 Paraalémdestes,referira-sequebarcoschinesesfrequentaramooceanoÍndicodesdeaDinastiaSong(960-1127)percorrendooGolfoPérsicoeacostaorientaldaÁfricaatéMoçambique,equeantesdelesterãochegadoindonésiosaolitoralmoçambicano.háemMoçambiqueumagrandelacunadeestudossobreasrelaçõeshistóricasatravésdooceanoÍndico.

16 ParaumaextensabibliografiasobreocomércioárabeeoIslãoemMoçambiqueconsultarumtextomeu,EduardoMedeiros,decolaboraçãocomManuelLobato-doCEhCA-IICT(1999).

OISLÃOEACONSTRUÇÃODO«ESPAÇOCULTURALESOCIALMACUA» 201

emparticularcomaexpulsãode JulandadeOmã17pelosOmíadas, em705;arevoltadosZanjnoIraque18,868-883;aocultaçãodo12ºÍmãdosxiitas(shi’itas)iThna’asheri,em874;oapogeudomovimentoqarmate19 nodobrardoséculoIXparaoX;ainstalaçãodoszaiditas(zayditas)20noYémen,em900;eocontroledocomérciodeShiraz,noGolfoPérsico,pelosbuyidasfizeramcomquemembrosdediferentes ramoshistóricosdo Islãopassassemaparticiparnasnavegaçõesno oceano Índico ocidental para emigrar e para se exilar. ibaditas21, zayditas, xiitas (shi’itas) ismaelitas ou ithna’asheri, sunitas deBarawi (no sul da costada Somália), árabes omanis (os harthi) constituíram deste modo constantes

17 Noanode536a.C.,oSultanatodeOmãinstalou-senumterritórioocupadoporpersasquejáeranaalturaumimportantecentrocomercial.AregiãofoiislamizadaemmeadosdoséculoVII.NoiníciodoséculoseguintefoisubmetidapeloCalifadodeBagdade.Em751,osultanatoadoptouoCaridjismo,correntedecarácterpuritanoderivadadoXiismo.NocomeçodoséculoXVI,osportuguesestomarampossedaregião.Masem1659foramexpulsospelosturcos-otomanos.

18 TheZanj revolttookplacenearthecityofBasra,locatedinsouthernIraqoveraperiodoffifteenyears(869-883AD).Itgrewtoinvolveover500000slaveswhowereimportedfromacrosstheMuslimempireandclaimedover“tensofthousandsoflivesinlowerIraq”.TherevoltwassaidtohavebeenledbyAliibnMuhammad,whoclaimedtobeadescendentofCaliphAliibnAbuTalib.Severalhistorians,suchasAl-TabariandAl-Masudi,considerthisrevoltoneofthe“mostviciousandbrutaluprising”outofthemanydisturbancesthatplaguedtheAbbasidcentralgovernment.TheZanjrevolthelpedAhmadibnTuluntocreateanindependentstateinEgypt.ItisonlyafterdefeatingtheZanjRevoltthattheAbbassidswereabletoturntheirattentiontoEgypt,andendtheTuluniddynastywithgreatdestruction(Fonte:http://en.wikipedia.org/wiki/Zanj_Rebellion).

19 qarmates ouraramenteKarmates (al-qarāmiṭa) são uma corrente dissidente do Ismaelismo que recuareconhecerofatimidaUbaydAllahal-MahdîcomoImã.Tornaram-sesobretudoactivosnoséculoXºnoIraque,Síria,PalestinaenaregiãodoBarheimondefundaramumEstado(c.903-1077)quecontrolouduranteumséculoacostadeOmã.Tinhampretensõesigualitárias,porissoforamdesignados«comunistas»,masmesmoassimeramesclavagistas.houveqarmates emtodasasregiõesporondemissionaram:Yémen,Sind,Khorasan,Transoxiane,África.Lançaramcampanhas militares contra osAbbassidas e também contra os Fatimidas, de que resultou osaquedeMecaeMedina,em930,oquelhetrouxeafamadeguerreirostemíveis.OIsmaelismodos qarmatesinfluenciado provavelmente pelo Mazdakisme, distingue-se pelo mesianismo,milenarismo e radicalismo da sua contestação das desigualdades entre os homens libres e daordemreligiosaexotérica.OtermoqarmatefoiusadocomumaconotaçãopejorativaaoconjuntodosIsmaélitasporalgunsautoresqueseopunhamaestacorrente.

20 Dinastiadematrizxiítano Iémen.O Islãochegouao Iémenporvoltade630, aindaemvidadoProfeta.Depoisdaconversãodogovernadorpersa,muitosdosxequese respectivas tribosabraçaramaféislâmica.Dedseentão,oIémenpassouafazerpartedocalifadoárabe.MasduranteoséculoVIII,governandoemBagdadeadinastiaAbacida,começaramasurgirpequenosEstadosindependentesnoIémen;nazonacosteirasurgiunoano819adinastiaZayidita(ouZayidí),deobediênciaxiíta,fundadaporYayhabenYahyabenqasimar-Rassi,queestabeleuumaestruturapolíticateocrática.Em1021osZayiditasforamsubstituidosporumaoutradinastialocal,osbanu nagagh,eestes,em 1159,pelosmahditas.

21 único ramo Kharijita sobrevivente no mundo contemporâneo, englobando a maioria dosmuçulmanosdoOmã,mascompequenosnúcleospresentesnaArgélia(oásisdeMzab),nailhatunisinadeDjerbaeemZanzibar.

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comunidadesactivasdecomerciantesimigradoscomexercíciodopoderpolíticoereligiosoementrepostosmenoresecidadesnaCostaorientalafricana.

Este renovado movimento oceânico para a costa oriental de África deuorigem,porconseguinte,apartirdoséculoXII,acolóniasdepovoamentoqueproliferaramatéàsIlhasdoBazaruto,etambémnovaledoZambeze,comojáassinalei.Comafixaçãodeárabes,persas, indianosearabizadosmuçulmanosprovenientes de entrepostos mais a norte, formaram-se comunidades mestiçascomacontribuiçãodapopulaçãolocalnumaosmosevariávelsegundomomentoshistóricos específicos. Portanto, ao longo do tempo, foram-se constituindoidentidadessociais,políticaseidiomáticasparticulareseautónomas.Umaquestãoimportanteparaohistoriadoreparaoantropólogoéaseguinte:porquesurgiramidiomas nesta região costeira moçambicana tão diferentes em comunidadesmuitopróximas?ComoexplicarqueatrintaquilómetrosdacidadedeAngoche22(Parapato)oidiomadeSangage(esakadjiouesangadji)23seja tãodiferentedoekoti24?Eestes,doenaharanaIlhadeMoçambiqueeregiãofronteiriça,emaisadiante do kimwani25 nas Ilhas de Cabo Delgado? hipótese 1: os respectivospovoadores asiáticos falavam línguas diferentes; hipótese 2: as populaçõesde origem local falavam línguas diferentes; hipótese 3: as duas anteriores emsimultâneo;hipótese4:aelitedominante,masnumericamentepequena,falavaumidiomadecorte,oárabe,oujáumkisuaíli26muitoarabizado,eosdiferentes

22 O topónimo Angoche designa hoje um distrito com uma parte continental e as ilhas Koti:Catamoio,Calukulo,Iarupa,Kelelene,Mithupane,Mbuzu,Kiluaeoutrasilhotas.

23 «AlínguadeSangageeosdialectosemqueestádivididasãofaladoshoje(1982)porumapopulaçãobastantereduzidaedispersapordiferentesrealidadesecírculosdosdistritosdeAngocheeMogincual.Osfalantesdeste idomavivememZubairi (juntodofarol),Charamatane,AmisseCharamatane,partedeMutêmbuaNamaeca,enumaestreitafaixadalocalidadedeNamaponda.Comalgumasvariantes,prolonga-separaquinga,Mogincualequivulani,comosnomesdeeKhinga,eTthwani,emwikwani ou simplesmente emaká.Os nomes alogineos porque são conhecidas as línguas deSangagesão:eTthwani eeTtettei, àsvezes dheidhei.Deorigemlocal: asakatji, esangatji (fora de sangage), eKhinga (línguadequinga),e emujinkwari (línguadeMogincual,Pe.AntónioPiresPrata, análise etnolinguística do xericado de sangage.ComunicaçãoaoIºSeminário Inter-DisciplinardeAntropologia.Maputo,UEM/DAA,Marçode1982. Aidentidadesangageousakatchiter-se-ácomeçadoaformarcomachegadaàpenínsuladeimigrantessuaílideSancul-regiãomaisanortesituadaentreMocamboeapontadoMossuril-,eaquiserefugiaramemestiçaramcomapopulaçãoresidente,queporsuavezteráocupadoazonavindadaMaganjadaCostaedoLardetrazendoconsigoelementosculturaiselinguísticos«maraves».EmSanculterãosidoencontradosepitáfiosdeimigrantesdeShiraz(Cabral,1975:141).

24 SobreoidiomaekotiverPrata(1982),ProjectoekotieNunesdeSousa(Coords),2001;Albinoet alii(2007).

25 Sobreokimwani háalgumaliteraturarecente.Destaco:Rzewuski(1979),Bento(1981a,1981b,1984,1988,1989).

26 SobreokisuaílideMoçambiquevideLopes(1961)ePrata(1961).Paraoprimeirodestesautores,«okisuaíliéumalínguabantoquetemossubstantivosdivididosemclasseseefectuaamaiorpartedas suasmodificaçõesgramaticaispormeiodeprefixos.Emboradebasebanto local,o

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estratos inferiores de imigrantes suaílis, mujojos (ajojo)27 e população local,incluindo numerosos escravos vindos do interior, comdiferentes falares, tudoqueoprocessohistórico transformou localmentenumkisuaíli específico,numcontextodeintensoerápidocomérciodeideiasedeculturasemmeiocosmopolita(apud Serra,1997:156).Defacto,nosdizeresdoslinguistas,todosestesidiomassãokisuaíli,nosentidoapropriadode«línguasdapraia»,distintasdaslínguasdointeriorque foramchamadasmais tardeelómwè eemakhuwa,28 poisacabaramtambémporsedistinguirentresi.(Duasnotasimportantes:1-estes«idiomasdapraia»tornaram-sereferênciasidentitárias,masnãonecessariamenteidentidadesétnicas;2-todososidiomaskisuaílidacostanortenhadeMoçambiqueestãoemviasdedesaparecerdevidoaointensopovoamentodolitoralcomgenteportadorade falares do interior, e tambémdos avanços da língua portuguesa nomundocrioulocosteiro)29.

PodemosdeduzirqueosdiferentesdialectoskisuaílidolitoralsetentrionaldeMoçambique,asaber,denorteparasul,kisuaíli de palma,kimwanidasIlhasquirimbas,enaharadaIlhadeMoçambique,esakadjiouesangadjidapontadeSangageeekotidasilhasepraiasdeAngoche,imaindonafozdoZambeze,tiveramorigememidiomas(edialectos)locaisquedeixarammarcasdiferenciadasnestas“línguasdapraia”.Sendoqueestahipótesepodetambémsercontrabalançadaourelativizada,emtodoouemparte,porumadiferençaidiomáticadosimigrantesasiáticos que chegaram. Seria de facto interessante que os etnolinguístas nosesclarecessemsobreasdiferençasesemelhançasdestesidiomas,semoqualnãopodemos avançar para estudos deAntropologiahistórica.De qualquermodo,mesmonãohavendoumkisuaíliuniformizadosurgiuumacivilizaçãoespecíficanolitoraleilhasdaÁfricaoriental.

2. o advento da civilização suaíli

ApartirdoséculoX,todasessasmestiçasbiológicas,culturaiselinguísticasnoscentrosurbanosrecém-criadospelosárabesealiadosnacostadaSomália,do

vocabulário está profundamente arabizado e com termos provenientes do persa, turco, hindi,portuguêseinglês»(Lopes,1961:131-2).

27 mujojos éopluralaportuguesadodemujojo.Nosidiomaslocais,dir-se-ámujojonosingularenopluralajojo.Ora, nadocumentaçãoportuguesa aparece erradamentemuitas vezes a grafia«ajojos»,numduploplural.

28 ParaumabibliografiadetalhadasobreosidiomaselómwèeemakhuwaconsultarMedeiros(1986,1987).

29 «Do interior partiam “razias” frequentes sobre as Cabaceiras, Mossuril, Matibane, Lumbo,Muratine,SanculoeLunga,naáreadasterrasFirmesfronteiraàIlhadeMoçambique,centroscomerciaisdepassadoescravocrata,eramalvoderessentimentosaindatransbordantesnadécadade1970»(Monteiro:2004:41).Aprogressãodefalaresdointeriorparaafaixacosteiratornou-sesobretudoevidentenacontemporaneidade,otrabalhodecampodeIsabelCasimiromostra-nosisso(2008).

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quénia,Tanzânia,Moçambique,ComoreseMadagáscaroriginaramumanovaáreacivilizacionalaquesechamousuaíli.

Aculturasuaílifoi,desdeaorigem,umaculturamestiçada,naqualelementosárabes,persas,indianos,maistardeportugueses(Prata,1983,Freeman-Grenville,1989: 235-25330) e ingleses foram sendo assimiladospelas culturas banto e jásuaíli,napresençaconfederadoradoIslãoquesedesguarnecia,aliás,damatrizarábica original de acordo com o fenómeno de aculturação a que presidia(Monteiro,1993:243)equeera,afinal,umadasdeterminantesdocrescimentoespectaculardanovaáreacivilizacional.

Emtodososcentrossuaíli,sunitasounão,haviaumaorganização social dual que diferenciava os detentores do poder económico, político, e religiosodosquedestepoderestavammarginalizados,querpelacorrenteislâmicadistintaque perfilhavam, quer pela origem migratória, quer pelo status social, sendoquegrandenúmerodeoriginárioslocaiseraservil,paranãofalardosescravospropriamenteditos,ospertencentesaossenhoresresidenteseosdonegócio,emtrânsito31.

As transacções comerciais faziam-se nos entrepostos do litoral (e doZambeze)ousuaproximidade.Provenientedocontinentepróximooudistantevinhamarfim,ouro,cera,assimcomooutrosprodutosdanaturezaeescravos,tudo encaminhado por chefes distantes através de sucessivos postos de apoiomontados ao longodas rotasdas caravanas.Atémeadosdo séculoXVIIInãotemos informação do Islão como fenómeno religioso entre as populações dointerior das terras continentais, temos apenas conhecimento de comerciantesmuçulmanosqueandavamnonegócioporessasparagens.

Entre os séculos XII e XV foram fundados entrepostos em Angoche,Sofala,quelimane, Ilha deMoçambique e nas Ilhas deCaboDelgadoque setornaramcentros importantes e florescentes.Masnenhumdelespretendeuumalargado domínio territorial. Aliás, os asiáticos procuravam instalar-se nasIlhasparaumamelhordefesa.Estascomunidadessubsistiamdaagricultura,dapesca, do comércio, mantendo em funcionamento vastas redes de trocas. Emtermosculturais,religiososecomerciaisdependiamdosflorescentessultanatosdequíloa(Kilwa)eZanzibar.Oprimeiroentrepostoreferidosituava-senosuldaactualTanzâniaondefoifundadonoséculoXºporumdignitáriodeXiraz,proveniente de Ormuz, passando a ser a mais importante das cidades-estado

30 Comumapêndicedepalavraskisuaílideorigemportuguesa(pp.250-253).31 Em Agosto de 1976 dei-me conta em Angoche e nas Cabaceiras destas estratificações. Na

Cabaceiraverifiqueiquehaviagentequeseafastavadocaminhoquandoseguiamporelepessoasde statusdiferentesegundoahierarquialocal.EmtodososidiomasdonortedeMoçambique,querdolitoralcomodointerior,hátermosespecíficosparadesignaros«cativos»dalinhagemeos«escravos»paraocomércioultramarino(Medeiros,1988,2001,2002).Mostreitambémquenãohavia«escravos»anascerdasárvoresounofundodasminas.Àpartidaosescravoseramhomensemulhereslivresqueforamviolentamentedessocializados(idem).

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mercantissuaílidaregiãoSul,controlandooacessoaSofalaeonegóciodoouronohinterlanddoZimbabué.Acidadeerahabitadapornegro-africanos,árabesdoGolfoPérsicoepersasdeShirazi.Estesúltimoseramsunitasderitochafitaoushafita32,constituindoamaioriadapopulaçãomuçulmana;mashavianaIlhaminorias zaiditas33, ibaditas e pequenas comunidades de xiitas duodecimanos,representados sobretudopor indianos Itha-Ashiri (Alexandre,1957:105,apud Pinto,2002).

3. Chegada dos portugueses no fim do século XV

AchegadadosportuguesesàcostamoçambicanaeapressãosobreolitoraldepopulaçõescontinentaisprovocouoabandonodealgunsentrepostosmuçulmanosnolitoralenovaledograndeRio,eoressurgimentoefortalecimentodeoutros(Angoche,p.e.).NoquerespeitaatodaaregiãodolitoraleilhasdaregiãocosteiradonortedeMoçambique,osportuguesesconquistaramaIlhadeMoçambiqueeasquirimbaspelasmesmasrazõesqueosárabesastinhamocupado,efundaramtambémumafeitoriaemquelimaneem153034.MasatéaofimdoséculoXVII,oquemaislhesinteressavaeraoourodoMuenemutapaeporissoincidiramasuaacçãoemSofalaenovaledoZambeze.Naaltura,aIlhadeMoçambiqueeraessencialmenteumapraçamilitarestratégicaeumportodeabrigodasnavegaçõesíndicasdependentesdasmonções.

3.1. Ciclo do ouro (séculos XVI e XVII)

EntreosséculosXVeXVII,depoisdaconquistadeMombaça35,em1593,os portugueses,mesmo sem impor uma autoridade sólida, penetraram até aosreinosdoouroasuldorioZambeze,enfrentandoaoposiçãoorganizadadosimãsibaditasdeOmã.

OcomérciodopreciosometalassumiuumadimensãofulcralnosséculosXVIeXVII,talcomosucedeuposteriormentecomocomérciodomarfim,sendoesteúltimoprodutosobremaneiraimportanteanortedorioZambezenosséculosXVIIeXVIII.Masporcausadoouro,nosséculosXVIeXVII,osportuguesespretenderamentrarparaohinterlandapartirdeSofalaparadominaros«cafres»36

32 É a escola religiosa que preside aos conceitos jurídicos de quase todos os muçulmanosmoçambicanos.FoifundadanaPalestinanoano767a.C.

33 XiítasqueaceitamoscincoImãs.34 Afeitoriafoifundadaem1530,foielevadaavilaesededeconcelhoem1763eacidadea21de

Agostode1942.35 mombasaemkisuahílieinglês,porvezestambémgrafadoMombassa.36 Dekafir- pessoaquenãoémuçulmana;infiel(termousadoentreosmuçulmanos);pessoanegra

daÁfricaaustral(pejorativo).

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eexerceroseudomínio,oqueprovocou,dealgummodo,orefluxo«mouro»paraolitoralanortedoLigonha.

Masnãosó.ApartirdoséculoXIVhouveumverdadeirorenascimenrosuaílideorigemafricananonoroesteeilhascircundantesdeMadagáscar.Fundaram-secentrosurbanosemLangany(naembocaduradoMahajamba),eKingany(nabaíadeBoina)tornando-seambasfeitoriasactivas.NestaseoutrascidadesdazonainsularmalgaxeaculturaeocomérciosuaílicontinuaramactivosatéaoséculoXIX,nuncatendosidoconsideradassúbditasdosportugueses(Vérin,1983:127).Poressascidadespassarammilharesdeescravos«macuas»e«mozambiques»embarcadosnospotosdonortedeMoçambique.Easredesislâmicasmantiveram-seestruturadascomolitoralafricanocomoveremos.

3.2. Ciclo do marfim (séculos XVII e XVIII)

Onegócio domarfim foi dominante no vale doZambeze e no territórionortenhonasegundametadedoséculoXVIIeduranteoséculoXVIII,continuandomuitoimportantenoseguinte.Foramoscaravaneirosdosreinos«maraves»dealémChire,emaistardeosdosjauas(ayao)doNiassanofinaldoséculoXVIIIedequasetodooséculoXIXqueseocuparamintensamentedestecomércio(como«produtores»enegociantes),enviandoparaacostapontasdeelefanteeoutrosprodutos,paratransportaremnoregresso,panos,missangas,salequinquilhariavária.Masnãoforamapenasascaravanasesuarededeabastecimentoedefesaqueinfluenciaramaspopulaçõesporondepassavam,prestigiandoe“enriquecendo”37osrespectivoschefeslocais,foramasinvasõesmilitaresdessesreinosocidentaiscomvistaaummaiorcontroledasrotasedonegócioquemaisimpactoprovocaramnascomunidadesdeagricultoresdaactualbaixaZambéziaedaparteorientaldaprovínciadeNampula.Apontodedoisprocessoshistóricosteremacontecido:refúgiodemuitagenteparaasterrasaltasdaZambéziadominadaspelosMontesNamúli, longedas rotasdocomércio;e formaçãodepoderosaschefaturas (oumelhor,pequenosreinos)comumaestruturapolíticadesacralidadedopoderdotipo«marave»38nasterrasmuitochegadasaosestabelecimentoscosteirossuaíli.

37 Nestadesignaçãonãocapitalista aqui, englobobensmateriais sobretudodeprestígios (panos,armas,pólvora–noseu tempo,missangas, cauris, etc., tãonecessáriosparaasestratégiasdopoderedoscircuitossociaissimbólicos.

38 Porpoderdotipo«marave»entendemosarealezaKaronga,UndiouRundo(Lundo)naqualachefiamasculinapertenciasempreaoclãphirieaesposadoreiaoclã«auctótone»banda.Paraalémdistopraticavam-senestesreinosritosterritoriaisrelativosàchuva,conhecidospormbonanasregiõesdoChireeparaoriente.«SegundoumaantigatradiçãorecolhidanoLarde,partedosprimitivosocupanteslocaisseriam«maraves»que,aocontráriodosislamizados,nãopraticavama circuncisão.E para o início do séculoXX,EduardoLupi (1907) relatavaque os principaischefes«macuas»daregiãodeAngocheseconsideravamdescenderdos«ma-rundos».Tambémem Moebase sobrevivia a recordação de uma invasão Rundo. Por sua vez, Mello MachadofotografouemSangageemmeadosdadécadede1960um«mascarado»dasociedadesecreta

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Ora,duranteestelongoperíodohistórico,estesreinosquecontrolavamocomérciodointeriorforamumtampãoàprogressãodoIslãocosteiroparaOeste,etambémofermentodediferenciaçõesentreaszonascosteiraseointerior,entreosuleonortedoenormeterritório,edezonasdecaçaedeformaçãodascaravanasnopróprio hinterland. Como anotouLiesegang (1998: 100), a questão da gestãodosrecursoseraindispensável,eaosinteressesexistenciaisdosgruposhumanoslocaisficaramassociadosespaçossociaiseidentidades.Terácomeçadoporessaépocaadiferenciaçãolinguísticadasduasculturasquesechamarãomuitomaistarde«lómuè»e«macua».Poroutrolado,o«repovoamento»dasterrasanorteeorientedosNamúli ficou registadocomosendoodaorigemmíticadosclãsquepassaramaestruturartodaapopulação,semexcepção,tanto«macua»como«lómuè»,populaçõesqueasimesmonãosedesignavamcomotalemuitomenosseconsideravamoueramtidoscomoumamacro-identidade.

DevoassinalartambémquedesdemeadosdoséculoXVIIeiníciodoseguintehouveum“renascer”doislamismosuaílianortedoRovuma,oqualdeuumnovoimpulsoao Islãocosteiromoçambicanoe, talvezmais importanteque isto,aoIslãoqueseexpandiupelasrotasdecomércio,agoraapartirdequíloa,PembaeZanzibaratéaoslagosTanganica,MwerueNiassa.NoquedizrespeitoàsterrasdeMoçambiquenestaregiãodoLagoNiassa,asuldoRovuma,algunschefesdosmontesYao,jáorganizadoresdecaravanasparaacostaeconhecedoresdoIslãocosteiroderamorigemapoderosaschefaturasdeangariadoresevendedoresdeescravos,epassaramaserdesignadosjauas(ayao):osquevieremdomonteYao.Alpers(1972:182)referetersidonestaépocaqueemergiuumanovageraçãodepoderososchefesjauasquedominaramaregiãoocidentaldolagoNiassaeoIslãoseinstalouentreeles.Esteautorconsideraqueaconversãodesseschefesfoicrucialparaaexpansãodo islamismoentreaelitedominante localatravésdo controle dos ritos de iniciação (da circuncisão à maneira muçulmana).Aconversãofoipoismotivadapelanecessidadedelegitimaçãopolíticaeritualepelointeresseemregularizaroslaçoseconómicoscomolitoralislâmico.

3.3. Ciclo dos escravos (séculos XVIII e XIX)

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a mercadoria humana suplantou ocomérciodomarfim.NotráficoestiveramenvolvidostodososchefessuaílidonortedeMoçambique,assimcomodoscentrosmuçulmanosdealémRovuma:quíloa,Pemba,Zanzibar,etambémdasIlhasComoresedoscentrosislâmicosdonoroestedeMadagáscareilhasadjacentes.Todosestesentepostosislâmicosse

«mashita»idênticaaumadasmáscarasdo«nyau»dos«maraves»,econsiderouqueasinvasõesZimbasoutracoisanãoforamqueinvasõesRundo(1970:224/225).Aliás,umamemóriaescritaporumanónimoem1794identificaaMaganjadaCostacomumaterradeocupaçãoRundo,ondeserealizavamdançascommáscarasnosritospluviaismbona»(Rita-Ferreira,1975:177).

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relacionavamnumaestruturaçãomercantilemrede,cujaanálisehistóricasaidoâmbitodesteestudo.Paraomeupropósitosobrea«macuanização»interessaaquiassinalaroressurgimentodosreinosafro-asiáticosdolitoraleilhas,entreorioLigonhaeorioLúrio,particularmentedosultanatodeAngocheedosxecadosdequitangonha,SanculeSangage.OsultanatodeAngocheconheceunessaépocaumaestruturaeorganizaçãopolíticapoderosas,tendochegadoadominartodasasilhaskotieumavastaáreacontinental,avassalandoporperíodososxecadosdeSangage,quinga,Larde,Moma,Naburi,MoebaseePebane39.Osnegreirosde todos estes centros islâmicos mantinham relações com Kilwa, Zanzibar,ComoreseMadagáscar,manifestando-sepoucoreceptivosaoscontactoscomosportugueses,emboranegociandocomnegreiroslusos,brasileiros,franceses,etc.Paraalémdestesentrepostosconhecidospelahistoriografia,proliferaramoutrosaolongodacosta,rodeadosporpopulaçõesnãomuçulmanas,masrelacionadascomossuaíliporrelaçõesdeparentesco40.

3.3.1. A reestruturação política e social no hinterland e as novas identidades regionais

Duranteacentúriaemeiaquepredominouotráficodeescravos41noNortede Moçambique, juntamente com outros factores como secas frequentes e achegada e correrias dos angoni42 na década de 40 do séculoXIX, houve umasériedemudançaspolíticaseculturaisdeimportânciaconsiderável.Antesdesteperíodo,oenvolvimentodamaioriadascomunidadesnortenhasnocomérciodoOceano Índico e do vale doZambeze, emparticular no comércio domarfim,terá particularizado comunidades do ponto de vista identitário e político,mas

39 SobreosultanatodeAngochehábastanteliteraturaedocumentaçãoprimáriaportuguesaeárabe,recordoapenasLupi,1906,1907;Amorim,1910,1911;Coutinho(1935,1937);Ferreira(1915);Machado,1970;Newitt,1972,1995;hafkin,1973;Pélissier,1984;Bonate,2002e2003.

40 Convémalertaraquiparaaseguintegeometriaparental.quandohomensárabes,persas,suaíli,indianos,portugueseseoutrosrecém-chegadosgeravamfilhosemmulherescomquemcasavamounão,pertencentesaumalinhagemmatrilinearlocal,essesfilhoscontinuavamasermembrosdessalinhagemmaterna,masdeacordocomoestatutodopai,balançaramaolongodoscontextoshistóricosentreumaeoutrafronteiraparental.Jáosfilhosdecativasedessesmesmosestrangeirosficavamdeimediatosobatutelapaterna,adstritosàsualinhagemlivre,masnãodandoorigemdeimediatoaumaoutra.Foramestesfilhoscativosquedesempenharamumpapelconsiderávelnascaçadas,guerraecomérciodaslinhagenspaternas.Muitasvezesforamenviadosparainstalaremanterpostosdecontroloedeabastecimentodascaravanasamuitosquilómetrosdedistância,comomostreinoestudosobreareestruturaçãodopodermacua-mêtonosuldeCaboDelgado(Medeiros,2000).

41 Estouafalardocomércio“legal”e“ilegal”parausarumaterminologiaocidental,queparaosafricanoseraindiferente.

42 PequenosgruposdeguerreirosngunioungunizadosquedeambularampelonortedeMoçambique,acabandoporseestabeleceralgumasfamíliasnaregiãodorioMsalo(Medeiros,1995).

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as escassas notícias que chegaram até nós e a debilidade actual dos estudoshistóricoselinguísticosnãonospermitemidentificardemaneiracorrecta,nemsubsequentemente fazer a abordagem das suas culturas históricas (Medeiros,2001a).Masparaoperíodobalizadoentrec.1720e1902,adocumentaçãoémaisvolumosaeconsistente,oquepermitealgumtratamentodaformaçãodeespaçossociaisedeestruturaspolíticasenvolvidasnessagrandetramaeconómicaesocialquefoiotráficodeescravos43.

Aos processos de formação identitária e de identificação, incluindolinguísticaquese foramdesenvolvendo“em territorialidadessociaiscomseussistemasdedelimitaçãoededefesa”(apud Liesegang,1998:102)voudesignar,por comodidade, micro-identidades, resultantes ou não de “etnização”44, massemprecomconfrontaçõespolíticasesociais,comoassinalouLiesegangparaosChpesLiesegang,1998:128).Tratareiapenasdasidentidadesdaáreageográfica«macua»quefoiassinaladaprimeiropelosárabesdoséculoXIIaoséculoXV,edepoispelosportuguesesnosséculosXVI,XVIIeXVIII,equenesteúltimocaso já excluía “maraves” e “bisas” do interior profundo, de além Chire, e,também,maistarde,oscomerciantes“jauas”quevinhamdasterrasanoroestedados«macuas».Tantoestes“jauas”,como“maraves”,“bisas”eoutrosgruposhumanosaocidentedosLagos,emboraenvolvidosnomesmocomérciodelongadistânciaerelevantesparaaproblemática«macro-macua»,comodeixeiantevermaisacima,não sãoaqui tratados,merecendocadaumdelese tambémo seuconjuntodiscursosespecíficos.

Antes demais é preciso dizer que em cada uma dessas territorialidadessociaisexistiriammecanismosinatosequaseautomáticosdedefesaedeexpansãoporquealbergavamrecursosimportantesparaasobrevivênciadosindivíduosedosseusdescendentes,ousejadogruposocial(apud Liesegang,1998:102),equeo“mundomacua”ou«paísmacua», chamadoporvezes«macua-lómuè»nuncaexistiucomoentidadehistóricaétnicaemacroétnicidadevivida,repitooque escrevi supra.Oque existiu foi umconjuntodemicro-identidadesnasterrascontinentaisdonortedeMoçambiqueaqueosárabesesuaílidesignavamgenericamentepor«macua»(«makhuwa»)equeosportuguesescontinuaramanomearassim,emboraparaumespaçogeográficomaisrestrito.Provavelmenteosmuçulmanos instaladosnas ilhasepraiascosteirasdoÍndicodistinguiriamalgumas dessas identidades, e, certamente, algumas das chefias com quemfaziamcomércio.Masnãochegouaténósesseconhecimento.Porsuavez,osportugueses retomaram a designação genérica «macua» mas foram-se dandoconta ao longodo tempo, lentamente, que essemundo eramais complexo, e

43 SobreotráficodeescravosvideAlpers,1975a,1975b,1982;Capela,1974,1988,1990,1993,1995;hafkin,1973;Medeiros,1988,2002a,2002b,2002c;Newitt,1972,1982.

44 Sobreaproblemáticada«etnizaçãoespontânea»equestõesdeidentidadeeetnicidadevideCarlosSerra,1998,2000.

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queosditos«macuas»eramumamantade“étnicos”,cujaspartesprocuraramenquadrar em novas classificações. Primeiramente, distinguiram os bororos45dos«macuas»namargemesquerda,ousejaanortedovaledorioZambeze46.Depois deram-se conta que na vizinhança dos estabelecimentos de ocupaçãolusa existiamou começavama surgir novas identidades, como,por exemplo,nobraçonortedodeltadoZambeze,emredordoentreposto fortificado,ditochuambo,naterradoslocais«macuas»referidosporFrei JoãodosSantos,ondecomeçavama“nascer”oschuabos47.Umpoucomaisanortedestes,descobririammuito mais tarde que, na Maganja48, os “macuas” eram diferentes.Assim seforamfazendosucessivasclassificaçõesaté1930,maisanomenosano,semprecomnovas“descobertas”49.Masentreestaúltimadataemeadosdosanos50,aeconomiacolonialeaspolíticasadministrativasdoindigenatofizeramtábuarasadasespecificidades,naquiloquefoiumaprimeiracriaçãohomogeneizantedamoçambicanidade,elocalmenteda«macuanização».Depois,láseforamdandoconta,sobretudoadministradoresemissionários,dasmúltiplasterritorialidades

45 Onome“bororo”é sugestivodadoqueoprefixo“bo”nas línguasbantu significa“terrade”.Sendoassim,bororoseriaaterradosRorooudosLolo,porquantonaslínguasdaregiãoo“reo“l”sãomuitasvezesconfundidos.OsRoro(ouLolo)pertenceriamaumgrupodeidentidadesheterogénias que foi designado “angurus” pelos anglosaxões, nome que foi substituido maistarde,noséculoXX,peloetnónimolómuè.Otermobororofoiporvezesutilizadoparaindicara população lómuè [lómwè] do vale do Chire [Nurse, 1975:123-135]. Nas crónicas e mapasportuguesesdosséculosXVIeXVIImenciona-sefrequentementeoterritóriodosBororossituadoanortedoRioZambezeealestedopaísdosmaraves.Porvoltade1500oslolosencontravam-seestabelecidosnosvalesdorioChireedorioRuoeemtodaamargemnortedoZambezeentreaquelesrios.OslómuèspropriamenteditospovoavamasterrasaltasalestedalinhadefinidapeloLagoChiutaeriosRuoeLugenda.SobreoetnónimobororoeseuusohistóricovideSerra,1997:114,115,nota86,134.

46 O territóriodasduasmargensdoRio foiuma regiãode trocasdedemateriaisculturaisedemestiçagens tão intensas como as correntes e redemoinhos do Zambeze e sempre com umanitidezmuitoefémera.Foium inter-fluxoespaciale temporalcomsucessivas reorganizaçõessociais e distribuição de items culturais com significações de diversas estruturas de naturezapolítica,ecológica,económicaedoparentescoquederamorigemaidentidadesparticularesnotempoenoespaço,semque,noentanto,tenhahavidoumaverdadeiradescontinuidadeentreelas.TratodissonumestudoapublicarsobreahistóriaeCulturaSenaaquechameimwala wa sena,numcontributoparaumaAntropologiadosRios.

47 Noutroestudoenglobeioschuabosnoprocessomestiçodovale,emostreialiadiferenciaçãodoseuprocessocomodossenasdaregiãodeSenaedosnhunguèsdeTete.

48 AMaganjadaCostatornou-seumamicro-identidadeespecíficaquandoantigoscativosguerreiroschicundasdosPrazosorganizarammilitarehierarquicamenteestaregiãodefundopopulacional«macua»equiçá também«marave»,masque tevepor igualocontributode inúmeroscativosfugidose,nestesentido,aMaganjaétambémumprodutoquilombista.SobreaMaganjadaCostavideCapela(1990),Serra(1997:150).

49 À medida que se foi montando o aparelho administrativo, os conquistadores europeus doúltimoquarteldoséculoXIXeprimeirodecéniodoséculoXXforamestabelecendosucessivasclassificações.

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sociaiselinguísticas,quandopassouaserconvenientediferenciar,semcobtudo«etnonacionalizar».Recomeçouparaeporissoaprocuradehistóriasantigaseainvençãodenovas.

Paraoperíododaescravatura,dasegundametadedoséculoXVIIIafinaisdo século XIX, vou mencionar os seguintes etnónimos no chamado “mundomacua”: mêtos (entre o rio Lúrio e o rio Msalo e Lugenda)50, chirimas (AltoLigonha,Malema,partedeAmaramba,GuruèeAltoMolócuè)51, eratis(Namapa,Nacaroa; Muicate e Macomia)52, chakas (Namapa)53, marrovones (litoral doLarde, Moma e Naburi)54, nampamela (Boila, Larde e Mluli) e mulais (terrasfirmesdeAngoche,NamapondaepartedeSangage)55.Masnãoforamosúnicos.Todosestesetnónimosdesignamidentidadesétnicasquetiveramorigemnuma

50 Oantigocentrogeográicodestegruposituava-senoplanaltodeMontepuezeterritóriosvizinhosdeNamunoeBalama.OclãmwekoniestruturavaedefiniaaidentidadedestegrupohumanonoqualoIslãopassouaserareligiãodaelitedominante.VerosmeustrabalhossobreosMêtos.

51 Chirimas tornou-se o nome regional de «macuas» e de «´lomuès» em Malema, Ribaue,AltoMolócuèeLigonha,comalgumasramificaçõesdialectaisemdirecçãoaolitoralÍndicoentreorioLigonhaeorioMeluli.Navarianteemakhuwachirimaumapessoaédesignadapelovocábulom’cherima oum’chirima cujosplurais são, respectivamenteacherima eachirima, termosquepassaramaserutilizadosparadesignaroshabitantesdessasregiões.ParaaregiãoChirimavideFranciscoA.LoboPimentel, relatório sobre os usos e costumes no posto administrativo de Chinga, 1927. (ManuscritoexistentenoArquivohistóricodeMoçambique).Ediçãoeme-BookdoCentro deEstudosAfricanos daUniversidade doPorto.Actualizaçãode fixaçãodo texto:ex-Comissão para asComemorações dosDescobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999.Notas:de rodapé e a actualização da grafia dos vocábulos macua no texto, entre parênteses recto,EduardoMedeiros.Edição:1.ª(Fevereiro/2009)Colecção:e-books.ISBN:978-989-8156-13-6.Localização:CentrodeEstudosAfricanosdaUniversidadedoPorto.http://www.africanos.eu

52 EstefoiogrupoestudadoporChristianGeffray(Vide Bibliografia).Curiosamenteoautornãoanalisouaquestãoislâmica,muitopresenteeimportante,noentanto,naquelazona.

53 Dorepovoamento«macua»apartirdosNamulidequefalei,umgrupodegentepertencenteaclãsdiferentesdesceupelasmargensdorioLúrioeinstalou-senasterrasdoErátinaproximidadedaserraChaka(ouShaka),daquallhederivouoepónimo.Desselocalexpandiram-seemdirecçãoaolitoraldooceanoÍndicoparaSEeNEdafozdorioLúrio,etambémparaoChiureeAncuabe.Masumaoutraquestãohistóricainteressanteseráparainvestigar:seonomeChaca(ouShaka,Chaka)daserraoudasgentesnãoestarárelacionadocomapassagempelolocalporvoltade1850deumgrupodengunisoungunizados.Aliás,onomedoclãmwekoni(pl.ekoni)dosmêtospoderátambémestarrelacionadocomos«angonis»(Lebouille,1974:7).

54 Nomepeloqual foidesignadaapopulaçãoquese fixounofinaldoséculoXVIIInafaixadolitoralquecorredorioLigonhaaorioMeluli.Oepónimoparecederivardemmaveroni,palavraquedesignaaquelesquevivememterrasalagadiçasepantanosas.AquandodaocupaçãomilitarportuguesanofinaldoséculoXIXecomeçodoseguinte,umdosprincipaischefesdestegrupo,Muatambompe, também conhecido por Muatope, opôs uma grande registência à penetraçãocolonial.

55 GentedesecçõesdeváriosclãsqueestariainsdtaladanaregiãodoMlai,nazonadePebane,queteráemigradoparanortecomachergadados«maraves».Reproduzindoasuaestruturasocialnasterrasagoraocupadasterãodadoorigemaumaidentidadeprópriaporalteridadecomosvizinhossuaílieoutros«macuas».

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antiga organização clânica matrilinear, muito segmentada, com linhagens queseagrupavamlocalmenteemchefaturasmuitofrágeise,porvezes,apenasemaldeiascomounidadepolíticamáxima,masqueaformaçãodeumpoderpolíticoterritorial hierarquizado, em rede, superior aos regulados, tornou possível oaparecimentodeumaidentidadelocalprópria.

Todososclãsantigosdo“mundomacua”–pelomenosapartirdoséculoXVIII–consideravamterumaorigemmíticacomum:osmontesNamúli,naAltaZambézia.Estemito está relacionado comasproblemáticasdo repovoamentodo território depois das invasões “maraves”, como já assinalei, por isso nãomevoudeternisso.Oqueproponhoéqueestesmitosdasorigensincorporamconhecimentose“verdades”quedãorespostaapreocupaçõeseanecessidadessociais.Porvezes,algumasdassuasversõesmaisextensasincluemprenúnciosmostrando que o acontecimento não veio por acaso;mas nem todos osmitostêmestes elementos cosmológicos legitimadores (Liesegang,1998:134).Ora,emcadaumadas identidadesmencionadas,osmitosdaorigemdosclãsmaisrepresentativoslegitimamaprimaziadeprimeirosocupantesdaterra(quenãooforam),dandoorigemaomitofundadordoprópriogrupo.Omitodaorigemdosmêtos, chacas, eratis, nampamelas, namarrais,etc.,datamdaépocaesclavagista,legitimamemostramcomoforamconstruídasestasnovasidentidades,negandototalouparcialmenteasantigas.

haviaclãsqueestavamrepresentadosnagrandemaioriadessasformaçõesgrupais.Ouseja:segmentosdeclãscomefectivosqueconsideravamterumamesmaorigemmíticadoclãprimordial,emborapertencessemseparadamenteacadaumdaquelesgrupos,mantendo,mesmoassim,umaidentidadefamiliarbaseadanoprincípiodafiliação(social).Àexcepçãodosmêtos,eramlinhagensdesses segmentos clânicos que detinham o poder. Não necessariamente domesmo clã em todos esses novos espaços identitários.Masmesmo que issosucedesse,nãoimpedia,contudo,queascomunidadeslocaisseconsiderassemdistintas e autónomas, a pontode teremoriginadodialectosparticulares.Nocasodosmêtos,que tenhovindoaanalisarnoutrosestudos,oclãdominanteeradiferentedetodososdemais,eteveumaorigemlocal.Talvezporisso,aidentidademêto nos surja diferente das restantes.Dequalquermodo, e paraopresenteestudo,o importanteéassinalarque, exceptuandoocasochirimadessaépoca,emtodososoutrosoIslãofoifundamentalnareestruturaçãodopoder.

3.3.2. o Islão e as elites africanas negreiras

No comércio esclavagista estiveram envolvidos muitos chefes negreirosdo interior que, por razões politicas e económicas do tráfico e da necessáriareestruturaçãodopodersupralinhageirousaramoIslãoparasesobreporàsregasdosclãsedas linhagensmatrilineareseparacooptaremos filhosparaassuas

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estratégias na montagem das redes do comércio56 (é que um sobrinho uterinopodia tornar-se autónomo a qualquer momento por simples fragmentação dalinhagem).Nesta fase, o Islão foi mais vivido como instrumento de ascensãoe promoção individual que religiosamente pela sua mensagem. ParafraseandoMacamo (1998:55), o Islãoproporcionouumquadrodevalores edenormasem paralelo à regra clãnica e linhageira, não a substituindo inteiramente masreelaborando-a, de modo a legitimar socialmente novos status.Veremos maisadianteaimportânciaqueteveoIslãodasconfrariasnosprocessospolíticosededisseminação,agorasim,dareligiãoislâmicapelointeriore,consequentemente,nareformulaçãoinculturativadenormasevalores.Umavezadoptado,oIslãofornecia a estas chefiasumaarticulação comoutras tambémmuçulmanasquelheeramuitoútilparareforçaremesmojustificarasuaposição.Mesmoassim,aacçãopropagandistaislâmicadaféantesdasconfrariasdoiníciodoséculoXXfoimuitoreduzida.

4. ocupação colonial

4.1. explorações e actuação do capital comercial europeu (c. 1848 – c. 1885)

Antesmesmodefalardanovadinâmicaimperialeuropeiaesuaimportânciana«macuanização»voufalardaascensãodosultanatodeZanzibar,quenaverdadecomeçounaépocaanterioràconquista,eteveumaimportânciaconsiderávelnadifusãodoIslãoesubsequenteresistênciaàocupaçãoimperial.Oadventodestesultanato inscreve-se no período da emergência do imperialismo britânico noÍndicoedas rupturasoperadaspelocapitalismo industrial, comoasdescreveuJoanaPereiraLeite(1996:74-76),quernaestruturadaseconomiaseuropeiasedocomércio internacionalquernas formasdepensara funçãoeconómicadosterritóriosafricanos.

4.2. Ascensão do sultanato de Zanzibar

NaprimeirametadedoséculoXIXregistou-seaascensãodosultanatodeZanzibar que adquiriu uma supremacia comercial e uma influência religiosasemparalelonaÁfricaOriental, comumdomíniopolíticoque se estendiadaSomáliaaolitoraldeCaboDelgado.Estedesenvolvimentoesteveassociadoaocrescimentodainfluência‘umani,istoé:reunificaçãodaumma,acomunidademuçulmana,eàtransformaçãodaantiga«culturaShirazi»naÁfricaOriental,jádecadentenaépoca, e tambémàpredominância esmagadorado IslãoChafita.Aomesmotempo,osindianosmuçulmanoscomeçaramadesempenharnaquelazonaumpapelcrescentecomocolonizadores.Emborasetenhamtornadomais

56 Vernota39.

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importantesnoplanoeconómicoquereligioso,trouxeramcomassuaspráticasumIslãosobformasmaispenetranteseagudas.

Nocontextodasrivalidadesentrecidadeseentrepostos(ouentregruposdealiados)nacostaorientaldeÁfrica,osultãodeOmã,SayyidSaid57compreendeuquenãobastavasersimplesagentedocomércio ligandocidades,masqueeranecessário controlar e desenvolver as trocas, favorecendo a penetraçãopara ointeriorereconstituirahegemoniaOmãninacostadeÁfrica.Porisso,conquistounovos entrepostos no litoralAfricano oriental e passou a organizar caravanascomerciais que penetraramno continente até aos Grandes Lagos (ondeTippuTip conquistouumenormedomínio). Por volta de 1840, o sultão transferiu asua corte para Zanzibar e fez apelo a negociantes indianos, na maioria xiítasdos Doze Imãs, para financiarem os seus empreendimentos de comércio nointeriorcontinental,sobretudonotráficodeescravos,mastambémnaplantaçãodecravinhonaIlha.Em1854regressouaOmãeoseufilhoMadjidherdouagovernaçãodeZanzibarem1856, tornando-se independentedeOmãem1861comapoiodosbritânicos.Em1870sultanatopassouasergovernadopeloirmãoBarghah,masfoitransformadonumprotectoradobritânicoem1890.

ParaalémdeumanovadinâmicadoIslãonaCostaOrientalafricana,foramascaravanasorganizadaseconduzidaspormuçulmanosquederamumverdadeiroimpulsoàdisseminaçãodoIslãonessasterrascontinentaiseàdifusãodeideiassufistas58 quepermitiramaformaçãoedesenvolvimentodasconfrariasnazona

57 SayyidMajidbinSaidAl-Busaid(1834-7deOutubrode1870)foioprimeiroSultãodeZanzibar.Elegovernoude19deOutubrode1856a7deOutubrode1870.

58 AdimensãomísticailustradanoIslãosunitapelosufismo(doárabetasawwuf)enoIslãoxiíta(shiita)pelognosticismo,(ar.`irfân),fazparteintegrantedareligiãomuçulmanaefundamenta-se noAlcorão, o texto sagrado dos muçulmanos, na sunna, a tradição profética, e sobretudonoexemplodoprofetaMuhammad:“TendesnoProfetadeDeusumbomexemplo”(Alcorão,33:21). Isto é, a “ortodoxia” muçulmana nem sempre concordou com as práticas do sufismoecomopensamentomístico,sobretudodecarácter teosófico.IbnTaymiyya(661-728/1263-1328),umilustrejuristahahanbalita,emitiumuitasfatwâ-s,consultasjurídicas,quecondenamapráticadomisticismoedocultodossantos.Osadeptosdestaescolacontinuam,aindahoje,osseusataquescontraosufismo.ÉocasodosWahabitasque,desdeoiníciodoseumovimentonoséculoXVIII,seguiramrigorosamenteasprescriçõesdaescolaHanbalita.PortantootasawwufnuncadeixoudeexistircomoelementodinâmicodopensamentoreligiosonoIslão.Osufismo,como prática, ultrapassa os limites habituais que determinam as fronteiras do Islão exotéricona medida em que o pensamento sufi participa na procura universal do divino. Esta procuraexisteemtodasasreligiõeseemtodasasfilosofiasmetafísicas.Aliás,aleiislâmica,ash-sharî`a,desenvolveumdiscursodirigidoexclusivamenteaosmuçulmanosenquantoosufismodesenvolveumdiscursouniversaleumensinamentodirigidosatodaahumanidade.Alémdeumaaplicaçãoliteraldalei transmitidapeloprofetadoIslão,osufiprocuraviverumaexperiênciadirectadeDeus.Assim, o sufismo passou de uma organização bilateral caracterizada por uma ligaçãoverticalentreohomemeDeus,paraaorganizaçãotriangularcomdoistiposderelacionamento.Oprimeiroéhorizontal:entreomestreespiritual,shaykh,eodiscípulo;osegundoévertical:entreodiscípuloeDeusatravésdaorientaçãodoMestreeducador.Estaorganizaçãotriangular

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continentalenasIlhas.FoipoiscomaemergênciadeZanzibarcomopólopolíticoeeconómicoregional(abrangendooTanganica,Comores,regiõesnorteeocidentedeMadagáscar,nortedeMoçambiqueeMalawi)duranteasegundametadedoséculoXIX,ejánumcontextodeofensivaimperialeuropeia,queseexpandiude modo consistente o sufismo e verdadeiramente começou a missionação doIslão no interior continental (Martin 1976; Nimtz 1980). Com a progressãodo movimento sufista foram-se estruturando várias confrarias ou irmandades (turuq, singular: tarîqa,ouemportuguês taurica,palavraquesignifica“via”ou“caminho”).Cadaconfrariacomoseulíderespiritualcujalegitimidadelheeraoutorgada pelo chefe precedente ou pela irmandademãe através de uma buladecertificaçãochamadasilsila(Macagno,2007:nota5).Éoportunoreassinalarqueomovimentosufistaseexpandiunacostaorientalnocontextodaconquistaeuropeia.Porvoltade1880chegaramaZanzibarxequessufistaspertencentesàCaderia(vindadoNorte)eàChadulia(vindadasComores,quejáera,àdata,umcentrodeirradiaçãoconfrérica).Masnãoeraapenasummovimentomísticoo movimento sufista nesta zona, a partir de Berbera, na Somália, em 1895,Muhammadb.‘AbdAllâh,depoisdeteraderidoàconfrariaSâlihiyyaemMeca,lançou-secomoseumovimentoconfréricocontraapresençaocidental.Sófoiesmagadoem1904.Por suavez,no suldoTanganica,deu-seo levantamento

estánaorigemdoestabelecimentodeumprocessoqueacabaránaconstituiçãodasconfrarias,turuq(sing.tarîqa).AconfusãopolíticanomundoislâmicoapartirdoséculoIX(séculoIIIdaeramuçulmana) teve umpapel importante neste processo: 1) o desaparecimento dos regimesshiitas no Irão e no Oriente-médio; 2) o domínio pagão depois da conquista mongol, pelomenos no início desta conquista.As primeiras Confrarias apareceram neste contexto e serãodesignadaspelosnomesdosmestresespirituaisfundadores:al-qâdiriyyaeAbdal-qâdiral-Jilânî(ob.1166)emBagdadenoIraque,al-rifâ`iyyaeAhmadal-Rifâ`î (ob.1182),al-madyâniyyaeAbû Madyan al-Ghawth (ob. 1197), as-shâdhiliyya e Abû al-hasan As-shâdhilî (ob. 1258),al-kubrawiyya e Najm ad-Dîn Kubrâ (ob. 1221), ash-shishtiyya - na Índia – e Mu`în ad-DînShishtî (ob.1236).NosséculosXIIIeXIVapareceramal-mawlawiyyade JalâlAd-dînRûmî(ob.1273),al-biktâshiyyadehâdjîBiktâsh,an-naqshabandiyya-naÁsiacentral-deBahâ’Ad-dînNaqshabandî(ob.1389),as-safawiyyadeSafiyyAd-dînal-Ardabîlî(ob.1334)(Azerbaijãooriental),al-khalwatiyyade‘Umaral-Khalwatî(faleceuemTabriznofimdoséculoXIV).NoséculoXVapareceuaconfrariaash-shattâriyyade‘AbdAllâhAsh-shattârdaPérsia(ob.1485).Todasessasconfrariasprosseguiramoseudesenvolvimentoeramificaram-sevindoaconstruirnovas confrarias derivadas. O fim do século XVIII e do século XIX são dois momentosparticularmente ricos em movimentos de renascimento do pensamento sufi e da prática dosufismo.Mawlây al- ‘ArbîAd-darqâwî (ob. 1823),AhmedAt-tijânî (ob. 1835) eAhmed IbnIdrîs (ob. 1837) constituem três exemplos ilustrativos deste renascimento.Os seus discípulosfundaramtambémváriasconfrarias: idrîsiyya, râshidiyya,mirghâniyya,sanûsiyya...Umaredecomplexa de confrarias místicas foi constituída através dos séculos em todas as sociedadesmuçulmanas;mesmonasregiõesondeosregimescombatemosufismoeproíbemasconfrarias,comooIémennaépocadosshiitaszayditas(de901até1962)ouaArábiaSauditaapartirdadomíniodadoutrinaWahabitanoséculoXIX–vermaisadiante.Nuncaestesregimespolíticosconseguirampararaacçãoeadifusãodosufismoquecontinuaserclandestinonestaszonasdomundoislâmico(http://fundacaomaitreya.com/artigo.php?ida=304).

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Maji-MajianimadopelosNgindoqueusavam«magiasislâmicas»,convertendo--seaseguiraoislamismo.OsmuçulmanosdolitoralnortenhodeMoçambiquenãoeramobviamentedesconhecedoresdetodosesteseventosefervoresreligiososeidentitárisislâmicos.

Das ilhas Brava, Lamu, Mombaça, Kilwa, Pemba, Zanzibar e Comoreshouveumaexpansãoislâmicaeumaofensivadeensinocorânicoemreacçãoàconquista colonial. (As rotas zanzibaritas foramsubstituídaspelas comorianasnosanos60doséculoXXporcausadarevoluçãode1964,quandoJohnGideonokello destituiu o sultão Jamshid bin Abdullah e proclamou a república emZanzibar59;essasúltimasrotaspassaramaserasmaisimportantesnasligaçõesàArábiaSaudita).NasterrasnortenhasdeMoçambique,oensinocorâniconasmadraças60,oumesmoforadelas,consistiudurantedécadasnaaprendizagemdoAlcorão61emárabelitúrgico,emuitasvezesemkisuaíli,semprecomumsuporteescritoemcaracteresarábicoscomquealgunsconseguiamlereescrevertambémasuapróprialínguamaternaeoutrosidiomas62.Osversículoseramescritosem

59 O afro shirazi party, em parceria com o enquadramento ideológico e militar dos partidáriosdoumma partydesencadearamainsurreiçãodeJaneirode1964,dita“revoluçãodosafricanoscontra os árabes”, que teve como consequência política a união de Zanzibar ao Tanganica.Muitos emigrantes e refugiadosmoçambicanosdonorteda colónia assistiramaoprocessodedescolonizaçãodesencadeadopelaunião do partido nacionalista de Zanzibar(ZNP),partido dos povos de Zanzibar e pemba(ZPPP)eunião nacional africana do Tanganhica(TANU),deJuliusNyerere.Recordoquealgunsdessesemigranteserefugiados,sobretudomacondes,criaramem1959/60amozambique african national union(MANU).MuitosdosmacuasqueforamparaalémRovumaerammuçulmanos.

60 Com frequência aparece escrito «madrassas», e na Guiné-Bissau madrass. Será importanteumestudo comparadodas antigasmadraças confréricas e das «novasmadraças»dos letradosislâmicos,foraedentrodasconfrarias.

61 Segundo o dicionário etimológico da língua portuguesa (de José Pedro Machado, Livroshorizonte,Ediçãode1989), «modernamenteusa-se escreverCorão, sobo falsopretextoquealcorãoépleonasmo,poisapresençadoartigodefinidoarábicoal-tornariadesnecessárioousodoo,mastalformaéglacicismoeadoutrinaexpostaerrada»(Iºvol.p.183).alcorão(doárabeal-qur’ãn)-Significaliteralmente“aleituraporexcelência;Recitação”.Éolivromaissagradodoislão,consideradopelosmuçulmanosapalavradeDeusreveladapeloanjoGabrielaoprofetaMaomé.Otextoconsisteem114capítulos,cadaumdesignado“sura”(emárabe).Cada“sura”éclassificadosegundoaproveniência-MecaoudeMedina,ascidadesondeMaomérecebeuasrevelaçõesdivinas-ecadaumaestádivididaemversículos.

62 «AlínguaárabetevenazonacosteiradaÁfricaorientalenasIlhasComores,SeychellesenapartedacostadeMadagáscaropapelsemelhanteaolatimnaEuropamedieval.Foiinicialmenteaúnicalínguaqueseescrevianestazona.Atravésdeladivulgaram-setextosreligiososeliterários,tratadossobreamedicinatradicional,roteirosdenavegaçãomarítima.Escreviam-setambémasCrónicasdossultanatosqueseexpandiamnabasedecidadescosteirasnaÁfricaoriental.Porexemplo,graçasàCrónicamedievaldeKilwa(Tanzânia)conhecemosahistóriapré-colonialdaantigaSofala.Nãoépossíveldeterminarcomexactidãoquandocomeçouaserescritaalínguasuahílicomcaracteresárabes(...).Algunsestudiososestimamqueesseprocessose iniciounoséculoXII,masosmanuscritosmaisantigosemkiswahílidatamdemeadosdoséculoXIII,e

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tábuas (cabr) eos aprendizes repetiam-nos inúmerasvezes.Dentroe foradasconfrarias,asescolascorânicaselementaresdesempenharamumpapelessencialnapropagaçãodoIslãoenapreservaçãodaidentidadesuaíli.Maistarde,duranteaocupaçãocolonial,aexpansãodestasescolastradicionaispelointeriortornou-seumaresistênciaàculturaocidental,contribuindoparaumaidentidadederecurso,mas dando também origem a um outro fenómeno: a introdução da escrita noseiodosfalantesdeidiomasmacuasondepredominavaaoralidade;aescritaemárabecomomaistardeemportuguês,tornou-seoutrofactorimportantíssimodemacuanização63.

4.3. o Islão das confrarias64

Asconfrariasouirmandadesestruturam-sesobreumprincípiodefiliaçãoespiritualassociadoapráticasiniciáticassufistas,permitindoconciliaroslaçosfirmesqueunemosseusmembrosaumaaberturareligiosaàspopulações,nasquaisrecrutamnovosmembros.Aadesãoaumaconfrariaévoluntária.Fazendo--o,torna-seoneófitomuçulmano.Poresteactosingelo,oiniciadofazseusoselementos rituaisda irmandade,passandoa respeitaroscincopilaresdo Islão(declaração de Fé, orações diárias, cumprimento do ramadão, esmola, eperegrinação a Meca, e aos lugares dos fundadores das confrarias-mãe). Aproclamaçãodeadesãomanifestaoactovoluntáriofundadordaconversãoeasubmissão ao guia espiritual, que de algum modo exprime a hierarquia nestacorrenteislâmicaesecoadunamaisaopensamentolocal,e,porintermédiodele,umarelaçãoqueseestendeaoconjuntodosmembrosdairmandade.Recordemosquenasredesmercantisqueligavamcomunidadessemescrita,apalavradadaconstituíaumpilarfundamentaldaspráticasdecomércioalongadistância.Paraalémdisto, a adesão a uma confraria introduzia o discípulo num contexto defiliaçãodiferentedasuafiliaçãosocial,colocando-odestemodonumacontinuidademísticaqueoligavaaosfundadoresdairmandade,quiçáaoProfetaesuafamília.Esta filiaçãomísticaexprimeum renascimentodo indivíduo,queoautorizaa

foramencontradosnoarquivodeGoa,oquecomprovaqueosportuguesesestavamdealgummodoenvolvidosnesseprocessodecomunicaçãoescrita».(EugeniuszRzewuski,preservação de manuscritos literários e históricos em escrita árabe. Comunicação no Seminário sobrepreservaçãoevalorizaçãodopatrimóniocultural.Maputo,RPM,MEC,Janeirode1981).Em1976tiveoportunidadedevernaIlhadeAngocheumacrónicalocalsobrealgunspersonagensdosultanatoescritaemárabe.Consegui fotografaraspáginassobreagenealogiadeSulduaneMuassuboMólide,Faralahi,esobreosM’Ruma(reis),quemandeidepoistraduzir.

63 Sobre os letrados do norte de Moçambique vide Liesegang (1992: 37-65), Macagno (2006:Capítulo4)eBonate(2008).

64 ParaummaiordesenvolvimentodestaproblemáticavideAlpers,1972,1999,2000;André,1998;Arnfred,2004;Bonate,1999,2005,2006,2008;Carvalho,1998;Constantin,1983;Macagno,2006a,2006b,2007;Martin,1986;Medeiros(1999:54-69);Monteiro,1989,1993ª,1993b;Pinto,2002.

EDUARDOMEDEIROS218

reivindicar,maisoumenosexplicitamente,umposicionamentosocialeculturaldiferentedaquelequeerao seuna sociedadedeorigem.Porestemeio,podiaescaparaumstatusdemarginalidadesocial,atédegradante,comoodaexclusãopor sermaisnovonagenealogiaposicionalou filhodemãecativa.Oneófitopodiaidentificar-secomoscomerciantesdascaravanas,nasquaiserainvestidodenovossaberescomerciaisereligiosos,ecolocadonumadiferenterelaçãodeforçamaisvantajosafaceaosmembrosdasuaprópriaedeoutrascomunidades.Porpartedosdignitáriosdasirmandades,oprocedimentoiniciáticoimplicaumaconcepçãodetolerânciaquepermiteaceitarcomodiscípuloumapessoacomumcomportamentoreligiosoconsideradoprimáriopelosletradosmuçulmanos,masestandosubentendidoqueaaceitaçãodoneófitomanifestaaesperançadeumprogressivoconhecimentoreligiosoeumamelhorinserçãonoIslão.

Dandocontinuidadeàsrelaçõesjáantigasdecomércio,políticasereligiosasemesmodecirculaçãodepessoasqueomundosuaílimoçambicanomantinhacom Kilwa, Zanzibar, Comores e Madagáscar, as confrarias tornaram-se umextraordinário meio da expansão islâmica nas terras costeiras a norte do rioZambeze,masestendendoparaoSulasuainfluêncianodecorrerdaocupaçãocolonial,ondesedesenvolveuaquiealicomumaacentuadavitalidadedepoisdadécadade195065eparaascomunidadesdiaspóricasaNortedorioRovuma.

As irmandades que se estruturaram em Moçambique pertencem a doisgrandesramosconfréricossufistas:Chadulia(Chadhiliya)eCaderia(qadiriya).Umaoutraconfrariachamadarifa’iyyaéreferenteaos“homensdoMaulide”66e estava na época apenas representada na Ilha de Moçambique,Angoche enumou noutro centro suaíli do litoral.A primeira das irmandades islâmicasmoçambicanas surgiu na Ilha de Moçambique em 1897 e teve uma origemComoriana, mas proveniente de uma remota formação iraquiana. Cindiu-sedepois em1924e1936,dando lugar a três Irmandades:Chadulia liaxuruti,Chadulia madania, Chadulia itifaque67. À data da formação deste ramoconfréricona IlhadeMoçambique, comoadooutro ramo sete anosdepois,estava-se,noprimeirocaso,emplenacampanhacontraosNamarraisecontraos xeques costeiros da zona. Era governador do distrito o capitão EduardodaCosta.Aquandodaformaçãodooutroramo,jácomamaioriadosgrupossuaíli da região submetidos, entrara-se na fase de expansão da conquista do

65 VideaformaçãodeconfrariasnaáreametropolitanadeLourençoMarques.66 ApalavraárabeMawliddeondederivouMaulidesignifica«aniversáriodoProfeta».Aconfraria

dos«homensdoMaulide»fazassuascerimóniasporocasiãodeumqualqueracontecemento,independentementedadatadoaniversáriodeMaoméoudofundadorda irmandade.Nosseusrituaissãofrequentesatranse,autoflagelaçãoeautilizaçãodeestiletescomqueferemocorpo.Estaconfrariaformou-senaIlhadeMoçambiqueouAngochepelamesmaocasiãoqueasoutras,etambémchegouaquivindadasComoresouZanzibar.Todavianãoteveadifusãoeaderênciaqueasrestantes.ParamaisinformaçãovideMacagno,2006,Capítulo5.

67 Sobreacriaçãodestaúltima,videAlpers,2000:311.

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interior,sendogovernadorcolonialdazonaocapitão-tenenteSerpaPimental.O sultanato de Angoche foi definitivamente ocupado poucos anos depois68.Emboranãopossamosestabelecerumarelaçãodecausalidadeentreaconquistacolonialeaformaçãodasconfrarias,aderrotadaschefiaspolíticaseeconómicasmuçulmanas locais,naturalmente teráabertoespaçoàreformulaçãoreligiosade caráctermístico emessiânico, coisa frequente em situaçõesde crise edeanomiasocialemdiversoscontextoshistóricos69.

AprimitivaCaderia(qadiriya)ouCadriaformou-senaIlhadeMoçambiqueem1904,tendocomofundadorumconfradeprovenientedeMadagáscar,sendoa irmandade de origem Omanita. Na Ilha e terras firmes vizinhas conheceucisões em 1934, 1945, 1953 e 1964, dando origem às seguintes irmandades:CaderiaBagdade(Bagdá),CaderiaSaliquina(Salikina),CaderiaJeilane,CaderiaMachiraba (Masheraba ou Macherapa)70, Caderia Sadat. Todas estas fracturasresultaram de disputas internas que visavam, em última instância, à detençãodo poder, embora houvesse quase sempre argumentos de natureza religiosae organizacional.Os fundadores locais das irmandades de origemzanzibarita,comorianaou iraniana, namaioriamestiços de vários cruzamentos anteriores,identificadoscomosestratossociaismaispreponderantesdaIlhasuahilizadaenegociante,foramcedendomuitocustosamenteafunçãopolarizadoraapessoaslocais,mestiços suaíli de dominância negra «macua».Nos dois primeiros dosseis escalões da hierarquia confraternal (Xehe, Halifa, naquibo, mucadamo, Chauriaemuribo)71agrandemaioriadosdignitárioseranegro-africanalocalnasterrascontinentais,paranãofalardosquatroúltimos.Nascomunidadesdolitoralverdadeiramentesuaíli«moçambicano»umououtrodirigenteeraorigináriodeantigasfamíliasdeimigrantes.Àmedidaquefoicrescendoaescolarizaçãolocalemlínguaportuguesa,mastambémnaescritaárabedosmoçambicanosdaregião,equeseacentuouadecadênciadossenhoresdocomércioantigo(Monteiro,1993:97), acelerou-se a partir da II Guerra Mundial a proeminência dos dirigenteslocaisdasconfrarias.

68 ParaahistóriadaconquistacolonialdetodoestenorteeépocavidePélissier,1987,vol.I:54-73.RecordotambémqueasIlhasComores,ondesefalaokisuaílimahorian,passaramaestarsobdominaçãofrancesadesde1886(emboraailhaMayotetivessesidocedidaàFrançaem1841).

69 Sobre os movimentos sufistas há bastante literatura para a África ocidental e menos para aOriental;relevoalguma:Trimingham(1971),Amir-Moezzi(2003),Demerghem(2005),Popovic(2005).Sobreigrejas,seitasemovimentoscristãosmessiânicoseproféticosemÁfricahátambémbastanteliteratura.

70 SobreasucessãodaCadriaSadateaparecimentodaMachiraba,LorenzoMacagnoleunaTorredoTombo,emLisboa,umdocumentodoSCCIM,intitulado:o problema da sucessão na Cadria sadat. aparecimento da Cadria machiraba. espírito de Cooperação das confrarias islâmicas(ANTT.SCCIM,PIDE,DelegaçãodeMoçambique.RelatórioSumário(26/6/1967),Porc.362,Cx.71,fls.187-188,apud Macagno,2007:1554,nota8).

71 Vide Glossário.

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Emcadaumadas irmandadeseramtecidas relaçõeseconómicas,sociais,jurídicasepolíticasentreosmembrose,atravésdecadaumadelas,relaçõescomasoutrasirmandadesecomtodaacomunidademuçulmanadaregião,tendoosrespectivoschefeserestantesdignitáriossuplantadonasfunçõesenoprestígioasantigasautoridadeslinhageiras(Medeiros,1999:71-74).Asconfrariaseram(e são) essencialmente o espaço social de ajuda-mútua, em particular no quediz respeito aos funerais de confrades falecidos, e tambémuma rede especialde relações familiares, sociais, económicas e jurídicas que ligamosmembrose, através de relações de parentesco e das inter-relações das hierarquias, umatramaderelacionamentoscomoutrasconfrariasecomarestantecomunidade.«Asconfrariascoexistiam,rivaisentresi,masreunindoparaoimprescindíveleaídemonstrandoaltacapacidadenegocialependorunitário»(Monteiro,2004:42).Apertença auma irmandadepode acontecerporvia familiar, omaisdasvezes,oupor livreadesão,havendocasosemquea filiaçãoaumaouaoutradependiadodinamismoecapacidadedemobilizaçãodolídererestanteszeladoresda confraria.É de assinalar que, devido àmatrilinearidade local, umamulherpertencegeralmenteàconfrariadasuamãe,masoseumaridopodiapertenceraoutraconfraria.Ecomonumairmandadeestãomembrosprovenientesdasmaisdiversaslinhagensdasociedadecostumeira,asrelaçõesentreeleseasrelaçõesentreasconfrariastornam-semaiscomplexasqueasantigasrelaçõeslinhageiraseinter-linhageiras,emboraalgumasregrasdedireitoclânicosetenhammantido,sobretudonossegmentospoliticamentedominantesedosquaissaem,geralmente,osresponsáveisdasirmandades.Éaníveldasrelaçõesentreasconfrariasquesepassavamaresolverquestõesrelativasaocasamento,adultério,divórcio,enterros,etc.Osritosdeiniciação,tantodosrapazescomodasraparigascomfamiliaresfiliadosnumairmandadepassavamtambémaserislamizados,etornavam-seumaquestãodepoderdaconfrariaenãodaautoridadetradicional(Medeiros,idem, ibidem).A religiosidade islâmica continuou, todavia, a ter sempre elementosreligiosostradicionaiseosufismolocaldasconfrariaspropagavaumacredulidadeemrelaçãoàscrençasepráticasmágicas.OsmaisfamososcurandeirosdoNorteeramesão(videanúnciosemjornaisdacapital)deste«mundosufista».

