Os prazeres do comparatismo literário: Octavio Paz e a literatura comparada

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OS PRAZERES DO COMPARATISMO LITERÁRIO: OCTAVIO PAZ E A LITERATURA COMPARADA Claudio Willer No começo de 2006 publiquei um ensaio, Octavio Paz e a literatura comparada (em Diálogos Críticos: Literatura e Sociedade nos países de Língua Portuguesa, Vima Lima Martins, organizadora, Coleção Via Atlântica, nº 8, Arte & Ciência, São Paulo, 2005). O que vem a seguir é uma versão algo ampliada (ou menos reduzida) do mesmo texto, e sem algumas das convenções – o modo de indicar referências bibliográficas, por exemplo – que a meu ver servem mais para complicar a leitura que para facilitá-la (notas de rodapé e criptogramas do tipo PAZ:1973, 26 estão fora – ao final do texto, bibliografia com os textos citados). O acréscimo ao título – Os Prazeres do Comparatismo Literário – remete a outro ensaio meu recente, publicado aqui em Agulha, Lautréamont e os prazeres do comparatismo literário (em http://www.revista.agulha.nom.br/ag51lautreamont.htm), onde declaro minha preferência por esse campo, a literatura comparada, no qual crítica e estudos literários podem respirar, libertos da opressão do paradigma e da prisão na série cronológica. Minha intenção é examinar e discutir algumas contribuições de Octavio Paz aos estudos comparados em literatura. Para tal, idéias e passagens de obras do poeta e ensaísta mexicano, especialmente de Os Filhos do Barro, são 1

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OS PRAZERES DO COMPARATISMO LITERÁRIO: OCTAVIO PAZ E A

LITERATURA COMPARADA

Claudio Willer

No começo de 2006 publiquei um ensaio, Octavio Paz e a

literatura comparada (em Diálogos Críticos: Literatura e Sociedade nos países

de Língua Portuguesa, Vima Lima Martins, organizadora, Coleção

Via Atlântica, nº 8, Arte & Ciência, São Paulo, 2005). O

que vem a seguir é uma versão algo ampliada (ou menos

reduzida) do mesmo texto, e sem algumas das convenções – o

modo de indicar referências bibliográficas, por exemplo –

que a meu ver servem mais para complicar a leitura que para

facilitá-la (notas de rodapé e criptogramas do tipo

PAZ:1973, 26 estão fora – ao final do texto, bibliografia

com os textos citados).

O acréscimo ao título – Os Prazeres do Comparatismo Literário

– remete a outro ensaio meu recente, publicado aqui em

Agulha, Lautréamont e os prazeres do comparatismo literário (em

http://www.revista.agulha.nom.br/ag51lautreamont.htm), onde

declaro minha preferência por esse campo, a literatura

comparada, no qual crítica e estudos literários podem respirar, libertos da

opressão do paradigma e da prisão na série cronológica.

Minha intenção é examinar e discutir algumas

contribuições de Octavio Paz aos estudos comparados em

literatura. Para tal, idéias e passagens de obras do poeta

e ensaísta mexicano, especialmente de Os Filhos do Barro, são

1

examinadas à luz do que é dito sobre Literatura Comparada

no livro de Sandra Nitrini com esse título, e em outros

textos desse campo. Semelhante exame equivale a uma seleção

que deixa de lado temas indispensáveis em um estudo mais

amplo sobre a sua obra ensaística. Entre outros, sua

relação com budismo, tantrismo e outras filosofias

orientais, seu pensamento político, seus vínculos com o

surrealismo e outras correntes literárias, etc.

Comparações, mais do que um campo, um método ou modo

de estudar literatura, são, em Octavio Paz, algo decisivo

em sua própria formação como poeta. Relata, em seu ensaio

homenageando André Breton (publicado em La búsqueda del

comienzo e outros lugares):

Em minha adolescência, em um período de isolamento e exaltação, li por

acaso umas páginas que, depois o soube, formam o capítulo V de

L’amour fou. Nelas [Breton] relata sua ascensão ao pico de Teide,

em Tenerife. Esse texto, lido quase ao mesmo tempo que The

marriage of heaven and hell [de William Blake], me abriu

as portas para a poesia moderna (BC, pg. 62).

Note-se que a iluminação ou iniciação ocorreu, não

apenas através deste ou daquele texto, mas de ambos, em uma

leitura sincrônica, na qual um iluminava o outro. Essa

aproximação Blake-Breton – que reapareceria em O Arco e a Lira

e outros de seus ensaios – acrescenta algo ao próprio

surrealismo, ou ao pensamento de Breton, pois este não

demonstrou especial interesse por Blake (chegou a acusá-lo

de teísmo, em Les vases communicants, desprezando,

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estranhamente, o que havia de herético e neo-pagão em sua

obra).

Também o início de sua produção como ensaísta, seu

primeiro ensaio de 1941, é associado à leitura de dois

autores distintos, Quevedo e San Juan de la Cruz.

Personificam, diz em A Outra Voz, os dois extremos da experiência

poética e humana: a solidão e a comunhão.

Há, ainda, um tipo de comparação direta, no plano da

experiência pessoal, que também faz parte de sua formação.

Inclui a primeira estada nos Estados Unidos, inspirando-lhe

O Labirinto da Solidão e possibilitando-lhe a experiência de ser

o outro; aliás, um outro entre os outros, já que tampouco

tinha o perfil do emigrado mexicano típico, o pachuco. E,

também, o contato e a convivência com poetas de outras

nacionalidades, intensificados pelas diásporas provocadas

pela Guerra Civil na Espanha e, logo a seguir, pela Segunda

Guerra Mundial, incluindo o diálogo com expoentes da

geração espanhola de 27, como Luis Cernuda e León Felipe,

com os surrealistas, e com grandes nomes da literatura

hispano-americana.

Tais contatos são registrados em dois ensaios-

depoimento, Antevíspera: Taller e Poesía e Historia, na coletânea

Sombras de Obras – Arte y Literatura. Permitem-lhe, a uma dada

altura de Os Filhos do Barro, declarar: Meu ponto de vista é parcial: é

o ponto de vista de um poeta hispano-americano. Note-se: poeta hispano-

americano, e não apenas mexicano. Certamente, isso tem a ver

com o cosmopolitismo de Octavio Paz, ou com sua dialética

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do regional e universal e seu interesse pela trans-

nacionalidade.

