Paulina Chiziane: a poesia da prosa

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77 3 Paulina Chiziane: a poesia da prosa A escritora moçambicana Paulina Chiziane é uma romancista internacionalmente reconhecida e estu- dada. Dos seis livros que publicou até hoje, apenas um, As Andorinhas (2008) 1 , constitui uma pequena e muito coe- rente colectânea de contos. Os restantes são romances, de tamanho e fôlego narrativo diversificados 2 . No entanto, tem sido diversas vezes citada a opinião da escritora acerca do estatuto de romancista que lhe é atribuído: Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçam- bicana a escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte 3 . A autora tem inteira razão ao situar a sua arte de nar- radora exímia no espaço ancestral da poética do conto. Na verdade, o desejo de contar constitui o motivo propulsor da gramática romanesca de Paulina Chiziane, propiciando 1 O livro As Andorinhas é constituído por três contos que recriam a his- tória de três heróis de Moçambique: Ngungunhana (“Quem manda aqui?”), Eduardo Mondlane (“Maundlane – o criador”) e Maria de Lurdes Mutola (“Mutola, a ungida”). A ligação coesiva entre os três textos é veiculada pela referência às andorinhas, entendidas como símbolo da liberdade e do incon- formismo. 2 Balada de Amor ao Vento é uma narrativa mais novelística do que romanesca. 3 O texto surge na badana de vários livros da autora.

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Paulina Chiziane: a poesia da prosa

A escritora moçambicana Paulina Chiziane é uma romancista internacionalmente reconhecida e estu-

dada. Dos seis livros que publicou até hoje, apenas um, As Andorinhas (2008)1, constitui uma pequena e muito coe-rente colectânea de contos. Os restantes são romances, de tamanho e fôlego narrativo diversificados2. No entanto, tem sido diversas vezes citada a opinião da escritora acerca do estatuto de romancista que lhe é atribuído:

Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçam-bicana a escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte3.

A autora tem inteira razão ao situar a sua arte de nar-radora exímia no espaço ancestral da poética do conto. Na verdade, o desejo de contar constitui o motivo propulsor da gramática romanesca de Paulina Chiziane, propiciando

1 O livro As Andorinhas é constituído por três contos que recriam a his-tória de três heróis de Moçambique: Ngungunhana (“Quem manda aqui?”), Eduardo Mondlane (“Maundlane – o criador”) e Maria de Lurdes Mutola (“Mutola, a ungida”). A ligação coesiva entre os três textos é veiculada pela referência às andorinhas, entendidas como símbolo da liberdade e do incon-formismo.

2 Balada de Amor ao Vento é uma narrativa mais novelística do que romanesca.

3 O texto surge na badana de vários livros da autora.

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uma sintaxe narrativa muito sofisticada, com implicações profundas ao nível dos códigos de género e da cosmovisão autoral. Ou seja, a supracitada opinião da escritora não indicia, como poderia parecer, uma estética literária aparen-temente simplificada pela matriz da oratura, eximindo-se, portanto, à pretensa nobilitação do romance; mas, muito pelo contrário, confere à sua escrita polifacetada uma com-plexidade estrutural e semântico-pragmática que reafirma exemplarmente a natureza plástica e esteticamente rendosa do conto.

Paulina Chiziane é, comprovadamente, uma das gran- des romancistas das literaturas em língua portuguesa, mas a sua escrita, inspirada e oficinal, eleva-se, de facto, a um patamar estético que rompe as fronteiras tradicionais do romance. Livros como Niketche – uma história de poligamia (2002), Ventos do Apocalipse (1993) ou O Alegre Canto da Perdiz (2008) são extensas telas caligrafadas, onde se mis-turam, de forma harmoniosa e pertinente, várias tipologias modais e genológicas, coordenadas pela vocação contística e por um irreprimível alento lírico. O hibridismo de modos e géneros perfaz, no entanto, uma unidade romanesca, que nos faz pensar em certas obras do Romantismo europeu, como, por exemplo, Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett.

Na escrita de Chiziane, a rendibilização narrativa do conto e do lirismo funciona, ao mesmo tempo, e muito romanticamente, como inscrição testemunhal da ora-tura preconizada pela escritora, e como liame genealógico transcultural que radica a sua escrita numa tradição esté-tica plural. A robustez das raízes africanas é modalizada por elementos da cultura europeia, nomeadamente da história

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portuguesa. Este facto nada tem de estranho, porque, por um lado, é impossível desvincular a sociedade moçambicana da história de Portugal; e, por outro lado, Paulina Chiziane escreve em língua portuguesa. Embora a sua expressão seja moçambicana, o substrato estruturante da sua língua lite-rária é visivelmente lusitano, mesmo nos planos da sintaxe e da morfologia.