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Meninosacopiaremumtextoreligioso,IlhadeAngoche,Julhode1976,Fotografiaminha,E.M.

4.2. ocupação e administração da colónia

O período de ocupação colonial efectiva e, concomitantemente, dasresistênciasactivasnonortedeMoçambiquedeu lugaràquiloquechamofaseda «macuanização» do território ao distinguir o «espaço macua» dos outros,nortenhos.Poroutrolado,aderrotadaschefiaslocaiseasubsequentemontagemadministrativa “nivelou” as sociedades regionais onde havia já diferenciaçõessociais hierarquizadas, remetendo-as para as antigas estruturas das linhagense de grupos de linhagens com as suas chefias quase sempre escolhidas paraservir a administração portuguesa e as Companhias. Nos centros suahilizadosdolitoral,tambémaspoderosaschefias(desultõesexeques)foramderrotadas,mas manteve-se uma estrutura social e religiosa muito hierarquizada que sólentamentesefoiesboroandoporquedeixaramdeexistircondiçõeseconómicasepolíticasparaasuareprodução.Nestescentrospopulacionaiseaseguiremtodasascomunidadesmuçulmanasqueseforamexpandindopelointerior,asestruturasdo poder nos sultanatos e xecados transferiram-se de algum modo para asconfrariasislâmicas.Ocorreutambémumoutrofenómenopolíticoesocialnestafase:paraocolonizador,deixoudehaver,naprática,diferenciaçõeslinguísticase culturais regionais.Passarama ser todos«negros»,«indígenas»e«macuas»a assimilar, num processo de indigenização. quase mais ninguém falou dos

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namarrais72,mêtos,Chirimas,Chacas,erátis,mulais,etc.Estasespecificidadesregionaisapenasviriamaserredescobertasnosanos50pelosmissionáriosdasdiferentes«Casas»paradefenderosseusterritóriosdeinfluência73etambémporalguns administradores etnógrafos defensores dos “Usos e Costumes”, numaalturaquejásepensavaacabarcomoestatutodoindigenato,oqueviriaasucederem1961.Mas justamente, porque o Islão sufista e o cristianismo inculturadovalorizavamosidiomasepráticasculturaislocais,aaboliçãodoindigenatonãosurgiuefeitoimediatonestasregiões,comonoutras,aliás,atestadasporLiesegang(1998:128).

Depois da derrota militar, a resistência à ocupação e montagem daadministraçãocoloniaispassouaseressencialmentecultural74,eoIslãofoiolugarprivilegiadodessaresistêncianasregiõesemqueeraoprincipalcredoreligioso.Noutras regiões da colónia as igrejas cristãs negro-africanas desempenharamessepapel.ParaosfiéiscatólicosnegrosasuaIgrejafoiumespaçoambíguodeassimilacionismo.UmimportanteperíododeislamizaçãodonortesucedeentreasguerrasdeocupaçãoeaIªGuerraMundial,tantomaisquemilharesdesoldadosmuçulmanosdoimpériobritânicoactuaramnoterritório.Umsegundoperíododeexpansãodesenrolou-sejácomaocupaçãoefectivada,apesardanaturezacatólicadocolonialismoportuguês,cujamissionaçãofoimuitorudimentaratétardenosanos30,sobretudonosterritóriosdaCompanhia do niassa.Duranteaconstruçãodocaminho-de-ferrodeNacala,75começadanosanos30,foramutilizadosmuitos«coolies»indianos,aomesmotempoqueseestabeleceramcomerciantesasiáticosnointerior,algunsmilharesnosanoscinquenta,amaioriamuçulmana(hafkin1973;Alpers1999:302-325).EmboraoIslãodematrizasiáticafossesunitada

72 SobreaorigemdopoderioNamarraleseudesaparecimento,LuísaFernandaG.MartinsdefenderábrevementenaUniversidadedeÉvoraumatesededoutoramentosobreosnamarrais do antigo distrito de moçambique: percursos identitários e resistências (1857-1913).

73 Seriamuito interessanteumestudo linguistacomparativodeBíblias,Catecismo,outros textoslitúrgicoseatéprofanosescritospormissionáriosdessas“Casas”emterritóriomacua,cadaqualconsiderandoo “seu” emaklhuwa comoopadrãoe agrafia amais apropriada.Tambémseriainteressante um estudo no âmbito da sociologia das religiões do funcionamento missionáriodessas“Casas”edoposicionamentodosseusmembrosfaceàLutadeLibertaçãoNacional,aoIslãoe,depois,àguerracivil.OstextosdeMorier-Genoudsão,dealgummodo,apologéticosdamissionaçãoenãoconvincentesnestedomínio.

74 Adquirindo também formas sociais de resistência passiva, económica (como sabotagem), etc.Sobreestatemáticaahisdtoriografiamoçambicanajáproduziuinvestigaçõemuitorelevantes.

75 ComeçouaserconstruídaapartirdeNampula.OtroçoNovaChavesaMutivazeficouconcluídoemDezembrode1932,ea1deOutubroatingiu-seRibáuè.OtroçoRibáuè–Iapalaconcluiu-semFevereirode1936.Em1937alinhachegaaNamitarara,eem1939,Malema.Mutuálifoialcançadaem1941,eNovaFreixoem1950.O troço rioMonapo /Namarral concluiu-seemFevereirode1945,eotroçodoNamarral/NacalaficouconcluídoeabertoaotráfegoemJaneirode 1947. Para ocidente, atingiuCatur emDezembro de 1962, e emDezembro de 1969,VilaCabral.AlinhadirectaentreNacalaeafronteiradoMalawificouconcluídaemmeadosde1970eabertaàexploraçãoem3deAgosto).

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correntehanafita, xiíta (shi’ita)duodécimano76ou ismaelitas septimanoecomumaimplantaçãomaiscosteiraeurbana,certoéqueinfluenciarampelamaneiradeestar,quenãoporproselitismo,ascomunidadesreligiosasmacuas.

ForamnestesdoismomentosdaexpansãoislâmicaparaointeriordeNampula,paraosuldeCaboDelgadoeparaoNiassaquetevelugara«macuanização»pelaviadoislãodasconfrariassufis(caderia77echadulia)entreosfalantesemakhuwa.Areligião islâmicaconfréricamarcava,de facto,apassagemdeumapertençaidentitária local (declã, linhagem, reguladoouétnica)paraacomunidadedosmuçulmanos,aumma.Porsuavez,aocupaçãoeeconomiacoloniais,assimcomoaconcorrênciadasmissõescristãsatéaosanos60foramfactoresqueconduziramauma“africanização”daspráticasrituaisdasconfrariaseaumempobrecimentodosconhecimentosislâmicosdepoisdaIªGuerraMundialatéaosanos70,quepassaramasernestaalturaobjectodecríticaporpartedosreformistaswahabitas,defensoresdeumareligiosidadeletrada.

5. Guerra de libertação Nacional / Colonial e Guerra Civil (1964-1992)

Atéaosanos60,oEstadocolonialportuguêsteveumaatitudehostilfaceaoIslão,exacerbada,aliás,pelaassinaturadaConcordataporPortugaleVaticanoem1940emfavordaIgrejacatólicadeMoçambique.OtratadoestabeleciaumaaliançaestratégicaentreLisboaeaSantaSé,estipulandoqueoEstadoportuguêsauxiliariaaIgrejacatólicanasColónias,dandoaestaomonopóliodoensinoparaos“indígenas”.

Naprática,fezcomqueoEstadocolonialmarginalizasseosoutroscredosreligiososafimdeasseguraropoderdoscatólicosedassuasescolas.Promoveuparatalumapoliticadeintrigaediscórdia(Pensad,2004:317)emrelaçãoàsoutras confissões. Os administradores procuravam fechar escolas corânicas,confiscar livrosreligiososeobrigarcriançasafrequentarasmissõescatólicas.Tudo isto não aconteceu sem a resistência de uma boa parte da população emesmodecertosadministradores.

Oislamismosofreuporconseguintecomestapolíticacolonialesóaquandodoiníciodalutaarmadaem1964équeosportuguesescomeçaramamudardeestratégiaparaqueosmuçulmanosnãoaderissemaonacionalismodaFrentedeLibertaçãodeMoçambique(Frelimo)78.

76 O xiismo duodecimano (em árabe Ithnā’ashariyya) designa o grupo xiíta que acredita naexistênciadosdozeimãs,80%sãoduodecimanos,quesãomaioritáriosnoAzerbaidjão,Bahrein,Irão,IraqueeLíbano.OxiismoduodecimanoéareligiãooficialdoIrãodesdearevoluçãode1979.

77 PorvezesencontreigrafadoCadria.78 OsServiçosdeInformaçãoportuguesescriaramparaoefeitonoiníciodosanos70umGrupo de

Trabalho dos assuntos islâmicos(GTAI).DesteGTAI,LorenzoMacagnoidentificounaTorredoTombo,emLisboa,umBreve esquemática do pensamento muçulmano com vista à inserção

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Procuraram para tal cooptar líderes islâmicos e tornaram-se menosrepressivos.AprópriaIgrejaCatólicaprocuroupelaviadealgunssacerdotes,incluindoobispodeVilaCabral,D.Eurico,odiálogocomosmuçulmanos79.Maisainda:anovapolíticapossibilitavaaida(nãoclandestina)deperegrinosaMeca,quesetornavamdestemodoHágy,comumenormeprestígiolocal80;oEstadocolonialreabilitoumesquitas,eosprincipaiscentrosislâmicosforamvisitadospelogovernador-geral.

Exceptuando a adesão ao movimento nacionalista de alguns jovensmuçulmanos mestiços ou de origem hindustânica (sobretudo de confissãohanafita)81eadissidênciadeumpunhadodechefeslinhageirosemuçulmanosnonortedacolónia,imediatamentepresoseexecutados(Medeiros,1997),ouque se refugiaramnospaísesvizinhos,Portugal conseguiucaptarparao seuladoouneutralizarpoliticamenteamaioriadosmuçulmanosatéaofimdaeracolonial(Monteiro1993a;Alpers1998;Cahen2000c).

Édenotar,também,queparaomesmoperíodo,aFrelimonãofeznenhumesforço para desenvolver um bom relacionamento com os muçulmanos delíngua macua e obter o seu apoio, embora Eduardo Mondlane, o presidentenacionalista,tenhatidoalgunsencontroscomfigurasmuçulmanasdadiásporamoçambicananoTanganicaeZanzibar,masquedepoisdoseuassassinatoseesboroaram82.

No final de 60 e início de 70 o Islão constituía por isso, emNampula,umanacionalidade de recurso,comoescreveuMonteiro(2004),eumacultura de ressentimento contra o colonizador e contra o nacionalismo que muitosmuçulmanos consideravam«infiéis», àmaneira, aliás, de correntes islamitasda época. Por conseguinte, em meados de 60 nenhum movimento políticoorganizadoconseguiudisputarnodistritodeMoçambiquealgumainfluênciaàsconfrariasqueestavamcadavezmaisafricanas,istoé:«macuas».

e caracterização do movimento wahabita,datadode1/7/72(ANTT/PIDE,Proc.6037,Pasta2,fls.3-21,apudMacagno,2007:159,nota28).

79 Vide, p.e., o texto do Pe.AntónioLopes, a igreja e o islão em diálogo. Cucujães,Tip.DasMissões,1967,2ªedição.MasemsentidoopostohaviaoutrosqueeramhostisaoIslão,verotomdotectodeMeloMachadosobreosmuçulmanosemMoçambique(1970).

80 Contudo,asperegrinaçõesnãosecomeçaramafazerlibrementeapósaaboliçãodoindigenatoem1961.Areformademorouanosaserimplementada.Em1963,oregedorYussufKamal,doChiúre,sentiu-seobrigadoadeclarar-seassimiladoparaobteropassaporteque lhepermitiuaviagemaMeca(Liesegang,1998:129).

81 EscolafundadapeloimãAbuhanifanoséculoVIIIºd.C.Deorigempersa,faleceuemBagdade.AEscolahanafitaédominantenaTurquia,ÍndiaePaquistão.

82 Seránecessárioestudar,noentanto,oquesepassounaszonaslibertadasesemi-libertadasondeviviameparaonde fugirammuitosmuçulmanos,mêtos,porexemplo.ÉdeassinalarquenosBoletinsdaFrelimo:revolução moçambicana,apareciaescritoemcaracteresárabes:«Frelimovencerá».

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Certosautores,comoMonteiro(1993ª,1993b,2004)eAlpers(1999,2000,2001), sustentam que o laicismo do movimento independentista explica essaausência de interesse.MasPenrad (2004), quanto a ele, considera que há umoutrofactorsociológicomaisdeterminante:porumlado,aelitemuçulmananoseio da Frelimo era minoritária e representava uma corrente particularmentemarginal no seio do IslãoMoçambicano; por outro, a estrutura e a hierarquiamilitar da guerrilha era principalmente maconde, um grupo identitário nãomuçulmana,fortementecristianizadonosanos60,oquereforçavadestemodoahegemoniacristãnoseiodaFrelimo83,e,provavelmenteporisso,asuaignorânciadasquestõesmuçulmanas.

Umaoutrapistaexplicativapoderáteremcontaasrelaçõesinternacionaisqueomovimentonacionalistaprocuravaestabelecere,paralelamente,asrelaçõesqueoslíderesmuçulmanosdonortedacolóniamantinhamcomoutrosmuçulmanosdos territórios do Índico ocidental, sobretudo com centros do saber letradoislâmico.Ora,«duranteasegundametadedoséculoXXduasorganizaçõesdepesopassaramadominaraagendareformista islâmica,factoquenãodesconhecidoporpartedosestudantesmoçambicanosde teologianoEgiptoenoPaquistão.NesseprimeiropaísfoicriadaairmandadeMuçulmanadoEgipto,enoPaquistãoaJamaat-e-islami.OlíderideológicodaIrmandadefoiSyedqutb(1906-1966)quemorreuexecutadfopeloregimedeNasser.DefendeunosúltimosanosdasuavidaquearevoltaarmadacontraoEstadoeraumanecessidade.PorsuavezAbuAlaMaududi(1903-1979),fundadordaJamaat-e-islami, favoreciaademocraciana implementaçãodeumEstadoIslâmico.Ambasacreditavamna importânciada manutenção da tradição e defendiam uma interpretação puritana do Islão.Tiveramumainfluência tremendasobreaorientaçãopolíticadosmuçulmanosdetodoomundo,econstituiuoquesechamou«MovimentoIslâmico»(Sardar,2007:95-6).

MastambémoconhecimentoquetinhamdoseventosrelativosaoIslãoeislamismonaÁfricaorientaleIlhas.Listemosalguns.Em1945, logoaseguirà Guerra,Aga Khan, o chefe espiritual dos ismaelitas, criou em Mombaça aeast african muslim Welfare societyparaajudarascomunidadesmuçulmanasdaÁfricaOriental(sunitasnasuamaioria)naconstruçãodeescolas,mesquitase dispensários.Em1963, deu-se a anexaçãodaEritreiapelaEtiópia, contra aqualseopunhaaFrente de libertação da eritreiadefortecomponenteislâmica,criadaem1960.Pelaépocade1962/63,omissionary societies actrestringiua actividade das missões cristãs no Sudão e expulsou missionários, decisãoqueconduziuà insurreiçãocristãnosuldopaís.Em1963,asconfrarias sufisrecuperaramasuaimportâncianaÁsiaCentral,masnaÁfricasubsaarianaviramlevantar-se contra si correntes ortodoxas, das quais owahabismo. Em Janeiro

83 Naépoca,amaioriadosdirigenteseraprovenientedasmissõescristãsnãocatólicasdoSulecatólicasdoCentro(sobretudodeZóbuéeFonteNova).

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de1964,os«afrochirazi»derrubaramosultãodeZanzibaresobrepuseram-seàpredominânciaárabequelideraraatéentão.A29deOutubrodesseano,nasceuaTanzânia.Nesseanode1964enoseguinte,realizaram-seváriascimeirasdaLigaÁrabe,nasquaisestevepresenteaquestãoPalestina.EmJaneirode1967,oinglêsfoisubstrituidopelokisuaílinaadministraçãotanzaniana.SalvoailhaMayotte,quedecidiuemplebiscitomanter-seligadaàcolónia,asrestantesIlhasComorestornaram-seindependentesem1975epassaramaformaraRepúblicaFederalIslâmicadasComores.Masem1997,asilhasNzwanieMwalideclaramaIndependência,desencadeandoconflitosentretropasdogovernoeseparatistas.

O terceiroeúltimoperíododeexpansão islâmicaduranteocolonialismotardioefectuou-senaconsequênciadaaberturareligiosaquePortugaloperounosanos1960e1970paratentarprevenircontraaGuerradeLibertação.Todavia,o Islãonãoganhou terrenoporquefoiumaforçaderesistênciacolonialoudeaderênciaàlutadelibertação,masporquesedeixoucooptarpelopodercolonialquelhereconheceu,emtroca,umestatutoquaseoficialelhepermitiuestender-segeograficamente(comoaliás,aoutrasconfissõesnão-católicas).

Foinestecontexto (incluindoodeummaiorconhecimentodaescritanonortedeMoçambique)quesedesenvolveunoseiodasprópriasconfrariaseàmargemdestasointeressecadavezmaiorpelasescriturassagradaseporumIslãomais conformecomessasmesmasescrituras.Por essaépoca,muçulmanosdonortedeMoçambiquetinhamjácomeçadoafrequentarcentrosdesaberislâmicoemZanzibar,Comores,Iémen,Sudão,Egipto,ArábiaSauditaePaquistão.

Os primeiros anos da Independência foram marcados por um laicismomilitante com vista à formação de um Estado promotor de uma Nação supra«micro-identidades» de tipo étnico ou religiosas e contra as desigualdadesregionais herdadas do colonialismo. Este projecto político deu origem a umgrandemal-estarentreoEstadoeasconfissõesreligiosas84.Porisso,tantoparao«paísmacua»comoparaoutrasregiões,MaputonãoatendeuàrealidadesocialereligiosalocalnapreocupaçãodeimplementaraideiadaNaçãoedoEstadolaico,ambososconceitosestranhosnoterreno,prescindindoporissodecontemporizarcomosletradosislâmicosopositoresdoIslão«étnico»ecomosdignitáriosdasconfrarias,cujoIslãosetornoupassivonosprimeirosanoseresistenteaseguir.Porseuturno,ainicialatitudederesignaçãodeveu-seaofactodeseencontraremenfraquecidos pelas suas divisões internas e por continuarem a ver o Estadocomocatólico(Morier-Genoud,1996:2).Tambémporisto,nosprimeirosanosdaIndependênciaoislamismoficoumaiscontidonolitoralnorteenalgunsoutrospontosdopaís.

84 NosmesesdeAbril/Maiode1979,aimprensanacionaldifundiuasnormas para o funcionamento de certas actividades das igrejas, dadas anteriormente a conhecer, numa reunião dos BisposCatólicoscomrepresentantesdoPartidoedoEstado,ocorridaemMaputo,a6deDezembrodoanoanterior.

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O novo Estado baniu o associativismo islâmico em Agosto de 1976(Decreto-Lei13/76,de3deAbril),oqueacabariaporgerartensõesinternaseexternasentreoIslãoeoPodercentral,queforamaproveitadaspelaresistência nacional moçambicana(Renamo)nadesestabilizaçãopolítica,socialemilitardesdeo finaldos anos70.Foi emconsequênciadesteúltimoconflito armado(1976/7-1992),começadoporumaagressãoexterna,masqueseprolongounumaverdadeiraguerracivil,semprecomoapoiointernacional,queopesopolíticoe social das comunidades muçulmanas catalisadas pela tragédia aumentou deformamuitosignificativa.

Mesmo antes dos acordos de paz, na década de 1980 a 1990, voltou-sepoisaumreposicionamentodoIslãonasociedademoçambicana.Religiãoquese tornou muito visível e muito importante politicamente. Muitas mesquitasforamconstruídasnascidadesemesmonomundorural,eospartidospolíticosemergentespassaramacortejarassiduamenteaselitesislâmicas.mutatis mutandis,osmuçulmanostornaram-seactoresimportantesnosassuntosnacionais(Morier--Genoud, 2002:1) e começarama envolver-se nos recorrentes debates sobre aetnicidade,«poder»e«medicina»tradicionais.

Comvistaadilatarasuabasesocialdeapoio,aFrelimocomeçouaadoptarpor esta altura uma política mais flexível face às confissões religiosas, e, nocasoaquiemestudo,faceaoIslão.Por isso, teveem198085umencontrocom

85 Nos primeiros meses de 1980, Samora lança a «Ofensiva Presidencial para rectificação de“estruturas” e correcção de erros a todos os níveis». Independência do Zimbabwè.A contrarevolução moçambicana passa a actuar a partir da África do Sul, onde a estratégia Total setornaraapolíticaoficialcomasubidadeBothaaopoderem1978.Secasassolaramopaísnadécadade80.A1deAbrildesteanofoiconstituídaemLusakaasouthern african development Cordination Conference (SADCC). O principal objectivo desta organização era permitir aosEstadosMembros(Angola,Botswana,Lesotho,Malawi,Moçambique,Swazilândia,Tanzânia,ZâmbiaeoZimbabwe.A16deJulhofoipostaacircularamoedanacional,ometical.A1deAgostoteveinícioo1ºRecenseamentoGeraldaPopulaçãodeMoçambiqueIndependente.A27e28deNovembrorealiza-seemMaputoaprimeiraConferênciadaSADCC.Ascaracterísticasda guerra sobre o território nacional foram-se evidenciando variavelmentemediante recuos eavançosmilitares,nacriaçãodoquepodemosdesignar«espaçostensos»e«espaçossossegados».Nestesúltimos,assistiu-se,noperíododaguerra,àsdiferenciaçõesquantoàsdinâmicassocaiseeconómicasentreosespaçosdaRenamo,fundamentalmenteruraisedistanciadosdosgrandescentros urbanos, e os espaços da Frelimo que na maioria se foram confinando aos círculosperi-urbanoseurbanos.Paraocontextourbanofoiconvergindoumgrandefluxodepopulaçãodesprovidadassuasbasesdesubsistênciaeconómicaemuitodependentedeajudas,queratravésderedesconstituídasnabasedeafinidadesdiversas,quer,emcertossítios,atravésdeserviçosdeassistênciadeentidadesgovernamentaisenão-governamentais.Noanoseguinte,a20deJaneirode1981,RonaldReagantomapossecomoPresidentedosEUA.A30destemês,comandossul-africanos atacamaMatola (a umadezenade quilómetros deMaputo).AAssembleiaPopularaprovaumPlanoProspectivoIndicativode10anos,noqualsãodefinidososgrandesprojectosprioritáriosdedesenvolvimento.MinistradaEducação,GraçaMachel,apresentanaAssembleiaPopularapropostadonovoSistemaNacionaldeEducação.MaputoexpulsadiplomatasamericanosacusadosdepertenceràCIA.Noentanto,Chissano(entãoMNE)visitaWashingtonemOutubro.

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umadelegaçãodaliga mundial muçulmana (sedeadanaArábiaSaudita)poisverificara que este país, Omã e Comores apoiavam directa ou indirectamenteaRenamo.Poucotempodepois,emJaneirode1981,ogovernomoçambicanoautorizouacriaçãodeumaorganizaçãomuçulmanaanívelnacional,queseviriaaconcretizarcomonomedeConselho islâmicotrêsanosmaistarde86.Em1984oConselhoestabeleceudelegaçõesesub-delegaçõesnaprovínciadeNampula(cidadedeNampula,IlhadeMoçambique,Angoche,Nacala,Memba,Mogincual,Netia,MonapoeMurrupula)87.

Nosdias14a17deDezembrode1982aDirecçãodoPartidoreuniucomrepresentantes das confissões religiosas existentes na República Popular deMoçambique.Reuniãoque tinhaporobjectivo,segundoaFrelimo,o«estudoconjuntodosproblemasespecíficos»decadaconfissão«paramelhorenquadrara sua participação na vida nacional». Foi então afirmado solenemente que«adevoçãopela sua fénuncapodeestar emcontradiçãocomoorgulhopelasuaPátria»equeas«Igrejasdesempenhamumpapelimportantenaformaçãoética dos crentes, cabendo-lhes o papel de promover a unidade nacional, odesenvolvimentodo amorpelaPátria, o combate ao racismo, ao tribalismoeao regionalismo». Por essa ocasião foi criado o departamento dos assuntos religiosos(DAR),adstritoaoMinistériodaJustiça,comvistaaoestabelecimentodecanaisdecomunicaçãocomasagremiaçõesreligiosasexistentesnopaísparalhesgarantirosdireitoseexigir-lhesosdeveresconsagradosnaConstituição,fazendo-as participar de forma activa no processo de desenvolvimento daNação.Paraasconfissõesreligiosas«algodenovosepassaranestasreuniões:maiorrealismonaacçãopolítica,maisdiálogo,maiorcolaboraçãoentretodos.Emboranumaounoutrasituaçãopermanecesseaindaorostodurodaideologia,

Porsuavez,osubsecretáriodeEstadoamericanoparaospaísesafricanos,ChesterCrocker,visitaMaputoemfinaisdesseano.Cominícioem1981,umlongoperíododesecatrouxefomeamuitaszonasdopaís,afectandomaisdequatromilhõesdemoçambicanos.FoiapiorsecaregistadanaÁfricaAustralqueprovocaráamorteacercadecemmilmoçambicanosaté1984.Aolongodesteano,centenasdejovens,entre18e30anos,passaramnacapitalenascapitaisprovinciaispordiversoscursosdeformaçãodequadros.EmMaputoestiveraminstaladosnohotelRovumaquetinhapassadoaserhoteldoPartido.ProsseguiuemCaboDelgadoenoNiassa«oprocessodelibertaçãodedesertoresdaFrelimo,marginaiseoutroscriminososqueestiveramnoscamposdereeducação,iniciadoem1979.AlgunseramantigoscombatentesdaLutaArmadadeLibertaçãoNacional.Esteprocessovisouengajá-losnastarefasdereconstruçãodoPaís.A11deNovembrofoidesencadeadaa«OfensivadaLegalidade»contraoabusodopoderporpartedeAgentesdasForçasArmadasedeSegurança.Nodiscurso,Samoraconvidaopovoadenunciarcrimeseosculpados.Nesteano,numadataquenãoseiprecisar,AboobacarhagyMussaIsmail(Mangira)foinomeadocoordenadoremaistarde,Secretário-geraldoConselho islâmico de moçambique.EsteConselhopassouaorganizarohajjanualeacelebraçãodoid,eaatribuirbolsasdeestudoparaospaísesárabes.

86 Adatadacriaçãosurgecomosendo1983,massóem1993foioficializadaemBoletim oficial.87 Bonate,2006:146-147, apudCasimiro,2008:351).

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emrealidade,jánãoeraestaaquecontavaparaobemdopovomoçambicano»(Sousa&Correia,1998:198).

EmboraoConselho islâmico de moçambique (CISLAMO)comsedeemMaputoedelegaçõespelopaístenhanascidooficialmentenocontextoespecíficodessesanos,asorigensdomovimentoislamitalocalvinhadopassado,demeadosdosanos60,quandojovenseletradosmuçulmanos«começaramadescobrirquehavia muita coisa noAlcorão que os mais velhos não desvendavam, dizendoatéquenãovaliaapenadivulgar,porquenemtodosseriamcapazesdeseguiros mandamentos. Mas os mais novos acharam que era preciso divulgar»88. OConselho foi pois constituído por muçulmanos letrados que professam umainterpretaçãoortodoxadadoutrina religiosaedaxaria (lei islâmica),equeseconsideramosmaisfiéisseguidoresdoLivroSagradoedos hadithsdoProfeta.Negamomovimento sufista, surgindocomo ferozesopositores à inculturaçãoafricanalocaldoIslãoe,porisso,àspráticasdasconfrarias.Numaoutraépocae noutros contextos árabes e muçulmanos esta corrente islâmica foi chamadawahabita (wahhabita)89. Desde a sua origem foi perfilhada por estudiosos deteologia nos centros de ensino religioso na Arábia Saudita, Iémen e Sudão.Algunsmuçulmanos originários da Índia e doPaquistão, pertencentes à castaSurdi,tambémseconsideramaderentesaestemovimento.Osxehes(shaykhs) reformistasdoCISLAMOlegitimamassuasideiasbaseando-senoLivroSagradoenasunna,bemcomonostratadosclássicosemodernossobreajurisprudência(fiqh)islâmica.Consideramaadopçãodotrajepreto(àmaneiraocidental)paraolutoporpartedosmuçulmanosdasconfrariascomosendoilícita(haram);eemrelaçãoàsherançasargumentam,combasenasleisislâmicas,queumaparte(umterço)deveserparaapromoçãodoIslão,educaçãoislâmicaecaridade(sadaqa).Consideramsobretudoqueaspráticasdecurandeirismo,feitiçariaeadivinhaçãosãoharam(proibidas)eshirk(pagãs),assimcomoaescritadeversoscorânicosnascabr(tábuas),paranãofalardeoraçõesecerimóniascolectivascomodhikr.Opõem-seferozmenteàleituradoAlcorãoemvozaltaeaocantardasqasidase dosmaulides emmemória dodefunto como fazemos das confrarias, e querecebem dinheiro por isso, o que é considerado pelo Conselho uma práticasatânica.Dizemqueasoraçõesfúnebresdevemserfeitasemsilêncio(sukuti),opondo-se especialmente ao uso de instrumentos musicais, tão usados nasculturas tradicionaisbantoepelossufistas.Criticamtambémocanto90emvozaltadoAlcorão,eaconselhamoschefesdasfamíliasanãopermitiremprantosoulamentaçõesduranteosfunerais(Bonate,1999:1-8),apudPinto(2002:103-4).Oswahabitas mantémestreitasrelaçõescomaArábiaSaudita,Sudão,aafrica

88 EntrevistadeIsabelCasimiro(2008:350)aumChehedeAngoche.89 VerGlossário.SobreascríticasdoswahabitasaoIslãodasconfraiasvideAlpers(1999),Bonate

(2005),Monteiro(1989,1993a,1993b)eMorier-Genoud(2002).90 Sobreoscantos(profanos)edançasdosmuçulmanosdasconfrariasvideArnfred(2004).

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muslim Commiteeealiga mundial muçulmana.NaprovínciadeNampulaestãointimamente associados ao CISLAMO a Comunidade muçulmana91, o Centro islâmico de Formação profissional92 e auniversidade mussa Bine Bique.Porocasiãodasuaoficialização,oConselho teriacercade183.865membros,númerosque parecem exagerados, porquanto esta organização recruta mais pessoasletradaseurbanasqueruraise«étnicas».Porseulado,osmuçulmanossufistasconsideram-noscomo«estrangeiros»ou«estranhos»,destruidoresdaidentidadelocal,epertencentesàrededosfavorecidospelocomércioepelasligaçõesaosdiversospoderes instaladosnopaís,nacionaiseestrangeiros.Porvoltadoano2000, do Congresso Islâmico, emAngoche, afastaram-se 24 dignitários maisnovosquederamorigemaumanova associação chamadaansar al-sunna ouahl al-sunna (ou de forma corrompida: ahalissuna). O afastamento destesmuçulmanosdoConselhoteráestadorelacionadacomumaalegadaaproximaçãoàFrelimoeporsesentiremdiscriminadospelaliderançadoConselhoporrazõesreligiosaseraciais.93

PelamesmaépocadaformaçãodoConselho islâmico, asconfrariaspassaramaestarem1983doladoteológicodeumaorganizaçãoquesechamouCongresso islâmico de moçambique(sunni).Estaorganizaçãocongregava,emNampulaosmuçulmanospraticantesdoritoChafitaeadeptosdosufismo94nãosatisfeitoscomoConselho.Estaemanaçãoislâmicaperfilhadapelasconfrarias,dehegemonianegraemista,épolarizadoradeumainterpretaçãoreligiosadoIslãonocontextoculturallocal,integrandoritossufistasondesecorporizaumamestiçagemsocialeculturalquesetraduznaintegraçãodeelementosdareligiãotradicional,assimcomodepráticasmágicas95ecrençasnafeitiçaria.Paraosmembrosconfréricosdo

91 Em2003,LorenzoMacagnoregistouqueoConselhoIslâmicoseopunhaagoraàComunidade muçulmana da província de nampula queforafundada porAbubacarIsmailMangirá(Macagno,2006:115).

92 Projecto lançadoemNampulacidade,AngocheePembaporXeheAbubacar, secretário-geraldoConselho,comoapoiodoBanco islâmico de desenvolvimento,comformadoresegípciosemoçambicanos.

93 Bonate,2006:146-147,apudCasimiro,2008:352).94 Em1983estavamfiliadasnoCongressoasseguintesinstituições:AssociaçãoAfro-Mahometana

(Xipamanine); Confraria Islâmica da Matola (Matola Unidade F); Mesquita Nur-Ul-Isslam(Xipamanine);MesquitaeMadrassaXadulia(Maputo,AvªdeAngola);MesquitaBaraza(Mafalala);Madrassa Bairro da Liberdade (Liberdade-Machava); Confraria Cuwatil Isslamo (Lhawana);Confraria Bezme Tabligh Isslamo (Minkadjuine); Confraria Cadiria de Maputo (Mafalala);Confraria Islâmica do Infulene (Infulene); Associação Islâmica do Aeroporto (Aertoporto);AssociaçãoAnjumanAnuaril Isslamo(Maputo,Ruados IrmãosRoby);Comunidade IslâmicadaMachava(Machava);ComunidadeMahometanadeMaputo(AvªAlbertLuthuli);MesquitaFiuzulIslame(Malhangalene);MesquitadoBairro25deJunho(25deJunho);ConfrariaIslâmicadeMagude(Magude);ComunidadeIslâmicadaMoamba(Moamba);ComunidadeIslâmicadoSabié(Sabiè);ComunidadeIslâmicadaManhiça(Manhiça).

95 IsabelCasimiroverificouduranteoseutrabalhodecamponaregiãodeAngochequeamaioriadoscurandeirosqueentrevistoueramuçulmana(Casimiro,2008:344esgs.)

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Congresso,«éprecisodardinheiroparaoenterro,lavagemdodefunto,cerimóniado3ºe7ºdias,edepoisdos40dias»96.OCongressotêmumnúmeromaiordefiéisqueoConselho97.OCongresso islâmico de moçambiquefiliou-senaWorld Federation of islamic missions, noWorld muslim Congress e colaboracomamuslim World league.Desdeo1ºtrimestrede1986queoCongressopublicaumórgãooficial,o minarete98.

Para o ano de 1987, o DAR refere para Nampula 285.565 muçulmanos,concentrados maioritariamente nas cidades de Nampula, Nacala-Porto e Ilhade Moçambique, assim como nos distritos de Angoche, Moma e Memba.ReferetambémqueosmuçulmanosestãonasuagrandemaioriaagrupadosnoCongresso islâmico, Conselho islâmico, Comunidade muçulmana da província de nampula, Comunidade muçulmana seita suni, e Comunidade muçulmana seita shia ithna-asheri.

Emboranãosejarelevanteparaopropósitodomeuestudo,assinaloqueaComunidade muçulmana seita suni éumaorganizaçãosunitaqueprofessaoritoHanafita,cujosmembrossãomaioritariamentedeorigemindianaepaquistanesadacastaMeman,comumaimportantemesquitanaIlhadeMoçambiqueeoutraemNampula.AssuasinfluênciasdoutrináriasremetemparapaísescomoaÍndia,PaquistãoeIrãoeasorganizaçõespara-religiosasemNampulatêmoapoiodaRepúblicaIslâmicadoIrãoedaafrica muslim Commitee.quantoàComunidade muçulmana seita shia ithna-asheri, ela éumapequenaorganizaçãodeconfessosdoramoxiítadosDozeImãs. Em1986contavacom235efectivos,etrêsanosdepoiscom400 fiéis (Pinto,2002:120),comduasmesquitas,umana IlhadeMoçambiqueeoutraemNampulacidade.

A existência de todas estas organizações mostra a heterogeneidade dacomunidadeislâmicanaprovínciadeNampula.ParaoobjectivodomeutrabalhoéimportanterealçarcomooIslãodasconfrariasédistintodasoutrasorganizações,sendoque«aprincipallinhadefracturaqueosdistinguenoplanodadimensãoreligiosa remete para aspectos e circunstâncias que, de forma mais ou menosmatizada, reenvia para alguns dos elementos que corporizam o substrato daidentidadeedalinguamacua»(Pinto:2002:124).

96 IsabelCasimiro,2008:350.97 Vermaisacima,eomeutextosobreas«IrmandadesmuçulmanasnoNortedeMoçambique»,no

Semanáriosavana(páginascentrais).Maputo,AnoIII,n.º116,de5deAbrilde1996,eotextodeFernandoAmaroMonteirosobre«acorrenteWahabita[nadécadade1970emMoçambique]in:o islão na África subsariana(Actasdo6ºColóquioInternacionalEstados,PodereseIdentidadesnaÁfricaSubsariana,realizado,de8a10deMaiode2003,naFaculdadedeLetrasdoPorto),Coord.AntónioCustódioGonçalves.Porto,FL/CEA,2004:107-113.

98 o miranete–órgãodoCongressoIslâmicodeMoçambique(Sunni),Ano1,n.º1,1ºtrimestrede1986,16pecapas.N.º2,2ºtrimestrede1986,n.º4,n.º3,3ºtrimestrede1986,4ºtrimestrede1986;AnoII,n.º5,1ºtrimestrede1987,n.º6/7/8,4ºtrimestrede1987.

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Ao Congresso surgem associadas mesquitas, madraças, irmandades,associações,ligadasmulhereseligajuvenil.Sãotodossunitasortodoxosqueprofessamosprincípiosdo“ahal-sunnat-Wal-Jammãl”ecomrepresentantesdasquatroescolasjurídicasislâmicas:Chafita (popularnosudesteasiáticoelitoralafricanooriental), Hanafita (dominantenaTurquia,ÍndiaePaquistão), malikita99, Hambalita(naArábiaSauditaenoqatar).Osseusmembrosidentificam-seporusarcofió,porrezaremeleremoAlcorãonocemitérioemvozalta,praticarakalimanascerimóniasfúnebresquandoselavaetransportaocadáversegundoa tradiçãoditabid’ã.Têmtambémasuaprópriamaneiradeestudar,defazermaulidepeloaniversáriodamortedoseunabe.OsmuçulmanosdoCongressorespeitamatradição,quediferedezonaparazona,paranãoentrarememconflitocom os mais velhos e com os antepassados. Festejam a circuncisão. Muitosdos seus xehes não possuiam formação islâmica adequada e têm liderado osassuntosreligiosostalcomoéfeitonaspráticasancestraisbanto(Bouene,2004:115-130).

OsmuçulmanosdoConselhovestemdemododiferente,asmulheresnãopodemusarvestidosdecotados,orostodevesertapado,enãorezamefestejamcomoosdoCongresso,que rezamemvozalta e festejamo fimdoRamadãocomoaparecimentodaLuanova.OsmembrosdoConselhosãoseguidoresdowahabismo,doutrinaqueprofessaoretornoaosideaispuristasdeinterpretaçãoreligiosa, recusa as práticas de miscenigenização dos princípios básicos e docerimonial consagrado pelo Islão, comoo dos rituais africanos, defendendo apráticaíntegradaortodoxiasemqualqueradulteração.

Entre 1990 e 2000 o número de confissões e organizações religiosasreconhecidas pelo DAR quase que triplicou, registando-se um aumento dasorganizaçõesmuçulmanasparamaisdodobro.Em1990publicouumalistageraldasconfissõeseorganismosondeseincluíao Congresso islâmico de moçambique,oConselho islâmico de moçambique, aComunidade mahometana, eaafrica mulslims agency.Trêsanosdepois,ou seja,umanoapósoAcordodePaz, alistaacrescentaaestasaassociação muçulmana de moçambique,aassociação liaxhuruty islâmica de moçambique, e a união muçulmana da matola100.Aafrica mulslims agency éumaONGislâmicasedeadanoKuwait,cujadelegaçãoem Nampula tem uma forte presença com apoio na construção de mesquitas,viagensdosperegrinos,educação,saúdeeinfra-estruturasbásicas.

99 OimãMalikubnAnas(nascidoemdatadesconhecidaemMedinaefalecidoem801d.C.tambémemMedina)éoautordocélebrelivroMuwatta(OcaminhoFeitoSuave),queéconsideradooprimeirograndecorpusdaleiislâmica(Sardar,2007:87).

100 Em 1994 foi inaugurado na Matola o internato sayydina Hamza pertencente ao Congresso islâmico, sob a direcção do xeheAminuddin Muahammad, e com alunos do sexo masculinooriundosdetodasasprovíncias.

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NoqueserefereàprovínciadeNampula,adelegaçãolocaldoDARreferepara1990cincoorganizaçõesmuçulmanas:adelegaçãoprovincialdoCongresso islâmico de moçambique, a delegação provincial do Conselho islâmico de moçambique, a Comunidade muçulmana da província de nampula, a africa mulslims agency eaComunidade muçulmana seita shia ithna-asheri.Em1997jásurgemregistadasmais três:aassociação (ou Comunidade) muçulmana de angoche,aonG islâmica muassassa,eaassociação mahometana seita suni(apud Pinto,2002:116)

6. depois do Acordo de paz

Oanode1992foideterminanteparasechegarà paz.EmJaneiroeMarçorealizaram-se rondas decisivas do Processo negocial, na última das quais foiassinadooiiiº protocolo relativoàfuturalei eleitoral.Masoambientesocialnopaíscontinuavamuito«tenso».CorriaminsistentesboatosnosúltimosdiasdeAgostosobrecartasanónimasepanfletosincitandobrancose«monhés»asaíremdopaís101.Naperspectivadosacordos algumastensõespoderiamsurgir.

Mas a 4 de Outubro foi finalmente assinado em Roma pelo PresidenteChissano (da República e da Frelimo) e pelo Presidente da Renamo,AfonsoDlakamaoacordo Geral.Nodia15deOutubrofoideclaradoocessar-fogo.Todasasforçasmilitaresdeveriamserdesmobilizadasapartirdestadataparadarlugaraumnovoexércitocomcercadetrintamilhomens,constituídoporpartesiguaisdeefectivosdogovernoedaRenamo.Osectoreconómiconacionalizadodopaíscontinuavaemgrandedistribuição, até finalde1992 tinhamsidoprivatizadas207empresas,sendoamaiorpartedelasdosectordaindústria,energia,comércioeagricultura.Sóa16deDezembrooConselhodeSegurançadasNaçõesUnidasaprovou a constituição de uma força militar de interposição, conhecida porONUMOZ.

Moçambique pagara um elevado preço pelo apoio que dera à luta delibertaçãodoZimbabweedaNamíbia,enalutapelofimdoapartheid naÁfricadoSul.OpaísIndependenteforavítimadassuperpotênciasnocontextodaguerra-friaedaexpansãodassuasáreasdeinfluênciageopolítica.Sofreuemseguidaosefeitosdeumaguerracivilprolongada.Masnãodevemosconsiderarqueoconflito internofoi tãosóumprodutopós-colonial.Pelocontrário,ele teveassuasraízesnoperíodocolonial,e,particularmente,nalutanacionaldelibertação.PorissodeveserconsideradocomoafaseterminaldalutapelaIndependência,eafasederelançamentodaidentidadenacional,quesepretendiaagoramenos“jacobina”eparaaqualosmuçulmanostambémsão«chamados»aparticipar.FoinestenovocontextoqueoIslãomaisletradocomeçouainterviranívelnacional,diferentemente, portanto, àquele que dera lugar à «macuanização» confrérica.

101 TestemunhopormimregistadonacidadedeMaputo.

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Ouseja:o«marxismo»doEstadolaicodofinaldosanos70foisubstituídonadécada de 80 por novos credos «nacionais», e “micro-nacionais”, incluindoreligiosos(namedidaemqueareligiãoéusadapelosfiéisparaposicionamentosfaceàmacro-sociedade).OconflitoentreoConselhoeoCongresso,paraalémdadoutrina,exprime-seagoraentreo“nacional”eo“étnico”.NãofoiporacasoqueMoçambiqueaderiunesteanoàOrganizaçãodeConferênciaIslâmica.

NocontextodaguerraemMoçambique,1964a1992,comumcurtíssimointerregnoentre1974/5-1976/7, cruzaram-sequatro conflitos complementares,mas distintos no teatro das operações que envolveramde umamaneira ou deoutraosmuçulmanosdeMoçambique.

Oprimeirodestesconflitos,omaisconhecidoeomaisóbvio,foiodalutapela Independência, conduzidapelomovimentonacionalista contra apotênciacolonial.

OsegundofoioconflitoregionalnaÁfricaAustralquesemanifestoudetrêsformasdiferentes,sebemqueinterligadas.Porumlado,atravésdosapoiosantagónicos que os países vizinhos conferiam aos vários beligerantes – osmovimentos de libertação e Portugal -, passando por vezes pela intervençãomilitardirecta.Poroutro,pelaajudadePortugalagruposdissidentesdepaísesfronteiriços cujos governos apoiavam os movimentos independentistas. Porúltimo, através das ligações destes movimentos aos partidos nacionalistas eantiapartheiddaRodésia,NamíbiaeÁfricadoSul.

O terceiro foi o conflito leste-oeste no contexto da Guerra-fria, com asduassuperpotênciasadisputaremoalargamentoeconsolidaçãodassuasáreasdeinfluêncianaÁfricasubsarianaedasrotasdaAntárctida,atravésdeapoiosaos diferentes movimentos de libertação. Neste contexto inscreve-se tambémabenevolênciaeosauxíliossubterrâneosquepaísesdoblocoocidentalforamdispensandoaPortugalparaasua«GuerradoUltramar».

Porúltimo,oquartoconflito,aguerracivil,quecomportouduascomponentes.Uma,resultantedeclivagensentremovimentosdelibertaçãoounopróprioseiodecadamovimento,frequentementetraduzidasemcombatesarmados(nocasoangolano,p.e.),oquefavoreciaaparteportuguesa,que,aliás,procuravaalimentarestascisões.Outra,residindonofactode,naguerracolonial,origináriosdacolóniaintegraremexércitosantagónicosquesecombatiam,guerrilheirosnacionalistasdeumladoemilitaresnegrosdasforçascoloniaisregularesjuntamentecomgruposespeciais(GE’s)egruposparaquedistas(GEP’s)quecomeçaramaactuarcomaaberturadafrentedeTete,masqueforamigualmenteutilizadosnoutraszonasdecombate.«Em1974,haviaemMoçambiquecercadeumacentenadessesgrupos(Machado,1977:37).Estemesmoautormilitar, queescrevera sobreAngoche,afirmanotextoaquireferidoqueos«macuas»estavamarmadoseque,em1966,defenderamassuasaldeias»(idem:36).

Com a declaração da Independência e a transferência da soberania,desapareceuacomponentearmadadalutadelibertação.Masosrestantesconflitos

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perdurarameporvezesagravaram-se.AFrelimo,quetomouopoderduranteaguerra de libertação e geriu os primeiros anos do novo Estado foi conduzidaporumgrupoquesesolidificouparadefenderospropósitospolíticosemtornodeumpequeníssimonúcleoqueseserviudo«marxismo-leninismo»paraobtero suporte dos países e partidos irmãos, que, por sua vez, procuravam servir-se dele102.Outras fracções da Frelimomantiveram-se discretas,mas sempre aconspirar, de punho levantado. Alguns dos seus membros foram eliminados.Outros, como Dlakhama – ex-desertor do exército colonial, ex-comandanteda Frelimo, finalmente da Renamo -, conseguiram inserir-se na luta externacontra o poder da Frelimo, deixando de ser da (antiga) frente para ser outracoisadominadaporsectorescoloniais,«flechas»enãosó,quequeriamvingaraderrotaqueconsideravamimerecida.AtribodosCristinas,Evos&Ciaameaçouaquelafracção«nacionalistanegra»daFrelimo,eporissofoieliminada,comoparadoxalpatrocíniosul-africano.Existiu,pois,nestahistóriadalibertação,umcontinuum «deWiryamo a homoíne» que ultrapassou a própria Frelimo e assuasfacções.Enaqual,estiveramsemprepresentessectorescontraditóriosdocristianismoedoIslão.

Umanoapósoacordo de paz foioficializadoemMoçambiqueoConselho islâmico,dezdepoisdasuacriação,comoapoiodaliga mundial islâmicaedogovernoSaudita.OConselho islâmicodefendeacorrentewahabita,comovimos,seguidoradeumadoutrina“purista”doIslão,poroposiçãoaosensinamentosqueprofessamos responsáveismuçulmanos das confrarias e outros agrupamentosfiliadosnoCongresso.OsmembrosdoConselhoaindasãominoritáriosnoPaís,masestãofortementeinternacionalizados.EmNampula,provínciaqueconcentramais de 70%da comunidademuçulmana do país, nem toda a população estáreceptivaparaadoutrinados“estudantesdeTeologia»quenãoadmitemumaperspectivainculturativaparaoIslão.Asmudançasemcursodesdeosanos80podemserilustradaspelaseguintenarrativa:«naIlhadeMoçambique,amesquitaAbuBakreA-SidikeaescolacorânicacomomesmonomesãodirigidasporAntónioMahando,homemaltoecomardistinto.Asuavontadeoptimistaéumdia estender as preces para fora damesquita, para osBairros da Ilha, e fazerchegar “averdadeiramensagemdoProfeta” a todas as pessoas.Amesquita emadraçaAbuBakreA-SidikéoúnicolocaldecultoligadoaoConselho islâmicoque existe na Ilha de Moçambique. Mas desde 1992, passou de 18 para 580membros,dizMahando.Aoníveldetodoodistrito,ascincomesquitasondese

102 haverácertamentebastanteliteraturapublicadasobrearelaçãodosPartidoscomunistasdeLesteedoOcidentecomaFrelimo,doauxíliodoBlocodeLesteàlutadelibertaçãoedacooperaçãodepaísesdestemesmobloco,sobretudoAlemanhadeLeste,Bulgária,URSSeRoméniacomMoçambiqueIndependente.Masnãofizessapesquisa.Marginalmentecitooquetenhoàminhafrente:héctorGuerrahernández,«DoRandàRDA.Modernizaçãocompulsóriaepráticassociaiseestratégiasdemobilidadesocial»,in:revista d’ antropoligia i investigació social,(Barcelona),Número3.Junyde2009:61-83,ondesedizalgumacoisadasrelaçõescomaRDA.

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professaestacorrentecontamcomcercade1500membros,emaisdemilalunosnasmadraças.Esteslocaisdecultoforamsurgindopoucoapoucocomjovens,acabadosderegressardoSudão,daArábiaSauditaoudoPaquistão,formadosemTeologia,equetentamdifundirumavisãomais“correcta”doIslão,amesmadoConselhoIslâmico,quetemganhoinfluência,graçasaoapoiodeorganizaçõesinternacionaiseEstadosIslâmicos»103.

Ora,segundoMahando,nestacorrentereligiosaéexpressamenteproibidofalardepolíticanamesquita.OquenãoimpossibilitaqueesteinfluentelíderreligiosofossenaépocaumdestacadomembrodocomitédistritaldaFrelimoe delegado na Ilha do Conselho islâmico. Como ele, alguns deputados emMaputo são membros desta organização. O Conselho islâmico defende acorrentewahabita,dosseguidoresdadoutrina“puritana”queregeoreinodaArábia Saudita, geralmente referida como “fundamentalista”, em oposiçãoaosensinamentosqueprofessamosresponsáveismuçulmanosdasconfrarias,identificadascomoCongresso islâmico.Mahandocostumaexplicarnassuasprelecções em árabe namesquita a importância da aplicação da sharia (LeiIslâmica).Masnumportuguêsperfeitodiz:“queremosqueapessoaobedeçaàleidivina”.OAlcorãoproíbea“ladroagem”,explicacomumolharimperturbável.“Aquemroubapelaprimeiravez,devesercortadoobraçodireito.Semesmoassimcontinuararoubar,corta-seapernaesquerda.Àterceiravez,éapenademorte”.Éoqueashariamanda,defendemaisdoqueumavez.“Ohomemquecometeadultérioéchicoteadoempúblico104.Sesobreviveraocastigo,é-lheautorizadoviver.Apenademorteéparaamulher.Secometeradultério,podeserapedrejadaatéàmorte,oufechadanasuacasaatémorrer”.OAlcorãocondenaa“inovação”, acrescenta. “Tudooquenão fazparteda tradiçãodonossoProfeta,anossareligiãocondena.Asmulheresdevemandartotalmentecobertas,sócomacaraeamãosadescoberto.NomêsdoRamadãoaspessoasestãoexpressamenteproibidasdedançareterqualqueractividadecultural.Éoqueashariadiz,insiste.“quandoháfalecimentodeumirmãomuçulmano,aspessoasdevemmanter-seemsilêncio”,mas«nãoéoqueacontecenamesquitavizinha». Nessa mesquita, a Central, a dos xeques das confrarias, Mahandopode participar nas orações, mas deixou de poder pregar. Lado a lado, namesmarua,osdoislocaisdecultosãooexemplovivodasclivagensacentuadasnosúltimosanosentreosmuçulmanosdeNampula,entreadoutrinawahabitae a dasconfrarias.Mahandodizque asconfrarias confundem tradição comreligião. Na sua visão, só isso explica que dancem e toquem instrumentos

103 «Confrarias e madrassasdisputamafédosmoçambicanos»(domingo,28deNovembro2004).104 EmFevereirode1979foiintroduzidaaPenadeMortepara«crimescontraasegurançadopovoe

doEstado»(Lei2/79);emMarçode1983alei das Chicotadasfoipromulgada(Lein.º5/83).Leisqueforamrevogadasouestãonoesquecimento;oquenãoimpedequeopensamentodeMahandosejamaisradicalainda.

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quandoháumfalecimento,oucomemoremasdatasdonascimentodoProfetacomcânticos»105.

Asconfrarias,quecomeçaramaformar-senaIlhanofimdoséculoXIXeiníciodoseguinte,reúnemnacontemporaneidadeumgrandenúmerodecrentes,maisdecemmil,umnúmerosuperioraosfiéisdoConselho,ecommuitosmaislocaisdeculto.Cercade800mesquitasemtodaaprovínciadeNampula,ondesejuntamoscrentes.

Porsuavez,aÁfrica muslim,comsedeemNacala,éumadasorganizações,financiadaporempresáriosdoKuwait,queatribuibolsasparadentroeforadeMoçambique.Estaorganizaçãoestáhojepresenteemváriasprovíncias,sobretudonastrêsdoNorte,ondeabriumadraçasdetiponovo,passandode200para800alunos,entreosquaiscriançasdaescolaprimária»106.

Em2000,paraalémdasoitoorganizaçõesmuçulmanasjáexistentes,oDARincluiunasualistaoanjuman anuaril isslamo,oislâmico mussassa ahlubatt,a Comunidade islâmica de manica, e a Comunidade islâmica do Chibuto(apudPinto,2002:115).EmJunhode2001,aFundaçãoAgaKhan107lançouumprogramadedesenvolvimentonosdistritoscosteirosdeCaboDelgadoondeviveumapopulaçãomuitoislamizada.

Cada uma das diferentes organizações muçulmanas representadas naprovíncia de Nampula, incluindo as várias confrarias, têm uma dimensãoidentitária própria, embora possa ser constatada uma identidade muçulmanaglobal,que semanifestaporvezesemmomentosdecrisehumanitáriaounosconfrontoscomoEstadoououtrasconfissõesreligiosas.Foioquesucedeuem1994,porcausadapassagemdocicloneNádia,quelevoutodasasorganizaçõesislâmicasapedircolectivamenteajuda,e,em,Nacala,noanode1997,porcausada“guerradosaltifalantes”levadaacabopelaIgrejacatólicaaoprotestarcontraousodaschamadasàsoraçõesporessemeioeaoqualresponderamemuníssonoasorganizaçõesmuçulmanasdacidade.

7. A questão dos números

Paraopropósitoaquemepropusnesteestudo,convirá,paraovastíssimoterritóriodaprovínciadeNampula,suldeCaboDelgado,suldoNiassaezonasribeirinhasdafronteiradaZambézia,comparardadosestatísticossobreonúmero

105 «Confrarias e madrassasdisputamafédosmoçambicanos»(domingo,28deNovembro2004).106 «Confrarias e madrassas disputam a fé dos moçambicanos» (domingo, 28 de Novembro

2004).107 «The Aga Khan Foubdation (AKF) is a private, non-denominational development agency,

establishedbyhishighnesstheAgaKhanin1967,withaheadofficeinGeneva,Switzerland,andaffiliatesorbranchesinUSA,Canada,UK,Potugal,Bangladesh,Índia,Pakistan,Tajikistan,Mozambique,Kenya,UgandaandTanzânia.TheAKFOfficeinMozambiquewasetablishedinJune2001(ComunicadodaAKF,Maputo).

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de falantes de línguamaterna (ou primeira língua)macua (emakhuwa) com apopulaçãomuçulmanadessasmesmas regiões108.Claro está que este exercíciotempouco de cientifico.Nem todos osmuçulmanos recenseados no territórioaqui considerado têm o emakhuwa como língua materna. Por conseguinte, asimplessobreposiçãodosdoisuniversosnãonosconduzaindicadoresanalíticosfiáveis.Vouusaracomparaçãoparaquetenhamosapenasumasimplesordemdegrandeza.Emesmoassim,infelizmente,asestatísticassobreaslínguasbantoeparticularmentesobreasreligiõessãomuitoincertaseasúltimasmuitorecentes.Osnúmerosconsultadosmaisconsistentesreferem-seàprovínciadeNampula,procurareianalisaremestudosfuturosonúmerodefalantesedemuçulmanosparaasregiõesdedominâncialinguísticamacuaparaalémdasfronteirasdestaprovíncia.

Para 1950, o recenseamento109 apontava para 5.646.957 o número dehabitantesdapopulaçãonão-civilizadadeMoçambique110,daqual1.775.564erammacuas(31,44%)e517.429lómuès(9,16%),sendoqueocritériocontabilísticoterásidoexclusivamenteodalínguamaterna.OsmacuasviviamessencialmentenodistritodeMoçambique,hojeprovínciadeNampula(98,71%dapopulaçãolocal),69,32%dapopulaçãoeCaboDelgadoeramacua,e38,24%dapopulaçãodoNiassa.

Num relatório de 1961111, o PadreAlbano Mendes Pedro escreveu que ocensodesseanoapurara612.355fiéisdoIslãoemMoçambique(apud Monteiro,2993: 300). No entanto, este último autor considerou exagerado o número, emais estranhou que, de acordo com o mesmo censo, o distrito de quelimaneapresentasse2,5%depopulação islamizada,odeMoçambiqueapenas10%,odeCaboDelgado,50%eodoNiassa70%.Infelizmente,nãoapresentaoutraspercentagensnemargumentosparaasuadiscordância.Porsuavez,JoséJúlioGonçalvesavançouonúmerode598.767paraomesmoano(Gonçalves,1962:219-221),epara1955,umnúmerodemuçulmanosentre700.000e1.000.000,numapopulaçãototalmoçambicanade5.764.362pessoas.Tudoestimativasque,paraomeupropósito,nãoelucidammuito.MichelCahenconsideraqueonúmerode muçulmanos foi subestimado no Censo de 1950 «por causa das carências

108 háaregistaradiásporamacuadasconfrariasparaoutrasregiõesdopaís,sobretudoparaacapital.VeraestepropósitootextodeM.J.CorreiadeLemos,«ReviveraIlha[deMoçambique],naMafalala[bairrodeMaputo]»,in:arquivo,vol.4,1988:49-58,eumanarrativadeJoséCraveirinhapublicadaa26deFevereironoBrado africanocomotítulo«MaulideRifainaMafalala»(apud Macagno,2006:143).

109 Moçambique(Provínciade),RepartiçãoTécnicadeEstatística,1955–recenseamento geral da população em 1950. vol. iii, população não civilizada.LourençoMarques,ImprensaNacionaldeMoçambique.Apenasesterecenseamentode1950registouacomposiçãoétnicadacolónia.

110 Numa população total de 5.733.000 habitantes (na qual apenas 4.353 possuíamo estatuto deassimilados).

111 Pe.AlbanoMendesPedro,missão para o estudo da missionologia africana. influências político-sociais do islamismo em moçambique(RelatórioConfidencial),1961.

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técnicas e de uma fraca cobertura administrativa em certas zonas; uma partedosmuçulmanos,dizele,oiprovavelmenteclassificadanavastacategoriados“Outros”,queagrupavaasigrejascristãsdissidentes(entãoconsideradasseitaspagãs), as religiões tradicionais e uma parte dos muçulmanos. Não obstante,emtodososescritosdaépocanota-seopavorrelativoaocrescimentodoIslão.Mesmoseapercentagemdosmuçulmanosultrapassavaos10,60%oficialmenterecenseados,émuitoprovávelquenãotenhasidoidênticaaos18,14%de1960,equehouveumcrescimentorealpassandotalvezde15para18%emdezanos»112.

De facto, o IIIº Recenseamento (colonial) Geral da População de 1960(publicadoem1965)registaparaacolónia18%demuçulmanos.CombasenosdadospreliminaresdesteCensoedeinquéritosanteriores,VelezGriloelaborouo seguinte registo estatístico para as comunidades de «idiomas macuas». Soba designação genérica de «macuas» viviam no distrito de Moçambique (hojeprovínciadeNampula)cercade1.000.000indivíduos;emCaboDelgado,280.000,noNiassa,35.000,ouseja:umtotalde1.315.000«macuas»nastrêsprovínciasnortenhas,semcontabilizar,portanto,asdiásporasinternaseaemigraçãoeexílionascolóniasvizinhas,sobretudonoTanganica,emZanzibarenoquénia.AosmacuasdeCaboDelgado,pertenciamosmêtosdeNamapaeNairoto,15.200;aosdoNEdodistritodeMoçambique,oseráti deNamapaeNacaroa,100.000,e os chacas113 de Namapa, 15.000. No SE, em Boila (região deAngoche), osmulaiseriam20.000;aOeSO,oschirimasdeMalemaeRibáuèatingiriamos30.000enoAltoMolócuèeLigonha,64.000.Oschuabosdequelimane,ChindeeMopeia,200.000,eoslómuès400.000naZambézia,estendendo-separanorteatéRibáuè, 4.000, eCuambaeMurrupula, 5.000.Os falanteskimuani seriam10.693 (em 1940): 3.224 em Palma (onde se consideravam suaíli), 4.075 emMacomia,e3.394noIbo.OsmacasdeCaboDelgadoatingiam27.000indivíduos(Grilo, 1961: 131-145). Nesse final de 50, os principais núcleos islâmicos detodasestaszonas linguísticaspertenciamaosmacas, muaniesuaílidePalma,Macomia,quissangae Ibo, todosdeCaboDelgado,chuabos dequelimaneeChinde,mulaisdeBoila,cotisdeAngoche,sangagesdeSangage,enaharadaIlha,Lungo,Cabaceiraseregiõesvizinhas,erátisechacasdeNamapaeNacaroa,mêtosdetodoosuldeCaboDelgado.

112 Tradução minha de «en raison de carences techniques et d’un maillage administratif encorefaibledanscertaineszones;unepartiedêsmusulmansavaientcertainementétéclassesdanslavaste catégorie dês «autres», regroupant les églises chrétiennes dissidentes (alors considérées«sectespaiennes»),lesreligionstraditionnellesetunapartiedêsmusulmans.Néanmoins,touslesécritsportugaisdel’époques’effraientdela«croissancedel’islam».Mêmesilaproportiondemusulmansdépassaientles10,60%officiellementrecensés,ilestdoncprobablequ’ellen’étaitpásidentiqueàcequ’ellefuten1960(18,14%)etqu’ilavaitunecroissanceréelle–passantpeut-êtrede15à18environendixans»(Cahen,2002:362-3).

113 Aindaem1994,opadreManuelNeves,dasociedade missionária,voltouaestarnoseiodos“seus”Chacas,emOcua(Neves,2004).

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Apartirdedadosquecompilara,FernandoAmaroMonteirocalculoupara1962cercade500.000islamizadosemtodooterritóriomoçambicano.Paraesteano,oatlas missionário português114indicouonúmerode800milislamizados,quesuperavaodoscatólicos,estimadosem657.871.Continuavaportantoumagrandedisparidadedonúmerodemuçulmanos.

Para 1967, de acordo com os serviços de informação militar e a suaclassificação étnica, Michel Cahen estabeleceu os seguintes montantes para oespaçolinguísticomacua-lómuè:«Numtotalde3.078.600falantesdestecomplexolinguístico,ouseja,42%dototaldosmoçambicanoscomlínguamaternabanto,osarrobicontavamcom70.000pessoas(0,95%),achirrimacom161.900(2,20%),macuas, 763.600 (10,40%), maca, 552.000 (7,60%), mêto, 326.300 (4,50),mulai,19.400(0,30%),imbamela,100.400(1,40%),chaca,39.200(0,50),errati,117.900 (1,60%), marave (deNamapa)115, 14.300 (0,19%), marrevone, 14.300(0,19%), lómuès, 662.600 (9,10%), malolo, 94.800 (1,30%), cocola, 18.700(0,25%), macololo, 11.900 (0,16), maone, 25.100 (0,34%), manhaua, 45.400(0,62%),marata,23.700(0,32%),massingire,7.100(0,10%),mihavani,5.900(0,08%),marengue116,3.500(0,05%),(Cahen,1994:232,Tableaun.º3)117.

O recenseamento colonial de 1970, como mais tarde o da RepúblicaIndependenteem1980,nãoapurouasopçõesconfessionaisdapopulação.

Noprimeirosemestrede1974,quasedozeanosapósaformaçãodaFrelimo,a estimativa dos serviços de Centralização e Coordenação de informações (SCCIM) situava em 1.200.000 o total aproximado de fiéis do Islão emMoçambique.OGabinete provincial de acção psicológicaaceitavaestecálculo,embora considerasse que o apuramento estatístico dos fiéis muçulmanos erasempremuitocontroverso.FernandoAmaroMonteiroconsiderouqueo«IslãoemMoçambiqueseimplantavaesedesenvolviaprincipalmentenosdistritosdeCaboDelgado,NampulaeNiassaentreosmacuas(macas,lómuès,mêtos)eajauas,epelosmuçulmanosasiáticosdeorigemindianaepaquistanesaemestiçosseusdescendentes,disseminadosumpoucoportodaaprovíncia.OIslãoconsolidava--sefortementenodistritodeCaboDelgadoentreosgruposbemdiferenciadosdesuaíliemuanes,eentreosmulaisnoSEdodistritodeNampula.ProgredialentamasseguramenteentreoschirimasdeNampula,oschuabos,maganjas,lómuèsetacuanesdaZambézia(porordemdecrescente).Emtodoorestanteterritórioapresençamuçulmanaeramuitodiscreta,sebemqueemascensão,mormentenodistritodeInhambane,entreosbitongas,enaperiferiaurbanadeLourençoMarques»(Monteiro,1995:449).

114 atlas missionário português.Lisboa,Juntade InvestigaçõesdoUltramar /CentrodeEstudosPolíticoseSociais.

115 GrupomacuanovaledoLúriocomumachefiapolíticadeorigem«marave».116 Chuabosdointerior,ditosmarendje?117 ParaumacríticaaesteartigoverElísioMacamo,«Anaçãomoçambicanacomocomunidadede

destino»,lusotopie(Paris,L’harmattan),1996:355-364.

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Sejacomofor,chegadaaIndependência,em1975,Moçambiqueencontrava--secommaisdeummilhãodemuçulmanos,ouseja,cercade15%dapopulaçãototal.Paraestaestimativaserviuarelaçãodasreligiõespraticadasnosdistritosfeitadeacordocomacircularn.º459/75,de18deAgostode1975,doGabinetede Estudos do Ministério do Interior. Tomemos o caso da relação do distritode Memba118: Católicos, cerca de 9.000 fiéis; muçulmanos (sunitas), 106.000;ismaelitasoukojás,30fiéis(quasetodosfamiliares),hindus,cercade30pessoas,e animistas, cercade15.000.Osmuçulmanos (sunitas) tinham127mesquitasespalhadasportrêsLocalidadese32Círculos(nãohaviaCírculosempelomenosumamesquita).AIgrejacatólicapossuíanodistrito trêsMissões fundadasem1948,amissãodaSagradaFamília,deMemba,em1960,amissãodeS.PedrodoLúrio,eem1972,adeNossasenhoradaConceição,emCavá.

Oiº recenseamento Geral da populaçãode1980mostrouqueosfalantesdo(s) idioma(s) emakhuwa perfaziam 3.231.559 indivíduos, ou seja: 27,7%dapopulaçãodopaís, de longe,ogrupo linguísticomais falado.Sendoqueépredominante na província de Nampula (96,3%), maioritário na província deCaboDelgado(64,8%),aqui,dominanteasuldorioMsalo,sobretudoemPembaenos9dos13distritos;étambémligeiramentemaioritárioemtodaaprovínciadoNiassa(53,7%)egrandementemaioritárioasuldalinhaMaúa–Mechanhelas.Na província da Zambézia, o emakhuwa era falado por 7,3% da população,essencialmenteemPebane(97,0),noIle(18,6%),emquelimane(4,1%),noGilé(2,3%),noChinde(1,6%)enaMorrumbala(1,2%).Nasrestantes7provínciasdopaíserapercentualmenteinsignificante.

Omesmorecenseamentomostrouaseguintesituaçãoparaos idiomasdolitoralnortedeMoçambique.EmPalma,6,5%dapopulaçãofalariakisuaíli(massemdadosparaoximakwe,idiomafaladonacostaextremoNE,umalínguacrioularesultantedainter-influênciadokimwaniekisuaíli.Okimwanierapouquíssimofaladonopaís(menosde1%),masmuitosignificativoemCaboDelgado(5,5%),falando-sesobretudonoIbo(82,1%),Mocímboa(36,2%),quissanga(22,1%),Macomia(16,0%),Palma(12,0%),ePemba–distritoecidade(11,6%).Porsuavez o ekoti tinha apenas uma expressão de 1,8% na província de Nampula e22,5%emAngoche,aregiãoberçodesteidioma.CuriosamentenãoháreferênciasnuméricasnoRecenseamentoaoesangadgi (ouesakatji), aoenahara, nemàsvariantesximêtoexirimadoemakhuwapadrão.Seconhecêssemosadistribuiçãodos fiéismuçulmanosporestaszonasde falaresmacua,veríamosqueas suaslínguasmaternas(ouprimeiraslínguas)eramasdolitoral,doemakhuwaoriental(enahara,eráti, exaka, macuadePebane,Larde,Moma,Memba,Monapo,ejánessaalturaNampula-cidade,falaresmacuadetodoosuldeCaboDelgadoedoNiassa,emacuafaladoemquelimaneenoChinde.

118 RelaçãodoAdministradorJoãoFranciscoInroga,de28deDezembrode1975,cópiapormimconsultadaemMemba,nomêsdeAgostode1976.

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AquandodareuniãodaFrelimocomoscredosreligiosos,em1982,haveriacerca de 2.249.000 crentes islâmicos. Sete anos depois, para 1989, os dadosestatísticosnacionaisapontavamparaumapercentagemde16a18%islamizadose 18% cristãos, numa população de 15.371.000 indivíduos, ou seja: entre2.459.360e2.766.780muçulmanos.