Diálogo é, por isso, um termo fundamental em Octavio

Paz, chegando a substituir a noção de intertextualidade,

que ele não adota. Daí a valorização de obras coletivas

como a renga (em seu livro de entrevistas, Solo a dos voces, e

no final de Os Filhos do Barro), expressões da criação cujo

interesse cresce no período atual, aquele que se sucederia

ao ciclo das rupturas, vanguardas e modernismos, período

esse, diz ele, marcado pela dissolução da noção de autoria.

E, também, a atenção que dá ao diálogo e colaboração entre

autores; por exemplo, de Pound e Eliot na criação de The

Waste Land (também em Solo a dos voces).

Sua ensaística de maior fôlego tem início,

cronologicamente, com O Labirinto da Solidão de 1950. Nesse

livro, trata de identidade cultural, do contraste entre o

emigrante mexicano, o pachuco, e os Estados Unidos, e mais,

da história do México e da sua formação; conseqüentemente,

de política, e da relação entre intelectuais, a sociedade e

o poder. Suas observações sobre o disfarce positivista, a

superposição histórica artificial do positivismo no México

apresentam consonância com a famosa crítica de Roberto

Schwartz à sobreposição de ideologias em nossa formação, às

idéias fora do lugar, em Ao Vencedor as Batatas de 1977. No entanto,

como será visto adiante, há divergência entre o pensamento

de Schwartz e de Paz no tocante à questão da influência e

da cópia nas relações entre literaturas de diferentes

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nacionalidades (ou, quem sabe, a divergência resida apenas

no foco, no objeto de interesse).

Em O Arco e a Lira, primeiro de seus ensaios de maior

amplidão tratando especificamente de poesia, de 1956,

dispõe-se a examinar o que são a poesia e o poema em sua

essência, em seus fundamentos. São feitas comparações, como

a de William Blake, Novalis e Hölderlin, para a melhor

compreensão do romantismo. Temas de O Labirinto da Solidão são

retomados a partir de outro ângulo. Focaliza, desta vez, as

relações entre poesia e poetas, de um lado, e a sociedade,

de outro. No mundo moderno, aquele existente e constituído

a partir do iluminismo, da instalação da sociedade burguesa

e, correlatamente, do romantismo, tais relações são

contraditórias e antagônicas: A poesia é desterrada do mundo

burguês, diz, em uma afirmação que seria reiterada ao longo

de toda a sua obra. Passadas mais de três décadas, em A

outra voz, de 1990, voltaria a afirmar: A discórdia entre poesia e

modernidade não é acidental e sim consubstancial. A oposição entre ambas

aparece desde o começo da nossa época, com os primeiros românticos.

Assim, insiste na solidão e isolamento do poeta em sua

relação com a sociedade, equivalente a um exílio em sua

própria terra. Aludindo especialmente a Mallarmé, observa,

em O Arco e a Lira:

O poema hermético proclama a grandeza da poesia e a miséria da

história. (...) Cada vez que surge um grande poeta hermético ou

movimento de poesia em rebelião contra os valores de uma sociedade

determinada, deve-se suspeitar de que essa sociedade, e não a poesia,

sofre de males incuráveis. (...) A solidão do poeta mostra a queda

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social. A criação, sempre na mesma altura, acusa a descida do nível

histórico. Daí que às vezes nos pareçam mais elevados os poetas difíceis.

Trata-se de um erro de perspectiva. Não são mais elevados;

simplesmente, o mundo que os cerca é mais baixo.

Examinando o trajeto desde O Labirinto da Solidão e O Arco e a

Lira até A Outra Voz e A Dupla Chama, ao longo de quatro

décadas, é como se Octavio Paz reescrevesse o mesmo ensaio,

porém movendo o objeto, buscando angulações diferentes,

procedendo à sua rotação. Outro de seus títulos, Signos em

Rotação, aplica-se a seu próprio procedimento. Há sempre um

tema, um objeto de estudo, e um contexto: a história do

México e sua cultura (em O Labirinto da Solidão), a poesia e a

sociedade (em O Arco e a Lira e Os Filhos do Barro, de 1974), as

civilizações e seus símbolos (em Conjunções e Disjunções, de

1969). No entanto, ao mesmo tempo em que sempre leva em

conta o contexto, e que relação é uma palavra-chave em suas

interpretações, objeta às explicações deterministas.

Crítica e estudos literários, ao longo dos séculos XIX

e XX, muitas vezes foram impregnados pelo positivismo, em

duas de suas modalidades. Uma delas, o positivismo

empirista que tem sua origem em Comte e em Ernest Mach,

evidente em abordagens historicistas, sociológicas e nos

recentes estudos sócio-culturais, além de muito ligado à

própria origem da Literatura Comparada (conforme examinado

por Nitrini em Literatura Comparada, a propósito do

comparatismo clássico). Outra, o positivismo formalista,

lógico-dedutivo, cuja principal origem está nos neo-

kantianos da Escola de Viena, e que norteia estudos de

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orientação estruturalista. Octavio Paz é um vigoroso

contendor de ambos. Contrapõe a filosofia romântica aos

cientificismos. Em A Outra Voz, dedica algumas páginas à

crítica ao cientificismo nos estudos literários. Equipara

interpretações mais sociológicas ou deterministas a alguém

tomar uma pintura de flores de Van Gogh para esclarecer

questões de botânica. Na mesma medida, objeta aos

formalismos, chegando a falar em imperialismo da lingüística nos

estudos literários. Assinala com clareza suas diferenças

com relação aos lógico-matemáticos e aos estudos literários

em Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo.

Quanto às comparações, esquematizando seu

procedimento, é como se houvesse dois termos, A e B,

suponhamos, onde A poderia ser a poesia, e B o seu

contexto, ou um de seus contextos. Seu “método” seria

então, para a melhor compreensão de A e de B, examinar um à

luz do outro, rodando-os, como é feito em cálculos e

representações complexas nas ciências exatas. A noção

científica e matemática de rotação não é estranha ao

pensamento de Paz. Está presente, entre outros lugares, em

Signos em Rotação, bem como na idéia de uma dialética dos signos em

Conjunções e Disjunções. Mas se o termo A deste exemplo for a

poesia, e se B for, por exemplo, a nossa sociedade, o mundo

contemporâneo, então intervém uma valoração, uma dimensão

qualitativa: B é o mundo da instrumentalização, da

submissão aos ditames do útil, e A contém sua crítica e a

verdades reveladas através de poetas tão distintos entre si

(ao menos, distintos na forma e cronologicamente) quanto

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Blake, Novalis, Baudelaire, Mallarmé ou Breton, entre

outros.