Como todos os grandes escritores, a autora de O Sétimo Juramento (2000) amplia, através da criatividade estilística, as potencialidades semânticas da língua. E um dos veios dessa ampliação enriquecedora provém precisamente dos factores de liricização da narrativa, que fazem confluir na escrita romanesca vários processos conformadores da poesia. E, mais uma vez, esta característica, podendo ser matricial-mente africana, estabelece ligações de coerência com textos de proveniência cultural exógena, nomeadamente os textos bíblicos e a tragédia grega.

Com efeito, várias estórias de Paulina Chiziane confi- guram o esquema trágico, representado pela hamartia e res-pectivo castigo, exemplarmente desenvolvido em O Alegre Canto da Perdiz, através de Delfina, a mulher que é castigada pela sociedade, “por ter pisado o risco vermelho de destruir famílias. Por ter amado um branco e rejeitado um preto” (Chiziane, 2010b: 246). E, em romances como Niketche e Ventos do Apocalipse, há uma tonalidade rítmica e uma pre-ponderância imagética que convocam reiteradamente os intertextos bíblicos. Em Ventos do Apocalipse, essa relação palimpséstica surge logo no título do livro, e é várias vezes reafirmada, em lugares axiais do romance, através da refe-rência aos cavaleiros e ao Armegedão que ensombram o texto apocalíptico neotestamentário. Concordo, por isso,

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com Francisco Noa, quando o ensaísta propõe a leitura de alguns textos fundamentais da literatura moçambicana contemporânea à luz da motivação escatológica. Os textos pertinentemente referidos são os seguintes: A Balada dos Deuses, de Marcelo Panguana, Terra Sonâmbula, de Mia Couto, O Apóstolo da Desgraça, de Nelson Saúte, Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane, bem como vários contos de Mia Couto, e Orgia dos Loucos, de Ungulani Ba Ka Khosa (Noa, 1998: 12-19). No que diz respeito ao romance Ventos do Apocalipse, veja-se, como exemplo, a seguinte passagem do terceiro capítulo:

Há cavaleiros no céu. O som das trombetas escuta-se no ar. Na terra há saraivada e fogo e tudo se torna em “Absinto”. Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que escute.

Os cavaleiros são dois, são três, são quatro. São os quatro cavaleiros do Apocalipse, maiwêê!, é tempo de cavarmos as nossas sepulturas, yô! Descem do céu do canto do pôr do Sol. São majestosos, fortes, brilhantes como o sol. São invisíveis como o vento e impiedosos como o fogo, yô!, quem tem olhos que os veja! (Chiziane, 2010a: 47)

Em Niketche, o subtítulo do romance – “uma história de poligamia” – convoca diretamente o Antigo Testamento, quando Rami, a narradora protagonista, faz a seguinte reflexão:

A prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A viri-lidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando. Quando se tem poder é preciso ter onde exercê-lo, não é assim? Abraão, Isac, Jacob, foram polígamos, não foram? Os nossos reis antigos também o foram e ainda são. Que mal é que há? Na bíblia, só Adão não foi polígamo. (Chiziane, 2002: 74)

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É a partir deste tipo de constatações que se constrói uma das isotopias essenciais do universo romanesco da autora: o conflito da mulher sofredora e injustiçada com a incompreensível apatheia divina. E a indiferença de Deus permite ainda a configuração narrativa dos temas nucleares de Chiziane: a poligamia, a colonização, a guerra – mani-festações de profunda injustiça que desafiam a omnipo-tência paternal de Deus, apresentado em O Alegre Canto da Perdiz como “surdo e mudo” (Chiziane, 2010b: 304); em Ventos do Apocalipse como não sendo bom (“Deus não é bom” [Chiziane, 2010a: 28]); e em Niketche, como total-mente alheio ao sofrimento humano: “Deus passa de lado e vê, mas não diz nada sobre a miséria destes seres que ele criou” (Chiziane, 2002: 267). Neste domínio, toda a obra de Paulina Chiziane constitui um manancial riquíssimo de indagação teológica, cujo alcance hermenêutico conglomera, nas mesmas questões, os preceitos judaico-cristãos e as tradi-ções religiosas moçambicanas. Reflectindo sobre Deus e os deuses, a partir de um tema específico – a condição socio-cultural da mulher moçambicana –, a escritora expande a sua reflexão a domínios que ultrapassam o motivo inicial e afluem a uma corrente de pensamento estético-teológico de profunda repercussão no mundo contemporâneo.