ParaodebateemtornodoIslãoletradodoConselhoversusIslãoconfréricosufista, passadostodosestesanosapósaproclamaçãodaIndependência,conviráanalisar o progresso escolar, alfabetização e transformações ocorridas nasprópriaselitesreligiosastradicionaisenaselitesreligiosasmodernas119.Apenasatítuloilustrativo,entre1975e1980,«onúmerodealunosnoEnsinoPrimárioe no Ensino Secundário duplicou em ritmo de crescimento médio anual de31,4%e15,6%,respectivamente;quadruplicounas5ªe6ªclasses,atingindoocrescimentomédio anual de 31,4%ao ano. Segundo o censo de 1980, a taxadeanalfabetismonapopulaçãode15anosoumaisbaixoude90%para71,9%,continuando,porém,elevadanogrupoetáriodos7aos14anos,com70,7%,emrelaçãoa56,3%entreos15e24anos.Jáem1985,estataxadeanalfabetismo(15anosoumais)desceupara62%,mercêdosefeitosdaexplosãoescolaredascampanhasdealfabetização(Mazula,1995:189).Conviráemestudosulterioresfazeraanáliseestatísticadestaproblemáticadoensinoealfabetizaçãono«mundomacua», incluindodoensinomasmadraçase tambémnauniversidade mussa Bine Biquedesdeosanos80atéàactualidadeeoseuimpactosobreasfiliaçõesecomportamentosreligiosos.

Segundo Job Mabalan Chimbal, responsável pelo DAR, em 1991, asestimativasparaonúmerodefiéisdosvárioscredosexistentesemMoçambiqueseriam as seguintes: Muçulmanos, 30% da população, cerca de 4.500.000;Católicos, 20%, cerca de 3.000.000; Protestantes do Conselho Cristão deMoçambique,15%,cercade2.250.000;Novasseitas(140estariamidentificadas),5%,cercade750.000;Religiãotradicional,30%,cercade4.500.000120.

Em 1992 já existiam em Nampula 3.392 mesquitas sob controlo directodoCongresso, das quais, 142na cidadedeNampula, 115na zona rural destedistrito, e3.135espalhadaspelosoutrosdistritos, com relevoparaAngoche eMoma.Desseanoa1995,oConselho islâmicoteráconstruídonaprovínciamais5mesquitase7madraças.

Os resultados das eleições de 1994 deram em quase todo o norte deMoçambiqueumagrandeexpressãodevotosàoposiçãoàFrelimo,oque terálevadoMichelCahenaescreverqueesseprotestofoia«expressãoclaradeuma

119 Sobre o ensino para os “indígenas” no período tardo-colonial, vide António Rita-Ferreira:«AfricanEducationincolonialMozambique…»(Rita-Ferreira,1998:281-318).

120 apud,Pe.FranciscoPonsi,IMC,«Asociedadedehoje:“sinaisdostempos”edesafiosparaaIgrejadehojeedeamanhã»,documentoapresentadonaAssembleiaArquediocesanaExtraordináriadoMaputo(1-4Agosto1991),epublicadonarevistarumo novo,Beira,1/92:3-16.

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conscienteidentidademacua»,tendoocuidadodeacrescentar,contudo,queisso«nãoésuficienteparadizerquetemosaquioprimeiropassodeumanovanação»(Cahen,2002:97e98).Infelizmente,oautornãoanalisouconvenientementeadistribuiçãodistritaldosvotosnemnosdizqualfoiapercentagemmuçulmanaecristãdaparticipaçãoeleitoral.JámaisinteressantefoiofactodaFrelimotertomadoemconsideraçãoaetnicidadeearepresentaçãodegruposdeinteresseparaaelaboraçãodaslistaslocais,oqueteráevitadoumamenorpercentagemdevotantesaseufavor.DeacordocomumestudodeLuísdeBrito(1995:488-9),podemosregistarqueno«espaçomacua»,aFrelimovenceunosdistritosdeMoma,Ribáuè,LalauaeMecubúri,eaRenamonosrestantesdistritosdaprovínciadeNampula;aFrelimoganhouemtodososdistritos«macua»deCaboDelgado,eaRenamovenceunosdistritosdeSanga,Lichinga,Nagaúma,Metarica,MaúaeNipepe,daprovínciadoNiassa,tendoaFrelimoganhonosrestantes.Ora,emralaçãoaosdistritosmaisislamizadosdeste«mundomacua»,aRenamoganhounosdaprovínciadeNampula,àexcepçãodeMoma,eaFrelimonosdeCaboDelgado, vencendo também no espaço muçulmano macua do Niassa. Não sepoderáportantoconcluirqueteráhavidoumvotogeneralizadonaRenamodosmacuasmuçulmanos.SobreoposicionamentodasigrejascristãseoutroscredosfaceàseleiçõesvideMorier-Genoud121.

DeacordocomoCensode1997122,26,3%dapopulaçãomoçambicanacommaisdecincoanostinhaomacua(emakhuwa)comolínguamaterna(3.291.916pessoas)e26,1%comoidiomausadonodia-a-dia.123ÉfaladoessencialmentenaprovínciadeNampula(66,24%dosfalantesdesteidioma),mastambém,comotenhovindoareferir,nosuldeCaboDelgado(macua-mêto),21,74%,nosuldoNiassa(macua-chirima emacuadeMaùa),8,73%124,nasregiõesfronteiriçasdaZambézia (macua-chirima),numagrandesimbiosecomoelómuè, umalínguamuitoaparentada125,edemododispersoporestaprovíncia(2,57%),comalgunsnúcleos espalhados pelo país (Sofala: 0,17% dos falantes, e Manica: 0,10%),incluindonaáreametropolitanadacapital(0,23%).OCensomostroutambémqueoemakhuwa eramaisfaladonomeiorural(29,9%)queurbano(17,0%).Paraalémdesteidioma,registem-seduaslínguasaparentadas,oelómuè,naZambézia,línguamaternade7,9%demoçambicanos(faladapor7,6%commaisde5anos),

121 Morier-Genoud, Éric, 1996b, «The Politics of Church and Religion in the First Multi-PartyElectionsofMozambique»,internet Journal of african studies(1),avril(http:<//www.bradford.ac.uk/research/ijas/ijasnol.htm>).

122 IIº Recenseamento Geral da População em 1997. Resultados definitivos. Maputo, InstitutoNacionaldeEstatística,1999.

123 Incluindo,porconseguinte,todososdialectosefalareslocais.124 EmCaboDelgadooemakhuwaprovincialcorrespondiaa66,74%dosidiomasfaladosenoNiassa

a47,46%.125 OelómuètinhanesteCensoumaexpressãode97,87%naZambézia.

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eoechuwabo, 89,72%nodistritodequelimane,6,3%e5,8%anívelnacional,respectivamente.

SegundoestemesmoCensode1997,aprovínciadeNampula tinhaumapopulação de 2.975.747 indivíduos, isto é, 19,5% dos moçambicanos. Dessapopulação provincial, 75% era rural e 25% urbana, 10,2% concentrava-se nacidadedeNampula,5,3%emNacala-Porto,e1,4%naIlhadeMoçambique.Emtermos regionais,8%vivianodistritodeMoma,7,7%emAngoche,7,6%noMonapo,7,1%noEráti,6,35%emMemba,e6,1%emMogovolas.Distritosfortementeislamizados.

Com base nos resultados gerais do Censo e com os dados dos PostosAdministrativos,MichelCahen(2000,2002)registouasseguintespercentagensdemuçulmanosparaapopulaçãogeralcommaisdecincoanos:17,80%(Censo),20,61%(dadosdosPostosAdministrativos.Adistribuiçãodosmuçulmanospelopaís era sobretudo notória nas províncias do Norte: Cabo Delgado, 54,80% /65,50%,Niassa,61,50%/76,36%,Nampula,39,10/47,15%,Zambézia,10,00%/09,34%,comumnúcleosignificativonacidadeeprovínciadeMaputo6,40%/5,56%.

De toda a população da província de Nampula, 39,10% era muçulmana(percentagem relativa a 1.139.564 indivíduos)126, 27,2% católica, 15,8%evangélica,adventistaoumazioneeosrestantespertenciamaoutrasreligiões.Masseconsiderar-mosapenasosqueadmitiramprofessarumareligião,regista-seaseguintedistribuição:47,15%demuçulmanos,33,5%decatólicos,15,8%integramconfissõesevangélicas,adventistas,protestantes,ziones(mazione)127 eoutrasreligiões,e18,7%religiãotradicionalafricana.Dosmuçulmanos,48,9%eramhomense51,1%mulheres,comumaclaramaioriaanívelrural(65,1%),oqueéconformeaocaráctermaioritariamenteruraldaprovíncia,embora,eistoserá interessante analisar, a religião islâmica nestas paragens moçambicanasnortenhastenhatidonaorigemumaimplantaçãoeumdesenvolvimentoemmeiosurbanossuaíli,espaçosculturaisesociaisdiferentesdodascomunidadesaldeãsdointerior.Dopontodevistasomático,osmuçulmanosnegrossãodominantes(99,6%),0,2%sãomistos(2138indivíduos),0,9%indianos(986habitantes)e0,1%brancosououtrostipossomáticos,numtotalde1073residentes.Talcomo

126 Correspondendoa42,3%dosmuçulmanosanívelnacional.127 Trata-sedeumaigrejadotipopentecostal.Duranteosseusrituais,oszionesentramnumcrescente

estadofrenético,porvezesemtranse,coadjuvadosporinstrumentosdepercussão,movimentosrítmicoserefrões,comoaliásmuitosmuçulmanossufistas;amiúdeéfeitaaimposiçãodasmãos,elementodetransmissãodaforçavital,pelosdignitáriossobreospacientesqueseconsideramem«falta»,em«culpa»ouemestadode«impureza»pornãocumprimentodequalquerdeversagrado ou que foram «visitados» por uma potência hostil doAlém (Monteiro, 1995: 452).SobreosmazioneemMoçambiqueháalgumaliteratura.VideVictorAgadjanian,«AsIgrejaszionesnoespaçosocioculturaldeMoçambiqueurbano(anos1980e1990)», lusotopie1999,pp.415-423.

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sucedeàescalanacional,tambémnaprovínciadeNampulaosmuçulmanosnegrossãomaioritariamentehabitantesdasáreasrurais(65%)emdesfavordoscentrosurbanosdeorigemcolonial(35%),aocontráriodoqueseconstataemrelaçãoaosmuçulmanosmistos(com91,1%aresidirnoscentrosurbanose8,9%emmeiorural),eaos indianos(96,6%urbanoseapenas3,4%rurais.Pelocontrário,osmuçulmanosbrancosououtrosnãonegrosnemindianosresidemnamaioriaemárearurais(63,4%)128.

Em 1999129, na província de Nampula, 39,1% era muçulmana, 27,3%católica,12,6%outrasconfissõescristãs,3,1%outrasreligiõese16,2%religiãotradicionalafricana.Fazendoféaestesdados,nodecorrerdedoisanosapopulaçãomuçulmanadaprovínciacresceumaisqueasoutrasconfissõesreligiosas.

A nível de todo o país, embora as estatísticas sejam precárias, em 2000assumiam-secomoislâmicoscercade10%dapopulação.NumIslãocompostopordiversascorrentesevivências,comváriasinstituiçõesanívellocalenacional,e também rivalidadesnoque toca aprincípios religiosos e a posicionamentospolíticos.Mesmoassim,desdeosanos80,caminhou-separaumislamismodereferêncianacional,supraidentidadelocal(macua,jaua,oudeorigemasiática),todavia portador de algum conflito entre a vertente pan-islâmica e a vertenteislâmica africana, resultando esta, como vimos, de uma longa história desincretismos.

A visão que a Igreja Católica tinha no ano de 2002 do islamismo emMoçambique por um dos seus membros era a seguinte: «Os muçulmanosconstituem31%dapopulaçãoeestão reagrupadosemváriascomunidades:a)AssociaçãoMaometanaquereúne5%dototaldosmuçulmanos;éformada,emsuamaioria,porcomerciantesindianosepaquistaneses.b)ConselhoIslâmicodeMoçambiquequesão10%dosmuçulmanosnopaís;éformadoporgentedealtoníveleconómico.Entreeleshágruposradicais,detendênciasfundamentalistas.c)CongressoIslâmicoformadopelamaiorpartedapopulaçãomuçulmana.NasuamaioriasãodoNorte,nomeadamentedasprovínciasdeNampula,Zambézia,NiassaeCaboDelgado.Emgeral,estegrupoétolerante,comtendênciasmaisabertasemoderadasdoqueosgruposanteriores.d)GruposEstrangeiros(como“African Muslin Agency” e outros). São grupos missionários, de expansãoe penetração, e fundamentalistas. Estão em Nacala, Nampula e Maputo,principalmente»130.

Nas recentes eleições de 2009, a Frelimo ganhou 42 presidências demunicípioeteveamaioriaem42das43assembleias.ARenamofoirechaçadados

128 DadoscompiladosporMariaJoãoPaivaRuasBaessaPinto(2002:113-114).129 PerfilProvincialdaPobrezaedoDesenvolvimentohumanodaProvínciadeNampula,2000.130 Pe.FranciscoLermaMartinez,«Umolharcontemplativoeempenhadodonossotempo».Estudo

apresentadonaAssembleiaRegionaldoIMCdeMoçambique,realizadaemGuiúa(Inhambane),a25deJulhode2002. (Nota:naregraespanhola,diferentedaportuguesa,oprincipalapelidovêmantesdosoutros,porissonabibliografiadeveráprocurarLerma).

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municípiosquegovernava.Actualmente,hánopaís9municípiossemmembrosdaRenamorepresentadosnaassembleiamunicipal,enoutros8temapenasumdeputadoemcadaum.Opartido independente de moçambique (PIMO)131nãoconseguiuganharmaisque1%dosvotosemAngocheregiãoeleitoralislâmicapor excelência, onde o «electoral disaster has overtaken Mozambique’s mainoppositionparty, the former rebelmovementRenamo,which is set to loseallfiveofthemunicipalitiesthatitwoninthe2003localelections.ThelatestresultsfromWednesday’s municipal elections show that Renamo has lost heavily inthecoastal townofAngoche, in thenorthernprovinceofNampula.Accordingto the results sheets posted at all 40 polling stations, and reported by RadioMozambique,thecandidateoftherulingFrelimoParty,AméricoAdamugi,hasunseatedtheincumbentmayor,AlbertoAssane,winningalmosttwiceasmanyvotes.Theresultsforthemayoralelectionswere:AméricoAdamugi(Frelimo):12, 468;AlbertoAssane (Renamo): 6, 427; In the election for the municipalassemblyRenamodidevenworse,whilethevoteforPIMO(IndependentPartyofMozambique)wassopoorthatitwillalmostcertainlyloseitsoneseatoftheassembly.Theresultswereasfollows:Frelimo:12,671;Renamo:5,862,PIMO:271»132.

7. Breve conclusão

Comonoutrasregiõesdepovoamentoescalonadonotempoenoespaço,asfronteirasterritoriaisdosidiomasempresença-deumamesmaraizlinguísticabanto - foram sempre porosas. E com mais porosidade eram os limites dosdiferentes “dialectos” da mesma língua e cultura - que muito mais tarde sechamoumacua-,queforamsurgindoàmedidaquemicro-identidadessociaisseformaram, desenvolveram e tambémdesapareceramdurante o longo processohistóricodetrocasmercantiscomosnegocianteschegadospelooceanoÍndicoetambémcomossucessivosrepovoamentosnasterrascontinentais.

Procurei mostrar que para épocas anteriores aos comércios do marfim edosescravosnãosedevefalarsequerdeumaáreageográficamacuanosentidodeuma línguaeculturacomoaentendemoshoje; equeduranteessasépocasmercantis se foram formando espaços identitários autónomos. O etnónimo«macua»continuoua ser contudoumaexo-idenficaçãodosoutros, exteriores,designaçãovindadopassadoequeenglobavaaquelas,queporsuaveznãosereconheciamcomotal.MasageografiahumanadessesOutroscomeçouapartirdo século XVI a ser menos englobante por causa do conhecimento de outras

131 Alguns dizem (não oficialmente): partido islâmico de moçambique, chefeado por YaqubSibindy.

132 mozambique political process Bulletin, Issue42–4September2009,Editor: Josephhanlon,DeputyEditor:AdrianoNuvunga.

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identidadesnoslimitesterritoriaiscomidiomaseculturasdiferentes,comojauas,maraves,bisas,bororos,etc.

Por sua vez, entre as populações locais, nos limites geográficos sempreindecisosdosnovosespaços,adistinçãoentreofalaremakhuwalocaleofalardo dialecto também local do idiomavizinho era pouco perceptível, por vezesmenorqueentreessedialectoemakhuwaeumoutrodialectotambémemakhuwadooutroladodoterritório.

havianoentantoalgoquenãosendoimpeditivodaformaçãodeidentidadesprópriascombasenumaestruturapolíticaespecífica,aindaquevariávelnotempolongo,asrelacionavaatodasejáasdistinguiatambémdosvizinhos,nãopelaestrutura,massimpelanomenclaturadamalhaclânica.

Provavelmente, se não tivesse havido factores externos determinantes,como os houve, essas micro-identidades ter-se-iam tornado completamenteindependentes, ou ter-se-iam fundidonoutras pela conquista ou reestruturaçãopolítivca. Nestes processos de diferenciação mostrei como o Islão se tornouimportante, possibilitando aos chefes locais distanciarem-se pela organizaçãoislâmicadarededoparentesconaquiloquelhesinteressava.

Mascomofimdotráficodeescravos,aconquistacolonialesubsequentemontagemadministrativadeulugaràimplementaçãodeumaeconomiaimperialgeograficamente diferenciada segundo os interesses do capital colonial quesortiuosseguintesefeitos:fixaçãodoslimitesexternosdoconjuntodasmicro-identidadesdelínguaemakhuwa,porvezesdemodoaleatório,determinandodestemodoumamacroterritorialidadegeográfica;diluiçãodealgummododoslimitesinternos,passandoasermaisimportanteoslimitesdosreguladosouregedoriasindependentes,porvezescomcruzamentosterritoriaissobreoslimitesdemaisdeumamicro-identidade.

Masparaalémdisto,equiçámaisimportante,adecisãocolonialdefazerdosterritóriosdodistritodeMoçambique(actualprovínciadeNampula),dosuldeCaboDelgadoedosuldoNiassazonasdeproduçãofamiliarparaomercado(coisaquealiásjávinhademeadosdenovecentos),distintadaeconomiazambezianadeplantação(queporsuavezforaherdeiradosPrazos).Agravadonumenoutrocasopelo trabalho forçado e culturas obrigatórias.Osdois diferentes tipos deeconomiaimperialfizeramcomquesefixassenoterrenooquevinhadasépocasanteriores,adiferenciaçãolinguísticadessasduasgrandesregiões.

Atodosestesprocessoschamei«macuanização».Porocasiãodaconquistacolonialtambémossultõesexequessuaíliforam

derrotados e o seu tipo de produção e reprodução económica definitivamenteafectado.Ora,foinessaalturaqueseformaramconfrariasemMoçambiqueequeoIslãocomeçouaserdifundidoerecebidonasterrasdointeriorequeasredesconfréricas começaram a ser ali instaladas. Estas redes passaram a relacionarmuçulmanose,atravésdeles,outraspessoasdascomunidadeslocaispertencentesamicro-identidadesdistintas,porvezesmuitodistantes,doLardeaMontepuez,

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por exemplo. Ou seja, este Islão confrérico com simbioses sincréticas deelementosculturaislocaisacabouporsetornarumaredequepoucoapoucosefoisobrepondo,entreosmuçulmanos,àantigaestruturalinhageira.Porissotambémchamei«macuanização»aesteprocessosocialecultural.

Os letrados islâmicos ao oporem-se a este Islão, cujas práticas rejeitam,situamadiscussãoeexigênciadaspráticas religiosasaumníveluniversalistaislâmico diferente do praticado pelas comunidades nortenhas sufistas (e seusgruposdiaspóricos,nacapital,porexemplo).Aofazê-lo,inscrevemdestafeitaaproblemáticaaumnívelsupralocal,procurandodealgummodo«desmacuanizar»oIslão«étnico».Adiscussãodonacionaledo«étnico»coloca-setambémnestestermos.

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GlossÁRIo

(Nota:esteglossáriofoielaboradocombasenabibliografiacitada,emparticulardolivrodeNetton,2001,edolivrodeSardar,2007)

abd – (plural“ibad”ou“abid”).Palavraquesignificaescravo,servo(deDeus).Noplural,“abid”,éfrequentementeusadoparadesignar“escravos”,enquanto“ibad”éusadoparaservos(deDeus).“Al-Ibad”significa“humanidade”,emboraoCorãouseoplural“ibad”paraescravos.“Abd”étambémusadonosnomespróprios.Exemplo:Abdal-Rahman(ServodeDeusMisericordioso).

adl –Justiçadistributivanassuasváriasmanifestações.aga Khan –Apalavra“Agha”foiusadaemturcoparadesignar“chefe”;mastambém

erausadaparaindicareunucosaoserviçodogoverno.Apalavraeraaindautilizadaempersacomsignificadosemelhante,masfrequentementesoletradacomo“Aqa”.“Khan” era uma palavra turca e persa que significava “chefe” ou “senhor”. Acombinaçãodasduasnumúnico título foiadoptadapelos imãsdosnizaris,umaseitadosismailitas.OtítulofoiinstauradopeloXádaPérsiaem1818.

ahmadiyya – Um movimento religioso fundado em 1889 por Mirza GhulamAhmadqadiyan (1835-1908). O movimento tem sido frequentemente perseguido poroutrosmuçulmanosdesdequeGhulamAhmadalegouseroMahdi,ouoPrometidoMessias.OsahmadisacreditamqueJesusressuscitoudamortenacruzefoiparaSrinagar (Índia) onde morreu e foi enterrado. OAhmadiyya dividiu-se em doisgrupos:osqadiyanis,queacreditavamemGhulamAhmadcomoumNabi(Profeta),eoslahoris,queacreditavamseroseufundadorumMujadid(Renovador).AsededoAhmadiyyafuncionaemRabwah(Paquistão).

akhira –Vidaapósamorte,oAlém,quandocadapessoaseráchamadaaprestarcontasdosseusactos.

alá – Estapalavraéformadadoárabe“al-Ilah”quesignifica,literalmente,“Deus”.alauitas (ou alevitas) –Membrosdeumgrupotambémdesignadonusayris,ouaqueles

que seguemAliAbu Talib. O nome nusayris deriva de um dos seus primeiroslíderes,MuhammadNusayr(séculoXIX).Assuascrençastêmmuitoemcomumcomasdosismaelitas.hánusayrisnaSíria,naTurquiaenoLíbano.NaTurquiasãotambémconhecidoscomoalevitas.

al-azhar –Literalmente“OBrilhante”ou“ORadiante”.Onomecompletoé al-Jamial-Azhar(AMesquitaRadiante).Éotítulodamaisfamosauniversidadeemesquita,fundadapeladinastiaxiitadosFatimidasnoCairodepoisdeconquistaroEgiptoem969.Foicriadainicialmentecomoumbastiãodadoutrinaismailita,mastornou-seumredutodaortodoxiasunitacomosayúbidas(dinastiaqueprecedeuosmamelucosecujonomederivadocurdoAyyub,paidofamosoSaladino).

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alcorão(emárabeal-qur’ãn)–Segundoodicionário etimológico da língua portuguesa(de José Pedro Machado, Livros horizonte, Edição de 1989), «modernamenteusa-se escrever Corão, sob o falso pretexto que alcorão é pleonasmo, pois apresençadoartigodefinidoarábicoal-tornariadesnecessárioousodoo,mastalformaéglacicismoeadoutrinaexpostaerrada»(IºVol.p.183).alcorão(doárabeal-qur’ãn)-Significaliteralmente“aleituraporexcelência;Recitação”.Éolivromaissagradodoislão,consideradopelosmuçulmanosapalavradeDeusreveladapeloanjoGabrielaoprofetaMaomé.Otextoconsisteem114capítulos,cadaumdesignado“sura” (emárabe).Cada“sura”éclassificadosegundoaproveniência–MecaoudeMedina,ascidadesondeMaomérecebeuasrevelaçõesdivinas–ecadaumaestádivididaemversículos.

Ãlimos –Omesmoque‘ulama ouulemas:LetradosdoIslão.Especialistasreligiosos.Ver‘ulama.

al Khaliq –OCriadordetodasascoisas.Aquelequeoéporexcelênciaenãocessadecriar.

allahu akbar –Deuségrande(declaraçãoouexpressãodeelogioeglorificação).al-quds –Nome árabe de Jerusalém, que significa “ASagrada”.É venerada como a

terceiracidadesantadoislão,depoisdeMecaeMedina(naArábiaSaudita),porqueoprofetaMaomé,acreditamosmuçulmanos,ascendeudaquiaosSeteCéus.

arabiyya islamiyya – Escola moderna islâmica em Moçambique que inclui no seucurriculum as disciplinas consideradas ‘ilm, isto é, que incorporam as noçõesde sabedoria e justiça, tais comoAlcorão, hadiths (tradições do profeta), tasfir (exegesesdoAlcorão),tawhid(unidadedeDeus),sira(biografiadoprofeta),fiqh (jurisprudênciaislâmica),etc.

ashura – Odécimodiadomêsmuçulmanodeal-Muharram.OprofetaMaomécostumavajejuarnestediaeporissoaindahojeéconsideradoumdiasantoedejejumpelosmuçulmanossunitas.Paraosxiitaséparticularmentesagradoporseroaniversáriodomartíriodeal-husseinAlinaBatalhadeKerbala.

atibu –Doárabe:hatib.Indivíduoversadonareligiãoequeprofereprédicasnamesquita(Machado,1970:282).

ayatollah –Literalmente, “OSinal deDeus”.Éum título atribuídono séculoXXporaclamação popular e pelos seus pares aos académicos xiítas que alcançarameminência,geralmentenocampodajurisprudênciaoudateologiaislâmica.Depoisdarevoluçãoiranianade1979aumentouonúmerodosqueseconsideram“ayatollahs”.No entanto, umpequenonúmero - talvezmenos do que dez - tambémostenta otítulodeAyatollahal-Uzma(OMaiorSinaldeDeus).Destes,omaisconhecidoerao“ayatollah“Khomeini,quetambémdetinhaotítulodeMarajial-Taqlid(FontedeImitação).Ograuabaixodeumvulgar“ayatollah”éhujjatI-Islam.

Babismo – Movimentoquederivade“Bab”(literalmente“Porta”parao ImãOculto),títuloassumidoem1844porMirzaAluMuhammad(1819-1850),deShiraz(Irão),queacabouexecutadopelosseusfiéis.Daseitababinasceramposteriormenteos“baha’is”.

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Baha’is –Membrosdeumanovareligiãoquederivadobabismo,fundadoporBaha’ullah(nascidodeumafamíliaaristocráticadeTeerão)epropagadapeloseufilhoAbdal-Baha.Acreditamnumdeustranscendentequesemanifestouatravésdeumacadeiadeprofetas,algunsdosquaisfamiliaresaojudaísmo,cristianismoeislamismo,ecompoderes de verdade intrínseca. São um ramode um ramode um ramodosIthna‘Asharis(xiitas),eporissotêmsidoconsideradosheregespelosmuçulmanos,sujeitosaperseguiçõeseexecuções.

Batin – Conhecimento secreto, esotérico que só pode ser possuído por eleitos. Esteconhecimentoinclui,paraalémdetratadosecânticoslitúrgicosparticulares(wirdeseqasidas),osaberinterpretarossonhosevisões,sabercurardoençasespirituaisecarnais,adivinhações,possuirofício,osaberahistóriadoseupovoedoambientequeorodeia.

Buyidas – Dinastiaislâmicaxiítadeorigempersa,fundadapelosfilhosdeBuwayh,equecontrolouoIraqueeaPérsia,de945d.Ca1060d.C.

Burqu (plural“baraqi”);“burqa’”(empersa)-Olongovéuquecobreamaiorpartedocorpodasmulheresmuçulmanas,exceptoosolhos.

Cabr–TábuasondeseescrevemversículosdoAlcorãoCaderia (qadiriya) [Caderia Bagdade (Bagdá), Caderia Saliquina (Salikina), Caderia

Jeilane, Caderia Masheraba (ou Macherapa), Caderia Sadat] = Confrarias desteramo.

Cádi – Emsuaílieemakhuwa:khadi.«Éojuizdaconfraria,indivíuoversadonasleisdaescolajurídicaseguida.Asnormasdodireitocivilsãodesignadasporchauria,peloque,porvezes,estetermosetornaextensivoaomagistrado»(Machado,1970:278).

Califa (emárabe“khalifa”;plural“khulufa”)–TermoquefoiusadoparaidentificarossucessoresdoProfeta.EmaistardeadministradoroufiduciáriodeDeusnaTerra,«comandante dos crentes». Nalguns Estados muçulmanos, o governante. EmMoçambique,adesignaçãoserveparareferirorepresentanteouresponsávellocaldeumaconfraria.Nolitoralnorte3deMoçambique,emparticulardoLardeaSangage,otermocaligacorrespondeaocargodemuqaddam;éochefelocaldafracçãodaconfraria(dhikiri),representantedoxehe,agindosobreasuaorientação.Porcausadedesavenças,conveniências,direitosadquiridos,podehavermaisdoqueumcalifanuma (dhikiri);nestescasos,háumahierarquiaentreeles:do«califagrande»ao«califamenor».Maséatravésdo«grande»queoxehecomunicacomosrestantes.Ocalifaénestasparagensnomeadopeloxehe.Nosanos60,pararezarcomumxeheoucomumcalifatinhaquesepagar,oqueexplicaaprosperidadedealguns.quandoumcalifaseenchiademerecimentoseangariavagrandenúmerodemembros(murid)paraaconfrariapodiapassarassuasfunçõesparaumsubstituto,então,era-lhedeimediatoconferidootítulohonoríficode«sajada»(Machado,1970:278).

Chadhiliya–AromanizaçãodotermosuaíliapareceporvezesgrafadashadhiliyyaouChadhiliya. No registo português: Xadulia, Xadilia ou Chadulia (ou Chaduria).RamoconfréricononortedeMoçambique

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Chadulia(ouChaduria)–Confrariasdesteramo:[ChaduliaLiaxuruti,ChaduliaMadania,ChaduliaItifaque].

Charîa’a – LeimuçulmanaderivadadoAlcorão,daSunna,doIdjmâ’edediversasformasderaciocínio.

Charîf – (Xerife),descendentedeMaomé.Epítetoprotocolatquedesignatudooqueéapanágiodosultão.VersharifeXarifo.

Chauria –Asnormasdodireitocivil.VerCádi.Confraria ahmad al’rifaiyya – Os “homens do Maulide”, ou “pessoas do Maulide”.

Grupodemuçulmanoscujaspráticasreligiosasseexprimemnasdanças,cânticos,transeeautoflagelações.Comoosdervixes.

dar al-Harb –Significa,literalmente,aCasadaGuerra.Éumaexpressãousadanaleiislâmicaparadesignarregiõesoupaísesnãomuçulmanos.

dar al-islam – Literalmente, a Casa do Islão. É um termo usado na jurisprudênciaislâmicaparaindicaratotalidadedasregiõesoupaísessujeitosàsleismuçulmanas.ContrastacomDaral-harb,masháumaterceiraáreachamadaDaral-Aman(CasadaSegurança).

dhikr –RepetiçõesdonomedeDeusatéseatingiroêxtase.Muitocomumnapráticasufista.

din – Instituição divina [o Islão] que guia seres racionais, por sua própria escolha, àsalvaçãonestemundoenoAlém.AbrangeosartigosdaFé(íman),asacções(ibsan)eoCulto.

druso(emárabe“durzi”–plural“duruz”)–Seguidordeumaseitareligiosadissidentedosismailitas,queapareceunoséculoXI,noEgipto.ApalavradrusoderivadoúltimoelementodonomeprópriodeMuhammadIsmaila-Darazi.Este,consideradoumdosfundadoresdosdrusos,pregavaqueosextocalifafatimida,al-hakimBi-AmrAllah,eradivino.Al-hakimdesapareceuemcircunstânciasmisteriosasem1021eosdrusosacreditamquenãomorreu.Asuadoutrinaémuitocomplexaesecreta.Étambémelitistanaorganização,dividindooscrentesem“’uqqal”,ouinteligentes,e“juhhal”,ouignorantes.OsdrusosestãoconcentradosnoLíbano,SíriaeIsrael.

duodécimanos – O xiísmo duodecimano (Ithnā’ashariyya) designa o grupo xiita queacreditanaexistênciadosdozeimãs.80%dosxiitas)sãoduodecimanos.ElessãomaioritáriosnoAzerbaijão,Bahrein,Irão,IraqueeLíbano.OxiísmoduodecimanoéareligiãooficialdoIrãodesdearevoluçãode1979.

Fatwa (plural“fatawa”)–Termotécnicousadonaleiislâmicaparaindicarumjulgamentoouumadeliberaçãolegalformal.

Fiqh –Noseusentidotécnicoapalavrasignifica“jurisprudênciaislâmica”.Originalmenteera sinónimo de “compreensão” ou “conhecimento”. A jurisprudência islâmicabaseia-seoudivide-seemquatrograndesescolas:hanafita,hanbalita,maliquitaeshafita.Oskharijitaseosxiítastêmosseusprópriossistemasdejurisprudência.

Fundamentalismo(islâmico)–Nasuaessência,estaexpressãopareceindicarodesejoderegressoaumislão“ideal”,talvezodaeradeRashidun(epítetoaplicadoaosquatro“CalifasCorrectamenteGuiados”-al-Khulufaal-Rashidun,quegovernaram

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a comunidade dos crentes após a morte do profeta Maomé, ou seja,Abu Bakr,Umaral-Khattan,UthmanAffaneAliAbiTalib.Muitosfundamentalistasislâmicosacreditamqueo islãodaeramodernaeoschamados“Estados islâmicos” foramcorrompidos.Desejamregressarao“verdadeiro”Islão,semqualquercompromissoscomosecularismo,oquefrequentementegerahostilidadeemrelaçãoaoOcidente.

Ghsul –Práticasdeabluçãogeral,estandoocrentenumestadodeimpurezamaior. Hadith – Os “ditos” Maomé. Tradição de uma prática ou de uma opinião que lhe é

atribuída,ouseja“astradições”doProfeta.Hajj (plural“hajjat”)–PeregrinaçãoaMeca,umdoscinco“arkan”(pilares)doIslão.

Todososmuçulmanos,desdequesatisfeitasascondiçõesdeboasaúdeecapacidadefinanceira,sãoobrigadosa fazeraperegrinaçãoaMecapelomenosumaveznavida.O“hajj”deveserefectuadonoMêsdaPeregrinação(Dhu‘lhijja),ouseja,noúltimomêsdocalendáriolunarmuçulmano,entreooitavoeo12ºou13ºdia.Peregrino:Hadgy, hadji, em kisuaíli: haji, em ekoti: hadji ou aji. TermohonoríficononortedeMoçambiquequeoperegrinojuntaaonomequandoregressa.Eraquaseprocuradocomoumsantuáriovivo.

Hakims – Médicos islâmicos. Foram desqualificados durante a ocupação imperialeuropeia. Em Moçambique, os “médicos tradicionais islâmicos” estão muitorelacionadoscomosseuspares«macuas».

Halifa – Em kisuaíli e ekoti: halifa. O sucessor, representante de Maomé. Por isso:Halifa rasul allah:sucessordoenviadodeAllah;amiral-um’minim:osoberanodoscrentes.NaregiãodeAngoche«otermohalifaerareferidoemmeadosde1960porcalifa(Machado,1970:278).

Hallal –Bomebenéfico,porexemplo:carnepurificada.Hanafita – correntejurídicaedoutrináriadoIslão.Haqiqa–AverdadedaexistênciadivinaHaram–Prática ilícita.Ilegal.Social,moraleespiritualmenteprejudicial.Harthi–Árabesomanis.Hezbollah(emárabehizbAllah)–Nomequetemorigememduas“suras”doAlcorãoe

significaPartidodeDeus.Foiadoptadoporummovimentoxiitafundadoem1982,noLíbano,pelosGuardasRevolucionáriosiranianos.

Hijab – Véuusadopormuitasmulheresmuçulmanas.Nemsempreésímbolodeadesãoao fundamentalismo islâmico,mas apenas sinal de respeitoporuma tradiçãodemodéstiafeminina.

Hojatoleslam (em árabe e persa “hujjat ‘l-Islam”) – Grau de um futuro “mujtahid”(teólogo),abaixode“ayatollah”,noIrão.Adesignaçãosignifica,literalmente,“AProvadoIslão”.

Hukm –Estatutojurídicodocrente.ibaditas–únicoramoKharijitasobreviventenomundocontemporâneo,englobandoa

maioriadosmuçulmanosdoOmã,mascompequenosnúcleospresentesnaArgélia(oásisdeMzab),nailhatunisinadeDjerbaeemZanzibar.DevemoseunomeaoseualegadofundadorAbdAllahIbad,umlíderkharijitadoséculoVII.

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ijma –Acordo,consensodacomunidadeemgeraledosdoutosemparticular.Umadasquatrobasesdaleiislâmica.

ilm – Conhecimento sob todas as formas e conhecimento distributivo em particular.Incorporaasnoçõesdesabedoriaejustiça.

imã (em árabe “imam”; plural “a’imma”) – Palavra que designa uma variedade deconotações, cada uma delas necessitando de ser cuidadosamente distinguida: 1)Derivandodovocábuloárabequequerdizer“chefiar”ou“conduziraoração”,imãtemoprimeirosignificadodelíderdaprece.OIslãonãotempadrese,porisso,oimãresponsáveldamesquitanãoéordenado.Noentanto,qualquerhomemmuçulmanopodedirigiraoraçãonaausênciadoimãdamesquita;2)OsprimeirosdozelíderesdosIthna‘Asharis,ouDozeXiitas,sãoreferidoscomoDozeImãs;3)Osismailitasreconhecemosseteprimeirosimãseoconceitodeimãdesempenhaumpapel-chavenascomplexasdoutrinasdoismailismo;4)Nosprimórdiosdahistóriaislâmica,otítulo imã estava associado aode califa; 5)Temsidousado simplesmente comotítuloderespeito,porexemplo,pelofalecidoKhomeini,quepreferiasertratadoporimãenãopor“ayatollah”.Nessecasorefere-seoImãKhomeini.

Íman –Fé-Testemunho.in sha’a allah –Expressãocorrenteárabequesignifica“SeDeusquiser”;deuorigemao

português“oxalá”.irmandade muçulmana ou irmãos muçulmanos (em árabe al-Ikhwan al-Muslimun)

Organizaçãofundadaporhassanal-Banna,em1928,noEgipto.AdvogaoregressoaoverdadeiroIslão,opõe-seveementementeao“imperialismoocidental”etemcomoobjectivooestabelecimentodeumEstadoislâmicopuro.AIrmandadefoiproibidapeloGovernoegípcioem1954,mastemdesdeentãofuncionadonaclandestinidade,comramosespalhadosporváriospaísesárabes.OprincipalideólogodaIrmandade,defensordalutaarmadaparaderrubar“regimesímpios”,foiSayyidqutb,executadopeloPresidenteGamalAbdelNasserem1966.Asuaobramaisnotável,referênciapara os fundamentalistas, é “Sinais na Estrada”, publicada nos anos 50, onde asociedadeédivididaem“ordemignorante”e“ordemislâmica”.

islão – Palavraquesignificaliteralmente“submissão”(àvontadedeDeus).Éonomedeumadasgrandesreligiõesmonoteístas,fundadapeloprofetaMaoménoséculoVIId.C.

ismaelita–(Isma’iliyya)Oismaelismo,porvezesgrafadoerroneamenteismailismo,éumadoutrinareligiosaconsideradacomoumramodoxiísmo.SeguidoresdeumramodoislãoquedeveoseunomeaIsmail,ofilhomaisvelhodeJa’faral-Sadiq.Os adeptos do ismaelismo são também denominados como septimamos emfunçãodeapenasreconheceremosseteprimeirosimãsdoIslãodepoisdamortedoprofetaMaomé,e“batiniyya”(devidoàsuaênfasenaexegesede“batin”ouinterpretação).Ateologiadosismailitascaracteriza-seporumateoriacíclicadahistóriacentradanonúmerosete,númeroqueassumeumimportantesignificadonacrençadeIsmailenacosmologia.hoje,os ismailitasestãoespalhadospelomundo inteiro, mas concentram-se sobretudo no subcontinente indiano e na

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ÁfricaOriental.Àsemelhançadosoutrosmuçulmanos,osismaelitasacreditamnumúnicoDeusenoprofetaMaomécomomensageirodivino.PartilhamcomosoutrosxiitasacrençaqueAlifoinomeadoporMaoméparalíderacomunidademuçulmana,devidoàsuacapacidadeparainterpretaramensagemdeDeus,domque foi transmitido aos seus descendentes. Contudo, ao contrário dos outrosxiitas, os ismaelitas seguem um imã vivo, o qual é denominado Hazir imam.Osnizaritas têm como imãAgaKhan (corrente representada emMoçambiqueno período colonial e depois do acordo de paz pela FundaçãoAga Khan). Opensamento ismaelita apresenta igualmente uma visão cíclica, desenrolando-seahistóriaaolongodeseteeras.Cadaumadestaseraséiniciadaporumprofeta,que traz consigo uma escritura sagrada. Cada profeta é acompanhado por umcompanheiro silencioso,que revelaosaspectosesotéricosdaescritura.Os seisprimeirosciclosestiveramassociadosaosprofetasAdão,Noé,Abraão,Moisés,JesuseMaomé.OcompanheirosilenciosodeMaoméfoiIsmael,queregressaráno futuroparaseroprofetadosétimociclo.Este sétimociclo implicaráo fimdomundo.Até essemomento, o conhecimento oculto deve ser preservado emsegredoereveladoapenasainiciados.

itifaque–ConfrariadoramoChadulia(ouChaduria).Jahiliya–Manifestaçõeslocaisdeignorância(islâmica).Jihad –Vulgarmente traduzida como “guerra santa”. O vocábulo tem o significado

original,emárabe,de“combater”.Algunsgruposconsideram-naosextopilardoislão,porexemplo,oskharijitaseosibaditas.Aexplicaçãomaisaceitáveléadequetodososmuçulmanossãoobrigadosatravaruma“jihad”espiritualcontraosseusprópriospecados.

Kharijitas – Membrosdeumaprimeiraseitaislâmicacomorigensobscurasmasquepodeserreconstruídadoseguintemodo:onome,emárabe“khawarij”,significa“osquecindiram”(dogrupodeAliAbuTalib);derivadoverboárabe“kharaja”(sair ou cindir).A primeira secessão foi a de umgrupo de soldados deAli naBatalhadeSiffin,querejeitavamqualquerformadearbitragemalegandoqueojuízo finalpertence aDeus.Aeles juntaram-semais tardeoutrosdissidentes eforamestequederamaoskharijitasoseunome.Okharijismo,cujascrençasnãosãouniformes,dividem-seemváriassubseitas,algumasfanáticaseexclusivistas.Osdescendentesmodernosdoskharijitassãoosibaditas.

liaxuruti –Confrariadoramo Chadulia.macas(makas)–TermoantigoparaosMuçulmanosdolitoralnortedeMoçambique.

Namodernidadedeixoudeserusado.madania –ConfrariadoramoChadulia.madraça–madrasa(plural“madaris”):Escolaoulugardeensino,deceonhecimentosde

sabedoriaejustiça(‘ilm),frequentementeligadaouassociadaaumamesquita.mahdi – Literalmente,“aquelequeécorrectamenteguiado”;(al-) mahdi(oMahdi)éuma

figura de profundo significado escatológico no islão e um título frequentementereclamadoporvárioslíderesnahistóriaislâmica.Oseupoderjustoéprenúncioda

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aproximaçãodofimdostempos.SunitasexiítasaderemàcrençanoMahdi,emboraoxiismotenhadesenvolvidoumadoutrinamaisprofunda.

majlis (plural“majalis”)–Lugardeencontroouassembleia.Apalavrasofreuconsideráveisdesenvolvimentos sócio-históricos e hoje é usada para designar a espécie de“parlamentos”existentesemalgunspaísesárabesenoIrão.ReferidoaoIrãodeveescrever-seemcaixaalta,poisfazpartedonomedoparlamento.

maraji al-Taqlid (singular Marji’ al-Taqlid) – Fontes de Imitação. Este é um epítetoque caracteriza os “ayatollahs” com a patente deAyatollah al-Uzma. Um únicoousupremoMarji’chama-seMarji’al-Taqlidal-Mutlaq.EstetítuloerausadoporKhomeini no Irão, mas o seu sucessor,Ali Khamenei, ainda não conseguiu seraclamadocomotal.

maulana – Autoridademuçulmanalocal,emMoçambique.Tantopodeseroteólogo,oprofessordaescolacorânicacomoocurandeiro(Macagno,2007,nota17)

maulide (mawlid) –Doárabemawlid,quesignifica“aniversáriodoProfeta”,masparaos sufistas também dos santos fundadores.As maulides (festas dos santos) sãocelebradasnostúmulosdosfundadores,suscitandoperegrinaçõesevisitas(ziyara)dedevotosindividuaisedecomunidadesinteirassufis.

meca (em árabe Makka) – É a cidade mais sagrada do islão, cuja história estáintrinsecamente ligada ao profeta Maomé. Situa-se na Arábia Saudita.Medina(emárabeal-Madina)-Significa“ACidade”.Étambémfrequentementecaracterizadapeloepítetoal-Munawwara(ARadiante).Éosegundosantuáriodoislãoesitua-se,talcomoMeca,naArábiaSaudita.

medania–ConfrariaChadulia.mualimo(mwalimo, mwalimu)–Letrado,professordoAlcorãoedatradição(sunna).

Guiaespiritualespecializado.NonortedeMoçambique,entresuaíliseislamizados,autoridademuçulmanalocal,professordaescolacorânica,eaté“médicotradicionalmuçulmano”.Nasmesquitasondenãohaviaumemamu(imã)eraelequepresidiaàoraçãoeliaoAlcorão.

muezim(emárabe“mu’adhdhin”)–Apessoaquechamaosfiéisparaaoração(“adhan”)apartirdominaretedeumamesquita.Oprimeiro“mu’adhdhin”foiBilalRabah,nomeadopeloprofetaMaomé.

mufti –Aquelequeemiteouestáqualificadoparaemitiruma“fatwa”.Podeounãoterotítulode“qadi”(juiz).Omuftiservedeponteentreapurajurisprudênciaeoislãoactual.

mullah –Palavraderivadadoárabe“mawla”,quesignifica“mestre”.Éusadacomotítuloderespeitoporfigurasreligiosasejuristas,noIrãoenoutraspartesdaÁsia.

murxad – Ou murxid: «são os cantores do dihikiri. É entre eles que se recrutam osnaquibosparaoserviçodaconfraria» (Machado,1970:278).

nakibu – Em árabe nagib, em ekoti e macua: nakibu.Auxiliares do califa, e que osubstituemsucessivamenteemcasodeimpedimento.Existeumahierarquiadestesauxiliares: nakibu muqbada (1º substituro); nakibu mugabadi (2º substituto); enakibu itadunyia(3ºsubstituto),(Machado,1970:278).

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nizaris – Membrosdaseitadosismailitas,queconsideramNizar,ofilhomaisvelhodocalifafatimidaal-Mustansir,oseusucessor.

nusayritas –Membrosdeumgrupo tambémdesignadoalauitas,queseguemAliAbuTalib.OnomenusayritasderivadeMuhammadNusayr,lídermuçulmanodoséculoXIX.Assuascrenças têmmuitoemcomumcomosismailitas.hánusayritasnaSíria,TurquiaeLíbano.NaTurquiasãoconhecidoscomoalevitas.

qadiriyya – VerCaderia.qarmate – qarmates ou(raramente)Karmates (al-qarāmiṭa) membros de uma corrente

dissidente do Ismaelismo que recusa reconhecer o fatimida Ubayd Allah al-Mahdî como Imã.Tornaram-se sobretudo activos no séculoXº no Iraque, Síria,Palestina e na região do Barheim onde fundaram um Estado (c. 903-1077) quecontrolouduranteumséculoacostadeOmã.Tinhampretensõesigualitárias,porisso foram,na contemporaneidade, designados«comunistas»,masmesmoassimeramesclavagistas.houveqarmates emtodasasregiõesporondemissionaram:Yémen,Sind,Khorasan,Transoxiane,África.LançaramcampanhasmilitarescontraosAbbassidasetambémcontraosFatimidas,dequeresultouosaquedeMecaeMedina, em930,oque lhe trouxea famadeguerreiros temíveis.O Ismaelismodos qarmatesinfluenciado provavelmente pelo Mazdakisme, distingue-se pelomessianismo, milenarismo e radicalismo da sua contestação das desigualdadesentreoshomenslibresedaordemreligiosaexotérica.OtermoqarmatefoiusadocomumaconotaçãopejorativaaoconjuntodosIsmaélitasporalgunsautoresqueseopunhamaestacorrente.

qur’anica–Escolacorânica(kuttaboumaktab).ramadão–Ononomêsdocalendáriolunarislâmicoetambémmêsdejejum,donascer

aopôrdosol.rifa’iyya –Proeminenteordemsufista.Terásidofundadanoséc.XII,noIraque,pelo

místicoAhmadal-Rifai.Osmembrosdaordemrifa’iyyausamcânticosedançasqueconduzemaoêxtaseeàtranseduranteosquaiscravamestiletes(dar al-chich)no corpo, incluindo no rosto. Esta ordem foi introduzida nas ilhas Comores nasegundametadedoséculoXIXapartirdeZanzibar,quearecebeudeÁden.FoideZanzibaredasComoresqueseexpandiuparacomunidadessuaílinolitoraldonortedeMoçambique.

sakat – Doação obrigatória que os muçulmanos mais favorecidos oferecem aos maisnecessitados.Macagno(2006:113enota99)dizqueaesmolapodeserdefinidacomoumadávidanosentidomaussiano,poisfavorecea“purificação”dopróprio“contribuinte”. Acrescenta na nota que «no Islão não se pagam “tributos” aoschefesdaslocalidadesparasustentaroluxoeavaidade(…),éumaprovisãoparaoatendimentodosnecessitados;eésempreinvestidodopropósitode“crescimento”epurificaçãopessoaldocontribuinte».

salah –Oraçãodiáriaobrigatória.shadhiliyya – Ver Chadulia.shadulia–ConfrariaChadulia.

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shariah–Caminho.LeiIslâmica.sharifo – Termo que por vezes é equivalente ao termo xehe, em Moçambique.

Localmente, «um sharifo é considerado um descendente do Profeta, contudo,nãoháumaelaboraçãoconscientedealgumtipoderelaçãoconsanguínea,sendoa “descendência” produto de uma santidade que faz do sharifo um indivíduo“infalível”ecarismático(Macagno,2006:124,nota112).

seerah –AvidaouabiografiadoProfeta.shaykh – omesmoqueXehe-Guiaespiritualespecializado.shi’ita – Xiíta.shiraz–ouXirazcidadedosudoestedoIrão,éhojeacapitaldaprovínciadeFars.Antigo

entrepostocomercialnoGolfoPérsicofundadonoséculoVII.ChegouaseracapitaldoImpérioPersaentre1750e1794duranteumbreveperíodonaeraSafáridadaDinastiaZand.Em1794,osqajarstransferiramacapitalparaTeerão.

shirk–práticaspagãs.shura – Palavra árabe que significa consulta, conselho, órgão consultivo. Em alguns

paíseséoequivalenteaum“parlamento”sempoderes.Escreve-seamcaixaaltaquandofazpartedonome.

silsila –Credencialreligiosacompoderesparaliderarumairmandade.sufismo–TendênciamísticadoIslão.SurgiucedonahistóriadoIslão,e foi tomando

diversasformas.Comoos“homensdoMaulide”,emMoçambique.sufista–Osmísticossufistasacreditamqueépossívelteraexperiênciadaproximidade

deDeusemvidaatravésdeum“caminho”(tarîqa)religiososobaorientaçãodeumguiaespiritual.Essas“viagens”exigemoraçõesextras,conhecidascomozikr(recordação de Deus). O objectivo da vida sufista é alcançar a fana, ou seja: aaniquilaçãodoego.

suna (sunnah) –Literalmente,estetermosignifica“caminhopercorrido”,masde“práticahabitual”passouaindicarpalavraseactosespecíficosdoprofetaMaomé.Aquiloqueeledisse,quefez,ecomqueconcordou.

sunita -Aquelequeadereà“suna”ouàsacçõesdoprofetaMaomé.Apalavraéusadaparadesignaroramomaioritáriodoislão.

sura(plural“suwar”)-CapítulodoCorão,cadaumdivididoemváriosversículos.T’ahâra –Purezaritual.Taqlid –Imitaçãodosparecereseopiniõesdasgeraçõesanterioresdesábios;oseruditos

religiososclássicos.Tarîqa –“Caminho”;Confraria,irmandade,deformaaporteguesada:taurica.Taurica – Confraria,irmandade,deturuq(sing.tarîqa). ‘ulama – OmesmoqueÃlimosouUlemas:Eruditosreligiosos.Socialmenteosinstruídos

emciênciasreligiosasislâmicas,ouseja,doAlcorãoedeoutrosescritossagradoscomoosHadiths(VideMacagno,2006:26,nota8).SegundoSardat(2007:132),osulamafizeramatrasaraentradadaimprensanassociedadesislâmicas.

ulema (singular “’alim”) – Professores religiosos, juristas, sábios, imãs, juízes,“ayatollahs”...Sãogeralmentereferidoscomoumgrupomonolíticodeintelectuais

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eacadémicos,guardiõesda“ortodoxia”.Apalavranuncadeveser traduzidaporclero,porqueessacategorianãoexistenoIslão.

umma (ummah) –Colectividadedemuçulmanosque constitui uma entidade culturalenaqual têmobjectivoscomuns.Comunidade(doscrentesmuçulmanos),povo,nação.

ummat al-nabi –AcomunidadedoProfeta.ungaziza –Termo pelo qual se designavam no litoral norte de Moçambique as ilhas

ComoreseMadagáscar.Wahabismo –ÉummovimentoreligiosomuçulmanocriadoporMuhammadbinAbdal

WahhabnaArábiacentralemmeadosdoséculoXVIII.TemhojeforteinfluêncianoKuwaitenoqatar.Deacordocomospreceitosreligiososelaboradosporestedoutoreligioso,ummuçulmanodevefazerbayah(umjuramentodefidelidade)aogovernanteduranteasuavidaparaassegurararedençãodepoisdamorte.Porsuavezogovernantedevejurarfidelidadeaoseupovosegundoashariah(jurisprudência)islâmicaenquantogovernar.Sendoassim,oobjectivodestemovimentoéqueopovoeogovernanteexercessemashariah, assegurandoas leisdivinas.OgovernanteMuhammadibnSaudtransformouasuacapital,AdDiriyah,numcentrodeestudosreligiosossobaorientaçãodeMuhammadibnAbdalWahhab.Apósaaprendizagemnessecentrodosprincípiosfundamentaisdareligião,milharesdefiéisforamenviadosparatodaapenínsulaarábica,golfopérsico,SíriaeMesopotâmia.MesmoapósosultãootomanoteresmagadoaautoridadepolíticawahabbiedestruídoAdDiriyah,em1818,osestudoseasnovaspráticaspermaneceramfirmementeplantadasnasprovínciasdosuldeNajdenonortedeJabalShammar.Em1902,afamíliadeAlSaudchegounovamenteaopoder,tornandoasregrasestabelecidasporWahhabbaideologiadapenínsula.AmensagembásicadeMuhammadibnAbdalWahhabfoioresgatedosprincípiosbásicosdomonoteísmo,baseadosnachahada(testemunhode fé) e na unicidade essencial deAllah (tawhid), nada mais que os princípiosfundamentaisdomonoteísmocontidosnoAlcorão.OfocodeMuhammadibnAbdalWahhab na tawhid foi usada em contrapartida ao shirk (politeísmo), definidocomo um ato de associar qualquer pessoa ou objecto a poderes que devem seratribuídos somenteaAllah.Partindodestesprincípios, certos festivais religiososforam proibidos (inclusive a comemoração do aniversário do Profeta), velóriosxiítaserituaissufis.NoiníciodoséculoXIX,oswahabbisdestruíramtúmulosemMedina de homens considerados santos e adorados como divindades por outrosmuçulmanos. Esses túmulos eram locais de oferendas e de preces. Seguindo aescolajurídicadeAhmadibnhanbal,oswahabbisóaceitamoAlcorãoeasunnahdoProfetacomoprincípioseideologia.ElesrejeitamareinterpretaçãodoAlcorãoe da Sunnah no que diz respeito a questões claramente decididas por algumasescolas.Aorejeitaravalidadedareinterpretação,adoutrinawahabbicontrapõe-seaomovimentomuçulmanode reformados séculosXIXeXX, notadamente aospadrõesocidentaisdegovernoelegislação.OreiFahdibnAbdalAzizAlSaudtemchamadoconstantementeos“renegados”(xiítas,sufis,etc.)parasereorientaremna

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ijtihad(estudodosprincípiosislâmicos,advindosdoAlcorãoesunnah),paratratardasnovassituaçõesquedesafiamamodernizaçãodoreino.MuhammadibnAbdalWahhabdiziaquehaviatrêsobjectivosparagovernoislâmicoesuasociedade:“creremAllah,ordenarobomcomportamentoeproibiroilícito.”Estesprincípiosforamrealçadosnosdois séculos seguintesperante a sociedade islâmica.Assimsendo,a opinião pública transformara-se num regulador do comportamento individual.Comisto,surgiramosmutawiin,ouseja,os incentivadoresmoraisdasociedade,missionárioseministrosdareligião,quepregavamnasmesquitasàssextas-feiras.Alémdeobrigaremoshomensàpráticadaoraçãopública,osmutawiin tambémeramresponsáveispeloencerramentodaslojasnoshoráriosdasorações,pelabuscadas infracçõesdamoralidadepública comodrogas (incluindoo álcool),música,dança,cabelo longoparaoshomensoucabeçasdescobertasparaasmulheres,epelaformadevestir.NoiníciodoséculoXX,comocrescimentodowahabismofoiofactordecisivoparaauniãodastribosedasprovínciasdapenínsulaarábicasob a liderança deAlSaud, evento que foi a base para a legitimaçãodo estadodaArábiaSaudita.AdivulgaçãoeocrescimentodoIslãoforamemgrandeparteresponsáveis pelo sucesso domovimento wahabbi ao inspirar ideais comoo domovimento “Irmandade Muçulmana” (Ikhwan). A partir de 1990, a liderançasauditadeixoudeperfilharasuaidentidadecomoherdeiradolegadowahabbi,eosdescendentesdeMuhammadibnAbdalWahhabdeixaramdeocuparosmaiselevadospostosnaburocraciareligiosa.AinfluênciawahabbinaArábiaSaudita,noentanto,permaneceumaterializadanasroupas,nocomportamentopúblicoenaoraçãopública,asquaispodemserpercebidasatéhoje.

Wahhabitas (emárabe“wahhabiyya”)–SeguidoresdadoutrinarigidamentepuritanadeIbnAbdal-Wahhab,queregeoreinodaArábiaSaudita.

Wali–Guiaespiritualespecializado(videmualimo).AdministradordosultãodeZanzibarnoextremonortedeMoçambique(Pélissier,1988:502).

Wudhu–Práticasdeabluçãosimples,estandoocrentenumestadodeimpurezamenor. Xaria –leiislâmica,leidivina.Xarifo –Do árabe e kisuaíli: sharif emacua: sharifu. Emportuguêsxarifo ouxerife.

Nobre, ilustre,augusto,notável.TemosentidodedescendentedoProfeta.EporessemotivotemdireitoaotratamentodeIbnrasulAllah:filhodomensageirodeAllah.Gozamporissograndeprestígio.Versharif.

Xecado –TerritóriodeumXeque.Xehe – Termokisuaílieekoti,omesmoquechehe;emportuguês:xeque ouxeique,do

árabe:shaykh -Patriarca, ancião, chefe, ou atémestre, professor, nasmesquitase madraças. Guia espiritual especializado. No litoral norte de Moçambique otermo tinhanosanos60duasacepções:chefe supremodaconfraria;pessoaquesabeárabeeaciênciacorânicaapontodepoderensiná-la.Nestaúltimaacepçãoéusadoparadesignaromestreechefedamesquita.Nahierarquiadaconfrariaoxeheéochefemáximoeasuaautoridadeúnica,poisrecebeuabênção(baraka)quelheconferepoderessobrenaturais.Ocargoeravitalícioenalgumasconfrarias

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hereditário.OsdoisramosconfréricosqueexistememMoçambiquechegaramaterumxehecomum:xarifoAbahasaneBinCabduL-Rrahman,daIlhadeMoçambique/Mossuril(Machado,1970:277).

Xiíta(emárabe“shi’a”)–PartidáriodeAliAbuTalib.OsxiitasescolheramAli,ogenrodeMaomé,comosucessordoprofeta,enquantoossunitaspreferiramAbuBakr,umdos seusprimeiros companheiros e convertidos.Paraosxiítaso imãémaispoderosodoqueocalifasunita.Osdoisramosdistinguem-seaindaemquestõesjurídicasenosrituais.

Zahir – Conhecimentoexotérico,ovisível,oóbvioporoposiçãoaoconhecimentosecreto,esotérico(batin).

Zakat – Impostoobrigatórioou«esmolaobrigatória»,usualmenteduranteoRamadão,purificadordosalárioedosrendimentos,emsuma:dosbens. Nãoéumaquestãodeconsciência,nãosepodeescapar,aocontráriodasesmolasvoluntárias:sadaqab.

Zaiditas (Zayditas)–DinastiadematrizxiítanoIémen.OIslãochegouaoIémenporvoltade630,aindaemvidadoProfeta.Depoisdaconversãodogovernadorpersa,muitosdosxequeserespectivastribosabraçaramaféislâmica.Dedseentão,oIémenpassouafazerpartedocalifadoárabe.MasduranteoséculoVIII,governandoemBagdadeadinastiaAbacida,começaramasurgirpequenosEstadosindependentesnoIémen;nazonacosteirasurgiunoano819adinastiaZayidita(ouZayidí),deobediênciaxiíta,fundadaporYayhabenYahyabenqasimar-Rassi,queestabeleuumaestruturapolíticateocrática.Em1021osZayiditasforamsubstituidosporumaoutradinastialocal,osbanu nagagh,eestes,em 1159,pelosmahditas.

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NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA 281

NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA

(OUALGUNSDILEMASDAhISTORIOGRAFIAAFRICANA)

João paulo borGes CoelHo*

What is african about africa should be a question, not an assumption.(F.Cooper1999)

Proponho-me trazer aqui algumas considerações em torno da ideia derepresentaçãoafricanadeÁfrica.Comalgumaprudência,voucingir-meaopapelqueahistoriografiatemdesempenhadonaconstruçãodessarepresentação,oque,penso,sejustifica,umavezqueahistóriaéafinal,pelomenospordefinição,adisciplinaporexcelênciadanarração,ouseja,daproduçãoderepresentações.

Aindaassim,reconheçoqueéumaintençãoousada,sei-aa prioridestinadaaumresultadocheiode incompletudesecontradições,atéporqueconstituioprimeiro passo de uma reflexão pessoal que pretendo mais alongada sobre ocomplexoprocessodeconstruçãodahistoriografiaafricananosnovosespaçosnacionais. Dito com menos rodeios, ainda não estou inteiramente seguro doterrenoquepiso.Asnotasaqueotítulosereferenãosãoportantoumartifícioretórico;reflectemantes,rigorosamente,aquiloquetragoparacomunicaraqui:simplesnotasdereflexão.

Asseguro,noentanto,queaintençãoéamelhorpossível:partidoprincípio(confirmado,apósumaleiturarápidadoprogramadoColóquio)dequeamaioriadas comunicações de algumamaneira diria respeito a umolharexterno sobreÁfrica,umolharlançadosobretudoapartirdaEuropa,equeportantotalvezfosseinteressantetrazeraquiumaproblemáticaquefizessealgumcontraste.

* UniversidadeEduardoMondlane.

JOÃOPAULOBORGESCOELhO282

Obviamentequeolugarapartirdeondeseformulamasideiaséimportante.Apesardisso,estoulongedeacharqueosafricanostêmdireitos‘monopolistas’de pensar o continente. Pelo contrário, defendo um exercício académico semlimites–anãoser,evidentemente,limiteséticosauto-impostos–emquetodospodem,edevem,questionaroquebementenderem(oqueincluitambém,claro,a liberdadeafricanadepensaraEuropa).Todavia,repito,háquereconheceraimportânciadenospensarmos anóspróprios, denos representarmos, aspectoqueganha,nocasoafricano,umadimensãoparticular,comoprocurareidiscutiradiante.

quero ainda referir dois pontos preambulares. O primeiro respeita àsdificuldadesdepensarÁfricanosingular.Tambémaestaquestãovoltareiadiante,masporenquantoparece-meimportantenãoesquecerqueÁfricanosingular(talcomoOcidente,ouEuropa)éumaconstruçãoquepassaaolargodeumarealidadeinternamentemuitodiversa(basta-nosolharcomalgumaatençãoedetalheparaahistóriadocontinenteafricano,ouviajarporele,paranosapercebermosdasuaimensadiversidade).SófazsentidofalardeÁfricanosingularnoquerespeitaaelementospartilhadosdeumamesmacondição,ouumdesejounificado,ouaindacomorepresentaçãounificadaquedelefazoOutro,ingredientesqueconstituemumaespéciededenominadorcomum.

Isto leva-nos ao segundopontoprévio, que éo factodessedenominadorcomum ter sido construído, em grande medida, em resultado da relação coma Europa. A condição de África no singular é já portanto, ela própria, umarepresentação,eumarepresentaçãomarcadaprofundamenteporumarelação–arelaçãocolonial.

Époisimportantedeixardesdejáestabelecidooqueésobejamenteconhecido,ouseja,queaestenívelarepresentaçãodequalquerdestasduasentidadesnãopodeserconstruídasemapresençadaoutra.Emboradetentorasdeelementosdistintivos,podedizer-sequetantooqueaEuropacomooqueaÁfricasãoresultamenos de qualquer característica essencial que da relação colonial que existeentreelas,1umarelaçãoquetem,ameuver,duascaracterísticasimportantes:porumlado,reconstitui-seincessantemente(namesmamedidaemqueaidentidadeestásempreemconstrução),existedentrootempo,éhistórica;poroutrolado,alémdeserhistórica,essarelaçãoéumarelaçãopolíticaumavezqueaspartessãodotadasdepoderesdesiguaisdeformulaçãodarelação.

NolivroTotalidade e infinito,EmmanuelLévinasdiz-nosque«oMesmoestánela[narepresentação]emrelaçãocomoOutro,masdetalmaneiraqueoOutronãodeterminanela[narepresentação]oMesmo,eésempreoMesmoquedeterminaoOutro»(Levinas2000:109).Ouseja,eextrapolandocomalguma

1 EdwardSaidescreve,noprefáciode2003dessetextofundadorqueéoorientalismo,que«nemotermoOrientenemoconceitodeOcidentetêmqualquerestabilidadeontológica.Ambossãofeitosempartedeafirmação,empartedeidentificaçãodoOutro»(Said2004:xii-xiii).

NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA 283

liberdade,narelaçãocolonialaEuropadeterminouhistoricamentearepresentaçãodeÁfrica(e,porviadeÁfrica,asuaprópriarepresentação),enquantoÁfricanãotinhapossibilidadedeserepresentarasiprópriaanãoserfragmentariamente,ouseofaziaunitariamenteeranumpapelsubordinado.

EscrevePaulZelezaque«Áfricaésempreimaginada,representada,comorealidade ou ficção, em relação a grandes referências – Europa, os Brancos,o Cristianismo, a Literacia, o Desenvolvimento, a Tecnologia (as categoriascomparativasecolonizadorasmudamconstantemente)–espelhosquereflectem,naverdadequerefractamaÁfricademaneiraspeculiares,reduzindoocontinenteaimagensparticulares,aumestadodeficitário»(Zeleza2006b:16).

Numtextopolémico,AchilleMbemberefere-seàstrêsferidasmaioresqueessarelaçãodeixounocontinente,nomeadamente:aescravatura,ocolonialismoeoapartheid.Segundoele(Mbembe2001a:174),essasmarcasproduziramnoafricano trêsordensde significados: alienaram-node simesmo (relegaram-noaumaformainanimadadeidentidade,nãosónãoreconhecidapeloOutromastambémnãoreconhecidaporsipróprio),falsificaramahistóriaeexpropriaram--nodosbensmateriais,efinalmenteprovocaramaideiadedegradaçãohistórica(não só o aprisionaram «na humilhação, no desenraizamento e no sofrimentoindizível,mastambémemumazonadenão-seredemortesocialcaracterizadapelanegaçãodadignidade,peloprofundodanopsíquicoepelos tormentosdoexílio»).

Um aspecto central da violência e da destruição operada pelo períodocolonialconsistiunasupressãodosconhecimentoslocais(reduzidosaoestatutodecrenças,opiniões,magia,idolatria),passofundamentalparaqueoconhecimentoocidentalpudesseafirmar-secomouniversal,ouseja,nadestruiçãodacapacidadederepresentaromundo,oOutroeasiprópriodeumaformaautónoma.Numtextorecente,BoaventuradeSousaSantosePaulaMenesesdesignaramesseprocessode extermínio dos conhecimentos alternativos como epistemicídio (Santos &Meneses2009:10).

As oportunidades de mudança trazidas na sequência da Segunda GuerraMundial, nomeadamente a dinâmica emancipalista que alastrou pelo TerceiroMundo,epelocontinenteafricanoemparticular,unificam,comodizMbembe(2001a),osdesejosafricanosdereconquistarodestino(soberania)edepertencerasimesmonomundo(autonomia),desejosessesquepassampelareapropriaçãodoseuconhecimento,dasuacapacidadedeconhecerautonomamenteomundo,deorepresentar,comissorepresentando-seasipróprio.

Embora, ao nível da representação, os primeiros esforços nesse sentidopossamserlocalizadosnoexterior(ou,sequisermos,nadiáspora),2desdecedo

2 Amselle(2008:269)enuncia,comoumaespéciederegrageral,que«aafirmaçãodequalqueridentidade se faz sobretudo, e antes do mais, no exterior do local directamente relacionadocomessaidentidade».Éassimquepodemosentenderqueasprimeirasauto-representaçõesde

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ahistoriografiaafricanaassumiuresponsabilidadesparticularesenquantoespaçode resgate e construçãodeuma representaçãodocontinente africanocomumsentido autónomo de existência, não mais mediado pelo ocupante colonial,construçãoessaque,aindasegundoMbembe,seprocessaseguindoduaslinhasfundamentais,queeledesignadenativistaemarxista-nacionalista.

CheikhAntaDiopétalvezosímbolomaiordaprimeira,ecostumajustamenteserapontadocomoumdosfundadoresdahistoriografiaafricanamoderna,quenasce coma denúncia da historiografia ocidental ou imperial, que operou, notempo colonial, a falsificação de uma história que se pretende afirmar comoa mais antiga da humanidade e que, passada a interrupção colonial, pode serretomadacombasenaraçaenacor,edesembocanaturalmentenumaÁfricauna,singular,“pan-africana”.3

Contudo, tal comoobservaDiouf (1999), aposturaessencialistadeAntaDiop,edecertamaneiradeKi-zerboeAdeAjayi,fazcomqueestaconcepçãodatradiçãogloriosadopassado,edocolonialcomo“buraconegro”,permaneçapresaaumahistóriadetempolineartalcomoelaépropostapelaFilosofiaIluminista.Surgeassimoparadoxoque,emboraelaseconstituacomo«alternativaradicalàexclusãohegelianadeÁfricadoterritóriodahumanidade,constituiumaextensãológicadopensamentoocidentaletemassuasraízesnaepistemologiadoséculoXIX»(Jewsiewicki&Mudimbe1993:9).