Essa rotação dos termos é bem captada por Maria Esther

Maciel, em uma substanciosa contribuição à bibliografia

sobre Paz, intitulada Vertigens da Lucidez, levando-a a falar

em uma lógica da vertigem, quando

.Sem subtrair as diferenças e as possibilidades de síntese entre duas

instâncias dissimiles, Paz tridimensionaliza a relação, de forma a exibir,

simultaneamente, a cisão e a identidade entre os termos, mantendo,

ainda, tanto a tensão entre eles quanto uma certa independência de

cada um.

Para Maciel, esse é um procedimento que se distingue

da dialética hegeliana, pois esta, embora também alicerçada no

jogo de contrários, não admite que tese e antítese aconteçam

concomitantemente. A ensaísta conclui que

(...) a lógica de Paz espacializa a lógica hegeliana, por funcionar

pela via da contigüidade (base do pensamento sincrônico) sem, contudo,

se eximir da temporalidade: para ele, todas as faces e fases da relação

entre os contrários se mostram em conjunção e disjunção ao mesmo

tempo, sem prejuízo da idéia de movimento que a impulsiona. Daí o

caráter paradoxal do seu pensamento.

Em síntese: Paz, ao proceder como ensaísta, pensa como

poeta. Quando Maciel fala em contigüidade e em pensamento

sincrônico, pode estar dizendo que os ensaios de Paz são

regidos por um pensamento analógico, mais que lógico-

dedutivo. E isso, com todas as conseqüências e implicações

expostas no capítulo inicial de Os Filhos do Barro:

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Em sua disputa com o racionalismo moderno, os poetas redescobrem

uma tradição tão antiga como o próprio homem, a qual, transmitida

pelo neoplatonismo renascentista, além das seitas e correntes

herméticas e ocultistas dos séculos XVI e XVII, atravessa o século XVIII e

chega a nossos dias. Refiro-me à analogia, à visão do universo como um

sistema de correspondências e à visão da linguagem como o duplo do

universo.

Assim, prossegue Paz em Os Filhos do Barro, o pensamento

analógico é central na poesia moderna, e a constitui:

Apesar dessa vertiginosa diversidade de sistemas poéticos – isto é: no

centro mesmo dessa diversidade – é visível uma crença comum. Essa

crença é a verdadeira religião da poesia moderna, do romantismo ao

surrealismo, e aparece em todos os poemas, às vezes de uma maneira

implícita e outras, em número maior, de maneira explícita. Denominei-a

analogia.

Uma conseqüência é haver, em seus ensaios, bastante

prosa poética, a par da quase obsessão com o jogo de termos

antagônicos, exemplificado por este parágrafo sobre a

poesia, identificada à outra voz no ensaio com o mesmo

título:

Entre a revolução e a religião, a poesia é a outra voz. Sua voz é outra

porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste

mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas. Poesia

herética e cismática, poesia inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea

e subterrânea, poesia da capela e do bar da esquina, poesia ao alcance

da mão e sempre de um mais além que está aqui mesmo. Todos os

poetas, nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou isolados, em

que são realmente poetas, ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é de

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ninguém e é de todos. (...) Plenitude e vacuidade, vôo e queda,

entusiasmo e melancolia: poesia.

O trecho acima repete o que Paz já dizia sobre a

natureza da poesia décadas antes, na abertura de O Arco e a

Lira. Tais séries de termos opostos em sua obra, aparentes

oxímoros, podem parecer exercícios de estilo. No entanto,

resultam em análises brilhantes, como a comparação, em Os

Filhos do Barro (entre outros lugares – conforme já observado,

Octavio Paz é recorrente ou reiterativo), de vanguarda

francesa e surrealismo, de um lado, e o formalismo anglo-

americano de Pound e Eliot, de outro (e aqui, avançamos no

propósito deste ensaio, a localização de temas de

Literatura Comparada). Argumenta que, a partir da mesma

matriz simbolista e simultaneísta, em um caso (dos

franceses) houve prosseguimento da rebelião romântica, da

tradição da ruptura, e em outro (dos anglo-americanos) houve

restauração tradicionalista, mesmo esta sendo formalmente

inovadora. O jogo de afinidades e oposições, convergências

e divergências, é aplicado ao exame do caráter simétrico e

contraditório da evolução da poesia moderna em inglês e francês, durante

a qual ...os anglo-americanos utilizaram o simultaneísmo [ou seja, a

contribuição, em primeira instância, de Apollinaire] em

sentido contrário ao dos poetas franceses: não para expulsar a história da

poesia, mas como o eixo da reconciliação entre história e poesia. Culmina

em sua crítica a Pound, cujo erro teria sido ler a Divina

Comédia como epopéia, ao pé da letra, como expressão de um

projeto político, e não como alegoria: Teologia secularizada:

política autoritária. O fascismo de Pound, mais que um erro moral, foi um erro

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literário, uma confusão de gêneros. Este fecho exemplifica bem o

caráter paradoxal de seu pensamento ao qual se refere Maciel, e

mostra sua produtividade.

Na mesma medida em que faz poesia em seus ensaios, nos

seus poemas há bastante metalinguagem, conforme observei

aqui em Agulha, em Comentário sobre dois poemas de Octavio Paz

disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag8paz.html, ao

publicar a tradução de um de seus poemas, Carta a León Felipe,

no qual imagens se confundem com reflexões sobre a poesia,

o corpo, o mundo que o cerca: A poesia/ É a ruptura instantânea/

Instantaneamente cicatrizada/ Aberta de novo/ Pelo olhar dos outros. Por

isso, dentre seus livros, merece especial interesse

(conforme bem observado por Maciel) El mono gramatical: é

aquele em que se fundem ensaio, crônica, depoimento e

poesia, dissolvendo a diferença entre gêneros e

modalidades.