Este facto não tem nada de despiciendo, porquanto Paulina Chiziane, à semelhança de outros grandes escri-tores africanos de língua portuguesa como, por exemplo, Luandino Vieira, Mia Couto, Germano Almeida, Rui Knopfli ou Conceição Lima, está muito longe da literatura panfletária de eficácia programática e imediata. Os efeitos pragmáticos da sua escrita têm que ver com um entendi-mento da literatura como arte, quer se trate dos contos

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exemplares e sapienciais contados à volta da fogueira, quer se trate da canonização erudita de que a escritora – mesmo a possível contragosto – também faz parte. A policodificação textual – mormente nos planos retórico-estilísticos e semân-ticos – constitui, portanto, um aspecto fulcral da estética literária da romancista. Daí a pertinência de questões que, constituindo realemas identificadores da cosmovisão afri-cana, se transformam, naturalmente, em motivos inerentes à inquietação humana.

Na verdade, alguns dos temas africanos trabalhados por Paulina Chiziane, embora surjam programaticamente localizados, podem ser transpostos para outras latitudes, por causa da sua dimensão intrinsecamente universal. No que diz mais directamente respeito à questão religiosa, a escritora tende, por exemplo, a opor a presença sensorial e tangível das divindades africanas à abstracção longínqua e intangível do Deus que veio de fora e foi imposto pela espada e a cruz. Veja-se, como exemplo, a seguinte passagem de O Alegre Canto da Perdiz:

A religião dos brancos não serve aos pretos – delira José dos Montes – os deuses deles estão longe e os nossos perto. Os anjos deles mandam rezar e os nossos mortos respondem logo. Deus fala quando quer, os mortos dão resposta imediata a qualquer momento. (Chiziane, 2010b: 167)1

Há nesta oposição muita verdade confirmada pelas práticas culturais, mas a reflexão que no romance Ventos do Apocalipse é feita sobre a incapacidade humana de aceitação

1 Veja-se ainda, entre muitos exemplos, o seguinte passo de O Alegre Canto da Perdiz: “Temos que nos submeter à vida que nos impõem, acreditar no Deus deles, esse ser invisível e sem forma concreta” (Chiziane, 2010b: 106).

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da invisibilidade de Deus não se restringe à forma mentis moçambicana:

Os homens não aceitam a indiferença dos deuses e tentam desper-tá-los do sono secular sacudindo-os com rezas, rituais, batucadas, sangue de galo e de cabrito cujas carnes tenras acabam nos estô-magos dos que possuem garras e dentes. (Chiziane, 2010: 95)

Ou seja, a necessidade de sentir materialmente a pre-sença da divindade no mundo não é exclusiva da cosmovisão africana. Já existia na religião pragmática greco-romana, e continuou em algumas formas de cristianismo. Se assim não fosse, como seria explicável, por exemplo, o panteão católico, com a complexa santíssima trindade, a virgem Maria em ascensão celeste, e toda a corte de santos, anjos e arcanjos? Com efeito, como advoga o classicista Paul Veyne, “o cris-tianismo é um politeísmo monista” (Veyne, 2009: 26), que tem aceitado, ao longo dos séculos, e sem grande constran-gimento, manifestações evidentes de paganismo. Na obra de Paulina Chiziane, encontramos um hibridismo religioso que raras vezes tem em conta o fundo pagão do catolicismo, porque, em meu entender, a escritora reflecte na sua escrita uma leitura protestante da Bíblia, e também porque a sua convocação do Deus cristão tem, em grande parte dos casos, um propósito polémico, adstrito à condenação do colonia-lismo. Isto é, o Deus imposto aos africanos pela lei da espada é mais uma das formas de opressão imperialista.