Alémdisso,a ideiadeumaÁfricanosingularconvivemalcomoperíodoemancipalista,umavezqueesteseguiapeloparadigmanacional,eque,maisdoquenunca,osurgimentodasnaçõesmodernastornaevidenteaprofundadiversidadeinterna,geográficaeculturaldocontinente:entreaÁfricaNegraeaÁfricaBranca,mas tambémdiferençasentreáreasseparadaspelosgrandes rios,entreaszonasdeinfluênciadoAtlânticoedoÍndico,entreasdiferençascavadaspelasreligiões,entreaflorestaeasavana,enfim,entreasnaçõesumasdasoutras.

Nofundo,àrepresentaçãodaÁfricaautóctoneeoriginalmenteunificadadonativismo,queconsideraointervalocolonialcomoumacidentedepercursoqueéprecisoremoverparaqueoseudestino,nalonga duração,possaprosseguiroseucurso,opõeoparadigmanacionalistaavisãodeumaÁfricaqueocolonialismofezvítima,equebuscareparaçãopormeiodalutapluraldasnações.Assim,seporumladoavisãodoperíodocolonialnãoéamesma(adiferençavaidocolonialismocomo interrupção,ochamado“parêntesiscolonial”,atéaocolonialismocomoumnúcleocentralprenhede significado,onde seoriginaram todososmales),

África,reaisouimaginadas,foramformuladasapartirdaviragemparaoséculoXXemespaçosdiaspóricos, nomeadamente com as ideias e os congressos pan-africanistas. Gradualmente, oesforçovaitransitandoparaocontinentenumprocessoquetemcomoprotagonistas,nafrentecultural, nomes comoCesaire eFanon, e cujanaturezao célebreprefáciodeSartre aoorfeu negrodeSenghortãobemreflecte.

3 No mesmo sentido vão as tentativas e debates em torno da identificação de uma ciênciagenuinamenteafricana,deumafilosofiaafricana,etc.

NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA 285

poroutroladoonacionalismoreveste-sedegrandepragmatismo,suspendendoporummomentoahiper-importânciadopassadoconstruídocomogloriosoparadedicartodasassuasenergiasàresoluçãodopresente.Ou,ditodeoutramaneira,não são as glórias do passado pré-colonial que são trazidas para provar umarepresentaçãoquecolocariaaÁfricapelomenosaoníveldoOcidente;recorre-seantesaexplicaçõesmaisobjectivaseuniversais(aceitandodeformaqualificadaoléxicoexterno)paramostrarcomoocontinentefoiviolentamentesubalternizadoedarsentidoàlutapararompercomessasituação.Onacionalismotraz,assim,umarepresentaçãodemodernidadeaindaausentenonativismo.

Sobesteângulo,écomoseÁfricaaderisseaexplicaçõesque,emboranovas,sebaseavamemrelaçõesinternacionaiseaspiravamàuniversalidade.Éestaaépocaemque,naesteiradametáforadocentroedaperiferiacriadaporRaúlPrebisch,SamirAmineAndréGunderFrankdesenvolvemateoriadadependência,ou,umpoucomaistarde,ImmanuelWallersteinasuateoriadosistemamundial.OpreçododesenvolvimentodoOcidenteéosubdesenvolvimentodorestodomundo,eemcertamedidaéàsombradesteprincípioqueflorescemasescolasdeIbadan,Dakar(comoCODESRIA),eDar-es-Saaam.4Ateoriamarxistanãosóétrazidacomoexplicaçãocomo,emmuitoscasos,servedemodelodeorganizaçãodasociedade.

Poroutrolado,esteprocessoimplicouforçosamenteumaaproximaçãodahistoriografiaaopoderpolítico,umavezqueelasetornainstrumentocentralnaelaboraçãodagrandenarrativadalibertaçãonacionalista.5E,aomesmotempo,éprecisamenteessaaproximaçãoquevaicriarnahistoriografiaafricana,apósasindependências,importantesfragilidades,dadoqueumaparteimportantedasuasoberaniaficarefémdasinstânciaspolíticas.Esteaspectoprovocanãosóumimportantedéficeepistemológicodadisciplina(nahistoriografiaafricanadesteperíodoopensamentocríticoéatenuadopelanecessidadedeumdiscursomistodeexaltaçãoecorroboração),mastambémasobrevivênciadeumaperspectivalineardaevolução.

São precisamente esta homogeneização do tempo e a proximidaderelativamente ao poder que se tornam aspecto central da crítica que é feita àhistóriapelopensamentopós-colonial,umpensamentoqueganhaproeminênciasobretudoapartirdadécadade1980, eque trazumolhar inteiramentenovo,crítico da concepção colonial da razão, do humanismo e do universalismo(Mbembe2006).

SegundoChakrabarty(1992:20),existeumaequaçãofunestaentre«umaconcepção filosóficada totalidade»ea«práticapolíticado totalitarismo»,eo

4 Para um balanço da actividade académica africana neste período, e especificamente sobre oCODESRIA,verAmselle2008.

5 ComodizDiouf(1999),oqueestavaemcausaera«acapacidadedaelitenacionalistadefabricarumacontra-culturaparaapromoçãodoEstadonacionalindependente.»

JOÃOPAULOBORGESCOELhO286

queintervémentreasduaséahistória,queconstituiparteessencialdoprocessode violência (física, institucional e simbólica) pelo qual se domesticam asdiferençaseseunificaapluralidade,violênciaestaquejogaumpapeldecisivonoestabelecimentodosentido,nacriaçãodosverdadeirosregimes,nadecisãosobreonde,qualedequeméo“universal”quevence.

O pensamento pós-colonial é extremamente diversificado e difícil dedefinir,vagueandonadupladimensãotemporal(referidaaotempoquesesegueao colonialismo) e conceptual (repensandoo período colonial e os traços queeledeixou).Dequalquerdasformas,elesignificaumretornodaatençãoparaocolonial,queéprecisoserrelidonasuaprofundidadeparasepoderentendernãosóaverdadeiradimensãodoencontromas,também,ostraçosqueeledeixounarealidadequesesegueaele.

Assim, segundoDirlik (2006: 82), o pensamento pós-colonial tem comoprincípios orientadores: a centralidade do colonial na escrita da história (eportanto a desconstrução do colonial para revelar a sua historicidade, o queimplicaadesconstruçãodetodasascategoriasdoencontrocolonial, incluindoacategoriahistória);o repúdiodasmeta-narrativas temporaisedasestruturasespaciaisqueserviramparahomogeneizarotempoeoespaço,eparasuprimir,nesseprocesso,aheterogeneidadedaexperiênciahistórica(oprópriopensamentoradicalsobreasestruturasmundiaiscontinuaaprivilegiarasconstruçõeseuro-americanasdamodernidade,ignorandoopapeldosencontroslocaisnaproduçãodashistórias–acusaele);efinalmente,adesconstruçãodahistória,retirando-adocentroparaafronteira,donacionalparaolocal,edonormativoparaomarginal,comissocriticandoasnovas temporalidadesentretantoestabelecidas,pelasuacumplicidadecomahomogeneizaçãoculturalecomateleologia.

Facilmenteseentende,pois,porquerazãoacríticapós-colonialincidenadenúnciadahistoriografianacionalista(haverámaiorlinearidadedoqueaquelaque está inscrita na ideia de desenvolvimento?) e, na sequência, na crítica daprópria história enquanto disciplina, afinal ela mesma produto do processoimperial,epistemologicamentevistacomomeroprolongamentodahistoriografiacolonial).Paraopensamentopós-colonial,ahistóriatemassimumpapelcentralna “naturalização” do colonialismo no tempo, resultando na chamada visãoeurocêntricadodesenvolvimentoglobal.Porisso,dizDirlik(2006:82),opós--colonialismorepudiaasgrandesnarrativas temporaiseasestruturasespaciaisquesuprimemaheterogeneidadedasexperiênciashistóricas.

Todavia,aorecusarasnarraçõesdatotalidade,eaodefenderapluralidadedosdiscursoshistóricos,opensamentopós-colonial,emboratendonaorigemfortessubsídiosdopensamentomarxista,acabaporirdescartandoprogressivamenteoâmbitomaterialparaincidirnocultural,reduzindo-seaoestudodosproblemasdefronteirarelativosaopodereàidentidade(Dirlik2006:86).

Esta evoluçãodeve-se, penso, ao facto de o pensamentopós-colonial tersido originado em circunscritos espaços da Europa e dos Estados Unidos da

NOTASEMTORNODAREPRESENTAÇÃOAFRICANADEÁFRICA 287

América,emgrandemedidaporacadémicosdoSulnadiáspora.Cria-seassimocuriosocontextoemqueéproduzidonoNorteumdiscursocríticolevadoacaboporagentesoriundosdoSul,discursoessequetemaparentementeporsubstânciaoSulmasnaverdadediscuteoNorte.Emresultado,estepensamentocontribuiparaumolhar académicodoNortequeéprofundamente contraditório: seporum lado revela grande sofisticação quando se debruça sobre as mutações, ossímboloseasrepresentaçõesdassuasprópriassociedades,poroutrotemdoSul,edocontinenteafricanoemparticular,umaideiasurpreendentesimplista,querquandooolhacomoespaçofalhadoesónessacondiçãonegativalheencontrainteresse,querquandoovitimizaemblocoecomissolheemprestaumacoesãoqueelenãotem,caindoporconseguintenasingularizaçãoenatotalidadequedizcombater.

Emqualquerdoscasos, as sociedadesperiféricas surgemcomoestáticas,exactamente pela recusa de estruturas relacionais globais que lhe permitiriamequacionar as transformações actuais provocadas pela poderosa influênciaexterna,oudeumaobservaçãoempíricamaisapuradaquerevelariaasprofundastransformaçõesinternas.Emsuma,faltaumavisãodomovimento,efalta-apelarecusa do discurso da história ou pela sua redução a um jogo de símbolos erepresentações.

A reserva com que a generalidade dos académicos africanos em Áfricaencarouamensagempós-colonialtemavernãosócomosataquesqueestafazàposturanacionalistadaqueles,mastambém,háquedizê-lo,comestedéficedeleituradacríticapós-colonialrelativamenteaosprocessosmateriaisconcretosdochamadoSul.

Ilegitimar a história enquanto disciplina, com base no autoritarismo dasnarraçõesunificadasedapreponderânciadaacademianassociedadesafricanas,revela as fragilidades de uma perspectiva externa pouco sensível e atenta àstransformaçõesqueocorremnessasmesmassociedades.Defacto,estasdebatem-se entre umcaminhodifícil de institucionalizaçãodemocrática e o retorno denacionalismos fundamentalistas, eventualmentenão tão exacerbados comoemoutras paragens, mas de qualquer forma revigorados e apontando para umarealidadeemquesobrevivempelomenosdoisdiscursosparalelosnumcontextoemque é grande a tentaçãode regressos autoritários emnomeda eficácia dodiscurso–essesim,linear–dodesenvolvimento,ondeauniversidadeenquantoinstituiçãoécadavezmaisfrágil,atacadaporconcepçõesdesenvolvimentistaseeconomicistas,eporambientespolíticosondeapluralidadeévistacomcrescentedesconfiançanumquadrodedifícilinstituiçãodemocrática.

A ilegitimização da narrativa, defendida pelas leituras mais radicais dacríticapós-colonial,crianãojáapenasumproblemadetradução,mascolocaessasleiturasnumasituaçãodeirrelevância,quandonãodeoposiçãofrontal,faceàsnecessidadesdahistoriografiaafricana.Seemtermosteóricosessailegitimizaçãoé contraditória (a negaçãodanarrativa constitui já, em si, umanarrativa), em

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termospolíticos–aoconsiderarcoesaaperspectivadahistoriografia,negando-lheapossibilidadedeseconstituircomoarenadedisputadeperspectivasdiversas–elacoloca-sedoladoopostodapluralidade,remetendo-noscomalgumasurpresaparaumespaçodepré-modernidade.

ComodizDirlik(2002:613),«nasuapreocupaçãocomoeurocentrismo,acríticapós-colonialrecusou-seaconfrontarumrevivalismodastradiçõesquesetornacadavezmaisaudível,eque–emborapossatalvezservirdeantídotoaoeurocentrismo–nãodeixaporissodeapresentarsériosproblemas,namedidaemqueosvaloresquetransportanãosãoprogressistasnembeneficiamaspopulaçõesqueelesdizemrepresentar.»

Evidentemente, épreciso ter emconta,porum lado,queahistoriografianãodetémomonopóliodessanarração,maisamaisemÁfrica,ondemuitasediversificadasformas(ritualizadasounão)eexpressões(escritasounão)estãopresentes; e em consequência, por outro lado, que a categoria narração não éportantosingular,ouseja, incluiváriasnarrativasdenaturezadiversaemuitasvezesconflitual,nãosódevidoàvariedadedas formaseexpressões referidas,mastambémaolugarocupadonasociedadeporquemformulaessasnarrações.Aistocostumachamar-seaquestãodoagenciamento.

Todavia,talnãoimpede,nemexime,ahistoriografia,enquantodisciplinaquetemprecisamenteanarrativaporobjecto,delevaracabooempreendimentodenarrar.Éesteaspecto,tantasvezesatacado,queaquisedefende.Edefende-seporquenenhumdosváriosagenciamentos(nomeadamenteoacadémico,opolítico,oétnico,ocomunitário,ofamiliar,oindividual,oficcional,etc.)podereclamardireitosmonopolísticosdenarrarede imporaosoutrosas regrasdanarração.Filosoficamentepois,opensamentopós-colonialcorreo riscodeabandonaraperspectivadeclassedomarxismoemfavordeessencialismospré-modernosdecontornosobscuros.

Por estas razões o paradigma da modernidade parece ainda central paraÁfrica, embora não encontre já correspondente nos debates académicos doOcidente.TalvezasaídaconsistanareinvençãodeumconceitodemodernidadenãojáproduzidaapenasnoespaçodoOcidente,masumamodernidadequesóoéseforglobalecoerentecomoenunciadoinicial,dequearepresentaçãodascategoriasNorteeSulimplicanãoumaessênciamasumarelação.

Neste sentido, é papel da historiografia africana lutar pela consecuçãodo seu objecto: produzir narrativas unificadas norteadas pelo paradigma daobjectividade,e fazê-locomumacrescentevigilânciaepistemológicasobreascondiçõesemquedesempenhaessepapel.

ComodizDirlik(2006),«umavezmaissecolocaanecessidadedejuntaroglobaleolocal,otransnacionaleonacional,easestruturassobre-determinadasdastrans-localidadesnumesforçorenovadoparacapturarostodossemsacrificaraspartes,evice-versa».

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Resta dizer que esta questão, encarada de um ponto de vista académicoafricano, ultrapassa o mero exercício para se tornar em questão centralrelativamenteaofuturo.AactividadeacadémicaeaimagemafricanadeÁfricasãoinextricáveis,nosentidoemquepartilhamomesmodestino.Semactividadeacadémica não é possível construir essa imagem, e sem essa imagem não épossívelhaverumaacademiaafricana.

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VÁRIASEDUCAÇõES,MúLTIPLASREPRESENTAÇõES 291

VÁRIASEDUCAÇõES,MúLTIPLASREPRESENTAÇõES

Casimiro JorGe simões rodriGues*

AminhaintervençãotemcomopontodepartidaomeutrabalhoeestudosobreMoçambiquenasegundametadedoséculoXIX.1

Pelaprimeiravez,naÁfricaOriental,osportuguesestentaramimporumamundividência ocidental, comportando conceitos económicos, sociais,morais,religiosos,detrabalhoeprodução,assimcomoderelacionamentointereintrapopulações.Tambémosconceitosdepropriedade,denatureza,defamíliaegrupo.Portugalexige,quer,alterarcompletamentearelaçãodohomemcomoMeio.Éaesteesforçocolonialoitocentista,estaapropriaçãoforçada,queosafricanosdesconheciam,eaquevãoresistirdemúltiplasformas.Ocolonizadorpretendecriar necessidades desconhecidas dos africanos, porque precisa destemercadoe necessita de formatá-lo à sua imagem.Embora o próprio colonizador tenhamuitasdificuldadesemcorrespondernoseuterritóriodeorigem,àsnecessidadeseconómicas,culturais,sociaisetecnológicasdaépoca.

A representação, o conceito, a imagem que os portugueses fazem de sipróprios,dosafricanos,doseuropeus,estaconstruçãocomplexa,dereflexosecontornoselaborados,desencadeiaaformadeagir,noespaçoeterritórioafricanoque,por si só, jáéuma representação.África,Moçambique,na representaçãoportuguesado séculoXIX,éumespaçode riqueza,uma terradeabundância,a afirmação do domínio possível mas, também, um espaço de fantasia e de

* ChAM (Centro de história de Além-Mar), Faculdade de Ciências Sociais e humanas,UniversidadeNovadeLisboaeUniversidadedosAçores.

1 Rodrigues,2007.

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imaginação.Noespaçoassimcriado,osafricanossãotodosiguais,incivilizados,mandriões,comovíciodosbatuques.Damúsica.Dadança.Dosexo.Imorais.

Osportugueses(noReino)representam-secomoumImpérioe“inloco”,nacolónia,umanaçãoemagonia,emconflitocomadimensãodarepresentaçãoqueconstruiudesiprópria.OsafricanosdeMoçambiquerepresentam-semaisentresidoqueemrelaçãoaosportugueses;estes,sópraticamentenoséculoXIX,quando começam a intervir mais efectivamente no seu quotidiano, merecemalgumarepresentação.

Arepresentação implicasempreo reconhecimento,emboramuitasvezes,seja forjada. É neste plano que a educação se articula com esta construçãorepresentativa.Aseducaçõesformalizam,definem,replicamasrepresentaçõesedecorremdelas.AeducaçãocolonialemMoçambiqueseráumaréplica,muitasvezestruncadaefalhada,detodoosistemaeducativoemvigornoReino,queétranspostointegralmenteparaoespaçocolonialsemqualqueradaptação,sejanocalendárioescolar,noshoráriosounosmanuaisematériasleccionadas.

Infelizmente ainda não desmontámos, nem decompusemos estasrepresentações tantodos africanos comoasnossas.hoje emdia, em todososníveisdeensinoecommaiorgravidadenosecundárioesuperior,perpetuamosereplicamosasrepresentaçõesdosséculospassadossemcríticas,semanálise.quando não estudamos, não ouvimos, não lemos as fontes, os historiadores,asvozesmúltiplasdosoutros,dosafricanos,dosmoçambicanos.Excluímosadimensão“autobiográfica”comopovo.Tambémdaprópriahistória.

Naeducaçãocontemporânea,anossa,continuamosaconfundirpassividadecombomrendimento.Agrupamosna“misériadahistoriografia”todososdefeitosqueprojectamosnosoutros,comomecanismosdedefesaperantearepresentaçãodenóspróprios–semcorrupção;nãohomogeneizados;escolhidospordeusesevaloresque imaginamos;educandoosmaisnovos,nãoparanovassoluções,masparareceitasjárequentadasedemauresultado.ConvivemoseensinamosasmesmasrepresentaçõeselaboradasnoséculoXIX.

Moçambiqueé,emsipróprio,umcomplexodemundividências.Osafricanosexibemagora,comonoséculoXIX,culturaseformasdevidadequenãoabdicam.Aeducaçãoafricana,emboracompletamentemenosprezadapelocolonizador,eraconstituídaporumcomplexoconjuntoderegras,normas,condutaseritmosemqueosbatuquesmarcamasdiversasetapasdavidacafreal,desdeacircuncisãoatéoutrosmomentosdecisivosdacomunidade.Desempenham,emÁfrica,outrastantasformasdeintegraçãonaturaldacriançanasuacomunidade.2Acompanham

2 “African childrenperhapsdiffer from theirEuropean counterparts in that theyhave completelyuntrammelledaccesstothestimulatingworldofmusicanddance.ThemovementsoftheAfricandance, in their infinitevariety, offer thebest possiblephysical exercise forgrowingbodies.Noteacherordancing-masterisneeded:thechildrenjoininnaturally,followingthestepsofadultsorotherchildren.Dancingandmusicarealsoameansoftransmittingthecultureofapeopleandofperformingtogetherasagroup.”Fafunwa,1982,p.13.

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os diversos momentos significantes da vida social. Para os africanos, a suainstrução contempla o conhecimentodaNatureza e nela confiame dependemparaoalíviodemaleitasfísicasementais.ConheceraNaturezaimplicarespeitá-laeidentificarosseusperigos.Ocontactoestreitocomanaturezaafricanamostraa fraca intensidadeque a influência europeiadetinha.Apresençade felinos eoutros animaisdegrandeportepertode locaisditosurbanosmostraa estreitarelaçãoentreosdiferentesespaços.Vivendoemcontactodirectocomanatureza,ascriançasafricanasdependememboapartedoconhecimentodosseusperigosepotencialidades.

TambémaNaturezaéobjectodeexploraçãopelocolonizador.Aescassezde certas espécies é, uma vez mais, atribuída à exploração irracional feitapelos africanos.A criação de necessidades de consumo nos africanos que aspotências coloniais tentarame conseguiramemgrandeparte introduzir, tantasvezesapontadacomourgênciadocapitalismoeuropeu,pareceserignoradadosdiscursosconservacionistasdosocidentais.

Oscostumesafricanossãoobservadoscomatençãoestratégica.Nãoosmove,namaioriadoscasos,apuracuriosidadecientíficaouumaatitudefilantrópica,antesoobjectivoclarodeconhecerrudimentosdasculturas,demodoatornarmaiseficazodomínioeexploraçãodemão-de-obra.Estedesideratocompele-os a reunir informações sobre os laços e obrigações interfamiliares entre osafricanos e a poligamia, sobre a propriedade e formas de domínio, sobre ostiposde equilíbrio estabelecidos, os rituaisde restabelecimentodopoder edacomunidade, as cerimónias que acompanham os indivíduos do nascimento àmortecelebradascommúsicaebatuques.Sóconhecendoomodus vivendidospovosafricanoséqueopodercolonialportuguêsopoderáalterar,substituindo-o,transformando-ooueliminando-o.

Sublinha-searesistênciadasociedadetribalaacabarcomotipoderelaçãopolígama,admitindoque,mesmoconvertido,oafricanoenganeoseumissionário,apresentando-secomomonógamomaslevandovidacontrária.3

Oseuropeus,em1891,explicamqueo“(…)pretorarasvezestrabalhasemcantar, e é cantandoedansandoque solemnisanão só as suas festas comoassuasdesgraças.”4Adançaeobatuquesãosemprealvodeconsiderações,umavezquechocamfrontalmentecomamoralocidental,o“puritanismo”europeu,manifestando o corpo que este é obrigado a ocultar. Na formação do jovemafricano,ocorpoocupaumlugarnaturaleéuminstrumentoquecomunicaentreosvivosecomosmortos.

Amemória histórica,transmitidaatravésdaoralidadeereforçadapelocultodosantepassados,éumimportante factordeconstruçãoda identidadeculturalafricana. Os relatos traduzem uma visão de si e dos outros. Mecanismo de

3 Junod,1917,p.261.4 Baptista,1892,p.25.

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conservaçãodaidentidadeesobrevivênciadasculturas,aoralidaderepresenta,emÁfricacomonoutrasregiõesnãoalfabetizadas,umfactordecoesão.5

O papel da oralidade é fundamental na transmissão e conservação deideias, costumes e práticas.6 Está bem presente no que podemos considerar a«socializaçãoprimária»dascrianças.Diversosautoressublinham,ofactodenãoexistir «literatura escrita» não significa que não exista «literatura», nempodefazeresqueceropapeldessa«literaturaoral»noquadrodaeducaçãofamiliardascrianças.7Diversosprovérbioschanganasreferem-seàimportânciadaeducaçãodacriançadetenraidade.8

Osafricanosconservaramporviaoraltestemunhosdareflexãofilosóficaqueforamexperimentandoaolongodotempo,partindodassuasprópriasexperiências,dassuasnecessidades,daauto-preservaçãoedasgrandesinterrogaçõesquesãomaisoumenoscomunsatodososhomens.9Nestedomínio,amemóriados«mais

5 Ascontradições arrastar-se-iamaté aosnossosdias. “OEstadodeMoçambique independentetinhaidobuscaralgunsdosseusantecedentesnosimpériosdeMutapa,MaraveedeGaza,bemcomoalgunsoutrosestadosenaresistênciacontraocolonialismo.Issocriouproblemasparaahistoriografiaacadémicaque semostroudivididaenãoavançoumuitonoestudodosestadosprecoloniais. (Muitos estavam também pouco interessados nesta temática). Para alguns, osprincipaisprotagonistasdeuma tradiçãode exploração enão serviriamcomoheróis paraumMoçambiquebaseadonoidealdeigualdade.Viramtambémquecomainclusãodestesestadosnalinhaancestraldoestadomoçambicanoaquelesquecolaboravamcomosportuguesespassariamasertraidores.Pensou-sequetantoosresistentescomooscolaboradoresficaramnoseumododevidaàmesmadistânciadoMoçambiquemodernooutentaramresolverosmesmosproblemasporviasdiferentes.UmaoutraproblemáticaeraarepresentatividaderegionalporqueestudarGazasemdestacarigualmenteMakombe,Kghupula,MatakaeoutrosnaZambézia,CaboDelgadoeTeteseriadesprezarastradiçõesdemuitasregiõesdeMoçambique.”Liesegang,1986a,p.78.

6 “Oquecaracterizaepredominanumatradiçãooraléomedodeesquecer.(…)Oespíritoestáde tal maneira preocupado em preservar, que é incapaz de uma atitude crítica.Ao contrário,na tradição escrita, graças ao recurso do suportematerial, pode-se libertar amemória, à qualfinalmentepodepermitir-seesquecer,excluirprovisoriamente,poremcausa,interrogar,estandocertadepoderencontrar,casonecessite,assuasaquisiçõesanteriores.”Ngoenha,1993.

7 ÉaideiadoPadreArmandoRibeiro.Ribeiro,1989,p.V.Equandoesclareceainda:“(...)queapráticadecontarcontosnãoéapenasumagradávelpassatempomastambémumainstituiçãoclânica, digamos mesmo, uma escola familiar, pois é aí que a criança aprende as regras deeducação e respeito, recebe a primeira noçãododever, começa a conhecer e a integrar-se nasociedadenomeiodaqualtemdeviver,respeitandosuasleis,evitandoseustabus,sujeitando-seàssuasexigências.Eporisso,cadavelhaque,ànoite,serodeiademiúdosparalhescontarascoisasde antanho, pode ser considerada a educadoranatada tribo, a defensorados costumesancestrais,aheroínaquemantémacesaachamadopassado.”id., ibid.,p.VI.

8 Váriosexemplosdecarácterpedagógicosecolhem,atítuloexemplificativo,emRibeiro,1989,pp.34;58;85;p.114;125edesocialização67;68;83.

9 “(…)Thefragmentsofphilosophicalreflections,ideasandworld-viewstransmittedtousthroughtheformulasofwise-sayings,throughproverbs,stories,sócio-politicalorganizations,mythology,throughreligiousdoctrinesandpracticesdidnotoriginatefromavacuum.Theyareevidencesof deep philosophical reflections by some gifted individual thinkers who were the african

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velhos»ocupouolugardoslivros,10oqueconfereaorespeitopelosanciãoseàsuafunçãodeautênticosrepositóriosdamemóriaumsignificadodepreservaçãodaautênticabaseidentitária.

Comocolonialismo,ointeresseemestabelecerdivisõesrígidasemetniasserviria os objectivos estratégicos de dominação – classificando, dividindopara reinar, mecanismo de todo o poder.11 No século XIX, a ciência acabariapor contribuirpara«etnicizar»África.Os«especialistas»correspondiam, comos seus estudos, àquelas que eram as necessidades dos governos coloniais.12Ao imobilizar os africanos em grupos que podiam ser «inequivocamente»identificados e caracterizados, criava-se um mundo mais fácil de comparar,classificar,menorizare,finalmente,detransformar/resgatar.13

Nos relacionamentos entre povos, os processos nunca se traduzem emvitórias ou derrotas totais. O domínio nunca é absoluto. Desde logo, porqueos vencedores têm de aproveitar as potencialidades dos povos que dominam.Enquantose lhes impõem, tambémse lhesadaptam.Jádapartedosvencidos,

philosophers ofthepast,theAfricancounterpartsofSocrates,Plato,Aristotle,Descartes,Kant,hegel,etc.(...)”.Omoregbe,1998,p.5.

10 Omoregbe,1998,p.7.Oautorchamaaatençãoparaanecessidadedetrabalhosdecampo,deentrevistasjuntodosmaisvelhosdascomunidades.

11 Amselle,1998a,pp.77-78.“Asguerrastribaisnãoopõem,assim,atradiçãoeamodernidade.Traduzempelocontrárioaexistênciadeumconflitoeminentementecontemporâneoentreaformacolonialdoestadoeadistribuiçãocolonialdasetnias.” id., ibid., p.79.Sobreasquestõesde«etnia» veja-se uma referência a outros casos em Guichaoua, 1998, pp. 99-104.Ainda sobrea distinção «tribo» e «etnia» e a emergência histórica destes conceitos na sua relação comocolonialismoveja-seabrevesíntesedeAmselle,1998b,pp.141-142.

12 “Antes dos etnólogos, já os administradores coloniais tinham aplicado estes princípios deordem,catalogadoaspopulaçõese, sobretudo, identificado territóriosenomes sobreosquaisnãohouvesseequívocos.Era-lhespoisnecessáriodebruçarem-sesobreaslínguas,oshábitos,oscostumes«indígenas»eimprovisaremcomportamentosdelinguistaoudeetnógrafo,tendoemvistaaadministraçãoeapolíticacolonial.”Dozon,1998,p.262.

13 “(…)Defacto,facilmentecremosqueaÁfricaéummosaicoétnicoe,aodizeristo,julgamosestaratocarasuaessência,asuaautenticidade,ouquetalimagemremeteparaasuarealidadepré-colonial.Essacrençaétotalmenteinexacta.Pelocontrário,foiacolonizaçãoqueimobilizouecristalizouassociedadesafricanassobaetiquetaétnica,queasidentificouesobreelaselaboroumapas,emfunçãodassuasexigênciasadministrativaseeconómicas.Apercebemo-noshojequenumerosasentidadesétnicasnãotinhamequivalentesreaisnouniversopré-colonial,oumelhorqueassociedadesqueeramsupostascorresponder-lhesnãoseidentificavamcomosnomeseosterritóriosquelheseramentãodados;apercebemo-nosaindaqueoutrosmodosdeidentificaçãocolectivaedeintegraçãosocialestavamemobra,seguindoascircunstânciashistóricas,deordempolítica(edificaçãoouexpansãodeumEstado),económica(especializaçãoeconómicaregional,redescomerciais)oumeramentesocial(deslocamentodepopulações,migraçõesoriginadorasdemudançasde identidade).Deresto,é frequentementeapropósitodestesgruposcaracterizadossomentepelosseussistemasfamiliares(emoposiçãoaosquepossuemigualmenteumsistemapolítico)queanoçãodeetniaéparticularmenteproblemática.(…)”id., ibid.,p.263.

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importaconsiderar a adaptaçãoaosméritosdo seuoponente tendoemvista asobrevivênciaouaobtençãodepossíveisvantagens.

O temada «preguiça»dos negros é umestereótipo deste períodoque seprolongará nos séculos seguintes.14 Se a ideia de queo negro é refractário aotrabalhoécorrenteemaioritáriaentreosportugueseselanãocolhe,apesardetudo,unanimidadedeopinião.Noanode1880,A.F.Nogueira criticaosquedemonstramconstantemente“(…)ospreconceitosquenosfazemolharoNegrocomo elle não é, que o indígena das nossas possessões d’Africa prefere estarpresoatrabalhar.Éamaniaconstantedecaracterisartodaaraçaporqualquerfactoparticular.háNegrosquecomeffeitopreferemestarpresosatrabalhar;masquemsão?Sãoosquevivemsujeitosaotrabalhocomonóslh’oimpomos,sobumregímencruel,esemumaremuneraçãosufficiente.OBrancocollocadoemidênticascircumstanciasfariaomesmo.”15

Os contactos com os africanos foram sempre complexos, assim como asua representação, embora haja autores que consideram que, nos primórdios,acategoriasocialeeconómicadosportugueses lhes tinhacriadoumaespecialempatia em relação aos outros povos. Transferir para as classes popularesportuguesasaqualidadedarelaçãocomosafricanosearesponsabilidadedetodososequívocoseintolerânciasé,dealgummodo,“falharoalvo”.Especialmentepara o séc.XIX.OrlandoRibeiro regista: “(…) Infelizmente, esta capacidadedeestabelecerrelaçõeshumanasnumplanodetolerância,decompreensãoedeautênticasimpatia,seporumladoaencontramosnosolhosdeslumbradosdosnossosprimeirosdescobridores, faltamuitavezaocolono,aocomerciante,aofuncionáriodeescalãoinferior.”16

Naopiniãoinglesa–eapesardealgumacontradiçãonoargumento–oquenemanaçãoportuguesaconseguiaalcançavam-no,àsuamaneira,osdegredados–, esclarecia-se que Moçambique seria uma colónia meramente penal, cujoresultado“(...)ofthissortof“occupation”ofEasternAfricahásbeenthebreedingonthecoastlineofahybridandworthlessrace,whohavenoplaceintheesteem

14 “Na história colonial de Moçambique, encontramos centenas, milhares de documentos queoutorgamaosNegrosuma«preguiça»primordial.Esseestereótiponadatinhaaver,emprincípio,comamalevolênciadosBrancosmascomasrelaçõessociais:onegro«preguiçoso»éumprodutodirectodaassimetriasocialcolonial.(…)”Serra,1997,p.111.SobreasraízesdoracismobaseadonatipologiafísicanopensamentocientíficodoIluninismoeascontribuiçõesdonaturalistasuecoCarlLinnaeusoudeJohannFriedrichBlumenbach,“paidaantropologiafísica”,ofilósofoalemãoChristophMeinerseVoltaire,verFredrickson,2004,pp.53ess.

15 Nogueira,1880,pp.205-206.“Nãotemdecertohabitosassiduosdetrabalho,masseestelheforofferecidonascondiçõesemqueelleporemquantoopodeacceitar,sobaformadepequenasempreitadas,semviolencianemoppressão,esufficientementeremunerado,hádeaffeiçoar-se-lhe,ehádeserporfimojornaleiro,ooperário,oindustrial.”id., ibid.,p.207.

16 Ribeiro,1961,p.7.

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oreitherthehighercivilisedPortuguesesorthenatives,butaredespisedalikebyboth.”17

Noquadrogeraldasrepresentações,maisespecificamentearepresentaçãoinglesadosportugueses,aimagemqueconstruíramdopovoportuguêsé,emsi,exótica.Ideológica.Aindahoje.

Ideologia, educação, História e Representação

ApósFukuyamaeasuamediatizadaobrao Fim da História e o Último Homemcirculandopordiversoslocaisdeummundoemprogressivaglobalização,a tesedo fimdas ideologias, acompanhandoumpretenso fimdahistória, foiganhandoterreno.Otextoque,porventuradeformamuitoconveniente,anunciavacomenormeeficácia,emalgunsdepartamentosuniversitários, talvezdeformaumpoucoapressada,foiadoptadocomoobradereferência.

Acomplexarealidadedomundocontemporâneo teimava,noentanto,emresistirmesmoaestacosmovisãoemqueahistóriaeaideologiajánãotinhamfunções,nãoeram,portanto,necessárias.Muitosquereriamver,comomundoque despontava, assistindo à queda do muro de Berlim e a uma globalizaçãotriunfante,umpanoramaclarodaquedadasideologias,eventualmentesubstituídaspelosconsensosdeumanovaideologiaúnicaquesecaracterizavaporassumir-secomouma“não-ideologia”.Ficava,destemodo,abertoocaminhoparaomundoglobal,comseus imparáveisavanços,aliviadodequalquerdebatebloqueador.Suprimiam-seasdiscussõesinúteiseproblemáticasqueperdiamoseusentidoperanteosnovostempos.

Contudo, segundo a reflexão de Agamben sobre o significado de“contemporâneo”, os dias dehoje acentuariamanecessidadedenão abrandara produção teórica, evidenciando-amais. Uma tentativa de iluminar as trevasdomomentopresente,comoaque,assinala,deveriaestarnoespíritodeMichelFoucault“(…)quandilécrivaitquesesenquêteshistoriquessurlepassén’étaientquel’ombreportéedesoninterrogationthéoriqueduprésent.”18

Num esforço tão querido a Paul Veyne retrodicção, é difícil separar asmentalidades, sempre, situadas no seu tempo, do entendimento dos utensíliosteóricosque,emcadamomento,foramusados.Se,comoafirmaomesmoautor,“ascoisassãooquesão”ejáalguémhaviaafirmadoque“nãoseperguntaaumleãoporqueagecomoumleão”édifícilentender,cabalmente,umaépoca,seufuncionamento económico, social emental., semestudar as ideias elaboradas,

17 Mathers,1891,p.394,p.410ess.Naspáginasseguintessublinha-sedepreciativamenteofactodeamaiorpartedosoficiaisportuguesesforadePortugalseremnegroseatribui-seaoNgungunyaneaafirmaçãodeque“(…)thePortuguese(…)areonlyblackmenlikehimself(…)”.Mathers,1891,p.394,p.412.

18 Agamben,2008,p.40.

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numdadoperíodo,quepermitemumacertaresistência,aindaqueindividualizada,aestaouàquelas.

A educação e as representações que transmite, impõe, replica, estãointrinsecamenteligadasàideologia.Entendendo-se“Ideologia”comoumsistemadeideiasejuízos,dotado,geralmente,deumacertaorganização,quepretendedescrever,explicar, interpretaroulegitimarasituaçãodeumgrupooudeumacomunidadee,adoptandodeterminadosvaloresefornecerfundamentosparaasuaactividade,paraasuaacção.Apesardeovocábulo“Ideologia”tenderparaumdesfechoqueoassocia,normalmente,aumconjuntodeideiasqueredundamouresvalam,paraconjuntosdogmáticos,aIdeologiatemsidoapresentadacomoaorigemdetodososmalesqueafectamaseconomias,associedades,asculturaseasmentalidades.Tambémaeducação.

Asideologiasfáceis,queencontramosseusgrandesinimigosemtodososquebuscamorigor,nãoalinhandofacilmenteemreceitasembaladasempseudo-cientificismosque,comocortinasdefumoderivadasdofacilitismoedeputativasmodernices,prometematodosumalibertaçãorápidadeproblematizações,

De 1850 a 1930, a prática psiquiátrica procuraria “(…) um discursoverdadeiro”oucomotalestabelecido,deduziranecessidadedeumainstituiçãoe de um poder”.19 De tudo isso teria emergido um “poder de disciplina”.Talpoderdisciplinareseufuncionamento tendiaparaacompreensãodopoderda“psiquiatria”.20Adisciplinavisa,aoníveldaactividadeprodutiva,umaeficiênciamáxima.

Nadissertaçãodedoutoramentoque realizei sobrea educaçãocolonial ea ideologia que a acompanhou, ou baseou, analisei os processos de formaçãoimpostos aos africanos, desde o inculcamento de novas necessidades, criaçãode novas proibições e correspondente criminalização, nas novas formas depropriedadeesuaadequaçãoàcobrançadeimpostos,nacolonizaçãodehábitos,costumes, línguas,mundividência,aclassificaçãosegundocaracterísticas reaisou imaginadas, agrupamento em áreas de produção (amplos reservatórios demão-de-obradisponível).

Foucaultdeteve-se,emdiversasobras,aopanopthicomdeJeremyBentham,um modelo de prisão mas que, nas palavras de quem o concebeu, é tambémmodeloparaumaescola,umaoficina,umainstituiçãodeórfãos,entreoutras.21Comasuaarquitecturaprópriaeestudada,visasatisfazerosseguintesrequisitos:considerarqueomeiofamiliaréincompatívelcomagestãodequalqueracçãoterapêutica; haver a necessidade de visibilidade permanente;22 respeitar o

19 Foulcaut,,2006,p.49.20 id. ibid.,p.52.21 id. ibid.,p.92.22 id. ibid.,p.128.

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princípiodevigilânciacentral;23tambémoprincípiodoisolamento,emcadacelaouespaço,comvalorterapêutico.Numpanodefundoemqueoasiloagepelojogodaincessantepunição.Tambémaeducaçãocolonial.

O“fimdaideologia”temsuscitadoporpartedealgunsautoresumareacçãoque procura estudar os rudimentos do fenómeno ideológico. Estudando osaparatosquecriamosmecanismosideológicos.TaléocasodofrequentementecontroversocroataSlavojZiZek.Oseuprimeirolivro“TheSublimeObjectofIdeology” descodifica, em função das especializações do autor no âmbito dapsicanálise, filosofia e sociologia, os modos de funcionamento da ideologia.Analisa a predisposição do cérebro humano para uma aceitação acrítica doqueenganadoramente lheéapresentadocomoarealidade,oautorretomaestaquestãoaolongodediversasoutrasobrascomo:“PlagueofFantasies”,“Bem-VindoaoDesertodoReal”,“FirstasTragedy,ThenasFarce”,entreoutrosdasuavastabibliografia.Demonstradequemodonosencontramoshojesoterrados,manietadospelaideologia,detalformaquenãoareconhecemos.Numasociedadeque se classifica, representa, de pós-política, pós-moderna e pós-ideológica,interroga-se se o capitalismo global será a única ideologia, tanto mais que ocapitalismo global assume-se como não ideológico. Pergunta-nos e interroga-se:“quehistóriaéessaquecontamosanósprópriosequenãoquestionamos?”“Porquenosdizemquetemosodireitodetudocriticar,proibindo-nos,noentanto,de criticar certas coisas?” “ que regras implícitas, não escritas, nos levam aaceitar o “BIGOThER”, como chama ao controlo que é exercido sobre todaasociedade,fazendo-avivernaterraquedesigna“DasPurasAparências”.Sãoestasaparênciasoimportante,levandoaspessoasa,sabendoaverdade,sentirem-seconstrangidasafazerocontrário,jáqueparaZiZeknosistemasimbólicoésurpreendentecomotodospodemossaberefingirquenãosabemos.Numaépocaemqueapalavradeordempareceser:actua,nãopenses,oimportanteé,semdúvida,pensar,questionar.

hojeéabsolutamentenecessárioreflectir,precisamosmaisdoquenuncadeteoria,deintelectuais,depensamento,deideologia.Reflectesobreintolerância,racismo,vizinho,vizinhança,sexualidade,ecologia,natureza,diferençasculturais,liberdade,equidade,igualdade,crença,democracia.Sobreasrepresentações.

os pilares da Ideologia Colonial

a ideia da especial capacidade de convivência dos portugueses com outros povos de diferentes culturas foi cultivada, de forma mais ou menos explícita, e com consequências no discurso construído sobre os próprios africanos. Aquitorna-seobrigatóriaareferênciaaumasériedeconceitossistematicamentecompostosque

23 id. ibid.,p.129.

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encontrariamposteriormente,emGilbertoFreyre,oautordereferência.24Umatal originalidade relativamente aos outros europeus conferia aos portuguesesumlugardemarcadonoquadrodasnaçõescoloniais.25Especificidadelusaquedeveriaservir-lhesdeexemplo.26

24 “Não me parece que a caracterização que há anos sugiro, das áreas marcadas pela presençaportuguêsa–as áreasdeumapopulaçãoemgrandepartede“váriacôr”–possa ser aplicadacomigualgeneralidadeeigualvigoràssituaçõesetnicoculturaisapresentadasporoutrasáreasonde se vêm verificando contactos de europeus com não-europeus. Não se aplica decerto àsáreasmarcadaspelacolonizaçãoanglo-saxônica–tãocruamentedesdenhosa,atéhápouco,daspopulaçõesdecôr;nemàsáreasdecolonizaçãoholandesa;nemàsdecolonizaçãoinglêsa;nemàsde colonizaçãobelga; nemmesmo, considerando-se a amplitudedo ânimomelanistamentedemocrático dos portuguêses, a tôdas as áreas de colonização espanhola, embora de váriasdessasáreas–davenezuelana,daparaguaiaedacubana,porexemplo–sepossaafirmarqueseapresentam,naAméricatropical,iguaisaáreabrasileira,quernosaspectosbiológicos,queremalgunsdossociológicos,doseudesenvolvimentoemáreasdepopulaçõesemgrandepartemestiçasedeculturasemgrandepartemistaseatésimbióticas.”Freyre,1962,p.26.JáquantoaosmétodosutilizadosparaintegrarosOutrosnaculturaportuguesatornar-se-iacompreensívelopaternalismocomorecursoacorrectivosfísicosquemaisnãoseriamque,emúltimaanálise,manifestaçõesde«afecto»deadultosparacomcrianças,poisseria“(…)certoquenumerosasvêzesessaintegraçãodecaráterfamiliar,patriarcal,sociologicamentecristão,sefêz,noBrasil,esevemfazendoemváriaspartes–nãoemtôdas,admito–daAfricaPortuguêsa,pormeiodecastigosfísicosimpostosaosrecém-vindosdeculturasprimitivas,paramelhorconsolidaçãodoseuaprendizadodeumanovacultura.Mas lembremo-nosdequenossistemasortodoxamentepatriarcaistaiscastigosfísicosseestendiam–eatécertopontoaindaseestendem–noBrasile em Portugal, aos filhos, sendo raro o brasileiro ou o português de formação castiçamentepatriarcal que tenha crescido sem ter experimentado a ação da palmatória ou da vara ou dachibatadisciplinadoraempunhadaporpaioupormãe.”id. ibid.,p.31.SobreadesmistificaçãoteóricadosconceitosconstruídosporGilbertoFreyre,nomeadamenteo«luso-tropicalismo»ver:henriques,1997a,p.35;39-40.Aindasobreacríticaaoconceitode«luso-tropicalismo»,quantoaoprolongamentodosmitosnotempoeasnovasdesignações«emmoda»verMargarido,2000.

25 ComoexplicaIsabelCastrohenriques,“(…)oséculoXIXprocuroueconseguiuimporaideiadeumamissãoexclusivamente religiosa levadaacabopelosPortugueses,menos interessadosdo que os demais colonialistas pelos benefícios económicos.” henriques, 1992, p. 224. Porvezes a produçãohistoriográfica de alguns países desenvolveu-se, também, emconformidadecomostempos:«LesPortugais,commelesEspagnolset lesFrançais,n’ontjamaiseuaucunpréjugédecouleuretderace.Leshommesdecouleur,poureux,sontdeshommes.».Aliançaseuropeiasquesematerializamemcertasvisõesdopassado,nomeadamentequantoàinstruçãonascolóniaseà sua influência sobreosmulatos:«(...)Cesmulâtresn’étaientpointhonnis etrepousséscommeilslefurentpresquetoujoursdanslespaysAnglo-Saxons.Desleurenfance,leurspereseuropéenss’occupaientd’euxaveclamêmesollicitudeques’ilsavaientétédepetitsb1ancs.L‘instructionprimaireavaitétéassezrépanduedanslescolonies;lesmulâtressavaientlireetécrire;ilsrecevaientaussiuneinstructionreligieusequi,àelleseule,lesfaisaitégauxd’unpeupleaussicatholiquequeceluiduPortugal.»Vallaux,1940,pp.478-479.

26 Sobre a presença portuguesa no Oriente e em África, escreve Gilberto Freyre que “(…) sobváriosaspectoséumaexperiênciadaqualoutrosgruposeuropeusrelacionadoscomambientes,populações, e culturas tropicais, podem extrair, através de uma ciência social que tome emconsideraçãooqueosnominalistaschamam«particulares»,sugestõesvaliosasparaamodificação

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Paradoxalmente jogam a favor dos portugueses a pobreza, a limitadainstrução,oprecáriodesenvolvimentoindustrialaliadasàslimitaçõesdamáquinaadministrativacolonial,àsdeficiênciasnaocupaçãoquealegamsobreextensaszonas em que a sua influência se fazia sentir de forma muito superficial.27Aideiadaconvivênciaespecialnosdomíniosportuguesesé,portanto,umrecursoexplicativo recorrente e podemos incluí-la como um dos elementos míticosdecisivos e simbólicos na ideia geral da «missão civilizadora» e «imperial».28Conceito mítico que chegou mesmo a ser utilizado contra a acusação deescravaturaporpartedosportuguesesjáque,comoescreveuPessoaAllen:(…)asseveravamosamr.Stevensonqueaescravaturaaindaexiste,nãonosdominiosportuguezes,ondeosnegrossãotratadoscomoapropriafamiliadosfazendeiros,

doseucomportamento.(…)”.Salvaguarda,contudo,queessa“(…)ciênciaemqueosbrasileirose portugueses vêem sistematizando o estudo das suas relações com os trópicos é uma ciênciaeminentementeempírica,nobomsentidodeexperiencialeexperimental,emboranãodeixedeserpsicológicanemserecuseatornar-se«policyscience».Masoquenessaciênciatemalgumacoisade«policyscience»éomodoporqueseusespecialistasprocuramarticularopassadocomofuturonasáreastropicaismarcadaspelapresençaportuguesa,àbasedeconstantesquenessasáreasseachamjásociològicamenteconstatadas.”Freyre,s.d.,p.48.Paraomesmoautor,existemdoistiposdecolonizaçãoeuropeianostrópicos,“ahispânicaeanãohispânica”.Sendoaprimeiramarcadapordesígnioscristãos,decaracterísticas“(…)cristocêntricas,empenhadasemcuidardedoentesaomesmotempoquedeórfãos,develhos,demeninoseadolescentes,assimdecorcomobrancos:dasuaeducaçãoedasuacriação;dasuaprotecçãoedasuamanutenção.”Freyre,1958,p.22.Destaforma,o«cristocentrismo»opor-se-iaao«etnocentrismo».id., ibid.,p.23.Aspectosaquejuntaaideiadesecriaruma“(…)subciênciadostrópicosquesedenomine«hispanotropicologia»,daqualsedestaqueumaespecialíssima«lusotropicologia».id. ibid.,p.26.

Umaoutra visão sobre o contributo deGilbertoFreye é-nos fornecida por JoãoMedina que,comentandoumtextodeFernandohenriqueCardosoemqueesteassinalaarevalorizaçãodonegropelosociólogobrasileiro,destacaumoutroaspectoqueéodo“(…)ênfasepostonavidasexual,nopapeldasexualidadecomomotordadialéctica«democrática»dasociedadebrasileira,desdeostemposcoloniais,éaverdadeirarevoluçãooperadapelométododeFreyre,revoluçãoafinaltãocopernicianacomoaprimaziadadaaosnegros,atéporquefazparteíntimadela,sendoasenzalaéoharémdacasagrande,poisambasestãoumbilicalmenteunidas,comotudoomaisqueseprocessanobinómiosenhordeengenho/escravanegra(oumulheríndia),queémulherlegítimaouconcubinaoucozinheiraoumucamaouamadeleite…”Medina,2002,pp.112-113.

27 AssinalaBoaventuradeSousaSantosque“Portugalfoioúnicopaísaserconsideradoporoutrospaísescolonizadorescomoumpaísnativoouselvagem.Aomesmotempoqueosnossosviajantesdiplomatasemilitaresdescreviamoscuriososhábitosemodosdevidadospovosselvagenscomquemtomavamcontactonoprocessodeconstruçãodoimpério,viajantesdiplomatasemilitaresda Inglaterra ou da França descreviam, ora com curiosidade ora com desdém, os hábitos emodosdevidadosportugueses,paraelestãoestranhosaopontodeparecerempoucomenosqueselvagens.”.Santos,1996,pp.59-60.

28 João deAzevedo Coutinho sublinha de forma esclarecedora a «originalidade portuguesa» norelacionamentocomosafricanos,mesmoquenemsempreassituaçõescorressemdaformamaispacífica:“Osnossosprocessosdelidarcomindigenastem-nossempreatraídoasuasimpatia,salvoemcasossingularesderebeliõesdebeladas,masemque,vencedores,fomossemprehumanosegenerosos.”Coutinho,1934,p.21.

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imprimindo-se-lheoamoraotrabalho,ámoral,áreligiãoeaoproximo–masnossertõesondeStanleyeoutrossoi-disantmissionariosdoprogressoedacivilisaçãoosescravisamaumtrabalhoobrigatoriosoboaçoite,eassimosmatamsemamaislevecompaixãopeloseusemelhante,comodepoisemphrasessonorasnaEuropaellesproclamamospobresnegros.”29

AhistóriadeÁfricaeastemáticasafricanas,emfunçãodoquerepresentamem ordem à compreensão da nossa própria identidade, assumem um papelfundamentalnoquadroactualdaspreocupaçõescientíficaseculturaisportuguesase quepormuito tempoestiveramafastadasdaspreocupaçõeshistoriográficas.Sobre os estudos de história de África em Portugal e as dificuldades do seudesenvolvimentoapóso25deAbrilsomos,infelizmente,obrigadosarecorreraregistosdeestudiososestrangeiros,quenãoestãodependentesde“boasvontades”daacademiaportuguesaedecorrespondenteseventuaispreconceitos.30

De resto, o problema da instrumentalização da história, nomeadamenteatravésdoseuensino,procurandobranquearopassadocolonialécomumadiversasnaçõeseuropeias.Aesterespeitoveja-seaentrevistaaPierreNoraemqueoautorsublinha,naleide23deFevereirode2005queinvocaanecessidadedeensinar“lerolepositifdelapresencefrançaiseoutre-mer»lembrandoohistoriadorfrancêsque“Ilnefautpasenseignerlatraite,l’esclavage,lacolonisationparcequec’est«mal» ou «bien»,mais parce que c’est un grandmorceau de la formation dumondemoderne”.31

A cada um segundo a sua “Ideologia”

Talvez a influência portuguesa esteja mais próxima da realidade numoutro retrato sobre a expansão da escola pelos portugueses, emMoçambique,quando verificamos que a escola comportava uma noção de disciplina à qualsesonhasubmeteroafricanoenelasedeposita,pelomenosdopontodevistadiscursivo,umaesperança imensa.Desejoqueesbarracomasdificuldadesdasuaimplementaçãoecomocarácterrefractáriodascomunidadesemrelaçãoàescola. Por incompreensão quanto à sua utilidade, mas também pelo carácterdisciplinadorqueelacomportaequeémaisummotivofrequentederejeição.Paraaqualpodemosencontrarumbreveparaleloàquelaqueseregistavaquantoaoserviçonoexército–comosseusregulamentos,uniformizaçãodevestuário,disciplina, opressão, controlo. A escola torna-se, cada vez mais, uma formade controlo dos indivíduos que passa, para ser verdadeiramente eficaz, peloisolamentodas famílias (fonteorigináriadeperdição);pela imposiçãodeumaordemqueantagonizaeestigmatizaasformasdevidaafricanas;pelaimposição

29 Allen,1884,p.26.30 veja-seCahen,1995,pp.125-157.31 Nora,2006.

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dehábitosnovos,deumanovamoralidade,imprimindoumadirecçãodeterminadaàssuasfaculdadesintelectuais;tornando-anumainstituiçãoquepermitaexercerumainfluênciaglobalsobreoseducandos.Desenraizando-osparaosconquistar.Lançando mão dos métodos, livros, gravuras, preceitos morais e hábitos queveiculemumaeducaçãototal.Nãoé,porestesmotivos,deestranharaesperançadepositadanasescolasdearteseofícios–comsuas instalaçõespróprias,comumcontroloquevaimuitoparaalémdaactividadelectiva,comumaorganizaçãodecarácterpara-militar,tentandoincentivarogostopelotrabalho,enquadrandoo aluno numa diferente moral ao abrigo da perniciosa influência familiar.Comonãoédeestranharoreconhecimentoprogressivodaspotencialidadesdasmissõesqueacarretammuitosdestesaspectoseacentuamapossibilidadedeumaactividadeeducativaintegral.Deumavigilânciapermanenteeglobal.Àmedidaquesereúnemascondiçõesquepermitirãoumdomíniocolonialefectivoaescolaprocuraministrar um ensino que determine o lugar do africano na sociedade.Impondo-lhecomprecisãoumconjuntodeperspectivasepossibilidadesqueodeverãoenquadrar.

Umanova ideologia integradiversosconceitosquea educaçãonãopodedeixarde servir– trabalho, arrumação social, ordem,moral.Umnovocódigodejustiçacontemplandooutroscrimes.Àescolaeaoaparelhoeducativocabeaconstruçãodeumdiscursoqueseapresentecomoa“verdade”,oreferencial,emoposiçãoàsformasdeeducaçãoafricanas.Anseiaporcriargruposdeafricanosque,mercêdaeducação,sintamoutrasnecessidadesquenãoasquelheseramfamiliares.Naescolacomonaeconomia.

Cada época, cada representação, cada educação, cada projecto ideológico.

hojeénaturaldizer-se–“SemIdeologia” –Etiquetaquepretendeimprimircredibilidade ao discurso ou acção. A “Ideologia não existe”, ou está de talforma esbatida que é irrelevante. Esta alegada “não-ideologia” é crucial parauma ideologia consistente, estruturada, que tenta e, ao que parece, consegueapresentar-se como “não ideológica”. Tem sido quase eficaz para o comumdoscidadãosemPortugale,atrevo-meadizerque,tambémparaalgunsmeiosacadémicos,oupessoasmenosavisadas,ouavisadasemexcesso.Aliás,nosmeiosdecomunicaçãonacionaishámuitoquea ideologiamorreu,e jáaenterraramcompompaecircunstância.Osdebatesideológicosestãoforademoda,nãosãoprodutivos,nemeficazes,oumesmoeficientes,nãotêmutilidadeumavezquesóaeconomiaéqueinteressa.Masaeconomianãoé,elaprópria,parteessencialdaideologia?

Émuitoperigosoparaademocraciaquandosetentaapagar,diluir,aideologia,opensamento.Tornarumpaísinócuo,incolor,einodoroécondená-loàasfixiaeàmortelenta.Aideologiaéosanguedasdemocraciasetemqueserestudada,analisada,debatida,questionada,renovada,desdeosbancosdasescolas.

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Todaaescolhadepercursosdevidadeumcidadão,deumahistoriografia,de uma comunidade, de uma região, ou de um país, depende do complexoideológicoqueconstruiueseonãocriou,nãoescolhe,nãoparticipa,nãoexiste.Talvezaideologia,hojeemdia,sejadetalformaconsistenteeestruturada,difícilde reconhecer e tornada natural, quase invisível. Lembrando Norbert Elias:Entreaauto-coerçãoeacoerçãomútuaqueregulamosindivíduos,entretodasas ideologiashavidase imaginadas, restasimples,apergunta:“Épossívelnãotomarpartido?

A historiografia de cada país apresenta os seus particularismos, ainterpretação e elaboração dos dados, aquilo que é classificado e reconhecidopeladita«verdadehistórica»,comoseelafosseabsolutamenteneutral,virginal.Alheiaainfluênciasesubsídios.Equalquerinterpretaçãoinadequadaacadameiopodeserafastadasobacusaçãode“ideologia”.

Torna-se então possível percorrer uma carreira historiográfica longe,apartados,doshistoriografados,dosseusarquivos,dassuasvivências.Alheiosaoreconhecimentodasmúltiplasrepresentações.

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riTos que separam, elos que unem 309

riTos que separam, elos que unem:PRÁTICASMÁGICASENEGOCIAÇÃODE

CONFLITOSNOBRASILCOLONIAL(AFRICANOSEAFRODESCENDENTESNOBISPADO

DORIODEJANEIRO,SÉC.XVIII)

ana marGarida santos pereira*

sumário:Aspráticas rituais associadasàmagia tiveramumpapel importante,porémambivalente, no estabelecimento da presença africana no Brasil. Perseguidas pelasautoridadescoloniais,constituíramtambémuminstrumentoderesistênciaàescravidão,mas,aomesmotempo,estabeleceramviasdecomunicação/intercâmbioculturalentreosgruposqueformavamasociedadecolonial:africanos,europeuseindígenas.

Introdução:

Feiticeiros; pagés; mandingueiros; calunduzeiros; adivinhadores ecurandeiros:osdocumentosdaInquisiçãoportuguesarelativosaoBrasilcolonialencontram-se repletosdepersonagensque,emboracomorigensdiferenciadas,noquedizrespeitoàsuaproveniênciageográficaetambémàssuasraízesétnicaseherançacultural,têmentresiemcomumofactodedesempenharemumpapelpeculiarnoseiodascomunidadesemque,emmaioroumenorgrau,seencontramintegrados:odeintermediáriosnarelaçãocomooculto,capazesdeintervirnaordenaçãodoselementosquecompõemarealidadeemvirtudedacomunicaçãocomosespíritoseoutrasforçassobrenaturais,tantobenéficascomomaléficas.

* UniversiteitvanAmsterdam–PaísesBaixos(Doutoranda).PesquisarealizadacomoapoiodaFundaçãoparaaCiênciaeaTecnologia(FCT)–Portugal,porintermédiodoProgramaPOCTI–Formarequalificar,Medida1.1.).

ANAMARGARIDASANTOSPEREIRA310

Neste trabalho, concentramo-nos exclusivamente nos feiticeiros de origemafricana,tambémdesignadoscomomandingueiros1oucalunduzeiros2:analisandoalgunscasos,relativosaoBispadodoRiodeJaneironoséc.XVIII,procuraremosmostrarquese,porumlado,odomíniodeconhecimentosepráticasassociadosàmagiaporindivíduosdeorigemafricanaestimulouomedoeadesconfiançadoscolonos–primeiramente,dosprópriossenhoresdeescravos–relativamenteaumsegmentodapopulação,quesendonumericamentemaisexpressivoe,emtermoseconómicos,essencialparaofuncionamentodacolónia,ocupavaosescalõesmaisínfimosdasociedade,contribuindodestaformaparajustificarnãosóaapertadavigilânciaaqueestavamsujeitososseusmembros,como tambémoscastigosquecomfrequêncialheseramaplicados;poroutrolado,orecursomaisoumenosgeneralizado a feiticeiros, adivinhadores e curandeirosdeorigemafricanaporpartedoshabitantesdacolóniacimentoucumplicidades,patenteandoaexistênciadenecessidadesecrençascomuns,àreveliadasautoridadesreligiosas,ecrioucondições para o desenvolvimento de trocas interculturais, de que o uso deelementoseuropeus(etambémindígenas)nosrituaisafricanoseadisseminaçãodasbolsasdemandingaentreoscolonosdeorigemeuropeiasãoexpressõesasmaiseloquentes.

1 Mandingueiro–“1 feiticeiro africano, primitivamente só de origem mandinga [...] 3 que ou o que faz mandinga, bruxaria; mago, feiticeiro, mandinguento, mandraqueiro”;mandinga–“1 acto ou efeito de mandingar; feitiço, feitiçaria [...] 4 indivíduo do grupo étnico dos mandingas; mandê, mandeu 5 ramo de línguas do grupo nígero-congolês, muito disseminado na África ocidental, desde a mauritânia até à nigéria; mande, mandeu [...] 7 grupo etnolinguístico formado pelo cruzamento de negros sudaneses com elementos berberes e etiópicos, que habita esp. o alto senegal, o alto níger e a costa ocidental de África; mandês, mandeus [remanescente da desagregação do antigo império mali, criou fama como povo muito afeito à prática da feitiçaria]”.Cf.dicionário Houaiss da língua portuguesa, t. II,Lisboa,TemaseDebates–InstitutoAntôniohouaissdeLexicografiaeBancodeDadosdaLínguaPortuguesa,2003,p.2373.

2 Calundu–“etim quimb. kalu’ndu‘ ente sobrenatural que dirige os destinos humanos e, entrando no corpo de alguém, o torna triste, nostálgico”;calundus–“festas ou celebrações de origem ou carácter religioso, acompanhadas de canto, dança, batuque e que ger. representavam um pedido ou consulta a divindades ou entidades sobrenaturais”.Cf.dicionário Houaiss...,cit.,t.I,p.749.Estedicionárionãocontemplaadesignaçãode“calunduzeiro”masNeiLOPES,novo dicionário Banto do Brasil: contendo mais de 250 propostas etimológicas acolhidas pelo dicionário Houaiss,RiodeJaneiro,Pallas,2003,p.57[emlinha][Consult.29Jun.2010].Disponívelem<URL:http://books.google.pt/books?id=eTggc86q91UC&printsec=frontcover&dq=Novo+dicion%C3%A1rio+banto+do+Brasil&hl=pt-PT&ei=tNgpTJS1LYX6lweD3a2kBA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CC0q6AEwAA#v=onepage&q&f=false> apresentaa seguinte definição: calunduzeiro – “chefe de calundu”. Para este autor, o calundu é: “(2) denominação de antigos cultos afro-baianos. (3) local onde se ralizavam esses cultos. – [...] – do quimbundo kilundu, ancestral, alma de alguém que viveu em época remota, e que no caso da primeira acepção, entrando no corpo de uma pessoa, a torna irritadiça, mal-humorada, tristonha”.

riTos que separam, elos que unem 311

1. Quadro teórico: conceitos e abordagem

A abordagem que aqui desenvolvemos tem como ponto de partida asdenúnciasdequeforamalvonaInquisiçãoalgunsindivíduosdeorigemafricana,acusados de envolvimento em actividades associadas ao que genericamentepoderemos designar como práticas mágicas.3 Embora, em Portugal (e emEspanha),amagiafosseconsideradaumdelitomenor,tantopelosinquisidores,comopelasautoridadeseclesiásticas,nãotendosidoobjectoderepressãoidênticaàqueseverificounoutroslugaresdaEuropa,4aslistasdeautos-de-féapresentamosnomesdediversoscondenadosporestedelito,5algunsdosquaisnascidosemÁfricaoudescendentesdeafricanos,edestes,algunsprovenientesdoBispadodoRiodeJaneiro.Aqui,optámospordeixardeforaosprocessosparanosatermosunicamenteàsdenúnciascontidasnosCadernosdoPromotor:tratando-sedeumasociedadeemqueodomíniodaescritaeraaindaumprivilégiodepoucosemque,paragrandepartedos indivíduos,aexpressãooralera,apardogesto,aúnicaformadecomunicaçãodisponível,razãopelaqualnãopossuímostestemunhosdirectos da sua existência, do que pensavam e sentiam e de comoviviam, osdepoimentosreunidosnosCadernosdoPromotorapresentamavantagemdenospermitirchegarmaispertodarealidadequotidianadaspopulaçõesdoque,porexemplo,osprocessos,surgindocomoexpressãodetensõeseconflitos locais,opondoindivíduosegruposcominteressesdistintos.Recolhidos,muitasvezes,

3 Sobre as questões de terminologia relacionadas comas designaçõesusadaspara qualificar osagentesdamagia(eseuspoderes)emdiferentessociedades,verJoséPedroPAIVA,práticas e Crenças mágicas. o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740),Coimbra,LivrariaMinerva,1992,pp.24-30;eFranciscoBEThENCOURT,o imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em portugal no século XVi,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,2004,pp.45-54,que,talcomoJoséPedroPaiva,assinalaaexistênciadeumagrandefluidezdeconceitos,quevariavamnãosódeumaregiãoparaoutra,como tambémdentrodeumamesmapopulação, consoanteonível culturaldos seus integrantes.Alémdestes factores,outrosmaishaveriaaconsiderar,comoanaturezadasfontesescolhidaseaformaçãodopróprioinvestigador;daíanecessidade,expressapeloautor,deconfrontarostermosactuaiscomaquelesusadosnaépocamoderna,pordiferentesgruposeemdiferenteslugares.Nestetrabalho,seguimosapropostadeJoséPedroPaiva,usandoasdesignaçõesgenéricasdemágicosouagentesdamagia:este autor distingue aqueles que têm poderes benéficos (ex: curadores) dos que têm poderesmaléficos (bruxos ou feiticeiros) e ambivalentes (normalmente, designados como feiticeiros),reservando a designaçãodebruxospara aqueles emque se alude à existência deumpacto–declaradoounãopelospróprios–comoDemónio.

4 Francisco BEThENCOURT, o imaginário..., cit., p. 16; idem, “Portugal: A ScrupulousInquisition”, inBengtANKARLOOeGustavhENNINGSEN(eds.),early modern european Witchcraft,Oxford,ClarendonPress,1990,pp.403-422[separata];JoséPedroPAIVA,Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”,Lisboa,EditorialNotícias,2002(2.ª).

5 Ver,porexemplo,IsaíasdaRosaPEREIRA,“ProcessosdefeitiçariaedebruxarianaInquisiçãodePortugal”,inanais da academia portuguesa de História,2.ªsér.,vol.24,t.II(1977),pp.85-178[separata].

ANAMARGARIDASANTOSPEREIRA312

noâmbitodeumavisita(pastoralouinquisitorial);peloscomissáriosdoSantoOfício,aquemqualquerumpodiaapresentar-sevoluntariamenteparadeclararculpas próprias ou alheias; por intermédio de confessores ou missionários ederepresentantesda justiçaeclesiástica,osautoresdessesdepoimentosnãoseencontravamsujeitos–anãosernoscasosemqueosmesmoseramprestadosdirectamentenaMesa–aosconstrangimentosimpostospelacomparênciaperanteos inquisidores, sendo os seus testemunhos menos susceptíveis de distorção,porquemenosinfluenciadosporcondicionamentosemediaçõesexternas.6

A análise da documentação assentou em alguns conceitos-chave, queforneceram o suporte com base no qual interpretámos os depoimentos,evidenciandoesistematizandoasinformaçõesnelescontidas,aomesmotempoqueprocurávamosreconduzi-losaoambiente–culturalemental,mastambémsocial – em que foram produzidos e do qual são a expressão. Recorrendo acategoriasusadasnoâmbitodahistóriacultural,emqueseinsereestetrabalho,socorremo-nos,emprimeirolugar,danoçãodecultura popular ou de massas,que,aocontráriodacultura erudita ou letrada,vastamentedocumentadaatravésdostestemunhosescritosenãosóquefezchegaraténós,eraessencialmenteorale,comotal,nãodeixoutestemunhosdirectos,apartirdosquaisfossepossívelidentificaras suascaracterísticas, reconstituindoavisãopopulardomundonaépocamoderna.Assimsendo,aoestudaraculturapopular,ohistoriadorvê-senormalmente constrangido a fazê-lo de forma indirecta, através da mediação,maisoumenos“ruidosa”tendoemcontaomaioroumenorgraudedistorçõesproduzidas,daquelesquenaépocamodernapossuíamodomíniodaexpressãoescrita.7

DesenvolvidainicialmenteporRobertMandroueMikhailBakthin–cujasperspectivasnãosão,deresto,coincidentes–,anoçãodeculturapopularteve,depois,emRobertMuchembledumdosseus teorizadores.Paraeste,aculturapopularconstituiumsistema de sobrevivência,queteriapermitidodotarohomem

6 Francisco BEThENCOURT, “Les sources de l’Inquisition portugaise: évaluation critique etméthodes de recherche”, in actas do seminário internacional l’inquisizione romana nell’età moderna. archivi, problemi di método e nuove ricerche (Trieste, 18-20 maio, 1988),1991,p.365[separata].Referindo-seaosCadernosdoPromotor,FranciscoBethencourtafirma,naverdade,que:“par ce type de source on peut être plus proche de la réalité quotidienne vécue par les populations, car les déclarations sont produites lors d’une visite (pastorale ou inquisitoriale), où bien devant le commissaire de l’inquisition ou le délégué de la justice écclésiastique, surgissant dans le cadre de conflits au sein des communautés villageoises ou urbaines. en tout cas, les niveaux de médiation sont plus réduits et le procédé de conditionnement différent de celui qui est imposé par l’espace du tribunal.”

