Portfólio de estágio

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Portfólio: A psicanálise, a arte e o híbrido Taís Ferreira Rodrigues

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Portfólio:

A psicanálise, a arte e o

híbrido

Taís Ferreira Rodrigues

Estágio Básico: Psicologia

Clínica e Social

2014Desenho de Tulipa Ruiz.

Ilustração para a matéria “O silêncio e a prosa no mundo”,

de Adauto Novaes, publicada na edição de agosto do jornal

Le Monde Diplomatique Brasil.

E tudo é proibido.

Então, falamos.

Drummond

APRESENTAÇÃO

Minha psicóloga disse quando eu tive meu primeiro

acolhimento e supervisão que o que nos adoece é o não dito.

Por isso, coloquei a frase do Drummond. Já havia pensado

nela, mas não sabia o que dizer.

Esse trabalho mescla arte e psicanálise pra virar um

híbrido. Também passeei pela esquizoanálise, onde meu

coração bate forte e me move como um desafio. Psicanálise e

esquizoanálise não precisam se opor, mas constituírem

rizoma, de onde podem surgir novos movimentos sempre.

Assim, a psicanálise não tem necessariamente compartimentos

definidos em seu interior, por isso ela se atualiza.

Fiz meu primeiro portfólio no primeiro período da

faculdade, na disciplina da Silvia, Ciência e Profissão. Eu

achei que não gostara dele, mas daí esses dias eu fui vê-

lo, e eu me apaixonei por aquela coisa. Ficou uma ternura,

dizia muito sobre mim. Quero voltar a vê-lo anos depois.

Então concluí que portfólio é uma coisa legal.

Sintoniza aí.

01/11/13

Nunca tinha lido Clarice, e li Amor. Uma narrativa

densa em que a protagonista Ana tem um momento fugaz de um

“fora”. Densa porque ela parece estar presa a uma rotina

que gira em torno da sua família e das suas relações

cotidianas “cegas”, de certa forma. As compras quase a

espalharem no chão, a água enchendo o tanque, o marido

chegando do trabalho com jornais - o destino de mulher.

“Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar

de mulher.”

É uma grande leitura profunda sobre a condição feminina.

Fabio Herrmann diz que a rotina oprime os desejos. Não se

fala deles, não se cultiva-os, não temos criatividade para

isso.

Contudo, Ana entra em contato com um “fora”, a partir

do momento em que vê o cego.

“E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava

feito. Por quê?”

O que aconteceu nesses instantes em que ela o vê e derruba

as sacolas, quebrando os ovos? Transpassou um momento de

desrazão, em que Ana não conseguiu compreender, um momento

em que entrou em contato com uma dimensão não conhecida de

si mesma. Um tanto pretensioso tentar enfiar conceitos da

psicanálise aqui e agora, foi um momento em que a função da

rotina foi suspensa, como li em Herrmann, e doeu em Ana.

Aconteceu algo, o outro a tocou profundamente e ela sentiu

uma curiosidade grande pelo outro, algo talvez que acontece

com os terapeutas na clínica. Ela depois entrou em crise

com o seu redor, porque ver o cego suscitou algo de

inominável, de inexplicável dentro dela. Algo que ela nunca

vivenciara, pois estava sempre acostumada com o controle,

com seus mornos referenciais cotidianos, familiares.

”E um cego mascando goma despedaçava tudo isso.”

A piedade que ela sentiu e o estranhamento com o mundo

a fez ir para outra realidade. Houve uma mistura. E o

Jardim Botânico se condensou nessa atmosfera desarazoada. E

quando Ana chega em casa, enfim, tudo parece voltar ao

normal, como se ela se recompusesse. Ao final do dia, era

como se ela apagasse a pulsão que aquele dia trouxe.

“E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo

moralmente louco de viver.”

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No nosso segundo dia de aula, o ponto de partida para a

Psicanálise foi trabalhar o “pode parecer”. Daí, encenamos

um acolhimento. Queria muito ter estado no lugar do

terapeuta André. Eu iria querer dizer: “tem alguma coisa

que você pode falar?”. Pois, nós terapeutas, claro, estamos

interessados em tudo o que o paciente tem a dizer. Gosto

muito dessa frase porque no senso comum, eu às vezes pensao

na terapia que alguns assuntos são mais importantes que

outros de que eu gostaria de falar.

O que fico pensando nesse texto do Herrmann – Diagnóstico –

é: qual a necessidade de diagnóstico? O que o paciente

precisa saber sobre isso? Será que precisa? O diagnóstico

precisa incluir um nome (como “neurose”)? Mas

principalmente, qual o impacto no tratamento, não só

analítico mas do ponto de vista terapêutico, no paciente ao

ouvir de um profissional que ele tem um transtorno x ou que

ele é neurótico?

Confesso que fiquei preocupada com exemplo da Anamaria dos

3 pontinhos que o menino desenhou e que a levou a

desconfiar da sua gravidez. Não entendo como o vínculo pode

levar a isso, se isso é apenas uma questão da escuta

analítica, se essas relações causais ou casuais acontecem

sempre mas que apenas o psicanalista percebe porque tem o

olhar para essas relações. Fiquei com a puga atrás da

orelha, e ela não vai sair tão fácil.

08/11/13

Antes de tudo, mais importante que a aula, hoje é o meu

aniversário, então parabéns pra mim, oras!