A Bíblia funciona, no entanto, nos livros da autora, como um dos intertextos mais recorrentemente privile-giados. Deixando de lado, por ora, a semântica teológica, gostaria de dar conta de alguns processos retórico-estilísticos que, por efeito de uma ostensiva reiteração, constituem

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verdadeiros estilemas autorais. E convém notar que estes processos são de facto estruturantes, pois existem desde Balada de Amor ao Vento (1990), a primeira obra publi-cada de Chiziane. Com efeito, nesse livro, que podemos ler como uma recriação libérrima do mito genesíaco de Adão e Eva, encontramos uma narrativa liricizada, em confronto, por vezes paratáctico, com um realismo cruento e desapie-dado que faz vacilar a deriva sentimental, igualmente con-formadora da cosmovisão da romancista. Embora Paulina Chiziane trabalhe, com pertinência e eficácia, alguns textos do Novo Testamento, rendibilizando sobretudo a figura agónica de Jesus coroado de espinhos, são os livros do Antigo Testamento que constituem a sua fonte estilística mais procurada. Adquirem especial importância os “Livros Sapienciais” e o “Êxodo”, um dos textos do “Pentateuco”.

Os paralelismos são numerosos; vejamos, por isso, apenas alguns exemplos mais evidentes. No “Eclesiastes”, um dos livros sapienciais, podemos ler a seguinte afirmação sobre a vaidade das riquezas: “Aquele que ama o dinheiro nunca se fartará dele / e o que ama as riquezas não tira delas nenhum proveito” (Ecl 5). No romance O Sétimo Juramento, onde é feita uma crítica lúcida e desassombrada aos novos tiranos negros de Moçambique1, encontramos as seguintes

1 Vejam-se, sobre o assunto, os seguintes passos de O Sétimo Juramento: “Neste mundo ninguém é bom para ninguém. Enganamo-nos uns aos outros. Tiranos brancos substituídos por tiranos negros, é a moral da história” (Chiziane, 2000: 15); “– Branco, preto, colono, compatriota, tudo é igual e tudo rouba” (ibid.: 212). E, em O Alegre Canto da Perdiz, diz-se, por exemplo, o seguinte: “Sem a contribuição dos negros, a colonização não teria sido pos-sível” (Chiziane, 2010b: 186); “Os governadores do futuro terão cabeças de brancos sobre o corpo negro” (ibid.: 177).

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reflexões: “Onde há riqueza em demasia há segredos e mis-térios” (Chiziane, 2000: 260) e “De um lado o baú da vida e do outro o baú da renda, o que escolhes? Vale mais a vida que a renda” (ibid.: 261). Repare-se que o ritmo frásico destes excertos romanescos assemelha-se ao dos versículos bíblicos, e, em ambos os casos, estamos perante um tipo de literatura de vocação filosófica eminentemente pragmática, e com os matizes de pedagogia espiritual inerentes aos livros sapienciais.

Poder-se-á argumentar que Paulina Chiziane reactiva, com este tipo de ritmo frásico, toda a tradição proverbial da oratura africana. E é verdade, porque só desse modo adquirem verosimilhança romanesca muitas das suas per-sonagens, que falam como filósofos e poetas. Mas também é verdade que a profusão de referências bíblicas coloca este género de expressões – e são muitíssimas – em estreita ligação com os textos veterotestamentários já referidos. Vejamos mais um exemplo, extractado do início do capítulo trinta de Niketche. Trata-se de um texto que, em meu entender, recon-figura literariamente o estilo do “Cântico dos Cânticos” e contribui, também por esse facto, para o reforço poético da prosa. Ao conhecer uma das suas rivais, Rami, a primeira mulher de um marido polígamo, descreve-a com a seguinte linguagem:

A boca dela é um caju fresco, vermelho, colhido no divino cajual. O sorriso dela brilha mais que o diamante. A sua voz solta cantos, solta pombos brancos, pérolas, pepitas de ouro. Tem a pele mais lisa que o vidro polido. Como é bela, meu Deus! Sinto por ela uma torrente de fraternidade, uma atracção tão mágica como o amor à primeira vista. Trocamos confidências como velhas amigas, como irmãs gémeas. (Chiziane, 2002: 213)

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Basta uma leitura perfunctória do “Cântico dos Cân-ticos” para percebermos a similitude de processos estilís-ticos, havendo mesmo o pormenor da transformação das pombas bíblicas (Cant 1,15) em “pombos brancos”. Já na parte final do “Cântico dos Cânticos”, lê-se o seguinte ver-sículo: “Quem me dera que fosses meu irmão” (Cant 8,1); e a última frase do excerto de Chiziane como que retoma este pensamento (“Trocamos confidências como velhas amigas, como irmãs gémeas”). É evidente que o texto epitalâ-mico tradicionalmente atribuído ao rei Salomão tem uma intenção que não coincide com a do extracto da romancista moçambicana. Contudo, mesmo nesta questão, os dois textos compartilham as mesmas coordenadas referenciais, pois inscrevem-se ambos num contexto geral de sedução amorosa e erotizada.