7 PeterBURKE,o mundo Como Teatro. estudos de antropologia Histórica,Lisboa,Difel,1992,pp.123-124,referindo-seàreligiosidadepopular,assinalaaimportânciadasfontesiconográficas(pintura e escultura)parao seuestudo, sugerindoqueadificuldade resultantedaausênciadetestemunhosescritosquenosdêemcontadosmodosdeviveredesentirdascamadaspopularespodeserassimparcialmentecontornada.

riTos que separam, elos que unem 313

demecanismosderesistência,queremrelaçãoaummeiomuitasvezeshostil,quelheimpunhaumsentimentopermanentedeinsegurança física–maissensível,poderíamosnósacrescentar,quandosetratavadeafrontaroNovoMundo,quesubmeteuohomemeuropeuaperigosdesconhecidos,comoriscodasuaprópriasobrevivência–,queremrelaçãoaosproblemasedesafiosdavidaemsociedade,geradorestambémelesdeinseguranças,estas de ordem psicológica. Osmedos,reais ou imaginários, impregnavamassimoquotidianodohomemmoderno–eramosseus“devotos companheiros”–dandoorigemaapreensõeseansiedades,quemuitasvezesseexprimiamdeformaviolenta.8Aspráticasecrençasmágicaseramparteintegrantedestarealidadee,aoofereceremapossibilidadedeintervirjunto das forças sobrenaturais, manipulando-as no sentido da concretizaçãode vontades ligadas aos interesses e necessidades do homem, constituíamuminstrumentoimportantenalutacontraahostilidadedomundo–naturalesocial–,contribuindodestaformaparaaneutralizaçãodomedo.9

SeguindodepertoumahipóteseanteriormenteformuladaporM.Bakthin,CarloGinzburg,noseuestudo,hojeincontornável,sobreasideiasdeummoleiroitaliano,daregiãodoFriul,executadoporordemdoSantoOfício,chamouaatençãoparaaexistênciadeinfluênciasrecíprocasentreaculturapopular,característicadas classes subalternas, e a cultura das elites, naturalmente preponderante,introduzindooconceitodecircularidade culturalparatraduziradinâmicaquelheestavasubjacente,ouseja,osintercâmbiosentrediferentesníveisdecultura.10Essaperspectivaessencialmentevertical,seriadepoiscomplementadaporoutra,detipohorizontal,desenvolvidaporLauradeMelloeSouza,aoestudar,porumlado,ainfluênciadademonologiaeuropeianaapreensãodoespaçoamericanoenorelacionamentocomosseushabitantese,poroutro,osreflexosdocontactocomoNovoMundoeasuaimportânciaparaacompreensãodademonologiaedacaçaàsbruxasnaEuropamoderna.11Estaperspectiva,tambémexplorada,entreoutros,porDanielaCalainho,aopesquisarsobrereligiosidadenegraeInquisiçãoemPortugal,12interessa-sepelosmecanismosde“difusão, justaposição e mescla de ingredientes culturais heterogêneos e, não raro, assincrônicos”13,assinalandooseupapelnaformaçãoesedimentaçãodoscomplexosculturais;talideiaforajá,

8 Sobreomedoe a suaprevalênciana sociedademoderna europeia, veja-se aobra clássicadeJeanDELUMEAU,História do medo no ocidente: 1300-1800. uma cidade sitiada,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1989.

9 RobertMUChEMBLED,popular Culture and elite Culture in France, 1400-1750,BatonRougeeLousiana,LouisianaStateUniversityPress,1985,especialmentepp.4-33e235-311.

10 CarloGINZBURG,o queijo e os Vermes. o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1987,pp.15-34.

11 LauradeMelloeSOUZA,inferno atlântico. demonologia e colonização, sécs. XVi-XViii,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1993,especialmentepp.13-57.

12 Daniela Buono CALAINhO, metrópole das mandingas. religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime,RiodeJaneiro,Garamond,2008.

13 DanielaBuonoCALAINhO,metrópole...,cit.,p.10.

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deresto,sugeridapelopróprioC.Ginzburgque,aoanalisarofenómenodosabatnaEuropamoderna, propôs o conceito de formação cultural de compromissoparadesignaroque,nasuaopinião,deveriaserentendidocomoumestereótipocompósitoou híbrido,noqual se teriadadoaconfluênciademitos,crençaseritos com origem em lugares distintos e épocas cronologicamente desfasadas,assinalandoanecessidadedeconjugarasduasperspectivas,sincrónicaediacrónica,afimdeapreenderamultiplicidadedefacetasquecompõemarealidade.14AoestudaraculturapopularnaEuropamoderna,PeterBurkechamariatambém,porseuturno,aatençãoparaasuadiversidadeinternaeparaaheterogeneidadeque,aseuver,acaracterizava.15

Assim concebida, a noção de circularidade cultural adquire, pois, maisdoqueumsentido:àsuadimensãosocial(emque,comovimos,asinfluênciasseprocessamtantonosentidovertical–do topoparaabaseedabaseparaotopo–,comohorizontal),somam-seainda,naverdade,asdimensõesespacialetemporal(esta,projectadanecessariamenteparaopassado).Algunsdosestudosque acabamos demencionarmostraram-nos já que esta chave interpretativa éparticularmenteeficazquandosetratadeacedermosarealidadesculturaisquesão,aumavez,complexasedinâmicas,eemcujaformaçãointervêmelementosheterogéneos,senãomesmoopostosentresi.

As reflexõesacercadahegemonia cultural,propostasnadécadade1930porAntonioGramsci,easobservaçõesaelasaduzidasporVittorioLanternari,aoassinalaraexistênciadedesigualdadesnadinâmicadasrelaçõesentreculturaseque,aocontactarementresi,umdospólosé,emgeral,dominanteeooutrodominado, sublinhando igualmente os aspectos negativos deste processo e osdanosdomesmodecorrentesparaaculturasubordinada,adquiremumarelevânciarenovadaquandoaplicadasacontextoscoloniaisecomotalforampornóstidasemconta.Asnoçõesdeaculturação edesculturação, amplamenteusadasporMelville herskovits, E. F. Frazier, Eugene Genovese, A. J. Raboteau, entreoutros,nosseusestudosdecarácteretnológicoouetno-históricosobreadifusãodoCristianismoentreaspopulaçõesnegrasdaAmérica,emaisrecentementeporhistoriadorescomoR.Muchembled,16 foramtambémobjectodeconsideração,assimcomoumaoutraaestasassociada:referimo-nosànoçãodetransculturação,usada para designar “as diferentes fases do processo de transição de uma(s) cultura(s) a outra, isto é, a desculturação ou perda de uma cultura antecedente e a neoculturação ou criação de novos fenómenos culturais”.17

14 CarloGINZBURG,História nocturna. uma decifração do sabat,Lisboa,Relógiod’Água,1995,pp.9-37.

15 PeterBURKE,Cultura popular na idade moderna,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1998.16 PeterBURKE,o mundo...,cit.,pp.89-91.17 Diana Luz CEBALLOS GóMEZ, Hechicería, Brujería y inquisición en el nuevo reino de

Granada: un duelo de imaginarios,Bogotá,UniversidadNacionaldeColombia,1994,p.15(atraduçãoénossa).

riTos que separam, elos que unem 315

Colocandoaênfasenaassimetriadasrelaçõesinter-culturais,estasnoçõesatribuemumpapel activoaopólodominante,quedesempenharia a funçãodedoador, remetendo porémo pólo dominado para uma posição essencialmentepassiva,adereceptordaculturadominante,muitasvezesimpostacomorecursoameioscoercivos.Esquemática,talinterpretaçãoignoraassim–ou,pelomenos,nãolhedáaimportânciaqueemnossoentendermerece–ocarácterrecíprocodasinfluências,esseirevirimplícitonanoçãodecircularidadecultural;damesmamaneira,falhatambémemcompreender–nestecaso,relativamenteaoespaçoamericano – a originalidade e a complexidade das formações culturais cujaemergênciaaísedá,apartirdoiníciodacolonização.M.herskovitzsublinhouaidentificaçãoentreosdeusesafricanoseossantoscatólicos,defendendoque,porintermédiodamesma,teriasidopossívelgarantirasobrevivência,aindaquesub-reptícia,dasreligiõesafricanasnoNovoMundo.Deacordocomestaconcepção,os escravos e seus descendentes viveriam, portanto, uma existência dupla,transitandodeumnívelde realidadeparaooutroaosabordasconveniências,segundoosseusprópriosdesígniosdeauto-preservação:àsuperfície,nomundodossenhores,católicosobedientes; rebeldesanimistasnomundonocturnodassenzalasedosajuntamentosclandestinos,emqueaosomdeatabaqueseoutrosinstrumentossecultuavamosdeusesafricanos,estabelecendoassimumaligaçãoritualcomaterradosancestrais,queteriapermitidoareorganizaçãodamemóriadilaceradapelotráfico,conferindoidentidadeecoesãoaogrupo.Osdoismundos,umdematrizeuropeia,impostopelocolonizador,eooutroafricano,recebidoemherançadasgeraçõesantecedentes,sobrepunham-se,portanto,navivênciadoscativosmasnãosetocavam,permanecendoostensivamentedecostasvoltadas.

As consequências devastadoras do tráfico foram acentuadas por diversosautores,comoE.F.Frazier,emcujaopiniãooCristianismoteriadesempenhadoumpapeldeterminante,aopreencherovazioculturalresultantedodesenraizamentoproduzidopelotransporteparaoNovoMundo,fornecendoassimumanovabasedecoesãosocial.E.Genoveseassinalou,porseulado,osaspectospolíticosdareligiãoeopapeldoCristianismocomoveículoderesistênciaespiritual.18

AdrianaMayaRestreporecorreutambémàteoria da resistênciaparaestudaroscasosdebruxariaenvolvendoescravosdeorigemafricananoNovoReinodeGranada durante o séc.XVII.Na opinião da autora, a permanência de práticasmágicasemágico-curativasafricanasnosterritóriosadministradospelosespanhóisnoNovoMundocorresponderiaauma formadecimarronage cultural,ou seja,aumoutromecanismode lutacontraocativeiro,pormeiodoqualosescravosteriampodidopreservarasuahumanidade,reconstituindoespaçosdeintercâmbiopróprios,àmargemdoslimitesimpostospelasociedadeescravista.Osajuntamentosoureuniões,muitasvezesmencionadosnadocumentaçãodaépoca,teriamassimumcarácterde“reagrupamento social, político e cultural cujo objectivo essencial

18 PeterBURKE,o mundo...,cit.,pp.90-91.

ANAMARGARIDASANTOSPEREIRA316

era recriar âmbitos à margem da espacialidade do amo para reconstruir circuitos de comunicação entre os escravizados”, permitindonão só a repersonalização,comotambémaressocializaçãodosmesmos,ealutacontraosprocessoscorrelatosdedesumanizaçãoecoisificação,iniciadosnomomentodacaptura.19

Aoreferir-seàsnovasidentidadesculturaissurgidascombasenapermanênciadeumavisão religiosa do mundo edaquiloaquechamaamemória corporal africana,A.MayaRestreposalientatambém,poroutrolado,opapeldastradiçõeseuropeiaseindígenas:submetidasaumprocessoderessignificação,estasteriam,naverdade,contribuídoparaofortalecimentodasidentidadesemergentesnoseiodo grupo formado pelos africanos e seus descendentes.20 Tal concepção, queremeteumavezmaisparaanoçãodecircularidadecultural,permitepensarasculturasdoNovoMundocomoespecificamenteamericanas,ouseja,originais;comorealidadescomplexasemultifacetadas,quesedesenvolveramapartirdoscontributos fornecidospelos europeusmas tambémpeloshabitantes indígenascomosquaisestesaíentraramemcontactoe,finalmente,peloelementonegro,levadoàforçaparaocontinenteamericano.

Destemodo,pensamosqueoconceitodeaculturação,relativamenteaoqualmanifestámos já algumas objecções, pode ser favoravelmente substituído poroutro,usadonoâmbitodaAntropologia,paraexpressarasdinâmicasculturaisproduzidas pela colonização europeia daAmérica. Referimo-nos ao conceitode sincretismo que, embora tido por alguns como etnocêntrico (o mesmo sepassa, aliás, comodemiscigenação, que constitui umdos elementos centraisdopensamento“freyreano”apropósitodasrelaçõesraciaisnoBrasilcolonial),exprime,naopiniãodePierreSanchis,umfenómenocomumatodososgruposhumanos em situações de contacto, a saber: “a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”.Assimsendo,osincretismopoderiaserentendidocomoo“processo, polimorfo e causador em múltiplas e imprevistas dimensões, que consiste na percepção – ou na construção – coletiva de homologias de relação entre o universo próprio e o universo do outro em contato conosco, percepção que contribui para desencadear transformações no universo próprio, sejam elas em direção ao reforço ou ao enfraquecimento dos paralelismos e/ou das semelhanças. uma forma de constante redefinição da identidade social” que, através da reinterpretação dos dadosculturais,possibilitariaa“convivência não-explosiva de universos abstratamente contraditórios”.21

19 Luz Adriana MAYA RESTREPO, “«Brujería» y reconstruccion etnica de los esclavos delnuevoreinodeGranada,sigloXVII”,inAAVV,Geografía Humana de Colombia. vol.VI- los afrocolombianos, Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura hispánica, 1998, pp. 191-215 (atraduçãoénossa).

20 LuzAdrianaMAYARESTREPO,“«Brujería»...”,cit.,p.200.21 PierreSANChIS,“Astramassincréticasdahistória.Sincretismoemodernidadenoespaçoluso-

-brasileiro,”revista Brasileira de Ciências sociais,10,n.º28 (Junho1995),pp.123-138.Na

riTos que separam, elos que unem 317

Estaconcepçãoaproxima-se,portanto,dadeinterpenetração de civilizações,definidapelosociólogoRogerBastide–explicitamentereferidoporP.Sanchis–aoestudarasreligiõesafricanasnoBrasil.22Poroutrolado,enquantoR.Bastidechamavaaatençãoparaanecessidadedeencararosencontrosdecivilizaçõesatravésdeuma“sociologia em profundidade”, referindo-seàs“dialécticas de níveis” e ao “condicionamento social da religião”23, P. Sanchis assinala que,namaioriadasvezes,“o processo sincrético não funciona senão num sentido pré-orientado e/ou pré-constrangido por relações de poder”, reconhecendoporémqueodominador tambémpode ser atraídopelosvaloresdodominado,tidoscomomaispróximosdomundonatural, invertendo-seassima lógicadadominação.24P.Burke,aodebruçar-sesobreareligiosidadepopularnaEuropamoderna, sublinha que existe uma selecção diferencial de características dacultura doadora por parte da cultura receptora, que desta forma mantém umacertamargemdeliberdade,propondoousodotermo“negociação”paradesignarastransformaçõessofridaspelareligiãooficial,nosentidodasua“adaptação”ou“reinterpretação”paracorresponderàsnecessidadesdopovo.Chamandoaatençãoparaoscuidadosaternatransposiçãodoconceitodeaculturaçãoparaos contextos extra-europeus, acrescenta aliásque“seria possível, sem dúvida, discutir situações asiáticas, africanas, ou americanas em termos deste modelo de negociação”;nasuaopinião,aaculturaçãocorresponderiaafasesmaisrecuadasdocontactoentreculturase anegociação–uma ideia,de resto, já contidananoçãodeformaçãoculturaldecompromisso–afasesposteriores,caracterizadaspelaexistênciadeummaiorconhecimentomútuo.Seriaassim,destamaneira,possível“historicizar o processo de contacto entre culturas”,ouseja,encarara relaçãoentreduas culturas comoum fenómenonãoestático,masdinâmico,sujeitoamutaçõesaolongodotempo.25

2. Feiticeiros, adivinhadores e curandeiros de origem africana no Rio de Janeiro do séc. XVIII

Ospovosafricanoscomosquaisoseuropeusentraramemcontactoatravésda Expansão, apesar de pertencerem a etnias diferentes, cada uma com a suacultura própria, tinham entre si em comumo facto de, nas respectivas visões

opiniãodoautor,oBrasilcaracteriza-seporumsincretismoque“ad-vem”,namedidaemqueassentanacomunicaçãoentre trêspovosdedesenraizados,enquantoemPortugalpoderíamosencontrarumsincretismoque“pro-vem”,i.e.assentenareactualizaçãodevaloresdopassado,noassumirdeumaherançaculturalprogressivamentemaisrica.

22 Roger BASTIDE, as religiões africanas no Brasil. Contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações,2vols.,SãoPaulo,Pioneira,1971.

23 RogerBASTIDE,as religiões...,cit.,vol.1,p.29.24 PierreSANChIS,“Astramas...”,cit.,p.125-127.25 PeterBURKE,o mundo...,cit.,pp.92-94e97.

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do mundo, a religião desempenhar um papel central.A convicção segundo aqualosagradoarticulaomundodosvivoseassuaspráticasquotidianascomomundodosespíritosequeestespodeminteragircomosseresquehabitamomundoterrenoconstituíam,defacto,doisdospilaressobreosquaisassentavaareligiosidadeafricana,igualmentecaracterizadapelopoderatribuídoàpalavra,que se considerava ter um carácter sagrado, desempenhando um papel activocomoagentedamagia;pelaimportânciaquenelasedavaaocultodosmortos;eporumaconcepçãointegradadoreal,emqueohomemeomundoconstituíamumaunidade,formadaporespíritosquehabitavamtantoomundodosvivoscomoodosmortos,eosseresdomundonaturaleramvistoscomoseresinteractuantes,quefacilitavamouserviamdeveículoaodiálogocomosantepassados.26

A sobrevivência desta visão religiosa do mundo, levada consigo pelosescravosparaoNovoMundo,éatestadapornumerososexemplos, tendotido,aliás,nodizerdeA.MayaRestrepo,“um papel preponderante na reconstrução [assente em] novos suportes da memória histórico-cultural escrava e liberta”em território americano.27 Veja-se, por exemplo, o caso de Joana JaquatingaouJacutinga,pretaforra,naturaldeMassangano,queem1745foidenunciadaà Inquisição por se juntar comoutros negros aoSábado à noite, presidindo acerimónias que duravam até de manhã, no decurso das quais eram servidos“grandes banquetes”e,aosomdeatabaques,sefaziam“dansas desonestas e couzas indesentes”,comoerauntarem-se“com varias tintas da terra dos pretos”eporem-seadançar,“[perdendo] a figura de gente humana ficando com fforsas de mais de des [?] hommes pegando num frango vivo o [despadasavam] com os dentes e lhe [bebiam] o sangue cru e se [huntavam] com o dito sangue fazendo outras muitas couzas abuminaveis”quepodiam“[meter] hurror”aquemasouvia,conformeaexpressãousadapelodenunciante,mas,sobaperspectivadosseusprotagonistas,tinhamafunçãoimportantíssimadepermitirorestabelecimentodeafinidadesétnicaspulverizadaspelotráficoedassolidariedadesaelasinerentes,permitindoigualmentearecomposiçãodamemóriae,atravésdela,apreservaçãodaidentidade,condiçãofundamentalparaqueoshomenspudessemcontinuarapensar-secomotal,nointeriordeumsistemaqueostratavacomomercadoriaviva.28

Adocumentaçãoinquisitorialdá-noscontadacontradiçãoinsanávelentreduasconcepçõesdistintasdarealidade:deumlado,osdepoentes,quepossuíamumavisãomágicadomundo, assentenacontinuidadeentreomundo real eomundodofantásticoedomaravilhoso,naexistênciadeumuniversopovoadode espíritos com capacidade para influenciar a cada momento a vida doshomens,acreditandoassimnaeficáciadaspráticasmágicas,cujoconhecimento

26 LuzAdrianaMAYARESTREPO,“«Brujería»...”,cit.,pp.193e197-199.27 LuzAdrianaMAYARESTREPO,“«Brujería»...”,cit.,p.193.28 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.298,fl.13-13v.

riTos que separam, elos que unem 319

seriaadquiridoporherançaouemvirtudedeaprendizagem;aestaconcepção,opunha-seadosinquisidores,representantesdaeliteeclesiásticaeguardiãesporexcelênciadaortodoxiaemmatériadeFé,queprofessavamacrençanaseparaçãoentreomundoterreno,doshomens,eomundoespiritual,ondeunsencontrariamasalvaçãoeoutrosacondenaçãoeternadasuaalma,interpretandoaspráticasalheiasaoritualdaIgrejaeaosprincípiosdoCatolicismocomomanifestaçõesdiabólicas,emrelaçãoàsquaisnãodeveriahavercontemplações.Osdepoimentosrelativos a cerimónias e práticasmais oumenos estranhas protagonizadas porindivíduos de origem africana provocavam naturalmente a perplexidade dosinquisidores;asuaatitudeperanteestesrelatosnãodiferia,porém,noessencialda que lhes era suscitada pelas acusações demagia envolvendo elementos deorigemeuropeia.UnseoutroseramtidoscomoagentesdoDemónio,segundoomodelodualistaemqueassentavaavisãocatólicadomundo:nestaconcepção,existe, na verdade, ummundo superior, dominadopelas forças dobem, e ummundo inferior,dominadopelas forçasdomal;omundo terreno,cujaposiçãoéintermédia,constituiumpalcoprivilegiadodedisputaentreessasduasforçasopostas,razãopelaqualohomemnelevivesobameaçaconstante,umavezqueasuanaturezaoinclinafatalmenteaomal;osmembrosdaIgrejaactuamcomodelegadosdeDeusnaTerramasexistem tambémrepresentantesdoDemónio,quecomelesbatalhampelaconquistadasalmas,entreosquaisse incluemosagentesdamagia,alémdosadoradoresdefalsosdeuses.

Estavisãoeclesiástica,assentenomodelodemonológico,tinhacorrespon-dêncianavisãodaelitelaica,nomeadamentedaelitejurídica,que,comoassinalaF.BethencourtaochamaraatençãoparaatipificaçãosubjacenteàsOrdenaçõesdoReino,transformouosagentesdamagia,enquanto“desclassificados religiosos”,em“desclassificados sociais”.Avisãocomumàmaioriadoshomensera,porém,distinta:algunsdosestudospornósmencionadoseoutros,acujarealizaçãoseassistiunasúltimasdécadas,referiram-sejáàstransfiguraçõessofridaspelamen-sagemdaIgrejanavivênciadaspopulações,queprofessavamumCatolicismomaisoumenossuperficial,assentenarepetiçãodefórmulaseritos,adaptadoàssuasnecessidadeseeivadodepaganismo;eF.Bethencourt,aocaracterizaraEu-ropameridional,refere-seaum“universo saturado de magia[emque]existem numerosas referências a um cotidiano marcado por procedimentos de feitiçaria, adivinhação e curandeirice que atravessam todas as camadas sociais”,porque,comotambémfazquestãodeassinalar,existeuma“contaminação constante de crenças entre diferentes níveis de cultura, envolvidos em práticas mágicas para-lelas ou coincidentes.”29

Embora oriundos de contextos culturais distintos, os africanos e seusdescendentesnoBrasilpossuíamumavisãodomundoquetinha,portanto,muitosaspectosemcomumcomadoshabitantesdeorigemeuropeia.Essefactodeveria

29 FranciscoBEThENCOURT,o imaginário...,cit.,pp.9-18e41-44.

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permitirultrapassar,pelomenosatécertoponto,osconstrangimentosimpostospelarelaçãodominante-dominado,promovendoainteracçãoentreosdoisgruposeodesenvolvimentodetrocasassentesempreocupaçõespartilhadasecrençasemgrandemedidaconvergentes.

Ostestemunhosdaépocadão-noscontadotemorcomumamuitossenhores,quesempredesconfiadosemrelaçãoàobediênciadamassaservil,cujosefectivosultrapassavam em muito o dos colonos de origem europeia, castigavam, porvezes severíssimamente,aqueles sobosquais recaíamsuspeitasdepraticaremfeitiços,limitando-senoutroscasosavendê-losparalugaresdistantes,ondenãotivessechegadoafamadosseuspoderes.Taisatitudesmostram-nosque,emborainfluenciadosounãopelomodelodemonológicopropagadopelas elites, estessenhoresacreditavamnascapacidadesocultasdosfeiticeiroseque,atravésdassuaspráticas–comousemoconcursodoDemónio–estespoderiamcausar-lhesdano,pondoemriscoaintegridadedassuaspessoasebens.ManuelCabral,negrodogentiodaGuiné,eTeresaMina,suamulher,forampresosem1739,naviladeItú,pertencenteàcapitaniadeSãoPaulo,edenunciadosàjustiçaeclesiástica“pello crime de malefício”, do qual, dizia-se,“estão notavelmente infamados com indicios certos de que o fazem mediante o pacto do demonio”.Acusadosderesponsabilidadenamortedetrêsescravos,confessaramoseucrime–TeresaMinadeclarouquemataraum,“polla chamar cada manhãm para a doutrina”;outro,“por huas razoens, que teve com ella”;eoterceiro,“sem causa mais que para effeito de não ter zelos de sua mulher Firmiana”–confessandoigualmenteque tinham usado de magia para provocar padecimentos noutras pessoas,pertencentesàfamíliadeseussenhores.Doisanosmaistarde,ojuizdeforadeItúescreveria,noentanto,aosinquisidores,parainformarqueosdoisacusadoseram,afinal,inocentes,“porque supposto os tais confeçassem serem feiticeiros, e que forão a cauza das mortes, que em caza de seus senhores tinhão acontecido com seus malleficios; fizerao as tais confiçoens com medo tendo os me<ti>dos em prizoens rigorozas com correntes, ao pescoço por spacio de mais de 15 dias dando lhe vários tratos, tormentos, e castigos, pingando os com lacre, e azeite por todo o corpo dizendo lhe, que emquanto não confeçassem o serem feiticeiros haviao de continuar lhe com os tais tratos.”30

Muitoshavia,porém,quesesocorriamdefeiticeiroseoutrosagentesmágicosdeorigemafricana,embuscadeumasoluçãoparaosproblemasqueosafligiam;os elementos colhidos na documentaçãomostram-nos que a sua clientela nãoeraformadaapenasporelementospertencentesàpopulaçãonegramastambém,emboaparte,poreuropeus.ManuelAntunesMascarenhas,moradoremNossaSenhoradaConceiçãodoRiodasPedras,nacomarcadoSabará,pertencenteàcapitaniadeMinasGerais,encontrava-sedoenteiaparaquatroanos,“acestido

30 ANTT,TSO,IL,CorrespondênciaExpedida,Liv.22,fl.242v-243;Promotor,Liv.295,fl.155;Liv.303,fl.209ve221-223.

riTos que separam, elos que unem 321

de varios remedos, que em todo este tempo se [lhe] aplicarão sem efeito algum e dezemganado já dos professorez da medecina”,quando,emdesespero,resolveumandarchamarFranciscoAcheouAxé,negrooriundodaCostadaMina,“por [lhe] dizerem que o dito negro hera curador e que tinha feito alguas curas [boas]”.Nãofoiissooqueaconteceudestavez,porque,apósalgumassessões,odoenteviu-seprostradonacama,razãoessapelaqualeleesuamulherterãodecididodenunciarocuradoraoTribunaldoSantoOfício,porintermédiodeumcomissário, a quem se justificaram, dizendo que o faziam “como verdadeiros christãos; e zeladores da honrra de deus, e também aconselhados, e obrigados de [seus] confessores”.31

AntónioLeitedaSilvaesuamulher,moradoresnapassagemdeCongonhasdoCampo, tambémemMinasGerais, foramdenunciadospor teremmandadobuscarJoanaJaquatingaouJacuntinga,acimareferida,parafazeradivinhações;32otenenteFranciscoAntunesdeAguiar,moradornaBarradoBrumado,suspeitandoqueasdoençasdasquaissequeixavamosseusescravosefamília“podião nascer de maleficio”,recorreuaManuelCata,negrodenaçãoSabarú,escravodeumapretaforra,oquallheforainculcadoporManuelCasadoJácome,moradornasCatasAltas;33 e Páscoa Rodrigues, parda forra, moradora no Curral d’El Rei,igualmenteemMinasGerais,foidenunciadapor“[andar curando de feytiços, e fazendo danças de callanduzes”, informando-se que “a todos os que cura, brancos, e pretos, lhe tomão a benção de joelhos, bejando le os pés, e a mão na palma, e nas costas, e que as pessoas, que assim o não fazem os castiga”.34

Controlar o destino, desvendar o oculto, perceber e manipular o corpo,inclinarossentimentoseasvontades35erampreocupaçõesessenciaisaohomem,aqueaspráticasaquimencionadas–eaosexemplosqueapontámos,poderíamosaliás juntar muitos outros, protagonizados por indivíduos de origem africana– procuravam dar resposta; ao fazê-lo, contribuíram para aproximar entre sios diferentes grupos que compunham a sociedade colonial, em relações quese desenvolviamno âmbito e ao ritmodos desafios colocados pela existênciaquotidiana,maisoumenosàreveliadospoderesinstituídosque,muitasvezes,serevelavam,deresto,incapazesparasolucionareficazmenteosproblemasqueafligiamoshomens,condicionando-osnoseudia-a-dia.36OcasodeAnaMaria

31 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.300,fl.52-58v.32 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.298,fl.13-13v.33 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.295,fl.12-17v;Liv.299,fl.25-38.34 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.295,fl.28.35 FranciscoBEThENCOURT,o imaginário...,cit.,p.10.36 Aoreferir-seàpreocupaçãodaIgrejaemmanteromonopóliodaintermediaçãocomodivinoe

oseu“poder espiritual”sobreosindivíduos,FranciscoBEThENCOURT,“Portugal...”,cit.,pp.409-410,assinalaasvantagensdequebeneficiavamosagentesreligiosos“legítimos”(i.e.legais)relativamenteaosagentesdamagia:“The religious field was polarized, as we can see, by the Catholic Church and the inquisition. Together they held a monopoly on the means of reproduction

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deSantoAntónio,moradoranoRiode Janeiro, é, aeste respeito,elucidativo:tendoasuafilhadoente,acometidaporumespíritoinfernalhaviamaisdequatroanos,evendoque“le faltavão com a caridade da santa igerja”,ondenãoteriaencontrado o auxílio de que necessitava, consentiu que lhe fossem aplicadossuadouros, cuja preparação foi feita por Luís ou Inácio, preto forro, que nodecursodassessõesfoiassistidoporJosédosSantose,numadasvezes,tambémporJoãoAntóniodeVargas,estesdoisbrancos;ajovemacabaria,noentanto,porfalecereasuamãe,roídapeloremorso,foiapresentar-seaumdoscomissárioslocaisdoSantoOfício,peranteoqualdenunciouo referidonegro,declarandoporémque“nihum dos brancos comcorerão para mal da [sua] filha senão por caridade i do dela”.37

Casos como este, de colaboração efectiva entre elementos de origemafricanaeeuropeusparaarealizaçãodepráticasmágicas,nãoseencontramcommuitafrequêncianadocumentaçãomas,noséc.XVIII,tantoosprocedimentos

of the population’s religious habitus, that is, on the means of control over collective beliefs and behaviours, relegating religious self-consumption and alternative practices of manipulation of supernatural powers to a minor and peripheral position. under these circumstances, agents of magic could not establish a truly competitive relationship with legitimate religious agents: whilst the former had no institutional support, and worked as “small independent entrepreneurs” who established among themselves an informal hierarchy of competence based on personal charisma and voluntary exchange of information, the latter were expert members of a complex salvation-enterprise with a specific institutional charisma and a clearly established internal organization. Furthermore, the moral community of believers of the same faith, which characterizes any church, adjusting religious supply to its corresponding demand, was absent from the magician’s day-to-day activity. The magician established a relationship with his client similar to that of a physician with his patient. lastly, priests guided their activity by dogmas and rites described in the written tradition of the church authorities, a fact which gave greater solidity to doctrine and ceremonies of faith, whilst, in most cases, magicians worked with rites which were established by oral tradition and which, due to their flexibility, could be adapted to new circumstances but could hardly resist confrontation with symbolic systems supported by the written word.”

Noentanto,ocaráctereminentementepráticoeutilitáriodaacçãodesenvolvidapelosagentesdamagia assegurava-lhesumpapel importantena sociedade, tornandoo recursoaosmesmosindispensávelporpartedepopulaçõesacimadetudodominadasporpreocupaçõesdecarácterimediato, ligadas à sua própria sobrevivência e à gestão da vida corrente, nas suas distintasvertentes:“The preferential scope of action is one of the fundamental factors that differentiated magicians and priests, although there were some overlapping areas. agents of magic moved within a utilitarian level of religious belief, characterized by the formula doutdes, where issues such as health, love, money, and social promotion were the main concern, whereas clergymen were situated on a higher level of belief based on aloofness from the most immediate material interests, on distance from bodily needs, and on the search for salvation of the soul by means of acts of faith. in fact, the whole ethical system of Christianity rests on this last assumption, and tries to model collective behaviour according to the utopia of achievement of Heaven after physical death, thus considering spiritual rescue from the devil’s rule on earth to be a central task. This eschatological ethic was absent from the magician’s practical sense. They used God and the devil indiscriminately in their daily procedures.”

37 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.319,fl.336v-338,342v.

riTos que separam, elos que unem 323

adoptados no decurso das sessões por feiticeiros, adivinhadores e curandeirosdeorigemafricana,comoosmateriaisporsiutilizados,revelam-sejá,emtodaasuadiversidadeeriqueza,comoumprodutodosincretismoresultantededoisséculos de intercâmbios e convivência mútua. Disso mesmo constitui provamais do evidente a apropriação de símbolos e ritos próprios do Cristianismoe a sua utilização no âmbito da magia africana, que corresponde afinal a umreconhecimento,porpartedosseusagentes,dasacralidadeaelesintrínseca:tidoscomodotadosdepoderesocultos,ossímboloscristãoseramassimnaturalmenteabsorvidospelouniversodamagia,doqualpassavamafazerparte,reconvertidoseminstrumentodecomunicaçãocomosespíritos,factoesse,deresto,tambémpresente nos relatos acerca das práticas realizadas por bruxos e feiticeiros naEuropa moderna.38 Para preparar os suadouros com que pretendia expulsarodemóniodocorpoda suapaciente,onegroaqueatrásnos referimos,usoudiversasplantas(que,segundosedizia,eramcolhidaspelosescravosdoprópriobispo)mastambém,entreoutrascoisas,águabentaeumarelíquiadosantolenho,fazendocruzes,enquantooseucolaboradoraçoitavaajovempossuídacomumcordãodeSãoFrancisco,demodoaarrancardelaoespíritoqueahabitava.39PedroMina,naturaldaGuinéemoradoremItú,nacapitaniadeSãoPaulo,ondeeraescravodeJordãohomemAlbernaz, tinhafamaantigadefeiticeiro,sobreele recaindoasuspeitade terprovocadoadoençaemortedealgunsdosseusparceiros,escravosdomesmosenhor; inspeccionando-seosseuspertencentes,encontraram-se-lhediversascoisasqueguardavadentrodeumacaixinha,entreasquais,pós,ocordãoumbilicaldeumrecém-nascido,raízeseumpedaçodepedradeara.40JoãoMartins,pardo,filhodeumpadre,naturaldeSãoPauloemoradornafreguesiadeSãoJosédoTocantins,emGoiás,foidenunciadopelasuaprópriaesposa,entreoutrascoisas,porqueteriafeitoumamandinganaqualusara“meya pataca de agoaardente da terra, e inxofre, e hua cabessa de alhoz ao que ajuntou pimenta do reyno e polvra, e tudo em hum prato de estanho fundo, e logo formou de capim sape huma cruz, e lhe pos fogo nas quatro pontas, e com o fogo da dita cruz acendeo a agoaardente e mais ma[teri]aes, e lancou dentro hum crucifixo pequenino de latão ao tempo que os ditos materiaes ardiam, e o dito prato dos materiaes estava cercado de quatro facas de ponta pregadas no cham, e fazendo deligencia asoprando apagou o fogo, e tirou o crucifixo e foi pendura llo no fumeyro”; as suas acções foram presenciadas por outras três pessoas que, aoveremoquefaziacomocrucifixo,“se admirarão, e se desagradarão gretando = nome de Jesus, nome de Jesus”,masJoãoMartins,irritado,disse-lhesque“se não querião ver se retirassem, e que acabada aquella obra virião”.41

38 FranciscoBEThENCOURT,o imaginário...,cit.,pp.69-70.39 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.319,fl.336v-338,342v.40 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.296,fl.270-271.41 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.298,fl.7-10.

ANAMARGARIDASANTOSPEREIRA324

As bolsas demandinga, africanas pelo nome e pelosmateriais que eramusadosnasuaconfecção,constituemumexemploparticularmenteevidentedosincretismoproduzidopelocontactodeculturasnoâmbitodoespaçoatlântico:usadaspelospovosislamizadosdaregiãoocidentaldeÁfrica,tinhamevidentesafinidadescomosamuletosepatuásdeorigemeuropeia;comodesenvolvimentoda Expansão, tornaram-se muito populares no Brasil e noutros espaços doimpério,incluindoaprópriametrópole,passandoaapresentarentreoselementosquefaziampartedoseuconteúdo,porexemplo,pedaçosdepedradeara,papéiscomoraçõesaossantoscatólicos,raízesefolhasdeproveniênciadiversaeatéprodutoscorporais,comocabeloseunhas.Trazidasjuntoaocorpooucosturadasnaprópria roupa, era supostoprotegeremo seuportador, quer contradoençaseoutrosperigosnaturais,quercontraosataques,fortuitosounão,deladrõeseinimigos; tambémeramusadasparadarsorteeatrairparceiros,especialmentemulheres. Acreditava-se também, por outro lado, que algumas acções, comobenzê-las,defumá-lascomincensoeoutraservasoucolocá-lasdebaixodapedrade ara numa igreja para em cima delas serem rezadas missas, torná-las-iammaisforteseeficazes.Rosa,negraMina,escravadeumferreiro,foipresaemMinasGeraisedenunciadaaoSantoOfícioporlheteremsidoencontradasumasbolsas,queusavaàcinta,nasquais“se achou em papel hua custodia pintada com tinta preta, e varia escriptura manu escrita [...] e que em outro papel se achara pintada hua columna com hum gallo sobre ella, e duas escadas, tambem com varia escriptura”.42António,pretodenaçãoBenguela,foidenunciadoemSantosporumdostrêssenhoresquedeleeramproprietários,porque,segundoafirmavanacartaqueenviouaumcomissáriodoSantoOfício, tinha“noticia e quaze certeza”queoreferidoescravofizera“pato com o demonio e lhe foi achado varias bolsas que infiri[a] ser de mandinga e outras mais invensoins”.43ManueldosAnjos,negrodaGuiné,escravodeAntónioFerraz,foidenunciadoemItúporPedro,seuparceiro,“porquanto o denunciado dera a elle denunciante mandinga em hum sacco, em que estavão alguas raizes de pao, e outras couzas, como hum ressito [?] pequeno que as crianças trazem ao pescoço, hua pelle do peyxe jacarê, hum pedaçinho de pedra de corisco; e ensinando o lhe disse: que fallasse com o diabo para lhe obrar a mandinga, a qual mandinga ou sacco trazia o denunciado ao pescoço antes de o dar ao denunciante, de que este não uzara, porque logo lhe tornara a entregar”;alémdisso,depoisdeterpassadopara apossedo referido senhor,“se jactava em como todas as vezes que era prezo sahya da cadea, e que quebrava os ferros por virtude de sua mandinga”.44FranciscoPais deMacedo, pardo, natural emorador doRio de Janeiro, ondeganhavaavidacomoalfaiate,foidenunciadoemLisboaporSilvestreJosé,pardo

42 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.290,fl.121.43 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.294,fl.265.44 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.292,fl.12-12v.

riTos que separam, elos que unem 325

forro,tambémalfaiate,entreoutrascoisas,porlheouvirdizerquenãotinhamedodefacasporque“tinha mandingas”.45

Como estes, muitos outros, brancos, negros e mulatos, acreditavam nospoderesmágicosdasbolsasdemandinga,queerammesmoobjectodetransacçãocomercial, em operações clandestinas que em larga medida ignoravam –ultrapassando-as–quaisquerbarreirasétnicaseculturais.46

Conclusão:

Temidosporuns, requisitadosporoutros,osmágicosdeorigemafricanadesempenharam papéis distintos e até mesmo opostos na sociedade colonialbrasileira:atraindoadesconfiançadossenhoresedeoutroselementosdeorigemeuropeia,nomeadamentedosrepresentantesdaIgreja,cujodiscursoproclamavaasuaafinidadecomoDemónio,corroborandoassimomedo,participaramdaconflitualidadeinerenteaumasociedadedetipoescravista,acentuando-a;mas,poroutrolado,foramintermediáriosnarelaçãodohomemcomasforçasocultasdanatureza,que se julgava responsáveispelas incidênciasdavidaquotidiana,integrandonassuaspráticaselementosdeorigemdistinta,tantoeuropeuscomoindígenas. Nessa qualidade, actuaram também como mediadores culturais,criando canais de comunicação que permitiram o desenvolvimento das trocasinterétnicas,promovendoumaconvivênciamaisoumenospacíficaentreostrêsgruposquecompunhamasociedade.

Alémdezelarempelamanutençãodeumequilíbriosemprefrágilentreomundodoshomenseomundodosespíritos,feiticeiros,adivinhadoresecurandeirostiverampois tambéma seucargoanãomenosdifícil tarefadenegociaçãodapazsocial,noâmbitodeumasociedadeassentenarelaçãodominante-dominado,emqueaagressividadepairavalatente,ameaçandoeclodiraqualqueraltura,emmanifestaçõesmaisoumenosgeneralizadaseviolentas,massempreinquietantes,pelopotencialdedesagregaçãoquenelassecontinha.

45 ANTT,TSO,IL,Promotor,Liv.302,fl.224-224v.46 Daniela Buono CALAINhO, metrópole..., cit., pp. 95-100; Vanicléia Silva SANTOS, as

Bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XViii,SãoPaulo,UniversidadedeSãoPaulo–FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciashumanas(ProgramadePós-GraduaçãoemhistóriaSocial),2008.

ANAMARGARIDASANTOSPEREIRA326

FoNTes

ArquivoNacionaldaTorredoTombo(ANTT)TribunaldoSantoOfício(TSO) InquisiçãodeLisboa(IL) CorrespondênciaExpedida:Liv.22 Promotor:Liv.290,292,294,295,296,298,299,300,302,303,319

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TIMORLESTETAMÉNÉÁFRICA 329

TIMORLESTETAMÉNÉÁFRICAONACEMENTODUNhANACIóNNOCONTEXTO

SIMBóLICODALUSOFONÍA

alberto pena*

1. Introducción: por qué Timor leste?

EscribirsobreTimorLestenunlibrosobreÁfricapoderesultarincoherenteou inoportuno se non se explica debidamente o porqué desta contribución.Arespostaestáimplícitadentrodunhapreguntamoisimple:porquéTimorOrientalnonconseguiuconvertirsenunhanación libree independenteómesmo tempoqueofixerontódolosterritoriosafricanosqueformaronpartedoimperiocolonialportuguésequeagoraformanpartedouniversosimbólicodalusofonía?Arespostaétaménmoisinxela:porqueTimorLesteseguiusendounhacoloniaquecambioudepotenciacolonial,peroamaioríadosseushabitantescontinuaronloitandoporconseguirunobxectivoqueAngola,Mozambique,CaboVerde,Guiné-BissaueSantoToméePríncipeacadaronen1975.

hai moitos paralelismos e tamén algunhas diferencias entre as naciónsafricanasde linguaportuguesaeTimorLeste.Aindaqueé importante, talvezorelevantenonésóquecompartanomesmouniversosimbólicodalusofonía,senónabúsquedaeaforxadunhaidentidadepropiaapartirdunpasadocomúnqueosvencellaaPortugaldurantevariosséculos,nosqueoimaxinariosemánticodalinguaeosvalorestrasnsmitidosentreasxeneraciónsdeixaronunhapegadaindeleblenaculturaafricanaetimorense.Xaquelogo,cremosqueénecesario

* FacultadedeCiênciasSociaisedaComunicação.UniversidadedeVigo-CampusdePontevedra.

ALBERTOPENA330

non prescindir deTimor Leste e da sua sociedade para poder comprender entodaasúadimensiónarealidadedapartedeÁfricaqueundíaformoupartedePortugalevicecersa,domesmoxeitoqueofixoTimorLeste, tendoenconta,ademáisquemoitostimorensesestableceroncomunidadesenvariosterritoriosdalusofonía,nomeadamenteenMozambiqueenopropioPortugal.Poroutrolado,ÁfricaeTimorLestecompartenamesmahistóriadoesquecementoeprecisanconstruirereconstruirasúamemoriaparaenfrentarseófuturoconesperanza.Senhistorianonhaifuturo,polomenosunfuturoconmemoria,queéaquedasentidoóporvir.

Estacontribuciónpretendeserunhareflexiónacadémicasobreonacementodunhanovanación, unhanación completamente libre, e as circunstanciasqueacompañaron a súa liberación.A esperanza de paz e liberdade da sociedadetimorense foi a esperanza da sociedadeportuguesa e das sociedades africanasqueseidentificaroncaloitaecosvaloresdopobotimorensenadefensadasúaculturaeautodeterminación.1Así,otextoéunhaachegacientíficaócoñecementodalgunhasdasclavesmáisimportantesnaforxadaidentidadedopobodeTimorLesteapartirdacampañainternacionalpolaindependencia.2Asociedadedestaexcoloniaportuguesa,queestivobaixoo iugodadictadura indonesiadurantemáis de vinte anos tra-lo derrubamento do Estado Novo, sufriu por parte dogoberno de Suharto unha política de degradación da súa propia identidade edassúastradiciónsevaloresculturaisparapropiciarasíunharápidaintegraciónen Indonesiacomoa27ªprovinciadeste inmensopaís insular.Conestabreveaportación, o que se pretende é facer unha reflexión, fundamentada en fontesbibliográficas, hemerográficas e documentais, sobre cómo o pobo timorenseconstruiu e reconstruiu a súa identidade durante o proceso de liberación ataconvertirsenunpaísindependentepolíticamente,aindaquedependentenoutrosmoitosaspectos.

Facer unha incursión científica sobre un fenómeno tan transversal epoliédricocomooquesepropónnotítulodestetexto,sempreéunrisco;porqueestaabordaxe require facerunesforzodecomprensióndevariasdimensiónsde análise que deben converxer nun discurso académico coherente sen caernasimplificación.Resultaevidentequeescribirsobrearepresentacióndunha

1 Estetraballoestábaseadoendiversasfontesdocumentaisebibliográficas,asícomonaexperienciaprofesionalcomoxornalistadoautor,quetivoahonradeparticiparcomomembrodaMisióndePazemTimor,entre1991e1992.

2 Partedestasreflexiónsacadémicas,aindaquedesdeoutraperspectivadeanálise,formanpartedunhacomunicacióntitulada“Portugal,IndonesiayTimorEste.Laopiniónpúblicainternacionalylaresistenciademocráticadelpueblomaubere”,presentadanoSeminarioInternacionalsobreEstadosAutoritários,Totalitáriosesuasrepresentações.Propaganda,Ideologia,historiografíaememória”,organizadopeloCentrodeEstudosGasparFrutuosodaUniversidadedosAçoreseoCentrodeEstudosInterdisciplinaresdoSéculoXXdaUniversidadedeCoimbra,celebradoennovembrode2008enRibeiraGrande(SãoMiguel).

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identidade e os seus aspectos culturais, sobre a historia dunha nación queacaba de nacer e sobre o impacto informativo do proceso de construccióndestenovopaíschamadoTimorLeste,esixe,departida,unhaforteinxecciónde humildade para establecer, antes de nada, que a pretensión deste breveestudioésoamenteunhatentativadeaproximación.Xaquelogo,énecesarioentenderestetraballodendeadificultadequecomportaadentrarsenunesceariocientífico insuficientemente estudado, no que reflexionar sobre o conceptode “identidade” (ver Cabecinhas, 2006) ou de “liberación” precisaría dunhaprofunda disquisición intelectual que, neste artigo, non podemos abordar;porque o obxectivo fundamental deste sucinto estudo é prestar atención ósacontecementosquemarcaronarecentehistoria(eofuturo)dunhanaciónqueacabadecumprirundeceniodeexistencia.

Naactualidade,candofacemosmemoriasobreoconflictodeTimorLeste,nonpodemosevitarlembrarnosdostráxicossucesosacontecidososdíasprecedenteseposterioresóreferéndumcelebradonaquelterritorioo19deagostode1999,noqueostimorensesdecidironseaantigacoloniaportuguesadebíarexiroseudestinoforadeIndonesia,talecomoerapreceptivotra-loiniciodoprocesodedescolonizaciónen1974,oupreferíancontinuarcomounhaprovinciadentrodoréximenmilitaristadeIakarta,quetiñadesencadeadounhaforterepresióndendeainvasióndoterritorioo7dedecembrode1975coconsentimentodeEstadosUnidos (ver: Val-Flores, 2006; Pires, 1994; Taylor, 1991; Magalhães, 1992 e1999;Jollife,1978;Gunn,1994;Gusmão,1994).Oresultadodaconsultapopularé coñedido: o pobo timorense (cuxa etnia maioritaria e con máis proxecciónidentitariaéamaubere)escolleronaindependencia.

Dendeacruelinvasiónindonesiaataadécadadosnoventa,opobotimorense,maioritariamente católico e que tiña como idioma oficial o portugués (agorataménotetun3),dentrodunpaísdecrenzafundamentalmentemusulmanaecondecenasdelinguas,odramatimorenseeraunasuntodescoñecidoparaaopiniónpúblicainternacional.Moipoucoseranosque,máisaládasociedadeportuguesa,dalgunhasorganziaciónshumanitariasecidadánsbeninformados,tiñanouvidofalar de Timor Leste. Os “gritos do silencio” (por empregar a metafóricaexpresión do filme dirixido porRoland Joffé en 1984 sobre a guerra civil deCamboia)acadaronaretinaouocorazóndacomunidadeinternacionalcandoascámarasdosmediosdecomunicaciónmundiaisorientarionosseusobxectivoscaraaquelesquecidolugaraprincipiosdadécadadosnoventa.Oxenocidioda

3 queremossalientar,dentrodasiniciativasparaarecuperacióndaidentidademaubere,arecentepublicacióndelibrosnalinguatetun.Sobreosaspectosdapolíticalingüísticatimorensepodeverse:Corte-Real,B.&Brito,R.(2006).Nestecontexto,destacaoproxectoBolboreta,desenvolvidopola Asociación Luso-Galega de Antropoloxía Aplicada (ALGA), que, en colaboración coMinisteriodeEducacióndeTimorLeste,acabadeeditarentetunaobradeManuelRivasa lingua das bolboretas,queformapartedabiliografíaescolaredasleiturasrecomendadasnascampañasdealfabetizacióndeadultos.

ALBERTOPENA332

antigacoloniaportuguesa,quetiñasidoabandonadaásúasortepolaONUepolaspotenciasinternacionais,quepreferironmanterostatus quopolítico,encontrados dereitos (avalados por varias resolucións da ONU, que Indonesia nuncarecoñeceuequennguénobrigouacumprir,comoaconteceuenoutraszonasondesecometeroncrimescontraahumanidade,comoporexemploKosovo),saiuásuperficieinformativagrazasáacciónpropagandísticadaResistenciaTimorenseno exterior e á axuda prestada pola Igrexa Católica, o Estado portugués ediversasorganizaciónsnongubernamentaisqueseimplicaronnunhacampañadepropagandainternacionalafavordaliberacióndopobotimorense(verMartin,2001;Carrascalão,2002).

2. Timor leste na encrucillada lusófona: diplomacia, política e propaganda

TimorOrientalfoisempreunasuntomoisensibleparaasociedadeportuguesaeparaassociedadeslusófonasnoseuconxunto,quesempreollaronoconflictoconIndonesiacomounasuntodemáximointerese.Osmediosdecomunicaciónportugusesprestaronsempreunhaextraordinariarelevanciaatódalasnoticiasqueprocedíandaillaque,dendemeadosdoséculoXVI,foibasedeaprovisionamentoparaosnaveganteslusosenOceanía.Aconciencianacionalportuguesasempreamosouunsentimentodesolidariedadeportodooquealíacontece,óigualqueospaísesafricanosqueforancolonizadosPortugal,queapoiaronsencondiciónsodereitodopobotimorenseaconvertirsenunhanaciónlibre,comotiñaacontecidocontodasasexcoloniaslusas.OEstadoeasociedadeportuguesasonconscientesdequepertodeoitocentosmilcidadánstimorenses,queposuíananacionalidadeportuguesa ata o 7 de decembro de 1975, data da invasión indonesia, foronabandonadosóseutráxicodestinodiantedaimposibilidadedequeogoberno,mergulladonoproceso revolucionariodo25deabril, puidese facernadaparaimpedir a ocupación militar da súa colonia. Unha traxedia perpetuada dendeentón,que,segundocifrasdeorganizaciónshumanitarias,chegouaacadarentreosetentaeosdouscentosmilmortos.Osistemáticoxenocidiotiñainteresestanoscuroscomoacordopetróleo,que,actualmente,estánexplotandomáisdunhadecenadeempresaspetrolíferasoccidentaisnodenominado“TimorGap”,unhazonaenaugasterritoriaisdaillanoÍndicoque,segundoalgúnsespecialistas,éundosmaioresxacementosdeouronegronaquelcontinente(verMarques,2006;Pizarrosoquintero,1990;IglesiasRodríguez,1997).

A axencia de intelixencia norteamericana (CIA) tivo muito que ver caocupacióndoterritoriotimorenseporpartedeIndonesia,poisapoiouabertamentea operación diante do temor ó expansionismo chinés (dentro da dinámicapolítica da Guerra Fría), que podría chegar a aliarse co Frente Timorense deLiberaciónNacional(FRETILIN),demilitanciafilo-comunista,posteriormentetransformadonuhaguerrillaquesobreviviuataaindependenciadeTimorLestemáis como símbolo dunha resistencia que como esperanza dunha victoria

TIMORLESTETAMÉNÉÁFRICA 333

militar (Mattoso, 2005). Agora, porén, China ten unha relación privilexiadacosEstadosUnidos;de feito, trátasedunhadasnaciónsmáis favorecidaspolocomercio norteamericano para propiciar a entrada nese mercado ós productosdasúaindustria.Precisamente,foiatentacióndomercadoindonesio,queatinxeosdouscentosmillónsdepersoas (ocuartopaísmáispoboadodomundo)eopetróleo nas augas timorenses o que motivou en grande medida que EstadosUnidoscontinuaseprotexendoaintegridade territorialdoarquipélagoindonesioata1999(seguindoamesmaargumentacióndogobernoocupante)antesqueosdereitos humanos en Timor Oriental, malia os reiterados chamamamentos daONUafavordaretiradaindonesia.

Peroos timorenses tiveron a suficiente intuiciónparadecatarsedeque adefensadosdereitoshumanosedaidentidademaubere,cunhaculturaquetiñaevolucionadoólongodosséculosporvieirosdiferentesósvaloresetradiciónsdasdiversasetniaseculturasdoarquipélagoindonesio,podíacarecerdeinfluencianocontextodiplomáticooupolítico,peroeraunmagníficoargumentona“batalla”dapropaganda.Porqueésaeraaúnicaformadevencerosilencioimpostopolasaxenciasdeinformacióninternacionaissobreestexenocidio,nofondoenaformacomparable(salvandoasdistancias,claro)ócometidopolonazismosobreopoboxudeuouoPolPotsobreoscamboianos.ApolíticadeesquecementododramafoiartelladapoladictaduradeSuharto(queimpediuaentradadexornalistasenTimor)paraevitarqueaopiniónpúblicaoccidentalpoideseseralertadapolassistemáticas medidas represoras contra o pobo timorense e exercer a presiónmediática correspodente diante dos sus gobernos nacionais (Pena Rodríguez,1997).FoifinalmenteadiplomaciadoVaticano(quetentaprotexeroscatólicostimorenses frente a dominante culturamusulmana en Indonesia), ca axuda doEstadolusoeungrupoderepresentantestimorenseslideradosporJoséRamoshorta os que decidiron emprender unha orquestada campaña de propagandainternacionalparapromovera independenciadeTimorLestecomosoluciónóconflicto. O punto de inflexión da “batalla” propagandística contra o silencioestivomarcadopolamatanzaacontecidanocemiteriodeSantaCruz,enDili,o12denovembrode1991.Alífaleceronentreunedouscentosestudantestimorensesquesetiñanconcentrado,ensinaldehomenaxe,diantedatumbaduncompañeiroquetiñasidoasasinadodíasatráspoloexércitoindonesio.

Aquela nova traxedia avivou o clamor dos medios de comunicaciónportugueses, secudandos por declaracións de repulsa do propio goberno deAnibal Cavaco Silva, que axitaron a sociedade portuguesa. Na nosa opinión,os sucesivosgobernosportuguesesapoiaron sencondiciónsacausa timorenseporquesemprevironnacuestióndeTimorOrientalunhaexcelenteoportunidadeparaproxectaraimaxedesolidariedadeeunidadenacionalfronteauninimigocomúnnunhacausacuxasoluciónoEstadoluso,históricamente,sópromoveuacciónssimbólicassendemasiadainfluenciainternacional.Ospartidospolíticoslusossabendosbeneficiospropagandísticoscadavezquesesolidarizancodrama

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timorenseporqueosmediaeaopiniónpúblicaportuguesaestánenormementesensibilizadosconestacuestión.Ogobernoportugués,pois,sempresouboquecalqueratipodeiniciativaafavordaliberacióndostimorensescontaríacoapoioincondicional da sociedade portuguesa; ademáis o risco de enfrentamentosexternos con outros países resultou mínimo porque o asistía a razón e así orespaldabanasresoluciónsdaONU.

Polasúaparte,aIgrexaCatólicaadoptouunhaposiciónsemprefirme,peroprudente,endefensados intereses timorenses,emitindodiversoscomunicadoseorganizandoforosinternacionaisparadifundirodramatimorense.4Aindaqueo Vaticano endexamais presionou directamente o réximen indonesio nin tivounha posición diplomática pública demasiado comprometida, o episcopadoportugués sí abanderou un movimento favorable á causa timorense queconseguiuqueoPapaJuanPabloIIviaxaraaDilienmisiónpastoralenoutubrode 1989 (Magalhães, 1992: 44).5Tanto o goberno como a Igrexa portuguesa,encalqueracaso,traballaronnomesmosensononsóparaloitarpolosdereitoshumanosdostimorenses.Nocasodogobernoluso,pretendía,enprimeirolugar,restituirahonraeasoberaníadanacióninternacionalmente;e,ensegundolugar,“promocionar”unconflictoque,francamente,mellorabaasúaimaxepública.AIgrexa,encambio,procuraba,esencialemente,protexerósseusfieiscatólicosenonperderunhaposiciónestratéxicanuncontinentemaioritariamentemusulmán,comoxaseapuntoumáisatrás.Osdous,IgrexaeEstado,colaboraronenacciónspropagandísticas conxuntas, como, por exemplo, a organización periódica, naUniversidadedoPorto,duncursosobreTimorOriental.Esteforodedebate,óqueforonconvidadosprofesoreseestudantesdediferentespaíses,foisubvencionadoconfondosdoMinisteriodeEducación,doMovementoCristãoparaaPazeaUnviersidadeCatólicaPortuguesa.

Polasúabanda,Indonesiatentouenvariasocasiónsiniciarnegocioaciónscon Portugal, pero sempre mantivo unha actitude propagandística defensiva.En 1991, Suharto propuso ó goberno portugués a normalización de relaciónsdiplomáticasentreosdouspaísescasseguintescondiciónsiniciaisacambiodaintegracióndeTimorOrientalenIndonesia:aperturadunconsuladoeunInstitutodaCulturaPortuguesaenDili,liberacióndetódolospresospolíticostimorenseseparticipacióndePortugal,comoaccionista,naexplotacióndopetróleodo“Timor

4 Porexemplo,aorganizacióncatólicaalemanaEvangelischeAkademieIserlohnorganizou,entreo30desetembroeo2deoutubrode1994,encolaboracióncaUniversidadedePortoeoutrasinstituciónsalemanaseholandesas,uncongresointernacionalenBerlín,dirixidopoloDr.RüdigerSareika,oDr.A.BarbedoMagalhães,PedroPintoLeiteePeterFranke.Otítulodocongresoerasintomático:The european responsability for east Timor.

5 SobreaposicióndaIgrexaCatólicaenrelaciónóconflictotimorensexustoantesdedesencadenarlaofensivapropagandísticainternacional,véxanseosseguintesnúmerosdoboletínTimor-leste,órgano daComissãoParaosDireitosdoPovoMaubere:anoVII,n.º62,marzode1991,pp.1e2;anoVII,n.º64,maiode1991,pp.2e3.

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Gap”(Abreu,1997:265).CondiciónsquenonforonaceptadasporMárioSoares.Diplomáticamente,PortugalnuncaestivodispostoacederáintegracióndoseuterritoriocolonialenIndonesia,maliaquealgúnstimorenseseranpartidariosdesasaídaóconflicto.Defeito,o14deagostode1993,trintaecincoxefesdetribustradicionais timorenses (os denominados “Liurais”) emitiron unha declaraciónfavorableáintegración.(Abreu,1997:103).

Indonesiareaccionouáspresiónspechandooterritorioocupadoásvisitasdaprensaestranxeiraquenontivesenautorizaciónexpresadogoberno.ómesmotempo,os seuspropagandistaspromocionabanasvantaxesquesupoñíaparaaetniamauberequeTimorLeste se integrase dentro da súanación comoa 27ªprovincia.ODepartamentodeInformacióndoréximendeSuhartoeditoudiversosfolletos e libros en inglés sobre o progreso acadado pola poboación mauberebaixoasúaadministración.6Estapropagandafoidifundidainternacionalmentea través das súas legacións diplomáticas sen moita afouteza para non irritaralgunhassensibilidades.Nembargantes,odiscursopropagandísticoindonesioerademoledorcopapelxogadoporPortugalduranteasúaetapacolonial,comoseapuntabanundoslibelosafavordaintegración:“(...)Asthedirectresultof450yearsofPortuguesecolonialrule,almostallthepopulationofEastTimorfoundthemselvesinastateofextremebacwardnessinmanyaspectsoflife.Indicativeof this backwardness, for instance, the prelavence of 80% illiteracy, the veryprimitivesystemofagriculture,theverylowmobilityoftheinhabitantsandtheconcentrationoftheiradobeinisolatedregions(...)”7

3. o poder da imaxe da traxedia como palanca da conciencia internacional

AmasacredeSantaCruzfoiunacontecementomediáticodegranproxeccióninternacional que removeu moitas conciencias. Pero cando acontenceu atraxedia xa estaba creada unha extensa rede de colaboradores timorensespor todo omundo que se encargaban de dar a coñecer (a través demúltiplesaccións propagandísticas) o xenocidio deTimor Leste. Esta rede organizousepormediodevariasplataformasdeapoiointernacionalrelacionadascoslobbies timorensesespalladosendiferentespaíses,aindaqueconcentradoseconmáisactividade, fundamentalmente en Australia, onde residía a maior colonia deexiliados,PortugaleEstadosUnidos.Entreasorganizaciónsasociadasádefensados intereses timorensesnomundopodemoscitar:aTapolnoReinoUnido,aEastTimorAlertNetworkenCanadá,aOsttimorKommitenenSuecia,aAsiaWatchenEstadosUnidos,aPacificConcernResourceCenterenNovaZelanda,aAustralianCouncilforOverseasAidenAustralia,aAssociationSolidaritéTimor

6 Cf.:east Timor after integration,Yakarta,InformationDepartment,s.d.,149páxs.7 Idem,ibidem,p.83.

ALBERTOPENA336

OrientalenFrancia,aCoordinadoraItalianadiSolidaritáconilPopolodiTimor-Este,oFreeEastTimorCoalitionenXapón,etc.8

Dende todos estes frentes levaronse a cabo iniciativas diversas paradarlleóconflictounhadimensióninformativamundial.CreouseunhaespeciedegabinetedepropagandalideradoporJoséRamoshorta,queactuoucomovoceirodopobotimorensenoexterior(apoiadopoloEstadoportugués)(Abreu,1997:261),cuxoobxectivoprioritarioera“desenterrar”ósmortostimorensespara amosalos á opinión pública internacional. Trátabase, xa que logo, dedespertardunhavezósmediosdecomunicaciónoccidentaisdoseuletargoconrespecto ó xenocidio timorense.Co pulo deste aparato de propaganda, foiseextendendounharededeinformacióncadavezmáisinfluintedaquexurdirondiversaspublicaciónsconnoticiasexclusivassobreoconflicto;organizáronsemítines,realizáronsexirasporunviersidadeseoutras instituciónseducativas,concertáronse decenas de entrevistas radiofónicas e televisivas, enviaronsecartas de denuncia e comunicados constantes ás redaccións de xornaislocais e internacionais, así como a políticos e diplomáticos...Con todo isto,forxáronseosmitosdatraxediaeprocurouseincrementarointeresedopúblicopolaculturamaubere reivindicandoassúasespecificidadesa travésdosseusprincipais símbolos para diferenciarse das tradicións e das manifestaciónsculturaisindonesias;editaronseincontableslibrosdepropagandaquenarrabanas peripecias de supervivintes da invasión ou que contaban experiencias darepresiónindonesia,imprimíronsepostais,pegatinas,carteis,pinsetodaclasede material propagandístico para suscitar cada vez máis adhesións (Ramos-horta,1998).

OsestudantesasasinadosenSantaCruzennovembrode1991noneranosúnicosmortosdarepresióndignosdeserutilizadoscomomártiresdarepresiónindonesia na campaña internacional que o aparello de propaganda timorenseplanificou. Pero naquela matanza de inocentes estudantes había un elementopoderoso edemoledordendeopuntodevistapublicitario:a imaxe da morte.Ousexa:oazarea imprudenciadoexército indonesiopropiciouquehouberaimaxes daquela execución colectiva de xóvenes desarmados. Os periodistasnorteamericanos Alan Nairn, do The new Yorker, Amy Goodman, da radio WBai,osbritánicosSteveCox,deThe independent,eMaxSthal,daYorkshire Television, xunto cos australianos RusselAnderson e Bob Muntz, estaban noesceariodocrimecandoaquélaconteceu,autorizadospologobernodeSuharto(quenaquelaépocacomezabacederaspresiónsexterioresparaabriroterritorioósmediosdecomunicacióninternacional)paraquefixeranreportaxessobreosprogresossociaiseeconómicosdeTimorLeste(Magalhães,1992:61-62).Aindaque os xornalistas foron expulsados ipso facto e as súas cámaras requisadas,conseguironsacarunhacintacafilmacióndaexecuciónendirecto;ademáis,eles

8 RevistaTimor oriental. santa Cruz,Lisboa,diciembrede1991,p.1.

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convertíronse en testemuñas excepcionais dun asunto que suscitou o máximointereseinformativo.

EstarelevanteedesgraciadanoticiadeulleunpulotrascedentalácampañaafavordaindependenciadeTimorLeste.Orostrodamortetiñasidofilmadoendirecto;opoderpropagandísticodasimaxesdestedramaserviupara“fabricar”undossímbolosmáiseficacesdacomunicaciónpolíticatimorense.Nadamáisconmovedor, máis espeluznante, máis impactante, para a opinión públicainternacional,quepasarportelevisiónaesceadunasesinatoenmasa,asangrefría, nos informativos de prime time. No mercado da comunicación global,a cuestión de Timor Oriental transformouse, automáticamente, nun valor deespecialtrascendenciaparaaaxendainformativadosmediosdecomunicación.De repente,ascanlescomezaronaapuntaras súascámarashaciaaquelpuntodaxeografíadosuresteasiático.Porfin,ostimorensesconseguironqueosseus“gritos”atravesaranosilencioinformativo.Asíseforxouomitodaresistenciadunpoboindefensoqueloitapolosseusdereitoscontraunimpíogenocidio(PenaRodríguez,1998:365-372).

Opoderpublicitariodatelevisión9púñaseporprimeiravezóserviciodospropagandistas timorensesagranescala.Estaespeciede“bengaladesocorro”audiovisual,queocupoudurantesemanasaatencióndosmediosdecomunicaciónmundiais,eraunacenododestinoqueconseguiususcitarosinteresesdaopiniónpúblicaglobalpoloconflicto.Eranecesario,xaquelogo,avivarosargumentosdapropagandaparatrasladaroproblemaaunámbitointernacionaleacadarunhapermanencianaagenda-setingdosmedios.Asimaxesdosestudantesfuxindodohorror,cotraqueteodasmetralletasdossoldadosdetrasdeles,foronconvertidasnunsímbolodomartiriodunhaloitaquecomezabaaescalarposiciónsnorankingdosconflictosmáisnoticiadospolasaxenciasinternacionais.AsesceascaptadaspolaYorkshire TVsensibilizaronmoitasconciencias;eranapenasunminutodedesenfocadasetrepidantesimaxestomadasporunprofesionalatemorizado,peroquedeixabanpatenteapegadadatraxedia.Osrostrosdosestudantesaterrorizadosqueescapabanembarulladosenmediodunhapolvareda,mentresseescoitabanosgritosdalgúnsdelesquesuplicabanpiedadementrasrecibíanarespostametálicadasarmasdossoldadosindonesios,foiunhaprobadefinitivaparademostraromodusoperandiqueseguíaapolíticadeintegracióndostimorensesporpartedogobernodeIakarta.10

9 Sobre o poder publicitario da televisión, poden consultarse como referencias bibliográficascontextualizadotas os seguintes libros: SABORIT, José, la imagen publicitaria en televisión,Madrid, Cátedra, 1994; GONZÁLEZ REqUENA, Jesús, y ORTIZ DE ZÁRATE,Amaya, el espot publicitario. la metamorfosis del deseo, Madrid, Cátedra, 1995; PENA RODRÍGUEZ,Alberto (coord.),la publicidad en Televisión,Pontevedra,DiputaciónProvincial, 1999, entreoutrasreferencias.

10 Unhadasimaxesmáisimpactantesdaquelvídeopodeversenosemanarioexpresso,30/11/1991,p.8.

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Aquelas imaxes, que poñían en evidencia a indefensión dos timorensesdiantedacrueldadedoexércitoindonesio,deronlugaraunfeixedeiniciativassolidarias co pobo deTimorLeste.Durante osmeses seguintes ámatanza deSanta Cruz sucedéronse incontables accións políticas e sociais en apoio dacausatimorense,alentadaspolasorganizaciónscatólicasportuguesaseopropiogoberno,ótempoqueosmediosdecomunicaciónenchíansedeinformaciónsecomentariosrelativosóconflicto.

OproblemadeTimorOrientalpasouaseranoticiamáis rentableparaaprensaportuguesa.Osleitoreseasaudienciasdosmediosaudiovisuaisqueríansaber máis sobre a evolución dos acontecementos. O diario público, ó igualque outras cabeceiras de relevancia, optou por rotular as páxinas dedicadasós sucesosdeDili co reclamo“Timor-Dili: depoisdamassacre”.Estemesmoxornal recollía, o 3 de decembro de 1991, unha axenda de accións públicassolidarias:nelasinalábansevariasconvocatoriasdemanifestaciónsdecolectivoscomooNúcleodeIntervençãopelaSolidariedadeentreosPovos,oMovimentoPortuguêsdeEstudanesUniversitáriosouaUniãodosSindicatosdeAveiro,entreoutros.11Xuntoaestasconcentraciónscomprometidascacausamaubere,aquelesdíascelebrousetaménunhamisaafavordosmártirestimorensesnaigrexaSantaMariadeBelém.Mentrestanto,oSindicatodeProfessoresorganizabaundebatesobreTimornohotelRomacaparticipacióndexornalistasquetiñaninformadosobreoasunto,comoAdelinoGomes,RuiAraújo,MárioRobaloeaaustralianaJillJollife.Eparadispordefinancimentoparacontinuarcacampañataménsedefixeronnumerosascuestaciónsdestinadasáresistenciatimorense.12

UnhadasiniciativasquetivomáisrepercusiónfoiadosartistasegaleristasdeLisboa.Unseoutrosuníronsepararealizar,entreo7eo15dedecembro,noPaláciodeGalveias,unhaexposiciónsolidariaconTimorLeste.“(...)Desdeo25deAbrilde1974queonossopaísnãoviviaoentusiasmoeunidadedeumacausajustaecomum,aindaparamaisnaextremanobrezadenãocorreponderaoutrosinteressesquenãosejaodesejodelutarpelodireitodeumpovoamigoaumavivência livree autónoma (...)”,dicíaomanifestoasinadopolocomitéorganizador, do que formaban parte Alda Cortez, Graça Fonseca, AntónioBacalhau,LeonelMoura,PedroPortugalePiresVieira.Osbeneficiosdavendadoscadrosexpostosrevertirontaménafavordaindependenciatimorense.Polasuaparte,osafamadosgruposmusicaisXutos&Pontapés,RádioMacau,DelfinseCensuradosofreceronunconcertonocampoJoséAlvaladeo8dedecembrobaixo o lema “Xanana Gusmão é o guia dos timorenses”, cuxos beneficios(doadosácausatimorense)acadaronos2millónstrescentosmilescudos.

