Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior

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Sociologia e Educação em Direitos Humanos

CONSELHO EDITORIAL PDH/UFG

Fundação de Apoio à Pesquisa na UFG (FUNAPE)Cláudio Rodrigues LelesDiretor Executivo

Programa de Direitos Humanos – UFG

Conselho EditorialVilma Machado (UFG), presidenteAlex Ratts (UFG)Arnaldo Bastos Santos Neto (UFG)Arthur Trindade Maranhão Costa (UnB)Eduardo Bittar (USP)Enrique Leff (UNAM – México)José Querino Tavares Neto (UFG)Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (UFPB)Luiz Mello de Almeida Neto (UFG)Magno Luiz Medeiros da Silva (UFG)Manoel de Souza e Silva (UFG)Maria Luisa Eschenhagen (Universidad Externado – Colômbia)Miriam Pillar Grossi (UFSC)Paulo César Carbonari (IFIBE e MNDH)Regina Sueli de Sousa (UCG)

Sociologia e Educação em Direitos Humanos

Dijaci David de Oliveira Revalino Antonio de Freitas

Tania Ludmila D. Tosta (organizadores)

Sumário

7 Apresentação

9 Introdução

15 Parte I: Multiculturalismo e Direitos Humanos

17 Por uma sociologia histórica dos direitos humanos Robson dos Santos

33 Multiculturalismo e políticas da diferença Wivian Weller

49 Parte II: Temas de Educação em Direitos Humanos

51 Violência doméstica e práticas educativas Márcia Cristina Lazarini

67 Juventude e violência: do conhecimento empírico às representações sociais Dalva Borges de Souza

83 O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade Revalino Antonio de Freitas

95 Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do traba-lho precário Tania Ludmila Dias Tosta

113 Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior Dijaci David de Oliveira

155 Governança democrática, informação e direitos humanos Heloisa Dias Bezerra

Vladimyr Lombardo Jorge

Uianã Cordeiro Cruvinel Borges

177 Sobre os/as autores/as

Apresentação

Sociologia e educação em direitos humanos é um livro que se propõe a en-trar em um importante ponto do debate sobre a sociologia no ensino médio, sobretudo, nos temas curriculares dessa disciplina. A tarefa não é fácil. Com a entrada da Sociologia como disciplina obrigatória, ob-servou-se uma carência de material que subsidiasse os profissionais da educação média. Como resultado, muitos profissionais levaram para as salas de aula textos dos autores clássicos e contemporâneos. Acredi-tavam que a simples transposição dos textos utilizados nos cursos de educação superior seria suficiente para dar um salto de qualidade sobre a reflexão, assim como dar conta dos seus desafios como docentes.

Não foi o que aconteceu, nem é o que acontece. O diálogo no ensino médio requer uma comunicação distinta daquela utilizada no ensino superior. Com razão, o corpo discente não viu quase nenhuma relação entre o conteúdo dado, os autores estudados e toda a para-fernália de conceitos e teorias próprias das ciências sociais. Os textos, muito interessantes para os docentes, tinham quase nenhum atrativo ou compreensão para os discentes.

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Os fatos evidenciaram o óbvio. As novas disciplinas (Sociologia e Filosofia) precisam conhecer mais do universo do ensino médio e de como as disciplinas que já possuem alguma tradição como a História e a Geografia, por exemplo, têm construído sua abordagem, sua inser-ção e seus materiais didáticos e paradidáticos.

Todavia, isso requer muito mais amadurecimento. Assim é que se propõe nesta obra um conjunto de temas para reflexão e discussão no âmbito da disciplina de Sociologia. Nele há contribuições de temas que acreditamos sejam importantes para a reflexão dos direitos humanos, pela sociologia, no ensino médio.

É nosso dever deixar claro que este livro não tem a pretensão de servir como guia para o debate em sala de aula. Seu objetivo ainda é subsidiar os docentes sobre temas nas várias áreas das ciências sociais. Foi com esse propósito que convidamos vários autores e autoras para que refletissem, segundo suas áreas de conhecimentos, sobre os proble-mas da sociedade contemporânea sob a perspectiva dos direitos huma-nos. Foi o que fizeram. Os esforços dos(as) vários(as) pesquisadores(as) serão recompensados se este livro puder contribuir de alguma forma para que os docentes reflitam mais sobre os conteúdos utilizados em sala de aula.

Dijaci David de Oliveira

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Introdução

Este trabalho nasceu da necessidade de pensar possibilidades para a inserção da sociologia no ensino médio e relacioná-la à abordagem da educação em direitos humanos (EDH). Sendo assim, esse debate também se insere no campo das reflexões sobre a construção do currí-culo de sociologia no ensino médio. Todavia, nosso objetivo aqui não é estabelecer uma lista de práticas ou temas, mas de convidar cientistas sociais para refletir sobre temas da educação em direitos humanos pela perspectiva da sociologia. Este será um primeiro passo para pensarmos o debate mais profundo sobre a construção do currículo desta discipli-na no ensino médio.

EDH não é uma sigla a mais no processo educativo. Trata-se de uma consistente preocupação em assegurar que cada uma das pessoas que passe pelas escolas possa compartilhar, compreender e reconhecer o sentido de uma vida pautada pela convivência pacífica e de respeito mú-tuo. Assim, por EDH compreendemos, sobretudo, as construções histó-ricas e filosóficas que desembocam no pensamento humanista, na cons-trução da perspectiva dos direitos humanos e na busca por assegurar os fundamentos de uma sociedade democrática e de respeito à cidadania.

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Para dar conta desse desafio buscou-se a contribuição de pes-quisadores e pesquisadoras para que problematizassem a inserção da Sociologia no ensino médio e refletissem sobre as várias experiências nesse âmbito: seus desafios, significados e expectativas que giram em torno da presença dessa disciplina na educação regular.

Este livro está estruturado em duas partes. Na primeira parte, de-nominada Multiculturalismo e Direitos Humanos, encontramos dois textos. Iniciamos com “Por uma sociologia histórica dos direitos huma-nos”, de Robson dos Santos, que traz como preocupação a necessidade da reflexão histórica e sociológica dos direitos humanos como passo importante para se compreender a ideia de direitos humanos, seus para-doxos e os sentidos sociais que eles assumem em cada contexto. O autor destaca os direitos humanos como uma das utopias mais intensas da modernidade ocidental. A pluralidade de significados, sentidos e inter-pretações sobre os direitos humanos nos leva a indagar como pode ser possível tal utopia. O autor aponta que uma característica importante dos direitos humanos está no fato de possuir uma história que incorpo-rou diversas orientações em busca de uma sociedade mais justa. Assim, de acordo com Santos, para que possamos compreender adequadamen-te os direitos humanos, devemos olhar para esse movimento histórico que desembocou no que chamamos atualmente de direitos humanos.

Em seguida, com “Multiculturalismo e políticas da diferença”, Wivian Weller procura recuperar alguns conceitos fundamentais para a discussão dos direitos humanos como multiculturalismo, hibridismo, reconhecimento e redistribuição. Para a autora, a compreensão ade-quada desses conceitos é importante para que se possa pensar uma educação pautada na não discriminação, assim como também é con-dição necessária para a ampliação da lógica da não repressão. Weller traz ainda as contribuições de autores que buscam refletir as políticas voltadas para o reconhecimento das diferenças e que destacam que tais práticas políticas devem promover a ruptura dos essencialismos e bina-rismos muitas vezes presentes nos debates educacionais.

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Sociologia e educação em direitos humanos

Introdução

A segunda parte do livro –Temas de Educação em Direitos Hu-manos – é composta de cinco textos que analisam diferentes questões pertinentes à EDH. No primeiro, “Violência doméstica e práticas edu-cativas”, Márcia Cristina Lazarini apresenta a proposta de analisar e problematizar algumas questões relativas às violências praticadas con-tra crianças e jovens, tendo como preocupação abranger as reformas políticas e jurídicas voltadas para o enfrentamento de tais problemas pontuando o envolvimento dos Conselhos Tutelares e da política par-ticipativa implementada principalmente nos anos 2000, com a retração do Estado. Busca ainda enfatizar a importância das relações existentes entre punir e educar, perante a sociedade de controle envolvida pelos meios de comunicação a partir da família e da escola.

O texto “Juventude e violência: do conhecimento empírico às re-presentações sociais” traz as reflexões de pesquisa de Dalva Borges de Souza. Para realizar este trabalho, ela parte de diversas pesquisas reali-zadas sobre violência urbana no Estado de Goiás. Conforme a autora, é preciso superar o desconforto de associar juventude à violência e à segurança pública. Isto porque a juventude está cercada de mitos, em especial, a ideia de esperança, futuro e de mudança social. Todavia, a juventude acabou por se configurar como um problema de segurança pública. Para resolver esse problema, temos de retomar o debate acer-ca da exclusão social de grande parte dos jovens no Brasil.

Em “O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade”, Revali-no Antonio de Freitas discute o trabalho como dimensão fundamental na vida social e a necessidade de resgatar o direito ao trabalho como um direito humano. Historicamente, a luta por melhores condições de vida se articulou com a luta pelo direito ao trabalho no sentido de ga-rantir bem-estar social e o direito de cidadania aos trabalhadores. Nes-se sentido, o acesso para participar da base material da sociedade na qual se encontra integrado deve ser universal e não depender do tipo de atividade econômica desenvolvida pelo trabalhador. O autor apon-ta que a reconfiguração no mundo do trabalho tem provocado uma

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crescente insegurança social, dividindo a classe trabalhadora e amea-çando seus direitos e bem-estar. Cita a presença do trabalho análogo à escravidão na contemporaneidade como exemplo mais significativo da negação do direito ao trabalho.

Ainda com referência ao mundo do trabalho, Tania Ludmila Dias Tosta apresenta, no texto “Diferenças de gênero, raça e esco-laridade na configuração do trabalho precário”, uma caracterização do perfil dos trabalhadores precarizados do Distrito Federal, apon-tando que algumas categorias são mais representativas entre os in-divíduos que não possuem direitos nem garantias em seu trabalho. Mulheres e negros, categorias tradicionalmente discriminadas no mercado de trabalho, assumem posição de destaque no crescimento de contratações precárias. As diferenças em relação à escolaridade também chamam a atenção. Apesar da tendência à vinculação do trabalho precário a baixos níveis de escolaridade, o crescimento da precarização revelou-se mais expressivo entre os trabalhadores com ensino médio e superior. Assim, profissionais altamente escolariza-dos passam também a conviver com a instabilidade de uma relação de trabalho em que não há proteção nem garantias.

Em “Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas para o ensino superior”, Dijaci David de Oliveira aborda o tema das relações raciais investigando os discursos contrários à aplicação de políticas afirmativas na universidade. Para realizar o trabalho, to-mou como referência a discussão da mídia sobre a adoção de cotas para o ingresso no vestibular da Universidade de Brasília. Conforme o autor, a análise dos diversos tipos de argumentação demonstra que devemos ampliar o debate sobre os significados tanto das polí-ticas universalistas quanto das políticas individualistas, assim como da possibilidade de coexistência de ambas como forma de expressão de direitos. Nesse sentido, as políticas focais podem contribuir para que as políticas universalistas sejam, de fato, universais e não apenas reprodutoras das desigualdades.

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Sociologia e educação em direitos humanos

Introdução

Por fim, temos uma contribuição coletiva de Heloisa Dias Bezer-ra, Vladimyr Lombardo Jorge e Uianã Borges, com o texto “Governan-ça democrática, informação e direitos humanos”. De acordo com os autores, a criação da internet aumentou a possibilidade de divulgação de informações, mas também ampliou as formas de controle dos agen-tes estatais. Uma evidência está na participação de cidadãos e de orga-nizações não governamentais para obter apoio, ao redor do mundo, às suas causas. Para os autores, a efetiva defesa dos direitos humanos continua sendo uma questão primordial. Nessa perspectiva, procuram discutir a relevância política da internet diante das limitações da demo-cracia representativa e das frustrações que esta causa, em especial no caso da proteção dos direitos humanos.

A diversidade de temas presentes neste livro tem como funda-mento ampliar a reflexão sobre temas de EDH que possam ser abor-dados pelos docentes de sociologia no ensino médio. Todos os autores e autoras estão conscientes de que o debate da relação entre EDH e a sociologia no ensino médio está apenas começando. Assim é que es-peramos que os textos aqui apresentados possam contribuir para que novas questões sejam levantadas e que delas surjam outros trabalhos dispostos a dar continuidade ao processo de integração da perspectiva de EDH no processo educativo.

Dijaci David de OliveiraRevalino Antonio de Freitas

Tania Ludmila Dias Tosta(Organizadores)

Parte I: Multiculturalismo e

Direitos Humanos

Por uma sociologia histórica dos direitos humanos Robson dos Santos

Os direitos humanos constituem uma das utopias mais intensas da modernidade ocidental e caracterizam suas principais instituições po-líticas e sociais. Defini-los, porém, não constitui tarefa simples. Eles abrangem uma pluralidade de significados, sentidos e interpretações que são expressivas das posições dos agentes sociais e das mutações políticas sofridas pela ideia de direitos humanos ao longo da história. O único consenso entre seus defensores e promotores é a noção de universalidade. Por universalidade, entende-se a proposição de que todas as pessoas, independentemente de sua condição etnicorracial, econômica, social, de gênero, criminal, são sujeitas e detentoras dos direitos humanos. É tal princípio que garante a “unidade na diversida-de” dos direitos humanos.

É evidente que a caracterização contemporânea dos direitos humanos incorpora uma série de conceitos e de reivindicações, mas mantém, sobretudo, a expectativa e a concepção de que é possível a construção de uma sociedade que defina e garanta condições igualitá-rias de convivência social e de distribuição dos bens acumulados pelo ser humano a todos os indivíduos, considerando que os sujeitos devem

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ser universalmente detentores de direitos essenciais, indispensáveis à convivência social. Por isso, os direitos humanos são fundamentais e inalienáveis, pois eles comportam os pressupostos necessários para que todos e todas possam ter uma vida digna. Eles expressam um marco ético-político que serve de crítica e orientação (real e simbólica) em relação às diferentes práticas sociais ( jurídica, econômica, educativa etc.) na luta nunca acabada por uma ordem social mais justa e livre, conforme sintetiza Magendzo (1994).

É comum a referência aos direitos humanos a partir de suas vio-lações. As prisões de Guantánamo, Abu Ghraib, os cárceres brasileiros, os abusos de poder e as violências policiais, as desigualdades sociais e a concentração de renda, preconceitos e agressões de cunho religioso, a ausência de liberdades civis e políticas, entre outros fatos, constituem rotineiramente a forma pela qual o conceito de direitos humanos é evocado pelos meios de comunicação de um modo geral. Principal marco internacional contemporâneo dos direitos humanos, a Declara-ção Universal de 1948 foi tecida justamente após os horrores das duas guerras mundiais, dos regimes totalitários, das tentativas de genocídio, da violência absurda das bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, enfim, após graves desrespeitos aos direitos humanos. Mas será que é a partir de suas violações, isto é, justamente por sua ausên-cia, que os direitos humanos podem ser definidos? Somente ao serem negados é que eles são exigidos?

Constantemente, a crítica conservadora aos direitos humanos caracteriza-os como um conjunto de privilégios oferecidos aos crimi-nosos e demais transgressores dos códigos de conduta legitimados. Se-tores da mídia e agentes políticos encampam e reproduzem o discurso de que os direitos humanos ignoram as vítimas e se abstêm de pensar o conjunto bom da sociedade. Os defensores são enquadrados como apologetas de uma sociedade desprovida de instrumentos punitivos e de instituições capazes de ensinar a convivência social aos “indivíduos delinquentes”. Para tal compreensão, a convivência se faz pela violên-

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cia, isto é, somente métodos rígidos de controle, violentos, duros, à altura dos atos praticados por criminosos são eficientes na construção de corpos dóceis e relações sociais harmônicas. A ordem só é possível, para a visão conservadora, a partir da violência ou de práticas antide-mocráticas, visto que as leis são consideradas insuficientes, “coniven-tes” com os atos criminosos.

Para se compreender a ideia de direitos humanos, bem como os paradoxos que a acompanham e os sentidos sociais que ela assume em cada contexto, é necessário realizarmos uma pequena reconstrução histórica de sua trajetória. Daí emerge o duplo objetivo deste texto: resgatar os processos sociais de formação dos direitos humanos e ao mesmo tempo esboçar algumas reflexões sobre a necessidade de anali-sar sua formação à luz de uma sociologia histórica (Miskolci; Skocpol, 2004). Não se trata aqui de pretender a formulação de uma metodo-logia, mas apenas “importar” algumas proposições interpretativas da sociologia para a compreensão da formação histórica dos direitos hu-manos, dispondo de um exercício de imaginação sociológica.

O primeiro fruto dessa imaginação – e a primeira lição da ciên-cia social que a corporifica – é a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino situando-se dentro de seu período, de que ele só pode conhecer suas próprias chances na vida tornando-se consciente daquelas de todos os indivíduos em suas circunstâncias. Sob muitos aspectos, é uma lição terrível; mas também, sob muitos aspectos, uma lição magní-fica. Não conhecemos os limites das capacidades do homem para esforço supremo ou degradação voluntária, para agonia ou júbilo, para a brutalidade prazerosa ou a doçura da razão. Mas em nosso tempo descobrimos que os limites das “natureza humana” são as-sustadoramente amplos. (Mills, 2009, p. 84).

As histórias dos direitos humanos são feitas por agentes con-cretos, localizados em espaços sociais, políticos e econômicos determi-nados. Tal condição situacional da prática define as feições centrais dos

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DH. Para a reflexão sociológica, isto conflui na necessidade de com-preender não apenas o caráter descritivo dos conceitos, mas as forças que o forjaram, os sentidos práticos compartilhados pelos sujeitos nos processos de construção das relações sociais.

Direitos humanos e modernidade

A concepção moderna dos direitos humanos tem profunda im-bricação com as transformações socioculturais e filosóficas advindas do Iluminismo europeu, movimento intelectual e cultural que ganha força e projeção, principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII. O Iluminismo subverte os fundamentos da dominação ao propor, entre outros, o império da razão sobre a fé, a centralidade do ser humano nas explicações filosóficas. É sob esse prisma que floresce grande par-te dos fundamentos conceituais dos direitos humanos. É evidente que tal processo não deixa de ter conexões com o campo social. A prin-cipal delas consiste em ressaltar a ideia de igualdade, política e civil, entre os seres humanos. A desigualdade, que era naturalizada e ins-titucionalizada durante séculos de dominação feudal e monárquica, é gradualmente substituída pela busca da igualdade, mesmo que de maneira restrita e formal. O Iluminismo é a conversão discursiva de uma nova configuração sócio-histórica, que se caracteriza pela emer-gência da sociedade burguesa e pela alteração profunda nas relações sociais, de produção, de poder etc.

Nesse contexto, a Revolução Francesa de 1789 constitui um acontecimento histórico profundamente simbólico das lutas sociais em prol de uma sociedade menos desigual. Liberdade, igualdade e fra-ternidade, seus lemas célebres, influenciaram e foram influenciados, em certa medida, pelos fundamentos da noção original dos direitos humanos. Um dos principais “produtos” da Revolução foi a Decla-ração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 26 de agosto de 1789. Ela é um

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marco relevante na construção de uma noção de igualdade, princi-palmente civil e política. Aqui os interesses burgueses eram alçados à categoria de universais. A Declaração buscava compor uma nova conformação para as instituições e os marcos regulatórios de uma so-ciedade pós-feudal. É relevante, inclusive, notar como o conceito de civilização, que delimita novas formas de ser e agir aos indivíduos, mais adequadas aos novos tempos, ganha projeção nesse período.1 O que ele parece indicar é o desejo de estabelecer as pontes necessárias entre as novas instituições da modernidade e sua necessária subjeti-vação, isto é, sua incorporação, como bem descreve o conceito de habitus (Elias, 1994a, b; Bourdieu, 2007).

É evidente, porém, que as construções conceituais e políticas que irrompem com as revoluções burguesas assumem sentidos diversos ao longo das dinâmicas históricas. A necessidade inicial de garantir e cons-truir o consenso em relação às liberdades de mercado (Polanyi, 1980) permite a captação de contradições no seio do discurso das liberdades e igualdades entre os homens. A nova sociedade capitalista que se con-figura impede que os consensos se solidifiquem e as contradições se-jam evitadas. Os direitos humanos representam uma das esferas desses processos. É sob a ótica da contradição que devem ser analisados e não como se expressassem apenas produtos ideológicos de certos grupos sociais voltados para a fabricação de uma aceitação da dominação. Sua sociogênese indica claramente tal processo.

No século XIX, duas das principais correntes do campo político, os liberais e socialistas, de formas opostas, concentram suas reivindi-cações por direitos baseados sobretudo na noção de igualdade. Se para os liberais ela concentrava-se (e concentra-se) na esfera dos direitos

1 Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais (Elias, 1994).

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civis e políticos, para os socialistas a igualdade não deixaria de ser uma quimera, enquanto não fosse possível a igualdade social e econômica.

Ainda no século XIX, a formação dos grandes centros urbano--industriais da Europa se assentou sobre a exploração da mão de obra operária, sobretudo servindo-se das grandes massas provenientes dos campos (Hobsbawm, 1981). Nesse contexto, a defesa dos direitos hu-manos também se articulava às lutas dos trabalhadores que reivindica-vam inicialmente condições mais dignas ao exercício de suas funções, para minimizar mesmo as formas brutais de exploração que o capital inaugurava nas fábricas, monumentos estes da modernidade burguesa.

O amadurecimento das organizações operárias e de suas lutas ampliou o conteúdo das reivindicações, que passaram, então, a se opor a qualquer forma de exploração e objetivar, consequentemente, uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária. Os direitos humanos in-corporam essas dimensões na luta por justiça social. Em alguns casos, porém, explicitavam seus limites, pois se tornavam limitados perante as lutas mais radicais antissistêmicas, como esperavam os movimentos anarquistas, socialistas e comunistas.

É possível afirmar que, em alguns setores da esquerda, até recen-temente, os direitos humanos eram considerados apenas um meca-nismo paliativo e mesmo conivente com o sistema capitalista e suas violências, ao serem incapazes de efetivar a igualdade social, ou ao me-nos torná-la requisito central para qualquer transformação. Karl Marx, em A questão judaica, texto de 1844, já apontava os limites da busca pela emancipação social somente a partir da luta por direitos civis e políticos, isto é, pela igualdade formal. Porém, nos países do chamado socialismo real constatou-se a ausência de uma preocupação em garan-tir o mínimo de direitos civis e políticos, como o sufrágio universal, o pluralismo de partidos, a liberdade de imprensa, o que compromete e limita, por sua vez, as conquistas da igualdade social. Tal debate indica a impossibilidade de pensar os direitos humanos como uma realização parcial, independente do sistema político.

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A moderna concepção dos direitos humanos não se mantém estática. Ao contrário, como tentamos argumentar aqui, eles são ex-tremamente atrelados às condições históricas, razão por que sua con-ceituação encontra-se em permanente processo de incorporação de significados, numa complexa dinâmica entre a teoria e a prática.

Os séculos XVII, XVIII e XIX ofereceram grande parte dos con-teúdos e dos paradigmas com os quais os direitos humanos foram pensados e debatidos no século XX, considerados para alguns autores, como Norberto Bobbio, a era dos direitos. Em tal contexto, a Declara-ção Universal de 1948 constitui uma das referências mais importantes em termos de pactuação internacional sobre os direitos humanos. Ela buscou reafirmar o compromisso político e social, entre determinados Estados nacionais, de que garantiriam, em seus territórios e na relação com os demais, a promoção e a defesa dos direitos humanos como valores fundamentais da democracia.

É evidente que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não constitui um documento desprovido de vínculos com as condições sociais que a produziram e com as disputas de poder global de então. No contexto de emergência da Guerra Fria, isto é, de conflitos entre o comunismo e capitalismo, o conteúdo do artigo XVII da Declaração denota a opção por uma das formas de organização socioeconômica, no caso a capitalista: “1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros; 2. Ninguém será arbitrariamente priva-do de sua propriedade”. Isso não indica, porém, que a Declaração seja apenas um acordo entre os Estados capitalistas de então. Pelo contrário, sugere em seus diversos parágrafos uma incorporação, por parte desses Estados, dos modelos de desenvolvimento social assumido pelos países socialistas e cada vez mais necessários diante das formas de desigualda-de produzidas pelos países assentados sobre a economia de mercado, como indica o fortalecimento do chamado Estado de bem-estar social.

É constante a percepção de que, após a Declaração de 1948, os direitos humanos passaram a ser desrespeitados com uma frequência

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ainda maior. Contudo, é importante ressaltar que ela oferece um pa-râmetro mínimo de julgamento, um indicador de monitoramento das violações e de controle social dos atos estatais.

Após a Declaração, seguiram-se diversos acordos e tratados inter-nacionais que buscavam englobar os múltiplos conteúdos e formas dos direitos humanos. Tais acordos foram incorporados de maneiras varia-das pelos países signatários, pois o grau de promoção e garantia dos di-reitos humanos nos contextos nacionais depende obviamente do jogo de forças sociais, da capacidade de pressão, mobilização da sociedade e de suas organizações, enfim, da solidez sociocultural e institucional da democracia em cada país.

A política que predominou durante a Guerra Fria deixou sua mar-ca na historicidade dos direitos humanos. Desde a Declaração Univer-sal, eles apresentam uma separação que compromete profundamente uma das suas principais características, a indivisibilidade, isto é, a im-possibilidade de realizá-los parcialmente. De um lado, estão os direitos civis e políticos, cuja característica central é a “exigibilidade imediata”,2 e que predominaram na Declaração de 1948 como bandeira prioritária dos países capitalistas de regime liberal-democrático.

O outro “conjunto” de direitos humanos, os econômicos, sociais e culturais, bandeira priorizada pelo bloco dos países socialistas, está presente de forma restrita na Declaração Universal de 1948. Foram in-corporados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966 a partir do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-turais. Tais direitos foram enquadrados em outro status jurídico, com a fórmula política da realização progressiva, permitindo assim que sua aplicação não fosse considerada e adotada de forma imediata, su-pondo que tais direitos requerem transformações sociais prévias. Isso

2 Por “exigibilidade imediata” compreendem-se os direitos que podem ser exigidos em um tribunal, isto é, os direitos que os Estados têm a obrigação jurídica de efetivar.

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permitiu, desde então, posturas incongruentes, que postergam sine die sua aplicação. Diante disso, os governos da maioria dos países adotam políticas seletivas, dando prioridade e promovendo alguns direitos e postergando a realização dos outros para um futuro nunca definido. Tal situação explicita o caráter histórico dos direitos humanos, eviden-ciando sua dinâmica com os conflitos de poder e os vínculos sociais e políticos a partir dos quais eles são construídos. Indica ainda os limi-tes inerentes às democracias capitalistas de construírem condições de igualdade social.

Para fins didáticos e não em oposição ao seu princípio estrutural de indivisibilidade – isto é, da impossibilidade de serem realizados ple-namente a partir de uma única dimensão –, os direitos humanos são subdivididos historicamente por analistas e militantes em gerações, que denotam as etapas histórico-sociais da sua construção, sempre em processo de incorporação de novas dimensões e de complexização.

A primeira geração engloba os direitos civis e políticos e se arti-cula às ideias liberais da democracia consolidadas no século XIX. Aqui fica evidente a marca inicial dos direitos humanos, que surgem em co-nexão com as instituições políticas da democracia burguesa, que visa-va, entre outros, superar as heranças do Estado absolutista.

A segunda relaciona-se aos direitos econômicos e sociais e se atre-la ao mundo do trabalho. Por isso, se vincula às lutas dos trabalhado-res, ressaltando sempre o ideal da igualdade, e expressa a defesa de um Estado de bem-estar social que ganha força nas décadas posteriores à Segunda Guerra. Nesse momento, inúmeros conflitos estão em jogo e denotam as necessidades e os engajamentos na construção de uma so-ciedade mais justa. Nesse contexto, a busca pela igualdade social passa a ter uma centralidade fundamental na definição dos direitos humanos.

A terceira geração se refere ao direito de autodeterminação dos povos e inclui o direito ao desenvolvimento, à preservação do meio ambiente e ao usufruto dos bens comuns da humanidade, incorporan-do as preocupações que ganham espaço no conjunto dos movimentos

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sociais e de muitos Estados nas últimas décadas do século XX e início do XXI. A incorporação de tais dimensões aos direitos humanos, longe de dividi-los, sugere a amplitude que eles ganham ao longo do proces-so social. Sua realização exige cada vez mais transformações globais e estruturais. No entanto, não deixa de ter conexões com as lutas por li-bertação nacional na África e na Ásia, com a necessidade de superação do imperialismo e afirmação das identidades e nacionalidades subalter-nizadas pelo colonialismo.

Os desafios contemporâneos que os direitos humanos colocam ao campo de análise possuem obviamente aspectos variados. A refle-xão sociológica depara-se com indagações fundamentais. Como pen-sar a noção de universalidade, que caracteriza os direitos humanos, pe-rante um contexto teórico e metodológico que sugere a fragmentação social e a dissolução de qualquer sujeito ou conceito universal? A diver-sidade, as diferenças, a alteridade, os regionalismos sociais e culturais dissolvem o fundamento universal dos direitos humanos, ou exigem a ressignificação do conceito? Se cada organização e/ou sistema de rela-ções culturais possui características intrínsecas e legítimas, como ficam as reivindicações e os julgamentos do que são violações aos direitos humanos diante do relativismo sociocultural? Num contexto de globa-lização neoliberal, de aprofundamento de todas as formas de exclusão e da imposição dos interesses econômicos pelo poder das armas, como distinguir no discurso da liberdade civil e política uma verdadeira defe-sa dos direitos humanos, ou uma mera apropriação dos ideais com fins econômicos e imperialistas?

Estas são algumas das indagações com as quais se depara a refle-xão sociológica sobre os direitos humanos, seja no contexto nacional ou internacional, ou local e global como preferem alguns. Enfrentá-las exige que a Sociologia mobilize seus instrumentais analíticos de forma a superar as narrativas essencialistas e naturalizantes com as quais se defrontam a teoria e a prática dos direitos humanos. É preciso localizar os direitos humanos no interior das forças sociais, dos interesses políti-

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cos e econômicos que eles confrontam ou reproduzem. A mobilização de uma imaginação sociológica é central para a o entendimento das possibilidades concretas e dos sentidos atribuídos pelos agentes nas es-feras de luta e promoção pelos DH. O acúmulo de referenciais teóricos e metodológicos da sociologia permite o desenvolvimento de novas interpretações, isto é, de uma sociologia dos direitos humanos.

Os direitos humanos no Brasil: veredas da modernidade periférica

Cabem ainda algumas pequenas observações sobre a formação e a situação dos direitos humanos no Brasil. É importante destacar que as peculiaridades de nossa condição social impedem a importação ime-diata de modelos explicativos. Cabe pensar nossa situação à luz das condições periféricas e paradoxais pelas quais a modernidade e suas instituições se disseminaram no país (Souza, 2005).

A construção da cidadania no Brasil esteve constantemente atre-lada aos projetos e interesses das elites socioeconômicas e políticas, raramente vinculando-se a um projeto coletivo com ampla participa-ção social e inclusão. Daí o caráter problemático de nossa democracia. Dessa forma, os direitos, de um modo geral, sempre foram pensados como concessões paternalistas ofertadas pelos grupos dominantes ao restante da população.

A cidadania plena é condição indispensável para a realização dos direitos humanos, pois opera como uma espécie de alicerce social no qual eles se constroem e se reproduzem. Tal condição não se constata no Brasil. Os defensores dos direitos humanos deparam-se, nesse cená-rio, com um árduo caminho para incorporá-los à vida política, cultural e social do país, inclusive enfrentando verdadeiras violências físicas e simbólicas, o que não pode ser ignorado na reflexão sobre os DH.

É relativamente comum pensar a luta por direitos sociais e liber-dade no Brasil, sob a ótica dos direitos humanos, como algo recente. Eles adquiriram como referência para as mobilizações políticas uma relevância destacada nos últimos quarenta anos. A ditadura militar que

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conduziu o país em 1964 ao autoritarismo e à centralização do poder, a partir de um conjunto de práticas repressivas, impôs um retrocesso à construção da democracia e dos direitos humanos, justamente no momento em que os movimentos populares e sindicais, do campo e da cidade, estavam exigindo uma distribuição justa dos bens produzidos pelo trabalho e uma maior participação social na decisão dos rumos adotados pelo País. Porém, foi na resistência à ditadura – que impôs como novidade ao país a prisão e a tortura de grupos intelectuais e de classe média e não apenas dos tradicionais segmentos alvos da re-pressão e da violência, como pobres e analfabetos, entre outros – e durante a redemocratização formal do Brasil que diversos grupos reli-giosos, organizações políticas e movimentos sociais contribuíram com a produção de um conjunto de experiências fundamentais para as lutas subsequentes em prol dos direitos humanos, principalmente no campo educacional e cultural.