Associar questões e temas da literatura comparada a

Octavio Paz não deve, portanto, permitir que se perca de

vista o que sua ensaística tem de original. Disposto a

apresentar pontos de vista e leituras críticas nas quais

sua própria experiência como poeta é central, não propõe um

modelo, paradigma ou teoria literária, embora contribua

enormemente para esse campo, das teorias literárias e dos

estudos comparados. Sua idéia de uma dialética de signos,

exposta de um modo em Signos em Rotação, no final de O Arco e a

Lira, e de Os Filhos do Barro, e de outro em Conjunções e Disjunções,

antes de ser crítica ou teoria literária é um pensar sobre

a linguagem e o ser humano, a história, e o modo como o

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homem, para ele um ser de palavras e feixe de imagens (em O Arco e a

Lira), é constituído pela linguagem, ao mesmo tempo em que a

produz. São evidentes as afinidades desse pensamento com a

“hipótese de Whorf-Sapir” (pela qual a linguagem precede e

constitui a percepção e organização do mundo), por ele

examinada e discutida no ensaio Leitura e contemplação

(publicada, entre outros lugares, na coletânea brasileira

Convergências).

Comparações entre literaturas e autores, no modo

sincrônico e diacrônico, fazem parte desse jogo de signos.

Portanto, são um procedimento fundamental dentro de um

projeto amplo, que inclui uma poética e uma história não-

cronológica da literatura, para usar suas próprias palavras para

designar Os Filhos do Barro. Um dos resultados é a

argumentação, também em Os Filhos do Barro, de que momentos e

movimentos distintos da história da literatura podem ser

tomados como metáfora um do outro. Mais precisamente, o

primeiro romantismo alemão e o simbolismo francês, ambos

expressões da tradição da ruptura, apresentariam relações de

equivalência, e não só de continuidade.

Daí entender o romantismo, não como movimento

delimitado por datas do final do século XVIII e meados do

XIX, mas como processo, vertente marcada pela rebelião, ao

focalizar sua unidade negativa, por sua vez associada à

tradição da ruptura. Refere-se a uma revolução romântica, expressão

da crítica, fundamento da sociedade burguesa e do que se

opõe a ela, contraposta ao classicismo. E distingue o

romantismo oficial, dos manuais e histórias da literatura, do que chama

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de verdadeiro romantismo francês. Um deles, o oficial, é composto

de uma série de obras eloqüentes, sentimentais e discursivas, que ilustram os

nomes de Musset e Lamartine. O outro, verdadeiro, é composto por

um número muito reduzido de obras e de autores: Nerval, Nodier, o Hugo do

período final e os chamados “pequenos românticos”. Na verdade, os

verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas

posteriores aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas.

Por isso, prossegue, ...A poesia francesa da segunda metade

do século passado – chamá-la de simbolista seria mutilá-la – é indissociável do

romantismo alemão e inglês: é seu prolongamento, mas também é sua

metáfora. Nessa linha de raciocínio, faz afirmações ousadas:

Houve na França uma literatura romântica – um estilo, uma ideologia, uns

gestos românticos –, mas não houve realmente um espírito romântico,

senão até a segunda metade do século XIX. Acaba chegando a

comparações entre Novalis e Rimbaud, mostrando como, em

ambos, a poesia, equivalente ao conhecimento revelado, é

identificada ora à revolução, ora à magia.

Nesses tópicos localizam-se, portanto, contribuições

evidentes à literatura comparada. São afins e sincrônicas

com relação às revisões de romantismo e simbolismo e ao

reexame da relação entre esses dois movimentos a que

procederam autores como René Wellek, Edmund Wilson, Roger

Shattuck (que é mencionado em Os Filhos do Barro) e Anna

Balakian.

Em especial, há continuidade (não-declarada) com

relação a uma obra pioneira, O Castelo de Axel de Edmund Wilson

(que deveria constar nas bibliotecas básicas do

comparatismo literário). Nela, o simbolismo é qualificado

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como segundo romantismo, e, de modo precursor, é estabelecida

a conexão entre os simbolistas Laforgue e Corbière, e os

modernizadores anglo-americanos Pound e Eliot. No entanto,

cotejando a contribuição de Wilson com as leituras de

Octavio Paz, vê-se que, nestas, é como se fosse contada a

história toda, a versão mais completa da gênese dos

modernismos e vanguardas, pois são examinados os

desdobramentos e influências do simbolismo francês no

formalismo anglo-americano de Eliot e Pound, e também nos

modernismos hispano-americanos, e no surrealismo.

Conforme bem observa Hugh Kenner, em seu prefácio à

nova edição de O Castelo de Axel, trata-se de estudo

comparativo, e a formação acadêmica do próprio Wilson foi

comparatista. Contudo, em Octavio Paz não há apenas

ampliação do alcance das comparações, porém algo a mais, o

acréscimo de um modo original de pensar, levando-o a

enxergar melhor sincronias, relações de equivalência. Daí

permitir-se qualificar o simbolismo francês como metáfora do

romantismo, e não mais, apenas, como sua continuação.

Outro tema de literatura comparada, segundo Nitrini,

corresponderia à questão e às teorias da recepção, estágio

à frente da discussão clássica da influência, por sua vez

na gênese do comparatismo literário. Talvez possa ser

associada à recepção a idéia de uma teoria da leitura, tal como

apresentada por Leyla Perrone-Moisés em um dos ensaios da

coletânea Flores da escrivaninha, que também trata de literatura

comparada:

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Jorge Luis Borges propõe uma total subversão do conceito de tradição, a

partir de uma teoria da leitura. Em “Kafka e seus precursores”, ele

observa como uma obra forte nos obriga a uma releitura de todo o

passado literário, onde passaremos a encontrar não as fontes daquele

novo autor, mas obras que se tornam legíveis e interessantes porque

existem esses autores modernos; obras que passam a ser, então,

“precursoras” dessa nova obra. Diz ele: “O fato é que cada escritor cria

seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado,

como há de modificar o futuro.