Naorixedetodasestasacciónssolidariasestabanaquelasimaxesqueospropiosórganospropagandísticosdaresistenciatimorensenoexteriormultuplicaronasúa

11 Cf.público,02/12/1991,p.11.12 Idem,ibidem.

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difusión.AasociaciónAPazePossívelemTimorLestepublicouvariasrevistasen edición bilingüe (francés-inglés) adicadas exclusivamente a dar a coñecerosdatosdarepresiónindonesia.NaportadadaspublicaciónsaparecíaunhadasimaxescaptadasenSantaCruzpolaYorkshire TV máisimpactantes,naqueseveaunmozoacribilladopolasbalasqueapretacassúasmánsensanguentadasoestómago,mentressedesangranochanauxiliadoporvarioscompañeiros.

O poder das imaxes, pois, foi determinante para impulsar a campaña depropagandainstitucionalafavordaindepedenciadaexcoloniaportuguesa,quefoiprotagonistadeforospolíticoseculturaisinternacionaisdendequeaconteceua traxedia de Santa Cruz. Despois, desencadenáronse de maneira imparablediversas accións de apoio, entre as cales destaca a campaña internacional daMissãodePazemTimor,queseinicioucacaptacióndefondosantesdoveránde1991,acompañadadenumerososactosreivindicativosentodoomundo,queincluironconcentraciónsdiantedasembaixadasdeIndonesia,roldasdeprensadedenuncia,etc.NaMisióndePaz,quesedesenvolveuentrefebreiroemarzode1992participaronun centenar depersoas procedentes dediferentes países.Entreelas,atopábaseoexpresidentedaRepúblicaportuguesa,AntónioRamalhoEanes,variosdeputadosaustralianos,representantesdeasociaciónsdeestudantesdunhavintenadepaíses,dirixentesdeorganizaciónshumanitariascomoAmnistíaInternacionalexornalistasdosprincipaismedioslusoseaxenciasinternacionais.A Misión de Paz foi unha excelente plataforma de proxección internacionalquetivooefectoagardado:osmediosdecomunicacióndereferenciamundialinformarondeformaextensasobreacuestióntimorenseeospolíticosdediversospaísescomezaronadherirseespontáneamenteácausa(Cabrera,1995).

AcampañadaMisiónincrementounotablementeanotoriedadedelíderestimorensescomoJoséRamoshortaouobispodeDili,XimenesBelo,quecadavezeranmáissolicitadosparacomparecerdiantedosmedios.Xustamente,foronestesdousprotagonistasdacampañainternacionalafavordosdereitoshumanosenTimorosdistinguidoscoPremioNobeldaPazen1996.Estacircunstanciaincrementouaindamáisapresiónsobreogobernoindonesioeosactorespolíticosinternacionaisparabuscarunhasoluciónóconflicto.OsnovosPremiosNobelrealizaron unha xira internacional para involucrar a gobernos democráticos afavordaliberacióndeTimorLesteataque,finalmente,tódalasxestiónsrealizadasdende diferentes frentes diplomáticos desembocou, como xa se coñece, nunreferéndumqueproclamoudemocráticamentea independenciado territorioenagosto de 1999; resultado que foi recoñecido pola ONU, que estivo presenteconefectivosmilitaresdurante todooprocesode transición,queculminouen2002,candosecreouoprimeirogobernopresididopoloexguerrilleiroXananaGusmão.Oescudodopaísfoiaprobadoo18dexaneirode2007.

Porén,comoxaésobradamentecoñecido,desdeentónasituacióndeTimorLesteatravesouporsituaciónsmoicomplicadas;perdeuintereseinformativo,oquellerestouaproxecciónpúblicanecesariaparaseguircontandocasolidariedade

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internacional; Indonesia segue mantendo unha importante influencia sobre anovanación,enmoitosmomentosdesestabilizadora;opaísnonlogrouaindaasuficientecohesiónpolítica,sociale“nacional”e,ademáis,asituacióneconómicaé extremadamente precaria. O presidente de Timor Leste, Ramos horta, foitiroteadonasúapropiacasaen2008eseguenosenfrentamentosentreosafínsá antigua potencia invasora e os partidarios da progresiva nacionalización doterritorio.Peroestesxasonsucesosdacrónicaxornalísticaquemereceránunhareflexiónacadémicaconoutraperspectivadeanálise.

4. Conclusións

O colonialismo territorial europeo e norteamericano, unido óneocolonialismo económico e mediático, deixou a moitas rexións do planeta(especialmenteóspobosminoritarioscomoomaubereoudealgunhasrexiónsafricanas)nolimbodoesquecementopúblico,anonserque,porrazónsmoitasveces comerciais, as grandes axencias de información decidan centrar a súaatenciónnelastemporalmente.NocasodeTimorLeste,aresistenciaárepresivaocupaciónindonesiadeciciucentrarasúaenerxíaendesenvolvercampañasdecomunicacióninternacionaisparaacadaroobxectivofundamental:aliberacióndopobotimorense.Nadesconcertantesociedadedixital,cunhaopiniónpúblicacadavezmáissaturadadeinformación,probablementeaplanificaciónestratéxicadunhaboacampañadecomunicaciónsexanaactualidadeométodomáiseficazparadespertaraconcienciadanovacidadaníaglobal.Nestesentido,TimorLesteé un claro exemplo da importancia estratéxica que hoxe ten a articulación deaccións de carácter comunicativo para conseguir que determinados conflictos,esquecidospolasestructurasdopoderinformativointernacional,poidanocuparunespacionaaxenda dosmediosdecomunicaciónoccidentais,queexercenunharelevanteinfluenciasobreaopiniónpúblicamundial.

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ÁFRICANAOBRADEANTóNIOLOBOANTUNES 343

* ChAM (Centro de história de Além-Mar), Faculdade de Ciências Sociais e humanas,UniversidadeNovadeLisboaeUniversidadedosAçores.

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ana Cristina Correia Gil*

Arelaçãodosportuguesescomoseuimpériocolonialsemprefoicomplexaetemsidoanalisadaporvariadosensaístasepensadores.Estareflexãoéextensívelàliteratura,jáquesãomuitasascontribuiçõesdosautoresportuguesesnestaárea.BastapensarmosnocasodeJoãodeMelooudeAntónioLoboAntunes,autorescujasbiografiasseligamdeformainextricávelàsvivênciasdeambosemterrasafricanasnumcontextodeguerracolonial.ÉprecisamentenaobradeAntónioLoboAntunesqueprocuraremosanalisaromodocomosãorepresentadosÁfricaeosafricanos,sejanasuavivêncianocontinenteafricano,sejanasuarelaçãoespecular,porcontraste,comoterritóriodocontinenteportuguês.

AÁfricaqueencontramosnaobraantunianaéaÁfricasofridadoperíododaguerracolonialcontraosmovimentosdelibertaçãoedeindependência,bemcomoaÁfricasemnortepós-independência,marcadaporintensasguerrascivis,autodestrutivasedilaceradorasdenaçõesaindaembrionárias.Estatematizaçãoestreitamenteligadaà(i)legitimidadedosimperialismoseuropeus,queacarretamo silenciamento das vozes autóctones reprimidas e subjugadas, permite ler aobradeLoboAntunescomoumexemploprivilegiadodeliteraturadeteorpós--colonialista.

OPós-colonialismo é uma área dosEstudosCulturais complexa emuitoheterogéneaquecomeçouaserdesenvolvidaapartirdarealidadeconcretado

ANACRISTINACORREIAGIL344

impériocolonialbritânicoequeprogressivamentetemvindoaseralargadaaoestudodeoutrosprocessoseestruturasimperiaiscomcaracterísticasdiversasdocasobritânico,comoéocasodoimperialismoportuguês.Estecampodeestudosprocurapensareanalisarocolonialismoesuasconsequênciasnaestruturaçãodaidentidadedospovoscolonizados,inserindo-seassimnoâmbitodosEstudosCulturais, que procuram investigar as relações entre poderes hegemónicos egrupossociaissubjugadosesilenciadosaolongodostempos,paraosquaissereivindicaumreconhecimentodasuaidentidadeoriginaleumlugarpordireitopróprionassociedadescontemporâneas,comoéocasodasclassestrabalhadoras,dosnegros, dasmulheres, dospovos colonizados, dospovosprimitivos, entreoutros.

Considera-segeralmentemomentofundadordestadisciplinaapublicaçãodaobraorientalismo. representações ocidentais do oriente(1978)deEdwardSaid.Saidprocurounesteensaiodesconstruiroolharocidental,segundoelebaseadoemvisõesdistorcidasdarealidadesobreoOriente,desmistificando,assim,aquiloaquechama“ficçõesinverificáveis”e“vastasgeneralizações”1.

O colonialismo português revestiu-se de características particulares queodiferenciamdeoutrasexperiênciasimperiaisdasnaçõeseuropeias.Portugal,aomesmo tempoque se afirma comoo centrodeumvasto império colonial,nãodeixadeserconsideradopelaEuropacomoumpaísperiféricoemarginal.Encontra-se, assim, a naçãoportuguesana situaçãoparadoxal de ser o agentedominador de territórios nos continentes africano, asiático e americano, e ser,simultaneamente,vistopeloseuprópriocontinentecomoumaentidadeestranha,umenteinferior,quasetãoexóticocomoasterrasdistantes.Oscila,assim,entreProspero e Caliban, o colonizador e o colonizado, como nota Boaventura deSousaSantos:

“Portugal foi o único país colonizador a ser considerado por outros paísescolonizadorescomoumpaísnativoouselvagem.Aomesmotempoqueosnossos viajantes diplomatas e militares descreviam os curiosos hábitos emodosdevidadospovosselvagenscomquemtomavamcontactonoprocessodeconstruçãodoimpério,viajantesdiplomatasemilitaresdaInglaterraoudaFrançadescreviam,oracomcuriosidadeoracomdesdém,oshábitosemodosdevidadosportugueses,paraelestãoestranhosaopontodeparecerempoucomenosqueselvagens”2.

1 EdwardW.SAID,orientalismo. representações ocidentais do oriente,2.ªed.,Lisboa,Cotovia,2004,p.XVI.

2 BoaventuradeSousaSANTOS,pela mão de alice – o social e o político na pós-modernidade,Porto,EdiçõesAfrontamento,1994,p.60.AdicotomiaentreProsperoeCalibanédesenvolvidapor este autor no estudo “Entre Prospero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”(cf.bibliografiafinal).

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Esta realidade torna-se evidente no romance o esplendor de portugal,naspalavrasdeIsildaque,a posteriori,recordaosseustemposdeinfânciaemÁfricaedárelevoprecisamenteàcomplexahierarquiaquecolocaoportuguêscolonizador acima do colonizado, mas surpreendentemente abaixo dos outroscolonizadoreseuropeus:

“OmeupaicostumavaexplicarqueaquiloquetínhamosvindoprocuraremÁfrica não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poderalgumquenosdessema ilusãododinheiro edopoderquede facto aindaqueo tivéssemosnão tínhamospornãosermosmaisque tolerados,aceitescom desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos quetrabalhavamparanóseportantodecertomodoéramos os pretos dos outros[...]omeupaicostumavaexplicarqueaquiloque tínhamosvindoprocurarem África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser adignidadedemandar,morandoemcasasquemacaqueavamcasaseuropeiase[que]qualquereuropeudesprezariaconsiderando-ascomoconsiderávamosascubatasemtorno,numaidênticarepulsaenumidênticodesdém,umdinheirosempréstimonãoforaacrueldadedamaneiradeoganharepara todososefeitosequivalenteaconchasecontascoloridas”3.

É, portanto, fundamental considerar neste campo de estudos não só aanálise dos grupos colonizados como tambémas alterações que a experiênciacolonialoperasobreametrópole,umavezqueemambosseconstatammudançasprofundasnosseustraçosidentitáriosoriginais.

Aquestãoidentitáriaé,portanto,umdosleitmotivsfundamentaisdosestudospós-coloniais,namedidaemqueoconfrontoentreo‘eu’colonizadoreo‘outro’colonizadooperamudançasprofundasnaessênciadecadaumdesteselementosemcontactonummesmoterritório,oterritórioocupado.Opovodominadortendea impor ao dominado os seus traços culturais, procurando apagar as culturasautóctones, domesticá-las, ‘civilizá-las’, quando não mesmo aniquilá-las porcompleto.Assimaconteceucomosimperialismoseuropeus–português,espanhol,britânico,francês,holandês–emmaioroumenorgrau.Masécertotambémqueocolonizadornãosaiincólumedestecontacto,umavezqueasaídadametrópoleimplicaumadeslocação(“displacement”,conceitotãocaroaopós-colonialismo),umaalteraçãodelugaresquequasesempresetraduznumades-identificaçãoemrelaçãoaoespaçopátrioquesedeixou,bemcomonumfascíniopelaterraqueseocupaequegradualmenteseadoptademodoafectivo.Aproblemáticapós--colonialafecta,assim,igualmentedominadoredominado,abalaefracturaambasas identidades, envolvendo uma complexidade de relações e de atitudes que

3 AntónioLoboANTUNES,o esplendor de portugal,Lisboa,D.quixote,1997,p.255,sublinhadomeu.

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convocam,segundoRobertYoung,aambivalênciaeohibridismocomomarcasfundamentaisdesteprocesso:“hybridity thusmakesdifference intosameness,andsameness intodifference,but inaway thatmakes thesameno longer thesame,thedifferentnolongersimplydifferent[...]differenceandsamenessinanapparentimpossiblesimultaneity”4.

Esta deslocação, esta alteração de lugares e de identidades são temasrecorrentesnaficçãodeAntónioLoboAntunes,sobretudonasnarrativasemqueaguerracolonialportuguesaassumeprotagonismo.Éocasodostrêsprimeirosromances deste autor – memória de elefante (1979), os cus de Judas (1979)eConhecimento do inferno(1980)–,nosquaisostraçosautobiográficosestãoaindamuitopresentes:osprotagonistassãomédicospsiquiatrasquetiveramumatraumáticaexperiênciadecombatenaguerracolonialafricanaeavidapresentedestesémarcadapela solidão,pelodesenraizamento,pelodivórciodamulherqueaindajulgamamarepelaseparaçãodolorosada(s)filha(s)aindacriança(s).Apesardenãosernossaintençãofazerumaleiturabiografistadaobradesteautor,éinevitávelestaligaçãoentrevidaeobra,factoqueopróprioautorreconheceuemváriasentrevistaseemtextosnãoficcionais.

Ofiocondutordostrêsromancesqueatrásreferimoséanarraçãodaguerracolonialafricana,naquiloqueelatemdeatrocidades,sofrimentohumanoedeabsurdoquelevaàmaiscompletaabjecção.Situaçõescomunsemcenáriosdeconfrontos bélicos – mortes, ataques, desespero, sofrimento – convivem comcenárioscaracterísticosdedominaçãoimperialista–abusosdepoder,intimidaçãoe ataques a populações indefesas votadas à miséria e à fome, corrupção eridicularizaçãodoslíderesdominados.Nãohá,porém,espaçoparainterpretaçõesmaniqueístasnouniversoromanescoantuniano,poisospovosdominados,umavezlibertos,sãotambémprotagonistasdeatrocidadesindescritíveissobreosseusantigossenhores,comovemosporexemplonaobrao esplendor de portugal.Esta complexidade de relações é tambémumdos traços do pós-colonialismo,que o torna uma problemática rica em interpretações e plena de sentidos sóaparentementecontraditórios:

“envolveadesgraçadocolonizadotantocomoadocolonizador,asatitudesdeagressãoeprepotênciavisíveisemambososlados,e,sobretudo,omistode malogro e de oportunismo que a guerra produz em todos os sentidos,reduzindoaporçãodehumanidadenoindivíduo,acapacidadecriadoranosgruposfamiliareseafins,eaharmonianascomunidades”5.

4 RobertYOUNG,Colonial desire. Hybridity in Theory, Culture and race,London,Routledge,1995,p.29.

5 MariaAlziraSEIXO,os romances de antónio lobo antunes,Lisboa,D.quixote,2002,pp.501-502.

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Ohibridismodeperspectivassubstituiumavisãomaniqueístadahistória,em que a diabolização do invasor tem o seu correspondente na vitimizaçãodo ocupado.O deslocamento – ‘displacement” –,marca do pós-colonialismo,éassimfísico(dametrópoleparaacolónia),masé tambémumdeslocamentodesentidos,deinterpretações,comosugereMariaAlziraSeixo.Ocolonizadorreveste-seassimtambémdeumafragilidadequepõeemcausaoseupoderfísicoeasuahegemoniacivilizacional.Mobilizadoàforçaporumregimeditatorialeautoritário,omilitarvê-selongedoseupaísedasuafamília,emnomedeumaguerraabsurdacujosobjectivosnãopartilhaenãocompreende.

Adeslocação é assimuma componente fundamental no desenraizamentosentidopelosprotagonistasdestesromanceseépartirdelaquesedesencadeiao processo de des-identificação das personagens conotadas com o ideárioimperialista.Otempopassadonocenáriodeguerraafastainexoravelmenteestessoldadosdoseupaís,atalpontoquenoregressoacasasedescobremestranhosnumaterraestranha,estrangeirosnumaterraqueanteseraasua:

“Ao voltar da guerra, o médico, habituado entretanto à mata, às fazendasde girassol e à noção de tempo paciente e eterna dos negros, em que osminutos, subitamente elásticos, podiamdurar semanas inteirasde tranquilaexpectativa, tivera de proceder a penoso esforço de acomodação interior afimdesereacostumaraosprédiosdeazulejoqueconstituíamassuascubatasnatais.Apalidezdascarascompelia-oadiagnosticarumaanemiacolectiva,e o português sem sotaque surgia-lhe tão desprovidode encanto comoumquotidianodeescriturário.Sujeitosapertadosemcilíciosdegravatasagitavam-seàsuavoltaemquestiúnculasazedas:odeusZumbi,senhordoDestinoedasChivas,nãopassaraoequador,seduzidoporumcontinenteondeatéamortepossuíaaimpetuosaalegriadeumpartotriunfal”6.

Portugalparece-lhesagoraumpaís sombrio, sisudo, carrancudo,postiço,fingido, operando-se um contraste com a terra africana, que vai ganhandocontornos de lugar afável, belo, genuíno, com a alegria de viver que não seencontrajánametrópoledoimpérioextinto.

Estabelece-se, assim, uma relação de amor-ódio com África, que ésimultaneamentecenáriodecrueldadeseoásisdepurezaedeharmoniavivenciais.É láqueosprotagonistasdestesromancesencontramaamizadegenuína,comafricanos que sofrem a fúria repressora do colonizador: o soba-alfaiate, líderautóctonecujadignidadeéreduzidaàcondiçãohumilhantedemeroalfaiatedastropas;aTiaTeresa,prostitutaqueacolheodesesperoórfãodonarradoreAntónioMiúdoCatolo,comquemonarradordeConhecimento do infernoaprendeque

6 AntónioLoboANTUNES,memória de elefante,15.ªed.,Lisboa,D.quixote,1991(1.ªed.1979),p.98.

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emLisboanãoexistenoite.Masésobretudonoquedizrespeitoàscategoriasdetempoedeespaçoquemaissemanifestaofascíniodestesnarradorespelasterrasafricanas.Aobulícioeàvivênciaquasemecânicadodia-a-diabanalemesquinhodePortugal,contrapõe-sedemodomuitocontrastivootempoafricano,distendido,genesíaco,respeitadordosritmosinterioresdoserhumano.Emtermosdeespaço,África surge sempre comoos grandes espaços, de cor intensa e genuína, semqualquermáculadeintervençãohumana,porcontrapontoaoespaçourbanodeLisboa,marcadopelokitschdosazulejos,pelasruaslabirínticas,sufocantesparaquemsehabituouàamplidãoeaosilêncioafricanos.

Seesquecermosaguerra,Áfricaassemelha-se,comestestraços,aumÉdennaterra,aumregressoaoParaísoperdido,configurandoquaseumautopia,umareificaçãodeumtempoemqueahumanidadeestavaemcontactocomaterra,como espaçonatural, semos efeitos perversos das conquistas da civilização.LoboAntunesporváriasvezesreconheceasuaadmiraçãoporestecontinente:“Équeaquiloeramuitobonito,éumpaísmaravilhoso[Angola].Pensa-sequeos portugueses destruíram uma civilização comparável à dos maias. Ali nãohaviapedra,eratudofeitodemadeira.Eratudoprecioso”7.Nosegundo livro de crónicasassistimosaumaconfissãodeamorporestaterraem«Crónicaparaserlidacomacompanhamentodekissanje»:

“Acoisamaisbonitaqueviatéhojenãofoiumquadro,nemummonumento,nemumacidade,nemumamulher,nemapastorinhadebiscuitdaminhaavóEvaquandoerapequeno,nemomar,nemoterceirominutodaauroradequeospoetasfalam:acoisamaisbonitaqueviatéhojeeramvintemilhectaresdegirassolnaBaixadeCassanje,emAngola.Agentesaíaantesdamanhãenisto,comachegadadaluz,osgirassóiserguiamacabeça,àuma,nadirecçãodonascente,aterrainteiracheiadegrandespestanasamarelasdosdoisladosdapicada [...]Acoisamaisbonitaquevi atéhoje foiAngola, e apesardamisériaedohorrordaguerracontinuoagostardelacomumamorquenãoseextingue.Gostodocheiroegostodaspessoas”8.

Trintaanosdepois,aquestãocontinua.Buscadeumpaísqueseprocuraa si mesmo, longe já de um destino imaginado de imperialismo obsoleto, areconciliar-secomasuahistória,afazerasuahistóriaultrapassandotabus.Opróprioautorbuscaaindaapacificaçãodassuasmemórias,quecontinuamenteoassaltamequecontinuamapôrperanteosseusolhos jámadurososverdesanospassadosemcenáriosabsurdos,comobemsevêaindanoTerceiro livro de crónicas,de2005:

7 MaríaLuisaBLANCO,Conversas com antónio lobo antunes,trad.deCarlosAboimdeBrito,LisboaD.quixote,2002,p.95.

8 AntónioLoboANTUNES,segundo livro de crónicas,1ªed.,Lisboa,D.quixote,2002,p.29.

ÁFRICANAOBRADEANTóNIOLOBOANTUNES 349

“Eu estive lá. Eu vi. Não pretendo fazer arte, alinhar coisas bonitas. Nãosouescritoragora:souumoficialdoexércitoportuguês.Nãotereisidoumcriminosoporhaverparticipadonisto?Não foipor cobardiaqueparticipeinisto?”9.

BIBlIoGRAFIA

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9 AntónioLoboANTUNES,Terceiro livro de crónicas,1ªed.,Lisboa,D.quixote,2005,p.112.Estacrónicaintitula-se«078902630Rh+»,títuloqueremeteparaamedalhadeidentificaçãoqueossoldadostinhamaopescoço.

ANACRISTINACORREIAGIL350

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APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 351

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereia DEMIACOUTO

sonia miCeli*

1. umas palavras para começar

NumdiscursoproferidoporocasiãodaatribuiçãodoPrémioInternacionaldos12MelhoresRomancesdeÁfrica(CapeTown,Julhode2002),MiaCoutointerroga-sesobreosdesafiosquesepõemaosescritoresafricanos,colocando,entreoutrasquestões,aquela,queconsiderocentral,danãonecessidadedeosintelectuaisafricanosseadequaremàimagemeàsexpectativasqueoseuropeusconstruíramàvoltadeles.Criticandoosideaissubjacentesaomitoda«purezaafricana», que teria que ser procurada no contexto rural e tradicional, e, porconseguinte, defendida dos ataques do mundo moderno,1 Mia Couto definedois pontos fundamentais, que, como explicitarei mais à frente, enformam aperspectivaqueadoptonestetrabalho.

Emprimeirolugar,divididosentreaadmiraçãopelomundoafro-americanoe a tentativa– irremediavelmente destinada a falhar– de esquecer aEuropa,«asaída[paraosintelectuaisafricanos]sópoderservistacomoumpassoparafrente.[Eles]nãotêmqueseenvergonhardasuaapetênciaparaamestiçagem.

* CentrodeEstudosComparatistasdaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa1 «Defensoresdapurezaafricanamultiplicamesforçosparaencontraressaessência.Algunsvão

garimpando no passado. Outros tentam localizar o autenticamente africano na tradição rural.Comoseamodernidadequeosafricanosestãoinventandonaszonasurbanasnãofosseelaprópriaigualmenteafricana».EmMiaCOUTO,pensatempos,Lisboa,Caminho,2005,p.60.

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[...] Eles são africanos assim mesmo como são, urbanos de alma mista emesclada[...]».2

Emsegundolugar,os«chamadosafricanistas»(sejamafricanos,europeusou americanos), «por mais que se esbravejem contra conceitos chamadoseuropeus,continuamprisioneirosdessesmesmosconceitos»,3nosquaisbaseiamumaideiamaisoumenosmíticadopassadoafricano,dasuatradiçãoepurezaancestral.

Estasduasquestões,evidentementeligadasumaàoutra,prendem-secomamaisamplaproblemáticadarepresentaçãodoafricanoedaculturaafricanaa partir da perspectiva europeia, que, por sua vez, acabou por ter grandeinfluêncianavisãoqueopróprioafricano(intelectualounão)construiudesimesmo,dasuaculturaedoseupassado.Poroutrolado,areferênciaqueMiaCoutofazaomodeloafro-americanonãopodepassaremsegundoplano,umavezqueaculturaafro-americanaéaprincípalresponsávelpelosmitosepelasconstruções ideológicas que condicionam a imagem dos negros pelo mundofora.4

Considerandoestasquestõesfundamentaisparaumamelhorcompreensãodosprocessosqueatravessamasliteraturasafricanascontemporâneas(esobretudoasdelínguaportuguesa,quetiveramumdesenvolvimentomaisrecente),escolhicomoobjectodeanálise,paraestetrabalho,oromanceo outro pé da sereiadeMiaCouto,emqueoautorexploraestastemáticascomaironiaquenoséfamiliarequereflecteumavisãodarealidadecrítica,porvezesamarga,massemdúvidaextremamenteclara.

2. Introdução

O passado,tantoindividualcomohistórico,éumdosprotagonistasdeo outro pé da sereia, sendo, aomesmo tempo, objectodeprocura e presença-ausência misteriosa, que condiciona inevitavelmente a mundividência daspersonagenseaformacomoelaslidamcomosacontecimentosqueconstituemanarração.Aminhatentativanestetrabalhoserá,portanto,mostraramaneiraemqueoautorutilizaaherançadopassadohistóricoeliterárionaconstruçãoenadesconstruçãododiscursodaspersonagensdoromance.

Aestruturadotextoécompostaporduassecções:aprimeiraéambientadaem Moçambique (Dezembro de 2002), enquanto a outra ocupa um espaço

2 MiaCOUTO,pensatempos,cit., p.61.3 MiaCOUTO, pensatempos,cit., p.62.4 Sobreestaquestão,cf.PaulGilroy,The Black atlantic. modernity and double consciousness.

Cambridge,harvardUniversityPress,1993.AsincontornáveiscontribuiçõesdeGirloyparaodebateacercadasrelaçõesentreculturanegraemodernidadeserãoobjectodanossaatençãomaisàfrentenestetrabalho.

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geográfico e temporal mais extenso, narrando uma viagem de Goa até aointerior de Moçambique, começada em Janeiro de 1560 e terminada emMarçodomesmoano.Aligarasduasnarrativas,temosumaestátuadeNossaSenhoraeumbaúcomunsdocumentosquenarramaviagemdomissionárioportuguêsD.GonçaloSilveiradeGoarumoaoImpériodeMonomotapa,ondefoiassassinadopoucosdiasapósterchegado.AdescobertadaestátuaedobaúporpartedoburriqueiroZeroMadzeroéoacontecimentoquedesencadeiaanarrativa ambientada na época contemporânea. De facto, a mulher de Zero,Mwadia,empreenderáumaviagemàprocuradeumsítioaptoaacolherNossaSenhora,viagemquealevarádevoltaàsuaterranatal,VilaLonge,daqualsetinhaafastadohámuitosanos,vivendoemcompletoisolamentocomomaridonumlugarimaginário,chamadoAntigamente.

Em Vila Longe, Mwadia depara com uma situação de degradação eabandonoqueatornaramumacidade-fantasma.Ascasas,asruas,oshabitantesparecemapenasoreflexodoquejáforam,condenadosaumavivênciaquejánãosepodiachamarvida,emboratampoucofossemorte.Trata-sedeumaespéciedelimbo,espaçoemqueafronteiraentreasdimensõesdavidaedamortenãoébemdefinida.ComoobservaJesustinoRodrigues,padrastodeMwadia,“Tristeévivernumlugarondedormirnãodiferedemorrer”.5Contudo,odiadepoisdoregressodeMwadia,verifica-seumacontecimentoqueviráaperturbaranaturalmonotoniadavila,achegadadeumcasaldeamericanos,BenjamineRosie,vindosaMoçambiquecomorepresentantesdeumaONG,cujopropósitoseria,deacordocomoqueelesdizem,combateroafro-pessimismo.Aomesmotempo,sendoBenjaminafro-americanoehistoriador,oseuobjectivoéjustamenteiràprocuradopassadodaqueleque considera sero seupovo,orientando,porisso, a sua pesquisa acerca do tema da escravatura. Por outro lado, Rosie,brasileiranaturalizadaamericana,psicólogadeprofissão,chegaaVilaLongecomumaideiaprecisa:investigarossonhosdosafricanos,comparando-oscomos de negros encarcerados que tinha recolhido durante anos de trabalho nasprisõesamericanas,pois«ela achavaquehavia ligaçõesmisteriosas entre asduasmargensdoAtlântico,sobretudonosmitosreligiosos».6TantoBenjamincomoRosie, portanto, chegamaVilaLongecom ideias construídasa prioriacercadeÁfricaedosafricanos,doseupassadoedosseussonhos.Estasideias,comoprocurareidemonstraraseguir,sãofrutodaassimilaçãoindiscriminadadeconceitosdivulgadosaolongodoséculoXXatravésdemovimentoscomoaharlemRenaissance eaNégritude,que, seporum ladocontribuíramparaumamudançaradicalnoimaginárioocidentalacercadeÁfrica,poroutrolado,foramtambémcriadoresdeconcepçõesemitosque,nalgunscasos,acabaramporsetransformaremestereótipos.

5 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,Lisboa,Caminho,2006,p.137.6 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.197.

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2. A recuperação do passado nas culturas negras da diáspora

TodaavisãodeBenjaminSouthman(esteéoapelidodohistoriador,semdúvida significativo) sobre África é o resultado da sobreposição de ideias ecrençasqueonarradorapresenta,desdeoinício,commarcadaironia.Benjaminolha paraÁfrica como amãe perdida e agora reencontrada («–my forgotten land!»,diráentrandoemVilaLonge),comoolugardoseudestino,oúnicoemque sepoderia reconstituir comoserhumanocuja identidadedivide-seentredoiscontinentes,separadospeloAtlântico.

Estaperspectiva,comosesabe,caracterizaboapartedopensamentoafro-americanodoséculoXX,umavezquearecuperaçãodamemóriahistórica,quetinhasidobrutalmenteapagadapelaexperiênciadaescravatura,constituiuumaétapafundamentaldentrodoprocessodeconstruçãodeumaculturadadiásporaquepermitisseaosnegros(nãoapenasnosEstadosUnidos,mastambémnasCaraíbas e na Europa) viver dignamente no presente e, sobretudo, pôr asbases para um futuro emque deixassem, por fim, de ser umgrupo cultural,social e economicamente marginalizado. De facto, uma das convicções quefundamentouasteoriassobrearaçaqueacompanharamosempreendimentoseuropeusnascolónias,justificandoaexploraçãodosescravosedosterrítoriosconquistados,eraaquelaqueapoiavaatesedaausênciadeculturanocontinenteafricano,oque,evidentemente,acabavaporlegitimaraintervençãocivilizadoraque elevaria aquelas populações de um estado pré-histórico à modernidadeexportadapeloscolonizadores.Estepreconceitonãoseesgotoucomaaboliçãodaescravaturaecomofimdocolonialismo,poisafaltadedocumentosescritosquedessemcontadeumpassadoafricanoanterioràchegadadoseuropeuseraassumidapeloshistoriadorescomoumaprovaafavordaausênciadeexpressõesculturais significativas no continente africano. Como observa Abiola Irene,defacto,

ThesubordinateroleoftheNegroinwesternsocietyhadbeenjustifiedmainlybytheallegationthatAfricahadmadenocontributiontoworldhistory,hadnoachievementstooffer.ThelogicalconclusiondrawnfromthisideawasputbyAliouneDiopinthisway:«Nothingintheirpastisofanyvalue.Neithercustomsnor culture.Like livingmatter, thesenatives are asked to takeoncustoms,thelogic,thelanguageofthecoloniser,fromwhomtheyevenhavetoborrowtheirsancestors»ThewesternthesisthattheAfricanhadnohistoryimpliedfortheblackmanhehadnofutureofhisowntolookforwardto.7

7 AbiolaIRENE,“Négritude–LiteratureandIdeology”,The Journal of modern african studies,CambridgeUniversityPress,vol.3,No.4(Dec.,1965),pp.499-526,p.513.

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Esta situação tornaclarasas razõesdocrescente interessedosestudiososnegrospelahistória,queseafirmousobretudoapartirdadécadade‘30doséculoXX, na onda da Négritude8 francófona e de outros movimentos culturais quecomelapartilhavamaintençãodecontribuirparaareabilitaçãodasculturasdeorigemafricanaespalhadaspelomundofora.Foinestecontextoque,nosEstadosUnidos,surgiramosprimeirosprogramasuniversitáriosemBlack studies,cujoobjectivoprincipalera,precisamente,odeproporcionaraosestudantesnegrososconhecimentossobreassuasprópriashistóriaecultura,quenuncatinhamsidointegradasnosprogramasdasdisciplinasdehistóriaedeculturanorte-americanas,senãonoquediziarespeitoàépocadaescravatura.Porconseguinte,aúnicanoçãoqueosjovensestudantesnegrostinhamdoseupassadocoincidiairremediavelmentecomaapresentaçãoqueaculturamaioritária–brancadematrizanglo-saxónica– tinha construído dela: não havia nemheróis nem figuras de relevo entre osnegros,que sempre foram (e, implicitamente, segundoeste raciocínio, sempreseriam) apenas escravos, condenados a servir os grupos dominantes.9 Estasituaçãoéexplicadadeformaclaraatravésdanoçãode“double-consciousness”,descritaporW.E.B.DuBoisemThe souls of BlackFolk:

After the Egyptian and Indian, the Greek and Roman, the Teuton andMongolian,theNegroisasortofseventhson,bornwithaveil,andgiftedwithsecond-sight in thisAmericanworld,–aworldwhichyieldshimnotrueself--consciousness,butonlyletshimseehimselfthroughtherevelationoftheotherworld.Itisapeculiarsensation,thisdouble-consciousness,thissenseofalwayslookingatone’sselfthroughtheeyesofothers,ofmeasuringone’s soul by the tape of aworld that looks on in amused contempt and

8 Otermo,utilizadopelaprimeiravezporAiméCesairenocélebreCahier d’un retour au pays natal (1938),édefinidoporumdos seusmaiores teóricos,LéopoldSenghor,«the sum of the cultural values of the black world; that is,acertainactivepresence in theworld,orbetter, intheuniverse».LéopoldSédarSENGhOR,“Negritude:AhumanismoftheTwentiethCentury”,inRoyR.GRINKERandChristopherB.STEINER(eds.),perspectives on africa. a reader in culture, history and representation,MaldenandOxford,BlackwellPublishers,1997,p.630.

9 ComorefereJohnBlassingame,oolvidoeasdistorçõessofridaspelahistóriadosnegrosnosEstadosUnidos podemexplicar, emparte, a atitudepara coma história dos negros na épocaemque ele escreve (iníciodadécadade ’70): «The racismofAmericanhistorians is directlyresponsibleforthecontemporaryattitudesofblackstowardhistory.Blackactivists,forexample,havecreatedthemythoftheheroic,rebellious,militantNegrotocounterthewhiteman’smythofSambo,theobsequioushalf-man,half-child.Whiteracismhasbeensopervasiveandhistorysodistorted,someofthestudentsargue,thatblackscanonlyimprovetheirself-imagebytellingbigger lies than white historians told in the past». John BLASSINGAME, “The Role of thehistorian”, in John Blassingame (ed.), new perspectives on Black studies, Urbana/Chicago/London,Universityof IllinoisPress,1971,p.211.Numasituaçãocomoesta,emquemitosementiraseramsubstituídoscomoutrasinvençõesigualmenteestereotipadas,afunçãodapesquisahistóricacomoagentefundamentalnareabilitaçãodafiguradonegronasociedadeenaculturaamericanaemergecominegávelclareza.

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pity.Oneeverfeelshistwo-ness,–anAmerican,aNegro;twosouls,twothoughts,twounreconciledstrivings;twowarringidealsinonedarkbody,whosedoggedstrengthalonekeepsitfrombeingtornasunder.10

Segundoestavisão,onegroe,maisespeficamente,onegro-americano,vivenumacondiçãoambíguaperanteasociedadeemqueéinserido,estando,aomesmotempo,dentroeforadela,esujeitando-se,conscienteouinconscientemente,àsimagensqueoutrosconstruíramnoseulugar.Nestesentido,otrabalhopioneirodeautorescomoFrederickDouglass,W.E.B.DuBois,RichardWrighteoutrosabriuocaminhoparaumareflexãoinovadorasobreopassadoeopresente,queconsiderasse os africanos e os seus descendentes no Novo Mundo não comoobjectospássivos,massimcomosujeitosactivosepensantesdentrodopanoramahistóricomundial.

Comonãopodiadeixardeser,dentrodestecontextodegrandeefervescênciacultural,surgiramcorrentesdepensamentosextremistas,quederamorigemaoassimchamadoAfro-centrismo,oqualconsideraqueosconceitosderaçaedeculturaestãointimamenteligadosentresi,tendoumabaseessencialista,queseriagarantedasuaautenticidade.Contudo–eestaéumadascríticasmaissubstanciaisaomovimento–,aofazerisso,oAfro-centrismolimita-seasubstituirostermosdoparadigmadasuperioridaderacial,emquearaçaconsideradainferiorjánãoé a negra, mas sim a branca, reforçando, desta forma, a base do pensamentomodernoocidentalquedeuorigemàsteoriasdaraça,bemcomoaocolonialismoquenelassefundamentava.

A noção de tradição desempenha um papel fundamental no pensamentoafro-cêntrico,emboranalgunscasoselasejaapenasfrutodemitoseinvençõesconstruídosad hoc pelosmilitantesafro-centristas.Noquedizrespeitoàpesquisahistórica,atemáticamaisdebatidapelosafro-centristasepelosseusopositoresfoi,semdúvida,odasupostanegritudedosegípcios,teseavançadanosanos‘50porCheikhAntaDiopecujaaceitaçãoseriaopressupostoparaoreconhecimentodaorigemafricanadetodasasraças.Semquererentraragoranospormenoresdaquestão,cujalegitimidadeéirrelevanteparaosfinsdestetrabalho,oquemeinteressaaquiobservaréqueaepistemologiaemqueelasebaseiaéamesmaemqueseapoiaodiscursoracistaocidental.Pois,comoobservaKwameAnthonyAppiah:«Themoststrikingthingabout[Afrocentrism]ishowthoroughlyathomeitisintheframeworksofnineteenth-centuryEuropeanthought.[...]Afrocentrism,inshort,seemsverymuchtosharethepresuppositionsoftheVictorianideologiesagainstwhichitisreacting».11Oargumentocontinuamostrandocomoosafro-

10 W.E.B.DUBOIS,The souls of Black Folk,NewYorkandLondon,Norton&Company,1999,pp.10-11.

11 KwameAnthonyAPPIAh,“EuropeUpsideDown:FallaciesoftheNewAfrocentrism”,inRoyR.GRINKERandChristopherB.STEINER(eds.),perspectives on africa. a reader in culture, history and representation,cit.,p.729.

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-centristasrecuperaramointeressepelomundoantigo,quemarcouopensamentoeuropeu entre finais do séculoXVIII e princípio do séculoXIX, limitando-sea substituir as raízes gregas da civilização ocidental com as egípcias, isto é,negras.Comoéóbvio,posiçõesdestegéneroacabamporconduziradiscussãoa um impasse, sem abordar a verdadeira raíz do problema, a saber, a própriaideiaderaçaederacismo,asquaissefundamnummodeloepistemológicoquetemorigemnas teoriaselaboradasporcientistase filósofoseuropeusnaIdadeModerna.

Esta longa premissa teórica serviu-me para enquadrar a acção daspersonagensdoromancedeMiaCoutonasquaisvoufocaraminhaatenção,BenjamineRosie.A referênciaaopanoramahistóricoeculturaldequeelesprovêem ajudará a perceber melhor as razões que se escondem por trás dassuas palavras e das suas acções.A viagem do casal ao continente dos seusantepassadoséparaeles,massobretudo,ver-se-á,paraBenjamin,umaviagemsimbólica que os levará para além das sua fronteiras interiores, como játinha acontecido a muitos viajadores afro-americanos que os precederam nadescobertadocontinentenegro.

3. os equívocos

I’mofAfricandescentandI’minthemidstofAfricans,yetIcannottellwhattheyarethinkingandfeeling.

RichardWright,Black power

ApesardasupostafamiliaridadedeBenjamincomaculturaafricana,desdeoiníciomuitasdassuasideiasrevelam-seerradas,como,porexemplo,aquelasegundoaqualÁfricaseriaolugardosossegoedosvagares,emcontraposiçãocomavelocidadedopaísdeondeelevinha.Muitopelocontrário,viajandoa«estonteantevelocidade»nocaminhoentreoaeroportoeVilaLonge,Benjaminapercebe-sedequesetinhaenganado,sendoeste,conformeantecipaonarrador,apenas«oprimeirodeumalongasériedeequívocos».12

Estesequívocos,quemarcama formacomoocasal se relacionacomacomunidadedeVilaLongeecomÁfricaemgeral,advêmdapretensãoqueelestêmdeconhecerocontinente,conhecimentoqueteriamadquiridonãoapenasatravésdeestudosepesquisas,cadaumnasuarespectivaárea,mastambémporrazõesquetêmavercomasuaherançahistórico-culturalpessoal.Comojáreferi,defacto,Benjaminéafro-americano,oque,nasociedadedequeeleprovém,equivaleasernegro(emboraele,paraoshabitantesdeVilaLonge,

12 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.164.

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sejamulato), enquantoRosie, brasileira, émulata.Osdois, portanto, no seuentender, teriam uma percepção do mundo muito próxima da dos africanos,aqui representados pela modesta povoação de Vila Longe. Esta ideia de siprópriosdetermina, sobretudonocasodeBenjamin,a suaatitudeperanteaspessoaseas situaçõescomquedeparamemVilaLonge.habituado,duranteumavidainteiranosEstadosUnidos,apertenceraumgrupodiscriminadoedesfavorecido,Benjaminnãoseapercebeque,emÁfrica,oseupapel,istoé,asua identidadesocial,mudouderepente.Paraosafricanosqueolhamparaele,eleéapenasumamericanocomumagrandedisponibilidadeeconómica,dequemse tentarãoaproveitaromaispossível,encenandoparaocasalumaÁfricapura e autêntica que, na realidade, existe apenas na imaginação dosocidentais.OshabitantesdeVilaLongesabem,efectivamente,queseBenjamineRosiedescobrissemo que é realmente,naqueledadomomentohistórico,asuavila,queparaelesrepresentaÁfricatoda,ficariamfacilmentedesiludidos,e tal desilusão traduzir-se-ia numa diminuição dos lucros que aquela visitapoderia trazer. Por isso, ao longo de toda a narração, assistimos a umarepresentaçãocontínua,naqualosafricanostentamagradaraosdoisvisitantesquantomaispossível,reforçandoaimagemqueelestêmdeÁfricaequeosfazsonhar.

Comefeito,BenjamineRosievãoàprocuradehistóriasdesucessoquecontribuamparacombateroafro-pessimismo,mastambémderelatossobreoperíododa escravatura, queBenjamin considera ser a experiência central naformaçãodeumaculturanegracomumaosqueficaramemÁfricaeaosqueforam para o outro lado doAtlântico – os escravos e os seus descendentesespalhados pelas Américas. Ora, antes da chegada do casal, o comité dehabitantes deVilaLonge, lideradopelo empresárioCasuarino, está a par detudo isto e prepara-se para proporcionar aos estrangeiros toda a informaçãodequepossamprecisar.Contudo,duranteareunião,surgelogoumproblema:aparentemente,emVilaLonge,nuncahouvetráficodeescravos...pelomenosnãonostermosque,segundoCasuarino,poderiaminteressaraosamericanos.Ocomérciodeescravos,naquelazona,lembraobarbeiroArcanjoMisturaaospresentes,foipraticadopelosvanguni,umgrupoétnicoprovenientedoNortedaÁfricadoSulque,emmeadosdoséculoXIX,invadiuoterritóriomoçambicano.Mas esta observação não agrada a Casuarino, que, profundamente irritado,declara:

–eh pá, malta, este homem está proibido de falar com os americanos. [...]essa escravatura era entre pretos. está a perceber? os afro-americanos querem saber só dos brancos que nos levaram a nós para a américa.

– mas nós nunca fomos para a américa...– não nós, aqui. mas nós,efazumgestolargocomasmãos,os pretos, sim.Cauteloso,ZecaMatambiraaindaousouadúvida:

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–mas aqui, em Vila longe, houve quem fosse levado nos navios? eu acho que não...

– acha? pois vai passar a achar o contrário. nós vamos contar uma história aos americanos. Vamos vender-lhes uma grande história.13

Nestatrocadeopiniõesassentaocernedaquestão:averdadenemsempreéinteressantee,sobretudo,rentável.Porestarazão,ahistóriaserátransformadaemhistóriaeosamericanosescutarãoosrelatosquetinhamimaginadoantesdeláchegar.

Episódiosdestegéneroaparecemcomfrequêncianasliteraturasafricanas,adenunciar,comumacertaironia,afragilidadedodiscursocientíficosobreÁfrica,produzidoapartirdepressupostosporvezesaindaprofundamentelogocêntricos,necessáriosparapoderencaixaremcategoriaspredefinidastudooqueescapaàsuacompreensão,facilitandodestamaneiraasuarelaçãocomodesconhecido.Entreoscritériosatravésdosquaisopensamentoocidentalcostuma julgareavaliaras culturas outras, o da autenticidade, evidentemente ligado ao incontornávelconceitodecultura tradicional, apresenta-secomoexigência fundamental,quedefinearelaçãodohomemeuropeucomasculturasconsideradasretrógradase,consequentemente,inferiores.

O interesse pela autenticidade prende-se, como é óbvio, com odesaparecimentodelanaculturaocidental,resultadodeumasériedeprocessosculturaisquesepodemreunirsoboconceitodemodernidade.TendoemcontaapropostadeWalterBenjamin,segundoaqual,oquecaracterizaaobradeartenamodernidadeéapossibilidade,inerenteaelaprópria,dasuareproduçãotécnica,oque,porsuavez,lheretiraasuaaura,istoé,asuaunicidade,entãocompreende-sequeoqueestáaquiemcausaéodesejo,porpartedohomemocidental,derecuperar aquela aura que só as expressões culturais de uma civilização pré-modernapoderiamaindater.14

Porém,o outro pé da sereia mostraclaramentequeestedesejo,hojeemdia,estáirremediavelmentedestinadoafracassar,umavezqueamodernidadejáhámuitotempodeixoudeserumaprerrogativaocidental,podendo-seconsiderarque, pelo menos no que diz respeito ao continente africano, as experiênciasdaescravaturaedocolonialismomarcaramavivênciaeavisãodomundodomundodetodososqueforamdirectaouindirectamenteafectadosporelaseque,portanto,tambémentraramaplenodireitonoassimchamadomundomoderno.

13 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,pp.153-154.14 Nosúltimosanos,orecursoaoconceitodeautenticidadetemalimentadoosdebatesacercadas

expressõesartísticasmodernas,sobretudomusicais,tantodeumcomodooutroladodoAtlântico.Alguns artistas, de facto, têm sido acusados de traição por terem aderido a génerosmusicaisconsideradosocidentais(porexemplo,poperock)eaautenticidadetornou-seummarcoessencialparagarantir a aceitaçãonomercadodeproduçõesmusicaisnão-europeias enão-americanas,genericamentereunidassobaetiquetadeWorldMusic.(Cf.PaulGilroy,The Black atlantic,cit.,pp.96segs).

SONIAMICELI360

Ese,paraalémdisto tudo, tivermosemcontaosefeitosmuitomais recentes,mas talvez igualmente profundos, da globalização sobre as assim chamadasculturastradicionais,ficaaindamaisevidenteatéquepontoaperspectivadeumapersonagemcomoBenjaminestejainfluenciadaporumasériedeconvicçõesquenãoencontramcorrespondêncianarealidade.

Contudo,comojáapontei,estassituaçõesnãosãonadararasnasliteraturasafricanas. Ruy Duarte de Carvalho, no seu último romance, a terceira metade,descreveuma situação semelhante, emqueuns estudiosos europeus emAngolaconvocam um grupo de mucubais e mucuíssos15 para informar acerca dedeterminadosrituaisreligiosostradicionaisqueumdeles,umprofessorportuguês,estavaareferir.Averdadeéque,comoparecelogoevidente,afunçãodoslocaisseria antes confirmar e não informar, pois o professor já tinha, evidentemente,osconhecimentosnecessáriosparaespalharasuaciênciaentreoscolegas.Mas,solicitados com insistência a confirmar a tal versão dos factos, os informantes vêem-seobrigadosadizerque,naverdade,nuncatinhamouvidofalardalendaedastradiçõesqueoprofessoracabavadereferir...Eaesteponto,ovelhoLuhuna,autoridade localdosmucubais,queos tinha levadoatéalieque lhe tinhadadopreviamenteinstruçõesprecisassobreoqueteriamquedizer,

disparatou entãodesabridamente em línguaolukuvale comaquela corjademucubais e mucuíssos gentios e matumbos das pedras que estavam a pôrcompletamente em causa a sua boa política de autoridade tradicional e deinformante obrigatório e privilegiado que se alguma coisa tinha aprendidoduranteavidaeraqueaosbrancos,eaquemquerquefossequemandassemais,oquehaviaarespondereraaquiloquequeriamouvir..........equenãoseadmirassemagora,jáquenãotinhamfeitocomoeleostinhainstruídoantes–erasagrado,aquelemorro,sim–,queosbrancosfossememborasemlhesdeixarnemsequeraamostradeummata-bichoqualqueratrás...16

Como é evidente, o mecanismo que se reproduz aqui é idêntico àqueledescritoporMiaCouto.quemdetémopoder–económicoecultural–andaàprocuradeconfirmaçõesdoque jásabeenãoprecisadeesclarecimentosque,emúltimaanálise,poderiamnãosópôremcausanoçõeseideiaspreviamenteelaboradas, mas sobretudo ter o efeito ainda mais perturbador de alterar asrelaçõesdepoderque–eosexemplosquetrouxemostramistomuitoclaramente–marcaramaépocacolonialecujosrastoscontinuamvisíveisaindahoje.

Com efeito, a preocupação principal de Benjamin e Rosie consiste emverificar a exactidão de hipóteses formuladas anteriormente, que, como já foi

15 PopulaçõesdosudoestedeAngola,respectivamentepastoril(osmucubais)ecaçadora-recolectora(osmucuíssos).

16 RuyDuarteDECARVALhO,a terceira metade,Lisboa,Cotovia,2009,pp.113-114.

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 361

apontado,serevelamquasesempreerradas.Oproblemaprincipalprende-senãosócomadificuldade,hápoucoreferida,dequestionarasideiaspré-constituídas,mascomumaquestãobemmaisíntima:ofactodeelesseconsideraremmuitomais africanos do que realmente são, querendo, portanto, aplicar à realidadeafricanaconceitosquelhesãoestranhos.Porexemplo,numaconversaemqueConstança,mãedeMwadia, refere-se a si própria e aos seus familiares comopretos,Benjamin,sensivelmentechocadocomousodestapalavra,intervém:«–não se diz preto, minha irmã. diz-se ‘negro’. é assim que é correcto. – Correcto, como? – Correcto. – mas, para nós, aqui, ‘negro’ é que é insultuoso».17Nestabrevetrocadeideiasacercadostermos‘preto’e‘negro’,queacontecemesmoàchegadadosestrangeirosàcasadeConstança,ondeserãohospedadosduranteasuaestadiaemVilaLonge,oamericanotentatransmitirvagamenteoconceitodepolitically correct,numambienteemqueeste,certamente,nãofazomesmosentidoquenosEstadosUnidos:paraosseusinterlocutoresumtermonãopodesermaisoumenoscorrecto,massimplesmentemaisoumenosinsultuoso.Paraalémdisso,eleesquecequeosignificadodaspalavrasmudaemrelaçãoaocontexto(histórico,social,etc.)emqueelassãoutilizadas,aplicando,conscientementeounão,odiscursonegro-americanoàrealidademoçambicana.

4. Rupturas no texto

Embora a encenação realizada para os americanos prossiga até ao fim danarração, há, ao longo do texto, momentos de ruptura, marcados por pequenasrevelaçõesque,porbrevesinstantes,seafastamdoguião.UmdestesepisódiostemcomoprotagonistaConstança,que,duranteumaconversacomRosie, emqueabrasileiraqueria,supostamente,fazer-lheumasperguntasacercadosseussonhos,confia-lhealgunsdossofrimentosque,sendomulher,tevequeaguentarnasuavidamatrimonial.Duranteestaconversa-confissão,emqueConstançadesmistificaomitodoamanteafricano,estacomenta:«–é muito bom sonhar com África, assim de longe. Você, minha filha, não aguentaria viver assim...».18Estafrase,situadamaisoumenosameiodanarração,podeconsiderar-seatesesustentadapeloautorao longodo romance.EntreaÁfricasonhadapelosamericanoseaÁfrica real,vividadiariamentepeloshabitantesdeVilaLonge, háumabismo tãoprofundocomoooceanoqueseparaosdoiscontinentes.

17 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.170.Paraesclareceradistinçãonousodosdoistermos,citoumapassagemdeumestudodeMariaCarrilho,aqualrefereque«aopassoquenoportuguêsescrito,criadoemaisusadonametrópole,apalavranegro nuncaassumeconotaçõesnegativas,nalinguagemfaladanasex-colóniasquandoumbrancoqueriaofenderexpressamenteumafricanousavaapalavra‘negro’».MariaCARRILhO,sociologia da negritude,Lisboa,Edições70,1975,p.56.

18 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.205.

SONIAMICELI362

Poucaspáginas a seguir, deparamoscommaisumepisódiocrítico, cujosprotagonistas são, desta vez, dois homens, Benjamin e o barbeiro ArcanjoMistura,ex-revolucionário,desiludidocomarevolução.Noiníciodaconversa,Benjamin,tentandoconquistarasimpatiadobarbeiro,afirma:«–uma coisa é certa, vocês, daquele lado, e nós, deste lado, temos uma única luta, a afirmação dos negros...».19Estafrase,apesardasboasintençõesdeBenjamin,demonstraadificuldadedeledeslocaroseucentrodereferências,poisosdeíticosqueeleutiliza (daquele e deste) referem-se àAmérica como este lado eÁfrica comoaquele lado.Apesar de estar fisicamente em África, o seu discurso reflecte aperspectivadequemseencontranosEstadosUnidos.20TaldiscursoirritaArcanjoMistura,quetemumaideiacompletamentediferenteemrelaçãoaoqueosnegrosdeveriamfazer.EnquantoBenjaminconsideraqueelesdeveriamunir-seàvoltadamesma luta,Arcanjo sustéma tese contrária: «–nós temos que lutar para deixarmos de ser pretos, para sermos simplesmente pessoas».21Eantesdefechara conversa,Arcanjo dirige-se aBenjamin dando-lhe umconselho: «–Voltem para a américa, lá é que é a vossa casa. e vocês têm que lutar não é para serem africanos. Têm que lutar para serem americanos. não afro-americanos. americanos por inteiro».22

Esta hipótese, que Benjamin recusa tomar em consideração, coloca aquestãodaidentidadecomodireitamenterelacionadacomoterritório,istoé,comoambienteemquenascemosecrescemos,sendoosconceitosdepátriaenaçãohojeemdiamuitomaisflexíveiseheterogéneosdoquenopassado.Defacto,segundoavisãodoseuinterlocutor,aligaçãoqueBenjamintemcomAmérica,emboraelepareçanãoseaperceberdisso,émuitomaisprofundaecomplexado

19 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.218.20 Este episódio torna evidentes as contradições que subjacem ao discurso de Benjamin e que

emergem emvárias ocasiões ao longo da narrativa.Repare-se, por exemplo, nas reacções deBenjamineRosienahoradeaterraremMoçambique:«–o piloto será moçambicano?–.Avozde[Rosie]eracontida,envergonhadacomanaturezadasuadúvida.[...]Ossolavancosdoaviãonavelhapistadeaterragemfizeramemergir,também[emBenjamin],ainconfessávelpergunta:dequeraçaseráopiloto?Serianegroaquelequeconduziaoseudestino?»,p.162.

21 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.219.22 MiaCOUTO,o outro pé da sereia, cit.,p.220.AperspectivadeArcanjoMistura, apesarde

razoável,ignoraalgumasquestõesimportantesnoquedizrespeitoaocontextosocialeculturaldequeBenjaminprovém,eemquemedetereinapenúltimasecçãodestetrabalho.Contudo,gostariadeassinalarqueestaposiçãocontradizaquelaexpressaporDuBoisnaconclusãodopassodeThe souls of Black Folkqueciteiacimaequepropõeumcaminhointermédioentreaafiliaçãoexclusivaaumaouàoutracomunidade:«ThehistoryoftheAmericanNegroisthehistoryofthisstrife,–thislongingtoattainself-consciousmanhood,tomergehisdoubleselfintoabetterandtruerself.Inthismerginghewishesneitheroftheolderselvestobelost.hewouldnotAfricanizeAmerica,forAmericahastoomuchtoteachtheworldandAfrica.hewouldnotbleachhisNegrosoulinafloodofwhiteAmericanism,forheknowsthatNegrobloodhasamessagefortheworld.hesimplywishestomakeitpossibleforamantobebothaNegroandanAmerican[…]».W.E.B.DUBOIS,The souls of Black Folk,cit.,p.11.

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 363

queaquetemcomÁfrica,poisestafoialimentadaapenasatravésdesonhoseleituras,enãoatravésdevivênciasreais,comoaoutra.Emúltimainstância,oqueBenjaminfezdurantemuitosanosfoiconstruirumaimagemestereotipada,istoé,fixa,nãoapenasdeÁfrica,mastambémdesipróprioedaquelaqueconsideraser a sua identidade (ainda em formação, pois só o regresso a África poderácompletaroseupercursoàprocuradesipróprio).Porisso,peranteaperspectivadeparticiparnumacerimóniadebaptismotradicionalemquepretendeadquirir,juntocomumnovonome,umanovaidentidade,Benjamindeclaraque,sim,jáfoibaptizado,masnumaigrejanoseupaís,oque,nasuaopinião,édiferente.Noentanto,ocurandeiroquepresidiriaoritualresponde-lhe:«— é o seu engano, esse. é tudo a mesma água, todos os rios são irmãos, todos correm em nossas veias».23 Isto significa, emoutras palavras, que a identidade escapa a padrõespredefinidos e estáticos, sendo, muito pelo contrário, um conceito híbrido esujeitoamudança,frutodeváriascontribuições,24quefazemcomque,porumlado,cadaumdenóspossuaaomesmotempomúltiplasidentidades,mas,tambémque,pelooutro,existaumelementoquenosécomumatodos,istoé,osimplesfactode sermos todos sereshumanos.humanidade representada, naspalavrasdocurandeiro,pelaáguaepelosriosemqueestacorre.E,apósterrecebidootãodesejadobaptismo,BenjaminlembraráaspalavrasqueArcanjoMisturalhetinha dirigidopoucos dias antes e acabará por concordar comelas, pensando:«Terpátria,terraça,ternacionalidade:queimportânciatinha?Bastava-seassim,DereMakanderi[oseunovonome],criaturamuito pessoal e intrasmissível».25Porfim,eapesardeonarradorrelatartudoistocomumacargairónicaevidente,Benjaminchegaàconclusãoquepossuirumaidentidadedefinitivanãoé,aofimeaocabo,tãoimportantecomoacreditara,sendo,aliás,impossível.Noentanto,emboranestapassagemse lembredaspalavrasdeArcanjoMistura, oque elefaz é exactamente o contrário daquilo que o barbeiro lhe tinha aconselhado:uma vez recebido o tal baptismo, em vez de dar a sua experiência africanapor concluída, decide abandonar Vila Longe rumo ao interior, continuando oseupercursodedescobertasozinhoe,atéaofimdoromance,nãohaverámaisnotícias dele, dissolvido na obsessiva procura de si próprio e do seu passadoancestral.

23 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.319.24 Entreosmuitosautoresquecolocamaquestãodaidentidadeculturalemtermosdehibridismoe

mudança,Stuarthall,aoreferir-seespecificamenteaocontextodasculturasdadiáspora(negraenão só), afirmaque«Cultural identity [...] is amatterof ‘becoming ’ aswell asof ‘being’.[...]Cultural identities arenot anessencebut apositioning».StuarthALL,“Cultural identityanddiaspora”, in J.RUThERFORD(ed.), identity: Community, Culture, difference,London,Lawrence&Wishart,1990,pp.222-237.

25 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.336.

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5. diários, papéis e abismos interiores (1)

Agora,elasabia:umlivroéumacanoa.EsseeraobarcoquelhefaltavaemAntigamente.

Tivesselivroseelafariaatravessiaparaooutroladodomundo,paraooutroladodesimesma.

Mwadiaemo outro pé da sereia

Opassado é o protagonista invisível de todo o romance e é narrado aoscrédulosamericanosemsessõesdetranseemqueMwadiafingeestarpossuídaspelosespíritosdosantepassados.Taisantepassadossão,naverdade,nãomaisqueosdocumentosqueMwadiaacharanobaúdeD.GonçaloSilveiraenosquaisencontrainfinitasfontesdeinspiraçãoparaassuasencenações,brincandocomahistóriaparainventarnovasestórias,quedevolvemaoseupúblico–constituídopelosamericanosepeloshabitantesdeVilaLonge–umapercepçãodopassado,porrealouimaginárioqueesteseja.

OsrelatosdiáriosdeMwadiaafectamdemaneiradecisivaBenjamin,que,sessãoapóssessão,vêdesenrolar-seperanteosseusolhosumanarrativaqueoconduzatéaosmaisprofundosabismosdasua interioridade,questionandomuitas das certezas nas quais se terá apoiado na definição da sua própriaidentidade,entreestas,aconvicção,deimensovalorparaele,depertenceraumgruporacialbemdefinido,odosnegrosamericanos.Ora,oqueacontece,naúltimasessãodetranseencenadaparaodeleitedocasal,põeironica-menteemcausaestacerteza,quequiçáfosseaúnicanavidadeBenjaminSouthman:

—o senhor, Benjamin southman, é um mulato.— mulato, eu?OarofendidodeBenjaminsuscitouaintervençãodeCasuarino.ora, ele não se magoasse. Eacrescentou:afinal, desde Caim que somos todos mulatos. Oempresárioelaboravacomeloquência:haviaaglobalização.Aofimeaocabo,vivíamosaeradamulatizaçãoglobal.26

A seguir, a tremenda revelação: o primeiro antepassado de Benjamin asairdeÁfrica rumoaoNovoMundonãoera, aocontráriodoqueele sempretinhaimaginado,nemhomemnemafricano,massim…umamulherindiana.27Adesilusãomergulha-onodesconforto,poisabalaaideiadepurezaracial,quetantopesoterátidonaformaçãodasuaidentidade.

26 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.311.27 Trata-sedeDiaKumari,personagemqueoleitortinhaencontradonanarrativade1560,edeque

Mwadiativeranotíciaaolerosdocumentosencontradosnobaú.

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 365

Oproblemada raçaéamplamente tratadono romance,umavezqueela,tantonassociedadescoloniaiscomonaspós-coloniais,continuaaserumtraçoidentitário determinante nas relações sociais, pois marca a imagem que cadasujeito cria do outro, condicionando, por conseguinte, a sua atitude para comele.28Especificamente,aideiadequearaçaestejadirectamenterelacionadacomanacionalidadee/oucomaetnicidade,colocaumasériedeproblemasquelevamanãoreconhecerindivíduosderaçasdiferentescomocidadãosdopaísaoquepertencem,apesardeteremnascidoecrescidolá.Emo outro pé da sereia,estaquestãoécolocadamuitoclaramentenaformacomoBenjaminolhaparaJesustinoRodrigues,opadrastodeMwadiadeorigemgoesa,naturalizadomoçambicano.Enquantooamericanoestáàprocuradeinformaçõesparaassuaspesquisassobreaépocadaescravatura,Jesustinoofereceoseudepoimento,masa reacçãodeBenjaminétudomenosqueesperada:

BenjaminSouthmannãosemostrarainteressado.—eu quero testemunhos de africanos.—e eu sou o quê?—preciso de depoimentos de africanos autênticos.—eu sou autêntico.29

quem é um africano autêntico? O que é preciso para alguém se poderapresentarcomotal?Eainda:dequefalamosquandofalamosemautenticidade?

AfalhanoraciocíniodeBenjamin,quejá lhetinhacausadoumaenormedesilusão ao ouvir a revelação de Mwadia, e que provoca um sentimento deprofunda amargura em JesustinoRodrigues, o qual não vê reconhecido o seudireitoapertenceràterraemquepassoutodaasuavida,consisteemvalidarasnoçõesdeautenticidadeedepureza,semseaperceberdequeasduassebaseiamempressupostoserrados,que,umaveztidosemconta,acabamnecessariamenteporquestioná-las.

Oprimeirodestespressupostoséoqueconsiderapossíveltraçarumalinhadedemarcaçãoclara,capazdesepararumgrupodeoutrosedemanterintactasas

28 Philomena Essed, num artigo intitulado “Everyday racism”, descreve os conceitos de raçaede racismonestes termos:«Keeping inmind that “race” is an ideological constructionwithstructuralexpressions(racializedor“ethnicized”structuresofpower),racismmustbeunderstoodasideology,structure,andprocessinwhichinequalitiesinherentinthewidersocialstructurearerelated,inadeterministicway,tobiologicalandculturalfactorsattributedtothosewhoareseenasadifferent“race”or“ethnic”group».PhilomenaESSED,“Everydayracism”,inPhilomenaESSED and David Theo GOLDBERG (eds.), race Critical Theories, Malden and Oxford,BlackwellPublishers,2002,p.185.Emborahojeemdiaexistaumatendênciaparasubstituiroconceitode“raça”comode“etnicidade”,oresultado,noquedizrespeitoàassimetriaqueregulaasrelaçõesdepoderbaseadasemideiasfixas,construídasarredordosgruposminoritários,acabaporseromesmo.

29 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,p.322.

SONIAMICELI366

característicasquedefinemasuaunicidadeemcontraposiçãocomoutrasemquenãosereconhece.Seistonuncafoiviável,umavezquedesdesempretemhavidocontactosetrocasentregrupossocialeculturalmentedistintos,falarempurezahojeemdiafazaindamenossentido,poisosprocessosculturaiseeconómicosaosquaiscostumamosreferir-nosquandofalamosemglobalização(ou,naspalavrasdoCasuarino,mulatização global)estãoaformarsociedadesdocaráctercadavezmaishíbridoemisturado.

O segundo pressuposto que gostaria de questionar antes de terminar estadiscussão, é o queolhapara a autenticidade comogarantia dehomogeneidadedentrodeumdeterminadogrupo,ignorandoasinúmerasvariáveis(género,idade,classe,etc.),queacabaminevitavelmentepordistinguirosmembrosdogrupounsdosoutros.Paramais,nassociedadesmodernas,caracterizadasporumcrescentegraudecomplexidade,afragmentaçãotantodentrodogrupooudacomunidade,como na interioridade do indivíduo, tem cada vez mais o aspecto de regra enãodeexcepção.Reconhecer istonão significa, contudo, adoptarumaposiçãopluralistaquenegueaexistênciadequalidadese traçoscomunsquedefinamapertençaaumdeterminadogrupooucomunidade.ComoobservaPaulGilroy,adificuldadenestaperspectiva–que,evidentemente,constituiatendênciaopostaàperspectivaessencialista,queacreditanumaligaçãodirectaentreraça/etnicidadeecultura,edaqualonossoBenjaminseriaumexcelenterepresentante–éque,aoignoraroproblemadaraça,porconsiderá-laapenasumaconstruçãosocialecultural,temsidoincapazdereagirperanteosataquesduradourosdeestruturasde poder definidas segundo critérios raciais.30 Esta forma de pensar, carregadadeumoptimismoporvezesingénuo,podeserconsideradaemparteresponsávelpelosfracassosdosmovimentosanti-racistasdasúltimasdécadasdoséculoXX,que,considerandooracismoumproblemade ignorância,circunscritoagruposextremistas com um consenso limitado, e achando, por conseguinte, que seriaultrapassadoatravésdepolíticasculturaiseeducacionaiscapazesdesensibilizaros gruposmaioritários para o objectivo de uma sociedade sem raças (“colour-blind”), acabarampor produzir os efeitos opostos, pois o racismohoje emdiaéquantomaisvital,sobretudonospaísesdonortedaEuropa, tradicionalmenteconsiderados mais abertos e hospitaleiros. O que acontece, contudo, é que aideologiaracistapenetrouatalpontonodiscursodiário–públicoeprivado–,quenamaioriadoscasosacabaporpassardespercebido,oquetransmiteailusãodeestarmosrealmentenocaminhoparaumasociedadeemqueoproblemadaraçapertençaexclusivamenteaopassado.31

30 Crf.PaulGilroy,The Black atlantic,cit.,p.32.31 Ao analisar o caso britânico, Paul Gilroy observa: «We increasingly face a racism which

avoidsbeing recognizedas suchbecause it isable to link“race”withnationhood,patriotism,andnationalism,aracismwhichhastakenanecessarydistancefromcrudeideasofbiologicalinferiorityandsuperiorityandnowseekstopresentanimaginarydefinitionof thenationasa

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 367

Estas questões são colocadas de forma problemática no romance, umavezqueoautornãoparecequererproporumaououtrasolução,optandoporapresentar situações de conflito entre personagens que, tendo vivências emundivisõesdiferentes,adoptamalternativamenteumaououtraposição.Umasituaçãoemblemática,dequejáfaleiacimaecujasimplicaçõesgostariaagoradeaprofundar,éadadiscussãoentreBenjamineArcanjoMistura,emqueosegundoexortaoprimeiroavoltarparaosEstadosUnidosetentarsernãoafro-americano,masamericanopor inteiro,hipóteseque,comojámostrei,Benjaminrecusa-se sequer a tomar emconsideração.Estaposiçãopode ser justificadatendoemcontaocontextodoqualBenjaminprovém,umavezque, comoésabido,osnegros,nosEstadosUnidos,somentenadécadade60conseguiramalcançarplenamenteosdireitosdecidadaniae,hojeemdia,apesardejáteremiguaisdireitosanívellegal,napráticacontinuamaserobjectodediscriminação.Consequentemente,vendo-seimpossibilitadoaseidentificarcomasociedadeamericana tout court,oapegoàssuasorigensafricanasconstituiumaspectofundamentaldaprocuraidentitáriadeBenjamin,daqualaviagememÁfricarepresentaria o cume.Neste sentido, percebe-se a relutância dele em aceitarterumaantepassadaindiana,factoquequestionarianãoumacertezaqualquer,mas,comojáassinalei,a certezaquelhetinhapermitidodefinir-seasiprópriocomomembrodeumdeterminadogrupo,emcontraposiçãocomoutrosgruposhistórica, racial e culturalmentedefinidos.E a fragilidadedo equilíbrioque,apesardetudo,estasconvicçõeslhetinham,atéentão,garantido,saltaráàvistana hora em que o homem, sem mais certezas em que acreditar nem pontosfirmes emque se apoiar, tomará a trágicadecisãode ir pelomato adentro enuncamaisvoltar.