Aqui cabe ressalvar que o fim do Estado ditatorial militar não im-plica o desaparecimento das violências estatais. Basta acompanhar os dados sobre violência policial para perceber que subsiste um conjun-to de práticas repressivas, violentas e autoritárias. Uma da diferenças em relação à ditadura é que agora o Estado se contenta em perseguir, torturar e exterminar seus alvos tradicionais: homens jovens, pobres e, em sua maioria, pretos e pardos. As discussões sobre violência no Brasil, feitas pelas ciências sociais, documentam bem esse fenômeno (Zaluar, 2004, 2006).

A Constituição Federal de 1988 contou com destacada partici-pação social e incorpora diversas bandeiras tradicionais dos direitos humanos, principalmente no campo das liberdades civis e políticas. Contudo, no que se refere à dimensão social e econômica, mesmo que significando um avanço em relação ao passado, possui muitas limita-ções que não podem deixar de ser pensadas como uma manutenção do status quo, marcando a divisão social que caracteriza o país e a imposi-ção dos interesses dominantes. É justamente nessa dimensão que resi-

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dem os principais obstáculos à construção e incorporação dos direitos humanos na vida social brasileira. O quadro aprofundado de desigual-dade opera como um impeditivo estrutural para a consolidação dos direitos humanos, visto que impossibilita para a maioria da população o acesso aos meios e aos conteúdos sociais, culturais e políticos indis-pensáveis a uma convivência democrática.

No entanto, atualmente os direitos humanos no Brasil assumi-ram uma projeção relativamente destacada, principalmente de manei-ra formal e teórica. No campo da sociedade civil, diversos movimentos se articulam e se mobilizam para pressionar os poderes públicos e a sociedade na defesa e promoção dos direitos humanos, principalmen-te no que diz respeito à questão rural, às relações étnico-raciais, de gênero, diversidade sexual, pessoas vivendo com o vírus HIV, à ques-tão socioambiental, entre outras. Porém, é importante para a análise refletir se as fragmentações de tais movimentos, por vezes necessárias politicamente, não conduzem a uma essencialização e à ilusão de auto-nomia absoluta de cada reivindicação, desvinculando sua luta de trans-formações sociais amplas. Para o fortalecimento de uma unidade entre tais mobilizações, talvez os direitos humanos constituam princípios de unidade indispensáveis.

No campo estatal, algumas ações foram realizadas na última dé-cada no intuito de garantir a defesa e a promoção de uma cultura dos direitos humanos, o que sugere uma incorporação das pressões e mo-vimentos da sociedade. Foram elaborados dois Programas de Direitos Humanos (1998; 2002) e um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003, revisto e publicado novamente em 2006), com ampla participação social; e no âmbito do governo federal existe uma Secre-taria de Direitos Humanos, com status de ministério, responsável pela construção de políticas públicas na área.

É evidente que tais movimentos e instituições não significam a hegemonia dos direitos humanos no Brasil. O país é cenário de profun-dos níveis de desigualdades sociais, regionais, raciais, de gênero, que

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oferecem o conteúdo para a violência cotidiana, a exclusão da maio-ria da população aos mecanismos elementares da dignidade de vida, a constituição de uma cidadania frágil e irrealizada, a concentração das oportunidades e a permanência das relações autoritárias de poder e dominação. Diante de tal contexto, qualquer luta por direitos hu-manos parece reduzida e insuficiente, mas abrir mão deles implica o abandono de qualquer pretensão à construção de uma sociedade mais igualitária e democrática, um permanente desafio para a reflexão so-ciológica. Nesse sentido, os direitos humanos constituem uma referên-cia fundamental para a ação e a análise. Em relação a esta, particular-mente, parece ser fundamental a contribuição da sociologia. Um vasto campo de análise se conformou à luz dos direitos humanos. Cabe, ain-da, um direcionamento maior do instrumental analítico da sociologia para a compreensão histórica dos DH e de suas (im)possibilidades na modernidade periférica.

Sociologia e educação em direitos humanos

Por uma sociologia histórica dos direitos humanos 33 ]

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Multiculturalismo e políticas da diferença Wivian Weller

Para uma sociedade ser democrática, todas as crianças devem

ser educadas de modo não repressivo. Em outras palavras, a

Educação deve ser não discriminatória, com base na raça, etnia,

religião, classe, gênero ou quaisquer outras características que

não se relacionam com a educabilidade. A não discriminação

amplia a lógica da não repressão. Muitas sociedades discriminam,

reprimem e excluem grupos inteiros de crianças [e jovens] de

uma educação que conduza à liberdade de pensamento necessá-

ria para uma cidadania igualitária.

Amy Gutmann

O debate sobre multiculturalismo e políticas da diferença tem ocu-pado nos últimos anos um espaço ascendente e importante, tanto na academia como no campo político-jurídico e no âmbito dos movimen-tos sociais (Scherer-Warren et al., 2000; Fleury, 2006; Moreira; Candau, 2008). Mas, de acordo com Stuart Hall (2003), a proliferação do termo multiculturalismo não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu

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significado, e assim como outros termos correlatos – raça, etnicidade, identidade, diáspora –, só é possível utilizá-lo sob “rasura”. O autor também faz uma distinção entre as denominações multicultural e mul-ticulturalismo, como se lê:

Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qual-quer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. [...] Multiculturalis-mo é um termo substantivo, que se refere às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e de multiplicidade gerado pelas sociedades multiculturais. (Hall, 2003, p. 52).

O ismo (de multiculturalismo) tende a converter o multicultura-lismo em uma doutrina filosófica, reduzindo-o a uma singularidade formal e fixando-a numa condição petrificada. No entanto, o multi-culturalismo não é algo novo e tampouco representa uma doutrina específica ou um estado de coisas já alcançado. O termo multicultu-ralismo descreve uma série de processos e estratégias sempre inacaba-dos, e assim como existem distintas sociedades multiculturais, também podemos constatar distintos multiculturalismos e distintas correntes teóricas discutindo os distintos multiculturalismos.

Duarte e Smith (1999, p. 3) apontam ainda uma distinção entre condição multicultural e multiculturalismo:

A expressão condição multicultural descreve a presença demográfica de diferentes grupos étnicos dentro de uma população, relacionan-do fatores adjacentes às experiências históricas de grupos especí-ficos, crenças culturais, valores e status social dentro da sociedade geral. Por contraste, a expressão multiculturalismo tem a ver com a forma como um indivíduo interpreta ou vê o mundo e percebe o seu lugar nele – sendo o mundo esse lugar caracterizado pela con-dição multicultural. Completando, o multiculturalismo tem a ver

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com a forma como um [indivíduo] avalia esse sentido de espaço para si próprio e para o outro e com o que se propõe a fazer em resposta à condição multicultural.1

Segundo Duarte e Smith (1999), o multiculturalismo pode ser visto como uma proposta ou um conjunto de estratégias políticas em resposta à condição multicultural. Para eles, essas estratégias políticas ou “posições multiculturais” estão fundamentadas em dois princípios básicos a serem adotados pelos multiculturalistas, ou seja:

1. Na rejeição ou contestação dos Estados Nacionais como um melting pot cultural. Segundo os autores, os multiculturalistas norte-americanos compreendem os EUA como uma democra-cia com diferentes línguas, grupos étnicos e uma diversidade de estilos de vida, tradições e valores. Consequentemente, os multiculturalistas rejeitam o ideal de um EUA como um “cal-deirão” no qual essas diversidades são assimiladas em uma cul-tural comum.

2. No papel oposicionista assumido pelos multiculturalistas em rela-ção ao assimilacionismo cultural, que tem sido a força política do-minante nos EUA. Nesse papel os multiculturalistas questionam e, muitas vezes, rejeitam tais ideias e instituições que descartaram ou exerceram repressão sobre o pluralismo, uma das característi-cas centrais da condição multicultural.

1 The phrase multicultural condition describes the demographic presence of different ethnic groups within a population along with related factors surrounding particular groups’ historical experiences, cultural beliefs, values, and social status within society at large. By contrast, the phrase multiculturalism denotes a response to this condition. in other words, multiculturalism has to do with how an individual interprets or sees the world and perceives his/her place in it – the world being a place characterized by the “multicultural condition”. In addition, multiculturalism has to do with how one evaluates this sense of place, for oneself and for others, and what one proposes to do in response to the multicultural condition.

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Outro termo que vem ganhando espaço no debate sobre mul-ticulturalismo e políticas da diferença diz respeito à noção de hi-bridismo.2 Os estudos pós-coloniais,3 assim como ações políticas de diferentes movimentos, têm apontado para a necessidade de com-preensão do hibridismo e da ambivalência, que constituem as identi-dades e relações nas sociedades multiculturais. A ideia de hibridismo de Homi Bhabha (2001) torna transparente o fato de que a natureza humana por si só já está constituída por identidades híbridas, por identidades que estão num contínuo trânsito, cruzando-se com vá-rias culturas, gerando ambivalências, entre lugares e espaços limi-nares. Tal concepção vai além do conceito de diversidade cultural e propõe a importância do reconhecimento das diferenças culturais. Reconhecer as diferenças culturais significa ir além do reconheci-

2 Diz Costa (2002, p. 41): “Ao revelar o traço híbrido de toda construção cultural, Bhabha busca desmontar a possibilidade de um lugar de enunciação homogêneo e sem misturas: qualquer lugar da enunciação é, de saída, um lugar cingido, heterogêneo – a pretensão de homogeneidade é, portanto, arbitrariamente hierarquizadora. Assim, a hibridicidade torna-se também a condição do observador que percebe o mundo de um lugar do contexto espacial e simbólico da comunidade imaginada... A condição híbrida seria ainda a marca característica da perspectiva cosmopolita contemporânea, em oposição ao cosmopolita do advento da modernidade”.

3 Segundo Bronfen, Marius e Steffen (1997), o “pós” do pós-colonial não significa algo que veio “depois”, no sentido linear e cronológico. O pós é muito mais uma reconfiguaração de todo o campo em que está inserido o discurso colonial, ou seja, de uma abordagem que colocava as diferenças internas e externas entre colonizador e colonizado como central, para uma abordagem que reconhece as inúmeras diferenças internas dentro da própria nação, por ex. as diferenças entre “centro e periferia”, “cultura dominante e subcultura”, etc. A partir dessa perspectiva, fica claro que essas outras diferenças – principalmente as diferenças que dizem respeito ao global e o local – sempre estiveram sobrepostas às diferenças entre distintas nações e entre primeiro e terceiro mundo. Central no discurso pós-colonial é o abandono da “síndrome do colonialismo”, que acaba reproduzindo e dando continuidade às estruturas coloniais. O pós-colonial pretende transformar essas estruturas para que elas passem a ser algo novo.

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mento do racismo e das sociedades pluriétnicas que caracterizam grande parte dos estados nacionais contemporâneos:

Defendendo a utilização do conceito de “diferença cultural”, Bhabha chama a atenção para um problema que se faz presente em pratica-mente todos os campos das chamadas ciências humanas, mas que seria uma espécie de “território perdido” nos debates críticos contem-porâneos. Sua proposta é “pensar o limite da cultura como um pro-blema da enunciação da diferença cultural”, o que significa ir além do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, da crítica aos racismos e discriminações de todas as ordens, de exclusões e inclu-sões, individuais e grupais. Se a cultura é um problema na medida em que “há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças e nações”, deve ser teorizada justamente aí. (Fischer, 19994).

De acordo com Bhabha (2001, p. 227), não podemos compreen-der a diferença cultural “como um jogo livre de polaridades e plura-lidades no tempo homogêneo e vazio da comunidade nacional”. A diferença cultural deve ser vista sobretudo como uma forma de inter-venção e negociação:

A analítica da diferença cultural intervém para transformar o cená-rio de articulação – não simplesmente para expor a lógica da discri-minação política. Ela altera a posição de enunciação e as relações de interpelação em seu interior; não somente aquilo que é falado, mas de onde é falado, não simplesmente a lógica da articulação, mas o topos da enunciação. O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de signi-ficação da minoria, que resiste à totalização. (Bhabha, 2001, p. 228; grifo da autora).

4 Não paginado.

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Nessa perspectiva, o multiculturalismo vem se configurando como um campo de estudos interdisciplinar e transversal, que tem te-matizado e teorizado sobre a complexidade dos processos de elabora-ção de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas, consti-tutivos de campos identitários em termos de raça/etnia, gênero, classe social, gerações, orientação sexual, religião/crença, pertencimento regional, entre outras. A educação multicultural representa uma im-portante ferramenta, pois é “somente através do processo de dissemi-Nação – de significado, tempo, povos, fronteiras culturais e tradições históricas – que a alteridade radical da cultura nacional criará novas formas de viver e escrever5” (Bhabha, 2001, p. 234).

Multiculturalismo e políticas da diferença: exercendo a liberdade de ser e de ser reconhecido nessa nova forma de ser

Situada nesse contexto marcado por políticas excludentes e dis-criminatórias, violência, perda de identidade, pluralismo cultural, etnocentrismo, problemas sociais e políticos, entre outros, a prática educacional também está revestida de artimanhas que – mesmo sem querer – acabam reproduzindo ou contribuindo para a manutenção das desigualdades. Portanto, o trabalho político e educacional deve estar direcionado para uma “prática libertadora, não no sentido de restaurar alguma suposta natureza ou identidade perdida, alienada ou mascarada, mas no sentido de liberarmo-nos daquilo que somos para exercer a liberdade de ser de alguma outra forma” (Kohan, 2003, p. 90). Partindo da premissa de que a libertação daquilo que somos ou daquilo a que estamos apegados é fundamental para que possamos exercer a liberdade de ser de outra forma e, ao mesmo tempo, de ser-

5 Essa nova forma de viver e recriar a cultura nacional também pressupõe uma revisão da literatura comumente utilizada em sala de aula, responsável, em grande parte, pela proliferação de esteriótipos em relação a migrantes de origem turca na Alemanha ou em relação aos negros e indígenas no Brasil. Sobre este tema, cf. Weller, 1995.

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mos reconhecidos nessa nova forma de ser, o aporte de alguns filósofos contemporâneos tem contribuído para o reconhecimento desse novo ser e de suas especificidades de gênero, raça/etnia, de classe, de per-tencimento geracional, religioso, regional, dentre outras. Para tanto, faremos uma breve menção aos aportes do filosófo Charles Taylor e da filósofa e cientista política Nancy Fraser para a prática educacional, en-fatizando a importância do reconhecimento das diferenças bem como das políticas redistributivas, como condições necessárias para o desen-volvimento de sociedades mais democráticas e igualitárias.

Reconhecimento e redistribuição: as contribuições de Taylor e Fraser

Os autores há pouco citados vêm discutindo e colocando “a políti-ca do reconhecimento”6 como um tema central para uma teoria crítica das sociedades contemporâneas. Existe uma relação entre os trabalhos desses autores, mas também é possível observar divergências ou dife-rentes propostas de construção das políticas de reconhecimento.

Para Charles Taylor (2000, p. 241), “a política do reconhecimen-to” surge como uma exigência de vários setores “em favor de grupos minoritários ou ‘subalternos’, em algumas modalidades de feminismo e naquilo que se chama política do multiculturalismo”. O autor parte do princípio de que nossas identidades são constituídas, em parte, pelo reconhecimento, ou seja, existe um forte vínculo entre identidade e re-conhecimento. Indivíduos ou grupos que vivem a experiência do não reconhecimento ou do reconhecimento inadequado (reconhecimento errôneo) podem sofrer danos decorrentes dos estigmas e das hostiliza-ções sofridas, desenvolvendo, assim, “identidades deterioradas”, como Goffman (1988) preferiu denominar. Para Taylor, o reconhecimento

6 Título de um famoso ensaio de Taylor que recebeu comentários de vários autores, dentre os quais: K. Anthony Appiah, Jürgen Habermas, Steven C. Rockefeller, Michael Walzer e Susan Wolf (Taylor, 1998).

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adequado não é uma cortesia, mas uma necessidade vital, uma vez que nossa identidade está vinculada à experiência do reconhecimento que se dá na relação com o outro: “Definimos nossa identidade sem-pre em diálogo com as coisas que nossos outros significativos desejam ver em nós – e por vezes em luta contra essas coisas” (Taylor, 2004, p. 246). Negar o reconhecimento dessas identidades seria uma forma de opressão, como já apontado pelo feminismo, movimento negro, assim como pelos teóricos do multiculturalismo. De acordo com Nascimen-to (2005, p. 122-123),

Taylor defende um liberalismo “mais tolerante” e não procedimental para sociedades multiculturais, a partir do qual seja possível não so-mente reconhecer a sobrevivência cultural como meta legítima, mas também reconhecer o “igual valor de diferentes culturas”. Ou seja, não se trata apenas de reconhecer o direito de certas comunidades culturais de sobreviverem, mas reconhecer o igual valor das diversas culturas existentes.

Taylor vislumbra a possibilidade de “igual respeito às diferentes culturas” a partir do processo de “fusão de horizontes” dos indivíduos (conceito utilizado por Taylor em alusão a Gadamer; cf. Taylor, 2004, p. 270). A “fusão de horizontes” pressupõe não somente o estudo de diferentes culturas, valores e crenças, mas, sobretudo, o estabeleci-mento de relações recíprocas entre indivíduos de diferentes culturas: A “fusão de horizontes” ou comparação entre culturas implica ainda um processo de “aquisição de novas linguagens, e isso só é possível através da transformação de meu juízo inicial em relação à outra cul-tura, que eu só posso ter na medida em que entro em contato com ela” (Mattos, 2004, p. 150).

Para Taylor (2004, p. 269), o campo da educação (no sentido amplo) deve ser o principal locus desse debate e de implementação de políticas de reconhecimento. As universidades e escolas devem alterar seus currículos e abrir espaços para que “mulheres e pessoas

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de raças e culturas não europeias” tenham maior visibilidade e se-jam incluídas nos currículos e livros didáticos. O autor destaca que é preciso mudar as imagens distorcidas construídas sobre esses gru-pos e fornecer elementos de identificação positiva. Além das críticas dirigidas a Taylor e ao seu “liberalismo tolerante” (Mattos, 2004; Nascimento, 2005), especialistas no campo educacional criticam a tese tayloriana que reduz o problema a uma questão de não reco-nhecimento ou reconhecimento inadequado das mulheres, negros, indígenas, migrantes, homosexuais, entre outros:

Com sua filosofia do reconhecimento, Taylor sugere que existe uma verdade sobre a categoria que só necessita ser reconhecida, à medida que as vendas do preconceito comecem a cair de nossos olhos. Taylor não discorda das categorias, ao menos não diretamente. Ao denunciar “o aprisionamento de uma pessoa em um modo de ser falso, distorci-do e limitado”, direciona nossa energia moral e política no sentido de liberar o modo de ser verdadeiro, preciso e ilimitado de uma pessoa. Meu receio é que isso seja de pouca valia para nos dissuadir da crença de que, se não fosse por essa tradição de reconhecimento inadequado, enxergaríamos a natureza (verdadeira) uns dos outros e compreen-deríamos exatamente as qualidades que hoje estão encobertas pelas forças sociais. (Willinsky, 2002, p. 36-37).

Para Willinsky (2002, p. 36), não estaríamos enfrentando um problema de não reconhecimento ou de reconhecimento inadequa-do de determinadas categorias, grupos ou indivíduos nas sociedades contemporâneas, mas, sobretudo, um processo de mudança do signi-ficado e significância das categorias: “Aqueles que ocupavam o poder sentiram-se compelidos a redefinir o status político das mulheres, por exemplo, depois de terem sido persuadidos pelas sufragistas de que recusar o direito de voto às mulheres constituía prática democrática inaceitável”. Ao invés de afirmar que as mulheres foram erroneamente reconhecidas, o autor destaca a necessidade de analisarmos as formas pelas quais “os homens constituíram, pelos poderes de que foram in-

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vestidos pelo Estado, o status legal da categoria mulher”. Desde Platão aos filósofos modernos como Nietzsche, Schopenhauer, Hume e Des-cartes, buscou-se sempre destacar a deficiência ou inferioridade7 como elementos constitutivos da categoria mulher:

Dizer que eles consideravam as mulheres de forma errada é consi-derar as divisões como determinadas e fixas, ainda que terrivelmente mal interpretadas. Com isso, perde-se de vista o fato de que a própria categoria é em grande parte construída pelo homem. A categoria é constituída por aqueles que ocupam o poder, segundo sua própria imagem da mulher e que tiveram de ser convencidos a mudar o signi-ficado da categoria. (Willinsky, 2002, p. 36).

Nesse sentido, o autor pondera que o trabalho político e educa-cional a ser realizado deve se voltar para a análise das formas “como as categorias pelas quais conhecemos e nomeamos uns aos outros foram formadas” e como essas mesmas categorias ainda continuam sendo utilizadas como “forma de diferenciar a distribuição de poder” nas so-ciedades em que vivemos, mesma aquelas consideradas democráticas e multiculturais. O autor pondera que as políticas de reconhecimento no campo educacional devem passar necessariamente por uma análise crítica dos conceitos construídos ao longo do século XX, das políticas migratórias e de “assimilação” dos imigrantes, ou ainda, da construção da nação brasileira com base no mito da “democracia racial”:

7 Em seu livro sobre Los filósofos y sus vidas, Schäfferstein apresenta o seguinte quadro: “De vinte e dois ilustres filósofos, apenas oito se casaram. Nietsche aconselhava-nos a levar chicotes quando fôssemos com elas; Schopenhauer colocou os pensamentos femininos em relação inversa com o comprimento de seus cabelos; Hume considerava-as oportunas naquelas reuniões em que as conversas descambam para o frívolo, e Descartes dizia, é fácil supor que, com tanta malícia, queria escrever de modo tão claro que até as mulheres compreendessem. Nenhum dos citados, certamente, manteve uma relação estável com uma mulher. Os filósofos, em geral, quando falaram sobre a mulher ou sobre a guerra, brilharam. Ou, para ser sinceros, “caíram no ridículo” (Sábata, 2002 apud Rosa, 2006, p. 14-15).

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Uma educação voltada para a política do reconhecimento faria muito melhor concentrando-se na ciência da raça que surgiu no século pas-sado e que continua no presente século. Deveria examinar as políticas de imigração e o tratamento dado pela mídia às mulheres. Deveria deter-se sobre as leis, em Quebec, referentes a idiomas que restringem o uso do inglês nos avisos públicos. Deveria considerar como a idéia de nação se alinha com raça, e como a cultura passou a servir de me-diadora entre os dois termos, ao dividir o mundo entre nós. (Willinsky, 2002, p. 38-39).

Nancy Fraser também vem discutindo as políticas de reconheci-mento, enfatizando a integração entre reconhecimento e redistribui-ção como condição necessária para a compreensão das dimensões so-ciocultural e político-econômica das desigualdades sociais. Em um de seus artigos mais conhecidos – “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista” –, a autora destaca:

Demandas por “reconhecimento das diferenças” alimentam a luta de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Nesses conflitos “pós-socialistas”, identi-dades grupais substituem interesses de classe como principal incentivo para mobilização política. (Fraser, 2001, p. 245).

Fraser sugere aos intelectuais uma nova tarefa, ou seja, o desen-volvimento de uma teoria crítica do reconhecimento, “uma teoria que identifique e defenda apenas versões da política cultural da diferença que possa ser coerentemente combinada com a política social de igual-dade” (p. 246). Nesse sentido, a autora propõe um conceito de justiça no qual a dimensão do reconhecimento e da distribuição está igual-mente integrada, uma vez que nenhuma dessas políticas é suficiente:

Ao formular esse projeto, assumo o fato de a justiça requerer hoje tanto reconhecimento como redistribuição. Proponho-me a exami-nar a relação entre ambos. Em parte, isso significa descobrir como conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de forma

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que ambos se sustentem e não enfraqueçam um ao outro... Também significa teorizar sobre os modos pelos quais desvantagem econômi-ca e desrespeito cultural estão entrelaçados e apoiando um ao outro. (Fraser, 2001, p. 246).

Segundo Fraser, uma concepção bidimensional ou bifocal de jus-tiça deve englobar tanto as preocupações tradicionais da justiça dis-tributiva, resultantes das injustiças socioeconômicas (entre outras: a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe), como as preocupações recentes levantadas pela filosofia do reconhecimento (entre outras: o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status), compreendidas como injustiças culturais ou simbólicas. Tra-ta-se de uma distinção analítica, uma vez que injustiças culturais ou simbólicas e injustiças socioeconômicas estão interligadas nas práticas cotidianas. No entanto, os “remédios” para a minimização dessas in-justiças são distintos: a reparação de injustiças socioeconômicas exi-ge medidas que envolvam redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, instiguem a tomada de decisões democráticas e a transformação das estruturas econômicas básicas, ao passo que as injustiças culturais requerem outros tipos de “remédios” associados a uma mudança cultural ou simbólica, entre outras:

Reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e dos produtos culturais de grupos marginalizados. Poderia também envolver reco-nhecimento e valorização positiva da identidade cultural. Ainda mais radicalmente, poderia envolver a transformação geral dos padrões so-cietais de representação, interpretação e comunicação, a fim de alterar todas as percepções de individualidade. (Fraser, 2001, p. 252).

Em um outro artigo disponível em língua portuguesa, intitula-do “Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero”, Fraser afirma que as políticas de reconhecimento só serão bem-sucedidas se vierem acompanhadas de políticas redistributivas. Portanto, as políticas requerem uma visão bi-

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focal que olhe simultaneamente pelas duas lentes de forma a garantir tanto o reconhecimento como a distribuição. Trata-se, portanto, de uma concepção feminista alternativa de reconhecimento, o que não significa somente uma política de identidade como defendida por Taylor, mas uma “política que busca vencer a subordinação por meio do estabelecimento das mulheres [migrantes, negros, entre outros] como membros plenos da sociedade, capazes de participar lado a lado com os homens, sendo seus pares” (Fraser, 2002, p. 71). Em outras pala-vras, as lutas que integram redistribuição e reconhecimento “almejam a desinstitucionalização dos padrões androcêntricos de valor cultural que impedem a paridade de gêneros e a substituição desses padrões por outros que dêem suporte a essa paridade” (p. 72). O feminismo não está sozinho na luta pelo reconhecimento, mas ele vem desenvolvendo um importante papel que reflete uma modificação mais profunda na gramática dos discursos das demandas políticas.

Considerações finais

Para finalizar, retornaremos à citação inicial de Amy Gutmann, que defende a necessidade de uma educação pautada na não discri-minação como condição necessária para a ampliação da lógica da não repressão, que por sua vez amplia a possibilidade de liberarmo-nos daquilo que somos para exercer a liberdade de ser de alguma outra forma:

Para uma sociedade ser democrática, todas as crianças devem ser edu-cadas de modo não-repressivo. Em outras palavras, a Educação deve ser não-discriminatória, com base na raça, etnia, religião, classe, gêne-ro ou quaisquer outras características que não se relacionam com a educabilidade. A não-discriminação amplia a lógica da não-repressão. Muitas sociedades ... discriminam, reprimem e excluem grupos intei-ros de crianças [e jovens] de uma educação que conduza à liberdade de pensamento necessária para uma cidadania igualitária. (Amy Gut-mann apud Isham et al., 2003, p. 117).

[ 48 49 ] Wivian Weller

Nesse sentido, as políticas voltadas para o reconhecimento das diferenças devem promover a ruptura dos essencialismos e binaris-mos muitas vezes presentes nos debates educacionais, pela análise crítica e criativa das relações entre sujeitos diferentes, criando con-dições para compreender as especificidades e conflitualidades dessas relações e elaborando formas emancipatórias de relação social que favoreçam a superação dos processos de sujeição e exploração que têm marcado nossa história. Devem assumir ainda uma discussão que contemple o hibridismo – no sentido elaborado por Bhabha – como principal componente de nossas identidades. Deve contem-plar ainda uma ideia de nação que compreenda as diferenças como partes integrantes dos estados nacionais contemporâneos, ou seja, tanto do centro como da periferia:

Se o multiculturalismo dificultou a questão da identidade, isso, a meu ver, só tende a torná-la melhor, pois a incerteza sobre quem é canaden-se [ou brasileiro] significa adotar uma postura muito menos assertiva em relação a quem é de fato canadense [ou brasileiro]. Este é o momento de se reconhecer que a nação é constituída por tudo que contém, e não somente por aqueles situados em um centro ou origem imaginários; a nação é uma organização política do espaço, e não uma qualidade de caráter que só precisa ser adequadamente reconhecida. (Willinsky, 2002, p. 45; grifo nosso).

Sociologia e educação em direitos humanos

Multiculturalismo e políticas da diferença 49 ]

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51 ]

Parte II: Temas de Educação

em Direitos Humanos

Violência doméstica e práticas educativas Márcia Cristina Lazzari

A história acontece no instante da vida de cada um, livre das paci-

ficações, idealizações e contemplações transcendentais produzidas

pela ciência da história. As forças lutam por liberdade, resistem ao

poder, realizam sua juventude pela recusa à acomodação no pas-

sado e a uma utopia consoladora no futuro. A atuação no presente

inventa uma vida desembaraçada de regras fixas, constantes e

imutáveis ao se apartar da naturalização da obediência e da conser-

vação de costumes da sociedade como se fossem componentes de

um bem maior a ser eternamente preservado.

Edson Passetti

Ideias

A sociedade disciplinar investiu diretamente na localização e docilização dos corpos, impondo regras voltadas à organização e distribuição espacial de cada um e para um feixe de manifestações previsíveis, extraindo a obediência e solidificando as instituições que se dedicavam à educação e formação das crianças e jovens. A escola e a família, presentes na vida das crianças, ensinavam-lhes a obede-cer sob a rubrica do acesso ao conhecimento e à boa educação. No

[ 54 55 ] Márcia Cristina Lazzari

entanto, na sociedade de controle, a escola e a família passaram a conviver com outras instâncias de poder desdobradas pelas diversas organizações criadas para subsidiar a ambas, demarcando um entre-laçamento entre elas que deslocou os papéis dos pais e professores compondo um fluxo diferenciado: um investimento direcionado ao resgate dos direitos das crianças e jovens, que muitas vezes parece estar descolado dos corpos e das situações concretas vivenciadas pe-las crianças e jovens.

Ainda assim, as práticas repressivas e violentas contra crianças e jovens continuam permeadas por uma moral autoritária, punitiva e preconceituosa; punições exercitadas como prevenção de desvios e de comportamentos indesejáveis são recorrentes no modelo educacional que associa a educação ao castigo e que, ao mesmo tempo, cultiva o individualismo. A violência praticada dentro de casa, correntemente utilizada como recurso para o processo educativo, continua fazendo mais vítimas, tendo como mote a justificativa da boa educação.

Mesmo em tempos mais democráticos, após a abertura, repleta de leis que trouxeram um novo olhar as crianças e jovens, a violência doméstica, as negligências de várias ordens e também a utilização da mão de obra infantil, a prostituição infanto-juvenil, a desnutrição e a fome estão cada vez mais presentes nas famílias, nas escolas, nas ruas e nas instituições de modo geral.

Suspeitas

As crianças e os jovens passaram a ser entendidos como alguém que necessita de direitos, mas continuam sendo vistos como pessoas em formação, desprovidas de vontades e saberes próprios. Segundo Passetti (1999), se instaurou um tipo de filantropia que vem investindo acentuadamente em direção ao estabelecimento de uma ordem capaz de pacificar e neutralizar os efeitos negativos que afetam as crianças, ignorando cada uma delas, um fluxo de nova filantropia.

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 55 ]

Três pontos redimensionam a relação caridade–crueldade no final do século XX no Brasil, e que chamamos por nova filantropia: a conten-ção de programas sociais de Estado com parcerias não-governamen-tais; a ação jurídico-policial do encarceramento de infratores como medida de prevenção geral contra violências levando à proliferação de prisões e a diversificação das penas como medidas sócio-educativas; e a disseminação da ação contra violentadores de crianças e adolescentes. (Passetti, 1999, p. 367).

Adentramos o século XXI e vivenciamos a concretização das par-cerias, primeira questão abordada pelo autor, que acarretou a transfor-mação das práticas de enfrentamento, contenção e controle das vio-lências, seja no caso de jovens infratores, seja em relação às crianças e jovens violentados.

A democratização dos programas e projetos subsidiados pelo go-verno e a proliferação de organizações não governamentais revelam, de um lado, a ampliação do quadro de pessoas envolvidas com os pro-blemas relativos às crianças e jovens e de outro lado o cumprimen-to da prerrogativa do Estado, que considera como fator fundamental garantir a participação da chamada sociedade civil, seja por meio dos conselhos em nível municipal e/ou estadual, seja por meio de institui-ções e organizações que, por vezes, provêm do próprio movimento de defesa dos direitos das crianças e jovens. O fato é que atualmente o Estado promove a descentralização administrativa dos atendimentos aos casos de violências com a justificativa de envolver a sociedade e as comunidades onde se encontram inseridas as vítimas.