Partindo pra Herrmann agora, diria que o primeiro ponto

importante é que, apesar da particularidade das entrevistas

iniciais, o diagnóstico não termina. Não pode terminar,

estamos sempre em movimento, né? Em reestruturação. A

esquizoanálise, por exemplo, ouve a subjetividade na sua

mutabilidade, no seu metamorfosear, é um devir movido pela

produção desejante. Ela é composta de múltiplos e

heterogêneos sistemas abertos que se ligam como em rizoma.

O inconsciente é perpassado por raças, costumes,

tecnologias, momentos, imagens, culturas, crenças,

religiões, pelo econômico, político, social, etc.* A

esquizoanálise é uma grande crítica à psicanálise, contudo

quis trazê-la para enriquecer a discussão ao longo do

portfólio, pois estou muito embebida por ela ultimamente, e

seria bonito estudar as duas juntas.

Discutimos então sobre nossos fantasmas e preconceitos

sobre a psicanálise antes e depois da leitura de “Para

serve a psicanálise?” O meu preconceito maior com a

psicanálise é com o excesso de interpretacionismo. Será que

tudo, todo aspecto da minha personalidade, tem causa

inconsciente? O inconsciente, ao meu ver, parece um mundo

muito mais complexo do que a psicanálise pode explicar. E

Lacan criticou o interpretacionismo de alguns psicanalistas

que, segundo ele, deturparam Freud. Mas a leitura do texto

não sanou essa minha preocupação, que vai ser cuidada à

medida que eu estudar mais e mais. Tenho certeza que a

interpretação na psicanálise não é algo simples de se

aprender.

O ponto mais alto da aula, na minha opinião, foi a

conversa sobre desamparo na psicanálise. É algo que

constitui o sujeito, a primeira representação que ele tem

no mundo, aquilo que ele tem certeza já quando nasce, a

insocorrabilidade. Os seres humanos não vivem sem o outro,

ao contrário dos animais, que tem um grau menor de

dependência. Nós precisamos do laço social. O sujeito, aqui

entendido sempre como psicanalítico, é aquela condição que

me rege, condição esta inconsciente. Outros conceitos

psicanalíticos essenciais também foram explicados.

Agora queria continuar falando de Clarice e a sua

sensibilidade para ir de encontro com o não representável,

algo de que falei no registro de aula anterior...

“Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui

está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser

humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais

ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.”

Mas que inconsciente é esse, delimitado apenas pela linha

do horizonte? Que mundo é esse que propõe uma vivência

oceânica, fora das nossas linhas de entendimento? Que

mulher é essa que se indaga sobre os seus mistérios? Que

coragem é essa de encontrar o que não se conhece? De

encontrar-se o que não se conhece? O mar a embriagou? O mar

conseguiu dar alguma explicação a ela? Que sal é esse que

lhe arde? São demais os perigos desta vida, como disse

Vinícius. Por que as ondas não atravessam mais sua

compactualidade? O que aconteceu com a sua agudeza?

A mulher foi batizada pelas águas do mundo.

22/11/13

Em “Para que serve a psicanálise”, Denise Maurano escreve:

“Nosso universo de necessidades é intermediado pelo das

representações. As coisas não são o que são, mas o que

representam para nós.”

O que o quadro do Van Gogh está fazendo aqui? Eu não sei.

Esse quarto era do Van Gogh? Eu não sei. Aquele num dos

porta-retratos pendurados em cima da cama não é ele?

Talvez. Por que ele se pintou? Eu não sei. O Van Gogh é

impressionista? Eu não sei. Ele gostava de pintar paisagens

campestres? Eu não sei. Taís, você conhece muitas obras do

Van Gogh? Não.

Não conheço muito o Van Gogh, mas achei que esse quadro

casou perfeitamente com a frase da Denise. Esse quarto é

legal, porque é um mundo de representação do Van Gogh,

gente. Não sei o que ele representava para o Van Gogh, mas

a arte, assim como a cultura, é um exemplo de que as coisas

não são o que são. No registro anterior de aula, eu falei

de Clarice e como o mar era um mundo de representações para

ela em “Águas do mundo” (um conto nunca me causou tanto

encantamento). Eu acabei fazendo também um monte de

representações com aquele conto (coloquei lá na forma de

perguntas).

E aí, arrisco-me dizer que essas representações são o

que há de mais precioso para a psicanálise. Em “Para que

serve a psicanálise”, há um capítulo chamado “A psicanálise

e o mundo de hoje” e outro chamado “A psicanálise, a

história e a arte”. Daí, no grupo surgiu a pergunta: o que

não é social para a psicanálise?

Só que isso da psicanálise dar fundamental importância

ao social anda me preocupando. E sei que ela dá, aprendi

com a Anamaria. Mas não aprendi por experiência própria

entrando em contato aprofundado com a teoria pessoalmente.

Sei que dá, mas não sei qual é olhar social que se dá.

Porque estou percebendo que existe mais de um social, uns

mais críticos e outros menos. Fico incomodada, por exemplo,

quando o João Luiz Paravidini diz que as mulheres não

femininas não “fazem teatro” diante da sua castração, é

como se elas, deu a entender, não gostassem de sexo,

enquanto as femininas gostam e por isso se preocupam mais

com a aparência, assinalando no corpo onde os olhares devem

se dirigir.* Do mesmo modo que me senti incomodada quando a

Anamaria dá o exemplo das meninas que se matam quando

vídeos delas fazendo sexo caem na rede. A psicanálise se

atenta para a infância daquela menina, tudo bem, mas será

que não seria importante, quando se fala do assunto, mesmo

com o olhar psicanalítico, da diferença que grita existente

entre a pressão social sofrida pelo menino e aquela sofrida

pela menina. É com esse social que eu estou sentindo falta

na psicanálise.