Tais afirmações do autor de O Aleph fazem parte de uma

crítica filosófica radical, que inclui o questionamento da

própria noção de tempo, e das relações entre os símbolos e

as coisas. Seu intuito é lançar dúvidas sobre a série

cronológica, a diacronia (como em seu ensaio refutando o

tempo), e sobre as noções correntes de história e de

autoria (como em Pierre Ménard, autor do Quixote, entre outros

lugares). Borges pretendia não deixar pedra sobre pedra,

desmontando ou desconstruindo o “real”. Tanto em contos

quanto em ensaios, deixa claro que para ele literatura boa,

mesmo, eram os kennigans, as sagas islandesas do ano 1000, e

que toda poesia contemporânea seria uma versão degradada de

A Divina Comédia, esta sim, obra perfeita, completa.

A mesma idéia, da leitura como transformadora e

atualizadora do passado, pode ser encontrada, sintetizada

de modo feliz, em Roland Barthes, na passagem de O Prazer do

Texto em que comenta como vê Proust em um texto citado por

Stendhal e em uma passagem de Flaubert sobre macieiras

normandas em flor, para observar que ...a obra de Proust é, ao menos

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para mim, a obra de referência, a mathesis geral, a mandala de toda a

cosmogonia literária. Vê-se que, para Barthes, Proust é um

ensinamento, fonte de conhecimento para a leitura de

Flaubert e Stendhal: torna-os mais legíveis, ou mais ricos

em sentido.

Algo semelhante foi dito por Octavio Paz (por sua vez

comentado por Leyla Perrone-Moisés em Altas Literaturas) em Os

Filhos do Barro, porém focalizando a criação, mais que o

prazer (como em Barthes) ou o conhecimento (como em

Borges):

Cada leitura produz um poema diferente. Nenhuma leitura é definitiva,

e, nesse sentido, cada leitura, sem excluir a do autor, é uma acidente do

texto. Soberania do texto sobre seu autor-leitor e seus sucessivos leitores.

(...) Não há poema em si, mas em mim ou em ti. Vaivém entre o

trans-histórico e o histórico: o texto é a condição das leituras e as

leituras realizam o texto, inserem-no no transcorrer. Cada leitura é

histórica e cada uma delas nega a história. As leituras passam, são

históricas, e ao mesmo tempo ultrapassam-na, vão mais adiante dela.

Vê-se que Paz fala em soberania do texto sobre (...) seus

leitores – mas, ao mesmo tempo, observa uma soberania do

leitor sobre o texto, já que cada leitura recria ou

transforma a obra original. Mas o que interessa são as

conseqüências extraídas dessa identificação de criação e

leitura, e da idéia de leitura produtiva, criadora.

Significa, a rigor, que uma obra não existe em si, porém

apenas quando lida, e enquanto leitura, ao relacionar-se com o

leitor. O real é a relação, e não a coisa. Tais afirmações

– que não há poema em si e o texto só se realiza na leitura –

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correspondem, sem dúvida, a um pensamento vertiginoso (para

utilizar a mesma expressão que Maciel no ensaio citado).

Suas reflexões mais vertiginosas estão em Claude Lévi-

Strauss ou o Novo Festim de Esopo. Acaba chegando a indagações

abissais:

...se a linguagem – e com ela a sociedade inteira: ritos, arte, economia,

religião – é um sistema de signos, que significam os signos? Um autor

muito citado por Jacobson, o filósofo Charles Peirce, diz: “O sentido de

um símbolo é sua tradução em outro símbolo”. Ao contrário de Husserl,

o filósofo anglo-americano reduz o sentido a uma operação: um signo

nos remete a outro signo. Resposta circular e que se destrói a si mesma:

se a linguagem é um sistema de signos, um signo de signos, que

significa este sistema de signos?

E, adiante, depois de criticar o horror à semântica dos

lingüistas e dos lógico-matemáticos, volta ao que seria o

enigma da linguagem: ...se a linguagem nos funda, nos dá sentido, qual

é o sentido desse sentido? A linguagem nos dá a possibilidade de dizer, mas

que quer dizer dizer?

Ligada à valorização da leitura, à noção de obra como

relação entre texto e leitor, condição para tornar-se, como

diz em O Arco e a Lira, verbo encarnado (esta expressão, O Verbo

Encarnado é o título de um dos capítulos de O Arco e a Lira),

temos o exame de outro tema que cabe nos estudos

comparados: o da tradução. No ensaio Traducción: Literatura y

Literalidad, argumenta que tradução e criação são operações gêmeas,

citando os casos de Baudelaire (traduzindo Poe) e Pound. E

chega a afirmações que, se adotadas e tomadas em suas

conseqüências, iriam refletir-se nos estudos comparados e

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de história da literatura. Para ele, a noção de influência

é um equívoco (nisso coincidindo com a crítica de Leyla.

Perrone-Moisés no texto já citado). E também a de

literatura nacional:

...mais correto seria considerar a literatura do Ocidente como todo

unitário, no qual os personagens centrais não são tradições nacionais –

a poesia inglesa, a francesa, a portuguesa, a alemã – senão os estilos e

as tendências. Nenhuma tendência e nenhum estilo têm sido nacionais,

nem sequer o chamado “nacionalismo artístico”. Todos os estilos foram

translingüísticos: Donne está mais próximo de Quevedo do que de

Wordsworth; entre Gôngora e Marino há uma evidente afinidade,

enquanto nada, salvo a língua, une a Gôngora e ao Arcipreste de Hita

que, por sua vez, faz pensar por momentos em Chaucer. Os estilos são

coletivos e passam de uma língua a outra; as obras, todas enraizadas

em seu solo verbal, são únicas.

E, ainda: ...Em cada período os poetas europeus – agora também

os do continente americano, em suas duas metades – escrevem o mesmo

poema em línguas diferentes.

Exemplifica com a influência (apesar de questionar o

termo, utiliza-o) de Laforgue, resultando em poemas

distintos, imitando o simbolista francês, porém oferecendo,

ao mesmo tempo, versões originais. São Lunario Sentimental de

Leopoldo Lugones e Zozobra de López Velarde, de um lado, e

Prufrock and other observations de Eliot, de outro: Em Boston, recém-

saído de Harvard, um Laforgue protestante; em Zacatecas, escapado de um

seminário, um Laforgue católico.

Aceita essa argumentação, a idéia de literatura

nacional é esvaziada; e, conseqüentemente, um dos modos de

18

entender literatura comparada, como consistindo em

comparações entre “literaturas nacionais”. Ou então,

reciprocamente, crítica e estudos literários em geral

seriam sempre, forçosamente, comparatistas, para captar a

transnacionalidade dos estilos, exibindo a relatividade dos

contextos nacionais.