No entanto, esse processo de democratização enfrenta grandes dificuldades e não têm conseguido efetivamente a diminuição ou re-tração das violências desferidas contra crianças e jovens. Os dados re-ferentes aos casos que envolvem violência doméstica têm se perpetua-do não só no Brasil como no mundo todo, inclusive apresentando um crescimento em determinadas modalidades de agressões, como pedo-filia, prostituição infantil, homicídios, estupro, dentre outras.

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Estima-se que 133 a 275 milhões de crianças em todo o mundo tes-temunham violência doméstica anualmente. A freqüente exposição de crianças, a violência em seus lares, geralmente briga entre pais ou entre uma mãe e seu parceiro, podem afetar severamente o bem-estar e o desenvolvimento pessoal de uma criança e sua interação social. (Unicef, 2006, p. 15).

A participação da chamada sociedade civil não garante, por si só, o esperado controle social.1 Presenciamos a ascensão dos Con-selhos Tutelares, por exemplo, cujo número de equívocos e trans-tornos vem fazendo história. As dificuldades de atuação vão desde a falta de estrutura física e material até o pouco esclarecimento de parte dos conselheiros sobre como lidar com os casos de violência que aparecem diariamente.

Os Conselhos são considerados fóruns democráticos, frutos da descentralização administrativa, mas não realizam uma resposta à des-centralização do poder estatal, nem designam espaços que investem na autonomia e espontaneidade dos cidadãos. Eles funcionam, inversa-mente, como locais onde a moral se firma e fortalece, podendo incluir a nova estrutura administrativa da educação, saúde, assistência social, pois o espaço do município está relacionado ao espaço econômico e humano, onde o social e o estatal se misturam.

Muitas vezes o Conselho Tutelar acaba transformando-se num dispositivo silenciador, pelo qual as violências cometidas contra as crianças ficam circunscritas àquelas divulgadas pela mídia, pois ao que tudo indica o CT atende e resolve as demandas registradas pe-los denunciantes.

1 A ênfase no controle social advém da possibilidade de o órgão ser constituído por representantes da chamada sociedade civil. A paridade deve ser assegurada funcionando como mecanismo de garantia da participação e controle popular, conforme consta no ECA.

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 57 ]

Em pesquisa2 realizada no Conselho Tutelar de São Miguel Pau-lista, localizado na zona leste da cidade de São Paulo, constatou-se que cerca de 90% dos atendimentos referentes às diversas demandas diziam respeito aos pedidos de encaminhamentos para outras políticas sociais (escola, creche, hospital, cartório, solicitação de guarda/tutela etc.); as comunicações referentes à violência doméstica aparecem dentre as ocorrências pouco significativas, perfazendo apenas 7% do material analisado; o baixo percentual de casos de violência doméstica se repete em relação às correspondências da escola ao CT. De certa forma, as carências socioeconômicas superam os episódios de violência domés-tica, tendo em vista o deficiente enfoque dado aos casos de violências contra crianças e jovens, tanto em relação à denúncia como também em relação aos desdobramentos referentes às ocorrências. A mídia de modo geral corrobora nesta questão, tendo em vista a ênfase em casos isolados, saciando o desejo de punição e denúncia, individualizando e recortando os episódios violentos envolvendo crianças e jovens.

O desenvolvimento do capitalismo expandiu a formação da moral e da subjetivação coletiva por meio da mídia, entendida em sua amplitude, englobando os diversos meios de comunicação. Cada vez mais presentes na atualidade, os meios de comunicação encon-tram-se inseridos no cotidiano de todos, pobres e ricos, dentro e fora das grandes capitais.

No sistema de comunicação atual variam as abordagens, mas cer-tamente todas elas estão às voltas com a conquista do consumidor; ele é o alvo. E, assim, as pessoas passaram a conectar-se com uma moral indi-vidualista propagada pela corrida aos bens de consumo, inspirada pelos

2 Pesquisa realizada em 2005, no Conselho Tutelar de São Miguel Paulista, onde foram lidos e copiados 103 atendimentos oferecidos pelo CT, sendo 49 deles emitidos especificamente por escolas públicas e os outros 54 referentes às diversas demandas atendidas pelo CT. Foram cadastrados 4.163 atendimentos de abril de 2002 a agosto de 2005, segundo a contagem efetuada pela recepção do Conselho (Lazzari, 2008).

[ 58 59 ] Márcia Cristina Lazzari

empresários, o que resulta num cidadão produtivo, apolítico, previsível, participativo, endividado e quase sempre sob controle. O investimento no problema da violência doméstica encontra-se delimitado pelas perspecti-vas sociais e por interesses difundidos pela moral propagada pela mídia e pelo Estado, os quais reforçam valores e comportamentos fundados na obediência às leis, nos chamados bons costumes e na caça aos culpados, evidenciando maior importância na punição dos violentadores do que na proteção dos violentados ou mesmo na prevenção das violências.

Embora o cidadão do século XXI pareça mais livre e autônomo, principalmente do ponto de vista da comunicabilidade (cada vez mais aperfeiçoada pela tecnologia), ele encontra-se mais dedicado à obe-diência e à docilidade, presentes na sociedade disciplinar, e convive com a versatilidade e dedicação, fazendo aparecer cidadãos plena-mente adaptados e adaptáveis às perspectivas de mercado.

É um novo jeito de lidar com a inclusão, permeada por uma sub-jetividade mais global que qualifica e reconhece aqueles que respon-dem às demandas do mercado, dedicação à empresa, preservação da imagem, respeito às leis, enfim, os que obedecem e seguem os desíg-nios da maioria.

Essa autoridade sobre si mesmo se afirma como autonomia de um cidadão reclamante, que aparentemente consegue compreender quais são seus direitos e como reivindicá-los de maneira adequada atra-vés de telefones úteis, fóruns municipais, conselhos em diversos níveis, fazendo funcionar uma rede de serviços criados para prestar atendi-mentos diversos, de forma que todos passam a ser ouvidos e futura-mente atendidos. Realidade muito diferente daquela em que os insatis-feitos faziam greves, piquetes, passeatas, movimentos estudantis etc. A participação, as opiniões e reclamações trouxeram consigo as sínteses pelos slogans publicitários: não faltam programas de rádio e televisão também instituindo fóruns interativos que apelam à participação do público como meio de contemplar as muitas opiniões e reivindicações, exercícios de minorias de direitos.

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 59 ]

Nessa perspectiva é importante abarcar a discussão que Deleuze e Guattari (1997) fazem sobre a subjetivação coletiva, que se dá por con-ta do processo de nacionalização, operando diretamente sobre o sujei-to que pertence não só ao Estado, mas à Nação, entendida como espa-ço social que reinventa diferentes identidades compartilhadas de forma intermitente. Segundo ele, o próprio capitalismo fez surgir a “empresa mundial de subjetivação”. Essa operação de subjetivação constitui-se em duas formas de sujeição: a maquínica que transformou o homem em peças constituintes da máquina e a sujeição social que envolveu o homem no desenvolvimento tecnológico, máquinas cibernéticas e a informática (ninguém vive sem computador, celular, agenda eletrôni-ca, pager, GPS etc.).

Presenciamos, assim, a passagem do modelo de cidadão obedien-te e útil para o cidadão autônomo, individualista, consumidor e recla-mante, agindo poucas vezes sob coação, mas atravessado por práticas violentas. Isso ocorre nas relações educativas domésticas praticadas por pais, mães e responsáveis, como possibilidade de contenção dos abusos desobedientes. Ocorre também como bandeira de reivindica-ção dos conselheiros, pais, mães, professores, jornalistas, trabalhado-res sociais dentre tantos outros que, ao se depararem com crianças e jovens indóceis e/ou violentos, reclamam por punições e prisões. Ou ainda quando elas aparecem como carências econômicas, que atraves-sam e perpassam o cotidiano da população de baixa renda despojada de recursos mínimos para viver e que busca atendimentos diversos para suas carências, incluindo os Conselhos Tutelares.

Incidências

Como parte desse processo de cidadania autônoma e individua-lista aparece a figura da criança e do jovem – os “mal-educados”, os chamados “sem limite”. É comum considerar crianças e jovens sem limites como aqueles que estão exageradamente envoltos em mais di-reitos do que obrigações. Pode-se observar que isto implica um duplo

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sentido: de um lado, aquele que mascara e procura ignorar a existên-cia da violência como dispositivo de educação, pressupondo que não se violentam mais as crianças na sociedade de direitos, embora a in-cidência de violências contras crianças seja frequente, ainda que pou-co veiculada pela mídia, principalmente quando se trata de violência doméstica familiar; e de outro lado, aquele que considera a violência e/ou ameaça métodos educativos eficazes comprovados inclusive em outros tempos.

Esse duplo sentido acaba por acionar o discurso da tolerância zero que emergiu fortemente no Brasil após a democratização política revitalizada pela incidência da chamada violência urbana, esta sim, des-tacada pela mídia nos últimos anos, estimulando a prática da violência contra os sujeitos considerados perigosos.

Mas é preciso pontuar algumas questões relevantes para a devida problematização das práticas violentas contra crianças e jovens.

As escolas, por exemplo, perderam pelo menos dois instrumen-tos relevantes para a eficácia da disciplina: a ameaça de reprovação e a iminência da prova como dispositivos utilizados para obter o almejado “bom comportamento”.

Somado a isto convém ressaltar que a família atravessa um pro-cesso em que se estabelecem novas relações amorosas e, portanto, no-vas convivências dentro de uma mesma casa. Pai, mãe e filhos não são as únicas formações familiares recorrentes. Hoje, elas são substituídas por uma variedade de pessoas com vínculos e graus de parentescos va-riados, vivendo sob o mesmo teto, reproduzindo as responsabilidades e relações estabelecidas antes e introduzindo tantas outras, que passa-ram a ser exercidas pelo irmão mais velho, pelo padrasto ou madrasta, pela avó ou avô etc.

Tais redimensionamentos incorporam outros, cuja irrupção deu-se em décadas passadas e que dizem respeito à entrada da mu-lher no mercado de trabalho e a uma nova relação com sua prole. No-vas práticas foram adotadas para lidar com a ausência da mulher em

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 61 ]

casa durante seu horário de trabalho e, embora as soluções encon-tradas pelas famílias sejam diferenciadas, grande parte delas vivencia situações muito parecidas. Essas transformações estão presentes em todas as formações familiares; todavia, ainda recai sobre aquelas pro-venientes de classes sociais mais baixas a condição de “desestrutura-das” nas avaliações dos programas sociais, bem como das instituições sociais que lidam com crianças e jovens cujos comportamentos são considerados inadequados.

A família, por meio do direito familiar, exerce, sobre a criança e/ou jovem, certas práticas educativas calcadas em ações mais ou menos violentas, o que de certo modo é tolerado pelo Estado, legitimando um modelo educativo baseado na repressão, inclusive física. Ele realiza o jogo de interesses que, de um lado, reconstrói a autoridade no inte-rior da família para sua própria preservação, e de outro, institui o es-petáculo das punições quando as violências praticadas especificamente por pais, mães e/ou responsáveis transbordam para o âmbito público e aí passam a ser entendidas como abuso de autoridade, nomeadas como maus-tratos e não como violências.

O problema é que o enfrentamento da violência doméstica se di-lui e enfraquece, tendo em vista a reinvenção das práticas violentas dentro da família, justificadas agora pela intolerância aos jovens re-beldes e crianças sem limites, considerados como crias do excesso de liberdade. Mas se sabe que ato violento é qualquer ato praticado por qualquer pessoa que venha a submeter crianças e jovens à vontade de outrem, desconsiderando-os como “gente”. Qualquer formato dessa ação, pelo constrangimento, ameaça, agressão física, psicológica ou sexual, denota uma violência e deve ser entendida como tal, não para satisfazer o sistema de vingança imposto pela penalização, mas para enfatizar o respeito à individualidade das crianças e jovens e reafirmar a importância do investimento em novas sociabilidades a partir de ou-tras ações educativas baseadas no respeito mútuo e no diálogo entre crianças, jovens e adultos.

[ 62 63 ] Márcia Cristina Lazzari

Definitivamente, a violência, qualquer que seja ela, deve ser afas-tada das práticas educativas não só no âmbito da família, mas na vida em sociedade como um todo.

No caso da educação de crianças e jovens, o objetivo da punição quase sempre está relacionado com a prática da obediência à lei, aos pais, aos professores, às autoridades hierárquicas superiores e aos aparatos normalizados como um todo. Assim, a punição empregada para fins educativos não pressupõe necessariamente uma relação de culpa ou inocência; ela deve estabelecer um comportamento volta-do para a prevenção geral. Cabe ressaltar que a punição estabelece uma relação particular com a prevenção que leva à obediência e ao chamado bom comportamento, que corroborarão para uma supos-ta vida adulta saudável.

A escola e a família produzem relações de poder que atraves-sam e são atravessadas pelo Estado, e o CT, por sua vez, que deve-ria representar uma ruptura com a sociabilidade autoritária, acaba representando o Estado e a vontade do Estado através da chamada “sociedade civil organizada”.

Podemos perceber isso no trecho que segue, extraído de uma co-municação enviada pela escola ao CT de São Miguel Paulista sobre problemas enfrentados com um aluno matriculado na 5ª série (atual 6° ano) do ensino fundamental I:

26/09/02 – Menino de 5ª série – Encaminhamos cópias dos relatórios de comportamento e atitudes do aluno F.: mãe do aluno é ameaçada pelo aluno, não se interessa em estudar, alega vir à escola por imposi-ção da mãe, não gosta de estudar coisa nenhuma, nem aprender nada, diz que gosta de andar pela rua, jogar pebolim, seus amigos pagam (são trouxas). Diz que é muito nervoso, relata conhecer bandidos para socorrê-lo. Tem horror a ficar preso, conta que quando era pequeno a mãe o deixava trancado em casa e ele ficava desesperado. Diz ter raiva porque alguns alunos mexem com ele na escola. Diz saber muita coisa em relação ao sexo. Afirma que jamais terá filhos, filhos é só prejuízo,

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 63 ]

só despreza as mulheres, exploram os homens pedindo pensão e não confiam em ninguém e o irmão é a única pessoa que ele gosta e afirma que seu irmão é pior do que ele.

A mãe afirma ter perdido o controle sobre ele. No relatório diz que houve mudança no comportamento, mas em 22/08 na entrega do kit material queria ir embora e foi retido na sala. Xingou o padre Anchieta de desgraçado, o agente escolar o ouviu dizer “ainda mato este alu-no”. Estava tremendo e foi falar com a coordenadora, queria ir em-bora. O que ele quer é não estudar é ficar na rua. Não quer aprender nada, porém vai ficar muito rico... mesmo sem trabalhar. (Extraído do acervo de comunicações das escolas ao Conselho Tutelar de São Miguel Paulista).

A escola encaminha casos considerados insolúveis, no plano da instituição, que revelam o distanciamento dela em relação aos alunos. A família se considera muitas vezes incapaz de lidar com seus filhos e os CTs passaram a receber os insuportáveis, funcionando como inter-locutores dos desvios e dos problemas disciplinares apresentados pelas crianças e jovens. O ciclo das práticas educativas punitivas certamente não se rompeu, mas se redimensionou.

Inserções

A ênfase no acesso à educação remonta ao processo histórico que privilegiou a escola e a educação como propulsores dos direi-tos humanos. Desde então outras ações foram sendo incorporadas a este processo de instrumentalização da educação que se pretende para revolucionar valores, reiterando a transformação de educado-res e educandos.

Obedecer é a condição essencial do educando para obter uma boa educação, por meio da prática do assujeitamento aos costumes e regras, idealizados pelos adultos e, de forma diluída, aos modismos impostos socialmente. Sob a ingerência do Estado, a família acaba por interiorizar esse discurso educacional voltado para a formação de cida-

[ 64 65 ] Márcia Cristina Lazzari

dãos, colocando em evidência a ascensão social, o enriquecimento e a valorização das realizações pessoais de cada um. O Conselho Tutelar faz coro com as famílias e as escolas, mesmo porque os conselheiros são moradores do município e compartilham as distribuições segmen-tares que determinam claramente o trajeto educativo das crianças em busca do sucesso na idade adulta.

Dessa forma, as relações que se estabelecem entre a escola e a fa-mília, atravessadas pela presença do Conselho Tutelar, são resultado de um mesmo feixe de interesses e atitudes que se confirmam na relação de punição e educação tendo como fim a obediência.

A discussão acerca da punição e justiça foi retomada com os estu-dos de Godwin (2004, p. 13) em 1793 que, ao analisar as relações entre o crime e a punição, afirma: “A única medida da justiça é a utilidade”. É assim que ele vai definir o ato de punir como aquele acompanhado da intenção de corrigir e esta será sua medida. A partir dessa ação puniti-va, almeja-se atingir um fim benéfico naquele que é punido, daí, então, essa ação punitiva passa a ser considerada como justa.

O único significado da palavra punição que pode ser suposto como compatível com os princípios do presente texto é o da dor inflingida a uma pessoa culpada de ações maléficas passadas para o fim de preven-ção de males futuros. (Godwin, 2004, p. 16).

A punição, no entanto, não se esgota. Não há uma quantidade de castigos ou ações semelhantes que devem ser aplicados. Por isso, a utilização desse dispositivo está impregnada da relação punição e edu-cação e se reproduz simultaneamente em várias instituições.

As práticas punitivas, ora utilizadas violentamente contra crianças e jovens, ora travestidas em defesa, insinuam uma crise, principalmen-te quando observamos algumas falas das principais instituições que objetivam a educação das crianças e jovens como a escola e a família. Tanto uma como a outra registram, de alguma forma, a insatisfação relativa à desobediência dos jovens.

Sociologia e educação em direitos humanos

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Segue mais um trecho de uma comunicação enviada pela escola ao CT de São Miguel Paulista:

24/05/05 – menino 13 anos – 6ª série fundamental-EE – Informamos que D. passou pelo conselho da escola, que decidiu a transferência para outra UE – os motivos que conduziram este desfecho foram: falta de respeito com os colegas e professores, palavrões, brigas em sala, desinteresse pelas atividades escolares, excesso de faltas, a família não atende as convocações da escola, o aluno mandou a professora de português tomar no cu em alto e bom-tom. Segundo a mãe, em casa também dá trabalho. A mesma diz que a escola deve encaminhá-lo para a FEBEM, ou seja, transfere toda a responsabilidade e se exime de qualquer colaboração ou parceria. Ela não sabe o que fazer, o filho não obedece e faz o que quer.

25/02/05 – menino 1ª série – R. está sendo advertido por ter jogado uma garrafinha de plástico dentro da bacia do banheiro e deverá ficar sem recreio segunda-feira. (Extraído das comunicações das escolas ao Conselho Tutelar de São Miguel Paulista).

Desde a “abertura democrática” de 1988, experimentamos novos dispositivos democráticos como o ECA, LDB, LOAS3 e a municipaliza-ção, que resultaram nas práticas de inclusão e inserção social, principal-mente em relação aos pobres.

Para os alunos malcomportados e para os filhos insuportáveis, o Conselho Tutelar passou a ser, de certa maneira, um novo dispositivo de ameaça e até mesmo um corretivo utilizado por pais, mães, direto-res, professores e outros mais. É uma relação inusitada que se realiza a partir da existência do Conselho Tutelar, vindo a ser uma instituição marcada por uma nova tecnologia de poder e que imprime à sociedade uma autoridade jurídica, sem ser jurisdicional e pedagógica, sem ser escola. A existência do Conselho Tutelar compôs um espaço voltado

3 Lei n. 8.742, de 7 de setembro de 1993, que define a assistência social ao cidadão.

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para a punição e disciplinarização das crianças e jovens que infringem os limites determinados pela escola e pela família, tornando-se comum a ameaça de encaminhar o desobediente ao Conselho, por parte de pais e professores, como antigamente se fazia em relação ao Juizado de Menores.

Assim, percebe-se que o Conselho Tutelar acabou, de certa ma-neira, tornando-se um tipo de poder distinto da escola, pois ele não deve educar, nem punir, nem sentenciar, mas proteger no sentido mais amplo da palavra. E essa função emblemática tornou-se a defesa das crianças e jovens, uma justificativa política para produzir um novo espa-ço institucional voltado talvez mais para o controle que para a defesa.

O Conselho Tutelar consolidou seu poder político, interagindo com a família e a escola, juízes e instituições públicas, alunos e profes-sores/diretores de escola, instituições públicas e família etc.

Vivenciamos uma série de investimentos que são claramente vol-tados não somente para a docilização dos corpos, mas também para levar cada um de nós a fazer a sua parte, atuando e cobrando os direi-tos e expondo as insatisfações aos fóruns democráticos dentro e fora do Estado. É nesse sentido que Passetti (2007) afirma que as minorias são capturadas pela democracia participativa, formando-se grupos e mais grupos, os quais, por meio da participação direta ou indireta nos projetos sociais e a partir de uma infinidade de técnicas de inclusão social, acabam não se revelando mais como resistências ativas, mas, ao contrário, tornando-se parte constitutiva do governo do Estado e do governo da vida.

O Conselho Tutelar funciona como desdobramento da política municipal, desenvolvendo uma ação política local, espelhado no prin-cípio de cidadania e baseando-se nos direitos instaurados coletivamen-te. Ele busca respostas legais aos conflitos trazidos diariamente, porém não reverencia a individualidade de cada criança ou jovem.

A prática de violências contra as crianças e jovens é um problema que assume proporções incalculáveis pelo mundo todo e a falta de es-

Sociologia e educação em direitos humanos

Violência doméstica e práticas educativas 67 ]

paço para denunciar as violências pode gerar muitas consequências, as quais variam de acordo com a natureza e a gravidade de cada caso. No universo de suas casas, crianças e jovens estão expostos às violências di-retamente relacionadas a exercício educativo que visa extrair, daqueles que são submetidos aos esforços disciplinares, atitudes disciplinadas.

A violência toma seus corpos. É preciso deslocar o foco, distribuir olhares mais atentos aos verdadeiros suplícios, investindo naquilo que pode resgatar possibilidades de vida, saúde e liberdade. A sensibiliza-ção de professores e profissionais da educação deve coroar o processo de invenção de enfrentamentos cotidianos a essas práticas violentas desferidas contra crianças e jovens, e tal investimento deve difundir in-formações sobre maneiras de lidar com casos já detectados, seu fluxo de notificação, bem como promover a articulação de todos os envolvi-dos na quebra de uma educação punitiva e violenta.

[ 68 69 ] Márcia Cristina Lazzari

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69 ]

Juventude e violência: do conhecimento empírico às re-presentações sociais Dalva Borges de Souza

Discutir juventude associada à violência e à segurança pública cer-tamente causa desconforto a quem pertence a uma geração que ab-sorveu determinados mitos acerca da juventude – alguns deles cons-truídos pela teoria sociológica – que associaram juventude à ideia de esperança e a conceberam como portadora do futuro, como agente de mudança social.

Nosso pensamento acerca da juventude é hoje paradoxal. Esta-beleceram-se na nossa sociedade, de um lado, o culto à juventude, promovido pela indústria cultural, e, de outro, a criminalização da ju-ventude. Todos querem ser jovens, mas, ao mesmo tempo, o jovem é aquele que tem de ser evitado, pois é visto como portador de compor-tamentos desviantes. A juventude acabou por se configurar como um problema de segurança pública.

Mas, se tomarmos os dados empíricos acerca da violência urbana na sociedade brasileira isso faz algum sentido e de fato causa preo-

[ 70 71 ] Dalva Borges de Souza

cupação. Entretanto, o alarde em torno do problema faz com que se esqueçam as causas do envolvimento dos jovens com a violência, seja como vítimas, que é o mais frequente, seja como autores. Deixamos de discutir a exclusão social de grande parte dos jovens no Brasil, a preca-rização da sua vida, a sua dificuldade para encontrar empregos dignos e a péssima qualidade da escola que temos. Some-se a isso a quase total ausência de políticas culturais voltadas para a juventude.

Este texto utilizou-se de diversas pesquisas realizadas pela autora sobre violência urbana no Estado de Goiás – e que, inevitavelmente, tiveram a atenção dirigida para a situação da juventude – e procurou refletir tanto sobre as informações empíricas coletadas como sobre as representações que são construídas sobre juventude e violência.

Jovens e violência: as vítimas

Há uma modalidade gravíssima de violência que são os homicí-dios contra os jovens. Informações sobre mortalidade por homicídios do DATASUS para 2005 mostram que, em Goiânia, 66% das vítimas de homicídio estavam na faixa etária de 15 a 29 anos. Dados mais recentes indicam que tivemos aqui, no Estado de Goiás, uma média de vitimi-zação juvenil (mortes por homicídio na faixa etária de 15 a 24 anos), calculada para os anos de 2002 a 2006, da ordem de 23,7 por 100.000 habitantes, ligeiramente abaixo da média do Brasil. Entretanto, em al-gumas cidades goianas, como Aparecida de Goiânia, na Região Me-tropolitana de Goiânia, a taxa ficou em 43,1% e na capital, em 41,0%, quase o dobro da média. Taxas ainda mais altas são apresentadas por Rio Verde, no sudoeste goiano, de 51,6%, e em algumas cidades do Entorno Goiano do Distrito Federal as taxas atingem percentuais im-pressionantes: Valparaíso, 48,4%; Novo Gama, 46,4%; Águas Lindas, 45,5%; Formosa, 45,2%; Luziânia, 42,2%.1

1 Mapa da Violência, 2008.

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Durante o ano de 2007, 181 jovens com até 30 anos foram assassi-nados em Goiânia, 57% do total de vítimas de homicídio. Nos primei-ros seis meses de 2008, 220 já haviam morrido, entre eles, 131 jovens, mantendo-se o mesmo percentual.2

Para não ficar apenas nos dados secundários, é possível comple-mentar essas informações com pesquisa realizada3 em inquéritos po-liciais nas delegacias de Aparecida de Goiânia que comprovam a in-cidência de homicídios entre a população jovem, conforme pode ser visto pelas Tabelas 1 e 2. Foram examinados 380 inquéritos policiais concluídos da Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia refe-rentes a homicídio doloso, latrocínio e tentativa de homicídio ocorri-dos entre 2005 e 2008.

Aparecida de Goiânia é uma cidade da Região Metropolitana de Goiânia, conurbada à capital e tem a segunda maior população do Es-tado de Goiás.

Tabela 1 – Vítimas de homicídios por faixa etária em Aparecida de Goiânia no período de 2005 a 2008

Faixa etária Absoluto Percentual

0 - 14 9 2,4

15 - 24 134 35,3

25 - 29 54 14,2

30 - 34 51 13,4

35 - 50 70 18,4

51 anos ou mais 18 4,7

Não informado 44 11,6

Total 380 100,0Fonte: Inquéritos Policiais – Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia.

2 Fonte: Delegacia Estadual de Homicídios.

3 Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás, financiamento FINEP.

[ 72 73 ] Dalva Borges de Souza

Jovens e violência: os agentes

Quando se procuram, nos mesmos inquéritos policiais, informa-ções sobre o perfil dos agentes de homicídios, verifica-se que ele é se-melhante aos das vítimas: 53% dos agentes tinham menos de 30 anos e, desses, quase 30% estavam na faixa etária de 19 a 29 anos.

Tabela 2 – Agentes de homicídios por faixa etária em Aparecida de Goiânia no período de 2005 a 2008

Faixa etária Absoluto Percentual

Menos de 18 38 10,0

15 - 24 104 27,4

25 - 29 59 15,6

30 - 34 44 11,6

35 - 50 53 14,0

51 anos ou mais 10 2,6

Não informado 71 18,7

Total 380 100,0Fonte: Inquéritos Policiais – Delegacia de Homicídios de Aparecida de Goiânia.

De outro lado, comprovando o envolvimento de jovens com a criminalidade, em outra etapa da mesma pesquisa4 foi examinada uma amostra de 231 prontuários de presos no Sistema Prisional Goiano. Trata-se de casos de homicídio doloso, tentativa de homicídio e latro-cínio, ocorridos entre 24 de janeiro de 1994 e 20 de setembro de 2006.

A quase totalidade dos presos nos prontuários examinados é do sexo masculino e a grande maioria, quase 85%, tem menos de 30 anos, como registram as pesquisas sobre homicídios em geral. Compondo o perfil, 62,8% são pardos, 22,9% brancos e 6,5% pretos. Quanto à escolaridade, a maior parte tem o ensino fundamental incompleto (48,1%), seguida dos que apenas leem e escrevem (27,3%). Esses dados indicam não somente a

4 Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás, com financiamento da FINEP.

Sociologia e educação em direitos humanos

Juventude e violência 73 ]

juvenilização do imprisionamento, como também, se considerarmos esco-laridade como proxy de renda, que os presos são, em sua maioria, pobres.

Tabela 3 – Perfil dos presos por homicídio no Complexo Prisional Odenir Guimarães por crimes cometidos entre 1994 e 2006

Faixa etária Absoluto Percentual

18 - 24 125 54,1

25 - 29 71 30,7

30 - 34 16 6,9

35 - 39 11 4,8

40 - 49 5 2,2

50 - 59 1 0,4

Não informado 2 0,9

Total 231 100Fonte: Prontuários dos presos por homicídio no Complexo Prisional Odenir Guimarães por crimes cometidos entre

1994 e 2005.

A sociologia brasileira tem apresentado algumas interpretações para esse quadro. Uma delas é a presença cada vez mais acentuada do tráfico de drogas nas cidades em geral, e não somente nas grandes metrópoles, atraindo os jovens, quer como consumidores, quer como pequenos traficantes. Outra interpretação é a da construção de uma identidade masculina violenta (Zaluar, 1994), baseada no conceito de ethos guerreiro (Elias, 1993). Essas interpretações foram corroboradas pelas narrativas dos inquéritos policiais examinados em Aparecida de Goiânia, como no caso de conflitos interpessoais nos quais a afirmação da virilidade se fazia com o uso da violência letal e também nos homi-cídios decorrentes de disputas entre galeras de torcidas organizadas.

A teoria da desorganização social tem ainda validade para explicar o fenômeno da violência urbana. Aparecida de Goiânia registrou uma taxa média geométrica de crescimento populacional, entre 1991 e 2000, de 7,3%. Já no período de 2000-2007, houve desaceleração, mas a taxa permaneceu alta (5,06%). Trata-se de uma cidade que se insere no quadro

[ 74 75 ] Dalva Borges de Souza

de crescimento populacional das periferias metropolitanas. Atraiu popu-lação migrante ou para ela foram deslocados contingentes populacionais excedentes da capital, sem que condições de moradia digna, emprego, educação, saúde fossem proporcionados pelo Estado. Só nos últimos anos é que a cidade experimentou um crescimento significativo de empreendi-mentos econômicos e consequente geração de empregos.

Na base desses fatores que explicam a violência estão a exclusão e a vulnerabilidade social dos jovens. Outro fator importante é que a segregação socioespacial contribui para realimentar a violência.

Jovens de estratos sociais diferentes e representações da violência

Uma outra pesquisa realizada em Goiânia5 revela que a escola pú-blica para os jovens pobres é vista mais como um local para o encontro com os amigos, um espaço de sociabilidade – o que de fato ela é –, mas quase nunca é ressaltada a sua função educativa, ou mesmo instrucio-nal. Se verificarmos as condições físicas dos edifícios escolares, perce-bemos que os equipamentos, existentes, não apresentam condições de funcionamento. Além disso, a maioria dos professores é contratada em regime temporário, sem a qualificação adequada, pois sequer foram selecionados. Logo, não é difícil compreender tal situação.

Já é assente que a modernidade desligou o jovem das instituições tradicionais de socialização, como a família e a Igreja. E a escola, pro-vável substituta moderna dessas instituições, não consegue cumprir o seu papel. A sua impotência é de tal ordem que os seus responsáveis chamam hoje a polícia para dentro da escola, como ocorreu em episó-dio recente em Goiânia.6

5 Imagens Cruzadas: Juventude e Representações Sociais. Pesquisa realizada em 2005.

6 No dia 30 de março de 2009, após um furto em uma escola pública de Goiânia, estudantes foram obrigados a ficar nus na sala de aula para uma revista policial realizada pelo Batalhão Escolar que foi chamado pela Direção da Escola (O Popular, 30 mar. 2009).

Sociologia e educação em direitos humanos

Juventude e violência 75 ]

Mas, ainda como espaço de sociabilidade, a escola é também se-gregadora. Até os anos de 1960, os espaços de conhecimento, de con-vivência social e de reconhecimento eram mais amplos e jovens de classes sociais diferentes frequentavam a mesma escola pública, parti-cipavam do movimento estudantil, e os ambientes de lazer eram igual-mente partilhados, sem que isso significasse igualdade social.

O crescimento das cidades no Brasil foi acompanhado pela violên-cia urbana e o sentimento de insegurança tem resultado no fechamento daqueles espaços de convivência. Diversas barreiras se interpõem entre jo-vens de uma mesma geração e reforçam o mesmo fenômeno da violência, da exclusão social, da exclusão moral, do preconceito e da insegurança.