Além disso, reforçamos no grupo, a diferença entre o

desejar e o querer, e acrescentaria que o desejo é uma

movimentação inconsciente que te entrega para a mudança.

Achei essa frase bonita, porque para Deleuze e Guatarri,

apesar das diferenças, o desejo é um fluir infinito de

fluxos que anima intensidades, diferenças e

multiplicidades, ser do devir-acontecer.**

Passamos para a importância do sintoma visto como uma

via de expressão do sujeito, para Freud. O ápice da aula chega no

ponto: onde está a criança no adulto? Por que buscar o

infantil? Porque o infantil é o primitivo. É o que veremos

na próxima aula.

29/11/2013

Vejo nesse conto uma mulher aprisionada por laços de

família. O cotidiano parece engoli-la. Engolir o múltiplo e

a diferença. Aliás, que laço de família não se baseia na

repetição? É manter o hábito, tomar leite todas as noites,

comprar comida para o jantar, sorrir para o beijo

entediante do marido...

Muito difícil esse conto. Pensei no que eu ouvi de

inteligível em meio a tanto mal compreendido. A história é

toda contada do ponto de vista da protagonista, de um modo

muito subjetivo. O que estava acontecendo com ela afinal?

Como escutar psicanalicamente?

Foi o tema do encontro de hoje. O que seria esse

exercício da escuta peculiar que viemos falando desde o

início das aulas? “O método psicanalítico tem, como primeiro

movimento, uma escuta descentrada, fora da rotina da conversa cotidiana.”

Mas o que a mulher estava sentindo em meio a tanto blá blá

blá? O que é marginal ou dissonante? “Os elementos marginais ou

dissonantes do discurso podem ser de outra natureza e se manifestar por meio

de elementos não verbais: estilo, estrutura da fala, sua função, clima emocional

criado, o que mobiliza no corpo do analista.” Sabe o que eu realmente

fotografo nessa história de Clarice?

“E quando estava embriagada, como num ajantarado farto de domingo,

tudo o que pela própria natureza é separado um do outro (...) unia-se

esquisitamente pela própria natureza, e tudo não passava duma sem-

vergonhice só, duma só marotagem.”

O que ouço dessa mulher é uma insatisfação com a vida

de casada e mãe de família. Mais do que isso, o que

acontece nesse conto é uma mulher que, por um momento

fugaz, ouve seu corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é um

termo usado pelo dramaturgo Antonin Artaud e recuperado por

Gilles Deleuze e Felix Guatarri como um funcionamento da

máquina corpo que não produz capital. Não produzir capital

nas formas vigentes de viver atuais equivale a produzir

nada. Os órgãos da mulher estão sempre ordenados e

capturados para um fim último que é o seu lar. No estado de

embriaguez, por sua vez, ela tem uma experiência autêntica

de ser mulher, ou simplesmente de ser. Ela resignifica sua

existência desde o início do conto quando ela se esquece de

todas as tarefas domésticas no dia em que “amanhece

esquisita” e fica na cama. Depois, quando está embriagada,

ela muda de signo, um quadro no restaurante lhe aguça os

sentidos, ela vê uma rapariga bonita e a inveja vira um

ódio de si mesma naquela situação de corpo sem órgãos. Além

disso, mesmo estando insatisfeita com a vida sombreada por

um homem, ela tem um desejo inconsciente de ocupar esse

lugar de estar coberta. Inconscientemente, essa raiva

contra a mulher bem-vestida e acompanhada está direcionada

a esse desejo. A embriaguez comeu os vestígios de horas,

rótulos, o chão sujo, prazos e camas desarrumadas. A

embriaguez comeu os órgãos da mulher.

E acontece mais depois que a sobriedade (nunca total!)

volta - as couraças da utilidade voltam, apesar da

desorganização em que se encontra a mulher.

“Ai, é uma tal coisa que me dá que nem bem sei dizer.”

E o que a psicanálise ouve se não o que nós não

sabemos dizer?

06/12/13

Dia de filme: O adversário

Os personagens estão sempre a parecer pouco calorosos,

talvez porque o afeto e a razão não se misturam no homem,

nele não tem espaço para o híbrido, o que não é baseado em

ideias razoáveis e modelos de comportamento adequados e

planejados. Por isso, ele vive de máscaras, porque seu

psiquismo é completamente fragmentado. Não por menos,

alguma consequência há de se desenrolar, porque uma hora

isso se torna insuportável, daí vem a doença. No caso do

filme, vemos o mal-estar do homem com as pessoas mais

familiares para ele, porque elas no fundo dizem algo dele

insuportável. Quando ele não dá mais conta dos fragmentos,

ele mata esse familiar insuportável.

O adversário de Jean Marc é ele mesmo. Foi o que eu pensei

também ao me perguntar sobre o título do filme enquanto

estava vendo-o. O filme não me agradou, porque achei muito

desconfortável a sua estrutura, é como se esse filme não

tivesse organização temporal, tudo meio desconexo, você não

vê na próxima cena a reverberação do evento que acontece na

cena anterior. Mas, talvez não seja uma falta de

organização temporal, mas um tipo de organização temporal.

Algo que me desorganizou e gerou um mal-estar sim. Bem, o

estranho deve mesmo ser desconfortável, pensei ao final da

aula.

13/12/13

Para a aula passada, escrevi:

O estranho pode, ao mesmo tempo, comportar

o familiar e o não familiar, e nem tudo que é

novo é estranho. O estranho pode ser algum

elemento reprimido que ganha uma forma

assustadora quando vem à tona. Nesse caso, o

estranho é familiar. O inconsciente produz o

estranho.