Resumindo, comparações, em Octavio Paz, tanto podem

ser entendidas como identificação de toda a crítica

literária a esse campo, ao levar em conta a trans-

nacionalidade, quanto como redução ao absurdo da literatura

comparada. Se a leitura e a crítica são necessariamente

comparativas, a idéia de uma disciplina autônoma,

literatura comparada, distinta de outras, deixa de fazer

sentido. O que existiria então seria uma crítica mais ou

menos redutora, na razão inversa de ser mais ou menos

comparativa.

Cabe perguntar: Octavio Paz faz isso, procede desse

modo? Compara sempre? Seus ensaios de maior fôlego sobre

autores específicos – Sade, Sor Juana de la Cruz, Pessoa,

Michaux – são comparativos? Aparentemente não, pois

focaliza a obra de cada um. Contudo, em um ensaio

particularmente brilhante, Fernando Pessoa, o desconhecido de si

mesmo (publicado em Signos em Rotação), inicia contando como

foi sua própria descoberta de Pessoa. Poderia parecer um

modo auto-referente de fazer crítica, confundindo-a com

autobiografia. Mas, na verdade, está sendo coerente: se a

obra existe enquanto leitura, ele começa relatando a

leitura. E – consultando agora a edição de sua Obra Completa

19

– logo a seguir,volta a escrever sobre Pessoa, mas desta

vez comparando-o com o Valéry-Larbaud de Barnaboth.

Outro tema recorrente nos estudos comparados é o

trânsito de influências acompanhando relações de dominação,

hegemonia ou influência política e econômica. Octavio Paz

(nisso acompanhado de modo entusiástico por Haroldo de

Campos) mostra que tais influências equivalem, na

modernidade, a vias de mão dupla. Ou de mão invertida:

Quase todos os grandes movimentos poéticos do século [do século XX,

entenda-se] chegaram à Espanha através dos poetas hispano-americanos,

diz ele em Alrededores de la literatura hispanoamericana (publicado

em In/Mediaciones). A trans-nacionalidade tem muitas

direções. Figuras exemplares, como argumenta em Os Filhos do

Barro, são o nicaragüense Rubén Darío e o chileno Vicente

Huidobro, pelo modo como estimularam, respectivamente,

modernismos e vanguardismos em literaturas hispano-

americanas e na própria Espanha. São autores – assim como

Marti, Vallejo, Neruda, Lugones, Borges, etc, e,

acrescentaria, o próprio Paz, cujo prestígio cresceu depois

de ser traduzido para o francês por figuras do porte de

Benjamin Péret e A. Pieyre de Mandiargues – que ultrapassam

suas fronteiras nacionais. Aduziria, por minha conta, que o

caso de Borges é especialmente representativo: lido e

divulgado na França por Roger Caillois, marcou a Ítalo

Calvino e outros contemporâneos, aportou como exemplo

paradigmático ao importante livro de Michel Foucault, As

Palavras e as Coisas, para, a partir daí, com seu prestígio

ampliado, projetar-se mundialmente, inclusive no Brasil

20

(mesmo já sendo conhecido antes, porém em círculos mais

restritos, especializados – no Brasil, Mário de Andrade

chegou a comentá-lo).

O modo como Octavio Paz examina relações entre autores

de diferentes nacionalidades, a partir de uma perspectiva

mais continental que nacional, difere de uma certa

insularidade brasileira (aliás, até mesmo no México ele foi

objeto de restrições em alguns círculos, por ser demasiado

cosmopolita e insuficientemente “nacional”). Tendemos a nos

pensar como escritores brasileiros, e não da língua

portuguesa. Já Octavio Paz, a partir de uma prática, de uma

experiência concreta de trabalho e diálogo, inclusive na

preparação de revistas e antologias como Taller e Laurel

(conforme relatado em Sombras de Obras), pensa hispano-

americano. Cada país hispano-americano, Argentina, Peru,

Equador, México, etc, tem sua história; mas há uma história

literária feita de relações entre escritores desses países,

e com aqueles da Espanha. A poesia moderna espanhola,

descrita, valendo-se da metáfora, como um contínuo cair e

levantar-se de ondas que começa por volta de 1885, é vista como

um corpus autônomo, unidade vivente e elástica, um tecido de sucessivas

negações e afirmações. Por isso, critica fortemente a idéia de

“independência literária”: Este conceito é a origem de um tenaz

preconceito: a crença na existência de literaturas nacionais. Abusiva aplicação

da idéia de nação às letras, foi um obstáculo para a reta compreensão de

nossa literatura.

Rastrear influências e interlocução, do modo como é

feito por Octavio Paz, contrasta, portanto, com as diversas

21

abordagens nas quais é suposto que influências vão dos

centros para as periferias. Em Ao Vencedor as Batatas de

Schwartz, encontramos uma afirmação categórica, que parece

sintetizar sua crítica: Ao longo de sua reprodução social,

incansavelmente, o Brasil propõe e repropõe idéias européias, sempre em

sentido impróprio. Cabe discutir se a relação entre um ponto

de vista como esse e o que foi examinado nos parágrafos

precedentes é de complementaridade ou de antagonismo

frontal. A atribuição de um sentido impróprio a idéias,

qualquer que fosse sua proveniência, é estranha ao

pensamento de Paz. Equivaleria a equiparar idéias a coisas.

Em Octavio Paz, uma idéia seria antes uma conseqüência de

um sentido, e este é sempre uma relação, ou, antes, o

resultado de um tecido de relações, com leitores e com outros

signos. Aquela idéia (uma idéia européia, por exemplo), uma vez

formulada e sustentada aqui, já não é mais a mesma; é

outra, por estar em outro contexto, outro sistema de

relações.

Ou não? Veja-se estas passagens do ensaio Es moderna

nuestra literatura? (em In/Mediaciones), de 1975, criticando a

sobreposição artificial de ideologias no México (e por

extensão na América Latina):

Na França havia uma relação orgânica entre as idéias revolucionárias e

os homens e as classes que as encarnavam e tratavam de realizá-las.