O fenômeno do fim do espaço público perpassa as preocupações de várias linhas de pesquisa nas ciências sociais hoje, particularmente os estu-dos sobre democracia, as pesquisas sobre violência e a sociologia urbana.

Paradoxalmente no Brasil, acompanhando o processo de democra-tização política, houve essa separação social e física entre estratos sociais diferentes de jovens. Considerando que é na fase do final da adolescên-cia, quando experimentam, pela primeira vez, o espaço público que os jovens formam algumas das suas percepções mais duradouras (Cavalli, 2004), é importante compreender como eles representam o outro, o di-ferente. Vale dizer, isso traz consequências perversas na conformação da sociedade, especialmente no que se refere à qualidade da democracia.

Georg Simmel (1964a) considera que toda interação entre os ho-mens é uma forma de sociação. Inclusive, e principalmente, o conflito, pois se trata de uma forma elementar de sociação e que produz o jeito de vida metropolitana. Veja-se como ele explica: “Toda a organização interna da interação urbana é baseada em uma complexa hierarquia de simpatias, indiferenças, e aversões tanto do tipo mais efêmero como do mais duradouro” (Simmel, 1964a, p. 20).7

7 Tradução da autora.

[ 76 77 ] Dalva Borges de Souza

Ainda que muitas das reflexões de Simmel8 sobre as formas sociais conservem-se importantes para pensar o mundo contemporâneo, há, a partir do final do século XX, outros elementos com os quais temos de lidar. Não se trata mais aqui da atitude blasé do homem metropoli-tano, descrita por Simmel (1964b), das atitudes de reserva, de aversão, de estranhamento, e repulsa em relação a todos com quem mantemos contato na vida da grande cidade.

As transformações do mundo contemporâneo, com o processo de globalização e suas consequências, criaram outro tipo de vida mental. Wieviorka (1997) considera que o fim da centralidade do trabalho e do movimento operário levou ao fim dos conflitos de classe e o seu lugar foi preenchido por uma não relação entre atores, pela exclusão social, pela ausência de relação conflitual, que instauram uma violência difusa, fruto da raiva e de frustrações. Para esse autor é necessário elaborar um novo paradigma da violência, visto que, na sociedade contemporânea, surge uma nova forma de violência, derivada do caos, e que não pode ser com-preendida a partir dos modelos anteriormente utilizados pela sociologia, que a interpretavam como derivada de conflitos, crises ou anomia.

Se admitirmos, com Wieviorka, que predomina a ausência de re-lações entre jovens de classes sociais diferentes no Brasil, poderíamos, no limite, contrariando Simmel, pensar no fim da sociação na metró-pole entre indivíduos de uma mesma geração.

Em alguns aspectos, a realidade de Goiânia aproxima-se daquela de São Paulo, descrita por Caldeira (2000), e de várias outras cidades do Brasil no que toca à formação de amplas periferias habitadas pelas camadas pobres da população, separadas pelos espaços segregados vo-luntariamente pelos ricos e pela classe média. Haveria aqui uma polari-zação entre classe média e as duas outras hierarquias sociais, as cama-das da elite e a proletária ou subproletária.

8 Veja-se a conferência A Metrópole e a Vida Mental, de 1903.

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Vem da década de 1990 a instalação, em Goiânia, de vários con-domínios horizontais fechados, fazendo da cidade uma das principais do país com esse tipo de habitação. O medo e a insegurança, se não são os determinantes dessa opção, aparecem como tal nos discursos dos moradores. Essa nova forma de configuração do espaço urbano, certamente, contribuirá para criar uma nova vida mental, afetando toda uma geração.

Nesse processo, podem-se formar unidades distintas de geração dentro de uma mesma geração como realidade (Mannheim, 1982), quando as reações intelectuais e sociais a um estímulo histórico são diferentes. Embora Mannheim estabeleça a distinção, ele se mantém na perspectiva relacional e adverte que essas unidades distintas de geração só existem em relação uma a outra, ou seja, “juntas, elas constituem uma geração ‘real’ precisamente por estarem orientadas umas em relação às outras, mesmo se apenas no sentido de se com-baterem entre elas” (p. 89).

Ao considerar que os dados mentais tanto podem unir como di-ferenciar socialmente, Mannheim dá uma indicação para a pesquisa empírica, recomendando que se busquem perceber as unidades que compõem uma geração a partir dos diversos sentidos que são atribuí-dos a uma ideia.

Assim, aquilo que o autor denomina tendências formativas e ati-tudes integradoras fundamentais estabelece a inter-relação entre indi-víduos espacialmente distantes, ainda que o surgimento das atitudes integradoras se dê nos grupos concretos para depois se desligarem deles e influenciarem indivíduos situados em espaços mais amplos se esses mesmos indivíduos, a partir da sua situação de geração, se iden-tificam com aquelas atitudes. Seria o mesmo efeito da ideologia para a classe. Embora a situação só potencialmente permita isso quando há uma aceleração no ritmo da mudança social, forma-se um novo estilo de geração, que Mannheim chama de enteléquia de geração, a partir de experiências de grupo cruciais.

[ 78 79 ] Dalva Borges de Souza

Arrisca-se aqui a afirmar que há hoje no Brasil um fator que pode ser considerado como “experiência crucial de grupo” nos termos de Mannheim. Trata-se da violência urbana desencadeada pelo processo de modernização acelerado e pela introdução do tráfico de drogas nas grandes cidades que resulta em violência concreta e em sensação de insegurança em adultos e jovens, modificando as relações sociais. É necessário compreender de que forma isso afeta as representações so-ciais dos jovens de uma mesma geração e se favorece a formação de diferentes unidades de geração.

Na pesquisa foi realizado um survey com jovens de escolas de bair-ros habitados pela elite goianiense e com jovens de escolas públicas da periferia de Goiânia, para perceber as imagens cruzadas que são esta-belecidas por eles, ou seja, como percebem o outro e se essa percepção está marcada pela representação da violência urbana. A investigação foi também realizada nos espaços de lazer desses jovens. Um longo questionário contemplava dados objetivos como renda, religião, ocu-pação dos pais, moradia, lazer, estudo, divertimentos, formas de socia-bilidade, sexualidade, mecanismos de apropriação de bens culturais, mecanismos de distinção, relação com os adultos. Após o tratamento dos dados colhidos nos questionários, utilizando o software SPSS, algu-mas entrevistas foram também realizadas para complementar a repre-sentação que um grupo constrói em relação ao outro.

Os jovens considerados na amostra, elaborada a partir de dados do IBGE, foram aqueles que, nos anos de 2005 e 2006, período de realização do survey, tinham 15, 16 e 17 anos. Foram aplicados 381 questionários, amostra representativa dessa população. Dispensou-se a interminável dis-cussão sobre o que é juventude hoje para a delimitação da faixa etária. A opção por essa idade, de 15 a 17 anos, foi feita considerando que essa é uma idade importante para a elaboração de visões de mundo.

Nesta pesquisa, cada um dos entrevistados foi classificado em um dos tipos: elite ( jovens cujos pais são dirigentes do setor público e do setor privado, grandes empregadores, pequenos empregadores, profis-

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Juventude e violência 79 ]

sionais autônomos de nível superior, profissionais empregados de nível superior, profissionais estatutários de nível superior e professores de nível superior); médio (filhos de pessoas que têm ocupações de escri-tório, ocupações técnicas e trabalhadores do comércio, ocupações de supervisão, técnicas, artísticas, ocupações médias da saúde e educação, de segurança pública, justiça e correios) e popular (trabalhadores do setor secundário, operários da construção civil, domésticos, catadores e ambulantes). Essa estratificação foi complementada por outro do-cumento da Prefeitura de Goiânia, o mapa da exclusão social, assim como pelas próprias informações do questionário sobre renda, local de moradia, tipo da habitação, número de cômodos, número de banhei-ros, ocupação dos pais, número de carros.

Distribuídos os jovens na tipologia, e definindo assim a hierarquia como elite, médio e popular, foi verificada a significância e se estabe-leceram correlações entre hierarquia social e as demais variáveis da pesquisa. Os resultados, como esperado, demonstraram, de um lado, a enorme distância existente entre os três tipos em termos de separação socioespacial e, de outro, aproximações na visão de mundo.

Quando perguntados onde escolhem os amigos, verificou-se que em torno de 80% dos três tipos escolhem os amigos na escola. É compreensível que a escola seja, nessa faixa etária, o principal lo-cal de sociabilidade. Há de se considerar, entretanto, que a própria escola é segregadora, na medida em que não é possível o acesso de jovens de classes pertencentes ao segmento inferior às escolas da elite e, só muito raramente, aos jovens da pequena-burguesia (tipo médio). Parece haver um enclausuramento mesmo dos jovens da elite na escola. O bairro é o segundo local de sociabilidade, mas apa-rece como variável expressiva apenas para os jovens do tipo médio, com 25,4%. Os motivos da escolha do local que frequentam também revelam a separação. Escolhem o local que frequentam pelo ambien-te e pelas pessoas que o frequentam: 65,4% da elite, 82,2% do tipo médio e 62,2% do tipo popular. Da mesma forma, os ambientes que

[ 80 81 ] Dalva Borges de Souza

frequentam são vistos pelos jovens como restritos ao mesmo gru-po social que o seu, por 43% da elite, e em menor proporção pe-los demais. As barreiras impostas nos ambientes dos jovens da elite não são as mesmas que as dos demais tipos. Como escolhem o local que frequentam pelo ambiente e pelas pessoas que o frequentam e pela indicação dos amigos, esses ambientes serão imediatamente restritos. A separação socioespacial entre os grupos foi confirmada. Solicitados a caracterizar os amigos, as respostas também indicam a separação. Os amigos são vistos pelos jovens como do mesmo nível social e cultural que o seu para 56,3% da elite, 32,7% do tipo médio e 47,3% do tipo popular.

Com tal separação, não há mesmo de haver convivência entre os tipos. Apenas a variável “pessoas que têm as mesmas ideias” poderia indicar alguma escolha a partir de uma seleção mais reflexiva e menos segmentada. Entretanto, ela é quase uniforme entre os grupos, girando em torno de 20% apenas, enquanto que as outras variáveis que indicam escolhas possíveis dentro da mesma classe social, a partir dos capitais cul-tural, social e simbólico, mostram haver uma separação rígida nos três tipos com base nos indicadores que os distinguem dos outros grupos.

No que se refere à violência, na média, 33% dos entrevistados afirmaram que já foram vítimas de assaltos ou furtos. Quando pergun-tados sobre o que têm mais medo, 10% declararam temer a violência, segunda resposta mais frequente.

Sobre as medidas tomadas pela família para evitar a violência, percebe-se a grande diferença de opções entre os tipos, dos quais regis-tro aqui as ocorrências maiores. No tipo elite, 20% não frequentam a periferia ou locais onde habitam pessoas de baixa condição social, em proporção menor, mudaram-se de local de residência, mantêm uma arma em casa e não saem à noite. Isso se repete nos demais tipos, em-bora a reclusão seja maior na elite e no tipo médio.

Já para manter a segurança, há uma enorme diferença também entre os tipos, o que decorre dos recursos econômicos disponíveis. A

Sociologia e educação em direitos humanos

Juventude e violência 81 ]

elite concentra a maior parte dos equipamentos que agregam tecnolo-gia ou altos custos, como guardas, firmas de vigilância privada, câme-ras de vídeo, cercas elétricas, sirenes e alarmes, enquanto que os tipos médio e popular recorrem mais a muros altos e a cães.

Sobre as causas da violência, pode-se afirmar que há muita seme-lhança nas opiniões. Atribuem a violência às desigualdades sociais 83,6% da elite, 65,3% do tipo médio, e 48% do tipo popular. Os que mais sofrem com as desigualdades sociais são os que, em menor percentual, desig-nam essa causa. Essa é uma resposta que, todavia, parece ser padrão na sociedade brasileira. Já aqueles que naturalizam a violência, atribuindo-a a deformidades de caráter dos que a praticam, são 3,6% do tipo elite, 11% do médio e 16% do tipo popular. O interessante foi verificar que 17,4% dos sujeitos do tipo popular atribuem a causa da violência ao pre-conceito, à falta de respeito pelo outro, resposta que aparece em índices mínimos nos tipos que lhe são hierarquicamente superiores.

Sobre as soluções para o problema da violência, as sugestões acompanham o diagnóstico: soluções estruturais são apresentadas por 76,4% da elite, 51,4% do tipo médio e 42,8% do tipo popular. Maior rigor punitivo foi apresentado como solução por 13% do tipo superior, 32% do tipo médio e 33% do tipo popular. Interessante é que, dada a tradição brasileira de selecionar os mais pobres para punir, os jovens das classes populares são os que mais invocam leis mais rigorosas, mais encarceramento, maior presença e maior rigor da polícia.

Embora apontem para problemas estruturais no diagnóstico e para soluções estruturais, não há identificação com o outro. O questionário contemplou algumas questões que permitiram medir o preconceito, principalmente com relação à condição social e à localização no espaço urbano. Perguntados se consideram que os pobres são mais propensos a cometer crimes e infrações, são mal-educados e grosseiros, se são vio-lentos, 50% concordaram com as afirmações. Já em resposta à afirmação de que há muitos “malas” – expressão utilizada por eles nas entrevistas – na periferia da cidade, 92,3% concordaram. Várias outras questões dessa

[ 82 83 ] Dalva Borges de Souza

ordem foram colocadas e as respostas mantêm o mesmo padrão, ou seja, reforçam a segregação socioespacial, a visão do outro, pobre, habitante da periferia como o portador da violência urbana.

O questionário contemplou também questões que permitiram perceber as representações elaboradas sobre os jovens que se localizam no topo da hierarquia social. Em torno de 80% concordam que os jo-vens da elite são fúteis e preconceituosos, e que só querem curtir a vida e cuidar da aparência.

É possível concluir que a percepção da violência urbana está pro-fundamente relacionada à segregação socioespacial na cidade de Goiâ-nia. Há grande semelhança nas respostas de jovens de classes sociais dife-rentes e, portanto, nos termos de Mannheim, a violência urbana provoca experiências conjuntivas que unificam visões de mundo entre os jovens de uma mesma geração. De um lado, há imagens construídas por cada tipo que rejeita o outro, mas, por outro lado, pode-se afirmar que, em relação ao problema da violência urbana, as representações são seme-lhantes. Se os jovens das classes populares representaram da mesma for-ma que aqueles dos demais tipos a si próprios, além de compartilharem a mesma visão de mundo, pode ser também que atribuíam a um outro, ainda mais distante deles em termos de hierarquia social, a condição de moradores da periferia também mais distante e, portanto, violento.

Juventude e violência nas representações da violência urbana dos adultos

Se entre jovens de estratos sociais diferentes as representações se entrecruzam, os adultos constroem uma representação da violência urbana associada aos jovens.

No survey de vitimização9 realizado em treze cidades dos Esta-do de Goiás, a redução da maioridade penal foi considerada medi-

9 Pesquisa Violência Urbana no Estado de Goiás.

Sociologia e educação em direitos humanos

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da fundamental para aumentar a segurança. Os índices variaram de 79,9% a 89,2%. Os jovens, como agentes criminais por excelência, no discurso dos adultos, estão no núcleo do sentimento de inseguran-ça. Integram esse processo social de criminalização as demandas por mais repressão e intensificação da punição, a partir da crença, muitas vezes infundada, na impunidade. A deslegitimação das instituições responsáveis pelo controle da ordem pública leva à busca de soluções individuais para manter a segurança, e a sua outra face é a manifes-tação pública por mais e mais punição, que se expressa na aprovação de penas mais rigorosas.

Essas representações produzem um efeito desestruturador nas re-lações sociais, ao incitar práticas que restringem a sociabilidade, crimi-nalizam o diferente e geram desejos de vingança. Trata-se de um efeito bumerangue, pois, se a insegurança leva ao esvaziamento do espaço público, as soluções individuais não resolvem o problema e aumentam a segregação, o medo e mesmo a violência.

Considerações finais

É possível afirmar, a partir dos dados empíricos, que a violência tem se tornado cada vez mais um problema dos jovens, tanto como autores e, principalmente, como vítimas.

Quando tomamos a construção social da violência, o jovem está também no seu núcleo de representação, o que indica que a orientação das práticas sociais continuará produzindo a sua incrimi-nação (Misse, 2008).

Diante desse quadro, é necessário propor uma nova abordagem da segurança pública, que não seja apenas repressiva, que não tenha uma preocupação exclusiva de punir e sim de alargar os espaços de convivência social. Uma política que seja preventiva e voltada princi-palmente para os jovens, as principais vítimas.

[ 84 85 ] Dalva Borges de Souza

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O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade Revalino Antonio de Freitas

O trabalho ocupa uma dimensão fundamental na vida social. Sua existência resulta das ações realizadas pelos seres sociais. São eles, nas atividades cotidianas para suprirem seus carecimentos, que produzem os meios capazes de assegurar a própria existência e, por conseguinte, o sentido de suas vidas. Para garantir que tais carecimentos pudessem ser saciados, os seres sociais, desde a mais tenra idade da humanidade, precisaram se contrapor à natureza, em seu estado primitivo, transfor-mando-a, a partir da intermediação do trabalho.

Mas a humanização da natureza não se dá de forma unilateral. O trabalho proporciona ao ser social uma apreensão da natureza que lhe permite desenvolver a si mesmo. Modificando a natureza, modifica a si mesmo. Apreendendo a natureza em suas múltiplas possibilidades, ad-quire conhecimento sobre si e suas múltiplas possibilidades. Ao se de-frontar com a natureza, o ser social aciona suas próprias forças naturais visando se apropriar dos recursos da natureza. Seu corpo age de forma a humanizar aquilo que a natureza, em estado bruto, lhe disponibiliza e, consequentemente, ao assim proceder, modifica não somente a na-tureza em si, mas também sua própria natureza (Marx, 1980). Dessa

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forma, o trabalho é constitutivo do ser social, impregna-lhe a vida, flui por seu corpo, é a energia vital que impulsiona suas ações visando à efetivação do que primeiro ele pensou, planejou, projetou, constituiu como arquétipo para, em seguida, adquirir materialidade.

Essa positividade do trabalho, adquirida como criador de valo-res-de-uso, é imprescindível à existência do ser social e o direito ao trabalho lhe é inerente, pois é o ato de trabalhar que lhe dá o estatu-to ontológico, lhe é constitutivo do ser que se humaniza em relação imediata com a natureza. Porém, se esta condição está dada pela possibilidade de se relacionar com a natureza visando à satisfação de seus carecimentos, na medida em que sua relação com a nature-za visa interesses outros, que promovem o trabalho à condição de criador de valores-de-troca, então o que se observa é a destituição do trabalho de sua potencialidade humanizadora, constitutiva do ser social, para se transformar em algo que lhe é estranho. Torna-se, assim, um atributo eivado de negatividade.

De todas as sociedades, a sociedade produtora de mercadorias é a síntese desse processo de estranhamento do ser social em relação ao trabalho que realiza. Ela elevou à enésima potência o estranhamento e a alienação do ser social em relação ao que ele produz. O produtor deixa de ser senhor do seu produto. A objetivação presente no trabalho cede lugar à alienação, posto que o produtor já não é proprietário da-quilo que adquiriu materialidade pelo seu ato criador. O objeto produ-zido pelo ser social já não tem significado, sentido, derivado daquele que o produziu, mas sim por algo externo ao processo de criação, que se erige como um poder autônomo em relação ao trabalhador (Marx, 2004). O trabalho, portanto, é destituído de sua potencialidade criado-ra para se constituir em mero meio de garantir a subsistência diante da exploração do capital. E, como tal, deixa de ser um direito necessário ao ser social para se tornar uma obrigação, uma atividade opressora que lhe despoja de suas potencialidades criadoras para convertê-lo em um ser servil aos interesses de enriquecimento material de outrem.

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A sociedade que tudo reifica, reifica também o trabalho e, por conseguinte, aquele que nela está encarregado de produzir a riqueza reificada. O ser social, nas entranhas dessa sociedade, está condenado a ser mero executor de objetos estranhos a si, mercadorias que estão acima de seus carecimentos vitais, de seus desejos e aspirações. Mero autômato, o ser social engendra, no plano coletivo, ações capazes de romper com esse estado de miserabilidade material e espiritual em que se encontra. E, para que isto aconteça, necessário se faz resgatar o tra-balho à sua condição primeva, qual seja, a de direito, essência vital a partir da qual se constitui o ser social.

Ao longo dos dois últimos séculos, os trabalhadores se viram for-çados a uma dupla luta na defesa de seus interesses. De um lado, a luta em prol de melhorar as condições materiais de vida, posto que subme-tidos a uma degradação e miserabilidade tal que, para garantir a repro-dução imposta pelo capital, necessário se fez lutar em defesa de uma situação social capaz de proteger a força de trabalho da fúria destruido-ra e mesquinha contida na racionalidade do próprio capital. Assim, aos trabalhadores tem sido dada a responsabilidade de garantir que a força de trabalho se preserve em condições apropriadas para garantir não só sua sobrevivência, mas também a ampliação e reprodução do capi-tal. Por isso, toda luta social em defesa de melhores condições de vida tem-se constituído em uma luta em defesa do ser social, mas também uma luta em defesa da manutenção da força de trabalho nele contida. De outro lado, a luta em defesa do direito ao trabalho. Uma luta para assegurar ao trabalhador que ele possa obter, com sua própria força de trabalho, as condições materiais de vida necessárias à sua reprodução. Essas duas lutas, portanto, se articulam, se desenvolvem concomitan-temente, de tal modo que uma separação entre ambas tornaria inviável a existência de uma e de outra.

A resistência dos trabalhadores à exploração social e, por extensão, na defesa do direito ao trabalho, se intensificou na medida em que a so-ciedade produtora de mercadorias foi se consolidando e afirmando seu

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domínio sobre a vida social. Como observa Dolléans (1957), ao analisar o ápice de desenvolvimento da sociedade industrial, o trabalho consti-tuía a armadura de existência dos trabalhadores. Se a vida social não se restringia a ele, era sobre ele que ela estava ancorada, adquiria sentido, pertencimento. E, portanto, lutar por ele como um direito social era lutar pelo reconhecimento da existência do próprio trabalhador.

A luta por esse reconhecimento foi gradativamente se amplian-do, deixando de se ater tão somente ao confronto vis-à-vis com o capital, para se inserir no campo institucional, a partir de uma pers-pectiva centrada no campo da normatividade. Assim, na medida em que as lutas sociais avançavam no sentido de garantir bem-estar so-cial e o direito de cidadania aos trabalhadores, de igual modo, a luta pelo reconhecimento do trabalho como um direito social também adquiria um sentido mais amplo, envolvendo não só as instituições representativas dos trabalhadores, mas também instituições com representação multissocial, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E, neste caso em particular, o reconhecimento do direito ao trabalho tem se dado a partir da normatividade. Essa nor-matividade, por sua vez, expressa o modo como as relações sociais se estruturam assegurando garantias institucionais (Telles, 1994), re-sultantes das ações coletivas na defesa de direitos.

O direito ao trabalho se inscreve, então, na condição de um direito humano, ao qual todo ser social deve possuir. Ele significa, antes de mais nada, o acesso a participar da base material da socieda-de na qual se encontra integrado. Sendo assim, de fazer jus aos bens sociais, materiais e espirituais decorrentes dos acúmulos produzidos por essa sociedade. Muito embora na sociedade assalariada tal con-dição seja assegurada por um estatuto social que lhe é peculiar, o salário, o fato é que o acesso a esse direito deve ser extensivo a todos aqueles que se encontram inscritos nessa sociedade. A luta pela ex-tensão dessa condição tem se constituído em uma luta fundamental na sociedade contemporânea.

Sociologia e educação em direitos humanos

O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 89 ]

Assegurar que esse direito seja universal, independente do tipo de atividade econômica desenvolvida por cada trabalhador, é cada vez mais uma necessidade diante das contradições vivenciadas pela sociedade produtora de mercadorias em seu atual estágio. Com efei-to, a reconfiguração constatada nos últimos decênios no mundo do trabalho tem provocado uma insegurança social que atinge a todos os trabalhadores, indistintamente, sejam assalariados ou não. E, por conta disso, as condições de miserabilidade na classe trabalhadora têm aumentado vertiginosamente.

Essa reconfiguração tem se constituído a partir das novas tec-nologias informacionais, agrupando os trabalhadores distintiva-mente com base na concentração e especialização da atividade pro-dutiva, com graves consequências para o futuro da própria classe trabalhadora e, por extensão, dos seus direitos e proteção social, notadamente no campo do direito ao trabalho. Isso tem levado à constituição de um núcleo de trabalhadores “permanentes”, cada vez mais instável (Gorz, 1995), ao mesmo tempo em que outro nú-cleo de trabalhadores temporários, precários e em tempo parcial se amplia constantemente.

As investigações e o amplo debate acadêmico evidenciam essa clivagem, não obstante as divergências teóricas que possam estabele-cer distinções entre as causas e consequências do fenômeno. Assim, para Freyssinet (2004), constata-se uma “inelutável erosão” do mo-delo rígido, levando a dois tipos de empregos. De um lado, aquele ancorado na seguridade e constituído sobre uma formação realizada ao longo da vida, envolvendo qualificações que são reconhecidas e transferíveis com a mobilidade profissional e inclui a manutenção dos direitos sociais. De outro lado, um mercado de trabalho con-correncial, ancorado na flexibilidade dos salários e na precarieda-de dos empregos. Os riscos, segundo Freyssinet, se encontram na possibilidade de que, diante do acirramento da competitividade, as empresas preservem os empregos para os trabalhadores dotados de

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competências, enquanto o segundo grupo se submete à política da concorrência mais geral, apresentada como solução para resolver o problema do desemprego.1

Por sua vez, Vakaloulis (1993) aprofunda essa divisão, definindo um “núcleo duro”, constituído por um grupo de trabalhadores está-veis, qualificados, bem remunerados e com perspectivas de ascensão profissional, com direitos sociais assegurados. Já a “periferia” se sub-divide entre os assalariados a tempo pleno e os flutuantes do tempo parcial. Os primeiros enfrentam a competitividade de um mercado que joga com a oferta abundante de excedentes para atividades que exige qualificação restrita. Os segundos se encontram submetidos a um pseudoassalariamento e à precariedade do emprego, portando um estatuto jurídico inferior às normas legais que regem o sistema de pro-teção social.2 Por fim, a massa crescente de “excluídos”, constituída por jovens em busca do primeiro emprego, trabalhadores idosos ou com qualificação mínima. Expostos à vulnerabilidade, se pauperizam cada vez mais, formando uma “pobreza da crise”, incapaz de ser absorvida pelo mercado e totalmente desprovida de direitos sociais.

1 Essa cisão não significa, necessariamente, garantia para aqueles que se encontram protegidos, sob o manto do emprego. É uma proteção apenas aparente: “um grande desemprego desestabiliza todos os assalariados, fazendo pesar uma concorrência da ‘crise’, que os divide em ‘estratos’. Os funcionários públicos ou os trabalhadores com estatuto são mais protegidos que os outros. Mas não totalmente. Basta pensar nas ‘desnacionalizações’ de empresas públicas operadas pelo governo conservador inglês, que sugerem certas idéias a todos os dirigentes de países com um forte setor público. A massa dos desempregados pode atingir uma quantidade crítica, tornando frágeis os estatutos assalariados até então ‘protegidos’” (Brunhoff, 1991, p. 93).

2 Como observa Beynon (1997), esses trabalhadores – por ele denominados de “hifenizados” – em tempo parcial, temporários, de emprego casual, ou, ainda, por conta própria, se constituíram na principal fonte de emprego no Reino Unido, nos anos 1980 e 1990. Na França, analisando dados oficiais, Germe (1982) afirma que eles irromperam no mercado de trabalho, de forma mais efetiva, já nos anos 1970 e, desde então, têm apresentado tendência contínua de crescimento.

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O crescimento do número de trabalhadores em situação de preca-riedade e, mais além, de vulnerabilidade, tem levado à constituição de uma “pobreza laboriosa”, assim definida por Concialdi (2004) ou, mais grave ainda, pela distinção que Castel (1998) faz deles, os supranume-rários.3 Essa situação de vulnerabilidade social significa uma regressão nos padrões de vida nas sociedades industrializadas.4 Enquanto isso, nas sociedades intermediárias, de industrialização mais recente, essa situação se agrava diante da fragilidade dos sistemas de proteção social vigentes, dos baixos salários e da intensa busca da competitividade no mercado internacional. A pobreza laboriosa – ou os supranumerários – são em número muito superior. A mundialização do capital produz, em escala planetária, uma massa incessante de despossuídos, de “refu-gos humanos”, na contundente definição de Bauman (2005), resíduos do progresso do mundo industrial e da superfluidade do humano para o capital.

As consequências desse processo são mais nefastas para os traba-lhadores, se observado o que isso provoca na estrutura social, como enfatiza Gorz (1981). Na medida em que se estabelece uma cisão no interior da classe trabalhadora, opõem-se, de um lado, uma massa cada vez maior de trabalhadores permanentemente desempregados e, de outro, uma “aristocracia de trabalhadores protegidos”. E, entre os

3 Eis a descrição que deles faz Castel (1998, p. 530): “ocupam, na estrutura social atual, uma posição homóloga à do quarto mundo no apogeu da sociedade industrial: não estão ligados aos circuitos de trocas produtivas, perderam o trem da modernização e permanecem na plataforma com muita pouca bagagem. Desde então, podem ser o objeto de atenções e suscitar inquietação, porque criam problema. Porém, o problema é o próprio fato de sua existência. Dificilmente podem ser considerados pelo que são, pois sua qualificação é negativa – inutilidade, não-forças sociais – e em geral são conscientes disso”.

4 Segundo Concialdi (2004), a situação dos casais inseridos na “pobreza laboriosa”, analisada a partir da partilha da renda, é próxima àquela constatada há cerca de meio século. Comparados os níveis de vida, a situação é inferior àquela observada nos anos sessenta.

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dois, como a amortecer essa divisão, há um contingente de trabalha-dores precários, submetidos a um trabalho degradado, desqualificado e sem maiores perspectivas sociais.

As mudanças na base tecnológica do processo de trabalho têm desnorteado o processo em si, provocando alterações no mundo do trabalho, promovendo o ressurgimento de práticas de trabalho pretéri-tas e desenvolvendo outras que têm agudizado as condições materiais de vida dos trabalhadores e provocado uma instabilidade geral no que diz respeito ao direito ao trabalho. Entre essas novas (velhas) práticas, se sobressai o trabalho análogo à escravidão, que sintetiza, em sua es-sência, a negação do direito ao trabalho.

Nos últimos decênios, a ocorrência de trabalho análogo à escravi-dão tem aumentado substancialmente. Estimativas oficiais internacio-nais registram a existência de 12,3 milhões de trabalhadores nessa con-dição atualmente (OIT, 2005). Em inúmeros países, essa prática tem se generalizado, com a escravidão por dívida, descendência, trabalho doméstico, dentre outras formas (Sharma, 2008), envolvendo homens, mulheres e crianças.5

A OIT considera que, não obstante certas diferenças entre as formas “tradicionais” e “modernas” de escravidão,6 não deixa de ha-ver elementos comuns entre elas, existindo mesmo uma conexão entre ambas, nos países dependentes. De certo modo, no caso últi-mo, isto pode ser observado nos países latino-americanos, particu-larmente o Brasil.

5 No caso do trabalho infantil, a Anti-Slavery International (ASI) tem se preocupado com a disseminação decorrente de “dívida: mendicância forçada; trabalho doméstico; trabalho de criança para uso nas piores formas de trabalho infantil, como, por exemplo, sua utilização como jóqueis no Oriente Médio” (Sharma, 2008, p. 42).

6 De acordo com a OIT, as formas “tradicionais” se fundamentam em crenças, costumes ou estruturas produtivas, muitas vezes legadas pelo colonialismo, para disseminar a escravidão. Por sua vez, as formas “modernas” se encontram vinculadas à “globalização e as recentes tendências migratórias” (OIT, 2005).

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O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 93 ]

No caso brasileiro, o trabalho análogo à escravidão tem um pre-cedente a ser considerado. A ideologia do trabalho vigente desde o período colonial jamais deixou de advogar o trabalho como uma obri-gação. Por conta disso, não só a sociedade se mostra omissa quanto a essas questões como até as autoridades tratam de amenizar os efei-tos perversos dessas práticas de trabalho.7 Diante disso, o direito ao trabalho sempre foi uma falácia. Ao longo do tempo, o espírito e os interesses da Casa Grande foram transplantados para as cidades, sem se ausentar dos latifúndios. Assim, é recorrente o registro de trabalho forçado, tanto no campo quanto nas cidades.