Agora, depois da discussão do filme “O adversário”, posso

reescrever a versão com sentido do que eu li em “O

estranho”. Começo com a seguinte citação de Freud:

“Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo

estranho.”

Ora, essa frase sintetiza o que a Anamaria vem falando

há semanas: o desejo passa por uma barreira que dá-lhe uma

nova forma quando este se manifesta na consciência. É

aquela ilustração da garrafa de água, embaixo das folhas de

papel, embaixo do copo de água. O estranho é justamente

aquilo que é familiar, mas que não é consciente porque há

muito foi reprimido. Quando ele aparece sob uma nova

faceta, ela causa horror e medo.

Tive muita dificuldade em achar uma arte que ajudasse

a compor essa minha versão sobre meu entendimento do

estranho de Freud. Quando eu pensava o que é estranho

lembro sempre do fantástico, do surreal, do que foge às

leis da realidade e do concreto. E Freud vai na contramão

desse pensamento. Agora que retomo seu texto, ele fala

mesmo que o estranho é pouco abordado pela estética

literária.

Interessante como ele estuda as traduções que o

estranho, do alemão, unheimlich, ganhou em diferentes

idiomas. Unheimlich é aquilo que é assustador porque não é

conhecido e familiar. Contudo, Freud desenvolve ao longo do

texto a ideia que eu expus inicialmente: a de que o

estranho é justamente o familiar.

No filme “O adversário”, o protagonista enfrenta uma

dificuldade para sustentar suas mentiras, para os outros e

para si mesmo. Mas, ao final as mentiras não deram conta de

tomar o lugar, em termos de psicodinâmica, o lugar do

surto. Me pergunto se o assassinato da família não seria

uma tentativa de matar um estranho dentro dele.

20/12/2013

Barco de mariposas, Salvador Dalí

Salvador Dalí foi um grande influente no surrealismo.

Essa vanguarda traz misturas acerca do representativo, do

abstrato, do irreal, do inconsciente e uma impressionante

qualidade plástica. Para os surrealistas, a arte deve ir

além da lógica racional que governa o mundo real e

inaugurar o mundo dos sonhos e do inconsciente. Ademais,

contestavam valores associados à pátria, família, religião,

trabalho e honra. O surrealismo foi influenciado

inicialmente pelas teses psicanalíticas de Freud. Entre os

seus representantes estavam Antonin Artaud no teatro, Luis

Buñuel no cinema e Max Ernst, René Magritte e Salvador Dalí

no campo das artes plásticas. Eles procuravam algo que

subvertesse a estética dominante.

Agora vou repassar o meu sonho aqui, como ele foi

escrito originalmente, como foi pedido para a aula.

Hoje eu sonhei com a aula da Cris. A gente tava correndo em círculo. A

Giovanna foi pro meio e a Cris mandou eu ir também. Depois foi colocado uns

panos coloridos psicodélicos no meio e eu dancei com eles. A cris adorou!

Depois ela mandou a gente deitar pra relaxar e começou a mexer nos nossos

dentes feito umas coisas de dentista. Eu dormi ou entrei num transe hipnótico.

Veio a lembrança da infância da Cris, a mãe dela ensinando ela a limpar os

dentes dos pacientes. Aí ela começou a me perguntar algo relativo a mar. E o

chão da sala se transformou num mar muito real com balanço de vento e

ondas e uma população de golfinhos nadando. Ouvi a voz da Cris falar: “O seu

lugar é com os golfinhos, Tais”. Eu nadei, era muito fundo. Ela disse pra ir pro

meio/fundo do mar. Eu fui pro meio dele. Pensava que os golfinhos eram

imaginários. Mas eu senti tocar em um debaixo d’água. Depois eu acordei e eu

vi as meninas, que acordaram também. Cada uma numa sala diferente.

Encontramos no corredor sem entender o que aconteceu, como se tivéssemos

saído de um relaxamento profundo. A cris tinha sumido.

Gente, que sentido lógico tem na Cris ser dentista? E

como é possível a sensação de um mar vasto se as paredes da

sala continuavam lá? Haha, por isso que adoro ter sonhos,

até porque não costumo ter pesadelos. Estes, sim, são

ruins.

Assim, gostei muito do tema da aula. Para Freud, uma

das formas de acessar o inconsciente é pelos sonhos. E o

quanto é difícil interpretar sonhos! Qualquer coisa pode

significar qualquer coisa. Por isso o analista pergunta “O

que você acha que poderia significar?” para o paciente. Se

o sonho é expressão de um desejo, como ele adquire essas

formas mirabolantes e paradoxais? Vejo-me lembrando de novo

da demonstração do copo d’água, as folhas de papel e a

garrafa de água da Anamaria.

Na próxima aula, já vamos começar o acolhimento das

famílias. Não sei se vou lidar com sonhos quando começarmos

a atender na clínica, mas me sinto fazendo exatamente o que

deveria fazer. A Anamaria faz um grande elogio à clínica e

me sinto satisfeita com o estágio, pois me interesso cada

vez mais pela clínica. Acredito fortemente que, como um

pouco do surrealismo, ela subverta as lógicas de família,

religião, trabalho e honra. Sim, pois recebemos famílias

nas mais diversas organizações internas, histórias de

crueldade, de bizarrices, de casos que ferem a moral acima

de tudo, de descompromisso, de caos, mas enxergamos em

todas elas sujeitos na sua completude. Sujeitos que passam

por diversos mundos, pelo onírico, pelo religioso, pelo

social, pelo artístico e outros infinitos.