(...) Por mais abstratas e ainda utópicas que parecessem,

correspondiam de alguma maneira aos homens que as haviam pensado

e aos interesses das classes que as haviam feito suas. O mesmo sucedeu

nos Estados Unidos. Em um e outro caso, os homens que combatiam

22

pelas idéias modernas eram homens modernos. Na Hispanoamérica

essas idéias eram máscaras; os homens que gesticulavam por trás delas

eram herdeiros diretos da sociedade hierárquica espanhola (...) O

verdadeiro nome da nossa democracia é caudilhismo e do nosso

liberalismo é autoritarismo.

Ainda observa a troca de máscaras: depois do

liberalismo, o positivismo; em seguida, o marxismo-

leninismo. A diferença está em incluir marxismo-leninismo

entre as ideologias sobrepostas de modo artificial, não-

orgânico, acarretando polêmicas notórias, e na introdução

do termo máscaras, uma metáfora.

Exemplos, recortes e citações dos parágrafos

precedentes correspondem, é claro, a casos particulares de

seu procedimento, da rotação e comparação de signos. E, em

Octavio Paz, o termo signo tem um sentido amplo. Poderia até

ser questionado se não há um resíduo platônico nesse modo

de enxergar acontecimentos históricos, da esfera humana e

mundana, como projeção da esfera simbólica. A resposta a

essa possível crítica está em suas considerações sobre o

caráter histórico da literatura e, ao mesmo tempo, o modo

como a própria literatura faz história, projeta-se nela, em

O Arco e a Lira. Simplificando (o capítulo sobre O mundo heróico,

no segmento Poesia e História), Homero retrata e reflete um

momento da história, e sua obra somente seria possível

naquele período e naquela sociedade. Mas sua adoção –

sobretudo no ensino, conforme frisa em A Outra Voz – impregna

nossa percepção do real; produz ideologia ou visão de

mundo. Nesse sentido, somos um produto de Homero (e de

23

Virgílio, Dante, Camões, Cervantes, Shakesperare,

Baudelaire etc).

Em Octavio Paz, a relação entre o simbólico e o

histórico tem, portanto, mão dupla. Em Conjunções e Disjunções,

civilizações são examinadas à luz da dialética dos signos

do corpo e não-corpo. De Buda ao tantrismo, do homem

desencarnado ao culto sexualizado, há uma encarnação ou

corporificação de signos do não-corpo; e de Jesus Cristo a

Lutero, o trânsito do corpo, do Deus encarnado, até sua

máxima depuração e sublimação, ou abstração. Mas os signos,

sendo por sua vez históricos, são um produto humano, e não

entidades transcendentais.

Seu modo de relacionar o literário e o extra-

literário, projetando um no outro, fica claro em uma obra

recente, A Dupla Chama, de 1993. É, talvez, seu livro mais

assemelhado a uma história da literatura, pois segue a

cronologia. Contudo, seu propósito não é estritamente

literário. Vai além, ao reconstituir, através da

literatura, a história do amor e erotismo na tradição

ocidental, desde Platão e os líricos gregos, passando pelo

amor cortês medieval, até a modernidade, o romantismo e

surrealismo, para chegar à discussão das possíveis

respostas à pergunta de como fica a questão do amor cortês

ou romântico, o amor sublime dos surrealistas, contraposto

à libertinagem e licenciosidade, na sociedade mais aberta

dos dias de hoje.

Simplificando, pode-se afirmar que, ao tratar de

poesia lírica e erótica, como em A Dupla Chama, o crítico de

24

orientação formalista faria um recorte e focalizaria apenas

as obras, os textos, a “escritura”; e o sociólogo

examinaria essa lírica como retrato ou índice do que

acontecia, do que as pessoas faziam e de como era a

sociedade em cada momento considerado. Mas Octavio Paz,

nesse quase-testamento ou balanço final (tinha 79 anos ao

publicá-lo), novamente aplica a dialética dos signos – no caso, o

amor único e o erotismo, tomados como signos – em suas

relações de antipatia e simpatia, atração e repulsão.

Pode ser demonstrado que falar de relações entre

signos desse modo, e projetá-las na história, é pensamento

analógico, mobilizado de modo coerente com sua própria

poesia, toda ela de imagens (no sentido dado ao termo por

Pierre Reverdy, como aproximação de realidades distintas), e com

sua poética, na qual a analogia é central. Talvez caiba

classificar a ensaística de Octavio Paz como expressão de

uma visão de mundo, mais que uma filosofia, teoria

literária ou teoria da História, e isso, com o mesmo

sentido com que utiliza a expressão em O Arco e a Lira,

aplicando-a ao surrealismo, ao observar que o surrealismo não é

uma poesia, mas uma poética, e, sobretudo, uma visão de mundo. Ir além

no estudo e discussão dessa visão de mundo obrigaria a

examinar sua contribuição propriamente filosófica, e também

sua afinidade com os sistemas filosófico-religiosos do

oriente, especialmente o Budismo, seguindo um caminho já

trilhado por outros ensaístas.

Observe-se ainda que Octavio Paz exagera em seu não-

academicismo, especialmente no modo como despreza a citação

25

de fontes e referências bibliográficas, ao contrário do que

se faz nas teses e ensaios acadêmicos, onde cada passo é

fundamentado, esperando-se que sejam apresentadas pelo

ensaísta suas fontes, as referências, o que provém de outro

autor. Em A Outra Voz, discute uma passagem de C. S. Lewis

sobre símbolo e alegoria; porém o mais correto, nesse caso,

teria sido empreender o exame e discussão desses conceitos

em Walter Benjamin. Denis de Rougemont é citado, discutido

e questionado, a propósito de amor cortês, em A Dupla Chama.

Em Os Filhos do Barro, há uma nota final, de algumas páginas,

em que discute um estudo de Edmund L. King, What is Spanish

Romanticism?, confrontando-o com sua própria visão do

romantismo e dos modernismos hispano-americanos (FB, pgs.

208-211, para mostrar que os modernismos hispano-americanos

influenciaram seus equivalentes espanhóis, e não o

contrário). Em algumas ocasiões, em O Arco e a Lira (em uma

nota para a segunda edição), Os Filhos do Barro e Claude Lévi-

Strauss ou o Novo Festim de Esopo, refere-se a Roman Jacobson,

reconhecendo sua contribuição, distinguindo-a daquela dos

formalistas e estruturalistas que aplicam modelos baseados

na lingüística, de modo redutor.