Nos últimos anos, a partir da pressão de determinadas institui-ções sociais (com a notável participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT)), conjugadas com uma sensível mudança das políticas governa-mentais quanto a esse tipo de trabalho, constata-se uma maior visi-bilidade do fenômeno, o que tem provocado uma certa reação, com desdobramentos sociais e normativos.8

De todo modo, as condições para a erradicação do trabalho aná-logo à escravidão no Brasil ainda têm um longo caminho pela frente. As dificuldades vão desde a impunidade dos transgressores até aquelas decorrentes de uma possível integração social dos trabalhadores vitima-dos por esse tipo de trabalho (Villela, 2008). Não se pode desconsiderar a forte pressão, particularmente, do latifúndio, mas extensiva a amplos

7 Não deixa de ser ilustrativo dessa visão, a respeito do trabalho, a resposta dada pelo embaixador do Brasil, no Reino Unido, a uma carta da ASI com recomendações para erradicar o trabalho escravo. Isto em 1994. Na oportunidade, em dado momento de sua resposta, o embaixador brasileiro afirma: “finalmente, recordaria a importância da utilização dos termos com precisão ao tratar essas questões. No Brasil, a maioria dos casos não se enquadra na categoria de escravidão, conforme definida na Convenção 29 da OIT” (Sutton, 1994, p. 153).

8 O fato mais significativo, do ponto de vista normativo, foi a aprovação da Lei nº. 10.803, em dezembro de 2003. Esta lei altera o Código Penal e tipifica o trabalho em condição análoga à de escravidão, estabelecendo penas de reclusão e multas.

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setores do capital, aí envolvido o agronegócio, e das bancadas parla-mentares, sobretudo aquelas compostas por ruralistas (Esterci; Figuei-ra, 2008). De certa forma, descortinam-se possibilidades, ainda que tí-midas, de uma nova visão acerca dessa prática compulsória de trabalho.

No plano estrutural, ainda, não se pode esquecer que esse tipo de trabalho tem uma forte conexão com os fluxos migratórios. Os traba-lhadores migrantes encontram-se sujeitos a toda sorte de exploração. O atual estágio de mundialização do capital tem levado um número cada vez maior de trabalhadores a uma situação de vulnerabilidade, cujo desdobramento passa pelo tráfico de pessoas e o trabalho aná-logo à escravidão. Se, no passado, os Estados nacionais estabeleciam políticas migratórias que, de certa forma, disciplinavam o fluxo de trabalhadores, no presente o que se constata é a ausência de políticas migratórias capazes de oferecer algum tipo de garantia aos migrantes. As políticas migratórias atuais, no plano internacional, se caracterizam pela repressão e restrição, com o objetivo de conter a circulação de trabalhadores, além do recrudescimento de manifestações xenófobas.

Esse quadro sombrio não pode ser caracterizado como os subter-râneos do mundo do trabalho. Seja nas sociedades industriais avança-das, seja nas sociedades dependentes da África, Ásia e América Latina, a situação desses trabalhadores fica cada vez mais visível.

As condições em que se manifestam tais fenômenos, conjugados com a naturalização em curso das políticas neoliberais, têm aprofun-dado essa tragédia humana, com graves consequências para o estatuto social do trabalho e dos trabalhadores. Pobreza laboriosa, supranu-merários, refugos humanos. Qualquer que seja a denominação que se conceda a esses seres sociais, o que se constata é que eles se encontram em uma situação de vulnerabilidade social de tal magnitude que a pró-pria concepção de direito ao trabalho, duramente construída mediante lutas sociais levadas a termo nos dois últimos séculos, torna-se secun-dária diante da luta pela simples sobrevivência diante da barbárie pro-movida pelo capital.

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O direito ao trabalho diante de sua vulnerabilidade 95 ]

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Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário Tania Ludmila Dias Tosta

Uma nova configuração das relações de trabalho

As mudanças no mundo do trabalho das últimas décadas, em um cenário de crise e aumento da competitividade mundial, levaram a uma nova configuração do trabalho e perda dos direitos dos trabalhadores. O sistema de regulação social constituído pelo Estado para proteger o cidadão da assimetria das relações de trabalho sofreu uma desestrutu-ração com a proliferação de novas formas de contrato sem as garantias do emprego regulamentado. A partir dos anos 1970, houve uma re-estruturação do capital visando recuperar seu padrão de acumulação por meio de uma reorganização política e econômica com a desregu-lamentação dos direitos e ampliação da flexibilização das relações de trabalho (Antunes, 1999). O mercado passou a determinar a relação de emprego, ajustando as formas de contratação e de remuneração dos trabalhadores de modo a reduzir seus custos e aumentar o lucro.

Observa-se um aumento da insegurança para os trabalhadores, com o deslocamento dos riscos do capital para o trabalho. Com base em da-

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dos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômi-co (OCDE) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Standing (1997) constata que na maioria dos países industrializados cerca de um terço da força de trabalho estava inserido no mercado de trabalho de for-ma precária em 1993. Assim, pode-se verificar um aumento da regulação pelo mercado, já que a maior parte desses trabalhadores não tem a mes-ma proteção dos empregados assalariados regulares (Standing, 1997).

Esse processo apresenta algumas particularidades no Brasil. Dife-rentemente dos países centrais em que se constituiu a cidadania salarial vinculando trabalho, direitos e proteção social (Castel, 1998), o Brasil não chegou a completar a integração social pela relação assalariada, já que cerca de metade da população não tem acesso aos direitos deriva-dos da relação de trabalho. Há traços históricos de flexibilidade que po-dem ser apontados pela facilidade de demitir, como a não formalização do vínculo e a fragilidade da fiscalização (Krein, 2007).

Nesse sentido, o novo tipo de flexibilização que se estabelece no Brasil a partir da década de 1990 amplia ainda mais a liberdade do mer-cado em definir a forma de contratação da força de trabalho, intensi-ficando a precarização. Com isto, além dos tradicionais trabalhadores informais, cresce o número de contratações flexíveis – sem o vínculo e os direitos do emprego regulamentado – entre indivíduos que anterior-mente tinham a garantia de uma melhor inserção.

As novas formas de trabalho podem ser explicadas com base na ideia de flexibilização, como processo que visa alterar a regulamenta-ção do mercado de trabalho, buscando reduzir a proteção às relações de trabalho e a garantia de direitos dos trabalhadores (Holzmann; Pic-cinini, 2006). Esse processo pode ser vinculado à nova fase de mundiali-zação e financeirização do capitalismo, em que a liberdade do mercado se impõe como valor absoluto, determinando

a flexibilização dos processos de trabalho, do mercado de trabalho, das leis trabalhistas e dos sindicatos, definindo o caráter da reestruturação

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Diferenças de gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário 99 ]

produtiva mais recente, especialmente no que se refere à estratégia das empresas na adoção dos novos padrões de gestão do trabalho. (Druck, 2007, p. 15).

A despeito das várias facetas da flexibilização do trabalho, a ênfase aqui recai sobre a flexibilização da regulamentação dos contratos. Esta pode ser compreendida como alternativa à relação de emprego padrão criada com o objetivo de diminuir os custos e barreiras quanto à con-tratação e demissão da força de trabalho (Krein, 2007).

A precarização é definida por Galeazzi (2006) como as diferentes in-serções atípicas que se multiplicaram a partir da reestruturação produtiva e que se caracterizam pela redução de direitos, além de condições de tra-balho inferiores ao padrão assalariado. Com a degradação das condições de trabalho ocorrida nos anos 1990, houve uma grande disseminação do uso do conceito de precarização, suscitando observações críticas por par-te de alguns autores (Freitas, 2000; Druck, 2007; Leite, 2008).

Em análise sobre os conceitos de flexibilização e de precarização do trabalho, Druck (2007) identifica alguns pontos em comum na produção acadêmica recente no Brasil e na França. Para a autora, o debate sobre a precarização do trabalho pode ser relacionado aos resultados da flexibili-zação e resume-se principalmente à ideia de perda de direitos e degrada-ção das condições de saúde e trabalho. Outras noções também são cita-das, como informalização do trabalho, fragmentação dos trabalhadores, aumento do individualismo, fragilização e crise dos sindicatos.

Partindo de tais noções, o presente estudo busca circunscrever melhor o conceito de precarização, associando-o à condição em que estão presentes outras variáveis, principalmente a insegurança no trabalho. Entende-se o trabalho precário, portanto, com base em um conjunto de dimensões elaboradas por Rodgers (1989), como incerteza na continuidade do trabalho, falta de controle do processo de trabalho, ausência de proteção social e baixa remuneração. En-tretanto, devem ser considerados diferentes graus de vulnerabilida-

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de possíveis entre o trabalhador seguro e o precário. A concepção é aprofundada por Vosko (2006), que parte de uma visão multidi-mensional, refletindo as diferenças de contextos e posições, e associa o emprego precário a benefícios sociais limitados, insegurança no trabalho, baixos rendimentos e riscos para a saúde. A pesquisadora canadense percebe o trabalho precário ainda com foco na interação entre relações sociais e as condições políticas e econômicas.

A identificação da nova configuração das relações de trabalho como uma questão social vem da percepção de que haveria uma pro-liferação de modalidades de inserção, afetando diferentes setores e grupos de trabalhadores, com maior precarização do trabalho. É nes-se sentido que se procura discutir a possibilidade de constituição de um novo perfil de indivíduos atingidos pela precarização do trabalho, analisando a incidência de formas de contratação de trabalhadores de acordo com variáveis como gênero, raça e escolaridade.

Precarização do trabalho no Brasil

O mercado de trabalho no Brasil apresenta dois movimentos dife-rentes nos últimos anos. Há um período inicial de grande perda de em-pregos em meados dos anos 1990, com o aprofundamento da inserção do país no comércio internacional e a intensificação da reestruturação produtiva, gerando altos níveis de informalização e diminuição da ren-da média do trabalhador. A partir de 2003, há um período de melhora dos indicadores do mercado de trabalho, tendo em vista uma conjun-tura mais favorável, com investimentos em políticas de estímulo ao emprego e renda e maior fiscalização do trabalho pelos órgãos gover-namentais. No final de 2008, esboçou-se uma nova retração decorrente da crise financeira mundial, no entanto o mercado de trabalho brasilei-ro se recuperou e os empregos voltaram a crescer.

O primeiro momento se configurou como uma verdadeira crise do emprego. Os anos 1990 ficaram marcados como um tempo som-brio, não apenas pela redução da quantidade, mas também da qualida-

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de das ocupações (Dieese, 2001). Foi a partir daí que se intensificaram a precarização das relações de trabalho e a flexibilização das contrata-ções com a reestruturação do mercado de trabalho.

O aumento da flexibilização traz consequências para além da sim-ples mudança da forma de contratar. Em regra, a diminuição do assala-riamento denota uma deterioração da qualidade dos postos de trabalho e uma maior dificuldade de vislumbrar uma perspectiva de longo prazo para o trabalhador. A insegurança é o resultado de uma relação de tra-balho sem as garantias que foram construídas com a sociedade salarial.

Utilizando dados da pesquisa de emprego e desemprego do De-partamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as formas de inserção no mercado de trabalho que não se-guem o padrão de emprego assalariado registrado podem ser abarca-das pelas categorias de trabalhadores vulneráveis e contratações flexi-bilizadas ou fora da modalidade padrão.1 Os trabalhadores em situação de vulnerabilidade englobam os trabalhadores domésticos, os assala-riados sem carteira do setor privado, os autônomos para o público e os trabalhadores não remunerados, enquanto os contratados flexibiliza-dos seriam os assalariados sem registro do setor público e privado, os terceirizados e os autônomos contratados para a empresa.2

1 As duas categorias são utilizadas pelo Dieese para indicar situações diferentes, mas foram reunidas aqui para representar duas possibilidades de trabalho precário. É preciso ressaltar que os assalariados sem carteira assinada do setor privado estão presentes nas duas situações.

2 O autônomo para o público é a pessoa que explora seu próprio negócio, sozinho ou com sócio, ou ainda com a ajuda de trabalhadores familiares e, eventualmente, tem algum ajudante remunerado em períodos de maior volume de trabalho. O indivíduo classificado nessa categoria presta os seus serviços diretamente ao consumidor, sem ser o intermediário de uma empresa ou pessoa, tendo autonomia para organizar seu próprio trabalho e, portanto, para determinar sua jornada de trabalho. Já o autônomo para empresa é o indivíduo que trabalha por conta própria sempre para determinada empresa, sem estar sob o controle direto da empresa, tendo, portanto, liberdade para organizar seu próprio trabalho.

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O uso de tais categorias permite quantificar os trabalhadores que não têm acesso à proteção social do emprego regulamentado. Cada uma representa um aspecto do trabalho precário. Enquanto os traba-lhadores em situação de vulnerabilidade estão próximos da noção mais tradicional de informalidade, os contratados fora da modalidade padrão vinculam-se à ideia das novas formas de trabalho criadas com o proces-so de flexibilização a partir das mudanças estruturais no trabalho.

Segundo pesquisa do Dieese, as regiões metropolitanas que apre-sentaram maior intensificação de contratações fora da modalidade pa-drão até o fim dos anos 1990 foram São Paulo e Porto Alegre.3 Em São Paulo, região com grande concentração de indústrias, a contratação flexibilizada passou de 20,9% do total de postos gerados pelas empre-sas em 1989 para 33,1% em 1999. O percentual na região de Porto Ale-gre passa de 17,8% em 1993 a 24,8% em 1999. Já no Distrito Federal os números vão de 22,2% de contratações flexibilizadas em 1992 a 26,4% em 1999 (Dieese, 2001).

Depois do período de retração do mercado de trabalho do Brasil, a partir de 2003-2004 há uma forte expansão de novas ocupações, sen-do uma grande parte composta por empregos formais. No entanto, ainda há um grande percentual de contratações flexibilizadas, confor-me pode ser visto na Tabela 1.

Confrontando os dados das contratações flexibilizadas em 2006 com os de 1999, observa-se que a única região que apresenta um au-mento significativo é o Distrito Federal, que passa de 26,4% para 31% de flexibilizados. São Paulo sofre um acréscimo ínfimo (de 33,1% para 33,7%) e as demais contam uma redução desse tipo de contrato no ano de 2006, apesar de todas terem passado por um aumento dessa modali-dade de contratação ao longo do período de 1999 a 2004.

3 Considerando-se as regiões metropolitanas participantes da pesquisa de emprego e desemprego realizada pelo Dieese: Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.

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Tabela 1 – Evolução das contratações flexibilizadas: regiões metropolitanas e Distrito Federal (em %)

Região metropolitana 1999 2004 2006

Distrito Federal 26,4 31 31

Belo Horizonte 27,2 28,7 25,4

Porto Alegre 24,8 26,4 24,7

Recife 35,8 37,4 35,4

Salvador 35,4 35,6 33,9

São Paulo 33,1 35,6 33,7Fonte: Tosta (2008)

Flexibilização e vulnerabilidade no Distrito Federal

Seguindo a tendência do Brasil, o mercado de trabalho do Distrito Federal também foi marcado por período recente de elevação do de-semprego e da flexibilização na contratação da mão de obra. A região em que se localiza a capital do país se singulariza por apresentar uma realidade específica, com uma economia predominantemente baseada no setor de serviços e na administração pública. Decorre dessa realida-de uma série de características próprias na configuração do trabalho da região, que são ao mesmo tempo bastante ilustrativas do quadro geral do país. É uma região que apresenta os mais altos rendimentos e o maior grau de desigualdade social do país, além de elevado nível de proteção social e o mais expressivo aumento de contratados flexibiliza-dos entre as regiões pesquisadas pelo Dieese.

Pela posição de destaque quanto ao crescimento dos postos de tra-balho de contratação flexibilizada, é importante detalhar a evolução das diversas formas de contratação no Distrito Federal a partir de 1992 (Tabe-la 2). Segundo os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Dis-trito Federal (PED-DF), realizada pelo Dieese, os postos de contratação padrão diminuíram de 77,8% para 69% do total de postos de trabalho gerados por empresas em 2006. Dentro dessa categoria, o dado mais ex-pressivo é da queda do percentual de assalariados com carteira do setor

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público, que despencaram de 15,1% em 1992 para 4,4% em 2006. Estes números podem ser explicados pela política de redução do tamanho do funcionalismo público empreendida nos anos 1990 em nome de uma re-forma do Estado (Nogueira, 2006). Ao se observar os percentuais do fi-nal da década de 1990, percebe-se que os servidores estatutários também sofreram um significativo decréscimo – de 33,5% para 25,1% em 2006. Enquanto isso, os postos de trabalho de assalariados registrados do setor privado foram os únicos que aumentaram em relação ao total de postos gerados dentro da contratação padrão, como pode ser visto na Tabela 2.

Tabela 2 – Evolução da distribuição dos postos de trabalho gerados por empresas, segundo formas de contratação – Distrito Federal, 1992–2006 (em %)

Formas de contratação 1992 1999 2006

Contratação padrão 77,8 73,6 69

Com carteira – privado 33,8 34,4 39,5

Com carteira – público 15,1 5,7 4,4

Estatutário 28,8 33,5 25,1

Contratação flexibilizada 22,2 26,4 31

Sem carteira – privada 10,6 11,2 10,8

Sem carteira – público 1,1 3,5 3,4

Assalariados terceirizados 6 8,1 12

Autônomos para empresa 4,5 3,5 4,8

Total de postos de trabalho 100,0 100,0 100,0Fonte: Tosta (2008)

Em relação aos contratados fora da modalidade padrão, a situação se inverte. De 22,2% dos postos em 1992 passou-se a 31% em 2006. Aqui os números mais expressivos são dos terceirizados, que, de 6%, aumen-tam para 12% do total de postos. Os assalariados sem carteira do setor pú-blico também subiram de cerca de 1% para 3,4%. Contrariamente ao que ocorreu nas outras regiões, os empregados sem registro do setor privado tiveram um crescimento mais discreto no Distrito Federal em relação ao total de postos gerados, passando de 10,6% para 12% em 1998 e depois

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diminuindo para 10,8% em 2006. Já os autônomos para uma empresa oscilaram para baixo ao longo dos anos e estabilizaram-se em 2006, tam-bém com um percentual pouco acima do de 1992 (4,8% versus 4,5%).

Com esses dados, constata-se que a grande novidade do mercado de trabalho do Distrito Federal está na forte ampliação das contrata-ções flexibilizadas, confirmando o aumento da precarização do traba-lho também na região conhecida pelo alto nível de empregos públicos. É provável que grande parte dos postos eliminados entre estatutários e assalariados com carteira assinada no setor público tenha dado lugar para os terceirizados e assalariados sem carteira, que passam a realizar o mesmo trabalho sem as garantias de quem tem um emprego prote-gido e acesso aos direitos trabalhistas.

Assim, o Distrito Federal se destaca pelo crescimento de contrata-ções flexibilizadas. Enquanto os ocupados em geral subiram 60% e os tra-balhadores registrados diminuíram sua participação no total de ocupados de 1992 a 2006, os trabalhadores flexibilizados dessa região aumentaram 135%. Os contratados terceirizados e os assalariados sem registro apare-cem como os maiores responsáveis pelo avanço da precarização na região.

Com base na proposta de analisar a precarização do trabalho den-tro da realidade específica do mercado de trabalho do Distrito Federal, optou-se por usar as categorias de trabalhadores em situação de vul-nerabilidade e dos contratados flexibilizados para caracterizar empiri-camente o perfil dos trabalhadores precarizados dessa região. Assim, valendo-se de dados levantados pela Pesquisa de Emprego e Desem-prego do Distrito Federal (PED-DF), foi possível definir quem são esses trabalhadores e quais as transformações pelas quais passaram ao longo do período de 1992 a 2006. 4

4 Conforme pesquisa realizada a partir das estimativas da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF) com dados de 1992 a 2006 para a tese de doutorado Antigas e novas formas de precarização do trabalho: o avanço da flexibilização entre profissionais de alta escolaridade. Para mais detalhes, ver Tosta (2008).

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Gênero, raça e escolaridade na configuração do trabalho precário

Uma análise do perfil dos trabalhadores é importante para uma melhor compreensão da precarização do trabalho. Dessa forma, um cruzamento dos atributos pessoais desses trabalhadores aponta para uma caracterização da situação do trabalho no Distrito Federal. Ho-mens e mulheres, brancos e negros, analfabetos e graduados sofrem com o trabalho precário, que se apresenta de forma cada vez mais generalizada na sociedade. Observa-se, porém, que algumas catego-rias são mais representativas entre os indivíduos que não possuem ga-rantias em seu trabalho. E algumas categorias estão assumindo uma posição nova, modificando significativamente o cenário do trabalho precário da região.

Constatou-se que a precarização do trabalho atingiu a população de forma diferenciada de acordo com o sexo e a cor. Confirmando a interação apontada por Vosko (2006) entre trabalho precário e relações raciais e de gênero, mulheres e negros estão em lugar “privilegiado” em termos do aumento de contratações flexibilizadas. Categorias tra-dicionalmente discriminadas no mercado de trabalho, trabalhadores negros e trabalhadoras do sexo feminino lograram atingir uma posição notável em termos de crescimento das contratações, à custa de seus direitos e de uma possibilidade de planejamento a longo prazo.

Os estudos sobre relações raciais e de gênero são fundamentais para compreender as desigualdades que se configuram não apenas no ambiente do trabalho, mas atravessam a sociedade. O debate sobre os conceitos de gênero e raça permitiu desnaturalizar as diferenças e des-velar relações de dominação e opressão construídas socialmente. Gêne-ro e raça podem ser considerados dois importantes eixos estruturantes da desigualdade no Brasil. Ao focalizar mais especificamente as relações de trabalho, as desigualdades se manifestam no alto índice de desem-prego, na menor formalização do emprego, nas diferenças salariais, na segregação ocupacional e nas barreiras à ascensão profissional não só

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para mulheres, como indica Cappellin (2004), mas também para traba-lhadores negros (Dieese, 2006; Osório, 2006; Pinheiro et al., 2008).

Ao analisar a relação entre trabalho e gênero nos últimos anos, Bruschini (2007, p. 561) conclui que, mesmo apresentando progressos como o aumento do percentual de trabalhadoras do sexo feminino e a ocupação de postos em profissões de prestígio, “a inserção das mu-lheres no mercado de trabalho brasileiro tem sido caracterizada atra-vés do tempo pela marca da precariedade”. Baseando-se em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005, a autora aponta que 33% da força de trabalho feminina (o maior contingente de trabalhadoras) se inseria em um grupo de ocupações extremamente precárias: de empregadas domésticas, de trabalhadoras não remunera-das e das mulheres que trabalham para o próprio consumo e o consu-mo familiar, principalmente no setor agrícola.

Pesquisas que tratam do cruzamento entre indicadores de cor/raça no mercado de trabalho brasileiro chegam a resultados semelhantes. Isto pode ser visto, por exemplo, em Retrato das desigualdades de gênero e raça, trabalho realizado em parceria entre o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), o Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada (Ipea) e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) (Pinheiro et al., 2008). As desigualdades podem ser encontradas desde o acesso à educação e saúde, até a ocupação e renda. Ao comparar homens brancos e homens negros, dados nacionais do IBGE de 2007 mostram que a situação do trabalho sem carteira apresenta-se mais fre-quente entre os negros que os brancos (23,4% contra 16,3%).

A pesquisa indica que a maior vulnerabilidade pode ser encontra-da entre as mulheres negras, que apresentam as mais altas proporções de trabalho precário e menores índices de renda. Também estão na pior posição em termos de taxa de desocupação: em 2007 apresenta-ram uma taxa de desemprego de 12,4%, comparada às taxas para as mulheres brancas (9,4%), para os homens negros (6,7%) e para os ho-mens brancos (5,5% ) (Pinheiro et al., 2008, p. 25).

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Retornando à pesquisa sobre o mercado de trabalho do Distrito Federal (Tosta, 2008), os dados confirmam as estatísticas nacionais a respeito da desigualdade de raça e gênero. Conforme visto a seguir, mulheres e negros estão em posição de destaque entre as categorias de trabalhadores precarizados (Tabela 3).

Tabela 3 – Estimativa de categorias de trabalhadores segundo sexo e cor – Distrito Federal (1992 e 2006)

Vulneráveis Contrataçãoflexibilizada

Contratação padrão

Ocupados

1992 2006 1992 2006 1992 2006 1992 2006

Masculino 82.425 128.381 62.293 123.287 204.454 286.285 351.221 532.937

Feminino 109.168 185.415 31.541 97.835 129.223 206.203 269.190 478.011

Negro 88.559 222.472 41.810 145.484 117.752 309.566 241.510 660.313

Não negro 103.035 91.774 52.024 75.638 215.925 182.922 378.901 350.635

Total 191.593 314.246 93.834 221.122 333.677 492.488 620.411 1.010.948Fonte: Tosta (2008)

Em relação ao sexo, apesar de haver maior número de homens ocupados, a quantidade de mulheres com trabalho vulnerável é maior no Distrito Federal, tanto em 1992 como em 2006. Isso pode ser ex-plicado pela grande representatividade das trabalhadoras domésticas entre as mulheres em situação de vulnerabilidade. Ao contabilizar o percentual de cada categoria em relação aos ocupados, percebe-se que 38,8% das mulheres ocupadas são trabalhadoras vulneráveis e 43,1% são contratadas dentro da modalidade padrão. Enquanto isso, apenas 24,1% dos homens ocupados são vulneráveis e 53,7% têm contrato padrão. Em relação aos contratados flexibilizados, 23,1% dos homens ocupados são contratados fora da modalidade padrão e 20,5% das mu-lheres ocupadas estão na mesma situação.

Analisando a variação de 1992 a 2006, houve uma ampliação de 77,6% no total de mulheres ocupadas, com um aumento um pouco menor de vulneráveis e um pouco maior de não vulneráveis. Con-

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siderando o tipo de contratação, entre as contratadas flexibilizadas há um aumento de 210,2%, quase três vezes mais que o aumento de ocupadas, enquanto as contratadas dentro da modalidade padrão apresentam um crescimento menor que o das ocupadas (59,6%). A evolução dos números do sexo masculino revela-se um pouco mais discreta. O aumento dos homens ocupados foi de 51,7%, com uma elevação um pouco maior entre os vulneráveis e ligeiramente menor entre os não vulneráveis. Quanto à contratação, repete-se um acrés-cimo maior entre os flexibilizados (97,9%) e menor entre os trabalha-dores de modalidade padrão (40%).

É interessante notar o significativo aumento do contingente de negros em todas as categorias indicadas de 1992 a 2006, dos vulnerá-veis aos ocupados em geral. Enquanto os negros ocupados aumen-tam em 173,4%, há um crescimento um pouco menor entre os vulne-ráveis e contratados na modalidade padrão e um pouco maior entre os não vulneráveis. Porém, entre os negros contratados à margem da modalidade padrão, ocorre um forte aumento de 248%. Já os não negros sofrem uma queda em todas as categorias, com exceção dos contratados flexibilizados, que aumentam em 45,4%. Os não negros ocupados diminuem 7,5%. O decréscimo é maior entre os vulnerá-veis e os contratados na modalidade padrão e um pouco menor entre os não vulneráveis.

Apesar do número maior de negros até mesmo entre os traba-lhadores não vulneráveis em 2006, ao se verificar os percentuais de cada categoria em relação aos ocupados, percebe-se maior proporção de trabalhadores não negros entre as categorias de trabalhadores mais protegidos e menos vulneráveis. Entre os ocupados não negros, 52,2% são contratados segundo a modalidade padrão e 26,2% são vulnerá-veis. Já entre os ocupados negros, 46,9% têm contrato padrão e 33,7% são vulneráveis. Por outro lado, o percentual de contratados fora da modalidade padrão é quase igual em relação ao número de ocupados de cada segmento: 22% dos negros e 21,6% dos não negros.

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Os dados relativos a sexo e cor confirmam, portanto, a forte de-sigualdade de gênero e raça no mercado de trabalho do Distrito Fede-ral. Enquanto há um aumento considerável de indivíduos trabalhando sem vínculo empregatício, mulheres e negros destacam-se pelo grande crescimento de contratos precarizados entre os anos pesquisados.

A caracterização dos trabalhadores precários no Distrito Federal guarda ainda um dado inesperado: o grau de escolaridade. Apesar da tendência a vincular o trabalho precário a baixos níveis de escolarida-de, o crescimento de posições precarizadas entre 1992 e 2006 revelou--se mais expressivo entre os trabalhadores com ensino médio e, princi-palmente, entre os que têm ensino superior.

Segundo as estimativas da PED-DF, se os níveis de escolaridade dos contratados flexibilizados forem contabilizados de forma desagregada, a maior proporção tem ensino médio (cerca de 95 mil pessoas) em 2006. Contudo, a soma dos contratados analfabetos com os que cursaram o fundamental incompleto e o completo ultrapassa esse número (chegan-do a 103.082 indivíduos). Entretanto, a questão fundamental a ser enfa-tizada é que o grau de crescimento dos flexibilizados ao longo dos anos pesquisados é bem maior entre os detentores de maior escolaridade. En-quanto os ocupados de ambos os graus de escolaridade aumentaram pouco mais de duas vezes de 1992 a 2006, os contratados de nível supe-rior aumentaram quase sete vezes de 1992 para 2006. Em seguida, os de nível médio cresceram quase seis vezes (Tosta, 2008).

Assim, os dados identificam uma grande ampliação da precariza-ção entre profissionais de alta escolaridade. Ainda que tenha havido um importante aumento da escolaridade dos trabalhadores, muitas vezes estimulado pelo discurso de maiores possibilidades de conseguir um emprego, a elevação das pessoas com nível superior em posições precá-rias foi maior que a do total de ocupados com esta escolaridade. Mesmo buscando maior qualificação e constante aperfeiçoamento, profissionais altamente escolarizados passam também a conviver com a instabilidade de uma relação de trabalho em que não há proteção nem garantias.

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Considerações finais

Para finalizar, é possível apontar o perfil geral de trabalhadores vulneráveis e flexíveis no Distrito Federal. Mesmo com os dados apon-tando a extensão do trabalho precário para uma grande variedade de ocupados da região, há aqueles que são mais representativos de cada uma das categorias.

A pesquisa permitiu a apreensão dos atributos que estariam rela-cionados às categorias de trabalhadores vulneráveis e de contratados flexibilizados no ano de 2006. Em suma, o perfil do vulnerável típico da região seria o de uma mulher, negra, adulta, chefe de família, com ensino fundamental incompleto, trabalhadora doméstica sem registro, com rendimento de R$ 378,81. Já o perfil do flexibilizado é um pou-co diferente: seria do sexo masculino, negro, adulto, com escolaridade média, terceirizado da administração pública, com rendimento de R$ 754,39 (Tosta, 2008). Nota-se que enquanto a trabalhadora vulnerável acumula uma série de características como sexo, cor e escolaridade que se articulam e contribuem para torná-la mais vulnerável, o contra-tado flexível apresenta características mais próximas à maior parte dos ocupados da região. Apesar da menor vulnerabilidade da segunda ca-tegoria, pressupõe-se que isto revele um novo perfil de precarização do trabalho de indivíduos com atributos pessoais que, em outros tempos, lhes garantiam uma melhor inserção no mercado de trabalho.

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Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior Dijaci David de Oliveira

O incrível é crível

Mas o possível

É impossível.

Millôr

No Brasil, de acordo com dados coletados no último Exame Nacional de Cursos (Provão), somente 3,6% dos formandos se declararam ne-gros. A maioria se considera branca (72,1%), enquanto 20,4% se define pardo ou mulato. Do total de universitários da raça negra, 4,5% estu-dam em instituições públicas. Correio Braziliense, 27/4/2004.

Introdução

Ao longo da história do Brasil são visíveis pelos menos dois pro-cessos distintos com referência à interação com o negro: o branquea-mento e a miscigenação. Ambos foram frutos de longos debates entre os precursores do pensamento social brasileiro. As políticas e a ideo-logia do branqueamento tinham como pressuposto a construção de

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uma nação majoritariamente branca como desejavam Nina Rodrigues (Skidmore, 1976), Sílvio Romero (Skidmore, 1976; Aguiar, 2000a, b), Oliveira Vianna (Sodré, 1965; Skidmore, 1976) entre outros. Por essa matriz, a população negra era atrasada, não evoluída e representava uma séria ameaça para o futuro do Brasil como afirmava um dos pais das teorias racistas do século XIX, o Conde de Gobineau (Raeders, 1988, 1997). Uma das soluções para a constituição de uma nação de-senvolvida seria, então, por meio de uma política migratória, ampliar a presença de brancos no Brasil. Quanto aos negros, conforme o pensa-mento de Gobineau, o tempo se encarregaria de eliminá-los (Raeders, 1997).1 Hoje, em pleno século XXI, o debate sobre o status social do negro no Brasil não apenas incomoda muita gente como ainda perma-nece sub-representado na esfera social. Podemos perceber o incômodo do debate sobre o status do negro por meio da recepção da proposta de adoção de cotas raciais para o ensino superior público no Brasil.

A aplicação de programas de cotas para negros (pretos e pardos) nos vestibulares das universidades públicas brasileiras tem produzido vários debates no Brasil sobre esse tipo de política pública específica. As reações, como costumam dizer os jornalistas de plantão, são “en-fáticas” e “apaixonadas”. Por trás dessas características inúmeros ar-gumentos foram e ainda são apontados tanto para justificar quanto para atacar as proposições de inclusão dos negros no ensino público superior brasileiro, por meio de políticas de ação afirmativa.