"É preciso provocar sistematicamente confusão. Isso promove a criatividade. Tudo

aquilo que é contraditório gera vida."

Salvador Dalí

10/01/2014

Primeiro relato de sessão

No primeiro dia de acolhimento, vieram Eliane (avó

materna de Yuri) e Emilly (filha de Eliane), adolescente.

Emilly parece pouco interessada, pouco paciente, pouco

entretida e inquieta com tudo aquilo (a conversa o lugar).

Por sua vez, Eliane fala muito e de suas dores, como se

talvez ela tentasse nos comover, para tomarmos um pouco das

suas dores. Contudo, ao falarmos sobre isso, eu, Mônica,

Maisa e Anamaria, não sentimos vontade de chorar, apesar de

depararmos com lágrimas durante quase toda a sessão. Eu

vejo uma encenação exagerada no jeito de contar de Eliane.

Não que ela sofra mais ou menos por isso, mas sugere o seu

modo de expressão.

Descobrimos, nessa primeira conversa, que a mãe de

Yuri, Elaine, morreu em uma cachoeira por conta de uma

queda de uma altura muito grande. Eliane revela que tem

certeza do culpado ser o pai de Yuri, Fábio. Desde então,

há uma briga judicial entre as famílias pela guarda do

menino, requerida pela avó, uma vez que ele mora com a avó

paterna , Ana Paula, e o pai. Estes dificilmente entram

em acordo com Eliane sobre os momentos que ela quer passar

com o menino. Eliane diz nunca ter superado a morte da

filha e é muito afetuada com ela e o neto. Ela diz que os

encontros com ele são dificultados por Fábio e Ana Paula.

Estabeleceu-se, assim, conluios nas famílias do pai e da

mãe de Yuri. Mesmo Eliane relatar que a briga só começou

depois do acidente, que antes a relação era tranquila, fui

percebendo nas histórias que eles já tinham

desentendimentos antes.

Eliane não entende porque temos que saber da história

familiar dela, se ela só está lá por causa de neto. Mas com

dificuldades e ajuda de Emilly, elas revelam aos poucos que

o marido de Eliane morreu e tinha problemas sérios de

alcoolismo, causa da morte. Emilly conta que o pai batia em

Eliane e nas filhas, que ele causou o problema auditivo da

esposa. Mas que esta não gosta de falar disso.

Alguns acontecimentos durante a sessão podem dizer

sobre o caos interno nesses sujeitos da história. Eliane

toma o celular de Emilly e guarda-o debaixo da perna, na

cadeira onde está sentada. Ao longo da sessão, os papeis da

pasta que trouxeram para nos mostrar sempre caíam,

inclusive o celular de Emilly, por causa do extasiamento de

Eliane. A avó de Yuri chegou a ir para o chão relembrando o

funeral de Elaine, cuja certa blusa antiga Eliane usava na

sessão. Ela só se levantou com o pedido de Anamaria. Além

disso, quase todos na família têm apelidos carinhosos e

Emilly tinha sempre respostas prontas sobre os ocorridos,

não se emocionou em nenhum momento e sempre que chamava a

sua mãe usava nomes afetuosos ou educados. Não demonstrou

ser uma “adolescente problemática”, a não ser pelo celular.

Parece que foi intencionalmente.

P.S. importantíssimo que tive a infelicidade de esquecer de

registrar: Fábio já tentou suicídio.

13/01/14 - Supervisão

Na primeira supervisão, discutimos o caso das 8h e o

das 10h. Muitas coisas se passaram e eu não entendo bem,

mas senti muita ansiedade na supervisão. A casa da Anamaria

era linda e leve, mas tudo foi muito denso. Não estava bem

no final, voltei pra casa com uma dor muito aguda na nuca

que se espalhava pela cabeça, e acho que tem pouco a ver

com o fato de eu ter ficado com a cabeça virada para a

esquerda por muito tempo. Eu não entendi o primeiro caso,

eu perdi o começo do relato da Fer, e não sei quem

exatamente foi na sessão e quem era o quê de quem. O que eu

peguei foram muitas marcas de violência, desde a posição

silenciada de uma mãe, uma posição de não eu, até uma

pessoa com os dedos da boca, fazendo um “xiiii” mudo para

uma fraco humano durante a sessão.

A Anamaria disse coisas sobre a gravidade na forma de

encaminhamento na rede de cuidado da família, que dizia

sobre a falta de afeto na fala de uma paciente que diz “É

caso de pedofilia” logo no início da sessão. Essa é a

violência institucional. Além disso, os profissionais de

saúde têm medo de suspeitar de violência doméstica.

Enquanto o médico descreve o que vê, o psicólogo duvida do

que vê. Discutimos dois casos de alcoolismo resultados em

morte e dois casos de violência doméstica. Achei isso de

uma grande importância de se notar.

Conversei na minha terapia sobre tudo isso. Minha

psicóloga disse que a violência assume mais de uma faceta

conforme o nível socioeconômico das famílias seja

diferente. Eu disse que a violência em todos os níveis é

mascarada. Ela também disse que independentemente de teoria

psicanalítica, precisamos ouvir algo do paciente que nos

chama a atenção por algum motivo n. Se nos chama a atenção,

não chamou à toa. Sugere algo.

Anamaria sugeriu vagamente que Eliane seja histérica e

que ela estava sempre “armada” com a bolsa e a pasta

durante a sessão. Eliane na verdade não quer a guarda do

neto definitivamente, mas a liberdade de encontrar com ele

sempre que quiser. Nós, estagiários e Anamaria, percebemos

uma transformação radical na aparência da filha Elaine e

achamos isso muito estranho. Eliane disse coisas bonitas,

como “Você é a primeira para quem estou contando isso” e

“Você mexe muito profundo, moça” para a Anamaria. Penso que

são bem verdades. Cada paciente tem um nível próprio de

fragilidade e um nível próprio de profundidade a que nós

desse vínculo podemos chegar em cada sessão.