6. diários, papéis e abismos interiores(2)

SendoosdocumentosencontradosnoantigobaúafontedeinspiraçãodeMwadiaque,atravésdesucessivasalucinações,dáinvoluntariamenteorigemaodramáticodesfechodoromance,torna-seevidenteafunçãopropulsoradapalavraescrita edanarração,queconstituemaqui, comoaliás é frequentenaobradeMiaCouto,32umaponteentrepassadoefuturo,narraçãohistóricaeconstrução

unifiedcultural community».PaulGILROY,“TheEndofAntiracism”,inPhilomenaESSEDandDavidTheoGOLDBERG(eds.),race Critical Theories,cit.,p.254.

32 Veja-se,atítulodeexemplo,Terra sonâmbula,emqueoscadernosdeKindzu,encontradosporcasualidade numa velha mala, fornecem ao jovem protagonista do romance o passado que abrutalidadedaguerralhetinhairremediavelmentesonegado,eum rio chamado tempo, uma casa chamada terra,emqueoprotagonista,Mariano,recebecartasenviadaspeloavôfalecido,queoajudarãoarestabeleceraligaçãocomacasaemquetinhacrescidoedaqualhámuitosanostinhasaído,bemcomocomopassadoqueelarepresentava.

SONIAMICELI368

ficcionalaomesmotempo.Estascaracterísticas,comoéevidente,dotamaescritadeumpodersubversivoextraordinário,poisacapacidadequeelatemdepreservaropassadoentra facilmenteemconflito coma tendênciaparaoesquecimento,tãoinsistentementeprocuradopeloshabitantesdeVilaLonge,33paraosquaisamentiraeoesquecimentosão,paradoxalmente,asúnicascondiçõesparaguardaropassadoeaesperançadofuturo.

Esteconflito,queatravessatodootexto,estábemexemplificadonumepisódioqueacontecenaoutranarrativainscritanoromance,aquenarraaviagemdeGoaparaMoçambiqueeemquegostariaagorademedeter.Umdosprotagonistasdestaviageméo jovempadreManuelAntunes,que,durantea travessia,viveumacrise identitáriaqueo levará,umavezchegadoaÁfrica, a abandonar asvestesreligiosaseajuntar-seaumatribodenativos,adoptandooseuestilodevidaerenunciandotout court àqueleeuropeu.ManuelAntunestinha,duranteaviagem,aimportantetarefadeescreverodiáriodebordo.Porém,depoisdeumaviolentatempestadequeocorremaisoumenosaomeiodatravessia,ohomem,visivelmente transtornadopelosúltimosacontecimentos, confessa aopadreD.GonçaloSilveiraque«acabaradedeitarparaofogareiroocadernodeviagem.Asanotaçõesdatravessia,oregistodiáriodosacontecimentosedescobertas,emesmoostestamentosdosfalecidos,tudoissoseconsumiaentrelabaredas».34quandoD.Gonçalo,incrédulo,lheperguntaoporquêdesseacto,Antunestemdificuldadeaencontrarumarespostaquesejaclara:

Escrever para ele se tornara num fardo.Ogrãode areia, a gota domar, oelefantecompactoealágrimaleve,tudoseconvertiaemsuapossedesdequefixadoemletra.Ocadernodeviagens,explicouAntunes,ganharaumpesoinsuportável.quandoolançounofogofoiparasealiviardessepeso.Afinal,aspalavrasnãoenchiamapenasasfolhas.Preenchiam-noaele,proprietáriodecasacoisadescrita35.

NalutaentrememóriaeesquecimentoqueseconsumanaalmadeManuelAntunes,aescrita,constituindoaetapafinaldeumprocessodereelaboraçãodas

33 Atendênciaparaoesquecimentoe/ouparaumatransfiguraçãoimagináriadopassadoétípicadasculturasquepassaramporacontecimentosparticularmentedolorososetraumáticos.Éassimqueaescritoranorte-americanaToniMorrisonexplicaorenovadointeressepelahistóriaquealgunsescritoresafro-americanosmostraramnasúltimasdécadasdoséculoXX:«It’sgottobebecauseweare responsible. [...]We live ina landwhere thepast isalwayserasedandAmerica is theinnocentfutureinwhichimmigrantscancomeandstartover,wheretheslateisclean.Thepastisabsentorit’sromanticized.Thisculturedoesn’tencouragedwellingon,letalonecomingtotermswith,thetruthaboutthepast.Thatmemoryismuchmoreindangernowthanitwasthirtyyearsago».InPaulGILROY,The Black atlantic,cit.,p.222.

34 MiaCOUTO,o outro pé da sereia,cit.,pp.185-186.35 ibid.

APROCURADOPASSADOEMo ouTro pé da sereiaDEMIACOUTO 369

experiênciasvividasduranteaviagem,desempenhaumpapelfundamental,pois,noactodeescrever,aspalavrasgravam-senãoapenasnopapel,mastambém–eissoéoquemaisnosinteressa–naalmadoescrivão.Opapelemqueeleescreveacabaporser,afinaldascontas,metáforadasuaprópriaalma,queele,aoqueimarodiário,procuradesesperadamentealiviare,quemsabe,purificar daquiloqueaatormenta.

Aescrita,portanto,nasuafunçãodetransmissoradopatrimóniohistóricoeculturaldopassado,podeconsiderar-seuma,ou,talvez,a principalresponsávelpelaformaçãodaidentidadeculturaldecadaumedasrepresentaçõesconstruídasacercadomundo,esobretudodomundoquenãoconhecemos—oladoinvisíveldalua.IstoéparticularmenteevidenteumavezanalisadasasposiçõesdeBenjamineRosie,personagenstípicas—eevidentementecaricaturadas—,representantesdaquelesindivíduos,que,natentativadedesconstruiredescentraroseudiscurso,naópticaquecaracterizaoassimchamadopós-colonial,naverdade,acabamporreproduzir— inconscientemente—mecanismospróximosdosdodiscursodocolonizador.

7. Conclusão

Por fim, gostaria de concluir com as palavras do poeta e jornalistaburkinafasiano, residente na Itália, CleophasAdrien Dioma, que, num artigointitulado “Ma gli antirazzisti sanno cosa pensiamo?”, escreve: «Nos últimosonzeanosviomundodaimigraçãoocupadoporpessoasnãoimigradas.Falamno nosso nome. Falamdas nossas coisas.Apresentam livros escritos sobre asnossas histórias. Vídeos sobre os nossos dramas. Levantam a mão em lugardenós.quasevivemanossavida.Conhecemasnossascoisastãobemquejánãoprecisamsequerdenós».36Emboraestasobservaçõesprovenhamdeoutrocontextoquenãoaqueleexploradoemo outro pé da sereia,asideiassubjacentesa elas podem ser aproximadas daquelas em que o romance de Mia Couto sesustenta,istoé:apesardasboasintenções,quedistinguemtantoodiscursodaspersonagensBenjamin eRosie, comoo dos antiracistas de que falaCleophasAdrienDioma,apretensãodeconhecero outro edepoderfalarsobreeleouaténolugardele,porvezespoderevelar-seapenasoresultadodeumaconstrução,umaproduçãocultural,enfim,umarepresentaçãopoucomaisqueimaginária.

36 CleophasAdrienDIOMA, “Ma gli antirazzisti sanno cosa pensiamo?”.Disponível em http://domani.arcoiris.tv/?p=2816.

SONIAMICELI370

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ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 371

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE

teresa matos pereira*

Opapeldaimagemenquantodispositivodemediçãocomunicacional,integrauma“economiavisual”quesobrevémnãosóaosdomíniosdoconhecimentoedopensamentomasigualmenteaosdaacção.

Assim, a configuração daquilo que poderemos entender como uma«colonialidadevisual»,quedecorredoestabelecimentodossistemascoloniais,irá implantar-se ao nível de uma dimensão intersubjectiva, que dificilmentese desvanece com o desmantelamento político dos impérios coloniais. Foiacompanhada por um processo sistemático de «calibragem, obliteração e simbolização»1 das expressõesnão europeiasque, aomesmo tempoque eramremetidasparaosdomíniosdaprimitividadeedoesvaziamentodosseussentidosde uso e de representação simbólica (integrando práticas religiosas, lúdicas einstrumentais), serão alvo de apropriação por parte de artistas europeus comobandeirasdeumarupturacomumclassicismoacademizado.

Estecontroverso«primitivismo»,debatidonoperímetrododiscursoplásticoda modernidade, apesar de expor a claro um conjunto de estereótipos e/ouparadoxosquedecorremdaleituraequivocadeexpressõesafricanas,americanas,oudaOcânia,nãocontribuiparapromover,porexemplo,arecepçãodaobrade

* UniversidadedeLisboa-FaculdadedeBelasArtes. e-mail:[email protected];[email protected] TerrySmith, inNicholasMirzoeff (ed.) (1998).The Visual Culture reader.LondonandNew

York:Routledge.

TERESAMATOSPEREIRA372

artistas africanos nos espaços artísticos do «Eurocentro» - independentementedeaqui residiremporperíodosmaisoumenosalargados-senãomesmo,paraadensaracomplexidadedesterelacionamento.

Porconseguinte,otermo«arteafricana»,aoqualseassociam,entreoutros,os de «arte tradicional» ou «arte africana contemporânea», constitui-se, naspalavrasdeJ-L.Amsellecomoumverdadeiro“nóconceptual”queconglomeraum conjunto de representações que cruzam, num mesmo plano, aspectos nãosódenaturezaestética,plásticaeculturalmasigualmentedenaturezapolítica,ideológicaesocial.

Considerando a complexidade do relacionamento entre arte e ideologiacolonial, pretender-se-á, neste texto, referir brevemente alguns processosque integraram a construção e disseminação do discurso imagético em tornodo império colonial português, durante o século XX, (que, em larga medidacontribuiuparainculcar,porviadavisualidade,umconjuntodeideiaseconceitosacercadeÁfricaedosafricanos),eaveriguandoopapeldasartesplásticasnesseprocesso,tendoemvistaumadiscussãodasdinâmicasparticularesqueenvolvemarte, estética, história, ideologia e poder. Por outro lado, a possibilidade detranspor para um domínio visual as representações do Outro, instiladas pelaideologia do Estado Novo, assegurou, em larga medida a sua sobrevivênciamuitoapósodesmantelamentodosistemacolonial,enquantoentidadepolítico-administrativa.

Neste sentido há que considerar uma série de factores implicados naconstrução de um imaginário visual colonial que conhece múltiplas faces,nomeadamenteoprestígioeinfluênciacrescentesdafotografia–quecomeçaráacircularempublicaçõesperiódicaseálbunsfotográficos–bemcomoapartilhadecódigosvisuaisderepresentaçãoentreestaeodomíniodasartesplásticas,nomeadamenteodesenhoeapintura.

Atendendoàsmúltiplasdimensõesqueaproblemáticadeumrelacionamentoentrearteeideologiacolonialpoderáassumir,procurareiestruturarestaabordagememquatromomentos,optandoporumavisãotransversalquedesejará,contudo,manter alguma sequencialidade cronológica. Assim, num primeiro momento,serão analisados alguns dispositivos visuais que acompanham a teorização edivulgaçãodeumfeixedeideiasquecontribuemparaaconstruçãodeumcampoespecíficoda«arte africana», sobre aqual se cruzamestereótiposdenaturezaartística,cultural,estéticaerácica.

Numsegundomomento,acompanhar-se-áodesenvolvimentodeumalinhadeexploraçãoplástica,fomentadaemlargamedidapeloSPN/SNIepelaAgênciaGeraldasColónias,que,partindodemodalidadestradicionaisdapinturaeuropeia(paisagemefigurahumana),iráproporumconjuntodeimagensdoterritórioedaspopulaçõesafricanas,cujoscódigosderepresentaçãosãopartilhadoscomafotografiaetnográfica.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 373

Emterceirolugarháqueteremconsideraçãoasmodalidadesdeapropriaçãoe interpretação que artistas portugueses como José de Guimarães operam apartirdocontactodirectocomasexpressõesplásticasangolanasouatravésdereferênciasvisuaisimpressas.

Por fim, emquarto lugar, considerando a divulgação, no campo artísticoportuguês,daproduçãodeartistasplásticosafricanoseangolanosemparticular,apartirdadécadade80doséculoXX,procurar-se-áperceberemquemedidae,seexpressaumconfrontocomessepassadocolonialtomandocomopontodepartidaduaspropostasplásticasdeDíliaFraguitoSamarth.

1. uma Imagética do Império

Acriaçãoeafirmaçãodeum«imagináriodoimpérioultramarinoportuguês»,alimentaram-se de recursos diversos comespecial destaquepara a literatura eparaumalinguagemvisual.

Nesteúltimodomínionãopoderemosignoraraimportânciadesempenhadapela fotografia como veículo de comunicação de percepções, conceitos efantasiasimperiaisaumpúblicomaisalargado,queconheceumadifusãomaisabrangente, tanto em termos espaciais como temporais assumindo um valorqueultrapassao imediatoda suadivulgação.Omesmoacontececomoutrasimagens, apintura, eodesenho incluídosque, tal comoa fotografia– e atépelasrelaçõescomplexasqueestabelecementresi–integramumaespéciede«economiavisual»quecongregadispositivosdeprodução,decirculação,deusufruto,acervoepermuta.

Afotografia,desdeosseusprimórdiossurgeassociadaàsgrandesexpedições,trazendoparaoocidente,imagensdemundoslongínquos,quecomeçamadespertarumagrandecuriosidadeeexercerumaatracçãoentreaqueles,quenãopodendoviajar,viamassimcorrespondidooseudesejodeexotismo.Poroutrolado,oseunascimentoécontemporâneodaemergênciadecamposespecializadosdosabercomoaetnologia,aantropologiaouaarqueologiaqueconhecemumalegitimaçãocientíficadasuaautonomia.Ascaracterísticasintrínsecasdafotografiabemcomooseuaperfeiçoamentotecnológico,levamaquesetransformenuminstrumentooperativo obrigatório na investigação, ao mesmo tempo que se assume comodispositivo indispensável para a demonstração e validaçãoprática de cenáriosteóricosmaisabrangentesqueenquadramodesenvolvimentodasciênciassociaisehumanas.

Não será de estranhar então que o alargamento de conceitos comoraça, tribo,cultura, etc.,nassociedadesocidentais, tenhasidomediadopelaimagem fotográfica que descreve, primeiro, as particularidades físicas, eposteriormenteoecossistema,costumes,economia,ahabitação,areligião,ouasexpressõesplásticas,musicais,etc.,deumOutrotornadoobjectodeestudoecuriosidade.

TERESAMATOSPEREIRA374

Amassificaçãodafotografia,atravésdepublicaçõesdecaráctergeneralista,contribuiparapopularizarassimumconjuntodeestereótiposrácicoseculturais,que,combasenumpensamentoevolucionista,reduzemaspopulaçõesafricanasa objectos longínquos, cujo acesso anteriormente reservado a determinadoscírculosdeespecialistas,éagorafranqueadoaumpúblicoalargado,queinterpretaessas representações como verdades indiscutíveis, porque cientificamentefundamentadas.

Nestesentido,podemospercebercomoumimaginárioacercadoOutro,edasuarelaçãocomanaturezairáextrairdaciênciamastambémdaculturapopular,osseusdialectosvisuais,assentesemcategoriascomooexótico,opitorescoouofotográfico,transversaisàsartesplásticaseàfotografia.

Este discurso visual, irá constituir-se como uma espécie de substratoimagéticoondeseirãoalicerçarmodalidadespictóricas,gráficaseescultóricas,cuja iconografia se insere em géneros tradicionais da arte ocidental como apaisagem,oscostumes,ouoretrato,facilitandoassim,asuacirculaçãoeconsumoporpartedopúblico.

EmPortugal,aconsolidaçãopolíticadoEstadoNovo,apartirdadécadade30,incorporou,nosseusalicerces,umaideologiaimperialista,queseconstituicomocernedetodoumsistemaderepresentações(epráticas)políticasdoregime.

Ocontrolodeumconjuntodesímboloseimagens,quesecoadunemcomaspercepçõeseideiasveiculadasapropósitodosterritóriossobdomíniocolonialportuguês,contribuidecisivamenteparalegitimaraspretensõesdeumconjuntode interesses económicos em África, que assim vê reforçada a sua posição deprestígio, granjeando um consentimento e partilha de valores, que, em últimainstância, tornam válida a influência exercida na distribuição de riqueza e depoder.

Ao longo das décadas seguintes generaliza-se toda uma iconografia quecolocaàdisposiçãodeumpúblicoalargadoaquiloqueseriaocorpo«exoticizado»doOutro (atravésda semi-nudez edosornamentosque a enfeitam)dos seushábitos,costumeseexpressõesartísticas.EsteOutro,identificadocomoumdossujeitosdoimpériocolonial-o indígena-irápovoaroimagináriodaquelesquefolheiamrevistascomoo século ilustrado,o mundo português,o ocidente, entreoutras,oucoleccionamosfascículosdeobrasdehenriqueGalvãocomo«outras Terras outras Gentes» e «ronda d’África», distribuídos (numa 2ªedição)entreosanosde1944a1948,eprofusamenteilustradoscomimagensdefotógrafoscomoElmanoCunhaeCostaedesenhosepinturasdeartistascomoEduardoMalta,FaustoSampaio,RobertoSilva,JosédeMoura,AntónioAyres,RuiFilipe,MartinsBarataouNeveseSousa.(Fig.1)

Ao mesmo tempo, começam a surgir os primeiros “estudos” e ensaiosque visam aprofundar um conhecimento da «culturamaterial» das sociedadesafricanas,quedesdeosprimeiroscontactosentreaEuropaeÁfricafoienvolto

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emfantasias2eequívocos,decorrentes,porsuavez,dosprocessosdeexpansão,comércioesclavagista,conquistaterritorialecolonização.

Nestesentido,apartirdadécadade30,multiplicam-seostextospublicadosem revistas como o mundo português e os estudos acerca das expressõesafricanas,primeiramenteapartirdascolecçõesexistentesemPortugalcomoadaSociedadedeGeografiadeLisboa–comdestaqueparaoálbumdeDiogodeMacedoeLuisdeMontalvor,arte indígena portuguesa-emaistardetendocomopontodepartidaaobservaçãoerecolhadirectanoterreno,dequeascampanhaspatrocinadaspelaDiamangeafundaçãodoMuseudoDundoemAngolasãoumexemplo.Sobressaemdestecontexto,aspublicaçõespatrocinadaspelaDiamang,sobretudonasdécadasde50e60equeeramoferecidasaváriasbibliotecaseinstituições das quais se notabilizam as obras de Marie-Louise Bastin (art decoratif Tshokwe)ouJoséRedinha.Desteúltimodestaca-seocélebreálbumparedes pintadas da lunda, cuja circulação das suas imagens ultrapassa emmuitoosuporteinicialcomopoderemosvernadecoraçãodoespaçoportuguêsnaexposição internacional de Bruxelasem1958(Fig.2)

Atensãoehesitaçãoentreoreconhecimentodeumsentidoestéticointrínsecoàsproduçõesmateriais (aindaque inseridasnumcontextoondedesempenhamfunções precisas) e a sua restrita funcionalidade e dependência de premissasculturaisereligiosas,serãotransversaisemmuitosdestesescritos,continuandoaconstituir-se,emlargamedida,comoumassuntoemaberto,ondesãoesgrimidosargumentosa favordeuma inclusãoentreosobjectosdearteeo seu reenvioparaocampodeumaproduçãoartesanalcomfunçõesreligiosasesociaispré-determinadas.

2. Arte e propaganda

Alargadivulgaçãodeimagensfotográficas,apartirdadécadade30,queincidemsobrea representaçãodoambientenatural, fauna, floraafricanasbemcomodohomemeassuasculturas,equecontribuemlargamenteparacimentareperpetuar,estereótiposrácicos,culturaiseartísticos,preparaumterrenopropícioaumaexploraçãoplásticadessastemáticas.

Aartenãopermaneceráassimintocadapelaideologiacolonial,sendoque,a par das dimensões plásticas e estéticas de algumas obras, acrescenta-se umproselitismoque emana para alémde uma adesãomais oumenos consciente,

2 Oconhecimentoeuropeudasculturasesociedadesafricanas,construídosobreumsubstratoquereúneexperiênciaeefabulação,nãodeixadelevantarinúmerasquestõesacercadainclusãodoseupatrimóniomaterialnacategoriadearte,dosdesígniosheurísticosnabasedasproposiçõesacercada“arteafricana”,dacolonialidadequeenvolveuassuasformulaçõesedasuaobrigatóriadescolonização.

TERESAMATOSPEREIRA376

porpartedoartista.NumacríticaapropósitodaexposiçãodeJorgeBarradas,intituladamotivos de s. Tomé,ArturPorteladeclaracategoricamente:

«não há mais bela nem mais eficaz propaganda colonial do que a propaganda feita através da literatura e da arte»3

A obra deAlbano Neves e Sousa (1921-1995) constitui-se um exemploincontornáveldoprocessodeafirmaçãodeumimagináriocolectivoacercadoterritório,fauna,flora,povoseculturasangolanasatravésdaimagempintadaoudesenhada,quesobrevivenumredutodanostalgia.

AlbanoNeveseSousa,nascidoemMatosinhosevivendoemAngoladesdeos7anos,começapordesenvolverasuaactividadecomodesenhador,noinicioda década de 40, integrado na Missão de Estudos Etnográficos do Museu deAngola,sobadirecçãodeAntónioFigueira,edaqualfazemigualmenteparteÁlvaroCanelaseAntónioCampino.

Aexperiênciaformadoranoâmbitododesenhoetnográficoficarámarcadana obra do pintor não só ao nível da temática mas igualmente no sentidodocumentalistacomqueéinterpretada.Adimensãodocumental,apontadaàsuaobra,atravésdacríticamastambémdefendidapelopróprioartista,iráconcorrercom uma apreciação de natureza plástica e estética colocando-a num espaçoflutuante entre a representação verídica de um mundo em desaparecimentoacelerado,eumapoéticaindividualdoartistaplástico.

Neves e Sousa irá enveredar por um conjunto de linhas temáticasdesenvolvidastradicionalmentepelapinturaeuropeiacomosejam:apaisagem,oscostumeseafigurahumana.Apesardealgumastímidasexperiênciasabstractas,(aindaenquantoestudantenaescoladeBelasArtesdoPorto,naexposiçãodosIndependentesem1948emaistarde,emLuandaem1961),opintoriráprivilegiara linguagem de pendor naturalista que melhor expressa a sua experiência nocontactocomummundodiferentedoeuropeu,oqualpercorrecomoviajante,aorecordarque«ninguém tinha tido a coragem de se dispor a percorrer aquele mundo (…) em que cada pormenor era cheio de significado»4

A opção pela figuração naturalista, baseada na observação directa, cujocentrogravitacionaléaverosimilhança,permiteintegrarnatexturadaobra,umasuposiçãodeautenticidadequeconfirmaaexistênciarealdoqueimagemmostra,nosmoldesemqueéapresentado,ondeoprazerdabelezaequivaleàverdadeda representação, adensadapeloprestígiopeculiardapintura,pela sua«aura»singular.

3 ArturPortela,«MotivosColoniais.Ante-críticaàexposiçãodepinturade JorgeBarradas», indiário de lisboade6-12-1931.

4 AlbanoNeveseSousa(depoimentomanuscrito)inalbano neves e sousa,Oeiras,GaleriaLivrariaVerney,2005,pp.17-19.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 377

FaceaistonãoédeestranharqueaobradeNeveseSousasejaapontadarepetidamentecomoaexpressãofieldeumsentimentoprofundodaquiloqueéanaturezadeAngola,plasmada,porexemplo,nassuaspaisagens,nassuasfigurasdemulher ou nos grupos de bailarinos.A imagem redutora e essencialista deÁfrica e dos africanos encontra assimumpoderoso suporte dematerializaçãoeummeioprestigiadodedifusão,colocadoaoserviçodapropagandacolonial.Estefactoébemvisívelnaapreciaçãoqueéfeitadasuaobra,gráficaepictóricadequeocomentáriodehenriqueGalvãoapropósitodeumaexposiçãodopintornoSNIem1944éumexemplo.Refereesteque,

«Neves e sousa trouxe-nos uma expressão fiel de angola. e os portugueses que ainda não foram a esta colónia encontrarão na sua obra, em manchas originais de rara beleza (…) esses elementos de assunto, de cor e movimento que não encontram na literatura nem (…) na fotografia e na escultura, e que tão poderosamente reflectem a alma e o carácter da terra e das gentes de angola.»5

Paraalémdaquiloqueéimediatamentevisível,poderemosdizerqueexisteumaespéciede«intervisualidade»queacompanhaaobragráficaepictóricadeNeveseSousalargamentereforçadapelascaracterísticasformais.

Neste sentido e a título de exemplo iremos tomar como referência arepresentação da figura humana, um assunto central da sua obra e que emmuitoscasoséconfundidacomoretrato.Defactomuitasdassuascomposiçõescomo «mulher macubal» (Fig. 3), entre inúmeros outros exemplos, não sãopropriamenteretratos,masrepresentaçõestipificadas,dadoqueasuaidentidadeparticularésuprimidaemfunçãodotodo,seguindoummododeclassificaçãodoOutro,desenvolvidonofinaldoséculoXIX,nocampodaantropologiafísicaelargamenteauxiliadopelodiscursofotográfico.

Apesar de utilizar preferencialmente o desenho como meio auxiliar dapinturaenãoafotografia,ofactoéqueháumaproximidadeentremuitasdascomposiçõesdeNeveseSousaeumgénerodefotografiaetnográficabastantedivulgada a partir do final do século XIX onde se destacam fotógrafos comoCunha Morais e Elmano Cunha e Costa.A fotografia desenvolvida por estesfotógrafos, comdestaquepara a representaçãodegruposhumanos, obedece aumaclassificaçãoquefundenumapeça,naturezaecultura,originandodaíanoçãodetribo,comoumtodocolectivoondeascaracterísticassomáticaseoshábitosculturaisestabelecemumarelaçãounívoca.Assim,àpaisagemvêmjuntar-se,naspalavrasdeElmanoCunhaeCosta,os«tiposhumanos»,habitações, penteados

5 henriqueGalvão,«AngolaTambémProduz...Artistas!»,inJornal de noticias,28-6-1944.

TERESAMATOSPEREIRA378

e adornos, vida doméstica, artes, indústrias, agricultura, ritos de passagem, cerimónias fúnebres, medicina e cirurgia, feitiçaria, etc.»6

EstessãoigualmentealgunsdosassuntosexploradospelapinturadeNevese Sousa que partilha com o discurso fotográfico adoptado pela etnologia eantropologiaaindacertoscódigosvisuaisderepresentação.Sãoexemplodestaafinidade, o enquadramento das figuras, o recurso à pose, o predomínio dasvistasdefrenteedeperfil,(consideradasmaisobjectivasnoreconhecimentodeparticularidadesdenaturezafísica,eporissovulgarmenteutilizadasnafotografiaantropométricaecriminal)ouaimportânciaconferidaaaspectoscomootrajeeosadornos (verdadeiros« indicadoresculturais»dadiferença),cujaminúciaéacentuadapelosfundosabstractos.

Paraopintor,ointeressedestegéneroderepresentaçãoresidenaameaçadodesaparecimentodasespecificidadesculturaisdecadapovoemrápidodeclíniodevidoàassimilaçãodaculturaeuropeia.Em1954,escreveumartigonojornala província de angolaondelançaoreptoparaquesejarealizadauma«recolha criteriosa de material etnográfico»,emvirtudedasrápidastransformaçõesquetransformam os modos de vida do homem africano que «assim vai também arrastado na roda lenta e segura da acção civilizadora portuguesa, perdendo o seu carácter tribal, ao mesmo tempo que dele desaparece o interesse etnográfico característico, para ser mais um português consciente da sua pessoa.»7

Comoexemplosdestaperdade«um estado de civilização negra que (…) se transforma»oautor refereahabitação,aocupaçãodo tempo,o trabalho,aeconomia,masespecialmenteotraje,aqueleondemaissefazsentirainfluênciaeuropeia,ejustificacomadescriçãodotrajefeminino:

«Tomemos por exemplo a quissâma. Há alguns anos atrás, as mulheres usavam por vestuário uma tanga tingida de tacula, ornamentada de conchas e búzios e bordada a missanga, e sobre ela, um avental triangular inteiramente bordado a contas. ao pescoço havia uma profusão de colares que marcavam, pela sua beleza e número, a importância social de quem as usava. na cabeça, o toucado de bordado de contas era uma garridice em azul, branco e vermelho – duma originalidade rara e duma beleza autêntica.Hoje, a mulher quissâma usa, como a de luanda, lenço na cabeça, blusa curta e vestido ou panos! mais limpo? sem dúvida, mas indubitavelmente muito menos pitoresco.»8

6 ElmanoCunhaeCosta,Catálogo da exposição de etnografia angolana. Lisboa,AgênciaGeraldasColónias,1946.

7 AlbanoNeveseSousa,«háqueempreenderumarecolhacriteriosadematerialetnográfico»,ina província de angola,16Setembrode1954.

8 AlbanoNeveseSousa,«háqueempreender…»,op.cit.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 379

A pintura de Neves e Sousa integra-se igualmente uma linha defendidapelapolíticaculturaldoEstadoNovo,representadapelaacçãodeAntónioFerroque, propondo o desenvolvimento de uma artemoderna, acaba por incentivarareactivaçãodeumnaturalismoacademizante,travestidodeformasmodernas,ondeapinturaassumiuumcunhoessencialmentedecorativoepropagandístico.

Neste último caso, o grau de eficácia e persuasão, está dependente dacapacidademiméticaemnemónicadapintura, implicadasnaplausibilidadedafiguraçãoenacapacidadedealcançaraheterogeneidadedopúblico.Estefactoé,deresto,apontadocomoumfactorchavenoquerespeitaàspotencialidadeseeficáciadasartesplásticasemservirapropaganda imperialpeloProf.LopoVazdeSampaioeMelonumaconferêncialidanaSociedadeNacionaldeBelasArtes,significativamenteintitulada«a arte ao serviço do império»,aquandodaexposiçãodepinturadeFaustoSampaioem1941.Diz-nosesteautorque

«a pintura atingindo o espírito do indivíduo e da colectividade, qualquer que possa ser o respectivo grau de cultura artística e de receptibilidade anímica, é arte que fica e que exerce, no psicos do agregado social, uma influência não só maior em extensão e em profundidade, como incomparàvelmente mais constante e perdurável.»

Para além disto, refere o mesmo autor que as restantes artes plásticas,nomeadamente a escultura não exercem sobre o «indivíduo médio» o efeito«enfeitiçante» dapintura,especialmentequandoestasedirigeaumpúblicode«latinos meridionais, sempre embriagados pelos néctares da luz e da côr.»9.

Tendo em por base este conjunto de considerações acerca do efeitopsicológicoexercidopelasartesplásticas,acrescentaqueestas,eespecialmenteapintura«devem prestar inestimáveis serviços à idéia imperialista em portugal e à causa do império»adoptandoumvocabulárioformalondeosentidodecorativoé incrementadopor«motivos de policromo e adorável exotismo» dandocomoexemplodeinesgotávelfontedemotivospictóricos,o«meio humano (…) pela raridade dos tipos somáticos, pelas curiosas particularidades de indumentária, e pela exteriorização de pitorescos usos e costume»10.

Evidencia-se assim uma sintonia entre a obra desenvolvida por Neves eSousa e outros pintores damesma época, e as orientações defendidas por umpoderdominante,quefacilitamacriaçãode imagensconsensuaisemtornodadiversidade e amplitude do império português, de África, dos africanos e das

9 LopoVazdeSampaioeMelo,«AarteaoserviçodoImpério», inFausto sampaio. pintor do ultramar português.1942.AgênciaGeraldasColónias,Lisboa,p.18.

10 LopoVazdeSampaioeMelo,«AArte…»,op.cit.

TERESAMATOSPEREIRA380

suas culturas, da acção portuguesa emAngola e da relação entre europeus eafricanos.

DefactosãorecorrentesafirmaçõesacercadasuaobraquedeixamtransparecerprecisamenteoconjuntodeestereótiposalimentadospelaantropologiaeetnologiaelargamentedivulgadosapropósitodeÁfricaedosafricanos.Éexemplodissoumartigoquesaiunodiário de lisboa,aquandodasuaexposiçãonoPalácioFoz,entãosededoSNI,ondeojornalistaafirmaque,paraalémdeNeveseSousaconseguirexpressarvisualmenteas«figuras e o ambiente de África»demarcou-separaalémdoqueovisíveletraduziu«o mistério da alma negra com os seus fetichismos milenários, as suas danças infernais, os seus ritos perturbantes, os seus sortilégios e encantamentos, nos quais, se por vezes, há dolência, êxtase, outras, um diabólico e trágico frenesim (…) de tal maneira que sentimos que tudo aquilo é verídico, arrancado do natural (...)»11.

3. Apropriações e Mestiçagens

As sucessivas apropriações e leituras selectivas realizadas por artistas,teóricos (quer dos domínios da estética, história da arte ou da antropologia eetnologia)ecoleccionadores,integramigualmenteacomplexateiaqueenvolveumacolonialidadedover,pelaformacomopressionaram,porumlado,àcriaçãode uma espécie de modelos canónicos africanos12 - firmados sobre critériosessencialistas e que, rejeitando os sinais de modernidade, condicionaram apercepçãodestasexpressõescomoentidadesestáticas–eporoutro,produziramuma leitura estetizante de formas e expressões inicialmente incluídas emmodalidadespráticasdeusocultural(religioso,funcionaloulúdico).

Daquiresultaasuarepresentaçãoenquantomanifestaçõesdaprimitividade,que,porseuturnoserãoalvodeinteressedosartistasdasvanguardaseuropeias,sedentosdenovidadeesentindoanecessidadeeminentedeumarenovaçãodasprópriaslinguagensartísticas.

Aindaqueaapropriaçãonãosejadeterminadaporumconhecimentoexactodasfunçõesprimordiaisqueditaramacriaçãoeusufrutodosartefactosafricanos,elegema“artenegra”13comosímbolodessa renovação,atribuindo-lhevaloresestéticoseplásticosuniversais(modalidadesderepresentação,tratamentoformaldosvolumes,usodemateriaisecores,etc.)passíveisdeseremanalisadosàluzdegrelhasecritériosqueguiavamqualquerexpressãoartística.

11 Anónimo,«ExposiçãodeAguarelasdeNeveseSousa»,inDiáriodeLisboa,Abril1952.12 Cf.SusanVogel.africa explores. 20th Century african art.NewYorkandMunich:TheCenter

forAfricanArtandPrestel,1991,p.52.13 Aobranegerplastik deKarlEinstein,publicadoem1915,éummarcoimportantedestenovo

interessepelasexpressõesafricanas,bemcomodaatribuiçãodevaloresartísticosuniversaisqueasincorporamnoâmbitodosobjectosdearte.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 381

Um dos exemplos que, em Portugal, se evidencia pela importância queo contacto com outras expressões plásticas e artísticas desempenhou para odesenvolvimentodeumapoéticaindividualéodeJosédeGuimarães(n.1936)

O contacto com as expressões plásticas de algumas culturas angolanas,conduziu-oàexploraçãodeumvastolequedeformasemotivosiconográficosqueirãopovoargrandepartedasuaobraplástica.Oartista,comformaçãomilitaresteveemcomissãodeserviçoemAngolaporduasvezes,primeiroentre1967e1969edepoisentre1970e1974,sendoqueemLuandairárealizarumaprimeiraexposiçãoindividual.Porém,estecontacto,inloco,serácomplementadoatravésdocoleccionismodeobjectosafricanosoriundosdeváriasculturas.

A linguagem ideográficaque servedeveículo comunicacional, a riquezasimbólicaeplásticadasmanifestaçõesartísticasafricanastradicionais,abriuaopintorumcampodepossibilidades expressivasque irá explorar sobmúltiplasdimensões, que surgem ciclicamente ao longo do seu percurso artístico. Osplanos de intersecção que a sua obra estabelece com o universo africano sãomúltiplos,acomeçarpelaadopção,aquandodasegundapassagemporAngoladeumalfabetocompostoporsímbolosgráficosondeecoamaproximaçõesaumalinguagemvisualcomaqualteriacontactadodirectamente.Contudo,segundoaspalavrasdoautor,estaapropriaçãoparcialfaz-se,sobretudo,aonível«(…) do seu ritual do que dos seus próprios significados»14revelandoaquiopredomíniodavisualidadesobreasignificação,noâmbitodeumcomplexoprocessorelacionalqueenvolvesistemasvisuaisdiferentes.Defacto,atravésdodiscursodoautorépossívelvislumbrarosmodelosemquefoisendogradualmenteforjadaumaimagemdachamada«arteafricana»,comoumduplonegativodaarteocidental.Oseuolharécondicionadoporumdiscursoonde«arteafricana»ésinónimodeumacertaideiade«primitividade»senãovejamoscomoopintorrefereoimpactodaexperiênciaangolananoseupercursoartístico,ementrevistaaocríticodearteFernandoPernes

«(...) a minha vivência angolana foi de extrema importância para o que a seguir eu viria a realizar . Como sabe, a minha formação de europeu ocidental conferia-me a uma tendência estética ligada à narração e ao descritivo , onde o intelecto predominava sobre o instintivo, o discurso sobre o mito. (...)a estética africana pressupunha, também, um sentido de utilidade; para além da sua carga mítica, os fetiches serviam à veneração e ao ritual, e encarnavam qualidades mágicas, de significantes que eram, as artes plásticas condensavam uma carga mágica-religiosa. (...)a partir de um certo momento a minha pintura começou a preencher-se de sinais e códigos (...) e de certa maneira a ganhar um sabor popular, “naif”,

14 JosédeGuimarãesinFernandoPernes.José de Guimarães, Lisboa,INCM,1984.

TERESAMATOSPEREIRA382

nalguns casos assemelhando-se a certas inscrições ou “graffiti”, noutros a certas paredes pintadas da “lunda”, cujo suporte eram as cubatas feitas de adobe oupau a pique, que emprestavam àquelas pinturas uma textura natural, lembrando também, de certo modo, as inscrições das grutas pré-históricas. (...) experimentei várias soluções, desde o gesso à cal, à areia, etc., mas todas me pareciam bastante artificiais. resolvi então estudar o processo de fabricar papel a partir de métodos artesanais (...) e fui aperfeiçoando o processo que já pratico desde 1975 (...)»15.

Estasafirmaçõestestemunhamapresençaqueumaimagemda«arteafricana»,carregada de estereótipos pode constituir mesmo após o desmantelamentodo império colonial português nomeadamente, pelo estabelecimento de umaassociaçãodirecta aoquedesignapor«fetiches», ao seu carácter instintivo (enãoracional)bemcomoumasubtilligaçãocomaartedas«grutaspré-históricas»revelandoomodocomoalgumassombrascontinuamaserprojectadasdopassadosobreopresente.

As «convergências e mestiçagens culturais» que o pintor procuraempreender atravésda experimentaçãoepesquisasplásticas são reveladas eminúmerosmomentosdoseupercursonomeadamenteatravésdassériesintituladas«fetiches»e«máscaras».Estarelaçãoésublinhadaemalgumaspeçasdosanos90intituladas«relicários»ondeoautorrecorrendoàassemblagemdemateriaiseobjectosvariados,propõeessa«miscigenação»atravésdaintroduçãodepequenasestatuetasqueconvivemaomesmonívelcomelementoscomopenas,pedaçosdecartão,fragmentosdecrustáceos,pedaçosdepano,etc.,quenaspalavrasdoseconstituemcomouma«mistura de ingredientes físicos e mentais que fazem a ideia visível e a obra mágica»16.

De resto, estas aproximações entre a sua obra e peças provenientes decontextos africanos, que sustentam uma ideia de mestiçagem visual/culturalforamrecentementeinquiridasnumaexposiçãointituladaÁfrica diálogo mestiço. Colecção de arte Tribal de José de Guimarães,patentenaGaleriadoPátiodaGalé,emLisboaentre15deJulhoe30deSetembrode2009,ondesãoexibidas,ladoaladoaobraplásticadoautoreosobjectoscoleccionados(Fig.4).

4. Ideogramas da História

A controvérsia em torno da recepção e visibilidade da obra produzidaporartistasafricanosemcontextoseuropeus,entronca,emparte,napercepçãogenéricaeessencialistaquesefoidesenvolvendoemtornodasexpressõesartísticasafricanas,realinhando,notecidodapós-colonialidade,algumasmodalidadesde

15 JosédeGuimarãesinFernandoPernes,op.cit.16 JosédeGuimarães,entrevistaaJoséLuisPorfírio,1998.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 383

pensamento que informaram a presença colonial, projectando-as igualmente,sobreaproduçãoerecepçãodasuaobra.

Umdosespectrosque,persisteempairarsobrearecepçãodaarteafricanacontemporâneanosmeiosartísticoseuropeus,deriva,emparte,deumanoçãode«arteafricana»,estruturadaemtornodedicotomiascomotradição/modernidade,genuinidade/imitação ouoriginalidade/aculturação/hibridação.

Poroutro lado, e assumindoumpontodevistada criação,nãopodemosignorarqueaimutabilidadeeaautoridadedeumtempopassado,implicadonaconstruçãodasnoçõesdeautenticidadeeoriginalidade se tornarem,poroutrolado,motivosdediscussão/exploraçãoplásticasendoconfrontadoscompropostasqueintegramnatexturadasobras,afluidezdastrocasculturaisquecadavezmaisocorrememterritórioshíbridos.

Atravésdavariedadedosprocessose linguagensquevão irrompendodoespaçodacriaçãoartística,estruturam-seconteúdosesentidosqueresultamdeumsabersimultaneamentevivencial,estéticoeplástico.

OencontrocomessesaberépropostopelaobradaartistaplásticaangolanaDíliaFraguitoSamarth,(n.emN’Dalatando,Angolaem1956)que,vindoparaPortugal,aquifezasuaformaçãoacadémicaetemdesenvolvidoumaactividadenasartesplásticas,(incidindoespecialmentenapráticadodesenho,pinturaenainstalação)enaeducaçãoartística.

Adistânciaespacialetemporalsurgecomoumsubstratoqueassisteaumapermanente reedificação damemória e imaginário individual, enquadrado porumadialécticaentreoherdado,oadquiridoeoimposto.

Este acto de constante reciprocidade, não pode ser confundido comuma nostalgia romântica, mas um acto vital de sobrevivência, que questionaincessantementeaquiloquesãoosconceitoseestereótiposenraizados.Propõe,comoalternativa, uma identidadeque sevai construindoatravésdeum longoprocessodeapropriações,rejeições,mestiçagens,convocandoacriatividadeeacapacidadederecriação,eexpressandonatexturadasobras,afluidezdastrocasculturais, que cada vezmais ocorrem em territóriosmulticulturais.ComonosrefereJoãoMariaAndré:

se o multiculturalismo é um facto incontornável das nossas sociedades e dos nossos tempos, todos somos, de algum modo, mestiços, por isso, todos tendemos, no futuro, a navegar nos labirintos das nossas mestiçagens»17.

A partir deste território fluído é possível reler e reexaminar a históriacolectiva,assumindoumsentidomultifacetadoondeaanamnesesefundecom

17 JoãoMariaAndré,diálogo intercultural, utopia e mestiçagens, em Tempos de Globalização, Coimbra:AriadneEditora,2005,p.64.

TERESAMATOSPEREIRA384

umadenúnciadasconvulsõesquepontuaramahistóriadasrelaçõesentreaEuropaeoContinenteAfricanoemgeral,eentreAngolaePortugalemparticular.

Oresultadodestapesquisatemvindoamaterializar-seeminúmerosdiáriosgráficosouemobrascomo«revolta da Casa dos Ídolos»(Fig.5),de1988,ou«ambul’oo mona africa»de1998(Fig.6).

AprimeiracomposiçãoremeteparaadestruiçãodaGrande Casa dos Ídolos,18porAfonso I, rei doCongo (que aliando-se aos portugueses e convertendo-seaocristianismo,assumeopoderdeformailegítima).Aaniquilação,atravésdofogo,dossímbolosmateriaisdareligiãotradicional,(edosseusopositores),surgecomoformaderetaliararesistênciadopovoemadoptar,porimposiçãodorei,afécristã.

Aludindo a esta vaga de repressão, a composição circular apresenta, aocentro,uma“assemblagem”deelementosorganizadosemformadecruz;assumeuma dimensão metafórica, onde se pressentem os indícios desse episódio, naacumulaçãoinformedematérias,transformadassobaacçãodofogo(pedaçosdemadeiracarbonizadas,cascas,ossos,espinhas,velasderretidas,etc)quecontrastacomaracionalidadedoformatodosuporte.

Em«ambul’oo mona africa»Abasedacomposiçãoéummapadocontinenteafricano.ÀsemelhançadosmapasquecomeçamasurgirapartirdoséculoXV,assinalaatravésdeinscrições(Tombuctu, mali, Gana, mpinda, ambaka, mpungu-andongo, monomotapa, Zimbabwé, Zanzibar, Tanzânia, somália, etiópia e sudão)edaiconografia,alocalizaçãodepontosquesemostraramestratégicosnaconquistaultramarina.Maséigualmenteummapaquedenuncia,atravésdesímbolosahistóriaviolentadessarelaçãoentreaEuropaeocontinenteafricano,sublinhandoumasériedeinteressesdenaturezaeconómicaqueseescondiamsobacapadeumamissãocivilizadora:oouro,omarfim,osescravoseasespeciarias,ondeosgrilhõeseaespadaseassociamàBíblia.

Omapacomosuportegráficoquedocumentaasrelaçõesdeposseeexplo-ração é destamaneira resgatadopela pintora, comoumplataforma imagética,precisamente no ano emque aExpo 98 (onde esteve exposto no pavilhão deAngola)vinhareavivaromitodosDescobrimentosaoassociaresteeventoaosOceanos,representadossimbolicamentecomoelementosdeligaçãoentreospo-vos,numdiscursocomalgunsecoslusotropicalistas.

18 EsteacontecimentoérelatadonumacartadeD.AfonsoI,reidoCongo,dirigidaaD.Manuel,reidePortugal,datadade5deOutubrode1514,ondeoprimeiroadadaalturarefereque,«determinámos queimarmos todos aqueles ídolos o mais secretamente que pudémos (…) e que sendo azo que a gente do nosso reino se tornasse a erguer contra nós e nos matassem, que nós receberíamos aquelamorte com paciência para salvar nossas almas, então começámos a queimar todos os ídolos quando a gente isto viu, começaram todos a dizer que éramos mau homem (…)»Extraídodeas Cartas do “rei” do Congo d. afonso [Introdução,notas,comentáriosemodernizaçãodotextoporAntónioLuisAlvesFerronha]Lisboa,1992.

ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 385

Neste sentido, a problematização e o desmantelamento de uma história,relatadaapartirdo“eurocentro”19assumem,quandoencaradasnumaperspectivadeconjunto,aconfiguraçãodeumameta-narrativavisual,naqualseentrelaçamosfiosquevãourdindoastexturasdaidentidade,factoqueéreferidoemváriosmomentosporDiliaFraguitoSamarth:

«para além dos pais biológicos, sou igualmente filha do Colonialismo português e da independência de angola. desta forma, tive necessidade de perceber o sentido verdadeiro da História, na medida em que nos ensinaram foram estórias.(…) esta busca foi necessária não apenas para compreender a minha inserção no contexto histórico, como de igual forma ia constituindo matéria-prima para a realização da minha obra plástica. Também a situação de guerra prolongada, [em angola] contribuiu para que me mantivesse, no silêncio do meu atelier-kilombo-bunker com profunda tristeza e revolta, canalizando a energia destes sentimentos, para o estudo e reflexão.

Por outro lado, como a procura das verdades da história, geralmentepermanecerestritaaumnúmeromuitolimitadoeherméticodepessoas,resolvitrazerparaastelasdeterminadosacontecimentos,paraque,destaformapudessecolaborarparaamudançadementalidades,tendoemvistaaconstruçãodeummundomelhor,maisjusto.»20

19 Lavie,S.eSwedenburgT.[1996] displacement, diaspora and Geographies of identity.20 Entrevistadadapelapintoraentre16e20deMarçode2008.

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ASARTESPLÁSTICASNOSLABIRINTOSDACOLONIALIDADE 387

FIG. 1-DesenhodeJosédeMourapublicadoemoutras Terras outras Gentes,comadesignação«Tipo Cuanhama».

FIG. 2

FIG. 3

FIG. 4

FIG. 5 FIG. 6

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ACOLECÇÃOAFRICANADOMUSEUCARLOSMAChADO

sílvia fonseCa e sousa*

AhistóriadoMuseuCarlosMachadoremontaàsegundametadedoséculoXIX, mais precisamente a 1876, ano da sua criação.As primeiras colecções,maioritariamentedezoologia,foramreunidaspelainiciativaeempenhodeváriaspessoas,emparticulardofundadordomuseu,Dr.CarlosMariaGomesMachadoereflectemamentalidadeeoespíritocientíficodaépoca.

EstabelecidoonúcleoinicialesobadirecçãodaquelemédicoeprofessordehistóriaNatural,a10deJunhode1880,noantigoLiceuNacionaldePontaDelgada,situadonoedifíciodoextintoConventodosGracianos,abriuaopúblicooentãodesignadomuseu açoriano.

OprimeiromuseudosAçoresmereceuomelhoracolhimentoporpartedopúblicoedaelitemicaelense,quedesdelogocolaboraramnoseudesenvolvimentoeenriquecimentopatrimonial,com saber, trabalho e auxílio financeiro, dedicada e desinteressadamente.1

Foinoâmbitodesseespíritosolidárioeentusiastaqueem1893,nacolecçãodezoologia,foiincorporadoumconjuntodeartefactosafricanos,doadospelo2ºCondedeFonteBela,JacintodaSilveiraGagodaCâmara,queostinhaadquiridoàviúvadoContra-AlmiranteCraveiroLopespor um conto de reis.2

* LicenciadaemSociologia,MestreemMuseologiaePatrimónioeTécnicaSuperiordoMuseuCarlosMachado.

1 LuísBernardoD’AThAIDE,as secções de arte e etnografia do museu de ponta delgada,PontaDelgada,Of.ArtesGráficas,1944,p8.

2 LuísBernardoD’AThAIDE,as secções…cit.,p.61.

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Dessenúcleoinicialconstavamseisarmáriosecercade464objectosdosmais variados tipos, dos quais se destacava, em relação à dimensão total dacolecção,umconjuntodepeçasvulgarmentedesignadasporarmas.Dereferirtambém,quealgumaspeçasestavamreferenciadasnãocomoafricanasmasdeorigemchinesa,árabe,indiana,madeirenseesul-americana.

Aquando da doação do Conde de Fonte Bela, o conjunto de objectosafricanosfoiintegradoeentendidonomesmocontextocientíficodascolecçõesdehistórianatural,reflectindo assim o espírito com que essas colecções eram encaradas e que surge como característica comum a muitas outras iniciativas museológicas congéneres.3 Esseconjuntodeartefactossóveioaganharestatutoautónomomaistarde,nasprimeirasdécadasdoséculoXXecomocolecçãodeetnografiaafricana.

Em1943,oMuseuCarlosMachadofoi instaladonoantigoConventodeSantoAndréedesdeentãoacolecçãoafricanaencontra-senumasalaemreserva.O acondicionamento dos objectos nessa sala foi efectuado agrupando-os portipologiaeexpondo-oscomalgumcuidadomuseográfico,deformaapermitiruma leitura visual clara e imediata a visitantes pontuais. De facto, ao longodo tempo a visita a esta colecção tem sido disponibilizada essencialmente ainvestigadoreseespecialistasdaárea,poisaausênciadepesquisaaprofundadaesistemáticasobreesteespólio,decaracterísticasmuitoparticularesporanalogiaàsrestantescolecçõesdoacervodomuseu,justificaoacessocondicionadoeoseuestadoemreserva.

Oprimeiroregistodecatalogaçãodestacolecçãonomuseudatade20deAbrilde1893efoirealizadoporManuelAntóniodeVasconcelos,preparadordainstituiçãonesseperíodo.4Em1960,nolivro deCadastro dos Bens do domínio privado móveis do museu Carlos machado,naSecçãodeEtnografia,acolecçãodeobjectosafricanosfoiapresentadajácominformaçãorelativaaonúmerodeinventário,valoratribuídoàspeçaseestadodeconservação.Nadécadaseguinte,tendocomoreferênciaasduas listagensanteriores, foramefectuadasfichasdeinventáriodosobjectos, não tendo sido acrescentadamais informaçãoà entãoexistente.

Relativamente ao crescimento da colecção africana do Museu CarlosMachado, para além do núcleo inicial, nas décadas de 60, 70 e 80 do séculoXX, outras incorporações foramconcretizadas para enriquecimento do acervodomuseu,nuncaporémalcançandoosignificadodadoaçãodoCondedeFonteBela.

3 João CONSTÂNCIA, “O Departamento de historial Natural do Museu Carlos Machado.Colecções históricas e Novos Desafios”, in 1º encontro das instituições museológicas dos açores,(1994),pp.141-149.

4 ManuelVASCONCELOS,“Inventáriodeobjectosd’ÁfricapertencentesaoMuseuMunicipaldePontaDelgada”,inas secções de arte e etnografia do museu de ponta delgada,(1944),pp.61-65.

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Nodomíniodaconservação,estacolecçãotemsidomantidaemcondiçõesestáveisdetemperaturaehumidade,emboraasalaondeseencontranãoestejaapetrechada com dispositivos de climatização. Regularmente é efectuada adesinfestação e limpeza do espaço bem comodas colecções, porém, o estadodealgunsobjectosrequerumaintervençãoderestauroeconservaçãodemodoatravaralgunsprocessosdedeterioração.Nestesentido,em2005,algunsartefactosmaisfrágeisforamacondicionadosemcaixas.

Em2010, com a abertura ao público doNúcleo de SantaBárbara, novoespaço doMuseuCarlosMachado, perspectiva-se a transferência da colecçãoafricanaparaaquelelocal,ondedeveráficarcomoreservavisitável.

Ao longodo tempo, alguns objectos ou conjuntos têm adquirido algumaproeminência,decorrentedeprojectosdepesquisadeinvestigadoresexternosedadivulgaçãodoacervoefectuadaatravésdaparticipaçãodealgunsobjectosemexposiçõesououtrasiniciativas.ComoexemplomaisrelevantedestarealidadedestacamosaesculturaLuba-Mulhercomrecipientedeadivinhaçãoque,em1985,foirequisitadapeloMuseuNacionaldeEtnologiaparaintegraraexposiçãotemporária escultura africana em portugal.Nesse âmbito, a peça foi sujeita,por aquele museu, a uma intervenção de restauro no braço direito. Em 1996,estaesculturaintegrouaexposiçãotemporáriamemory luba art and the making History,queserealizounoMuseumforAfricanArt,emNovaYork.Em2001,porsolicitaçãodaUniversityofMassachusetts,umaimagemdesteobjectointegrounaquelainstituiçãooprojectoeducativodeinteractividademultimédiadesignadoa History of art for the Twenty First Century.Em2005 integroua exposiçãotemporária orígenes, que se realizou no Centro Cultural Conde Duque, emMadrid.

A escultura Luba figura ainda nos catálogos das exposições temporáriasqueintegrou,bemcomonodaexposiçãoluba aux sources du Zaire,de1993,realizadanoMuseuDapper,emParis.

Relativamente a projectos de investigação importa também referir que,em1998,noâmbitodotrabalhoinventário das Colecções maconde em museus portugueses, realizado pelo Dr. Rogério Abreu, sob orientação do ProfessorDoutor Joaquim Pais de Brito, do acervo do Museu Carlos Machado foramidentificadas e estudadas vinte e oito peças procedentes de Moçambique, dasquaisumpequenogrupocorrespondeàcircunscriçãoculturaldosMacondesdeMoçambique.

Mais recentemente, oDr.LuizNiltonCorrêa, como apoio deFranciscoZambujo,desenvolveuumprojectodeinvestigaçãonoâmbitodaArtePrimeira,tendocomobasedetrabalhooestudodeartefactosafricanosdoMuseuCarlosMachado.

Em2008,noâmbitodoprojectomuseu em sua Casa,AnneStichelmansrealizoudoisestudosapresentadosemformatodeficha,umdedicadoàEsculturaLubaacimareferidaeoutroaumaCadeiradeChefeTchokwe,osquaistambém

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foramum contributo importante para o estudo e a divulgação das respectivaspeças.

O núcleo inicial da colecção africana do Museu Carlos Machado contajá com 116 anos na instituição, porém a escassez de documentação não nospermitiu, até ao momento, responder a questões que consideramos relevantesparaacompreensãoedesenvolvimentodestacolecção,nomeadamente:qualoespíritoqueestevenabasedasrecolhasdonúcleoinicialdoadopeloCondedeFonteBela?queautorouautoresasrealizaram?Comqueobjectivos,emqueperíodoseemquelocaistiveramlugar?

Considerandoasorientaçõesmuseológicasmais recentes,plasmadaspeloInternational Council of Museums e pela Lei n.º 47/2004 de 19 de Agosto,queaprovouaLeiquadrodosMuseusPortugueses,paraalémdasalvaguardada colecção africana do Museu Carlos Machado o seu estudo, dinamização edivulgaçãoconstituemumanecessidade,peloqueomuseucontinuaráreceptivoa todosos investigadoresquequeiramternesteacervoumareferênciaparaosseustrabalhos.

BIBlIoGRAFIA

- João CONSTÂNCIA, “O Departamento de historial Natural do Museu CarlosMachado.ColecçõeshistóricaseNovosDesafios”,in1º encontro das instituições museológicas dos açores,(1994),pp.141-149.

- livro deCadastro dos Bens do domínio privado móveis do museu Carlos machado.JuntaGeraldoDistritoAutónomodePontaDelgada,1960.

- Luís Bernardo D’AThAIDE, as secções de arte e etnografia do museu de ponta delgada,PontaDelgada,Of.ArtesGráficas,1944.

- Manuel VASCONCELOS, “Inventário de objectos d’África pertencentes ao MuseuMunicipal dePontaDelgada”, inas secções de arte e etnografia do museu de ponta delgada,(1944),pp.61-65.

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FIGuRA 1 –Aspectodacolecçãoafricana1903CoronelAfonsoChaves,CAC473ColecçãoMuseuCarlosMachado

FIGuRA 2 –Aspectodacolecçãoafricana1903CoronelAfonsoChaves,CAC476ColecçãoMuseuCarlosMachado

FIGuRA 2 – Aspectodasaladacolecçãoafricana1968Arquivofotográfico,álbum2ColecçãoMuseuCarlosMachado

FIGuRA 2 – Aspectodasaladacolecçãoafricana1968Arquivofotográfico,álbum2ColecçãoMuseuCarlosMachado

esCulTuRA luBA(Mulhercomrecipientedeadivinhação)RepúblicaDemocráticadoCongoAtribuídoaoAtelierdoMestredeMulongoMadeiraepastadevidro,SéculoXIXA35xL22xP28cm,MCM15001ColecçãoMuseuCarlosMachado

TRoNo de CHeFe TCHoKWeAngolaOrientalMadeiraescurecidaetampodepeleSéculoXIXA115xL47xP44cmInv.nrº88ColecçãoMuseuCarlosMachado

qUANDOALENTETRESPASSAOCORPO:REPRESENTAÇõESDEAFRICANOSNAFOTOGRAFIAOCIDENTAL 395

qUANDOALENTETRESPASSAOCORPO:REPRESENTAÇõESDEAFRICANOSNAFOTOGRAFIAOCIDENTAL(1870-1920)

leonor sampaio da silva*

Adécadade70doséculoXIXégeralmenteapontadapeloshistoriadorescomoummomentodeviragemqueassinalaofimdasuperioridadeindustrialdaGrã-Bretanhaeoiníciodumperíododerecessãoeconómicaquecoincidecomumesforço de expansão e consolidação colonial.EmPortugal, em Inglaterra,em França e naAlemanha, esses cinquenta anos (1870-1920) são férteis emacontecimentosmarcantesdopontodevistadaconfiguraçãodoimpério,comoporexemplo,oUltimatuminglêseomapacor-de-rosa.

AsocorrênciashistóricasquemarcamoperíodocoexistemcomumamudançasignificativanomodocomoserepresentaoOutro.Coincidindocomasegundafasedacolonizaçãoeuropeia(tambémchamadadenew imperialism),esteperíodocaracteriza-seporumasofreguidãosemprecedentes,porumaextremarivalidadena aquisição de territórios ultramarinos e pela institucionalização do discursoracista de superioridade ocidental sobre os povos colonizados.A sofreguidãoimperialista da época manifestava uma avidez especialmente acentuada pelosterritórios africanos.Várias razões estavam na origem da chamada “corrida àÁfrica”.Alémderazõeseconómicas,ateoriaevolucionistadeDarwininspiravadiscursosraciaiseeugenistasqueencontravamnocenárioafricanoumterrenofértilparaarealizaçãodeestudoscientíficos.

* ChAM (Centro de história de Além-Mar), Faculdade de Ciências Sociais e humanas,UniversidadeNovadeLisboaeUniversidadedosAçores.

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Umcartoondaépoca representade formabastante expressivaa atracçãopelo continente africano: “The Rhodes Colossus”, caricatura da autoria deEdwardLinleySambournepublicadapelaprimeiraveznarevistapunch,a10deDezembrode1892,retrataocolonialistabritânicoCecilRhodesaabrangercomumapassadacolossaltodooterritórioafricanodoCairoàCidadedoCabo.Estacaricaturaéum íconedodesejodedominaçãobritânicadeÁfrica (oconceito“doCaboaoCairo”,comoficouconhecido).Ofioqueeleseguraéocabodeumtelégrafo,símbolodopoderdacivilizaçãoocidentalemunificarumextensoterritórioatravésdodesenvolvimentocientífico,designadamentenocampodascomunicações.

Na convergência dos interesses económicos como estímulo científico, oencontromulticultural emÁfrica desencadeou imagens doOutro que chegamaoocidenteporduasvias.Umadelaséaquelaque,naformulaçãodeBlanchard,Bancel e Lemaire, nos aparece sob a designação de zoos humanos. Gozandodeenormepopularidade,oszooshumanoseramexposiçõescoloniais,tambémchamadas“etnológicas”ouainda“aldeiasnegras”,nasquaisindivíduosexóticos(os oriundos das colónias) eram exibidos ao lado de animais selvagens, emespectáculos montados para distracção dos visitantes europeus ávidos de umprimeirocontactocomaalteridade.Trata-sedeumcasotípicodoencontrodeculturascolonial,emqueoOutrosurge“encenadoeenjaulado”1,reforçandooposicionamentoetnocêntricoedominantedoobservador.EstapráticaapareceemparaleloemváriospaísesdaEuropaduranteoséculoXIX,conhecendo,desdeoinício,umsucessoextraordinário.Foiexactamenteasuapopularidadejuntodopúblicoquelevouaqueestasexibiçõesse transformassememfeiras,algumasdelasitinerantes,comumaestruturatãopesadaque,porvezes,ascendiaaos400figurantes2.

AencenaçãoelaboradaparafinsdeexposiçãodoOutrovai,comopassardo tempo, adquirindo proporções gigantescas de teatralidade. O objectivocentraldestesespectáculoseramostraroselvagem,emostraréaquiumverbosemanticamenterelevante,namedidaemqueassinalaadimensãoexactadoquesepretendia:encenarumarepresentaçãodoOutro.Adramatizaçãodaselvajariacomeçavanoscartazesdedivulgaçãodasexposições3.Antesdarepresentação,a divulgação dos espectáculos era publicitada numa linguagem apostada emdestacar o carácter desumano, cruel e bárbaro dos costumes em exposição.Aguerraeabarbáriemarcavampresençaatravésdeumacombinaçãode ícones

1 PascalBLANChARD,NicolasBANCEL,eSandrineLEMAIRE,“Lespectacleordinairedeszooshumains”, in IgnacioRAMONET,DominiqueVIDAL,AlainGRESh, (ed.),manière de Voir. polémiques sur l’histoire coloniale,n.º58,Paris,SAle monde diplomatique,Julho-Agostode2001:41(traduçãonossa).

2 Paraseterumaideiadointeressequeestasexibiçõessuscitavam,asecçãocolonialdaexposiçãouniversaldeParisdoano1900chegouater50milhõesdevisitantes.

3 Figura1.

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visuais e verbais, nos quais estavam patentes imagens e sugestões poderosasde guerra e de morte.A integração das mulheres neste universo reforçava aselvajariado(s)grupo(s)representados.Nodecursodasrepresentações,investia-se a fundo no processo de animalização do Outro que visava dois propósitosprincipais:demarcarcomrigorafronteiraentrenós(constituídoscomopadrão)e eles (unidos na indistinção cultural desviante do modelo) e glorificar acivilizaçãoocidental.Aencenaçãodooutroenquantoselvagemincluíadançasfrenéticas,simulaçãodecombatessanguináriosederitoscanibais,bemcomoademonstraçãodapoligamia,comaexposiçãodefamíliasinteirasorganizadasemtornodaexistênciadeváriasesposas.

Paracomporbrevementeoquadrogeraldestasencenações,faltaapenasdizerqueopúblico,diversificadamenteconstituído– integrandodesdeospopularesmenosinstruídosatéfigurasdegranderelevosocial,comopolíticos,cientistasejornalistasqueescreviamsobreestesespectáculos–,reagiaaoespectáculoquelheeraoferecidocomummistodefascínio,sentimentodesuperioridadeedesdémrelativamente ao Outro. Os visitantes raramente estranhavam e muito menosdeploravamascondiçõesfísicasehumanasemqueeramexibidoseviviamosindivíduosexóticos.Muitosatiravamcomidaebugigangasaosgruposexpostos,comentavamasuaaparênciacomparando-osaosprimataseriamperanteaquelesquepareciamestardoentes,commedooucomfrio.AracializaçãodohumanopermitiaaoOcidentedesenvolverafilosofiaimperialistaeapráticacolonialcomumsentimentodesuperioridadequerecebiacálidoacolhimentonumaconsciênciatranquila.

Uma conclusão interessante que nós podemos retirar destes espectáculoséque elesdiziammuitopouco acercados indivíduos egrupos emexposição,pois mostravam-nos numa moldura visual limitada por estereótipos e quasenuncaacompanhadapornarrativaslongasouesclarecedorasdasuaidentidade;emcontrapartida,estasexposiçõesdizem-nosmuitoacercadosobservadores,osquaisnãoestandolimitadospelamolduradarepresentaçãodovisível,serevelamnosdiscursosqueproferemenasimagensquefabricam.

Vejamosdois casosconcretosde representaçãovisual everbaldoOutro:umanaEuropa,outranaAmérica,umanoséculoXIX,outradoséculoXX;aprimeira,umamulher,osegundoumhomem,ambosafricanos,ambos jovens,ambosdebaixaestatura,ambosexibidoscomoobjectosvisuais,ambostratadoscomoinfra-humanos.

Elachamava-seSaartjie(PequenaSara)Baartman,efoiexibidaemInglaterraeemFrançacomoumaaberração,aoladodegigantes,anões,mulheresbarbudasegémeossiamesesdequatropernas.Apresentadaaosparisiensescomooespécimemaisextraordináriodahumanidadeprimitiva,atrocodetrêsfrancos,aPequenaSaraeraumsucessocomercial.Comumaaparênciafísicahabitualnoseupovo,masdesusadanaEuropa,ahotentote(palavraque,emholandês,significagaga,uma designação já de si depreciativa para a comunidade sul-africana que era

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assimreferidaporseexpressarnumalínguaincompreensívelaoscolonizadores),comaalturadeumacriançade12anos(cercadeummetroemeio),exibiaossinaisnormaisdaesteatopigia: ancasenádegasexageradamente largas.O seucorpocontinhaumasegundacaracterística,destafeitacultural,quesuscitavauminteresse acrescidopor parte dos europeus: os órgãos genitais excessivamentedesenvolvidos por meios artificiais. Era este o elemento mais distintivamenteestranho e chocante para a sensibilidade ocidental do tempo. A “cortina dopudor”,comotinhasidoeufemisticamenteverbalizadaporLineu,representavaaosolhosdacomunidadecientíficaeuropeiaumaprovadainferioridademoraledainequívocaanimalidadedacomunidadebosquímane,poisacreditava-sequeossereshumanosmaisavançadosdopontodevistafísicoeéticoeramsexualmentecontidos,aocontráriodosselvagens.Aassociaçãoquehálargosséculoshaviasido estabelecida entre a aparência e as características morais dos humanos4saía, assim, reforçada por intermédio de valores e práticas culturais estranhasaoocidente,prejudicandoaindamaisaimagemdaVénushotentote,comoSaraBaartmaneraanunciadanasexibiçõespúblicas.

SaartjieBaartmanéaprovadecomoumcorpopode terumadimensãopolítica.Elaémaisdoqueumaaberração–servedemodelodecomparaçãopara acentuar a beleza europeia: o corpo desviante fica associado a povosinferioresemfísico,intelectoemoralidade.SenoséculoXIXocorpoeuropeumasculinorepresentaanormalidade,ocorpodeumamulhernegraexpressaasuaradicalalteridaderelativamenteaomodelo.Asul-africanadoséculoXIXserve,assim,nãosóparamarcaradiferençaentrehomensemulheres,comoparareforçaraconstruçãodaidentidademasculinaeuropeiaenquantocritériode avaliaçãodohumano.Nos antípodasdomodelomasculino caucasiano, ocorpofemininonegroexpressavaadiferençaradicalmenteanormaleinferiorquando comparada com o corpo masculino europeu. Nesta visão do Outroconvergemcategoriasde raçaesexoqueuniversalizadasacabamporcriaroestereótipodahiper-sexualidadedamulhernegra,queacabouporserestendidaàtotalidadedosafricanos.Asgrandesdimensõesdosórgãosgenitais(aindaporcimamanipulados)edasnádegastiveramcomoefeitocriaro“mitocientífico”dequeotamanhoeradirectamenteproporcionalaoapetitesexual,oquefaziadasnegrasfêmeasdevassasquenãotinhamdomíniosobreoseucorpo,puranaturezanãomodificadapelosentidomoral.Atravésdelasaraçabrancareforçoua sua imagem de raça superior: civilizada, comedida, inteligente. Funda-se,destemodo, a crença de que a sexualidade feminina externa à configuraçãoocidentaléemgeralpatológica.OcorpodeSaartjietorna-se,assim,umíconedadiferençasexual.