Neste texto nos debruçaremos sobre a diversidade dos discursos que argumentam dificuldades de implementação de cotas para negros nos vestibulares das universidades públicas brasileiras. Como se perce-berá mais adiante, tais argumentos estão mais preocupados em elimi-

1 Gobineau chegou ao contrassenso de vaticinar que o último mestiço brasileiro desapareceria – escrevendo em 1873 – em aproximadamente 270 anos, ou seja, algo como 2143. Fez isto em um artigo em que apontava o Brasil como uma nação próspera para o migrante europeu branco (Raeders, 1997).

Sociologia e educação em direitos humanos

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nar a adoção prática das cotas do que compreender sua lógica como política pública necessária à eliminação de desigualdades raciais, de gê-nero, sociais, entre outras.

Visamos especificamente construir uma breve tipologia dos ar-gumentos contra e/ou que apresentam dificuldades de várias ordens à aplicação das cotas para os negros terem acesso ao ensino público superior brasileiro. A classificação dos discursos contra as cotas feita neste trabalho não pretende ser exaustiva. Com certeza essa tipolo-gia que construímos aqui pode ser ampliada. Contudo, construímos nossa tipologia tendo como referência os discursos e/ou falas mais frequentes nas matérias jornalísticas, nos artigos, entrevistas, entre outros, de intelectuais, autoridades públicas e cidadãos comuns. Os argumentos/falas expostos aqui foram tipificados com base em di-versas matérias, reportagens e artigos publicados no jornal Correio Braziliense, no primeiro semestre de 2004. Tais matérias cobrem, em geral, a adoção do programa de cotas para negros no vestibular, im-plementado pela Universidade de Brasília (UnB) no ano de 2003. O debate refere-se, portanto, já ao primeiro processo seletivo utilizan-do-se do sistema de cotas.

Construindo uma tipologia dos argumentos contra as cotas

Os artigos, matérias jornalísticas ou opiniões de cidadãos contra a implantação de cotas para negros em instituições de ensino supe-rior apresentam vários argumentos que são interdependentes e que necessitam uns dos outros para sustentar uma oposição a esse tipo de política. Dentre as linhas de argumentação, podemos indicar pelo me-nos cinco campos, que assim classificamos: a) campo sociojurídico; b) campo sociorracial/sociabilidade; c) campo sociopolítico; d) campo socioeconômico; e) campo socioeducacional. Esses campos também apresentam alguns desdobramentos, podendo apresentar uma ou mais sublinhas de argumentação.

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Sabemos que ao proceder a uma classificação podemos ser arbi-trários. Primeiro, porque é difícil estabelecer fronteiras mais ou menos nítidas entre os diversos argumentos contidos numa fala, matéria jorna-lística e/ou artigo de cada indivíduo contrário às cotas para os negros. Como afirmamos, há vários argumentos interligados e interdependentes em uma opinião ou pensamento reflexivo de um indivíduo não favorável às cotas. Contudo, pode-se ver no conteúdo das falas que os indivíduos tendem a enfatizar ou fundamentar sua posição em uma esfera, mesmo que citem argumentos relativos a outras esferas de nossa classificação (a jurídico-legal, a racial, a política, a econômica e a educacional).

Além disso, qualquer classificação é, em certo sentido, arbitrária, pois pode haver vários outros tipos de classificação, dependendo do critério adotado. Contudo, a nossa classificação apresenta um fim ins-trutivo de mostrar qual é, em última instância, o fundamento mais enfatizado em um determinado discurso de oposição à política de ação afirmativa de cotas para os negros nas universidades públicas, além de indicar possíveis contra-argumentações a esses discursos, dentro de cada classificação tipológica que construímos.

Essa tipologia pode facilitar a compreensão da retórica contrária às cotas. Sabendo o principal fundamento político-filosófico que está sendo utilizado contra as cotas, podemos desconstruir a retórica antia-ções afirmativas. Tal maneira de agir, classificando os discursos e tipifi-cando-os idealmente, não significa a renúncia da utilização conjunta de outros argumentos que justificam e defendem políticas de ação afirma-tiva para os negros. Argumentos de várias esferas podem e devem ser usados interligados, até porque também são interdependentes, para a sustentação de uma política de ação afirmativa.

Campo sociojurídico

Caracterizamos como “campo sociojurídico” aquele no qual as falas e argumentos se contrapõem às cotas baseando-se na sua supos-ta ilegalidade e/ou inconstitucionalidade, por meio de fundamentos

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Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior 119 ]

jurídico-legais. Os argumentos contrários às cotas se fundamentam na esfera jurídica, no direito formal e na neutralidade do Estado. A análise das falas deste campo nos aponta, em geral, para três linhas de raciocí-nio: o argumento da legalidade ou ilegalidade das cotas; o princípio da isonomia; o discurso da autonomia universitária.

A argumentação jurídico-formal parte do pressuposto de que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei e, portanto, não pode haver tratamento formal diferenciado. Assim, segundo o funda-mento jurídico, uma política pública de cotas que reservasse vagas no vestibular para um determinado grupo racial estaria teoricamente fe-rindo os princípios legais presentes na Constituição Brasileira. Assim se expressa a seguinte fala:

Este negócio de cotas para negros nas universidades públicas, além de ilegal e inconstitucional, é um desrespeito aos próprios negros. Temos que ressaltar a importância dos negros na construção de nosso país e as injustiças de que sempre foram alvos, mas a reserva de cotas é dis-criminatória. O problema que tem de ser enfrentando é garantir ensi-no público de qualidade. Aí sim, todos terão as mesmas oportunidades e serão iguais na hora de uma prova. O resto é demagogia e racismo! (Rocha, leitor, Correio Braziliense, 22 de março de 2004).

O pressuposto da legalidade/ilegalidade está nitidamente expres-so nas seguintes palavras e/ou expressões: “ilegal”, “inconstitucional”, e “reservas de cotas é discriminatória”. A argumentação se baseia no princípio de que a Constituição brasileira veda a possibilidade de dife-renciação e discriminação.

Devemos nos perguntar qual é a discriminação vedada em nos-sa Constituição. A interpretação de proibição de discriminação entre os cidadãos brasileiros na Constituição Federal diz respeito à ideia da discriminação negativa, ou seja, aquela que se refere às práticas de tra-tamentos injustos aos cidadãos brasileiros, aquela que produz desigual-dades na distribuição dos bônus e ônus sociais, econômicos, culturais,

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políticos, entre outros. Portanto, são proibidos os tratamentos desi-guais que levam à segregação de indivíduos ou grupos sociais.

Se, por um lado, está vedada a prática da discriminação negativa, por outro, reconhece-se a oportunidade da “discriminação positiva” como mecanismos necessários para reparar distorções socioeconômi-cas. Portanto, a discriminação positiva (Silvério, 2001) é aceita e até induzida pela nossa Constituição, diante da desigualdade estrutural presente na sociedade, visto que os constituintes de 1988 sabiam que, para alcançarmos uma igualdade formal, faz-se necessário reparar pri-meiro o problema da desigualdade substantiva. Para que haja a igual-dade formal, ou melhor, para que esta não reproduza a desigualdade substantiva, é necessário que a lei trate de forma desigual os desiguais e de forma igual os iguais.

A segunda linha argumentativa contrária às cotas do campo so-ciojurídico é referente ao princípio da isonomia. Ela é complementar ao pressuposto da legalidade/ilegalidade das cotas. Assim são expres-sos tais argumentos:

A possibilidade de que o sistema de cotas acirre a disputa na UnB preo-cupa candidatos pelo sistema convencional. A vestibulanda Vanessa Mei-reles da Silva, 20 anos, tentará uma vaga no curso de arquitetura. Ela considera injusta a cota. ‘‘Todos temos a mesma capacidade. Também existe estudante branco sem acesso a educação de qualidade. Desse jeito, os negros sofrerão preconceito no futuro, na faculdade, e a gente é pre-judicado agora’’. (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 14 abr. de 2004).

O pressuposto da isonomia – de que todos são iguais e devem ser tratados igualmente perante a lei – está contido nos seguintes trechos: “todos temos a mesma capacidade”; “e a gente é prejudicado agora”. Assim sendo, todos devem concorrer em condições semelhantes sem vaga reservada e/ou garantida previamente para nenhum grupo racial.

Esse argumento parte da premissa genérica de que no Brasil con-solidou-se uma república democrática de direito e de fato. Esta se ma-

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Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior 121 ]

terializaria conforme emanam suas leis e normas segundo o princípio racional-legal (Weber, 1982). Supondo os pressupostos anteriores como justos, os processos seletivos eliminariam as discrepâncias subjetivas que poderiam favorecer um ou outro indivíduo ou grupo racial. Porém, como já tivemos a oportunidade de ver anteriormente, é no mínimo duvidoso concluir que existe isonomia em um país marcado pela acen-tuada desigualdade social, como o Brasil, tão extensamente discutida por vários intelectuais brasileiros (Demo, 1998, 2000, 2003; Hahner, 1993; Singer, 1998), e profundamente marcado pela desigualdade racial também amplamente afirmada vários outros cientistas sociais (Silva; Hasenbalg, 1992; Hasenbalg, 1979, 1993, 1997; Guimarães, 1997).

Ainda no campo sociojurídico, podemos observar a argumenta-ção da autonomia universitária. Este é um discurso que se consolidou no campo acadêmico e que vem de uma longa tradição da escola ale-mã com a criação da Universidade de Berlim em 1810 (Bayer, 1996). Vejamos a fala seguinte:

A medida provisória proposta em janeiro pelo MEC [Ministério da Edu-cação], ampliando a autonomia às universidades, e considerada inconsti-tucional pela Casa Civil, será editada com o patrocínio do atual ministro [da educação]. A tendência é ampliar o percentual de vagas, privilegian-do não apenas cidadãos negros, mas também beneficiários do programa Universidade Para Todos. Encerra-se a discussão do programa, busca-se maior simpatia da sociedade, perplexa com as cotas raciais, e tenta-se uma solução legal para os graves problemas gerados pelos dois vestibu-lares da UERJ-UENF e os anunciados pela UnB. De volta ao começo: pode? (Oliveira, leitor, Correio Braziliense, 20 mar. 2004).

A preocupação com o pressuposto da autonomia está presente no seguinte trecho: “A medida provisória proposta em janeiro pelo [Minis-tério da Educação] MEC, ampliando a autonomia às universidades [...]”. Embora afirme que a medida provisória amplie a autonomia, nas entre-linhas devemos entender que, para o autor, contrariamente, ela reduz a autonomia. Isto fica expresso quando diz que a primeira havia sido

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considerada inconstitucional e que a segunda implicaria (apesar da sua dimensão) uma “volta ao começo”. Ou seja, a decisão sobre as políticas afirmativas seria exógena, o que contraria o princípio da autonomia.

Contudo, trata-se de um erro grosseiro acreditar que as cotas re-presentam uma agressão à autonomia universitária. O discurso da au-tonomia está, portanto, ancorado na ideia de que as políticas públicas de promoção de cotas raciais são necessariamente intervencionistas. Todavia, o processo decisório, no caso da UnB, ocorre por meio de consulta aos conselhos e à comunidade acadêmica. Ou seja, não cor-responde aos fatos alentados pelo leitor. Sendo assim, como se pode observar, suas críticas não se reportam à defesa da autonomia, já que ela não está em questão, mas se afirma, mais uma vez, na crença de que os negros não devam ter acesso à universidade.

Campo sociorracial/sociabilidade

O segundo campo, o sociorracial, aponta para o pressuposto do entendimento de que todos os brasileiros, em qualquer processo sele-tivo, possuem as mesmas condições sociais de concorrência. Mas o que leva a esse tipo de especulação? Existem várias premissas. Muitos auto-res já se debruçaram sobre elas, seja para defender, seja para denunciá--las (argumentando, no primeiro caso, sobre como se constituiu uma nação miscigenada; e no segundo caso, sobre a falsa crença de que vi-vemos em uma sociedade pautada por uma democracia racial). Assim, podemos elencar: a aproximação das raças pelo processo de miscige-nação (Freyre, 2000); o pressuposto da democracia racial (Guimarães, 2002); a visibilidade do moreno (Rodrigues, 1995); a longa negação do Estado sobre a existência do racismo (Oliveira et al., 1998). O discurso anticotas, alicerçando-se em tais pressupostos, constrói os seguintes ar-gumentos: 1º. que as cotas não seriam procedimentos adequados, pois todos possuem uma “gota de sangue negro”; 2º. que, assim sendo, não é possível definir quem é negro no brasil; 3º. que as cotas não são jus-tas, pois os pardos não sofrem a discriminação por serem mais claros.

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A ideia de que todos possuem uma gota de sangue negra é uma afirmação “clássica” do senso comum, mas também, de forma ascen-dente, de matrizes explicativas de base biológica. Por meio do proces-so de miscigenação, supostamente, havíamos reduzido as distâncias entre brancos e negros: “a miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala” (Freyre apud Quintas, 2005, p. 91). Seguindo esse raciocínio, a miscigenação também tornou todos iguais a partir da afirmação de que, em algum momento histórico, antepassados de cores distintas mantiveram algum tipo de relação, deixando inscrita em seus descen-dentes sua marca hereditária. Portanto, não seria possível afirmar que determinados indivíduos sejam pretos, pardos e mesmo brancos, mas que a totalidade ou pelo menos a maioria seja composta por miscige-nados. Vejamos algumas falas:

Para eles [muitos pesquisadores – especialmente do Departamento de Biologia], o código genético da maior parte dos brasileiros carre-ga herança negra. Os criadores do projeto [José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segatto] rebatem o argumento. Dizem que no Brasil o pre-conceito está ligado à aparência e não ao DNA. Na semana passada, Homero Dewes, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRS], publicou um artigo no Jornal da Ciência, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên-cia. Dewes sugere que novas formas de seleção sejam criadas ao se le-var em conta a raça e a renda dos candidatos. Entre eles, a investigação minuciosa da riqueza familiar e a análise laboratorial do genoma do vestibulando. ‘‘Foto só não basta, com freqüência as aparências enga-nam’’. (Nunes, jornalista, Correio Braziliense, 12 abr. 2004).

Como vimos, a ideia da herança negra está bem delineada nas se-guintes afirmativas: “o código genético da maior parte dos brasileiros carrega herança negra”. O autor ainda complementa sobre a possibili-dade de “análise laboratorial do genoma do vestibulando”.

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O fundamento da argumentação da “gota de sangue” nos apon-ta para uma reafirmação do paradigma da democracia racial. Se esta possibilidade é verdadeira, então, todos se veem, são e devem ser vis-tos como iguais. Não cabe, portanto, medidas de reconhecimento da pertença racial, uma vez que somos misturados. Tal leitura está bem expressa na seguinte afirmação:

[Gilberto Gil, Ministro da Cultura] Acho que é uma boa maneira de corrigir as desigualdades. Estou confiante no sucesso do programa de cotas. Sabemos que há dificuldades de implantação do sistema, porque o Brasil é um país muito misturado. É difícil saber quem é negro ou branco. Mas acredito que os obstáculos serão superados rapidamente. Se tem alunos brancos se inscrevendo como negros para fazer a prova e prejudicar o programa, eles têm que refletir. Eles é que sabem. (Bor-ges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

A afirmação dada pelo Ministro da Cultura (Gilberto Gil) – ain-da que ele tenha se expressado publicamente favorável ao programa – aponta para um tipo de leitura que nos transporta para o imaginário da mistura racial produtora de igualdade: “o Brasil é um país muito misturado. É difícil saber quem é negro ou branco”. Este pressuposto é um dos pilares do imaginário de que negros e brancos são tratados com igualdade, já que não saberíamos quem é quem. Por meio desse mito é que se edificam as supostas relações amistosas entre grupos ra-ciais distintos no Brasil, enquanto que, em outros países – como nos Estados Unidos –, brancos e negros estariam em “pé de guerra”.

Embora o mito da democracia racial tenha sido objeto de diversos estudos pelos mais variados intelectuais e ainda que tenham denuncia-do os efeitos perversos deste mito, ele ainda é fortemente presente na sociedade brasileira. Segundo Guimarães (2002, p. 168), “morta a de-mocracia racial” – já que fora objeto de reflexão e de desconstrução –, “ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais,

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Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior 125 ]

seja como chave interpretativa da cultura”. As falas seguintes são em-blemáticas ao naturalizarem a mistura racial produtora de igualdade e, ao mesmo tempo, negarem o conflito racial:

Nesse negócio de cota para negros na universidade, está aparecendo coisa do arco-da-velha. Daqui a pouco, matrícula, só com DNA. Se não fosse demagogia, na Bahia, onde a maioria é negra, dariam cota para branco. Certo seriam cotas reservadas para alunos do ensino médio da rede pública, seja verde, seja amarelo. (Cunha, colunista, Correio Braziliense, 16 abr. 2004).

A ideia de que não é possível definirmos quem é negro no nosso cotidiano se inscreve na seguinte afirmativa: “daqui a pouco, matrícu-la, só com DNA”. Por meio dessa fala, as cotas são absurdas, por produ-zirem discriminação e, mais que isso, reconstruírem a distinção entre os grupos raciais. Embora não haja a afirmação textual, podemos ler o pressuposto da impossibilidade na palavra-chave utilizada para negar as políticas afirmativas: “DNA”. Todos sabemos que a análise genética ou de DNA é um recurso para “ver” o que não seria possível a olho nu. Portanto, como os olhos não veem o DNA, as falas remetem para a ideia de que não é possível definirmos quem é branco ou negro no Bra-sil. Oliveira et al. (1998) destacaram, no entanto, uma clara distinção de corte racial no Brasil, comprovada por meio de diversas estatísticas, sobretudo as de segurança pública. Segundo dados apresentados pelos autores, a polícia mata três vezes mais negros que brancos. Será isto apenas obra do acaso?

Aliado aos pressupostos anteriores – da miscigenação e da de-mocracia racial –, há um terceiro componente, que é o que podemos chamar de “visibilidade do moreno”. Esta linha de raciocínio parte da premissa de que os pardos são menos discriminados que os pretos. Tra-ta-se de leitura que tem sido acentuada por Rodrigues (1995), ao se de-bruçar sobre os dados levantados pela agência de pesquisas DataFolha. Segundo o autor, “os brasileiros rejeitaram espetacularmente o termo

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pardo. Apenas 6% dos entrevistados se auto-atribuíram a cor parda em respostas espontâneas” (Rodrigues, 1995, p. 36). Mais adiante afirma:

o termo “moreno” enraizou-se de forma altamente positiva na cultu-ra brasileira. É raro ver alguém que não queira bronzear-se no verão para ficar moreno. Mesmo os que não querem ficar morenos tendem a admirar as pessoas que são dessa cor. (Rodrigues, 1995, p. 37).

Tais afirmações sustentam o pressuposto de que os pardos ou morenos não seriam discriminados, mas, ao contrário, vistos positiva-mente. Por esta premissa, não se justifica o acesso diferenciado para os pardos, uma vez que, por serem mais claros, não sofreriam ou seriam menos discriminados. Mas até que ponto existe essa suposta positivida-de? Tal situação pode ser presenciada nas entrelinhas da seguinte fala:

Ex-aluna de escolas particulares, Fernanda contou ainda com o refor-ço do cursinho pré-vestibular Galois. Para ser fotografada, a candidata prendeu os cabelos lisos, mas garantiu ter ascendência negra. ‘‘Não avalio as pessoas pela cor. Nunca havia pensado de que raça eu seria. Mas minha avó é negra e também me considero negra’’, justificou. ‘‘Sei que minha foto pode ser reprovada pela comissão, mas tudo bem. Eu quero tentar’’, disse. (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 17 abr. 2004).

Como pudemos observar, embora afro-descendente, a aluna imagina que por ser mais clara (ou parda) não seria vista como negra. Assim podemos ler nos trechos seguintes: “Para ser fotografada, a can-didata prendeu os cabelos lisos, mas garantiu ter ascendência negra”. No trecho anterior, a fala evidencia que a aluna não apenas demonstra receio como procura indicar a condição racial por meio da reafirma-ção de seus antepassados. Ela sente a necessidade de “garantir” sua ascendência, já que, para ela, não existem evidências de que pertença ao segmento social dos negros. Consciente ou inconscientemente, ela acaba também por afirmar que, ao longo do processo de miscigenação, e com o clareamento da cor, ela não seria vista mais como negra.

Sociologia e educação em direitos humanos

Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior 127 ]

Assim, também devemos questionar o significado da positividade do “moreno” e quais seus fundamentos: se é em oposição ao preto, se é uma identidade alternativa ou, ainda, se uma busca de identificação com o branco. Embora a aluna tenha traços “negros” como ela afirma, ou seja, seria morena, ela não demonstra o orgulho da morenidade.

Campo sociopolítico

Caracterizamos de campo sociopolítico aquele no qual as falas e/ou argumentos nos remetem a cenários sociorraciais negativos. Ou melhor, a um cenário de possíveis conflitos entre negros e brancos, quebrando a suposta harmonia racial brasileira. Neste campo, as falas buscam de-monstrar que as políticas públicas de ação afirmativa, como a de cotas, vão aumentar o preconceito e a discriminação racial contra os negros, e entre os próprios negros, mais do que incluí-los no ensino superior. Em última instância, os argumentos contrários às cotas tendem a enfatizar o aumento da discriminação racial contra os afro-brasileiros. Além disso, incluem-se, também, neste campo, argumentos que afirmam que as co-tas são um paliativo contra a exclusão dos negros da universidade pública. Portanto, elas tendem ao fracasso. São falas aparentemente preocupadas com a discriminação que os negros podem sofrer, com o seu destino social e a sua suposta defesa no interior das universidades públicas. Em geral, essas falas refletem as proposições políticas, produzem uma análi-se e proferem um julgamento. Em síntese, tais discursos indicam que: 1º. as políticas de cotas apenas reforçam a discriminação contra os negros; 2º. a aplicação das cotas soaria como uma discriminação ao contrário, ou seja, uma discriminação dos negros contra eles mesmos ou ainda contra os brancos e; 3º. as cotas são apenas um paliativo.

O primeiro pressuposto afirma que as políticas de cotas e, conse-quentemente, de ação afirmativa – visto que a primeira é um tipo de implementação técnica da segunda (Gomes, 2001) –, ao invés de pro-duzirem a inclusão dos negros no ensino superior público, reforçariam a discriminação contra os negros. Isto se daria pelo fato de que os ne-

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gros não ingressariam na universidade pelo suposto mérito individual,2 mas pelo “privilégio racial” das cotas. Os brancos ficariam desconten-tes com esse “privilégio racial” adquirido pelos negros e discrimina-riam mais ainda os negros cotistas. Além disso, as cotas supostamente atestariam a incapacidade dos negros de competir em igualdade com os brancos, entre outras argumentações.

Longe da fila, cuidadosamente preenchendo o formulário de inscri-ção, estava a estudante Suzane Sousa Ferreira, de 17 anos, assumida-mente negra, aluna de uma escola pública na cidade em que mora. Dois ônibus levaram a adolescente do Novo Gama (GO) até a UnB. Concorrendo a uma vaga no curso de Ciência da Computação, ela chegou decidida: ‘‘Não vou me submeter ao sistema de cotas. Sei da minha capacidade. Não quero favor. Acho que reservar vagas para ne-gros é acentuar mais o preconceito, é como se quisessem confirmar que somos incapazes. Não quero isso pra mim’’. (Abreu, jornalista, Correio Braziliense, 13 abr. 2004).

Por meio dessa fala fica evidente o entendimento de que as políti-cas afirmativas de cotas raciais para negros seriam mais produtoras de discriminação que de solução para o status social dos negros. Ao produ-zir esse tipo de argumentação, seus atores afirmam que tais programas políticos não correspondem aos anseios sociais, assim, elas deveriam ser eliminadas, por promoverem maior segregação entre os segmentos raciais e pelo pressuposto de que ocorrerá uma institucionalização do preconceito: “Acho que reservar vagas para negros é acentuar mais o preconceito, é como se quisesse confirmar que somos incapazes”.

A fala e seu ator também nos permitem inferir sobre um entendi-mento a respeito dos paradigmas que deveriam nortear a formulação de políticas públicas. Por meio da fala, podemos compreender pelo menos duas leituras: primeiro, é que a raça não interfere na produção

2 Sobre a discussão de mérito individual, ver Santos (2003).

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Reflexões sobre os argumentos contrários às políticas de cotas no ensino superior 129 ]

da desigualdade; segundo, é que as políticas de cotas se assemelham às políticas clientelistas: “Não quero favor”.

Pode-se até compreender que uma escola deficiente em qualidade de ensino contribua para ampliar ou perpetuar preconceitos, entretanto, não são apenas as escolas com esta deficiência que propagam o racismo, mas todo o sistema educacional. A Lei 10.639/2003, que instituiu a obri-gatoriedade do ensino da temática de “História e cultura afro-brasileira”, é uma prova de que todo o sistema de ensino brasileiro – da rede de ensino público a privada – tem sido eurocêntrica e racista até a presente data (Brasil, Seppir/MEC, 2004; Santos, 2005). As escolas públicas, teo-ricamente menos qualificadas, atendem à maior parcela dos estudantes de ensino básico da sociedade brasileira, mas as escolas supostamente eficientes, as privadas, que atendem às classes médias e altas, também são produtoras e reprodutoras de discriminação racial. Ou seja, a perten-ça racial dos alunos condiciona fortemente a sua posição e/ou destino social. Isto é o que leva alguns autores a chamarem a atenção para o fato de que devemos pensar toda a estrutura educacional do país quanto à discriminação racial brasileira (Cavalheiro, 2000; Menezes; Sanchez, 2000; Silva, 2000; Gonçalves; Silva, 2001; Romão, 2001; Santos, 2001).

Com referência ao primeiro problema, é importante identificar as políticas de reconhecimento como uma das dimensões da superação da desigualdade. O reconhecimento tem sido visto como um instrumen-to necessário para a superação ou redução de desigualdades, sobretudo pela percepção de que determinados grupos, ainda que incluídos no plano econômico, continuam, no plano social ou da sociabilidade, sen-do sistematicamente discriminados em função da sua cor/raça e sexo, como os negros e as mulheres (Fraser, 2001, 2002).

Em relação à suposta política clientelista de cotas para negros, é importante compreender as várias possibilidades das políticas públicas e a dimensão de seus objetivos. Não se faz uma política pública pen-sando na situação deste ou daquele indivíduo, mas desta ou daquela população. As políticas clientelistas têm por princípio a manutenção

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da dependência, enquanto as políticas de ação afirmativa objetivam a autonomia de agrupamentos sociais, bem como a superação da dis-criminação racial, entre outras (Gomes, 2001). Diferentemente do en-tendimento comum, tal política de discriminação positiva não objetiva inverter a estrutura de dominação racial historicamente existente no Brasil, favorecendo o grupo racial negro em detrimento do grupo ra-cial branco. O que se busca com a discriminação positiva é a igualdade real. Essa não pode ser apenas formal, tem de ser também substantiva.

Por fim, se a proposição de qualquer política de cotas aos grupos socialmente segregados representa um tipo de discriminação, este é um caso típico de discriminação positiva estabelecida na Constituição brasileira. Deve-se destacar que tal tipo de prática se insere em um mo-delo de ação político-jurídica que objetiva reduzir ou eliminar discrimi-nações negativas socialmente construídas que a neutralidade do Estado não desconstrói. Para superar as discriminações negativas, aquelas que segregam ou reforçam injustiças contra as inadvertidamente chamadas minorias, conforme expressão de Mello (2001), é que se estabelece o que se denominou “discriminação positiva” ou “discriminação benig-na” (Van den Berghe, 2000).

O segundo pressuposto do campo sociopolítico aponta para a ideia de que tais práticas políticas – de cotas para negros – criariam uma discriminação ao contrário. Entende-se aqui que, ao invés da his-tórica discriminação contra negros, teríamos, com as cotas, uma dis-criminação contra brancos ou mesmo dos negros contra eles mesmos.

Fernanda do Amaral Graça, 20, não conseguiu uma vaga nos cursos de Biologia e de Medicina Veterinária da única universidade pública de Brasília. Este ano, ela resolveu fazer o vestibular para Química. Acredi-ta que com o sistema de cotas terá mais chances, apesar de considerar o método preconceituoso. ‘‘Optei por ele porque estou desesperada. Mas parece que a gente [os negros] foi rebaixado’’, diz a garota, que mora com um tio na 411 Norte. (Alves, jornalista, Correio Braziliense, 26 maio 2004).

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Gostaria de inicialmente recuperar um trecho citado anterior-mente, em que o jornalista Ari Cunha afirma: “Se não fosse dema-gogia, na Bahia, onde a maioria é negra, dariam cota para branco” (Correio Braziliense, 16 abr. 2004). O jornalista se utiliza do discurso irônico como forma de indicar um suposto processo de inversão do preconceito racial. Ou seja, um preconceito contra os brancos. O dis-curso da inversão do preconceito também está sub-repticiamente pre-sente nas falas que afirmam que o certo é dar cotas para pobres, pois existem muitos brancos pobres que também não possuem condições. Não temos dúvidas de que os brancos pobres não possuem as mesmas condições que os brancos ricos. Porém é importante destacar que uma política de cotas raciais não é um impedimento para criação de políti-cas em benefício dos pobres. Também é importante destacar as ten-tativas sutis de transformar o discurso favorável às cotas raciais como um discurso discriminatório contra os brancos pobres, portanto, uma discriminação ao contrário.

A fala anterior reforça a ideia do discurso da discriminação do ne-gro contra ele próprio. Ao se autodiscriminarem, os negros criam uma ruptura com sua própria identidade. Eles negariam o outro semelhan-te, ou seja, o próprio negro. “Apesar de considerar o método precon-ceituoso, ‘optei por ele [sistema de cotas] porque estou desesperada. Mas parece que a gente [os negros] foi rebaixado’”. A afirmação indica que, ao aceitarem o processo (se inscrever no vestibular) das cotas, os negros se colocam como inferiores, noutras palavras, não se reconhe-cem como sujeitos historicamente discriminados e que não tiveram e ainda não possuem as condições sociopolíticas de concorrerem de forma equânime no mundo social. Assim, aceitar o sistema de cotas equivale a se colocarem numa posição de inferioridade e, portanto, de autodiscriminação.

A sustentação desses discursos baseia-se na consciência discursiva (Giddens, 1991) brasileira de que todos são iguais racialmente. Ou seja, na consciência discursiva brasileira negros e brancos vivem em har-

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monia racial no nosso país. Não havendo hierarquia, nem dominação racial, a seleção deve ocorrer por meio do sistema de vestibular, em que, supostamente, prevalece a hierarquia do mérito individual. En-tretanto, tais discursos, impregnados de pressupostos que sustentam a ideologia da democracia racial brasileira, não fazem uma análise his-tórica da condição dos negros no Brasil e não contextualizam as suas condições sociais de existência. Tais discursos estão desconectados da consciência prática (Giddens, 1991) dos brasileiros, do racismo no co-tidiano, que pode ser diagnosticado por meio das estatísticas oficiais e não oficiais que incluem o quesito cor/raça (Brasil, IBGE, 1990; Insti-tuto Sindical, 1999; Brasil, Ipea, 2003). Aceitar ações afirmativas para negros pode ser um perigo, porque pode conectar a nossa consciência prática à nossa consciência discursa, causando conflitos até entre os próprios indivíduos que negam discursivamente o racismo, mas que o praticam diariamente. Todavia, aqui já não é a percepção de “ser discriminado”, mas perceber sua “condição de sujeito historicamente discriminado”, ou seja, ter consciência de sua identidade.

O terceiro pressuposto do campo sociopolítico compreende as políticas de cotas como formas paliativas que não solucionam os pro-blemas raciais no Brasil. Partindo dessa premissa, negam as possibili-dades das cotas como uma forma legítima de questionamento do pres-suposto da democracia racial e de uma possível proposta de política pública entre tantas outras que podem estar articuladas para a elimina-ção do racismo brasileiro.

O que democratiza o acesso ao ensino superior é ensino público de qualidade a partir do primeiro ano escolar. Isso vale para qualquer país. Na melhor das hipóteses, a idéia do governo de reservar metade das vagas em faculdades e universidades federais para alunos que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública, além de negros e ín-dios, pode funcionar como paliativo. Ainda assim, deve-se cuidar para que não termine por comprometer o nível acadêmico de instituições nacionais de excelência. (Correio Braziliense, Editorial, 15 maio 2004).