17/01/14

Segundo relato de sessão

No segundo acolhimento, vieram novamente só Eliane e

Emilly. Eu e Anamaria ficamos com Emilly; Mônica e Maisa,

com Eliane. Deparamos com outros casos de alcoolismo, além

do pai da adolescente de 14 anos, e com casos de agressões

físicas de Eliane com as filhas. Emilly demonstra

tranquilidade em contar sua história e da família em geral,

foi difícil encontrar resquícios do não dito ali. As

dificuldades maiores que pareciam apresentar nela eram suas

relações afetivas (apesar de ter muitos amigos homens); o

cuidado com a casa (com o que ela obtém muito prazer, mas

por onde surgem conflitos quase diários com a mãe) e,

claro, a sua relação com a mãe e com tudo que esta vive e

viveu.

Emilly não tem uma boa vida escolar. Muda muito de

escola e já repetiu três vezes a 5ª série. Briga muito

quando alguém fala da sua família. Ela relata na sessão que

a mãe bate muito nela por conta das tarefas domésticas,

cuja responsabilidade é quase toda de Emilly. Mas qualquer

desobediência em geral é motivo de agressão em cima das

filhas. Emilly parece se contradizer algumas vezes, como

quando diz claramente que Eliane não bebe, mas logo conta

um dia que a mãe bebeu e tomou seu costumeiro remédio para

dormir, receitado por uma psicóloga (estranho) do UAI. Mas

a adolescente diz também que a mãe não gosta de ficar longe

dela e que, às vezes, ela merece as agressões. Leva muitos

tapas no rosto e diz que está acostumada. A Anamaria

conclui, então, com ela que se trata de uma relação

extremada de amor e violência. Conclui também, e ela

concorda, com ela se parece muito como um reflexo da mãe,

pois Emilly repete alguns comportamentos controladores de

Eliane tanto com ela mesma quanto com os outros.

Emilly diz gostar que a mãe namore outros homens, mas,

ao mesmo tempo, não gosta do modelo nuclear de homem e

mulher morando juntos. Ela disse se dar bem com um antigo

namorado da mãe e relata de outro, traficante de drogas, a

princípio só maconha. Isso mexeu com a menina. Ela ainda

relata sérios problemas de alcoolismo com a irmã, Elouise,

já internada por coma. Elouise descobre sua

homossexualidade. Todas essas vivência de Elouise são

repreendidas pela mãe e a família fica toda transtornada.

Emilly conta que um dia a irmã a chamou na rua e, como

estava no banho, saiu de toalha fora de casa. Foi um dia

que Eliane bateu muito nelas. As filhas até chegavam a por

muitas roupas para o impacto ser menor (elas já chegaram a

se machucar), mas que a mãe ordenavam elas colocarem short

e top.

Quanto ao caso dos 9 homens na casa, Emilly conta que

não tinha malícia alguma, mas que alguns deles não

entendiam isso e faziam bagunça, chamando a atenção dos

vizinhos. As intenções da adolescente são duvidosas porque

vi que as suas relações amorosas foram pouco detalhadas por

ela. Ela diz que nunca amou nem nunca amar ninguém.

Sugerimos que essa ideia é influenciada pelo fato dela ter

muito contato com relações complicadas na família. Reparei

que na sessão ela queria, às vezes, passar a impressão de

boa adolescente ao dizer, por exemplo, que não gosta de

bebidas e não importa com as limitações impostas pela mão

quanto ao sexo no namoro.

20/01/14 – Supervisão

A Anamaria contou que Emilly talvez não seja um caso

pra terapia individual, talvez uma grupal. Conversamos

sobre como os currículos novos no curso de Psicologia

ingressam na clínica cedo. A gente tá entrando em um

“universo nebuloso e esquisito” agora. É mesmo, porque

mexer com a psiqué humana é mexer com o não saber. A Mônica

ilustrou isso bem quando falou que não sabia de nada. E

também é esquisito porque a gente mexe com muita fantasia

nossa acerca do paciente.

Discutimos teoria do vínculo, do nosso mal-estar que

um dia pode ser bom para o paciente, dos adolescentes

infratores, da aliança entre sociologia e psicologia e

outras coisas mais. Foi uma supervisão eclética, hehe, e

mais leve pra mim. Um ponto que me interessou foi o da

alienação afetiva, quando a família não acompanha as

mudanças de um sujeito nela. O quanto pacientes

psiquiátricos têm reincidência no hospital, porque não se

trata a família. Falei isso com o professor Ricardo e ele

disse que todos os pacientes tem sérios conflitos

familiares. E o quanto a família também entra em crise

junto com o sujeito.

O meu último relato de sessão teve uma aparência tão

problemática quando o leio agora. Pelo o que a Anamaria

disse, percebi que enxerguei “picuinha” onde não tinha,

falei tanto problema da vida dela e não pus uma coisa

bonita na Emilly, que é o seu gosto por moda e criação de

roupas!

3º relato de sessão

No terceiro dia de acolhimento, vieram Eliane, Emilly,

Fábio e a irmã, tia de Yuri, que ficou na sala de espera.