4 Arelaçãoentreaaparênciafísicaeasemoçõesetraçosdepersonalidadeassumeespecialincidêncianobarroco,nomeadamentenosestudosdeDescartes(as paixões da alma,1649),CharlesLeBrun(a expressão das emoções,1668)eRogerdePiles(Curso de pintura por princípios,1708).

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Saartjie é, portanto, apresentada na sua nudez estranha aos olhos doeuropeu branco como uma fêmea inferior, com um apetite sexual primitivo,excitando os homens e escandalizando as senhoras. Uma ilustração francesa,desencontradamente intitulada ora “La Belle hotentot”, ora “Os curiosos emêxtase”ironizaa“beleza”retratadacomcomentárioscomo:“Oh!quebelobife!”e “Ah! que cómica é a natureza.” Igualmente ofensiva é uma caricatura quefundaopreconceitoocidentalnocânonevisualdosgrandesmestreseuropeus.5Inspirando-seemdiversasrepresentaçõesdadeusaVénuscomCupido(Ticiano,1555,Rubens1608e1613,Velásquez,1647-1651,por exemplo), a caricaturadeSarahBaartmanrompe,porém,comomodeloocidentaldarepresentaçãodadeusa.Apresentando-secompeleseacessóriosquearemetemindiscutivelmenteparaocampodospovosprimitivos,eladistingue-sedadeusanacordapele,nomodocomoestávestidaepenteada,bemcomonoolharquelança,maliciosoesedutor,aoespectadorhumano.AVénusdasrepresentaçõeseuropeiasnãoseduzos humanos, colocando-se numa pose que dificulta o contacto visual directoe frontal, muitas vezes, através do recurso mediador do espelho que mostrasempermitiroolhardirecto.OpoderdeseduçãodeSaartjieéacentuadopelainterpelaçãodirectadeCupidoaoobservador:“Takecareofyourhearts!”Seháquetercuidadocomela,aVénushotentotenãoéumadeusa,masumamulherperigosa,afemme fatalequecolocaavirtudemasculinaemperigo.

Profusamenterepresentadaemdesenhos,gravurasecaricaturas,Baartmanadquireumadimensãoficcional.Naqualidadedeimagem,elatransforma-seemobjectosegundo,duplodohumano,representaçãodocorpohíbridoporexcelência,e intensifica a já de si extremada reacçãooitocentista à imagemdodiferente:consideradaumaaberraçãoeumacuriosidadecientífica–meiohumana,meioanimalesca, ela é o elo que faltava para ligar os animais irracionais aos sereshumanos.

AVénusNegraconstitui,assim,umcorpoinsólito,partilhandodohumano,doanimalescoedodivinopagão–atriplanaturezaqueacaracterizaexpulsa-a para fora dos lugares tradicionalmente associados ao feminino humano.Desse modo, ela aparece como um animal (vivendo em jaulas), um diabo(perversanacargaeróticaquecarrega)eummonstro (nadiferença físicaqueostenta relativamenteàsmulheresocidentais), etiquetasderivadasdospadrõesintolerantesdaculturaeuropeia,nãodanatureza.Nessaqualidadesofreasmaisterríveiscrueldadesehumilhações;évendida,alugada,acorrentada,exibidanumajaula, pintada, desenhada, tocada e observada em nome do divertimento e daciência,nãocomosujeitodotadodeidentidadeeconsciência,mascomoobjectoàmercêdosinteressesalheios.Vive,assim,numamolduradepuravisualidadequeatransformanumsimulacrodapessoaquepodiatersido.Morrecomcercade26anos,nasequênciadecomplicaçõespulmonarescausadaspelaexcessiva

5 Figura2.

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exposiçãoaofrio,epermaneceatéhojecomoumíconedarepressãocolonial,nuncaabandonando,portanto,acondiçãodeimagem.

O sucesso europeu destes espectáculos rapidamente chega ao continenteamericano.Em1906,OtaBenga6étrazidodoCongoeexibidotodasastardes,no Parque Zoológico de Nova Iorque, no Bronx, numa jaula com macacos.Ota Benga apenas tinha por companheiros outros animais, em concreto umorangotango,quesediziapossuirumainteligênciaquasehumana,eumpapagaio,tambémtrazidodeÁfrica.Opúblico,quevariavaentre300a500pessoasporhora, ria ruidosa e incessantemente perante o espectáculo proporcionado pelofactodeoorangotangoestarsempreagarradoaoafricano.UmanotíciapublicadaemThe new York Times,a10deSetembrode1906,relatavaoseguinte:“TheBushmandidn’tseemtomindit,andthesightplainlypleasedthecrowd.Fewexpressedaudibleobjectiontothesightofahumanbeinginacagewithmonkeysascompanions,andtherecouldbenodoubtthattothemajoritythejointman-and-monkeyexhibitionwasthemostinterestingsightintheBronxPark.”

Acertaaltura,oautordanotíciaafirma:“…onehadagoodopportunitytostudytheirpointsofresemblance.Theirheadsaremuchalikeandtheybothgrininthesamewaywhenpleased.”Acomparaçãoentreohomemeomacacochegaàseguinteformulação:“ManyofthoseinthecrowdwhowatchedBenga’santicdoubtedifhewasahumanbeing,andoneheardquestionsinvariouslanguages.«IstdasseinMensch?»aGermanwomanaskedforinstance.”7

Estes dois casos demonstram de forma inequívoca que, no articuladodos impérios coloniais de finais do século XIX / princípios do século XX, arepresentaçãodoOutroéumfactorcrucialdeconsagraçãodashierarquiasdasraçasededomesticaçãododiferente.AtransformaçãodoOutronumaimagemvisual(quandoédesenhadooufotografado),performativa(quandoencenado)ouverbal(quandodescritoounoticiado)integra-onumaredededominaçãopolíticalegitimadapelosdiscursoscientíficos.

É certo que a representação doEu sempre se efectuou contra o pano defundodarepresentaçãodoOutroequeasegundararamenteresistiaàtentaçãodacríticaaodiferente.MasumanovidadedistingueasrepresentaçõesdoséculoXIXrelativamenteàsdeépocasanteriores:asimagensagoraproduzidasdifundemumretratomarcadamentenegativodoAfricano,quepenetrarápidaefortementenocorposocialgraçasaosnovosemaiseficazesmétodosdedifusãodeimagens.NãonosesqueçamosdotemorqueosBárbaroseosinfiéissuscitavamjuntodosgregosoudoscruzados,nemdaaurapositivaqueenvolveobomselvagemde

6 Figura3.7 Intitulado “MAN AND MONKEY ShOW DISAPPROVED BY CLERGY; The Rev. Dr.

MacArthurThinkstheExhibitionDegrading.COLOREDMINISTERSTOACTThePygmyhasanOrang-OutangasaCompanionNowandTheirAnticsDelighttheBronxCrowds”,deautordesconhecido, o artigo pode ser consultado em linha no sítio: http://query.nytimes.com/mem/archive-free/pdf?_r=1&res=9C04E7D81F3EE733A25753C1A96F9C946797D6CF

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Rousseau,noséculoXVIII.Pormedoouporbenevolência,oocidentalmanteve,nopassado,umcertograuderespeitoemrelaçãoaoexóticoqueseextinguecomocolonialismo.Asrepresentaçõesqueestaépocaproduzdosafricanosaccionamum mecanismo de inferiorização dos povos colonizados validado quer pelasimagensqueosdãoaconhecer,querpelodiscursocientíficoqueosestudaelhesatribuiumaposição recuadana escadada evoluçãohumana.Exemplosdissossão o essai sur l’inégalité des races humaines, de JosephArtur deGobineau(1853-1855), cujos critérios de hierarquização conducente à superioridade daraçabrancaincluemtópicostãosubjectivosquanto“abelezadasformas,aforçafísicaeainteligência”8ouaindaumaobrabritânicade1857,indigenous races of the earth9queilustraaposiçãointermédiadaraçanegraentreomodeloGregoeosímio,atravésdumacomparaçãoentreoscrâniosdostrêsrepresentantesdecadapatamarhierárquico.Nabasedapirâmide,oNegrorepresentaamaisinferiordasraças,situando-setodasasoutrasentreosdoisextremosdobrancoedonegro.

quandooséculoXIXreforçaadistinçãoentreserumcorpoeterumcorpo,nãoremeteapenasasmulheresparaestaversãodeidentidadelimitadaaumcorpoquenão se chegaapossuir.Aschamadas raças inferiores tambémsedefinempelodespojamentodoprópriocorpo,oquefavoreceasuaconversãoemmaterial(numerosoevariado)querdepesquisaquerdeilustraçãocientífica.Comopassardotempo,adocilidadedoscolonizados–maisdepressaresultantedeimpotênciadoquedeconsentimentoemfacedopoderdohomembranco–foiinterpretadacomofactordevalidaçãododiscursocivilizadordoOcidente.

FotografiastiradasemÁfricanosfinaisdoséculoXIXcontinuamareproduzirimagensestereotipadasdosAfricanos.ComopodemosverpelasinscriçõesqueacompanhamasFiguras4e5,ofotógrafoeuropeuencenaecatalogaosafricanossobdois estereótiposdominantes: sexoeguerra.Noprimeirocaso, a raparigaérepresentadaenfeitadaeemposeartificialparaservirumpropósitoforçado,expressonainscriçãoquevemosàesquerda“Zulugirlwaitingforherlover”10.Impõe-sequestionarporquerazãohá-deumamulherjovem,apresentando-senapose,nocontextoecomosacessóriosqueestafotografiaostenta,estaràesperado amante e não descansando ou simplesmente mostrando-se como imagemsegundo as solicitações de quem a fotografa?Ou porque é que simplesmentenãosedizdelaaquiloquemaistardeveioaserotítulodadoaestafotografia:“Womanseatedinastudio”?Arespostaésimples:porqueoqueestáemcausanãoéumarepresentaçãodarealidade,masumaencenaçãodoOutro,aqual,porseuturno,transmiteumpré-conceito.

8 apudPASCALet alii,op.cit.,p.42.Traduçãonossa.9 JosiahClarkNotteGeorgeRobinsGliddondefenderamnessaobra,anterioraDarwin,quearaça

negrasesituavaameiocaminhoentreomodelogregoeochimpanzé.Estaideiaéapoiadanumacomparaçãoentreoscrâniosdeumindivíduobranco,umnegroeodeumchimpanzé.

10 Michael STEVENSON e Michael GRAhAM-STEWART, surviving the lens. photographic studies of south and east african people,1870-1920,London:FernwoodPress,2001,p.75

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AfotodoChefeTetelekutambémfabricaedifundeumaimagemestereotipadado Outro: reproduzida em south africa: its history, heroes and wars, de W.DouglasMackenzie,umaobrade1899,estafotografiaaparececomaseguintelegenda:“ChiefTeteluki–Natal.NotaBirdofParadise–aZuluwarrior–theprofessionalrapineandslaughtermakerofSouthÁfrica”11.Sexoebrutalidadesãoasduasetiquetasqueacondicionamosafricanosnaprateleiradosinstintosedoscomportamentosprimários,nãomediadossejapelanobrezadesentimentossejapelousodarazão.

Integradosnoambienteaquepertencem,osafricanosfotografadosemÁfricaretêmaqualidadehumanaqueasrepresentaçõesemsoloeuropeu,nocontextodoszooshumanos,lhessuprimira.Noentanto,muitoemboraasfotografiasdeÁfricanãoenquadremoscolonizadosnumamolduradeanimalidade,masdeligaçãooraaumanaturezapredominantementevegetaloraainteriorescivilizados,mantém-se,comosevêatravésdestesdoiscasosfotográficos,asugestãodeinferioridademoraldosafricanos.Alémdisso,sãorarososcasosderepresentaçãoladoaladodebrancosenegros.Umadasfotografiasmaisextraordináriasdoperíodoéumaimagem de grupo12 representando mulheres e crianças, tirada no Egipto, nosfinaisdoséculoXIX,porG.Lekegian,figuramisteriosadequempoucosesabe,exceptoqueetiquetavaassuasfotografiaseminglêseemfrancês,gostavadeseapresentarcomo“photographerartistique”,tinhacartõesprofissionaisimpressosemViena,escritoseminglêsedizendo“PhotographerstotheBrittishArmyofOccupation”.Aexpressividadedaspessoasdafiladetrás–osmaisvelhosdogrupo–assumedestaqueespecialnestarepresentação.Osfotografadosrevelamnoseurostoenaposequeocorpoassume,asváriasreacçõesàpresençaestrangeira.Daesquerdaparaadireita:acabeçabaixasemsorriso,orostocontraído,ocorpohirtoexpressamresistência,insubordinaçãopassiva,comoquemdiz:“fotografa-me,jáquequeresepodes,masnãotedevolvereioolhar”13;aoladoaresignação:“estou cansada demais para te contrariar”, ao meio, a simpatia de quem seencontradivididaentreaaprovaçãoeo receio,àdireitaadesconfiança,eumpoucoafastadodogrupo,o rapazmaisvelho,quenãopertencenemà filadafrente,porquejánãoécriança,nemàfiladetrás,porquenãoémulher,queestávestidocomoosrapazes,masnafiladasmulheresedosmaisvelhos,destaca-senãosópeloafastamentofísico,maspelaabsolutafrontalidadedorostoedoolharepelaverticalidadedocorpo:semombrosdescaídos,semcabeçadelado,semolharoblíquo.Trata-sedeumafigurasimultaneamentefrágil(sentidoderivadodasuajuventudeemagreza),poderosa,porquedestemida(afrontalidadeéindíciodecoragem)ealerta.

11 idem,p.8012 Figura6.13 havia,porpartedepovosnãoeuropeus,o receiodequeomecanismofotográficoroubassea

alma,subtraindoaoindivíduoasuacomponenteespiritual.

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ChegadosaoséculoXX,umagrandepartedestasfotografiascontinuaacobrirogénerodoretratoindividual,dividindo-seentrearepresentaçãodos“melhoresespécimes”14edosmaisbemadaptadosaoscostumesdacivilizaçãoeuropeia15.Sublinhe-se a presença do cristianismo nalgumas fotografias, resultante, semdúvidadaactuaçãomissionáriadaIgrejanascolóniasafricanas.ÀmedidaquecaminhamospeloséculoXX,arepresentaçãodosafricanosabandonaoregistoestereotipado e ganha objectividade, à medida que se avança na tentativa defundiroretratocomoregistodocumentalexactoeimpermeávelàintervençãopessoaldofotógrafosobrearealidaderepresentada.OfotógrafoprocuracaptarimagensquemostremaoOcidenteoOutronascondiçõesobjectivasdasuavidaecultura:otransportedascrianças16,openteardocabelo17,aapanhadoalgodão18,avidaemcativeiro19.

Emcertasrepresentaçõesfotográficas,sobressaiaexpressãosorridentenorostodamaioriadosescravosoudosafricanos,emgeral.Entreasduasguerrasmundiais, as representações do Outro mostram-no não já como um selvagemexótico, mas como um subalterno, que ao deixar-se domesticar, comprovaa legitimidade dos valores e das práticas ocidentais e mostra ser merecedorde ascender a um patamar de maior proximidade com o modelo humanodominante.

Nosanos50,àmedidaqueÁfricaseorganizapoliticamenteedesenvolveo espírito independentista que levaria a que, em 1960, 16 comunidades seconstituíssemcomoestadossoberanos(em2010comemorou-seos50anosdaindependênciade16países:Togo,BurkinaFaso,Madagáscar,Congo,Somália,Benim,Camarões,Nigéria,Níger,CostadoMarfim,Chade,RepúblicaCentro--Africana,Gabão,Senegal,MalieMauritânia),osafricanosaindaaparecemnafotografia ocidental numa posição inferior aos brancos, uma realidade de quetêmdolorosaconsciência,comoseprovapeloauto-retratocomquesedefinemcomo os “danados da terra” (expressão retirada duma canção cantada pelosproletáriosdoséculoXIX)–istoé,osverdadeirosdeserdadosdeterraedepão(veja-seaobradeFrantzFanon,les damnés de la terre,datadade1961,Paris,LaDécouverte,2006).Areferênciaaestelivrojustifica-se,nãosópelotítulo,queexpressaumamaldiçãoparaospovosdeÁfrica,mastambémpelaspalavrasdeJean-PaulSartrequeabremoprefáciodaprimeiraediçãodaobra,em1961:«Il

14 Vide fotografias intituladas “Korana girl” e “Morolong youth”, in: Michael STEVENSON,MichaelGRAhAM-STEWART,surviving the lens… op. cit

15 “Portrait of a person wearing a cross” e “The happy Coouple”, in Michael STEVENSON,surviving…,op.cit.

16 idem,p.51.17 idem,pp.109e125.18 idem,p.134.19 idem,p.133.

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n’yapassilongtemps,laterrecomptaitdeuxmilliardsd’habitants,soitcinqcentmillionsd’hommesetunmilliardcinqcentsmillionsd’indigènes.»20

A nossa extremada sensibilidade para o politicamente correcto não podesenãoressentir-sedofactodeaTerraqueSartrereferirnãosónãotermulheres,comoosseushabitantessedividirememduascategorias:umaminoriadehomenseumamaioriadeindígenas,comoseestesúltimosnãocoubessemnacategoriadohumano.

RolandBarthesdisseemvários lugaresepordiversasvezesquepor trásde uma imagem existe sempre um texto. Os casos aqui apresentados contêmnarrativas subjacentes às imagens que a fotografia ocidental revelou dosafricanos,asquaisnospermitemsurpreendernasimagenshistóriasdeidentidadeocultassobarepresentaçãovisualdoOutro.Maisdoquefornecerconclusões,esteestudobrevedealgumasimagensfotográficascoloniaispretendesensibilizarparaumareflexãoorientadaparaooutroladodoespelho:aqueleemquealentenãodisciplinaaluz(definiçãoquerecuperaosentidoetimológicodefotografia–escrita da luz),masverbalizasombras:osduplosdosAfricanos,feitosimagemoucorpossegundos,trespassadosporestereótipos,ideologiasepreconceitosqueoscolocamnopalcodeumaalteridadeencenada.

20 J.P.SARTRE,inFrantzFANON,les damnés…,op. cit.,p.17.

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FIG. 1

FIG. 2

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FIG. 3

FIG. 4

FIG. 5 FIG. 6

PERSPECTIVASPARAOESTUDODAEVOLUÇÃODASREPRESENTAÇõESDOSAFRICANOS 409

PERSPECTIVASPARAOESTUDODAEVOLUÇÃODASREPRESENTAÇõESDOSAFRICANOSNAS

ESCRITASPORTUGUESASDEVIAGEM:OCASODA“GUINÉDOCABOVERDE”(SÉCS.XV-XVII)

José da silva Horta*

Nestecapítuloprocurorecuperaraperspectivadeumaprimeirainvestigaçãoque desenvolvi sobre as representações do Africano nas escritas de viagematé iníciosdoséculoXVIeavaliaratéquepontoesseenfoqueseajusta,ouésatisfatório,paraoestudodeumsegundoperíododasrepresentaçõesportuguesas(doúltimoquarteldoséc.XVIaosfinaisdacentúriaseguinte),construídasapartirdasrelaçõescomummesmometa-espaçoafricanodecontactosinterculturais:a“GuinédoCaboVerde”ouGrandeSenegâmbia.Seorecorteespaciale,portanto,contextual,nãoseafiguraanódinoparaoestudoemcausa,asreflexõesqueseseguem poderão ser pertinentes para uma análise comparada e interconectadadas representações relativas a outras regiões e experiências de contacto querafricanas,queramericanas,querasiáticas.

1.quando comecei a interessar-mepelaproblemáticadas representaçõesportuguesasdosAfricanos(hácercadevinteecincoanos)1,aprimeiraquestãoqueformulei,começandoporestudarasfontesmedievais,foia desaberqual

* CentrodehistóriaeDepartamentodehistóriadaFLUL.1 JosédaSilvahORTA,a imagem do africano pelos portugueses: o horizonte referencial das

representações anteriores aos contactos dos séculos XV e XVi, [s.l.], Centro de história daUniversidadedeLisboa(LinhadehistóriaModerna),1986[1989],sep.primeiras Jornadas de História moderna,Lisboa,2vols.,vol.II,pp.1013-1036.Esteprimeiroestudofoidesenvolvido,masreduzidonoaparatoerudito,nocap.IIde o Confronto do olhar. o encontro dos povos na época das navegações portuguesas (séculos XV e XVi). portugal, África, Ásia, américa,obra

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teria sidoopesodos referentesculturaiseuropeus-peninsularesedas imagensmedievaisnagénesedasprimeirasrepresentações,enquantotraduçõesmentaisdeumobjectoque,nodecorrerdoséc.XV,pelaprimeiravez,seobservavanoseuespaço:onegro,mouro negro,etíope,guinéu,entreoutrossignosidentificativosdosAfricanosmobilizadospelosviajanteseautoresportugueseseoutroseuropeusqueosacompanhavam.

PartiasobretudodaspistasabertaspelostrabalhosdeJeanDevisseeMichelMollat, bem como de François de Medeiros , para as imagens do Ocidentemedieval2edeLuísFilipeBarretoedeAlfredoMargarido,pioneirosparaocasoportuguês3.Oúltimo,numartigofundamental,publicadoem1984,emquecomavisãodoAfricanosecruzavatambémavisãodoAmeríndio,afirmava:

“Lediscoursportugaisn’estqu’unfragmentdudiscourseuropéen,mêmesi,souvent,ilestlediscoursfondateurdecettevision[del’Autre].(…)Maisilestévidentque lamassedes informationsnouvellesdon’tsontporteurs lesPortugais les force à proposer des façons de voir, et àmettre sur pied destaxinomiespermettantdeclasserparanalogie.”4

O autor sublinhava a importância da elaboração de classificações e dehierarquizaçõesvalorativasenquantoinstrumentofundamentalparauma“gestão”daheterogeneidadedoOutro,faceaosdadossomáticos5,aovestuário,àrelaçãodohomemcomaNatureza,àalimentação,àreligião,àlíngua,etc.,constituindo

publicadaemcolaboraçãocomLuísdeAlbuquerque,AntónioLuísFerronha(coordenação)eRuiManuelLoureiro,Lisboa,EditorialCaminho,1991,pp.43-70.

2 l’image du noir dans l’art occidental,vol.II,t.1,JeanDEVISSE,Delamenacedémoniaqueà l’incarnation de la sainteté, t. 2, idem e Michel MOLLAT, les africains dans l’ordonnace chrétienne (XiVe-XVie siècle), Fribourg, Office du Livre, 1979; François de MEDEIROS,l’occident et l’afrique, Xiiie-XVe siècle: images et représentations,Paris,Karthala,CentredeRecherchesAfricaines,1985.

3 LuísFilipeBARRETO,descobrimentos e renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVi,2ªed.,Lisboa, ImprensaNacional-CasadaMoeda,1983eAlfredoMARGARIDO,“La Vision de l’Autre (Africain et Indien d’Amérique) dans la Renaissance portugaise,” inl’Humanisme portugais et l’europe. actes duXXie Colloque international d’études Humanistes,Paris,CentreCulturelGulbenkian, 1984, pp. 505–555.Estes trabalhos foram antecedidos emcercadeumquartodeséculopelolivrodeW.G.L.RANDLES,l’image du sud-est africain dans la littérature européenne au XVie siècle,Lisboa,CentrodeEstudoshistóricosUltramarinos,1959:oprimeiroainteressar-sepelaimagemdeumespaçoafricanosituando-anohorizontedasexpectativasqueneleprojectavaaculturaeuropeia.Porsuavez,LuísdeALBUqUERqUE,jánasuaintrodução à História dos descobrimentos portugueses(sucessivamentereeditadadepoisde1943)mostravaaimportânciadasvisõescosmográficasmedievaisquefiltravamacompreensãodocontinenteafricanonoiníciodaexpansãoportuguesa.

4 AlfredoMARGARIDO,“la Vision…”, cit.,p.508.5 Todavia,nãoacompanheioautornasuatesedeumatendênciageralparaazoomorfizaçãodos

gruposnãobrancos,oqueincluíaosAfricanos,baseando-senasclassificaçõesde“pardos”ou

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noseutodouma“grelhacultural”dequedispunhaoPortuguêspararepresentaroAfricano.

Naverdade,odiscursoeuropeuera,indubitavelmenteachavemestraparaacompreensãodostextosqueentãodesignei,deformabastantelata,porliteraturade viagens (conceito que seguia o contributo clássico de Joaquim BarradasdeCarvalho), numaprimeira sequência textualque se iniciavac. 1453comaCrónica dos feitos da GuinédeGomesEanesdeZurara,odiscursofundador,etinhaumprimeiropontodechegadanoiníciodoséculoXVI,àvoltade1507-1508,comasdescriçõesdeValentimFernandesedeDuartePachecoPereira–asprimeiras sínteses de matéria antropológico-geográfica resultantes do períododosprimeiroscontactos,cercademeioséculopercorridoporescritas6.

Oespaçoquejustificavaejustificaosparâmetrosdestasequênciatextuale discursiva é a “Guiné do Cabo Verde”, categoria espacial de época que ahistoriografiatemprogressivamentevindoaassumircomoconceitooperatóriona definição da escala de análise histórica com o par, homólogo, de Grande senegâmbia7.

Porquê autonomizar um espaço como objecto e contexto de análisedas representações e não apenas um período em diferentes espaços?A opçãoque se colocou foi, desde início, de adequação metodológica: a evidênciacarreada nas fontes de que, para compreender as representações decorrentesdos contactos, teria de as correlacionar com as circunstâncias específicas emqueestesocorreram,medianteumlevantamentosequencialdedados,contactopor contacto.As variações do registo axiológico das representações do Outro(TzvetanTodorov)teriamforçosamentedeteremconsideraçãoasequenciação

“mulatos”,porexemplo.Cf.adiscussãodestepontoemJosédaSilvahORTA,a representação...,ob.cit.nanotaseguinte,pp.249-251.

6 José da Silva hORTA, a representação do africano na literatura de Viagens, do senegal à serra leoa (1453-1508)[s.l.,ComissãoNacionalparaasComemoraçõesdosDescobrimentosPortugueses,s.d.],sep.mare liberum. revista de História dos mares,nº2,Lisboa,1991,pp.209-339,índicefinal[publicaçãointegraldeumatesedemestradoapresentadaem1990].

7 Ver,entreoutros,opioneiro,AvelinoTeixeiradaMOTA,“ContactosCulturaisLuso-Africanosna‘GuinédoCaboVerde,”Boletim da sociedade de Geografia de lisboa ser.69,nº.11–12(1951),pp.659–667eJeanBOULÈGUE,l’impact économique et politique des navigations portugaises sur les peuples côtiers. le cas de la Guinée du Cap Vert (XVe-XVie siècles),Lisboa,InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,1988.Maisrecentemente,verJosédaSilvahORTA,“Evidencefor a Luso-African Identity in ‘Portuguese’Accounts on ‘Guinea of Cape Verde’ (Sixteenth-SeventeenthCenturies)”, in History in africa. a Journal of method (vol. 27), 2000, pp. 99-130eidem,a ‘Guiné do Cabo Verde’: produção textual e representações (1578-1684),Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian/FCT (no prelo) [publicação revista de tese de doutoramentoapresentadaem2002].NasequênciadaconceptualizaçãodeBoubacarBARRYsobrea“GrandeSénégambie”foifeitaumaaproximaçãoaoprimeiroconceito,comEduardoCostaDIASePeterMARKnonúmeroespecialdarevistamande studies,2007[2010]:Trade, Traders and Cross- -Cultural relationships in Greater senegambiadesenvolvendoaproblemáticaseminaldeBarryemtornodoconceitodeGrandeSenegâmbia.

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de contactos de diferentes naturezas, nomeadamente bélicos ou pacíficos, deguerraoudecomércio.Sóapartirdeumavisãocontextualizada,pordiferentesespaçosediferentes temposdecontacto—bemcomopordiferentes tiposdetextosediscursos—seriapossívelpartirparaumatentativarigorosadeidentificardenominadorescomunsdas representações,emparticularna longaduração.Oavançorecentedahistoriografianestadirecção8viabilizaráumataloperaçãodesíntese.

Porquê autonomizar aquele espaço, em concreto? Na verdade, numprimeiromomentoaescolha recaiu sobreeleporquenão sóconstituía, comabaciadorioSenegal,oiníciodaÁfricaNegraparaumobservadoreuropeuquese aproximava de Norte para Sul – vista por este como uma descontinuidadehumanaenatural–,comonoseulimitemeridional,aSerraLeoa,compunhaodenominadorcomumatodaumasequênciatextual,aqueemperíodoposteriorseacrescentariamoslimitesaleste:oscontrafortesdoFuutaJalon.Possibilitava,portanto, as comparações que desejava fazer para definir as regularidades nodiscursoantropológicoemcausa.Numsegundomomento,noutrainvestigação,oqueapenasse intuíafoiverificado:esseespaçomantinha-secomautonomianocasoportuguês,suscitandoaprodução,deumcorpotextualprópriosobreaÁfricaeosAfricanos9.

2.Orecuoaohorizontereferencialdasrepresentaçõesmedievaispermitiu--mecompreenderqueaexperiênciapeninsulartinhamarcadoprofundamenteasrepresentaçõesdosafricanos,querosNorteAfricanos,querosSaraeSubsarianos,nestepontolevandoàconstruçãodeumagrelhacomespecificidadesimportantesface a outras representações europeias, sobretudo as norte-europeias muitodistantes,porexemplo,docontactocomoMagrebeecomoIslão.EstagrelhafoiconstruídaantesdoscontactosdirectosnaÁfricaSubsarianaeapôs-lhesoseuselocomtudooquetinhadeestereotipadoesimplificador.Mastambémpodemosdizer que os viajantes portugueses, inseridos no contexto tardo-medieval daPenínsulaIbérica,seencontravam,noiníciodaexpansãoeuropeiaquatrocentista,numaposiçãomaisfavoráveldoqueoutrosviajanteseuropeusparaestabelecer

8 OmelhorexemploéoestudodeCarlosALMEIDA,uma infelicidade feliz. a imagem de África e dos africanos na literartura missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do século XVi-primeiro quartel do século XViii),dissertaçãodeDoutoramentoemAntropologia/especialidadedeEtnologia,FCShdaUniversidadeNovadeLisboa,2009(trabalhoquevemnasequênciadatesedemestradodoautorapresentadaem1997).Anecessidadehistoriográficadeumapréviaanáliseporespaçosjáfoipormimsublinhadaem“OAfricano:produçãotextualerepresentações”,inCondicionantes Culturais da literatura de Viagens: estudos e Bibliografias,dir.deFernandoAlvesCristovão.[2ªed.],reimpressãodaobra,Coimbra,CentrodeLiteraturasdeExpressãoPortuguesadaUniversidadedeLisboa,L3,FCT/Almedina,2002,pp.274-275(1ªed.,Lisboa,EdiçõesCosmos,1999).

9 JosédaSilvahORTA,a ‘Guiné do Cabo Verde’…, cit.

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uma aproximação às sociedades africanas no plano do conhecimento e dasexpectativas.AcoexistênciadereligiõesnaPenínsula,bemcomoacontinuidadedasrelaçõeshistórico-culturaiscomoNortedeÁfricaanterioresaoséculoXV:1) apartaram as imagens portuguesas das visões mais deformadas do Islão

típicas do Norte da Europa medieval (o que não significa que o cânonocidentalsobreos“Maometanos”nãofosselargamentepartilhado);

2) facilitaramafuturaidentificaçãodo–einteracçãocom–oIslãoemÁfrica,inclusivenaÁfricaOcidental10;

3) permitiramumcontactocomescravosafricanos,incluindoescravosnegros,quechegavamaosmercadospeloseixoscomerciaistransarianos,maiordoquenoutrasregiõeseuropeias:osestereótiposmaisnegativosassociadosahomensnegros,enquantocriaturasmonstruosas,depoisdesconstruídospelassucessivasviagensatlânticas,teriammaisdificuldadeemseremgeralmenteaceites(independentementedacontinuidadedasimagensescatológicasdodemóniocomonegro);

4) tornarampropícioodesenvolvimentodeumdiscursoteológicotrecentistadosMendicantes,quetornoupensávelaconversãodoMouroNegro,tendocomobaseaelaboraçãodeumsistemadeclassificaçãodosgruposconsoanteas suas diferentes religiões. As significações associadas às categoriasresultantes desse sistema penetraram profundamente nas mentalidades,nomeadamente pela via da pregação, cuja recepção superava o âmbitocortesão.Neste sistema, foradoCristianismoedo Judaísmohavia lugarparauma

distinçãoclaraentreMuçulmanos(osMouros)enãoMuçulmanos:osGentios(idólatrasounãoidólatras).Estes,aocontráriodosJudeusedosMuçulmanos– alvos de uma valoração profundamente negativa – eram consideradospotencialmente convertíveis ou, mais precisamente, a sua condição nãoapresentava,àpartida,osenormesobstáculosàevangelizaçãoqueseesperavamdosprimeiros.Deveriam,portanto,constituirumespecialalvodeproselitismocristão.Estaclassificaçãoteveumforteimpactonosdiscursosenaspráticasdoscírculos responsáveis pela expansão portuguesa na dinastia deAvis e marcouprofundamenteas representaçõessobreosMuçulmanoseosnãoMuçulmanosnosséculosseguintes.

Comolastrodaanálisedasfontesmedievaisportuguesas,avanceiparaapropostadeummodelodeanáliseque,paraoperíododosprimeiroscontactos,permitissesobretudoperceberaformacomoosviajantes,portugueseseoutroseuropeus, organizavamepensavamamassadedados agora à suadisposição,modelosumariamenteesquematizadonoquadroI:

10 A vantagem desta familiaridade ibérica na Senegâmbia foi já sublinhada por Peter MARK,“portuguese” style and luso-african identity: precolonial senegambia, sixteenth-nineteenth Centuries,BloomingtoneIndianapolis,IndianaUniversityPress,2002,p.93.

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quadroI:NíveisecategoriasderepresentaçãodoAfricano(c.1453-1508)

CORPO categoriasesignosidentificativos:Branco/Negro/baço,pardo…

organizaçãodadescriçãoesistemadeadjectivação:carasecorpos,cabeloscrespos,curtos,desafeiçoados,presençarazoada…

CRENÇAS categorias:Cristão/Judeu/Mouro/Gentio-idólatra(-)(-)(-)(+/-)(-)

(-)e(+)indicamtendênciasdevalorizaçãooudesvalorização

MODODEVIVER

códigosdedescriçãoedeavaliação:alimentação-trabalho/guerra/vestuário/habitação/organizaçãosocial(“costumes”)/entendimento-racionalidade

categorias:Bárbaro,Bestialidade/Polícia

Nonível de representações dascrenças, a especificidade acimanotada éimportante até porque noutros países europeus11 o sistema de classificaçãocorrenteerabemmaissimplificado:emvezdediferenciarMuçulmanosdenãoMuçulmanos, uns eoutros eram integradosno seiodeumavaga categoriade“Pagãos”,definiçãoconsideradasuficienteequeeraporexemploveiculadapelatradiçãotomista.Poroutrolado,jánodecorrerdosseuscontactoscomascostasafricanas atlânticas, usavam frequentemente a categoria de Mouro (maures,moors,mohren, etc)paradesignarosNegros12 (pelaviado latinomauri edotopónimomauritaniadaherançacosmográficaclássico-medieval),circunstância

11 Talnãoseaplicaráaosviajanteseuropeusqueacompanharamosportuguesesnaexploraçãodascostasafricanas.Porexemplo,osviajantesitalianosdoperíodohenriquino,comdestaqueparaovenezianoAlvisedaCa’DaMOSTO(ouCADAMOSTO),osquais,alémdaexperiênciadecontactointer-religioso,conviveramcomosportuguesesoutiveramacessodirectoainformantesafricanos.PelapenadeCadamostonassuasnavigazioni temosmesmoaprimeiraclarificaçãoeuropeiadascrençasdoshabitantessubsarianos(cf.JosédaSilvahORTA,a representação…,cit.,p.263esegs.).

12 Aindaem1667,NicolasVILLAULT,SieurdeBellefond,viajandonacostadaSerraLeoa,usaestesigno—“Mores”—paraidentificaroshabitanteslocais.Verinfra,nanota19,aob.cit.,pp.199-200.

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que dificulta, por vezes, o trabalho de descodificação das representações dosAfricanosnessesrelatos.

Emcontrapartida,nomodelodeorigempeninsularmedieval,seumMouroeraNegro,erasupostosermaisfacilmenteconvertívelaoCristianismoporseconsiderarque,enquantoNegro,pertenciaàgeraçãobíblicadosGentios(nasualeituraneo-testamentária)13.AsimagensnegativasdoNegrocomomonstruosoou demoníaco, associadas à cor da pele, reaparecem em casos particulares enuncageneralizadasaosAfricanos.Pelocontrário,a importânciadestamatrizpeninsular, que pesou, de facto, nas primeiras representações quatrocentistas,estánofactodacordapeleeoutroscaracteressomáticosdoindivíduo14seremmenos relevantesdoquea sua filiação religiosaefectivaougenealógica.Erasobretudoareligião,easexpectativasqueaelaestavamassociadas,quemarcavamaisprofundamenteasrepresentaçõesdosAfricanosnoiníciodoscontactosenosséculosseguintes.Talestendia-seàsconcepçõesdaprópriaÁfricaenquantocontinente dividido por grandes espaços religiosos, usando o modelo similarao da classificação acima mencionada: essencialmente dividido entre o Islãoe aCristandade (associada à suposta vastidão dos reinos na órbita domíticoPresteJoão)mediadosporumapelículadeGentilidadefacilmenterompívelpeloavançodosviajantes.Arealidadeimpôs-sebemdiferenteefoidesconstruindoeste imaginário espacial: as representações adaptaram-se à necessidade dese valorizar os espaços gentios africanos, de estabelecer relações político--diplomáticascomosseusdignitáriosedecomeçaraorganizaroprocessodemissionação(operaçãotardia,quedáosprimeirospassosapenasnosfinaisdoséculoXV).

Deumaformaesquemática,aevoluçãodasrepresentaçõespodeserpensadaa partir de um eixo de interconexão permanente que articula por um lado asimagenserepresentaçõescomascondiçõesdeproduçãodetextosediscursos15,poroutrocomanaturezadoscontactos,poroutroainda,comasatitudesfaceosAfricanos.Aevoluçãoemcausa,temdeconsiderarastransformaçõesnoseiodecadaumadestastrêsesferasestreitamenteinterconectadas.

13 UmpassobemconhecidodocapítuloXVIdaCrónica dos Feitos da Guiné de ZURARA(1453-c.1460)émuitoclaroaesterespeito.Outraevidênciasepodeencontrar,porexemplo,recuandoaoséculoXIIInasCantigas de santa maria deAFONSOX,comlargavogaemPortugalnacentúria seguinte, que mostram como a vontade de conversão de um mouro negro supera atentaçãodemoníaca.

14 Nesteponto,discursoscomoodocronistaZurara,representativodopensamentodominantenaCortedeAvis,limitavam-seaseguiraópticaderaizpatrístico-tomista,segundoaqualoselementosfísicosdocorpo,comoacorouaaltura,eramacidentesenãoaessênciadanaturezahumanadeumindivíduo.Talnãosignificaqueoutrasinterpretações,nomeadamentedematriznãoerudita,pudessemdivergir desta posição, comoo capítuloXVI citado tambémdeixa, implicitamente,transparecer.

15 Nãoaludoaquiaestavertentedesenvolvidaema “Guiné do Cabo Verde”..,, cit., v.g.

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A natureza do relacionamento com as sociedades oeste-africanas nasequênciadoavançodosnaviosportuguesesao longodo litoralafricanoedoestabelecimentodecontactospolíticosecomerciais,emmeadosdoséculoXV,foi importante para a dinâmica das atitudes e das representações. Na ÁfricaOcidental,osPortuguesesnãoestavamrealmenteatravarumaguerracontraos“infiéis”,comoocorrerapersistentementenoMagrebe.Depoisdeumaestratégiapacífica lhes ter sido impostapelosgovernantes africanose seusguerreiros, apartirdec.1448procuraramassegurarasmelhorescondiçõesparaocomérciona medida do respeito pelas regras locais vigentes assentes na paz.A guerra,salvocontraosrivaiseuropeus,seriaevitadaatéaolimite(umprocessodiversoocorreriaapartirdoúltimoquarteldoséculoXVInocentro-oestedocontinente).Aprimeirapreocupaçãodosviajantesportuguesesfoiaidentificaçãodareligião.Seriamelhor, segundo eles, tratar depolítica e do comércio comumparceironão-muçulmanodoquecomummuçulmanoemelhoraindasesetratassedeumcristão.Essaseriaumadasrazõesfortesparaastentativasformaisdecristianizaçãoque,noentanto,paraoespaçoemcausaseriammaistardias.

Nãosepretendecomistodizerqueaforaa“fé”ou“lei”osoutrosníveisderepresentaçãonãoforamigualmenteimportantes.Associedadesoeste-africanasforam essencialmente descritas e situadas quer no nível de representação dascrenças,quernodomodo de viver,cadaumcomosseuspróprioscódigos,ou,

A evolução das representações dos Africanos: Eixo de interconexão

Imagens e t õ drepresentações dos

Africanos

Condições de produção d t t di

Natureza dos contactos

Atitudes face aos Africanos

de textos e discursos

PERSPECTIVASPARAOESTUDODAEVOLUÇÃODASREPRESENTAÇõESDOSAFRICANOS 417

para usar os conceitos homólogos de Joan-Pau Rubiés, através da linguagem da Civilização e não apenas pela linguagem do Cristianismo16. Ou seja: ascompetênciasmercantisetecnológicas,aavaliaçãodaarquitecturaedovestuário,costumeseorganizaçãosocial,justiçaeguerra,etc.,tudoseráobjectodeescrutíniopelas escritas de viagem. O Ocidente, e especialmente a Península Ibérica (a“Espanha”),seráareferênciacomparativaprincipaleofiltrodapercepção,pelomenos,atéaoiníciodeumanovasequênciatextual.

Porém, se as representações se afiguraram geralmente negativas e muitocríticasnageneralidadedestescódigosdeanálise,nopermanentejogodeespelhoscomoMesmocivilizacional,talnãoocorreulinearmente.Énessesentidoqueashierarquiassociaisforamrespeitadasqueraoníveldasatitudes–existindoumapredisposiçãoparaasaceitar–queraoníveldasrepresentações,seguindoumaaproximaçãoporviadahomologiaeanalogiacomassociedadeseuropeias.Osescravoseramrepresentadosetratadoscomoescravos(enasociedademedievaledeAntigoRegimetinhamomaisdesafortunadodoslugares);ovirtuosismodosartíficesafricanosfoireconhecidoeelogiado(edeuorigemaumacorrentedeexportaçãodeobjectos,algunsconsideradosdeluxo);oscomerciantesafricanosforamtratadoscomotais,estabelecendo-serelaçõesdeconfiançacomobaseparaocomércio(noqueorespeitopelaslógicasmercantislocaiseraobrigatório)e,anãoseremcontextosdiscursivosespecíficos17,estesmercadoresforamapreciadospelosviajantesdesdequeessascondiçõesparaonegóciosemantivessem;osreise as elites africanas eram tratadas a essenível–por exemplooprotocolo erasemprerespeitadopelosreisportugueses(omesmosucederácomosmonarcasespanhóis),nasuarecepçãoemPortugal,noscontactosestabelecidosnaGuinéounastrocasepistolaresoficiais.

Noentantoareligiãoeracrucialparadeterminarasatitudes,sobretudoemterritóriocristão.Veja-seoconhecidoexemplodeBuumi Jeleen,muçulmano,dalinhagemdosnjaayeenquantotalcandidatoabuurba(reidoJolof),baptizadoD.JoãoBemoimeapoiadoporD.JoãoIInacortedeste:assassinadonamalogradaexpediçãoà fozdoSenegal,o seu séquitoemembrosda sua linhagemforamrecebidos e respeitados na ilha de Santiago como descendentes de um nobrecristão de linhagem régia. Um século depois, outros dignitários guineenses,temné,porexemplo,forambemrecebidosemSantiago,semprepressupondoasuacristianizaçãofeitalocalmenteouemterritóriocristão.OmesmosepassoucomaconversãodeumpríncipepapeldeBissaurecebidonaCortejánofinal

16 Formuladospeloautorparaanalisaraearly ethnologydosubcontinenteindianonosséculosXIIIaXVII.VerJoan-PauRUBIÉS,Travel and ethnology in the renaissance. south india through european eyes, 1250-1625,Cambridge,CambridgeUniversityPress,2000,p.xv.

17 Ocasodoesmeraldo de situ orbis(1505-1508)deDuartePachecoPEREIRAéexemplaraesterespeito,numautorfortementemarcadoporumarelaçãonegativacomosmuçulmanosnoÍndicoeescrevendoumtextoquetinhaoreiD.Manuelcomodestinatário,porcontrastecomacoevadescriçãodeValentimFERNANDES,bemmaisneutranessaapreciação.

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doséculoXVII.Areligiãoeraconsiderada,porumlado,aexplicaçãoessencialparaaalteridade,apontode,porvezes,atravésdacategoriamista(oudesíntese)deBárbaro seconfundirem,ounelasearticularemcrençasemodo de viver;poroutro,complementarmente,ametamorfoseindividualoucolectivadoafricanononívelreligiosoeraconsideradaagrandeportaparaasuatransformação(desejávelaosolhoseuropeus)nonível“civilizacional”,tantasvezesvistocomoumsinal/resultadodaausênciadoCristianismo.

3.Aanálisedas escritasdeviagens edeoutros textosportugueses sobreamatériaguineenseparaumperíodomaistardio,bemcomoumainvestigaçãorealizada, nos últimos anos, em conjunto com Peter Mark sobre outro tema,a história das comunidades de judeus na Senegâmbia18, fizeram-me ganharuma consciênciamais aguda da relevância da escolha do espaço inicialmenteseleccionado. No estudo da história das representações o contexto em que aGuinédoCaboVerde/GrandeSenegâmbiasesituaéodeumMundoAtlânticoemconstrução,paraoqualnãoédemaissalientaraimportânciadasexperiênciaspioneirasquetiverãolugarnesteespaçoafricano:1) Como primeira grande experiência de contacto e de interacção cultural

euro-africana,oquesignificaqueassoluçõesencontradaspararepresentarassociedadesafricanaspoderiamservirdematrizparaoutrasexperiênciasmais a sul.A Guiné do Cabo Verde foi também pioneira na construçãoidentitária decorrente da evolução das formas de relacionamento euro-africano(sobretudoluso-africano).

Investigaçõesrecentes,nomeadamentedoantropólogoFranciscoFreire19edohistoriadorAntóniodeAlmeidaMendes20levam-nos,nesteplanorelacional,avalorizartambémosuldaactualMauritânia,polarizadopelaexperiênciadeArguim,masquenelanãoseesgotanecessariamente.Estafoiantecedidade um breve período de violência, ainda que inscrito profundamente namemória oral bidan, perpetrada pelas navegações portuguesas de corsoa que outras intervenções guerreiras, também exógenas, se sucederam.De igual modo, torna-se progressivamente evidente a profundidade doscontactos luso-sarianos na construção das identidades locais, bem comoosnexosestabelecidosentreassociedadesberbereseassubsarianasmais

18 PeterMARKeJosédaSilvahORTA,The Forgotten diaspora: Jewish Communities in West africa and the making of the atlantic World,Cambridge,CambridgeUniversityPress,2011.

19 Francisco FREIRE, narrativas naçrāni entre os bidān do sudoeste da mauritânia: a viagem europeia e suas reconfigurações tribais, tese de Doutoramento em Antropologia, FCSh daUniversidadeNovadeLisboa,2008.

20 AntóniodeAlmeidaMENDES,“ChildSlavesintheEarlyNorthAtlantic,NorthernSenegambiato Portugal, 15th-16th Century”, in Brokers of Change: atlantic Commerce and Cultures in precolonial Western africa, ed. por Tobias Green and José Lingna Nafafe, Oxford, BritishAcademy/OxfordUniversityPress,noprelo.

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próximas(wolof,fula,sereer...)eentreelaseosmercadoresportugueses,particularmente judeus e cristãos-novos e seus afro-descendentes. NesteespaçoanortedabaciadoSenegaladificuldadequeseapresentaaumaanálise das representações é a descontinuidade da produção de textosportuguesesapartirdasegundadécadadoséculoXVI.Omesmoocorre,bemmaisanorte,nocasodasCanáriasdadaaevoluçãodaexpansãoibéricanaquelearquipélagoquesubalternizouaproduçãoportuguesasobreele.

2) Comoprimeiraexperiênciaquereflecte,aomesmotempoquecondiciona,um processo muito próprio de povoamento insular, de CaboVerde, comdestaquepara a ilha deSantiago.Os seus habitantes, vivendonummeioculturalmentetransversal,contaram-seentreosprincipaisprotagonistasdasrelaçõesqueseestabeleceramcomocontinentefronteiroeotrânsitoculturalqueseprocessouentreriosdaGuinéeilhasfoicrucialparaaconstruçãoidentitárianoscontextoscabo-verdianoeguineense21;contextofundamentalparaentenderasrepresentações.

3) Uma experiência importante no Atlântico africano ocidental no sentidoem que na Grande Senegâmbia ocorreu, à parte do caso das Canáriasacima referido, a primeira experiência de confronto entre oCristianismoeasreligiõesafricanasautóctones.Oúnicoemqueinteragemalémdestaso Islão (aocontráriodaÁfricaCentralOcidental e, escassamente, até aoséculoXVII,dogolfodaGuiné)comoCristianismo,mastambémcomoJudaísmo.

4) Umaexperiênciaqueserepercutiunasmargensamericanaeeuropeia,doAtlânticoaqueestavaintrinsecamenteligadoporlaçosdeinterdependênciaeconómicos,mastambémculturais.NocasodofuturoBrasil,oimpactodaexperiênciaafricanasobreasrepresentaçõesdosAmeríndiosantecede,emtrêsdécadasesseslaços.

Talconfluênciadecircunstâncias,associadasaummesmoespaçodecon-tactos,obrigaaolharmuitoatentamenteparaestaexperiênciaeavaliarassuaspossíveisconsequências,nestecasonastransformaçõesoperadasnasrepresen-tações,numaescalaespacialmaisalargada;numduplosentido,nomeadamente:dasmarcasqueumaprimeiraexperiênciadeixounasvisõesdeoutrosespaçosafricanosemqueseproduziramencontrosinterculturaissubsequentes(acomeçarlogonasegundametadedoséculoXV);deformamaisampla,eminvestigações

21 ParaaconpreensãodosnexoscomplementaresentreasilhaseosRiosdaGuinédoCaboVerde,nuncaédemaissublinharocontributodaHistória Geral de Cabo Verde, vol.I,coordenaçãodeLuísdeALBUqUERqUEedeMariaEmíliaMadeiraSANTOS,vol.IIeIIIcoordenaçãodeMªE.MadeiraSANTOS,Lisboa,CentrodeEstudosdehistóriaeCartografiaAntiga,InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical;Praia,DirecçãoGeraldoPatrimónioCulturaldeCaboVerde-Instituto Nacional de Cultura de CaboVerde/ Instituto Nacional de Investigação Promoção ePatrimónioCulturais,1991,1995e2002.

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futurasquepoderãoavaliarasconsequênciasdacirculaçãoderepresentaçõesnoMundoAtlântico.Nãopretendoirtãolongenestareflexão.Masdevoreconhecerqueoprimeiromeio séculodeescritasdeviagemcorrespondeaumprimeiroperíododahistóriadas representaçõesportuguesas/europeiasdosAfricanosdaGuinédoCaboVerde,que foi,nestaperspectiva,bemdistintodaquelequesepodeestudarapartirdeumanovasequênciatextual,especificamenteportuguesa,sobreomesmoespaço,iniciando-senoúltimoquarteldoséculoXVIefindandocercadeumacentúriadepois.

Deacordocomoesquemadeinterconexãoacimaesboçado,asrepresentaçõessãodinâmicastalcomoasatitudes,masadiversidadeetransformaçãotambémexiste entre os representantes e será sublinhada com o aprofundamento dasrelaçõesafro-portuguesas.Oque se seguenãoémaisdoqueumconjuntodepistaseexemplosdeumainvestigaçãoqueesperodesenvolversistematicamente,mastentareicomeçararesponderàseguintepergunta:oquemudounasatitudeserepresentaçõesportuguesasaolongodosséculosXVIeXVII?

quandoavançamosparaosmeados/finaisdoséculoXVItemosumnovocontextoderelacionamentoluso-africano22e,consequentementeumperíodonovonaevoluçãodasrepresentações.Transformaçõesecontrastesidentitáriosmarcamediferenciamprofundamenteosdiscursosportuguesesdecorrentesdaevoluçãodesserelacionamento.Porumlado,osdiscursoseuropeusoumesmopeninsularesjánãobastamcomopanodefundoquepermitaexplicaramatrizdasdiferentesrepresentaçõesportuguesas; por outro, tambémnão sãoosPortugueses, comoconceitogenérico, quepoderão constituir umaunidadede análise, do ladodoSujeitorepresentante,massimosdiferentesperfissocio-culturaisdeportuguesesnascidosemPortugal,nas ilhasenaGuiné, frequentementeafro-descendentesquesedebruçamsobrearealidadeafricana.Aquiainvestigaçãotemdevalorizardeformaacrescidaastipologiastextuaisediscursivas(taljátinhasidoensaiadopara o primeiro período), agora associadas à distinção entre diferentes tiposde agentes culturais no sentidodas relaçõesdistintasque estabelecemcomassociedades observadas e atender aos elos identitários que encadearam ou nãocomasditas.Istoé,podetornar-senãooperatóriodefinironossoobjectocomoas“representaçõesportuguesas”senãosituaraquilodequefalamos.

O olhar de um jesuíta ou de um franciscano recém-chegados aos RiosdeGuiné,profundamente imbuídodeumagrelha teológicados finaisdoXVIe XVII ou o de um outro tipo de reinol, por exemplo, um capitão-mor ououtro oficial régio também de passagem, será o mesmo de um comerciante,prático dos Rios de Guiné, com parentes, amigos e parceiros na costa,

22 Nãovoupormenorizarnestelugarocontextoderelacionamentocomoespaçoguineenseque,nasequênciadahistoriografiaanterior,procureitratarema ‘Guiné do Cabo Verde’… Remetoparaesseestudoaevidênciadealgumasdasafirmaçõesedasfigurasaquefaçoreferêncianestapartedesteartigo.

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nomeadamente entre lançados e africanos, que visita regularmente ou mesmoaonde vive? Por exemplo, um André Álvares de Almada, orgulhosamentenado e criado na ilha de Santiago, afro-descendente por parte da mãe e umaavóafricana,comumaexperiênciafamiliarintensadeligaçãoàsmemóriasdocontinentequecirculavamna ilhaedecontactonoexercíciodamercancianaGuiné.

Nestas novas circunstâncias, a análise das representações terá de fazer-se atendendo muito menos ao contexto geral das representações portuguesase europeias do Africano mas ao contexto específico de que elas emanam.Eventualmenteidentificandodiferentestiposdediscursooumesmodiferentesdiscursos sobre uma mesma realidade e tratando-os separadamente. Nestecontexto de relacionamento a problemática daalteridade, sempre presente esignificativamentepresentenagénesedasrepresentaçõesenasuatransposiçãonas escritas de viagem, se continua a ser relevante, está longe de esgotar acomplexidadesocio-culturalnecessáriaparaentenderasrepresentações.Revejo-me,plenamente,naspalavrasdeSergeGruzinski:

“Loindesvisionsdualistes—l’Occidentetlesautres,EspagnolsetIndiens,vainqueursetvaincus—etdesanalysessystématiquementconçuesentermed’altérité, les sources nous dévoilaient des paysages mélangés, souventdéroutants, toujoursimprévisibles.(…)lesrhétoriquesdel’altéritédressentdes obstacles aussi redoutables que les pesanteurs des historiographiesnationales”23.

Na dialéctica Alteridade/Identidade, esta última, como afirmou Paul

Voestermans,éaafirmaçãodequemnóssomosporcontrastedecadaelementodonossomododevivercomodeoutros24.Nestesegundoperíodo,nasescritasdeviagensdetodosaquelesque,identificando-secomoPortugueses,pertenciamaomundo cabo-verdiano-guineenseassiste-seaumenfraquecimentodessadialécticadicotómicaMesmo/Outro,emcertosníveisderepresentaçãopodemesmodizer-sequeháumadissoluçãodosentimentodealteridade,paraqueparecetambémapontarSergeGruzinskireferindo-seaumcontextopartilhadoàescaladoMundoAtlântico, na mesma época, uma de muitas “histórias conectadas”. O modelodeconstruçãodaidentidadepartilhadonoespaçodaGrandeSenegâmbia(edegéneseanterioràchegadadoseuropeus)apontaparaaflexibilidade,amobilidade,porvezesmesmoamultiplicidadeidentitária.

23 Serge GRUZINSKI, “Les mondes mêlés de la Monarchie Catholique et autres ‘connectedhistories’”,annales H. s. s.,n.º1,janvier-février,2001,pp.87-117.

24 Paul VOESTERMANS, “Alterity/Identity: a deficient image of culture”, in alterity, identity, image: selves and others in society and scholarship,ed.porRaymondCorbeyeJopeLeerssen,Amsterdam-Atlanta,EditionsRodopi,1991,p.219.

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Aperspectivadeanálisedaalteridadepermaneceporém,porqueaforçadosreferentesportugueseseeuropeuscontinuaateroseulugar.Nestesentido,hádenominadorescomunsentrediferentesagenteseescritasdeviagemnoprocessodetransformaçãoqueasrepresentaçõessofrem.

Oquepartilharam?Pararesponderaestaperguntadareiapenasoexemploda transformação das representações em relação aos muçulmanos africanos.Numprimeiromomento,quatrocentista,oMouroNegroerarepresentadocomosuperficialmenteislamizadoe,apardoGentio,fontedetodasasesperançasdeconversão;numsegundomomento,porventurarecuandoaoiníciodoséculoXVI,jáeramretratadoscomoquaisqueroutrosMouros:difíceisdeconverter(naspenasdeValentim Fernandes e sobretudo de Duarte Pacheco Pereira); num terceiromomento,apartirdoséculoXVI,nãosóeramvistoscomodifíceisdeconvertermascomoinimigoserivaisdaCristandadenaGuiné,dadooalargamentoespacialdasuapresençaeoconhecimentomaisprofundodasuarealimplantação25.

Oquenãopartilharam?Nocontextoluso-africanoestessentimentosanti--muçulmanosnãoimpediramumbomrelacionamentoemesmoboasparcerias.Tal como no período anterior, o facto de, por exemplo, um indivíduo que sedefiniacomoMandingaserpensadocomomuçulmanononívelderepresentaçãodas crenças (com toda a carga negativa associada a esse nível, nesse registodas representações)nãoafectavaasua representaçãocomoparceirocomercialapreciado,nonívelderepresentaçãodomodo de viver.Talapreciaçãomantinha-seanãoserqueascircunstânciasdorelacionamentotivessemdificultadooucriadoobstáculos a um bom entendimento como sucede em períodos de tensão, emesmodeguerra,numespaçoqueosportugueseseosseusdescendentesnãocontrolavam:nessecasoasimagemnegativasemergem26.

25 Estavisão,nasuanegatividade,estáaomesmonívelquernospráticos,quernosmissionáriosjesuítas,cujostextos–nasuamaiorpartepublicadosnamonumenta missionaria africana,2ªsérie,coligidaporAntónioBRÁSIO–,apartirdosdosiníciosdoséculoXVIIfrequentementealudemaesteobstáculoqueoIslãoconstituía.ParaumaprimeiraabordagemdestaevoluçãodarepresentaçãodosmuçulmanosedocontextoregionalcoevodoIslão,verJosédaSilvahORTA,“O Islão nos textos portugueses: Noroeste Africano (séc:s. XV-XVII): das representações àhistória”,in o islão na África subsariana – actas do 6º Colóquio internacional estados, poderes e identidades na África subsarianarealizado,de8a10deMaiode2003,naFaculdadedeLetrasdoPorto,coordenaçãodeAntónioCustódioGonçalves,[Porto],FaculdadedeLetras,CentrodeEstudosAfricanos[da]UniversidadedoPorto,[2004],pp.167-181.

26 Énessecontextoconjunturaldetensãoentremercadoresportugueses/cabo-verdianosemandingasnorioGâmbiaquedevesercompreendidooepíotetode“atraiçoados”quelheatribuiomercadorAndré Álvares deAlmada. Não se deve esquecer também a dupla polaridade de parceiros erivaisque,nomercadoguineense,osmandérepresentavamparaosmediadores luso-africanosereciprocamente.VerdeALMADA,Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde...,[ed.doMs.doPortode1594,comindicaçãodealgumasvariantesdoMs.deLisboadec.1592-1593],Lisboa, Editorial L.I.A.M., 1964, p. 45. Para época pouco posterior ressaltam, por contraste,as relaçõesdeamizadeecamartadagemdo tambémcabo-verdianoAndréDONELhAcomosdignitáriosmercantisereligiososmandingasnomesmolocal.Veroms.,semtítulo,de1625,mas

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Na minha perspectiva, a realidade das presenças muçulmanas era algocomqueosportugueseseafro-descendentesnacostapoderiamviverou lidar,masquerejeitariamnasilhasdeCaboVerde.NenhumaformapúblicadeIslãoseriafacilmenteaceitenasilhassujeitasaalgumapressãodoCatolicismo,edemodosemelhanterejeitariamoJudaísmo27.Porcontraste,asreligiõesafricanasorigináriasdocontinentepenetraramfacilmentenasilhas,cujapopulaçãomestiçaeafricanaeralargamentemaioritáriae,semobstáculos,noslugaresdepresençaportuguesadacostaguineensequeseencontravamsobummistodeprotecçãoedepressãodosdignitárioslocais.Istosignificounasatitudesfaceàssociedadesafricanas, a aceitação de certos valores e competência mística naquilo queresultounoquepodemosconsideraraexistênciade imaginários justapostos e (ou) comunicantes,nestecasonocampodaexperiênciareligiosa.Estefenómenoquesematerializou,porexemplo,norecursoa terapeutasafricanosnãofoisócabo-verdiano,mas,comohojeahistoriografiacomeçaadesvelar,existiuaumaescalaatlânticadostrêscontinentes.

Aqueles que se sentiam como pertencendo a um mesmo mundo cabo-verdiano-guineensedesenvolveram,porexemplo,respeitopelosreinosafricanose suas tradiçõesorais.AutorescomoAlmadaeDonelhasãoaevidênciadestaatitudederespeitoeatédeconsideração.Osportuguesesexógenos aessemundo,comoosmissionáriosJesuítaseFranciscanos,paranãofalardoscapitães-moresde Cacheu e seus desabafos epistolares contra os “Negros” que os cercavam,vão antes sublinhar a vertente moralmente negativa das sociedades africanas.Estesoutsidersnãopartilharãoomodelodeidentidadesflexíveisadoptadopelosportuguesesqueviviamnacosta,casandocommulheresafricanasedelastendonumerosaprolemestiçaeadoptandoasregraslocais,bemcomoemSantiago.Adissoluçãodaalteridadeocorre,porexemplo,nareinvenção,àluzdessesmodelosregionaisafricanos,dobinómioBranco/Negro,dissolvendoosignificadofísico,somático, desse binómio. Categorias como Branco e Negro assumem, nessecontexto,significaçõesquenadatêmquevercomarepresentaçãosomáticadocorpotalcomoelaaparecenoperíododosprimeiroscontactos,emqueàatenção

relatandoexperiênciasdedécadsanteriores,pub.porA.T.daMOTAeP.E.h.hair,descrição da serra leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1615),Lisboa,JuntadeInvestigaçõesCientíficasdoUltramar,1977,cap.11.

27 ÉassimqueFernãoRodriguesdaSilvaescreveumacartaaoReiem1655,emquesedefinecomonaturalemoradordeSantiago,“dosmaisnobresdaquellailhaechristãovelhosemrassade infecta nação [entenda-se sem origens judaicas]”, Arquivo histórico Ultramarino, Cabo Verde,caixa5,doc.35,fl.[1];masédefinidoporumanónimocomo“mulatodeCaboVerde”nodoc.36damesmacaixa,dec.20deAbrilde1656.EstarejeiçãodoJudaísmofoiconfirmadarecentementeporTobiasGREENemmasters of difference. Creolization and the Jewish presence in Cabo Verde: 1497-1672,dissertaçãodedoutoramento[apresentadaao]CentreofWestAfricanStudies,UniversityofBirmingham,2005(agradeçoaoautoroacessoaoseutrabalhoemcursodepublicaçãoparcial).

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dosviajantesnãoescapamoscontrastesfísicoscomahumanidadesuaconhecidaeessescontrastessãoassinaladoscomomarcadoresdefronteirasidentitárias.

Aprópriarepresentaçãodocorpo,nesseconceitorestrito,perdearelativapouca importância que já tinha antes na economia textual por comparaçãocom os outros níveis de representação. Fará sentido passar a ser analisadapelo historiador em conjunto com o código do vestuário e dos “costumes”,deixandooestatutodenívelautónomoderepresentaçõesepassandoaintegraras significaçõesprópriasdomodo de viver ou ser penalizadaoubeneficiada,conformeoscasos,pelofiltroda“linguagemdaCristandade”.Naverdade,acordapeleeoutrosaspectossomáticostornam-semuitoperiféricosnasdescriçõessobre os oeste-africanos. “Os negros” era um termo usado como uma formageraldedesignarosAfricanos,umsignoidentificativodosmesmos,masnãonecessariamente um modo de desenvolver ideias gerais sobre as populaçõesquepartilhavamdeterminadascaracterísticas físicasouque tinhamumadadaorigemmarcadaporessefacto.Pelocontrário,jádesdeoiníciodoséculoXVI,quando se dispunha de uma soma importante de informação sobre a ÁfricaOcidental, a tendência das representações era a de procurar distinguir, deentreosNegros, os seusdiferentes reinos enações, ou, comohojediríamos,diferentes identidades étnicas. Dava-se atenção não tanto ao que os NegrostinhamemcomumedecontrastantecomosEuropeus–tónicadominantenostextosquatrocentistas–,masantesaoqueasdiferentessociedadesobservadasaolongodacostatinhamemcomumedediferenteentresi,sublinhandoosseustraçosespecíficos:políticos,religiosos,económicos,técnicos,particularidadesdos costumes, etc. Esta tendência vai acentuar-se na nova sequência textualsobreaGuinéapartirdoúltimoquarteldoséculoXVI.Nosautoresdomundo cabo-verdiano-guineense a comparação e analogia é feita mais entre asdiferentes sociedades da costa do que por referência às realidades europeias.Umamudançanapróprialógicadodiscursoquetambémobrigaarevisõesnomodelodeanáliseda representaçõesconstruídoparaoperíododosprimeiroscontactos.

AstransformaçõesqueseoperamnodecorrerdoséculoXVInasrelaçõesafro-portuguesastêmconsequênciasnosmeiosluso-africanosdaGuinéenasilhasdeCaboVerdeemquestõestãocruciaiscomoarepresentaçãodacornegraeasimplicaçõesnoestatutosocialdoAfricano,oumesmonaquiloquefrequentementeosanglo-saxónicosdesignam,comanacronismo,porrace relationsepreconceitos“raciais”.ÉclaroquenummundoempermanenteinterconexãocomoeraodosséculosXVIeXVIIasexperiênciashistóricasinterculturaiseasrepresentaçõesquedelasdecorremprojectam-se,porvezes,nosespaçosinterligadospelasredesmercantisereligiosas,comonocasodosJudeusdaSenegâmbia,nosseuspadrõesde sociabilidade luso-africana e senegambianaquemantêmentre aÁfrica e aEuropa,nomeadamentenasProvínciasUnidasdasprimeirasdécadasdoséculo

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XVII28.NãoquerocomistosignificarqueemPortugal,entreosséculosXVeXVII,nãofossemusuaisretratosnegativosdesíntesesobrecomoeramoucomosecomportavamemgeralosNegros.Esteéumtemaquenãoéobjectodestareflexão,masdevesituar-senamesmaperspectiva:seracompanhado,emtodooseudinamismo,apartirdeumacontextualizaçãohistóricafina29.

Possivelmente esta constitui a transformação mais visível nas atitudes erepresentaçõesportuguesasdosAfricanosnoperíodoemestudo:umapluralidadede identidades portuguesas (e africanas) e de relacionamentos portuguesescom os oeste-africanos, uma pluralidade de representações... De igual modo,outros espaços e tempos, as respectivas circunstâncias históricas da produçãotextualedosseusagentes,conduzirãoarepresentaçõesdistintas,senãomesmocontrastantes,daÁfricaedosAfricanos.

28 DesenvolviestadiscussãoemconjuntocomPeterMARKinThe Forgotten diaspora...,cit.,caps.1,6eConclusão.

29 Confrontem-se as conclusões, por vezes contraditórias entre si, de diferentes autores sobre ocontexto português numa obra recente: T. EARLE e K. LOWE (eds.), Black africans in renaissance europe,Cambridge,CambridgeUniversityPress,2005.

Representações de África e dos Africanos

na História e Cultura - Séculos XV a XXI

Edição de José Damião Rodrigues

e Casimiro Rodrigues

Representações de África e dos Africanos

na História e Cultura Séculos XV a XXI

Edição de José Damião Rodriguese Casimiro Rodrigues

CENTRO DE HISTÓRIA DE ALÉM-MARFACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANASUNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA UNIVERSIDADE DOS AÇORES

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Edição de José Damião

Rodrigues e Casimiro Rodrigues

A globalização que marca a contemporaneidade realça a urgência de promover o conhecimento entre os povos. Trocam-se olhares e, com eles, permutam-se ideias e imagens que concebemos do mundo e dos outros, construídas mediante informações – reais ou fantasiadas, abundantes ou escassas –; através de manifestações artísticas, simbólicas e culturais; e, também, pelos relatos, escritos ou orais, vestígios dos homens e do mundo que pensamos conhecer. Figuras, formas, visões mais ou menos completas, elaboradas em cada época, em contextos específicos. Símbolos, narrativas, documentos que marcam as relações dos povos com os seus aparatos, exibições, manifestações de poder, conflitos e permutas culturais e identitárias, num jogo de reconhecimento, familiaridade, cumplicidades, que comporta, igualmente, tantas outras formas de dissimulação, equívocos, enganos e confrontos.

As representações erigidas resultam do conhecimento, interpretação e comparação da história, cultura, vida material e organização das diversas gentes em cada local, a começar, desde logo, pela imagem que fazem de si próprias e que exibem para os outros. O passado lá está. Belo, enigmático, generoso, mas também horrível e cruel. Para os construtores de ilusões, ele pode ser simples, reconfortante, imaculado; para o investigador, ele é, no entanto, o olhar em esforço de imparcialidade. A utopia de o penetrar, não pretendendo apagá-lo, diminuí-lo, esbatê-lo. Não há nada a mitificar, manipular. A esquecer. A distorcer. O olhar sobre África e dela sobre o mundo, nos dias de hoje, em contexto de globalização e de intensificação dos fluxos de gentes, bens e ideias, com relevo para as migrações transnacionais, exige um renovado esforço de compreensão.

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