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A palavra “paliativo” pode ser lida como uma demonstração de que muitas pessoas são contra as cotas para a inclusão dos negros nas univer-sidades porque acreditam que elas não resolvem o problema da exclu-são dos negros do ensino superior público. Ou seja, ao que parece essas pessoas são contra as cotas porque constituem uma proposta que não resolve a questão. Antes de o movimento negro apresentar propostas de ações afirmativas para negros ingressarem no ensino superior públi-co, por meio dos seus intelectuais orgânicos e do apoio dos intelectuais antirracistas, não se cogitava nenhuma outra proposta de inclusão dos negros na universidade pública. Agora, muitos querem fazer a “verda-deira” justiça; são contra as cotas porque acham que elas são apenas um paliativo diante das necessidades dos negros. Não se propôs nada ante-riormente e quando surge uma proposta possível e necessária, entre ou-tras, para a inclusão dos negros no ensino superior público, manifestam--se contra ela, porque ela não soluciona o problema. Parece um ou tudo ou nada, um ame-o (o ensino superior) como ele está ou deixe-o.

Os proponentes de ações afirmativas, como cotas, para os negros têm consciência de que elas não são a panaceia para os negros no que tange à sua histórica exclusão do ensino superior público. As ações afir-mativas são um meio, não o único, urgente e necessário para incluir e/ou mitigar a ausência dos negros do ensino de qualidade as universida-des públicas brasileiras. Ao que parece, a exigência do máximo, ou me-lhor, da solução do problema, é em realidade uma proposta de negação de qualquer inclusão urgente dos negros no ensino superior, visto que no “tudo ou nada” não há negociação, acordos, e não se fazem mu-danças sociais sem negociação ou acordos entre as partes interessadas.

Campo socioeconômico

O campo socioeconômico é um dos que apresenta o maior nú-mero de referências de argumentos contra as políticas de cotas. As ba-ses argumentativas contra as cotas para os negros são fundamentadas principalmente no condicionamento econômico do destino social dos

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indivíduos. Reconhece-se que os negros estão excluídos do ensino pú-blico superior, mas sustenta-se que essa exclusão é consequência da po-breza a que eles estão submetidos e não do racismo contra os negros. Essas bases argumentativas podem ser sistematizadas em duas linhas de raciocínio: 1º. o problema está nas condições de pobreza predomi-nantes no país; 2º. o sistema de cotas deveria ser para os oriundos da escola pública.

No primeiro caso temos o que chamaremos de argumentos de base econômica. Para uma parcela daqueles que discursam contra as cotas o problema da ausência dos negros no ensino superior deve ser re-solvido por meio de políticas de combate à pobreza. Assim, proclamam:

Imaginem um jovem de cor preta, rico como alguns milhares existen-tes no Brasil, chegando às portas da universidade federal para concor-rer a uma das vagas disponíveis. Estaciona seu belo carro e se apresen-ta: descontraído, saudável e bem vestido. O nosso personagem, que não é nenhuma ficção, tem bons motivos para a confiança que trans-pira, ao contrário da maioria insegura. Além dos estudos nas melhores escolas particulares, já tem assegurado um precioso apartheid: concor-rência especial qualificada pela cor, ainda que em detrimento da maio-ria dos candidatos, inclusive aos seus pares bem mais pobres advindos de escolas públicas. Ora, qualquer competição é firmada no princípio das oportunidades iguais, cláusula precípua para que o aferimento dos vitoriosos se comprove por méritos próprios. (Soares, leitor, Correio Braziliense, 31 mar. 2004).

A base argumentativa das falas anteriores parte do pressuposto de que a solução do problema da exclusão dos negros do ensino público superior é determinada ou fortemente condicionada pela renda (ou classe social) do vestibulando. A exclusão dos negros do ensino superior público tenderia a cair ou sumir na medida em que os negros melhorem suas condições econômicas. A suposta prova disto estaria na segunda citação, em que se busca demonstrar que negros ricos, “como alguns milhares existentes no Brasil”, têm vaga

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garantida na universidade. Se for verdade, por um lado, que existem milhares de jovens negros ricos, como afirma o autor da citação, por outro, não é verdade que existem milhares de jovens negros nas uni-versidades públicas. Uma comprovação disso pode ser encontrada nas estatísticas do antigo provão.

Conforme dados do Inep (2002), dentre os estudantes que partici-param do sistema de avaliação do ensino superior, o “Provão”de 2001

revela que, quanto à descendência étnica, a maioria dos graduandos de todas as áreas [dentre os 20 cursos avaliados] considerou-se bran-ca. As áreas com maior incidência dos que se declararam brancos foram Odontologia (84,9%) e Administração (82,4%); as áreas de Le-tras (68,6%) e Física (69,4%) apresentaram os menores percentuais. (Inep, 2002).

Já na avaliação do ano seguinte, o Inep avaliou 24 cursos de ensino superior. Dentre os cursos que indicaram percentuais de participação de brancos acima de 80%, destacam-se: Administra-ção, 81,6%; Arquitetura, 84,5%; Direito, 83,1%; Engenharia Civil, 81%; Engenharia Mecânica, 81,8%; Engenharia Química, 81,7%; Farmácia, 83,5%; Jornalismo, 81,1%; Medicina, 80,6%; Medicina Ve-terinária, 85,6%; Odontologia, 85%; e Psicologia, 82,4%. Os cursos que apresentaram os menores percentuais foram: História, 60%, e Matemática, 64,4% (Brasil, Inep, 2002). Portanto, além de os dados do Inep indicarem que a maioria esmagadora dos concluintes do ensino superior seja de brancos, deve-se acrescentar ainda que, con-forme dados do IBGE (Censo 2000), os brancos representam 53,7%, enquanto que os negros somavam 75 milhoes de pessoas, ou seja, 44,6%. Portanto, temos uma evidente demonstração da desigualda-de de acesso entre brancos e negros ao ensino superior.

Com base nos argumentos econômicos, podemos inferir que o preconceito e a discriminação no Brasil recaem sobre os pobres, inde-pendente do seu grupo racial de pertença. Ou seja, a discriminação é

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determinada pela classe social. Consequentemente, o negro é discri-minado não porque é negro, mas porque é pobre. É a sua condição de classe que condiciona fortemente o seu destino social. A cor/raça não tem peso no seu destino social. Essas inferências nos levariam a con-cluir que não existe racismo, já que a discriminação contra os negros é de classe, ou seja, de base econômica. Assim, os negros ricos não seriam discriminados racialmente e brancos pobres e negros pobres concorreriam em pé de igualdade na sociedade. Consequentemente, viveríamos em uma democracia racial. Então para que cotas raciais?

Entretanto, os fatos denunciam a existência de racismo no Brasil. Tais episódios são reconhecidos e divulgados não só pelos intelectuais antirracistas, mas pelo governo brasileiro também (Cardoso, 1997). Não resta dúvida, numa sociedade de classes e rigidamente hierarqui-zada, de que os negros pobres são discriminados por serem pobres. Mas também não resta dúvida de que, numa sociedade racista como a brasileira, os negros são discriminados por serem negros e não apenas por serem pobres. Negros (pretos), por exemplo, são muito mais re-vistados (48%) que brancos (34%) ou mesmo pardos (46%) (FSP, 1997 apud Oliveira et al., 1998). Portanto, os argumentos estritamente de base econômica são insuficientes para explicar a exclusão dos negros do ensino público superior brasileiro.

A segunda linha de argumentos de corte socioeconômico, da mesma forma que o discurso de ordem estritamente econômico, acei-ta em parte o princípio das cotas, desde que elas sejam direcionadas para os “desfavorecidos, os pobres, os classicamente excluídos”. Assim, os argumentos de ordem econômica apontam os pobres como os po-tenciais e legítimos beneficiários de uma política afirmativa de cotas de inclusão no ensino superior público, especialmente aqueles que es-tudaram em escolas públicas. Portanto, o critério para ser beneficiado por uma política de ação afirmativa seria de classe, associado ao estudo em escola pública, visto que no Brasil de hoje a maioria dos alunos das escolas públicas brasileiras é oriunda de famílias de baixa renda.

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Mas a discussão sobre o sistema de reserva de vagas está longe do fim. O debate agora é em torno de cotas para alunos de escolas públicas. ‘‘Se for para dar prioridade, por que não oferecer aos alunos de escola pública?’’, questiona a professora de genética humana Maiana Zatz, do Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP). (Meira, jornalista, Correio Braziliense, 18 abr. 2004).

Esta citação afirma que são os pobres, independentemente de sua cor/raça, que devem ser beneficiados pelas cotas nos vestibulares das universidades públicas. A premissa é de que negros e brancos pobres estão regularmente presentes no ensino público e de que ambos pos-suem as mesmas dificuldades de acessar o ensino superior.

De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as diferenças entre brancos e negros nos níveis médios e superiores, tanto de acesso quanto de sucesso, permanecem mui-to grandes e os indicadores não apresentam trajetórias convergentes (Brasil, Ipea, 2003). Ainda segundo os dados do Ipea (Brasil, 2003), o percentual de negros que não frequentam a escola é muito alto. No ano de 2001, por exemplo, havia 4% de cidadãos negros em idade de 7 a 13 anos não frequentando a escola, contra 2% das pessoas brancas. Na idade de 14 a 17 anos, o percentual dos cidadãos negros salta para 19%, contra 13% dos brancos. Já os dados sobre analfabetismo entre negros e brancos revelam uma forte disparidade: enquanto temos um percentual de 2% de brancos analfabetos na idade de 15 a 24 anos, os negros apresentam um percentual de 6,2%, ou seja, mais que o triplo. Entre as pessoas de 25 anos ou mais, com pelo menos oito anos de estudo (o suficiente para concluir o ensino fundamental), 45,6% são brancas enquanto somente 27,9% são negras. Entretanto, ao elevar-mos para onze anos de estudo (o suficiente para concluir o ensino mé-dio e, portanto, aspirar ao ensino superior), o percentual de brancos cai para 14% e o de negros é reduzido drasticamente para apenas 3,8% (Brasil, Ipea, 2003). Assim, mesmo que as cotas sejam indicadas, priori-tariamente, para o ensino público como um procedimento mais demo-

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crático segundo o argumento fundamentado na exclusão econômica, ainda veremos os negros alijados do acesso ao ensino superior, visto que, entre os classicamente excluídos, os negros são os mais afetados.

Campo socioeducacional

O campo socioeducacional é caracterizado por argumentos que tendem a enfatizar fortemente a ausência de ensino público de boa qualidade como o fator determinante da exclusão dos negros do ensi-no público superior brasileiro. Em última instância, para este campo, bastaria melhorar a qualidade da escola pública que os negros seriam incluídos nas universidades públicas brasileiras.

Esse argumento é o que predomina. Ele é recorrente e aparece in-terligado com os outros campos das tipologias que construímos. Anco-ra-se no pressuposto de que o acesso aos cursos de nível superior se dá por meio do mérito individual e que este não pode ser quebrado. Por meio do princípio do mérito, todos serão avaliados e todos aqueles que ultrapassarem a linha de corte serão aprovados. Assim, todos aqueles que não passam no vestibular supostamente não possuem qualidades para ingressar no ensino. Diante do quadro atual em que muitos fi-cam de fora do ensino superior público, caberia ao Estado tão somente ampliar os investimentos nos ensinos público fundamental e médio, de forma que os futuros vestibulandos, sejam negros, brancos, ricos ou pobres, possam concorrer em pé de igualdade. Assim apontam os discursos: 1º. a ausência do negro no ensino superior é decorrência, sobretudo, da deficiência do ensino fundamental e médio; 3º. o funda-mento do mérito deve ser preservado, acima de tudo.

No primeiro caso – deficiência do ensino fundamental –, mui-tos daqueles que se professam contra a prática das cotas indicam dois campos de possibilidades para ampliar o acesso dos negros ao ensino superior: estabelecimento de uma política de universalização do en-sino fundamental e médio; melhora da qualidade do ensino público. Vejamos alguns desses discursos:

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É pouco. Muito pouco. A política de cotas tem o mérito de oferecer novo paradigma às classes desprivilegiadas. O estudante pobre, ao ver--se representado nas universidades de prestígio, pode sonhar ascender àquele patamar. E empenhar-se para chegar lá.

É importante, porém, não esquecer um pormenor de extrema impor-tância. O governo precisa cuidar da base. É o ensino fundamental e médio que responde pela qualidade do profissional. Enquanto a escola pública for incapaz de alfabetizar as massas, ensinar meninos e meninas a fazer as quatro operações, incluir os jovens no mundo digital, o país continuará a aumentar o estoque dos excluídos. (Correio Braziliense, Editorial, 29 mar. 2004).

Por meio da leitura da fala anterior podemos observar que o dis-curso transparece de forma pouco convincente em relação às políticas afirmativas. Não se aceita a política de cotas para os negros, mas elas são aceitas para as “classes desprivilegiadas”. Em um dos trechos signi-ficativos podemos ler:

É o ensino fundamental e médio que responde pela qualidade do pro-fissional. Enquanto a escola pública for incapaz de alfabetizar as massas, ensinar meninos e meninas a fazer as quatro operações, incluir os jovens no mundo digital, o país continuará a aumentar o estoque dos excluídos.

Temos, assim, uma reafirmação de que a exclusão dos negros do ensino público superior não tem nada a ver com a discriminação racial, mas com problemas referentes à ausência de qualidade e uni-versalidade do ensino público básico. Entende-se que o problema da ausência dos negros no ensino superior deve ser resolvido por meio do melhoramento da qualidade do ensino fundamental e médio. Assim, igualando-se as oportunidades educacionais, o restante acontecerá. Ou melhor, os negros, bem como os pobres em geral, terão acesso ao en-sino público de terceiro grau.

O argumento da deficiência dos ensinos fundamental e médio é re-corrente. Não são poucos os autores que indicam esta falha na educação

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brasileira. A proposta de melhora da qualidade do ensino básico é consen-sual também para os intelectuais e militantes antirracistas que propõem uma política de cotas. Mas há uma diferença importante: aqueles que propõem uma qualificação dos ensinos fundamental e médio excluem as políticas de cotas para negros.

A dinâmica de um país complexo como o Brasil não pode se prender a esta ou aquela proposição política para inserção social, mas buscar uma multiplicidade de políticas. Assim, compreendemos que a política de cotas deve ser uma entre várias outras políticas de ação afir-mativa para os negros no ensino público superior brasileiro. De modo algum ela implica a subtração de políticas de investimento na qualifica-ção dos ensinos público fundamental e médio.

A visão excludente das políticas de cotas em favor de uma qualifi-cação do ensino fundamental parte de falsas premissas, desenvolve fal-sas inferências e chega a conclusões também falsas: a) de que a situação dos negros no Brasil atualmente é razoavelmente confortável (suficien-te para que possam esperar as “boas novas” das políticas de universa-lização do ensino fundamental); b) que o problema é estritamente de formação escolar (portanto descarta a hipótese de existência do racis-mo interferindo na vida dos estudantes negros); c) consequentemente, que não existe racismo nas escolas públicas e privadas brasileiras; d) que inexiste (salvo a precariedade escolar) distinção entre negros po-bres e brancos pobres e entre estes e os ricos diante de um processo seletivo para o ensino superior; e) que a história das políticas públicas educacionais aponta para um processo de universalização, portanto, caminha para a inclusão de todos sem distinção. Nessa perspectiva é que se afirma, como fez um leitor em carta ao jornal:

Este negócio de cotas para negros nas universidades públicas, além de ilegal e inconstitucional, é um desrespeito aos próprios negros. Temos que ressaltar a importância dos negros na construção de nosso país e as injustiças de que sempre foram alvos, mas a reserva de cotas é dis-criminatória. O problema que tem de ser enfrentando é garantir ensi-

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no público de qualidade. Aí sim, todos terão as mesmas oportunidades e serão iguais na hora de uma prova. O resto é demagogia e racismo! (Rocha, Correio Braziliense, leitor, 22 mar. 2004).

É evidente que por trás desses discursos opera um convincente processo ideológico, ou seja, de que vivemos em uma sociedade racial-mente democrática. Assim, torna-se necessário muito esforço intelec-tual para reconhecer que tais premissas são falsas. Para comprovar a falsidade dessas afirmações é necessário trabalhar com diversos exem-plos e referências de pesquisa. As inferências neste campo objetivando construir um discurso contra as cotas ainda são pouco consistentes, todavia, o discurso ideológico é muito poderoso. Somente com a ne-gação do racismo é que se pode afirmar que os negros alcançarão o en-sino superior, bastando, para tanto, uma intervenção no ensino básico.

Albernaz, Ferreira e Franco (2002), em análise da base de dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB – de 1999, além do nível socioeconômico, perceberam a existência de três outras va-riáveis que exerciam efeitos estatisticamente significativos sobre o de-sempenho estudantil: a) histórico escolar; b) gênero e, c) raça. Nas palavras dos autores:

Este efeito negativo da cor sobre o rendimento escolar, mesmo após o controle pelo nível sócio-econômico, constitui um resultado altamen-te preocupante para aqueles interessados em reduzir a desigualdade de oportunidades no Brasil. O negro brasileiro parece não só ter menos chance de estar na escola, mas, além disso, os que chegam à escola, e aí logram permanecer, parecem ter um desempenho pior do que seus colegas brancos, mesmo controlando pelo nível sócio-econômico. (Al-bernaz; Ferreira; Franco, 2002, p. 14).

A pesquisa de Albernaz, Ferreira e Franco (2002) demonstra que os discursos que indicam que os negros terão mais chances com a me-lhoria ou universalização da educação básica é um mito. Isto porque a marca do racismo e da desigualdade não desaparece com a entrada

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na escola. Ela permanece por toda a vida dos indivíduos. O racismo e a desigualdade constituída a partir dele devem, assim, ser enfrenta-dos questionando o racismo e não fazendo de conta de que ele não existe. No que diz respeito ao segundo item do campo socioeducacio-nal (crença de que basta melhorar e universalizar a educação básica), temos a defesa sistemática de destacados membros da chamada elite intelectual brasileira. Assim se expressam:

[Paulo Alcântara Gomes, presidente do Conselho de Reitores das Uni-versidades Brasileiras] Não sou contra, nem a favor. Primeiro, deve-mos pensar na raiz do problema. Os processos de admissão são reali-zados com base no mérito. É preciso melhorar o ensino fundamental e o médio para que todos tenham as mesmas oportunidades de con-corrência. A partir do momento que há qualidade no ensino básico, é possível identificar onde estão os bolsões que não foram atendidos e implementar políticas para atendê-los. Uma quantidade enorme de jovens não tem acesso à universidade, independentemente de raça ou condição social. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

[José Goldemberg, secretário do Meio Ambiente de São Paulo, ex-rei-tor da Universidade de São Paulo – USP e ex-ministro da Educação] Sou radicalmente contra. O vestibular é um concurso público e, como tal, seleciona por mérito. O maior problema é a pobreza que atinge a sociedade brasileira e, em especial, os negros. Eles não têm oportuni-dade de competir em igualdade de condições com os outros. Adotar cotas, pura e simplesmente, é uma medida certeira para degradar o nível das universidades públicas – porque serão aceitos alunos menos qualificados –, que não vai resolver séculos de discriminação econô-mica e até racial. Ao contrário, o racismo será oficializado. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

A ideia de mérito está claramente evidenciada nas frases seguintes: “Os processos de admissão são realizados com base no mérito”; “O ves-tibular é um concurso público e, como tal, seleciona por mérito”; “Ado-tar cotas, pura e simplesmente, é uma medida certeira para degradar o nível das universidades públicas”; “porque serão aceitos alunos menos

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qualificados”. Assim, segundo as falas dos entrevistados, a qualidade do ensino superior cairá com a implantação das cotas, pois na seleção para o ensino superior deve prevalecer o princípio da meritocracia, em que todos os indivíduos devem vencer pelas suas próprias capacidades.

Se inicialmente a lógica meritocrática transparece como uma defe-sa da igualdade, seu fundamento, no entanto, é marcado pela distinção. Ou seja, os indivíduos são vistos como portadores de diferenciadas ca-pacidades e que serão reveladas por meio de uma seleção. Aqueles que possuem mais mérito para a função em disputa serão recrutados. E isto é não só legítimo como legal para os que são contrários às cotas raciais.

Todavia, não se deve esquecer que o mérito calcula apenas as con-dições instantâneas dos indivíduos em um determinado momento. Parte-se do pressuposto de que todos possuem as mesmas condições. Entretanto, para que haja igualdade, de fato, todos deveriam ter o mes-mo padrão social e de acesso aos benefícios sociais ao longo da vida. Evidentemente, isto não existe nos processos seletivos que envolvem ne-gros e brancos no Brasil. O racismo condiciona o desempenho de negros (negativamente) e de brancos (positivamente) nos processos seletivos.

Além disso, para vários analistas que se debruçaram sobre a for-mação nacional, no Brasil não se implantou uma estrutura burocrática que, em última instância, sempre se pautou pela seleção íntegra, do seu corpo por meio do mérito. O que prevaleceu foi uma variante do mo-delo tradicional, o patrimonialista (Faoro, 1979; Buarque de Holanda, 1994). Tal modelo põe em xeque não apenas o discurso de que no Brasil prevalece a seleção baseada nos princípios racional-legais, como também a existência de oportunidades e tratamento semelhantes para todos.

É preciso, por fim, desconstruir a ideia de mérito. Embora não com o objetivo explícito de desconstrução deste pressuposto, o Programa de Avaliação Seriada (PAS), desenvolvido pela Universidade de Brasília, sur-giu a partir de inúmeros questionamentos sobre a real eficácia do sistema de vestibular. De acordo com as linhas norteadoras do PAS, o vestibular tradicional direciona os estudantes para a prática da “decoração” e não da

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construção de um conhecimento em si. Tem-se, portanto, uma ação re-flexiva e prática que questiona o fato de que o vestibular, de fato, seleciona os “melhores”. Questiona-se, assim, o mérito. A experiência do PAS, sem dúvida, surge como uma experiência mais democrática de acesso, mas não faz, todavia, justiça aos negros, porque as práticas racistas não per-mitem que eles cheguem em maior número ao final da educação básica.

Conclusões

Apontamos, ao longo do texto, inúmeras falas contrárias à implan-tação de um sistema de cotas. Tentamos demonstrar como elas podem se enquadrar em quatro grandes campos discursivos. Talvez fosse adequa-do, todavia, destacar ainda um último campo para as falas que não foram representadas neste texto. Referimo-nos às falas favoráveis às cotas.

Elas poderiam se situar no que chamamos de campo simbólico. Negar as cotas possui muito mais significado, o que não nos permite vê-las como simples argumentações cotidianas. Mas defender a imple-mentação das cotas também tem significados e que também precisam ser explícitos. Há certamente, e esta é a aposta de todos os defensores das cotas raciais, de se constituir e consolidar um forte valor simbólico que seja capaz de romper com as precárias condições sociais dos ne-gros no Brasil e no mundo. Uma boa representação das falas ausentes pode ser lida nas palavras de Marco Aurélio de Mello, ministro do Su-premo Tribunal Federal (STF), ao afirmar que

o Estado deve tomar iniciativas que garantam tratamento igualitário aos brasileiros, para saldar dívidas históricas com as, impropriamente chamadas, minorias. Um ônus que é de toda a sociedade. A igualdade é um direito previsto na Constituição. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. A correção das desigual-dades é possível. Por isso, a postura dos legisladores deve ser, sobretu-do, afirmativa. Acho que as cotas são o primeiro passo nesse caminho. É necessário aumentar o acesso à educação. (Borges, jornalista, Correio Braziliense, 27 abr. 2004).

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Pelas palavras do ministro e ex-presidente do STF, Marco Au-rélio de Mello, o Estado não apenas pode como deve produzir me-canismos que “garantam tratamento igualitário aos brasileiros”. Tal prática torna-se necessária, sobretudo, quando percebemos que as políticas públicas até o momento têm se mostrado incapazes de sa-nar as disparidades entre os mais variados segmentos sociais, espe-cialmente entre negros e brancos.

Só para termos um parâmetro da desigualdade, segundo os dados do Ipea, com relação à distribuição de renda, a maior parte dos negros está concentrada nas faixas mais pobres. Ou seja, se pegarmos os 10% mais pobres do país, veremos que 70% deles são negros. Contraria-mente, se pegarmos os 10% mais ricos, verificaremos que 90% deles são brancos (Ipea, 2003). Diante desses números, podemos afirmar se-guramente que a pobreza no Brasil tem uma cor/raça predominante, a negra, e que os ricos são majoritariamente brancos. Se um dos maiores receios dos anticotas é que sua implementação constituiria uma socie-dade racializada, os dados do IPEA demonstram claramente, que ela, há muito tempo, está racializada.

Analisando os microdados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) de 1999, Jaccoud e Beghim (2002) constataram que a renda per capita dos braços equivale a R$ 352,00. Bem acima da média nacional, que é de R$ 257,00, e muito mais alta que a renda per capita dos negros (pretos e pardos), R$ 156,00 por mês ( Jaccoud; Beghim, 2002, p. 21). Na mesma pesquisa da PNAD, tomando os dados sobre educação, se verifica que a taxa de analfabetismo entre os brancos é de 8%, ao passo que a dos negros chega a 20%. Finalmente, ainda traba-lhando os dados da PNAD, as autoras demonstram que a taxa de ma-trículas líquidas no ensino fundamental nas séries iniciais (1ª. a 4ª.) para brancos é de 98%, enquanto que, para negros, é de 95%; já nas últimas séries (5ª. a 8ª.), as matrículas de brancos caem para 75%, enquanto que as dos negros descem para 50%. Os dados são mais drásticos à medida que sobem para o ensino médio. Nele, as taxas de matrículas

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líquidas dos brancos correspondem a 45%, mas as dos negros represen-tam apenas 22% ( Jaccoud; Beghim, 2002).

Como pudemos observar nos dados de Jaccoud e Beghim (2002), existe uma distância significativa entre o acesso de negros e de brancos nos distintos estágios da educação básica. Que dirá no ensino superior! Contudo, se reconhecermos a educação como um dos poucos mecanismos legais de acesso a uma qualidade de vida melhor, então devemos concluir que essa disparidade de acesso tem sido um dos pilares da desigualdade.

Assim, em primeiro lugar, o que se percebe ao longo da exposição das várias falas publicadas pelo Correio Braziliense contra as cotas para negros (ainda que subliminarmente presente nas entrelinhas) é que perpassa na sociedade uma forte tendência a não aceitar, sobretudo, por aqueles mais escolarizados, a partilha do universo intelectual. Para muitos dos indivíduos escolarizados, construir uma carreira alicerçada em uma formação de ensino superior foi um caminho para se diferen-ciar. Logo, abrir a universidade para negros será como torná-lo igual a muitos a que ele não gostaria de se igualar.

Em segundo lugar, a sociedade ainda está fortemente assentada sobre o paradigma da ideologia da democracia racial brasileira, segun-do a qual negros e brancos vivem em harmonia e têm as mesmas opor-tunidades e tratamentos. O que os diferencia e os torna desiguais nas disputas por bônus sociais é a sua renda ou classe social e não a diferen-ça de cor/raça. Portanto, qualquer prática de política de cotas apenas tenderia a distorcer as relações supostamente de equilíbrio e igualdade já estabelecidas entre negros e brancos no Brasil.

Consequentemente, quando se observa algum entendimento sobre as distinções entre os dois grupos raciais – brancos e negros –, há, em geral, um indicativo para a fuga do debate sobre a questão racial brasileira, recaindo-se imediatamente no plano da desigualda-de econômica. Aqui algumas falas reconhecem que os negros com-põem uma parcela representativa dos pobres, porém reafirmam o

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pressuposto da democracia racial, ao indicarem que as cotas para negros seriam injustas para com os brancos pobres.

Pode-se constatar que existe uma expressiva resistência em reco-nhecer o efeito do racismo na constituição das relações sociais. Enten-de-se claramente o discurso contra a pobreza e sobre a escola pública, mas “magicamente” a sociedade brasileira, marcada por uma forte disparidade entre negros e brancos, em função do racismo contra os negros, não deve nada à estrutura racial construída desde a fundação da ordem escravocrata brasileira. Ou seja, acabam por sugerir que es-queçamos o corte racial, pois a raça em si não produz uma distinção real nas condições sociais. Berger (1998) afirmava: “o passado nos go-verna”. Nesta afirmação ele se refere aos valores que guardamos como herança de nossos antepassados. De acordo com os dados do Ipea (2003), as condições econômicas também se perpetuam:

As desigualdades raciais observadas no Brasil de hoje nada mais são que o resultado das brutais desvantagens originais geradas pelo regi-me escravista, transmitidas através das gerações, reforçadas pela ação de discriminações e preconceitos racistas, que também foram forjados no passado, mas que continuam vivos e atuantes.

Ao que parece, existe um forte receio da sociedade, da intelec-tualidade e das autoridades em debater a questão racial no Brasil. O “bolo” das riquezas não deve ser repartido. Para tanto, se difundiu a tese de que o brasileiro tem uma alma cordial. Da mesma forma, não se deve repartir o “bolo” cultural. Assim, cria-se e difunde-se a ideo-logia da democracia racial. É preciso, portanto, construir um novo paradigma de relações sociais que permita aos diferentes segmentos da sociedade a possibilidade não apenas de ascensão social, mas de reconhecimento de sua identidade (Fraser, 2001, 2003; Hall, 2003).

Finalmente, há um argumento sistematicamente presente nos debates sobre o tema das cotas que tem marcado a vida política e inte-lectual brasileira: a de produzir seu próprio conhecimento e não apli-

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car a velha fórmula da “importação de ideias”. Assim se argumenta: 1. que as cotas representam uma cópia imperfeita das chamadas “políti-cas compensatórias”, invenção já descartada nos EUA; 2. que vivemos numa democracia racial, já que não presenciamos os distúrbios ou a violência física contra os negros como nos Estados Unidos, por exem-plo; 3. que a política de cotas não deve ser aplicada, pois no Brasil todos são tratados com igualdade.

As linhas gerais desse tipo de raciocínio estão muito bem repre-sentadas no discurso de Fernando Henrique Cardoso, na abertura ao seminário internacional Multiculturalismo e Racismo. Tal seminário foi realizado no Palácio do Planalto em Brasília no ano de 1996 e, se-gundo o então presidente da República:

Nós, no Brasil, de fato convivemos com a discriminação e convive-mos com o preconceito, mas as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, o que significa que a discriminação e o preconceito que aqui temos não são iguais aos de outras formações culturais. Portanto, nas soluções para esses problemas não devemos simplesmente imitar. Te-mos de ter criatividade, temos de ver de que maneira a nossa ambigüi-dade, essas características não cartesianas do Brasil – que dificultam tanto em tantos aspectos – também podem ajudar em outros aspectos. Devemos, pois, buscar soluções que não sejam pura e simplesmente a repetição ou a cópia de soluções imaginadas para situações em que também há discriminação e preconceito, mas em contexto diferente do nosso. É melhor, portanto, buscarmos uma solução mais imagina-tiva. (Cardoso, 1996, p. 14-15).

A experiência nos mostrou o equívoco da frase de Roberto Cam-pos ao afirmar que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Possuímos valores distintos, necessidades diferenciadas, por-tanto, deveríamos procurar nossas próprias soluções. Isto é verdade, porém, apenas em parte. As boas experiências devem servir de modelo para todos. O que devemos negar são os modelos rígidos que não per-mitem adaptações, que são impermeáveis às nossas necessidades. Para

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finalizar, deve-se deixar claro que o discurso de Fernando Henrique, diferente do que se costuma anunciar como defensor da inserção do negro nas estruturas sociais, apenas denota uma preocupação com os modelos a serem apresentados. Conforme podemos perceber em seu discurso, longe está sua vontade de oferecer as possibilidades de inser-ção do negro segundo os parâmetros utilizados pelos Estados Unidos, ou seja, por meio de uma política de ação afirmativa e pela implanta-ção das cotas para negros.

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Governança democrática, informação e direitos humanos1

Heloisa Dias Bezerra Vladimyr Lombardo Jorge Uianã Cordeiro Cruvinel Borges

Introdução

A criação da internet e a difusão do seu acesso aumentaram a possi-bilidade de divulgação de informações, ampliaram as formas de controle dos agentes estatais e criaram expectativas quanto à expansão da partici-pação política dos cidadãos. Mas, se por um lado a participação política dos cidadãos no processo decisório de seus respectivos países ainda con-tinua muito aquém das expectativas despertadas, por outro, estes e orga-nizações não governamentais têm se valido sistematicamente dessa im-portante ferramenta para obter apoio ao redor do mundo às suas causas e mobilizar a opinião pública internacional com o intuito de pressionar os governos a respeitar os direitos de grupos minoritários ou fragilizados.

1 Este texto é fruto do projeto de pesquisa Democracia e Boa Governança Via Websites dos Governos Estaduais, financiado pelo CNPq. Versões preliminares deste paper foram apresentadas no IPSA’s 21st World Congress of Political Science, Santiago do Chile, 2009, e no XIV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Rio de Janeiro, 2009.