Mas essas são exceções. O normal é passar por cima.

Isso cria dificuldades adicionais para estudá-lo e discuti-

lo. Em O Arco e a Lira, Heidegger aparece no capítulo sobre a

inspiração, citado – e também nas entrelinhas, ou em

alusões, como no belo final deste capítulo, quando vê a

emergência do outro, da sua outridade, como aproximação ao

Ser, para concluir assim: A inspiração é lançar-se para ser, mas

26

também e sobretudo é recordar e voltar a ser. Voltar ao Ser. Mas fica no

ar a pergunta: até que ponto Paz segue a ontologia

heideggeriana? Talvez o faça além do que admite: no ensaio

sobre surrealismo, La Busqueda del Comienzo, diz que a imagem

poética é uma abertura para o Ser. Uma afirmação como essa

é um acréscimo ao pensamento de André Breton, materialista

e monista, a quem a noção de ser da metafísica é estranha.

Também sua insistência no outro, na otredad (aqui

traduzido pelo neologismo outridade), pode corresponder a

uma noção hegeliana, da alteridade. Pode, ou não: não se

sabe, é algo que permanece ao sabor das interpretações. Sem

dúvida, seu emprego da noção de negatividade é hegeliana. O

tratamento dado à contradição entre a esfera do sujeito, ou

da subjetividade, e do objeto, do mundo das coisas, ao

falar em objetivização do sujeito e de subjetivização do objeto (em

maior detalhe em A Busca do Começo) pode ter raiz diretamente

hegeliana. Ou indiretamente: André Breton, por sua vez

fonte declarada de Paz, foi leitor de Hegel, e o destacou

como fundamento. Ou então, há uma origem baudelairiana,

correspondendo ao que foi sugerido como arte pura pelo autor

de As Flores do Mal, por sua vez leitor de Hegel e de filosofia

romântica, em A Arte Filosófica, ao propor a superação da

dualidade entre sujeito e objeto: O que é a arte pura segundo a

concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo

o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.

Baudelaire, sim, é freqüentemente citado por Octavio

Paz. Ocupa posição central em sua ensaística. Aparece como

protagonista em Os Filhos do Barro (a capa da edição espanhola

27

de 1974, da Seix Barral, é uma seqüência de retratos

alternados de Baudelaire e Stalin, para ilustrar a idéia de

um contraste entre rebelião romântica e autoritarismo a

pretexto de revolução). As correspondências baudelairianas,

ou o modo como Baudelaire reinterpretou as correspondências

swedenborguianas, são um fundamento da dialética dos

signos. Sua contribuição como crítico de arte é examinada

em um ensaio publicado em El Signo y el Garabato, no qual Paz

sustenta que sua idéia de harmonia de formas e cores

antecipou o abstracionismo, a desaparição da presença.

A aparente falta de rigor nas referências, fontes e

citações pode ser um modo de destacar aquilo que realmente

importa. Poemas, como o soneto Correspondências de

Baudelaire, Cristo no Monte das Oliveiras, de Gérard de Nerval, e

No Túmulo de Christian Rosenkreutz, de Fernando Pessoa, têm versos

transcritos em Os Filhos do Barro, para ilustrar, através

deles, respectivamente a analogia (em Baudelaire) e a morte

de Deus (em Nerval e Pessoa). Implicitamente, sugere que a

fonte de conhecimento e reflexão está na poesia, e não na

teoria, na metalinguagem. Daí o grau maior de consideração

pelos poetas, com relação a críticos e filósofos. Ou por

poetas-críticos e poetas-filósofos, como Novalis,

Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Breton, compondo uma família à

qual Octavio Paz também pertence.

Bibliografia: textos citados:

28

Obras de Octavio Paz:

A dupla chama – Amor e Erotismo, tradução de Wladir Dupont,

Editora Siciliano, São Paulo, 1993;

A outra voz, tradução de Wladir Dupont, Editora

Siciliano, São Paulo, 1990;

Claude Lévi-Strauss ou o Novo festim de Esopo, tradução de

Sebastião Uchoa Leite, Editora Perspectiva, 1977.

Conjunções e Disjunções, tradução Lúcia Teixeira Wisnik,

Editora Perspectiva, São Paulo, 1979;

Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, tradução de

Moacyr Werneck de Castro, Editora Rocco, Rio de

Janeiro, 1991;

El Signo y el Garabato, Ed. Joaquim Mortiz, México, 1975;

In/Mediaciones, Editorial Seix Barral, Barcelona, 1981;

La búsqueda del comienzo, Editorial Fundamentos/ Espiral,

Madri, 1974;

O Arco e a Lira, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira,

Rio de Janeiro, 1982;

O Labirinto da Solidão e post-scriptum, tradução de Eliane

Zagury, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,

1976;

Os Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Nova

Fronteira, Rio de Janeiro, 1984;

Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite,

Editora Perspectiva, São Paulo, 1972;

Solo a dos voces (em parceria com Juliás Rios), Editorial

Lumen, Barcelona, 1973;

29

Sombras de Obras – Arte y Literatura, Biblioteca de Bolsillo,

Barcelona, 1996;

Traducción: Literatura y Literalidad, Tursquets Editores,

Barcelona, 1980.

Outros autores:

Barthes, Roland, O Prazer do Texto, tradução de Jacó

Guinsburg, Editora Perspectiva, São Paulo, 1977;

Baudelaire, Charles Baudelaire – Poesia e Prosa, organizado por Ivo

Barroso, vários tradutores, Ed. Nova Aguillar, Rio de

Janeiro, 1996;

Maciel, Maria Esther, Vertigens da Lucidez, poesia e crítica em Octavio

Paz, Editora Experimento, São Paulo, 1995;

Perrone-Moisés, Leyla, Flores da escrivaninha: ensaios, Companhia

das Letras, São Paulo, 1990;

Perrone-Moisés, Leyla, Altas Literaturas, Companhia das Letras,

São Paulo, 1998;

Nitrini, Sandra, Literatura Comparada, Edusp, São Paulo, 2000;

Schwartz, Roberto, Ao Vencedor as Batatas, Livraria Duas

Cidades, São Paulo, 1977;

Wilson, Edmund, O Castelo de Axel, tradução de José Paulo Paes,

Companhia das Letras, São Paulo, 2004.

30