O lirismo da prosa de Paulina Chiziane provém ainda de outros elementos importantes em que convém reparar. Alguns situam-se mais no plano da estrutura discursiva, enquanto outros constituem estilemas recorrentes. Assim, a romancista usa uma técnica narrativa que privilegia o dis-curso personalizado e confitente. Quando se trata de nar-rações heterodiegéticas, a inserção de pequenos “contos” de personagem veicula a dimensão confessional. Isto é, a narradora tece uma visão coerente do mundo, através das recordações e dos sentimentos das suas personagens, o que consubstancia, tradicionalmente, um factor de liricização da narrativa. No que diz respeito às questões de estilo, são par-ticularmente produtivos os seguintes processos: utilização da rima, repetições em estribilho, construção de “momentos líricos” evocadores, por vezes, de alguma poesia, e resseman-tização de palavras e expressões.

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A rima é profusamente abundante em todos os textos da autora. Não se trata, portanto, de uma desatenção ofi-cinal, mas de um recurso que, muitas vezes, contribui para a sedução do texto. Reparemos em alguns exemplos. Em Niketche, Rami sabe que o marido não morreu, no entanto submete-se à ganância da família, que o julga morto, e aceita a tradição da kutchinga, isto é, do levirato: dorme com o cunhado. Quando o episódio é contado ao marido, a protagonista entrega-se ao seguinte pensamento:

Baixo a cabeça encabulada. Não foi doloroso. Foi saboroso. Eu fui tchingada, mas fui amada no mesmo acto. O meu tchin-gador violou-me o corpo e deixou uma isca de carícia no meu coração. Foi preciso o Tony ser dado como morto para eu desco-brir que o amor tem outras cores e outros sabores. (Chiziane, 2002: 237)

A rima existente entre os vocábulos “doloroso/sabo-roso”, “tchingada/amada” e “cores/sabores” é semantica-mente muito relevante, porque desarticula o horizonte de expectativas não apenas do leitor, mas também da per-sonagem. Ou seja, não se espera, em princípio, que uma mulher tenha prazer numa relação sexual que é pratica-mente uma violação sancionada pela lei tradicional. E num contexto machista, também africano, nem se espera sequer que uma mulher tenha qualquer prazer sexual. Há, por-tanto, uma determinação semântica através da rima, que pode ser notada em outras expressões, como “– Ah, o Tony, boca de mel, coração de fel” (ibid.: 105); “Os velhos amigos levar-me-ão para o bar e não para o jantar” (ibid.: 165); “As boas moças são as mais caçadas, casadas, guardadas em casa como um tesouro” (ibid.: 217); “Eu era burrinha.

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Boazinha. Parvinha…(ibid.: 260). Em Balada de Amor ao Vento, só para dar mais dois exemplos, podemos ler: “Veio o abraço tímido. Trocámos odores, trocámos calores” (Chiziane, 2007: 17) e “No naufrágio intolerável do prazer, nossos braços debatiam-se à procura de uma tábua de sal-vação, e chorávamos, e gritávamos, mas as lágrimas per-diam-se no encanto do canto” (ibid.: 96).

Paralelamente a este processo de rendibilização semân-tica da rima, encontramos a insistência nas aliterações. Vejamos apenas dois exemplos: “meu Deus eu sou faúlha, eu faísco” (ibid.: 54) e “Perdoa-lhes. Elas saíram daqui enxo-valhadas como lixo, enxotadas como galinhas e foram a tua casa fazer a desforra” (Chiziane, 2002: 215).