Eliane e Emilly ficaram com Mônica e Maisa; Anamaria, com

Fábio; e eu com Yuri. Foi uma experiência bonita pra mim

atender Yuri. Ele fala muito, não parece ser tímido. Não se

opôs de forma alguma quando fui chamá-lo. Houve um atraso

no atendimento, porque a sessão anterior demorou Vacilei em

não providenciar uma sala com brinquedos para a gente e a

Anamaria me deu uma bronca. Deu vontade de pegar a mão de

Yuri ao levá-lo para a sala, mas não o fiz.

Ele não escolheu um brinquedo de primeira, então eu

fui sugerindo alguns e ele empolgou com um sapinho de

montar. Depois ele entusiasmou com a casinha de bonecas e

ficou nela durante toda a sessão, mas ele também passeou

por todos os brinquedos que eu levei. Yuri quis algum

bonequinho e, como ali não tinha e ele levara no dia, fui

com ele buscar um pequeno Batman com a tia na sala de

espera. Entretidos com o Batman na casinha, conversamos

muito. Já tinha umas bonequinhas de pano nela e ele não

gostava que elas ficassem na casinha enquanto o Batman

estava. Disse que elas podiam entrar só depois que ele

saísse.

Yuri falou uma vez que sou engraçada, pois fiz uma

graça ao por voz na bonequinha, e que ele também fazia

graças. O menino disse de maneira sota que ele tinha que

lavar a mão toda hora antes de comer. Achei isso engraçado.

Poucas vezes ele se referiu a algum familiar, mas falou do

pai. Quando eu perguntei, em certo momento, ele disse, e

repetiu, que o pai era folgado, que não fazia nada, que

ficava com ele, mas que quando ele ficou doente o pai não

levou no UAI.

Yuri quando foi para a mesinha pegar um fantoche,

falou da escola. Ele não gosta da escola e os colegas batem

nele. Em um momento, ele olha pra mim e diz que teima. Eu

perguntei por que, mas infelizmente não lembro a resposta.

Suspeito que ele não disse claramente de algum malfeito.

Comentei das duas avós e parecia não ter algum problema com

nenhuma delas, mas suspeito disso, porque ele estava muito

entretido com os brinquedos. Percebi ele relativamente

calmo, não preocupava com o pai, apesar de ter perguntado

por ele enquanto íamos para a sala. Yuri tem uma voz baixa,

custava pra mim entendê-lo às vezes. Contou, em uma hora,

que o pai o levaria para o boliche e quando eu falei do

shopping, ele também disse que iria no cinema. Falou muito

empolgado do filme “Caminhando com os dinossauros”.

Yuri relata já ter estado em um lugar parecido com

onde estávamos, mas ele não sabe onde nem com quem ficou.

Lá também tinha brinquedos. Apesar de eu me apresentar, ele

perguntou meu nome duas vezes e, na segunda, justificou que

esquece muito nomes. Achou ruim quando eu o chamei para

irmos embora, mas não protestou. Percebi um pouco de

passividade no Yuri, ele parece pouco contestador e

birrento. Não falou da mãe diretamente.

O acontecimento é

devir, guarda uma

margem de absoluta

imprevisibilidade, é o

ímpar, conserva o

excesso e impõe uma

falta, a

impossibilidade de

dizer tudo. O

acontecimento é sendo

e dizendo outra coisa.

27/01/14 – Supervisão

A clínica é um acontecimento. Fico lembrando de mim

com Yuri. Diante de uma pessoa, vários encontros e

desencontros na linguagem podem se produzir. Pode ou não

funcionar como produção-desejante. Depende de como a

diferença está se maquinando, em contraponto com a

repetição, no mundo do paciente. De qualquer forma, a

clínica é um “Acontecimento” ou

a parte do que escapa à sua própria atualização em tudo o

que acontece. O acontecimento não é de maneira nenhuma o

estado de coisas, ele se atualiza num estado de coisas,

O acontecimento é

devir, guarda uma

margem de absoluta

imprevisibilidade, é o

ímpar, conserva o

excesso e impõe uma

falta, a

impossibilidade de

dizer tudo. O

acontecimento é sendo

e dizendo outra coisa.

num corpo, num vivido, mas ele tem uma parte sombria e

secreta que não para de se subtrair ou de se acrescentar

à sua atualização: contrariamente ao estado de coisas,

ele não começa nem acaba, mas ganhou ou guardou o

movimento infinito ao qual dá consistência. (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 185-186)

Essa supervisão também foi um acontecimento e tanto.

Falamos a maior parte da supervisão sobre o caso 2.

Observamos muito delírio, não entendido aqui como

esquizofrenia, fique claro. Até diria ser uma paranoia com

a avó de Hugo Victor, pois ela acredita que alguém sempre

está fazendo macumba contra ela. E aconteceu também, depois

do primeiro acolhimento, que Hugo Victor sumiu, e ninguém

sabe onde está. Ele trafica, mostra muitos trejeitos de

tribos suburbanas e está em uma história familiar

conturbadíssima. A Lais ficou bem mexida e bagunçada nessa

história. Saí com o sentimento de uma parte sombria e

secreta nessa história.

A parte sombria e secreta também ronda o caso de

Eliane. Não a senti enquanto estava com Yuri, mas senti

quando estava com Eliane, no primeiro atendimento. Eu sei

que o pai e a avó falam que o menino precisa de terapia,

mas achei os próprios responsáveis muito mais necessitados.

Nessa supervisão, senti minha energia sendo sugada,

saí com poucos ânimos, como na primeira supervisão. O

arrastar do tempo nas supervisões é sofrido pra mim. Esse

arrastar me dá raiva, me angustia. Por que eu me sufoco com

o tempo? O que eu vou fazer?