[ 156 157 ] Heloisa D. Bezerra | Vladimyr L. Jorge | Uianã C.Cruvinel Borges

Neste início de século XXI, o reconhecimento e, sobretudo, a efe-tivação defesa dos direitos humanos continuam sendo uma questão primordial e que mobiliza chefes de Estado, organizações internacio-nais multilaterais e organizações não governamentais. Nosso objetivo, neste texto, é discutir a relevância política da internet diante das limita-ções da democracia representativa e das frustrações que esta causa, em particular as relacionadas à proteção dos direitos humanos. Daremos uma atenção especial ao caso do Brasil, que, embora viva uma demo-cracia estável há mais de vinte anos, ainda não conseguiu tornar efeti-vos vários dos direitos que integram os direitos humanos, inclusive os direitos civis para as pessoas de baixa renda.

Democracia representativa, limites e perspectivas

Embora a realização periódica de eleições livres e limpas seja um requisito necessário para haver democracia, esse critério é insuficiente e muitos cientistas políticos utilizam outros, além das eleições, para identi-ficar um país democrático. Mas, ainda que ampliem sua definição de de-mocracia, excluem uma variedade de questões. Mainwaring et al. (2001), por exemplo, não consideram que os direitos sociais sejam uma respon-sabilidade pública (accountability) e as “falhas do estado de direito” sejam requisitos necessários à definição de democracia. Considera-se o respeito aos direitos civis, que são parte da noção de direitos humanos,2 relevante para fins de classificação dos regimes políticos apenas se a violação destes vier a alterar significativamente o resultado de um pleito. Apesar dessas exclusões, nos países que estão se redemocratizando a população tende a gerar expectativas otimistas com relação à sua situação socioeconômica e a forma como os governos tratarão suas privações (de justiça, de saúde etc.). Todavia, as democracias têm limitações e, à medida que essas expec-

2 Os outros direitos que compõem a noção de direitos humanos são: direitos políticos, direitos sociais, direitos culturais, direitos econômicos e direitos ambientais.

Sociologia e educação em direitos humanos

Governança democrática, informação e direitos humanos 157 ]

tativas não se realizam ou não se concretizam completamente, podem gerar frustrações e apatia em relação aos valores democráticos.

Para os latino-americanos, a redemocratização de seus respectivos países não se resumia apenas ao fim do regime autoritário, mas significa-va também desenvolvimento econômico acompanhado de redistribuição de renda, igualdade social, redução das assimetrias entre as regiões e su-pressão das carências. A incapacidade de os governos eleitos democratica-mente promoverem tais melhorias gerou frustrações que se refletiram na percepção que os cidadãos têm de suas instituições políticas.3 À medida que esses governos não apenas demonstraram ser incapazes de responder satisfatoriamente a essas demandas, mas também adotavam políticas eco-nômicas que as agravavam ainda mais, as instituições democráticas libe-rais entravam em crise, o que levou ao aumento da instabilidade política em vários países da região.4 O Brasil foi uma das exceções, pois nenhuma das crises políticas ou econômicas enfrentadas pelo país representou uma ameaça à sobrevivência do regime. O que nos permite dizer que, desde os anos 1980, o Brasil vive a sua mais longa e estável experiência demo-crática. Mas, apesar da estabilidade, os brasileiros compartilham com os demais latino-americanos uma enorme desconfiança com relação às suas instituições políticas, sendo isso um dos sintomas da crise que se abateu sobre as instituições políticas da região.5

Menos otimista, José Murilo de Carvalho avalia as limitações da de-mocracia representativa como uma séria ameaça à sua própria existência.

3 Ver Power; Jamison, 2005.

4 É irônico que, após a terceira onda democrática, que foi mais abrangente do que as anteriores (1828-1926 e 1943-1962), as instituições políticas democráticas tenham entrado em crise em muitos países da América Latina (Huntington, 1993, 1994).

5 Além do aumento da desconfiança, outros sintomas apontados pela literatura são: o desaparecimento ou o enfraquecimento dos partidos políticos tradicionais em alguns países e alguns dos itens das reformas políticas que quase todos os países da região promoveram entre 1984 e 2007.

[ 158 159 ] Heloisa D. Bezerra | Vladimyr L. Jorge | Uianã C.Cruvinel Borges

[...] a estabilidade democrática não pode ser ainda considerada fora de perigo. A democracia política não resolveu os problemas econô-micos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento, e houve agravamento da situação dos direitos civis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidas transformações da economia internacional contribuíram para pôr em xeque a própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde a independência. (Carvalho, 2004, p. 199).

As limitações da democracia representativa na área social e as frus-trações com relação ao desempenho de suas instituições têm estimula-do não somente a crítica a esse tipo de democracia, mas também a valo-rização de um modelo que estimule a participação direta dos cidadãos. Se não propõem a eliminação completa da democracia representativa, tais limitações estimulam seus críticos à esquerda a proporem a demo-cracia deliberativa ou participativa em nível local ou operando conjun-tamente com a democracia representativa (Santos; Avritzer, 2005).

Para terem mais controle sobre seus representantes ou deci-direm sobre algum assunto (em uma eleição, um plebiscito, um referendo ou veto legislativo), os cidadãos individualmente ou as instituições da sociedade civil (ONGs, sindicatos etc.) necessitam de mais informação além daquela disponível nos órgãos de imprensa tradicionais ( jornal, rádio e televisão). Mesmo nas democracias re-presentativas, que não exige uma cidadania ativa, a oposição e os jornalistas, para que possam desempenhar efetivamente seu papel de “cão de guarda da democracia”, precisam que as instituições pú-blicas disponibilizem suas informações.

Se há algo importante a fazer em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para dar embasamento social ao po-lítico, isto é, para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado. (Carvalho, 2004, p. 227).

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Governança democrática, informação e direitos humanos 159 ]

Podemos completar a frase de Carvalho acrescentando: o Estado que suprime vidas e talentos por ausentar-se de cumprir suas funções cons-titucionais ou adotar políticas públicas ineficientes.

Além disso, conforme apontado por Robert Dahl (1997), um dos indicadores do aprofundamento da democracia é a responsividade dos governos, ou seja, a capacidade do Estado de ouvir as demandas da socie-dade e transformá-las em políticas públicas efetivas. Participação políti-ca, portanto, deve ser compreendida como um dos requisitos para que se possa efetivar a responsividade necessária à democratização do Estado.

Informação, TICs e controles democráticos

A distância entre representantes e representados e os custos da informação política são apontados como entraves da participação ativa dos cidadãos na vida política. Supõe-se que constituiriam uma ameaça constante à estabilidade da democracia, quer seja nos países de demo-cracia consolidada, quer nos países que ainda encontram-se em vias de consolidar-se. Com a emergência das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs), tais como internet, celular e outras, especia-listas retomam o debate sobre novas perspectivas para a democracia, tomando como parâmetros certas questões sobre o modo como inci-dirão sobre o ambiente político democrático.

De acordo com Silva (2005), a maioria dos pesquisadores admite a potencialidade comunicativa das TICs, havendo, contudo, divergências quanto ao “tipo” e à “intensidade” de repercussão. Na falta de termos melhores, estes pesquisadores podem ser dispostos em três grupos: “oti-mistas”, “moderados” e “pessimistas”, afirmando que não são todos os analistas que veem as consequências das TICs de forma positiva. Bezerra (2008, p. 2) reclassificou os pesquisadores a partir de uma perspectiva da teoria política, que é a que adotamos neste trabalho e em nossa pesquisa:

[...] os denominei por “cyberotimistas rousseanianos” e “cyberpessimis-tas schumpeterianos”. Os primeiros estão relacionados à percepção de

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que as novas TICs constituem um surpreendente caminho para novos padrões de interação em ambientes democráticos, avanços que supos-tamente poderiam ser observados tanto na postura de políticos e buro-cratas, quanto nos próprios cidadãos, fazendo coro, assim, aos ideais do deliberacionismo ou do participativismo. Por seu turno, os “cyberpessi-mistas schumpeterianos” não acreditam nessa possibilidade incremental das TICs no que tange à participação política, seja pela inexistência de interesse por parte daqueles que estão à frente dos poderes públicos, seja pela apatia quase inerente aos indivíduos, diariamente acossados pelas necessidades e prazeres da vida cotidiana. Dentro dessa perspectiva, a participação política está intimamente relacionada ao modo como os in-divíduos percebem o mundo público, ou seja, a política e os governantes, como coisas alheias ao leque de questões com as quais precisam de fato interagir e que, basicamente, dizem respeito ao mundo privado.

A classificação referida reflete o debate atual entre diferentes mo-delos de democracia: democracia representativa, originada a partir do aumento gradual do corpo eleitoral obtido com adoção do sufrágio universal; democracia participativa; democracia semidireta. Se a pri-meira reduz a participação política ao ato de escolher os representantes em eleições livres e honestas, a segunda amplia a participação pelo uso de institutos que permitem aos cidadãos interferir diretamente no pro-cesso deliberativo. Os defensores deste segundo modelo creem que seu uso é capaz de aproximar as políticas públicas dos reais interesses dos cidadãos. Qualquer que seja o modelo de democracia adotado, as TICs constituem recursos fundamentais tanto para a gestão pública quanto para a aproximação estado–sociedade. Podem permitir o acesso rápido e fácil a informações necessárias a organizações não governamentais, partidos de oposição e jornalistas interessados em fiscalizar o poder público ou aos próprios cidadãos quando convocados a deliberarem diretamente a respeito de uma questão.

Para Malina (1999), Schmidtke (1998) e Coleman (1999), as TICs seriam marcadas por uma natureza ambígua e o seu uso para fins polí-ticos benéficos depende, sobretudo, do modo de apropriação social; já

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Dean (2001), Buchstein (1997) e Wolton (2001) veem mais seus efeitos negativos do que suas consequências positivas ou ambiguidades (apud Silva, 2005).

Quanto à divergência que os analistas têm sobre a intensidade de repercussão, os otimistas sustentam predominantemente a ideia de que o uso em larga escala das TICs seria capaz de transformar de modo signi-ficativo as relações sociais e políticas, estando esta visão bastante afinada com a ideia de uma “revolução digital” ou o surgimento de uma “socie-dade da informação” (Silva, 2005). Os moderados restringem essas trans-formações a um rearranjo do sistema democrático liberal, admitindo re-percussões importantes, mas não tão significativas a ponto de se afinarem com a ideia de uma “revolução” (Silva, 2005).

Além dessas diferentes perspectivas sobre a potencialidade políti-ca das TICs, há também diferentes retóricas que disputam o modelo de democracia no ciberespaço. Silva indica três segmentos predominan-tes: individualista-liberal, comunitarista e deliberacionista, que se di-ferenciam quanto aos seus respectivos entendimentos de legitimidade democrática. Para os individualistas, a democracia obtém legitimidade quando fornece expressão aos interesses individuais; para os comuni-taristas, um modelo democrático é legitimado por realçar o espírito e valores comunais; já os deliberacionistas entendem que um modelo democrático é legitimado por sua facilitação do discurso racional na esfera pública (Dahlberg apud Silva, 2005).

Tendo em vista que o debate sobre o emprego político das TICs no sistema democrático contemporâneo apresenta uma variação de visões sobre as promessas e o modo de existência de uma democracia mediada por artefatos tecnológicos, Silva (2005) observa que o termo “democracia digital” refere-se a experiências distintas, ainda que de-mocráticas. Para ele, esta variação de sentido pode ser pensada a partir da percepção da existência de cinco graus não excludentes de partici-pação democrática da sociedade civil nos processos de produção de decisão política sugeridos por Gomes (2004).

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Esses cinco graus de democracia digital variam entre um polo de baixíssima participação (primeiro grau), no qual o cidadão se limita a receber informações ou usufruir de serviços que o governo disponi-biliza, e outro (quinto grau), nos qual os cidadãos substituem os seus representantes políticos na produção da decisão (Silva, 2005). Embora, em princípio, um grau de democracia digital não exclua ou inclua ne-cessariamente o outro, um projeto pode ocupar uma posição interme-diária entre dois graus, estando mais propenso para um, sob um aspec-to, e para outro, sob outro aspecto. Silva (2005, p. 457) ressalta ainda:

A percepção de algum desses graus na implementação da democracia digital leva em conta um olhar cuidadoso: a existência de elementos de determinados graus não significa que exista, de fato, uma demo-cracia digital. Significa que existem indícios “graduantes (e não de-terminantes) de um ideal democrático mediado por tecnologias da comunicação e informação.

Na pesquisa que dá origem a este texto tomamos como premissa a centralidade do conceito de boa governança, o qual, de acordo com a literatura especializada, é um indicativo ótimo da democratização das relações entre representantes e representados e do esforço dos poderes executivos quanto ao empoderamento da sociedade civil. Considera-se que isto ocorre, principalmente, pela disponibilização de informações adequadas e suficientes para habilitar os cidadãos nas demandas políti-cas e prestar atenção no desempenho dos políticos.

As TICs, portanto, podem tornar tanto mais democrático o im-portante debate sobre direitos humanos quanto tornar mais eficien-te o controle da sociedade civil das políticas públicas relacionadas a este tema. Isso é possível, à medida que os governos satisfaçam a duas exigências: (1) permitam que indivíduos, grupos e outras instituições (órgãos de imprensa, partidos políticos, ONGs etc.) tenham acesso às informações suficientes e necessárias para que estes possam exercer controle horizontal ou vertical sobre os agentes estatais e (2) ofereçam

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mecanismos que permitam aos indivíduos, grupos e outras instituições interagir direta ou indiretamente e expressar suas preferências perante ações e políticas públicas desenvolvidas e em desenvolvimento. Talvez, dessa forma, os governos, qualquer que seja o seu matiz ideológico, tornar-se-iam menos propensos a violar os direitos básicos dos cida-dãos. Em vez de o Estado controlar o cidadão, este é quem controla o Estado ou, ao menos, à moda republicana, constrói mecanismos de salvaguarda contra quaisquer ameaças oriundas do Estado.

A ideia dos controles democráticos que tomou corpo nos textos federalistas pode ser tanto do tipo horizontal, entre as próprias insti-tuições dos três poderes constituídos, ou do tipo vertical, qual seja, da sociedade para o Estado. Parte da literatura sobre internet e política aponta o aprofundamento da accountability política como uma forma de empoderamento de indivíduos e grupos e, consequentemente, de fortalecimento dos controles democráticos.

Democracia digital no Brasil e alhures

O Brasil tem dimensões continentais e, desde 1889, é uma república federativa, com unidades bastante diferentes, seja em termos de localiza-ção quanto de acesso a bens e riqueza. Há, portanto, fortes assimetrias entre as unidades da federação. A existência de tais assimetrias suscita a seguinte pergunta: investimentos em convergência digital resultarão em superior accountability política e responsividade governamental e, conse-quentemente, a concretização de alguns dos requisitos político-adminis-trativos fundamentais para a prática da boa governança?

Cremos que a resposta a essa pergunta é negativa, ou seja, a de que não há uma relação inequívoca entre investimento em convergên-cia digital e a realização qualitativamente superior da accountability po-lítica e da responsividade.6

6 Hipótese que estamos testando na pesquisa Democracia e Boa Governança Via Websites dos Governos Estaduais.

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Os dados da Pesquisa TIC Domicílios e Usuários, realizada anual-mente pelo Cetic/Centro de Estudo das TICs, mostra que o acesso à inter-net domiciliar ainda não é uma realidade para indivíduos de baixa renda:

Tabela 1 – Proporção de domicílios com acesso à internet (%)*

*Sobre o total de domicílios 2006 2007 2008

Total/Brasil 14,49 17 20

Regiões do país

Sudeste 18,74 22 26

Nordeste 5,54 7 9

Sul 16,90 21 23

Norte 6,15 5 9

Centro-Oeste 13,05 16 23

Classe social A 81,49 82 93

B 51,22 50 59

C 12,10 16 17

DE 1,61 2 1Fonte: www.cetic.br

Esta pesquisa revela, ainda, que nos últimos anos mais de 80% da população das classes DE nunca havia acessado a internet.

Tabela 2 – Proporção de indivíduos que nunca acessou a internet (%)*

*Sobre o total da população com 10 anos ou mais 2006 2007 2008

Total/Brasil 66,68 59 57

Regiões do país Sudeste 63,11 57 53

Nordeste 77,59 67 65

Sul 63,81 54 57

Norte 74,46 68 64

Centro-Oeste 61,06 55 50

Classe social A 4,92 6 10

B 27,71 27 24

C 61,15 53 54

DE 87,77 83 81

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Considerando que o acesso à informação é um dos direitos funda-mentais dos indivíduos, essa assimetria informacional demonstra que a mudança de postura dos atores políticos é tão ou mais relevante que o simples investimento financeiro. Portanto, retomando o argumento sobre a hipótese da pesquisa, não se trata de uma abordagem pessimis-ta, mas de uma perspectiva teórica que considera como fundamental reengenharia, no perfil do Estado, um movimento de renovação das estruturas em direção à transformação do papel do Estado e da relação deste com a sociedade. Por isso consideramos fundamental analisar as TICs e o comportamento dos atores políticos vis-à-vis alguns dos mais significativos dilemas da teoria e da práxis política democrática.

Desde os anos 1980, o Brasil vive sua mais longa e estável expe-riência democrática. Pesquisas de opinião pública, contudo, mostram que, apesar desse saldo positivo, a desconfiança política é demasiada-mente elevada no País. Por isso, políticos e sociedade civil discutem o que fazer para reverter essa situação: o que fazer para tornar a res publica mais acessível ao homem comum? Como minimizar o mau uso dos recursos públicos e dificultar a apropriação desses recursos por in-divíduos ou grupos privados (patrimonialismo)? Como permitir que os cidadãos comuns exerçam um controle mais efetivo sobre os seus re-presentantes? ( Jorge, 2009). Devemos acrescentar, ainda: como impe-dir que o Estado seja uma ameaça à vida e às liberdades dos cidadãos?

Apesar dos avanços introduzidos pela Constituição de 1988, ain-da há muito que fazer no que tange aos direitos sociais e, sobretudo, aos direitos civis. Carvalho (2004, p. 210) constata que, “dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu conhecimento, extensão e garantia”. Mais adiante ele completa: “A falta de garantia dos direitos civis se verifica, sobretudo, no que se refere à segurança individual, à integridade física, ao acesso à justiça” (Carvalho, 2004, p. 211). Mais de vinte anos após a promulgação da Constituição de 1988, a violência po-licial continua a ser uma das principais causas da violação dos direitos

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humanos no Brasil. As forças policiais cometem sistematicamente abu-sos, sobretudo contra pessoas de baixa renda, especialmente negros e jovens. As prisões, de um modo geral, apresentam condições subu-manas. Fora dos centros urbanos, é frequente a violência (ameaças de morte, assassinatos, torturas) contra trabalhadores rurais e povos indí-genas, perpetrada tanto por agentes públicos quanto por particulares.

Mudanças institucionais têm sido propostas com o intuito de fortalecer a representatividade das instituições e o controle sobre seus membros, fortalecendo as tradições democrática, republicana e liberal. Paralelamente, transitam no Congresso Nacional propostas de mudan-ça da legislação em vigor visando aumentar a participação política dos cidadãos e o controle destes sobre seus representantes no Legislativo e no Executivo7 ( Jorge, 2009). Mas, apesar dessas propostas visando intensificar a participação direta dos cidadãos brasileiros, não devemos vê-las como parte da proposta de reforma política. Nossos reformado-res partem da premissa de que é preciso fortalecer a democracia repre-sentativa e que, para isso, é necessário que se mantenham reduzida a participação dos cidadãos e ociosos os institutos da democracia semi-direta ou participativa ( Jorge, 2009).

7 Apesar de haver muita resistência à participação direta dos cidadãos brasileiros, há, no Congresso Nacional, propostas que ampliam ainda mais a participação popular. O Projeto de Lei 4.718/2004, da Comissão de Legislação Participativa, regulamenta o uso dos institutos (plebiscito, referendo e iniciativa popular) estabelecidos pelo artigo 14 da Constituição Federal. Com intuito de introduzir o recall (revogabilidade) e o veto popular na Constituição Federal brasileira, foram apresentadas as Propostas de Emenda Constitucional (PEC) nº 80 e nº 82. A primeira, do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-CE), propõe alterações no artigo 14 da Constituição: a inserção de dois incisos que, se aceitos, introduzirão, no Brasil, o direito de revogação (recall) e o veto popular. A segunda foi apresentada em 2003, pelo senador Jefferson Peres (PDT-AM). Essa emenda propõe mudanças nos artigos 28, 29, 32, 55 e 82 da Constituição, com o intuito de “prever o plebiscito de confirmação de mandato dos representantes do povo eleitos em pleito majoritário”. Em 2005, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) apresentou a PEC nº 73, que altera dispositivos dos artigos 14 e 49 da Constituição Federal e acrescenta o artigo 14-A à Constituição ( Jorge, 2009).

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O baixo estímulo à participação política também é percebido nos sítios dos governos das capitais brasileiras na internet. Silva (2005) constatou que, no Brasil, nos sítios dos governos das capitais brasilei-ras, a disponibilidade de informação e a prestação de serviços públicos ao cidadão são formas de participação que estão em vias de consolida-ção e, ainda assim, possuem um caráter predominantemente informa-tivo: os elementos de prestação de serviços aparecem em quantidade menor e são direcionados predominantemente para a relação entre a Secretaria de Fazenda e o contribuinte. Além disso, verificou também que quase metade dos governos das cidades analisadas “não tem preo-cupação em manter um canal eficiente de comunicação direta com o cidadão solicitante” (Silva, 2005, p. 459-460).

Silva (2005, p. 463) conclui que os sítios dos governos estaduais oferecem

pouca transparência, pouca accountability e praticamente nenhuma permeabilidade à opinião pública por parte de um Estado que poten-cialmente empregaria as TICs (especificamente da internet) para me-lhorar a participação do cidadão nos negócios públicos.

Já os meios que permitiriam ao cidadão ter uma participação efetiva sobre o processo de definição das políticas públicas estão com-pletamente ausentes nos portais dos governos das capitais brasileiras. Embora, segundo Silva (2005, p. 464), haja informações sobre proces-sos de deliberação através do chamado Orçamento Participativo em alguns sítios, “não há referências sobre a utilização das TICs ou da internet como meio de comunicação para viabilizar a participação neste mecanismo deliberacionista”.

As conclusões de Silva com relação aos graus de participação polí-tica oferecidos pelos governos estaduais corroboram, portanto, a nossa constatação de que as propostas de reforma política no Brasil visam so-mente fortalecer as instituições clássicas da democracia representativa (partidos políticos, Poder Legislativo etc.), mantendo reduzida a parti-

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cipação dos cidadãos aos períodos eleitorais. Além disso, não oferecem informações que permitam à imprensa e às ONGs fiscalizarem suas ações, seja nas áreas que envolvem a proteção dos direitos humanos seja em qualquer outra área.8

Braga (2006, 2007) tem uma percepção otimista quanto ao futu-ro das TICs não apenas no Brasil como em toda América do Sul. Ele constatou que o Legislativo nacional brasileiro, Congresso Nacional, encontra-se entre os

com alto grau de informatização [...] assim como os sites das casas legislativas unicamerais do Peru e da Venezuela, que colocam uma gama relativamente ampla de recursos à disposição do pesquisador e do cidadão comum sobre várias dimensões de seu processo decisório. (Braga, 2007, p. 32).

Embora tenha verificado que vários websites sul-americanos apre-sentam deficiências na disponibilização de informações sobre o pro-cesso legislativo e de governo à sociedade civil, situação esta que ele atribui ao baixo grau de institucionalização das democracias parlamen-tares de alguns países, conclui que os legislativos nacionais desta região

[...] apresentam níveis razoavelmente elevados de informatização, pro-piciando ao pesquisador e ao cidadão médio inúmeros recursos para o conhecimento de seu processo legislativo e de governo. Nota-se, assim, um significativo esforço no sentido dos órgãos parlamentares de vários países disponibilizarem informações para os cidadãos e ao pesquisador, processo que consideramos ser simultâneo ao de conso-lidação das democracias parlamentares nessa região, o que nos leva a antever um cenário futuro bastante diverso daqueles que prevêem um espraiamento de “democracias delegativas” pelo continente. Ao con-

8 A internet também é utilizada frequentemente como veículo para realizar campanhas visando arregimentar apoio à causa da defesa dos direitos de homossexuais, mulheres, minorias étnicas, pessoas pobres entre outros grupos.

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trário, o que se percebe é uma busca consistente de maior transparên-cia do funcionamento dos órgãos parlamentares e do comportamento dos políticos sulamericanos, e as TICs são um instrumento auxiliar de fundamental importância nesse processo. (Braga, 2007, p. 32-33).

No entanto, Braga não vê nas TICs um meio de introduzir um novo modelo de democracia, a democracia semidireta ou participativa, o que exigiria outros recursos além daqueles oferecidos atualmente.9 Pelo contrário, entende como um modo de aperfeiçoar a democracia representativa, pois vê a superação das deficiências websites sul-ameri-canos como “uma importante dimensão do esforço para a instituciona-lização e o aperfeiçoamento da democracia parlamentar no continente sul-americano” (Braga, 2007, p. 33).

De qualquer forma, comparando os trabalhos de Silva e de Braga, parece-nos que, no Brasil, o Legislativo tornou-se mais aberto à parti-cipação dos cidadãos do que o Executivo. Isto facilita o acompanha-mento dos debates e decisões sobre questões relacionadas à política de direitos humanos, mas não permite o acompanhamento das políticas públicas decorrentes.

Considerações finais

Com a emergência das TICs os especialistas retomaram o de-bate sobre novas perspectivas para a democracia. O debate se dá em torno do tipo e da intensidade de repercussão da tecnologia no comportamento dos atores, ou vice-versa. Há os “otimistas” ou, como preferimos chamá-los, os “cyberotimistas rousseanianos”, que

9 A democracia participativa não significa, necessariamente, a eliminação completa da representação política. Ela pode ser concebida, segundo Santos e Avritzer, de duas formas, sendo que a democracia representativa em nível nacional pode coexistir com a democracia participativa em nível local ou admite-se que os institutos da democracia direta podem substituir parte do processo de representação e deliberação da democracia liberal (Santos; Avritzer, 2005, p. 75-76).

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acreditam que as novas TICs abrem caminho para a superação das limitações da democracia representativa, efetivando o que, até en-tão, eram apenas ideais deliberacionistas ou participativistas. Já os “cyberpessimistas schumpeterianos” são mais realistas com relação ao uso e às consequências das novas TICs pelos governos, uma vez que não endossam a avaliação de que esta trará mudanças significa-tivas no que tange à participação política. Como argumentos, esse debate é um desdobramento de outro mais antigo sobre democracia representativa e uma variante sua, a democracia participativa.

Observamos ainda as divergências entre os teóricos no que se re-fere à própria legitimidade da democracia. Os individualistas creem que esta decorre do espaço que é concedido para os indivíduos expres-sarem seus interesses individuais; para os comunitaristas, ela decorre da possibilidade de realçar o espírito e valores comunais; os delibera-cionistas, por fim, afirmam que a democracia se origina da facilitação do discurso racional na esfera pública.

Qualquer que seja o modelo de democracia, as TICs podem se tornar um recurso fundamental para cidadãos comuns, ONGs, partidos políticos, órgãos de imprensa e outras instituições estatais, porque fornecem o acesso rápido e fácil às informações antes arma-zenadas em velhos arquivos.

Por exemplo, accountability política tem sido indicada como uma das principais ferramentas de democratização da atividade po-lítica, especialmente governamental. Acredita-se que a disponibili-zação de dados, especialmente se for conduzida pelas instituições, pode incrementar a esfera pública e consequentemente a capacidade de avaliação retrospectiva por parte de indivíduos e grupos. Acredi-ta-se que o simples fato de disponibilizar informação garante mais qualidade à democracia, o que indicaria pouca relevância para os apelos deliberacionistas.

Um aspecto do debate é a redução de accountability à transpa-rência financeira, já que se trata de um elemento significativo para o

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combate à corrupção e para a própria democratização das relações po-líticas. A pergunta que permanece é se realizando uma boa prestação de contas o governante está realizando plenamente o que se espera da accountability política.

Esta questão remete a um segundo conjunto de problemas: como realizar accountability política sem enveredar pela propaganda direcio-nada para a persuasão político-eleitoral de interesse do grupo que está no poder? O terceiro conjunto de problemas diz respeito ao forma-to da prestação de contas políticas, posto que eventuais parâmetros para avaliação retrospectiva certamente teriam como entrave velhos dilemas da democracia representativa: os eleitores podem cobrar pro-messas de campanha ou o representante tem o direito e o dever de ampliar sua atuação em favor, também, das minorias derrotadas, ou seja, indivíduos e grupos que apoiaram e/ou votaram ou votaram em candidatos derrotados? (Manin et al., 2006). O que seria informação relevante? O que poderia ser indicado como accountability política de qualidade? Concluindo, conforme apontou Bezerra (2008), ainda são muito tênues os limites entre prestação de contas com fins informati-vos e propaganda política, com fins meramente de persuasão eleitoral.

Uma questão que nos parece significativa é correlacionar três di-mensões do fazer político numa democracia representativa: informa-ção técnico-administrativa (ou racional legal, nos termos weberianos), responsividade (Dahl, 1997) e accountability no que tange ao processo de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas relati-vas a aspectos da cidadania e dos direitos humanos.

Neste caso, por questões de método, poderíamos separar os as-pectos meramente informativos dos episódios deliberacionistas, lo-calizando o processo decisório pura e simplesmente no âmbito da representação eleita, mas atribuindo significativa importância ao com-partilhamento de informações durante o período de formulação, im-plementação e avaliação dessas políticas, com a possibilidade de um comportamento responsivo dos agentes políticos.

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Ganha relevância o conjunto de informações disponibilizadas co-tidianamente pelas instituições governamentais acompanhado de me-canismos de interação, o que, preliminarmente, nos parece um bom indicativo da ressonância da esfera pública e/ou da sociedade civil organizada junto aos poderes constituídos, considerando que, por su-posto, na democracia representativa os cidadãos esperam contar com o trabalho dos representantes legitimamente eleitos para buscar solu-ções adequadas aos problemas que surgirem durante seus mandatos e que a participação da sociedade fica bem resolvida quando circunscrita aos processos eleitorais e eventuais consultas temáticas por meio de referendos e plebiscitos. Os teóricos da democracia deliberativa ou da ampliação da participação dos cidadãos nos processos decisórios acre-ditam que os limites do modelo representativo engessam a criatividade e as preferências dos indivíduos.

Mas, se de fato responsividade é um indicador de democracia, é relevante que os órgãos públicos criem mecanismos para o cida-dão expressar suas preferências. A grande questão é se de fato há representantes interessados em formular políticas de acordo com preferências manifestadas via mecanismos abertos de consulta po-pular e se os ativistas do século XXI, principalmente a grande maio-ria que acessa a internet, se interessam por participar de processos decisórios encapsulados pelas amarras do Estado e dos interesses dos atores políticos institucionalizados, incluindo aqueles oriundos dos movimentos sociais organizados.

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Sobre os/as autores/as

Dalva Borges de SouzaDoutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professora do Curso de Especialização em Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Dijaci David de OliveiraDoutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e professor da Fa-culdade de Ciências Sociais (FCS) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Heloisa Dias Bezerra Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesqui-sas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professora da Faculdade Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia.

Márcia Cristina LazzariDoutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é consultora do Ministério do De-

senvolvimento Social (MDS) para enfrentamento de violências contra crianças e jovens.

Revalino Antonio de FreitasDoutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Fe-deral de Goiás (UFG).

Robson dos SantosRobson dos Santos. Sociólogo. Graduado em Ciências Sociais pela Uni-versidade Estadual Paulista (UNESP - Campus de Marília). Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Tania Ludmila Dias TostaDoutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Associada ao Núcleo de Estudos sobre o Trabalho da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Uianã Cordeiro Cruvinel Borges Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais com bolsa do CNPq.

Vladimyr Lombardo Jorge Doutor em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Insti-tuto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2003). Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Wivian WellerDoutora em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Coorde-na o grupo de pesquisa Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça/Etnia e Juventude (GERAJU).

© Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tania Ludmila Dias Tosta, 2010Direitos reservados para esta edição: os autores, Ministério da Educação.

RevisãoSueli DunckEstagiáriaIsis Carmo Pereira do Nascimento

Projeto gráfico da coleção e capaAlanna Oliva

Editoração eletrônicaAlanna Oliva

Dados internacionais de catalogação-na-publicação (CIP)(Henrique Bezerra de Araújo)

S678 Sociologia e educação em direitos humanos / organizadores, Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tânia Ludmila Dias Tosta. - Goiânia : UFG/FUNAPE, 2010. 176 p. – (Educação em Direitos Humanos; 3) ISBN: 978-85-87191-70-0 1. Sociologia – Ensino Médio. 2. Direitos Humanos - Sociologia. 3. Licenciatura – Ciências Sociais. I.Título.

CDU 37.015.4

Revisão, projeto gráfico, editoração, impressão e acabamento Campus Samambaia, Caixa Postal 131CEP: 74001-970 - Goiânia - Goiás - BrasilFone: (62) 3521-1107 - Fax: (62) [email protected]