No que diz respeito à questão dos “momentos líricos”, repare-se, por exemplo, no seguinte passo de Balada de Amor ao Vento:

Ó ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes palmeiras, aves do céu, peixes, caranguejos, barcos acostados, por onde anda o meu amor? As águas não me responderam continuando o seu marulhar maravilhoso. Por alguns instantes as palmeiras inter-romperam a dança para recomeçá-la ainda mais elegante, mais genial. [...] Os homens continuavam absortos, ninguém me via, ninguém me ligava e eu sofria sozinha. (Chiziane, 2007: 113-114)

Perante um texto como este, em que um ser apaixo-nado grita o seu desespero junto ao mar e a toda a natureza esplêndida e indiferente, é impossível não pensar em alguma poesia trovadoresca, e sobretudo num dos mais belos sonetos de Camões, cujo terceto final diz o seguinte: “Ninguém lhe fala; o mar de longe bate, / move-se brandamente o arvo-redo; / leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita” (Camões,

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1994: 169). E ainda em Balada de Amor ao Vento, o segundo capítulo começa assim:

O insólito acontece na floresta. Todos os seres escutaram os segredos da natureza e estão a operar maravilhas. As corujas cantam ao sol; os gatos pretos miam intensamente à lua cheia. Todas estas vozes unem-se no compasso do vento, que espalha pelo mundo uma mensagem de paz. Os leões e os vitelos, acasa-lados, rugem e mugem num coro de fraternidade. As hienas e as cabras abraçam-se, perdoam-se, reconciliam-se, as aves vestem plumagens coloridas. A serpente, junto ao ninho, fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se amam, crescem e se multiplicam. (Chiziane, 2007: 19)

Um texto aparentemente tão simples, que pretende reconstruir o espaço edénico propício à descoberta do amor, trabalha, na verdade, uma tradição milenar, que começa no livro messiânico de Isaías1, um dos profetas do Antigo Testamento, e continua nos adynata utópicos, que anunciam a idade de ouro na quarta bucólica de Virgílio2.

A poesia da prosa de Paulina Chiziane é, portanto, um mosaico com variadas tonalidades. Reparemos ainda em alguns casos interessantes de ressemantização de palavras e expressões. Em Ventos do Apocalipse, a escritora confere novos matizes às cores, por exemplo: “negro-fome” (Chiziane, 2010a: 64), para exprimir a miséria; e “verde-luxo” (ibid.: 165) para marcar a diferença entre a liberdade da natureza e

1 “Então o lobo habitará com o cordeiro, / e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; / o novilho e o leão comerão juntos, / e um menino os con-duzirá. / A vaca pastará com o urso, / as suas crias repousarão juntas; / o leão comerá palha com o boi” (Is 11,6-7).

2 “Ipsae lacte domum referent distenta capellae / ubera, nec magnos metuent armenta leones” (“Por si, cheias de leite, as cabras voltarão ao aprisco, / e os rebanhos não mais terão pavor dos grandes leões” [Virgílio, 1982: 77]).

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as agruras humanas. Em Balda de Amor ao Vento, aparecem dois tons de verde muito diferentes: o “verde, verde verda-deiro” (Chiziane, 2007: 28) da semente que cresce no ventre da mulher apaixonada, e o “verde bonito, verde-sangue, verde-dinheiro, regado com o suor dos condenados” (ibid.: 123) que transformam a floresta em cafezeiros. E em O Alegre Canto da Perdiz, encontramos a “batata fardada dos lares universitários, que se coze e se serve sempre vestida, para preservar o pudor e a virgindade dos nutrientes” (Chiziane, 2010b: 60), bem como uma “madalena negra” (ibid.: 294) cujo contacto é pecaminoso. E termino com mais uma refe-rência ao romance Ventos do Apocalipse, pois aí se diz que “se o homem é a imagem de Deus, então Deus é um refugiado de guerra, magro, e com ventre farto de fome” (Chiziane, 2010a: 184). Nesta frase, temos sintetizadas algumas das questões que tentei analisar neste trabalho.

Referências

AA.VV. (1986). Bíblia Sagrada (13.ª ed.). Lisboa: Difusora Bíblica.Camões, Luís de (1994). Rimas. Coimbra: Almedina.Chiziane, Paulina (2000). O Sétimo Juramento. Lisboa: Caminho. — (2002). Niketche. Uma história de poligamia (4.ª ed.). Lisboa: Caminho. — (2007). Balada de Amor ao Vento (2.ª ed.). Lisboa: Caminho. — (2008). As Andorinhas. Maputo: Indico Editores. — (2010a). Ventos do Apocalipse (3.ª ed.). Maputo: Ndjira. — (2010b). O Alegre Canto da Perdiz. Maputo: Ndjira.Noa, Francisco (1998). A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária, UEM.Veyne, Paul (2009). Quando o nosso mundo se tornou cristão. Lisboa: Edições

Texto&Grafia.Virgílio (1982). Bucólicas. Tradução e notas de Péricles Eugênio da Silva

Ramos. São Paulo: Melhoramentos.