31/01/14

4º relato de sessão

No 4º dia de acolhimento, vieram Fábio, Ana Paula,

Geovana e Yuri. Eu fiquei brincando com Yuri enquanto

Anamaria conversava com os familiares de menino. Yuri,

diferente da primeira sessão ficou relutante em brincar

comigo e sair do colo da avó Ana Paula. Está claro que ela

desempenha afetivamente uma função materna. Ele ficava

olhando de esguelha eu pegar os brinquedos e então veio

brincar. Novamente, trouxe brinquedos de casa, dessa vez

mais deles. Ele escolheu a fazendinha, ou zoológico com

preferiu chamar, e ficou nela a maior parte da sessão.

Observo a Anamaria dizer que ele é tímido igual ao pai

e um momento, ao falar com Yuri, chama Ana Paula como mãe

dele. Yuri diz que, na casa do pai, ele só dorme e na avó,

Eliane, ele brinca na terra. Eliane parece dar muitos

presentes a ele, inclusive o tênis que pisca usado por ele

no dia. Me parece uma tentativa da avó materna de “ganhar”

a preferência de Yuri. Anamaria fala para o menino que nós

todos estávamos conversando sobre ele e que o melhor jeito

de cuidar dele é dando um “amorzão”, em vez de presentes

todos os dias. Ele fica retraído e intimidado nesses

momentos, assim como qualquer outra criança. Anamaria

também diz que uma pessoa pode viver sem um pé ou sem um

braço, Yuri discorda disso ao contar que viu um homem sem

perna na rua.

Parece que Ana Paula olhava pra ele algumas horas,

como se fizesse graça, e Yuri acha ruim e reclama “Para,

vó” com ela. Ele me disse que a avó tem ciúme dele, mas não

disse por que. Outra vez ele disse que um colega bate nele

na escola, ele fala para a professora, o colega pede

desculpas e ele perdoa. Olhando agora, para mim ele já não

parece tão passivo quanto na primeira sessão. Achei as

brincadeiras provocadas pelo pai com Yuri particularmente

meio imaturas por parte de Fábio, e Yuri atá alteia a voz

para reclamar. Anamaria ressalta a importância de Fábio nas

atividades lúdicas com o filho. Yuri diz que queria voltar

ali todos os dias, quando volta para o colo da avó paterna

no final da sessão.

07/02/14 - Supervisão

Supervisões sempre causam um turbilhão de emoções, nos

envolvemos com o nosso caso e com os casos dos nossos

colegas também. Acho que estamos no ápice do nosso estágio,

estamos no momento em que fez-se nesse necessário os

meninos que atendem o caso da Heronildes fazerem um

atendimento domiciliar. Discutimos muito sobre desafios e

como a gente aprende correndo atrás, a Anamaria deu muitos

depoimentos pessoais (alguns “megalomaníacos”, haha, como o

exemplo da carroça e do caminhão de leite) e achei essa

conversa toda muito bonita.

Aprendi que preciso de uma escrita melhor nos relatos

de sessão. Aprendi sobre os enquadres da nossa profissão,

mas fiquei confusa sobre a palavra. Percebi, com a

discussão dos PSF e UBS, que estão faltando profissionais

que cuidem de pessoas, não encaminhem somente. Por que não

podemos cuidar, acolher o outro na sua dor?

[A avó de Hugo Victor chega de súbito, desesperada, na

clínica, no meio da nossa supervisão.]

Aprendi, também, que Yuri não precisa de psicoterapia,

mas de uma família que dá colo a ele. Agora na supervisão

entendo a real beleza do meu último atendimento. Há um

lugar de morte não só preenchido por Elaine, mas também

ocupado por Fábio, ainda que por resquícios, já que ele

insiste em dizer que está bem mesmo tendo passado por uma

tentativa de suicídio. Quando Yuri reclama da coceira na

cabeça, de um piolho talvez, o que ele sinceramente pede?

Fico muito admirada com as entradas dele, mas também com as

de Anamaria, é um gosto vê-la atender - eu mais alguns

colegas do estágio temos compartilhado esse sentimento.

Os finalmentes...

Que bom poder atender Eliane e as duas filhas uma vez só

com Mônica e Maisa. Não tinha tido a oportunidade. A sessão

foi ruim, mas impressionante. Ruim porque a mãe monopolizou

a sessão, comparada com a anterior, e as duas filhas não

tiveram voz. Mas impressionante como é lidar com um

paciente que te confronta o tempo todo. Eliane rechaçou

TUDO o que dizíamos e ficou com muita raiva. Gritou pra mim

e para Mônica e quis ir embora antes do final da sessão.

Ela vive a vida dos outros, até de alguém que já morreu,

mas que talvez para ela ainda não. Ela não vive a vida

dela. Foi um desafio muito importante para mim atendê-las.

Encerro meu estágio básico com chave de ouro.

O estágio foi uma das coisas mais legais da minha faculdade

até agora. Gostei muito do nosso grupo, foi diverso, gostei

muito do cuidado da Anamaria conosco, mas principalmente da

confiança que ela depositou em nós. Rolou uma harmonia

gostosa. O ruim é que no final do estágio, tudo ficou

muuito corrido, e não tínhamos tempo pra conversar direito

caso por caso na supervisão.

Termino meu portfólio com um poema. Um poema sobre o

cotidiano. Um poema sobre infância. Um poema sobre

imaginação. Um poema sobre família. Um poema sobre sonhos.

Um poema que termina com libertação.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.

Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.Na copa, uma prima que passaa ferro todas as mortalhas da família.Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.

Antes que ele acorde e se descubra também morto.

José Paulo Paes